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Universidade de Braslia
Instituto de Cincias Sociais
Departamento de Antropologia
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
Os Afectos Mal-Ditos O Indizvel Das Sexualidades Camponesas
Paulo Rogers
Braslia 2006
Universidade de Braslia
Instituto de Cincias Sociais
Departamento de Antropologia
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
Os Afectos Mal-Ditos O Indizvel Das Sexualidades Camponesas
Dissertao de Mestrado defendida no dia 05 de maio de 2006 para a obteno do Ttulo de Mestre em Antropologia, sob orientao da Profa. Dra. Ellen F. Woortmann
Braslia 2006
Ao Mestre e Amigo, Prof. Daniel Lins, com a estima de um aprendiz.
Le corps est dans le monde social mais le monde social est dans le corps. Pierre Bourdieu, 1982. AGRADECIMENTOS
Esta dissertao puro afecto. Uma multido-matilha perpassa as entrelinhas desta escrita-experimento. No se trata de agradecer, como apregoa os ditames formais da academia, mas de pincelar sentidos, movimentos, vibraes de intensidades, paixes e instituies, os bons encontros, que a tornou possvel. Neste sentido, remeto-me: Profa. Ellen F. Woortmann por ter aceitado o desafio de orientar uma dissertao pouco convencional no trato da teoria sobre sociedades (sexualidades) camponesas no Brasil. Ao Prof. Roque de Barros Laraia, do Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia, pelos apontamentos como membro examinador. Ao Prof. Roberto Cardoso de Oliveira pelas aulas sobre o pensamento antropolgico e pelas sugestes minha temtica. Ao Prof. Philippe Descola, da cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, em Paris, pelas indicaes de leituras. Aos professores do Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia pelo incentivo e aprendizado constante e sistemtico que obtive em muitas disciplinas. Ao Prof. Luis Ferreira Malk, pelas sugestes, pela referncia bibliogrfica sugerida e pelo incentivo sempre presente. Profa. Rita Segato pelas lies de gnero e ao Prof. Henyo Trindade pelas lies sobre sociedade e meio ambiente. Aos colegas do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social pelas sugestes e crticas durante os cafs na Katacumba. Adriana, Rosa e Paulo, secretrios do Departamento de Antropologia da UnB, pelo apoio moral, afectivo e logstico. A Denisio Muniz, Ronei Lima, Washington Paiva e Thiago Rodrigo por terem lido boa parte dos meus escritos e pelas crticas pertinentes. Aos Professores de Antropologia do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal do Cear, em especial Profa. Simone Simes e Profa. Lea Rodrigues, pelo estmulo e apoio. A Profa. Lcia Morales por apostar neste aprendiz de antroplogo. Aos amigos-pesquisadores do Laboratrio de Estudos e Pesquisas da Subjetividade da UFC pelo estmulo pesquisa. Aos Colegas do Centro Acadmico de Filosofia da Universidade de Braslia, pela amizade. Ao CNPq que possibilitou, mais uma vez, o andamento de minhas pesquisas. Terezinha e Paulo, Ronney e Rogelma, amigos-cmplices para alm do parentesco. Aos amigos da Colina, repblica da Ps-Graduao da UnB, pelo carinho. As mulheres e aos homens de Goiabeiras, pelos afectos roubados e doados.
RESUMO
Grande parte da literatura sobre sociedades camponesas no Brasil, o que conceituo como Texto Brasileiro sobre o Rural (TB), est ancorada em um imaginrio institudo, limitado, sobre o corpo do homem do campo. Cria-se, neste sentido, uma identidade cultural reacionria e fechada sobre si mesma, em que os mesmos falam as mesmas Coisas para os mesmos. Naturalizaes e definies do que o desejo, sempre ligado reproduo da espcie, institui no corpo do campons um corpo-mais-valia, um corpo- mutilado, um corpo-funcional, um corpo-bblico, via uma literatura que, curiosamente, organiza, simplifica e seleciona discursos que desembocam em um persistente retorno ao Mesmo. Um Corpus Academicus seletivo, fechado, sem dar espao para o Diverso, para o novo. Homens, mulheres e crianas camponeses passivos, omissos, cabendo, muitas vezes, em uma nica pgina, peas de um jogo discursivo que exclui outros modos de vida, outros encontros, outros afectos. O campons inventado, institudo, passa a ser interpretado, um objeto de estudo as if, apenas bom para pensar. Inicia- se assim uma vontade de saber sobre o Outro-campons, em que as sexualidades, os processos de subjetivaes, as micropolticas do cotidiano so devidamente traados, filtrados, sob a gide de um silenciamento, no mnimo instigante, no que concerne ao corpo e suas paixes. A inteno deste trabalho, portanto, dar Adeus a este corpo campons, casto e castrado, pois, doravante, que seja a ele permitido gozar.
Palavras-Chaves:
Antropologia Rural Antropologia do Corpo Antropologia Filosfica
ABSTRACT
A huge part of the literature written about rural societies in Brazil, which I call Brazilian Text about the Rural, is anchored upon a forged, limited view of the body of the country man. It is created, in this sense, a reactionary, self-absorbed cultural identity, in which the same people say the same things to the same audience. Naturalizations and definitions of what is lust, always connected to the reproduction of the species, turns the body of the country man into a commodity, a mutilated body, a functional body, a biblical body through a literature, which, curiously, organizes, simplifies and selects discourses that lead to an everlasting return to the Same: a closed, selective Corpus Academicus, which does not allow for the diverse and the new. Country men, women and children who are passive, omitting and who fit, many times, in one single page, are also pieces of a discourse play that exclude different ways of life, different encounters and different affects. The invented and forged country man is then interpreted, a study object as if, good enough only to be thought about. This attitude, in its turn, creates a desire to know about the Other Country Man, in which sexualities, the processes of individualization and the micro politics of daily life are satisfactorily illustrated, filtered under the shield of a type of silencing, at least curious, of what refers to the body and its passions. The purpose of this work, therefore, is to say Goodbye to this country body, chaste and castrated, because, from now on, it must be allowed to have cum.
Key-words:
Rural Anthropology Body Anthropology Philosophic Anthropology
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................I XVIII
CAPTULO I -O imaginrio Institudo Da Sexualidade Camponesa.....................................03 Os Modelos Institudos Europeus: Da Constituio do Corpo-Mais-Valia....................06 Eric Wolf E Henri Mendras: Do Corpo-Mutilado...........................................................10 Martine Segalen E Karin Wall: Do Corpo-Funcional.....................................................15 A Singularidade de Pierre Bourdieu: Do Campons como Classe-Objeto.....................18 O Texto Brasileiro Sobre o Rural....................................................................................27 A Sexualidade Camponesa Como Instrumental Terico (Classe-Objet)........................31 Os Anos 90: O Retorno Ao Mesmo?...............................................................................38 Intensidade E Paixo: Que Pode O Corpo?.....................................................................44
CAPTULO II-Os Afectos Mal-ditos: O Indizvel Das Sexualidades Camponesas............. 57 Senhores De Si: Homossociabilidades Camponesas.......................................................60 A Regra, As Estratgias E O Nomadismo.......................................................................67 Os Afectos Mal-Ditos: Dilemas, Conceituaes E Perspectivas....................................82 Os Corpos Fugidios Dos Afectos Mal-Ditos: Gnero No Os Pega Mais................... ..92 O Indizvel Das Sexualidades Camponesas..................................................................106
CAPTULO III Por Uma Esttica Dos Afectos Mal-Ditos: Cartografias Do Desejo.......122 Por Uma Antropologia Dos Rumores: Das Histrias ntimas Do Lugar......................128 Ritos Afectivos Como Experimentao........................................................................145 Inocncia E Crueldade: A Paixo Segundo Mariano....................................................163 Adeus Ao Corpo Campons..........................................................................................170
CONSIDERAES FINAIS................................................................................................I - IV
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................I - XI
Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ I INTRODUO
Grande parte da literatura sobre sociedades camponesas no Brasil, o que conceituo como Texto Brasileiro sobre o Rural (TB), est ancorada em um imaginrio institudo, limitado, sobre o corpo do homem do campo. Cria-se, neste sentido, uma identidade cultural reacionria e fechada sobre si mesma, em que os mesmos falam as mesmas Coisas para os mesmos. Naturalizaes e definies do que o desejo, sempre ligado reproduo da espcie, institui no corpo do campons um corpo-mais-valia, um corpo-mutilado, um corpo-funcional, um corpo-bblico, via uma literatura que, curiosamente, organiza, simplifica e seleciona discursos que desembocam em um persistente retorno ao Mesmo. Nesse contexto, e para fazer aqui uma analogia, Paul Veyne (1998), ao revisitar os discursos institudos na histria, argumenta:
Como no romance, a histria seleciona, simplifica, organiza, faz com que um sculo caiba em uma pgina. 1
No TB ocorre algo semelhante. Um Corpus Academicus seletivo, fechado, sem dar espao para o Diverso, para o novo. Homens, mulheres e crianas camponeses passivos, omissos, cabendo, muitas vezes, em uma nica pgina, peas de um jogo discursivo que exclui outros modos de vida, outros encontros, outros afectos. O campons inventado, institudo, passa a ser interpretado, um objeto de estudo as if 2 , apenas bom para pensar. Inicia-se assim uma vontade de saber (cf. Foucault, 1999) sobre o Outro-campons, em que as sexualidades, os processos de subjetivaes, as micropolticas do cotidiano no homem do campo so devidamente traados, filtrados, sob a gide de um silenciamento, no mnimo instigante, no que concerne ao corpo e suas paixes. Mormente, as categorias estrangeiras ao contexto brasileiro campons e campesinato caem em um vazio categrico, um problema de mtodo, pois o que se percebe uma replicao, no TB, de um campesinato francesa, inglesa, americana, sem muitas vezes se atentar para as especificidades de um pas continental como o Brasil. Neste sentido, em termos etnometodolgicos, opto por um ttulo, para esta dissertao, que faa jus a uma ruptura com o imaginrio institudo sobre o corpo do __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ II homem do campo. Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas abarca este campons institudo, com sua sexualidade naturalizada, por uma Ordem do discurso (cf. Foucault, 2003) pautada em um iderio de um Corpo-assim, isto , um corpo j dado, definido, mensurado, podado, mutilado. Sabe-se, por meio de vrias pesquisas de campo, de muitos tericos sobre o rural, que a Igreja exerceu, e ainda exerce, um papel substancial construo da sexualidade oficializada nos confins do roado. Desde o perodo colonial, como aponta Mary Del Priore (2005), a Igreja apropriou-se tambm da mentalidade patriarcal presente no carter colonial e explorou relaes de dominao que presidiam o encontro entre os sexos. 3 Assim, segundo a viso da Igreja, no por amor que os cnjugues devem se unir, mas sim por dever; para pagar o dbito conjugal, procriar e, finalmente, lutar contra a tentao do adultrio e do prazer. Nesse sentido, Del Priore ainda acresce:
Controlando corpo e alma, a Igreja tentara, desde os primeiros escritos de Paulo, coadunar o aparentemente incomparvel domnio da sexualidade terrena com a salvao eterna. Trs elementos continncia, casamento e fornicao deveriam arranjar-se em um sistema binrio, cujos elementos eram o bem e o mal. Virgindade e continncia seriam preferveis sexualidade conjugal, segundo o mesmo apstolo Paulo, abriria uma terceira via adaptada s realidades sociais: aquela do menos mal, entre o melhor e o pior. Com essa soluo, a Igreja criava um tipo de sexualidade til, lcita e protegida evitando condenar ao pecado mortal a maioria dos casais que quisesse fazer amor. 4
Por sua vez, e recobrando a criatividade, engendrada pelo desejo desejando o desejo, no homem do campo, os ditames da Igreja so resignificados pelo catolicismo popular em ambincias rurais. Frouxos, reinventados, estratgicos, como o caso do nordeste do Brasil, este lcus etnogrfico que escolhi para esta pesquisa, o incesto entre compadres, por exemplo, colide com os valores cannicos fomentados pela Igreja, na elaborao do compadrio, pois, nesta altura dos acontecimentos, eles, os encontros incestuosos entre compadres, so bastante comuns, por conta dos rompantes inexplicveis e indizveis das paixes no campo, que, sobretudo, pem em cheque o imaginrio institudo de um corpo-bblico, forjado pela Igreja e pelo TB como veremos. Nesse sentido, para Itamar de Souza (1981) os encontros incestuosos entre compadres:
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ III O carter incestuoso das relaes sexuais entre pessoas ligadas pelo compadrio perpetuou-se de gerao para gerao. Por isso, em todos os recantos do Brasil rural encontramos lendas que reproduzem diversos tipos de sanes sobrenaturais para aqueles compadres e comadres que infringem as leis cannicas. 5
interessante salientar que tais tericos das sociedades camponesas no tinham e no tm, em sua maioria, as sexualidades como centralidade na ordem dos discursos, pois trata-se, infelizmente, de uma temtica indizvel, silenciada, esquecida, subalterna, em detrimento de valores hierarquizados (Deus Homem Natureza), que, para o TB, passam a ser centrais ao entendimento do campesinato. Destarte, quando o TB impe ao campons uma misso divina, este personagem bblico passa a estar fadado aos ditames do seu criador, o TB, tendo que cumprir as insgnias do mandamento primeiro, crescer e multiplicar, pois o homem do campo deve, como apregoa os tericos do campesinato no geral, ganhar o po pelo suor do prprio rosto, assim, esta literatura autorizada sobre o Outro-campons elabora um corpo-bblico, mesclado a um corpo-mais-valia, um corpo-mutilado e a um corpo-funcional, como ser exposto no decorrer desta dissertao. Sem levar em conta que nos universos camponeses, e para alm deles, o centro est por toda parte, o TB, com seu imaginrio, perpetua um corpo casto e castrado para o campons, ou seja, casto, pois se devota ao matrimnio, e castrado, em que a libido se reduz reproduo, sob pena de expulso funcional, caso escape a estes moldes tericos, como inicialmente ressaltei. Portanto, esta dissertao, levando em considerao os seus limites, tem como foco acrescer, a tais correntes tericas sobre o rural, a dimenses das intensidades e paixes, suas intempestividades como tambm movimentando as fainas da histria, os laos parentais e vicinais, o cotidiano do roado, as sexualidades do homem do campo. Para tanto, recobro um plano oficioso, indizvel, produtor de uma outra gramtica, engendrador de uma economia dos afectos, um plano mal-dito, construtor de outros modos de vida, reinventados intensamente por seus agentes. Nestes termos, os planos oficial e o oficioso ganham um sentido prtico em meio aos jogos estratgicos que perfiguram a vida scio-afetiva do povoado, que passo, doravante, a investigar no Cariri, serto do Cear, Brasil. A ttulo de conceituar os planos oficial e oficioso, em Le sens pratique, Pierre Bourdieu (1980a) disserta: __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ IV Le mode pratique que par et pour les usages officiels et officieux quen font des agents dautant plus enclins les maintenir en tat de fonctionnement et les faire fonctionner plus intensment donc, en raison de leffet de frayage, toujours plus facilement quelle remplissenet actuellement ou virtuellement des fonctions plus indispensables, quelles satisfont ou peuvent satisfaire des intrts (matriels ou symboliques) plus vitaux. 6
Recobrando, desta forma, tais planos que agem, material e simbolicamente, nos universos rurais, chego a indagar: por que o TB permanece, apesar da diversidade etnogrfica do Brasil, professando um campons caricatural, universalizado, institudo, no corpo, um desejo limitado? Eis uma antropologia rural fadada repetio do Mesmo. Um corpo campons sem veia e sem carne, sem pnis, sem vagina e sem nus, eunuco da Trade Deus-Homem-Natureza. Mas afinal o que leva o TB a tais corroboraes? Muitos socilogos e antroplogos que vo a campo, carregam consigo a priores, teorias e mtodos prvios, traados por outros pesquisadores, em outros contextos etnogrficos distintos e distantes, ou seja, um certo colonialismo s avessas. Neste sentido, na inteno de interpretar o campons, j institudo por tais correntes, muitos pesquisadores brasileiros s endossam o imaginrio e os discursos acadmicos sobre o rural. Assim, corrobora-se para a perpetuao deste ideal castrador sobre o homem do campo, aplicando as bem- ditas teorias comme il fault, sem muitas vezes se atentarem para as peripcias do desejo, para o indizvel das sexualidades camponesas. Constri-se, sobretudo, discursos carregados de verdades repetidas, como j apontei. Dentro deste contexto analtico, como poderamos traar mtodos de pesquisas que minimizem esse imaginrio institudo sobre o corpo do campons? Em Mtodos de pesquisas em cincias sociais, Howards Becker (1997) abre inmeros caminhos:
Em vez de tentar colocar suas observaes sobre o mundo numa camisa-de-fora de idias desenvolvidas em outro lugar, h muitos anos atrs, para explicar fenmenos peculiares a este tempo e a este lugar, os socilogos podem desenvolver as idias mais relevantes para os fenmenos que eles prprios revelaram. Isto no significa que os socilogos possam ignorar o pensamento e as idias gerais que seus predecessores e seus colegas contemporneos tenham criado. Porm, eles no precisam interpretar o que interpretam somente em termos do que lhes foi deixado por outros. Eles no precisam ficar sentados tentando decidir, como fazem muitos estudantes, se devem usar Marx ou Weber na anlise de seus resultados. Qualquer socilogo to livre e to competente para inventar novas idias e teorias quanto foram Marx, Weber e Durkheim. 7
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ V Tudo parece colaborar para que o campons permanea o mesmo no transcurso da ordem do discurso no e para o TB. Neste sentido, na estrutura discursivamente produzida sobre a casa camponesa, por exemplo, muitos socilogos e antroplogos organizam funcionalmente os compartimentos, tornando-os centrais compreenso da poltica e dos ditames da guerra de gneros. Merecedores de ateno especial, tais compartimentos (a sala de estar, os quartos, a cozinha e o quintal) divididos conforme os gneros, nada mais so que uma institucionalizao do desejo. Assim, tais organizaes funcionais, por exemplo, pouco se atentam, por exemplo, para as moitas que circundam a casa e para os indizveis nos caminhos do roado, pois como o TB acentua, o que vale a estrutura, o Todo, o Ns, e no os sentimentos, as paixes, o Eu, as Partes. E Becker continua:
como mandar construir uma casa para si. Embora existam princpios gerais de construo, no h dois lugares iguais, no h dois proprietrios com as mesmas necessidades. Assim, as solues para os problemas de construo tm sempre que ser improvisadas. Estas decises no podem ignorar princpios gerais importantes, mas os princpios gerais em si no podem resolver os problemas desta construo. Para faz-lo, temos que adaptar os princpios gerais situao especfica que temos em mos. 8
O homem do campo no , se faz, torna-se a cada instante dos acontecimentos, a cada rompante das paixes que nunca o deixam ileso, pois tambm no inominvel, no indizvel, no imprevisvel, no intratvel, que podemos encontrar o movimento da vida, um campons que pode finalmente gozar, para alm do imaginrio institudo do TB. Assim, mais uma vez, dialogo com Becker:
Quando pessoas se dedicam a atividades que preferem manter em sigilo, elas no pem seus nomes em catlogos ou em listas de associados de modo a tornar nossa tarefa mais fcil. Ao contrrio, se empenham para esconder o que fazem do conhecimento pblico, e isto oculta o que fazem tambm de ns. Quando estudamos as pessoas e organizaes envolvidas em tais atividades desviantes, temos que conceber mtodos novos apropriados para o segredo que nos confronta. 9
Partindo da premissa de que h indizveis, segredos, na sexualidade de um casal campons, para no falar das relaes extraconjugais entre vrios casais, tambm no campo, indago: como um discurso institudo do TB pode apresentar uma cartilha do que so os ditos papis de gnero de homens, de mulheres e de crianas no roado, utilizando-se do argumento apaziguador: as if? __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ VI Nesse sentido, ainda no trato do indizvel, dos segredos inconfessveis, que tambm movimentam os valores das sociedades, valores estes compreendidos aqui de forma deshierarquizada, Maurice Godelier (1982) discorre:
Un anthropologue ne peut tre de camp de ceux qui volontairement ou inconsciemment mprisent et/ou dtruisent la socit quil sefforce de connatre et de faire connatre. La connaissance nest pas un jeu sans consquences. Toute socit a des secrets quelle protge et qui la protgent. 10
Eis o risco que passa o antroplogo: como dizer o indizvel? 11 E Becker ironicamente disserta: a metodologia importante demais para ser deixada aos metodlogos 12 . Mtodos se fazem no cotidiano, nos movimentos dos processos de subjetivao, nos acontecimentos, nos instantes-j. Ao afirmar que os mtodos de pesquisa em cincias sociais so reinventados constantemente, quando dos experimentos-acontecimentos dos trabalhos de campo, Becker, se aproxima do que presenciei em Goiabeiras (nome fictcio dado ao lcus de pesquisa, por se tratar de uma comunidade rural muito pequena, onde os rumores sacodem as condutas). No se trata de um modelo de mtodo, modelo fechado, mas de acontecimentos que cruzam os corpos, que se do a cada instante, pelos fluxos e refluxos do desejo, na pesquisa de campo, reelaborando-a processualmente. Assim, enquanto o leitor est debruado, lendo esta dissertao, os goiabeirenses do Cariri, no serto do Cear, e para alm deles, esto movimentando outros modos, esto acontecendo, correndo para a vida, pois o que proponho, como estudioso da antropologia rural, um meio, no o incio ou o fim no e pelo corpo do homem do campo. Mas, voltemos a Becker:
Embora alguns renomados metodlogos e filsofos da cincia acreditem que a metodologia deve se dedicar a explicar aperfeioar a prtica sociolgica contempornea, a metodologia convencional em geral no faz isso. Ao contrrio, ela se dedica a dizer aos socilogos o que deveriam estar fazendo e que tipos de mtodo deveriam estar usando, e sugere que eles ou estudem o que pode ser estudado por estes mtodos ou se ocupem em imaginar como o que querem estudar pode ser transformado no que pode ser estudado por estes mtodos. Chamo a metodologia de especialidade proselitizante por causa desta propenso muito forte dos metodlogos a apregoar uma maneira certa de fazer as coisas, por causa de seu desejo de converter os outros a estilos de trabalho apropriados, por causa de sua relativa intolerncia com o erro todas estas caractersticas exibindo a mesma convico autoconfiante de que Deus est do nosso lado que est associada s religies proselitizantes. 13
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ VII Para escapar desta especialidade proselitizante, destes mtodos cannicos do TB que autorizam a dita condio camponesa, procuro me aproximar da inveno de uma arqueologia do saber, proposta por Michel Foucault (1986), isto ,
O horizonte ao qual se dirige a arqueologia no , pois, uma cincia, uma racionalidade, uma mentalidade, uma cultura; um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos no podem ser fixados de imediato. A arqueologia: uma anlise comparativa que no se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totaliz-los, mas sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparao arqueolgica no tem um efeito unificador, mas multiplicador. 14
Para Foucault, o problema no mais a tradio e o rastro, mas o recorte e o limite; no mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformaes que valem como fundao e renovao dos fundamentos. O TB tem como mtodo continuidade, as mesmas Coisas, como se o campons fosse uma sntese acabada. E sob este prisma, Foucault continua:
preciso por em questo, novamente, essas snteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, so aceitos antes de qualquer exame, esses laos cuja validade reconhecida desde o incio; preciso desalojar essas formas e essas foras obscuras pelas quais se tem o hbito de interligar os discursos dos homens; preciso expuls-las da sombra onde reinam. E ao invs de deix-las ter valor espontaneamente, aceitar tratar apenas, por questo de cuidado com o mtodo e em primeira instncia, de uma populao de acontecimentos dispersos. 15
O TB com seus j-ditos, bem-ditos, transforma o corpo do campons em um Conforme. Assim, os discursos autorizados sobre o rural caem em um ostracismo. Um campons j pronto, bem-dito, passivo de linhas acadmicas retilneas, estas organizadas, previsveis, acabadas, estruturadas em plos opostos. Eis porqu o indizvel das sexualidades camponesas pouco se retrata, pouco se deixa. E pensando sobre o apangio analtico do TB que mais uma vez indago: poderamos pensar, aps estes comentrios iniciais, que o indizvel das sexualidades camponesas constitui uma espcie de erro desprezvel nas curvas demogrficas do TB? Sobre os no-ditos nos discursos, Foucault disserta:
Todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um j-dito; e que este j-dito no seria simplesmente uma frase j pronunciada, um texto j escrito, mas um jamais-dito, um discurso sem corpo, uma voz to silenciosa quanto um sopro, uma escrita que no seno o vazio de seu prprio rastro. Supe-se, assim, que tudo que o discurso formula j se encontra articulado nesse meio-silncio que lhe prvio, __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ VIII que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto no passaria, afinal de contas, da presena repressiva do que ele no diz; e esse no-dito seria um vazio minando, do interior, tudo que se diz. O primeiro motivo condena a anlise histrica do discurso a ser busca e repetio de uma origem que escapa a toda determinao histrica; o outro a destina a ser interpretao ou escuta de um j-dito que seria, ao mesmo tempo, um no-dito. preciso renunciar a todos esses temas que tm por funo garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presena no jogo de uma ausncia sempre reproduzida. 16
Recobrando o contexto etnogrfico de Goiabeiras, em 2000 pode-se dizer que foi o incio dos trabalhos de campo. Cheguei em maro daquele ano. O vilarejo parecia aparentemente pacato. Homens, mulheres e crianas que sobreviviam da agricultura e da pecuria. Com um olhar apressado, era fcil perceber traos da lgica do saber-fazer campons, o iderio pautado no TB, as relaes de parentesco e as relaes vicinais, ou seja, toda uma organizao social, alicerada em uma ordem moral oficial. Povoado endogmico, catlico, o pequeno distrito, distante 20km da sede do municpio e 423km de Fortaleza, no tem pousadas, bancos, hospitais, delegacias etc, apenas uma nica praa, um nico mercado pblico, um nico motel, duas escolas e aproximadamente oitocentas casas, circundadas por roas por quase todos os lados e cortado, lateralmente, pela BR230, esta conhecida popularmente por Transamaznica. Os rumores so um dos passatempos prediletos dos habitantes do lugar. Todos os dias ouvem-se boatos e histrias dbias sobre as condutas dos goiabeirenses. As fofocas tendem a invadir as casas, sacodem o oficial e o oficioso, movimentam os acontecimentos, inauguram a ambigidade de gestos e ritmos. A ttulo de informao, e para situar o leitor, naquele perodo de pesquisa, eu estava vinculado, como pesquisador-bolsista do PIBIC/CNPq, ao Laboratrio de Estudos e Pesquisas da Subjetividade (LEPS) da Universidade Federal do Cear (UFC), sob a orientao do Prof. Daniel Lins, em que o interesse por problemas ligados s sexualidades sempre foi uma constante. Naquele percurso, o Prof. Daniel Lins estava desenvolvendo uma pesquisa extensa sobre a dominao masculina e o imaginrio do macho, juntamente com o Prof. Pierre Bourdieu e o Prof. Loc Wacquant, temtica esta que estreitava minhas preocupaes com este grupo de pesquisadores. Atualmente, j no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de Braslia (UnB), sob a orientao da Profa. Ellen F. Woortmann, pude, por meio desta dissertao de Mestrado, dar continuidade s pesquisas, retornando ao Cariri, no serto cearense. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ IX vlido ressaltar que o vilarejo de Goiabeiras trata-se da minha terra natal. Ambincia rural onde vivi minha infncia e uma parte da adolescncia. Nestes sentido, este fator, paradoxalmente, facilitou e dificultou o andamento inicial da pesquisa de campo. Facilitou, no sentido que sou conhecido por todos, pertencente a uma famlia abastada do povoado, em que muitos pais-de-famlia, rapazes-velhos, mes-de-famlia etc, que dialoguei, trabalham nas terras do meu av de linha materna. E, por outro lado, dificultou, haja vista que muitos, inicialmente, pensavam, via rumores locais 17 , que eu poderia divulgar suas vidas sexuais via internet. Quando cheguei a primeira vez no vilarejo, em 2000, para passar trs meses, pois estvamos no perodo de recesso da universidade, comecei imediatamente a interagir com os homens e com as mulheres goiabeirenses dos vrios segmentos sociais. Por meio de conversas fortuitas, informais, alguns homens, mulheres e crianas descreviam, en passant, suas experincias sexuais, pautadas no casamento monogmico e nas iniciaes sexuais de alguns rapazes com animais. Falar sobre homossexualidade era algo totalmente negativo, indizvel, deslocado, alguns goiabeirenses at partiam para a agresso fsica se continuasse com este assunto. Parecia tratar de uma represso aguda, em que fugir da sexualidade oficial, pautada na reproduo biolgica e no iderio cristo, era sinnimo de punio e expulso funcional. Passados os trs primeiros meses, tudo indicava que o vilarejo vivia no silncio e na clandestinidade, em relao s sexualidades que escapavam aos valores selecionados do TB. Comecei, j a partir do segundo ms, a intensificar os encontros com os homens do lugar. Passei a andar com eles, a pernoitar algumas vezes na praa, a procurar a todo custo uma brecha que me conduzisse as minhas preocupaes. Quanto mais eu tocava no assunto-tabu das sexualidades, mas percebia um afastamento das pessoas, e paralelamente cresciam os boatos sobre um pesquisador que s falava em sexo. No terceiro ms, j me sentia desmotivado para dar andamento aos trabalhos de campo, aparentemente nada de novo acontecia no pequeno distrito. A rotina dos pais-de-famlia, das mes-de-famlia, dos rapazes-velhos, das moas-de-famlia etc se delineava em meio ambigidade das informaes sobre as sexualidades, informaes limitadas, esparsas. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ X Restando dois dias para deixar o vilarejo e voltar Fortaleza para dar continuidade graduao, acontece o inusitado. Andr, 23 anos, solteiro 18 , em 2000, me faz um convite abrupto:
Andr: Eu sei que voc s vive falando de sexo. o que o povo aqui anda dizendo! Dizem que voc um tal de antropo no sei das quantas... sei l... Voc vai embora depois de amanh? Queria lhe fazer um convite. Hoje, s 21:00hs, vai haver um esquema. Vamos dar uma no mato! Voc quer vir experimentar? Vai ser prximo a estrada X. Vai eu, Tadeu, Mrio, Ivo, Juca, Joaquim, Drio e Douglas. Est afim? Diga logo! Corra! Antroplogo: Claro! s me ensinar como chegar l!
Naquele momento pensei que ele estava armando uma tocaia, pois minha insistncia em falar sobre sexualidade poderia causar sentimentos inesperados por parte da populao local. Como estratgia, fui duas horas antes, me escondi, em meio caatinga, enquanto esperava os homens aparecerem. Gradativamente foram chegando Andr, Tadeu e outros. Logo percebi que nada tinha a ver com uma tocaia ou coisa parecida, pois J uca e Douglas surgem excitados, no meio daquele escuro intenso de uma noite de lua nova, e se inicia a afectao, uns com os outros. Quando percebi que o esquema, como eles costumam denominar os encontros amorosos indizveis, estava acontecendo, sa do mato, como havia combinado com Andr. Eles no falavam nada, apenas pediam para que eu ficasse em silncio, esperando os pais-de-famlia que viriam depois. Rapidamente j ramos oito homens no meio da caatinga. Neste nterim, comearam todos a se tocar, a se acariciar, em silncio, ouvi-se apenas os sussurros, os insetos e os pssaros nas moitas. Corpos suados, homens despidos, naquela penumbra da noite, em que no dava para saber, pois a inteno era experimentar o acontecimento, quem era o ativo ou o passivo no intercurso sexual, quem era Andr, Tadeu, J uca, J oaquim, Ivo, Mrio etc. Apenas corpos, exalando um cheio intenso de esperma. Pura criao. Ao trmino, quando os pais-de-famlia ejacularam, Andr finalmente quebra o silncio e diz: vo na frente. Depois eu, Tadeu, Mrio, Ivo e Paulo [antroplogo] vamos depois! Ao amanhecer do outro dia, quando acordei e fui tomar o caf da manh, pois estava hospedado na casa do meu av materno, uma das empregadas, que ajudava na luta da casa, indagou-me, em um tom jocoso, aps ter ido comprar os pes em uma bodega: gostou da noite, Paulo? Ela sorria discretamente, fato este que no compreendi, haja vista que o esquema que participei, pensava eu, foi secreto e isolado. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XI Como era de praxe, e trata-se aqui dos laos de amizade com os goiabeirenses, aps o caf matutino, durante o perodo de pesquisa de campo, costumava ir at o mercado pblico, conversar, me afectar, com os homens e mulheres do lugar, assim capturava em meu corpo o cotidiano dos goiabeirenses. Ao atravessar a praa, no dia seguinte daquele episdio-encontro nas moitas, algumas senhoras, mes-de-famlia, me olhavam e riam. Chegando no mercado pblico, um pai-de-famlia que conheci, mas que nunca tnhamos tido um contato mais ntimo, se aproxima e me oferta um caju. Obviamente aceitei e agradeci. Aps meus agradecimentos, Ccero, este pai-de-famlia, coa o saco escrotal e pergunta: voc est livre esta noite? Eu no compreendia mais nada. Homens e rapazes que jamais tinham conversado sobre sexualidade comigo, agora, se aproximavam sensualmente e diretamente me convidavam para experimentar as moitas. Nesse contexto, quanto mais mal-dito eu ia me tornando, via rumores, mais os homens goiabeirenses me procuravam, na maioria das vezes, excitados, falando sobre o tamanho dos seus pnis e de suas performances sexual para com as mulheres e animais. Cancelei meu retorno Fortaleza, e fiquei mais uns quinze dias. Comecei a intensificar a minha amizade com Tadeu, Ivo, Mrio e Andr que tinham fama de viados e com Maria e J osefa que tinham fama de sapates pelos rumores locais.
Vamos lhe ensinar! Negue tudo sempre! Quando vamos para o mato, no outro dia, se algum perguntar, negue! Isto no para se comentar, mas para experimentar. Corra! Assim, os machos vo ficar com voc. Eles gostam muito quando voc nega, quando voc no cria problemas, quando voc fica na sua! (Fragmentos das conversas com Andr, em 2000)
No se trata de identidade homossexual, no se trata de identidade cultural, mas das infinitas possibilidades do corpo. Os mal-ditos viados de Goiabeiras, vlido ressaltar que eles no assumem nada, engendram uma mquina de guerra esttica, alicerada por uma tica e por uma esttica dos afectos, que faz ricochetar os ditames do parentesco, como veremos. Este corpo-receptculo para o gozo, receptor do smen do Outro, faz acontecer ritos inicitico, no mbito das sexualidades, com muitos jovens imberbes no vilarejo 19 . Geraes passam por este corpo-receptculo mal-dito. Meninos- homens que experimentam os prazeres da carne com o mesmo e concomitantemente com suas esposas e animais. O indizvel das sexualidades camponesas , nestes termos, processual, pois, muitas vezes, com o casamento nos moldes oficializados, tudo __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XII esquecido, no-dito, outras vezes mal-dito, cumplicidades entre homens com mulheres e homens no meio do serto cearense. Nessa nova altura dos acontecimentos, algumas indagaes se apresentam: Como se configura a instituio imaginria da sexualidade camponesa na elaborao de um Texto Brasileiro sobre o Rural? Por que o corpo do campons est fadado, naturalizado, Trade Deus-Homem-Natureza? Por que se perpetua o mesmo discurso sobre o campons no Brasil desde a dcada de 40? Por que no se abre espao para o novo, para o criativo, para o corpo? Por que o campons no Brasil parece cumprir uma misso divina (crist e acadmica) em que a sexualidade, na grande maioria das pesquisas, para a reproduo da espcie? Esta dissertao tem como principal propsito da vazo ao corpo, faz-lo gozar. Anunciar as mltiplas possibilidades de sua afeco. Um campons com carne, veias, sangue, esperma, pnis, vagina, fluidos e nus: humano demasiado humano. O que doravante tambm interessa o que h por trs do pensamento, ou seja, as entrelinhas, a terceira margem, uma gramtica dos afectos indizveis, propagada por movimentos corpreos, vibrteis: pura experimentao. Nada a ver com a formal observao- participante, mas com experimento-vida, com afectao. A escrita antropolgica , sobretudo, capturada, roubada pelo sujeito do enunciado. Eis uma antropologia rural contagiosa, nada a interpretar, nada a imitar, nada de histrias do amor, nada de histria de casal, apenas npcias, criao, crueldade, geografia, beira, risco, contgio, matilha, devires imperceptveis. Nesse sentido, sobre as histrias de amor, Roland Barthes (1990) disserta:
Todo episdio pode ser, certamente, dotado de um sentido: ele nasce, se desenvolve e morre, segue um caminho que sempre possvel interpretar segundo uma causalidade ou uma finalidade, at de moralizar se preciso for (Eu estava louco, agora estou curado, o amor um engano profundo do qual se deve desconfiar daqui por diante, etc.): a est a histria de amor, escrava do Outro narrativo, da opinio geral que deprecia toda fora excessiva e quer que o sujeito reduza ele prprio o grande turbilho imaginrio pelo qual atravessado sem ordem e sem fim, a uma crise dolorosa, mrbida, da qual precisa se curar (isso nasce, cresce, faz sofrer, passa, exatamente como uma doena hipocrtica): a histria de amor (a aventura) o tributo que o enamorado deve pagar ao mundo para se reconciliar com ele. 20
No se trata de traar histrias de amor, pois os afectos mal-ditos s conhecem geografia, memria do futuro. Nmades das estepes, eles vivem na beira. Convulses __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XIII afectivas que defloram uma memria das palavras, uma memria das marcas. Corpos polissmicos em uma dodecofonia mesclada polifonia, vida-experimento, puro contgio, mana. Mas o que uma antropologia do contgio? O que uma antropologia dos bandos? O que uma antropologia das matilhas? Ora, trata-se aqui de uma antropologia rural que se preocupa com o feitio, com o mana, com as energias que saem e entram, entram e saem do corpo, as energias no-controladas que extravasam dele. Algo anlogo bruxaria Kachin, etnografadas por Edmund Leach (1974):
Ela [a bruxa] uma pessoa manchada de contgio, sem culpa prpria, e em conseqncia (na minha terminologia) ela afeta suas vtimas atravs de influncia mstica no-controlada. 21
Contgio que pura crueldade que a vida. Fludos no-controlados, contaminados pelos feitios das paixes e suas intensidades, sacudindo, sobremaneira, o homem do campo. Pois, trata-se de afinidade e no de filiao. E sobre afinidade e filiao, Leach continua:
Se compararmos este caso dos Kachin com o dos habitantes de Trobriand, torna-se claro que estamos preocupados com um nico padro de idias que, na sua forma geral, engloba algo alm da noo de filiao. Em ambas as sociedades, h um conceito de filiao que considerado como influncia genrica e simbolizado pelo dogma da substncia comum; mas h tambm algo diferente, a idia da influncia mstica, que pode ser independente de qualquer lao de sangue ou osso. 22
Bando e matilha que nada tm a ver com as regras do parentesco, com estruturas rgidas, com esta dada filiao camponesa, mas com estratgias, nomadologia, afinidade. Corpos fugidios que reinventam o mtier antropolgico, o faz rodopiar pelo desejo desejando o desejo, tambm nos confins do roado. Nesse sentido, a presente dissertao est dividida em trs captulos que se interpenetram constantemente. Captulos estes escritos com o corpo, perpassados por devires intensos, escrita que faz emergir o intempestivo, o mal-dito, a inocncia do devir. No primeiro captulo, O Imaginrio Institudo da Sexualidade Camponesa, um mapeamento de uma parte da literatura sobre sociedades camponesas no Brasil e alhures ser traado. A inteno demonstrar como, at os dias atuais, o imaginrio institudo sobre o corpo campons est pautado em um mito nostlgico sobre o homem do campo, __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XIV em que o corpo parece cumprir uma misso divina da multiplicao da espcie. Corpo- mais-valia, corpo-mutilado, corpo-funcional, corpo-bblico, desde o iderio de Chayanov, Galeski e Terpich at os dias atuais, o imaginrio institudo da sexualidade camponesa fabrica um corpo-mais-valia, isto , homens, mulheres e crianas que tm uma sexualidade casta e castrada, funcional, sem nenhuma possibilidade para o novo. Com o desenvolvimento gradual da disciplina, da antropologia rural no Brasil, o iderio de uma campesinidade se estabiliza na tentativa de fundao de uma cincia emergente. Os primeiros trabalhos sobre camponesinato se vinculam a polticas de compensao, naturaliza-se, desta forma, o corpo, em que, por exemplo, a mulher camponesa passa a ser complementar e/ou dependente ao marido, sua costela, resqucios do mito admico. Neste nterim, o imaginrio institudo seleciona e limita as sexualidades camponesas. O campons parece ser um personagem sem imaginao para o sexo, sem afectao. Um ser fadado rotina, limitado em sua libido por valores hierarquizados que perfiguram uma ideologia camponesa, teorizada por socilogos, antroplogos, economistas etc. Dando continuidade a uma revisitao de tais correntes ideolgicas, no segundo captulo, Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas, a inteno por em cheque esse Imaginrio Institudo. O trabalho de Miguel Vale de Almeida (1995), Senhores de si: uma interpretao antropolgica da masculinidade, por exemplo, um dos poucos que comeam a desnaturalizar o iderio de um campons impedido de gozar. Partindo desta investigao, desenvolvida pelo antroplogo portugus no Alentejo, Portugal, procurei fazer um paralelo e iniciar a empreitada conceitual dos afectos mal-ditos. Neste sentido, em termos gerais, os afectos mal-ditos se constituem em trs dimenses, a saber: 1) Trata-se das sexualidades que so compreendidas como inteis pelos tericos das sociedades camponesas; 2) Trata-se das sexualidades que no se encaixam nas identidades prt--porter dos tericos do gnero e da homossexualidade e ainda 3) Trata-se das sexualidades ambguas, movimentadas pelos rumores locais. vlido ressaltar ainda, e j antecipando, que afecto nada tem a ver com afeto, no sentido psicanalstico, ou seja, nada tem a ver com Falta ou com Carncia, mas com potncia de vida, agenciamentos, devires imperceptveis. Afecto se aproxima das infinitas possibilidades do corpo, com o que nos faz indagar Espinosa em sua tica, isto __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XV , nem se quer sabemos que pode o corpo, de quais afectos ele capaz. Neste sentido, os afectos mal-ditos, ncleo do segundo captulo, se fazem no intermezzo, so processuais, cartografias do desejo. Um tratado de nomadologia agenciado. Revisando as categorias famlia e casa em analogia feita ao jogo de xadrez por Claude Lvi-Strauss (1986) e Pierre Bourdieu (1980a) e pela analogia ao jogo go, por Gilles Deleuze e Flix Guattari (1996), das regras s estratgias na construo do nomadismo, o corpo passa a ser fugidio, nada a representar, nada a interpretar, apenas experimentao-vida. Por uma cincia nmade, sem portos seguros, sem Coisas do Gnero, sem Gay is beautiful, em que o corpo ganha a dimenso da ao, do intempestivo. Anlogos as mnadas de Leibniz, reinventada por Gabriel Tarde (2003). Subjetividades antropofgicas, conceito criado por Suely Rolnik (2005b), que embaralham a Trade Deus-Homem-Natureza, a fazem rodopiar. Que pode o corpo? Os afectos mal-ditos inauguram o indizvel das sexualidades camponesas, uma filosofia nativa. Nada tem a ver com silncio sepulcral, com coao social, identidade ou ressentimento do oprimido, mas com cumplicidade, amizades indizveis que escapam de qualquer especialidade proselitizante, para dialogar com Becker, ou seja, da ordenao do imaginrio institudo do TB. No terceiro captulo, Por Uma Esttica Dos Afectos Mal-Ditos: Cartografias do desejo, parto para a etnografia-experimento no povoado de Goiabeiras, como um exemplo etnogrfico do que proponho nos dois primeiros captulos. Um corpo- receptculo que pura afectao. O popular esquema entre homens das mais variadas idades, isto , circuitos amorosos indizveis nas moitas que circundam o distrito, so da ordem do roubo e do dom, e nada tem a ver com troca, como veremos. Homens que se doam em um esquecimento ativo, o molar (isto , as estratificaes que delimitam objetos, sujeitos, representaes e seus sistemas de referncia) perpassado pelo molecular ( ou seja, os fluxos, devires, transies de fases, intensidades), devir-homem, devir-animal, devir-mulher, devir-homossexual, devires imperceptveis. O corpo como contgio, como matilha, como multido nmade, uma mquina de guerra esttica e desejante sem a Culpa e a Ordem do TB. Um corpo para alm de qualquer representao que queria categorizar e instituir o desejo. Alguns casos sero experimentados, Goiabeiras me faz perceber a fragilidade da ideologia camponesa __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XVI instituda pela assimetria do TB, em recobrar apenas o plano oficial, hierarquizando valores. Portanto, a presente dissertao tem como fio condutor demonstrar como a literatura sobre sociedades camponesas no Brasil tem se mantido fiel a uma identidade camponesa, fixa, naturalizada, limitada, reacionria. Representao que interpreta, enrijece, o corpo, ou dito de outra forma, homens, mulheres e crianas ordenados em uma sexualidade ideal. Portanto, a questo que aqui se levanta a naturalizao discursiva de tais correntes tericas quando discorrem, muitas vezes, en passant, sobre o corpo campons. Eis porqu a escassez de material, com as sexualidades camponesas no Brasil, motivou tamanha problemtica. Homem, mulher e crianas definidos, corpos-mutilados, sexualidade no singular, o TB, isto , a literatura sobre sociedades camponesas, no permite, portanto, o campons se apaixonar. Doravante dou Adeus a este corpo, casto e castrado. O corpo que aqui se afecta vida, movimento em ziguezague, inocncia do devir. Por uma antropologia rural com o corpo, uma antropologia rural com o bando, uma antropologia rural com a matilha, devir-matinha na antropologia rural, devir-animal. Partindo do ponto de vista do corpo, dos excrementos, dos orifcios, pois a escrita que se segue entrelinha, multido, experimento, bifurcaes. Eis os fluxos e refluxos que movimentam o corpo, o que Texto Brasileiro sobre o Rural no conseguiu abarcar. Devires minoritrios que o deflora em uma violncia cruel que a prpria vida. Abro, desta forma, para o intensivo, para pensar o impensvel, o indizvel, o intratvel, o intangvel, as npcias entre reinos. Nomenclaturas do parentesco que perdem o sentido em meio a corpos fugidios, nmades, rfos do J uzo do TB. Devir-criana, os afectos mal-ditos fazem arte, so perigosos, so linhas envenenadas. O que interpretar de uma noite de amor em que, no raiar do dia, j est esquecida? Como fazer o balano da paixo? Como querer retribuio de afectos? Eis o limite que se encontra a antropologia rural no Brasil, seu desejo por identidade cultural e representao. Um campons naturalizado, normatizado. O que proponho o encontro, o entre-dois, os agenciamentos maqunicos do desejo. Os trs captulos que se seguem so perpassados uns nos outros, confundidos, experimentados __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XVII em suas entrelinhas. Do imaginrio institudo tica e a esttica dos afectos mal-ditos, corpos paradoxais, a-singnificantes. Portanto, apresento uma antropologia rural vibrtil. Sem memria da culpa, sem memrias das marcas, sem memria das palavras, sem mito admico, apenas experimentao, acontecimentos errantes, e constantes, que burilam com o imaginrio. No sei mais o que real e o que imaginrio, nas conversas com os goaibeirenses, pois pouco importa, o que se exala o dom, o roubo, desejos em ritornelos, engendrados por linhas de fuga. Antropologia rural com o corpo, antropologia-experimento, o antroplogo no sai mais ileso sem ter sua carne perpassada pelo afecto. Potncia de vida, pura imanncia, de uma ordem que nada tem a ver com hierarquia, mas como horizontes espraiados em corpos excitados. Eis uma antropologia rural pulsante, contagiante, viva. no viver e no no interpretar que o antroplogo encontrar os meandros do desejo, outros modos de vida. Eis a criao, o corpo como obra de arte, fidelidade terra, o anncio do meu Adeus ao imaginrio institudo da sexualidade camponesa, pois como desemboca Foucault:
No me pergunte quem sou e no me diga para permanecer o mesmo: uma moral de estado civil; ela rege nossos papis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever. 23
NOTAS
1 VEYNE, P. Como se escreve a histria. Braslia: EDITORA UNB, 1998, p. 18. 2 Sobre o uso do as if, ver como Leach (1968) constri seu argumento analtico, via a pequena comunidade rural de Pul Elya. 3 DEL PRIORE, M. Histria do amor no Brasil. So Paulo: EDITORA CONTEXTO, 2005, p. 22. 4 Idem, p. 30. 5 SOUZA, I. O compadrio: da poltica ao sexo. Petrpolis: VOZES, 1981, p. 35. 6 BOURDIEU, P. Le sens pratique. Paris: LES DITIONS DE MINUIT, 1980a, pp. 59-60. 7 BECKER, H. Mtodos de pesquisa em cincias sociais. So Paulo: EDITORA HUCITEC, 1997, p. 12. 8 Idem, p. 12. 9 Idem, p. 13. 10 GODELIER, M. La production des grands hommes: pouvoir et domination masculine chez les baruya de nouvelle-guine. Paris: FAYARD, 1982, p. 15. 11 Sobre Como dizer o indizvel? ver LINS, D. Como dizer o indizvel? In. LINS, D. (Org.) Cultura e subjetividade: saberes nmades. Campinas: PAPIRUS, 2005. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ XVIII
12 BECKER, H. Mtodos de pesquisa em cincias sociais. So Paulo: EDITORA HUCITEC, 1997, p. 17. 13 Idem, p. 18. 14 FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de J aneiro: FORENSE-UNIVERSITRIA, 1986, p. 183. 15 Idem, p. 24. 16 Idem, p. 28. 17 A ttulo de curiosidade, quando em 2001, eu estava desenvolvendo minha pesquisa de campo, uma vereadora do lugar, utilizando-se dos rumores locais, disseminou o boato pelos stios e em Goiabeiras que o antroplogo estava divulgado a performance sexual dos homens e mulheres pesquisados, via internet. Neste sentido, passei por vrios constrangimentos, como, por exemplo, quando um dos meus informantes me indagou, com um tom ameaador e preocupado, se eu teria colocado o nome dele na rede mundial de computadores. Precisei de quase um ms para contornar a situao. Ela, a situao, s foi amenizada quando eu passei a ser mal-dito por andar, conversar, constantemente, com Andr e Tadeu. 18 As profisses sero descartadas no trato dos informantes, para assim tornar mais dificultosa possveis comparaes ou ainda aproximaes entre os nomes fictcios e os nomes oficiais. 19 Sobre outros contextos etnogrficos para alm do contexto campons em que a oferta de smen entre homens tambm faz parte dos rituais, ver HERDT, G. (Org.) Ritualized homosexuality in melanesia. Califrnia: UNIVERSITY OF CALIFORNIA PRESS, 1984. 20 BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de J aneiro: FRANCISCO ALVES, 1990, p. 4. 21 LEACH, E. Repensando a antropologia. So Paulo: EDITORA PERSPECTIVA, 1974, p. 43. 22 Idem, p. 38. 23 FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de J aneiro: FORENSE-UNIVERSITRIA, 1986, p. 20. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 1
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______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 3 Captulo I
O Imaginrio Institudo da Sexualidade Camponesa
Estamos muito longe de haver construdo um discurso unitrio e regular da sexualidade. Michel Foucault, 1970.
