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2009

Vol.1

Revista Tessituras
[1]

Sumário
 Editorial ...................................................................................................................................2

 Racionalidade, Costume e Ideologia: Esboço de crítica marxista a uma controvérsia do


individualismo metodológico
José Ernesto Moura Knust.......................................................................................................5

 Guimarães Rosa e o (des)enredo da vida pela palavra


Ana Maria Esteves.................................................................................................................21

 O uso da Idade Média por Pier Paolo Pasolini no Decameron


Ana Carolina Lima Almeida .................................................................................................25

 A ayahuasca e seus usos culturais


Daniel Martinez de Oliveira..................................................................................................36

 A ciência em Sherlok Holmes


Dimas de Fonte Silva ............................................................................................................53

 O cotidiano do trabalhador romano segundo o “Moretvum”


Luiz Fernando Dias Pita........................................................................................................67

 Diálogos com Humberto Maturana: Interpelações sobre a ética


Geni Amélia Nader Vasconcelos ...........................................................................................74

 A questão da identidade cultural: um olhar sobre Cartola


Nanímia Conde Ferreira Góes Viegas...................................................................................86

 Memória e imagem: poética do cotidiano


Selma Ferro dos Santos..........................................................................................................98

 O programa Baixada Digital e a Baixada Fluminense: uma proposta sem resposta


Sidney Cardoso Santos Filho...............................................................................................106

 Histórias lusófonas das margens do Índico: as mãos dos pretos – Antologia do conto
(resenha)
Anselmo Peres Alós..............................................................................................................115

 História regional e escravidão (resenha)


João Raimundo de Araújo ...................................................................................................120
[2]

E D I T O R I A L

Chegamos ao número 1! E cumprimos aquilo que foi prometido, há exatos seis meses, quando
lançamos o número zero: além de efetuado o registro de nossa revista eletrônica no ISSN e de
confirmarmos o compromisso com a manutenção de uma publicação semestral, extrapolamos os
muros da Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, abrindo as páginas virtuais da Tessituras para
colaboradores “de fora”. Alguns nem são tão de fora assim: são queridos ex-alunos formados na
nossa IES que estão alçando outros voos pela vida. Outros são novos amigos, professores ou alunos
de instituições com as quais sempre travamos ótimas relações. Claro, a “prata da casa” não deixou
de ocupar seu espaço: quatro artigos e uma resenha foram produzidos pelos professores da
Faculdade Santa Dorotéia.

Começando com a turma “de fora”: Nanímia Conde Ferreira de Moraes Góes Viegas, com este
nome de princesa, ex-aluna de História da nossa Faculdade, hoje professora e pós-graduanda (Lato
Sensu) em Gestão e Produção Cultural na Universidade Estácio de Sá, nos brinda com belo painel
da trajetória artística de Cartola, figura ilustríssima do samba e da música popular, em meio a uma
discussão sobre o processo de formação da identidade nacional do brasileiro no contexto do
desenvolvimento da indústria cultural em nosso país. Daniel Martinez de Oliveira, também
graduado em História na FFSD, recém Mestre em Antropologia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), nos fala em seu artigo sobre os usos culturais da bebida ayahuasca entre grupos
e movimentos religiosos diferentes, abordando os contextos em que é ingerida e as finalidades a que
serve.

Igualmente provenientes da Universidade Federal Fluminense, temos dois estudantes da pós-


graduação em História. A doutoranda Ana Carolina Lima Almeida explora a relação História e
Cinema, a partir do estudo do uso do passado pelo filme Decameron, do diretor italiano Pier Paolo
Pasolini, que tinha como objetivo tratar do neocapitalismo na Itália na virada da década de 1960
para os anos 70, mas termina por dar maior relevo ao corpo, aos órgãos sexuais e à prática sexual,
esferas nas quais, para o cineasta, o neocapitalismo não havia ainda penetrado. Por sua vez, o
mestrando José Ernesto Moura Knust, friburguense nato, ousa com um texto voltado ao debate
teórico-metodológico em torno da busca permanente das causas e determinações do
comportamento humano, debate este travado entre duas grandes correntes de pensamento na área
das ciências humanas. Discutindo a problemática central do individualismo metodológico
(representado por Max Weber e Fredrik Barth) e sua tentativa de explicar os sistemas de valores
sobre os quais se baseiam as escolhas humanas, o autor analisa o caminho proposto pelo
[3]

materialismo histórico que, por meio do conceito de ideologia, parece superar o problema de
maneira mais eficiente.

Mestre em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Dimas de Fonte Silva
aborda a ciência em Sherlock Holmes, recorrendo ao historiador italiano Carlo Ginzburg, autor de
“Sinais, Raízes de um Paradigma Indiciário”, para estabelecer a analogia Historiador/Detetive,
lembrando que o personagem de Conan Doyle foi usado por Guinzburg como um componente
explicativo de suas teorias sobre Morfologia, História e Epistemologia e para identificar a
emergência, ao final do século XIX, de um novo modelo epistemológico no âmbito das Ciências
Humanas. Já o amigo Luiz Fernando Dias Pita, Doutor em Letras Clássicas pela UFRJ e membro
do Conselho Editorial de Tessituras, seguindo tendência aberta pelos historiadores das mentalidades
e pelos estudos sobre o cotidiano, apresenta análise sobre o poema “Moretum”, o qual,
historicamente atribuído a Virgílio, oferece subsídios tanto para um conhecimento mais
aprofundado do cotidiano do trabalhador livre em Roma, quanto da dieta deste trabalhador.

A “prata da casa” da Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia foi muito bem representada pelas
professoras da área da Educação Geni Nader Vasconcellos e Selma Ferro dos Santos, por Ana
Maria Esteves, de Letras, e pelos colegas Sidney Cardoso (Geografia) e João Raimundo (História).

Geni Amélia Nader Vasconcelos, Mestre em Educação pela UERJ e membro do Conselho
Editorial de Tessituras, promove diálogo sobre ética com o biólogo chileno Humberto Maturana,
criador da teoria da Biologia do Conhecer ou Biologia do Conhecimento e propositor do
construtivismo radical. Segundo Geni, “articulando o biológico, o cultural e o social, Maturana
provoca-nos a repensar o lugar a partir do qual certas questões são pensadas”. Neste estudo, a autora
sublinha as contribuições do teórico para o entendimento da ética, do que somos, do mundo que
desejamos e de como podemos trabalhar para gerar esse mundo desejado. Também Mestre em
Educação pela UERJ e conselheira de Tessituras, Selma Ferro dos Santos, Coordenadora do Curso
de Pedagogia da FFSD, une narrativa e imagem em seu artigo, visando identificar, com base na
análise de eventos comemorativos vivenciados no Colégio Estadual Canadá, escola da rede pública
estadual de Nova Friburgo, como professoras e professores constituem sua identidade profissional
através dos fazeres e saberes de sua prática cotidiana.

Ana Maria Esteves, Mestre em Letras pela UERJ e professora da FFSD, nos fala do grande mestre
da palavra João Guimarães Rosa e da relação íntima entre linguagem e vida. Ana destaca que, nas
narrativas de Rosa, a realidade nunca aparece como um dado imóvel, acabado; é um contínuo fazer-
[4]

se, permanente vir-a-ser que se instaura no momento único da narração. Tendo o leitor como seu
aliado, o mestre criador e reinventor da língua nacional restaura os sentidos poéticos da existência,
elevando, ao máximo grau possível, a sua relação com a linguagem. Outro Mestre pela UERJ, na
área da Geografia, Sidney Cardoso Santos Filho, grande incentivador da nossa revista eletrônica,
membro dos mais atuantes de nosso Conselho Editorial e da Associação de Docentes da FFSD,
professor da rede pública em Duque de Caxias, analisa, em seu artigo, a intervenção do programa
Baixada Digital na região da Baixada Fluminense, no que tange a sua plataforma de inclusão
digital, sociabilidade e territorialidade.

Por fim, o Professor Doutor João Raimundo de Araújo, “capa” do número zero da Revista
Tessituras, desta feita nos apresenta a resenha do livro dos historiadores friburguenses Edson Lisboa
e Jorge Miguel Mayer “Os crimes da Fazenda Ponte de Tábuas – Um estudo sobre a escravidão em
Nova Friburgo no século XIX”, importante trabalho de pesquisa sobre documentação histórica que
desmonta o mito alimentado por setores da classe dominante local, segundo o qual, em Nova
Friburgo, não teria se estabelecido o trabalho escravo.

A “capa” da nossa nova edição é a Professora Doutora (em Educação pela UFRJ) Bertha de Borja
Reis do Valle, cuja entrevista nos revela um pouco da biografia, das ideias e das batalhas travadas
por esta grande entusiasta da universidade como propagadora do conhecimento científico, da
pesquisa e do ensino de qualidade. Professora da UERJ e da FFSD, mantém ativa militância em prol
da Educação, tendo participado recentemente de todas as etapas da CONAE – a Conferência
Nacional de Educação. Sobre esta conferência e seus desdobramentos, sobre os caminhos da
educação brasileira e o amor à profissão, Bertha nos fala em entrevista imperdível. É só conferir.

A todos aqueles que batalharam pelo sucesso de nossa Revista, com destaque para os companheiros
e companheiras da Associação de Docentes da Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, nossos mais
profundos agradecimentos. Aos alunos e ex-alunos da FFSD, nosso recado, mais uma vez, de que
este espaço também está aberto a vocês. Aos colegas professores, que se preparem para o próximo
número de Tessituras. Em outubro tem mais! Até lá!

COMISSÃO EDITORIAL
[5]

Racionalidade, Costume e Ideologia:


Esboço de crítica marxista a uma controvérsia do individualismo metodológico

José Ernesto Moura Knust


Mestrando em História no PPGH-UFF
Membro do NIEP-Marx /Pré-K (UFF)
[email protected]

Resumo:
O presente artigo visa discutir a problemática central do individualismo metodológico: as
causas ou determinações do comportamento humano. Pretende-se demonstrar que os
desenvolvimentos teóricos nesta tradição específica, exemplificados nos trabalhos de Max Weber e
Fredrik Barth, chegam a um problema insuperável: como explicar os sistemas de valores sobre os
quais se baseiam as escolhas humanas. A partir disto, indicaremos como o caminho do
materialismo histórico, através do conceito de ideologia, pode superar o problema de maneira mais
eficiente.

Abstract:
This article aims to discuss the central issue of methodological individualism: the human
behavior’s causes or determinations. We intend to show a fundamental problem in these theoretical
developments, exemplified in the work of Max Weber and Fredrik Barth: how to explain the value
systems upon which are based human choices. At this point, we will indicate how the path of
historical materialism, through the concept of ideology, can overcome the problem more efficiently
than methodological individualism.

Deixando de lado aspectos sociais, políticos e ideológicos que determinam o


desenvolvimento científico, e simplificando um pouco os tortuosos caminhos que este pode tomar, é
razoável afirmar que um dos motores fundamentais do desenvolvimento científico é a busca por
responder determinadas questões que balizam o surgimento e crescimento de correntes analíticas
nas diversas áreas científicas. Seguindo esta linha de raciocínio, poderíamos identificar diversos
questionamentos que, entre os séculos XVIII e XIX, estimularam o estabelecimento das ciências
sociais e de suas diversas disciplinas e correntes. Dentre estes, gostaríamos de destacar um que,
apesar de não ser o único e, consequentemente, não ter fundado todas as correntes sociológicas
relevantes, é de grande importância, sendo a base de diversos estudos e de algumas das mais
importantes tradições analíticas das ciências sociais. Trata-se da interrogação sobre o que faz
homens e mulheres agirem da maneira que costumam agir, isto é, das causas de seu comportamento
em sociedade.
O esforço para responder tal interrogação, desde o nascimento da sociologia moderna no
século XIX (deixando a psicanálise de lado), se dividiu em dois tipos fundamentais de abordagem.
A primeira destas abordagens foi corretamente identificada pelo antropólogo norueguês Fredrik
Barth como aquela interessada em entender as ações humanas a partir de sistemas de regras morais.
Tal linha de abordagem acredita que o comportamento humano é delineado pela coerção social
[6]

praticada a partir de regras morais existentes na sociedade, sendo o fundamental para entender o
comportamento humano a identificação de tais regras (BARTH, 1981:17 e ss.). A figura fundadora
desta linha é o sociólogo francês Émille Durkheim. A segunda abordagem entende o
comportamento humano como o resultado agregado de uma infinidade de ações e interações sociais
de diversos agentes individuais que delineiam certas freqüências perceptíveis aos analistas, as quais
estes chamam de formação social ou mesmo sociedade. Isto é, o interesse de fundo desta
abordagem é o que o sociólogo alemão Max Weber, sua figura fundadora, chama de Ação Social, e
a explicação das razões desta é que permitem entender o comportamento humano, sendo necessário
compreender o que torna as ações individuais convergentes para a formação das tais freqüências
que delineiam as formas da sociedade. Esta ênfase metodológica na ação individual caracteriza o
que se costumou chamar de “individualismo metodológico”.
Desta forma, o que se pretende estudar quando se pensa no problema do comportamento
humano são os elementos que definem, delineiam, ou determinam tal comportamento. A concepção
de que o comportamento humano é completamente determinado por regras morais recai no
problema de não explicar como tais regras são formadas e como elas se transformam. Não obstante
a importância das coerções sociais para a limitação de escolhas dos agentes sociais, elas não tem tal
poder explicativo total porque precisam, elas próprias, também ser explicadas (Ibidem:20). A saída
que muitos adeptos desse tipo de abordagem encontram é explicar a existência de tais sistemas de
regras morais a partir das funções sociais que eles desempenhariam na sociedade, ou seja,
desenvolvem explicações de tipo funcionalista. Este tipo de explicação, segundo o filósofo
norueguês Jon Elster, é caracterizado pela seguinte linha de argumentação: um efeito não
intencional qualquer é causado por uma instituição ou comportamento e beneficia um indivíduo ou
grupo social sem que estes tomem conhecimento deste efeito benéfico (isto é, os indivíduos ou os
grupos não têm qualquer ação intencional perceptível em estimular tal comportamento). Por um
círculo de retroalimentação causal a instituição ou o comportamento acaba por se reproduzir e
manter este efeito benéfico para tal indivíduo ou grupo, mesmo sem qualquer ação intencional
destes para que sejam reproduzidos (ELSTER, 1989:55-56). Desta maneira, o que explica a
existência de uma instituição social ou de um comportamento específico não é a intenção dos
agentes, mas a sua função social. O problema central deste tipo de análise é explicar como ocorre
tal retroalimentação sem que os agentes envolvidos tenham consciência e intenção de promovê-la.
Críticos do funcionalismo, como Jon Elster e Fredrik Barth, acreditam que a explicação para tais
situações dependem de algum nível de conhecimento por parte dos indivíduos ou grupos sociais
beneficiados da relação entre o efeito (ou função) e a instituição ou comportamento social que causa
tal benefício. Desta maneira o fator explicativo não é a função, mas a ação intencional do grupo em
busca do favorecimento de seus interesses através de tal função (Ibidem:57; e BARTH, 1981:15).
[7]

Com isso, tais críticos visam um numeroso corpo da bibliografia sociológica que acredita na
premissa implícita de que se for possível demonstrar que um fenômeno determinado tem efeitos
benéficos para um grupo, então a explicação de sua existência já está dada, mesmo que não haja
intenção nem reconhecimento da questão pelos agentes sociais envolvidos.
Dito isto, acreditamos que a compreensão do comportamento humano passa por entender as
motivações das escolhas dos agentes sociais. Para isso, é preciso analisar dois elementos: o quanto o
comportamento humano é determinado por considerações racionais dos agentes acerca de seus
interesses (sendo importante alvo de debates dentro deste elemento o que significa tal racionalidade
e o que determina tais interesses) e o quanto este comportamento é determinado pelo hábito,
costume ou tradição (obviamente sendo o significado destes conceitos também alvo de disputas).
Além desse interesse da sociologia, o problema do comportamento humano também recebeu
a atenção dos economistas, principalmente a partir da década de 1870. Foi nesta década que ocorreu
uma transformação fundamental do foco de interesse da ciência econômica: das causas do
desenvolvimento e da riqueza, interesse básico da Economia Política Clássica (de autores como
Adam Smith e David Ricardo), passou-se a focar justamente a busca pelo entendimento das
escolhas dos agentes. A Teoria Econômica Neoclássica (ou Marginalismo), surgida desta
transformação, é até hoje dominante nos departamentos de economia mundo afora (e, por isso,
midiaticamente conhecida como ortodoxia econômica). Seu fundamento é a idéia de que a
Economia é a “ciência que estuda a alocação racional de recursos escassos entre fins alternativos”,
definição cunhada pela primeira vez pelo economista britânico Lionel Robbins (apud PAIVA;
CUNHA; 2008:22). Sendo assim, “é racional o agente que busca obter o máximo benefício por
unidade de dispêndio de seus recursos escassos” (Ibidem:15). Percebe-se aqui que o marginalismo
se fundamenta no individualismo metodológico, pois também atenta à ação dos indivíduos, e aposta
suas fichas em uma explicação focada na determinação do comportamento humano pelas
considerações racionais de homens e mulheres acerca de seus interesses. A abordagem marginalista
é o grande centro do debate sobre a racionalidade dos agentes sociais e, portanto, quando se fala em
racionalidade é inevitável dialogarmos, mesmo que minimamente, com esta corrente. Esta
centralidade do marginalismo no debate também se deve em muito ao fato de tradicionalmente
associar-se a idéia de racionalidade com o comportamento racional capitalista, foco do interesse
neoclássico. Isso se reflete, também, no fato de o tema da racionalidade tradicionalmente se inserir
nos debates sobre o comportamento econômico humano, fato que se refletirá em nossa abordagem
neste artigo.
Sendo assim, para os economistas da linha neoclássica o que determina o comportamento
dos agentes, salvo certos impedimentos determinados por comportamentos irracionais (e, portanto,
aleatórios, inexplicáveis), é a busca por maximização da satisfação de utilidades a partir de seus
[8]

recursos escassos. Seguindo esta linha, a explicação do comportamento humano deve ser buscada
em uma teoria da escolha racional, sendo isto possível a partir da construção de modelos
matemáticos que demonstrem as escolhas que maximizam utilidades dada uma determinada
situação qualquer. Tal teoria parte de determinadas premissas que delineiam o que se convencionou
chamar de preceito do homo oeconomicus, uma percepção que aposta numa natureza humana
universal e imutável. Tais premissas seriam de que, entre outras coisas, o homem naturalmente é:
hedonista, busca sempre a maximização de seus interesses, não se dando por satisfeito com
qualquer nível de satisfação alcançado (é precisamente isto que cria a escassez de recursos, pois as
utilidades possíveis destes são vistas como infinitas); egoísta, suas relações com outros homens
sempre tem como único objetivo a satisfação de seus próprios interesses, mesmo que indiretamente;
coerente, seus interesses não se contradizem nem entram em conflito; onisciente, possui todas as
informações necessárias para a tomada de decisões; voluntarista, sempre se esforça ao máximo para
obter seus objetivos, nunca se rendendo à inércia.
Principalmente a partir da antropologia econômica, as premissas marginalistas vêm sendo
severamente criticadas. Dois dos maiores críticos nesta linha são o húngaro Karl Polanyi e o francês
Maurice Godelier. Ambos os autores acreditam que, apesar de focado no comportamento
econômico, o aporte marginalista descamba em uma teoria geral da ação humana. Isto por que não
existem meios ou fins racionais em si, em absoluto. Racionais são as relações entre meios e fins,
isto é, a forma de alocação de meios para a obtenção de determinado fim 1. Desta maneira, a lógica
da ação racional pode ser aplicada a qualquer aspecto da vida, e não apenas às relações que
garantem a satisfação das necessidades humanas. Exatamente por isso que certos instrumentos
técnicos da teoria econômica neoclássica são extremamente bem sucedidos para o planejamento de
diversos tipos de operações, sejam produtivas, militares ou mesmo para um jogo de xadrez. Dados
certos objetivos e certos meios, a teoria marginalista é capaz de detalhar estratégias ótimas de ação
(GODELIER; 1971:148). Porém, tais instrumentos de análise marginalistas precisam destes
objetivos e meios como dados a priori para emitir suas sentenças, não sendo capazes de explicar
justamente o conteúdo específico de tais objetivos nem a configuração social que delineia os meios
possíveis.
Na verdade, o marginalismo não se preocupa em explicar estes dois pontos porque parte da
premissa que tais conteúdos e tais configurações sociais não são historicamente e socialmente
mutáveis. Isto é, o marginalismo naturaliza os conteúdos dos objetivos capitalistas e a configuração
social da sociedade de mercado para realizar suas análises, acreditando que tais são imanentes à
natureza humana. As relações econômicas como vistas pelo marginalismo não são sociais, referem-
se a um indivíduo abstrato que corresponde de certa maneira ao indivíduo inserido nas relações de

1
(POLANYI, 1997:.15; GODELIER, 1969:22 e 314-315).
[9]

mercado, relações estas que se caracterizam justamente por um alto nível de impessoalização
(GODELIER; 1971:148). A percepção desta falha da teoria marginalista afeta seus aspectos
fundamentais. Exemplo disso é a crítica de Polanyi ao postulado da escassez. Para o antropólogo
húngaro, a insuficiência de meios não cria em si uma situação de escassez: não é por não ter acesso
suficiente a determinado bem que uma pessoa não poderá passar sem ele (POLANYI, 1997:36).
Para Polanyi, a ubiqüidade da escassez só surge na situação de mercado por uma característica
fundamental do sistema mercantil: a utilização universal do dinheiro como meio de aquisição dos
meios de satisfação de necessidades. Todos os bens e serviços estão à venda no mercado e todas as
formas de obtenção de ingressos derivam da venda de bens e serviços. Desta forma, o dinheiro
torna-se um recurso escasso com usos alternativos (quase que universais)2. Diferente disso, em
sociedades em que o mercado não possui tal centralidade, não existe uma situação geral de escassez
devido à insuficiência de recursos – certos recursos podem ser insuficientes, enquanto outros não o
são, não há nada que “integre” ou “homogeneíze” a disponibilidade dos recursos, como o dinheiro
faz no sistema de mercado. Podemos acrescentar a este aspecto identificado por Polanyi o fato de
que as sociedades pré-capitalistas não conhecem justamente o elemento fundamental que gera essa
situação de investimento necessariamente contínuo e expansivo que caracteriza a escassez de
recursos: o próprio Capital que deve necessariamente estar sempre em contínua expansão para
continuar sendo Capital3.
Desta maneira, o estudo do comportamento humano não pode se dar a partir de percepções
apriorísticas que nada mais fazem que universalizar aquilo que é específico da sociedade capitalista
e da realidade de mercado. Para evitar esta postura etnocêntrica se faz necessário o estudo empírico
das sociedades específicas e de suas realidades concretas – e não a formulação de constructos
formalistas teóricos que acreditam que toda e qualquer realidade obedece aos mesmos princípios da
sociedade capitalista. Porém, a empiria sozinha não responde perguntas. É necessário um aporte
teórico que possibilite tal estudo, e é atrás deste aporte que iniciaremos uma jornada por
proposições de alguns autores que consideramos frutíferas para tal tipo de estudo.

Comportamento Racional e Comportamento Costumeiro no Individualismo Metodológico


Um ponto de partida interessante, a partir do próprio individualismo metodológico, é
justamente a teoria sociológica de Max Weber. Em sua sociologia econômica, como exposta no
capítulo 2 da obra póstuma Economia e Sociedade, Weber apresenta ricas contribuições para nossa
questão. Como já dissemos, a preocupação inicial da análise weberiana é a ação social, e no caso da
2
Idem, “La Economia como actividad institucionalizada”, in: Idem, Conrad Arensberg e Harry Pearson. Comercio y
Mercado em los Imperios Antiguos. Barcelona: Labor Universitária Monografias. 1976, p.292-293.
3
Moishe Postone, “Capital and Historical Change”. Artigo apresentado na conferência “Marxian Horizons: Critical
Social Theory for the 21st Century”, Cornell University, em 13 de março de 2004 (disponível em
www.countdownnet.info/archivio/teoria/321.pdf), p.5.
[10]

sociologia econômica, a ação social economicamente orientada, entendida como a ação que, em
seu significado subjetivo, preocupa-se com a satisfação do desejo por utilidades. (WEBER;
1994:37) Por utilidades, Weber entende as probabilidades (reais ou supostas), ou as potencialidades
(como percebidas pelos agentes, por isso significado subjetivo), de aplicabilidade presente ou futura
de serviços prestados por objetos ou por pessoas. A aplicabilidade desses serviços prestados por
objetos ou pessoas é, ainda, importante para a realização dos fins que orientam a ação de tal agente,
como veremos a seguir. Juntamente a estes conceitos, é importante atentar para o conceito de poder
de controlar e dispor, ou poder econômico, que trata do controle sobre bens econômicos.
Weber então identifica dois tipos de ação social economicamente orientada: tradicional e
racional referente a fins (Ibid: 41). Esta é vista como aquela que define uma direção à ação, seja
qual for sua natureza (Ibid: 41). Isto é, para Weber, o conteúdo da racionalidade não se limita ao
que os marginalistas se referem como maximização de utilidades. Como nota Richard Swedberg,
para Weber, a racionalidade econômica difere da racionalidade em outras esferas da vida e,
especialmente, a economia pode ser racionalizada por causa de interesses muito diferentes
(SWEDBERG; 2005:62). Disto, Weber difere dois tipos de racionalidade: racionalidade formal e
racionalidade substantiva, sendo a idéia chave a de que a primeira se baseia no cálculo e a segunda
em valores absolutos. Desta maneira, afirmando que a racionalidade orientada pelo valor pode ser
tão racional quanto à orientada pelo cálculo formal, Weber se distancia completamente dos
pressupostos da teoria econômica marginalista (Ibid:63).
A racionalidade formal nada mais é que o desenvolvimento de técnicas de cálculo da forma
mais precisa e eficiente de resolver problemas através de regras abstratas e universais. Destacam-se
como exemplos máximos de racionalidade formal o método científico desenvolvido na esfera
científica, os códigos de leis na esfera jurídica e os “cálculos de capital” na esfera econômica
(KARLBERG; 1980:1158). Para entendermos melhor o que são tais cálculos de capital, precisamos
identificar as formas de cálculo econômico que existem para Weber. São três: “cálculos em
espécie”, que envolvem mensurações a partir dos próprios bens e serviços; “cálculos com a ajuda de
dinheiro”, no qual se estabelece alguma medida monetária padrão que possibilite a conversão de
quantidades de certos bens ou serviços em quantidades de outros bens ou serviços, facilitando os
cálculos; e “conta de capital”, no qual existe de fato um denominador monetário comum que
permite uma equivalência e mesmo troca imediata de uma quantidade de um tipo de bem ou serviço
por outra quantidade de outro tipo de bem ou serviço4. Para Weber, quanto maior a monetarização
das relações econômicas, mais elevado será o nível de racionalidade formal, pois o dinheiro é o que
possibilita os cálculos em termos de capital. Isto é, o uso de dinheiro possibilita se estimar os bens
não apenas através de sua utilidade atual, mas também suas futuras possibilidades na medida em

4
Ibidem, p.63 e Weber, Economia e Sociedade., p.52.
[11]

que se exprimem na forma de uma probabilidade de troca por dinheiro. Ou, dizendo de outra
maneira, o dinheiro passa a servir de denominador comum na avaliação das utilidades,
fundamentando as tomadas de decisões dentro dos quatro tipos de medidas enumeradas acima 5.
Weber, porém, superestima a capacidade do dinheiro de desempenhar este papel de denominador
comum. Tal papel não é uma característica imanente da moeda, só existindo na verdade nas
sociedades de mercado, quando de fato a moeda serve para obter toda e qualquer mercadoria e
estabelecer toda e qualquer equivalência, já que todos os bens e serviços podem ser inseridos e
adquiridos na lógica de mercado. Como mostra Polanyi, nas sociedades sem mercado, este princípio
homogeneizante não existe e as atividades econômicas se institucionalizam em diversas e distintas
instituições econômicas. Com isso, cada um dos acontecimentos das atividades econômicas se
funde com diversas lógicas das instituições onde estão integradas, impossibilitando estes cálculos
de capital mesmo que a economia seja monetarizada, pois a obtenção de bens e serviços não passa
apenas por relações sociais mercantis ou mesmo monetarizadas6. Ou seja, a impossibilidade do
desenvolvimento de cálculos de capital nas sociedades pré-capitalistas não é meramente técnica,
mas uma questão fundamental da própria forma de institucionalização das atividades econômicas
nessas sociedades.
Tais limitações da racionalidade formal aumentam a importância do outro tipo de
racionalidade identificado por Weber, a racionalidade substantiva. Trata-se da racionalidade que
direciona a ação dentro de um postulado de valores e, em um sentido mais estritamente econômico,
“o grau em que o abastecimento de bens de determinados grupos de pessoas (...) ocorre conforme
determinados postulados valorativos”7. Tais postulados valorativos podem ter diversos significados
e ser das mais variadas naturezas, o que, segundo o próprio Weber, torna a racionalidade
substantiva mais difícil de precisar, pois seu significado é, na verdade, “inteiramente vago”, sendo
determinado de maneiras diversas em cada caso. Seus diversos significados só têm em comum a
percepção da insuficiência de se considerar que apenas o cálculo formal direciona a ação, sem
estabelecer exigências éticas, políticas, filosóficas, entre outras8. Como existem inúmeros
substâncias da racionalidade, inúmeras são as direções que processos de racionalização podem
tomar. Este é um aspecto importante que muitas vezes aparece de maneira confusa na obra de
Weber, gerando interpretações equivocadas. O termo racionalização, amplamente utilizado por
Weber em seus estudos sobre a formação do mundo moderno, acabou sendo associado
completamente com a idéia de expansão do Capitalismo e do Estado Burocrático Moderno. Porém,
para Weber, racionalização não é necessariamente a racionalização ocorrida no Ocidente moderno,

5
Weber, Economia e Sociedade, op.cit., p.53.
6
Karl Polanyi, “La Economia como actividad institucionalizada”, op.cit., p.309.
7
Weber, Economia e Sociedade, op.cit., p.52.
8
Ibidem, p.52.
[12]

mas a busca pelo controle da realidade por um princípio de racionalização, que busca banir
percepções particularizadas e ordenar a percepção de mundo em regularidades inteligíveis,
coerentes e consistentes com um sistema de valores9. Isto é, não existem racionalidades absolutas e
universais, possivelmente derivadas de um racionalismo formal, baseado no cálculo, mas inúmeras
racionalidades substantivas que dependem de sistemas de valores específicos. O problema
subseqüente, portanto, passa a ser como compreender a formação de tais sistemas de valores. Este
será um dos nossos problemas neste artigo, mas antes de pensar sobre isso é necessário analisar o
segundo tipo de ação economicamente orientada de Weber, que segundo ele não se baseia na ação
racionalmente orientada, mas sim na tradição.
A ação econômica tradicional não é detalhada no capítulo sobre a sociologia econômica de
Weber, mas pode ser pensada, obviamente, em paralelo com a ação social tradicional, descrita no
primeiro capítulo como “reação surda a estímulos habituais que decorre na direção da atitude
arraigada”10. Percebemos aqui, que Weber tipifica a ação economicamente orientada entre os dois
pólos que indicamos acima, a racionalidade e a tradição. O problema neste ponto é que Weber
encara como dada a ação tradicional, pensando a tradição como algo que existe por si, uma
reminiscência inconsciente da história, sem necessidade de explicação. Está abordagem precisa
superada por uma problematização do comportamento costumeiro e, ainda dentro do campo do
individualismo metodológico, podemos encontrar um caminho explicativo mais interessante na obra
de Fredrik Barth.
O antropólogo norueguês defende uma teoria da ação social focada na importância da
construção de estratégias racionais de interações pelos agentes sociais que buscam a maximização
daquilo que eles consideram valioso a partir de seus sistemas de valores, posição próxima, de certa
forma, com o conceito weberiano de ação econômica racional referente a fins. Porém, depois de
desenvolver toda a teoria baseado nesta percepção do conceito de racionalidade, Barth matiza sua
teoria afirmando que ele não considera que os agentes, de maneira geral, constroem estratégias de
ação a todo tempo. Na verdade, eles agem guiados pelas suas ações rotineiras em situações
similares anteriores, caso tais comportamentos não tenham sido obviamente desastrosos e tenham
recebido a aprovação social. De um ponto de vista estratégico, porém, essa forma de ação faz
sentido: reduz a necessidade de informações para a tomada de decisão e aumenta a previsibilidade
das conseqüências do comportamento. Isto é, dentro de um sistema hiper-complexo de relação de
fatores a serem levados em consideração para a tomada de decisão, como é a vida em sociedade, o
comportamento costumeiro é uma forma eficiente de ação ao reduzir os riscos assumidos.

9
Kalberg, op.cit., p.1155-1157 e 1160.
10
Weber, Economia e Sociedade, op.cit., p.15.
[13]

Por outro lado, porém, isto não significa que Barth esteja apenas chegando a uma percepção
“automatista” do comportamento humano por um caminho diferente, salientando certa
racionalidade nesse comportamento. Ele afirma que apesar da força do comportamento costumeiro,
as pessoas estão a todo o tempo fazendo julgamentos na vida, analisando as performances sociais de
si próprio e dos outros. Isto por que as pessoas: têm impressões inter-relacionais do que devem ser
as prestações nas relações sociais; têm expectativas e traçam planos nos termos destas, por mais
inadequados que possam ser suas informações sobre a realidade; se não são “oportunistas”, também
não deixam de perceber quando as coisas vão bem ou mal para si próprias; e estão realisticamente
preocupados em buscar o melhor para si e sabem que se não o fizerem, outros tiraram vantagem
delas11.
Desta forma, Barth foca sua atenção no processo de institucionalização dos
comportamentos costumeiros. Segundo ele, o conceito de racionalidade “maximizadora de valores”
não nos provê um modelo geral para análise das decisões individuais, mas ilumina o processo de
institucionalização. Isto ocorre de duas maneiras: 1) Quando um agente adota um curso de ação
próximo ao que seria a estratégia mais racional nos termos de seus valores, são grandes as chances
de ele interpretar os resultados de tal comportamento como benéficos e repetir tal curso de ação em
outras oportunidades similares; 2) Quando este processo descrito acima ocorre com outra pessoa, e
a situação e comportamento são replicáveis por um agente que o observa, o comportamento daquele
servirá de exemplo para este, também estimulando a reprodução do comportamento. Percebemos,
desta forma, que para Barth o comportamento costumeiro é resultado de um movimento
convergente dos agentes na direção de estratégias ótimas. Explica-se, portanto, o comportamento
costumeiro pela institucionalização processual de uma estrutura racional de comportamento12.
Percebe-se que esta abordagem do comportamento costumeiro chega ao mesmo ponto nodal
da abordagem do comportamento racionalmente orientado para fins, esboçado acima: a formação
dos sistemas de valores. Se o comportamento costumeiro é “institucionalização processual de uma
estrutura racional de comportamento” e o comportamento racional é ação direcionada a um fim, fim
este determinado por um sistema de valores, a explicação do comportamento humano depende da
possibilidade de explicação de como tais sistemas de valores se constroem (sem recorrer a aqui já
criticada explicação funcionalista). Este nos parece ser, em última instância, o ponto fundamental
para a explicação do comportamento humano através de uma abordagem baseada no individualismo
metodológico. Mas será o individualismo metodológico capaz de responder este problema final?
Fredrik Barth desenvolve uma bela tentativa.

11
Barth, Process and form…, op.cit., p.100.
12
Ibidem, p.101-102.
[14]

Para Barth, algo tem valor quando os agentes buscam este algo, o preferem em relação a
outros “algos”13 – uma abordagem do problema do valor próxima, portanto, da teoria do valor
utilidade-marginal de Karl Menger e de todo o marginalismo. É esta mensuração de valor pelo
agente que permite identificar o sistema de codificação e avaliação, comparação e ordenação de
objetivos e fins alternativos destes agentes, que fundamentam sua ação. Mas como tudo isto se
forma antes de determinar a ação dos agentes? Para Barth, isto se dá na interação destes. Para além
de suas intenções, toda ação é percebida por outros (e mesmo pelo próprio agente) como algo que
traz informações a respeito do agente e como uma fonte de conseqüências, e estas são julgadas
quanto a sua eficácia e seu efeito. A interpretação aciona um conjunto de conhecimentos, ao mesmo
tempo em que o “precipitado” da interpretação das próprias ações e de terceiros é a experiência
desta pessoa. A experiência, por sua vez, constrói os conhecimentos e valores que agirão sobre as
intenções e interpretações posteriores. Apesar de bastante instigante, tal análise tem um problema
básico: cria um círculo vicioso na explicação, pois as interações explicam os valores e os valores
explicam as interações. O próprio Barth percebe isto e sua tentativa de solução expõe bem as
limitações do individualismo metodológico. Ele afirma que o comportamento interacional se
constrói referenciado por um padrão de valores que estabelecem incentivos e constrangimentos às
escolhas, e que obviamente isto se referencia por sua vez em um padrão pré-estabelecido de status,
obrigações e direitos morais, acesso a recursos e distribuição de bens e oportunidades. Porém,
continua Barth, seu modelo toma estas informações como dadas e explicam as escolhas e as
interações estratégicas a partir delas, e não tentam dar uma explicação de como tais posições
surgiram14. Desta maneira, percebemos que mesmo o individualismo metodológico mais refinado,
exemplificado aqui pela abordagem de Fredrik Barth, cai no mesmo problema do individualismo
metodológico marginalista: precisa partir de certas informações dadas acerca da “situação inicial”
de sistema de valores, distribuição de recursos e status, etc., sem ser capaz de dar explicações para
tal situação inicial.