O que um campons? Em Camponeses, Margarida Maria Moura (1986), ao contribuir para a definio-instituio deste personagem no Texto Brasileiro sobre o Rural, isto , a literatura brasileira sobre sociedades camponesas, fomentada por socilogos, historiadores e antroplogos, categoriza:
Vivendo na terra e do que ela produz, plantando e colhendo o alimento que vai para sua mesa e para a do prncipe, do tecelo e do soldado, o campons o trabalhador que se envolve mais diretamente com os segredos da natureza. A cu aberto, um observador dos astros e dos elementos. Sabe de onde sopra o vento, quando vir a primeira chuva, que insetos podem ameaar seus cultivos, quantas horas devero ser dedicadas a determinada tarefa. Seu conhecimento do tempo e do espao profundo e j existia antes daquilo que convencionamos chamar de cincia. 1
Um ente pautado na Trade Deus-Homem-Natureza 2 , o campons, no imaginrio institudo do Texto Brasileiro, um ser que se porta, muitas vezes, naturalizado, de comum acordo com seu nome de famlia, uma espcie de sujeito funcional, ligado ao patrimnio Terra, in natura, um personagem bblico. Ele, o homem do campo, nesta glosa analtica, tem como misso crescer e multiplicar para (re)produzir em conformidade, pois seu destino ganhar o po pelo suor do prprio rosto. Mantenedor de uma sexualidade instituda, escamoteada, o corpo dele casto, pois est devotado famlia, e castrado, isto , sua libido est limitada a reproduo da espcie. Em tese, produz-se um Corpo-assim, ou seja, um corpo campons j dado, definido, discursivamente, em sua sexualidade, espcie de mais-valia em prol de valores-guias. Nesse sentido, chego a questionar: como se instituiu esse imaginrio sobre o corpo do campons, ditado pela Ordem do discurso do Texto Brasileiro sobre o rural? Eis o que proponho neste captulo, corroborar para uma crtica s teorias sobre o campesinato no que concerne a construo funcional de uma sexualidade camponesa instituda, compreendida ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 4 como parte integrante, ajustada, da estrutura social manuteno das relaes parentais, vicinais, contratuais, estas vistas, arbitrariamente, como centrais melhor compreenso sobre o corpo campons. Em suma, categorias hierarquizadas, filtradas, pelos tericos do rural. Nesse contexto, o homem do campo tem um corpo normatizado, domesticado, na constituio imaginria do TB 3 e alhures, ele um objeto a que se encontra quase sempre deslocado entre uma sociedade, referida a outra coisa que no ela prpria e geralmente a uma norma, a um fim. Um corpo institudo, instrumentalizado numa funo, meios julgados por sua contribuio possvel realizao deste fim (a idia de destino no TB nos serve como um exemplo). No se pensou no fazer-acontecer porque s se quis pensar nesses seus dois momentos particulares, a tradio (identitria) e a tcnica. E nem se pensava precisamente nestes dois, j que eles eram momentos e se havia previamente anulado sua substncia, ignorando o fazer-acontecer como fazer-corpo e subordinando-o a essas determinaes parciais, produtos do fazer, mas apresentadas como absolutos imperativos a partir de um alhures, como por exemplo o iderio do bem-dito e do mal-dito corpo reprodutor do campons. Instituicionaliza-se o estatuto das respostas tradicionais sobre esse corpo campons, funda-se um postulado de identidade de necessidades atravs das sociedades camponesas e dos perodos histricos, identidade esta que a observao mais superficial da histria contradiz. Montam-se polticas pblicas, concursos pblicos 4 e projetos direcionados, dando ao campons seu merecido destino. Mormente, reduzem-se as sexualidades camponesas ao parentesco, economia da troca, ao dote, as relaes vicinais, ao compadrio, a herana e a represso, sem o cuidado basilar de explicao da diferena dos objetos e das formas de desejo e desejo de represso do desejo que deve caracterizar, de acordo com elas, a maioria das sociedades, a possibilidade desta diviso, e as razes de sua emergncia. Nesse sentido, terei o cuidado, nesta anlise, de elaborar uma discusso que abrange a unidade e a identidade da sociedade e de tal sociedade reduzida afirmao de uma unidade e identidade dadas de um conjunto de organismos vivos (homem, mulher e criana camponeses etc); ou de um hiper-organismo (a Trade Deus-Homem-Natureza) comportando suas prprias necessidades e funo; ou de um grupo natural-lgico de ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 5 elementos; ou de um sistema de determinaes racionais, invocao de uma conscincia coletiva ou um inconsciente coletivo, metforas ilegtimas, termos cujo nico significado possvel o prprio problema aqui discutido. O singular corpo do campons no TB e alhures torna-se um domnio singular da atividade social, institudo no vazio. Corre-se, assim, o risco de cair numa extrapolao sem se interrogar em geral sobre a legitimidade deste ato, e postulando, tacitamente, que as distines institudas em sua prpria sociedade correspondem essncia de todas sociedades e exprimem sua articulao. Ele, o corpo-mutilado, casto e castrado, passa a ser pensado como unidade de uma pluralidade, um conjunto determinvel de elementos bem distintos e bem definidos, e no como um magma de significaes 5 , que para Castoriadis (2000) no corresponde ao caos, mas ao modo de organizao de uma diversidade no conjuntizvel, exemplificado pelo social, pelo imaginrio ou pelo inconsciente. Assim, para o autor, toda sociedade existe instituindo o mundo como seu mundo, ou seu mundo como o mundo, e instituindo-se como parte deste mundo 6 . Algo anlogo ocorre com o TB, uma sexualidade camponesa instituda em que as perguntas reaparecem quando considera-se previamente, e qui exclusivamente, a instituio social da diviso sexual do trabalho como modelo central, dogmtico. Parece-me evidente que a instituio da sexualidade por tal literatura sobre o rural deve necessariamente comportar, como um de seus componentes ou dimenses, uma instituio do desejo. Portanto, o corpo campons institudo, este Corpo-assim, ganha, na perspectiva do TB, uma identidade social na e pela instituio scio-histrica da identidade camponesa e do idntico na tradio desta corrente terica. Ele institudo como regra e norma de identidade, como primeira norma e forma sem o que nada pode ser do TB, no TB, para o TB, pois, como conceitua Castoriadis, a instituio sempre instituio, tambm, da norma. 7
Nesse nterim, inicio partindo de um vis funcional-economicista dos pioneiros sobre uma teoria das sociedades camponesas. Enfoco a categoria analtica famlia como precursora para o reducionismo (centralizao) da construo do corpo do campons e as categorias espao-experienciais casa e roa como ambincias scio-afetivas dinmica discursiva-instituda, binria sobretudo, do TB, tendo como base, sobretudo, o discurso da ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 6 diviso sexual do trabalho. Categorias estas que ainda hoje influenciam monografias no mbito sociolgico, antropolgico, poltico, histrico, econmico etc. Portanto, o presente captulo apresentar alguns pesquisadores que, de forma direta ou indiretamente, arquitetaram esse imaginrio institudo sobre o corpo campons. Dos clssicos at os dias atuais, o corpo permanece fadado faina de uma certa tradio, na qual a ideologia camponesa estaturria propagada por tais correntes tericas, estas que albergam apenas uma faceta do valorar. Hierarquias de conjuntos, corpos-mutilados por um iderio acadmico sobre o Outro e no com o Outro, em que o TB parece, deste modo, moldar o seu prprio objeto analisado: o campons como criao imaginria.
Os Modelos Institudos Europeus: Da Constituio Do Corpo-Mais-Valia
Alexander V. Chayanov (1966 e 1981), economista de formao, parte de um princpio metodolgico que representou em seu tempo uma inovao: traar uma teoria dos sistemas econmicos no capitalistas, focalizando as sociedades camponesas, partindo de uma forma, at ento, inteiramente diferente, isto , da unidade econmica familiar no assalariada. Neste sentido, a intensificao na unidade de trabalho familiar pode ocorrer mesmo sem esta alterao na situao de mercado, simplesmente pela presso das foras internas dessa unidade, quase sempre devido ao tamanho da famlia ser desfavoravelmente proporcional extenso de terra cultivada.
evidente que a unidade de trabalho familiar s considera vantajoso o investimento de capital caso este possibilite um nvel de bem-estar mais elevado; de outro modo, restabelece o equilbrio entre penosidade do trabalho e satisfao da demanda. 8
Baseado em levantamentos estatsticos na Rssia deste 1870, Chayanov formula uma teoria sobre a economia camponesa partindo da distino entre um modo de produo domstico em contrapartida s organizaes econmicas das sociedades escravistas, feudais e capitalistas. Assim, o modelo chayanoviano centra-se no grupo domstico, cujo objetivo garantir a satisfao de determinadas necessidades compreendidas como bsicas (habitao, alimentao, vestimentas etc), e no para a obteno de lucro, razo pela qual o campesinato no deve ser considerado como uma forma de capitalismo incipiente. Nestes ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 7 termos, a unidade camponesa, compreendida por ele, concomitantemente unidade de produo e unidade de consumo. O grupo domstico tomado como um todo e a categoria trabalho ressignificada como indivisvel e no fragmentada em salrios. Nestes termos, ele cria sua teoria da economia familiar, alicerada no suposto equilbrio entre consumidores/produtores, entre a satisfao das necessidades familiares e a penosidade do trabalho. Chayanov acompanha, no campesinato russo de fronteira, a histria natural da famlia desde o casamento, ao longo da chegada dos filhos idade produtiva, at o casamento da segunda gerao. E neste nterim que ele elabora o conceito de diferenciao demogrfica que no se confunde com diferena de classes, mas que traz uma nova perspectiva poca para o estudo da economia familiar.
Mais importante para a estrutura da explorao natural que a intensidade do cultivo e suas formas organizativas dependem em grandssima medida da extenso de terra utilizvel, do tamanho da famlia trabalhadora, e da extenso de suas necessidades, ou seja, de fatores internos (tamanho e composio da famlia proporcionalmente extenso de terra cultivada). A densidade populacional e as formas de utilizao da terra tornam-se assim fatores sociais extremamente importantes, que determinam fundamentalmente o sistema econmico. Outro fator social menos importante, mas fundamental, o padro de vida tradicional, afirmado pelo costume e hbito, que determina a amplitude das exigncias de consumo e, assim, a aplicao de fora de trabalho. 9
Nesse sentido, a lgica da atividade econmica camponesa distinta e mesmo oposta quela da economia capitalista. Porm, uma outra premissa, e que a considero primordial para a compreenso do discurso sobre o corpo do campons como veremos, se estrutura em sua teoria, ou seja, a natureza biolgica da famlia. a suposta natureza biolgica da famlia que determina as leis de sua composio, e conseqentemente as leis da economia camponesa como um todo. Portanto, pela lei de Chayanov 10 a famlia inclui unidade de consumo e unidade de produo em que o grupo domstico se caracteriza pelo nmero de consumidores com o de produtores, assim como o tamanho da famlia. Conquanto, no ser essa influncia terica que se replica na construo da Ordem do discurso instituda do TB sobre a sexualidade camponesa at os dias atuais? Cabe, de certo modo, tentar uma hiptese a esse respeito. Um segundo autor, influenciado pelo modelo chayanoviano, J erzy Tepicht (1973), ao analisar o campesinato polons, percebe o carter familiar da economia camponesa ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 8 como uma vrit premire da qual decorre a relao com os fatores de produo e com o mercado, e a relao entre o trabalho e sua remunerao. Enquanto Chayanov, privilegia a dicotomia consumidores/produtores, Tepicht, por sua vez, a relativisa. Para Tepicht o grupo domstico no contm apenas unidade de consumo e unidade de produo, mas foras plenas (homens em idade produtiva) e foras marginais (mulheres, idosos e crianas). Diferentemente de Chayanov que pensa estas ltimas como membros do grupo domstico que consomem mais do que produzem, Tepicht percebe que so nelas que repousa a especificidade camponesa.
Dans la plupart des fermes paysannes dEurope, lessentiel des travaux des champs est assur par le chef de famille et par les membres de la famille en pleine force. Par contre, le service des tables, des porcheries et de la basse-cour est assur surtout par le travail mi-temps des femmes, enfants, vieillards, plus les marges de temps disponibles du chef de famille, en somme, par les forces marginales de la ferme. On purrait les appeler aussi non transfrables puisque la mme famille, ds quelle quitte son exploitation agricole, na plus recours ces forces pour assurer sa subsistance. 11
Portanto, no limite, as forces marginales permanecem operativas no interior da propriedade. Os supostos consumidores podem estar colaborando para reduzir a penosidade do trabalho, ao invs de aument-la. Em contrapartida ao esquema chayanoviano, para Tepicht, as forces marginales passam a ser centrais reproduo camponesa. Essa distino entre foras plenas e foras marginais explica a viabilidade econmica de certas atividades desenvolvidas no interior do empreendimento campons por ficar a cargo das tais foras marginais e, portanto, a um custo de oportunidade muito baixo. Assim esta complementaridade entre ambas as foras de trabalho, que nega a indivisibilidade do trabalho, corresponde composio do grupo domstico por sexo e idade. Para o autor, as foras plenas so representadas pelos homens adultos em idade produtiva, com possibilidades alternativas no mercado de trabalho e empregadas nas atividades principais do empreendimento. Por sua vez, as foras marginais so representadas pelo trabalho a tempo parcial de crianas, de idosos e de mulheres, isto , aquelas que podem ser consideradas no transferveis, e que geram uma renda marginal. Portanto, Tepicht prope que a famlia se encontra no seio da economia camponesa. H uma simbiose entre o empreendimento agrcola e a economia domstica, expressa no coletivismo rigoroso da famlia. No que tange ao papel da mulher camponesa (force marginale), o trabalho por tempo parcial, de comum acordo com a diviso sexual ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 9 do trabalho, em que competem a elas as tarefas domsticas. Ainda no trato da concepo de mulher camponesa, via assertiva tepichtiana, os valores camponeses tm na sua construo ideolgica a realidade do subjetivo, pois dessa diviso sexual do trabalho entre foras plenas e foras marginais, no que se refere mulher, derivado ao suposto sentimento subjetivo presumido do campons, em que alberga um valor contratual, transposto nas trocas matrimoniais. como se, e parafraseando Ellen Woortmann (1995), houvesse um trabalho parcial produtivo (desde o ponto de vista economicista) e outro no-produtivo (as atividades realizadas na casa). Portanto se estes so produtivos, so seguramente reprodutivos, isto , centrais para a reproduo do grupo domstico e do prprio trabalho, no vis tepichtiano. Com efeito, Chayanov e Tepicht focalizam a composio interna do grupo domstico, adotando, todavia, perspectivas bastante distintas. Esta influncia dos modelos economicistas europeus tornar-se- central para o entendimento de um discurso que ganha notoriedade a partir do TB em que a sexualidade camponesa instituda engendra sua forma mais perversa. vlido ressaltar que no era prioridade destes tericos do econmico s sexualidades camponesas, pois suas preocupaes estavam voltadas produo econmica do grupo domstico, mas suas principais assertivas sobre o modo de produo agrcola sero revisitadas, filtradas, e redirecionadas no TB, tendo como pano de fundo uma crtica lacunar sobre um pretenso modo de produo econmico sobre o social, social este pouco enfocado pelos modelos clssicos quela poca. com Boguslaw Galeski (1975) que as teorias sobre o campesinato ganham um novo flego, pautado, contudo, em velhos paradigmas ideolgicos, em que fora de serem repetidos, tornam-se redundncia vazia, repetio do mesmo. Assim, moldado ainda pelo economicismo chayanoviano, Galeski elabora seu conceito-chave sobre a categoria famlia. Ela, e para ele, um workteam, isto , um grupo diferenciado internamente no trabalho e hierarquizado, onde o indivduo est enraizado na famlia e a ela subordinado. Para o autor, as relaes externas da famlia ganham relevo, e ele enfatiza uma dimenso fundamental para o TB: a subordinao do indivduo ao todo representado pela famlia (ou seja, o Eu subordinado ao Ns). Aponta ainda sobre a gnese e funcionamento da family farm em que a escolha da esposa deve assegurar que o novo casal tenha as bases necessrias para garantir sua existncia, o que envolve terra e padres de herana. ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 10 Por sua vez, os recm-casados so fundamentais para Galeski porque provm a continuidade da identificao da famlia com a terra, provendo tambm os filhos, compreendidos concomitantemente como fora de trabalho e como herdeiros. O destino dos filhos est associado a farm como a famlia, seja herdando a ocupao ao agricultor, seja renunciando ao casamento romntico. As bases da comunidade esto na identificao entre o empreendimento familiar e a famlia, pois o que vale a estrutura e no os sentimentos. Portanto, a family farm vista como uma continuidade entre geraes, e este um ponto importante para o entendimento das relaes contratuais e para enquadramento das possibilidades do corpo campons, como veremos. Desse modo os trs autores revisitados compreendem o grupo domstico como central para a compreenso do campesinato no geral. Mas, o que se enfatiza , fudamentalmente, a produo econmica pela famlia, mas do que a produo social da famlia, como instituio e como valor, ou ainda as relaes entre famlias. Tudo indica que Chayanov, Tepicht e Galeski influenciaram na instituio scio-histrica do TB, e, em conseqncia, ordem do discurso do TB recebe um verniz funcionalista, em que a sexualidade camponesa ganha um estatuto natural de mais-valia sobre o qual se apoia a instituio do TB. Em tese, e j antecipando, a Ordem do discurso sobre o rural estabelece aquilo que, para o TB e no , aquilo que pertinente e aquilo que no o , o peso, o valor, a traduo daquilo que pertinente e a resposta correspondente.
Eric Wolf E Henri Mendras: Do Corpo-Mutilado
Mas como foi teorizada essa pretensa e ambiciosa produo social da famlia como instituio e como valor, ou ainda, como se do os laos de sociabilidade entre famlias conforme os tericos das sociedades camponesas? Eric Wolf e Henri Mendras, dentre outros, tentaram estabelecer de modo pontual esse discurso sobre o rural, definindo o corpo a partir do que Castoriadis (1985) chama de lutas explcitas, isto , aquelas lutas visveis, oficializadas, formais, em que se focaliza a tradio, a histria, os bons costumes, ou, pelo menos, no que se pode chamar de sua organizao e sua ao explcitas: jogos polticos, ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 11 rituais religiosos, partidos, laos de parentesco, compadrio, herana etc. O TB, como veremos, pouco se atenta para as lutas implcitas, isto , as aes e as afeces cotidianas, implcitas existncia do casamento, a prpria condio de casado, em que os encontros noturnos extraconjugais so apenas uma das facetas ilustrativas de tais lutas. A famlia explcita ento retratada, significada, selecionada, valorada, pois a instituio da famlia como valor central dinmica afetiva do campo , ao mesmo tempo, instituio desta exigncia e da resposta que, de cada vez, lhe fornecida. Neste contexto, alguns pensadores europeus clssicos e contemporneos, de fora, influenciam o discurso padro, conforme, de muitos pesquisadores brasileiros, de dentro, da racionalidade integral daquilo que , da identidade camponesa como determinante, na elaborao sistemtica do TB. Percebe-se, assim, a importncia do pensamento-modelo desses pensadores edificao de meu objeto de estudo: o corpo-mutilado. Neste sentido, Eric Wolf (1970) ao tratar do fundo matrimonial na Zadruga, Eslvia do Sul, afirma que
O casamento possibilita a satisfao sexual, e as relaes dentro dessa unidade geram afeies que ligam todos os membros entre si. 12
Em sua tentativa de se distanciar de uma ordem econmica para o campesinato, embebido pela influncia implcita do modelo chayanoviano, Wolf apregoa e avana, em termos, ao constatar que o campons no realiza um empreendimento no sentido econmico, mas ele sustenta uma famlia e no uma empresa. Assim, o campons, nos mais diversos lugares do globo, haja vista que o autor no se centra em apenas uma sociedade camponesa, procura organizar seu cotidiano por meio de gastos, que para o socilogo so necessrios para a restaurao de sua subsistncia, como para a produo e para o consumo, isto , o que ele conceitua como fundo de manuteno. Por sua vez, ao pensar nos excedentes sociais (festas, viagens etc), Wolf discorre sobre o fundo cerimonial. Assim, se o campons tem pretenses a participar das relaes sociais, e aqui acreso relaes no mbito institudo, explcito no sentido castoriadiano, dever trabalhar para a criao de um fundo visando s despesas por tais atividades. O campons , para Wolf, concomitantemente um agente econmico e o cabea de uma famlia. Sua propriedade tanto uma unidade econmica como um lar. Mormente, ao tratar da dinmica da categoria famlia o autor infere que ela a mais restrita e ntima unidade que vive o campons. 13
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 12 No trato do papel scio-afetivo desempenhado pelo homem campons, Wolf afirma que tal incumbncia gira em torno dos rituais cerimoniais. Neste sentido, o papel do pai- marido reforado na famlia por apoio gerado fora desta. O casamento, por sua vez, ganha importncia capital para o socilogo. A sexualidade camponesa , para ele, funcionalmente delineada. Um imaginrio institudo que tem como funo perpetuao da espcie na composio da ideologia camponesa, ou seja, o campons, espcie de corpo-mutilado, em que a satisfao sexual est paralelamente interligada boa (re)produo da prole. Ainda, ao analisar o papel sexual da mulher camponesa, Wolf argumenta que ele est subordinado a um sistema de autoridade centralizado no macho, como prevalece, segundo o socilogo, entre a maioria das sociedades camponesas, pois como ele categoricamente afirma:
Num sistema de autoridade centralizada no macho, como prevalece entre a maioria dos camponeses, as mulheres devem aprender a ajustar seus desejos aos desejos prioritrios de seus maridos. 14
Destarte, na esfera cerimonial, Wolf afirma que a dinmica cerimonial responsvel pelas recompensas para as condutas apropriadas, quanto pelas sanes e penas para as irregularidades. Logo, em sociedades camponesas, o cerimonial gira em torno da unidade domstica, manipulando o pretenso controle das tenses que surgem no decorrer das aes. Segundo ele, o cerimonial tem como eixo primordial sustentar e unir conjuntos de atores que, sem isso, podem decair e buscar identidades sociais separadas. Em tais sociedades, os indivduos agiam geralmente dependentes mutuamente, o que lhes do um senso de continuidade que torna a vida praticvel e significativa, pois para Wolf, o campons mantm-se absorvido nos requisitos do seu sistema social limitado:
No que o campons seja estril em termos de criao ideolgica, mas ele est limitado na sua criatividade por sua concentrao em tarefas de primeira ordem, que se expressam no seu ecossistema e companheiros de trabalho. 15
A ttulo de exemplificao, ao pensar nas tradies religiosas no campo, imersas nas aes cerimoniais, Wolf acentua a eficcia simblica das sanes sobrenaturais para as condutas desviantes. Neste sentido, ele demonstra a forte nfase destas sanes de conduta no mbito das comunidades camponesas, nas quais as tenses estruturais entre grupos domsticos so comumente violentas, embora sejam silenciadas em nome do ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 13 interesse da unio e da coexistncia vicinal. Portanto, as prticas religiosas, para Wolf, no se explicam unicamente em seus prprios termos, mas funcionam para sustentar e equilibrar o ecossistema campons e a organizao social, como tambm constituem um componente da ordem ideolgica mais ampla. Ela forja, ento, mais um elo do que uma insero do campesinato quela ordem. Um outro autor, Henri Mendras (1978), fundamentado em vrias regies que compem a campagne francesa, defini-institui o campons afirmando que por campons, necessrio entender a famlia camponesa, a unidade indissocivel que conta ao mesmo tempo os braos que trabalham e as bocas que tm de ser alimentadas. 16 . E ainda seguindo este raciocnio, ao categorizar sobre a fora inconteste do costume, interroga: sendo o modo de vida fixado pelo costume, quem poderia sonhar em comer mais ou melhor e a se vestir diferentemente? 17 . Neste contexto analtico, posso perceber que a problemtica da diferena evacuada e os processos de subjetivao aparentemente ignorados. Tratando o campesinato como algo basicamente rotineiro, e influenciado ainda pelo iderio chayanoviano, Mendras prossegue sua anlise sobre sociedades camponesas reduzindo a famlia noo de grupo domstico, isto , aqueles que vivem do mesmo pote e do mesmo fogo, do mesmo po e do mesmo vinho, subscrevendo, por exemplo, a relevncia do parentesco para os estudos sobre o campo 18 . Para Mendras, a diviso sexual do trabalho est no interior do grupo domstico. Nas sociedades camponesas as classes de idade e de sexo isolam-se na transmisso de uma parte da cultura e na dinmica do vivido, do coletivo, sobremaneira, na organizao das festas. Neste sentido, as nicas diferenciaes de papis que as sociedades camponesas conhecem so as devidas ao sexo, idade, posio dentro da parentela ou do grupo domstico, ou, finalmente, as devidas ao exerccio de um ofcio ou de uma funo particular. Eis a ordenao social proposta por Mendras, um Corpo-assim, coercitivamente exercido via controle social, engendrado pela rotina. Mormente, as relaes sociais so, para ele, codificadas em um nmero restrito de situaes e de intercmbios, que por sua vez so claramente definidos e conhecidos, onde cada campons cumpre seu papel correspondendo s expectativas do prximo.
Desse arranjo da regulao social resulta uma previsibilidade muito grande dos comportamentos, ligadas a essa transparncia da sociedade para seus membros. Cada ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 14 um sabe como deve conduzir-se e sabe tambm que os outros esperam dele um tal comportamento em tal situao. E, sendo conhecidas e estereotipadas todas as situaes, jamais se apresenta a ocasio para inventar um comportamento novo, ao menos no funcionamento regular da vida social. 19
Nesse apangio analtico o juzo moral supe uma moral vlida para todos e aceita por cada um, de forma tal que as divergncias no apaream seno nas nuanas da prtica que d lugar ao confronto de opinies diversas. Assim, as sociedades camponesas parecem cimentar seu sistema social em um arranjo entre homogeneidade cultural e diversidade social. Segundo Mendras, a economia camponesa funciona essencialmente para responder s necessidades da famlia e, de forma mais abrangente, as da coletividade local. Ao tratar da conduta desviante, criada pelas mudanas globais, o socilogo afirma ainda que o campons no tem razes para pr em questo sua rotina nem tentar uma transformao de suas prticas 20 . Pois, tal qual os notveis, aqueles sujeitos migrantes que ao retornarem para a aldeia trazem consigo as novidades de fora, este campons desviante que passa a atuar no mais como os outros, influenciado por tais mudanas globais, , para o autor, um objeto de escndalo em uma sociedade de interconhecimento. Tais novidades tendem a ser domesticadas, selecionadas, ou descartadas, em prol de um Ns, pois a tradio, para ele, precisamente o que se explica por si mesmo e no se pe em causa. Em conseqncia, o campesinato em Mendras institui os corpos-mutilados de homens, mulheres e crianas, sendo as mudanas uma mera adaptao domesticada. Este aparato analtico vale como instrumental na medida em que vale para fazer aquilo que permitem fazer. Ilustrao dos esquemas operativos identitrios e das tcnicas tradicionais que arquitetam o valer explcito em termos castoriadianos. Apoiados nos esquemas do valer para..., quanto a..., tais correntes ideolgicas tm como objetivo tal instrumento, tal ato, tal gosto a que entra na medida em que apropriado a..., com vistas a..., ou seja, na medida em que tem um valor de uso, na medida do til para o corpo-funcional.
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 15 Martine Segalen E Karin Wall: Do Corpo-Funcional
Martine Segalen (1980), centrada em vrias regies que compem o campesinato francs, afirma que o amor existe em ambincias agrrias, mas ele um valor afetivo subordinado organizao social da ideologia camponesa.
Le systme de reprodution sociale fonctionne, protgeant la liaison fondamentale entre lunit conomique dexploitation et le mnage. Quil y ait amour ou non, libert ou pas, la stratgie familiale de lalliance rcupre le mnage pour assurer la marche de la ferme. Le mariage apparat en effet comme une association qui confronte immdiatement les poux aux ncessits conomique quotidiannes. 21
Para Selagen, a sociedade rural reduz arbitrariamente, de forma pejorativa, as mulheres que experimentam o amor intempestivo, que burlam com a ordem natural das coisas. Portanto, os rituais de casamento, que falam de autoridade, falam tambm de sexualidade de forma implcita, domesticada.
La socit rurale redoute ces femmes qui ont besoin damour, qui dtruisent lordre naturel (...) et qui instaurent lavnement du monde lenvers. Les rituels de mariage, losquiils nous parlent dautorit, nous parlent aussi de sexualit de faon implicite. 22
Endossando mais uma vez a diviso sexual do trabalho, homens, mulheres e crianas tm sua sexualidade dependente e inscrita nesta. O corpo-funcional do campons, casto e castrado, a Ordem no desejo, institui sujeitos sexualizados em prol dos contratos parentais/vicinais. Apesar de Segalen apontar para a questo da ambigidade do estatuto do masculino e do feminino em sociedades camponesas, ela se prende a um forte reducionismo em suas assertivas.
Dailleurs, le statut du masculin et du fminin nest pas sans ambigut et la socit traditionnelle le reconnat. Il existe un champ flou de la masculinit/feminit, dans le cas de lhomme qui fait gendre. Il perd son nom, prend celui de la maison du lignage de sa femme; mais il reprend son statut dhomme lorsque, dans la pratique, la direction du mnage lui est chue, de pre gendre. 23
Outrossim, para Segalen, a vida cotidiana camponesa impregnada por uma pedagogia da sexualidade, sem grandes problemas aparentes. Desde a mais terna infncia as crianas aprendem observando a reproduo scio-sexual inculcada pela ideologia camponesa 24 . Para a historiadora, nas pequenas casas onde co-habitam adultos e crianas, ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 16 as relaes sexuais so mais facilmente conhecidas, haja vista que a diviso das casas , em sua maioria, menos compartimentada. Destarte, no pensamento segaleano, o controle e a domesticao, apesar de criticar as caricaturas formuladas pelos folcloristas, arma o corpo do campons e loca sua sexualidade instituda, pois une sexualit latente imprgne toute la vie paysannne 25 . Por sua vez, Karin Wall (1998), uma outra pesquisadora das sociedades camponesas, ao analisar duas freguesias do Baixo Minho, campesinato portugus, reala uma inovao: a ajuda exercida por homens na organizao dos filhos e dos trabalhos domsticos que passa a ser, em todos os meios, bem vista e socialmente aprovada. Quebra- se assim o desprezo pela participao dos homens no trabalho domstico, mas mantm-se intacta uma identidade feminina ligada construo e conservao do espao ntimo da famlia.
Nas famlias mais pobres, onde o adulto, fosse mulher ou homem, deitava mo a qualquer trabalho para sobreviver, desde ir servir aos oito anos, trabalhar a jornal, fazer venda ambulante, tecer em casa ou ajudar quem mandasse chamar, era muitas vezes mais difcil de pr em prtica o estatuto de dona de casa. a que por vezes se encontra o homem a fazer trabalho de mulher e vice-versa. No entanto, enquanto produto da pobreza e da necessidade, a famlia onde o homem tinha de pr o tacho ao lume era desconsiderada e desprezada. 26
Para Wall, a idade fator de prestgio. Ser mais velho e do sexo masculino define um estatuto mais elevado, aquele que, segundo os camponeses portugueses, deve impor o respeito. Respeito associado ao medo, porque autoriza a utilizao da violncia e do castigo, em que o macho campons tem nos seus prprios gestos corporais um sinalizador para acionar tal medo no Outro subalterno (a mulher camponesa, sobretudo). Apesar de tais inovaes no campo da aparente flexibilidade de papis scio-sexuais, Wall mantm uma viso utilitarista e economicista sobre o rural. Ao retratar passado e presente nas duas freguesias portuguesas (Lemenhe e Gondifelos), a pesquisadora recobra certos valores compreendidos como basilares, embora de forma enrijecidos, institudos. Neste sentido, homens, mulheres e crianas tm sua sexualidade ligada labuta, a esteretipos que articulam os discursos do imaginrio de um corpo-funcional. Em relao aos casais mais novos, Wall ressalta que eles valorizam os fatores de entendimento, de entreajuda e o projeto familiar, hesitando um pouco mais em por de lado o fator sexualidade. Segundo ela, pelo menos os camponeses falam dele, mas ressaltado, ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 17 ainda, em termos compensatrios. Neste caminho, a pesquisadora aponta para os jovens, do meio rural abastado, que evocam duas limitaes que condicionam fortemente a relevncia dada, efetivamente, aos diferentes fatores da conjugalidade, e ao das relaes sexuais em particular. A este respeito, a primeira limitao recobra o controle social exercido pela comunidade, surgindo intromisses e presses suplementares sobre as respectivas pessoais e sobre as suas famlias. A segunda limitao, como aponta Wall, no trato dos jovens abastados, parece construir-se sem sobressaltos, no receio de se atribuir demasiada importncia ao fator entendimento sexual, correndo o risco de por em causa um casamento que, partindo do ponto de vista dos jovens, se trata de um empreendimento-homogamia- projeto. A reproduo biolgica da famlia enfatizada. A complementaridade e a dependncia da mulher camponesa em relao ao marido so endossadas. Reciprocidade que corrobora para tornar as sexualidades subordinadas no retorno ao Ns. A um iderio que pretensamente quer silenciar ou maldizer outros modos de vida, em prol de um corpo- funcional, pois como Wall institui:
O controlo e a responsabilidade do l fora (os campos) pertence sempre ao homem, enquanto a responsabilidade do c dentro filhos, cozinha, horta e galinheiro pertence mulher 27 .
Em tese, as duas pesquisadoras convencionam identidades institudas para homens, mulheres e crianas, ditados pela onipotncia e onipresena de um corpo-funcional. Este corpo institudo, inflacionrio, torna-se cada vez mais comum o vis identitrio, o conforme. A instituio (corpo-funcional) instituio de um mundo no sentido de que ela deve e pode cobrir tudo, que tudo, em e por ela, deve, em princpio, ser dizvel e representvel, e que tudo deve ser includo na rede de significaes, logo, tudo deve fazer sentido, valer. Neste contexto, para Castoriadis a maneira pela qual, de cada vez, tudo faz sentido, e o sentido que faz, provm do ncleo de significaes imaginrias da sociedade considerada 28 .O corpo-funcional que se delineia no TB uma criao de imagens, significaes e sentidos filtrados que tm como base s lutas explcitas das sociedades camponesas, somente elas, caricaturais, oficializadas. Segalen e Wall so bons exemplos de como o Texto sobre Camponeses, para alm do Brasil, em sua contemporaneidade, continua, salvo rarssimas excees, uma colagem de idias que se dogmatizam por meio ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 18 de um Corpus Academicus sobre sociedades camponesas e que encontra sua aplicao tcita em projetos e polticas pblicas a favor dos marginalizados, dos camponeses, j definidos e medidos, com todos os seus segredos revelados, quase sempre desvitalizados ou refns de uma literatura redundante, de um imaginrio prt--porter, aceito como tal.
A Singularidade de Pierre Bourdieu: Do Campons Como Classe-Objeto
Pierre Bourdieu inicia sua carreira acadmica trabalhando a crise do mundo campons, tanto na Arglia, onde, durante o seu servio militar, fez seus primeiros contatos intelectuais, quanto na pequena cidade do Barn, onde o socilogo nasceu em 1930 29 . No trato do campesinato, o autor ainda publicou Le Dracinement, uma obra que trata da crise da agricultura tradicional na Arglia, qual foi preciso acrescentar Algrie 60, em que Bourdieu analisa o encontro da sociedade camponesa argelina tradicional com o esprito do capitalismo. Em 1962, funda a revista tudes Rurales, na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, onde publica um longo artigo intitulado Clibat et condition paysanne, no qual mostra que a crise do campesinato no encontra sua explicao apenas no capitalismo agrrio, mas tambm nos mecanismos muito mais sutis que se relacionam com a prpria reproduo e, inclusive, com a reproduo biolgica dos indivduos. Ao tratar da subordinao, sobretudo nos discursos dominantes e acadmicos, sobre o campesinato no geral, Bourdieu (1977b), em Une classe-objet: la paysannerie, disserta que a fora motriz do ponto de vista dos outros se pauta em um julgamento (J uzo) que institui, na representao, a persona do campons, o transforma em objeto cientfico, em detrimento de um ato de cientificidade sobre o Outro, por parte dos socilogos e dos antroplogos, sem muitas vezes se atentarem para as contradies envoltas no homem do campo e em seu corpo.
Cest--dire avec la force de ce qui est dit avec autorit: sans cesse invits prendre sur eux-mme le point de vue des autres, porter sur eux-mme un regard et un jugement dtrangers, ils sont toujours exposs devenir trangers eux-mme, cesser dtre les sujets du jugement quils portent sur eux-mme, le centre de prespective de la vue quils prennent deux-mmes. Entre tous les groupes domins, la classe paysanne, sans doute parce quelle ne sest jamais donn ou quon ne lui a jamais donn le contre-discours capable de la constituer en sujet de sa propre vrit, est lexemple par excellence de la ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 19 classe objet, contrainte de former sa propre subjectivit partir de son objetiviation. (...) De ces membres dune classe dpossde du pouvoir de dfinir sa propre identit, on ne peut mme pas dire quils sont ce quils puisque le mot le plus ordinaire pour les designer peut fonctionner, leurs yeux mmes, comme une injure le recours leuphmisme, agriculteur, propritaire terrien, en tmoigne affronts une objectivation qui leur annonce ce quils sont ou ce quils ont tre, ils nont dautre choix que de reprendre leur compte la dfinition (...) qui leur est impose ou de se dfinir en raction contre elle: il est significatif que la reprsentation dominante soit presente au sein mme du discours domin, dans la langue mme avec laquelle il se parle et se pense. 30
Nesse sentido, e j antecipando, a elaborao do Texto Brasileiro sobre o Rural e a criao de polticas pblicas em prol do campesinato brasileiro, institui, naturaliza, uma identidade camponesa caricatural, objetivada, habilitada: o ser campons como classe- objeto. Em conseqncia de tal limitao, muitos tericos esquecem as contradies provenientes das prticas corpreas e incorpreas do homem do campo, como o caso das subjetividades e das singularidades que emanam dos corpos e das sexualidades. Seguindo esse contexto, Bourdieu disserta:
Il est certain que lon ne pense peu prs jamais les paysans en eux-mmes et pour eux- mmes, et que les discours mmes qui exaltent leurs vertus ou celle de la campagne ne sont jamais quune manire euphmise ou dtourne de parler des vices des ouvriers et de la ville. Simple pretexte prjugs favorables ou dfavorables, le paysan est lobjet dattentes par dfinition contradictoires puisquil ne doit dexister dans le discours quaux conflits qui se rglent son propos. 31
O campons torna-se folclore, via ordem objetiva no discurso do TB. Objeto legitimado por uma identidade cultural, isenta de suas pulses e vibraes. Um personagem quase nulo de suas paixes, pois o que vale para muitos tericos das sociedades camponesas so as estruturas e funes e no as intensidades e as paixes. Eis a construo de uma sociologia e de uma antropologia assimtricas, duais, que fazem do corpo do campons uma hierarquia idealizada de valores, que sufoca o novo, a mudana, o intempestivo, o desejo, outros modos de vida. E Bourdieu (1977b) acresce:
Mais peut-tre la contradiction est-elle plus apparente que relle, les divisions les plus irrductibles subjectivement la floklorisation, qui met la paysannerie au muse et qui convertit les derniers paysans en gardiens dune nature transforme en paysage pour citadins, est laccompagnement ncessaire de la dpossession et de lexpulsion. Ce sont en effet les lois du profit diffrentiel, la forme fondamentale du profit de distinction, qui assignent aux paysans leurs rserves, o ils auront tout le loisir de danser et de chanter leurs bourres et leurs gavottes, pour la plus grande satisfaction des ethnologues et des touristes citadins, aussi longtemps que leur existence sera conomiquement et symboliquement rentable. 32
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O campons torna-se uma espcie de ente missionrio. Holocausto do corpo vibrtil em nome da Trade Deus-Homem-Natureza. Um corpo-mais-valia, um corpo-mutilado, um corpo-funcional, um corpo-bblico, um Corpo-assim, o campons, ou melhor, a ordem do discurso da identidade camponesa, apregoada pelo TB, apresenta o que Bourdieu (1980b) chama de racisme de lintelligence, isto ,
Le mode deuphmisation le plus rpandu aujourdhui est videmment la scientifisation apparente du discours. Si le discours scientifique est invoqu pour justifier le racisme de lintelligence, ce nest pas seulement parce que la science reprsente la forme dominante du discours lgitime; cest aussi et surtout parce quun pouvoir qui se croit fond sur la science, un pouvoir de type technocratique, demande naturellement la science de fonder le pouvoir; cest parce que lintelligence est ce qui lgitime gouverner lorsque le gouvernement se prtend fond sur la science et sur la comptence scientifique des gouvernants (...) La science a partie lie avec ce quon lui demande de justifier. 33
Eis o que se costuma ouvir nos muitos discursos pblicos no vilarejo de Goiabeiras (locus etnogrfico desta dissertao, como veremos mais detalhadamente nos captulos que se seguem), e para alm dele, trabalhadores rurais que encontra na ideologia camponesa, nas polticas pblicas, nos projetos do governo e nos tericos do campesinato, um corpo naturalizado, inculcado, por um saber-fazer produzido na academia em prol das polticas dos gneros, do direito terra, do direito subsistncia. Direitos garantidos, selecionados, institudos. Uma mais-valia sobre as sexualidades, uma construo limitada por uma categoria classe-objeto, grilho da cientificidade do Homo Academicus. Neste sentido, em Homo academicus, Bourdieu (1984) disserta acerca do ponto de vista cientfico:
Il ny a pas dobjet qui nengage un point de vue, sagirait-il de lobjet produit dans lintention dabolir le point de vue, cest--dire la partialit, de dpasser la perspective partielle qui est associe une position dans lespace tudi. 34
Dessa forma, a sexualidade camponesa, com rarssimas excees, se centra, segundo o TB, na vertente, heterossexual. Outros afectos indizveis, por sua vez, permanecem fadados expulso funcional e ao anonimato terico. Discurso direcional em que prevalece nos confins do rural uma sexualidade em funo do patrimnio, em funo da herana, em funo do parentesco, em funo do compadrio, sem dar espao para as paixes e intensidades para alm do casal, do casamento, do grau parental. O corpo do ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 21 campons patenteado, sua vida ordenada, policiada, para a perpetuao de um grupo de tericos, espcie de novos padres, com suas Verdades e seus J uzos professados.
Cet effet ne peut passer inaperu dans le cas limite des proprits qui sont officiellement ou tacitement exclues de toutes les taxinomies officielles et institucionnalises ou mme officieuses ou informelles, comme lappartenance religieuse ou les dispositions sexuelles (htrosexualit/homosexualit), bien quelles puissent intervenir dans les jugements pratiques et tre associs des variations visibles dans la ralit observe. 35
Eis as selees das informaes. O TB qualifica os bons assuntos, as boas temticas, o bom discurso. Um ordenamento naturalizado chamado campesinidade, ou seja, um campesinato a partir do ponto de vista de uma moralidade oficializada e academicista. Ora, como moralizar, organizar, trocar, equivaler as paixes? Como delimitar as intensidades e possibilidades do corpo? Como trazer o desejo para o campo da representao, da performance, do identitrio? E Bourdieu continua:
Tout permet de penser que le chercheur a moins intrt, du point de vue de la qualit scientifique de son travail, voir les intrts des autres qu voir ses propres intrts, savoir ce quil a intrt voir et ne pas voir. 36
A vida ordinria do campons, e para alm dele, est repleta de indizveis, de atos inconfessveis. Discursos-outros, linguagens corpreas, silenciosas como veremos nos captulos que se seguem, quando tratarei do indizvel das sexualidades camponesas. A paixo e seus segredos, seus amores impossveis, suas intensidades que movem o corpo, o faz rodopiar. O TB, por sua vez, com seu corpo-mutilado, diludo na moralidade, no provvel, no J uzo, fez do homem do campo uma entidade consciente de si, um corpo controlado, bem-dito, um Corpo-assim. Neste sentido, vejamos o que ainda nos diz Bourdieu:
Dans lexistence ordinaire, on ne parle partiquement jamais de ce qui est que pour dire, par surcrot, quil est conforme ou contraire la nature des choses, normal ou anormal, admis ou exclu, bni ou maudit. Les noms sont assortis dadjectifs tacites, les verbs dadverbes silencieux qui tendent consacrer ou condamner, instituer comme digne dexister et de persvrer dans ltre ou, au contraire, destituer, dgrader, discrditer. Aussi nest-il pas facile darracher le discours de la science la logique du procs dans laquelle on veut le faire fonctionner, ne ft-ce que pour se donner la libert de le condamner. Ainsi, la description scientifique du rapport que les plus dmunis culturellement entretiennent avec la culture savante a toutes les chances dtre comprise soit comme une manire sournoise de condamner le peuple lignorance soit, linverse, comme une manire dissimule de rhabiliter ou de clbrer linculture et de dmolir les valeurs de culture. 37
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Bourdieu inaugura o novo na literatura sobre sociedades camponesas, um campons agente e no agido. Um homem do campo com subjetividade, contraditrio, dbio, intenso, estratgico, movimento e no inrcia, nada de pea funcional, nada de destino, nada de misso admica, nada de estrutura rgida. O campons anunciado por Bourdieu tem corpo, paixo, pura ao, pois como conceitua o socilogo:
Le corps est dans le monde social mais le monde social est dans le corps. 38
O campesinato, em Bourdieu, centrado nas estratgias, estas engendradas pelos agentes. O campons, como detentor de um sens de jeu, possuidor de um capital cultural e de um poder simblicos que faz o iderio da Trade Deus-Homem-Natureza se perder em seu prprio simulacro. Cartas lanadas, jogadas estrategicamente traadas, no tabuleiro que so os valores camponeses. Neste sentido, em La terre et les stratgies matrimoniales, o autor discorre:
La question des fondements conomiques du pouvoir domestique y est adorde avec plus de ralisme quailleurs (on raconte que, pour assurer son autorit marie, si possible au moment de la bndiction nuptiale, tandis que la marie devait plier le doigt de manire viter que le mari puisse enfoncer compltement lanneau nuptial), peut-tre parce que, du mme coup, les reprsentations et les stratgies y sont plus proches de la vrit objetctive, la socit barnaise suggre que la sociologie de la famille, si souvent livre aux bons sentiments, pourrait ntre quun cas particulier de la sociologie politique: la position des conjoints dans les rapports de force domestiques et leurs chances de succs dans la concurrence pour autorit familiale, cest--dire pour le monopole de lexercice lgitime du pouvoir dans les affaires domestiques, ne sont jamais indpendants du capital matriel et symbolique (dont le nature peut varier selon les poques et les socits) quils dtiennent ou quil ont apport. 39
As estratgias matrimoniais nada tm a ver com um campons classe-objet, fundamentado pelos tericos das sociedades camponesas, mas com manobras, mudanas, ao de homens e mulheres embebidos por um jogo fascinante que a vida e as vibraes dos corpos. No se trata de um cumprimento da misso admica, proposta pelo iderio de uma literatura sobre sociedades camponesas, porm de negociaes, de arranjos estratgicos manuteno da maison paysanne. O corpo, em Bourdieu, no desprezado, esquecido ou ainda silenciado, mas posto em jogo, posto a prova. Eis uma antropologia com o corpo e no sobre ele, em que o capital econmico e simblico tambm conta como faceta do valorar. ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 23
Cest dire en passant, contre la tradition anthropologique qui traite chaque mariage comme une unit autonome, que chaque transaction matrimoniale ne peut tre comprise que comme un moment dans une srie dchanges matriels et symboliques, le capital conomique et symbolique quune famille peut engager dans le mariage de lun de ses enfants dpendant pour une bonne part du rang que cet change occupe dans lensemble des mariages des enfants de la famille et du bilan de ces changes. 40
Em Clibat et condition paysanne, Bourdieu (1962) traz baila a questo estratgica do agente celibatrio. Este celibatrio que uma pea do jogo importante manuteno da herana, principalmente no que se trata do patrimnio Terra.
Si les donnes de la statistique et de lobservation autorisent tablir une corrlation troite entre la vocation au clibat et la rsidence dans les hameaux, si lapproche historique permet de voir dans la restructuration du systme des changes matrimoniaux sur le fondement de lopposition entre le bourg et les hameaux une manifestation de la transformation globale de la socit, il reste dterminer sil est un aspect de cette opposition qui soit en corrlation plus troite avec la vocation au clibat; par quelles mdiations le fait de rsider au bourg ou dans les hameaux et les caractristiques conomiques, sociales et psychologiques qui sont solidaires peuvent agir sur le mcanisme des changes matrimoniaux; comment il se fait que linfluence de la rsidence ne sexerce pas de la mme faon sur les hommes et sur les femmes; sil existe des diffrences significatives entre les gens du hameau qui se marient et ceux qui sont condamns au clibat; bref, si le fait dtre n au bourg ou au hameau est conditions ncessitante ou condition permissive du clibat. 41
Um exemplo singular 42 , prtico, do que apregoa Bourdieu, a etnografia de Brian J uan ONeill (1984), Proprietrios, lavradores e jornaleiras, que ao analisar o campesinato portugus, mais precisamente a regio montanhosa do norte, especificamente o vilarejo de Fontelas, traz tona a questo do celibato e da herana como estratgias matrimonias manuteno do patrimnio Terra entre as famlias abastadas. Por outro lado, o pesquisador tambm aponta para os filhos ilegtimos das famlias abastadas com as jornaleiras pobres, fomentando a base da pirmide scio-econmica do vilarejo. Assim, ONeill avana, recobrando um celibatrio com sexualidade, porm, ao meu ver, ainda limitado, pois o celibato de muitas jornaleiras est devotado s estratgias matrimoniais, gozo institudo em prol da herana. No trato dalgumas famlias abastadas, ONeill disserta:
O quarto a casar foi o filho mais velho, Bento. O seu matrimnio foi particularmente revelador por diversas razes; dez anos antes do seu enlance com a criada Tomsia, nasceu um filho ilegtimo a este casal. (J anteriormente, Bento tinha sido pai doutro filho bastardo de uma mulher de uma povoao vizinha.) Trs dos seus filhos foram legitimados na altura da boda em 1943, e a mais nova (com 18 meses de idade) foi batizada imediatamente aps a cerimnia nupcial. Os matrimnios de Manuela e Bento ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 24 constituem, assim, um contraste flagrante: ao passo que Manuela casou primeiro, com um conceituado proprietrio de fora, ficando na casa natal, Bento casou abaixo da sua posio social, em idade avanada, pai de quatro filhos ilegtimos, tendo de l sado. 43
Assim, no contexto etnogrfico de Fontelas, os vrios casos de filhos ilegtimos, entre famlias abastadas com jornaleiras pobres, no ameaam o capital material, (especificamente o patrimnio Terra), mas, por sua vez, afetam o capital simblico (o prestgio) de uma famlia rica. Estrategicamente, os filhos bastardos herdam sempre das suas mes, mas no dos seus pais, a menos que sejam formalmente perfilhados ou legitimados. Neste contexto, ONeill acresce:
Pelo contrrio, os filhos ilegtimos originrios de unies entre homens abastardos (Bento) e mulheres pobres podem afetar o prestgio do pai mas no constituem qualquer ameaa para o patrimnio deste. Existe pois uma nfase sobre a transmisso da propriedade atravs das linhas dos descendentes que sejam estrategicamente aqueles que casam primeiro e que ficam dentro do lar natal. Evidentemente, alguns irmos podem casar cedo mas com um cnjuge de fora, afastando assim as ameaas potenciais ao patrimnio familiar. Mas, partida, nem todos os irmos podem aspirar posio do favorecido, sobretudo se esta posio implicar um matrimnio estritamente controlado. Por outras palavras, entre os proprietrios, os poucos eleitos conseguem ligar propriedade, casamento e sexualidade; ao invs, os herdeiros secundrios que se mantm desviados da linha central de transmisso da propriedade podem nunca casar ou ento casar muito tardiamente. Alm disso, estes herdeiros, tacitamente excludos, podem ser constrangidos a no ter relaes sexuais pura e simplesmente (no caso das mulheres abastadas) ou a serem forados pelas condies a praticar uma sexualidade ilcita e extraconjugal (caso dos homens) com mulheres dos grupos sociais mais baixos. 44
Dessa forma, em Fontelas, a ilegitimidade est intimamente ligada herana post- mortem e tentativa de evitar a partilha atravs da instituio informal de separar um herdeiro favorecido de vrios herdeiros secundrios; estes ltimos, como ressalta ONeill, so afastados da linha principal de transmisso da propriedade que desce atravs do irmo casado (o herdeiro favorecido), mas no lhes so inteiramente negadas as relaes sexuais.
Assim, tal como no caso dos proprietrios, alguns indivduos so escolhidos s eles podem conseguir reunir casamento, propriedade e sexualidade legtima; os restantes devero permanecer celibatrios, casar muito tardiamente ou estabelecer ligaes sexuais fora do matrimnio legal. este excedente de homens solteiros que constitui, na realidade, o grupo de pais incgnitos dos filhos bastardos de um pequeno nmero de jornaleiras, grande parte da informao coligida a partir dos Ris de Confessados, do Registro Paroquial e das genealogias aponta para esta concluso. 45
Um dos casos exemplares o de Rufina Pires, jornaleira solteira de 30 anos de idade, vivendo sozinha, em 1886, apresenta em 1891, uma filha (Carmelinda, de 9 anos), ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 25 como aparece na lista do primeiro Rol de Confessado. Porm, no Registro Paroquial de batismo, h uma indicao que Carmelinda era de fato a segunda filha ilegtima de Rufina. Uma outra filha tinha nascido em 25 de Maio de 1877, cinco anos antes da data de nascimento de Carmelinda. Tanto uma como a outra, discorre ONeill, encontram-se registradas explicitamente no assento de batismo como filhas natural, o assento de Carmelinda, por exemplo, alega que ela era filha de Rufina e de um pai incgnita. Ao chegar a 1902, aparece um terceiro filho vivendo na casa de Rufina, trata-se de Cipriano (com 10 anos) que nasceu em 19 de fevereiro de 1888. Este era tambm filho natural de Rufina e de pai incgnito. Em 1907 trs filhos so listados na famlia, desta vez incluindo- se a quarta filha de Rufina, Marta, com 10 anos de idade; esta nascera no dia 29 de maro de 1891 e tambm referida como filha ilegtima de pai incgnito. Portanto, podemos perceber, por meio deste exemplo de Rufina Pires, que o celibatrio torna-se uma espcie de reserva estratgica manuteno da herana, em que as sexualidades ainda institudas parecem cimentar o tabuleiro do jogo. Assim, ONiell apresenta trs tipos principais de bastardia e, em segundo lugar, o elo entre a ilegitimadade e o celibato dos herdeiros excludos. Neste sentido, h trs formas fundamentais deste fenmeno, que podem ser classificados, segundo o pesquisador, em 1) uma relao entre uma mulher e um homem solteiro, levando (evidentemente) ao casamento e legitimao dos seus filhos; 2) Uma relao (ou relaes) entre uma mulher e um ou mais homens solteiros, que no conduz ao casamento ou legitimao; e 3) A explorao de uma mulher pobre por um homem abastado (casado ou solteiro), que no leva ao casamento ou legitimao. Ainda, no trato das jornaleiras de Fontelas, ONeill disserta:
Entre os jornaleiros existem poucas razes para a seleo de um herdeiro favorecido, uma vez que as quantidades de bens possudos por este grupo so to escassas. Assim, muitos dos jornaleiros encontram-se efetivamente fora da corrida para o matrimnio e a propriedade, visto que, desde o princpio, detm as ms cartas; as estratgias no se dirigem pois para a conservao do j reduzido patrimnio, nem to-pouco para a criao de um grande grupo de trabalho composto por muitos filhos, que de qualquer forma um fogo de jornaleiro seria incapaz de sustentar. Em tempos, as estratgias desenvolvidas pelo jornaleiro poderiam ter tido como objetivo jornas garantidas ou boas relaes laboriais com os proprietrios abastardos; um campo alargado de casas que oferecessem trabalho poderia assegurar emprego a jornaleiros nas principais tarefas agrcolas, o que seria garantia de jornas relativamente estveis. Mais recentemente, as capacidades dos membros deste grupo em manipular as suas j limitadas opes de vida ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 26 partida tm-se orientado para a sada definitiva da povoao, tendo em vista conseguirem um trabalho permanente em Frana. 46
Contudo, segundo ONeill, este caminho percorrido pelas jornaleiras no to fcil. Num status subalterno, estas mulheres formam a vlvula de escape para os herdeiros masculinos incapazes de obterem melhores posies dentro das suas casas natais. Assim, a tenso estrutural (nos grupos abastados) entre as foras antagnicas do matrimnio e do patrimnio s se resolvem atravs de unies dos herdeiros masculinos excludos com jornaleiras pobres.
O autntico celibato unicamente reservado para as mulheres dos grupos mais ricos, enquanto um grande nmero de homens solteiros (normalmente herdeiros secundrios) tem relaes com um pequeno grupo de jornaleiras solteiras; este excesso de herdeiros excludos que constitui de fato os pais incgnitos dos filhos ilegtimos. Sob a aparncia da igualdade jurdica de consortes esconde-se a desigualdade rgida na herana: esta disparidade entre herdeiros espelhada pelo fosso social mais amplo que separa os dois grupos abastados em terra do dos jornaleiros. No fundo, os herdeiros desta desigualdade estrutural generalizada so o grupo marginal das mulheres pobres e seus filhos bastardos. 47
Ainda em relao s assimetrias existentes entre os jovens casais abastados e os jovens casais pobres, ONeill disserta: Em relao aos jovens casais abastados:
costume entre os proprietrios que o primeiro namoro de uma jovem conduza ao casamento ou ao celibato permanente. H pois, aqui , a idia de que a virgindade e o status elevado se encontram intimamente ligados, assim como a possibilidade de levar uma vida respeitvel sem que isso implique obrigatoriamente o matrimnio ou ter filhos. Em contraste com os lavradores e jornaleiros, este grupo vigia as suas filhas e os seus pretendentes com grande cuidado e desconfiana. Com efeito, os interessados em jogo neste caso so realmente muito maiores da que os aldeos lamentam no s a perda de mulheres que nunca casam mas tambm o desaproveitamento de grandes quantidades de terra. O prprio vocabulrio da corte utilizado com mais preciso pelos proprietrios: emprega-se a palavra namoro mais amide, assim como os termos prometido e noivo/noiva. No entanto, subsiste uma certa diferena entre as situaes dos herdeiros favorecidos que casam muito novos e dos co-herdeiros que normalmente casam tarde, se que o fazem: a corte formal pode ser rpida e efetiva para os primeiros, ao passo que para os ltimos pode arrastar-se ao longo de dcadas. A questo fundamental a de saber se esta forma diluda de relaes prolongada dever ou no ser chamada namoro. 48
Em relao aos jovens casais pobres:
Entre os pobres a situao diferente. As palavras namoro e noivo/noiva so utilizadas menos freqentemente, e a prpria relao de corte levada menos a srio os temas de ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 27 conversas so bem outros. Neste caso, no s se diz que os dois jovens andam juntos mas at mesmo que dormem juntos. Abunda na aldeia uma rebuscada bisbilhotice relacionada com os pormenores destas unies. Este tipo de conversa, s por si, chocaria grande parte dos proprietrios, e quando os moradores falam de tais assuntos em lugares pblicos, o proprietrio ou padre que passe recusa-se a prestar ateno. Os proprietrios no seu conjunto (e o clero) consideram os hbitos amorosos dos pobres como moralmente aberrantes e incorrigveis e, em momentos extremos, afirmam que a culpa reside no sangue deles. Ao contrrio dos padres existentes entre as famlias abastadas, as raparigas daquele grupo podem ter uma srie de namorados e, no obstantes, virem a casar com respeitabilidade. Na verdade, j verificamos que vrias jornaleiras casaram muitos anos aps terem tido diversos filhos bastardos. Como dentro desde grupo so to freqentes os nascimentos ilegtimos., funciona um conjunto de presses distintas que sugere um tipo particular de cdigo sexual alternativo. 49
Podemos perceber, nos dados etnogrficos de ONeill, uma clara aluso s estratgias matrimoniais e a questo do celibato, propostos por Bourdieu. O questionamento que levanto a permanncia, no plano das estratgias, do iderio da organizao social e do parentesco como autorizadores da sexualidade, ou seja, uma sexualidade limitada, e naturalizada, herana e ao matrimnio. A relevncia do trabalho de ONeill o enfoque no celibatrio com sexualidade. Diferentemente de muitos tericos do campesinato, o celibatrio aqui participa das estratgias matrimonias de forma ativa os filhos ilegtimos so um exemplo revelador. Porm, pouco se dar espao para a intensidade e para a paixo. Parece que a sexualidade, no solteiro, est fadada ao cumprimento das regras matrimoniais ou compensao destas. Nenhuma aluso dada s sexualidades fora da reproduo da espcie, seja entre os celibatrios, seja entre os casados abastados ou jornaleiros. O campons, portanto, permanece cumpridor de sua misso imaginria imaginrio institudo que fomenta o Texto Brasileiro sobre o Rural.
O Texto Brasileiro Sobre O Rural
O Texto Brasileiro uma palavra de Ordem. Um discurso autorizado sobre o Outro. uma espcie de palavras rgia estruturada sobre o Outro pessoa, coisa, objeto. Ora, o TB, com seu imaginrio e constelaes de palavras bem-ditas, insere-se no campo de uma certa magia. As palavras exercem, no contexto do TB, um poder tipicamente mgico: as palavras fazem ver, crer, agir. Mas, como no campo da magia preciso desta ao, ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 28 quais so as condies sociais que tornam possvel a eficcia mgica das palavras? O poder das palavras se exerce to-somente sobre aqueles que se sentem dispostos a execut-los, em sntese, a nelas crer. Crer crede significa crer, mas tambm obedecer. O princpio do poder das palavras reside na aplicabilidade que se estabelece, atravs do discurso, entre um corpo social encarnado o campons em um corpo biolgico, o do porta-voz, e dos corpos biolgicos socialmente modelados, inseridos, educados para recolocar suas ordens, como tambm suas exortaes, suas insinuaes ou suas injunes, e que so os sujeitos falados, como diz Bourdieu (1982), ou seja, os fiis, os crentes. Ora, se pensamos no esprit de corps, fora maior do TB, em que os mesmos professam para os mesmos as mesmas Coisas, o TB evoca o esprit de corps; e, essa noo uma frmula sociologicamente fascinante e terrificante. Organiza-se uma utopia degenerada: os mesmos confirmando verdades, sobre e para os mesmos. Toda crtica ser castigada, com um preo a pagar: dissoluo do grupo, fisso, fratura. Falar de classe camponesa, classe-objet, faz-la falar, falando sobre ela, no seu lugar, represent-la, fazer existir diferentemente, por si e para os outros, o grupo que o eufemismo do inconsciente ordinrio anula simbolicamente os humildes, as pessoas simples, o homem do campo, as categorias modestas. O TB isola, como fez Max Weber, na condio de campons aquele que tem a situao e a prtica de trabalhador da terra, isto , um certo tipo de relao inerente natureza, feito de dependncia e de submisso, e correlativo de alguns traos recorrentes da religio camponesa, ou aquilo que marca a posio do campons na estrutura social determinada, posio extremamente varivel, segundo as sociedades e as pocas, mas dominadas pela relao com o cidado e a vida urbana. Assim, Robert Redfield (1960), pesquisador de fora bastante citado pelo TB, sustenta que o campons como tipo humano pode to-s ser definido em referncia cidade, a relao com o habitante da cidade e com a vida da cidade sob todos os seus aspectos, sendo uma das caractersticas constituintes da existncia camponesa. Destarte, a teoria sobre o campesinato brasileiro est alicerada nesse imaginrio institudo. Na esteira de uma economia utilitarista, as teorias sobre o rural, que aqui se estruturam, permanecem pautadas em um imaginrio-prtese, passe-partout, sobre o corpo campons (uma espcie de colagem), compreendendo a sexualidade como funcional e ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 29 central reproduo scio-biolgica de um grupo, em prol da manuteno das relaes contratuais [parentais e vicinais] centrpetas, reproduzindo os modelos hegemnicos clssicos j discutidos e, em geral, utilizados, datados. Neste contexto histrico das disciplinas (sociologia, antropologia, cincia poltica, histria, economia, cincias agrrias etc), chego a uma primeira indagao que serve como fio condutor presente etapa: como se arquitetou este percurso que fez o TB engendrar um imaginrio institudo que fixa, seleciona, valora, dita, esvazia e reduz a sexualidade camponesa? Ao delinear o percurso histrico das cincias sociais no Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira (1997) expe a formao da histria da antropologia feita no Brasil. Ele a divide, sobremaneira, em duas grandes correntes hegemnicas: Etnologia Indgena e Antropologia da Sociedade Nacional. Neste sentido, segundo Cardoso de Oliveira, o que se poderia chamar de modo de conhecimento ficou historicamente subordinado natureza dos objetos reais (quer seja o branco, o ndio, o negro, o campons etc) com todos os equvocos que posies deste teor geram no desenvolvimento da disciplina. Assim, tal tradio antropolgica se sustentava em dois pilares aparentemente antagnicos: Cultura e Estrutura. Segundo Cardoso de Oliveira, o conceito de Cultura passa a receber uma presena constante, e quase sistemtica, a partir do perodo que o autor intitula como herico 50
(dcadas de 20 e 30), isto , quando a profisso de antroplogo e o prprio campo antropolgico ainda no estavam institucionalizados entre seus pares e, portanto, segundo Cardoso de Oliveira, o trabalho de pesquisa tinha o sabor de uma atividade verdadeiramente herica. Diferentemente quela poca foi a absoro do conceito de Estrutura que passa a ser um modo de conhecer da disciplina apenas no perodo seguinte (a partir do final dos anos 40 e princpios dos anos 50), em que Cardoso de Oliveira o chama de carismtico, pois neste nterim que se rotiniza algumas figuras centrais (como por exemplo Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro) que conseguiram reunir em torno de si, e de seus projetos cientficos e acadmicos, inmeros jovens estudantes de antropologia. Um terceiro perodo intitulado burocrtico, que se estende at os dias atuais, tem seu incio com a criao dos cursos de Mestrado no Pas, j no estilo do Parecer Sucupira 51 , destinado reformulao da Ps-Graduao e elaborao em meados de 1960. ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 30 Mas o que interessa aqui essa segunda corrente de formao da disciplina antropolgica no Brasil, isto , a Antropologia da Sociedade Nacional. nela que se desenvolve a linha de pesquisa Sociedade Agrria e Campesinato. Nesse sentido, alguns pesquisadores se destacam nessa introduo dos estudos rurais brasileiros. Como por exemplo: Antnio Cndido (1964), Octavio Velho (1972), Pereira de Queiroz (1976), Moura (1978), Tavares dos Santos (1978), Heredia (1979), Garcia J r. (1983), Klaas Woortamnn (1988) e Ellen F. Woortmann (1995) entre outros. Destarte, destacarei socilogos e antroplogos que, direta ou indiretamente, se centram ou discorrem sobre a sexualidade camponesa. De fato, o TB, com seus valores em diapaso, com um discurso institudo elaborao do TB (uma espcie de colagem, a grosso modo, da literatura j formulada sobre o rural), parece fazer perceber um certo ofuscamento, de forma prescritiva e proscritiva, das mltiplas possibilidades do corpo, como afirmei. O campons, na maioria dos trabalhos citados, e com rarssimas excees, ainda pensado como um Eu subordinado a um Ns, um pr-conceito, isto , seu desejo j nasce dado, naturalizado, autorizado. Seu suposto corpo um a priori, um ente construdo discursivamente nos grandes centros acadmicos e hegemnicos, detentores do poder sobre o saber, inclusive sua sexualidade permanece ainda no singular, pois fala-se sobre o fenmeno da sexualidade camponesa, espcie de organismo datado, quantificado, qualificado, situado. Um ente que carrega, via destino, uma posio sexualizada funcional, previamente estabelecida, em que burl-la ou romp-la desemboca na expulso estrutural do mtier campons. No mais uma mquina desejante, mas uma mquina produtiva, seguindo a lgica do capital e da mais-valia, copiada dos manuais do sculo XIX, sobremaneira, europeus. Trata-se de uma idealizao que corrobora para engessar, fixar e valorar as sociedades camponesas e suas sexualidades de acordo com o pretenso modelo ideal de parentela, fomentado por uma imaginao sociolgica, criao imotivada que s no e pelo estabelecimento de imagens. Assim, os laos e jogos entre famlias parecem centrais a tais estudos, em que as paixes so ditadas, muitas vezes, pelo social, esta inconcebvel como obra ou produto de um indivduo ou de uma multido de indivduos o indivduo instituio social como tal e em si mesma. ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 31 Nesse bojo analtico, chego a algumas questes norteadoras: Como se traam os Corpos-assim de homens e de mulheres camponeses no Brasil? Como se construiu a histria da sexualidade camponesa via discursos acadmicos? H espao, nas teorias sobre o campesinato brasileiro, para sexualidades que escapam aos ditames onipotentes e onipresentes da Trade Deus-Homem-Natureza? Esse discurso hegemnico, cientificista, no engloba em dizer dos novos padres?
A Sexualidade Camponesa Como Instrumental Terico (Classe-Objet) Submisso Das Paixes Pelo Corpo-Mutilado
Em Os Parceiros do Rio Bonito, Antnio Cndido (1964), um dos pioneiros dos estudos rurais no Brasil, em uma parte complementar desta obra, A vida familiar do caipira, enfatiza como o homem do campo, por conta de uma economia libidinal face s definies, quilo que no pode e nem deve ser pensado acerca do corpo campons. Ao enclausurar esse corpo campons em paradigmas, o pesquisador exila o corpo numa espcie de no-corpo: o corpo-mutilado. Neste sentido, Cndido inicia seu argumento afirmando que o casamento necessrio no apenas nas condies de trabalho, como tambm na vida sexual que prevalece no meio rural.
Casar na verdade necessrio no apenas dentro das condies de trabalho, como das de vida sexual que prevalecem no meio rural. Sem companheira, o lavrador pobre no tem satisfao do sexo, nem auxlio na lavoura, nem alimentao regular 52 .
Para Cndido, o celibato masculino naquela ambincia camponesa, coisa rara e muitas vezes associado a doena. A intimidade da unio sexual compreendida como um ajustamento satisfatrio, levando em considerao fatores psquicos e sociais. Portanto, tanto para homens como para mulheres h situaes impostas por condies econmicas e pelos valores grupais que afetam diretamente suas sexualidades.
Certos velhos, que subsistem principalmente graas ao esforo dos descendentes, tendem por vezes a encoraj-los ao celibato, receosos do desamparo em que podero ficar com a diminuio das foras fsicas. Um ancio do grupo estudado, empreiteiro de roadas de que se desincumbiam trs filhos moos, costumava gabar as vantagens de morar com os pais que asseguram roupa lavada, comida pronta na hora, orientao no trabalho. No ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 32 entanto, de um modo ou de outro os jovens casam (ou se amasiam), sendo o celibato masculino raridade notvel, ligada geralmente a doena. 53
Outrossim, para Cndido, o casamento sob a tica masculina s traz vantagens j assinaladas, pois os padres permitem conservar, dentro dele, liberdade de movimentos, inclusive eventuais transgresses de carter sexual. Mas, o pesquisador ainda alerta que estas transgresses no parecem freqentes na vida quotidiana do caipira de nvel modesto, pois este est fadado a tarefas pesadas e constantes. No trato da educao da criana caipira, Cndido discorre que desde pequenos os filhos acompanham os pais, familiarizando-se de maneira informal com a experincia destes (tcnicas agrcolas e artesanais, trato com os animais etc.) Neste contexto, a educao sexual espontnea, meninos e meninas aprendem o essencial com os animais, pois, segundo o pesquisador, a casa caipira no permite qualquer intimidade e recato.
A educao sexual igualmente espontnea. Como Dfnis e Cloe, meninos e meninas aprendem o essencial com os animais. Alm disso, a casa caipira no permite qualquer intimidade e recato. Constando em geral de quatro peas divididas por duas meias paredes cruzadas, pais e filhos nela se comprimem lado a lado, desvendando-se desde logo aos imaturos a intimidade das relaes conjugais. E interessante notar que o recato dominante nas relaes pblicas de moos e moas (acentuando a conveno de ignorncia e inocncia que os padres tradicionais requerem nesta) tem como contrapeso um sereno naturalismo de fato. 54
O incio da lida na roa, para os meninos basicamente, marca geralmente o fim dos castigos corporais, pois o trabalho, segundo o pesquisador, o critrio principal para determinar a passagem idade adulta. Neste contexto, desde cedo, os meninos ajudam os pais na faina da lavoura, mas apenas quando apresentam certo vigor fsico, geralmente aos treze ou quatorze anos. Neste nterim, como acentua Cndido, os meninos so homens formados, podendo por exemplo embriagar-se, ir ss vila, fazer compras etc, e da a pouco o casamento torna-se soluo inevitvel do ponto de vista sexual.
Com efeito, na roa as possibilidades de satisfao do sexo, fora dele, so praticamente nulas pelas vias normais. No h prostituio e a virgindade feminina norma cuja ruptura, embora freqente, leva quase sempre ao casamento com o transgressor. Quem deflora, casa: esta a regra que repe nos eixos a ordem um momento ameaada. 55
Ao tratar da masturbao, o pesquisador infere que ela menos praticada no campo do que nas cidades, porque, segundo ele, o jovem caipira tem menos estmulo ertico, pois ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 33 despenderia constantemente uma soma de energia fsica em outros afazeres. No entanto, quando o caipira premido pelo desejo, aponta Cndido, resta uma via, geralmente percorrida por todos: o coito com animais.
Na rea estudada [interior paulista] elas [as prticas com animais] so correntes, e como nem todos possuem gado de porte, os meninos e os jovens utilizam tambm as cabras, porcos e galinhas, mais acessveis pela criao domstica. Pode-se dizer que isto equivale masturbao compensatria, corrente nas cidades, sendo, como ela, etapa transitria de iniciao, superada sem dificuldades aos primeiros contatos com mulher, que se estabelecem cedo devido ao casamento precoce. Num e noutro caso, apenas a incorporao definitiva aos hbitos sexuais do adulto poderia ser considerada desvio; e tudo bem pesado, a prtica rural talvez seja menos nociva que a urbana, pois repousa menos na imaginao. 56
Por fim, Cndido ressalta que o xodo rural pode desorganizar violentamente as famlias de caipiras pobres (entre as quais, sinaliza o pesquisador, se destacam as prostitutas das cidades), assim, a urbanizao do caipira que permanece na terra encontra na famlia um elemento de adaptao que permite aos indivduos transitarem de um a outro sistema de padres e manter a coeso necessria ao trabalho produtivo e manuteno dum cdigo moral, se aproximando neste sentido do que pensa Mendras sobre a campagne francesa no trato das novidades, como vimos. Em O campesinato brasileiro, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) inicia sua argumentao diferenciando sociedades camponesas de campesinato. Para ela, este ltimo um conjunto de camponeses ocupando na sociedade global uma posio de inferioridade scio-econmica e poltica, apesar de constituir a massa majoritria da populao. Por sua vez, as sociedades camponesas esto pautadas em uma moralidade alicerada nos laos de sociabilidade (parentesco, compadrio, herana etc). Neste contexto, como por exemplo, ao definir as relaes contratuais, em especial, o casamento, infere que ele cria relaes de alianas que possuem idntico valor, o que acarretaria tambm obrigaes recprocas 57 . Ao tratar dos intercasamentos entre proprietrios e no-proprietrios, a pesquisadora afirma que devido s posies recprocas a proximidade pautada pelo compadrio, o bairro rural um grupo social de tendncia igualitria. Ao definir a categoria comunidade, Pereira de Queiroz se refere a grupos de volume varivel, mas sempre medocre, constituindo quase sempre unidade pertencente a um conjunto mais vasto, cujos membros participam da mesma civilizao, mas em cujo interior no se encontraria grandes variedades de ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 34 subgrupos, j que neles a diviso de tarefas no to extensa. Portanto, para ela, no interior desta unidade social, as relaes dominantes entre os membros se caracterizam como pessoais, diretas, afetivas, contrapondo este tipo de configurao social a um outro, a sociedade (impessoal, indiferente, urbanocentrada). Recuperando a dana do Bumba-meu-boi como manifestao do teatro popular no Brasil como um todo, a sociloga infere que essa dana folclrica defende valores tradicionais do grupo, uma espcie de pedagogia inculcao de determinados hbitos selecionados. O controle social que se exerce, no momento do festejo, visa, portanto, reforar e revigorar comportamentos que so conformes moral tradicional. Neste contexto, os papis femininos so representados por homens, reminiscncias do tempo antigo em que era considerado indecente que a mulher representasse nas comdias. Ao discorrer sobre a diviso do trabalho sexual, a conduta sexualizada das camponesas e dos camponeses no Brasil, em investigao in locus, a sociloga apregoa que concernente ao padro autoritrio da deciso do homem, as mes-de-famlia educam os filhos desde pequenos, mas lhes inculcam os padres de comportamento ditados pelo ptrio poder. Em caso de desobedincia grave, fazem queixa ao pai-de-famlia, que toma as providncias necessrias. A autoridade familiar, para Pereira de Queiroz, ento claramente exercida pelo pai. Assim, embora no exista mais o padro do pai escolher marido para as filhas, o consentimento dele continua importante para que o enlace se realize ou no.
A organizao das famlias alemes de Palmeirinhas no mostrou, portanto, grande diferena para com a das famlias caipiras. Como nestas, a mulher tem status de subordinao ao homem, principalmente ao pai, e em seguida ao marido. Os maridos so, nas famlias alemes de Palmeirinhas, chefes de famlia que conservam a autoridade em suas mos. A modificao no foi encontrada com relao famlia caipira, e sim com relao organizao interna da prpria famlia alem, tal qual era no passado. Ela no se exprime ainda num comportamento (as mulheres jovens continuam trabalhando na roa), mas numa atitude: os maridos jovens preferem que as mulheres permaneam em casa e no vo trabalhar na roa. 58
Abrindo um parntese, recobrando a personagemda mulher mandona como exceo deste suposto modelo ideal, moldado pelo ptrio poder, ou seja, aquela mulher camponesa que no manifesta submisso com relao ao que o marido quer ou pede, mas impe sua vontade, para Pereira de Queiroz, tudo isto pode ocorrer somente no caso de um ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 35 marido que pula a cerca, isto , que se entrega a aventuras amorosas. Neste contexto, pode a mulher falar mais forte; o marido, ento, no tem autoridade e baixa a cabea. Trata- se de uma espcie de compensao da mulher e de punio no marido, uma vez que este de certo modo perde sua posio de proeminncia. A mulher camponesa, para a pesquisadora, tem status de subordinao ao homem, principalmente ao pai, e em seguida ao cnjuge, endossando o imaginrio institudo no TB. Na sociedade camponesa, embora havendo diviso de tarefas segundo os sexos, a mulher acompanha o marido ao campo; no haveria separao entre um universo masculino e outro feminino de trabalho, mas apenas um universo em que as tarefas masculinas e femininas so ora coincidentes, ora complementares. Eis, nesses termos, a complementaridade da mulher camponesa. Uma mo-de-obra til para o roado, uma sexualidade para a reproduo em prol da perpetuao da espcie, em suma, um caricatural Corpo-assim. Burlar com tal ideologia , para o discurso institudo dos camponeses e tambm para a maioria dos discursos acadmicos institudos sobre o rural at ento, motivo para a expulso estrutural do grupo social. Uma outra pesquisadora, Margarida Maria Moura (1978), em Os herdeiros da terra, ao analisar a relevncia da herana no campesinato mineiro, percebe que o patrimnio territorial mais do que coloc-lo em mos dos descendentes direto de um indivduo, mas assegurador da reproduo da rea como camponesa, em que a herana enfeixa um papel estratgico neste sentido. Falar de trabalho em So J oo da Cristina, vilarejo investigado por ela, falar da distribuio das tarefas por sexo e idade entre parentes que habitam um mesmo stio. Para Maria Moura, a famlia compe um grupo indissocivel, no seu conjunto, da condio de trabalhadores econmicos, assim, a economia de cada stio est calcada na oposio complementar unidade de produo e unidade de consumo perfeitamente interligada na economia camponesa, fornecendo, por esta mesma razo, o seu trao distintivo fundamental 59 . Podemos perceber aqui a fora inconteste do Texto Institudo nos moldes dos economicistas europeus. Mormente, ao pensar o trabalho feminino e masculino naquele povoado, a pesquisadora demonstra que se trata de uma separao radical, isto , ambos so ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 36 denominados trabalhos, mas h um trabalho de casa e um trabalho da roa, instituindo assim, o corpo-funcional.
As lides domsticas so sempre trabalho, podendo ser especificadas como uma ajuda em relao ao trabalho na roa 60 .
Se o trabalho da casa menos pesado para os sitiantes, em que h, segundo Moura, uma preocupao em igualar as duas formas complementares de trabalho, ou seja, o trabalho de casa poder vir a ser especificado como ajuda, apontando-se nesses casos para o carter complementar, dominado, que este possui em relao ao trabalho na roa, o inverso, como acentua Moura, no possvel. O trabalho da casa cabe mulher; me e filhas a partir da faixa de idade de sete a nove anos. Este trabalho no lar tambm para o lar, ou seja, aquelas tarefas que visam a assegurar bens alimentcios, objetos ou servios que servem sobrevivncia dos membros da casa. Destarte, a mulher camponesa atua na casa (unidade de consumo) onde desempenha um papel complementar ao homem, este que atua no mbito da unidade de produo. Neste contexto tudo o que se liga preparao para o consumo do que esta terra produz atribuio da mulher.
Viu-se assim como a diviso sexual do trabalho cria um tipo e uma rea de atuao exclusiva para o homem e para a mulher. A diviso etria do trabalho englobada pela de tipo sexual. Voltando para o funcionamento da unidade de produo, o homem aparece nela e tambm naquelas atividades que dependerem de um contato com o meio externo s propriedades: os contatos comerciais. Restrita casa, a mulher tem toda a sua atuao econmica voltada para a unidade de consumo. Sendo ali seu locus social, ela no trabalha a terra e tambm no negocia. Depende de algum que o faa para ela, seu marido, na maior parte das vezes. A interdependncia da unidade de produo e da unidade de consumo s funciona de fato com o matrimnio. 61
Para Moura, a distino sexual da autonomia ou emancipao social de rapazes e moas na dinmica do stio est estruturalmente dividido no acesso terra (no caso dos rapazes) e na autonomia de deciso que, na condio de dona de uma casa de morada passa a ter (no caso das moas). Alicerado em uma endogamia de lugar, o povoado de So J oo percebe a unidade familiar pautada na famlia nuclear com sua prole. Ao tratar da emancipao dos mancebos, a pesquisadora discorre que ela conquistada pela concesso de um lote de terra que j necessita manter um provento prprio em funo da nova etapa etria que os neoadultos ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 37 conseguiram. Assim, a emancipao no um marco fixo que, transposto, passa o indivduo para um novo quadro de direitos e deveres sociais. A licena, por parte do pai, para a construo de uma casa de morada, geralmente prxima ao terreno que este indivduo j cultivava, fato sempre ligado, para Moura, ao casamento. O novo casal torna possvel reproduzir naquela rea o binmio unidade de produo-unidade de consumo que caracteriza a propriedade camponesa independente: no caso, o homem produz na roa visando manuteno da casa de morada onde trabalha a mulher, discorre Moura. Por fim, em sua teoria sobre as sociedades camponesas, os papis sexuais demandam um imaginrio institudo, pois a complementaridade entre os sexos tende a definir e estipular os lcus funcionais dos sujeitos, encobrindo, as possibilidades do corpo, encobrindo outros modos de vida. Uma terceira pesquisadora, Beatriz Maria Alsia de Heredia (1979), ao analisar o trabalho familiar de pequenos produtores do nordeste brasileiro, mais especificamente na zona da mata pernambucana, afirma que o trabalho no roado o trabalho do pai, definindo assim este mbito como masculino. J as atividades da casa, por estarem ligadas ao consumo, no so consideradas como trabalho e portanto correspondem ao domnio feminino. Entretanto, em diversas circunstncias excepcionais (maior nmero de mulheres na casa, molstias que assolam os homens da casa etc) a sociloga observou que as mulheres realizavam todas as tarefas do roado. Mas, por outro lado, ela apregoa um estatuto secundrio s mulheres, em detrimento de um imaginrio cristalizado masculino, ao afirmar que apesar de serem as mulheres que efetivamente realizam todas as atividades, as instrues sobre o que e como feito continuam sendo deciso do pai-de-famlia. Este, mesmo quando no desenvolve nenhuma atividade material, mantm o controle e gerenciamento de todo o processo produtivo.