Materialismo Histórico e Ideologia


A solução deste impasse metodológico passa por expandir o leque de questões fundamentais
cotejadas na abordagem sociológica. Para poder contemplar mais satisfatoriamente a questão acerca
das causas do comportamento humano em sociedade, faz-se necessário enfrentar outra problemática
fundadora: o questionamento sobre as causas da desigualdade social. Reside aí a possibilidade de
solucionar o impasse das “situações iniciais” a que chega o individualismo metodológico, pois o
estudo de tais desigualdades permite justamente entender as diferentes “posições iniciais” de que

13
Ibidem, p.39 e p.91
14
Ibidem, p.40 e p.77
[15]

partem os agentes sociais. O questionamento sobre as causas da desigualdade emulam outras


posturas metodológicas, críticas ao individualismo metodológico, entre as quais destacaremos o
materialismo histórico. Acreditamos que esta abordagem, que tem como figuras fundadoras os
alemães Karl Marx e Friedrich Engels, permite a superação do problema que identificamos como
nodal no individualismo metodológico, exemplificado nas obras de Weber e Barth.
O ponto de partida do materialismo histórico é a idéia de que “os homens têm de estar em
condições de viver para poder fazer a história”15. Tais “condições de viver” são alcançadas através
da satisfação das necessidades humanas – necessidades em sentido lato, já que Marx e Engels
afirmam que a satisfação das necessidades dadas gera a criação de novas necessidades. É
importante notar, também, que tal satisfação de necessidades só é alcançável para os seres humanos
através da criação de relações sociais. Este é, portanto, o cerne do materialismo histórico: a idéia de
que as relações humanas (sejam elas quais forem) não podem ser explicadas em si mesmas, devem
ser entendidas a partir das “condições materiais de existência em suas totalidades (...) [que foram
denominadas no século XVIII como ‘sociedade civil’”16].
É imprescindível, neste momento, evitar uma confusão em que muitos, marxistas e críticos
do marxismo, costumam incorrer. O que Marx e Engels estavam defendendo com sua proposição
materialista não era um determinismo econômico simplista, uma concepção segundo a qual,
compreendidas as condições econômicas, toda a sociedade também estaria explicada, pois
existiriam apenas superestruturas ideológicas e políticas refletindo bases econômicas. O sentido real
do materialismo histórico deve ser entendido a partir da contextualização das idéias de Marx e
Engels nos debates que estes estavam inseridos. A Ideologia Alemã, e muitos outros textos
fundamentais para o estabelecimento do projeto do Materialismo Histórico, se inseriam na crítica de
Marx e Engels ao idealismo alemão, especialmente aos jovens hegelianos. Desta forma, a questão
para os fundadores do materialismo histórico não era escolher entre o determinismo econômico ou a
autonomia das manifestações políticas e ideológicas, como muitas vezes se colocou o debate
posteriormente, mas em criticar a concepção de que as transformações das idéias eram o motor das
transformações históricas e sociais. Para entendermos melhor este ponto, deve-se compreender
exatamente ao que o termo materialismo se refere em Marx e Engels. Tentar compreender o
materialismo histórico a partir da idéia muito difundida de que a vida humana está separada em
esferas econômica, social, política e ideológico-cultural é exatamente o que leva marxistas e críticos
do marxismo à idéia equivocada de identificar material e esfera econômica. Como bem aponta a
historiadora marxista Ellen Wood, por mais que se insista na interação entre as tais esferas da vida,
pensar tais esferas como campos separados obscurece a percepção de que as condições materiais de

15
Marx; Engels, 2007:32.
16
Marx; 2007:45.
[16]

vida são fenômenos sociais vivos, e não estruturas reificadas17. O próprio Marx, como apontamos
acima, identifica a base material da história com a idéia de sociedade civil – isto é, tal base não é a
estrutura econômica, mas as relações sociais de produção, e estas relações não podem ser reduzidas
meramente a seus aspectos econômicos. Como afirma Ellen Wood:
As relações de produção em si tomam a forma de relações jurídicas e políticas particulares –
modos de dominação e coerção, formas de propriedade e organização social – que não são meros
reflexos secundários, nem mesmo apoios secundários, mas constituintes dessas relações de
produção. A “esfera” da produção é dominante não no sentido de se manter afastada das formas
jurídico-políticas ou de precedê-las, mas exatamente no sentido de que essas formas são formas
de produção, ou atributos de um sistema produtivo particular.18

Esclarecido este aspecto fundamental e muitas vezes incompreendido, podemos dar o passo
seguinte junto com Marx e Engels. Estabelecida tal base material, é a partir dela que os homens
constroem sua consciência, consciência esta, portanto, que nunca é “pura”, já nasce “contaminada”
pela matéria19. Buscando entender o materialismo dos fundadores do materialismo histórico dentro
de sua polêmica com o idealismo compreendemos melhor o que eles queriam dizer: a consciência é
construída a partir da linguagem, atributo humano eminentemente social já que construída na
interação entre os homens20. Desta forma, as representações criadas pela consciência são expressões
conscientes das atividades e relações sociais em que estes homens se inserem – e se, de alguma
maneira, tais expressões se apresentam mistificadas isso é conseqüência direta das formas
assumidas pelas atividades e relações sociais das quais derivam21.
Com isso, começamos a perceber como o materialismo histórico pode superar o ponto nodal
do individualismo metodológico identificado acima. A idéia básica, aqui, deve ser a de que “não é a
consciência dos homens que determina o seu ser, é o seu ser social que determina sua
consciência”22. O conceito que permite a visualização dessa relação entre ser social e consciência
social é justamente o conceito de Ideologia. Novamente devemos ressaltar a idéia de que Ideologias
não são meras superestruturas refletindo bases econômicas – nas palavras do marxista italiano
Antonio Gramsci:
[Na concepção de bloco histórico] as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a
forma, [sendo a] distinção entre forma e conteúdo meramente didática, já que as forças materiais
não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais
sem as forças materiais.23

17
Wood 2003;32.
18
Ibidem, p.33.
19
Marx, Engels; .34.
20
Ibidem, p.34 e 35.
21
Ibidem, p. 93, nota C (texto originalmente suprimido do manuscrito, presente em nota de rodapé da edição citada).
22
Marx, “Prefácio”, in Contribuição à crítica da economia política, op.cit., p.45.
23
Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, apud Guido Liguori, Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2007, p.85.
[17]

A partir do final dessa citação podemos identificar uma idéia fundamental do conceito de
Ideologia: as “forças materiais” dão um sentido coletivo para as ideologias, isto é, as representações
da realidade são próprias de um grupo social específico, e não de indivíduos. Isto ocorre justamente
porque condições materiais nas quais as ideologias são produzidas possuem um caráter coletivo,
pois certos indivíduos compartilham entre si condições análogas de existência material e
posicionamento convergente em situações de conflito de classe. Ideologia é, portanto, algo que não
se pode deixar de ter, pois se trata de algo construído e reconstruído como consciência prática dos
inevitáveis conflitos de interesses antagônicos existentes em sociedades de classes. Segundo o
pensador marxista húngaro István Meszáros,
As ideologias conflitantes de qualquer período histórico constituem a consciência prática
necessária em termos da qual as principais classes da sociedade se inter-relacionam e até se
confrontam, de modo mais, ou menos, aberto, articulando sua visão da ordem social correta e
apropriada como um todo abrangente. 24

Acreditamos que o conceito de Ideologia resolve o problema das “situações iniciais” de


sistemas de valores, identificado no Individualismo Metodológico. Isto ocorre justamente porque tal
conceito abandona o aporte racional-liberal deste tipo de abordagem que pretende que os indivíduos
têm, em última instância ao menos, a consciência de seus interesses e o poder de direcionar as suas
concepções de mundo para melhor atender a tais interesses. Os indivíduos, através de seus
comportamentos, certamente transformam suas ideologias – mas as possibilidades de
transformações são severamente limitadas pelas condições materiais de existência. Isto é, as
ideologias “modificam-se, mas não podem ser totalmente heterodirigidas, porque nenhum sujeito é
capaz de controlar inteiramente o processo e o resultado”25. Os indivíduos cotejam o mundo a partir
de um ponto de vista específico, e este é dado pela sua realidade material. Isto não significa, nunca
é demais ressaltar, que a concepção de mundo de determinado grupo social é determinado por
aspectos econômicos estritamente. Isto porque os “valores, normas e formas culturais (...) não são
menos reais do que as formas ‘econômicas’ pelas quais se exprime o modo de produção” 26. Isto é, a
ideologia não é condicionada pela realidade material no sentido de ser reflexo de uma base
econômica, mas no sentido de que a própria ideologia é parte constituinte de tal realidade material e
é construída nesta. O que se pretende afirmar é que as ideologias são construídas no mundo
material, a partir das relações sociais entre as classes.
Uma boa maneira de pensar esta relação entre mundo material e ideologia é a partir do
conceito de experiência como proposto pelo historiador inglês Edward Thompson. Para ele, os
homens e mulheres são racionais e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo. A partir de

24
István Meszáros, O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, p.65.
25
Guido Liguori, Roteiros para Gramsci, op.cit., p.95.
26
Ellen Wood, Democracia contra capitalismo, op.cit., p.63.
[18]

tal reflexão, as transformações em sua vivência social (no seu ser social) dão origens a experiências
modificadas, que pressionam a consciência social, propõem novas questões e podem até chegar ao
limite de acarretar o desmoronamento de velhos sistemas conceituais27. Mas tudo isto ocorre a partir
da interação no mundo material, a experiência não é reflexão abstrata, é vivência. É através desta
experiência vivida que o ser social determina a consciência social28. Este conceito thompsoniano de
experiência não chega a ser muito distante do conceito de experiência barthiano, citado acima.
Porém, percebendo as diferenças entre os dois conceitos de experiência percebemos justamente o
que permite ao materialismo histórico avançar nos pontos em que o individualismo metodológico
fica estagnado. Barth pensa a experiência como um “precipitado” das interpretações das ações
próprias e de terceiros que, posteriormente, serve de fundamentação para novas ações. Estamos
presos, percebe-se facilmente, a um curto circuito explicativo. Já o conceito de experiência de fundo
materialista, proposto por Thompson, consegue evitar este problema ao se sustentar sobre a
percepção de que tal experiência deita raízes em uma situação que foge ao controle imediato do
agente, a saber, a realidade material composta pelas relações sociais específicas de uma dada
sociedade; relações essas, isto é uma diferenciação importante entre materialismo histórico e
individualismo metodológico, que não são meras interações entre indivíduos, mas relações coletivas
de caráter classista.
Todavia, podemos, a partir do exposto, utilizar certos insights dos autores que trabalham a
partir do individualismo metodológico, desde que tomemos os devidos cuidados para superar as
limitações impostas por seu tipo de abordagem. As idéias de racionalidade substantiva de Weber e
de maximização de valores de Barth são bastante profícuas se pensarmos o conceito de sistemas de
valores, fundamental para ambas, dentro do campo conceitual de ideologia. De certa maneira,
podemos dizer que autores marxistas, como Maurice Godelier e Wiltold Kula, ao trabalharem com
o conceito de racionalidade, assumem postura próxima a este empreendimento. Para Godelier e
Kula, racionalidade deve ser entendida como maximização de satisfações sociais (ou, mais
sumariamente, como racionalidade social), no sentido de que são as relações sociais entre as
classes que determinam os conteúdos da racionalidade29. Não existe, portanto, uma racionalidade
absoluta, mas racionalidades específicas dentro de sistemas de relações sociais específicos. Ou seja,
a racionalidade precisa ser entendida dentro de um sistema dado de valores, e isto Weber e Barth
percebem corretamente, mas esse sistema de valores não surge como mera resultante da soma de
ações, interações e interpretações individuais. Essas “vontades individuais” não são átomos

27
Ibidem, p.16-17.
28
Edward Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1981, p.182.
29
Wiltold Kula, “Da tipologia dos sistemas econômicos” in: Jacqueline Fourastie e Jean Fourastie (org.) Economia. Rio
de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1975, p.95 e Maurice Godelier, Racionalidade e Irracionalidade na
Economia, op.cit. p.391-392.
[19]

desestruturados, agem, na verdade, como “vontades agrupadas”, como famílias, como comunidades
e, acima de tudo, como classes. Isto ocorre porque, por mais particulares que sejam essas “vontades
individuais”, elas foram condicionadas em termos de classe, de ideologias de classe30.
Cabe salientar que a idéia de que o comportamento humano é explicado a partir do estudo da
relação entre as relações sociais e as ideologias que compõem a realidade material traz em seu bojo
a percepção de que estes comportamentos ocorrem em uma sociedade pautada pela luta de classes.
Os conteúdos de uma racionalidade específica, determinados pelas relações sociais específicas de
uma sociedade, invariavelmente passarão pelos conflitos sociais, seja pelas formas de dominação,
exploração e controle, no caso das classes dominantes, seja pelas formas de resistência e
sobrevivência, no caso das classes subalternas. É a partir disto que pretendemos utilizar o conceito
de racionalidade ideológica. O comportamento humano se fundamenta em considerações racionais
dos indivíduos e também em comportamentos costumeiros, tradicionais ou habituais. Estes, porém,
se institucionalizam a partir de um padrão de maximização de valores, como proposto por Barth.
Desta maneira, o fundamental é o fato de que a compreensão destes elementos passa pela
identificação das configurações sociais e dos sistemas de valores que servem de “situação inicial”,
ou melhor, base material, para estas ações e interações, e tal identificação não é plenamente possível
a partir do individualismo metodológico. Partindo da idéia de racionalidade substantiva, de Weber,
e de comportamento costumeiro como institucionalização de comportamentos que se aproximam da
maximização de valores, de Barth, precisamos identificar a raiz da substância da racionalidade e
dos valores maximizados, que é precisamente a ideologia do grupo social. Desta forma, o conteúdo
da racionalidade de um grupo social específico emerge justamente da ideologia. O que Weber
chama de racionalização, a busca pelo controle da realidade por um princípio de racionalização,
que busca banir percepções particularizadas e ordenar a percepção de mundo em regularidades
inteligíveis, coerentes e consistentes com um sistema de valores, como definimos acima, pode ser
pensada como racionalização ideológica, associando esta idéia com os insights thompsonianos
acerca da construção das classes através de suas experiências. Isto é, um dos processos
fundamentais para a construção histórica de uma classe social específica seria um processo de
ordenação das percepções de mundo a partir de um sistema de valores construído na base material
das relações sociais. Acreditamos que este é o passo permitido pelo materialismo histórico que nos
possibilita ultrapassar os limites a que a abordagem do individualismo metodológico chega.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARTH, Fredrik. Process and Form in Social Life. Selected essays of Fredrik Barth: Volume I.
Adam Kuper (ed.). London, Boston, Prenley: Routledge & Kegan Paul, 1981.

30
Edward Thompson, A miséria da teoria..., op.cit., p.100-101.
[20]

ELSTER, Jon. Ulyses y las sirenas. Estudios sobre Racionalidad y Irracionalidad. México: Fondo
de Cultura Económica, 1989.
GODELIER, Maurice. Racionalidade e Irracionalidade na Economia. Rio de Janeiro: Tempo
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___________. “A antropologia econômica”, in: J.Copans et alii, Antropologia: ciência das
sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70, 1971.
KALBERG, Stephen. “Max Weber’s types of rationality: Cornerstones for the analysis of
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KULA, Wiltold. “Da tipologia dos sistemas econômicos” in: Jacqueline Fourastie e Jean Fourastie
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_________; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MESZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
PAIVA, Carlos Águedo Nagel e CUNHA, André Moreira. Noções de Economia. Brasília: Fundação
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POLANYI, Karl. A Ilusão da Economia. Editora João Sá da Costa, 1997.
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POSTONE, Moishe. “Capital and Historical Change”. Artigo apresentado na conferência “Marxian
Horizons: Critical Social Theory for the 21st Century”, Cornell University, em 13 de março de 2004
(disponível em www.countdownnet.info/archivio/teoria/321.pdf).
SWEDBERG, Richard. Max Weber e a ideia de Sociologia Econômica. Rio de Janeiro: EdUFRJ,
2005.
THOMPSON, Edward. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento
de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Vol.1. 3ª Ed.
Brasília: EdUnB, 1994.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra Capitalismo: a renovação do materialismo histórico.
São Paulo: Boitempo, 2003.
[21]

GUIMARÃES ROSA E O (DES)ENREDO DA VIDA PELA PALAVRA

Ana Maria Esteves (FSD)


Mestra em Letras (UERJ)
ame_rio @uol.com.br

RESUMO
João Guimarães Rosa estabelece uma relação íntima entre linguagem e vida. Para ele, esses
dois elementos estão integrados – é por meio do primeiro que constrói o segundo e vice-versa. Em
suas narrativas, a realidade não é um dado imóvel, acabado; mas um contínuo fazer-se, permanente
vir-a-ser (é vida), que se instaura no momento único da narração. E é através de uma linguagem
também viva, revitalizada, restaurada, que ele consegue expressar esse dinamismo. Pela ludicidade
do “Verbo Criador” – tendo o leitor como seu aliado –, restaura os sentidos poéticos da existência,
elevando, ao máximo grau possível, a sua relação com a linguagem.

RESUMEN
João Guimarães Rosa establece una relación íntima entre lenguaje y vida. Para él, estos dos
elementos se integran – a através del primero, que construye el segundo, y viceversa. En su
narrativa, la realidad no es un dato inmóvil, acabado; sino un continuo hacerse, un permanente
sobrevenir (es vida), que se instaura en el momento único de la narración. Y es por medio de un
lenguaje también vivo, revitalizado, restaurado, que consigue expresar este dinamismo. Por la
ludicidad del “Verbo Creador” – con el lector como su aliado -, restaura los sentidos poéticos de la
existencia, alzando al máximo grado posible, su relación con el lenguaje.

Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo... (Guimarães Rosa)

Como nos ensina Ezra Pound: “literatura é linguagem carregada de significado”(POUND,


1973:32). Portanto, interseções entre língua e literatura seriam possíveis a partir de qualquer obra
literária, por ser o trabalho com a palavra inerente ao fazer poético. Mas uns escritores conseguem,
melhor do que outros, instigar o leitor a estabelecer tal relação. É o que se verifica na obra de João
Guimarães Rosa. Na famosa entrevista concedida ao crítico Gunter Lorenz (in
COUTINHO;1983:s.l.), ele explicita a importância que tem a linguagem em sua obra. Ela será
utilizada de forma consciente, não como um mero instrumento do mundo exterior já cristalizado,
estático – representação do lado externo das coisas, em seus aspectos físicos e sociais (como nas
obras regionalistas de tantos outros escritores) – e sim como espécie de linguagem em estado
nascente, que se instaura junto com a estória que está sendo narrada.
Mas de que forma se pode construir um espaço novo, através da palavra, se ela se encontra
totalmente contaminada pelo uso, cristalizada por clichês que esvaziaram o seu sentido primeiro?
Eduardo Coutinho responde que “cabe, então, ao escritor, consciente de sua missão, refletir sobre
cada palavra ou construção que utiliza e fazê-la recobrar sua energia primitiva, desgastada pelo uso.
Em outras palavras, ele tem de revitalizar a linguagem.” (COUTINHO; 1983:203).
E Guimarães Rosa afirma que seu método “implica na utilização de cada palavra como se
ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu
[22]

sentido original.”(LORENZ, in COUTINHO; 1983:81) Essa descontaminação da palavra seria


conseguida, segundo o crítico já citado, por meio de dois processos: ao “alterar o ‘significante’ e
criar um neologismo, e ao associar o ‘significante’ a uma série de outros, de modo a fazê-lo
funcionar como uma espécie de leitmotiv.” (COUTINHO; 1983:204).
Aprendemos com Saussure que não há uma relação direta, necessária, intrínseca, entre as
duas partes que compõem o signo linguístico: significante e significado . Mas essa relação, apesar
de arbitrária, possui uma carga expressiva no início, quando as palavras são criadas. Com o tempo,
porém, essa expressividade se perde. Desgastados que são pelo uso, os significados tornam-se
puramente conceituais. “A missão do poeta é, então, revitalizar a palavra, fazê-la recobrar a sua
expressividade originária.” (COUTINHO; 1983:204).
Os processos citados por Coutinho permitiriam a Rosa a realização dessa “missão”: a
camada significante do signo é alterada por meio de neologismos, paródias a clichês, combinações
sintáticas inusitadas, e são oferecidas múltiplas possibilidades de leitura a um único significante no
plano do discurso narrativo.
A seguir, apresento uma proposta de leitura de um dos contos do escritor, com o objetivo
de demonstrar a realização de seu projeto linguístico.

“Desenredo”: uma proposta de leitura


No conto “Desenredo”, de Tutameia , temos a estória de Jó Joaquim, que, diante das
reiteradas traições da mulher, resolve expulsá-la de casa e, a partir daí, dedica-se a desmanchar o
passado conhecido de todos e reinventá-lo. Neste conto, as várias possibilidades de leitura já se
abrem no título, polissêmico por excelência, que, segundo Walnice Nogueira Galvão, pode ser
desdobrado em três níveis: primeiro, material, no sentido de fios emaranhados, submetidos à
operação de desembaraçar; o segundo, figurado, remete a intriga, maledicência; o terceiro,
metalinguístico, referente à estratégia do protagonista de desfazer progressivamente a crônica
(GALVÃO;1998:127).
Teríamos: Jó Joaquim precisa desembaraçar a trama, já formada pela maledicência do
povo, a respeito de sua amada. Para isso, desfaz progressivamente o enredo conhecido de todos e
constrói outro, com um desenlace feliz. A palavra desenredo perde, assim, a sua característica de
termo, “entidade de contorno unívoco, para converter-se em plurissigno, realidade multi-
significativa”(OLIVEIRA, in COUTINHO; 1983:180), que se incorpora ao contexto, como um
elemento vivo, que pulsa, exigindo leitura. Forma e conteúdo entrelaçam-se em perfeita harmonia.
Esse entrelaçamento já vem anunciado na primeira linha: “Do narrador a seus ouvintes:”.
Logo depois, o travessão, para marcar a fala do narrador. Este assume a posição de um cantador
popular. A oralidade se instaura e, junto, a própria estória – a linguagem é construída no ato de
[23]

narrar; fluem língua e estória (forma e conteúdo ), e o leitor é convidado a participar, a refletir sobre
cada palavra usada pelo narrador, porque nada é gratuito. O nome da personagem principal, por
exemplo, – Jó Joaquim – é uma alusão à personagem bíblica , paciente por excelência (o oposto do
sertanejo, que costuma lavar a honra com sangue, como fez o marido traído). O nome da mulher
aparece invertido: inicialmente, “Livíria, Rivília ou Irlívia”; no final, “Vilíria”. Essas alterações
estão relacionadas ao comportamento dela durante o desenvolvimento do conto e à ideia final que
dela faz Jó Joaquim (a verdade vai-se modificando).
A impressão que se tem, durante a leitura do conto, é a de que o narrador fala aos ouvidos
do leitor, convidando-o a participar – “Com isso, quem pode, porém?” – enquanto continua a
(des)costurar a narrativa ao vivo.
Nesse contínuo, serão utilizados recursos, como a (des)construção de ditados/frases
populares e combinações inesperadas nos sintagmas. Ao deslocar (alterar) clichês e formar
combinações inusitadas, o leitor é levado ao estranhamento, à surpresa. Isso faz com que se
busquem novos possíveis significados “para além do puro aspecto denotativo da
expressão.”(COUTINHO; 1983:206)
Inúmeros outros procedimentos lúdicos serão utilizados por Rosa, neste texto, para
revitalizar a linguagem. No início do conto, ao referir-se à mulher, são usadas as expressões:
“...olhos de viva mosca, morena mel e pão...” [clichês originais: “mosca morta”; “cor de pão de
mel”]. O primeiro leva à reflexão de que ela não era uma “mosca morta”... Quanto ao segundo,
talvez remeta às características do pão e mel separadamente, diferente da palavra composta, em que
se esvaziaram os significados originais dos dois elementos. Ainda nesse parágrafo, outras
construções causam estranhamento: “Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor” [grifos
meus]. No primeiro caso, aparece um advérbio modificando um substantivo, talvez para ironizar um
possível clima romântico entre os amantes; no segundo, o verbo pegar está fora de seu emprego
usual, em que pediria, como complemento, um substantivo concreto – aqui, “pegou o amor”, como
“se pega um resfriado, uma doença” (é esse o significado sugerido ao colocar um substantivo
abstrato no lugar do concreto) – novamente a ironia do narrador, acompanhada de humor. Ainda
nesse parágrafo, outra expressão que chama a atenção é “Voando o mais em ímpeto de nau tangida
a vela e vento” [reconstrução do ditado: “Tudo ia de vento em popa”], para dizer que tudo ia bem
para os amantes.
Mais adiante, para referir-se às precauções tomadas pelos amantes, impostas pelos ciúmes
do marido e vigilância da cidade, o tom reflexivo do narrador, em construções à maneira de
provérbios: “...as aldeias são a alheia vigilância” (não só aquela; referindo-se ao hábito que as
pessoas têm de vigiar a vida alheia); “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel” (cuidados
que se devem ter diante dos perigos). Aliás, esse tom já aparecera antes em: “Foi Adão dormir, e
[24]

Eva nascer”; e mais adiante: “Esperar é reconhecer-se incompleto”. Fica nítida, nesse tipo de
construção, a voz do narrador, ansioso por expressar suas experiências e conselhos aos ouvintes
(como nas narrativas populares).
Quanto à estrutura sintática, também apresenta outros estranhamentos, além dos já citados,
como por exemplo: “Não se via quando e como se viam” [grifos meus], para referir-se ao fato de
que os momentos e as formas dos encontros dos dois eram encobertos de todos da cidade (o que
causa estranhamento, aqui, é a substituição de expressões completas por palavras sintetizadoras da
ideia).
Algumas palavras chamam a atenção do leitor, que leva algum tempo para compreender o
seu significado, como “– deu-se o desmastreio...” [grifo meu]. Após alguns momentos de reflexão,
chega-se à conclusão de que aquela nau, que estava de vento em popa, perdeu o mastro, ou seja, o
rumo, no momento em que o marido a encontra com outro – um terceiro – e mata-o. E, ao referir-se
à surpresa de Jó, que não imaginava a existência de um terceiro, o narrador afirma: “Imaginara-a
jamais a ter o pé em três estribos”. O estranhamento, neste caso, acontece pelo fato de estribos
existirem aos pares e não em três (novamente a ironia, já que os relacionamentos amorosos também
devem vir aos pares e não em trio).
Nas passagens em que Jó se dedica a desconstruir o enredo (desenredar) que fizeram de
sua amada, temos:
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a
lenda a embustes, falsas lérias escabrosas . Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe
à boca-de-cena do mundo, de caso raro, o que fora tão claro como água suja (...)
(...) Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava
nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa? [grifos meus] (T, 39-40)

Nesta passagem, a energia da palavra criadora se instaura plenamente, atingindo seu ápice
– a realidade é criada pela palavra: “Nunca tivera ela amantes!” Tem-se, aí, um excelente exemplo
de metalinguagem: Jó dedica-se a reescrever o passado da amada, desfazendo, astuciosamente, o
“contraditório rascunho”, através de “falsas lérias escabrosas”, que são levadas “à boca-de-cena do
mundo”, já que era preciso “descaluniá-la”. À medida que a personagem vai tecendo “a nova,
transformada realidade”, a linguagem continua sendo construída, revivificada, como em: “... o que
fora tão claro como água suja...” – paradoxo, que instaura o humor e a ironia mais uma vez,
remetendo à oposição da expressão original: “claro como água cristalina”. No final, a pergunta (um
chamamento ao leitor): “Mais certa?” (e, por quê, não ?...).
Finalmente, o novo enredo está pronto:
[25]

Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o
assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na
árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim... [ grifos meus] (T, 40)
Eis um belo exemplo da força que tem a palavra na obra do autor: uma “nova,
transformada realidade” é criada por meio da (re)(des)construção da linguagem, no plano do
enunciado e no da enunciação.
Ler Guimarães Rosa é, portanto, muito mais que decifrar códigos congelados encontrados
em qualquer texto. Significa, antes de tudo, construir, junto com o autor, cada estória narrada, tendo
a consciência de que, a cada leitura, novas possibilidades se abrirão. Isso porque a realidade
inventada pela palavra de Guimarães Rosa é dinâmica, viva, construída pelo “ileso gume do
vocábulo”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COUTINHO, Eduardo (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (Col.
Fortuna Crítica)
______. “Guimarães Rosa e a palavra poética”. In: Range Rede: Revista de Literatura – Ano 2, nº2
– Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p.8
GALVÃO, Walnice Nogueira. Desconversa (ensaios críticos). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. 2 ed. Trad. de Augusto de Campos e José Paulo Paes. São
Paulo: Cultrix, 1973.
ROSA, João Guimarães. Tutameia (Terceiras estórias). Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1969.
[26]

O USO DA IDADE MÉDIA POR PIER PAOLO PASOLINI NO DECAMERON

Ana Carolina Lima Almeida


Mestre pela Universidade Federal Fluminense
Doutoranda na Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Resumo
Estudo do uso do passado pelo filme Decameron (Il Decameron), 1970-1971, dir. Pier Paolo
Pasolini. Parte-se da ideia de que Pasolini, ao filmar Decameron, tinha como objetivo tratar do
neocapitalismo na Itália do final da década de 1960 e início dos anos 70. Apesar de pouco mudar o
conteúdo e o sentido das novelas do Decameron de Giovanni Boccaccio, verificou-se a existência
de um maior relevo dado, no filme, ao corpo, aos órgãos sexuais e à prática sexual. Nessas esferas,
para o cineasta, o neocapitalismo não havia ainda penetrado. O artigo insere-se no campo da
medievística, isto é, do uso da Idade Média por outros tempos.

1. História e Cinema. 2. Medievística 3. Uso do Passado

Résumé
Étude de l’utilisation du passé par le film Decameron (Il Decameron), 1970-1971, dir. Pier Paolo
Pasolini. On part de l’idée que Pasolini, quand il a filmé le Decameron, avait l’objectif de traiter du
neocapitalisme en Italie à la fin des années 1960 et au début des années 70. Même si Pasolini a peu
modifié le teneur et le sens des histories, on a verifié l’existence d’un plus grande relief donné, dans
le filme, au corps, aux organes sexuels e à la pratique sexuel. Dans ces domaines, pour le cinéaste,
le neocapitalisme n’avait pas encore pénétré. L’article s’intégre dans le cadre de la médiévisque, de
l’utilisation du Moyen Âge par les autres temps.

1. Historie et Cinéma. 2. Médiévistique 3. Utilisation du Passé

Os usos da Idade Média

O período que se convencionou do século V ao século XV, denominado Idade Média, foi,
desde o século XIV, apropriado de diferentes formas. Na verdade,

(...) a moda medieval, e a idealização do medievo, atravessa toda a cultura italiana, e européia por

extensão (....). Não se sonha com a Idade Média porque seja o passado (...) [mas porque] a Idade Média

representa o crisol da Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todas as coisas com as

quais ainda estamos ajustando as contas (...). (ECO, 1989:78).

A primeira utilização da Idade Média ocorreu no século XIV e procurava desvalorizar o medievo

para ressaltar os tempos que se iniciavam, a retomada, de forma pura, de aspectos artísticos,

culturais e intelectuais da Antiguidade pelos humanistas assim como a busca da vivência do


[27]

cristianismo primitivo pelos reformadores protestantes. Foi durante esta época que surgiu a

denominação “Idade Média”, uma época histórica vista como um verdadeiro abismo entre a

Antiguidade e o período vivido. O século XVIII acentuou a divisão entre as três épocas –

Antiguidade, Idade Média e tempos modernos – para realçar a superioridade das Luzes e seu

triunfo sobre o clero. Contudo, um pouco antes da Revolução Francesa, a Idade Média perdeu

seu sentido pejorativo e passou a apenas nomear um período passado. Na França, o interesse e a

influência da Idade Média na música e na literatura antecedeu o período romântico, época por

excelência da retomada e exaltação, um tanto quanto idealizada, do medievo.

A Idade Média também foi, dentre outras apropriações, usada, no caso da França,
fundamentalmente, para dar à comunidade nacional uma forte identidade cultural, social e
política. (AMALVI, 2002:537). Também tornou as lutas religiosas e políticas da III República
legítimas e deu uma resposta às demandas da Revanche. Nos países totalitários, em especial, na
Alemanha hitlerista, sua finalidade era legitimar historicamente o novo regime. Os artistas que se
opunham ao nazismo, para apontar os crimes desse sistema, também retomaram a época medieval.
Com o objetivo de fortalecer o patriotismo russo, Stalin também recuperou mitos fundadores
(AMALVI, 2002:543) da Idade Média. Ela serviu, no Ocidente, no mesmo período, como “uma
inesgotável reserva de imagens dramáticas cuja exploração, em especial pela indústria
cinematográfica americana, contribuirá [contribuiria] para criar um imaginário universal”.
(AMALVI, 2002:543).
A perspectiva romântica do medievo foi prolongada, depois da segunda década do século XX,

pelas novas mídias. Dentre elas se destaca o cinema e, de forma especial, os filmes

hollywoodianos. As grandes produções cinematográficas sobre a Idade Média produzidas por

Hollywood têm, no intervalo de mais de quarenta anos, caracteres em comum. De “Robin Hood

de Allan Dwan, com Douglas Fairbanks, em 1922, ao Cid de Anthony Mann, em 1960 [são

constantes]: o cenário colossal, a abundância de figurantes, a beleza e o luxo das vestes e,

sobretudo, a absoluta indiferença em relação à ‘concordância dos tempos’!” (AMALVI,

2002:544).

Hollywood “ignora soberbamente a verossimilhança histórica” (AMALVI, 2002:544)


recaindo, assim, no anacronismo. No entanto, Hollywood não é o único a tratar do medievo através
[28]

de produções cinematográficas. Dentre inúmeros filmes sobre esse período, há, por exemplo, as
produções escandinavas A Paixão de Joana d’Arc, 1928, dir. Carl Theodor Dreyer e O Sétimo Selo,
1956, dir. Ingmar Bergman.
A metade da década de 70 marcou o retorno à Idade Média. Foram elaboradas obras inéditas
como romances, filmes, histórias em quadrinhos e, até mesmo, óperas e músicas cujo tema era a
Idade Média. Nos meados de 1970 e durante a década de 80, surgiram produções, na televisão e no
cinema, avessas à grandeza e à pompa. O monge e a feiticeira, 1986, dir. Suzannne Schiffman; A
paixão de Beatriz, 1987, dir. Bertrand Tavernier; Lancelote do Lago, 1974, dir. Robert Bresson e
Percival, o Gaulês, 1978, dir. Eric Rohmer são alguns exemplos de filmes onde o tom espetacular
está ausente. Apesar dos diretores norte-americanos retomarem o grande espetáculo de Hollywood
– como Robin Hood, príncipe dos ladrões, 1990, dir. Kevin Reynolds –, “o tom adotado é muito
próximo do estilo paródico da história em quadrinhos...” (AMALVI, 2002:545). Uma visão cômica
da Idade Média em Monty Python, o Cálice Sagrado, 1974, dir. Terry Gilliam e Terry Jones fez
sucesso.
O medievalista Umberto Eco, ao analisar a questão do uso do medievo no final do século
XX, constrói uma tipologia. Assim, para ele, há:
1. “A Idade Média como maneira e pretexto”. (ECO, 1989:80). Essa idealização da Idade
Média não tem nenhum compromisso com a Idade Média vivida: o medievo se transforma em um
cenário, um ‘lugar’ mitológico (ECO, 1989:80) no qual são colocados atores da atualidade.
2. “A Idade Média da revisitação irônica, a de Ariosto, talvez também a de Cervantes. (...). É
a Idade Média da nostalgia, mas se trata de uma nostalgia incrédula”. (ECO, 1989:80). Busca-se
retornar ao imaginário da Idade Média, que é vista como um passado que não pode ser revivido,
fazendo ironia dos sonhos ou do que não se é mais.
3. “A Idade Média como lugar bárbaro, terra virgem de sentimentos elementares, época e
paisagem fora de toda e qualquer lei. (...) é também a Idade Média de O Sétimo Selo e de A Fonte
da Virgem [sic], de Ingmar Bergman”. (ECO, 1989:80). Esta visão é a da Idade Média como trevas,
mas onde se busca uma nova luz. O medievo é o lugar do êxito da força bruta e da barbárie. Quanto
mais é caracterizado como bruto, mais é venerado.
4. “A Idade Média romântica.” (ECO, 1989:80). É a Idade Média do século XIX e a
neogótica.
5. “A Idade Média da philosophia perennis.” (...) esta Idade Média apresenta alguns
aspectos de finura filológica e outros de dogmantismo [sic] anti-histórico. (ECO, 1989:81).
6. “A Idade Média das identidades nacionais”. (ECO, 1989:81). Esta foi a visão de Idade
Média dos renascentistas, que perceberam no movimento comunal um exemplo vitorioso de
conflito contra a dominação estrangeira.
[29]

7. “Uma Idade Média carducciana, tudo reconstituído, para celebrar a Terceira Itália, um
pouco falsa e um pouco filológica, tudo somado, bonachona e hipócrita, adequada ao renascimento
e à estabilização de uma Nação à procura de identidade.” (ECO, 1989:81). Nessa concepção, a
Idade Média é encarada como um remédio para o mal da modernidade.
8. “A Idade Média de Muratori e dos Rerum italicarum, uma Idade Média não diferente da
dos Annales.” (ECO, 1989:81). A diferença entre tais Idades Médias, que reorganizam um
momento de forma filológica, consiste no uso para tal reorganização de histórias e crônicas, pela
primeira, e de atos notariais, registros da inquisição e registros paroquiais, pela segunda.
9. “A Idade Média da Tradição. Local onde tomou forma (...) o culto de um saber bem mais
antigo, o do misticismo hebraico e árabe, e da gnose. (...) registra avidamente a própria história
intemporal, tudo o que não pode ser nem provado, nem falsificado.” (ECO, 1989:82).
10. E, por fim, a “Idade Média da espera do Milênio, espera que obcecou de maneira
diferente cada século, dos cristãos fanáticos aos terroristas, dos fradezinhos aos ecologistas.” (ECO,
1989:82).
Além dessas dez formas de utilizar a Idade Média, este artigo acrescenta o uso da Idade
Média como pretexto para a discussão de problemas presentes. Esse é o uso que Pier Paolo Pasolini
faz da Idade Média em Decameron (Il Decameron), 1970-1971, sua leitura cinematográfica da obra
Decameron de Giovanni Boccaccio. Na verdade, enfocando o uso do corpo, a sexualidade e os
órgãos sexuais, pontos privilegiados em Boccaccio, Pasolini pretende falar do neocapitalismo, ou
melhor, do que, para ele, seria o único bastião que o neocapitalismo não tinha conseguido penetrar.
Diferentemente da primeira tipologia apontada por Umberto Eco, a da Idade Média como maneira e
pretexto (ECO, 1989:80), em Pasolini, há um compromisso com o vivido na Idade Média – a
reconstituição histórica feita por ele foi detalhada – e personagens do presente não são transpostas
para aquele período histórico. Na verdade, por meio da autoridade do diretor, que fundamenta o
cinema de poesia, Pasolini aumenta a importância que os órgãos sexuais e o sexo têm originalmente
nas novelas, e, assim, trata do presente, melhor dizendo, do início da década de 1970.

Decameron

Decameron (Il Decameron), 1970-1971, foi premiado no Festival de Berlim e, apesar das
críticas que reprovavam as obscenidades presente no filme, foi o maior sucesso do cineasta.
Inicialmente, o diretor pensava que
‘Il ne s’agit plus de choisir trois, quatre ou cinq nouvelles situées à Naples, ou d’une réduction de toute
l’œuvre à une partie ‘choisie par moi’: il s’agit plutôt de choisir le plus grand nombre possible de contes
(dans cette première version, il y en a 15) pour donner ensuite une image complète et objective du
Décaméron. (...) Pour des raisons pratiques – et par fidélité à la première idée inspiratrice – le groupe le
plus gros de contes restera constitué par les contes napolitains, de sorte que la Naples populaire continue à
être le tissu qui relie les séquences; mais à ce groupe central et riche, viendront s’ajouter d’autres contes,
[30]

donc chacun représente un moment de cet esprit interrégional et international qui caractérise le
Décaméron. [sic] ‘Dans son ensemble, le film constituera donc une espèce de fresque de tout un monde,
entre le Moyen Age et l’époque bourgeoise: et stylistiquement, il représentera tout un univers réaliste.’
(NALDINI, 1991:347).

A escolha de Nápoles e de novelas napolitanas deve-se ao fato dessa cidade não ter sofrido
mudanças, isto é, ter permanecido com o seu mundo popular. Isso deu a Pasolini uma vontade de
brincar, de jogar. Com Decameron, o diretor Pasolini compreendeu que o cinema é um jogo. O
sentido do jogo em Decameron é explicado na última cena, na qual Pasolini interpreta o discípulo
de Giotto
(...) la réplique finale qui ironise sur l’œuvre, en faisant une expérience particulière non mythifiée:

... porquoi réaliser une ouvre


quand il est si beau de se contenter
de la rêver? (NALDINI, 1991:349).