Neste caso, no se considerava que as mulheres estivessem assumindo tarefas propriamente masculinas mas sim que, de forma diferente, essas mesmas tarefas, quem em outras circunstncias seriam vistas como trabalho, passavam a ser consideradas como ajuda. Desta forma, indicava-se que as mulheres, mesmo realizando as tarefas, estavam subordinadas s decises e, em suma, autoridade paterna. 62
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 38 Portanto, para Heredia, o dever (destino) da esposa, me-de-famlia e de todos os membros contribuir-instituir para que esta imagem (imaginrio) do homem, pai-de- famlia, seja a que retrate frente ao mundo exterior a prpria unidade. Ao tratar das crianas, corpo-funcional-miniatura, Corpo-assim, a pesquisadora disserta que o cuidado que o gado requer realizado por estes personagens de sexualidade ambgua, pois essa tarefa deve ser realizada pelos elementos masculinos que, por no trabalharem, tem um carter sexual mais ambguo: os filhos homens pequenos. 63
Ambigidade to acentuada no trato das crianas camponesas que, em termos de esquema de autoridade, aponta Heredia, as filhas so equiparadas aos filhos homens pequenos, visto que ambos so os membros mais dependentes da autoridade familiar.
A escolha da filha menor para negociar reafirma o carter masculino do negcio,pois, embora a filha em questo possa teoricamente ser considerada como moa, pela sua idade atribui-se-lhe um carter sexual mais ambguo. Por outro lado, sua participao no negcio temporria, pois deixar de faz-lo antes de ser considerada moa, j que nesse momento seu irmo poder encarregar-se dessa atividade. 64
Por fim, podemos perceber que as ambigidades so mais acentuadas quando se discursa sobre crianas camponesas, o destino de homens e de mulheres adultos estatutrio, sufocado por este imaginrio que se cristalizou no TB. Neste sentido, a mulher, tal qual Eva, personagem bblico, complementar ao marido, seu desejo condicionando ao dele, como veremos na prxima subseo. Assim, no TB, como em alhures, os camponeses foram montados, formatados, programados em um conjunto coeso. Em contrapartida, ao tratar desta coeso conjuntiva e valorativa, Castoriadis nos adverte:
Mas toda conjuntizao, toda categorizao, toda organizao que instauramos/descobrimos mostra-se, cedo ou tarde, parcial, lacunar, fragmentria, insuficiente e mesmo, o que mais importante, intrinsecamente deficiente, problemtica e finalmente incoerente. 65
Os Anos 90: O Retorno Ao Mesmo?
Em O trabalho da terra, Klaas Woortmann & Ellen F. Woortmann (1997) fundamentados no campesinato sergipano, inferem que o trabalho produz o gnero. Ao falar sobre ele, os sitiantes, e mais notadamente suas mulheres, tambm o associam ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 39 sexualidade, sempre em tom jocoso; ao faz-lo, segundo os antroplogos, novamente falam de gnero. Neste sentido, e para introduzir a construo de um corpo-bblico, ainda no que tange a categoria trabalho, os antroplogos instituem:
A percepo do trabalho concebida segundo uma viso bblica do homem, que uma viso de mundo: Do suor de teu rosto comers o po. O sitiante contrasta com os urbanos e com os proprietrios, que no trabalham porque no suam. 66
A sexualidade camponesa, segundo Woortmann, E.F & Woortmann, K., tende a fazer analogia com a natureza, este domnio imbricado com a realidade coletiva. A ttulo de exemplificao, vejamos a naturalizao, limitao, do corpo da mulher camponesa, delineada pelos pesquisadores:
Se o processo de trabalho produz o gnero, ao falar dele os sitiantes (e mais notadamente suas mulheres) tambm o associam sexualidade, sempre em tom jocoso; ao faz-lo, novamente falam de gnero. A comear pelo fato de serem os plos pubianos femininos denominados mato. Enquanto solteiras (no domadas?) as mulheres mantm os plos pubianos. Pouco antes da cerimnia do casamento, porm, a noiva submetida retirada desse mato, segundo dizem, para que o marido possa nela plantar na noite de npcias. Dizem as mulheres que no precisam brocar o mato porque j brocam o mato delas, governando seu prprio corpo. Assim, como dizem os homens com relao roa, dizem as mulheres:limpinha uma lindeza. A raspagem dos plos pubianos faz-se durante toda a vida de casada. Alis, um dos sinais da viuvez que a mulher deixa de rasp-los. Uma viva de respeito deixa crescer os plos; se continuar raspando, porque est tendo um caso, o que no bem-visto pela comunidade. Antigamente, porm, as vivas se recasavam: seria o retorno do mato um descanso? A mulher deve-se manter limpa para o resto da vida conjugal numa clara aluso s limpas peridicas da roa tal como uma malhada, com a qual se compara, para que possa ser fertilizada pelo homem que a trabalha. Tanto a mulher como a malhada so vistas como passivas e nenhuma delas produz sem a iniciativa do homem. 67
Para Woortmann,E,F. & Woortmann,K. so concepes classificatrias que demarcam espaos de gnero, lugar da sexualidade e do desejo cuja tradio no deve ser transgredida, para que sejam mantidas as fronteiras sociais. Neste contexto, o discurso ainda pautado, apesar de suas aberturas, na perpetuao do imaginrio institudo sobre o corpo do campons.
Alm disso, o lugar da sexualidade, ao contrrio do que pensvamos inicialmente, no o quarto da casa, ou no exclusivamente o quarto. Para nossa surpresa, a roa. Mas no em qualquer momento: a roa torna-se adequada quando as plantas alcanam certa altura e garantem privacidade. ento que as plantas esto quentes, e de acordo com ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 40 as mulheres, as pessoas tambm. As mulheres ficam quentes quando as plantas comeam a basular ou a botar flor. S depois de algum tempo entendemos por que se fazia tanta questo de que a pesquisadora estivesse sempre acompanhada por outra mulher, geralmente filha do sitiante, quando ia com ele para a roa, a fim de observar a organizao do espao. Era para manter o respeito. 68
Podemos perceber, na assertiva acima, um campons imbricado na Trade Deus- Homem-Natureza. Primeiro, ao associar a quentura da mulher camponesa com o perodo de florescncia das plantas, os antroplogos instituem um corpo-vegetativo, passivo, para a camponesa que passa a gozar, repito, quando do brotamento da flor. Em um segundo momento, percebe-se um direcionamento da pesquisa de campo, conforme o respeito. Eis o que muitos tericos das sociedades camponesas no Brasil e alhures fazem: compram de bom grado os discursos oficializados do homem do campo, e assim hierarquizam valores, pautados em uma moralidade ideal, em detrimento das paixes, estas que no esperam a mata brotar. Em Da complementaridade dependncia, Woortmann, E.F. (1991) aponta para a ordem do discurso pblico do grupo estudado, no caso dos universos camponeses pautados, em sua maioria, no ptrio poder, que configura um dos pontos da campesinidade e que se replica no discurso do pesquisador, corroborando s polticas de gnero, freqentemente legitimadas pelo imaginrio institudo do TB. Neste contexto, para Woortmann, E.F. a classificao do espao depende do contexto em que se produz o discurso. 69 Ao abordar a complementaridade entre os gneros, na constituio da dieta familiar, entre comunidades pesqueiras no Rio Grande do Norte, Woortmann, E.F. ressalta que h entre os gneros uma complementaridade qualitativa na constituio desta dieta. A produo feminina se caracteriza ainda pela constncia e pela reposio previsvel. Por outro lado, o trabalho feminino de salga e secagem do pescado, por ocasio da safra que garante seu consumo por perodo relativamente longo, bem como sua comercializao. Destarte, as relaes internas famlia e comunidade nesses povoados se caracterizam tambm pela complementaridade entre os gneros, embora tanto a famlia como a comunidade fossem organizaes hierrquicas, no plano ideolgico, as transformaes ecolgico-sociais que atingem a terra afetam diretamente as mulheres. Neste sentido, segundo Woortmann, E.F:
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 41 As transformaes ecolgicas-sociais que atingem a terra afetam diretamente as mulheres. Outras transformaes, relativas ao mar, atingem os homens, e seus efeitos se projetam sobre as mulheres. 70
Com a instabilidade da pesca, pois h dias em que se pesca mais outros menos, e tambm levando em considerao sua sazonalidade, cabe ao homem conseguir o pescado ou o dinheiro para suprir as necessidades da famlia, como seu chefe, em que a mulher, parceira do marido, torna-se-ia cada vez mais seu dependente.
As relaes internas famlia e comunidade nesses povoados se caracterizavam, ento, pela complementaridade entre os gneros, embora tanto a famlia como a comunidade fossem organizaes hierrquicas, no plano da ideologia. 71
Assim, para Woortmann, E.F. a condio feminina se (re)constri no tempo e pelo espao, em diferentes momentos do tempo e em diferentes configuraes do espao, pois a construo de tempo tambm construo de gnero, em espaos que lhe so tambm especficos. As mulheres percebem o tempo da maneira como o fazem agora porque esto colocadas num momento posto pela histria. 72
Em tese, para Woortmann, E.F. as mulheres se vm face aos homens num processo que transita da complementaridade para a dependncia, medida em que, no tempo, se subtraem seus espaos. Nessa perspectiva, os marcos temporais so marcos da transformao do gnero, que s existe face a outro gnero. O outro contrastivo construdo pelo tempo/espao no um outro grupo, mas um outro gnero do mesmo grupo. 73 Assim, para a antroploga, a mulher foi includa no homem, como se fosse seu brao. Neste sentido, como no perceber uma clara analogia com o mito cristo da Criao, em que o corpo-bblico do campons parece d testemunha do milagre divino.
A mulher sempre foi includa, na medida em que o homem a totalidade. Aquilo que engloba mais importante que o englobado, assim como o todo mais importante que a parte em sociedades tradicionais 74 .
Por sua vez, em Fuga a trs vozes, Woortmann, E.F. & Woortmann, K. (1993) ao analisar o sentido do casamento no campesinato sergipano, ratificam, mais uma vez, o corpo-bblico, ao institurem:
O que transforma um rapaz em homem o casamento (e o nascimento do primeiro filho); para tornar-se homem, pai de famlia, preciso casar-se segundo as regras, que ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 42 so, sobretudo, prticas de reproduo do grupo como um todo, visto tanto em sua materialidade como em seus valores. 75
Ao centrar suas anlises na dialtica da fuga, os antroplogos salientam que esto falando de casamento e de estrutura, todavia, esto tambm mostrando que esta no rgida como fazem parecer as anlises formais j discutidas. Portanto, a fuga torna-se uma outra dimenso do casamento, da sociedade e da reproduo. Assim, ela tratada como um fato/texto, ainda que seja um texto subalterno no conjunto das falas que foram apanhadas, segundo os antroplogos. Mas o que interessa aqui que Woortmann, E.F. & Woortmann,K. apontam para algo que at ento fora indizvel no estatuto do TB, o que convenciona-se categorizar de homossexualidade. Este avano, contudo, nas teorias sobre sexualidades camponesas no TB, ainda parece tmido, pois, para os antroplogos, homossexualidade sinnimo de expulso funcional. A ttulo de exemplificao, ao analisar uma das fugas no serto sergipano, os pesquisadores discorrem:
Se a filha [a que arquitetou a fuga com um homem] que repudiou o arranjo familiar foi excluda da famlia, dois irmos seus, tidos como homossexuais, foram enviados para o Rio de Janeiro com ordens de nunca mais pisarem nas terras de famlias. Ao contrrio daquela filha [fujona], porm, cada um deles recebeu, em dinheiro, o equivalente ao que lhe cabia como herana. O patrimnio familiar passou a um irmo, que havia realizado um casamento de convenincia com uma prima, cujas terras entestavam com as de sua famlia. 76
Ao abordar de modo sucinto a homossexualidade no campo, Woortmann,E.F. & Woortmann,K. nos do pistas, indiretamente, para uma fissura no TB, e que norteia todo o corpo terico, e desejante, desta dissertao de mestrado: o indizvel das sexualidades camponesas. Comea-se assim, formal e timidamente, a apresentar uma certa fragilidade no discurso do imaginrio institudo, coeso, sobre sexualidades camponesas, ncleo do TB. As hierarquias de conjuntos, este desejo-instituio que tem suas arestas corrodas em detrimento das foras implcitas das intensidades e paixes engendradoras tambm de magmas de significaes. Nesse sentido, para Castoriadis os magmas no param de se mexerem, de dilatarem e de baixarem o nvel, liquefazerem o que era slido e solidificarem o que no era quase nada. porque o magma assim, que o homem pode-se mover e criar no e pelo discurso, que ele no aprisionado para sempre por significados unvocos e fixos das palavras que ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 43 ele emprega ou seja, que a linguagem linguagem 77 . Como pensar o corpo campons sem seus fluxos, sem seus refluxos, sem seus ziguezagues, sem seus rodopios, sem o agenciamento criativo, desejante, que deflora o iderio parental e vicinal? Como entregar este corpo ao destino da suposta condio camponesa? Como dar, a este corpo, uma misso bblica, pautada na Queda e no Pecado? Onde foi parar o humano demasiando humano nesta lgica enviesada do TB sobre as possibilidades do corpo no roado? Ainda, a ttulo de exemplificao, e j com receio de no me tornar enfadonho, na construo deste mapeamento terico sobre como se arquiteta, no decorrer da tradio das disciplinas de cincias sociais, a Ordem do discurso do TB, no trato das sexualidades camponesas, recobro a tese de Therezinha Fraxe (2000) como ilustrativa manuteno- aplicao, e sintoma, da perpetuao da cartilha dogmtica do TB at os dias atuais. Em Homens anfbios: etnografia de um campesinato das guas, a sociloga afirma que as famlias extensas dos ribeirinhos na vrzea do rio Solimes-Amazonas mostram forte tendncia a reprimir demonstraes de agresses e sexualidades, tentando instilar, nas crianas, o controle do impulso requerido para a coordenao grupal. Por outro lado, as famlias nucleares punem a agresso e a sexualidade com menor rigor, permitindo ao indivduo um jogo mais livre de relaes com os outros. A diviso sexual do trabalho ainda pauta o discurso da pesquisadora, cada personagem (mulher, homem, criana) tem sua funo limitada dentro do campesinato, apesar de algumas ambigidades, permanecendo o discurso hegemnico dos mesmos falando as mesmas Coisas para os mesmos, sobre o corpo campons. Neste sentido, Fraxe segue a cartilha do TB, seu vis uma constatao de como, apesar das novidades acadmicas sobre o corpo nas cincias humanas e na filosofia, seu texto continua portador da tradio do TB. Para demonstrar esta afirmao sobre a colagem e o dogmatismo do TB at os dias atuais, recorto um trecho da obra de Fraxe, no trato da construo da instituio desejo no roado. Podemos perceber uma fidelidade a Wolf, este que afirma, como vimos no incio deste captulo, que num sistema de autoridade centralizada no macho, como prevalece entre a maioria dos camponeses, a mulher deve aprender a ajustar seus desejos aos desejos prioritrios dos seus maridos. Vejamos, pois, o que nos diz a sociloga sobre as mulheres ribeirinhas:
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 44 As mulheres [as ribeirinhas do rio Solimes-Amazonas] em geral so forasteiras, vindo para a unidade familiar provenientes de outras famlias, localizadas em outras comunidades. Num sistema de autoridade centralizada no macho, como prevalece entre a maioria dos camponeses, as mulheres, acredito, devem aprender a ajustar seus desejos aos desejos prioritrios de seus maridos. 78
No h questionamento, apenas dogma, crena. Corpo-mutilado, naturalizado, sem imaginao. Os tericos do campesinato no geral instituem o desejo no campo, formulam um discurso chapado sobre as possibilidades corpreas. Corpo-dado, pr-conceituado, Corpo-assim, pois o que torna possvel para os indivduos so as coisas percebidas ou representaes perceptivas e que definem cada vez quais so as coisas e o que elas so. Neste sentido, Castoriadis discorre: dizer alguma coisa, dizer verdadeiramente, dizer o que tal como . Que significa aqui tal, seno uma equivalncia? Como possvel uma equivalncia entre uma seqncia de palavras e um grupo de fatos, coisas etc seno como instituio? 79 . possvel pensar o corpo do campons fora de sua priso identitria, fora da verdade/verdadeira, fora do imaginrio institudo? Como pensar o corpo na esteira de um pensamento que apela para as diferenas e no para as representaes? Eis o que se segue, o pensamento que no deve ser pensado, isto , puro ato de crueldade, pois o pensar no sem dor, ele anlogo a um nadador voraz que mergulha a mais de dez metros de profundidade, impossvel para os homens de pouco treino, e ao submergir sai com os olhos vazando em sangue por experimentar as profundezas de outros modos de vida. O corpo experimento, vida. Ele o desejo desejando o desejo. Sua fora motriz no da histria, da reproduo, mas da vibrao, das pequenas percepes que prepassam os orifcios por onde o desejo extravasa. O corpo e suas linhas de fuga, um homem do campo que movimento, acontecimento, beira, imprevisibilidade. Eis o processo de deshistoricizao do campons no TB, pois realo sua filosofia nativa, sua geografia. Filosofia com o corpo, antropologia do contgio, mquina de guerra, mquina desejante, intensidade e paixo.
Intensidade E Paixo: Que Pode O Corpo?
Espinosa (1907) ao escrever a tica prope outras possibilidades de pensar o corpo. Ao interrogar sobre as potncias do corpo, o filsofo nos faz repensar sobre a conscincia e ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 45 seus decretos, vontade e seus efeitos, os mltiplos movimentos corpreos, o domnio do corpo e a emergncia das intensidades e das paixes, todavia, e isto porque o autor acentua, de forma provocativa, que nem sequer sabemos que pode o corpo! Ao traar o corpo como fio condutor de sua filosofia, Espinosa mostra que o corpo ultrapassa o conhecimento que temos sobre ele; , pois, por um nico e mesmo movimento que chegamos, eventualmente, a captar a potncia do corpo para alm das condies dadas do nosso conhecimento, e para alm das condies dadas da nossa conscincia. Nesse sentido, Espinosa (1907) transcorre:
Il y a dans la Nature un corps par la conformation et les affets duquel nous sommes affects, en quoi faisant, nous percevons ce corps. Nous le faisons voir parce que, si nous arrivons connatre les effets du corps et ce quils peuvent produire, nous dcouvrirons aussi la premire et principale cause de toutes ces paissons, et en mme temps ce par quoi elle peuvent tre dtruites; par l, nous pourrons voir aussi sil est possible dy parvenir par la Raison 80 .
Espinosa prope o conceito de paralelismo que no consiste apenas em negar qualquer ligao de causalidade real entre o esprito e o corpo, mas recusa toda eminncia de um sobre o outro. Neste sentido, trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que dele temos, e, como recobra Deleuze (2002), o pensamento no ultrapassa menos a conscincia que dele temos. 81 Eis o que o TB no abarca, a captao da potncia do corpo para alm das condies dadas do nosso conhecimento, e a captao da fora do esprito, para alm das condies dadas da nossa conscincia. E Deleuze disserta:
Procuramos adquirir um conhecimento das potncias do corpo para descobrir paralelamente as potncias do esprito que escapam conscincia, e poder compar-los. Em suma, o modelo do corpo, segundo Espinosa, no implica nenhuma desvalorizao do pensamento em relao extenso, porm, o que muito mais importante, uma desvalorizao da conscincia em relao ao pensamento: uma descoberta do inconsciente e de um inconsciente do pensamento, no menos profundos que o desconhecimento do corpo. 82
Quando um corpo encontra outro corpo, uma idia, outra idia, tanto acontece que as duas relaes se compem para formar um todo mais potente, quanto que um decompe o outro e destri a coeso das suas partes. Porm, ns, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas composies e decomposies: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compe, quando uma idia se encontra com a nossa ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 46 alma e com ela se compe; inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma idia ameaa nossa prpria coerncia. 83
Nesse sentido, o bom e o mau encontro, proposto por Espinosa, nada tem a ver com Moral, Bem e Mal, mas com tica, tica dos afectos, intensidades e paixes que sacodem o corpo. A Moral da Ordem do TB, um institudo sistema de julgamento, por outro lado, a tica dos afectos o desmantelo de tal sistema, pois ela prenhe de linhas de fuga, de acontecimentos, de devires imperceptveis, desejo como roubo e dom. Ora, o corpo da ordem da etologia e no da Trade, esta ltima que uma espcie de lei, simulacro dos novos padres. O corpo vibrao, paixes intempestivas, em tese, afectao. E Deleuze continua:
Ora, precisamente, do ponto de vista de uma etologia do homem, devemos distinguir duas espcies de afeco: as aes, que se explicam pela natureza do indivduo afetado e derivam de sua essncia; as paixes, que se explicam por outra coisa e derivam do exterior. 84
Para Deleuze, o poder de ser afetado apresenta-se ento como potncia para agir, na medida em que se supe preenchido por afeces ativas e apresenta-se como potncia para padecer, quando preenchido por paixes. Os afectos no so da ordem do Ressentimento, da Tristeza, da Dvida, da Interpretao, do Balano, mas agenciamentos de alegria. Nada de Misso Identitria, nada de Ostracismo, nada de Simulacro, nada de Representao, nada de Gnero, apenas corpos-movedios, emaranhados de linhas, no infinito, traadas pelo desejo desejando o desejo. As paixes que afectam este corpo so de alegria em ziguezague, potncia de agir que nada tem a ver com Falta ou Carncia. Um esquecimento ativo de ser campons, de representar a Ordem do Parentesco. Geografia e no histria. No falo em Performance, mas em Experimentao, vida que pura crueldade e inocncia para no afugentar os devires. Nesse sentido, Deleuze ao revisitar a tica de Espinosa, disserta:
A tica necessariamente uma tica da alegria: somente a alegria vlida, s a alegria permanece e nos aproxima da ao e da beatitude da ao. A paixo triste sempre impotncia. Este ser o trplice problema prtico da tica: Como alcanar um mximo de paixes alegres, e, a partir da, como passar aos sentimentos livres ativos (quando o nosso lugar na Natureza parece condenar-nos aos maus encontros e s tristezas)? 85
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 47 Um outro filsofo, Friedrich Nietzsche (2002), nos convida a surpreendermos com o corpo, um espanto diante da conscincia. O corpo uma razo em ponto grande, uma multiplicidade com um s sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor 86 . Como desprez-lo? Como castr-lo? Como imol-lo em prol de um iderio acadmico sobre o roado? E Nietzsche proclama: h mais razes no teu corpo do que na tua melhor sabedoria 87 . E de tal sabedoria que os homens e mulheres do vilarejo de Goiabeiras, como veremos nos prximos captulos, agenciam seus afectos. O corpo como obra de arte, o corpo com acontecimento, o corpo como experimento, corpo-receptculo embriagado nos instantes. Eis o que prope Nietzsche, agirmos como crianas, isto , sou corpo e alma, diz os infantes. O que de grande valor no homem, segundo o filsofo, ele ser uma ponte e no um fim, pois o que se pode amar no homem ele ser uma passagem e um acabamento 88 . Eis uma antropologia com o corpo, a partir do corpo, do ponto de vista emanado do corpo. No se trata mais de um J uzo, de uma Verdade sobre o campons, mas experimento das paixes, das conexes, dos fluxos que movimentam os devires. E por meio dessa sabedoria corprea que proponho doravante um trabalho de desconstruo, de desnaturalizao da identidade camponesa prt--porter, uma crtica como fora positiva, um corpo que exploso no e pelo gozo. Prosseguindo em minha empreitada, Antonin Artaud (1976), em sua crtica s representaes, e trazendo o corpo baila em seu pensamento, aponta que os signos no so um sujeito nem uma identidade cristalizados em uma razo, num logos ou numa representao, mas os signos nunca diro o corpo, e neste apangio que eclode, no sem sofrimento, a fissura do desejo. Assim, Artaud, como bem acentua Lins (1999), bloqueia a possvel paralisia dos signos em significados, significantes colonizados pelo saber sem corpo, sem sopro, inimigo da alma. Portanto, para Artaud devemos criar artesanalmente um Corpo sem rgos 89 para expulsar o corpo malfeito, espcie de escultura fracassada, produzida por um Criador que se enganou na sua criao... Criador que, atravs do erro, se humanizou... 90 . Ao pensar nas mltiplas possibilidades do corpo, ao pensar partindo do corpo, de suas entranhas, dos seus orifcios, dos seus excrementos, do intermezzo nus- pnis-vagina-cabea-tronco, chego a indagar: como pensar uma representao, um signo, uma identidade, um Corpo-assim campons, sem levar em conta os processos de ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 48 subjetivao? Como silenciar as mquinas desejantes 91 que eclodem em nossos corpos? Como instituir o desejo no campons, legitimado pelo TB, por uma identidade cultural, levando em conta apenas princpios bblicos, lutas explcitas, funo-estrutura e modelos econmicos? Como dar Adeus ao Corpo-assim campons, evitando confront-lo com ele mesmo, ao invs de divagar sobre? Deleuze em sua inveno do Corpo sem rgos 92 , ao pensar sobre o ponto de vista partindo do corpo, nos d uma pista: Por que no caminhar com a cabea, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imvel, Anorexia, Viso cutnea, Yoga, Krishna, Love, Experimentao 93 . Por que no pensar a partir das mltiplas possibilidades do corpo? Como definir, medir, quantificar, mensurar as sexualidades camponesas a partir apenas da juno do espermatozide com o vulo em prol do iderio da perpetuao da espcie (a sexualidade camponesa), aprazvel aos ditames de um Criador que errou em sua criao? Por que aprisionar (destino) o sujeito campons em um desejo institudo, arquitetado por uma literatura normativa sobre o rural? O corpo no agenta mais! Para David Lapoujade (2002), ele no agenta mais quilo a que o submetemos do exterior, formas que o agem do exterior, pois tais formas so, evidentemente, as do adestramento e da disciplina. Todavia, ele tambm no agenta mais quilo a que se submete de dentro, pois estas mesmas formas, e com Lapoujade, passam para dentro, se impem ao dentro desde que se cria um agente para as agir. E Lapoujade ainda acresce:
Neste instante, a relao muda de natureza; ela deixa de questionar a resistncia do corpo no adestramento e o transforma em assujeitamento 94 .
O corpo-mrtir campons, casto e castrado, no agenta mais o simulacro, a misso, o Criador, a onipotente e onipresente Trade Deus-Homem-Natureza, ele cria, eclode, fissuras ao infinito, princpio de imanncia, torna-se humano demasiado humano. Se o TB o institui, o cristaliza em imagens, em representaes, recobro os seus agenciamentos, npcias entre reinos, o corpo paradoxal. Mas afinal o que seria este corpo paradoxal? J os Gil (2002) ao tratar do corpo paradoxal, conceitua:
Um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espritos, e existindo ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo atravs do silncio e da no-inscrio. Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 49 elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal. 95
Pensar o Corpo pleno, pura imanncia, que para Lins (2002b) devora os smbolos e as palavras nele ancorados como estruturas mofadas, e dinamita as duas faces do signo, significante e significado, nos conduzindo a parar o jogo indefinido do interpretador, dos desprezadores do corpo, que a todo custo procuram se proteger dos afectos cuja expresso natural sempre cruel. Mas afinal como experimentar uma antropologia com o corpo? Como criar conceitos a partir dele? Como escapar aos esteretipos sobre a sexualidade camponesa que albergam apenas uma faceta do valorar? vlido ressaltar que no nego aqui a estrutura social, o parentesco, o compadrio, as estratgias matrimoniais, ou ainda o saber-fazer campons, no fao do corpo algo determinista ou funcionalista, pelo contrrio, acreso a ele sua mais intrnseca natureza, o desejo desejando o desejo, sua imanncia, suas incongruncias, sua etologia. Nesse sentido, aproximo-me de Edmund Leach (1995) ao criticar seus pares, especificamente o funcional-estruturalismo de Radcliffe-Brown, ao apontar para o uso do conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode comparar uma sociedade com outra, pressupondo que as sociedades analisadas pelos antroplogos existem durante todo o tempo em equilbrio estvel, estas que, por sua vez, segundo Leach, no passam de uma fico de pensamento.
Quando o antroplogo tenta descrever um sistema social, ele descreve necessariamente apenas um modelo da realidade social. Esse modelo representa, como efeito, a hiptese do antroplogo sobre o mundo como o sistema social opera. As diferentes partes do modelo formam , portanto, necessariamente, um todo coerente um sistema em equilbrio. Isso porm no implica que a realidade social forma um todo coerente; ao contrrio, a situao real na maioria dos casos cheia de incongruncias; e so precisamente essas incongruncias que nos podem propiciar uma compreenso dos processos de mudana social. 96
Portanto, para Leach, a ordenao sistmica nos acontecimentos histricos depende da mudana de avaliao das categorias verbais e , na anlise final, ilusria.
Primeiro criamos um conjunto de categorias verbais que so cuidadosamente dispostas para formar um sistema ordenado, depois ajustamos os fatos a essas categorias verbais, ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 50 e de repente vem-se os fatos ordenados sistematicamente! Mas nesse caso o sistema uma questo de relaes entre conceitos, e no de relaes realmente existentes dentro dos dados factuais brutos (...). s vezes a analogia proveitosa, mas a sociedade no um organismo, tampouco uma mquina 97 .
Neste contexto, segundo o autor, os eventos s vm a se estruturar na medida em que os dotamos de ordem mediante a imposio de categorias verbais, eis o grande apangio analtico de uma naturalizao da sexualidade camponesa que fomenta um estatuto ao corpo campons, uma ordenao seletiva, a ideologia do pr-conceito, o imaginrio institudo do Corpo-assim. Um outro antroplogo, Viveiros de Castro (2002b) ao tratar do intercruzamento (jogos institudos que o antroplogo prefere cham-los de jogos clssicos) entre discursos antropolgicos e discursos nativos aponta que tais discursos no so forosamente textos, so sobretudo quaisquer prticas de sentido. Para Viveiros de Castro, tal diferena o efeito de conhecimento do discurso do antroplogo, a relao entre o sentido de seu discurso e o sentido do discurso nativo. Nesse sentido, Viveiros de Castro discorre:
O nativo exprime sua cultura em seu discurso; o antroplogo tambm, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir sua cultura culturalmente, isto , reflexiva, condicional e conscientemente. Sua cultura se acha contida, nas duas acepes da palavra, na relao de sentido que seu discurso estabelece com o discurso do nativo. J o discurso do nativo, este est contido univocamente, encerrado em sua prpria cultura. O antroplogo usa necessariamente sua cultura; o nativo suficientemente usado pela sua. 98
Conquanto, o antroplogo tem uma certa vantagem epistemolgica sobre o nativo. Mormente, para Viveiros de Castro, a matriz relacional do discurso antropolgico hilemrfica: o sentido do antroplogo forma; o do nativo, por sua vez, matria. Eis o capital cultural e simblico do antroplogo rural contra a experincia e experimento da vida e do cotidiano do homem do campo, como percebvel no TB. E Viveiros de Castro continua:
O sentido que o antroplogo estabelece depende do sentido nativo, mas ele quem detm o sentido desse sentido ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse sentido 99 .
Assim, com Viveiros de Castro, o antroplogo [e incluo os tericos do TB no geral] aquele que detm a posse eminente das razes que a razo do nativo desconhece. Neste ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 51 contexto, recobro algumas questes que me tm servido como fio condutor desde ento: como pensar uma antropologia com o corpo? Como dar Adeus ao Corpo-assim campons? Viveiros de Castro, por sua vez, acresce:
A arte da antropologia (...), penso eu, a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, no a de achar solues para os problemas postos pela nossa. E exatamente por isso que o postulado da continuidade dos procedimentos um imperativo epistemolgico 100 .
Neste sentido, os tericos do TB, ao fazer uma analogia com o antroplogo clssico, analisado por Viveiros de Castro, tomam o campons por um outro sujeito que ele no consegue v-lo como um sujeito outro, como figura de Outrem 101 que, antes de ser sujeito ou objeto, a expresso de um mundo/corpo possvel.
O problema no est, portanto, em ver o nativo como objeto, a soluo no reside em p- lo como sujeito. Que o nativo seja um sujeito, no h menor dvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo obriga o antroplogo a pr em dvida. Tal a cogitao especificamente antropolgica; s ela permite antropologia assumir a presena virtual de Outrem que sua condio a condio de passagem de um mundo possvel a outro , e que determina as posies derivadas e vicrias de sujeito e de objeto 102 .
Para Viveiros de Castro, o confronto entre os discursos (jogos) nativos e antropolgicos deve poder produzir a mtua implicao, a comum alterao dos discursos em jogo, pois no se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito.
O objeto da antropologia, assim, seria a variao das relaes sociais. No das relaes sociais tomadas como uma provncia ontolgica distinta, mas de todos os fenmenos possveis enquanto relaes sociais. Mas isso de uma perspectiva que no seja totalmente dominada pela doutrina ocidental das relaes sociais; uma perspectiva, portanto, pronta a admitir que o tratamento de todas as relaes como sociais pode levar a uma reconceitualizao radical do que seja o social 103 .
O objeto deve ser menos o modo de pensar campons que os objetos desse pensar, mas o mundo possvel que seus conceitos projetam. Porm o que criar conceitos? Viveiros de Castro, sob o signo do pensamento deleuziano, observa que se deve tomar as idias indgenas (no meu caso, as idias camponesas) etc como conceitos, e dessa deciso suas conseqncias: determinar o solo pr-conceitual ou o plano de imanncia que tais conceitos pressupem, os personagens conceituais que eles acionam, e a matria do real que eles pem 104 . Assim, para o antroplogo, tomar as idias como conceitos recusar sua ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 52 explicao em termos de noo transcendente de contexto em favor da noo imanente de problema, de campo problemtico onde as idias esto implicadas. No se trata, pois, de propor uma interpretao do pensamento campons, mas de realizar uma experimentao com ele, e portanto, com o nosso pensamento. Eis para o que Deleuze nos convida: nada a interpretar, nada a imitar, mas experimentar, criar outros modos de vida. Escapo das armadilhas do Corpo-assim campons, estatuto do TB, e experimento as mltiplas possibilidades do Corpo vibrtil 105 , do desejo desejando o desejo, em que a criao do conceito mola propulsora s npcias entre reinos antropolgicos e camponeses. E ainda com Viveiros de Castro:
O conceito como representao de um corpo extraconceitual, mas o corpo como perspectiva interna do conceito: o corpo como implicado no conceito de perspectiva. E se, como dizia Spinoza, no sabemos o que pode um corpo, quanto menos saberamos o que pode esse corpo. Para no falar de sua alma. 106
Por fim, tentei mostrar neste captulo, embora de forma sucinta, como o imaginrio institudo da sexualidade camponesa foi forjado no decorrer histrico das disciplinas de cincias sociais, como o corpo campons ganha um estatuto pautado em uma Trade obscura e confusa, que no isenta de ambigidade, sob o signo de um capital cultural e lingstico dominados sobre o corpo do outro: o campons. Como alguns valores selecionados (a diviso sexual do trabalho, o iderio de parentela, as relaes vicinais etc) foram adestrando o corpo campons em sua vontade de saber 107 acadmica. Neste sentido, no tenho a pretenso de encerrar minha proposta, mas, no decorrer deste trabalho, falar acerca do indizvel das sexualidades camponesas no TB, sobremaneira, criar, experimentar, conceitos, pois como acentua David Le Breton (2003) felizmente, continuamos a ser de carne para no perder o sabor do mundo. 108 O Corpo, pura imanncia, desejo desejando o desejo, agenciamentos maqunicos, me nortear doravante. Partindo dele, afecto, pois, com o Outro, afecto que sobretudo potncia de vida e nunca Falta. Meu Adeus ao Corpo-assim se apresenta, se inicia, cria corpo, antropologia-experimento com o corpo, a partir do convite feito por Zaratustra, em Nietzsche:
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 53 Exorto-vos, meus irmos, a permanecer fiis a terra e a no acreditar em que vos fala de esperanas supraterrestres. 109
NOTAS
1 MOURA, M. Os herdeiros da terra: parentesco e herana em uma rea rural. So Paulo: HUCITEC, 1978, p. 9. 2 Sobre a categorizao da Trade Deus-Homem-Natureza, ver WOORTMANN, K. Com parente no se neguceia. Rio de J aneiro: ANURIO ANTROPOLGICO, 1988. 3 Abreviao de Texto Brasileiro sobre o rural. 4 Um exemplo desta assertiva foi o ltimo concurso realizado pelo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INCRA, da Superintendncia Nacional de Gesto Administrativa AS Edital INCRA/SA/n o 07, de 13 de outubro de 2005. Neste o superintendente nacional de gesto administrativa, no uso das atribuies previstas no art. 20, da Estrutura Regimental, aprovada pelo Decreto n 5.011, de 11 de maro de 2004, publicada no Dirio Oficial da Unio do dia 12 seguinte, combinado com as Portarias n 148, de 08 de julho de 2005, publicada no Dirio Oficial da Unio do dia 11 seguinte, do Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto (MP) e INCRA/P/n 438, de 20 de setembro de 2005, publicada no Dirio Oficial da Unio do dia 21 subseqente, para provimento de cargos efetivos, especificamente para o cargo de analista em reforma e desenvolvimento agrrio. No cronograma de temas, para os candidatos com habilitao em antropologia, se destacavam: 1) Clssicos da Teoria Antropolgica; 2) Teoria Antropolgica Moderna; 3) Organizao Social e Poltica; 4) Simbolismos; 5) Sistemas Econmicos; 6) Sistemas Ecolgicos; 7) Sociedades Indgenas; 8) Contatos Intertnico; 9) Economia Camponesa: a lgica da economia camponesa; grupo domstico e organizao da produo; o significado da terra; mudana tecnolgica; a reproduo do campesinato e a expanso do capital; 10) Sociedade Camponesa: o saber campons; campesinato e poltica; conflitos e movimentos-sociais; posse e propriedade da terra; migraes; a lgica da reproduo da sociedade camponesa. Eis a consolidao do Texto Brasileiro sobre o rural, sua fora e sua instituio, sua concretizao e sua colonizao para delimitar os temas escolhidos, plausveis para o estatuto do ser campons, em que o no-dito das sexualidades camponesas permanece em seu eterno silncio, apesar das novidades globais. 5 O conceito de magma aqui foi cunhado por Cornelius Castoriadis (2000). Para este autor, o magma seria um modo de ser do que se d, antes de imposio da lgica identitria ou conjuntiva. Um magma aquilo de onde se podem extrair (ou: em que se podem construir) organizaes conjuntivas em nmeros indefinidos, mas que no pode jamais ser reconstrudo (idealmente) por composio conjuntivas (finitas ou infinitas) destas organizaes. CASTORIADIS, C. A instituio imaginria da sociedade. Rio de J aneiro: PAZ E TERRA, 2000, p. 388 6 CASTORIADIS, C. A instituio imaginria da sociedade. Rio de J aneiro: PAZ E TERRA, 2000, p. 222. 7 Idem, p. 242. 8 CHAYANOV, A. Sobre a teoria dos sistemas econmicos no capitalistas. In. SILVA, J & Stolcke (Orgs.) A questo agrria. So Paulo: BRASILIENSE, 1981, p. 143. 9 Idem, p. 145. 10 Sobre a expresso lei de Chayanov ver WOORTMANN, K. O modo de produo domstico em duas perspectivas: chayanov e Sahlins. Braslia: ANURIO ANTROPOLGICO/2001, 2001. 11 TEPICHT, J . Maxisme et agriculture: le paysan polonais. Paris: ARMAND COLIN, 1973, p. 38. 12 WOLF, E. Sociedades camponesas. Rio de J aneiro: ZAHAR, 1976, p. 29. 13 Idem, p. 88. 14 Idem, p. 97. 15 Idem, p. 138 grifo meu. ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 54
16 MENDRAS, H. Sociedades camponesas. Rio de J aneiro: ZAHAR, 1978, p. 44. 17 Idem, p. 46. 18 Neste sentido Mendras adverte: Para tentar escapar de algumas armadilhas, no trataremos aqui da famlia, mas somente do grupo domstico, isto , do grupo constitudo pelas pessoas que vivem, segundo a expresso dos antigos, da mesma panela e do mesmo fogo, do mesmo po e do mesmo vinho. Por isso, no falarei mais do parentesco, cujo papel essencial se d nas sociedades de linhagem, mas acessrio nas sociedades camponesas. (MENDRAS, 1978, p. 65) 19 Idem, p. 90 grifo nosso. 20 Idem, p. 206. 21 SEGALEN, M. Mari et femme dans la socit paysannne. Paris: FLAMMARION, 1980, p. 30. 22 Idem, p. 41. 23 Idem, p. 127. 24 Nesse contexto, no trato de uma sexualidade ideal, imposta pelos adultos sobre as crianas, nos dias atuais, nas sociedades ditas modernas, Philippe Aris (1986) traz tona o iderio da inocncia da criana. Toda uma pedagogia de inculcao, em que o corpo da criana passa a sofrer limitaes, enquadramentos, em prol de uma vida saudvel, inocente, tempo da criana, corpo-castrado, criana sem libido. 25 Idem, p. 140. 26 WALL. K. Famlias no campo: passado e presente em duas freguesias do baixo minho. Lisboa: PUBLICAES DOM QUIXOTE, 1998, p. 30. 27 Idem, p. 270. 28 CASTORIADIS, C. A instituio imaginria da sociedade. Rio de J aneiro: PAZ E TERRA, 2000, p. 415. 29 Sobre a trajetria acadmica de Pierre Bourdieu, ver o prefcio de Patrick Champagne, na obra BOURDIEU, P. Os usos sociais da cincia: por uma sociologia clnica do campo cientfico. So Paulo: UNESP, 2004. 30 BOURDIEU, P. Une classe-objet: la paysannerie. Paris: ARSS, Nmeros 17-18, 1977, pp.163-164. 31 Idem, p. 164. 32 Idem, p. 164. 33 BOURDIEU, P. Questions de sociologie. Paris: LES DITONS DE MINUIT, 1980b, p. 264. 34 BOURDIEU, P. Homo academicus. Paris: LES DITIONS DE MINUIT, 1984, p. 17. 35 Idem, p. 21. 36 Idem, p. 28. 37 BOURDIEU, P. Leon sur la leon. Paris: LES DITIONS DE MINUIT, 1982, pp. 17-18. 38 Idem, p. 38. 39 BOURDIEU, P. La terre et les stratgies matrimoniales.In. Le sens pratique. Paris: LES DITIONS DE MINUIT, 1980, p. 264. 40 Idem, p. 265. 41 BOURDIEU, P. Clibat et condition paysanne. Paris: TUDES RURALES, 1962, pp. 96-97. 42 No caso do Brasil, um outro exemplo, de celibatrios com sexualidade, pode ser visto no cotidiano do Brasil colnia. Neste sentido, ver TORRES-LONDONO, F. A outra famlia: concubinato, igreja e escndalo na colnia. So Paulo: EDIES LOYOLA, 1999. 43 ONEILL, B. Proprietrios, lavradores e jornaleiras. Lisboa: PUBLICAES DOM QUIXOTE, 1984, p. 223. 44 Idem, pp. 231-232. 45 Idem, p. 256. 46 Idem, p. 285. 47 Idem, p. 285. 48 Idem, p. 317. 49 Idem, p. 318. 50 Ao tratar deste perodo herico, Cardoso de Oliveira o detalha, citando um exemplo ilustrativo que vale ser ressaltado: Gostaria ainda de acrescentar uma palavra a mais sobre o componente herico desse perodo: devo dizer que no se trata apenas de uma viso de um etnlogo meio sculo depois; trata-se, ao contrrio, de uma noo, que eu diria nativa, produzida talvez pelo clima de herosmo que costumam gerar atividades algo inslitas, como na poca era a pesquisa de campo e que to bem soube refletir a sensibilidade de um Bastos de vila, quando em seu pequeno livro de 1932, No Pacoval do Carimbe, retrata impressionado e num estilo romanceado a pesquisa que a jovem Helosa Alberto Torres havia feito na ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 55
ilha de Maraj. Mulher-antroploga era ento por demais inesperado, sobretudo numa poca predisposta a ver no exotismo de uma profisso emergente o carter herico de trabalhos pioneiros. CARDOSO DE OLIVERA, R. Sobre o pensamento antropolgico. Rio de J aneiro: TEMPO BRASILEIRO, 1997, p. 112. 51 O Parecer Sucupira refere-se ao documento bsico do Conselho Federal de Educao, elaborado pelo Conselheiro Newton Sucupira referentes aos cursos de Ps-Graduao (Mestrado e Doutorado). 52 CANDIDO, A. Os parceiros do rio bonito. So Paulo: EDITORA 34, 2003, pp. 288-289. 53 Idem, p. 289 grifo meu. 54 Idem, p. 315 grifo meu. 55 Idem, p. 315 grifo meu. 56 Idem, p. 318 grifo meu. 57 PEREIRA DE QUEIROZ, M. O campesinato brasileiro. Petrpolis: VOZES, 1973, p. 53. 58 Idem, p. 206. 59 MOURA, M. Os herdeiros da terra. So Paulo: HUCITEC, 1978, p. 19. 60 Idem, p. 19. 61 Idem, p. 28. 62 HEREDIA, A. A morada da vida. Rio de J aneiro: PAZ E TERRA, 1979, p. 82. 63 Idem, p. 104. 64 Idem, p. 120. 65 CASTORIADIS, C. A instituio imaginria da sociedade. Rio de J aneiro: PAZ E TERRA, [1975].2000, p. 315. 66 WOORTMANN, E & WOORTMANN, K. O trabalho da terra: a lgica e a simblica da lavoura camponesa. Braslia: EDUnB, p. 154. 67 Idem, pp. 138-139. 68 Idem, pp. 139-140. 69 WOORTMANN, E. Da complementaridade dependncia: a mulher e o ambiente em comunidade pesqueira do nordeste. Braslia: SRIE ANTROPOLGICA, 111, Universidade de Braslia, Departamento de Antropologia, 1991, p. 3. 70 Idem, p. 18. 71 Idem, p. 6. 72 Idem, p. 25. 73 Idem, p. 28. 74 Idem, p. 31 grifo meu. 75 WOORTMANN & WOORTMANN. Fuga a trs vozes. Braslia: ANURIO ANTROPOLGICO/91, Rio de J aneiro, Edies Tempo Brasliero, 1993, pp. 91-92 grifo nosso. 76 Idem, p. 95 grifo meu. 77 CASTORIADIS, C. A instituio imaginria da sociedade. Rio de J aneiro: PAZ E TERRA, 2000, p. 284. 78 FRAXE, T. Homem anfbio: etnografia de um campesinato das guas.So Paulo: ANNABLUME, 2000, p. 73 grifo nosso. 79 CASTORIADIS, C. A instituio imaginria da sociedade. Rio de J aneiro: PAZ E TERRA, 2000, p. 295. 80 ESPINOSA. De lhomme.In. Oeuvres de Spinoza. Paris: GARNIER FRRES, LIBRAIRES-DITEURS, 1907, p. 159. 81 DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prtica. So Paulo: ESCUTA, 2002, p. 24. 82 Idem, p. 24-25. 83 Idem, p. 25. 84 Idem, p. 33. 85 Idem, p. 34. 86 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. So Paulo: MARTIN CLARET, 2002, p. 41. 87 Idem, p. 41. 88 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. So Paulo: MARTIN CLARET, 2002, p. 27. 89 O Corpo sem rgos em Artaud pode ser conceituado, segundo Lins (1999), como aquele que mantm o homem vivo, o desejo desejando o desejo. uma dodecafonia mesclada polifonia de um corpo vibrtil a quem nada falta, pois ele tem o infinito como premissa existencial, como abismo do Ser. Ele no procura para se encontrar, mas para se perder na busca. Encontrar morrer. LINS, D. Antonin artaud: o arteso do corpo sem rgos. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 1999, p. 48. 90 Idem, p. 32. ______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ 56
91 Para Gilles Deleuze nas mquinas desejantes tudo funciona ao mesmo tempo, mas nos hiatos e nas rupturas, nos enguios e nas falhas, nas intermitncias e nos curto-circuitos, nas distncias e nos despedaamentos, numa soma que nunca rene sua partes em um todo. que a os cortes so produtivos, e so eles prprios reunies. As disjunes, enquanto disjunes, so inclusivas. Os prprios consumos so passagens, devires e retornos. DELEUZE, G & GUATTARI, F. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de J aneiro: IMAGO, 1976, p. 60. 92 Sobre o Corpo sem rgos, Deleuze conceitua: Ele no-desejo, mas tambm desejo. No uma noo, um conceito, mas antes uma prtica, um conjunto de prticas. Ao Corpo sem rgos no se chega, no se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, um limite. DELEUZE, G & GUATTARI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol 3, 1996, p. 9. 93 Idem, p. 11. 94 LAPUJ ADE, D. O corpo no agenta mais. In. LINS, D. & GADELHA, S. (Orgs.) Nietzsche e Deleuze: Que pode o corpo?, Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 84. 95 GIL, J . O corpo paradoxal.In. LINS, D. & GADELHA, S. (Orgs.) Nietzsche e Deleuze: Que pode o corpo?, Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 140. 96 LEACH, E. Sistemas polticos da alta birmnia. So Paulo: EDUSP, 1996, p. 71 grifo meu. 97 Idem, p. 54. 98 VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. In. MANA: Estudos de Antropologia Social. Rio de J aneiro, 2002b, p. 114. 99 Idem, p. 115. 100 Idem, p. 117. 101 Outrem no , portanto, um ponto de vista particular, relativo ao sujeito (o ponto de vista do outro em relao ao meu ponto de vista ou seja, o conceito de ponto de vista. Ele o ponto de vista que permite que o Eu e o Outro acedam a um ponto de vista. DELEUZE, G & GUATTARI, F. O que filosofia? Rio de J aneiro: EDITORA 34,1993, p. 22. 102 VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. In. MANA: Estudos de Antropologia Social. Rio de J aneiro, 2002b, p. 119. 103 Idem, p. 122. 104 VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. In. MANA: Estudos de Antropologia Social. Rio de J aneiro, 2002b, p. 123. 105 Cf. Lispector, 1990. 106 VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. In. MANA: Estudos de Antropologia Social. Rio de J aneiro, 2002b, p. 140. 107 Cf. Foucault, 1999. 108 LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: PAPIRUS, 2003, p. 226. 109 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. So Paulo: MARTIN CLARET, 2002, p.25.