Apesar de fazer pequenas mudanças nas novelas filmadas, a versão pasoliniana é bastante
precisa no que tange à reconstituição histórica: “Tout ce que j’ai reconstitué dans le Décaméron,
costumes, décor, j’ai voulu le reconstituer le plus réalistement possible.” (NALDINI, 1991:348).
Pasolini era um cineasta e não historiador e, por isso, seu filme tinha como objetivo chamar a
atenção para uma questão crucial para a Itália daquele momento. Ao contrário de suas películas
anteriores, que eram feitas para uma “elite cultural”, os objetivos do diretor com o filme eram
“contar pelo simples prazer de contar” (LAHUD, 1993:113) e representar uma época para ele ideal,
na qual havia um povo pobre e sem consciência política, um povo que conheceu quando pequeno.
Ao mostrar a variedade de figuras/personagens existentes na Idade Média, Pasolini chama a atenção
do espectador para a pluralidade, que, em sua época, estava sendo exterminada pela cultura de
massa.
A crítica à sociedade de massa encontra-se principalmente na exaltação do corpo e do sexo
existente em sua adaptação do Decameron. No sexo e nos órgãos sexuais, o diretor ainda percebia
uma alegria natural, que não era marcada pela sensação de pecado, de culpa. Além disso, o corpo e
o sexo também foram ressaltados porque Pasolini lutava pelo direito de se exprimir e pela liberação
sexual. “Il s’est vanté (...) avec ce film et les deux suivants (...) d’avoir fait, en son temps, reculer
les frontiers de la censure. (JOUBERT-LAURENCIN, 1995:237)”.
Paralelamente, também há, segundo Sameer Padania, uma crítica sobre a manipulação das
classes mais baixas pela burguesia. Pasolini muda, por exemplo, o sentido da novela de Ciappelletto
para mostrar tal manipulação. Em Boccaccio, o sentido da novela é que o erro do povo em acreditar
na santidade e mesmo pedir a intercessão de alguém que, segundo tudo leva a crer, estaria no
inferno não impede que Deus atenda as súplicas humanas. Mas, em Pasolini, Ciappelletto é
“sacrificado” no seu leito de morte: comete ainda mais pecados – durante a confissão ele, que
[31]

gostava de praticar todos os tipos de crime possíveis, mostra-se um santo – só para poder salvar a
“dignidade” dos usurários, dos burgueses.
No Decameron, houve a substituição das cidades de seis novelas de Boccaccio por Nápoles:
das nove novelas adaptadas por Pasolini, seis, originalmente, se desenrolavam em outras cidades
enquanto que, na versão cinematográfica, foram localizadas em Nápoles. A história de Ciappelletto
foi a única que, no filme, se desenvolveu em uma cidade do Norte. Para Padania, esse fato também
revela o objetivo do filme, que é o de falar sobre a Itália dos anos 1970, sobre a marginalização
social e econômica do sul italiano, do abuso que as camadas mais desprovidas daquela região
sofriam da Igreja e da burguesia. Cabe ressaltar que Nápoles, como foi colocado acima, não se
deixou desfigurar pela civilização moderna. (NALDINI, 1991:348).
A leitura cinematográfica da obra de Boccaccio por Pasolini retrata nove novelas, que não
seguem a ordem do livro: novela 5 da 2a jornada, novela 1 da 3a jornada, novela 2 da 7a jornada,
novela 1 da 1a jornada, novela 5 da 6a jornada, novela 4 da 5a jornada, novela 5 da 4a jornada,
novela 10 da 9a jornada e novela 10 da 7a jornada.
Por se expressar por uma arte visual, dificilmente Pasolini conseguiria seguir os propósitos
de Boccaccio de, enquanto as personagens conversavam, enfatizar a moral e a psicologia dos
episódios narrados nem a técnica utilizada por este autor, que insere a variedade numa estrutura
repetitiva em que dez pessoas, todos os dias, escolhem um rei/rainha e sob a “autoridade” deste(a)
contam e ouvem novelas.
Se em Boccaccio as novelas são ligadas pela palavra, pelos comentários feitos pela brigata
no início de cada novela, em Pasolini, a ligação é visual. (SÉMOLUÉ, 1977:140). Em uma primeira
parte, três novelas – história de Andreuccio (novela 5 da 2a jornada), história do jardineiro do
convento (novela 1 da 3a jornada) e história da barrica vendida (novela 2 da 7a jornada) – são
ligadas pela história de Ciappelletto (novela 1 da 1a jornada). Após sua morte, num segundo
momento, as novelas – história do rouxinol de Caterina (novela 4 da 5a jornada), história do vaso de
manjericão (novela 5 da 4a jornada), história da égua (novela 10 da 9a jornada) e história de
Tingoccio e Meuccio (novela 10 da 7a jornada) – são conectadas pelo discípulo de Giotto,
interpretado pelo próprio Pasolini, cuja história é a modificação da novela 5 da 6a jornada. O
primeiro momento, marcado por Ciappelletto, além de interligar as novelas, tem a função de criar
um climat de connaissance. (SÉMOLUÉ, 1977:143). A segunda parte começa com a viagem do
discípulo de Giotto a Nápoles para pintar os afrescos de Santa Chiara e termina quando os afrescos
estão prontos. No final, há a imbricação de Pasolini autor e ator, cineasta e pintor e do filme e do
afresco.
Utilizando um suporte que tem suas especificidades, Pasolini “doit seulement compter sur la
force des images.” (SÉMOLUÉ, 1977:163). Assim, ele não “conta” a novela totalmente da maneira
[32]

em que ela foi escrita por Boccaccio. O diretor escolhe momentos e, a partir disso, os condensa ou
os desenvolve. Um exemplo é a história de Andreuccio. Pasolini suprime o banho que ele toma em
um poço, mas enfatiza o momento em que ele é encontrado pelos ladrões e que tem que agradecer a
Deus. Boccaccio não destaca tal passagem enquanto que Pasolini, ao ressaltá-la, aumenta bastante a
comicidade da novela.
Por outro lado, como usa imagens para se expressar, Pasolini tem a possibilidade de
enfatizar o que procura discutir no filme: o corpo e o seu maior símbolo, o sexo, que não tinham
ainda sido tomados pelo neocapitalismo. Por isso, ele enfoca, em vários planos do Decameron a
nudez, os órgãos e as relações sexuais. Devido a seu cinema de poesia, tais imagens são recorrentes
e alguns planos – planos que tratam de órgãos sexuais – são muito longos.
Na história de Andreuccio, o cineasta reforçou a comicidade não tratando da alusão à
prostituição da suposta irmã da personagem principal. Na verdade, ao lado da questão sexual, a
brincadeira e o riso foram bastante privilegiados no Decameron uma vez que, como ressaltado, o
diretor tinha sido tomado de repente por uma grande vontade de jogar, de brincar e de rir. A
diversão também foi a principal finalidade da história de Ciappelletto, que, em Boccaccio, também
não tinha um forte conteúdo sexual.

Na história da viagem de Giotto, modificada para a viagem de um discípulo de Giotto, a


questão sexual é ausente. Conforme já foi tratado, essa história tem como principal função ligar as
histórias do rouxinol de Caterina, do vaso de manjericão, da égua e de Tingoccio e Meuccio.

Na história da barrica vendida, Pasolini ressaltou o nu feminino. Logo no primeiro plano da


sequência, Peronella aparece nua e deitada com um homem vestido, seu amante, que ela beija. O
segundo, o terceiro e o quarto planos, assim como o primeiro plano, enfocam a nudez da mulher. Os
órgãos sexuais masculinos e o sexo também foram tratados nessa sequência. No sétimo plano, é
realçado o tronco nu de Peronella junto ao homem vestido e o movimento para baixo que ela
realiza. Peronella se abaixa e seu rosto fica na altura do órgão genital do seu amante. O oitavo
plano, inicialmente, destaca a cintura do amante e uma pequena parte do corpo nu de Peronella. O
mesmo ocorre no décimo plano, com a diferença que, neste plano, Peronella ouve seu nome e, ao
ser chamada, se levanta assustada. No décimo primeiro plano a nudez feminina é, mais uma vez,
enfocada: enquanto seu amante permanece ajoelhado, ela, que está nua, senta na cama, olha para o
amante, se levanta e se caminha em direção a uma mesa. No final da sequência, há uma forte alusão
ao sexo. No plano 66, o amante abre a sua calça, se abaixa e vai andando agachado até Peronella.
No plano 67, o amante, que estava agachado, suspende o vestido de Peronella e se coloca atrás dela.
No plano 68, a cintura do amante é realçada. Em seguida, os planos 69, 71, 73 e 75 fazem referência
à relação sexual ocorrida entre Peronella e seu amante.
[33]

Na história da égua, os destaques são a nudez da mulher e o ato sexual. No plano 89


dessa sequência, Donno Gianni observa os seios de Gemmata. Na realidade, são os planos 122 e
123 que exploram a nudez feminina. No plano 122, Gemmata, para ser transformada em égua, tira
sua roupa e se coloca de quatro e, no plano 123, Donno Gianni coloca a mão em várias partes do
corpo daquela mulher, desejando que se transformem em partes análogas às de uma égua e
suspende sua camisa. O ato sexual é representado no plano 125, em que o padre inicia a relação,
que é interrompida pelo “compadre” Pedro.

Na história do vaso de manjericão, Pasolini trata do sexo e do nu masculino. Nos planos 9 e


10, o irmão de Ellisabetta mantém relações sexuais com uma mulher quando, vê, no plano 10,
Lorenzo se despedindo de sua irmã e saindo de sua casa. O corpo nu do irmão de Ellisabetta é
mostrado nos planos 18 e 19. No plano 18, também aparece parte do corpo nu da mulher que teve
relações sexuais com ele. Apesar do órgão genital ser tampado com um pedaço de tecido, o resto do
corpo, o tronco e as pernas do irmão de Lisabetta são mostrados.

A história de Tingoccio e Meuccio trata do nu feminino e do ato sexual. No plano 29 dessa


sequência, Tingoccio está, inicialmente, deitado ao lado de uma mulher, que é a sua comadre.
Depois, senta na cama, põe um calçado, levanta e anda para um outro cômodo. No plano 30, a
comadre de Tingoccio está nua e, inicialmente, deitada. Ela suspira profundamente. Em seguida,
levanta-se e fica ajoelhada na cama. No plano 34, ela continua nua e ajoelhada e pede perdão à
Santa Virgem por ter se deitado com o seu compadre. Esse, no plano 36, vai em sua direção, deita
sobre ela e volta a ter relações sexuais com ela. Meuccio após ter sabido que não é pecado ter
relações sexuais com as comadres, vai à casa de sua comadre e, no plano 59, retira o cobertor que
esta usava, deixando-a nua. No plano 61, deita-se sobre ela.
Com o rouxinol de Caterina, o ato sexual, a nudez feminina e, principalmente, a masculina
bastante são ressaltados. Nessa história, assim como na do jardineiro do convento, Pasolini trabalha
bastante a imagem. O processo de subjetivação da imagem, através da longa duração de alguns
planos que enfocam os órgãos sexuais, torna-se muito claro. No plano 48 dessa sequência, Cataria
fica nua enquanto que Ricciardo continua tirando sua roupa. Caterina tampa com os braços e as
mãos o seu órgão genital. Isso também ocorre no plano 49. No plano 54, ao tirar as roupas de baixo,
os órgãos sexuais de Ricciardo são enfocados. A relação sexual é bem focalizada no plano 55, no
qual Caterina está deitada e Ricciardo, beijando-a, deita sobre ela. No plano 65, a câmera passa
lentamente pelo rosto e pelo corpo de Ricciardo e se fixa em seu órgão genital. No plano 69, é
ressaltada a mão de Caterina sobre o órgão sexual de Ricciardo. Nos planos 74 e 79, Caterina e
Ricciardo dormem nus e Caterina segura o órgão genital de Ricciardo. Outro plano bastante
emblemático do destaque dado ao nu masculino é o plano 107, no qual Ricciardo levanta os braços,
[34]

deixa o cobertor cair e afirma que é claro que casaria com Caterina. Neste plano, o órgão genital de
Ricciardo também é enfocado. No plano 112, um plano lateral, o pai de Caterina entrega a aliança a
Ricciardo, que continua nu. E, no plano seguinte, o 113, Ricciardo coloca a aliança no dedo de
Caterina. Neste plano, o órgão genital de Ricciardo também é mostrado.

A história do jardineiro do convento, no que diz respeito à questão analisada, é bastante


semelhante à história do rouxinol de Caterina. Nela, são exaltadas as relações sexuais e o nu
masculino. A nudez feminina é tratada, de forma parcial, em um único plano. Inicialmente, o órgão
genital do jardineiro, embora esteja coberto, é bastante focalizado nos planos 50, 52, 59, 70 e,
principalmente, no 72. Nesses últimos quatro planos, o jardineiro está no alto cuidando da árvore e
as duas freiras observam-no e decidem chamá-lo. A nudez feminina, presente nos planos 76,
restringe-se ao órgão genital e aos membros inferiores de uma das irmãs. O nu masculino encontra-
se nos planos 81 e 125 e, de certa forma, no 116 e no 124. Os planos 104, 105, 106 e 107 aludem à
relação sexual que o jardineiro mantinha com todas as irmãs sendo que, no plano 105, o órgão
sexual do trabalhador é enfocado. Nos planos 116 e 124, o jardineiro veste apenas uma camisa e
seus órgão genital é bastante ressaltado. Já o plano 81, além de enfocar o órgão sexual do jardineiro,
exprime também o seu desejo sexual e, em seguida, a própria relação sexual. Esta também é tratada
nos planos 82 e 91. Finalmente, deve-se sublinhar que os planos que destacam o órgão genital do
jardineiro são longos.

Comparando as novelas de Boccaccio com o filme de Pasolini, percebe-se que este diretor se
utiliza dos “ganchos” deixados por Boccaccio para enfatizar o corpo, os órgãos sexuais e o sexo.
Boccaccio não exalta o sexo e a nudez. Esses são ocultos pelas metáforas e pelo uso de termos que
apenas fazem alusão àqueles temas. Pasolini, pelo contrário, deseja acentuar a força do sexo e do
corpo nu. Por isso, em seu filme, aparecem tantas vezes o corpo, o nu e o ato sexual, que, para ele,
ainda não tinham sido contaminados pelo neocapitalismo. Além disso, Pasolini realiza sua obra
sobre um suporte privilegiado para a questão que quer tratar, isto é, o cinema, as imagens, que ao
chocar a sociedade italiana da sua época, chamavam a atenção para o que na tinha sido maculado
pela sociedade de massa.

Referências Bibliográficas:

Decameron (Il Decameron), 1970-1971, dir. Pier Paolo Pasolini.


BOCCACCIO. Giovanni. Decameron. 2 v. Torino: Einaudi, 1980. A cura di Vittore Branca.
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[35]

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____________. “O Filme. Uma Contra-análise da Sociedade?” In: LE GOFF, Jacques; NORA,
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UNICAMP/Companhia das Letras, 1993.
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XAVIER, Ismail. “O cinema moderno segundo Pasolini”. Revista de Italianística, São Paulo:
FFLCH-USP, v. 1, n. 1, p. 101–109, jul. 1993.
Site consultado: <http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/dweb/dweb.shtml>
[36]

A AYAHUASCA E SEUS USOS CULTURAIS31

Daniel Martinez de Oliveira


Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Resumo
O artigo tenta mostrar um panorama dos usos culturais da bebida ayahuasca entre grupos e
movimentos religiosos diferentes. Nele, são tratados aspectos químicos, farmacológicos e
psicológicos da bebida, e alguns de seus aspectos antropológicos, como os contextos em que é
ingerida e as finalidades a que serve. Ao final, tenta-se uma comparação rápida dos usos entre os
diferentes “grupos”.
Palavras-chave: antropologia – ayahuasca – usos culturais

Resumen
El artículo intenta enseñar un panorama de los usos culturales de la bebida ayahuasca entre
distintos grupos y movimientos religiosos. En él se abordan algunos aspectos químicos,
farmacológicos y psicológicos de la bebida y algunos de sus aspectos antropológicos, como los
contextos en que ella se la ingerida y los fines a que sirve. Al final se intenta una ligera
comparación de los usos entre los diferentes “grupos”.
Palabras clave: antropología – ayahuasca – usos culturales

Procuro, neste artigo, discorrer um pouco sobre algumas características de uma bebida
provocadora de visões, que estão diretamente relacionadas à cosmologia e ao simbolismo de alguns
grupos que fazem uso ritual dela. Esta bebida constitui, ainda, a base material religiosa de alguns
desses grupos (CEMIN, 2009), cujos rituais giram em torno dela ou são executados para produzi-la.
Tendo por base esses preceitos, creio ser oportuna e até necessária uma apresentação de suas
propriedades químicas e dos efeitos sobre a mente de quem a ingere. O artigo reflete o tema de uma
pesquisa de campo antropológica que levei a cabo entre meados de 2008 e o início de 2010, entre
adeptos do Santo Daime, no distrito de Lumiar, em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Por
isto, apesar de querer mostrar um panorama dos usos da bebida, o foco necessariamente incidirá
mais sobre este grupo.
Para isso, este artigo conta com uma pequena exposição sobre a fitoquímica, a
neurofarmacologia e a psicologia desta bebida. Tento mostrar, de forma rápida e com base em
leituras de artigos científicos sobre o tema, os mecanismos que levam à ação da bebida sobre a
mente humana, e como esses efeitos atuam em processos cognitivos, instaurando uma experiência
“psicodélica”32. No mesmo ensejo, tento fazer um resumo, com base em pesquisa bibliográfica33,

31
Para este texto, fiz adaptações a partir dos capítulos 5 e 6 da minha Dissertação de Mestrado, intitulados “O chá e
seus usos culturais” e “O Santo Daime enquanto movimento”.
32
O termo psicodélico poderia ser substituído por outros, como enteógeno ou enteogênico, evitando assim, acepções
pejorativas ou preconceituosas. Porém, como a discussão de alguns tópicos é mais relacionada à química e à psicologia
[37]

dos usos que diferentes grupos fazem ou fizeram dela, procurando mostrar os seus principais
aspectos. Além dessas leituras, trago à tona alguns dados que obtive durante o trabalho de campo.
Procederei a uma breve exposição sobre os usos feitos da bebida e de seu simbolismo,
enfocando tanto indígenas quanto daimistas e outros grupos, procurando criar uma base de
orientação de quem lê este trabalho sobre a variedade dos usos da bebida e de seu contexto
simbólico e ritual. E também apontar para o campo das “religiões ayahuasqueiras”34, e o lugar que
o Santo Daime ocupa entre elas. Por “religiões ayahuasqueiras”, me refiro aos movimentos
religiosos que fazem uso da bebida.
No grupo pesquisado, esta bebida, ingerida nos rituais, e o próprio movimento religioso são
conhecidos pelos adeptos por termo homônimo: “Santo Daime”. Pude constatar o uso mais
frequente do termo daime em referência à bebida, e de Santo Daime, com mais frequência, no
sentido do movimento religioso. Entretanto, em campo, pude perceber que as pessoas utilizam
ambos os termos tanto para a bebida quanto para o movimento, sendo necessária a diferenciação
com base no contexto do discurso. Na Barquinha também se costuma chamar a bebida de daime. Na
União do Vegetal, ela é conhecida como vegetal.
Muitas vezes, também, os adeptos costumam fazer referência ao nome indígena mais
propagado para a bebida: ayahuasca. Segundo algumas fontes bibliográficas35 e também
informantes no campo, o termo ayahuasca é originário da língua quíchua, falada pelos incas e seus
descendentes. Seu significado estaria na soma de dois elementos: huasca, que significa cipó, e aya,
que significa almas, espíritos. Ou seja, o “cipó dos espíritos”, ou “cipó das almas”.
Neste artigo, dei preferência ao termo ayahuasca por estar me referindo a contextos culturais
diversos e a inúmeros grupos. E porque o termo é o de maior difusão entre os grupos indígenas que
serão comentados, e é bem aceito pelos demais grupos.

1.1.Fitoquímica, neurofarmacologia e psicologia


A ayahuasca é uma beberagem que resulta de fervura ou infusão das cascas e ramos de um
cipó, Banisteriopsis caapi, com algumas espécies de folhas. No grupo pesquisado, especificamente,
são utilizadas as folhas de uma única espécie de arbusto, Psychotria Viridis Figs. 1 & 2). Ela pode
ser considerada uma substância “psicodélica”, “alucinógena” e “enteogênica”, de acordo com a sua
atuação sobre a mente humana.(METZNER, 2002:2)

do que à antropologia, faço uso do termo. Em outras referências, utilizarei o termo enteógeno, que deriva do grego e faz
referência à ideia de “divino interior”. Para uma referência mais extensa sobre a discussão, ver SILVA, 2009 &
BALZER, 2009.
33
LUZ, 2009; PANTOJO & SILVA, 2009; GENTIL, 2009; ARAÚJO, 2009; METZNER, 2002; KEIFENHEIM, 2009;
LANGDON, 2009; ZULUAGA, 2009; LUNA, 2009; MABIT, 2009.
34
“Movimentos religiosos originários da Amazônia brasileira, que têm como uma de suas bases o uso ritual da
ayahuasca”. In: LABATE et alii, 2008.
35
Por exemplo: METZNER, 2002; LABATE, 2009 (vários autores o confirmam).
[38]

O fator psicodélico se deve ao fato de que a substância é uma manifestadora da mente. Ela é
alucinógena porque induz a visões. E é enteogênica porque faz, de acordo com as cosmologias
religiosas, a ligação entre quem a ingere e o mundo habitado pelos espíritos.
Em termos fitoquímicos e farmacológicos, os componentes da ayahuasca têm uma interação
muito complexa, e seus efeitos são possíveis graças a uma interessante coincidência de compostos
químicos. Um poderoso agente psicoativo está presente na folha: a dimetiltriptamina (DMT). Ela
não é ativa quando ingerida por humanos, uma vez que é metabolizada pela enzima
monoaminoxidase (MAO), presente no estômago. O que é interessante é que alguns agentes
químicos presentes no cipó inibem a ação da enzima MAO, possibilitando a ação da DMT. É
através dessa interação que o princípio ativo é disponibilizado, entrando na corrente sanguínea e
chegando até o cérebro.
Callaway (2002:227) explica que a razão para a ação psicoativa de certas substâncias como a
ayahuasca está na semelhança estrutural entre suas moléculas e os agentes neuroativos que existem
no nosso corpo, que preenchem os receptores dos neurônios. A serotonina, por exemplo, que é um
neurotransmissor, tem a estrutura da triptamina.
Segundo o autor, a função principal da serotonina é a de inibir o sistema nervoso central,
para que a pessoa focalize mais adequadamente o que está acontecendo em cada momento. E a
modificação da ação destas funções altera perceptivelmente o comportamento do indivíduo. Isto é o
que ocorre com o uso de algumas substâncias psicotrópicas. Uma vez que a maior parte da
serotonina é metabolizada pela monoaminoxidase (MAO), a inibição desta eleva altamente os
níveis daquela. Só esta ação já seria capaz de provocar efeitos psicoativos no cérebro, mas o efeito
da ayahuasca vai além.
Como foi dito, o cipó jagube contém grande quantidade de inibidores-MAO, os alcaloides
harmala. Ao inibir a MAO e liberar a DMT, esta se encaixa nos receptores de serotonina do cérebro,
o que dá princípio às visões. Isso acontece devido à semelhança entre suas moléculas.
Ainda segundo o autor, “a náusea e o vômito que ocorrem com frequência após a ingestão
da ayahuasca são provavelmente decorrentes do aumento crescente dos níveis de
serotonina”(CALLAWAY; 2002:235), o que resulta numa estimulação em excesso do nervo
pneumogástrico, e leva a espasmos e contrações no trato intestinal.36
Acerca da forma como a ayahuasca age sobre a mente, devemos levar em conta os aspectos
que estão além da farmacologia. Pensando a partir de Grob, é possível inferir que “a intenção, a
preparação e a estrutura da sessão são aspectos importantíssimos para o conteúdo e o resultado de

36
Esses efeitos são interpretados pelos daimistas, por outros grupos e por indígenas como uma forma de purificação,
estando ligados também ao aprendizado com a bebida.
[39]

qualquer encontro com os alucinógenos” (GROB; 2002:206). Podemos chamar esse conjunto de
fatores de “cenário”.
Segundo o autor, há certas características que marcam os estados alterados de consciência e
servem para defini-los. São eles: 1. Alterações do pensamento; 2. Sentido alterado do tempo; 3.
Medo de perder o controle; 4. Transformações na expressão emocional; 5. Transformações na
imagem corporal; 6. Alterações da percepção; 7. Transformações dos significados; 8. Sensação do
indizível; 9. Sensação de rejuvenescimento; 10. Hiper-sugestionabilidade.
Destaco seis dessas características como as mais importantes para se entender a experiência
ocorrida nos rituais do Santo Daime:
As transformações da imagem corporal, que se caracterizam por alterações na imagem que
se tem do próprio corpo, pela dissolução das divisões entre o eu e os outros e sensação de
despersonalização.
As alterações da percepção, que são, em geral, identificadas pelo aumento da capacidade de
percepção das imagens e alucinações, cujos conteúdos são influenciados pelos fatores culturais e
individuais. E também pela alta possibilidade de vazão à expressão de medos e conflitos internos.
As transformações dos significados, que acontecem com grande parte das pessoas. Algumas
delas dão significados especiais a fatos de suas próprias vidas, e a produção de insights é recorrente.
A sensação do indizível, que é o fato de ser muito difícil comunicar a experiência que se tem
a outra pessoa que não teve o mesmo tipo de experiência.
A sensação de rejuvenescimento, que é relatada por algumas pessoas que passam pela
experiência com os enteógenos. Esta sensação se dá através de um sentimento de renascimento e
esperança, e pode refletir por muito tempo no comportamento e na aparência da pessoa que passou
pela experiência.
A hiper-sugestionabilidade, que acontece através da diminuição do senso crítico. A pessoa
pode ter atitudes que condenaria ou estranharia em estado não alterado de consciência.
Passemos aos conteúdos das visões que se têm ao ingerir a ayahuasca. Há, neste tipo de
experiência, pontos em comum na maioria dos relatos. Sejam relatos feitos por parte de indígenas,
de daimistas ou de usuários em geral da bebida. Alguns destes pontos são:
1. Sensação de voo e sensação de separação entre alma e corpo.
2. Encontros com serpentes, jaguares, aranhas e outros predadores.
3. Sensação de contato com os mundos sobrenaturais, com seres como demônios,
encantados, anjos etc.
4. Visões de pessoas e lugares distantes.
5. Impressão da clarividência.
[40]

Porém, segundo o próprio Grob, as experiências visionárias da ayahuasca são elaboradas de


acordo com o sistema de crença coletivo e individual dos participantes. E
os relatos sobre os efeitos específicos da ayahuasca variam significativamente, de
acordo com o contexto cultural, que vai do ritual tradicional dos nativos da Amazônia à
cerimônia dos curandeiros mestiços, ou da estrutura sincrética da religiosidade à livre e
curiosa exploração psiconáutica euro-americana. (GROB, In METZNER, 2002: 208).

Concordo com ele no que diz respeito à variedade da experiência estar ligada ao contexto
cultural e às particularidades individuais.
Outros dados podem ser empregados a partir das pesquisas do psicólogo Benny Shanon
(2009). Partindo de uma abordagem cognitiva, ele dá ênfase à experiência subjetiva e à análise do
processo individual. Ele elenca alguns elementos de sumários para se entender a experiência da
ayahuasca, criando um esquema classificatório desses elementos.
Nas suas questões fenomenológicas de primeira ordem, ele pensa do tipo de domínio em que
ocorre a experiência. O primeiro ponto a se considerar é a atmosfera geral em que ela acontece, ou
seja, o lugar onde a pessoa está, quem está com ela ou se está sozinha, se há música ou não, se está
em um meio urbano ou em meio à floresta. O próximo ponto são os sentimentos gerais pelos quais
a pessoas passa, qual é seu estado de espírito no momento da experiência, se está passando por
problemas pessoais, de ordem emocional ou psíquica, o que espera da experiência, se há ansiedade,
se busca uma cura ou respostas para alguma questão interior. Outro ponto são os efeitos
ideacionais, como os insights e as reflexões, visões da infância, memórias ou ideias para o futuro,
respostas que são alcançadas no estado alterado da consciência, etc. As performances são outro
ponto, ou, seja, se há dança e canto, se a pessoa deve proceder a algum tipo de comportamento
ritualizado, se deve seguir as ordens de alguém, se deve dizer o que está pensando ou fazer o que
alguém mais disser. Outros pontos são: as metamorfoses, as mudanças na estrutura da consciência
e do self e as experiências místicas e espirituais.
Acerca dos efeitos da ayahuasca sobre a consciência, Shanon diz:
Um aspecto-chave para a consciência é que ela dispõe de distinções entre “eu” e “não-eu” (self e não-self)
e entre o mundo interno, psicológico e o externo – este último constituindo-se tanto do ambiente material
e físico quanto do mundo social de outros seres humanos. Posteriormente, é feita uma distinção entre os
vários estágios mentais – entre percepção e pensamento, entre memória e pensamentos referindo-se a
assuntos e estados hipotéticos que alguém vivencia, entre percepção sensória verídica e sonho. Sob efeito
da ayahuasca, todas estas distinções podem ficar confusas, difusas ou, mesmo, localmente abolidas. Mais
comum, por exemplo, é o senso de identificação profunda, que pode ser visto como um tipo de relação
mística, entre o agente cognitivo e o mundo. Neste estado, a distinção fundamental entre o mundo interno
e o externo parece não mais aplicável. (SHANON, 2009:703).

Todos os aspectos apresentados são muito importantes para entendermos a experiência com a
ayahuasca e seus usos culturais. E os fatores que foram apontados estão presentes nos discursos,
alguns deles servindo de modelos para a interpretação das experiências.
[41]

2. Seus usos
Como foi enunciado, vários grupos indígenas e alguns movimentos religiosos fazem uso da
bebida ayahuasca em alguns de seus rituais. Abaixo, tentarei enumerar alguns usos sociais dessa
substância e seu lugar na cosmologia desses grupos, entre eles os adeptos do Santo Daime. A ordem
que escolhi para organizar os tópicos não tem qualquer conotação de “passos” percorridos até se
chegar ao Santo Daime, ou qualquer ideia de reminiscências entre um grupo ou outro, e os grupos
apresentados são, em grande medida, contemporâneos. Trata-se, tão somente, da forma escolhida
para organizar as ideias a serem apresentadas.

2.1. Grupos indígenas


A ayahuasca está difundida entre vários grupos indígenas da América do Sul. E há registros
arqueológicos que atestam sua utilização anterior a dois mil anos na região amazônica
(MCKENNA; 2002:174). Mas o primeiro contato de um pesquisador ocidental com a bebida foi
feito por Richard Spruce, que contatou índios que a utilizavam em regiões do Brasil, da Colômbia,
da Venezuela e dos Andes peruanos.
Atualmente, há inúmeros estudos sobre a utilização da beberagem e seu simbolismo por
parte de grupos indígenas. Os dados sobre o tema, aqui resumidos, provêm de leituras de alguns
desses trabalhos.37 Os grupos apresentados estão divididos em três povos, seguindo a metodologia
de Pedro Luz (2009): os grupos linguísticos Pano, Aruák e Tukano.

PANO
Entre os Kaxinawá, a bebida é conhecida como nixi pae. Sua ingestão permite o contato com
a realidade mais sutil, que não aparece no dia-a-dia. Para eles, assim é possível perceber o espírito
que permeia toda a natureza, bem como a igualdade entre todos os seres e os humanos. Esta visão
corrobora com a concepção de que o homem é parte da natureza, e de que o espiritual a permeia por
completo. O nixi pae também é responsável pela preparação para a morte, e dá força para a luta
espiritual. O uso é feito de forma ritual, e as mulheres não ingerem a bebida.
Para os Maburo, a bebida é conhecida como oni. Eles a relacionam às origens do mundo e
dos seres. Ela é encarada como o elo entre os vivos e o mundo dos mortos ou mundo dos espíritos.
Os Yaminawá concebem a pessoa em três partes: o corpo, a consciência e o espírito. O shori
– nome dado à bebida, permite o acesso ao mundo espiritual. Através dele, são presenciados os
mitos e adquiridos os poderes que criaram as coisas. O canto xamânico está diretamente ligado ao
shori. Ele é o que permite aos espíritos cantar através do xamã. Segundo Pedro Luz,

37
Principalmente: LUZ, 2009; KEIFENHEIM, 2009; LANGDON, 2009; ZULUAGA, 2009.
[42]

Estes cantos provocam e refletem as visões numa relação dialética. Sendo as visões consideradas
vislumbres do mundo espiritual, a atividade do xamã é observá-las claramente. No entanto, para seu
objetivo específico, a cura de um ou outro mal, o xamã deseja ver certas coisas e não outras, necessitando
dirigir suas visões por certas linhas. É a canção que sustenta sua visão e a guia por determinados
caminhos. (LUZ, 2009:43).

Os Sharanawa, que conhecem a ayahuasca pelo termo ondi, veem uma ligação entre sonhos
e as visões provocadas pela bebida. Assim como é feito um contato com o mundo espiritual através
dos sonhos, isso também é possível em estado de vigília.

ARUÁK
Entre os Ashaninka, o kamarampi (nome dado à ayahuasca) está ligado à noção de
imortalidade. Os mitos relatam as formas de utilizá-lo, e através deles prescrevem as restrições que
devem ser observadas para o uso correto. Para os Ashaninka, os espíritos aparecem no mundo
ordinário disfarçados de animais e vegetais, e de fenômenos naturais. Com o uso da bebida, é
possível ver a sua forma verdadeira. A bebida é a fonte de poder do xamã, e é ela o que possibilita
ver os espíritos como realmente são: humanos.
Para os Piro, o kamarampi mostra o mundo real que os “seres poderosos” escondem atrás do
mundo ordinário. Seu uso entre está ligado à prevenção de mortes, ao conhecimento adquirido
através dos espíritos, à eternidade ou vida eterna e a limpeza do corpo e prevenção de doenças. E
“quando se ingere kamarampi, se entra no mundo destes seres que não têm desejo nem por sexo,
nem por comida, não são nascidos, nem podem morrer, são intensamente animados e estão
continuamente no estado que sobrevém àquele que bebeu kamarampi.” (LUZ, 2009:47).
Para os Machinguenga, o uso do kamarampi leva à separação da alma e do corpo. Os bons
espíritos são vistos como pássaros na realidade ordinária, mas se revelam como pequenos homens
quando se ingere o kamarampi.

TUKANO
Entre os Airo-pai, a ayahuasca é chamada de yagé. Seu uso é visto como indispensável para
o contato com os espíritos. Para eles, existem dois lados da realidade: o mundo ordinário e o mundo
dos espíritos e “monstros”. Para acessar este mundo dos espíritos, é preciso um tipo de visão
especial. Esta visão é proporcionada pelo yagé. O canto tem, entre este grupo, um papel crucial. Ele
“é o meio de orquestrar e estruturar visões culturalmente específicas para cada um dos
participantes da sessão”. (LUZ; 2009:50) Pois, apesar de os xamãs concordarem em vários
aspectos cosmológicos, cada um tem seu próprio entendimento sobre as visões, porque “embora
suas descrições de como é o outro mundo estejam dentro de um quadro cultural mais amplo,
compartilhado por todos, e coerente com a cosmologia do grupo, esta última apresenta certo grau de
fluidez, estando sujeita às experiências pessoais provocadas pela bebida.” (LUZ, 2009:50.).
[43]

Para os Airo-pai, o mênstruo e o yagé devem ser mantidos sempre distanciados, e as


mulheres menstruadas não podem tocar nada que será usado ou ingerido pelos homens, em especial
os que tomaram yagé. Este tem, para eles, ainda, grande relação com o crescimento das plantas e os
ciclos agrícolas. E as canções do yagé são tomadas como palavras das próprias plantas.
Já para os Makuna, o kahi ide (ayahuasca) está ligado à origem da sociedade e, junto com
outros bens culturais, é o que atribui a própria humanidade ao homem. Seu uso está conexo à cura e
à prevenção de doenças, e também tem papel no contato com os ancestrais. Além disso,
proporcionam as visões que guiarão o espírito após a morte.
Entre os Cubeo, o canto e as visões fazem o elo entre o mundo humano e o não-humano.
Eles valorizam o aspecto físico do mihi (a bebida) sobre o corpo. Isto porque “o consumo do mihi
[...] alegra os antepassados: a sucuri, o veículo dos ancestrais, é a mestra do mihi e de suas visões.
De fato, o mihi é o presente da sucuri e bebê-lo é receber o coração desta que é, num sentido,
análogo ao coração da linha de descendência e é a fonte dos cantos e das visões.” (LUZ, 2009:53).
Os Barasana, que comparam os efeitos da bebida aos da morte, veem o he okekoa
(ayahuasca) como “o leite dos ancestrais”:
O cipó é comprado a um cordão umbilical que liga os homens ao seu passado mítico e ainda ao conjunto
de rios que formam o caminho percorrido pela sucuri mítica desde a origem até o destino final do grupo.
[...]
A função da bebida neste grupo é transportar os indivíduos até o estado ancestral, devido à sua habilidade
de fluir através das linhas de descendência.
[...]
Quanto mais sagrado o ritual, mais forte é a bebida e mais próximo o contato com os ancestrais originais.
(LUZ, 2009:56).

Já entre os Desana, a ayahuasca, conhecida como gahpi, provê o transporte dos homens, que
são os únicos a tomá-la, a um lugar em que contatam seres espirituais e heróis de sua mitologia. O
mito de criação e vários outros mitos importantes têm o gahpi como um dos elementos centrais.
Os Siona, como os Airo-pai, dividem a realidade em duas: o mundo visível e o mundo
invisível. Em sua concepção, a realidade ordinária é afetada pelas forças invisíveis, tanto para o
bem quanto para o mal. Torna-se necessário conviver com estas forças, e tentar influenciá-las. Este
trabalho é feito pelo xamã, e a habilidade é adquirida com o uso contínuo do iko (ayahuasca). A
bebida não é de uso exclusivo do xamã, podendo ser ingerida por toda a comunidade. Os xamãs,
porém, têm a liderança nos caminhos xamânicos, e os novatos ficam expostos a vários perigos. Eles
acompanham o xamã no conhecimento advindo do contato com os seres espirituais que são
acessados através da bebida. Assim, vão aprendendo sobre o mundo invisível.
Os Tatuyo creem que o capi (nome dado à ayahuasca) transporta o indivíduo às origens do
mundo. Este mundo, em que o Sol habitava anteriormente, contrasta com o mundo da realidade
ordinária. Aqui, se vê, novamente, a identificação de duas realidades opostas, porém
complementares.
[44]

2.2. Barquinha
O Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, ou Barquinha, como é
conhecido, foi iniciado em 1945 por Daniel Pereira de Mattos, na cidade de Rio Branco, no Acre. O
movimento ainda é restrito a esse estado, e conta com aproximadamente quinhentos adeptos. A
bebida, utilizada nos rituais, como foi dito, também é conhecida pelo termo daime.
Segundo as fontes consultadas (ARAÚJO, 2009), Daniel Pereira de Mattos nasceu em São
Luís, no Maranhão, e era filho de escravos. Ele foi aprendiz de marinheiro em uma escola da região,
e depois se transferiu para o Acre, durante o auge da exploração da borracha. Mattos teve um
encontro com Raimundo Irineu Serra, fundado do Santo Daime, e afirmou ter sido curado por ele.
Vários elementos ajudaram a formar a cosmologia e o simbolismo da Barquinha. Entre eles,
Araújo cita o catolicismo popular, o xamanismo indígena, as religiões de matriz afro-brasileiras e a
filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. A cosmologia é fortemente ligada ao
mar, refletindo a experiência de seu fundador com o mar e a marinha. O próprio nome do
movimento denota isso. A “Barquinha” é uma embarcação que representa a “missão” deixada por
Daniel e a “viagem” de cada adepto. A “missão” se constitui em conduzir a barca até Jesus,
tentando evitar as profanações mundanas.
Segundo Araújo, “Deus é o proprietário da barca, mas quem definirá o seu rumo são os fiéis
através de suas atitudes”. (ARAÚJO, 2009:543) A barca é um local de lutas entre forças do bem e
do mal, e as batalhas navais que são travadas têm como objetivo converter as entidades malignas
em benignas. Além disso, os adeptos são chamados de “marinheiros do mar sagrado”. Segundo
Araújo, “o mar no qual esses marinheiros constantemente navegam é chamado de mar sagrado,
devido ao fato de o Daime ser considerado substância sagrada. Viajam, portanto, nas ondas do
Daime sobre o balanço do barco de Santa Cruz.” (ARAÚJO, 2009: 544).
A bebida é destacada enquanto luz. “Ela (a luz), é associada ao conhecimento, logo, aqueles
que experimentam o Daime, estão ingerindo a Santa Luz e adquirindo novos conhecimentos,
enxergando a si mesmo, o outro e outros mundos”. (ARAÚJO, 2009: 544).
As bases rituais e simbólicas da Barquinha se fundamentam em uma visão que Daniel
Mattos teve. Trata-se do Livro Azul, que reúne os ensinamentos e as instruções aos adeptos. Essas
instruções são transmitidas através de melodias, chamadas de salmos.
Durante os rituais, há médiuns que incorporam entidades e “trabalham” para o seu
desenvolvimento. Os “trabalhos” são caridosos, e consistem em desfazer trabalhos de quimbanda e
eliminar encostos, ou espíritos obsessores.
Também há rituais de concentração, em que se objetiva aprender com o daime, fazendo o
desenvolvimento das próprias capacidades mediúnicas para “trabalhar” nos trabalhos de caridade.
[45]

Um símbolo importante é o cruzeiro. Com ele, os médiuns trabalham com os espíritos sem luz, no
sentido de doutriná-los.