______________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 57 Captulo II
Os Afectos Mal-Ditos O Indizvel Das Sexualidades Camponesas
Intil querer me classificar: eu simplesmente escapulo no deixando, gnero no me pega mais. Clarice Lispector, 1978.
Este captulo tem como objetivo traar os mltiplos itinerrios das sexualidades camponesas, os movimentos dos corpos em ricochetes e ziguezagues. Partido da inquietao espinosiana de que nem sequer sabemos que pode o corpo, como expus no primeiro captulo, apresento o novo, um corpo desprovido de organismo, desprovido do campons casto e castrado pelo TB, desprovido, sobretudo, de uma organizao calcada nos moldes da ideologia camponesa, construda na literatura vigente at ento. Nesse sentido, o conceito de afectos mal-ditos e o indizvel das sexualidades camponesas que os subjazem, a grosso modo, esto fundamentados em trs dimenses discursivas e desejantes, a saber: 1) Trata-se daquelas sexualidades que escapam, corpos fugidios, do imaginrio institudo, naturalizado, do TB, isto , sexualidades que no tm como fim a reproduo da espcie, os contratos vicinais e parentais, mas as intensidades e paixes que fazem acontecer o corpo; 2) Trata-se daquelas sexualidades que nada tem a ver com o discurso homonormativo dos tericos da homossexualidade, urbanocntricos, ou ainda com as Coisas do Gnero, isto , sexualidades que no se conformam, que no se adequam, que no se identificam com as polticas pblicas dos Gneros e com qualquer iderio de identidade sexualizante, estilo GLBTTTS (Gays, Lsbicas, Bissexuais, Travestis, Transgneros, Transsexuais e Simpatizantes) etc e 3) Trata-se daquelas sexualidades ambguas, via rumores locais como se percebe no povoado de Goiabeiras, ambincia etnogrfica desta dissertao que so indizveis, jamais assumidas em pblico e que movimentam os encontros, os laos de sociabilidades, as amizades-cmplices, agenciamento dos afectos mal-ditos. No trato do indizvel das sexualidades camponesas, ressalto ainda que ele perfigura duas dimenses co-extensivas: 1) Trata-se daquelas sexualidades silenciadas, esquecidas _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 58 e/ou no-ditas no TB, em prol de um iderio sobre o rural, este pautado na famlia e num misticismo bblico e 2) Trata-se do acontecimento, agenciado, vivido, nos e pelos bons e maus encontros (cf. Espinosa, 1907) entre camponeses, isto , encontros-cmplices que qualquer palavra, qualquer ato de interpretao, qualquer balano, qualquer representao e/ou imitao, tende a cair em um vazio categrico. O indizvel das sexualidades camponesas da ordem dos signos corpreos, do gozo, do intempestivo, do atemporal, do efmero, dos sonhos molhados, das npcias entre reinos, do roubo e do dom. Portanto, as afeces ativas, e aqui me remeto reinveno de Espinosa, proposta por Deleuze, como j foi exposto no primeiro captulo, so imagens ou marcas corporais e suas idias englobam ao mesmo tempo a natureza do corpo afetado e a do corpo afetante. Tais afeces-imagens ou idias, para Espinosa, formam certo estado (constitutio) do corpo e do esprito afetados, que implica mais ou menos a perfeio que o estado precedente. Neste sentido, para Deleuze (2002), reinventado a tica em Espinosa:
De um estado a outro, de uma imagem ou idia a outra, h portanto transies, passagens vivenciadas, duraes mediante as quais passamos para uma perfeio maior ou menor. Ainda mais, esses estados, essas afeces, imagens ou idias, no so separveis da durao que as relaciona ao estado precedente e as induzem ao estado seguinte. Essas duraes ou variaes contnuas de perfeio so chamadas afeto, ou sentimentos (affectus). 1
Observa-se, dessa forma, na filosofia, que a afeco (affectio) se refere diretamente ao corpo, ao passo que o afeto (affectus) se refere ao esprito. Mas, recobra Deleuze, que a diferena no est a, mas ela existe entre a afeco do corpo e sua idia que envolve a natureza do corpo exterior, por uma parte, e, por outro lado, o afeto que implica tanto para o corpo como para o esprito um aumento ou uma diminuio da potncia de agir. Para o filsofo, affectio remete a um estado do corpo afetado e implica a presena do corpo afetante, ao passo que o affectus remete transio de um estado a outro, tendo em conta a variao correlativa dos corpos afetantes. E Deleuze continua com Espinosa:
Existe, pois, uma diferena de natureza entre as afeces-imagens ou idias, e os afetos- sentimentos, se bem que os afectos-sentimentos possam ser apresentados como um tipo particular de idias ou de afeces: Por afetos, entendo as afeces do corpo pelas quais a potncia de agir desse mesmo corpo aumentada ou diminuda, favorecida ou impedida... (III, def. 3); Um afeto, que chamamos paixo da alma, uma idia confusa pela qual o esprito afirma uma fora de existir de seu corpo maior ou menor que antes _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 59 (III, def. geral dos Afetos.). certo que o afeto supe uma imagem ou idia, e dela deriva como da sua causa (II, ax. 3). Contudo, no se reduz a ela; possui outra natureza, sendo puramente transitivo, e no indicativo ou representativo, sendo experimentado numa durao vivida que abarca a diferena entre dois estados. Eis por que Espinosa mostra que o afeto no uma comparao de idias, e recusa assim toda interpretao intelectualista: Quando eu falo de uma fora de existir maior ou menor que antes, no entendo que o esprito compara o estado presente do corpo com o passado, mas que a idia que constitui a forma do afeto afirma do corpo algo que o esprito compara o estado presente do corpo com o passado, mas que a idia que constitui a forma do afeto afirma o corpo algo que envolve efetivamente mais ou menos realidade que antes (III, def. geral) 2
Eis porque um modo existente define-se por certo poder de ser afetado. Quando encontra outro modo, salienta Deleuze revisitando Espinosa, pode ocorrer que esse outro modo seja bom para ele, isto , se componha com ele, ou, ao inverso, seja mau para ele e o decomponha, como eu j havia ressaltado. No primeiro caso, o modo existente passa a uma perfeio maior; no segundo caso, menor.
Na medida em que nossos sentimentos ou afetos provm do encontro exterior com outros modos existentes, eles explicam-se pela natureza do corpo afetante e pela idia necessariamente inadequada desse corpo, imagem confusa envolvida no nosso estado. Tais afetos so paixes, visto que no somos a sua causa adequada (III, def. 2). Mesmo os afetos baseados na alegria, que se definem pelo aumento da potncia de agir, so paixes: a alegria ainda uma paixo enquanto a potncia de agir do homem no cresceu a ponto de que ele se conceba adequadamente, a si mesmo e s suas prprias aes (IV, 59, dem.). Mesmo que nossa potncia de agir cresa materialmente, nem por isso deixamos de ser passivos, separados dessa potncia, na medida em que no a dominamos formalmente. Eis por que, do ponto de vista dos afetos, a distino fundamental entre dois tipos de paixo, paixes tristes e paixes alegres, prepara outra distino bem diversa entre as paixes e as aes. 3
Em tese, os afectos mal-ditos so intensidades e paixes. Engendradores dos bons encontros, os homens e as mulheres de Goiabeiras, que nas moitas, nos audes, nas roas, nas casas abandonadas, nas ruas escuras, nas cozinhas das casas etc, agenciam a afectao. Afecto aqui compreendido como esta potncia de agir que embaralha, burla, fissura, fratura o TB em sua instituio imaginria sobre o corpo do campons. Os afectos mal- ditos so da ordem do acontecimento, do esquecimento ativo, dos devires imperceptveis, do desejo desejando o desejo. Outras Ordens de Discursos so institudas, naturalizadas, como, por exemplo, os discursos sobre homossexualidade no campo e os discursos sobre gneros no campo, porm, os corpos fugidios dos afectos mal-ditos criam linhas de fuga, escapam da Ordem e do Mesmo. O TB doravante no falar das mesmas Coisas para os _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 60 mesmos, pois ele se perde nas paixes que atravessam os corpos. Neste sentido, feita estas consideraes e conceituaes prvias, recobro a etnografia singular de Miguel Vale de Almeida (1995), sobre os laos homossociveis dos camponeses de Pardais, Alentejo, Portugal, como um marco de uma ruptura pela paixo(?) que comea a surgir na literatura sobre sociedades camponesas.
Senhores De Si: Homossociabilidades Camponesas
Em Senhores de si, Miguel Vale de Almeida ao etnografar o vilarejo de Pardais, Alentejo, campesinato portugus, centra-se sua pesquisa em uma abordagem antropolgica sobre a masculinidade entre camponeses que trabalham nas pedreiras da regio. Compreendendo que a categoria homem algo, sobretudo, do nvel discursivo e do discurso enquanto prtica, em que o campo de disputa de valores morais entre o que se diz e o que se faz grande, o antroplogo apresenta seu mtodo:
Optei por uma estratgia de insero num grupo de homens em situaes de sociabilidade o que condicionou o trabalho a aspectos de homossocialidade, mais do que sobre relaes entre os gneros. 4
Ao falar da supremacia de uma masculinidade hegemnica sobre outras masculinidades subalternas, entre os camponeses do Alentejo, o antroplogo parte da hiptese de que ela um modelo ideal que, no sendo atingvel por praticamente nenhum homem, exerce sobre todos os homens de Pardais, um efeito controlador, atravs da incorporao, da ritualizao das prticas da sociabilidade quotidiana e de uma discursividade que exclui todo um campo emotivo considerado feminino. Neste sentido, a masculinidade passa a no ser simtrica da feminilidade, na medida em que as duas se relacionam de forma assimtrica, por vezes hierrquica e desigual. A masculinidade um processo construdo, frgil, vigiado, como forma de ascendncia social que pretende ser. 5
Assim, a dita masculinidade hegemnica nada tem a ver com o papel masculino, mas sim uma variedade particular de masculinidade que subordina outras variedades.
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 61 Se a fissura entre as categorias de homem e mulher um dos fatos centrais do poder patriarcal e da sua dinmica, no caso dos homens, a diviso crucial entre masculinidade hegemnica e vrias masculinidades subordinadas. 6
Conforme Almeida, a famlia, para os habitantes de Pardais, constituda por pai e me, casados, com filhos solteiros. Neste sentido, pautada em um modelo local, isto , modelo religioso e moral, a estrutura da famlia rural depende de fatores que influenciam o processo de fisso e fuso, tais como o casamento, a herana e o tipo de economia, pois as relaes domsticas so partes intrnsecas da estrutura poltica de uma sociedade. Ao analisar a histria de vida de alguns camponeses de Pardais, a ttulo de perceber a construo da dominao masculina, Almeida apresenta algumas caractersticas que prefiguram o poder masculino, a saber: 1) o dinheiro reconhece apenas o valor implcito ao falo, como imagem simblica do pnis, princpio da masculinidade e bem do capital simblico masculino e 2) O prestgio acumulado, poltica e economicamente, compensa plenamente qualquer eventual perca de prestgio sexual: a masculinidade est alicerada no sucesso (ser uma pessoa respeitvel). Assim, para Almeida, a masculinidade no se constri e reproduz pela diviso do trabalho, pela socializao na famlia e escola ou pelas formas mais ou menos ritualizadas de sociabilidade e interao, mas
O domnio das noes de pessoa, do corpo, das emoes e sentimentos e, em suma, do que constitui a dinmica entre personalidades e regras culturais uma rea da experincia humana constitutiva de, e construda por, categorias de gnero. 7
Dessa forma, para os habitantes de Pardais, o mundo divide-se em masculino e feminino, sendo os dois princpios de tipo essencialista. Isto , a diviso pela dicotomia sexual tanto uma essncia do mundo e da vida quanto a diviso entre animal e humano 8 . O lugar da diviso masculino/feminino, segundo o antroplogo, o corpo e como este visto como o assento da pessoa, a diviso sexual inescapvel como constituinte da identidade e simultaneamente de dois conjuntos de seres humanos, nos quais o que se entende por sexo e gnero se sobrepem como uma e a mesma coisa. Conquanto, por extenso do corpo, as atividades humanas e os produtos destas tambm seguem este princpio.
Na prtica do quotidiano, as coisas no so to rgidas: masculinidade e feminilidade so vividas enquanto conjuntos de qualidades que podem verificar-se no campo sexual oposto. Assim, reconhecido que um homem pode ter certos comportamentos, emoes ou atividades femininas e vice-versa. No pode possu-las ou exerc-las _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 62 exclusivamente, o que remeteria para a anormalidade. Para definir a feminilidade ou masculinidade de uma emoo, ao ou situao so centrais as noes de atividade e passividade. Estas operam ainda a um outro nvel de complexificao da dicotomia sexual: o fato de um homem nunca ser apenas isso, mas algum com um papel social especfico e uma conduta moral, papel esse que muda na vida, no quotidiano e pode mesmo coexistir com um outro papel; assim, -se um marido, um pai, um filho, um patro, um empregado, um rico, um pobre, um desgraado etc. 9
Abrindo um parntese, ainda no trato dos comportamentos ditos anormais, dois exemplos anlogos, no caso da exclusividade da passividade no intercurso sexual associada anormalidade, podem ser vistos nas condutas sexuais entre os cidados da Roma antiga e entre os homens e mulheres do vilarejo de Goiabeiras. Primeiro, no que tange Roma antiga, para Veyne (1982) o cidado que permitisse ser penetrado como se fosse um escravo, logo era visto como lascivo, aberrante. A homofilia era permitida, a exclusividade da passividade no intercurso sexual no. Essa rejeio do homfilo passivo no visa sua homofilia, e sim sua passividade, pois esta ltima provm de um defeito moral, ou melhor, poltico, que era extremamente grave: a lascvia. 10 Segundo, em Goiabeiras, meu lcus etnogrfico, o homem que vive suas experincias sexuais com outros homens e que mantm a exclusividade da passividade no intercurso sexual, que, como veremos, no to exclusiva assim, logo denominado, apontado, como viado ou bicha pelos rumores locais. Sua conduta sexual mal-dita e maldita. O que diferencia os discursos em Goiabeiras, pelo menos durante o perodo que circunscreveu os trabalhos de campo, a negao, o esquecimento, o silncio apesar dos rumores veemente de tal identidade cultural, sexual. Os rapazes-velhos, por exemplo, que so celibatrios, negam, quando perguntados, interrogados, seja pela populao local, seja pelo antroplogo, qualquer experincia dita homossexual. Um caso instigante, que j antecipo, haja vista que a etnografia ganhar um detalhamento maior no terceiro captulo, foi quando J ucs, noivo de Maria, 23 anos, e Tadeu, solteiro, rapaz-velho, 28 anos, foram pegos em um intercurso sexual nas moitas de Goiabeiras. No momento do flagrante, J ucs, o ativo no intercurso sexual, naquele momento, afirma: Foi este viado que me seduziu! Sou homem, vocs sabem com ... homem que homem no nega fogo! Ao ser interrogado na praa, momentos depois, pelos familiares e amigos sobre o ocorrido, Tadeu, por sua vez, alega: Tudo isto mentira! Eu, Tadeu de Jos de Pedro, jamais fiz tais coisas! Eu odeio homossexual, eles tm que pagar por seus pecados e por tamanha sem-vergonhice! Homem nasceu foi para _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 63 a mulher! Se to falando mal de mim, que se danem, pois tenho certeza que no sou viado! (Fragmentos do dirio de campo, em 2000). J na infncia, aponta Almeida, os desvios (compreendidos por ele com o significado genrico de comportamento no-normativo, como tal considerado por uma dada cultura num dado momento histrico) so verificados, vigiados e controlados. Muitas vezes situaes inocentes so interpretadas como significativas e, como tal, autenticamente construdas. Neste sentido, o pesquisador cita o exemplo do pequeno Gabriel que, aos oito anos, era um rapaz tmido, bem comportado e bom aluno, que queria fazer ponto de cruz nas aulas definidas pelos professores como exclusivamente femininas. Perante a insistncia do rapaz no souberam que atitudes tomar, mas as outras crianas, por sua vez, como discorre o antroplogo, resolveram o assunto apontando-o de maricas. Mas, como exmio no ponto de cruz, Gabriel continuou a praticar em casa, graas a uma me tolerante. Por outro lado, na escola nunca mais foi visto praticando o ofcio. Anloga a diviso sexual binria dos Cabila, analisada por Bourdieu (1999), as divises das coisas e atividades entre os camponeses de Pardais, partem da oposio masculino/feminino inserindo-se num sistema de oposies homlogas, como o alto/baixo, sobre/sob, fazendo parecer que a diferena est inscrita na natureza das coisas, chegando assim, segundo Almeida, anatomia corprea.
No processo de construo social do gnero (que Bourdieu chama sexo...) as categorias de percepo so construdas em torno de oposies que reenviam para a diviso do trabalho sexual, estruturando a percepes dos rgos sexuais e da atividade sexual. No deixa, porm, de afirmar que h possibilidade de resistncia e de luta cognitiva, como na pardia e no carnavalesco. 11
Para Almeida, a sexualidade, e aqui ele se aproxima de Erving Golfmann (1985) e Antony Giddens (1993), algo que cada um de ns tem, e no uma condio natural, um trao do self, moldvel, um ponto de juno entre corpo, auto-identidade e normas sociais.
No campo do gnero, trata-se da capacidade de impor uma definio especfica sobre outros tipos de masculinidade, o que significa que o modelo exaltado corresponde, na realidade, a muitos poucos homens, o que se verifica nos casos que eu abordo no contexto de Pardais. O conceito permite uma concepo mais dinmica de masculinidade, entendida assim como estrutura de relaes sociais, em que vrias masculinidades no-hegemnicas subsistem, ainda que reprimidas e auto-reprimidas por _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 64 esse consenso e senso comum hegemnico, sustentado pelos significados simblicos incorporados. 12
O respeito, para Almeida, outro fator que molda as masculinidades entre os camponeses de Pardais, pois tal qual a honra, que se pode entender, naquele contexto, como glosa local de honra, um bem periclitante, quer por ameaa dos outros, quer por ameaa das tentaes e vcios prprios. No trabalho exercido nas pedreiras, ressalta o antroplogo, os encarregados esperam encontrar em alguns homens certos traos de personalidade, como o interesse, o empenho, o gosto, que podem acelerar o perodo de aprendizagem e levar a que ele os escolha e os ajude a subirem. Assim, o modelo de masculinidade competitivo e hierarquizante, incluindo por isso o aspecto de feminilidade, tais como os rumores, o trato com a aparncia etc nas disputas pela masculinidade, principalmente nos grupos dos homens que tm nos bares, nas praas e cabars, seu lcus para a discursividade. Neste nterim, para o antroplogo, a prtica na casa dos homens, como se denominam os bares e as boates em Pardais, faz-se muito pela palavra e pela retrica. A perspectiva verbal, a capacidade de rplica, o relato de proeza, a predominncia da nfase narrativa sobre o contedo explcito, a competio, so artes que se treinam e exibem ali.
Tenta-se, na competio, feminilizar os outros: pelos gestos de convite sexual que transformam a vtima em mulher simblica, pelas brincadeiras que envolvem o apalpar dos traseiros, ou mesmo pela competio monetria, j que a capacidade econmica se associa ao lugar na hierarquia social e esta socorre-se da metfora da dicotomia masculino/feminino e ativo/passivo. Em todo o caso, o recurso ao tropo da homossexualidade recorrente. Esta sempre entendida como desempenho de um papel passivo, penetrado, numa relao sexual fantasiosa, em que o ativo e penetrador no perde, pelo fato, masculinidade. 13
Nesse sentido, em um trecho do seu dirio de campo, Almeida faz uma clara distino entre o que ele chama de homossexualidade masculina e homossexualidade feminina, referente s condutas permitidas e interditas em Pardais.
O fato de as mulheres poderem danar juntas muito importante, pois mostra que no h simetria nos gneros. impensvel dois homens danarem juntos, a no ser em situaes de travesti carnavalesco. O espectro da homossexualidade no paira sobre as relaes femininas, vistas como calcadas sobre o parentesco. a homossexualidade, revelando ao mesmo tempo a fragilidade da masculinidade e a latncia do desejo homossexual numa cultura do gnero que discursa sobre a superioridade do homem. 14
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 65 Diferentemente do que apregoa Almeida, em Goiabeiras, algumas mulheres, que tm uma amizade 15 mais intensa com outras, logo so taxadas, via mexericos vexatrios, de sapates. No contexto etnogrfico de Goiabeiras, por exemplo, o aperto de mo, os abraos prolongados, as carcias entre mulheres so permissveis, mas h uma fronteira bastante tnue. Um exemplo o caso de duas amigas que acompanhei em campo e que, por conta de uma amizade intensa, por se encontrarem todas as noites na praa de Goiabeiras para conversar, por sentarem abraadas, em 1994, quando uma delas decide ingressar no coral da igreja matriz, o mesmo passa a receber o codinome de coral dos viados e sapates. No trato dos casais heterossexuais e dos celibatrios em Pardais, Almeida ressalta que as qualidades procuradas nos futuros cnjuges so, para o homem a capacidade de ganhar dinheiro e para a mulher o recato sexual, ideais contidos no seu negativo, o vcio, que , libidinal na mulher e perdulrio, como, por exemplo, jogar e beber em excesso, nos homens.
A construo de um casal parte do projeto de vida que completa a noo de pessoa e os seus aspectos sexuados de homem e mulher. Da a troa de que so vtima os celibatrios: as mulheres por excesso de uma virtude que lhes pertence culturalmente (a piedade religiosa), mas nunca suspeitas de homossexualidade. Os homens por falta de masculinidade, e suspeita de homossexualidade. 16
Assim, como acentua Almeida, o que se passa em Pardais que no s este vu que cobre as amizades femininas existe, como o discurso pblico delas no sentido de reforar a viso androcntrica de que a amizade uma coisa de homens. Paralelamente, no trato dos rapazes que demonstram maior capacidade intelectual para o estudo, e que provavelmente continuaro a sua educao, eles tendem, segundo Almeida, a incorporar modos de comportamento que os afastam da masculinidade virilizante: como por exemplo, no jogarem jogos violentos, por no fugirem escola, por terem todo um discurso sobre perigosidade das pedreiras, este que um dos espao-experiencial e ritual da masculinidade hegemnica dos camponeses de Pardais, etc. Mas, ressalta ainda o antroplogo para no confundir discurso estratgico com prticas concretas. Neste sentido antecipo questes que sero melhores trabalhadas no terceiro captulo, recobrando um fato acontecido: Andr e eu estvamos na nica praa de Goiabeiras, em 2001, quando repentinamente Andr exclama em voz alta: homossexual tem que morrer, pecadores, anormais, eles tm que pagar mesmo! Logo, me assustei e rapidamente perguntei a Andr: Como voc fala assim? Se _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 66 voc quer marcar um esquema, com os dois rapazes que esto no banco da praa ao lado, como discriminar a conduta homossexual? Andr responde: Voc no entendeu foi nada! Mais deixa para l, veja! Os dois rapazes, que estavam sentados em um banco da praa, prximos onde estvamos, passam bem perto de ns, sem nos olhar, e dizem baixinho, quase sussurrando, olhando para o lado oposto: na estrada tal, daqui a quinze minutos! Em tese, falar de homossexual, seja negativamente, ainda marcar um esquema, como Andr me ensinou. Em relao aos gneros, ressalta ainda Almeida, que na famlia que a prtica da imitao treina o corpo para ser culturalmente masculino, o pensamento e a palavra para pensarem certas coisas e no outras sobre o que so homens e mulheres. No caso do grupo de crianas, esse conhecimento testado, avaliado pelos outros, os desvios censurados; e na escola, recebe-se uma doutrina escrita sobre elementos da histria e da vida em sociedade que vm sempre marcados com o carimbo do gnero.
O que se passa em pblico, nos meios masculinos, no o parentesco, mas sim a masculinidade homossocial, que competitiva, por um lado, e por outro solidria com base na amizade e na comensalidade mas incompatvel com a casa. Separados dolorosa e ambiguamente da me, sem terem esse lao substitudo pelo pai, a masculinidade socialmente exibida um mundo aparentemente desprovido de sentimentos. Quando muito subsiste a emoo flor da pele, reao repentina a um estmulo demasiado forte para enquadrar culturalmente. 17
Desse modo, para Almeida, os valores que os homens de Pardais exprimem, quando procuram expressar consensos culturais ao verbalizarem opinies sobre si prprios e os outros, ou quando avaliam comportamentos, seus e dos outros, esto contidos na formao da masculinidade hegemnica. So leis que, como os mandamentos religiosos, todos conhecem e pretendem aplicar, mas que so ideais nem sempre cumpridos e acatados pelos homens concretos. 18
O efeito principal deste discurso o controle social. Controle que se exerce tanto mais sobre os homens concretos, quanto mais eles se afastarem do modelo hegemnico. Isto implica um alto grau de autocontrole ou vigilncia, que se aplica a todos os domnios da experincia humana em interao. 19
Em Goiabeiras, a nica praa do vilarejo, parece ser um dos locais mais controlados pelos mexericos vexatrios, pelos rumores, muitas vezes maquinados pelas famlias de bem, por sua vez, como se tratam de estratgias ao encontro-acontecimento, linhas de fuga _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 67 so engendradas pelas intensidades e paixes, dos muitos homens e mulheres de l. O controle social, diferentemente do que pensa Almeida, no me diz nada sobre papis e representaes dos agentes, mas a praa, que nada tem a ver com um palco para as performances, mas em analogia com um tabuleiro de um jogo, propicia o sens du jeu, o sentido prtico das jogadas, manipuladas pelo capital cultural e simblico afectao. Por fim, e a ttulo de j antecipar minhas proposies sobre os afectos mal-ditos, Almeida constri sua anlise sobre as masculinidades em Pardais a partir das disputas das representaes simblicas sobre sexualidade, de um mundo dos homens aparentemente desprovido de sentimentos, em que o masculino e feminino por mais fludos que sejam, acentuam comportamentos ditos pelo antroplogo como desviantes. A sexualidade ditada por esta guerra dos gneros, das identidades sexualizantes, de uma masculinidade hegemnica sobre as masculinidades subalternas, hierarquias conjuntivas por uma rostialidade no desejo, fixidez no movedio, pois os gneros e sua organizao no so primeiramente individuais, eles definem zonas de freqncia ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expresses e conexes rebeldes s significaes conforme. A importncia de Miguel Vale de Almeida que ele envereda em uma linha contrria e/ou complementar, e pouco retratada, na literatura sobre sociedades camponesas, ou seja, o antroplogo introduz a dita homossexualidade na ordem do discurso de uma antropologia rural portuguesa. Mas, doravante, seguirei por um caminho contrrio da eterna guerra dos gneros, escaparei a suas significaes, a suas identificaes sexualizantes, a dita masculinidade hegemnica, pois como anuncia a epgrafe deste captulo, parto da premissa que o corpo no questo de objetos parciais, mas de velocidades diferenciais em que o artigo indefinido (o it em Clarice Lispector) o condutor do desejo.
A Regra, As Estratgias E O Nomadismo
EmAs estruturas elementares do parentesco, Lvi-Strauss (1967) centra-se suas assertivas estruturalistas na regra que compe a famlia, mas especificamente no que concerne proibio do incesto, empregando-a de forma universalista pensamento este _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 68 que influencia por demais as correntes tericas sobre sociedades camponesas no Brasil e alhures. Para o antroplogo, a famlia existe no conjunto das sociedades humanas, mesmo naquelas onde os costumes sexuais e educativos parecem os mais afastados. Ao definir um modelo reduzido de famlia 20 , o autor institui que 1) a famlia tem origem no casamento; 2) Ela inclui o marido, a mulher, os filhos nascidos da sua unio, formando um ncleo em torno do qual outros parentes se podem, eventualmente, agregar e 3) Os membros da famlia esto unidos entre si por laos jurdicos, direitos e obrigaes de natureza econmica, religiosa ou outra, por uma rede precisa de direitos e proibies sexuais (tabu do incesto), ou ainda por um conjunto varivel e diversificado de sentimentos, como o amor, o afeto, o respeito, o medo etc. Assim, em O Olhar Distanciado, o celibato surge como repugnante e condenvel para a maior parte das sociedades. No exagero dizer-se que os solteiros no existem nas sociedades sem escrita, pela simples razo de que no poderiam sobreviver 21 .Um exemplo entre os Bororo dos Brasil 22 em que o solteiro visto, segundo Lvi-Strauss, como metade de um ser humano. Portanto, a famlia, ou melhor, as famlias, produzem o casamento, principal meio socialmente aprovado de que dispem para se aliarem umas s outras, ou seja, na teoria de Lvi-Strauss no h lugar para os celibatrios, que no meu caso etnogrfico, o vilarejo de Goiabeiras, corresponde aos chamados rapazes-velhos, tambm movimentadores do indizvel das sexualidades camponesas. No contexto analtico de Lvi-Strauss, a famlia conjugal no apenas uma expresso de uma necessidade universal, nem est inscrita no mago da natureza humana, mas ela representa uma soluo intermediria, um certo estado de equilbrio entre frmulas que se opem a ela e que outras sociedades efetivamente preferem. Ao tratar da diviso sexual do trabalho, o autor infere que preciso distinguir o fato da diviso do trabalho, praticamente universal, e as modalidades segundo as quais, aqui e alm, as tarefas so repartidas entre os sexos. Essas modalidades dependem, tambm elas, de fatores culturais; elas no so menos artificiais do que as formas da prpria famlia 23 . Portanto, tal diviso sexual institui um estado de dependncia recproca entre os sexos. Desta forma, a proibio do incesto consegue tecer redes de afinidades que do s sociedades a armao sem a qual nenhuma delas se mantm, pois possui ao mesmo tempo a _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 69 universalidade das tendncias e dos instintos e o carter coercitivo das leis e das instituies 24 . Neste sentido, o corpo inteiro do parentesco torna-se uma espcie de tabuleiro de xadrez, no qual se desenrola um jogo complexo, em que os impedimentos ao casamento tm essencialmente por objetivo estabelecer uma dependncia mtua entre as famlias biolgicas.
Expressas em termos mais fortes, essas regras traduzem a recusa, por parte da sociedade, de reconhecer famlia uma realidade exclusiva. Porque todos estes sistemas complicados de distines terminolgicas, de interdies, de prescries ou de preferncias nada mais so do que processos destinados a repartir as famlias por campos rivais ou aliados, entre os quais poder e dever desenrolar-se o grande jogo do casamento. 25
Ao considerar as regras desse jogo, Lvi-Strauss afirma que todas as sociedades aspiram acima de tudo reproduzir-se. Assim, elas devem possuir uma regra que permita estabelecer a posio dos filhos na estrutura social em funo da (ou das) dos pais 26 . Portanto, para o antroplogo, o fato da regra, considerando de maneira inteiramente independente de suas modalidades, constitui a prpria essncia da proibio do incesto.
Sociedade alguma se manteria no tempo se as mulheres no dessem luz crianas e se no beneficiassem de uma proteo masculina durante a gravidez e enquanto amamentam e criam a sua progenitura; enfim, se no existissem regras precisas para reproduzir os contornos da estrutura social, gerao aps gerao. 27
Em A via das mscaras, ao analisar a organizao social dos Kwakiutl, Lvi- Strauss (1979) recupera a noo de casa, no sentido de Maison, naquela sociedade e na histria da sociedade ocidental, basicamente a europia, noo esta que alicera o entendimento da organizao estrutural da casa camponesa nos discursos sobre diviso sexual do trabalho e da casa, em ambincias rurais, como vimos no primeiro captulo. Assim, para o autor, em todos os planos da realidade social, da famlia ao Estado, a casa uma criao institucional que permite conciliar foras que, onde quer que seja, parecem no poder aplicar-se seno com excluso uma da outra, devido s suas orientaes contraditrias.
Descendncia patrilinear e descendncia matrilinear, filiao e residncia, hipergamia e hipogamia, casamento prximo e casamento afastado, raa e eleio: toda estas noes, que habitualmente servem aos etnlogos para distinguir uns dos outros os vrios tipos conhecidos de sociedade, renem-se na casa, como se o esprito (no sentido do sculo _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 70 XVIII) desta instituio traduzisse, em ltima anlise, um esforo para superar, em todos os domnios da vida coletiva, princpios teoricamente inconciliveis. 28
Desta forma, o conceito de casa realiza, para o antroplogo, uma espcie de viragem topolgica do interior para o exterior e substitui uma dualidade interna por uma unidade externa. Assim, a casa, europia ou ndia, possui um domnio que consisti em riquezas materiais e em riquezas imateriais.
Pessoa moral, [a casa ] detentora de um domnio composto simultaneamente por bens materiais e imateriais e que se perpetua pela transmisso do nome, da fortuna e dos ttulos em linha real ou fictcia, tida como legtima sob a condio nica de esta continuidade poder exprimir-se na linguagem do parentesco ou da aliana e, as mais das vezes, em ambas ao mesmo tempo. 29
Todavia, como explicar caractersticas to especiais, recorrentes em diversos pontos do mundo, das sociedades de casas 30 ? Para dar uma resposta plausvel, Lvi-Strauss recobra as organizaes sociais entre os Tsimshian e os Tlingit, em que levanta a hiptese de um conflito latente entre os ocupantes de certas posies na estrutura social. Tais conflitos, como afirma o antroplogo, so como que encaixados uns nos outros e as solues sempre de duplo sentido que as sociedades de casas lhes resultam, em ltima anlise, do mesmo estado de fato: estado esse em que os interesses polticos e econmicos, que tendem a invadir o campo social, no tomaram ainda a dianteira aos velhos laos de sangue.
Com as sociedades de casas vemos, pois, formar-se uma rede de direitos e de obrigaes cujas linhas entrecruzadas cortam as malhas da rede que ela vem substituir: o que anteriormente estava separado une-se. Verifica-se como que uma contradana entre os laos que a cultura deve tecer e aqueles em que antes se reconhecia a obra da natureza mesmo que, como na maior parte dos casos, isso fosse uma iluso. Promovida assim a segunda natureza, a cultura oferece histria um palco sua medida; fazendo aderir uns aos outros os interesses reais e os pedigrees mticos, proporciona fundamento absoluto aos empreendimentos dos grandes. 31
Ao tratar da dominao de homens sobre outros homens e da desigualdade entre os sexos, em Do mel s cinzas, Lvi-Strauss (2004) acompanha o motivo do mel (e do tabaco, as cinzas) entre a Amrica do Sul e Amrica do Norte, em que os mitos J urupari, Anamb, Taulipang, Warrau, Guarani do Paran, o J abuti e o Sarig e o J abuti e o J aguar analisados por ele, antecipam a hiptese de que, ao subordinar misticamente um sexo ao outro, as sociedades igualitrias j delineiam o aperfeioamento de solues reais, mas _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 71 ainda inconcebveis ou impraticveis por elas que, tal como a escravido, consistem em sujeitar homens dominao de outros homens. Neste sentido, na srie das mitolgicas (O cru e o cozido, Do mel s cinzas e O homem nu), posso perceber mais categoricamente a consolidao arbitrria, pelo social, das oposies binrias (homem/mulher, forte/fraco, quente/frio etc) nas sociedades tradicionais e suas inverses, em que as casas indgenas servem de alicerces estruturais. Nesse contexto, para Lvi-Strauss, a binaridade social homem/mulher, num grupo, mobiliza regras segundo as quais cada um encontra seus respectivos cnjuges em grupos diferentes. nesse sentido que o antroplogo pode mostrar como a organizao dualista nunca vale por si mesma numa sociedade deste tipo. Portanto, para o autor se a sociedade dependente da cultura, a famlia , no seio da sociedade, a emanao de exigncias naturais com as quais absolutamente necessrio compor. E deste poder do discurso levistraussiano que fomenta a criao do sujeito estruturalista contratualista, fundamental para as dicotomias e binaridades sobre sexualidade camponesa, fomentados pelos tericos do campesinato nos dias atuais. Ao passar da regra s estratgias, em uma crtica ao estruturalismo levistraussiano, Bourdieu (1972) ao centrar sua anlise nas stratgies matrimoniales conceitua o sentido de regra como princpio de tipo jurdico ou quase jurdico, mais ou menos conscientemente, produzido e dominado pelos agentes, como um conjunto de regularidades objetivas que se impem a todos aqueles que entram no jogo e destes dois sentidos que o autor faz referncia quando se fala de regra de jogo e ainda como um modelo de princpio construdo pelo cientista para explicar o jogo. Eis a categorizao do sens pratique, em que preciso inscrever, na teoria, o princpio real das estratgias num sentido anlogo ao que os esportistas chamam de sentido do jogo, como domnio prtico da lgica ou da necessidade imanente de um jogo, que se adquire pela experincia de jogo e que funciona aqum da conscincia e do discurso. 32
Ao criticar o estruturalismo levistraussiano, no que tange fora inconteste da regra, e em sua substituio pelas estratgias, em Coisas ditas, Bourdieu (1990) disserta:
Porque estratgia para ele [Lvi-Strauss] sinnimo de escolha, escolha consciente e individual, guiada pelo clculo racional ou por motivaes ticas e afetivas, e porque ela se ope coao e norma coletiva, ele s pode expulsar da cincia um projeto terico que na realidade visa reintroduzir o agente socializado (e no o sujeito) e as _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 72 estratgias mais ou menos automticas do senso prtico (e no os projetos e clculos de uma conscincia). 33
vlido perceber em Lvi-Strauss e Bourdieu no uma separao radical, mas uma complementao da regra s estratgias, pautada na analogia do jogo de xadrez. Neste sentido, em De perto e de longe, ao tratar da substituio das regras pelas estratgias proposta por Bourdieu, Lvi-Strauss (2005) aponta para a complementaridade das cincias e a imaturidade das cincias sociais no trato das contribuies cientficas:
No fiquei surpreso [trata-se das crticas de Bourdieu sobre a fora da regra], porque os centros de interesse com o tempo se deslocam. Enfatizam-se ora os aspectos regrados da vida social, ora os aspectos em que parece manifestar-se uma certa espontaneidade. Na verdade, existem regras e estratgias. As estratgias podem acotovelar as regras, mas tambm raro que, numa sociedade e numa poca determinadas, as estratgias de que os indivduos dispem, por sua vez, no obedeam s normas, e assim por diante. O importante saber qual o nvel de observao mais aproveitvel no atual estado de conhecimento e diante de uma determinada pesquisa. Ser um ou outro, ou ambos ao mesmo tempo. Levando essa discusso para um terreno mais geral, acho que as coisas impostas entre isto e aquilo provam, acima de tudo, que as pretensas cincias sociais ou cincias humanas de cincias s tm o nome. Nas verdadeiras cincias, os nveis de observao no se excluem; completa-se. Ainda no atingimos essa maturidade. 34
Contudo, ao analisar o esprito da famlia, este que to caro como anlise para ambos autores, em Razes Prticas, Bourdieu (1997) disserta sobre a definio dominante, legtima, da famlia normal, definio esta que pode ser explcita, como no direito, ou implcita, como nos questionrios dos estudos demogrficos franceses dedicados famlia. Nestes termos, a famlia um conjunto de indivduos aparentados, ligados entre si por alianas, casamentos, filiao, ou, excepcionalmente, por adoo (parentesco), vivendo sob um mesmo teto (coabitao). Desta forma, e aqui Bourdieu se aproxima de Aris (1991), sobre a gnese do privado e ainda de Shorter, sobre a inveno do sentimento familiar, a famlia, enquanto categoria social objetiva (estrutura estruturante) e tambm como categoria social subjetiva (estrutura estruturada), uma inveno recente, e qui votada a desaparecer mais ou menos rapidamente como o leva a crer o aumento da taxa de coabitao fora do casamento e as novas formas de laos familiares inventados a cada dia. Nesse sentido, a ttulo de uma construo analtica sobre o family discurse, Bourdieu admite que a famlia seja apenas uma palavra, uma simples construo verbal, em que o cientista social deve analisar as representaes que as pessoas tm do que designam _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 73 por famlia, esse tipo de famlia de palavras, ou melhor, de papel (no singular ou no plural).