2.3. União do Vegetal


A União do Vegetal é uma das religiões do Brasil que fazem uso da ayahuasca em seus
rituais. O seu fundador foi José Gabriel da Costa, um baiano nascido em 1922. Na União do
Vegetal, assim como as demais religiões ayahuasqueiras, pode ser observada a presença de
elementos de diversas outras religiosidades, como o cristianismo, religiões afro-brasileiras,
conhecimentos religiosos indígenas e o espiritismo kardecista, com a sua noção de reencarnação e
evolução do espírito.
José Gabriel migrou para o estado de Rondônia, a fim de trabalhar em uma das regiões de
exploração de seringueiras. De acordo com o mito de fundação do movimento, ao ter uma
experiência com a ayahuasca, ele recordou da União do Vegetal. Segundo a visão, esta seria uma
obra milenar, que teria no rei Salomão o seu criador. (GENTIL, 2009) Em 1960, José Gabriel se
mudou para Porto Velho, e deu início ao processo de estruturação e expansão do movimento.
Na União do Vegetal, não há “trabalhos” de incorporação, psicografia ou passes. A bebida
ritual é conhecida pelos adeptos como hoasca ou vegetal, e é considerada “um veículo, um
instrumento de concentração mental, através do qual a doutrina transmitida pelo Mestre Gabriel é
difundida a seus discípulos”. (GENTIL, 2009: 561) E a transmissão dos conhecimentos é feita de
forma oral nos encontros rituais, que são chamados de “sessões”.
O ensino da doutrina é realizado com base em dois elementos: o “grau de memória” e o
“grau espiritual”. Por “grau de memória” se entende “a capacidade de ouvir, compreender e
memorizar os ensinos sob efeito do chá”. (GENTIL, 2009:562) O “grau espiritual” está diretamente
ligado à concepção de evolução espiritual do kardecismo.
O calendário ritual é organizado da seguinte maneira. Há duas sessões mensais, realizadas a
cada quinze dias, um encontro anual e “sessões instrutivas”, fechadas aos adeptos mais experientes
e cujo envolvimento na religião é mais antigo.
A hierarquia da União do Vegetal é rígida. Há inúmeros núcleos, espalhados pelo Brasil, que
devem contar com autorização da sede central para funcionamento. Esta sede está localizada em
Brasília. Alguns dos cargos são efetivos, e outros são concedidos com base em eleições. Há também
uniformes, que são marcadores de distinção hierárquica.
Existem dois departamentos especiais na União do Vegetal. Um deles é o departamento de
memória e documentação, que registra, armazena e cuida de acervos documentais e outros registros
relacionados à formação do movimento, dados biográficos do seu fundador, entre outros assuntos.
O outro é o departamento médico-científico. Este está voltado tanto para o cuidado dos adeptos
[46]

quanto para a pesquisa. Assim, a União do Vegetal promove pesquisas científicas, na tentativa de
provar os benefícios da ingestão ritualizada da ayahuasca e sua aplicabilidade em processos
terapêuticos. Muito se deve à União do Vegetal, e seus esforços em pesquisas, no que tange à
aprovação pela legislação brasileira da liberação do uso da substância em contexto religioso.

2.4. Santo Daime


Sob a denominação geral de “Santo Daime”, há vários grupos. Todos esses grupos afirmam
dar continuidade ao trabalho de Raimundo Irineu Serra, que foi quem fundou o primeiro núcleo, e
quem estruturou os fundamentos doutrinários e as formas com que os rituais são realizados.
Segundo as narrativas daimistas38, a seita se desenvolveu no Acre, a partir da década de
1930, tendo como baluarte o Cabo da Guarda Territorial, e descendente de escravos, Raimundo
Irineu Serra. Vários autores acadêmicos corroboram com estas informações39. Depois de passar por
Manaus, Serra se deslocou para a região de Xapuri, no Acre, onde morou por cerca de dois anos.
Ele chegou a trabalhar em seringais, no município de Brasileia, por três anos, e depois se dirigiu
Serra Madureira, local em que se estabeleceu por mais três anos. Essa foi a época em que trabalhou
na “Comissão de Limites”, atuando, como funcionário do governo, nas delimitações daquele estado
com a Bolívia e o Peru.
Segundo Vera Fróes (in FERNANDES, 2009:22), durante esse período de trabalho nas
fronteiras, Serra teve conhecimento da utilização da ayahuasca, devido a contato com índios do
Peru. Em uma de suas visões, isolado na mata, ele se encontrou com uma mulher chamada Clara,
que também se apresentou como Nossa Senhora da Conceição e como a Rainha da Floresta. 40 Ela
lhe informou que ele tinha uma missão, e que ele deveria seguir algumas instruções. Foi dentro
desta visão que Serra concebeu (“recebeu”) o novo nome para a ayahuasca: Santo Daime41. Essas
instruções, que ele recebeu, foram as bases para o conteúdo doutrinário e ritual do Santo Daime.
Em 1920, Irineu Serra abandonou a atividade nos seringais e se transladou para Rio Branco,
ingressando na Guarda Territorial, com a patente de cabo. Ele manteve essa atividade até 1932,
quando passou a se dedicar à agricultura. Foi por volta desse período que Serra iniciou seu
“trabalho” espiritual. Algumas amizades com políticos influentes lhe renderam certa proteção

38
Em geral, as narrativas dos daimistas coincidem neste ponto. Baseio-me nas narrativas recolhidas durante a minha
pesquisa de campo, naquelas recolhidas por outros pesquisadores e apresentadas em seus textos acadêmicos, e ainda as
narrativas de daimistas que escreveram livros de divulgação do Santo Daime.
39
FERNANDES, 1986 (trabalho acadêmico na área de História); GREGORIM, 1991; JÚNIOR, 2007; LABATE, et
alii., 2008; LABATE & ARAÚJO, 2009 (todos os autores que pesquisaram o Santo Daime); MACRAE, 1992; SILVA,
2002.
40
Pude ouvir essa história várias vezes durante a pesquisa de campo, em diferentes contextos e a partir de diferentes
pessoas, de graus de hierarquia variados. É uma das histórias mais contadas e repetidas pelos daimistas, e constitui um
verdadeiro mito de fundação do movimento.
41
O termo daime tem origem no verbo “dar”, conjugado no Modo Imperativo e em segunda pessoa do plural: “Dai-me
força”; “Dai-me luz”; “Dai-me amor”. Há outras hipóteses, como a que pode ser constatada em SILVA, 2009, que vê
provável relação entre o termo e a simbologia da serpente presente nas mitologias do Daomé, na África.
[47]

contra as perseguições às suas atividades religiosas, e ao uso do daime. O primeiro núcleo daimista,
com inúmeros adeptos, se formou nessa década. Após sua morte, e as disputas, Padrinho Sebastião
se separou do grupo, sendo acompanhado de dezenas de pessoas.
O Padrinho Sebastião, como é conhecido atualmente, nasceu em sete de outubro de 1920,
em Eirunepé, no estado do Amazonas. Desde jovem participava de trabalhos de mesa espírita, em
que era incorporado por entidades do Kardecismo (MACRAE,1992), com um homem de São Paulo,
conhecido como Mestre Oswaldo.
Após uma experiência de cura com a ayahuasca, Mota passou a frequentar o Alto Santo, e
se aprofundou nos conhecimentos doutrinários. Em pouco tempo, ele foi autorizado a preparar o
daime e a utilizá-lo para promover curas em pessoas que o procuravam. Com a morte do Mestre
Irineu, os dirigentes escolheram Leôncio Rodrigues, mas Sebastião Melo não concordou e se
retirou, continuando seus trabalhos na Colônia 5000.
No começo da década de 1980, o Padrinho Sebastião decidiu que o grupo liderado por ele
deveria se mudar para o interior da floresta. O local escolhido se encontrava num seringal
conhecido como Rio do Ouro. Alguns problemas, porém, surgiram e eles tiveram de procurar outra
localidade. A área conseguida ficava às margens do igarapé Mapiá, em Pauini, município do estado
do Amazonas. Ela foi batizada de Céu do Mapiá.
O Mapiá, como costuma ser chamado pelos adeptos, é uma verdadeira referência para a
maioria dos daimistas. Visto como uma Nova Jerusalém no coração da floresta, é local de
peregrinações e uma referência para todos os adeptos da linha do CEFLURIS, sendo visitado por
pessoas provenientes de todas as partes do Brasil e de vários outros países. Também o é para o
grupo pesquisado42, pois ele tem uma grande importância, e vários de seus representantes já foram
até lá.
Até a década de 1980, o Santo Daime só existia no Acre, restringindo-se principalmente à
Igreja do Alto Santo e às suas dissidências, em Rio Branco; e no Amazonas, como no Céu do
Mapiá. A partir desta década, entretanto, assistiu-se a uma expansão do culto para fora dos limites
da Floresta Amazônica, com a fundação de igrejas na região Sudeste do Brasil e, posteriormente,
em outras regiões e países.
Um dos motivos que levaram a isso foi a presença de jovens mochileiros, intelectuais e
andarilhos, que chegaram ao Céu do Mapiá. Eles ouviam falar do lugar como um local especial e
propício para o desenvolvimento da espiritualidade, e se dirigiam a ele, encontrando um ambiente
acolhedor.
Os mochileiros e adeptos da contracultura levaram vários elementos para o Santo Daime,
como a ideia de ruptura com os valores da modernidade. Clodomir Silva (2009) diz que eles

42
O grupo não é mais filiado ao CEFLURIS.
[48]

também foram os responsáveis pela reaproximação em relação aos cultos afro-brasileiros. O


movimento New Age, com as ideias de experimentação do mundo interior e da espiritualidade
profunda (HEELAS, 1996), também teve um papel importante na estruturação do Santo Daime, na
linha do Padrinho Sebastião.
Alguns desses jovens, em busca de uma vida alternativa e de resposta para anseios
existenciais que acabaram indo para o Acre e conhecendo o Santo Daime, voltaram para as suas
regiões, levando, já nesta ocasião, um pouco da bebida, e realizando experimentos ou pequenas
reuniões ritualizadas com ela.43 O daime foi capaz de proporcionar a esses jovens um tipo de
experiência extática e de iluminação que seguidores de outras escolas espiritualistas só alcançam
com muitos anos de prática.(MACRAE, 1992:78) E isso contribuiu para que eles se empenhassem
em trazer o Santo Daime para a região Sudeste.
Com o passar do tempo, vários núcleos e igrejas foram surgindo em diferentes regiões do
país, como São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais etc., e em outros países. O primeiro desses
núcleos fora do Brasil se estabeleceu na Espanha, no final da década de 1980 (MACRAE,2000).
O Santo Daime agrega, desde a sua formação, elementos de diversas práticas culturais e
religiosas. Seus adeptos mantêm um diálogo constante com elas, seja fazendo referência aos
elementos indígenas, na tentativa de reconstruir os “fundamentos” de sua cosmologia ou assegurar a
“autenticidade” de suas práticas; seja na inspiração em outros movimentos, na busca da semelhança
e na assimilação de alguns de seus elementos. Durante a pesquisa de campo, também pude constatar
o trânsito de pessoas provenientes de outros grupos, como a União do Vegetal e a prática de rituais
indígenas no contexto dos rituais da igreja. Também pude perceber um interesse e até admiração
por parte de adeptos pelo movimento intitulado Barquinha.
No contexto simbólico do Santo Daime, as plantas representam o lado masculino (cipó) e o
lado feminino (a folha). O cipó, ou jagube, é reconhecido como o elemento responsável pela força.
A folha, chacrona ou rainha, é concebida como o elemento que dá a luz, a claridade e o caminho.
Para os adeptos, a força e a luz são componentes indispensáveis para os trabalhos espirituais, bem
como para as lutas travadas no mundo dos espíritos, ou no astral, como costumam se referir. A
composição da bebida, assim, é vista como a união do masculino e do feminino em um só ser.
A visão de espiritualidade está ligada à noção kardecista de evolução do espírito. A caridade
se constitui em um dos elementos mais importantes para esses grupos, e está ligada tanto à
solidariedade para com o próximo, quanto para com os espíritos “sem luz”.
Os calendários e as datas de rituais têm uma estrutura comum em todos esses grupos. Todos
eles têm datas fixas para os chamados trabalhos oficiais, que variam de grupo para grupo. Todos

43
Alex Polari narra, em seu primeiro livro sobre o Santo Daime (POLARI, 1984) as primeiras experiências com a
bebida daime, e como foram os primeiros “trabalhos” com ela, já de volta ao Rio de Janeiro.
[49]

têm trabalhos de concentração, que podem ter datas fixas ou variáveis, dependendo das condições e
necessidades.
É comum, também, o uso da indumentária, pelos adeptos, nos rituais. Em todos esses
grupos, este “uniforme” é conhecido como farda. As fardas têm variações de cores e detalhes, mas
seguem um padrão comum, baseado naquele indicado por Irineu Serra.
Os rituais principais em todos esses grupos são: o hinário, a concentração, os trabalhos de
cura, a missa e o feitio. Nem todos eles promovem as giras de Umbanda, e nem todos aceitam a
incorporação em todos os seus rituais.
Outro fator comum entre as denominações do Santo Daime é a importância que os adeptos
atribuem, em seus discursos, à obediência, ao respeito, à disciplina, à clareza e à paz de espírito, à
humildade e ao perdão, entre outros valores, considerados por eles como essenciais. Todos estes
aspectos aparecem em suas falas, nas conversas entre pessoas, nos discursos dos dirigentes, nos
hinos.
Quanto à cosmologia e na simbologia dos grupos, todos eles apresentam elementos que
podem ser identificados como provenientes do catolicismo popular, do kardecismo, de alguns
círculos esotéricos, de práticas religiosas indígenas e afro-brasileiras.
São elementos comuns, ainda, alguns símbolos centrais, presentes nas igrejas44. São eles: a
mesa, que geralmente fica no centro do templo; o maracá, que é acionado durante os rituais,
principalmente em que há bailado; o cruzeiro, ou cruz de Caravaca, que pode ter formas variadas,
dependendo do grupo.

2.5. Usos culturais no Santo Daime em comparação a outros “grupos”


Todas as denominações do Santo Daime mantêm uma grande afinidade quanto às suas
formas de uso e o simbolismo sobre o chá, quando comparadas às formas de uso e o simbolismo
entre os grupos indígenas, que variam bastante.
Entre os vários grupos indígenas que fazem uso ritual da bebida, ela pode estar restrita a
certo setor da sociedade, como no caso de alguns, em que ela só pode ser ingerida por homens, ou
como em outros, só pelo xamã, enquanto em outros a ingestão é liberada a todas as pessoas. No
Santo Daime, o chá é ingerido na maioria dos rituais, e ele está liberado, indiscriminadamente, para
homens, mulheres, crianças e adolescentes, prevalecendo, porém, o bloqueio àqueles que fazem uso
de medicamentos psicotrópicos ou àqueles que tenham problemas de ordem psiquiátrica mais
graves.
Um elemento comum entre a cosmologia de alguns grupos indígenas e do Santo Daime é a
associação que alguns entre aqueles e estes fazem entre os sonhos e as viagens provocadas pela

44
Todas as denominações fazem uso do termo.
[50]

bebida. A diferença entre sonho e vigília, assim como a diferença entre estado alterado e estado não
alterado de consciência, é relacionada, algumas vezes, à diferenciação entre um mundo real e um
mundo ilusório, este último associado à realidade ordinária do viver diário.
Outra característica de similaridade é a divisão do mundo em uma realidade dupla: o mundo
visível e o mundo invisível. Porém, cabe ressaltar que nem todos os grupos indígenas concebem o
mundo desta maneira. Como apontam alguns antropólogos, baseados nas reflexões de Eduardo
Viveiros de Castro,
O perspectivismo ameríndio coloca a ênfase não na oposição entre um mundo visível e um mundo
invisível, e sim na ideia de que o mundo humano se prolonga no mundo dos animais e outros seres que
chamamos de naturais – sendo então todos, humanos e animais, equivalentes entre si, mas associados a
diferentes perspectivas, vinculadas a corpos distintos, a diferentes roupas e hábitos. (ALMEIDA, 2009:
17).

A diferença está em que, no Santo Daime, se vê uma marcada oposição entre um mundo
visível e um mundo invisível, entre duas realidades que se diferenciam, mas se completam. Há,
neste caso, um mundo em que vivemos e fazemos nossos planos, trabalhamos e damos
prosseguimentos à vida, em nossos afazeres diários. Mas há outro mundo, aquele em que habitam
os espíritos dos mortos e outros seres sobrenaturais. Eles se completam, entretanto, quando se dá o
contato entre ambos, quando, a partir do nosso mundo, contatamos aquele mundo que não vemos
baseados na realidade ordinária, balizada pela ciência. Esse acesso pode ser feito, por exemplo, com
o uso de um enteógeno.45
Outro fator de semelhança, que a meu ver tem importância crucial, é a relação entre os
cantos e as visões. Os hinos, no Santo Daime, e os cantos, entre os indígenas, são vistos como um
caminho seguro a seguir. Tanto quando o xamã canta como quando os daimistas executam seus
hinos, a intenção é que eles guiem os passos do viajante por sua viagem pelos outros planos e
realidades. Talvez este seja o elemento que mais aproxima o uso cultural-ritual da ayahuasca entre
os índios e os grupos daimistas: a eficácia e o poder do canto nos seus rituais.
Com respeito aos grupos nacionais que fazem uso da ayahuasca, posso apontar semelhanças
entre o Santo Daime e duas delas. Em relação à Barquinha, a semelhança mais marcante é a
incorporação. Devo evidenciar, entretanto, que nem todos os adeptos ou grupos do Santo Daime são
favoráveis ou aceitam esta prática em seus templos e rituais. Quanto à União do Vegetal, posso
apontar um de seus fatores mais manifestos: a disciplina. Através das leituras que foram feitas sobre
este movimento, e também a partir de contatos que tive com um filiado à União do Vegetal durante
a pesquisa de campo, ficou evidente que a disciplina é um fator muito importante durante tanto nos
rituais quanto nos discursos. Comum aos três movimentos é a visão ecológica que todos pregam e
instigam.

45
Cf. nota 3.
[51]

Colocando os grupos “ayahuasqueiros”, de um lado, e os indígenas de outro, nota-se uma


mudança no significado que é atribuído à bebida. Enquanto entre os índios ela é vista como curativa
e acessória, nas religiões ayahuaqueiras ela é vista como um sacramento. (BALZER, 2009:515)

Conclusão
Como se pode ver, vários grupos têm a bebida largamente conhecida como ayahuasca como
uma de suas principais fontes de explicação do mundo. Através dela, eles entram em contato com os
seres espirituais, e “viajam” por diferentes espaços e tempos. Podem ter contato com seus
antepassados e algumas vezes podem acompanhar a criação do mundo, assistindo a sua construção
no tempo mítico.
Estas breves descrições tiveram como objetivo mostrar a variedade a que chegam os usos
culturais que são feitos deste “cipó dos espíritos”, e a importância que esta bebida pode ter para os
grupos que a ingerem ritualmente. O Santo Daime é responsável por reproduzir e renovar alguns
desses usos culturais. Eles poderão ser aprofundados através da leitura de minha Dissertação de
Mestrado, sobretudo no que diz respeito ao grupo que foi por mim pesquisado.

Referências

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Entrevistas de campo.
[53]

A CIÊNCIA EM SHERLOCK HOLMES


Dimas de Fonte Silva
SME/RJ
Mestre em História (UERJ)
[email protected]

Carlo Ginzburg foi um dos autores mais recentes a chamar a atenção para Sherlock Holmes
em seu texto: “Sinais, Raízes de um Paradigma Indiciário” (1989), e consoante a analogia
Historiador/Detetive, utilizar o personagem como um componente explicativo de suas teorias sobre
Morfologia, História e Epistemologia. Ele identifica, no final do século XIX (década de 1870-80), a
emergência “silenciosa” de um novo modelo epistemológico no âmbito das Ciências Humanas, e
atribui a gênese desse paradigma aos primórdios da humanidade, ligado à necessidade premente de
sobrevivência que o homem primitivo enfrentava no seu dia a dia.
Tal forma de conhecimento é identificada por ele ao longo da História, na Mesopotâmia, na
Grécia e em Roma. Entretanto, posteriormente o grupo de disciplinas que contém esses saberes,
chamado de por ele de “indiciárias” (como a Medicina, por exemplo), foi alijado dos critérios de
cientificidade e considerados ilegítimos no paradigma fundado por Gailileu, pertencentes à
Revolução Científica do século XVII; que imprimiu às Ciências (principalmente as da natureza) um
direcionamento num sentido “tendencialmente antiantropocêntrico e antiantropomórfico que ela não
viria mais a abandonar”(GINZBURG, 1989:156-158).
Assim, a ciência em voga a partir do Século XVII é baseada nos pressupostos das Ciências
Naturais estabelecidos pela Revolução Científica, não havendo espaço para o conhecimento
indiciário, considerado imperfeito, não científico e por isso incapaz de resultados exatos. A maior
parte das Ciências Humanas, numa tentativa de adaptação às demandas das Ciências Naturais,
acabaram solidamente ancoradas em estratégias de matematização e quantificação.
Entretanto, ao longo do século XVIII, ocorre uma “ofensiva cultural” da burguesia, que se
apropria de grande parte do saber indiciário e não indiciário, de artesãos e camponeses, codificando
esses saberes e simultaneamente intensificando um gigantesco projeto de aculturação, já iniciado
com formas e conteúdos diversos, pela Contra-Reforma. O símbolo e o instrumento central dessa
ofensiva burguesa é representado pela Encyclopédie francesa de Diderot e D’Alembert
(GINZBURG, 1989:167).
Essa coleta generalizada de saberes diversos teria alimentado, entre os séculos XVIII e XIX,
as novas formulações de antigos saberes em uma larga faixa que iria da cozinha à hidrologia,
passando pela veterinária. Através da presença dos livros, em franca expansão na Europa, começa a
[54]

acontecer o acesso as mais variadas experiências, com o Romance fornecendo a burguesia


simultaneamente um substituto e uma reformulação dos ritos de iniciação como acesso à
experiência em geral. A literatura de imaginação seria o motor que impulsionaria o paradigma
indiciário em uma nova direção (GINZBURG, 1989:168).
O que Ginzburg parece sugerir é a contraposição entre um corpo de saberes antigos dotados
de historicidade, chamado por ele de “paradigma indiciário”, resultado da aposição de
determinados fatos (que podem ser recolhidos e analisados) no tempo. Fatos que aparentemente
perderam sua legitimidade e foram preteridos como forma válida de ciência por outro corpo de
saberes análogos àqueles, inspirados nas obras de Descartes, Bacon e Galileu e consolidados na
apologia da racionalidade e da experimentação na Revolução Científica. Ao se estabelecer no
século XVII, o novo paradigma teria relegado a historicidade como incapaz de produzir
conhecimento “legítimo”. Embora não haja um conflito aberto entre essas duas formas e elas
coexistam perfeitamente, pode-se identificar uma sutil dicotomia, própria de um conceito de ciência
em permanente construção ligada aos condicionantes históricos do período que parece explicar
muito bem as transformações do pensamento científico.
A descoberta do “Novo Mundo” e o contato mais estreito com o Oriente colocara em
cheque, a partir do século XVI as verdades estabelecidas pela “ciência tradicional” herdada dos
pensadores da Antiguidade resgatados na Idade Média. As novas terras, com sua variedade de
animais e plantas desconhecidas e os novos homens de aparência e costumes tão diferentes, levou
muitos pensadores a questionar as “verdades” oferecidas pela Igreja e as explicações oferecidas por
pensadores “referenciais” como Galeno, Hipócrates ou Aristóteles.
Um símbolo do desconforto com o saber ligado ao modelo da Antiguidade pode ser visto na
chamada “querela entre antigos e modernos” ocorrida no século XVII, onde grandes pensadores
discutiam qual seria a forma mais perfeita de conhecimento, se a dos “antigos” (representados por
uma gama variada de mentes reconhecidas pela intelligentzia ocidental ao longo dos séculos), ou a
dos “modernos” cuja produção contemporânea se firmava então (NISBET, 1985:163).
O resultado da contenda foi a vitória dos modernos, que estabelece assim seus critérios
próprios, ao mesmo tempo que, de certa forma, diminui a força de convencimento do conhecimento
antigo, diluindo-lhe qualquer caráter de verdade absoluta. Isso vale também para os conhecimentos
construídos pelo “ouvir dizer” válidos até então ou todo aquele que se estabelecesse em um modus
operandi fora dos novos padrões adotados.
Uma dualidade, portanto, tem sua gênese no processo de estabelecimento da ciência
moderna e na legitimação epistemológica de um tipo de conhecimento que substituiu o modelo
anterior, com uma crescente laicização dos saberes. Embora as raízes desse modo filosoficamente
antagônico de tratar a relação entre Razão e História ou (racionalidade e historicidade) não possa
[55]

ser facilmente encontrada, podemos identificar uma variante significativa associada a distinção
entre o teórico e o prático amplamente reconhecida no pensamento antigo (BOMBASSARO,
1992:38).
Na filosofia moderna, essa variante conheceu vários desdobramentos entre os quais o que
teve mais relevância foi a dicotomia estabelecida por Emmanuel Kant: o estabelecimento da
dualidade no nível filosófico e que influenciou todos os pensadores depois dele, foi feito por esse
filósofo alemão quase ao final de seu livro “Crítica da Razão Pura”, onde formulou a distinção
clássica entre o conhecimento produzido pela História (o conhecimento histórico) e o conhecimento
produzido pela razão (o conhecimento racional). Kant, em sua elucubração, exclui qualquer
possibilidade de caracterizar o conhecimento como racional e histórico ao mesmo tempo
(BOMBASSARO, 1992:40).
Esse modo de conceber o conhecimento de forma dual e excludente construiu uma ciência
que apostava na experiência e na racionalidade contra tudo o que fosse histórico. Porém, no século
XIX, a teoria do conhecimento em Kant é substituída pelo debate metodológico da ciência,
identificada com o modo de produção de verdades (HABERMAS, 1987).
Ocorre aí o resgate paulatino da historicidade como forma também legítima de
conhecimento através da estruturação e consolidação das Ciências Humanas no corpo das ciências
então existentes, embora continuassem reportando-se a padrões externos.46 Mesmo com o contínuo
avanço das Ciências Naturais, começa-se a discutir seriamente a possibilidade das Ciências
Humanas, das Ciências do Espírito e os epistemólogos tem agora de se preocupar não só com a
Matemática ou a Física, mas também com a História, a Filologia, a Economia a Psicologia, etc.
(BOMBASSARO, 1992: 90).
Isso demonstra que a negação de uma das partes formadoras do conhecimento em
detrimento de outra, conforme delineada a partir da Revolução Científica do século XVII, se
levarmos em conta a pertinência do conceito de indissociabilidade entre racionalidade e
historicidade, não pôde ser total. A historicidade persistira nos saberes populares e inevitavelmente
voltara a cena como relevante para os epistemólogos. A Ciência Moderna expulsara a historicidade
pela porta e ela entrara novamente triunfante pela janela ao longo do século XIX.
Com Sherlock Holmes; Conan Doyle é considerado o consolidador de um modelo do
romance policial, e suas aventuras representam um local privilegiado para o desfile dos saberes
indiciários. Para Ginzburg (1989:169) um dos motivos do extraordinário sucesso do romance

46
Essa passagem, no que concerne a História pode ser entrevista através da identificação que Stephen Bann (1994:556)
faz dos três estágios da escrita histórica: No primeiro domina a retórica, com uma preocupação com a estrutura forma
do texto, no segundo a retórica é renegada e o texto é avaliado pela “capacidade de mostrar uma realidade além de si
mesmo” e no terceiro retorna a retórica. O segundo estágio tem uma analogia clara com a aspiração da racionalidade
pura como pressuposto básico para a ciência moderna em voga até o século XIX.
[56]

policial é o fato de que ele se fundava num modelo ao mesmo tempo antiquíssimo e moderno usado
tanto pelos homens primitivos quanto pelos modernos.
A categoria literária da qual Sherlock Holmes faz parte e ajudou a consolidar, poderia então
ser convertida num modelo cognoscitivo que cria um circuito compartilhado por outras disciplinas
profundamente marcadas pela diacronia, como a História, Arqueologia, Geologia, Paleontologia,
etc. (FREITAS, 1999:24-25). O peso da diacronia em tais disciplinas causaria o desenvolvimento de
uma trajetória que necessita, muitas vezes, apreender suas possibilidades orientando seus vetores
intelectuais na direção dos efeitos para as causas como se fossem profecias retrospectivas.
Porém, à luz do exposto até aqui, parece mais correto inverter a assertiva e, ao invés de
interpretarmos as aventuras de Sherlock Holmes como tendo se tornado um modelo cognitivo, que
passemos a encará-lo como o símbolo de uma significativa, embora sutil, mudança epistemológica.
Um símbolo da presença de critérios de historicidade (ainda que encobertos pela aura de
cientificidade, própria das ciências exatas, agregada ao personagem de Arthur Conan Doyle)
retornando à cena e tornando-se válidos.
Ocorre uma inegável efervescência no final do século XIX com o estabelecimento e a
consolidação das já citadas Ciências Humanas e Biológicas: da Medicina, da Geologia e da tão
47
prestigiada Filologia; além daquelas recém-criadas como a Sociologia, que confrontam a
concepção tradicional de ciência galileana e toda sua hierarquia com um novo conjunto de
parâmetros.
As aventuras de Sherlock Holmes, então, simbolizariam a representação da retomada de
critérios de Historicidade como sendo válidos introduzindo-se (ou reintroduzindo-se) na produção
científica em contraponto a Racionalidade instituída no século XVII e então vigente. Seja na
presença do novo corpus científico referido acima ao longo das aventuras, seja no seu método de
produzir conhecimento, conforme delineado por Carlo Ginzburg. É um marco e quer dizer muito
mais do que aparenta.
As aventuras de Sherlock Holmes são classificadas de forma corrente como “romance
policial”, um desdobramento dentro da categoria da Literatura denominada “romance” que só vai se
consolidar no final do século XIX. (LINS, 1953:3)
Deixando para trás a estética clássica e tendo a burguesia como vanguarda, o romance se
difunde através de um meio massivo representado pela imprensa e com a rapidez dos transportes
ferroviários que se expandem inexoravelmente pela Europa.48 É nesse panorama de modernidade
que vai se desenvolver o romance policial ao longo do século XIX.

47
Vide MASON, J.F. História da Ciência. e sobre a filologia no século XIX, vide SAID, Edward W. Orientalismo.
48
Sobre a rápida expansão do transporte ferroviário na Europa vide MORAZÉ, Charles. Os burgueses à conquista do
mundo.
[57]

Os cinco elementos históricos que criaram as circunstâncias para o nascimento do romance


policial no século são o aparecimento de uma grande população urbana industrial capitalista; o
surgimento na Europa dos jornais populares de grande tiragem; o aparecimento da polícia urbana; a
transformação do delinquente em um criminoso social e o desenvolvimento e a influência do
positivismo. 49
Voltaire, que alguns apontam como o criador do modelo de detetive, na verdade, ao produzir
Zadig no século XVIII, criava ou plagiava apenas um tipo de personagem que, através da
observação e da dedução, descobria fatos aparentemente inexplicáveis. Edgar Allan Poe,
posteriormente com as três histórias em que apresenta o cavalheiro Dupin, mostra-nos o detetive
cerebral, porém diletante; é Émile Gaboriau com o detetive Lecoq, que inicia a verdadeira fase do
romance policial e dá-nos o detetive de rotina e policial profissional. (ALBUQUERQUE, 1973:21-
22)
Esses autores influenciaram muito os seus leitores e entre eles um muito especial: o jovem
Arthur Conan Doyle (nascido em Edimburgo no ano de 1859 e morto em 1932) que iria consolidar
de forma definitiva a figura do detetive de ficção.
Em 1869 foi para a Alemanha onde estudou no Stony Hurst College, de matriz jesuíta, até
1876, quando entrou para a universidade de Edimburgo para cursar medicina até 1881. Em 1880,
antes de se formar em Oftalmologia, serviu como médico de bordo de um navio baleeiro numa
viagem de sete meses ao Ártico. (Cf. Doyle, 1993)
Conan Doyle tem uma vasta e invulgar obra literária. Também era estudioso de Heráldica,
Genealogia e História; consta como o inventor do salva-vidas, do capacete de aço e do método para
tirar impressões com gipsita50, além de outros estudos específicos. Foi contemporâneo do advento
do cinema, exercia a fotografia como hobby e era entusiasta do esporte; praticando boxe, críquete,
bilhar, futebol e esqui (sendo o primeiro a utilizá-los em longos percursos na Suíça), além de ser um
dos pioneiros no automobilismo e na aviação. (HABERT, 1988:104,111)
Participou da Guerra Sudanesa entre 1896 e 1918. Esteve ainda, entre outros lugares, nos
EUA, Austrália, sul da África e Noruega. Praticou a Medicina entre 1882 e 1890 e era membro da
Sociedade de Pesquisas Psíquicas da Inglaterra.
Mesmo sendo oriundo de uma família católica dizia que “sua razão rejeitou o Cristianismo
em seu conjunto”, levando-o a um agnosticismo que afirma nunca por um só instante ter
degenerado em ateísmo, e que durou aparentemente até o falecimento de um filho nos campos de
batalha, após o qual ele se converte ao Espiritismo e dedica dois volumes de uma história a sua
nova crença em 1926. (DOYLE, 1993:18)

49
Cf. Sandra Lúcia Reimão e antes dela Boileau-Narcejac.
50
Um tipo de gesso (sulfato de cálcio).
[58]

Conan Doyle criou seu mais famoso personagem em 1887 nos intervalos ociosos de sua
clínica de oftalmologia em Portsmouth, Inglaterra, enquanto esperava seus pacientes. Tinha
ambições literárias e já tinha escrito alguns textos sem muito sucesso quando resolveu escrever um
conto para os jornais pensando em ganhar algumas libras.
Estava imerso na atmosfera cientificista do século XIX e, talvez influenciado por sua
formação jesuítica, parecia usufruir das grandes esperanças contidas nas ciências desde seus tempos
de estudante nos quais Aldous Huxley, Tyndall, Charles Darwin, Herbert Spencer e John Stuart
Mill eram os maiores filósofos. Ele já era leitor contumaz de Edgar Allan Poe e de Émile Gaboriau,
e intensificou esse hábito, chegando inclusive a reler algumas obras, devido ao tempo livre que
involuntariamente possuía em sua clínica no ano de 1886. (DOYLE, 1993:27)
Escreveu ao todo sessenta aventuras com a personagem publicadas pela primeira vez entre
1887 e 1927. São quatro novelas: Um Estudo em Vermelho (1887), O Signo dos Quatro (1888), O
Cão dos Baskervilles (1902), O Vale do terror (1915). E cinquenta e seis contos publicados em
cinco livros: As aventuras de Sherlock Holmes, de 1891; Memórias de Sherlock Holmes, de 1893; A
Volta de Sherlock Holmes, de 1905, O Último Adeus de Sherlock Holmes, de 1917 e Histórias de
Sherlock Holmes, de 1927.
As ideias veiculadas por Conan Doyle em seu personagem estavam impregnadas dos valores
cientificistas, entre os quais o Positivismo, quando foram criadas. Ele queria criar um “detetive
científico” que estava de acordo com um otimismo corrente com relação a ciência e suas
descobertas comum em sua época.
Esse cientificismo pode ser definido como a popularização de um conceito de ciência
atrelada às formas das Ciências Naturais típico do final do século XIX, e também como o ápice de
uma forma de ver o mundo baseado nos avanços tecnológicos do período. Era, então, um ideário
compartilhado por indivíduos de várias partes do mundo. Desde sua origem revelou-se logo uma
atitude intelectual bastante difundida. Os meios científicos do século XIX e do início deste
receberam-na com muito entusiasmo, vendo nela a eureka da verdade do pensamento. (JAPIASSÚ,
1975:75)
O detetive de ficção do século XIX, principalmente Sherlock Holmes, apresenta ao leitor um
mundo totalmente explicado. Embora a realidade continue múltipla e imprevisível, ela se acha
totalmente inteligível nas mãos do cientista/especialista que possui o conhecimento e as ferramentas
certas: o detetive.
As aventuras de Sherlock Holmes eram parte de uma “comunidade51”, um consenso de
pensamento cientificista, que reforça no imaginário dos leitores uma ideia da infalibilidade da

51
Cf. Conceito de “comunidade imaginada” criado por Benedict Anderson para explicar o surgimento das nações no
século XIX e adaptado com as devidas ressalvas para esse contexto.
[59]

ciência baseada na racionalidade, nos moldes daquela do século XVII, ao mesmo tempo que,
paradoxalmente, representava a sutil reintrodução da historicidade como critério de produção de
conhecimento científico, através da ligação direta de seu método com as ciências ligadas a uma base
histórica ou “indiciária” e com a divulgação dessas ciências ao longo das aventuras.
Quem quer que lesse as aventuras de Sherlock Holmes, nos EUA, na França ou no Brasil,
era estimulado poderosamente pela certeza científica demonstrada pelo personagem. Ele sinalizava
a participação em uma era “científica” em que tudo era possível ao ser humano, graças aos seus
avanços tecnológicos de seu tempo.
Todas as características insólitas que foram atribuídas ao personagem por Conan Doyle:
Raciocínio científico, misoginia e falta de cultura geral, não são apenas fruto da imaginação fértil
do escritor, são análogas àquelas encontradas em uma personalidade real que viveu na Inglaterra no
final do século XVIII e início do século XIX (1731-1810): Sir Henry Cavendish, cientista e autor de
vários livros científicos.
Os pontos de contato entre Cavendish e Sherlock Holmes são interessantes, embora não se
tenha como saber se de fato, a biografia do famoso cientista foi uma influência direta ao trabalho de
Conan Doyle. Porém, podemos com certeza associar a misantropia de Holmes, e talvez até a de
Cavendish, a um ideal de ciência inaugurado com a Revolução Científica, masculino-machista que
procura realizar a ruptura entre razão e emoção. (JAPIASSÚ; 1975:40-41)
As características de Sherlock Holmes derivariam, então, das concepções daquela ciência
moderna “falocrata”, onde somente os “atributos masculinos” podem ser levados em conta. Tudo
que fosse representação feminina, incluídas aí as emoções, deveria ser expurgado da personalidade
de um verdadeiro homem de ciência. Todavia, não é essa apenas a característica que parece definir
um homem de ciência nas aventuras de Sherlock Holmes. Confrontando o detetive (e tomando-o
como padrão de “homem científico”) com outros personagens, chega-se a algumas conclusões
significativas.
À semelhança de seu criador, a quem são atribuídos variadas invenções e um cem número
de estudos específicos particulares, Holmes, além de possuir e aplicar um raciocínio que se quer
científico; como químico amador, é apresentado como inventor de uma nova forma de teste para
manchas de sangue para substituir um antigo teste de guaiaco (um composto químico usado em
medicina), além de várias monografias sobre a detecção e sobre assuntos afins que podem ser
encontrados numa leitura atenta e minuciosa, ao longo das aventuras.
Sobre detecção são elas: “Diferenças Entre Cinzas de Diversos Tabacos” (Um Estudo Em
Vermelho)52; “O Levantamento de Pegadas” (O Signo dos Quatro); “A Influência do Ofício na

52
Também em O Signo dos Quatro e O Mistério do Vale de Boscombe.
[60]

Forma da Mão” (Ibidem); “Tatuagens” (A Liga dos Cabeça Vermelha); “Códigos Secretos” (Os
Dançarinos).
Sobre Assuntos Variados: “Motetes Polifônicos de Lassus53” (Os Planos Do Submarino
Bruce-Partington); “Semelhanças entre um Antigo Dialeto da Região de Cornwall com o Caldeu”
(O Pé do Diabo); “Estudos Sobre as Primeiras Cartas Inglesas” (Os Três Estudantes); “Manual
Prático de Apicultura, com algumas notas sobre o segregamento da rainha” (Seu Último Adeus)54.
Algumas que não foram escritas, mas sugeridas como temas: simulação de doenças (O
detetive Agonizante); utilidade dos cães domésticos no trabalho do detetive (O Homem que Andava
de Rastos) e toda a arte da detecção num único volume (A Granja da Abadia).
Da mesma forma que Sherlock Holmes, outros personagens, sejam colaboradores, ou
antagonistas à sua altura, também são autores de textos científicos em seus respectivos campos. Não
basta apenas possuir o conhecimento, deve-se professá-lo e contribuir para aumentá-lo cada vez
mais. Produzir sempre cada vez mais ciência 55.
Sherlock Holmes como pessoa se apresentava mais como um conjunto de característica
contraditórias e incomuns sob uma capa de cientificidade, do que como um indivíduo equilibrado;
embora estivesse totalmente integrado à sociedade de sua época.
Ele colecionava alguns hábitos muito perigosos para a saúde de um homem comum como o
de fazer jejum forçado enquanto não resolvesse um caso em que estivesse empenhado. Afirmando
categórico que era somente cérebro e o resto mero apêndice.
O cérebro de Holmes funcionaria como “um mecanismo de alta sofisticação que houvesse
sido programado para decifrar crimes56. Desta forma, fora do campo criminal (que envolve
principalmente os conhecimentos comuns do ser humano), a capacidade mental de Sherlock é
comum e, em muitos aspectos, deficiente e sem penetração.
Fora de sua especialidade, ele seria, como na figuração convencional dos gênios, um homem
desamparado. Quando não se ocupa de um caso, cai em estados depressivos dos quais só consegue
aliviar com a ingestão de estupefacientes como a cocaína.
A alusão à cocaína nos trabalhos de Conan Doyle (que também falou sobre o vício do ópio
em uma das aventuras), deriva da grande aceitação que essa droga adquiriu em todo o mundo
depois que o princípio ativo do alcaloide foi isolado da folha da coca em 1855 pelo bioquímico
vienense Niemann. A galeria dos usuários da cocaína incluem além do próprio Doyle, o Papa Leão

53
Compositor belga do século XVI.
54
Escrito depois da “aposentadoria” do personagem na aventura Seu Último Adeus.
55
Como exemplos disso tem-se o médico sanitarista do interior e cientista aficcionado em craniologia, Dr. Mortimer,
colaborador em O Cão dos Baskervilles e o Dr. Percy Trevelyan, cliente de Holmes em O Paciente Residente;
apresentado como médico formado com especialização em doenças nervosas, dono de uma clínica geral, autor de uma
monografia sobre “lesões nervosas obscuras” e pesquisador da patologia da catalepsia com a qual se afirma na aventura
ter ganho um famoso prêmio.
56
Paulo Mendes Campos na introdução à Série “Mistérios de Sherlock Holmes”.
[61]

XIII e o fundador da psicanálise, Sigmund Freud – autor de vários trabalhos sobre a droga. (Cf.
MUSTO, 1989:327)
Conan Doyle, talvez ciente dos efeitos da droga resolve curar seu personagem, dirigindo as
suas habilidades excepcionais para outros ramos do conhecimento. A razão de pensar assim está no
fato de que a partir de determinadas aventuras vemos Holmes às voltas com “motetes polifônicos”,
filologia (dialetos perdidos) e estudos sobre as Primeiras Cartas Inglesas 57.
Dentro das características do romance policial como sendo um gênero que reflete o seu
próprio tempo, uma característica em Sherlock Holmes, importante para seu sucesso, era a de ser
um tipo eminentemente urbano e saber tirar partido de tudo o que a vida na cidade poderia oferecer.
E que fazia parte da vida de seus leitores.
Em suas aventuras ele se vale abundantemente das condições trazidas pela modernidade: os
trens, os tílburis de aluguel, o telégrafo e os vários jornais como fonte de informação. A cidade de
Londres é sempre descrita como uma grande variedade de espaços, correspondentes à metrópole do
final do século XIX, e configura-se quase como uma espécie de personagem coadjuvante na
aventuras de Sherlock Holmes. É mostrada em suas várias faces ao longo das aventuras: desde a
Londres elegante dos hotéis e teatros, da literatura e do comércio, até as cidadezinhas feias e
escuras.
Essas modificações decorriam da forte pressão que o capitalismo causava na sociedade
londrina do século XIX. Londres era uma grande cidade industrial capitalista, que teve uma grande
implicação na gênese do romance policial e na criação de uma nova concepção de “classes
perigosas”; criada então, para gerir a multidão no seio da qual estavam os operários de todas as
idades, submetidos as mais inumanas condições de trabalho. (Cf. FOUCAULT 1996:85, e
BRESCIANNI, 1992:57)
Embora Conan Doyle tenha declarado que sua forma de pensar era em muitos pontos
diferente da de seu personagem, a forma como Holmes trata os estratos definidos acima, parecem
apontar para a partilha da mesma visão que se estrutura com a exclusão e marginalização deles. Em
algumas aventuras isso transparece no trato do detetive com os membros dos estratos mais baixos
onde parece haver sempre uma diferença clara, subentendendo uma superioridade sobre eles.
Aparecem em algumas aventuras alusões ao Darwinismo Social de Hebert Spencer prevalecente nas
últimas décadas do século XIX e de quem Conan Doyle era leitor em sua juventude. Faz também
alusão às idéias de Darwin sobre o atavismo e ao determinismo climático de Thomas Buckle 58.

57
Num exercício de imaginação, David Musto atribui a cura do personagem ao período em que ele foi dado como
morto entre 1892-94 e no livro que virou filme para o cinema “Solução a Sete por Cento” atribui-se acura a um
encontro e tratamento com Freud em Viena.
58
Como em O Signo dos Quatro
[62]

Quanto ao método de detecção desenvolvido por Holmes, é preciso para entendê-lo,


compreender o ponto de partida a partir do qual se estruturava; é importante delimitar o conceito de
delinquência embutido nas aventuras e estritamente ligado às concepções da medicina sobre o
normal e o patológico do século XIX.
Forma-se no século XIX um conceito de normal/patológico no qual eles se equivalem.
Diferindo apenas em algum aspecto intrínseco, que alterado para mais ou para menos causará o
estado de doença (cf. Canguilhem, 1978). Conan Doyle, como se sabe, era formado em medicina e
seu personagem apresenta uma concepção, na qual os delinquentes são algo semelhante a uma
doença da sociedade. Além disso, qualquer um estaria sujeito a um revés ou circunstância
indefinida em sua vida, acentuado por um pendor atávico, que poderia fazê-lo passar para a margem
da lei 59.
A dualidade Normal uersus Patológico é semelhante à Homem Comum uersus Delinquente.
Paralelamente as concepções do crime como reflexo do atavismo, a descrição de alguns dos
principais antagonistas, parecem baseadas nas descrições antropométricas então em voga na
Europa. Sempre que pretende causar um impacto com a descrição de um criminoso, ele se vale de
referências como as constantes em trabalhos como os do italiano Cesare Lombroso, cujas teorias
sobre o atavismo suscitou debates científicos acalorados no século XIX. (cf. Gould, 1991)
Essas descrições tinham a função de proporcionar, talvez, uma aura de maior
verossimilhança às aventuras. Criar alguns de seus tipos criminosos a partir das descrições
“científicas” de seu tempo, proporcionaria uma identificação imediata do leitor, partícipe da
“comunidade imaginada” relacionada às concepções de ciência da época, que consumia as
aventuras de Sherlock Holmes.
Tais analogias com a ciência do século XIX legitimam as aventuras de Sherlock Holmes
como um veículo de divulgação científica. O detetive pretende agir como um cientista com uma
posição impessoal diante da sociedade.
Sem fazer julgamentos morais, Holmes apresentava-se como alguém apto para fazer a
justiça. Justiça essa, que muitas vezes não se coadunava com a da Scotland Yard, cujos inspetores,
apesar de contar com sua ajuda, por vezes reclamavam de seus métodos pouco ortodoxos (e às
vezes ilegais) de resolver os casos.
O método do detetive ideal utilizado por Conan Doyle para uma detecção científica,
explicado de acordo com as categorias da Filosofia e dentro das prescrições da Lógica Clássica, era,
como foi visto, a junção do método hipotético-dedutivo do Dupin de Edgar Allan Poe, com as

59
Esse conceito apresentado pelo criador de Sherlock Holmes parece ser análogo ao de Émile Durkheim, o fundador da
sociologia científica no século XIX, segundo Marco Antonio de Almeida, (1991).
[63]

especialidades científicas do Detetive Lecoq de Émile Gaboriau, embora não se superpusessem.


Ambos são citados pelo detetive de Londres em suas histórias
Baseado nas aventuras pode-se deduzir um decálogo para a atuação de um detetive como
Holmes, com respeito às habilidades que deveriam ter. Essas habilidades são definidas como:
capacidade de observação e dedução; raciocínio retrospectivo ou analítico; conhecimento de uma
“nosologia criminal”; conhecimentos específicos; imaginação para alternativas de investigação e
estratégia; paciência (nunca teorizar sem ter todos os indícios possíveis); separar sempre o essencial
do acidental; eliminar tudo o que é impossível; criar hipóteses que deverão ser provadas; e ter
cuidado para não criar uma solução complexa tendo uma mais simples à mão.
É patente numa análise minuciosa das aventuras que essa divisão é apenas didática, uma vez
que nas histórias elas se misturam durante a atuação de Sherlock Holmes. Podemos dividi-las ainda
em duas categorias, em que as cinco primeiras seriam parte da formação do detetive, enquanto as
demais de sua prática.
Concluindo, podemos afirmar que as aventuras de Sherlock Holmes são apresentadas como
um modelo de procedimento científico. O que transparece em todas elas é um espelho da ciência do
século XIX. Porém, mais do que isso, o que se reflete em suas linhas são as crenças e valores
embutidos no seio da sociedade em que foi elaborada, suas concepções de mundo, inclusões e
exclusões, disseminadas e expressas num veículo destinado a um mercado consumidor ávido por
novidades e embriagado pelas coisas novas que a cada dia surgiam diante de seus olhos.
Com efeito, encontramos muito de Conan Doyle em Sherlock Holmes; não só em seus
métodos de pensamento, mas de alguma forma, nas ideias esposadas pelo detetive. Conan Doyle
estava respondendo à demanda de textos fantásticos de uma cultura de massas nascente.
Ao mesmo tempo o autor estava reproduzindo e reforçando as concepções de mundo em que
estava imerso, ressoando com os timbres e ritmos da modernidade do fim do século XIX,
identificados em toda parte da Europa por uma paisagem altamente transformada; diferenciada e
dinâmica de fábricas automatizadas, ferrovias, novas e amplas zonas industriais, cidades que
nasciam do dia para a noite (quase sempre trazendo más consequências para as pessoas em termos
de qualidade de vida), jornais diários, telégrafos e telefones, instrumentos de media ligando-se em
escala cada vez maior.
A ciência de Holmes pretendia ser uma ciência da prática. Respondia aos sentimentos de
desorganização, do inesperado e de inexplicável próprios da modernidade, que evocam
primeiramente uma necessidade de manipulação que se manifesta analogamente na profusão da
criação de novos artefatos e invenções; e que vem a tomar um novo sentido, com a necessidade de
uma expressão de controle e harmonização desses sentimentos conflitantes com a consequente
[64]

valorização da racionalidade técnica e a legitimação do funcionamento do sistema social por meio


de decisões objetivas, adequadas e pragmáticas como as tomadas quase sempre pelo detetive.
A criação de Conan Doyle, ao se autoidentificar como científica e reproduzir os ideais de
ciência corrente, atua como um veículo de divulgação em uma comunidade imaginada imbuída da
ideia de infalibilidade e do controle extenso e total sobre a natureza tão caro ao projeto de ciência
“moderna”.
Essa é uma das razões do sucesso do personagem, ao lado do inegável talento artístico e
estilístico do autor ao concebê-lo. Ele cria uma ilusão que é oferecida aos seus leitores de que eles
viviam num mundo totalmente sob controle, ordenado e previsível.
Os leitores de todas as partes do mundo queriam acreditar no progresso e na ciência como
apanágio para todos os males, embalados pelas múltiplas conquistas que a tecnologia colocava
diante dos seus olhos no final do século XIX. Era isso o que os igualava: a fé na ciência e em seus
resultados.
Por outro lado, as aventuras de Sherlock Holmes, situadas nesse contexto, apresentam-se
também, de certa forma, como a “ponta do iceberg” da ocorrência de uma sutil mudança
epistemológica do que se concebia como critério válido para o que fosse ciência no século XIX,
justamente com a aposição permanente nas aventuras de disciplinas surgidas no próprio século XIX
(Filologia, Biologia e Medicina) com outras já “tradicionais” (entendendo-se como ciência algo
construído pari passu com a cultura de uma sociedade e profundamente influenciada por ela)
baseadas nos parâmetros oriundos da Revolução Científica do século XVII e cristalizadas nas
chamadas ciências exatas (Matemática, Química, Física)
Instaladas no processo da evolução do pensamento científico culturalmente construído e em
contínua evolução, as aventuras de Sherlock Holmes surgem, assim, não só como um veículo de
difusão dos critérios de ciência estabelecidos, mas paradoxalmente, também como um reflexo, um
sinal; justamente de um questionamento epistemológico, contra um modo de construção do
conhecimento baseado apenas na razão, em detrimento de outro, cuja base é a historicidade e que
começa a se destacar.

Fontes e Referências Bibliográficas


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[67]

O COTIDIANO DO TRABALHADOR ROMANO SEGUNDO O “MORETVM”


Luiz Fernando Dias Pita
Doutor em Letras Clássicas pela UFRJ
[email protected]

Resumo:
A tradução do poema “Moretum”, historicamente atribuído a Virgílio, oferece subsídios tanto para
um conhecimento mais aprofundado do cotidiano do trabalhador livre em Roma, quanto da dieta
deste trabalhador.
Palavras-chave: trabalho livre – nutrição – língua latina

Resumen:
La traducción del poema “Moretum”, históricamente atribuído a Virgílio, ofrece subsidios tanto
para un conocimiento más profundizado del cotidiano del trabajador libre en Roma, como de su
dieta alimentar.
Palabras-clave: trabajo libre – nutrición – lengua latina

Uma das tendências da historiografia, desde Le Goff, tem sido a de examinar uma
determinada sociedade através do estudo do cotidiano dos diversos grupos sociais que nela atuam.
O privilégio que estes estudos concedem ao cotidiano é consolidado, na prática de campo, por meio
de abordagens que tragam consigo aquele imperativo metodológico que consiste em não desprezar
qualquer fonte que permita um vislumbre, ainda que mínimo, daquele mesmo cotidiano. Ganham
espaço, portanto, as fontes provenientes da cultura material: e, como exemplo, mesmo objetos
industrializados, produtos da sociedade de consumo, tornam-se extremamente elucidativos quanto
ao retratar de nosso próprio momento histórico.
Entretanto, o pesquisador interessado nas culturas da Antiguidade, defronta-se com um
problema: como a oferta de produtos da cultura material que possam responder-nos quanto ao
cotidiano daquelas culturas é diretamente proporcional à proximidade, temporal e espacial, do
período submetido a exame, pouco poderia realizar aquele pesquisador que, atuando desde a
América do Sul e no tempo presente, esteja dedicado a tomar as culturas clássicas como tema de
estudo.
Uma possível solução para este problema consistiria em alterar-se o foco da pesquisa da
cultura material para o da cultura imaterial, procedendo-se portanto à análise dos hábitos, costumes,
celebrações, etc., que a documentação de que dispomos nos permita perceber, ainda que de relance.
Com esta abordagem, torna-se possível transpor os limites espaço-temporais que nos poderiam
obstar o percurso, pois a cultura imaterial da Antiguidade, mesmo apresentando (sérias) lacunas, é
passível de detecção através da abordagem de uma produção escritural que, ainda que espalhada por
diversas tipologias, compõe ao fim um mosaico de informações que subsidiarão as tarefas de
rastreamento, catalogação, seleção e exame pertinentes ao pesquisador.
[68]

Um dos aspectos da cultura imaterial que mais pode atrair a atenção dos pesquisadores, pela
riqueza de informações cuja extração é não apenas possível, mas também viável, é o dos hábitos
alimentares da Antiguidade. Estas informações, que podem fornecer subsídios a áreas de
conhecimentos tão díspares quanto as de Nutrição e Antropologia, encontram-se dispersas
principalmente em textos de caráter não-literário, como o De Re Coquinaria, de Apicius, livro de
receitas que mostra com precisão a dieta da classe privilegiada do Império Romano. Outrossim,
escasseiam textos que abordem tanto o cotidiano quanto a alimentação das classes populares, rurais
e/ou urbanas do Império. Um dos poucos a preencher este espaço é o do Moretum, presente na
Appendix Vergiliana, sobre a qual convém que nos detenhamos minimamente.
Sabemos que o conjunto da obra do poeta romano Virgílio está composto de três grandes
textos: a Eneida, as Bucólicas e as Geórgicas. No entanto, há ainda uma coletânea de textos que lhe
são atribuídos por uma tradição que remonta à Idade Média e que constitui a Appendix Vergiliana.
Estes textos padecem, porém, de grande incerteza quanto à veracidade de sua autoria: certamente
alguns terão sido, de fato, produzidos por Virgílio. Sobre outros, a dúvida pairará para sempre,
como o afirma René Pichon:
Parmi les poésies de jeunesse qu'on lui attribue, les unes semblent plutôt des pastiches
adroitement composés par des imitateurs (Culex, Ciris); les autres (Copa, Moretum) ont
une vigueur de coloris, un réalisme franc et parfois brutal, qui ne parissent guère
convenir au talent de Virgile. (PICHON, 1903:330)

Ainda que o vigor de colorido não seja prática que caracterize a produção de Virgílio, não nos
esqueçamos de esta seria sua produção de juventude, enquanto seus outros textos trarão a marca de
sua maturidade criativa. De qualquer modo, os dados de que dispomos sobre a obra são
inconclusivos, restando-nos apenas fazer coro a Gudemann, quando este afirma que “aunque esta
bonita poesía no fue incluída en el apéndice hasta más tarde, no se han aducido, hasta ahora,
razones decisivas de que sea apócrifa”. (GUDEMANN; 1942:143). Contudo, posta de lado a
questão da autoria, o texto do Moretum é talvez o único literário a privilegiar o cotidiano e a
alimentação das classes populares do Império Romano, fornecendo assim dados que pesquisadores
de outras áreas poderão melhor analisar.
Nossa tradução está baseada no texto estabelecido por Ellis e publicado por Oxford em
1955. Neste texto, o poema é composto de 124 versos - dos quais o 87º apresenta-se fragmentado –
divididos em 63 dísticos. Mas, passemos à apresentação do texto latino:

Iam nox hibernas bis quinque peregerat horas


excubitorque diem cantu praedixerat ales,
Simulus exigui cultor cum rusticus agri,
tristia uenturae metuens ieiunia lucis,
membra leuat uili sensim demissa grabato
[69]

sollicitaque manu tenebras explorat inertes


uestigatque focum, laesus quem denique sensit.
paruulus exusto remanebat stipite fomes
et cinis obductae celabat lumina prunae.
admouet his pronam summissa fronte lucernam
et producit acu stuppas umore carentis,
excitat et crebris languentem flatibus ignem.
tandem concepto, sed uix, fulgore recedit
oppositaque manu lumen defendit ab aura
et reserat plausa quae peruidet ostia claui.
fusus erat terra frumenti pauper aceruus:
hinc sibi depromit quantum mensura patebat,
quae bis in octonas excurrit pondere libras.
Inde abit adsistitque molae paruaque tabella,
quam fixam paries illos seruabat in usus,
lumina fida locat; geminos tunc ueste lacertos
liberat et cinctus uillosae tegmine caprae
peruerrit cauda silices gremiumque molarum.
aduocat inde manus operi, partitus utrimque:
laeua ministerio, dextra est intenta labori.
haec rotat adsiduum gyris et concitat orbem
(tunsa Ceres silicum rapido decurrit ab ictu),
interdum fessae succedit laeua sorori
alternatque uices. modo rustica carmina cantat
agrestique suum solatur uoce laborem,
interdum clamat Scybalen. erat unica custos,
Afra genus, tota patriam testante figura,
torta comam labroque tumens et fusca colore,
pectore lata, iacens mammis, compressior aluo,
cruribus exilis, spatiosa prodiga planta.
[continuis rimis calcanea scissa rigebant.]
hanc uocat atque arsura focis imponere ligna
imperat et flamma gelidos adolere liquores.
Postquam impleuit opus iustum uersatile finem,
transfert inde manu fusas in cribra farinas et quatit;
ac remanent summo purgamina dorso,
subsidit sincera foraminibusque liquatur
emundata Ceres. leui tum protinus illam
componit tabula, tepidas super ingerit undas,
contrahit admixtos nunc fontes atque farinas:
transuersat durata manu liquidoque coacta,
interdum grumos spargit sale. iamque subactum
leuat opus palmisque suum dilatat in orbem
et notat impressis aequo discrimine quadris.
infert inde foco (Scybale mundauerat aptum
ante locum) testisque tegit, super aggerat ignis.
dumque suas peragit Vulcanus Vestaque partes,
Simylus interea uacua non cessat in hora,
uerum aliam sibi quaerit opem, neu sola palato
sit non grata Ceres, quas iungat comparat escas.
non illi suspensa focum carnaria iuxta,
durati sale terga suis truncique, uacabant,
[70]

traiectus medium sparto sed caseus orbem


et uetus astricti fascis pendebat anethi.
ergo aliam molitur opem sibi prouidus heros.
Hortus erat iunctus casulae, quem uimina pauca
et calamo rediuiua leui munibat harundo,
exiguus spatio, uariis sed fertilis herbis.
nil illi derat quod pauperis exigit usus;
interdum locuples a paupere plura petebat.
nec sumptus erat ullius opus sed recula curae:
si quando uacuum casula pluuiaeue tenebant
festaue lux, si forte labor cessabat aratri,
horti opus illud erat. uarias disponere plantas
norat et occultae committere semina terrae
uicinosque apte circa summittere riuos.
hic holus, hic late fundentes bracchia betae
fecundusque rumex maluaeque inulaeque uirebant,
hic siser et nomen capiti debentia porra
[hic etiam nocuum capiti gelidumque papauer,]
grataque nobilium requies lactuca ciborum,
* * * crescitque in acumina radix,
et grauis in latum demissa cucurbita uentrem.
uerum hic non domini (quis enim contractior illo?)
sed populi prouentus erat, nonisque diebus
uenalis umero fasces portabat in urbem,
inde domum ceruice leuis, grauis aere redibat
uix umquam urbani comitatus merce macelli:
caepa rubens sectique famem domat area porri
quaeque trahunt acri uultus nasturtia morsu
intibaque et Venerem reuocans eruca morantem.
Tunc quoque tale aliquid meditans intrauerat hortum;
ac primum leuiter digitis tellure refossa
quattuor educit cum spissis alia fibris,
inde comas apii graciles rutamque rigentem
uellit et exiguo coriandra trementia filo.
haec ubi collegit, laetum consedit ad ignem
et clara famulam poscit mortaria uoce.
singula tum capitum nodoso corpore nudat
et summis spoliat coriis contemptaque passim
spargit humi atque abicit. seruatum gramine bulbum
tingit aqua lapidisque cauum demittit in orbem.
his salis inspargit micas, sale durus adesso
caseus adicitur, dictas super interit herbas,
et laeua uestem saetosa sub inguina fulcit,
dextera pistillo primum fraglantia mollit
alia, tum pariter mixto terit omnia suco.
it manus in gyrum: paulatim singula uires
deperdunt proprias, color est e pluribus unus
nec totus uiridis, quia lactea frusta repugnant,
nec de lacte nitens, quia tot uariatur ab herbis.
saepe uiri nares naris acer iaculatur apertas
spiritus et simo damnat sua prandia uultu,
[71]

saepe manu summa lacrimantia lumina terget


immeritoque furens dicit conuicia fumo.
procedebat opus; nec non iam salebrosus, ut ante,
sed grauior lentos ibat pistillus in orbis.
ergo Palladii guttas instillat oliui
exiguique super uires infundit aceti,
atque iterum commiscet opus mixtumque retractat.
tum demum digitis mortaria tota duobus
circuit inque globum distantia contrahit unum,
constet ut effecti species nomenque moreti.
eruit interea Scybale quoque sedula panem:,
quem laetus tertis recipit manibus,
pulsoque timore iam famis, inque diem securus Simulus illam,
ambit crura ocreis paribus tectusque galero
sub iuga parentis cogit lorata iuuencos
atque agit in segetes et terrae condit aratrum.

Pelo fato de ter a poesia latina uma arquitetura bastante distinta da das línguas
contemporâneas, realizamos nossa tradução em prosa, posto que o intento de uma tradução em
versos constituir-se-ia em verdadeira recriação do texto. Ademais, por ser em prosa, nossa tradução
apresentará uma divisão em parágrafos que visa meramente realçar os diversos tópicos temáticos do
poema. Ei-la:

A salada

A noite de inverno já completara dez horas e o galo já cantava para anunciar o dia,
quando Simulo, rude agricultor de um campo mínimo, ergue lentamente os braços
enrolados em um cobertor paupérrimo e explora com o tato as trevas estáticas, buscando
o fogo. Fere a mão ao encontrá-lo, pois o pequeno rastilho queimava ainda sua haste e a
cinza escurecida escondia o brilho das brasas. Traz sua lâmpada até o rosto e, com um
ganchinho, leva a mecha em direção ao fogo, excitando a chama com um sopro
constante. Com o fogo, apesar da dificuldade, enfim renascido; desvia seu olhar do
brilho e, com a outra mão, protege a chama do vento, abrindo com a chave as ruidosas
portas que já pode divisar. Uma pobre quantidade de trigo espalhava-se pela terra: pega
dali um pouco do quanto havia, cerca de dezesseis libras de peso. Então saiu e dirigiu-se
à moagem com uma pequena cestinha, a qual guardava fixa à parede para aqueles usos;
logo libera os braços e espana as pedras e o meio das moendas com a pele de uma cabra
peluda, dispondo desta forma as mãos ao trabalho: enquanto a esquerda distribui o trigo,
a direita se aplica à manivela que roda com um giro constante e impele com força o
disco (e o cereal esmagado pelo golpe dos seixos escorre com rapidez), de vez em
quando a esquerda auxilia a irmã cansada e trocam-se os turnos.
Símulo incentiva seu trabalho cantando, com sua voz áspera, uns versos
grosseiros e, enquanto isso, chama Scybale, sua única escrava, cujo corpo inteiro
testemunhava sua origem africana: os cabelos crespos, os lábios grandes e a cor escura,
os peitos fartos e caídos, mas menores que a barriga, as pernas magras porém com pés
enormes, com calcanhares fendidos que eram insensíveis às rachaduras contínuas.
Chama-a e manda colocar lenha e calor ao fogo para, com a chama, derreter os líquidos
congelados, após o que completou de modo conveniente a tarefa inconstante.
Depois, passa a farinha moída por uma peneira e a sacode com a mão; assim,
suas impurezas permanecem acima da tela, aperta os cereais limpos e os deixa escorrer
[72]

pela grade. Rápida e imediatamente espalha a farinha sobre uma tábua, adicionando-lhe
ondas de água morna. Agora amassa, misturadas, a água e farinha: atravessando-as com
a mão endurecida e claramente espremida e, enquanto espalha sal, ergue a massa já
sovada, esticando com as mãos o seu diâmetro e nele marcando quadrados de tamanho
regular. Então leva tudo ao fogo (Scybale antes limpara um canto) e cobre a massa com
uma fôrma, para que cresça acima das chamas.
E ao tempo em que dá a Vulcano e a Vesta suas partes, Símulo não pára para
descansar: de fato, procura outro trabalho para si, e para que Ceres não seja contentada
apenas pela boca, compara os alimentos que guarda, pois não lhe davam sossego as
carnes que eram suspensas ao lado do fogo e os couros de porco que eram endurecidos
com sal, tampouco um queijo envelhecido que estava pendurado por um cordame, nem
um apertado feixe de endro também pendente.
Mas já esse herói prevenido prepara-se para outra tarefa.
Havia uma horta junto à casinha, pequena em espaço, mas com várias plantas férteis,
defendida por uma cerca-viva de poucos vimes e por uma cana leve.
Enquanto o rico necessitava de muitas coisas do pobre, nada lhe faltava daquilo que
os hábitos do pobre pedem; nem usava o trabalho de outra pessoa, mas um mínimo de
cuidado: já que, quando estava desocupado da casinha, do sol e das chuvas, se por acaso
o trabalho do arado cessava, então havia trabalho na horta, pois afinal sabe dispor as
várias plantas, ocultar as sementes na terra e afastar, com habilidade, os cursos d'água
vizinhos.
Aqui e ali os legumes e os ramos de beterrabas espalhavam-se, e o fecundo dardo, a
malva e o helênio verdejavam pelo canteiro, aqui a cenoura selvagem e os alhos-porros,
que devem seu nome à cabeça, [aqui também a papoula gélida e nociva para a cabeça,] e
a alface, descanso agradável das refeições nobres , * * * e a raiz cresce com sutileza,
além da pesada abóbora pronta para ser remetida ao estômago.
Este não era, na verdade, um alimento de senhor (quem de fato menos inclinado
àquilo?) mas do povo, que, nas nonas, levava-o à cidade em feixes, expostos para venda,
e voltava depois em caravana para casa com as costas leves, às vezes apenas com o
valioso dinheiro pago pelo mercado da cidade; domando a fome com a cebola ardente e
com a eira de alhos-porrós cortados, e o agrião e chicórias amargos que contraem o rosto
a cada mordida, e com a eruca, que evoca a lenta Vênus.
Logo, pensando também em algo assim, tinha adentrado a horta; e em primeiro lugar,
afundando quatro dedos na terra revolta, retira com leveza uns alhos e suas fibras
espessas. Daí, com uma linha fina, arranca os pequenos ramos do aipo, a arruda molhada
e o coentro que treme. No lugar onde os colheu, sentou-se alegre ao fogo e pediu com
voz clara um pilão à escrava. Então retira uma a uma as folhas de seus ramos, despe as
vagens de suas cascas, e as abandona espalhando os restos ali pelo chão, lava no tanque
de pedra os bulbos selecionados, deixando escorrer, através de uma abertura, a água pela
relva; salpica a porção com uma pitada de sal, que se acrescenta também ao queijo
rústico e acaba sobre ditas ervas, e enquanto com a mão esquerda segura sua veste sob a
perna de pêlos eriçados, a direita mói com o soquete, primeiro outras ervas, depois mói
tudo por igual na mesma seiva.
A mão mantém o giro: aos poucos a mistura perde as próprias características, e
dentre todas resulta uma só cor, nem verde de todo, pois as porções de queijo não o
permitem, nem brilhante como o leite, porque já muito modificada pelas ervas. Às vezes
o odor amargo alcança-lhe as narinas e este condena sua refeição com uma careta, às
vezes esfrega com a mão os olhos lacrimejantes e, furioso, insulta o odor inocente.
O trabalho avançava; o áspero soquete já não corria, mas ia mais lenta e pesadamente
no pilão, logo pinga umas gotas de azeite e derrama um pouco de vinagre sobre as
verduras, e em seguida remexe o trabalho e acerta a mistura. Então finalmente circunda
[73]

todo o prato com dois dedos e junta as partes distantes ao conjunto, para que o resultado
obtenha a aparência e o nome de salada.
Enquanto isso a ágil Scybale também descobriu o pão: um terço do qual recebe com
mãos alegres, enquanto Símulo, assegurado já para aquele dia, mas igualmente impelido
pelo temor da fome vindoura, cobre as pernas com polainas e a cabeça com um barrete,
reúne os novilhos domados sob uma junta de couro, afunda o arado na terra e o conduz
pelos campos cultivados.

Se o valor nutricional da dieta de Simulo somente poderá ser avaliado por um pesquisador
ligado à área da nutrição – e não deixaria de ser interessante fazê-lo, nestes tempos em que a
“mediterrânica” é uma das dietas da moda - é possível entrever em todo o texto a marca da rotina na
vida deste trabalhador. Mais, de uma rotina atemporal, posto que não seria necessário ir à Antiga
Roma para encontrá-la; há muitos outros exemplos mais próximos – temporal e culturalmente – de
nós que podem ser utilizados para tal. Assim, a rotina do trabalhador rural do Império Romano não
teria – malgrado os dois milênios que os separam - maiores diferenças daquela das populações
rurais brasileiras não atingidas pela mecanização do trabalho no campo.
Contudo, importa perceber que é justamente esta marca de atemporalidade nas relações do
homem com a terra, com seu alimento e com o próprio homem – já que, na relação entre Simulo e
Scybale, o fato desta ser escrava do primeiro não parece ter ressonância – que conferem ao poema
um valor intrínseco para o exame da evolução destas relações ao longo dos séculos.

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[74]

DIÁLOGO COM HUMBERTO MATURANA:


INTERPELAÇÕES SOBRE A ÉTICA
Geni Amélia Nader Vasconcelos
Mestre em Educação pela UERJ
Professora da Faculdade de Filosofia Santa Doroteia
[email protected]

RESUMO: A Biologia do Conhecer ou Biologia do Conhecimento, denominação atribuída por


Humberto Maturana ao conjunto das suas ideias, tem capturado interesse em campos diversos.
Articulando o biológico, o cultural e o social, Maturana provoca-nos a repensar o lugar a partir do
qual certas questões são pensadas. Neste estudo, sublinhamos as contribuições desse autor para
entendimento da ética, do que somos, do mundo que desejamos e do como podemos trabalhar para
gerar esse mundo.

Palavras chave: emoção -caminhos explicativos – outros – ética - conversação.

A DIALOGUE WITH HUMBERTO MATURANA:


QUESTIONS CONCERNING ETHICS

ABSTRACT: The Biology of Knowledge, a term used by Humberto Maturana to the group of his
ideas, has captured people's interest in a range of fields. By articulating the biological, cultural and
social aspects, Maturana causes us to rethink the place from which certain issues are thought. In this
study, we emphasize the author's contributions to the understanding of ethics, of what we are, of the
world we want and of how we can work to create such world.

Keywords: emotion - explanatory ways - others- ethics - conversation conversation

Que os sonhos diurnos se tornem ainda mais plenos...


Ernest Bloch

A proposta surgiu, há algum tempo, em nosso grupo de pesquisa60: Elaborar um artigo a


respeito de ética, a partir do trabalho de um autor discutido em nossos encontros. Tendo optado por
Humberto Maturana, coloquei-me em movimento. Revisitei textos debatidos no grupo e percorri
outras obras do autor. Mergulhando nas leituras, fui me deixando invadir por ideias, conceitos e
provocações e me indagando sobre como escolher um percurso entre possibilidades tão instigantes.
Atribuindo novos sentidos às palavras, ou mesmo criando novos termos, operando deslocamentos
em discursos estabelecidos, Maturana explora questões que poderiam ser consideradas - por aqueles
que se enclausuraram em cercas ou policiam fronteiras - como não lhe dizendo respeito. Questões
não pertencentes ao seu campo de trabalho, a Biologia.
Maturana é um intelectual ousado, inovador, capaz articular o biológico, o cultural e o
social. Problematizando e rompendo amarras e dicotomias próprias do pensamento hegemônico,

60
Grupo de pesquisa Rede de saberes em educação e comunicação: questão de cidadania (UERJ).
[75]

produz uma obra capaz de capturar interesses em campos diversos e operar inúmeros
desdobramentos. Uma obra densa que, enfrentando a complexidade do real, testemunha a
responsabilidade do pesquisador frente ao homem e à sociedade.
Tudo isso conferiu um interesse especial à leitura que fiz de sua obra. Perguntava-me se
daria conta da tarefa proposta ou mesmo se desejava interromper a leitura – muitas vezes difícil,
mas sempre inquietante, estimuladora, para dedicar-me à escrita. Sem deixar essas dúvidas de lado
e, a princípio, nem mesmo dando que ocorria, fui me detendo pouco a pouco em alguns pontos
trazidos pela leitura. Eram pontos que se trançavam a outros que há muito me interpelavam.
Interpelavam-me mesmo quando imaginava tê-los deixado, provisoriamente, de lado. Pontos
irrequietos, recusando qualquer forma de sossego ou repouso. Pontos encharcados de vida, tecidos
no cotidiano. Nesse espaçotempo61 sobre o qual a gente lê, escuta, pergunta. Nesse espaçotempo em
que nos inquietamos, configuramos questões e escolhemos o modo de encaminhá-las.
Vivemos um tempo de mudanças radicais. Mudanças que os edifícios teóricos construídos
na modernidade não dão conta de interpretar. Antigas certezas são transformadas em dúvidas.
Modos de pensar com os quais nos acostumamos a refletir sobre o homem e o mundo mostram-se
insuficientes para o enfrentamento das questões emergentes. A discussão sobre a crise
paradigmática aponta a inadequação, a insuficiência, a fragilidade do estoque de conceitos e teorias
do qual dispomos face à realidade que nos interpela incessantemente. Pautado em uma
racionalidade fria e indiferente, que separa o homem da natureza, dos outros e de si mesmo, o
paradigma dominante, capaz de gerar enorme desenvolvimento científico e tecnológico, é o mesmo
que produziu a ameaça do aniquilamento da humanidade. Um processo de efervescência intelectual
envolve pensadores de diversos campos e trajetórias, e é responsável pela elaboração de um corpo
de trabalhos que busca entender, por itinerários diversos, multidimensionais e interrelacionados, as
transformações em curso, reafirmando, assim, a sua complexidade.
Vivemos um tempo de transformações intensas, processadas em velocidade inigualável.
Tempo de diversidade, de contradições, de avanços na tecnologia e na ciência, de reestruturação
produtiva, de redefinição das estruturas políticas e regulatórias internacionais. Tempo de
esvaziamento de uma visão da história determinista, linear, homogênea, de surgimento de uma
consciência crescente da descontinuidade, da não linearidade e da diferença (FOUCALT, 2003;
DELEUZE; GUATARRI, 1996).
Vivemos uma época de rupturas, contestações de toda ordem, de declínio das chamadas
grandes narrativas e de enfraquecimento de agências nômicas tradicionais. Época de busca por
novos sentidos e novas práticas. Marcada pela transitoriedade, pela desqualificação da permanência,

61
Esse modo de escrita, como aprendi com Nilda Alves, sinaliza que cada um dos termos reunidos nessa palavra está
estreitamente ligado ao outro e só existe nessa relação.
[76]

por mudanças sem perspectivas de longa duração. Tempo que faz da liquidez metáfora para pensar a
sociedade (BAUMAN, 2001).
Parâmetros com os quais sustentávamos o nosso viver são colocados em xeque, instaurando
uma relatividade crescente e questionando critérios universais de verdade (SCHNITMAN, 1996). É
um período histórico de produção de novas exigências, desejos, utopias, projetos. Temas como
multiculturalismo, filiação religiosa, questões de gênero e muitos outros, incorporados à agenda
contemporânea, indicam que estamos sendo interpelados pelos outros, por tantos outros que
estilhaçaram a segurança identitária e tornaram estranho o que pensávamos tão definido e familiar.
É nesse contexto histórico com suas muitas tramas que se tece o meu viver. É nesse contexto
que, a partir de meus múltiplos e diversos enredamentos, leio Humberto Maturana. É aí que me
deixo encharcar por suas provocações, permito-me ser atravessada por seus questionamentos.
Movendo-me por entre os textos, demorando-me mais em alguns pontos abordados, vou
percebendo, mais uma vez, que, depois da leitura, o importante não é o que sabemos do texto, mas é
aquilo que - com o texto, contra o texto ou a partir do texto - somos capazes de pensar (LARROSA,
1998).
Os textos de Maturana se entremeiam a outros textos – escritos ou não - que me habitam no
cotidiano e matizam-se a questões que me assaltam a respeito do outro, dos tantos outros que
marcam presença – por inúmeros caminhos e intensidade crescente – na cena atual.
Imersos em um mundo no qual novos mecanismos de aproximação entre pessoas e
sociedades distantes estão sendo criados e recriados a todo momento, somos envolvidos por outros
modos de pensar, sentir e experimentar a existência. Transformações trazidas pelo desenvolvimento
tecnológico têm alterado profundamente nossas noções de tempo e de espaço e criado uma
realidade inimaginável há poucas gerações. A velocidade com que chegamos a qualquer lugar -
fisicamente ou por meio das novas tecnologias de informação e comunicação - torna as distâncias
cada vez mais irrelevantes. Noções como local e global, dentro e fora, desconhecido e familiar
passam por desdobramentos que escapam aos cânones vigentes. Novos modos de interação,
descolados da materialidade do entorno, vão se fazendo presentes entre indivíduos e grupos. O
sentimento de pertença, fundamental para a definição de uma comunidade, desencaixa-se da
localização: é possível pertencer a distância. Os processos de desterritorialização e
reterritorialização em curso na sociedade dilatam fronteiras e criam outras modalidades de vínculos.
Imagens, discursos, relatos fazem chegar para nosso cotidiano o outro, os tantos outros. Em um
planeta que parece ficar cada vez menor, situações que apontam uma perspectiva mais pautada pela
convergência, mais solidária do mundo, mais encompassadora se trançam a outras, marcadas, pelo
fundamentalismo, pelo preconceito, pela xenofobia e até mesmo pelo extermínio (BEZERRA,
1999).
[77]

Tudo isso se torna desafio para mim e para tantos que sonham com um mundo mais
hospitaleiro. Tudo isso me instiga a buscar novos percursos para interpretação de nossas práticas,
caminhos capazes de oferecer outras possibilidades de compreensão do que somos, do que fazemos
e ainda do que podemos e devemos fazer.
A Biologia do Conhecer ou Biologia do Conhecimento, denominação atribuída pelo próprio
Maturana ao conjunto das suas ideias, provoca-nos a questionar o lugar a partir do qual certas
respostas são pensadas. O que somos? O que é o humano? O reducionismo contido em nossas
respostas nos impede de perceber uma questão básica no pensamento do autor: O humano se
constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. Em um contexto cultural em que a
emoção é desconsiderada ou mesmo desqualificada, Maturana (1999, p. 23) sustenta:
Cada vez que escutamos alguém dizer que ele ou ela é racional e não emocional, podemos
escutar o eco da emoção que está sob essa afirmação, em termos de um desejo de ser ou de
obter. Cada vez que afirmamos que temos uma dificuldade no fazer, existe de fato uma
dificuldade no querer, que fica oculta pela argumentação sobre o fazer.