Alguns etnometodlogos, que vem no discurso sobre a famlia uma espcie de ideologia poltica, designando uma configurao valorizada das relaes sociais, recuperam uma srie de pressupostos compartilhados por esse discurso, seja no do senso comum, seja no dos especialistas. 35
Portanto, para Bourdieu, o family discurse se d por um conjunto de propriedades, a saber: primeiro, por uma espcie de antropomorfismo, que consiste em atribuir a um grupo as propriedades de um indivduo, concebendo a famlia como uma realidade que transcende seus membros, uma espcie de personagem transpessoal dotada de uma vida e de um esprito coletivos e de uma viso especfica do mundo. Segundo, pelas definies sobre famlia que tm em comum o suposto de que ela existe como um universo social separado, empenhado em um trabalho de perpetuao das fronteiras e orientado pela idealizao do interior como sagrado, por oposio ao exterior.
Assim, no family discurse, discurso que a famlia faz sobre a famlia, a unidade domstica concebida como um agente ativo, dotado de vontade, capaz de pensamento, de sentimento e de ao e apoiado em um conjunto de pressupostos cognitivos e de prescries normativas que dizem respeito maneira correta de viver as relaes domsticas. 36
No family discurse, a famlia o lugar da confiana e da doao por oposio ao mercado e a ddiva retribuda. Para Bourdieu, tambm o lugar onde se suspende o interesse no sentido restrito do termo, isto , a procura de equivalncia nas trocas. O discurso comum freqentemente, e como enfatiza o autor, universalmente, inspira-se na famlia de modelos ideais das relaes humanas, como, por exemplo, o discurso sobre fraternidade, e as relaes familiares em sua definio oficial que tendem a funcionar como princpio de construo e de avaliao de toda relao social. Assim, para o autor, se a famlia apenas uma palavra, trata-se de uma palavra de ordem, de uma categoria, como princpio coletivo de construo da realidade coletiva, pois, e aqui Bourdieu se aproxima de Foucault (2005), quando se trata do mundo social, as palavras criam as coisas, j que criam o consenso sobre a existncia e o sentido das coisas, o senso comum, a doxaaceita por todos como dada. 37 . desta forma que Bourdieu disserta que em todos os usos de conceitos classificatrios, como o de famlia, fazemos ao _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 74 mesmo tempo uma descrio e uma prescrio que no aparece como tal porque , quase, universalmente aceita, e admitida como dada: admitimos tacitamente que a realidade qual atribumos o nome de famlia, e que colocamos na categoria de famlias de verdade, uma famlia real 38 . Assim, o autor admite, acompanhando o discurso da etnometodologia, que a famlia um princpio de construo da realidade social, mas tambm preciso ressaltar, recobra Bourdieu, contra a etnometodologia, que esse princpio de construo ele prprio socialmente construdo e que comum a todos os agentes socializados de uma certa maneira.
Dito de outro modo, um princpio comum de viso e de diviso, um nomos, que todos temos no esprito, porque ele nos foi inculcado por meio de um trabalho de socializao concretizado em um universo que era ele prprio realmente organizado de acordo com a diviso em famlias. 39
A famlia , para Bourdieu, um princpio de construo ao mesmo tempo imanente aos indivduos, enquanto coletivo incorporado, e transcendente em relao a eles, j que o reencontram sob forma objetivada em todos os outros.
Assim, a famlia como categoria social objetiva (estrutura estruturante) o fundamento da famlia como categoria social subjetiva (estrutura estruturada), categoria mental que a base de milhares de representaes e de aes (casamentos, por exemplo) que contribuem para reproduzir a categoria social objetiva. Esse o crculo de reproduo da ordem social. O acordo quase perfeito que se estabelece ento entre as categorias subjetivas e as categorias objetivas funda uma experincia do mundo como evidente, taken for granted. Nada parece mais natural do que a famlia: essa construo social arbitrria parece situar-se no plo do natural e do universal. 40
Portanto, acentua Bourdieu, se a famlia aparece como a mais natural das categorias sociais, e se est destinada, por isso, a fornecer o modelo de todos os corpos sociais, porque a categoria do familiar funciona, nos habitus, como esquemas classificatrios e princpios de construo do mundo social e da famlia como corpo social especfico, adquirido no prprio seio de uma famlia como fico social realizada. Eis a famlia como um produto de um verdadeiro trabalho de instituio, ritual e tcnico ao mesmo tempo, pois como argumenta o autor, trabalho este que visa instituir de maneira duradoura, em cada um dos membros da unidade instituda, sentimentos adequados a assegurar a integrao que a condio de existncia e de persistncia dessa _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 75 unidade. (...) Esse trabalho constante de manuteno de sentimentos duplica o efeito afetivo e socializao da libido 41 .
Esses atos inaugurais de criao (imposio do nome de famlia, casamento etc.) encontram seu prolongamento lgico nos inumerveis atos de reafirmao e de reforo que visam produzir, por uma espcie de criao continuada, as afeies obrigatrias e as obrigaes afetivas do sentimento familiar (amor conjugal, amor paterno e materno, amor filial, amor fraterno etc.) Esse trabalho constante de manuteno de sentimentos duplica o efeito performativo da simples nominao como construo do objeto afetivo e socializao da libido (a afirmao tua irm, por exemplo, encerra a imposio do amor fraterno como libido social dessexualizada tabu do incesto.) 42 .
Nesse contexto analtico, Bourdieu afirma que para se compreender como a famlia passa de uma fico nominal a grupo real, cujos membros esto unidos por intensos laos afetivos, preciso levar em conta todo o trabalho simblico e prtico que tende a transformar a obrigao de amar em disposio amorosa e a dotar cada um dos membros da famlia do que ele conceitua como esprito de famlia, gerador de devotamentos, de generosidades, de solidariedades.
As estruturas de parentesco e a famlia como corpo s podem se perpetuar ao preo de uma criao continuada do sentimento familiar, princpio cognitivo de viso e de diviso que , ao mesmo tempo, princpio afetivo de coeso, isto , adeso vital existncia de um grupo familiar e de seus interesses. 43
Assim, Bourdieu aponta que esta naturalizao do arbitrrio social tem como efeito fazer com que se esquea que, para que essa realidade que chamamos de famlia seja possvel, preciso que se encontrem reunidas condies sociais que nada tm de universal e que, em todo caso, no so distribudas de maneira uniforme. Ou seja, a famlia em sua definio legtima um privilgio institudo como norma universal. Privilgio de fato que implica um privilgio simblico: o de ser como se deve, dentro da norma, portanto, de obter um lucro simblico da normalidade 44 . A noo de casa passa a ser importante para Bourdieu, porque nela onde a preocupao de perpetuar a casa como conjunto de bens materiais orienta toda a existncia da unidade domstica, portanto, a tendncia da famlia a se perpetuar no indivduo, a perpetuar sua existncia assegurando sua integrao, torna-se inseparvel da tendncia de perpetuar a integridade de seu patrimnio, sempre ameaado pela dilapidao ou pela disperso. Por outro lado, para o autor, o funcionamento da unidade domstica como _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 76 campo encontra seu limite nos efeitos da dominao masculina que orientam a famlia em direo lgica do corpo, isto , a integrao podendo ser um efeito da dominao.
Uma das particularidades dos dominantes a de possurem famlias extensas (os grandes tm famlias grandes) e fortemente integradas, j que unidas no apenas pela afinidade dos habitus, mas tambm pela solidariedade dos interesses, isto , tanto pelo capital quanto para o capital, o capital econmico, evidentemente, mas tambm o capital simblico (o nome) e sobretudo, talvez, o capital social (que sabemos ser a condio e o efeito de uma gesto bem-sucedida do capital coletivo dos membros da unidade domstica). 45
Assim, Bourdieu alerta que preciso deixar de apreender a famlia como um dado imediato da realidade social, para ver nela um instrumento de construo dessa realidade; por sua vez, ressalta ainda a superar o questionamento feito pelos etnometodlogos e questionar quem construiu os instrumentos de construo que eles expem e pensar as categorias familiares como instrumentos existentes tanto na objetividade do mundo, sob a forma desses corpos sociais elementares que chamamos de famlias, quanto nos espritos, sob a forma de princpios de classificao utilizados seja pelos agentes comuns, seja pelos operadores patenteados de classificaes oficiais, como por exemplo, os estatsticos do Estado.
Se a dvida radical permanece indispensvel, porque a simples constatao positivista (a famlia existe, ns a encontramos sob nosso escalpelo estatstico) arrisca-se a contribuir, pelo efeito de ratificao, de registro, para o trabalho de construo da realidade social inscrito na palavra famlia e no discurso familista que, sob a aparncia de descrever uma realidade social a famlia , prescreve um modo de existncia: a vida em famlia. 46
Como posso perceber, o family discurse tem um papel determinante na manuteno da ordem social, na reproduo, no apenas biolgica, mas social, ou seja, na reproduo da estrutura do espao social e das relaes sociais, pois o family discursedo qual falam os etnometodlogos um discurso de instituio potente e ativo que tem os meios de criar as condies de sua prpria verificao. 47
Assim, a famlia certamente uma fico, um artefato social, uma iluso no sentido mais comum do termo, mas uma iluso bem fundamentada j que, produzida e reproduzida com a garantia do Estado, ela sempre recebe do Estado os meios de existir e de subsistir. 48
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 77 Fazendo uma anlise comparativa, o que estreita o dilogo entre Lvi-Strauss e Bourdieu a construo da teoria da aliana: o celibato e o casamento com a prima paralela. Como vimos, em Lvi-Strauss o celibato algo quase inumano, marginalizado, algum posto fora da estrutura social, mas se o celibato no tem lugar na teoria da aliana levistraussiana, Bourdieu (1962), pelo contrrio, mostra em Clibat et conditions paysannes que ele uma pea fundamental para a reproduo social do campesinato bearns. Eis a oposio bourdieusiana, calcada na teoria da prtica, ao formalismo de uma teoria levistraussiana fundada na regra. Nesse contexto, Bourdieu disserta:
preciso falar de regras? Sim e no. Pode-se faz-lo desde que se distinga claramente regra de regularidade. O jogo social regrado, ele lugar de regularidade. Nele as coisas se passam de modo regular; os herdeiros ricos se casam regularmentecom caulas ricas. Isso no quer dizer que seja regra, para os herdeiros ricos, desposar caulas ricas. (...) como as condutas podem ser regradas sem ser produto da obedincia a regras? Mas no basta romper com o juridismo (...) que to natural nos antroplogos, sempre pontos a ouvir aqueles que do lies e regras (...) para construir um modelo do jogo que no seja nem o simples registro das normas explcitas, nem o enunciado das regularidades, mas que integre umas e outras, preciso refletir sobre os modos de existncia diferentes dos princpios de regulao e regularidade das prticas. 49
Assim, para Bourdieu, o que se observa nos estudos dessas prticas so as regularidades, o que no significa obedincia s regras, mas prticas de reproduo social, sustentadas por um habitus, esta disposio regrada para gerar condutas regradas e regulares, margem de qualquer referncia a regras, em que ele torna-se o princpio da maior parte das prticas. Portanto, o habitus, esse conjunto de disposies internalizadas e naturalizadas, embora histricas, em relao dialtica com as prticas, torna-se concomitantemente estruturado e estruturante, em prol das estratgias que perfiguram as alianas matrimoniais, em detrimento da reproduo social da maison camponesa, esta que uma unidade de parentesco, uma ligne mais que uma famlia ou grupo domstico, embora, como aponta Woortmann, E.F. (2002), corresponda em cada gerao a uma famlia. O verdadeiro sujeito das stratgies matrimoniales manuteno das alianas a terra, que para Woortmann, E.F. seria melhor dizer que o sujeito a maison, que por certo inclui o patrimnio Terra, mas inclui tambm Nome e Tradio. Destarte, o que torna o parentesco algo real so os caminhos cultivados pelos agentes. Portanto, em Bourdieu, as _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 78 percepes formalistas sobre o parentesco genealgico so recambiadas para o parentesco prtico. O sujeito trancedental do estruturalismo contratualista a razo substitudo por um sujeito histrico/prtico, como por exemplo, o guardio da casa, o matre de maison, em que j no se trata de constituir a sociedade, mas de assegurar a permanncia dessa casa. Todavia, Bourdieu ainda alerta para considerarmos cada casamento realizado (ou no realizado) e no a troca matrimonial em abstrato, em que o carter poltico do casamento leva-o, mais uma vez, para a noo de jogo.
O bom jogador leva em conta, em cada escolha matrimonial, o conjunto das propriedades pertinentes tendo em vista a estrutura a ser reproduzida: no Barn, o sexo, isto , as representaes consuetudinrias da precedncia masculina, a condio de nascimento, isto , a precedncia dos primognitos e, atravs deles, da terra, que, como dizia Marx, herda o herdeiro que a herda, a posio social da casa que precisa ser mantida, etc. O sentido do jogo, nesse caso, mais ou menos o sentido da honra; mas o sentido da honra bearns, apesar das analogias, no exatamente idntico ao sentido de honra cabila, que, mais sensvel ao capital simblico reputao, renome, glria, como se dizia no sculo XVII - , d menos ateno ao capital econmico e particularmente terra. 50
Ao tratar da diviso sexual do trabalho, em A dominao masculina, Bourdieu (1999), ao analisar a inculcao da diviso entre os sexos na sociedade Cabila, aponta que esta parece estar na ordem das coisas, como se diz, por vezes, para falar do que normal, natural, a ponto de ser inevitvel. Ela est presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes so todas sexuadas), em todo mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de precepo, de pensamento e de ao 51 . Desta forma, para o autor, essa experincia apreende o mundo social e suas arbitrrias divises, a comear pela diviso socialmente construda entre os sexos, como naturais, evidentes, e adquire, assim, todo um reconhecimento de legitimao naquele povoado. As divises das coisas e das atividades sexuais recebem, segundo a oposio arbitrria entre o masculino e o feminino, sua necessidade objetiva e subjetiva de sua insero em um sistema de oposies homlogas, tais como: alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrs, seco/mido, duro/mole, fora(pblico)/dentro(privado) etc que, para os Cabila, correspondem a movimentos dos corpos (alto/baixo// subir/descer, fora/dentro // sair/entrar). Semelhantes na diferena, tais posies so, para Bourdieu, suficientemente _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 79 concordes para se sustentarem mutuamente, no jogo e pelo jogo inesgotvel de transferncias prticas e metforas; e tambm suficientemente divergentes para conferir, a cada uma, uma espcie de espessura semntica, nascida da sobredeterminao pelas harmonias, conotaes e correspondncia. O mundo social, para Bourdieu, constri o corpo como realidade sexuada e como depositrio de princpios de viso e de diviso sexualizantes. A virilidade na sociedade Cabila, em seu aspecto tico, mantm-se indissocivel, pelo menos tacitamente, da virilidade fsica, atravs, sobretudo, das provas de potncia sexual que so esperadas de um homem que seja realmente um homem. Assim, a definio social dos rgos sexuais, naquela sociedade, longe de ser um simples registro de propriedades naturais, diretamente expostas percepo, produto de uma construo efetuada custas de uma srie de escolhas orientadas, ou melhor, atravs da acentuao de certas diferenas, ou do obscurecimento de certas semelhanas. Nesse sentido, num outro lcus etnogrfico, em La violence symbolique, ao tratar das divises sexualizantes em escolas francesas, Bourdieu (1995) discorre:
travers lexprience dun ordre social o les diffrentes tches restent assez rigoureusement rparties selon le sexe et travers les rappels lordre explicites qui leur sont adresss par leurs parents, leurs professuers et leurs condisciples, eux-mmes dots de principes de vision et de division acquis travers des expriences semblables du monde, elles ont acquis, sous forme de schmes de perception et dapprciation profondment incorpores et difficilement accessible la conscience, le principe de vision dominant qui les porte trouver normal, ou mme naturel, vident, lordre social tel quil est. 52
Ainda seguindo esta linha de raciocnio, Bourdieu (1998) argumenta que a dominao masculina, em ltima anlise, fundamenta-se na lgica da economia das trocas simblicas, isto , na assimetria fundamental entre homens e mulheres, instituda na construo social de parentesco e casamento: a assimetria entre sujeito e objeto, agente e instrumento. a relativa autonomia da economia do capital simblico que explica que a dominao masculina possa perpetuar-se apesar das transformaes no modo de produo 53 . Portanto, para Bourdieu, a sexualidade no foi construda como tal e tornada autnoma em relao a outros campos, sendo o erotismo e seu apndice comercial, a pornografia, o caso limite dessa autonomizao, que, por sua vez, as diferenas sexuais esto inseridas e _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 80 submersas num sistema de oposies antropolgicas e cosmolgicas que so constitutivas de uma viso e de uma experincia do mundo. Mas so Gilles Deleuze e Flix Guattari (1996), em Mil Plats, que apresentam uma outra alternativa para se perceber os itinerrios do desejo. Ao comparar a mquina de guerra 54 ao aparelho de Estado, os autores apresentam um tratado de nomadologia, reinventando a teoria dos jogos por meio da distino entre a dinmica do jogo de xadrez e do jogo go, partindo, sobretudo, do ponto de vista das peas, das relaes entre as peas e do espao concernido.
O xadrez um jogo de Estado, ou de corte; o imperador da China o praticava. As peas do xadrez so codificadas, tm uma natureza interior ou propriedades intrnsecas, de onde decorrem seus movimentos, suas posies, seus afrontamentos. Elas so qualificadas, o cavaleiro sempre um cavaleiro, o infante um infante, o fuzileiro um fuzileiro. Cada uma como um sujeito de enunciado, dotado de um poder relativo; e esses poderes relativos combinam-se num sujeito de enunciao, o prprio jogador de xadrez ou a forma de interioridade do jogo. Os pees do go, ao contrrio, so gros, pastilhas, simples unidades aritmticas, cuja nica funo annima, coletiva ou de terceira pessoa: Ele avana, pode ser um homem, uma mulher, uma pulga ou um elefante. Os pees do go so os elementos de um agenciamento maqunico no subjetivado, sem propriedades intrnsecas, porm apenas de situao. 55
Portanto, para Deleuze-Guatarri, as relaes so bem diferentes nos dois jogos em que, no seu meio de interioridade, as peas de xadrez entretm relaes biunvocas entre si e com as do adversrio, ou seja, suas funes so estruturais. Em contrapartida, um peo do go tem apenas um meio de exterioridade, ou relaes extrnseca com nebulosas, constelaes, segundo as quais desempenha funes de insero ou de situao, como margear, cercar, arrebentar, pois sozinho, um peo do go pode aniquilar sincronicamente toda uma constelao, enquanto uma pea de xadrez no pode (ou s pode faz-lo diacronicamente) 56 . Desta forma, o jogo de xadrez efetivamente, para os autores, uma guerra institucionalizada, regrada, codificada, com um fronte, uma retaguarda, batalhas. Por outro lado, o jogo go uma guerra sem linha de combate, sem afrontamento e retaguarda, no limite sem batalha, isto , pura estratgia, enquanto o xadrez uma semiologia.
Enfim, no um absoluto o mesmo espao: no caso do xadrez, trata-se de distribuir-se um espao fechado, portanto, de ir de um ponto a outro, ocupar o mximo de casas com um mnimo de peas. No go, trata-se de distribuir-se num espao aberto, ocupar o espao, preservar a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento j no vai _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 81 de um ponto a outro, mas torna-se perptuo, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada. 57
Eis a criao do tratado de nomadologia em que os autores apresentam uma cincia nmade em contrapartida a uma cincia rgia. Para Deleuze-Guattari, a cincia nmade consiste, por meio de suas mquinas de guerra, em se expandir por turbulncia num espao liso, como o do go, em oposio ao espao estriado do xadrez, em produzir um movimento que tome o espao e afecte simultaneamente todos os seus pontos, ao invs de ser tomado por ele como no movimento local, que vai de tal ponto a tal outro, pois h cincias ambulantes, itinerantes, que consistem em seguir um fluxo num campo de vetores no qual singularidades se distribuem como outros tantos acidentes (problemas) 58 . Por sua vez, o que me interessa mais especificamente que a mquina de guerra entretm com as famlias uma relao muito diferente para com o Estado. A famlia, para Deleuze-Guatarri, ao invs de ser clula de base, ela um vetor de bando, de modo que uma genealogia passa de uma famlia a outra, segundo a capacidade de tal famlia, em tal momento, em realizar o mximo de solidariedade agntica. Assim, a celebridade pblica da famlia no determina o lugar que ocupa num organismo de Estado; ao contrrio, a potncia ou virtude secreta de solidariedade, e a movncia correspondente das genealogias, que determinam a celebridade num corpo de guerra. Assim, o nmade, para Deleuze-Guatarri, tem um territrio, segue trajetos costumeiros, vai a um ponto ao outro, no ignora os pontos. Mas a questo diferenciar o que princpio do que somente conseqncia na vida nmade, pois ainda que os pontos determinem trajetos, esto estritamente subordinados aos trajetos que eles determinam, ao contrrio do que sucederia no caso do sedentrio. Assim, para os filsofos, um trajeto est entre dois pontos, mas o entre-dois toma a consistncia, e goza de uma autonomia bem como de uma direo prpria. Desta forma, o nmade no um migrante, pois o migrante vai principalmente de um ponto ao outro, ainda que este outro ponto seja incerto, imprevisto ou mal localizado. O nmade, ao contrrio, s vai de um ponto a outro por conseqncia e necessidade de fato; em princpio, os pontos so para ele alternncias num trajeto. Eis a criao de um tratado de nomadologia, sem histria, apenas geografia, em que sua existncia tem por afecto as armas de uma mquina desejante.
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 82 O Estado tende a uniformizar os regimes, disciplinando seus exrcitos, fazendo do trabalho uma unidade de base, isto , impondo seus prprios traos. Mas no est descartado que as armas e as ferramentas entrem ainda em outras relaes de alianas, se so tomadas em novos agenciamentos de metamorfose. Ocorre ao homem de guerra formar alianas camponesas ou operrias, mas, sobretudo, ocorre ao trabalhador, operrio ou campons, reinventar uma mquina de guerra. 59
Mquina de guerra, mquinas desejantes, pois tudo funciona ao mesmo tempo, mas nos hiatos e nas rupturas, nos enguios e nas falhas, nas intermitncias e nos curto- circuitos, nas distncias e nos despedaamentos, numa soma que nunca rene suas partes em um todo. que a os cortes so produtivos, e so eles prprios reunies 60 . Portanto, a produo desejante, para Deleuze-Guatarri, multiplicidade pura, isto , afirmao irredutvel unidade. Por fim, ao trazer baila Lvi-Strauss, Bourdieu, e Deleuze-Guatarri, procuro introduzir um itinerrio de uma construo afectada por uma mquina de guerra: o indizvel das sexualidades camponesas. Acoplando a regra nas estratgias maquinadas pelo desejo, pelas razes nmades, pelas analogias s peas do go, a inteno foi mostrar como a teoria da aliana, a noo de famlia, as regras e as estratgias, em especial no que tange casa camponesa, indgena etc, vo se deslocando para o desejo desejando o desejo, como os valores-vetores camponeses vo se metamorfoseando em ziguezagues, movedios, confrarias-acontecimentos-multido, nmades, npcias entre reinos. Um corpo campons que tende ao infinito do possvel e do impossvel, ao experimental. Os quatro autores aqui citados, que aparentemente parecem distantes, vo se arrebanhando, intermezzo, cartografias do desejo, corpos itinerantes, pois reivindico as inmeras possibilidades do corpo na e para as sociedades camponesas.
Os Afectos Mal-Ditos: Dilemas, Conceituaes e Perspectivas
A obra, A parte maldita, de Georges Bataille (1975), boa para experimentar sexualidades que no esto aptas reproduo da espcie. Neste sentido, vlido ressaltar ainda que o autor no est interessando nas sexualidades camponesas especificamente, mas nos conceitos de intil, de excedente, de despesas improdutivas, que nada tem a ver com Falta, mas com potncia de vida, que tambm compem a lei de uma economia geral. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 83 Portanto, ao elaborar sua crtica economia geral, centrado-se em uma anlise comparativa dos sistemas de trocas entre vrias sociedades ocidentais e no-ocidentais, ao tratar da despesa nas sociedades capitalistas, Bataille afirma que a atividade sexual desviada da finalidade genital uma manifestao de despesa improdutiva, portanto, no seio da economia envolvente, o excedente. Para o autor, o uso feito do excedente que a causa da mudana na estrutura, ou seja, o que ele denomina como la part maudite.
A vtima um excedente retirado da massa da riqueza til. E ela s pode ser retirada para ser consumida sem lucro, conseqentemente destruda para sempre. Ela , a partir do momento em que escolhida, a parte maldita, prometida ao consumo violento. Contudo, a maldio arranca-a ordem das coisas; torna reconhecvel seu rosto, que irradia, a partir de ento, a intimidade, a angstia, a profundidade dos seres vivos. 61
Nesse sentido, se a dita lgica de uma economia geral (capitalista) tende a transformar em despesa improdutiva uma sexualidade que tem como fim reproduo para a perpetuao da espcie, pois trata-se de um excedente retirado da massa de riqueza til, esta s pode ser retirada para ser consumida sem a idealizao de uma ideologia capitalista aparente, pois parece ser a partir desse excedente que tambm so traadas, dirigidas, mudanas substanciais na estrutura seletiva, interpretada como dominante. Portanto, para Bataille, o excedente, como agncia ativa, tem na religio, nos jogos erticos, nos espetculos que da derivam, nos luxos pessoais, uma base substancial no dinamismo das estruturas. Todavia, na construo terica do consumo, e da sexualidade reprodutiva, com seus iderios economicistas europeus, que tal influncia persiste em muitos trabalhos acadmicos brasileiros e alhures sobre sociedades camponesas, permanecendo utilitaristas e naturalizados em suas bases, apresentando um carter secundrio da produo e da aquisio em relao despesa, em todas as esferas, ou seja, uma economia generalizada, pacfica, harmnica ao seu modo de ver, que se ordena pela necessidade primordial de adquirir, de produzir e de conservar, sem se atentar perda e prpria sobrevivncia das sociedades como tambm possveis ao preo de despesas improdutivas com seus luxos desperdiados.
A contradio entre as concepes sociais correntes e as necessidades reais da sociedade lembra, do modo mais intolervel, a estreiteza de julgamento que ope o pai satisfao das necessidades do filho que vive s suas custas. Essa estreiteza tamanha, que impossvel ao filho exprimir sua vontade. A solicitude meio maldosa de seu pai tem como objeto a casa, as roupas, a alimentao e, rigorosamente, algumas distraes _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 84 andinas. Contudo, ele nem mesmo tem o direito de falar do que lhe causa a febre: obrigado a deixar crer que horror algum entra em suas consideraes. A esse respeito, triste dizer que a humanidade consciente permaneceu menor: ela se reconhece o direito de adquirir, de conservar ou de consumir racionalmente, mas exclui, em princpio, a despesa improdutiva. 62
Todavia, se toda compreenso parcial da experincia determina uma compreenso parcial do que categorizado como real, esta anlise que aqui se desenvolve, partindo no mais de uma economia de centros seletivos, mas restituindo suas despesas, seus luxos, pretende demonstrar no a possibilidade de encontrar um conceito abrangente de todas as facetas do que parece ser o real, mas tornar possvel que o sentido global do experimental s possa resultar de uma multiplicidade de perspectivas. Assim, tudo leva a intuir que uma tica dos afectos parte de um sentido de profunda liberdade, cuja essncia consumir sem lucro, o que podia permanecer no encadeamento das obras teis na ideologia capitalista ocidental. Este mundo ntimo tende a ser noite, s moitas, os encontros fortuitos, os jogos erticos. Ele engendra paixes que levam os universos dos agentes a fazer uso improdutivo de uma parte importante dos recursos de que dispunham, pois trata-se de uma forma complementar de uma instituio cujo sentido retirar do consumo produtivo.
O sentimento de uma maldio est ligado a essa dupla alterao do movimento que o consumo das riquezas exige de ns. Recusa da guerra sob a forma monstruosa de que ela se reveste, recusa da dilapidao luxuosa, cuja forma tradicional significa doravante injustia. No momento em que o acrscimo das riquezas maior do que nunca, ele acaba de adquirir a nossos olhos o sentido de parte maldita que, de qualquer forma, sempre teve. 63
O sujeito abandona seu prprio domnio e se subordina aos objetos da ordem real, visto est cioso do tempo futuro. Neste sentido, Bataille parte do pressuposto que o sujeito consumo na medida em que no est restringido ao trabalho. Portanto, a tica dos afectos mal-ditos, que aqui exponho, parece-me levar a crer que equivocada qualquer compreenso setorizada de uma economia geral sobre sexualidade camponesa, sobretudo quando se pretende excluir do domnio de uma ideologia camponesa, a pretexto de carncia de objetividade, as formas de vivncias, as intensidades e paixes, que o homem em sua intimidade tambm realiza. Os instrumentos de conquista do real no existem a priori, mas so constitudos e moldados luz das particularidades mesmas do setor que os sujeitos circunscrevem ou _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 85 delimitam, visando a atingir, que em carter provisrio, assertivas objetivamente verificadas ou verificveis. Neste sentido, a lei de economia geral ainda trabalha com implicaes recprocas das formaes originrias de sentido e das sedimentaes de sentido, pois tal intencionalidade situada co-implica o mundo das objetividades. No h valor, se no h no ser humano possibilidade de escolha livre entre as alternativas imanentes problemtica axiolgica, nem se poderia falar em liberdade, se no houvesse possibilidade de opo e participao real dos valores e das valoraes. Nesses termos, e recobro aqui a tica dos afectos mal-ditos, elano pode ser isolada de elementos exteriores, sem os quais no pode ser significada, pois s a percebo num sistema se compreendo suas oscilaes, se descubro, depois de experimentada, uma interao substancial de tais elementos que a compe. Eis uma luxria oposta cruel violncia do consumo na elaborao de uma economia das emoes pblica e naturalizada que se ope a uma tica dos afectos, pura crueldade. Seguindo este caminho, a inteno aqui proposta fazer percebvel uma tendncia de declnio nas curvas demogrficas das teorias sobre campesinato, em que tal queda talvez seja o primeiro ndice da mudana de sinal ocorrida. Doravante o que importa no mais, de forma reducionista, desenvolver as foras produtivas da realidade coletiva que constitui a ideologia camponesa, mas despender luxuosamente seus produtos. Tais produtos s podem ser concebidos como uma linguagem cientificista (positivista) que metaforicamente posso compar-la como uma densa bruma, que oculta ao mesmo tempo revela os modelos. No h experincia de valores na qual no operam fatores operacionais de escolha e de seletividade. Uma coletividade ou um indivduo atua na construo de valores histricos e culturais, o que implica uma opo por este ou aquele outro valor ou gama de valores no concreto, ou seja, por dada valorao. Mas, por sua vez, a opo, como um ato plural, no suficiente para que se tenham modelos abrangentes e totalitrios, pois estes s passam a existir quando ocorre a seletividade das opes. Esta seletividade optativa no se permanece ou se adequa as todas opes feitas, pois nem tudo que acontece est envolto em tais seletividades arbitrrias, porque por motivos mltiplos e muitas vezes fortuitos ou insondveis tambm possuem relevncia de significao. Portanto, a tica dos afectos mal-ditos, ncleo desta dissertao, tende a construir sua afectividade improdutiva, nos moldes baitallianos, concomitante aos valores _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 86 tradicionais tambm atravs de uma ambigidade proveniente dos rumores, das intensidades e das paixes. Seus luxos, suas despesas, so alicerados por uma inutilidade no que concerne aos valores economicistas dominantes, naturalizados, sobre campesinato que compem uma realidade coletiva, filtrada. Ao pens-los percebo a excluso e o silncio de uma tradio terica que, h quase um sculo no Brasil, prescreve e proscreve este universo significativo das possibilidades do corpo campons em detrimento de uma arbitrria seletividade da fora da regra, da tradio, da categoria famlia (crist e heterossexual) e do jurisdicismo terico do parentesco e da organizao social. Nesse contexto analtico, se tais modelos hegemnicos, propostos pela maioria das correntes sobre sociedades camponesas se baseiam na fora quase inconteste da tradio, das relaes parentais e vicinais, o que dizer das fortes mudanas da agricultural involution com o avano das modernas tcnicas agrcolas e ecolgicas, entre os meios de produo, dos camponeses da Indonsia, interpretados por Clifford Geertz (1963)? Como pensar o processo de dracinement dos valores camponeses com a introduo da guerra e do xodo rural nas comunidades de Chlif, Kabylie e Collo, Arglia, analisadas por Bourdieu (1958 e 1964)? O que falar do desmantelamento provocado pela agroindstria, nas tradies camponesas da comunidade negra rural dos Bernardos, em Santana do Tabuleiro, leste de Minas Gerais, Brasil, historiografado por Ronei Lima (2005) 64 ? Portanto, conceituo de uma tica dos afectos mal-ditos todas aquelas relaes sexualizadas camponesas que no tm como destino reproduo utilitria em moldes camponeses ideais, oficiais, naturalizados. Relaes ntimas, ambguas, para uma demanda que deveria se adequar perpetuao de valores selecionados, situados, em prol da conservao da espcie e das relaes parentais e vicinais. Uma parte mal-dita que se reconstri em meio a acontecimentos e experimentaes. Afectos que acentuam o indizvel das sexualidades camponesas, concomitante a uma ideologia camponesa pblica, em que a reinveno (ambigidades) dos rumores sociais pelos agentes (afectos mal-ditos) me serve de exemplo para acentuar as estratgias na dinmica do jogo do biopoder. vlido reforar, como venho assinalando desde o primeiro captulo, que afecto aqui no sentido proposto por Deleuze, em sua reinveno de Espinosa, em que nada tem haver com afeto, pois trata-se de uma potncia totalmente afirmativa. O afecto no faz referncia ao trauma ou a uma experincia originria de perda, segundo a interpretao _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 87 psicanaltica. Ele, ao qual nada falta, exprime uma potncia de vida, de afirmao. Ele experimentao e no objeto de interpretao, uma esttica deleuziana. Ainda neste sentido, Lins (2004b) com Espinosa, Deleuze e Guattari, conceitua:
Afecto no a mesma coisa que afeto: o afecto no pessoal. Nem pulso nem objeto perdido, O afecto uma potncia de vida no pessoal, superior aos indivduos, o devir no humano do homem. Desvinculado da subjetividade, o afecto um conceito deleuziano inseparvel do plano de imanncia. Presente em toda sua obra, afecto um conceito primordial construo de uma esttica deleuziana. 65
Assim, os afectos mal-ditos traam seu tratado de nomadologia no intermezzo, entre o pblico e o privado, entre homem e mulher, entre homem e animal, entre homem e vegetal. Anlogos s peas do go, seus fluxos e refluxos inauguram um devir-homossexual, um devir-mulher, um devir-homem, um devir-animal, toda uma etologia no campons, no corpo do homem do campo. Devir aqui no sentido proposto por Deleuze, isto , pura potncia de vida, nada a imitar, nada a interpretar, apenas a experimentar, a criar, geografias e no mais histria, npcias entre dois reinos. E Deleuze (1998) conceitua:
Devir jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justia ou de verdade. No h um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questo o que voc est se tornando? praticamente estpida. Pois medida que algum se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele prprio. Os devires no so fenmenos de imitao, nem de assimilao, mas de dupla captura, de evoluo no paralela, npcias entre dois reinos. As npcias so sempre contra a natureza. As npcias so o contrrio de um casal. J no h mquinas binrias: questo-resposta, masculino-feminino, homem-animal etc. 66
Recobrando as estratgias dos afectos mal-ditos, isto , o desejo desejando o desejo, como havia ressaltado, elas se criam atravs das ambigidades dos rumores, elas tambm se constroem nos deslocamentos dos mexericos, pois no h mais homem ou mulher, macho ou viado, moita ou mato, homem ou animal, mulher ou planta, mas metamorfoses de corpos, homem-mulher, homem-animal, homem-vegetal, homem-viado, homem-macho, vetores por todos os lados, em uma confuso entre corpos e palavras ambguas. Se os mexericos vexatrios tm como uma das principais intenes o vigiar e o punir em prol dos bons costumes camponeses 67 , em prol da nostalgia da regra, das estratgias matrimoniais, do jurisdicismo, calcado no parentesco e nas relaes vicinais, os afectos mal-ditos criam sua mquina de guerra, mquina desejante, coletividades, anlogos s peas do go em puro _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 88 anonimato, sem reis, sem rainhas, sem torres, sem identidade prt--porter. Neste sentido, para criar suas linhas de fuga do pretenso controle social, arquitetadas pelos rumores, os corpos-nmades-camponeses, corpos maqunicos, reinventam os rumores, se reapropriam deles, em que a velocidade dos deslocamentos absoluta, at mesmo quando os afectos se deslocam lentamente, pois ao estarem sempre no meio, eles no tm nem passado, nem futuro, tm apenas devires: devir-homem, devir-mulher, devir-homossexual, devir-cabrito, devir-galinha, devir-roado, devir-campons. Nesse sentido, Deleuze acresce:
Os verbos infinitivos so devires ilimitados. Cabe ao verbo ser, como uma tara original, remeter a um Eu, ao menos possvel, que o sobrecodifica e o coloca na primeira pessoa do indicativo. Os infinitivos-devires, porm, no tm sujeito: remetem apenas a um Ele do acontecimento (chove), e se atribuem a estados de coisas que so misturas ou coletivos, agenciamentos, mesmo no mais alto ponto de sua singularidade. 68
Em The psichology of rumor, Georges Allport (1965) afirma que os rumores se espalham quando os eventos tm importncia na vida dos indivduos e quando as notcias recebidas sobre eles so incompletas ou subjetivamente ambguas. Neste sentido, o psiclogo conceitua:
Rumor is set in motion and continues to travel in a homogeneous social medium by virtue of the strong interests of the individuals involved in the transmission. The powerful influence of these interests requires the rumor to serve largely as a rationalizing agent: explaining, justifying, and provinding meaning for the emotional interest at work. At times the relationship betwenn the interest and the rumor is so intimate that we may describe the rumor simply as a projection of an altogether subjective emotional condition 69 .
Dessa forma os afectos mal-ditos, ao elaborar suas estratgias de guerra, engendradas por suas mquinas desejantes, fazem, por exemplo, de um homem campons, pai-de-famlia, metamorfose, multido, anonimato, pois nos inmeros locais-experimentais (nas moitas, nos becos escuros, na noite, nos rios, na roa, nos audes etc.) as sexualidades camponesas ganham sua imanncia, pura potncia de vida, em meio s ambigidades de condutas, a confuso entre elas, propagadas pelas fofocas, arquitetadas pelas estratgias e afectadas pelos corpos. Nesse contexto, em Observaes sobre a fofoca, Norbert Elias (2000), discorre que a fofoca no um fenmeno independente. Na pequena cidade de Winston Parva, interior _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 89 da Inglaterra, a fofoca tem tambm um valor considervel como entretenimento. Segundo o autor, a estrutura da fofoca est ligada do grupo que circula, se aproximando do que pensa Allport.
Se um dia parassem os moinhos da boataria na aldeia, a vida perderia muito de seu tempero. O aspecto essencial delas no era simplesmente o interesse que se tinha pelas pessoas, mas o fato de se tratar de um interesse coletivo. 70
Por sua vez, J org Bergmann (1993) ao tratar da organizao social da fofoca aponta que gossip emerges as gossip through the performance of actions that are distinguished, perceived, and answered by the participants specifically as acts of gossip in the concrete action situations 71 . Neste sentido, ao conceituar fofoca, o pesquisador ainda acresce:
The designation gossip therefore unifies the fact that news of a special type is communicated with the way in wich it is communicated. In everyday experience this difference is hardly ever noticied. The fact that there are always specific forms of communication for specific types of news is obvious to us. The fact that it is desirable, for tha sake of analysis, to begin at this point is made clear by another example in which the transmission of specific news is important. 72
Para o socilogo, a fofoca algo eminentemente do feminino. Um homem, nas pequenas cidades camponesas e para alm delas, que apontado como fofoqueiro logo associado com o ridculo e com o feminino. Men, it seems, do not gossip; they chat, discuss, have a talk, but they do not gossip and if one should indulge in gossip he would make himself appear ridiculous and bring upon himself the scorn of the people because he then would be assuming a typically female mode of behavoir. 73
Bergmann tambm ressalta a importncia da ambiguity na fofoca. Enfatiza ainda que para o estabelecimento da relao, a fofoca se pauta pela existncia entre os participantes-condutores por meio de um parentesco pessoal, pautado em um complexo moral. Ao exemplificar a fofoca nos estudos sobre o meio rural hispnico, o socilogo discorre:
For anyone who wants to prevent hinself from being made a subject of gossip there is only one secure place since gossip is only about absent persons, he must himself participate as an actor in the gossip. A study of a rural Spanish community reports that any woman who observes her neighbors engrossed in animated conversation assumes that she herself is the subject of this conversation. She therefore joins in the group to inhibit gossip. No one wants to be left out, one woman said, for fear of becoming the object of speculation among her peers. What appears as gossip mania can therefore be _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 90 a countermeasure to gossip. A concern with becoming a subject of gossip can bing people together to gossip and of course, to stay together gossiping. For it is also an everyday experience that anyone who quits a gossip circle and thereby becomes an absent an absent party almost immediately becomes the subject of a gossip-story. The reason it is so difficult to bring gossip to an end is precisely that each of the gossipers is afraid of being the first to leave the gossip circle. 74
Eis o argumento central de Bergmann, a fofoca como paradoxal, uma forma social das discretas indiscries para solues institucionalizadas que burilam a contradio estrutural e que inventam e reinventam as ambigidades entre os agentes.
Gossip so runs our central argument is the social form of discreet indiscretion. This social form of discreet indiscretion represents the institutionalized solution to a strutural contradiction and in this way acquires its basic paradoxical strcture, dynamics, and equivocal nature. Gossip violates the precept of discretion and respects it at the same time. To be sure, a secret may be revealed in gossip, but only insofar as a mutual friend is initiated into the secret and thereby a new secret created. 75
Dessa forma, se les rumeurs, como acentua Edgar Morin (1969) effraye cache, enveloppe quelque chose de dlicieux 76 , a tica dos afectos mal-ditos cria o dbio, o barulho, o murmrio, o intempestivo, por meio das afeces corpreas. Diferentemente de Luiz Costa Pinto (1980) e Chandler (1981) que do um poder de controle poltico e afetivo, quase inconteste, s lutas histricas, e nostlgicas, das famlias sobre o corpo campons, e/ou Arensberg (1968) e Otvio Abreu Filho (1980), ao sangue de famlia, a tica dos afectos mal-ditos confunde pblico e privado, no h mais separao entre estrutura e sentimento, entre fora e dentro, entre duro e mole, no h mais dualidades, binaridades, pois os corpos esquecem da regra do jogo de xadrez levistraussiano, recobram as estratgias bourdieusiana, engendradas pelos agentes, e experimentam o desejo desejando o desejo, no intermezzo das peas do go, pois se os rumores so coercitivos, eles paradoxalmente passam a ser estratgicos ao encontro. Neste contexto, Morin acresce:
Dcho en cho, danalogie en analogie, de rve en rve, de mythe en mythe, du cortex cervical au sexe profond et vice versa, cest la source mme de lros et du fantasme qui est sollicite, excite par la piqre hypnotique, dans une invitation occulte lamour maudit, au voyage impossible, lvasion interdite, lextase abysasale. 77
Chego, portanto, ao conceito de afectos mal-ditos, anunciado no incio deste captulo:
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 91 1) Trata-se daqueles agentes, no sentido proposto por Bourdieu, que so mal falados, mal-ditos, ambguos, pelos rumores e fofocas que circulam, movimentam, as sociedades camponesas; Vejamos um exemplo:
Dizem os boatos por a que Andr e Tadeu so viados! Um dia, moo, perguntei para eles... a eles negaram tudo! Mas voc sabe como cidade pequena! Todo mundo fala! (Fragmentos das conversas de Maria, 48 anos, me-de-famlia, 2002)
2) Afectos que so prescritos e proscritos pelos tericos do campesinato; Vejamos um exemplo:
Todos os camponeses do mundo tm a convico de que certas qualidades essenciais so muito mais o apangio do homem do campo, que as possui em mais alto grau que os citadinos: resistncia fsica, amor ao trabalho, honestidade, moral sexual . 78
3) Afectos que traaram linhas de fuga, reinventando os rumores locais, utilizando-os como estratgicos ao encontro; Vejamos um exemplo:
Vou lhe ensinar: voc est afim de um macho daqui? s tocar no assunto sobre sexo ou sobre homossexual. Sabe por qu? Quando falamos sobre homossexual, negamos, xingamos, mal-dizemos em voz alta, principalmente se for na praa! A os homens daqui se tocam, percebem que estamos afim! J consegui muitos assim. s falar... finge que no concorda, que acha feio, a voc passa mais segurana para os machos, pois eles percebem que voc no vai sair por a contando as coisas.... (Fragmentos das conversas com Andr, em 2001)
4) Uma parte mal-dita para alm da guerra dos gneros, para alm do desejo de identidade cultural, da representao social sobre sexualidade e do gay way of life; Vejamos um exemplo:
Tem que ser macho para ficar por baixo [na posio de passivo no intercurso sexual] de outro macho! (Ditado popular em Goiabeiras, apanhado em 2002)
5) Sexualidades camponesas indizveis, onde no cabe qualquer palavra, qualquer desejo de oficializao, qualquer vontade de definio.