Na contramão do discurso hegemônico, Maturana afirma que a emoção guia o fluxo do


viver. Convida-nos a ficar atentos à ação, caso desejemos conhecer a emoção, e a olharmos a
emoção, se buscamos o curso da ação. Rompendo com dicotomias próprias de nossa cultura,
apresenta-nos emoções e ações como intimamente imbricadas. Lembra-nos que no cotidiano,
dependendo da emoção que nos move, recorremos a argumentos, assumimos atitudes que não
aceitaríamos se estivéssemos em outras disposições. E mais, não acatamos premissas que
acolheríamos sob condições diversas de nosso emocionar. Perceber esse ponto coloca em cheque a
noção de que as discordâncias são lógicas e precisam ser enfrentadas com argumentos racionais. As
divergências apontam para discrepâncias nas premissas fundamentais a partir das quais nos
movemos em nosso raciocinar. Têm a ver com preferências, emoções. Quando isso não é percebido,
o outro é acusado ou mesmo castigado e negado por nos parecer irracional.
Maturana foge aos esquemas excludentes, que configuram, com frequência, nossa
compreensão do entorno. Não nega ou desvaloriza a razão, mas insiste na necessidade de
considerarmos as emoções e de fazermo-nos atentos à pratica de negação das emoções, frequente
em nossa cultura. Entende as emoções como “disposições corporais dinâmicas que especificam os
domínios de ações nos quais os animais, em geral, e nós seres humanos em particular, operamos
num dado instante”, (MATURANA, 2006: 129) e nos faz uma proposta ousada: provoca-nos a
tomar o nosso próprio emocional de maneira reflexiva. Se assumirmos as emoções como alvo de
nossa mirada, se nos fizermos atentos a elas, alerta-nos, poderemos agir de modo mais responsável,
decidir se as desejamos ou não. Tal atitude possibilitará um novo curso às nossas ações, permitirá
que repensemos as consequências de nossos atos e optemos por sua manutenção ou mudança. Ao
[78]

nos darmos conta do papel da emoção como fundamento de qualquer sistema racional, obtemos,
ainda que nos pareça estranho, o significado efetivo da razão na compreensão do humano.
Em um percurso bem diferente do utilizado pelos que apregoam a distância entre observador
e observado, Maturana ousa perguntar pelo observador. Enfatiza que, ao rejeitarmos a questão
referente ao como sabemos o que sabemos, ao descartamos a pergunta pela origem das capacidades
do observador, agimos como se fôssemos capazes de fazer referência a entes e verdades
independentes de nós mesmos e do que fazemos. Quando, porém, consideramos o observador, sua
biologia, fica posta a impossibilidade de distinguir experencialmente entre ilusão e percepção.
Abraçar ou não essas considerações gera diferentes caminhos explicativos (id, 1999).
No caminho explicativo, denominado por Maturana, objetividade sem parênteses, a pergunta
pela origem biológica da cognição não aparece. Nesse caminho explicativo, toda verdade objetiva é
universal, válida para qualquer observador, porque independe do que ele faz. São a realidade, os
dados, as medições, a objetividade que validam o meu dizer. A “objetividade-entre-parênteses”
constitui o outro caminho explicativo apontado por Maturana. Nesse caminho, pergunta-se pelo
observador como ser biológico, como alguém cujas capacidades requerem explicação. Nesse
caminho, há muitas verdades diferentes. O mundo, a realidade não falam por si sós, não podem ser
entendidos apenas como estando fora de nós. Somos nós, os seres humanos, que falamos a seu
respeito. Não se trata de negar que vivemos em um mundo de objetos, mas de reconhecer que tal
mundo vai se constituindo na práxis do viver do observador na linguagem.
Ao se colocar a objetividade entre parênteses no processo de explicar, reconhecemos a
impossibilidade de fazer referência a uma realidade independente do observador. Reconhecemos
que os domínios de realidades são múltiplos e diversos. Assim, o que entendemos como verdade é
parte de nosso modo de estar no mundo. E esse modo não é o único, nem o mais verdadeiro. Se um
observador opera em um dado domínio de explicações – religião, sistemas filosóficos, ideologia,
ciência ou outro – isso depende de sua preferência pelas premissas básicas que constituem esse
domínio (MATURANA, 1999). Pode acontecer de tal domínio não me agradar, mas isso não nega a
sua legitimidade, significa tão somente um ato responsável de minha predileção.
Cada um desses caminhos explicativos tem consequências no espaço das relações humanas.
Constitui um modo de estar em relação com o outro. No caminho da objetividade sem parênteses,
eu não sou responsável pelas coisas serem assim. Na verdade, elas o são independente de mim e
isso é o que dá poder ao meu conhecimento. Se afirmo que você está errado, não sou responsável
por isso, não estou negando o outro porque é a realidade que o faz. Aquele que não está com a
"verdade", coloca-se contra ela. Por esse caminho, toda afirmação cognitiva é uma petição de
obediência (id, 2006:36). É um caminho excludente.
[79]

Na objetividade entre parênteses, assumindo a impossibilidade de distinguir entre ilusão e


percepção, minha afirmação faz sentido no contexto das coerências que a constituem, que a
validam. O outro é entendido como estando em um domínio de realidade diferente do meu. Esse
modo de entendimento não significa que no caminho da objetividade entre parênteses tudo é
legítimo. Adverte-nos Maturana (ibid., 39)
(...) posso dizer em meu âmbito vital ”não quero este domínio de realidade” e, portanto, ajo,
negando-o. Eu ajo negando-o responsavelmente, estou disposto a enfrentar as conseqüências
disto, o que é completamente distinto no caminho da objetividade sem parênteses. Ali sou
sempre irresponsável.

Em um tempo no qual, para muitos, o mundo continua sendo um lugar de diferença mal
suportada, um lugar de atmosfera inóspita e hostil (Bezerra, 1999) onde fronteiras físicas e
simbólicas interditam pessoas e grupos, a reflexão trazida por Maturana é muito oportuna. Os
outros, os diferentes, estão bem próximos de nós e mesmo dentro de nós, mas, muitas vezes, são
ignorados ou menosprezados e, com frequência, são culpabilizados por isso.
É no modo de considerarmos, de sentirmos o outro que a questão ética se configura para
Maturana. Ética implica nos importamos com o que se passa com os outros. Seu fundamento não é
racional, mas emocional. Quando estou na emoção de aceitação do outro, o que lhe acontece possui
significado e presença para mim. Inversamente, quando o outro não pertence ao meu espaço de
aceitação, o que lhe acontece não me toca, não me diz respeito.
Recorrendo a uma passagem de sua vida para explicar esse seu posicionamento, Maturana
nos narra que, em Londres, visitando uma exposição fotográfica com imagens da explosão em
Hiroshima, ouviu de um de seus amigos ao sair do museu: E o que me importa que tenham morrido
cem mil japoneses; se eu não conheci nenhum? Essa colocação levou Maturana (2006:49) a
indagar:
Como vai lhe importar o que acontece com o outro, se o outro não tem existência para ele,
porque não o leva em conta? Não lhe importa o que acontece ao outro (...). Não há
preocupação pelo outro se o outro não pertence ao domínio de aceitação no qual se está, o
domínio social no qual se está.

Quando o ser humano não experimenta pelo outro nenhuma consideração, não vê no outro
semelhante, não há como falar de preocupação ética. O outro é um estranho. Em nossa cultura
ocidental, o reconhecimento de outros indivíduos ou sociedades como integrando a mesma espécie,
o mesmo universo humano tem acontecido de modo lento e segmentado. A história registra
inúmeros processos de estranhamento, ocorridos ao longo dos encontros entre povos. Encontros de
consequências nefastas conhecidas por nós. No início do terceiro milênio, práticas de
desconsideração pelo outro continuam a se fazer presentes, assumindo formas e manifestações
diversas. Jamais, em qualquer outro momento histórico, estivemos tão perto uns dos outros, porém
[80]

jamais, em qualquer outro momento histórico, foi tão concreta a possibilidade de implodir, em
segundos, o nosso planeta e extinguir todas as formas de vida aí existentes. Daí, como nos alerta
Morin (2000), o problema de a compreensão ter se tornado crucial para os humanos.
Cada sociedade nos fornece exemplos daqueles que são classificados como outros e nos
indica modos de relacionamento com eles. Modos de relacionamento que geram, muitas vezes,
desconsideração, invisibilidade. Os que não correspondem às nossas regras e aos nossos modelos - e
de consumo, de estilos paroquiais de vida, de características físicas, de pertencimento étnico,
religioso ou de gênero, entre outros - passam a ser vistos como não sujeitos ou semissujeitos. Não
são, muitas vezes, reconhecidos, como outros eus. Não costumamos vê-los, ouvi-los, considerá-los,
experimentar preocupação por eles. Presenciamos, assim, com frequência, a desumanização dos
diferentes. Humanos são aqueles que participam de um certo mundo que construímos de forma
redutora. Os outros nada são. Não têm existência para nós e o que lhes acontece não nos diz
respeito, não passa por nossa responsabilidade.
Maturana (1998) sublinha que a disponibilidade para incluir o outro em nossas preocupações
éticas tem fundamento emocional e destaca que racionalizações não nos convencem se não
estivermos emocionalmente comprometidos, dispostos, envolvidos. Argumentos racionais
referentes à ética só têm poder de convencimento sobre os que já se acham convencidos, sobre os
que aceitam as premissas que fundamentam o discurso em pauta.
Ética tem a ver com a aceitação do outro e, portanto, pertence ao domínio do amor. Para
Maturana, a preocupação ética tem lugar quando alguém leva em conta o outro, a si mesmo e as
consequências das ações de alguém nos outros, ou em si mesmo, e age a partir da decisão de querer,
ou não, tais, consequências. Enquanto a moral volta-se para o cumprimento das normas,
considerando pouco ou nada as pessoas, a ética centraliza-se na existência do outro. Envolve o
desejo de manutenção do outro, sem o aniquilamento de si.
No viver cotidiano, a diferença entre moral e ética não pode ser banalizada. Preocupações
éticas ou moralistas orientam diferentemente nossos afazeres como membros da comunidade
humana. Se nos pautarmos por um posicionamento moralista, podemos justificar condutas não
éticas, argumentando que cumprimos regras e normas. Todavia, se priorizarmos o bem estar e o
respeito aos outros membros da comunidade, podemos descumprir as normas, assumir uma conduta
imoral, mas adotarmos um posicionamento ético (Maturana, 2006).
Em uma sociedade globalizada, interdependente, na qual a presença dos diferentes ocupa
cada vez mais a cena, a teorização de Maturana constitui um convite para reconhecer o outro como
legítimo outro na convivência. Essa atitude supõe uma escuta sensível de modos idiossincráticos de
perceber, sentir, praticar a existência e uma receptividade à afetação por eles provocada. Requer
abraçar uma responsabilidade radical para com o outro, deixando-nos impactar pela sua alteridade.
[81]

A atitude de disponibilidade para o outro não se dá por saídas mágicas, absolutas,


simplificadoras. Implica lançar uma mirada sobre nossas emoções e optar por sua preservação ou
mudança. O caminho escolhido depende de nossa reflexão, mas, sobretudo, do modo de considerar
o outro, de nossa capacidade de abrir mão da pretensa possessão da verdade - própria da
objetividade sem parênteses - justificadora do controle, da dominação ou mesmo da eliminação dos
que não se submetem a ela. Quando uma pessoa considera o outro, quando se importa com o outro,
tem preocupação ética. No caminho da objetividade sem parênteses, isso não acontece. O outro é
negado e essa negação não é considerada como responsabilidade daquele que a faz.
Na contramão de falas que apresentam o curso da história humana como derivado de forças
poderosas que escapam a nosso controle, que independem de nós, Maturana (1999, p.43) afirma:
O mundo que vivemos tem a ver com a gente, com o indivíduo – esse é um momento que é
comovente e libertador. É comovente porque resulta que o que fazemos não é trivial. É
libertador porque dá sentido ao nosso viver (...). As coisas que fazemos são sempre
significativas.

Enquanto sistemas vivos, nós, os seres humanos, somos sistemas determinados


estruturalmente, mas não somos predestinados pela biologia. Somos seres reflexivos que podem se
tornar conscientes da forma como vivem e do tipo de seres humanos que se tornam. E, assim,
podemos escolher o curso de nosso viver. Nada é dado ou preservado, independentemente de nossa
práxis. Construímos, por opção ou omissão, nossos caminhos, e neles configuramos nosso viver e o
viver dos que nos rodeiam, influenciando e sendo influenciados. Não estamos, portanto, apenas
envolvidos pelo mundo. Nós o criamos e recriamos em nosso viver. Podemos, pelas nossas
escolhas, gerar um mundo ou outro.
A teorização de Maturana é um convite para rompermos com a indiferença, para fazermos
de nossos encontros com o outro uma experiência de redefinição do que somos, do que constitui a
nossa humanidade. A indiferença nega-se a recriar o mundo, exime-se da participação. Assume o
discurso do nada posso, isso não é comigo, não me incomodem, não venha com essa para o meu
lado. A indiferença abdica de expectativas, não quer saber delas e, por isso, coloca a vida em risco.
Promove a exclusão, a dominação, a matança. A indiferença fica à margem da preocupação com os
outros e com o mundo. Faz do eu o centro e o umbigo da existência. Mantém-se ao largo das vozes
que denunciam a crueldade, o abismo entre ricos e pobres e as tantas formas de violência. Faz-nos
surdos ao clamor daqueles que ao longo da história têm sido acorrentados, silenciados,
amordaçados, aniquilados.
Penso, com Maturana, que precisamos enfrentar, nesse momento histórico, a questão de
nossos desejos. Repensar nossos sonhos relativos ao futuro. Definir se queremos ou não assumir
nossa responsabilidade para que eles se corporifiquem. Dizer-se neutro é só uma maneira de isentar-
se da responsabilidade do mundo que configuramos em nosso viver com os outros seres humanos.
[82]

Ou levamos em conta o outro ou vamos continuar queimando mendigos, matando crianças,


depredando templos, espancando homossexuais. O gigantesco potencial destrutivo criado pela
sociedade torna mais urgente e dramática a nossa escolha. O que desejamos no viver e conviver?
Maturana sublinha em sua obra o papel da educação. Na concepção do autor, a educação é
apresentada como um processo no qual a criança ou o adulto convivem com o outro e, nessa
convivência, se transformam, de modo que seu viver se torna cada vez mais congruente com o outro
no espaço da convivência. É pela maneira de viver de nossa comunidade que aprendemos a viver e
a conviver. É aí, em função do emocionar-se dos que formam seu ambiente, que cada ser humano
aprenderá a emocionar-se. Aprenderemos a alegrarmo-nos, enternecermo-nos, envergonharmo-nos
ou irritarmo-nos, a partir das contingências, das circunstâncias nas quais os que nos cercam se
alegram, enternecem--, envergonham, irritam (MATURANA, 1999). O viver cotidiano não é,
assim, para Maturana algo banal, insignificante. É em função de seu viver que as crianças vão se
transformando em adultos, aprendendo, ou não, a se preocupar com as consequências do seu fazer
sobre outra pessoa, sobre outro ser, é aí que podem aprender a considerar o outro, a ter atitudes
éticas.
Nós nos constituímos na conversação com os outros. Cada um de nós traz as marcas das
relações que estabelece e imprime suas marcas nas relações que mantém ao longo da vida. Cada um
leva consigo, em seu desenvolvimento, um pedaço da vida daqueles que são parte de suas relações.
A conversação em uma comunidade indica não apenas seu pensar, seu domínio explicativo da
realidade – religioso, científico, político -, mas projeta o curso de seu viver. Somos o que
conversamos, e é assim que a cultura e a história se encarnam em nosso presente (Maturana,
1998:91). E o que é conversar? Conversar é uma palavra que vem do latim conversare e quer dizer
dar voltas com o outro. O que ocorre no dar voltas juntos quando se conversa?
O conversar é este entrelaçamento entre a linguagem e a emoção, insiste Maturana, através
do qual geramos mundos. Podemos gerar um mundo ou outro, de acordo com o fundamento
emocional que se faz presente em nossas conversações. As redes de conversações cotidianas
constituem o espaço no qual fabricamos o futuro que deixamos para as crianças. Representam uma
oportunidade para que as emoções de cada interlocutor se reorganizem.
Cada grupo a que estamos filiados pode ser entendido como uma rede de conversação É
nessas redes que cada grupo transmite e recria sua história, constrói seu modo de se relacionar com
os outros. Por isso é significativo que relatemos nossos sonhos, que falemos do mundo que temos e
do mundo que desejamos criar. Cada um pode fazer explícito o mundo que deseja em redes de
conversações. Desse modo, possibilitamos que fazeres, crenças e projetos que alimentamos possam
ser, em uma trama complexa, conservados, encarnados e recriados por outros.
Maturana (1995) lembra-nos que
[83]

cada vez que um ser humano morre, um mundo humano desaparece, muitas vezes de maneira
irrecuperável. Isto não é uma banalidade sentimental, é uma realidade biológica. (...) Não sabemos fazer os
muros incas porque o último pedreiro que podia fazê-lo ao viver, morreu, e com sua morte acabou uma
linhagem da história humana. Talvez se houvesse ficado algum relato... talvez se houvesse sobrevivido
algum aprendiz... A falta da prática leva ao esquecimento e à morte, ao fim da história. E quando isso
acontece, às vezes um mundo se acaba de forma irrecuperável. Esse é o nosso risco, a morte do presente
no esquecimento do passado porque ninguém seguiu a linhagem. Há linhagens que vale a pena seguir.

Todas essas reflexões e tantas outras que escapam a esta escrita se trançam ao meu viver de
professora, e emprestam novos matizes a situações que experimento no cotidiano. A escola é
marcada pela presença de inúmeros e diversos sujeitos. É espaço atravessado pela diferença.
Diferenças étnicas, religiosas, de gênero, de modos de ser, estar, fazer e sentir que tornam a escola
lugar de encontros e desencontros. Lugar de conversações. Lugar de experiências para os sujeitos
que se deixam habitar, tocar, afetar pelo que lhes acontece (LARROSA, 2002). Experiências que
me perturbam, provocam, impulsionando-me a discutir sobre as possibilidades do ato de educar na
construção do mundo que desejamos.
Situações experimentadas em nosso cotidiano - na escola e fora dela -, situações de
desavenças, conflitos ou mesmo de cuidado, solidariedade, levam-nos a indagar com Maturana: em
que rede de conversações esses sujeitos se formaram? Como aprenderam isso? Em que espaço
emocional suas redes de conversação se trançam? E ainda: Como podemos trabalhar pelo que
desejamos no viver e conviver?
Pensar que não há alternativa para um mundo de luta e competição, preparar nossas crianças
e jovens para essa realidade são atitudes ancoradas em um erro. Não é a agressão, a emoção
fundamental que define o humano, mas o amor, a coexistência na aceitação do outro como um
legítimo outro na convivência. Nossa condição biológica primária é a de sermos animais amorosos,
diz Maturana em seus ensinamentos. Vivemos em uma cultura que nega essa condição biológica
fundamental de sermos amorosos. Mas não estamos condenados a fazê-lo. Como seres históricos,
recriamos, em nossas vidas individuais, a cultura que vivemos nas tantas redes de conversação em
que estamos mergulhados. Para Maturana (1998:91), “nossa única possibilidade de viver o mundo
que queremos viver é submergirmos nas conversações que o constituem, como uma prática social
cotidiana, numa contínua co-inspiração ontológica que o traz ao presente”. Mas que mundo
queremos? Como estamos vivendo esse mundo em nossos espaços de convivência? O que fazemos
circular em nossas redes de conversação? Que emoções atravessam os nossos discursos? Como
consideramos o outro em nosso viver? Esse questionamento não é banal. Enquanto seres humanos
que vivem em conversações, que podem se tornar conscientes do modo em que vivem e do tipo de
seres humanos que se constituem nesse viver, podemos escolher o curso de nossa existência, a
identidade humana que é gerada e conservada nessa cultura.
[84]

Em um momento histórico em que a interdependência de todos os fenômenos é realçada e


percebida nas mais diversas frentes, a história nos desafia a reinventar nossas relações com os
outros e o entorno; a gerar um espaço social ético, um mundo comprometido com todas as formas
de vida, um mundo em que o homem se faça desejoso da manutenção do outro, sem o
aniquilamento de si. É uma tarefa difícil, mas o futuro não está determinado, insiste a Biologia do
Conhecer. Somos num devir, num contínuo ser variável, que não é absoluto, nem necessariamente
para sempre. É aberto ao futuro, à história. No cerne da Biologia do Conhecer, uma instigante
interpretação de nossas ações e nossas certezas, colocando em pauta outras interrogações e
possibilidades de sentido.
Não vivemos sem sonhos, sem desejos. Enquanto o ser humano se encontrar em maus
lençóis, a sua existência, tanto privada quanto pública, será perpassada por sonhos diurnos. Sonhos
que se voltam para o ainda-não existente. Sonhos de uma vida melhor do que a que lhe coube até
aquele momento (BLOCH, 2005). Sonhos que nos arrastam, mobilizam-nos. Quanto já não se
sonhou ao longo dos tempos por uma vida melhor? As ruas vivem cheias de gente com sonhos
diurnos. A teorização de Maturana ajuda a tornar os sonhos diurnos mais plenos, oferecendo pistas
para o viver dos que seguem acreditando que é possível, necessário e urgente fazer com que a vida
seja mais e melhor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BEZERRA JR, Benilton, Prefácio. In FERREIRA, Ademir Pacelli. O migrante na rede do outro.
Rio de Janeiro: Te Cora Editora.1999 - p. 11 a 17.
BLOCH, Ernst. O principio da esperança I.Rio de Janeiro EdUERJ:Contraponto. 2005.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol.1. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1996.
FOUCALT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana:danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre:
Contrabando.1998
________. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de educação.
Jan/Fev/Mar/Abr 2002, Nº 19 –p. 21 a 28.Disponível em
www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04. Acesso em: 16 junho 2008
MATURAMA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
_________. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
_________. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
_________. ¿Moral o Etica? Las palabras no tienen significado en sí mismas, no tienen
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Disponível em http://www.autopoiesis.cl/?a=19. Acesso em: 12 maio 2008.
_________. El Sentido del Humano. Santiago: Hachette, 1995.
MORIN, Edgar - Os sete Saberes Necessários à Educação. São Paulo - Cortez; Brasília, DF:
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[85]

SCHNITMAN, Dora Fried. Introdução ciência cultura e subjetividade. In SCHNITMAN, Dora


Fried (org.) Novas Paradigmas, culturas e subjetividade. Porto algre: Artes Médicas, 1996, p. 09-
21.
[86]

A QUESTÃO DA IDENTIDADE CULTURAL:


UM OLHAR SOBRE CARTOLA

Nanímia Conde Ferreira de Moraes Góes Viegas


Professora de História,
Pós-graduanda (Lato Sensu) em
Gestão e Produção Cultural (UNESA)
[email protected]

RESUMO:
Será analisado o processo histórico de transformação do sujeito sociológico para o sujeito moderno
fragmentado e o deslocamento de seu referencial identitário. O discurso de nação, de identidade
nacional e de cultura passa a ser o projeto político para organização da sociedade de massa. Há uma
tentativa de unificação do sujeito através de uma forma política e simbólica. Ao tratar de Cartola62
serão abordados a formação de sua identidade, seus primeiros contatos com o samba e com o
carnaval carioca e, a formação da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade Cultural; Arte Popular; Cartola.

ABSTRACT:
The historical process of transformation of the sociological citizen for the fragmented modern
citizen and the displacement of its identity will be analyzed. The speech of nation, national identity
and culture starts to be the politician project for the organization of mass society. It has an attempt
of unification of the citizen through a symbolic and political way. When dealing with Cartola[1] will
be boarded the formation of his identity, his first contacts with the samba, carioca carnival and the
foundation of the School of Samba Estação Primeira de Mangueira.
KEYWORDS: Cultural Identity; Popular Art; Cartola.

Nos últimos anos da década de 5063, a sociedade brasileira passou a sentir os reflexos da
presença do sentimento de prosperidade, otimismo e esperança que a ideologia norte-americana
pregava aos consumidores – no Brasil, principalmente, a classe média – dos produtos de sua cultura
industrializada e voltada para um mercado em frequente expansão de maneira a ampliar sua área de
influência durante o período histórico denominado Guerra Fria.
A estruturação da sociedade de massa favoreceu a proliferação dos meios de comunicação
como forma de entretenimento e informação. As produções artísticas, direcionadas para um público
alvo estimulado a consumir, apresentaram obras tanto de caráter popular quanto sofisticada. O
modo de vida americano gerou a esperança de tornar o Brasil um país desenvolvido, nacionalmente
forte e independente.

62
OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de; SILVA, Marília T. Barboza da. Cartola – Os Tempos Idos. 3ª ed. – Rio de Janeiro:
Funarte, 1997.
63
KORNIS, Mônica Almeida. Sociedade e Cultura nos anos 1950. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/comum/htm/navegandonahistoria/obrasildejk>. Acesso em: 07 de abril de 2009.
[87]

Os campos artísticos da música, do cinema, do teatro, da literatura e das artes plásticas,


iniciaram uma revisão de momentos históricos brasileiros em que um determinado grupo fomentou
o desejo de enaltecer o que era próprio da cultura nacional.
Os “anos dourados” do governo de Juscelino Kubitschek estimularam um conjunto de
manifestações artísticas e culturais sob a ideologia do nacional-desenvolvimentismo, favorecendo
debates em torno do que seriam identidade nacional, cultura popular e arte brasileira como bases
para a reconstrução nacional.
Neste momento, começa a formação de movimentos que ligados ao processo de renovações
estéticas da arte e que marcariam o início da década de 60 64, sob a crença da formulação de uma
nova sociedade, originários, principalmente, das camadas médias urbanas, como os universitários,
artistas e intelectuais.
Durante esta década, a radicalização política favoreceu o processo crescente da politização
da cultura. O projeto nacional-popular ganhava força com o governo do presidente João Goulart.
As manifestações estéticas se associavam à uma consciência crítica e ao desejo de
transformação da ordem vigente do sistema capitalista. Em 1962, como exemplo máximo do debate
da esquerda em torno da arte, da identidade nacional e da cultura brasileira foi criado o Centro
Popular de Cultura (CPC), representante dos intelectuais da esquerda e da União Nacional dos
Estudantes (UNE).
A fusão estudantes-intelectuais-artistas gerou frutos para a arte brasileira e para os debates
travados sobre o tema cultura popular. Outros artistas, como o Hélio Oiticica, os representantes da
Bossa-Nova e do Cinema Novo, passaram a buscar a cultura que consideravam inegavelmente
brasileira, formando uma forte ligação com os sambistas dos morros cariocas. A construção da
nacionalidade era a principal proposta contida nas obras artísticas da época.
Apesar do golpe militar de 1964 e a intensificação da ditadura e da repressão com a
decretação do AI-5, em dezembro de 1968, a resistência cultural de esquerda se manteve. Os
projetos de aproximação do povo e das produções estéticas e intelectuais da época foram
prejudicados. Todavia, os frutos do período marcaram a histórica da cultura, das artes e da
intelectualidade do país.
Tendo em vista este contexto histórico, este artigo visa analisar a trajetória da vida artística
de um personagem oriundo da camada popular-urbana carioca. Será uma forma de se compreender
as décadas de 60 e 70 sob a perspectiva de um compositor do morro, produtor de uma manifestação
cultural típica das classes populares.

64
KORNIS, Mônica Almeida. A Cultura Engajada. Disponível em
<http://cpdoc.fgv.br/comum/htm/navegandonahistoria/atrajetoriapoliticadejoaogoulart>. Acesso em: 15 de agosto de
2009.
[88]

Nesta pesquisa haverá uma constante comparação da evolução do pensamento humano até a
modernidade tardia, o processo de descentralização do sujeito, a formação da identidade nacional, a
cultura popular e, a arte brasileira com a formação musical de Cartola, suas referências musicais e a
formação de sua identidade.

Identidade cultural: transformações e fragmentação das identidades


No período moderno – século XX – ocorreram alterações estruturais e institucionais na
organização política, econômica, social e cultural que foram se materializando ao longo do tempo
histórico, reordenando as representações das identidades dos indivíduos e da coletividade. Para que
se compreenda a pluralidade, o deslocamento e a fragmentação das identidades na modernidade
tardia65 é necessário perceber como os conceitos de unidade e tradição se localizavam na
organização do pensamento humano.
Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, coloca três concepções
fundamentais de identidade: o sujeito do iluminismo, centrado, “dotado de razão, de consciência e
de ação” (ibid:11), que possui um centro de referência, possibilitando o seu reconhecimento como
indivíduo em uma dada sociedade; o sujeito sociológico que constrói sua identidade através das
relações sociais que “mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos
mundos que ele/ela habitava” 66
, sendo, portanto um sujeito interativo; e o processo pós-moderno
que tornou as formas de identificação variáveis, sendo o resultado de mudanças estruturais e
institucionais.
O advento da democracia moderna reformulou o conceito de Estado-Nação e da grande
massa, uma nova forma de estruturação administrativa e política se fez necessária para organizar e
suprir as necessidades desta sociedade em formação. Segundo Hall (2006:20), “o indivíduo passou
a ser visto como mais localizado e ‘definido’ no interior dessas grandes estruturas e formações
sustentadoras da sociedade moderna”.
O sujeito moderno surge pelas modificações dos sistemas de significação e de representação
cultural. A identidade torna-se móvel, ou seja, ela é constantemente transformada pelos estímulos e
representações culturais externos a que o sujeito é exposto.
Para entender o abismo referencial pelo qual passa o sujeito moderno comparar-se-á com o
sujeito das sociedades tradicionais. Estas veneravam o passado como forma de manutenção do
conhecimento e da experiência para o presente e para o futuro. “A identidade, então, costura (...) o
sujeito à estrutura” (HALL, 2006). Já a sociedade moderna deseja examinar e questionar as práticas
sociais, alterando constantemente seu caráter.

65
Modernidade Tardia ou Pós-Modernidade são termos aplicados às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas
sociedades recentes desde 1950, quando, por convenção, se encerra o período denominado Modernismo (1900-1950).
66
Ibidem, p. 11.
[89]

Os eventos da história ocidental apontam o processo de evolução da condição do indivíduo


inserido socialmente. A Reforma e o Protestantismo propõem a libertação da consciência individual
religiosa; o Humanismo “retira” Deus do centro do universo e “coloca” o ser humano, dotado de
razão, em seu lugar; o Iluminismo ratifica a posição do homem e lhe dota de todas as faculdades
necessárias para sua evolução racional e pura.
Da concepção moderna da identidade, surge o sujeito cartesiano e sociológico – racional
situado no centro do conhecimento. E é, exatamente, este sujeito que será gradualmente fragmento
até atingir o ápice da descentralização da identidade na modernidade tardia.
Como foi colocado, as sociedades modernas sofreram mudanças constantes e rápidas,
descentralizando o referencial unificado do indivíduo.
De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas dessa forma por
identificações rivais e deslocantes, advindas, especialmente, da erosão da ‘identidade mestra’ da
classe e da emergência de novas identidades, pertencentes à nova base política definida pelos
movimentos sociais (...). (HALL, 2006:21)

Das identidades rivais concretizadas pela dinâmica da sociedade (movimentos étnicos,


sociais, sexuais e de gênero), surge a ‘política da diferença’, que vem a ser a identificação do
sujeito não pelo processo de referencial comum, mas por olhar que credita às diferenças o fator
essencial para determinar as características que formam uma identidade.
A nova condição moderna de interação social do sujeito, na metrópole, na multidão,
totalmente alienado, isolado, fomenta as produções intelectuais e alterações estéticas da arte. As
rupturas nos discursos do conhecimento e a perenidade da identidade, somados à emergência dos
campos da teoria social iniciam o processo de descentralização do sujeito moderno para uma
concepção mais instável de identidade.
Hall aponta cinco concepções teóricas como influências para o processo de descentralização
do sujeito na modernidade tardia que geraram profundos efeitos desestabilizadores em meados da
década de 60 do Século XX: Karl Marx, filósofo e cientista social; Sigmund Freud, psicanalista;
Ferdinand Saussure, linguista estrutural; Michel Foucault, filósofo e historiador e o feminismo,
movimento social67.
Basicamente, as teorias desenvolvidas abordam o processo de descentralização do sujeito
não como uma defesa, mas como propostas analíticas do comportamento social humano, da sua
estrutura de pensamento, da linguagem como sistema social, do poder disciplinar das novas
instituições e da politização do processo de identificação.
Para Marx, os indivíduos, quando nascem, já se deparam com uma realidade histórica
determinada. Portanto, o meio social já existia e lhes forneceria recursos “materiais e culturais”
67
Sugestões para aprimorar o conhecimento sobre as teorias expostas: ALTHUSSER, Louis. For Marx, 1966; LACAN,
Jacques. The mirror stage as formative of the function of the I. In Écrits, 1977; FOUCAULT, Michel. Discipline and
Punish, 1975.
[90]

para, a partir daí, o homem fazer sua história. Assim, “o marxismo, corretamente entendido,
deslocara qualquer noção de agência individual” (HALL; 2006:35).
Com a descoberta do inconsciente, Freud afirma que a subjetividade é o produto de
processos psíquicos e inconscientes, isto é, “nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de
nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente”
(HALL; 2006:36).
Tal estudo propõe uma lógica analítica completamente diferente da identidade de um sujeito
centrado, unificado e irremediavelmente fixo e estável. Ainda para Freud, o sujeito se forma
conforme o olhar que o outro tem sobre ele. Isso quer dizer que o sujeito “descobre” quem é pela
forma como é visto, socialmente, na fase denominada “fase do espelho”. O sentimento de
identidade unificada e centralizada do ser humano não passa de uma ilusão criada pelos próprios
indivíduos. É como um sentimento de segurança e estabilidade para sua inserção no mundo social.
Saussure segue a linha de raciocínio dos teóricos anteriores, porém faz a análise de um
elemento cultural essencial para a comunicação dos indivíduos em um meio, a língua. Ele afirma
que a linguagem é um sistema coletivo e não individual, ou seja, ninguém cria nada, nem mesmo
diz algo essencialmente novo. O processo linguístico preexiste antes da chegada de um indivíduo, o
que se pode fazer é “dar” significados ao que se diz.
Falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais;
significa também ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua
e em nossos sistemas culturais. (HALL, 2006:40)

Foucault aborda a forma disciplinar das novas instituições coletivas, e afirma que estas são
regradas de maneira que o sujeito se torne um ser altamente individualizado, que perca o
conhecimento dos acontecimentos como um todo e saiba que a vigilância para manutenção da
ordem é constante, sem saber de onde está sendo vigiado e nem por quem. Esta forma disciplinar
cria um ambiente de tensão interior no indivíduo, pois o desconhecimento do sistema o obriga a não
infringir as regras, afinal, ele pode ser flagrado a qualquer momento, pois “o poder disciplinar está
preocupado, em primeiro lugar, com a regulação, a vigilância é o governo da espécie humana ou de
populações inteiras e, segundo lugar, do indivíduo e do corpo” (HALL, 2006:42).
E por último, Hall coloca o feminismo como mais do que um movimento social, e sim como
uma crítica teórica. Este movimento abriu debates políticos entorno das instituições sociais
estabelecidas e do lugar social ocupado pelos indivíduos – sejam eles homens ou mulheres, jovens
ou idosos. A partir daí, surge a formação de duas novas identidades da modernidade tardia: as
sexuais e as de gênero.
No projeto político de organização das massas, a construção de uma identidade cultural de
uma dada sociedade – a identidade nacional – é essencial para se compreender o sentimento de
[91]

unidade de povos tão diversos que se reconhecem pelo discurso de nação. Ou seja, existem
elementos que tentam unificar e integrar os indivíduos em um sentido político e cultural central,
exercendo uma força sentimental e no “inconsciente coletivo”, rearranjando as diferenças e as
fragmentações modernas para a manutenção de uma identidade unificada nesse processo de
descentralização do sujeito.
A condição do homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo,
faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo
– como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao
qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar
(SCRUTON apud HALL, 2006:48).
Dessa forma, todos os grupos étnicos, regionais se unem pelo fator nacional. Num aspecto
macro, o que torna as diferenças identificáveis é a cultura nacional, sob a forma simbólica e
política. Daí, “segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz
sentidos – um sistema de representação cultural (HALL, 2006: 49)”.
Segundo Hall, existem cinco narrativas que constroem uma nação: a narrativa da nação, isto
é, as histórias, a literatura nacional, a mídia e a cultura popular; a ênfase nas origens, na
continuidade, na tradição e na intemporalidade; a tradição inventada; o mito fundacional que
transforma a origem da nação em um relato duvidoso e confuso, mas que por fim sugere a gênese
da “comunidade”; e a ideia de uma povo puro e original.
O discurso e o fortalecimento de laços históricos do passado fornecem a força da identidade
necessária para que uma nação ‘evolua’ e seja competitiva no sistema global e, obviamente,
fortalecem o sentimento de integração dos indivíduos e o centro referencial que interliga as
diferenças.
É evidente que este discurso romântico da formação dos povos não é verídico, e muito
menos a pureza deles. Todo o processo do que se considera uma nação moderna deu-se através da
violência e da imposição de uma cultura sobre a outra.
Existem, também, medidas para que o povo se encontre em um único sentimento nacional.
No Brasil, por exemplo, houve o estímulo ao futebol e ao carnaval. As copas do mundo, as
olimpíadas e as regras dos desfiles das escolas de samba são formas de exercício cívico e resgate da
memória e do sentimento de integração das nações.
Como um dos representantes do samba carioca, nas próximas páginas serão abordadas a
formação da identidade de Cartola e as influências da cultura popular brasileira para a construção de
sua obra.