Para qu falar? Para qu comentar? Aconteceu e pronto, j j tem mais dois! Corra! (Fragmentos das conversas com Tadeu, em 2002)
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 92 Nesse sentido, tenho como inteno acrescer e no centralizar, nas teorias sobre sociedades camponesas, a dimenso das sexualidades e o indizvel que as subjazem. A argumentao que desenvolvo , portanto, uma problematizao do reducionismo destas teorias sobre as inmeras possibilidades do corpo de mulheres, de crianas e de homens.
Os Corpos Fugidios Dos Afectos Mal-Ditos: Gnero No Os Pega Mais
Como encaixar o corpo na guerra dos gneros? Como instituir o desejo em corpos afectados pelas intensidades e paixes? Como definir mulher, homem e criana, mesmo utilizando, como retrica, identidade mveis, fludas, nmades? Os afectos mal-ditos no so um retorno ao Mesmo. No se trata do Molar sem Molecular, no so uma funo e/ou uma estrutura, no se trata mais de binaridade, de dualidade, em prol de polticas pblicas para camponeses. Trata-se, doravante, do acontecimento, da matilha, do contgio, dos devires imperceptveis. O corpo como esquecimento ativo contra as Coisas do gnero. Corpo a-significante, a-paralelo, movedio, geografia e no histria. Gnero no os pega mais! Como veremos nesta subseo, os corpos dos afectos mal-ditos abandonaram a misso, a ncora, o porto seguro, a identidade cultural, sobretudo, o identitrio. Quem os faz rodopiar, escorregar, se perder, escapar, o desejo, perdido nas paixes. Mquina desejante, agenciadora dos Corpos Sem rgos. Os corpos fugidios so da ordem do indizvel das sexualidades camponesas, nada a declarar, nada a oficializar, apenas a experimentar. Nesse sentido, um outro conceito bom para experimentar os interstcios dos afectos mal-ditos o de mnodas, do infinitamente pequeno, do imperceptvel, proposto por Leibniz e reinventado por Gabriel Tarde. Neste sentido, inicio esta subseo com Tiago Themudo (2002), intrprete de Tarde, ao iniciar sua introduo ao pensamento daquele socilogo: como pensar as vrias formas de organizao, composio e transformao do social sem descartar os elementos concretos que o compem? Como pensar o lao social no mais entre duas identidades lgicas, mas entre dois corpos de desejo agindo um sobre _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 93 o outro, constituindo um ao outro? 79 Inquietaes estas que tambm norteiam as minhas preocupaes com o corpo em sociedades rurais. Nesse sentido, Themudo problematiza:
Nos so estranhos os sistemas sociolgicos e antropolgicos, e at psicanalticos, em que a sociedade considerada como uma enorme amplificao das lgicas familiares de relaes. Sendo a famlia o bero das sociedades, a homogeneidade primeira, origem das marcaes fundamentais do desejo, estabilidade primeira que os homens primitivos conseguiram estabelecer entre si, de onde derivariam todas as outras formas de composio social. Clula me de todas as sociedades, social in natura, desejo in natura. Desta forma, sempre teremos uma referncia de um homogneo primeiro, de uma semelhana primeira, de onde poderemos derivar toda diferena considerada. A diferena em si permanece sem explicao. 80
Ao reinventar as mnodas em Leibniz 81 , Gabriel Tarde (2003) pensa o social como um sistema vivo e em constante evoluo, e tal evoluo no segue uma nica linha, uma nica determinao, mas uma rede de vias, onde as encruzilhadas so abundantes. O que interessa ao socilogo no o universo das grandes representaes, mas o mundo molecular das pequenas composies e transformaes. Neste sentido, Tarde alerta que devemos reconhecer no fundo de cada ser a presena de uma dobra irredutvel de originalidade e heterogeneidade. Para Themudo, intrprete de Tarde, o real jamais se esgotaria na sua constituio atual, tal atualidade representa apenas um possvel entre milhes de outros, uma pequena paragem em um universo de constantes agitaes virtuais 82 . Assim o real no seno ligado imensido do possvel, do infinito. Eis portanto o intermezzo entre monologia e sociologia proposta por Tarde:
Ns devemos mergulhar nas profundezas microscpicas, ou ainda, ultramicroscpicas do infinitamente pequeno para a sempre descobrirmos germes vivos e organismos completos, nos quais a observao ou a induo nos leva a reconhecer tanto as caractersticas da animalidade quanto as da vegetao, pois os dois reinos se confundem in minimis. 83
Desta forma, o mundo fsico e vivo, quanto o mundo social, a srie de acontecimentos atuais, passveis de serem representados, no esgotam, como acentua Themudo em sua interpretao de Tarde, todas as propriedades, todas as possibilidades, do real, pois o real no uma srie inteiramente previsvel de acontecimentos, ordenados, mas um desdobramento processual de fluxos em constante remanejamento, de formas e fronteiras constantemente desfiguradas 84 .Assim, a inovao de Tarde se pauta em que o _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 94 social no mais animado por foras abstratas, mas por uma multiplicidade de indivduos em constante interpenetrao, em mtua constituio.
Em um sistema monadolgico ou atomista qualquer, todo fenmeno uma nebulosa de aes emanadas de uma multiplicidade de agentes que so como pequenos deuses invisveis e inumerveis. 85
O possvel mais rico que o real. Assim, e aqui recobro a construo normativa e naturalizada de um Texto Brasileiro sobre o rural, no poderamos representar o desdobramento de uma nica srie, de uma nica idia para um nico problema. Tentar afirmar tal unidade significa reavivar a substncia, fazer do real um simples reflexo de uma unidade primeira e homognea, significa ignorar a diversidade e a diferenciao. Significa, como acentua Themudo, sobretudo, negar a produo do novo, tanto no mundo natural como social, instaurando uma verdadeira paixo pelos imperativos do Mesmo e da Ordem. Nesse sentido, para Themudo, se os homens apresentam semelhanas que permitem a qualquer identidade de se instalar enquanto termo explicativo, preciso no instalar a a naturalidade da mesma. As identidades, e para o nosso caso, o desejo de identidade dos gneros, pelos tericos do campesinato, em universos camponeses e para alm deles, no preexistem s aes, mas so impostas por elas e para elas, pois as identidades definem um territrio, mas no mapeiam todo o indivduo. E assim, Themudo continua suas indagaes:
Como explicar a enorme diversidade de costumes e hbitos, de desejos, sons, texturas, cores, linguagens, habilidades, existentes no mundo, se o fundo do esprito fosse composto de semelhana e homogeneidade. Deveramos antes esperar um mundo formado por cpias perfeitas desse modelo inicial. Sries de acontecimentos onde nada deveria sair do lugar, de onde nenhuma surpresa poderia sair. Mas este no o caso do mundo em que vivemos. o singular e no o universal que confere a razo de ser das sries de acontecimentos, naturais ou sociais. 86
Dessa forma, a importncia dada a Tarde ao indivduo, nos processos de anlise das transformaes e formaes sociais, no representa nenhuma tentao contratualista. Ela representa, por sua vez, uma possibilidade de livrar as reflexes sobre o social do Imprio da Identidade, e no mais afirmar a semelhana l onde vibram as diferenas, pois o indivduo em Tarde diz respeito a uma singularidade e no a uma identidade. E Tarde conceitua:
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 95 Existir diferir, e, de certa forma, a diferena a dimenso substancial das coisas, aquilo que elas tm de mais prprio e mais comum. preciso partir da, evitando qualquer explicao; para onde tudo caminha, mesmo a identidade, de onde falsamente partimos. Pois a identidade apenas um mnimo, no passando de uma espcie, e espcie infinitamente rara, de diferena, assim como o repouso apenas um caso do movimento e o crculo uma variedade singular da elipse. Partir da identidade primordial significa supor como origem uma singularidade prodigiosamente improvvel, uma coincidncia impossvel de seres mltiplos, ao mesmo tempo distintos e semelhantes, ou seja, o inexplicvel mistrio de um ser simples nico, posteriormente dividido no se sabe por qu. 87
E Tarde ainda interroga: se tudo vem da identidade e se tudo visa e vai identidade e para ela vai, qual a fonte desse rio de variedade que nos deslumbra? 88 . Ao diferenciar as mnadas em Leibniz e Tarde, Themudo acresce que as primeiras so destitudas de portas e janelas, incapazes de qualquer forma de interao afetiva entre elas, enquanto as segundas so capazes de se modificar umas s outras numa espcie de associacionalismo afetivo universal. Para Themudo, elas formam assim uma sociedade onde cada mnoda desenvolve sua prpria individualidade (singularidade) e atravs de uma espcie de irradiao que contribui para a constituio das outras individualidades. Esta irradiao ser definida por Tarde atravs das trs formas da repetio universal: a ondulao, no mundo fsico, a hereditariedade, no mundo orgnico, e a imitao, no mundo social. 89
Assim para Tarde:
Na verdade (...) o tomo, naturalmente sugerido pela lei de Newton (que em vo se tenta explicar, de tempos em tempos, atravs dos deslocamentos do ter), deixa de ser um universo para si, no somente um microcosmo, como o queria Leibniz, mas todo o cosmo conquistado e absorvido por um nico ser. 90
Para Tarde, a fonte ativa do finito, da forma, do indivduo, est no infinitamente pequeno, no imperceptvel. Analisar, e aqui me aproximo de Themudo, o social somente atravs de suas representaes identitrias bem definidas, significa ignorar sua irredutvel processualidade e sua incrvel diversidade. Nem sempre palpveis ou disciplinveis pela representao; uma diversidade que no se esgota no fenmeno, sempre passageiro e parcial na apresentao das agitaes e da diferena. 91
E Tarde acresce:
Assim, afastaramos da maneira mais simples a objeo fundamental que poderia ser feita a toda tentativa atomista ou monadolgica, ou seja, a de pensar o contnuo fenomnico atravs da descontinuidade elementar. Com efeito, o que colocamos no _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 96 descontinuo final seno o contnuo? Colocamos (...) a totalidade dos outros seres. No fundo de cada coisa, h toda coisa real ou possvel. 92
Para Tarde, toda diferena conceitual em ltima instncia. Neste sentido, chego a algumas indagaes sobre o pensamento tardiano: Como Tarde pensa a sociedade, o social? Como ele constri sua sociologia do infinitamente pequeno? As sociedades, para o autor, so o intercruzamento multiplicador destas sries. O social como a integral de diversas aes diferenciais, moleculares, em um sentido coletivo, pois mesmo formadas as grandes estruturas sociais, elas no deixam de estar apoiadas sobre um terreno de diferenas subjetivas em constante vibrao, que pode a qualquer momento ganhar amplitude e introduzir a mudana nas macroorganizaes. So pequenas percepes e volies no integradas nos sistemas dominantes. Para Themudo, se as pequenas percepes e apeties so os diferenciais da conscincia, poderamos dizer que h conscincias que so como que os diferenciais do social. O mundo sempre formado pela continuidade de uma continuidade, mesmo que a possibilidade da divergncia venha destronar a razo como princpio dessa continuidade. 93
E para Tarde:
A argumentao de modo algum se sustenta se negarmos a caracterstica real do espao, mas a pretensa lei contradita por mil exemplos que nos mostram a homogeneidade relativa nascendo da heterogeneidade, dos quais os mais impressionantes so fornecidos pela observao das sociedades, sejam elas humanas ou animais. 94
Afirmar o Ser, como acentua Themudo, significa negar a diferena, significa instaurar o imprio do Mesmo em um mundo onde floresce a diversidade. Mas (...) eu s possuo aquilo que me afeta, e o que me afeta so fluxos, fluxos de crena e desejo em constante conexo e desconexo 95 , pois parto do pressuposto que o mundo a expresso desejante dos agentes reais que o compem. Para Tarde:
Homens, todos eles, que falam com os mais diversos sotaques, entonaes, timbres de voz e gestos: eis o elemento social, verdadeiro caos de heterogeneidades discordantes. Com o tempo, porm, surgem dessa confusa Babel hbitos gerais de linguagem formulveis em leis gramaticais. Essas leis, por sua vez, pelo relacionamento conjunto de um nmero cada vez maior de falantes, servem to-somente para destacar o estilo prprio de suas idias: outro gnero de discordncia. 96
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 97 Para o autor, o fato social elementar no pode mais situar na generalidade de uma representao, mas no processo atravs do qual se engendra tal representao, pois toda representao coletiva j a resultante de uma composio dominante de formas de ver e desejar o real, ela produzida e reproduzida em cada engrenagem singular do mundo social: ao de um indivduo sobre o outro. Os fatos sociais so como espcies hbridas, pois tanto os indivduos se constituem pelos fluxos exteriores que passam por eles quanto o social no se explica independentemente das individualidades que propagam suas sries atravs de uma combinao singular 97 .Para Tarde, o social no exterior aos indivduos, mas est nos indivduos na forma de singularidades, de propriedades adquiridas imitativamente; e decorre dos indivduos na forma de fluxos de crena e desejo que expressam tais singularidades. Assim, Themudo em sua reinveno de Tarde, discorre que uma imitao se define pela ao distncia de um indivduo sobre outro; ao sempre referida propagao de uma fora, conexo com outras intensidades. E da que o social deriva dos fluxos de crena e desejo propagados no tempo e no espao. E Tarde disserta:
Quanto mais nos aproximamos do elemento individual, mais h variabilidade nos fenmenos observados. 98
A imitao est para a criao assim como a repetio est para a diferena; potncia de diferenciao interna reagitando o campo das diferenas externas, em suma, a repetio como o diferenciador da diferena. Neste sentido, Themudo continua:
Confundir o Normal com o Geral parece ser confundir o geral com o medocre. Interesse do poder no compartilhado por Tarde: a tristeza no a regra, no pode ser a regra. na criao que a vida se afirma, no infinitesimal de uma pequena nuana, numa intensidade fugidiaque ofusca os olhos viciados dos socilogos. Um corpo no pode ser afastado daquilo que pode, da dimenso afetiva de seus problemas, mesmo que para isso o social tenha que ser ferido. 99
Assim, para Themudo, se Leibniz cria uma cartografia de singularidades pr- individuais e pr-significantes da conscincia, h em Tarde uma cartografia dos diferenciais das subjetividades e das sociedades, pois uma inveno uma singularidade na medida em que ela vem instaurar uma variao, por mais nfima que seja, em um sistema cultural qualquer. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 98 E Tarde complementa:
A simplicidade da natureza que apreendemos atualmente o resultado de uma complexidade infinita, e que, sob uma aparente uniformidade, se encontra uma diversidade cujas profundezas e segredos no foram ainda sondados por ns. 100
Eis o que prope Tarde, substituir a macrossociologia das grandes representaes por uma microssociologia dos acontecimentos. Trata-se, como ressalta Themudo, de apreender o social em seu dinamismo diacrnico, em suas operaes de mudana; somente assim se pode falar do arranjo de seus macroagenciamentos.
Os maiores problemas do futuro encontraro suas solues neste domnio inexplorado do infinitamente pequeno, onde se encontram, sem dvida, as realidades fundamentais, sutis, maravilhosas e profundas. 101
Para Tarde, o social composto por foras afetivas em ressonncia, em mtua agitao e transformao. O que o caracteriza, segundo Themudo, no so estados que devem ser transformados em entidades da representao, mas tendncias em maior ou menor grau de agitao e propagao. E Tarde aponta:
Estejamos certos, o fundo das coisas no to pobre, to monnoto, to descolorido quanto supomos. Os tipos so apenas freios, as leis so apenas diques, opostos em vo ao transbordamento de diferenas revolucionrias, internas, nas quais se elaboram secretamente as leis e os tipos de amanh, e que, apesar da superposio de seus jugos mltiplos, apesar da disciplina qumica e vital, apesar da razo e da mecnica celeste, acabam um dia, como os homens de uma nao, derrubando todas as barreiras e fazendo dos prprios cacos um instrumento de diversidade superior. 102
Seguindo este vis, e ao pensar o afecto e seus fluxos e refluxos, Themudo indaga: convenhamos que um mapa sociolgico e etnolgico dos afetos bem diferente de uma determinao genrica e especfica do social e das subjetividades. Uma anlise das propagaes, das oposies e das adaptaes criadoras entre os afetos e as paixes que ressoam sobre a superfcie do socius. 103
E Tarde conceitua:
Na hiptese das mnodas, ao contrrio, tudo vem de uma fonte. Cada uma delas extrai o mundo para si. Elas pertencem, claro, umas s outras, mas elas podem se pertencer mais ou menos, cada uma aspirando ao mais alto grau de posse; da sua concentrao gradual. Ou, ainda, elas podem se pertencer de mil maneiras diferentes, cada uma delas aspirando a conhecer novas maneiras de se apropriar de suas semelhantes. Da suas _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 99 transformaes. para conquistar que elas se transformam; mas como elas jamais se submetem a uma delas seno por interesse, o ambicioso sonho de todas elas no se realiza por completo, de modo que as mnadas vassalas servem mnada soberana, enquanto esta as utiliza. 104
Assim, para Tarde, o campo da interveno da ordem do acontecimento, cuja atualizao no pode estar prevista por consideraes tais como meio social, pois esta sempre implica uma causalidade externa na explicao da produo da novidade. Para Themudo a inveno sempre se refere a um movimento interno de diferenciao dos fluxos imitativos vindos de fora, uma causa interna de diversidade; o resultado maqunico do desejo recriando conexes, reinventando cruzamentos. 105
E Tarde continua:
Nascidos diversos, eles tendem a se diversificar; sua natureza que o exige. Por outro lado, sua diversidade se deve quilo que so: no unidades, mas totalidades especiais. 106
Crenas e desejos que constituem a matria intensiva fundamental de todas as formaes sociais; disso que se trata em um verdadeiro estudo da sociedade: desejos humanos, com suas variedades de intensidade, sua potncia de diferenciao, e no leis naturais. Se Tarde parece procurar uma lgica da descrio dos acontecimentos sociais e de suas evolues sem recorrer a modelos deterministas e estticos, sem recorrer a nenhuma substncia fundamental que funcione como razo suficiente de todo e qualquer fenmeno, me aproximo de sua proposta ao pensar em um corpo fugidio, engendrado pelas linhas de fuga do desejo, emanado pelos afectos mal-ditos.
preciso ver em toda modificao espontnea de uma espcie viva, mesmo a mais fugaz, a visada de uma outra espcie, que ela atingiria com a condio de se amplificar suficientemente. 107
Ainda a ttulo de desenvolvimento do conceito que levanto, os corpos fugidios dos afectos mal-ditos, recobro o infinitamente pequeno, o imperceptvel, o indizvel, rompendo com o pretenso desejo de identidade, desejo viciado, drogado (cf. Rolnik, 2005), dos gneros, do Imprio da Identidade prt--porter. Neste nterim nos distancio consideravelmente do conceito de identidade proposto por Lvi-Strauss (1987):
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 100 LIdentit est une sorte de foyer virtuel auquel il nous est indispensable de nous rfrer pour expliquer un certain nombre de choses, mais sans quil ait jamais dexistence relle. 108
A tica explicativa da identidade e da representao no explica nada no trato das infinitas possibilidades do corpo, do imperceptvel, do luxuriosamente excessivo, do indizvel das sexualidades camponesas, por mais virtual ou irreal que seja. A ttulo de exemplificao recobro a idia (identidade) de vermelho no permite perceber o que realmente vermelho e, em conseqncia, distingui-lo de outras cores. Ora, tal concepo de coisa, como acentua Lins (2005), omite uma pequenina diferena, uma simples nuana que desmorona a imagem que fazamos do pensamento. A idia do vermelho, portanto, no contm apenas o vermelho, mas tambm todas as cores que ela no , mas sem as quais ela no poderia ser. Um vermelho sensvel contm sempre algo das outras cores, e no necessrio se libertar dos matizes do mundo real. 109 Aps este exemplo, indago: o que so homens, mulheres e crianas camponesas? Eis uma guerra de identidade dos gneros, figuras lutando por seus interesses, pelo discurso militante do politicamente correto. No s nos tericos das sociedades urbanas, ditas complexas, especialmente o assim chamado gnero feminino, oprimido, politizado e consciente de si, em sua luta constante contra o assim chamado gnero masculino e/ou as reinvidicaes identitrias dos grupos gays, lsbicas, trangneros, transsexuais, panssexuais, bissexuais e outros sexuais institudos contra o bicho-papo de uma dita heterossexualidade, que para alguns, alm da identidade heterossexual ser hegemnica discursivamente, esta ainda compulsria 110 , ou nas ambincias do rural, no trato dos homens e das mulheres camponeses, para no falar das crianas e de outras Coisas mais... 111
Em Tristes gneros, Suely Rolnik (1998a) discorre que os personagens so feitos de figuras atravs das quais eles se representam, assim como ns os representamos; tais figuras so efetivamente classificveis em identidades ou gneros e funcionam segundo uma lgica binria de oposies e contradies, cujo atrito pode transformar-se em conflito 112 . Logo, o que pensar de uma sexualidade camponesa a partir exclusivamente do dito englobante (macho) e do englobado (fmea), de um mito admico no campo (o corpo- bblico)? Ou dito de outra forma, como pensar o desejo, e de sua afectao, a partir da centralizao na famlia extensa camponesa, que preserva indiscutivelmente e _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 101 discursivamente a tradio a heretossexualidade, j que a dita homossexualidade de sada, homossexualidade como sinnimo de expulso funcional, e sobretudo, no caso especfico do Brasil, fundamentando-se em um imaginrio cristo, em que o desejo deve ter como destino crescer e multiplicar a espcie, para assim ganhar o po pelo suor do prprio rosto, como foi exposto no primeiro captulo? E Rolnik disserta:
Personagens que tendem a viver confinados no plano da representao, como se s existisse o que o olho alcana. Insensveis aos afetos, eles so conseqentemente insensveis s diferenas que as novas composies de afetos engendram em seu corpo. Quase nada se registra no ambiente que parea acolher o estranhamento provocado pela disparidade entre o plano das foras e o das figuras. Pelo contrrio, quase tudo leva a crer que possvel instalar-se de modo vitalcio numa determinada figura, sem que jamais tremam seus contornos. 113
Para Rolnik, todas as imagens de simetria, de unio encantada, eterna ou bem acabada, so puro veneno, pois anestesiam o corpo, calam o barulho da vida, travam o desejo.
O glamour de um corpo vem de sua nudez poder estar mais nu do que simplesmente nu. No a nudez que o olho v, mas aquela invisvel, mais sutil e mais bruta, que s o corpo conhece. nessa nudez que o corpo atingido pelo outro e se recria a cada encontro. E quando isso no acontece, porque o encontro no aconteceu de verdade. 114
Na eterna guerra dos gneros em sociedades urbanas, indgenas e camponesas, arquitetada por socilogos e antroplogos no geral e, muitas vezes, desconhecidas pelos nativos, pelos sujeitos do enunciado, a luta das oposies, as dicotomias, prevalece restringindo o desejo ao ideal de desejo encaixado, enlatado, rotulado. Um exemplo significativo desta assertiva so as binaridades entre fraco(feminino) e forte(masculino), desencadeando uma gama de homologias, tais como entre o duro(masculino)/mole(feminino), entre o quente(masculino)/frio(feminino), entre o alto(masculino)/baixo(feminino) etc para pensar, classificar, instituir, os gneros nas teorias sobre sociedades camponesas. Nesse sentido, em O sexo no poder, Lins (1998) disserta:
Porm, o processo de inverso presente na maior parte dos artigos sobre a mulher os fracos so fortes sem o saber pode ser, e , uma estratgia de seduo, tanto dos fracos, por solidariedade, quanto dos militantes do devir-mulher. Estratgia dos que no so mulheres ou jogo instrumental para assegurar uma posio mais confortvel _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 102 numa paisagem em mutao? Quem opera e em que nvel essa transformao imaginada ou idealizada dos fracos em fortes? Conhecemos o perigo de auto- excluso e exlio que representa a exaltao de sua prpria fraqueza. No. A fraqueza no , necessariamente, uma fora. No existe nenhuma glria em afirmar sua fraqueza. Pregar a fora dos fracos pode ser apenas uma estratgia de apropriao de controle do fraco, de vampirismo exercido contra ele. 115
Aprisionar as infinitas possibilidades do corpo campons na representao social da sexualidade e na identidade sexual barrar a velocidade dos corpos fugidios dos afectos mal-ditos. Assim, trago baila o conceito de subjetividade antropofgica, proposto por Rolnik (2005b), em que o apresento como fio condutor para aparar as possveis arestas do desdobramento do meu conceito de afectos mal-ditos e seu engendramento em inmeras linhas de fuga do desejo. Trata-se, portanto, da inveno de uma subjetividade antropofgica como profunda experimentao, acontecimento, desterritorizaes de corpos, mquinas de guerra do desejo desejando o desejo, do entre-dois constitutivo dos afectos mal-ditos, pois anuncio desde j que o gnero no nos pega mais. E Rolnik discorre:
Mundo Hoje: oceano infinito, agitado por ondas turbilhonantes fluxos variveis sem totalizao possvel em territrios demarcveis, sem fronteiras estveis, em constante rearranjos. De acordo com alguns [aqui a autora dialoga com Fernando Pessoa, em sua obra O livro do desassossego], um segundo dilvio s que desta vez as guas nunca mais iro baixar, nunca mais haver terra vista, as arcas so muitas e flutuam para sempre, lotadas de Nos, tambm muitos e de toda espcie. Nunca mais os ps pousaro na paisagem estvel de uma terra firme: habituar-se a navegar preciso, sem um norte fixo, como ponto de vista geral sobre esta superfcie tumultuada e movente. No h mais apenas uma forma de realidade, com seu respectivo mapa de possveis. Os possveis agora se reinventam e se redistribuem o tempo todo, ao sabor de ondas de fluxos, que desmancham formas de realidade e geram outras, que acabam igualmente dispersando- se no oceano, levadas pelo movimento de novas ondas. 116
E no trato das subjetividades hoje, a autora disserta:
Subjetividades hoje: arrancadas do solo, elas tm o dom da ubiqidade flutuam ao sabor das conexes mutveis do desejo com fluxos de todos os lugares e todos os tempos, que transitam simultneos pelas ondas eletrnicas. Filtro singular e fluido desse imenso oceano tambm fluido. Sem nome ou endereo fixo, sem identidade: modulaes metamorfoseantes em um processo sem fim, que se administra dia a dia, incansavelmente. 117
Assim, a autora nos convida para um estranhamento desestabilizador, desacomodado, desaconchegado, desorientado, perdido no tempo e no espao.
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 103 como se fssemos todos homeless, sem-casa. No sem a casa concreta (grau zero da sobrevivncia em que se encontra um contingente cada vez maior de humanos), mas sem o em casa de um sentimento de si, ou seja, sem uma consistncia subjetiva palpvel familiaridade de certas relaes com o mundo, certos modos de ser, certos sentidos compartilhados, uma certa crena. Dessa casa invisvel, mas no menos real, carece toda a humanidade globalizada. 118
Vozes de todas as lnguas, para todos os cantos, estrangeiros de nossa prpria lngua, multido, peas annimas do go, o imperceptvel, o indizvel das sexualidades camponesas. Os corpos fugidios dos afectos mal-ditos emanam seus desejos, escapam da identidade, sobretudo do identitrio, e criam seu tratado de nomadologia. O corpo do campons puro movimento vibrtil, agitador estratgico da faina na estrutura, das mais diversas mudanas na histria, pois pura geografia.
A casa subjetiva dissolveu-se, desmoronou, desapareceu? Onde est a identidade? Como recompor uma identidade neste mundo onde territrios nacionais, culturais, tnicos, religiosos, sociais, sexuais perderam sua aura de verdade, desnaturalizaram-se irreversivelmente, misturaram-se de tudo quanto jeito, flutuaram ou deixam de existir? Como reconstituir um territrio neste mundo movedio? Como se virar com essa desorientao? Como reorganizar algum sentido? Como fazer surgir zonas francas de serenidade? E esse coro transnacional oscila em variaes sobre o tema composta por posies afetivas que vo da deslumbrada apocalptica. Esperana ou desesperana, tanto faz: plos de uma posio moralista que naturaliza um sistema de valor e com ele interpreta, julga e prognostica o que se passa final feliz ou fim de tudo. 119
Corpos movedios, desterritorializados. O devir-homossexual, devir-mulher, devir- homem, devir-animal, devires imperceptveis do campons faz sua morada nos interstcios do indizvel das sexualidades camponesas. Confuso de corpos. Das regras s estratgias maquinadas dos sem-trade-Deus-Homem-Natureza, banquete antropofgico nos confins do rural.
O banquete antropofgico feito de universos variados incorporados na ntegra ou somente em seus mais saborosos pedaos, misturados vontade em um mesmo caldeiro, sem qualquer adeso mistificadora. Mas no qualquer coisa que entra no cardpio dessa ceia extravagante: a frmula tica da antropofagia que se usa para selecionar seus ingredientes, deixando passar s as idias aliengenas que, absorvidas pela qumica da alma, possam revigor-la, trazendo-lhe linguagem para compor a cartografia singular de suas inquietaes. 120
Eis a fora da subjetividade antropofgica anunciada por Rolnik, a afirmao irreverente da mistura que no respeita qualquer espcie de hierarquia cultural a priori, j _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 104 que, para esse modo de produo de cultura, todos os repertrios so potencialmente equivocantes como fornecedores de recursos para produzir sentido, e s isso que conta.
Pois o critrio de seleo para o ritual antropofgico na cultura no o contedo de um sistema de valor tomado para si, mas o quanto funciona, com o que funciona, o quanto permite passar intensidades e produzir sentido. E isso nunca vale para um sistema como um todo, mas para alguns de seus elementos, que se articulam como elementos de outros sistemas, perdendo, assim, qualquer conotao identitria. 121
Para Rolnik, o exerccio de criao da cultura no tem a ver com significar, explicar ou interpretar para revelar verdades, pois as verdades, segundo o Manifesto Antropofgico, so mentira muitas vezes repetida.
Fazer cultura antropofagicamente tem a ver com cartografar: traar um mapa de sentido que participa da construo do territrio que ele representa, da tomada de consistncia de uma nova figura de si, um novo sem casa, um novo mundo. Roteiros, Roteiros, Roteiros, Roteiros, Roteiros, Roteiros, Roteiros. insiste sete vezes seguidas o mesmo Manifesto. da vizinhana paradoxal entre heterogneos, feita de acordos no resolvidos e no remetidos a uma totalidade, que emana o sentido: roteiro, cartografia dos movimentos sociais reais, efeito crtico. Qualquer experimentao pragmtica, seja ela mais ou menos bem-sucedida, vale mais do que a imitao estril de modelos. 122
Os corpos fugidios dos afectos mal-ditos vo para lugar nenhum e para todos os lugares. Eles armam seu banquete antropofgico, no h mais homem, mulher ou criana camponesa, mas corpos em constante mutao afectiva, devires no infinitivo. Abandono portanto as binaridades, as bifurcaes, as dicotomias, as homologias, as identidades, as representaes, tudo aquilo que institui o desejo no campons.
Essa estratgia do desejo definida pela justaposio irreverente que cria uma tenso entre mundos que no se roam no mapa oficial da existncia, que desmistifica todo e qualquer valor a priori, que descentraliza e torna tudo igualmente bastardo essa estratgia do desejo pe em funcionamento um modo de subjetivao que chamarei de antropofgico. 123
A maioria dos roteiros e dos projetos das polticas pblicas no Brasil sobre o rural, como por exemplo s polticas pblicas de gnero desenvolvidas no Ministrio Pblico, via socilogos e antroplogos, sobre o corpo e os direitos humanos de homens e de mulheres, nada mais que esta concretizao de uma instituio do desejo. Tentativa desesperada para equiparar, mensurar, homens e mulheres em prol de um ideal de igualdade social a todo custo. Os gneros esto em moda, eles definem tudo, mesmo quando h uma dita fluidez entre eles, como a noo de vrias identidades de gnero em um nico sujeito de _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 105 enunciado. Ora, este leque de identidades de gneros que utilizado quando melhor apraz ao sujeito reinvidicador, consciente de si, orgulhoso de ser, como quer alguns 124 , s nos mostra como as identidades prt--porter respondem e apresentam o possvel, o visvel, o tangvel, o que o olho alcana, castrando o indizvel das sexualidades, esta fora que nos afecta, seja nas aldeias e vilarejos camponeses mais distantes, seja nos corpos sexuados e no sexualizados, de muitos transeuntes que freqentam os banheiros pblicos da Universidade de Braslia 125 .
A subjetividade antropofgica define-se por jamais aderir absolutamente a qualquer sistema de referncia, por uma plasticidade para misturar vontade toda espcie de repertrio e por uma liberdade de improvisao de linguagem a partir de tais misturas. No entanto, para um olhar mais arguto, que capta o invisvel, a antropofagia atualiza-se segundo diferentes estratgias do desejo, movidas por diferentes vetores de fora, que vo de uma maior ou menor afirmao da vida at sua quase total negao. Eles se distinguem basicamente pelo modo como a subjetividade conhece e rastreia o mundo, por aquilo que move sua busca de sentido e pelo critrio de que se utiliza para selecionar o que ser absorvido para produzir esse sentido. 126
Segundo Rolnik, o modo mais ativo do processo antropofgico de subjetivao um certo estado do corpo, em que suas cordas nervosas vibram a msica dos universos conectados pelo desejo; uma certa sintonia com as modulaes afectivas provocadas por essa vibrao; uma tolerncia presso que tais afectos inusitados exercem sobre a subjetividade para que esta os encarne, recriando-se, tornando-se outra.
Aquilo que d liga para formar um em casa, isto , aquilo que funciona como operador da consistncia subjetiva a errncia do desejo que vai fazendo suas conexes guiado predominantemente pelo ponto de vista da vibratibilidade do corpo e sua vontade de potncia. 127
A construo estratgica da casa subjetiva nos corpos fugidios dos afectos mal- ditos obedece a um comando pela lei de lhe imanente, a construo se orientar pelas intensidades produzidas no corpo vibrtil, ou seja, a configurao do mundo tal como se apresenta no corpo, o que Rolnik chama de um conhecimento por vibrao e contaminao.
Todo aberto disperso nas mltiplas conexes do desejo no campo social e que emerge entre os mundos agenciados, enquanto a subjetividade regida por um princpio identitrio-figurativo consiste na pessoalidade de um eu, individualidade murada, presa a suas vivncias psquicas e comandada pelo medo de se perder de si. 128
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 106 Os corpos fugidos dos afectos mal-ditos perderam o rosto, o gnero, saram de si. Se a maioria dos tericos sobre o rural transforma o corpo do campons em um instrumental identitrio, se a maioria naturaliza suas possibilidades, se a maioria desumaniza o homem do campo, a subjetividade antropofgica proposta por Rolnik boa para experimentar, criar, afectar, e no mais para interpretar, explicar, enquadrar o corpo-experimento. Assim, o corpo cria corpo, deslocamentos em ziguezagues, afectos em seu ato corpreo de afectao, camponeses humanos demasiados humanos, imanncia do infinitamente pequeno, corpos fugidios anlogos as mnadas em Leibniz, reinventadas por Tarde.