Identidade Cartola
A análise da construção da identidade cultural de Cartola, as influências de suas
composições, discordâncias em relação ao processo de institucionalização dos desfiles das escolas
[92]

de samba, na década de 30, sua postura quanto a arte de vanguarda durante a modernidade tardia,
além da manutenção de sua estética de representação do cotidiano da comunidade em que estava
inserido, serão discorridas nos próximos parágrafos.
Sem compreender a formação educacional, cultural e social de Cartola torna-se um difícil
exercício conceber a ideia de um poeta que segue na contramão do movimento de vanguarda a que
foi tão exposto – a arte engajada que predominou nas décadas de 60 e 70 – e que, apesar de não se
enquadrar na estética musical desejada pelo mercado fonográfico, era reconhecido como figura
eminente da música por artistas e intelectuais, conquistando o sucesso com a gravação de seus
quatro discos individuais.
Esse parece ter sido, afinal o verdadeiro segredo do sempre jovem Angenor de Oliveira, na
manutenção da atualidade permanente da sua arte. É que, tendo a oportunidade de ‘modernizar-
se’ através da aceitação de esquemas e modas musicais oferecidos prontos por artistas
representantes de classes mais altas, Cartola preferiu evoluir sempre em coerência com a
realidade de sua condição e da cultura média de sua classe. E ia ser essa coerência, aliás, que o
levaria a deixar de compor sambas de enredo para a sua escola de samba, a Mangueira, quando
percebeu que as expectativas dos cartolas de sua própria comunidade se voltavam ingenuamente
para fora, isto é, para a aceitação de padrões que não correspondiam à verdade da sua gente. E
esse choque entre o realismo cultural de Angenor de Oliveira e as ilusões se ascensão pela
fantasia das novas gerações de pobres (iludidos) dos morros é muito bem exemplificado pela
inclusão, no disco Cartola 70 anos, de um samba-enredo seu e de Carlos Cachaça já recusado
por sua escola em 1949, quando o processo de alienação mal começava a insinuar-se nos meios
de samba das escolas (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997:125)68

É interessante a observação de que Cartola, no entanto, só obteve a glória de gravar seu


primeiro disco em 1975, aos 65 anos de idade. Este fato demonstra que até esse momento Cartola,
assim como o samba carioca, ocupava um lugar marginal na arte brasileira. Somente na
modernidade tardia, a busca pela cultura inegavelmente brasileira fez com que as músicas de
Cartola fossem conhecidas pelo grande público e não só por estudiosos e músicos que circulavam
pelas favelas e rodas de samba. Ou seja, apesar de não cantar a política, o poeta obteve lugar de
destaque entre os artistas da segunda metade do século XX, deixando um legado de mais de 600
composições.
Como Pixinguinha (1897-1973) e Nazareth (1863-1934), Cartola (1908-1980) teve uma vida
ativa de compositor muito longa. Começou aos 19 anos com (1928) com Chega de Demanda, e
continuou compondo até outubro de 1980, quando criou o samba Vem, sua última obra
(OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997:152).

Angenor de Oliveira nasceu em outubro de 1908, no bairro do Catete, na cidade do Rio de


Janeiro – ainda capital do Brasil. Seu avô, Luís Cipriano Gomes, era cozinheiro do político Dr. Nilo
Peçanha (Presidente da República durante os anos de 1909-1910), seu pai, Sebastião Joaquim de
Oliveira, carpinteiro e sua mãe, Aída Gomes de Oliveira, dona de casa.

68
Crítica a evolução coerente da obra de Cartola.
[93]

Tal fato se torna relevante por aproximar Cartola de uma vida pequeno-burguesa. O menino
teve boa formação educacional, circulou pelos bairros na zona sul (até a morte de seu avô, Cartola e
família moravam no bairro de Laranjeiras, numa vila operária da fábrica de tecidos Aliança), o que
influenciou consideravelmente sua maneira de se vestir e o comportamento refinado, típico das
classes mais abastadas. O próprio Cartola, já septuagenário, relataria: “Antes do meu avô morrer,
não havia pretinho mais bem vestido do que eu em todo bairro de Laranjeiras. Depois que ele
morreu é que as coisas pioraram muito pra mim” (OLIVEIRA FILHO E SILVA; 1997:27).
Cartola e a família frequentavam os ranchos da zona sul durante o carnaval, principalmente
os Arrepiados – bloco que reunia os operários da Fábrica Aliança. Este contato com a música
popular e com a música erudita despertou o interesse do menino pela arte do samba.
A formação dos ranchos estimulou de maneira bem tênue a assimilação das manifestações
culturais populares rejeitadas, até então, pela sociedade aburguesada. No início do século XX, o
carnaval na cidade do Rio de Janeiro era marcado territorialmente pela divisão social e,
principalmente, racial.
Durante os dias de folia era possível perceber a diferenciação entre as duas visões de mundo:
uma construída a partir da reforma Pereira Passos, cuja principal expressão era a Avenida
Central por onde transitava a alta sociedade com seu desfile de carros com flores. A outra, a
Praça Onze, “ponto de concentração de sambistas e malandros, como o lugar da batucada e do
samba duro” (SOIHET; 1998: 57)

A formação dos ranchos “civilizou” a representação carnavalesca dos operários da zona sul,
legitimando a manifestação através da utilização de uma cultura erudita aliada à cultura popular.
O conflito que ocorria nas competições dos cordões, em que havia inclusive intervenção
policial – o que os rendeu uma imagem muito negativa, gerando forte rejeição das camadas mais
abastadas da sociedade à participação popular no carnaval – foi amenizado pelos ranchos.
Já os ranchos eram uma espécie de cordão mais organizado, e, além de contarem com maior
presença feminina, reuniam um instrumental mais sofisticado, com violões, cavaquinhos, flautas
e clarinetes. Seu aparecimento remonta ao último quartel do século XIX e está ligado
diretamente à figura do baiano Hilário Jovino Ferreira. Jovino soube misturar rancho de reis,
como as pastoras bem ornadas, com as figuras de mestre-sala e porta-estandarte. (sic) De origem
popular, os ranchos sofriam influência da cultura nordestina, incorporando características das
procissões religiosas de origem negra e de manifestações folclóricas típicas do Dia de Reis.
(DINIZ; 2006: 89)

Cartola teve contato com dois ranchos mais próximos de sua residência, o União da Aliança
e os Arrepiados, demonstrando sua preferência pelo Arrepiados, cujo símbolo era uma bruxa
arrepiada e as cores verde e rosa. A participação de Angenor nestas manifestações deixou
influências decisivas em sua formação, ele manteve contato íntimo com os ‘cobras’ dos Arrepiados
e iniciou seu aprendizado autodidata nas artes do cavaquinho.
[94]

Após a morte de seu avô, Cartola e sua família passaram por sérios problemas econômicos.
Em 1919, o morro da Mangueira se torna a grande referência da formação cultural do jovem rapaz,
então, com 11 anos de idade.
A Mangueira, na época, era economicamente dividida em duas partes: a parte do morro
próxima aos fundos da Quinta da Boa Vista era urbanizada e seus moradores se enquadravam nos
padrões burgueses; a outra parte, próxima a Estrada de Ferro Dom Pedro II, era o lado pobre,
pertencente majoritariamente à família portuguesa Saião Lobato. O local é popularmente conhecido
como Buraco Quente, e foi exatamente este o novo endereço da família Oliveira.
O samba moderno estava sendo ‘formado’ neste momento. Os ‘bambas’ que influenciaram
as gerações das décadas de 60, 70 e 80, que fundaram as escolas de samba do Rio de Janeiro e que
unificaram as mais variadas manifestações das classes pobres da cidade sob um único nome,
estavam sofrendo um processo de formação poética e musical. No caso da Mangueira: “o Mano
Elói lá dos subúrbios de Dona Clara, levara para a Mangueira a batucada que, por afinidade, o tio
Carlos Cachaça até hoje chama de samba” (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997:31).
O morro da Mangueira era um local de forte miscigenação étnica e cultural. O luso-
africanismo era a expressão mais forte presente na favela. Os portugueses foram os responsáveis
pela implementação do comércio e da indústria na Mangueira, dando emprego para os chefes de
família e por lá fincando raízes.
Cartola, nos momentos em que se encontrava desempregado, era frequentador assíduo das
bocas, recebendo forte influência da religiosidade afro-descendente. As bocas “eram casas,
lideradas por pessoas idosas, onde normalmente se cultuavam os deuses afro-brasileiros e onde se
dançava e se jongava” (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997:32).
Cada boca tinha seu bloco carnavalesco que perpetuava o samba por toda a favela. Cartola e
outros ‘bambas’, também, formaram o seu bloco – os Arengueiros – que mais tarde, em 1928, deu
origem à Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
Mas, antes de explicar a formação da escola, é imprescindível conhecer outro elemento do
universo do samba mangueirense – a batucada – importante para a formação musical de Agenor. No
Buraco Quente, a batucada sincrética 69
– ou samba duro – era encontro certo para desafios e
pernadas entre homens e mulheres. Cartola ainda era muito moço, mas já transitava nestes meios
com seu terno de linho branco S-120.
Esse jogo de atenção, de golpes rápidos e eficazes, não consegui, na Bahia, ultrapassar um
pequeno círculo de iniciados, enquanto no Rio de Janeiro, a despeito da violenta repressão
policial, praticamente se tornou o meio de defesa e ataque das camadas populares. No Carnaval
de 1947 e de 1950 toda a cidade cantou, ao som de surdos, pandeiros e tamborins, uma melodia
com certo ar de samba de morro, Chegou o general da banda ê ê/Chegou o general da banda ê á,

69
Os elementos da batucada em sua origem se resumem ao acompanhamento das palmas, portanto, a inserção de outros
elementos rítmicos é característico da batucada sincrética a que Cartola conheceu e fez parte no morro da Mangueira.
[95]

que é apenas um curioso refrão do batuque. O general não é outro senão Ogun, o deus do ferro
dos nagôs, que no Rio de Janeiro é São Jorge e na Bahia é Santo Antônio; banda, um dos golpes
do batuque, o mais comum, com que o atacante tenta arredar do chão uma das pernas do
adversário, para fazê-lo cair (...) Se a capoeira exige uma orquestra típica, extrema agilidade do
corpo, saltos e contorções, o batuque exige apenas atenção e vigor de movimentos nas pernas.
Daí o nome de pernada. Uma roda de batuque se forma com qualquer número de pessoas que
podem acompanhar as canções de desafio batendo palmas. Um dos batuqueiros ocupa o centro
da roda e convida um dos assistentes a competir. O convidado se planta – junta as pernas,
firmemente, desde as virilhas até os calcanhares, com os pés formando um V. O batuqueiro
começa então a estudar o adversário, circulando em torno dele, à espera de um momento de
descuido ou em busca de um ponto fraco por onde o catucar. O bom batuqueiro jamais ataca
pelas costas – e o lícito, no jogo, é largar a perna de frente ou de lado. Por sua vez, o convidado
não vira o corpo pra trás – entre outras razões por que ficaria indefeso contra a pernada –
embora, naturalmente, esteja atento a todos os movimentos do atacante. Habitualmente, o
convidado não se aguenta nas pernas e vai ao chão. Nesse caso, o batuqueiro convida outra
pessoa da roda. Se, entretanto, não o derrubar, os papéis se invertem – e é o batuqueiro que se
planta para o convidado (OLIVEIRA FILHO E SILVA, 1997:33).

Com o falecimento da mãe e o rompimento com o pai, Cartola se tornou boêmio inveterado,
aproveitando a malandragem dos cariocas e os romances dos poetas. Aos 19 anos casou-se com
Deolinda e formou, juntamente, com Euclides Roberto dos Santos, Saturnino Gonçalves, Marcelino
José Claudino (Massu), Agenor de Oliveira (Cartola), José Gomes da Costa (Zé Espinguela), Pedro
Caim e Abelardo da Bolinha, o bloco dos Arengueiros. Eram os ‘bons de briga’ e, principalmente,
de samba.
Esta qualidade artística presente nos integrantes do bloco despertou em Cartola o desejo de
fortalecer o componente musical e não mais arrumar confusões pela cidade do Rio de Janeiro70. A
reunião de todos os blocos do morro em uma única escola de samba foi precedida de algumas
negociações vitoriosas. Em 28 de abril de 1928, foi fundada a Estação Primeira de Mangueira
representada pelas cores verde e rosa – herança do rancho dos Arrepiados do bairro de Laranjeiras.
Aos poucos, os blocos foram compreendendo, como times de futebol de jogo da seleção, que a
Estação Primeira era a Seleção Brasileira do morro da Mangueira, todo seu potencial individual
canalizado numa só direção e com um só objetivo: mostrar a esta cidade, ao país, ao mundo, o
que era o samba verde e rosa no morro da Mangueira. Sob a batuta, ou melhor, sob o diapasão71
afinado do mestre de harmonia da escola, o grande Mestre Cartola. (OLIVEIRA FILHO E
SILVA, 1997:41)

Cartola, durante sua vida, conviveu com burgueses da zona sul, músicos eruditos, negros,
mulatos, portugueses, além de frequentar terreiros de santo, ranchos, blocos de carnaval, rodas,
jongo e batucadas. Sua formação como pessoa e artista explicita o sincretismo/pluralismo religioso
e cultural presente na gênese do povo brasileiro. As influências musicais deste período de
consolidação da identidade cultural de Cartola foram determinantes para a coerência de suas
composições, ao longo de sua vida. O poeta passou por grandes momentos do samba no Brasil,

70
O primeiro samba composto por Cartola – Chega de Demanda – serviu como proposta para a união dos blocos do
morro da Mangueira.
71
Cartola aprendeu a utilizar o diapasão com Villa Lobos, grande músico erudito brasileiro.
[96]

desde sua questionável origem até sua institucionalização e produção comercial. Entretanto,
manteve o centro de referência que lhe permitiu permanecer à margem das influências das
fragmentadas identidades da modernidade tardia, refletindo-se nas suas posturas diante da
adaptação musical forçada dos artistas para que suas obras fossem interessantes para o mercado
consumidor da indústria cultural da massa. O mesmo se dá diante das transformações ocorridas nos
samba-enredos e nos desfiles das escolas de samba. Cartola se coloca completamente desfavorável à
ideia de se fazer um desfile para um júri e não para as comunidades.
O samba composto por Cartola expressava a identidade central individual e coletiva
fundamental na sua criação. O período de formação cultural, tão diverso, vivenciado pelo menino,
foi o norte de suas composições e do tardio sucesso musical.
Cartola cantou a sua realidade econômica e social. Dando ênfase à arte da malandragem e
aos prazeres da vida boêmia e dos romances. Cantou o amor, as mulheres e a dura vida dos pobres.

Considerações finais:
A necessidade do estudo das culturas das classes populares como forma de valorização dos
significantes construídos por grupos e/ou comunidades é pôr em prática o verdadeiro sentido de
humanização das políticas públicas. Através da contribuição do conhecimento da construção das
identidades e, dos processos históricos, políticos, sociais, econômicos e culturais existe a
possibilidade de se aprimorar o conhecimento das demandas das camadas pobres do Brasil.
O discurso de nação, de identidade nacional e de cultura que foi o projeto político para
organização da sociedade de massa – composta por uma diversidade ímpar de grupos sociais tão
diversos – sendo, portanto, uma tentativa de unificação do sujeito através de uma forma política e
simbólica, evoluiu para o sentido de globalização. No entanto, a globalização ideal não é
meramente a circulação de capital, de mercadorias, de empresas e de mão-de-obra barata, mas sim a
não existência de fronteiras em benefício da humanidade, o que vale ressaltar que planeta Terra e
humanidade são um único ser. Durante anos o homem tentou se afastar de seu habitat, como se
deste pudesse usufruir sem se atingir diretamente. Deste pré-suposto entende-se que a evolução do
mundo global se dá exatamente pela quebra de fronteiras territoriais em benefício da cada ser vivo.
As variadas culturas presentes no globo não se tornarão uma, mas a troca já se torna intensa,
veloz e constante, cada grupo faz uma leitura, uma tradução do que lhe é exposto para ser parte de
sua identidade.
Todavia, no cenário das grandes mudanças e das inovações tecnológicas as grandes mazelas
se tornam maiores. No mundo sem fronteiras, algumas soluções elementares e viáveis para os que
padecem de fome, de estresse, de vícios ou de síndromes estimuladas pelo sistema capitalista são o
respeito, a dignidade, a educação e a saúde sem fronteiras.
[97]

Ao abordar um estudo sobre a trajetória artística de Cartola, suas influências musicais,


religiosas e sua postura política foi uma tentativa de se apreender como um setor da comunidade
urbana do Rio de Janeiro respondeu aos acontecimentos das décadas de 1960 e 1970 e, como esta
comunidade se beneficiou ou não com os avanços da industrialização, do acesso aos meios de
comunicação, da inserção ou rejeição do negro e do pobre à sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DINIZ, André. Almanaque do Samba – A história do Samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.
FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
GARCIA, Miliandre. A Questão da Cultura Popular: As políticas culturais do Centro Popular de
Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Revista Brasileira de História, São Paulo,
vol. 24, n 47, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
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GONZALES, Jefferson Aníbal. Cultura e Educação Popular como instrumentos de formação
política das camadas populares: Os Centros Populares de Cultura (1961-1964). Disponível em:
<http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada8/resumos/Jeferson%20Gonzale
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HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 11 ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
KORNIS, Mônica Almeida. Sociedade e Cultura nos anos 1950. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/comum/htm/navegandonahistoria/obrasildejk>. Acesso em: 07 de abril de
2009.
KORNIS, Mônica Almeida. A Cultura Engajada. Disponível em
<http://cpdoc.fgv.br/comum/htm/navegandonahistoria/atrajetoriapoliticadejoaogoulart>. Acesso
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NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira – Utopia e Massificação (1950-1980). 3 ed., São
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SOIHET, Rachel. A Subversão Pelo Riso: Estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao
tempo de Vargas. 1ª ed. – Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
SOUZA, Gabriel Girnos Elias de. “A Transgressão do “Popular” na Década de 60: Os Parangolés e
a Tropicália de Hélio Oiticica”. In: RISCO – Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo,
Programa de Pós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (EESC-USP), 2006, p.
83-103. Disponível em: <http://www.arquitetura.eesc.usp.br/revista_risco/Risco3-
pdf/art6_risco3.pdf >. Acesso em: 01 de abril de 2009.
VALENÇA, Rachel. Carnaval. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2006.
[98]

MEMÓRIA E IMAGEM: POÉTICA DO COTIDIANO

Selma Ferro dos Santos


Professora Titular e Coordenadora do Curso de Pedagogia da FSD
Mestre em Educação (UERJ)
[email protected]

Resumo:
O presente texto, unindo narrativa e imagem em um processo em constante movimento – uma nos levando à
outra – presentifica alguns eventos comemorativos vivenciados no Colégio Estadual Canadá, no município
de Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro, como marcas dessa escola, presentes nas memórias dos
profissionais que nela atuaram desde sua criação no ano de 1973 e nas décadas de 1980 e 1990, recortadas
neste trabalho. Ao calendário oficial de festividades, acrescentavam-se outros motivos de fatos para serem
festejados, propiciando a criação de projetos que catacterizaram um período fértil em produção e de
atividades interdisciplinares na história dessa instituição estadual de ensino. Este trabalho conecta-se a outra
produção acadêmica, dissertação de mestrado, realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROPEd-UERJ) e busca identificar como
professoras/professores constituem sua identidade profissional através dos fazeres e saberes de sua prática
cotidiana.
Palavras-chave: Memória – imagem – cotidiano

Abstract: Memory and imaging: everyday life poetics.


This paper, combining narrative and images in a process of constant movement – one leading to the other –
brings inte the scene certain commemorative events experienced in the Public State School Canada, in Nova
Friburgo, Rio de Janeiro, as marks of the school which are present in the memories of the professionals who
worked there since its inception in 1973 and in the 1980s and 1990s, clipped in this work. Varied other
reasons and facts were added to the official calendar of festivals to be celebrated, enabling the creation of
projects that characterized a fertile period of producion of knowledge and interdisciplinary activities in the
history of such institution of education. This work is connected to another academic production, a master’s
degree dissertation, conducted under the Program of Postgraduate Education at the University of Rio de
Janeiro (PROPEd-UERJ) and it seeks to identify how teachers form their professional identity through
activities and knowledge of their daily practice.
Keywords: Memory – image – daily practice

A vida não é a que a gente viveu, e sim a que


a gente recorda, e como recorda para contá-
la.
Gabriel García Márquez

Cada escola que conhecemos, visitamos ou em cujos corredores


transitamos como alunos ou professores, constitui, apesar das semelhanças, um
universo diferente. Em cada uma delas há uma atmosfera que lhe é específica,
situações de alguma forma não vividas em outras. Tantas escolas, tantas
histórias, personagens e ações, dramas e comédias, únicos, singulares. Múltiplos
fios e intrincadas tessituras tornam cada cenário único e irrepetível. O que dizer
então dos seus cotidianos? Ah, cotidianos escolares! Quanto nos ensinam em sua
[99]

diversidade, semelhança/diferença, espaços-tempos nunca imaginados como


realmente são.
O cotidiano é o palco onde as ações rotineiras acontecem, mas também é o espaço-tempo no
qual e através do qual se constitui a identidade profissional de professoras/professores e onde se dá
a tessitura das redes de subjetividades que, entrelaçadas a conhecimentos, valores e experiências,
nele propiciam a produção de conhecimentos – mesmo dos chamados conhecimentos científicos.
Em minha trajetória profissional, numa só escola na qual atuei por mais
de duas décadas, vivenciando o trabalho nas várias modalidades de ensino
oferecidas e nos diferentes horários, posso dizer que o cotidiano dessa escola
representava a vivência de escolas completamente diferentes (por segmentos e
turnos), apesar das equipes administrativa e pedagógica serem as mesmas.
Faziam-se reuniões comuns para toda a escola, para os segmentos e, ainda
assim, tínhamos escolas diferentes em pensamentos, sentimentos, desejos e
visões de mundo.
Em um só prédio, os praticantes com suas astúcias, como diz Certeau (1994), vivendo a
rotina e a riqueza do cotidiano, entrelaçando as ações pedagógicas por eles empreendidas às redes
de valores, crenças e conhecimentos de suas próprias vidas e do entorno, vão tecendo as artes do
fazer, pluralizando o que fora previsto para ser singular. Brincam com os mecanismos da disciplina,
parecendo a eles se conformar apenas para superá-los mais adiante. Burlando as malhas da
vigilância, os praticantes vão redesenhando, personalizando, ampliando possibilidades e produzindo
um cotidiano escolar imprevisível, dinâmico e complexo.

Para além de lugares e tempos percorridos, de emoções, alegrias e


tristezas vividas em minha memória, imagens de escola irrompem
prazerosamente. Enveredando por caminhos aparentemente já percorridos,
conto com as “astúcias” da memória para percebê-los, agora, com outras
significações, nas múltiplas faces que adquiriram com o passar do tempo e com
os deslocamentos espaciais.
A memória permite que nos apropriemos de um tempo-lugar, de muitos dos seus
acontecimentos, de fatos e de suas imagens. Neles colocamos roupagens ou adereços, tingidos pelo
imaginário com cores renovadas, que podem nos levar à fruição de um prazer superior ou nos
conduzir a recantos abissais. Essa posse presentifica o passado, traz-nos as recordações e ajuda-nos
a melhor reconhecer algo que é pretérito.

Essas viagens ao passado, através da memória, têm a capacidade de recuperar ocasiões e


fatos vividos, mesclando realidade e fantasia, aproximando real e imaginário, colocando lado a lado
[100]

sonhos e verdades. Aquele que lembra puxa o fio de um emaranhado de lembranças, de


experiências que são revigoradas pelos encantos do déjà vu e pelas possibilidades poéticas
oferecidas pela verbalização das emoções.

Trazendo Michel de Certeau (1994), procuro fortalecer as ideias colocadas anteriormente,


quando diz que a memória não é apenas passado, mas prevê as vias múltiplas do futuro. Para falar
de memória temos que falar de espaço e tempo. Um lugar lembrado (espaço) sofre a interferência
da memória ou do “momento oportuno” (kairós) que produz modificações nesse espaço. Ou seja, ao
nos lembrarmos de algum fato localizado em determinado espaço, por interferência do tempo,
temos nova imagem desse mesmo espaço e do fato acontecido. A memória é deslocável, móvel, sem
lugar fixo. Ela se constrói ligada à expectativa de que algo de estranho ao presente será produzido:
longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos possíveis, e de
esperá-los, vigilante à espreita (1994:163). A lembrança de um fato não se dá sempre do mesmo
modo e, em sua rememoração, não há compromisso com a possível “veracidade” do fato – cada
testemunha irá lembrá-lo segundo suas próprias experiências passadas e de acordo com os laços que
tenha no presente. A memória não está apenas no passado, mas possui vida no presente, com
propriedade de transformar os lugares anteriormente visitados.

Essas considerações sobre memória tornam-se prenhes de sentido ao trazer a este texto as
imagens de escola que tantas e tão agradáveis recordações me trazem. A memória, com sua
mobilidade, enquanto brinca com o passado e o presente, em seu vai-e-vem, proporciona ao
narrador encontros com lembranças, lugares autobiográficos e emoções supostamente esquecidas.
Trazer essas lembranças significa, muitas vezes, encontrar verdadeiros arquivos da própria vida –
lugares onde encontramos os rascunhos, desenhos e riscos do bordado de nossas existências. É
possível que nos deparemos também com alguns achados: acontecimentos que no tempo real se
apresentaram confusos, nublados e, agora, nos falam de outra maneira; outros poderão apresentar-se
como velhos cartões postais que nos enchem de saudades. Veremos os aprendizados, as
perplexidades, os tropeços, fracassos e sucessos que, constituindo nossa trajetória, fizeram o nosso
jeito de caminhar.

Referi-me, no início, à escola na qual atuei como professora e também como coordenadora
pedagógica e diretora durante alguns anos. Destes, numa visão especial que a memória
teimosamente destaca, sinto a movimentação irrequieta das crianças, vejo a alegria em seus rostos e
o brilho dos seus olhos nas “festas da escola”.

A Escola Estadual Canadá, no município de Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro, desde
sua criação no ano de 1973 e nas décadas de 1980 e 1990, contou com diretores e com muitos de
seus professores e funcionários que cultivavam o gosto e o esmero pelas muitas festas e
[101]

comemorações que realizava. Além do calendário oficial de festividades, sempre a ele se


acrescentavam outros motivos e fatos para serem festejados.

Como não trazer ao presente a Feira Artístico-Pedagógica, a FAPEC? Atividade marcante,


presença certa na memória de quantos dela participaram. Ambiente fértil para o transbordamento da
criatividade, para o desenvolvimento de pesquisas que mobilizavam todos os alunos. As múltiplas
habilidades de alunos e professores emergiam e fervilhavam como abelhas na colmeia. Colmeia –
será que o despertar em minha lembrança, dessa metáfora se faz ardilosamente pelos desvãos da
memória como uma representação fortemente significativa para os anos revividos nessa narrativa?
Sim. Foram eles doces, laboriosos, vividos intensamente, numa agitada faina que se agigantava a
cada novo dia, imprimindo ao cotidiano escolar um dinamismo e uma efervescência que hoje nos
causam espanto: como conseguimos realizar tantas tarefas, atender a tão diferenciados chamados e
expectativas? Que forças foram capazes de nos impulsionar, de manter vivos o desejo e a certeza de
que, naquele tempo-lugar, era o caminho a seguir. Mesmo sem os avanços atuais das tecnologias da
informação e da comunicação, mantínhamo-nos em conexão com outros lugares através de
correspondências, atividades interdisciplinares, atividades artístico-culturais.

Imagens de escola! Surgem vivas e alentadoras. Apresentam-se num paradoxo formado


pelas oposições agora-ontem, passado-presente, realidade-fantasia, encantamento-desencanto.
Evocam lembranças de momentos bem vividos, sem desconsiderar as desilusões e sofrimentos neles
também presentes – talvez, graças a estes, mais bem vividos.

A imagem é sempre uma representação. Embora existam esquemas mentais e


representativos universais, ligados à experiência comum a todos os homens, a leitura da imagem
não é universal. Sendo uma representação, ela assume variadas e complexas formas, de acordo com
as infinitas e múltiplas significações que cada indivíduo ou grupo social lhe atribui – intrincadas
tramas de elementos pessoais, sociais, culturais. Interpretar uma imagem não consiste em tentar
encontrar uma mensagem preexistente, mas em compreender o que essa imagem, nas circunstâncias
de tempo e espaço atuais, provoca de significações aqui e agora.

O efeito produzido pelas fotografias do passado naqueles que as contemplam não é o de


simples rememoração, não restitui aquilo que desapareceu pela ação do tempo ou pela distância,
mas confirma que aquilo que vemos existiu realmente (exceto pelas manipulações tornadas
possíveis pelos avanços tecnológicos). Ela não diz aquilo que já não é, mas apenas e com certeza
aquilo que foi. (...) A fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que a
invenção introduziu na família das imagens (BARTHES, 1998:120, 122).
[102]

Oliveira (2003) chama nossa atenção para a riqueza que emana das fotografias, sua
importância em nos possibilitar entender o entorno fotografado e como os seus atores a
compreendem, enquanto registro de determinado momento de suas vidas.

O olhar e o tempo – percepção de imagens que, no ontem, acariciavam nossa auto-estima –


ofereciam-nos a sensação do dever cumprido e o retrato de uma profissão aceita e reconhecida
como a sua.

Hoje, aqui e agora, leio nessas imagens uma história maior do que aquela que os seus
protagonistas poderiam imaginar ao vivê-la. Imersos num cotidiano de fazeres e saberes, dinâmico e
desafiador como se faz o cotidiano escolar, não percebemos ao vivê-lo o quanto nele estamos
mergulhados. A vida cotidiana é a vida de todo homem. É, também, a vida do homem inteiro [todo],
ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua
personalidade, como diz Agnes Heller (2000:17). No cotidiano nos fazemos pessoa e profissional.
Nele deixamos nossas marcas e, por ele, ficamos marcados.

Às vezes, parece-nos que ao nos dividirmos pelas várias atividades assumidas em nossas
opções de vida, ficamos “partidas” nelas. Olhando o que essas imagens representam, vejo-me
consciente da totalidade das vidas nelas entrelaçadas. Não mostram apenas profissionais no
exercício de funções: evidenciam pessoas que foram além das expectativas de uma profissão –
empenharam-se por inteiro no serviço e no amor a uma causa, naquele tempo e lugar. Múltiplos
fios e intrincadas tessituras estão presentes na constituição identitária do profissional da educação e
não nos escapa a complexidade de sua formação, bem como o valor de suas itinerâncias e errâncias
(MORIN, 1998). Porém, a equipe que deu sustentação às ações praticadas no período aqui retratado
forjou sua marca profissional num ambiente de estudo, de partilha, amizade e determinação em
favor de um trabalho de qualidade a serviço da escola pública.

Em Maturana (1998:22-23) encontramos um pensamento que ratifica a ideia apresentada


acima sobre a participação do amor como diferencial daquele grupo:

O amor é a emoção que constitui o domínio de ações em que nossas interações


recorrentes com o outro fazem do outro um legítimo outro na convivência. As interações
recorrentes no amor ampliam e estabilizam a convivência: as interações recorrentes na
agressão interferem e rompem a convivência (...) não é a razão que nos leva à ação, mas a
emoção.

A clientela da escola era formada, basicamente, por crianças e jovens pertencentes a famílias
possuidoras de poucos recursos financeiros. Alguns, excluídos até mesmo do essencial a uma vida
[103]

digna. A importância daquela escola como espaço de conhecimento, de vivência cultural e de


oferecimento de oportunidades diversificadas era plenamente sentida pelos profissionais que nela
atuavam. Esforços não eram medidos a fim de se atender a muitos dos reclamos da clientela.

Nesse contexto, a equipe administrativo-pedagógica, professores e funcionários da escola


passaram a oferecer àqueles alunos momentos de alegria e de especial carinho com a participação
em atividades comemorativas dos aniversários e do “Dia da Criança”. Assim, entraram no
calendário as festas de aniversário: por turnos, por grupos de alunos. Bolos confeitados, mesas
decoradas, com direito a “parabéns pra você” e tudo mais que é usado nas congêneres celebrações
familiares: primor, esmero e carinho – muito carinho.

Comemoração de aniversário de
alunos da Educação Infantil – década Participação de professores nas
de 1990. comemorações de aniversários dos
alunos -
década de 1990.
Do visível ao imaginário – as crianças como se comportavam? Como recebiam essas
“festas”? As fotos apresentadas neste texto não são as mais representativas do alvoroço, da
expectativa e do “brilho nos olhos” de pequeninos a adolescentes: todos ficavam tocados pela
alegria, pelo inusitado da festa e pelo prazer da homenagem – a maior parte do registro imagético
do colégio, especialmente as fotos de 1970/1980, foi destruída por um forte temporal que há alguns
anos inundou a escola e parte da cidade. Porém, em minha memória registro com nitidez
impressionante seus sorrisos, olhares gulosos e fisionomias alegres pela beleza da festa na escola.
Naqueles dias, a freqüência era quase total.
[104]

As comemorações tornaram-se “marca registrada” da escola. Não mais se limitavam ao


universo discente: aniversários de professores, funcionários, festejos, seguiam os mesmos rituais. O
empenho da equipe multiplicava-se. Os sorrisos e a alegria, também. Ocupar seu lugar na foto era
indispensável.

Comemoração de aniversário de Festejos dos 20 anos do C. E. Canadá


professores e funcionários – década – 1993.
de 1990.
As comemorações têm o poder de nos transportar a outros momentos semelhantes já vividos
e nos fazem refletir, fazer um balanço obrigatório do passado, além de nos permitir avaliar o
presente em transformação e imaginar o futuro desejado (MIGNOT, 2002)

As fotos dessas comemorações e de outros eventos da escola têm o poder de me fazer


arrumar, desarrumar, reclassificar, pontuar, interrogar esse passado e tentar descobrir que marcas ele
imprime, até hoje, em minha maneira de pensar, sentir e viver a profissão de professora.

A “Escola de Mães”, projeto que proporcionava às mulheres da comunidade cursos de


culinária, corte e costura, oportunizando complementação da renda doméstica, também não
dispensava o “clicar” da máquina para registrar suas obras.

Escola de Mães – aula de culinária

de 1990
[105]

Os aniversários do colégio, as “Festas do Livro”, festas natalinas, exposições pedagógicas,


olimpíadas, tudo era devidamente registrado e organizado em álbuns.

Festa do Livro – década de 1990. Auto de Natal – década de 1990.

Hoje, vendo nessas fotografias, a “pose”, a seriedade dos retratados, pergunto-me se seria
solicitação do fotógrafo ou se havia uma “ordem” superior aos ruídos e à alegria reinantes naqueles
momentos.

Rever e reler essas imagens foi uma oportunidade para retomar caminhos percorridos,
reencontrar companheiras, lembrar da alegria que víamos nos rostos das crianças, reconhecer
experiências e desafios compartilhados. E, ainda, um momento para agradecer a beleza do bordado
produzido às professoras da escola e a tantas outras que teceram/tecem de várias formas as redes
cotidianas do trabalho escolar.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.


CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte:
UFMG, 1998.
MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio. Baú de Memórias, bastidores de histórias: o legado pioneiro
de Armanda Alvaro Alberto. Bragança Paulista: EDUSF, 2002.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
OLIVEIRA, Inês Barbosa. Currículos Praticados: entre a regulação e a emancipação. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
[106]

O PROGRAMA BAIXADA DIGITAL E A BAIXADA FLUMINENSE:


UMA PROPOSTA SEM RESPOSTA

Sidney Cardoso Santos Filho


Mestre em Geografia (UERJ)
Faculdade de Filosofia Santa Doroteia
E-mail: [email protected]

Resumo
O presente artigo tem como objetivo analisar a intervenção do programa Baixada Digital na região
da Baixada Fluminense, no que tange a sua plataforma de inclusão digital, sociabilidade e
territorialidade.
Palavras-Chave: Baixada Digital – Inclusão Digital – Rede Wi-fi

Resumen
El artículo intenta analizar la intervención del programa “Baixada Digital” en la región de la
Baixada Fluminense, se privilegian las perspectivas de la inclusión digital, sociabilidad y
territorialidad.
Palabras-Clave: Baixada Digital – Inclusión Digital – Red Wi-fi

É por demais sabido que a principal forma de


relação entre o homem e a natureza (...) é dada pela
técnica. As técnicas são um conjunto de meios
instrumentais e sociais, com os quais o homem
realiza a sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria
espaço.
Milton Santos (2006:29)

1. O programa Baixada Digital e a dimensão passiva da Inclusão Digital.


Para entendermos a dimensão passiva da universalização dos sistemas telemáticos, devemos
entender que está dimensão deve-se a disponibilidade de equipamentos de conexão (computador,
modem, linha telefônica) e a existência de infra-estrutura física de transmissão (SORJ, 2003:63).
O computador e os seus aplicativos de conexão são os equipamentos mais comuns para o
acesso individual, mas o modelo de acesso baseado por meio da posse desses equipamentos precede
de questões ordem econômica. Warschauer (2003:56) afirma que ainda que o preço dos
computadores esteja caindo, o preço de compra constitui apenas uma pequena parcela do que pode
ser considerado o custo total de posse. O autor lembra que, além disso, este modelo de acesso
abarca a questão do custo dos softwares e manutenção, como a continua substituição do hardware e
[107]

software. Ora, neste caso, a posse do computador configura-se como um dos elos do que chamamos
de dimensão passiva da inclusão digital72.
De acordo com Santos (2006:181), a tecnologia atual se impõe como praticamente
inevitável, na medida que é um produto da história incorporado ao território e, em segundo lugar
por ser produtor da história. A tecnologia atual inscreve-se no território, de maneira que quanto
mais artificial o meio, maior exigência de uma racionalidade instrumental, que por sua vez, exige
mais artificialidade e racionalidade. Neste caso, dizemos que a dimensão passiva é também a base
instrumental da racionalidade digital do território.
Prover esta base instrumental é ampliar as possibilidades para conexão, e conseqüentemente
a inclusão digital. Mas devemos continuamente lembrar que a dimensão passiva da inclusão digital
deve-se não somente a relevância desta instrumentalização, mas ao escopo econômico que a
alicerça, principalmente a partir de políticas que minimizam os custos desta inclusão nos territórios.
Promover uma maior cobertura de serviços de Internet é suavizar o custo do acesso individual,
assim como, o barateamento dos custos dos equipamentos de conexão.
Em uma análise feita por Pires (2007:07), a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa – RNP,
sobre a área de cobertura dos serviços de Internet de banda larga fornecida pelo Atlas Brasileiro de
Telecomunicações de 2006, organizado pelo Grupo Editorial Converge, o autor descreve que a
extensão da estrutura de engenharia do território em rede no Brasil ainda é muito pequena e restrita
às áreas das grandes metrópoles. Isto demonstra que a dimensão passiva da inclusão digital,
segundo sua infra-estrutura física de transmissão, configura-se como um fator-problema para
universalização do acesso à Internet no Brasil interiorano.
O programa Baixada Digital é uma política pública que ecoa neste sentido, com objetivo
que prover a região da baixada fluminense de uma cobertura de serviços de Internet sem fio.
Enquanto o programa Baixada Digital vem com um proposta de instrumentalizar digitalmente o
território, outras políticas públicas se incorporam a está na região, como por exemplo, o programa
"Computador para Todos73” que vincula basicamente a sua ação no barateamento do computador
pessoal, uma de suas características versa na configuração de vinte seis (26) programas baseados
em software de código aberto.

72
Entendemos dimensão passiva da universalização dos sistemas telemáticos, como a dimensão passiva do acesso à
Internet, sendo o treinamento do uso dos instrumentos do computador e Internet; capacitação intelectual e a produção e
usos de conteúdos como uma apropriação ativa desse acesso. (SORJ, 2003:63).
73
“Esta empresas cumprirem o Processo Produtivo Básico nos termos das Leis nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, nº
8.387, de 30 de dezembro de 1991, e nº 10.176, de 11 de janeiro de 2001. Sítio:
http://www.mct.gov.br/html/template/frameSet.php?urlFrame=http://www.computadorparatodos.gov.br&objMct=Proje
to%20Cidadão%20Conectado%20-%20Computador%20para%20Todos Último acesso em 09/07/2008. Importa notar
que já em 2008 o programa “Computador para Todos” frisava um teto máximo para comercializado ao consumidor, de
R$1.400,00. Sítio: http://www.computadorparatodos.gov.br/participacao/index_html Último em 28/08/2008
[108]

A região da baixada fluminense, e seus municípios já presenciam nesta década, políticas


públicas que ressoam com objetivo de ampliar o processo de universalização dos sistemas
telemáticos, como é o caso do município de Duque de Caxias, que dispõem de uma oferta de
centros públicos de acesso à Internet gratuito, proporcionalmente pulverizada entre seus distritos:
“A disposição dos centros públicos de acesso à Internet, de cunho governamental, ocorre de
maneira pulverizada no município. A disparidade desta oferta de serviço em escala distrital
revela a própria pulverização dos pontos e a maior densidade de oferta destes serviços no
primeiro distrito e uma menor no quarto, apresentando uma relação direta com o número
populacional.”(SANTOS FILHO, 2009:19)

Vale ressaltar que as políticas focadas nas ações ofertadas pelos centros públicos de acesso à
Internet gratuito, entre eles os Telecentros74, Centros Comunitários, Quiosques e Cabines
Comunitárias, são de grande relevância social. Esses centros são um meio de conectividade pela
qual um indivíduo comum pode acessar a Internet sem prover de equipamento doméstico para
conexão (computador: software e hardware, provedor, e linha telefônica).
Estes centros disponibilizam aos seus usuários um amplo tear da dimensão passiva da
Inclusão Digital, mas ainda pouco representativo para baixada fluminense75. Dizemos que o
programa Baixada Digital, neste caso, surge com uma proposta dissonante as políticas de inclusão
digital já existentes na baixada, possibilitando uma nova reorganização dos espaços públicos e
provendo serviços de banda larga sem fio, aos indivíduos que dispõe de equipamentos de conexão.
Mas, como este programa se aplica? Quais os efetivos municípios ofertados? Tal política já
acontece? Qual retorno social desta política? Questionamentos que iremos problematizar nos
tópicos seguintes, na tentativa de um olhar mais apurado a cerca do programa, que, entendemos
como uma alternativa significativa à inclusão digital.

2. Aspectos da Territorialidade do Baixada Digital.

O projeto “Baixada Digital” é um programa que visa à implantação de uma rede de Internet
em banda larga sem fio gratuita “wi-fi”76 na região da Baixada Fluminense77. Esta teia digital

74
Os Telecentros têm, por definição, o objetivo de possibilitar as camadas menos favorecidas economicamente
residente de áreas periféricas de centros urbanos ou em áreas mais distantes desses centros o acesso as TICs. Para Sorj
(2003:67), os Telecentros constituem-se como o principal instrumento das políticas universalizantes de serviços de
Internet em países em desenvolvimento, além de serem uma resposta às necessidades de acesso de indivíduos sem
capacidade de custear o acesso à Internet em seus domicílios.
75
Temática defendida em dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro – UERJ de 2008, com o título: A territorialidade dos centros públicos de acesso à Internet
em Duque de Caxias. Disponível em http://cibergeo.org/atividades/index.html
76
A terminologia “Wi-Fi” é uma abreviatura wireless fidelity (fidelidade sem-fio), marca licenciada originalmente pela
Wi-Fi Alliance descreve a tecnologia de redes sem fios baseadas no padrão 802.11, padrão definido no ano de 1990,
pela o Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE). Percebe-se, ademais, uma rede social global sobre o
tema: http://www.mundowifi.com.br/forum/. Último acesso em 29/03/2010.
77
A região da Baixada Fluminense recebe no período hodierno múltiplas representações. O presente artigo prescreve
suas análises com base na perspectiva tratada por Oliveira (2004:29-40), como Baixada Política.
[109]

proverá acesso à Internet sem fio as unidades públicas da região, Telecentros, hotspot em praças,
bem como acesso gratuito às residência.
Segundo o boletim da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro-
FAPERJ78, um dos parceiros na estruturação do projeto79 alcançaria os municípios de Duque de
Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de Meriti, Nilópolis, Mesquita, Magé, Guapimirim,
Queimados, Japeri e Paracambi, somando um total de onze municípios metropolitanos. Neste
contexto, o projeto ocuparia uma área de 2.257,1 Km², atingindo um total populacional de
3.464.247 (segundo dados do Centro de Informações e Dados Estatísticos – CIDE de 2005), ver
mapa abaixo.

Mapa – Área de atuação do Programa Baixada Digital no Estado do Rio de Janeiro

Fonte: Programa Baixada Digital.


Organizado por: Giselma Pessoa, 2008.

O programa que deveria ter iniciado no segundo (2°) semestre de 2008, segundo a
programação inicial, até presente momento sua ação não se constitui como fato para maioria dos
moradores da baixada80. A obscuridade dos fatos, a proposta de ação prescrita pelo programa como,
por exemplo, as unidades atendidas pelo programa em cada município, a proposta de inclusão

78
Guedes Freitas - Jornalista da Assessoria de Comunicação Social do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sítio da
FAPERJ: http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=4270 Último acesso em 25/09/2008.
79
O agrupamento de municípios vislumbrado pelo programa Baixada Digital destoa da regionalização proposta pelo
SEDEBREM para Baixada Fluminense, deixando de fora os municípios de Seropédica e Itaguaí.
80
Sítio: http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=17819&sid=14 Último acesso em
29/03/2010.
[110]

digital que precede o programa, bem como a interlocução com projetos de inclusão digital
municipais, ficaram durante todo segundo semestre de 2008, e nos onze (11) primeiros meses de
2009 aquém do vislumbre da sociedade atingida pelo projeto81. Os fomentadores do programa,
durante o período apresentado, o governo do estado, por meio da Secretaria de Ciência e
Tecnologia, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, a
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, a Universidade Federal Fluminense – UFF e a
Associação Estadual de Municípios do Rio de Janeiro – AEMERJ, discorreu sobre o programa de
maneira muito pontual, em sites registrados e na mídia em geral, descrevendo apenas o custo 82 do
projeto e o período para implementação: A proposta do programa Estadual de Cidades Digitais é
integrar todos os municípios do estado por meio da Internet. A previsão é atender todo estado em
18 meses, com investimentos de R$ 40 milhões.
Segundo a AEMERJ, o projeto Baixada Digital é parte do programa Estadual de Cidades
Digitais. O conceito de Cidade Digital tratado por Tacman (apud ISHIDA, 2002:104-105) é
entendido como sendo uma cidade que integra informações urbanas em tempo-real, criando espaços
públicos para os cidadãos, é o que, porventura, propõe o governo do Estado do Rio de Janeiro com
este projeto, que visa atender a região da baixada com uma política de inclusão digital bem próxima
da postulada pelo programa Piraí Digital83, programa que se configura como um bom exemplo de
inclusão social para o país:
“É necessário também cultivar e disseminar, no território, o legado deixado por experiências
locais que favorecem a promoção de soluções e alternativas de políticas sociais de inclusão
digital, como foram os casos dos municípios de Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, e de Sud
Mennucci no Estado de São Paulo” (PIRES, 2007:12).

No caminhar da proposta apresentada pelo programa, o Governo do Estado do Rio de


Janeiro, inaugurou no dia 22 de julho de 2008, alguns hotposts84 público em uma “área piloto85” no
Bairro de Copacabana, escolhida principalmente em função do seu potencial turístico86,
inicialmente disponível em uma parte da praia, mas já presente toda orla87. É importante descrever
que o anuncio do prazo para implementação do projeto propalado pelo governo estadual para uma
rede “wi-fi” na baixada fluminense tornou-se uma proposta ainda sem resposta, pois o que vemos

81
“O programa Rio Estado Digital inaugurou o projeto Baixada Digital na manhã dessa quarta-feira, dia 02 de
dezembro, na Praça do Pacificador, Centro de Duque de Caxias.”
http://www.baixadadigitalrj.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=29. Último acesso em
29/03/2010.
82
Sítio: http://www.aemerj.org.br/aemerj/constitucional/noticia.asp?iId=80405 Último acesso em 18/05/2008.
83
Sítio: http://www.agencia1.com.br/piraidigital/page/tecnologia.asp Último acesso em 09/07/2008.
84
“Um hotspot é um ponto de acesso sem fio onde os usuários podem conectar a uma rede ou internet. Geralmente, eles
são encontrados em locais públicos e podem ser acessado, contato que os dispositivos dos usuários (laptops, PDAs,
notebooks, etc) possuam chipsets (ou placas) WI-FI.” (LEMOS, 2007:51-52)
85
Sítio: http://diariodorio.com/menos-governador-internet-sem-fio-em-copacabana-s-para-quem-tem-notebook/ Último
acesso em 03/04/2010.
86
Sítio: http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u424821.shtml Último acesso em 28/07/2008.
87
Sítio: http://www.youtube.com/watch?v=YTUbg9tAoPc Último acesso em 04/03/2010.
[111]

até (o presente) momento é ação pontual do programa, tanto na orla de Copacabana, quanto na
região descrita pelo programa Baixada Digital.
O programa Baixada Digital configura-se como um elo significativo, no que tange uma
estruturação de uma teia digital sem fio gratuita para região da baixada fluminense, mas o programa
foi somente inaugurado no primeiro semestre deste ano, como uma proposta (primaz) de cobertura
em apenas cinco dos municípios da região88, anteriormente anunciado pelo governo estadual. A
iniciativa coberta 1,7 milhão de pessoas89, assim como 100% do território de São João de Meriti,
60% de Duque de Caxias e Belford Roxo e 20% dos municípios de Nova Iguaçu, Mesquita e
Nilópolis.
A oferta de espaços de mobilidade possibilita o acesso sem fio gratuito em praças, calçadões
e etc, onde um indivíduo pode ter acesso à rede mundial de computadores em dispositivos móveis,
como por exemplo, Laptop wirelles, iphone, smarphones. Até dado momento, estes espaços de
mobilidade específicos para o acesso, também chamados de hotposts podem ser encontrados em
apenas cinco pontos90 da região91. A estruturação desses espaços possibilitam uma reorganização
econômica desses lugares, novas centralidades que ainda não podem ser percebidas pela população
local, sobretudo em função da qualidade do acesso92. Neste sentido, quais perspectivas o programa
têm deixado de prover?

3. Baixada Digital: uma proposta sem resposta.

A dimensão passiva da universalização dos sistemas telemáticos prescreve da


disponibilidade de conectivos, neste caso, linha telefônica e provedor de internet, segundo
demonstra Pires (2007:07), ao problematizar os dados levantados pela Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios – do ano de 2005, o autor expõem que a expansão dos serviços de Internet
ainda esta longe de atingir todo território nacional:
Ora, o que se pode apreender com tudo isso é que mesmo com todo o avanço e crescimento
alcançados pela expansão dos serviços de Internet no Brasil, dos 5.564 municípios do território
nacional, apenas 2.560 possuem provedor de Internet, ou seja, só 46% possui este serviço (Cf.
PNAD, 2005). Apesar do enorme potencial que estes municípios possuem para oferecer
serviços de Internet à sua população, segundo a wnews, só 6,7% dos domicílios dessas
municipalidades têm acesso à banda larga.

88
Sitio: http://www.baixadadigitalrj.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=29:baixada-digital-e-
inaugurado-na-baixada-fluminense-&catid=6:noticias&Itemid=6 Último acesso em 04/03/2010.
89
Sítio: http://www.baixadadigitalrj.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6&Itemid=5 Último
acesso em 04/03/2010.
90
Estes espaços distribuídos em dois dos municípios: Praça do pacificador – Caxias; Calçadão – Caxias; Av. Presidente
Kennedy – Caxias; Avenida Brigadeiro Lins e Silva – Caxias; Praça Matriz - São João de Meriti; Praça da Prefeitura -
São João de Meriti.
91
Sítio: http://www.baixadadigitalrj.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=15&Itemid=17 Último
acesso em 04/03/2010.
92
Sítio: http://www.youtube.com/watch?v=MrDeTXLzQA4 Último acesso em 04/03/2010.
[112]

O autor revela, ainda, com o fragmento acima, uma modesta participação no quantitativo de
municípios que dispõem de conectivos para Internet. O provimento destes conectivos,
especialmente o acesso com uso de banda larga, precede de um elevado custo para boa parte da
população brasileira93, como podemos perceber no quadro abaixo.

Quadro – Percentual do tipo de acesso em residência, segundo renda per capita domiciliar.
Tipo de conexão à Internet no domicílio e Percentual de Percentual de acesso
renda per capita mensal. acesso discado com banda larga
57,4%. 36,3%
Sem rendimento a 1 salário mínimo (3) 10,7 3,6
Mais de 1 a 2 salário mínimos 29,0 13,8
Mais de 2 a 3 salário mínimos 20,7 15,3
Mais de 3 a 5 salários mínimos 19,9 23,3
Mais de 5 salários mínimos 16,8 39,3
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/2005 (Acesso à Internet e Posse de Telefone Móvel
Celular para Uso Pessoal), tabela 1.40.2 e tabela 1.41.2.
Organizado por: SANTOS FILHO, Sidney Cardoso, 2009.

De acordo com os dados organizados no quadro acima, a maior parte do acesso com banda
larga (62,6%) corresponde a residências com mais de três salários mínimos per capita mensal,
enquanto a maior aparte do acesso discado (60,4%), corresponde a residências com até três salários
mínimos per capita mensal. Em comunidades carentes do município do Rio de Janeiro o acesso à
banda larga é irrisório, praticamente todos os usuários que acessaram a Internet do domicílio
utilizaram acesso discado de baixa velocidade, sendo que dois terços utilizam provedores gratuitos
(SORJ & GUEDES, 2005:38). O descompasso do potencial do acesso apontado neste parágrafo
ilustra o que Castells (2003:210) descreve como a nova divisão tecnológica:
Assim que uma fonte de desigualdade tecnológica parece estar diminuindo, uma outra surge: o
acesso diferencial a serviço de banda larga de alta velocidade (atualmente usando tecnologias
como rede digital de serviços integrados (ISDN), linha de assinantes digital (DSL), modens de
cabo, e, num futuro próximo, a cesso sem fio à Internet (WAP), o qual, aliás é em geral de
banda estreita no momento em que escrevo).

Ora, podemos dizer que a qualidade do acesso é hoje o principal vetor da inclusão digital,
uma ordem que acaba por provocar andares de uma desigualdade digital. Prover uma cobertura de
serviços de Internet banda larga é diminuir tal desigualdade. Cabe salientar, que o presente artigo
não se propõe a problematizar a comunhão de fatores de ordem econômica indispensáveis para

93
Este dado precede do quantitativo de usuários que acessam à Internet domiciliar. Segundo a PNAD/2005 o total de
usuários de Internet domiciliar é de 16.064.673 de brasileiros (corresponde apenas 50% do total de usuários no Brasil.)
[113]

recepção do sinal, especialmente nos lares cobertos pelo programa94, neste caso, citamos o fato de
que acesso residencial é condicionado a aquisição de uma antena de recepção95.
Assim sendo, a proposta do programa Baixada Digital é prover a região da baixada com
uma rede de banda larga sem fio gratuita, uma política pública que tem com intuito redefinir a
condição do acesso, em residência e praças, não se configura como realidade para muitos
municípios “ditos” cobertos pelo programa96. As redes sociais tem sido desde a sua implementação,
um observador crítico97 do programa, na busca por uma rede segura98 é veloz que realmente atenue
as novas desigualdades digitais.

4. Considerações Finais

O programa Baixada Digital é uma condicionante, digamos, sem precedente para região da
baixada, a proposta de uma rede Wi-Fi gratuita disponível em residências e praças re-escreve
dinâmicas sociais e geográficas no âmbito da inclusão digital. Mas, tal proposta é até o presente
momento face de uma política ineficiente e sem resposta.
Neste sentido, quais redefinições geográficas o Baixada Digital proverá? Qual resposta
social o programa irá promover? Questões que até dado momento ainda não podem ser percebidas
pela população da baixada. É por demais sabido, que a presença de uma política não se confunde a
sua eficácia.

Referências Bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

94
O Kit Baixada Digital pode ser encontrado na rede por R$ 179,99. Este Kit é indispensável para o acesso residencial.
Sítio: http://saojoaodemeriti.olx.com.br/kit-baixada-digital-com-tecnologia-qos-iid-60135835 Último acesso em
04/03/2010.
95
Sítio: http://www.baixadadigitalrj.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=19&Itemid=20 Último
acesso em 04/03/2010.
96
Rio - Um dia depois da inauguração da rede de Internet sem fio gratuita na Baixada Fluminense, a frustração tomou
conta de moradores, que não conseguiram acessar a rede oferecida pelo Programa Baixada Digital. “Testei em quatro
pontos da cidade e não consegui conectar. Estava esperançoso em conseguir Internet gratuita, mas pelo que estou
vendo, a opção vai ser ainda continuar pagando pelo serviço”, lamentou o produtor cultural Alberto Aquino, 48 anos,
morador de Nova Iguaçu.
Sítio: http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2009/10/baixada_digital_a_meia_bomba_38143.html Último acesso em
04/03/2010.
Representantes das prefeituras de Mesquita, Belford Roxo e São João de Meriti anunciaram ontem, após reunião, que
vão cobrar do governo do estado uma definição sobre o Baixada Digital. Segundo eles, o programa de banda larga
gratuita está funcionando de forma precária desde a inauguração, no dia 2 de dezembro, e que há dezenas de
reclamações por dia. Sítio: http://www.cidademeriti.com.br/blog/tag/baixada-digital/ Último acesso em 04/03/2010
97
Sítio: http://twitter.com/baixada_digital Último acesso em 04/03/2010.
98
Sítio: http://ubuntuforum-br.org/index.php?topic=62514.0 Último acesso em 04/04/2010.
[114]

GUEDES, Luís Eduardo; SORJ, Bernardo. Internet na Favela Quantos, quem, onde, para quê. Rio
de Janeiro: Gramma, 2005.
LEMOS, André. Cidade Digital: portais, inclusão e redes no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007.
OLIVEIRA. Rafael. da S. Baixada Fluminense. Novos estudos e desafios. Rio de Janeiro:
Paradigma. 2004.
PIRES, Hindenburgo Francisco. Ciberespaço, Migração Digital e Acesso Livre à internet: O caso
das Redes "Wi-Fi" Municipais Brasileiras. In: IX Colóquio Internacional de Geocrítica – Los
Problemas del Mundo Actual. Soluciones y Alternativas desde la Geografía y las Ciencias Sociales
Porto Alegre, 2007. Sitio: http://cibergeo.org/artigos Último acesso em 15/08/2009.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 4 ed. 2 reimpr. São
Paulo: Edusp, 2006.
SANTOS FILHO, Sidney Cardoso. A organização espacial das lan houses em Nova Friburgo. XV
Encontro Nacional de Geógrafos, São Paulo: USP, 2008. ISBN 978-85-9859-86-11
_________________. A cartografia dos centros públicos de acesso à Internet no município: uma
face da inclusão dos territórios. Revista Pilares da História, ano 8, nº 9, 2009. ISSN 1983-0963
SILVA, Michéle Tancman Cândido. A (ciber)geografia das cidades digitais. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2002.
SORJ, Bernardo. [email protected]: a luta contra a desigualdade na sociedade da informação. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar/ Brasília: Unesco, 2003.
WARSCHAUER, Mark. Tecnologia e inclusão social: a exclusão digital em debate. São Paulo:
Senac São Paulo, 2006.
[115]

RESENHA

HISTÓRIAS LUSÓFONAS DAS MARGENS DO ÍNDICO: AS MÃOS DOS


PRETOS - ANTOLOGIA DO CONTO MOÇAMBICANO99

Anselmo Peres Alós


Dr. em Literatura Comparada (UFRGS)
Professor-Leitor de Língua Portuguesa, Literaturas Lusófonas
e Cultura Brasileira no Inst. Sup. de
Ciência e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM)
[email protected]

No campo dos estudos sobre a Literatura Brasileira, uma das linhas de pesquisa mais
profícuas atualmente é aquela dedicada ao revisionismo e à releitura dos cânones e da historiografia
consagrados pela crítica. Um exemplo pungente destas atividades de investigação pode ser dado
pela recente “arqueologia literária” realizada por pesquisadoras brasileiras ao questionarem a
invisibilidade da literatura de autoria feminina produzida no Brasil ao longo dos séculos XIX e XX.
Ao reavaliar criticamente os motivos que levara à exclusão das escritoras brasileiras no século XIX,
as pesquisas apontam para o fato que foi em função de interesses políticos, e não estéticos, que as
vozes das mulheres escritoras foram silenciadas e excluídas dos manuais, dos dicionários
bibliográficos e das histórias literárias no Brasil100.
Todavia, há de se lembrar que outras nações de língua portuguesa (como o Timor Leste, por
exemplo) apenas recentemente obtiveram o reconhecimento de sua soberania nacional. O
estabelecimento do cânone literário de uma nação não é apenas um projeto estético, mas também
um projeto político, projeto este que está permeado de interesses relativos à construção de uma
imagem mais ou menos definida da identidade nacional. Fica evidente, assim, o fato de que as
nações de recente independência política (tais como Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe,
Guiné-Bissau e Cabo-Verde) ainda se encontram em processo de estabelecimento de seus cânones
nacionais. Isto pode ser atestado pelo fato de que, fora desses países, a reflexão sobre as literaturas
africanas em língua portuguesa se dá “em bloco”, pensando-se na maioria das vezes em um
conjunto de nações africanas cujas literaturas são majoritariamente escritas em português. Este
gesto crítico muitas vezes termina por rasurar diferenças irredutíveis entre diferentes literaturas

99
SAÚTE, Nelson (organização e prefácio). As Mãos dos Pretos: Antologia do Conto Moçambicano. 2 ed. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 2002.
100
SCHMIDT, Rita Terezinha. “The Nation and its Other”. Revista Conexão Letras. Porto Alegre (UFRGS). Volume 1,
número 1, 2005 (p. 86-110).
[116]

nacionais africanas101. Entre as obras que realizam esta reflexão “em bloco”, cabe mencionar, a
título de exemplo, livros reiteradamente citados, tais como Literaturas Africanas de Expressão
Portuguesa, de Pires Laranjeira102, Estudos sobre Literaturas Africanas das Nações de Língua
Portuguesa, de Alfredo Margarido103, e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, de Manuel
Ferreira104. As reflexões sobre as particularidades nacionais de cada uma dessas tradições literárias
vêm sendo trabalhada em estudos monográficos, nos quais, na maioria das vezes, a atenção central é
dedicada a uma obra ou a um escritor em especial, e não ao corpus de obras de cada uma dessas
nações em particular.
Este gesto crítico carrega em si a ameaça de um novo colonialismo, a partir do qual
substantivos como “angolanidade” e “moçambicanidade” passam a ser definidos a partir do olhar
estrangeiro, em particular da crítica literária brasileira e portuguesa. Laura Cavalcante Padilha 105, ao
investigar a ausência de nomes femininos no rol das antologias de literatura africana, apercebe-se
deste fato:
“Lembrando o fato de o acervo crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora
da África - na Europa e nas Américas, com Portugal e Brasil à frente - começamos por
questionar até que ponto o cânone, “consagrado” por outras vozes que não as africanas,
submeteu-se aos mesmos mecanismos de dominação e poder que sempre tiveram como
meta elidir as diferenças, sobretudo se o objetivo recortado são questões como as de
gênero e raça” (PADILHA: 1997, p. 62).

A preocupação de Padilha, no tocante à repetição do colonialismo no gesto hermenêutico de


avaliação das literaturas africanas se dá particularmente em função das diretrizes de sua
investigação, que dedica especial atenção à exclusão e ao silenciamento das mulheres como
produtoras de capital simbólico nas nações africanas. A preocupação com o fato de que o discurso
crítico que se ocupa destas produções tem sido de origem exógena aos contextos de produção aflige
tanto os críticos comprometidos com questões de gênero e raça quanto os próprios escritores
africanos. O poeta angolano José Luís Mendonça, em recente entrevista106, afirmou que “Angola é
um país onde ainda não existe uma crítica literária audaz e regular”. Com relação ao papel da crítica
brasileira na consolidação e legitimação de um corpus literário relativo às literaturas africanas em
língua portuguesa, Mendonça diz que “os críticos brasileiros aplaudem tudo o que se produz aqui
[na África] e lhes chega às mãos. Ora, o próprio poeta, o escritor em geral, também precisa que se
101
Pode-se mencionar aqui a importância da insularidade para a poesia de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, um
aspecto com relevância relativamente menor para lírica das nações continentais como Angola e Moçambique.
102
PIRES LARANJEIRA. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Lisboa. Universidade Aberta, 1995.
103
MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: A Regra do
Jogo, 1980.
104
FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Lisboa: ICALP, 1987.
105
PADILHA, Laura Cavalcante. “A Diferença Interroga o Cânone”. In: SCHMIDT, Rita T. Mulher e Literatura:
(Trans)Formando Identidades. Porto Alegre: Palloti, 1997. pp. 61-69.
106
MENDONÇA, José Luís. “Carlos Drummond continua a fascinar-me”. Entrevista concedida à revista Poesia
Sempre. Número especial dedicado à poesia de Angola e Moçambique. Número 23, ano 13. Brasília: Ministério da
Cultura, 2006. pp 17-20.
[117]

diga em que aspectos pode melhorar sua obra” (p. 20).


É neste contexto de discussão que se destaca o trabalho realizado pelas antologias literárias,
cujo principal mérito é o de organizar uma amostragem diacrônica destas literaturas frequentemente
descritas como “emergentes”. No caso específico de Moçambique, importa destacar o trabalho que
vem sendo realizado por Nelson Saúte. Em 1989, juntamente com Fátima Mendonça, Saúte
organiza a Antologia da Nova Poesia Moçambicana: 1975-1988107, dada à estampa em 1989. Em
1992, desta vez em parceria com António Sopa, organiza A Ilha de Moçambique pela Voz dos
Poetas108, uma antologia de poesias versando sobre a mítica Ilha de Moçambique, situada ao norte
do país, na Província de Nampula. Todavia, seu trabalho de maior fôlego como antologizador é As
Mãos dos Pretos, publicado em 2001. O sucesso de seu trabalho junto ao público interessado pela
literatura moçambicana foi tal que, apenas um ano depois de seu aparecimento, já estava a segunda
edição vindo à lume.
Há, em Moçambique, a necessidade de se realizar uma arqueologia literária que resgate a
contística moçambicana, visto que um abundante número de narrativas que primeiramente
apareceram em jornais e suplementos literários nunca chegou a ser publicado em livro. Tal como
afirma Saúte, “as páginas literárias, que desapareceram praticamente do nosso panorama mediático
nos sombrios anos 90, tiveram uma importante função no surgimento e na publicação de poetas e
contistas desde sempre. Algumas das experiências mais curiosas neste campo advêm das
publicações e dos suplemetos culturais dos periódicos” (p. 14). O próprio Saúte, no prefácio à
antologia, assinala que foi necessário remonar às esquecidas páginas do Itinerário, um importante
periódico cultural moçambicano das décadas de 40 e 50, com vistas a resgatar textos de Rui
Knopfli, Ruy Guerra e Virgílio de Lemos. Cada um destes contistas teve, em As Mãos dos Pretos,
pelo menos um conto resgatado das páginas do Itinerário. Pela primeira vez, depois de quase meio
século, contos como “Zampungana”, de Virgílio de Lemos (1954), “A Negra Rosa”, de Ruy Guerra
(1949) e “Lumina”, de Rui Knopfli (1949) são publicados em livo e colocados novamente à
disposição do leitor.
A leitura dos contos que compõem As Mãos dos Pretos evidencia a marca da violência, da
contestação e da denúncia como elementos constitutivos da imaginação literária moçambicana.
Talvez, nesta vocação para o “libelo acusatório” (expressão utilizada por Saúte para caracterizar a
literatura moçambicana pós-independência) resida uma das grandes forças da narrativa
moçambicana. Herdeiro das cicatrizes do colonialismo recente, é impossível para o escritor
moçambicano da segunda metade do século XX (ou mesmo dos primeiros anos do século XXI) não

107
SAÚTE, Nelson e MENDONÇA, Fátima (organização). Antologia da Nova Poesia Moçambicana: 1975-1988.
Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1989.
108
SAÚTE, Nelson e SOPA, António (organização). A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas. Lisboa: Edições 70,
1992.
[118]

fazer referência a presença constante da violência na imaginação coletiva dos seus compatriotas. A
morte, o assassinato e o suicídio são temas recorrentes a receber tratamento literário por parte dos
contistas moçambicanos, particularmente nas décadas de 80 e 90, quando a luta pela independência
deu lugar à conflitos internos que findam apenas no final da década de 90. Veja-se por exemplo,
contos como “Lukutúkuè”, de Ascêncio de Freitas, no qual o personagem-título, após ver seu filho
Zeca morto pela PIDE109, comete suicídio arrancando os próprios testículos com sua lâmina de
barbear, jogando-os aos pés dos milicianos colonialistas e gritando: “Toma pra vocês, toma... vocês
pricisa, pra matar todo Zeca Lukutúkuè” (p. 92). Merece destaque também o conto “Caringana wa
Caringana”, de Raul Honwana, no qual a cumplicidade dos chefes tribais moçambicanos com o
tráfico de escravos português é denunciado de maneira pungente e dolorosa, através do ponto de
vista de um pai que tem sua filha arrancada da família e entregue aos mercadores de escravos.
Ao longo de suas mais de quinhentas páginas, a antologia realiza uma mostra representativa
de trinta e quatro contistas moçambicanos. Saúte tenta, simultaneamente, conciliar a presença de
constistas consagrados, tais como Mia Couto, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa, com a de
contistas cuja obra foi publicada unicamente em jornais e suplementos literários, tais como
Heliodoro Baptista. Tal como afirma no prefácio à antologia, “também quis resgatar aqueles que
teriam deixado o seu testemunho ficcional nos jornais. É a antologia possível, que reflete, de certo
modo, a ficção que surge em Moçambique” (p. 21). Todavia, há que fazer uma ressalva: ao
contrário do que se possa imaginar, os contos reunidos na antologia não possuem uniformidade no
que diz respeito ao requinte do trabalho realizado sobre a linguagem, ou mesmo na escolha dos
temas a serem narrativizados. Isto pode ser notado particularmente em alguns dos escritores
contemporâneos antologizados, os quais, ao tentar fugir dos scripts narrativos tradicionais, em
nome de uma ficção supostamente urbana, não conseguem senão construir relatos prosaicos e
superficiais, por vezes manchados com alguns respingos de crítica social. Tais contos podem, por
vezes, parecer retratos realistas e socialmente comprometidos do cotidiano maputense, em especial
aos olhos do leitor brasileiro ou português; mas para o conhecedor da dinâmica social na capital
moçambicana, tais escritos não passam de um inventário de levianidades, já discutidas à exaustão
dentro e fora das instituições literárias e – mais grave ainda – descritas em uma linguagem que
carece de status literário.
Mia Couto, talvez em função do reconhecimento internacional que vem recebendo, acabou
por tornar-se um modelo literário exaustivamente repetido por alguns escritores que, infelizmente,

109
A PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) cumpria o papel de polícia política em Portugal, realizando
violenta repressão contra qualquer oposição ao regime salazarista. A PIDE teve uma participação violenta na repressão
dos movimentos independentistas nas ex-colônias portuguesas. Ainda que não se tenha evidências oficiais, a PIDE é
considerada responsável pelo atentado que resultou na morte de Eduardo Mondlane (então dirigente da FRELIMO), em
3 de fevereiro de 1969, e pela manipulação de alguns membros descontentes do PAIGC, os quais levaram a cabo o
assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973.
[119]

não conseguem alcançar o mesmo refinamento linguístico do autor de contos memoráveis como
“Rosalinda, a Nenhuma”, “As Flores de Novidade” e “Ofélia e a Eternidade”, todos incluídos em As
Mãos dos Pretos. Alguns dos recursos estilísticos utilizados por Mia Couto, tais como a transcrição
de provérbios tradicionais em sua prosa, a reinvenção da língua através da subversão da sintaxe-
padrão do português culto, ou o hábil manejo na inovação lexical através de inusitadas combinações
léxico-fonéticas (como, por exemplo, o verbo “nenufarfalhar”, em Histórias Abensonhadas110) não
são manejadas com tanta habilidade por alguns escritores que começam a publicar seus escritos
depois a partir da segunda metade dos anos 90, cujos nomes e escritos estão incluídos na antologia
de Saúte.
É o próprio organizador da antologia o primeiro a salientar a existência de alguns desníveis
entre os contos, no que diz respeito à sua “expressão inventiva”. Ainda no prefácio, Saúte afirma:
“Ao reler alguns dos autores aqui reunidos, ao confrontar-me com tantos outros que
distraidamente não lera, fiquei dividido entre o espanto da descoberta de uma literatura
pujante e a necessidade de valorização de alguns outros autores que não têm,
provavelmente, a mesma expressão inventiva. Mas, sabe-se, uma literatura não é feita só
de grandes obras. Pelo que os outros também cabem no bojo desta viagem” (SAÚTE:
2002, p. 22).

Entretanto, isso não é demérito da antologia, mas sim uma de suas próprias condições de
possibilidade. Em seus esforços por realizar o que chamou de “antologia possível”, cumpre destacar
o trabalho de investigação e seleção realizado por Saúte, que obteve, como resultado, uma das mais
representativas antologias da prosa moçambicana até então publicadas. Nelson Saúte não apenas
escava os arquivos literários das bibliotecas maputenses, permitindo que contos de autores por
vezes esquecidos voltem a circular entre os leitores. Seu permanente diálogo com escritores
contemporâneos ligados à Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO) permitiu, inclusive, a
incorporação de alguns texto inéditos para a antologia, tais como os contos “Ofélia e a Eternidade”
e “A Confissão de Tãobela”, ambos de Mia Couto, “O Contador dos Dias”, de Júlio Bicá, ou “O
Regresso do Vovô Siquice”, de Tomás Vieira Mário.
Infelizmente, mesmo em tempos de economias e culturas globalizadas, dificilmente o leitor
brasileiro ou português conseguirá encontrar os livros de autores moçambicanos que não tenham
sido legitimados pelo gosto das editoras brasileiras e portuguesas. É possível afirmar sem
pusilanimidade alguma que esta antologia cumprirá um importante papel no estabelecimento de
parâmetros avaliativos para a história do conto moçambicano, da mesma maneira que possibilitará
aos leitores estrangeiros travar conhecimento com autores cujos escritos dificilmente ultrapassam a
barreira geográfica dos oceanos Índico e Atlântico.

110
COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas. Lisboa: Caminho, 1994.
[120]

RESENHA

HISTÓRIA REGIONAL E ESCRAVIDÃO

João Raimundo de Araújo


Titular de História do Brasil da FSD
Dr. em História Social pelo PPGH-UFF

LISBOA, E. de C.; MAYER, J.M. Os crimes da Fazenda Ponte de Tábuas – Um estudo sobre a
escravidão em Nova Friburgo no século XIX, Nova Friburgo: Marca, 2008.

O crescimento da pesquisa histórica no Brasil a partir do desenvolvimento dos cursos de


pós-graduação desde o último quartel do séc. XX tem trazido interessantes resultados, seja na
revelação de fontes, ou na produção de novos e enriquecedores estudos historiográficos. Este é o
caso da obra em questão.
Acrescente-se ainda o fato de tratar-se de uma pesquisa que se enquadra perfeitamente nos
pressupostos da chamada História Regional. Um trabalho de pesquisa nos arquivos do Cartório do
2º Ofício do município de Nova Friburgo possibilitou a descoberta de um processo criminal de
1850, que tratava de um conflito entre feitores e escravos da Fazenda “Ponte de Tábuas”, localizada
nas proximidades do atual distrito de Conselheiro Paulino. A importância da descoberta desta fonte
transcende os limites do município, já que, sem dúvida alguma, trata-se de interessantíssimo
documento para o estudo da escravidão brasileira em geral e, não menos importante, para o estudo
da escravidão na Vila de São João Batista de Nova Friburgo.
Durante longos anos, alguns intelectuais encarregados de escrever a história oficial de Nova
Friburgo perseguiram o lema da criação da “Suíça Brasileira”, a partir da chegada dos imigrantes
suíços no início de 1820. Tratava-se de uma colônia criada por um decreto Real (16 de maio de
1818) e que seria responsável pela implantação, em plenos trópicos, de uma comunidade baseada na
pequena propriedade e na predominância do trabalho de homens e mulheres livres. Desse modo, a
escravidão negra, que se alastrou por áreas rurais e cidades do Brasil, não caracterizaria a colônia
dos suíços em Nova Friburgo. Entretanto, a criação, nos anos 80, de um grupo de pesquisadores
oriundos do meio universitário - Departamento de História da UFF e da Faculdade S. Doroteia -
baseados nos pressupostos da História como “ciência em construção” veio a mudar radicalmente o
rumo dessas questões, estimulando a pesquisa de fontes históricas e a elaboração de teses,
dissertações e monografias sobre Nova Friburgo. Ressalte-se o pioneirismo da obra A Gênese de
Nova Friburgo, do historiador suíço Martin Nicoulin, publicado pela Editora da Biblioteca
Nacional, redefinindo o debate sobre as origens, a história e a construção colonial de Nova
Friburgo.
[121]

A obra que ora resenhamos insere-se nesse contexto de revisão em torno das origens e - por
que não? - da própria História e é, sem dúvida, parte importante desse novo olhar, criador de uma
nova identidade percebida pelos historiadores a partir dos anos 80.
O trabalho de Edson Lisboa (licenciado em História pela Faculdade S. Doroteia de Nova
Friburgo) e de Jorge Miguel Mayer (Professor Associado do Departamento de História da UFF,
Doutor em História pelo PPGH-UFF) estuda um processo criminal relativo a uma violenta revolta
de escravos, ocorrida no ano de 1850, na Fazenda Ponte de Tábuas, de propriedade do Comendador
Boaventura Ferreira Maciel, em Nova Friburgo. A descrição do fato com riqueza de detalhes é,
antes de mais nada, revelador de um processo de luta de classes, não faltando até mesmo o
assassinato do feitor, de dois trabalhadores da fazenda, e a espetacular fuga de um significativo
número de cativos.
A princípio, o livro conta com um Prefácio elaborado pelo historiador Ciro Flamarion
Santana Cardoso, que efetua uma interessante discussão teórico-metodológica em que confronta os
historiadores que veem a História a partir de uma visão de Totalidade, com os pós-modernos cujos
trabalhos não chegariam ao centro das questões. Esta obra, além da contribuição para os estudos
regionais é, também, uma contribuição para os estudos baseados na Totalidade histórica.
O 1º capítulo, intitulado “Contribuição ao Estudo da Escravidão” constitui um conjunto de
argumentos ressaltando o valor desse tipo de estudo baseado em fontes como inquéritos e processos
criminais. Neste caso, a contribuição se faz ainda no que tange ao aprofundamento de questões que
valorizam os estudos regionais.
O 2º capítulo, intitulado “A Fuga e o Processo” trata da exposição de relatos constantes nos
autos – a fonte histórica -, onde são percebidas as vozes dos protagonistas do fato. As perguntas
formuladas à fonte constituem subdivisões do capítulo e revelam os motivos causais bem como a
lógica dos crimes e da fuga dos escravos. O leitor desta parte da obra passa a ter noção clara da
violência estrutural do regime escravocrata em geral e, especificamente, como essa violência se
fazia no cotidiano dos escravos desta fazenda através das ações, sem limites, dos agentes dos
proprietários. Neste caso, a reação dos escravos revela também um alto grau de violência
comprovado nos trechos relativos aos depoimentos dos legistas encarregados dos exames de corpo
de delito. É importante ressaltar, neste capítulo, o trecho referente ao subtítulo “Raízes do Conflito”,
onde o leitor pode concluir que os crimes e a fuga dos escravos são respostas possíveis à
manutenção do sistema desumano e hediondo representado pelos três séculos de escravidão no
Brasil.
O 3º capítulo, “Inquérito sobre a escravidão em Nova Friburgo” é menos descritivo, porém
bem mais analítico que o capítulo anterior. Nele, os autores revelam preocupação no sentido de
conhecer e entender a escravidão negra no seu contexto temporal e espacial. A presença da
[122]

escravidão negra em Nova Friburgo é uma verdade inquestionável, mesmo que a vila tenha sido a
princípio colonizada por imigrantes suíços. Os elementos básicos de um sistema montado numa
economia agrária e escravocrata não sofreram alterações profundas mesmo numa realidade de
pequenas e médias propriedades dedicadas à policultura. Efetivamente, a presença dos colonos
suíços e alemães não foi capaz de mudar mais profundamente o quadro da escravidão na antiga
região da fazenda do Morro Queimado. Helvéticos e germânicos, na verdade, adaptaram-se ao
mundo da escravidão, revelando absoluta incapacidade de transformá-lo em sua essência.
A edição do livro “Os crimes da fazenda Ponte de Tábuas” tem enorme importância para os
estudos relativos à História Regional/Local, dando visibilidade à existência da escravidão negra em
Nova Friburgo, fato negado por alguns escritores do município. Consideramos ainda que o trabalho
dos historiadores Lisboa e Mayer constitui-se de maior valor, por revelar uma fonte inestimável
para todos aqueles interessados em estudar o passado para melhor compreender o presente,
objetivando mudá-lo. Trata-se ainda, de um livro muito bem escrito, de fácil compreensão e que
certamente se destina a um público não apenas da academia, mas a todos curiosos e interessados em
nossa História.
Vale muito conferir.

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