O indizvel Das Sexualidades Camponesas
O indizvel das sexualidades camponesas o que o Grande Olho da representao social sobre a sexualidade e da identidade sexual, da Ordem e do Mesmo, no abarca. o que no possvel de mesurar de acordo com a ideologia camponesa naturalizada e filtrada pelos tericos do campesinato. O indizvel das sexualidades camponesas os afectos mal- ditos em seu profundo ato de afectao, ele pura experimentao, criao. Intensidade das sexualidades camponesas, anlogos s mondas imperceptveis, anlogos s peas do go, luxuriosamente excessivos em seu banquete antropofgico. No meio do roado, nas moitas, nos audes e ou em casas abandonadas, ou ainda no caso de muitas camponesas na cozinha da casa, entre elas 129 , nada a declarar, nada a reivindicar, nada a se identificar ou representar. Puro anonimato, devir-homossexual, devir-animal, devir-mulher, devir- homem, devires infinitos que se engendram pelo desejo desejando o desejo. O englobante se confunde com o englobado, o englobando devir-englobante e devir-englobado englobando os infinitos devires do mundo. No h mais complementaridades, mito admico, corpo-bblico, corpo-mais-valia, corpo-funcional, corpo-binrio, portos seguros, ncoras, mas uma confuso entre pernas, mos, nus, pnis, vaginas, troncos, cabeas, orgasmos, afectos. Um entre-dois deleuziano, npcias entre reinos, philia foucaultiana, intermezzo que burila com o jurisdicismo do parentesco, com as relaes vicinais oficializadas e com a dita diviso sexual do trabalho, construdas assimetricamente por socilogos e antroplogos, nas sociedades camponesas, e para alm delas. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 107 O indizvel das sexualidades camponesas cria o impossvel, o intangvel, o no-dito, o mal-dito, o que o Texto Brasileiro sobre o rural no quer alcanar 130 . Paradoxos do desejo, pais-de-famlia em seu devir-mulher, mes-de-famlia em seu devir-homem, criana em seu devir-cabrito, puro ato de crueldade. Sobre o conceito de crueldade, Rolnik (2004) disserta:
A crueldade, condio trgica da vida, se impe como uma necessidade vital em funo daquela disparidade entre a apreenso do mundo como matria-forma e sua apreenso como matria-fora: quando tal disparidade atinge um limiar, a crueldade tem que se exercer para que se desfaa um mundo que j no tem sentido; ela se exerce atravs da potncia de resistncia, de luta pela expanso da vida, e coexistensivamente, da potncia de criao que constri outros mundos, sem o que a resistncia no vinga. 131
A ttulo ilustrativo, haja vista que daria uma outra dissertao e para no cansar o leitor com vrias correntes tericas outras, trago tona alguns pesquisadores que tratam da questo da homossexualidade e das polticas de identidade sexual em esferas urbanas. Ao mencionarem en passant as prticas sexuais do homem do campo e seu suposto desejo por uma identidade gay, reservam para estes sujeitos naturalizados o destino inconteste da migrao e da expulso funcional, a sada ideal para finalmente adquirir o to sonhado direito de ser. Antecipo assim, neste contexto, o etnocentrismo urbano, gay militante, taxicmanos de identidades, pesquisadores urbanocentrados, instituidores da identidade sexual. Uma identidade homossexual, que ao meu ver, limitada, errnea, em seu desejo de identificar, representar o sexual, em sua tentativa, posso dizer, de homocentralizar um desejo institudo em prol de um ideal de homocultura tambm para o campons (gay peasant is beautiful). O campons pai-de-famlia, rapaz-velho, moa-de-famlia etc e/ou tudo ao mesmo tempo pela tica do devir, passam a ser um pretenso gay-enlatado, um sujeito passivo identidade e representao imposto por uma suposta cultura no campo, cultura que para tais correntes sinnimo de represso, fazendo o pretenso gay peasant conviver com o seu penoso anonimato, em sntese, uma homonormatividade corprea. Eis, portanto, o perigoso discurso identitrio de gnero, extremidade de plos, assimetrias scio- histrico-psquico-antropolgicas. Como ttulo ilustrativo, para Richard Parker (1991):
Much of what has been said about the structure of sexual meanings for the members of different classes applies to the residents of different regions as well. The inhabitants of rural areas, and even of urban areas in less modernized, less industrialized regions _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 108 such as the Northeast live in a more restricted universe of sexual meanings than do the inhabitants of urban centers in the highly developed areas of the Southeast and, to a lesser extent, the South. As is true for the popular classes in the larger cities of the Southeast, the traditional ideology of gender continues to play a central role in structuring sexual life for the inhabitants of less urbanizad areas, and the discourses of sexuality as well as the idelology of the erotic linked as they are to the processes of urbanization and modernization play a considerably less significant part in structuring sexual conceptions. Changes have of course begun to take place, as in every area of Brazilian society, but the restrictions that structure the day-to-day experience of sexual life outside the cities are no less evident than those that define the situation of women or of the popular classes in more urban settings. 132
Por sua vez, Michel Polak (1998) institui:
Os homossexuais que vivem no campo ou em cidadezinhas com menos de vinte mil habitantes sofrem com a distncia geogrfica e social que separa de eventuais parceiros. Da a fraca freqncia e a falta de diversidade de suas prticas sexuais, e a dificuldade que tm em romper o isolamento social em que vivem. Pois, independentemente da profisso que exercem e da idade que possuem, devem conformar-se s regras dominantes, sobretudo se moram com a famlia, que ignora ou finge ignorar a natureza de seus desejos. 133
Para J ames Green (2000):
Para muitos jovens que fugiram do controle e condenao da famlia, dos parentes e de uma cidade pequena em busca do anonimato das metrpoles, a amizade baseada numa identidade compartilhada e em experincias erticas similares propiciou laos mais fortes que os sanguneos. 134
E o historiador ainda afirma:
A maioria das transferncias da populao rural para os centros urbanos s foi ocorrer nos anos 50. Os sistemas sexuais e de gnero nas pequenas cidades e reas rurais operam num contexto de diferentes estruturas sociais, culturais e econmicas. No decorrer do sculo XX, literalmente centenas de milhares de homens jovens que se conscientizaram de seus desejos e fantasias sexuais por outros homens deixaram suas famlias e amigos nas cidades do interior e migraram para a capital de seu estado, ou mudaram-se para o Rio de Janeiro ou So Paulo. Essas cidades se tornaram dois dos mais importantes centros para o surgimento de subculturas homossexuais. 135
Para a historiadora Tnia Navarro-Swain (2003):
No universo da hegemonia heterossexual, a desordem maior o desinteresse das mulheres pelos homens. A lgica : mulheres no podem ser guerreiras, logo, no existiriam. As mulheres no podem ser homossexuais, no podem existir. Mesmo na atualidade, quando inegvel a existncia de grupos e movimentos lsbicos, a divulgao na mdia mnima e permanece um halo de silncio e mistrio em torno de suas prticas, aes e reivindicaes. 136
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 109 Abrindo um parntese, quando do trabalho de campo, ao indagar sobre a categoria identitria homossexualidade aos homens em Goiabeiras, comentrios do tipo: 1) nunca vi um homossexual aqui!; 2) No Cear no tem disso no!; 3) J fiquei com viado, mas foi na infncia, sou macho, gosto de mulher!; 4)Homem tem que est preparado para o que der e vier!; 5) Voc sabe como homem, a gente no pode negar fogo!; 6) Foi aquele viado que me seduziu!; 7) Homossexual, eu? Jamais, pois respeito a minha famlia e a Deus!; 8) Homossexual? Dizem que tem muitos l para as bandas da cidade, que eles se casam, aqui, moo, nunca vi nenhum!; 9) Aqui em Goiabeiras, o homem tem direito a sete mulheres e uma banda [a banda seria um outro homem, passivo no intercurso sexual]! Podemos perceber que nada tem a ver com homossexualidade, mas com estratgias dos agentes, le sens du jeu, tendo como boas cartas os capitais cultural e simblico. Afectos mal-ditos que burlam qualquer represso ou identificao com esta identidade estereotipada e negativa. No se trata, sobremaneira, de negao absoluta do desejo, mas de homens, que muitas vezes, so casados ou anseiam pelo casamento com o sexo oposto. At mesmo muitos aqueles que tm uma fama (mal-dito), via rumores, acentuada de viado, discursa (s vezes estratgico o discurso, outras vezes no) sobre casamento e filhos com mulheres. Em suma, trata-se de represso, mas tambm de estratgia ao das afeces, como foi o caso de Andr, que expus no incio deste captulo: falar mal sobre homossexualidade ainda marcar um esquema. com Michel Foucault (1999 e 2001) e com Philippe Aris (1982) que recobro uma histria da sexualidade, e mais especificamente de uma homossexualidade. Ambos autores tratam do poder e da ordem de um discurso das mais variadas instituies das sociedades ocidentais para definir, mensurar, julgar, classificar as sexualidades. Neste sentido, Foucault traa todo um poder discursivo das sociedades ocidentais, a partir de finais do sculo XVIII, calcado em uma vontade de saber sobre o sexo, para melhor traar a frmula para se utilizar os prazeres em prol de um pernicioso cuidado de si. Assim, em Reflexes sobre a histria da homossexualidade Aris demonstra as mudanas do plo negativo para o plo positivo da identidade sexual. O homossexual, dos nossos dias, sai do esteretipo da perverso, da Coisa (negativa), para se tornar uma outra Coisa (positiva), orgulhosa e desejosa de ser. E Aris disserta: _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 110
No se trata verdadeiramente de homossexualidade, somente de uma inverso ritual e perturbadora, na poca das grandes folias, em que as proibies so anuladas, mas por pouco tempo e sem conseqncias. E encontramos aqui uma ambigidade que ainda no est totalmente dissipada em nossos dias, apesar do endurecimento dos homossexuais em seu desejo de identidade. Pelo menos, o que sugere uma observao de Laurent Dispot (Le Matin, 6 de novembro de 1979): Existem ento homens que no gostam uns dos outros? Que dizer das demonstraes que fazem os jogadores de futebol depois de marcar um gol? No so homossexuais, no. E, entretanto, o que fazem nessas ocasies chocaria os transeuntes, caso se tratasse de homossexuais no meio da rua, na vida cotidiana, afirmando-se como tais. Deve-se concluir da que os estdios de esportes so uma vlvula de escape de segurana para a homossexualidade masculina normal? 137
Ora, se a ordem dos discursos oficiais silencia o lesbianismo e se a inteno de muitos movimentos afirmativos das sociedades ocidentais, no sculo XXI, recobrar tal personagem caricatural para positiv-lo, isto , sair do plo negativo para o positivo, sair do armrio, onde fica o indizvel das sexualidades? A afirmao sou gay e da! , reivindicada pelos homossexuais, traz baila, sob a forma das lutas explcitas, todo um pretenso repertrio seletivo sobre os contornos do corpo sexuado, mapeando assim os afetos na Ordem do discurso do politicamente correto, institucionalizao do desejo, como posso perceber, por exemplo, nos movimentos GLBTTTS (gays, lsbicas, bissexuais, transgneros, transsexuais, travestis e simpatizantes). Assim, ao tratar de uma identidade social, nmade ou no, continuam aprisionando o desejo nos catlogos, nos itinerrios dos sujeitos sexualizados, banindo-os do corpo sexuado, das infinitas possibilidades do corpo. Continuam produzindo mapas de sentido engessados, caricaturais, in cultura, pois como classificar um homem (A) que pernoitou com outro homem (B), ao amanhecer resolve almoar com uma amiga (C) e, nos minutos que antecedem o almoo, os dois mantm uma rpida relao sexual, em que aps o episdio, a mulher (C) o convida para um mnage com outro homem (D), em um outro local, que (A) prontamente aceita, e ainda aps o terceiro intercurso sexual (A) retorna para casa e cai na cama exausto! Ele teria sido, em um nico dia, seguindo a Ordem das Coisas, homossexual, heterossexual, bissexual, assexuado, pervertido sexual e/ou ainda ninfomanaco? Nesse sentido, J urandir Freire Costa (1995) disserta:
Homossexuais e heterossexuais so identidades scio-culturais como quaisquer outras, e no marca de uma lei universal da diferena de sexos, inscritas no corao dos homens. Foram construdas pelas ideologias mdicas e podem ser desconstrudas por _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 111 outras teorias. Os que as mantm em cartaz no so as leis do inconsciente, nosso vocabulrio moral. 138
E sobre a inveno da heterossexualidade, J onathan Katz (1996) tambm acresce:
A heterossexualidade inventada no discurso como o que est fora dele. criada em um discurso particular como o que universal. construda em um discurso historicamente especfico como o que no se restringe ao tempo. Foi construda bastante recentemente como o que muito antigo: a heterossexualidade uma tradio inventada. 139
O que antes era eminentemente um discurso biologicista, mdico, clnico, desde a inveno da homossexualidade pelo mdico hngaro Karoly Maria Benkert, em 1869, no trato da pederastia masculina, com a criao dos movimentos gays & cia, tudo parece distanciar deste discurso primeiro e se encaminhar para a supremacia dos gneros, da dita renegociao das identidades sexuais, ou seja, minimizao do biolgico, da natureza, e maximizao do social, cultural, sem levar em considerao que ningum nasce mulher, torna-se! (cf. Beauvoir, 1966). Tudo, no Texto Brasileiro sobre o Gnero e para alm do Brasil, passa a ser Coisas do gnero, uma sexualidade encaixada, enlatada, um curioso alfabeto-catlogo-guia que no para de crescer GLBTTTS... Neste nterim, tais identidades, nmades ou no, extrapolam de forma homocntrica fronteiras, culturas, etnias, chegando na ordem dos discursos, via ao afirmativa e academia, nas anlises sobre sociedades camponesas, sobre sociedades indgenas, sobre sociedades urbanas etc. Como querer enquadrar, identificar, uma pretensa homossexualidade no campo? Como querer classificar de gay is beautiful os afectos mal-ditos em pura afectao? Como querer construir polticas pblicas para corpos em constantes devir? O indizvel das sexualidades camponesas esqueceu de ser (cf. Lins, 2000) 140 , corpos fugidos, fluxos e refluxos de uma mquina de guerra contra o Imprio da Identidade prt--porter. O indizvel das sexualidades camponesas segue por linhas movedias, mveis, infinitas. O que dizer de vrios camponeses se banhando em um rio, brincando, se tocando, se acariciando, em um dia quente em pleno serto nordestino? O que falar de duas mulheres camponesas abraadas em uma noite fria em uma pequena praa de um vilarejo de Goiabeiras no serto cearense ou de dois amantes camponeses em uma cachoeira isolada, no meio do chapado, no interior do Gois? Como classificar uma criana que prope a um amigo uma masturbao coletiva para ver quem tem mais esperma? Homossexualidades latentes? Homossexualidades reprimidas? Crianas polimorfas perversas? Falta de _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 112 conscincia de si? Recambiamento dos gneros? Eis as peripcias do indizvel das sexualidades. Portanto, se o indizvel das sexualidades extrapola fronteiras etnogrficas, sua terra de ningum, sem-terra, pois ele nmade, errante, pura geografia, pois como j sabido, o desejo acontecimento, criao longe da guerra de gnero, longe da violncia da identidade sexual e do iderio da representao social sobre sexualidade. Neste sentido, como classificar um mehinku que passa a adotar adornos, pinturas, a realizar tarefas compreendidas como femininas, a tomar um amante ocasional e a ser chamado, pelos outros ndios da aldeia, de teneju munU, ou seja, de uma mulher habilidosa, etnografado por Thomas Gregor (1982 e 1987) 141 no alto Xingu? O que pensar da paixo dos dois jovens ndios de Tsukanka e ou ainda os encontros amorosos entre as irms Wajari e Entza em uma praia isolada, recobrados por Philippe Descola (1993) 142 , entre os Achuar na amaznia equatoriana e peruana, na regio J ivaro? Como identificar Krembegi, conhecido como kyrypy-meno, ou nus-fazer-amor, exmio carregador de cesto, instrumento este proibido de ser tocado por um homem ach, em seu engendramento de um devir-mulher, de um devir-homossexual, ou ainda no caso de Chachubutawachugi um carregador de cesto que tambm caador de quatis e tatus, tarefa preferencialmente dos homens da aldeia, em seu engendramento de um devir-mulher no caador permanecendo devir-homem do caador, devir caador no homem, entre os ndios Guayaki estudados por Pierre Clastres (1995) 143 em terras paraguaias? Homossexualidades indgenas? Gays que precisam ser catequizados no quesito poltica de afirmao dos gneros? Homossexualidade reprimida ou pouco sabida? Nada disto. Humanos demasiados humanos, corpos fugidios, afectos mal- ditos, imanncia de um devir-mulher, de um devir-caador, devires no infinitivo, em tese, o indizvel nas sexualidades indgenas, que por sinal daria um outro estudo. O indizvel das sexualidades se espalha, atravessa desertos e estepes. Como traar uma cartilha de gneros para os muxhes de J uchitn, Istmo de Tehuantepec, no Mxico, campesinato mexicano, analisados por Amaranta Gmez (2004) 144 , em que meninos e meninas engendram seu devir-homossexual, devir-mulher, devir-homem, devir-animal, em uma reinveno do corpo, e passam a ser respeitados, admirados, por todos do povoado a partir das vrias estratgias matrimoniais para aloc-los, em meio a uma coexistncia entre as relaes vicinais, as relaes parentais e os engendramentos dos afectos? Como _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 113 classificar Moiss que pretende extirpar o pnis no Hospital das Clnicas de Goinia, Brasil, para manter um relacionamento amoroso com uma outra mulher (a reinveno do corpo), como demonstra Berenice Bento (2003) 145 ? Outros exemplos, em contextos etnogrficos distantes e distintos, poderiam ser ainda apresentados, mas fico por aqui. Em tese, se a guerra de gneros, se a guerra das identidades prt--porter, se a antropologia rural, se a antropologia do corpo, enxertaram o corpo sexuado no cultural, no social, em uma minimizao do biolgico em prol de uma identidade camponesa ou ainda por uma pretensa e violenta complementaridade entre homens e mulheres, institucionalizando-o em um sujeito sexualizado, no socius, recobro aqui uma antropologia com o corpo, uma etologia no campons. Se as cincias humanas j nasceram assimtricas, excluindo a natureza, como demonstra Bruno Latour (2004) ao afirmar que: portanto [o modelo de anlise das cincias humanas] assimtrico, no mais porque divide, como o fazem os epistemlogos, a ideologia e a cincia, mas porque coloca a natureza entre parnteses, jogando todo o peso das explicaes apenas sobre o plo da sociedade 146 , recobro aqui uma antropologia simtrica, ou seja,
O antroplogo deve est situado no plo mdio, de onde pode acompanhar, ao mesmo tempo, a atribuio de propriedades no humanas e de propriedades humanas.(...) No lhe permitido usar a realidade exterior para explicar a sociedade, nem tampouco usar os jogos de poder para dar conta daquilo que molda a realidade externa. Tambm no lhe permitido alternar entre o realismo natural e o realismo sociolgico, usando no apenas a natureza, mas tambm a sociedade, a fim de conservar as duas assimetrias iniciais, ao mesmo tempo em que dissimula as fraquezas de uma sob as fraquezas da outra. 147
Portanto, para Latour, a prpria noo de cultura um artefato criado por nosso afastamento da natureza. Para ele, no existem nem culturas diferentes ou universais nem uma natureza universal. Existem, por sua vez, apenas naturezas-culturas, as quais constituem a nica base possvel para comparaes.
De fato, podemos v-lo passar, sem mudar seus instrumentos de anlise, da meteorologia ao sistema de parentesco, da natureza das plantas sua representao cultural, da organizao poltica etnomedicina, das estruturas mticas etnofsica ou s tcnicas de caa. bem verdade que a coragem do etnlogo para desdobrar este tecido inteirio vem de sua convico ntima de estar tratando apenas de representaes, nada mais que representaes. A natureza, ela, permanece nica, exterior e universal. Mas se efetuarmos a superposies desses dois lugares aquele que, sem maiores esforos, o etnlogo ocupa para estudar nossa cultura - , a antropologia comparada torna-se possvel, ou mesmo simples. Ela no mais compara as culturas colocando a sua de lado, _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 114 como se esta possusse, por um espantoso privilgio, a natureza universal. Ela compara naturezas-culturas. Seriam estas realmente comparveis? Semelhantes? Iguais? Talvez agora possamos resolver a insondvel questo do relativismo. 148
Revisitando os homens e as mulheres em Goiabeiras, vejamos algumas afirmaes correlatas: 1) Quando eu estou comendo um viado, viro bicho!; 2) da nossa natureza comer, seja o que for! Fazer o qu?; 3) A gente tenta no fazer certas coisas, mas voc sabe como , quando a gente quer, ah... vai!; 4) Corra, vamos, eu no agento mais!. Ao trazer baila estes fragmentos das conversas com os homens de l, em 2002, indago: por que a antropologia permanece assimtrica? Por que organizar a estrutura, a funo, acima dos sentimentos, das paixes, dos afectos? Por que o TB se pauta em hierarquias de centros, de conjuntos, sries, resguardando o desejo periferia? Assim, a antropologia rural, com suas prioridades seletivas no ato de valorar (os esquemas de parentesco, a organizao social, as relaes vicinais etc) reivindica um discurso dito relativista, altero, mas como recobra Latour, os antroplogos nunca relativizam nada alm das culturas. Nestes termos, os corpos fugidios dos afectos mal-ditos provm do trabalho de mediao, em moldes latourianos, entre a transcendncia da natureza, sua objetividade, e a imanncia da sociedade, sua subjetividade, sem contudo depender de uma separao entre elas, pois natureza e sociedade no so mais os termos explicativos, mas sim aquilo que requer uma explicao conjunta. 149
No h dois problemas de representao, apenas um. No h dois ramos, apenas um nico cujos produtos s podem ser distinguidos a posteriori e aps exame comum. Os cientistas s do a impresso de trair a realidade exterior porque constroem ao mesmo tempo suas sociedades e suas naturezas. 150
Desse modo Latour elabora seu conceito de rede. As redes so seres de topologia to curiosa e de ontologia ainda mais estranha, nos quais residem as capacidades de conectar e de separar, ou seja, de produzir o espao e o tempo. Eis a criao de que o autor chama de Imprio do Meio e seus mediadores.
Se estamos tentando desdobrar o Imprio do Meio em si, somos obrigados a inverter a forma geral das explicaes. O ponto de clivagem e encontro torna-se o ponto de partida. As explicaes no partem mais das formas puras em direo aos fenmenos, mas sim do centro em direo aos extremos. Estes ltimos no so mais o ponto de apoio da realidade, mas sim resultados provisrios e parciais. As camadas dos intermedirios so substitudas por cadeias de mediadores. 151
_____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 115 Ao pensar o desejo sob a gide das categorias de gnero, das identidades sexual ou cultural e da representao social da sexualidade, em detrimento de uma minimizao da natureza e da maximizao da cultura, limita-se apenas a uma glosa faceta do valorar, uma assimetria entre natureza e cultura, como se estas duas categorias estivessem eternamente separadas. Por uma antropologia simtrica, seja rural, seja urbana, seja indgena. O corpo ganha suas infinitas possibilidades, etologia no campons, no como Refm do desejo, da Falta, mas como potncia de vida. O indizvel das sexualidades camponesas cai na rede, naturezas-culturas de um corpo que puro experimento nmade, meio. Por uma tica e uma esttica dos afectos mal-ditos, envolta no indizvel das sexualidades camponesas. Nesse sentido, abro o prximo captulo experimentando o goiabeirense, me encontrando com ele, os bons encontros. Por meio de ritos sexuais, no meio da caatinga, corpos fazendo acontecer, fazendo o antroplogo se afectar com eles. O que proponho, doravante, o TB perdido nas paixes, sacudido por elas. O TB em fissuras pela crueldade que a vida, a intensidade do querer. Uma tica e uma esttica dos afectos mal-ditos que beiram a inocncia, nada a oficializar, nada a definir, nada a imitar, nada a instituir. Um corpo processual, um campesinato repleto de outros modos de vida, pois como acentua Camille Dumouli (2005):
O desejo cria o deserto em cada um, no mais corriqueiro dia-a-dia, segundo as ocasies mais banais da vida [...] Trata-se agora de inventar outros caminhos, outras palavras, outras alegrias, outros desastres. 152
NOTAS
1 DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prtica. So Paulo: ESCUTA, 2002, p. 55. 2 Idem, p. 56. 3 Idem, p. 57. 4 ALMEIDA, M. Senhores de si: uma interpretao antropolgica sobre a masculinidade. Lisboa: FIM DE SCULO, 1995, p. 16. 5 Idem, p. 17. 6 Idem, p. 150. 7 Idem, p. 59. 8 Idem, p. 59. 9 Idem, p. 60. 10 VEYNE, P. A homossexualidade em roma. In. ARIS, P. & BJ IN, A (Orgs.) Sexualidades ocidentais. So Paulo: BRASILIENSE, 1987, p. 44. 11 Idem, p. 151. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 116
12 Idem, p. 155. 13 ALMEIDA, M. Senhores de si: uma interpretao antropolgica sobre a masculinidade. Lisboa: FIM DE SCULO, 1995, p. 189. Um outro exemplo, em um contexto etnogrfico distinto e distante seria entre os Kwakiutl, estudados por Franz Boas (1987), em que, no trato da sucesso, na falta de parceiros do sexo oposto, o casamento se dava do pai para o filho mais velho (quer seja rapaz ou moa); mas tambm por casamento, do pai da esposa para o genro e, por intermdio deste, para os filhos nascituros. Ora, segundo o modo de transmisso tinha tal importncia aos olhos dos Kwakiult que um indivduo desejoso de entrar numa casa onde no houvesse filhas para casar desposava simbolicamente um filho e, no havendo filhos, uma parte do corpo um brao ou uma perna do chefe da casa ou at uma pea de moblia. Neste sentido ver BOAS, F. The social organization of the kwakiult. In. BOAS & HUNT. Ethonology of the kwakiult. Washington: U.S. MUSEUM FOR 1895, 1987. 14 ALMEIDA, M. Senhores de si: uma interpretao antropolgica sobre a masculinidade. Lisboa: FIM DE SCULO, 1995, pp. 199-200. Um exemplo contrrio acontece entre os seringueiros do Acre, etnografados por Woortmann, E.F (1998). Segundo a antroploga, por meio de um discurso compensatrio referente ausncia de mulheres nos seringais, alguns seringueiros organizavam os bailes e danavam entre si. As publicaes de alguns folcloristas, via de regra construdas a partir da memria de seringueiros, afirmam a ausncia de mulheres naqueles androceus da borracha.[e a antroploga cita Maia, 1987, como exemplo da literatura vigente poca] Nos primeiros tempos, os seringueiros faziam suas festas cantando e batendo na lata. Danavam homem com homem e bebiam a noite toda na maior harmonia. WOORTMANN, E.F Homens de hoje, mulheres de ontem: gnero e memria no seringal. In. FREITAS, C. Anais do I Seminrio e da II Semana de Antropologia da UCG, Goinia: EDITORA DA UCG, 1998. p. 93. 15 Sobre a amizade entre mulheres em outros contextos agrrios, ver HANDMAN, E. Les amitis fmenines arnaia (macdoine grecque). In. Les amis et les auteurs: mlanges en honneur de j. Peristiany. Paris-Atenas: MAISON DES SCIENCES DE LHOMME-EKKE, 1991, ou sobre a amizade como objeto de estudo da antropologia, ver CUC, J . La amistad: perspectiva antropolgica. Barcelona: ICARIA, 1995. 16 Idem, p. 222. 17 Idem, p. 238. 18 Idem, p. 242. 19 Idem, p. 242. 20 Outras formas da instituio famlia, nos nossos dias e mais especificamente na nossa sociedade ocidental, podem ser vinculadas aos gay marriage. 21 LEVI-STRAUSS, C. O olhar distanciado. Lisboa: EDITORA 70, 1986, p. 78. 22 Ver LEVI-STRAUSS, C. Tristes trpicos. So Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2004a. 23 Idem, p. 85. 24 Idem, p. 49. 25 Idem, p. 92. 26 Idem, p. 93. 27 Idem, p. 96. 28 LEVI-STRAUSS, C. A via das mscaras. Lisboa: EDITORA PRESENA, 1979, p. 164. 29 Idem, p. 154. 30 Norbert Elias (2001) discorre que a corte do Ancien Rgime era uma descendente, muito diversa, daquela forma de dominao patricarcal cujo germe deve ser procurado na autoridade de um senhor da casa, dentro de uma coletividade domstica. Neste sentido, ao tratar da casa e de suas prerrogativas, o autor pontua: a relao publicamente legtima entre marido e mulher, na sociedade burguesa e profissional, ganha expresso na formao e no conceito de famlia. Na sociedade dos grandes senhores do Ancien Rgime, sua expresso est no conceito de casa. No se fala apenas da Casa da Frana, para mencionar a unidade da dinastia real durante geraes, mas cada um dos grands seigneurs fala de sua casa. No uso lingstico do Ancien Rgime, o conceito de famlia mais ou menos restrito alta burguesia, enquanto o de casa restrito ao rei e aristocracia. ELIAS, N. A sociedade de corte: investigao sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte.. Rio de J aneiro: J ORGE ZAHAR, 2001, p. 72. 31 LEVI-STRAUSS, C. A via das mscaras. Lisboa: EDITORA PRESENA, 1979, p. 167. 32 BOURDIEU, P. Coisas ditas.So Paulo: BRASILIENSE, 1990, p. 79. 33 Idem, p. 81. 34 LEVI-STRAUSS, C & ERIBON, D. De perto e de longe. So Paulo:COSACNAIFY, 2005, p.149. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 117
35 BOURDIEU, P. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: PAPIRUS, 1997, p. 125. 36 Idem, p. 126. 37 BOURDIEU, P. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: PAPIRUS, 1997, p. 127. 38 Idem, p. 127. 39 Idem, p. 127. 40 Idem, p. 128. 41 Idem, p. 129. 42 Idem, p. 129. 43 Idem, p. 130. 44 Idem, p. 130. 45 Idem, pp. 132-133. 46 Idem, p. 134. 47 Idem, p. 135. 48 Idem, p. 135. 49 Idem, pp. 84-85. 50 BOURDIEU, P. Coisas ditas.So Paulo: BRASILIENSE, 1990, p. 87. 51 BOURDIEU, P. A dominao masculina.Rio de J aneiro: BERTRAND BRASIL, 1999, p. 17. 52 BOURDIEU, P La violence symbolique. In. MANASSEIN, M. (Org.) De lgalit des sexes. Paris: CENTRE NATIONAL DE DOCUMENTATION PDAGOGIQUE, 1995, p. 85. 53 BOURDIEU, P. Conferncia ao prmio goffmann. In. LINS, D. (Org.) A dominao masculina revisitada. Campinas: PAPIRUS, 1998, p. 24. 54 Ao conceituar as mquinas desejantes, Deleuze-Guatarri (1976) discorrem: Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo produtor, s pode ser na realidade, e de realidade. O desejo esse conjunto de snteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produo. O real decorre dele, o resultado das snteses passivas do desejo como autoproduo do inconsciente. Ao desejo no falta nada, a ele no falta seu objeto. antes o sujeito que falta ao desejo, ou ao desejo que falta um sujeito fixo; s h sujeito fixo pela represso. O desejo e seu objeto so a mesma coisa: a mquina, enquanto mquina de mquina. O desejo mquina, o objeto do desejo ainda mquina ligada, tanto que o produto extrado do produzir, que vai dar um resto ao sujeito nmade e vagabundo. DELEUZE, G & GUATARRI, F. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de J aneiro: IMAGO, 1976, pp. 43-44. 55 DELEUZE, G & GUATARRI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, So Paulo: EDITORA 34, 1996, p. 13. 56 Idem, p. 14. 57 DELEUZE, G & GUATARRI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5, So Paulo: EDITORA 34, 1996, p. 14. 58 Idem, p. 40. 59 Idem, p. 83. 60 DELEUZE, G & GUATARRI, F. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de J aneiro: IMAGO, 1976, p. 60. 61 BATAILLE, G. A parte maldita. Rio de J aneiro: IMAGO, 1975, p. 98. 62 Idem, pp. 28-29. 63 Idem, p. 76. 64 Para uma anlise mais aprofundada sobre o tema ver MAYER, A. A fora da tradio: a persistncia do antigo regime. So Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 1987, POLANYI, K. A grande transformao: as origens de nossa poca.Rio de J aneiro: ELSEVIER CAMPUS, 2000 e ainda HOBSBAWM, E. & TERENCE, R. A inveno das tradies. So Paulo: PAZ E TERRA, 2002. 65 LINS, D. Juzo e verdade em deleuze. So Paulo: ANNABLUME, 2004b, pp. 15-16. 66 DELEUZE, G. & PARNET, C. Dilogos.So Paulo: ESCUTA, 1998, p. 10. 67 Neste sentido, outras estratgias arquitetadas pelas sociedades camponesas para inculcar o sentimento de culpa, atravs de uma pedagogia dos ditos bons costumes, podem ser verificadas nos contos franceses. Neste sentido ver DARNTON, R. O grande massacre de gatos.Rio de J aneiro: GRAAL, 1986. 68 Idem, p. 77. 69 ALLPORT, G.. The pychology of rumor. New York: RUSSELL & RUSSELL, 1965, p. 43. 70 ELIAS, N. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de J aneiro: J ORGE ZAHAR EDITOR, 2000, p. 122. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 118
71 BERGMANN, J . Discreet Indiscretions: the social organization of gossip. New York: ALDINE DE GRUYTER, 1993, p. 35. 72 Idem, p. 45. 73 Idem, p. 62. 74 Idem, p. 138. 75 Idem, pp. 151-152. 76 MORIN, E. La rumeur dorleans.Paris: SEUIL, 1969, p. 114. 77 Idem, p. 44. 78 MENDRAS, H. A cidade e o campo. In. PEREIRA DE QUEIROZ, I. Sociologia rural. Rio de J aneiro: ZAHAR, 1969, p. 35. 79 THEMUDO, T. Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 7. 80 Idem, p. 99. 81 Mnadas foi o nome conferido por Leibniz para pensar a substncia elementar da Natureza. Uma vez que podemos identificar compostos, faz-se necessrio identificar as substncias simples que os compem, [...] pois o composto apenas a reunio ou aggregatum dos simples. As mnadas necessitam ter qualidades, pois se as substncias simples em nada diferissem qualitativamente uma das outras, no haveria como ocorrer qualquer transformao nas coisas compostas. Se o fundo da matria fosse feito de partes todas iguais, que motivo haveria para esse transbordamento de diversidade que a Natureza? THEMUDO, T. Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 35. 82 Idem, p. 16. 83 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 42. 84 THEMUDO, T. Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 22. 85 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 45. 86 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, pp. 26-27. 87 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 70. 88 Idem, p. 78. 89 THEMUDO, T. Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 38. 90 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 47. 91 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 41. 92 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 48. 93 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 48. 94 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 67. 95 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 52. 96 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 71. 97 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 64. 98 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 76. 99 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 70. 100 TARDE. G. Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 76. 101 Idem, p. 76. 102 Idem, p. 78. 103 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 80. 104 TARDE. G.Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 94. 105 THEMUDO, T.Gabriel tarde: sociologia e subjetividade. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2002, p. 83. 106 TARDE. G.Monadologia e sociologia. Petrpolis: VOZES, 2003, p. 94. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 119
107 Idem, p. 96. 108 LEVI-STRAUSS, C. Lidentit. Paris: PUF, 1987, p. 332. 109 LINS, D. Plotino e deleuze. In. LINS, D. (Org.) Razo nmade. Rio de J aneiro: FRORENSE UNIVERSITRIA, 2005, p. 8. 110 Sobre o conceito de heterossexualidade compulsria ver BUTHER, J . (1990) Gender trouble: feminism and the subversion of identity. Nova York: ROUTLEDGE. 111 Um outro exemplo no trato da construo de gnero em ambincias rurais seria a dita masculinidade hegemnica sobre outras masculinidades subalternas e minoritrias, proposta por Miguel Almeida para os camponeses de Pardais. 112 ROLNIK, S. Tristes gneros. In. LINS, D. (Org.) A dominao masculina revisitada. Campinas: PAPIRUS, 1998, p. 63. 113 Idem, pp. 64-65. 114 Idem, p. 69. 115 LINS, D. O sexo do poder. In. LINS, D. (Org.) A dominao masculina revisitada.Campinas: PAPIRUS, 1998, p. 124. 116 ROLNIK, S. Subjetividade antropofgica. In. LINS, D. (Org.) Razo nmade. Rio de J aneiro: FLORENSE UNIVESITRIA, 2005b, p. 89. 117 Idem, p. 90. 118 Idem, p. 90. 119 Idem, pp. 90-91. 120 Idem, p. 95. 121 Idem, p. 97. 122 Idem, p. 97. 123 Idem, pp. 98-99. 124 Sobre a literatura a este respeito ver BABHA, H. (1998) O local da cultura. Belo Horizonte: EDITORA DA UFMG e HALL, S. (2004) A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de J aneiro: DP & A EDITORA. 125 Sobre este tema desenvolvi um ensaio intitulado Dos corpos sexuados e no sujeitos sexualizados, em que etnografei a dita pegao nos banheiros pblicos da Universidade de Braslia. Partindo da hiptese de que o corpo sexuado pura experimentao e no interpretao ou reinvindicao de uma pretensa identidade gay ou ainda de uma suposta fuga da represso e coero da sociedade urbana, heterocntrica, calcada no iderio de famlia nuclear, desejosa de ser. A ttulo ilustrativo, recobro o que me indagou A, 20 anos, aluno, em um dos banheiros da UnB, em maro de 2004: voc veio para curtir ou para conversar? ou ainda o que afirma categoricamente B, 23 anos, aluno, em ou outro banheiro, em abril de 2004: Aqui no se conversa, se fode! No perguntamos a algum se ele gay ou no, se ele hetero ou no, apenas entramos nas cabines ou masturbamos os caras no miquitrio, encaramos eles e curtimos! Tenho noiva, sou bastante conhecido aqui na UnB, no banheiro eu no tenho nome, no sou ningum, fuder e pronto! a disciplina Antropologia do Gnero foi ministrada pela Profa. Rita Segato, no primeiro semestre de 2004, no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de Braslia. 126 ROLNIK, S. Subjetividade antropofgica. In. LINS, D. (Org.) Razo nmade. Rio de J aneiro: FLORENSE UNIVESITRIA, 2005, p. 99. 127 Idem, p. 100. 128 Idem, p. 102. 129 Neste sentido, Georges Duby (1991) ao historiografar a intimidade das mulheres nas sociedades domsticas da Europa feudal dicorre: Pois a mulher, a jovem mulher, l-se em uma das verses da vida de santa Godelive composta no incio do sculo XII, est sempre entregue ao aguilho inevitvel do desejo; ela o satisfaz comumente na homossexualidade, e essa suspeita grave instigada pelas prticas geral de dormir vrios do mesmo sexo na mesma cama. Estre elas, alis, em seu espao privado particular, as mulheres passam por trocar os segredos de um saber no qual os homens no tm nenhuma participao e que transmitido s mais jovens por essas velhinas presentes em inmeros ralatos, aquelas por exemplo que, na casa paterna de Guibert de Nogent, atavam ou desatavam as agulhetas, aquelas que ensinavam nas aldeias as operaes mgicas que um tienne de Bourbon perseguia no sculo XIII. O poder masculino se sentia impotente diante dos sortilgios, dos filtros que debilitam ou ento curam, acendem o desejo ou extinguem- no. Detinha-se porta do quarto onde os filhos eram concebidos, postos no mundo, os doentes cuidados, os defuntos lavados, onde, sob o imprio da mulher, no mais privado, estendia-se o domnio tenebroso do prazer _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 120
sexual, da reproduo e da morte. DUBY, G. Histria da vida privada 2: da europa feudal renascena. So Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 1991, p. 91. 130 vlido ressaltar que quando do anthropological blues, isto , do retorno do campo, como j presenciei, muitos socilogos e antroplogos retomam as experincias vividas, quando se renem em rodas de amigos, geralmente nos bares para beber, aps as conferncias ou em finais de tarde, finalmente aparecem histrias envolvendo sexualidade, envolvendo antroplogos e nativos, experimentos e acontecimentos. Quando da formalidade da escrita, tais encontros-experimentos ficam nas entrelinhas, no anonimato, no indizvel. Uma etnografia instigante seria analisar tais conversas informais e a assimetria com os discursos acadmicos oficiais, para leitores direcionados verem, e os vividos e experimentados intensidades e paixes no campo. 131 ROLNIK, S. O ocaso da vtima para alm da cafetinagem da criao e de sua separao da resistncia. In. LINS, D.& PELBART, P. (Orgs.) Nietzsche e deleuze. So Paulo: ANNABLUME, 2004, p. 215. 132 PARKER, R. Bodies, pleasures, and passions: sexual culture in contemporary brazil. Boston: BEACON PRESS, 1991, p. 170 grifo meu. 133 POLAK, M.Os homossexuais e a aids: sociologia de uma epidemia. So Paulo: ESTAO LIBERDADE, 1990, p. 28 grifo meu. 134 GREEN, J . Alm do carnaval: a homossexualidade masculina no brasil do sculo XX. So Paulo: UNESP, 2000, pp.34-35 grifo meu. 135 Idem, p. 35 grifo meu. Ver tambm FRY, P Para ingls ver: identidade e poltica na cultura brasileira. Rio de J aneiro: ZAHAR EDITOR, 1982, FRY, P. & MacRea O que a homossexualidade. ABRIL CULTURAL/BRASILIENSE, 1985, e TREVISAN, J . Devassos no paraso. So Paulo: MAX LIMONAD, 1986. 136 NAVARRO-SWAIN, T. O que o lesbianismo. So Paulo: BRASILIENSE, 2004, p. 24. 137 ARIS, P. Reflexes sobre a histria da homossexualidade. In. ARIS, P & BJ IN, A (Orgs.) Sexualidades ocidentais. So Paulo: BRASILIENSE, 1982, p.92. 138 COSTA, J . A face e o verso: estudos sobre o homoerotismo II. So Paulo: ESCUTA, 1995, p. 256. 139 KATZ, J . A inveno da heterossexualidade. Rio de J aneiro: EDITORA EDIOURO, 1996, p. 183. 140 Sobre o conceito de esquecimento ativo, ver LINS, D. Esquecer no crime. In. LINS, D. (Org.) Nietzsche e deleuze. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2000. 141 Cito a conduta de homens e mulheres, bem como o mito e rito mehinku. Os habitantes da aldeia, por exemplo, toleram desvios sexuais. Meninas que tm experincias em casos lsbicos ou homens que participam de encontros homossexuais so considerados como extremamente tolos, mas ningum interferiria diferentemente. H uns quarenta anos atrs um dos homens da aldeia adotou adornos e pinturas femininos, realizou tarefas de mulher e tomou um amante masculino ocasional. Chamado de mulher habilidosa (teneju munU) pelos habitantes da aldeia, devido sua prodigiosa capacidade para tarefas femininas, ele viveu como mulher at sua morte, por causas naturais, ocorrida por volta de 1940. Apenas brincadeiras e aluses ligeiras marcaram o fato de que sua conduta era bizarra para os padres mehinku normais. GREGOR, T. Merinku: o drama da vida diria em uma aldeia do alto xingu. So Paulo: BRASILIANA, 1982, p. 243. 142 E Descola, discorre: Lorsque deux garons de Tsukanka furent surpris il y a quelque temps en train dessayer de se sodomiser, tout le monde poussa de hauts cris, mais sur un ton rigolard qui dmentait la gravit suppose de leur turpitude. Le pre, lui, na pas apprci du tout et la svre recle quil leur a inflige est peut-tre la raison pour laquelle ce genre dinclination demeure ensuite profondment refoul. Les Achuar mont dailleurs parl plusieurs reprises avec une vritable horreur de lexistence dhommes- femmes chez les Quchuas du Bobonaza, des homosexuels qui font de la poterie, travaillent dans les jardins, prparent les rapas et se comportent en tout comme de vritables femmes. La rprobation quun tel comportement suscite chez mes compagnons nexprime pas tant une morale de la conformit que la rpugnance devant une confusion entre des domaines et des catgories dont labsolute sparation est rpute ncessaire la bonne marche du monde. DESCOLA, P. Les lances du crpuscule: relations jivaros, haute- amazonie. Paris:TERRE HUMAINE PLON, 1993, pp. 207-208. Em relao as irms Wajari e Entza, Descola disserta: La boutade de Senur tmoigne aussi des bons rapports quelle entretient avec as souer. A lvidence, Wajari et Entza venaient de faire lamour sur une plage isole et leur gaiet damants rassasis avait pouss Senur rappeler ironiquement ses popres droits sur la virilit de lhomme que les deux femmesse partagent. Nul dpit en lespce, plutt laffirmation dune complicit entre pouses la sexualit exigeante. DESCOLA, P. les lances du crpuscule: relations jivaros, haute-amazonie. Paris: TERRE HUMAINE PLON, 1993, p. 208. _____________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _________________________________________________________________________________________________________ 121
143 Sobre Krembegi e Chachubutawachugi pesquisados por Clastres, o antroplogo discorre: Homem=caador = arco; mulher = coleta = cesta: dupla equao cujo rigor regula o curso da vida Ache. Terceiro termo, no h, nenhum terceiro-espao para abrigar os que no so nem do arco nem da cesta. Cessando de ser caador, perde-se por isso mesmo a qualidade de homem, vira-se, metaforicamente, uma mulher. Eis o que compreendeu e aceitou Krembegi; sua renncia radical ao que incapaz de ser caador projeta-o de imediato do lado das mulheres, ele est em casa entre elas, ele se aceita mulher. Munido como elas de uma cesta, ele a carrega moda deles: a tira passada sobre a testa. E Chachubutawachugi? simples: ele no entendeu nada. Pois cr, o inocente, que possvel manter-se no universo da masculinidade aps ter perdido o direito, cego que em seu desejo de permanecer homem, ele que no mais caador, ele que no mais considerado caador. Esse est percipi, verdade. Como o vem eles, os outros, quando o miram? Essa no talvez a boa questo. De um certo ponto de vista, com efeito, Chachubutawachugi invisvel. Por qu? Porque ele no fica em parte alguma: nem entre os homens, por causa do pane, nem entre as mulheres, pois ele recusa, apesar de sua cesta, incorporar-se a seu grupo, habitar seu espao. Mas esse lugar que se obstina em ocupar, a meio caminho, no existe. E nem ele, pattico habitante de um impossvel abrigo. Eis o que torna invisvel, ele est alhures, em parte alguma, por toda parte. Como pensar a existncia de Chachubutawachug? Ele no pensvel, tropeo imvel onde no se pode sonhar em voltar sobre seus passos, onde se teme ir avante. E bem isso o que incomoda os Ache, o que sem saber reprovam no homem pane: sua incompreensvel recusa em deixar-se levar pelo movimento lgico que deveria coloc-lo em seu novo, em seu verdadeiro lugar, entre as mulheres. Quando se tem uma cesta, que se um kuja. Ele no quer, e isso introduz desordem no grupo, isso provoca confuso nas idias das pessoas, no esprito mesmo do homem. Por isso fica to nervoso, s vezes, to pouco vontade. Ele no escolheu a posio mais confortvel, ele se atrapalha. CLASTRES, P. Crnica dos ndios guayaki: o que sabem os ache, caadores nmades do paraguai.. Rio de J aneiro: EDITORA 34, 1995, pp. 212-213. 144 Neste sentido, Gmez argumenta: En el transcurso de esta edad el muxhe va presentando una serie de comportamientos, amaneramientos y formas que lo van caracterizando y de manera natural lo van ubicando en el terreno de lo pblico. Un muxhe, cuando se da cuenta que lo es inmediatamente busca establecer redes de apoyo familiar y vecinal, busca un espacio para poder contribuir tempranamente a la economa familiar poniendo algn puesto para la venta de fritura, ayudar a vender la tortilla o el pescado a su mam y/o a algn familiar cercano. Por otro lado, un muxhe busca acercarse a otros muxhes mayores para ir conociendo sus terrenos y formas de actuar, un muxhe tambin busca establecer estrategias de vinculacin ertico-afectivas de manera inocente con otros nios. GOMEZ, A. Trascendiendo. In. Desacatos. Cidade do Mxico: Revista de Antropologia Social, Masculinidades Diversas, srie 15-16, 2004. 145 Ao relatar um dos depoimentos de uma psicloga do Hospital das Clnicas de Goinia sobre o episdio de Moiss, Bento discorre: Para muitos especialistas, no entanto, a existncia de transexuais lsbicas e gays contradiz toda e qualquer possibilidade de compreenso. Ento, no entendo para qu fazer cirurgia. Se ele era um homem e gostava de mulheres, ou se ela gostava de homens, para qu fazer cirurgia? Qual o sentido de ter uma vagina se o que se deseja manter relaes com outra mulher? Foram as perguntas que uma psicloga fez quando conheceu essas configuraes das sexualidades entre as/os transexuais. BENTO, B. A reinveno do corpo: sexualidades e gnero na experincia transexual. Braslia: DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, 2003, p. 153. 146 LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Rio de J aneiro: EDITORA 34, 2004, pp. 94-95. 147 Idem, p. 95. 148 Idem, p. 96. 149 Idem, p. 80. 150 Idem, p. 141. 151 Idem, p. 77. 152 DUMOULI, C. O desejo. Petrpolis: VOZES, 2005, p. 299.
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__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 122 Captulo III
Por uma esttica dos afectos mal-ditos: cartografias do desejo
O desejo ignora a troca, ele s conhece o roubo e o dom. Gilles Deleuze, 1976.
Neste captulo parto de um esboo etnogrfico, pautado em estudos de caso, afim de traar os movimentos de territorializao, desterritorializao e reterritorializao dos itinerrios cartogrficos do desejo, na criao dos fluxos e refluxos dos corpos em prol da vida, na afectao do Diverso, desembocando no indizvel das sexualidades camponesas. A tica e a esttica dos afectos mal-ditos, pura imanncia, potncia de vida, experimentao e no objeto de interpretao, ganha aqui o combustvel engrenagem de uma mquina esttica desejante 1 , com seu remanejo constante de novas fronteiras, dom/contra-dom, corpo-receptculo que reinventa a tradio 2 , que emana inmeras linhas de fugas, isto , criao de outros modos de vida, pondo em cheque, atravs das prticas e movimentos vibrteis do corpo, o iderio da Trade Deus-Homem-Natureza, metfora, diramos hoje, do dipo, segundo o Texto Brasileiro sobre o Rural, como vimos no primeiro e no segundo captulos. Conquanto, realo um rito de passagem, caracterstico do pequeno povoado de Goiabeiras, no serto do Cear, nordeste do Brasil, que tem no corpo-receptculo, isto , homens que recebem smen e afectos, em seu corpo, de outros homens, atravs de ritos sexuais, no meio da caatinga, no agenciamento de uma mquina esttica desejante, produo de ddivas sem contraprestao, do molar perpassado pelo molecular, da intensidade que afecta a passagem cclica das geraes parentais, ou seja, rapazes e homens que iniciam sexualmente homens e rapazes construindo uma epifania corporal, cartografia oral de uma gramtica tica e esttica do cuidado de si, inserida na ordem do indizvel das sexualidades camponesas, no seio da qual os rituais marcados por uma estetizao, muitas vezes sofisticada, fazem dos signos corporais o axioma fundamental. Sexualidades em portos seguros, sem ncoras, subjetividades antropofgicas, potncia verdejante no corpo campons. O corpo como artefato __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 123 simblico e uma produo dos signos, de sentidos e de pensamentos, de valores tico e esttico que forma, tal qual os corpos dos amerndios, pensados por Lins (2004), uma verdadeira cartografia do devir-artista no campo do desejo. Um corpo-receptculo inventado ( afectao), penetrado (por homens-meninos e por meninos-homens em gozos apressados), rasgado (pelos espinhos da caatinga), capturado (por devires imperceptveis) e doado (pura intensidade e paixo). Ele, o corpo do homem do campo, nas moitas de Goiabeiras, uma imaterialidade traduzida naquilo que se vincula a ele, em suas experimentaes do mundo, naquilo que o sacode, isto , os sussurros, o suores, o cheiro do esperma, o sopro de vida, os belisces, os gemidos, os fludos: o corpo que entra e sai, sai e entra, nasce e morre... e nasce... acontece, corre. Eis a criao de uma pedagogia rizomtica, fomentada por Lins (2005), e engendrada pelos afectos mal-ditos. Um corpo inserido na dinmica do rizoma: resistir, infectar, contagiar e vitalizar o institudo, no aqui e agora da pedagogia real, pois se o estilo de vida, de existncia esttico, sua fora maior tica, em oposio moral. O corpo das mulheres e homens de Goiabeiras cartografias corpreas vida nos seus mnimos detalhes, sob o signo da paixo e das intensidades, de uma linha de fuga marcada pelo gozo e pelo furor de uma tica e esttica da crueldade, bem distante da Identidade Cultural do campons, este missionrio do imaginrio institudo do TB. Nesse sentido, o conceito de cultura que exponho, nada tem a ver com identidade cultural, mas com o intermezzo de todos os modos de produo cultural (as artes, a histria, os mitos, os ritos, as danas, as tatuagens, os ornamentos etc) em uma articulao constante uns com os outros e no como especialidades, articulao do campo social, articulao com o conjunto dos outros tipos de produo na inteno de abrir e quebrar (implodir) todas estas esferas culturais fechadas sobre si mesmas. A produo de novos agenciamentos de singularizao que trabalham por uma sensibilidade esttica, pela mudana da vida num plano mais cotidiano e, ao mesmo tempo, pelas transformaes sociais em nvel dos grandes conjuntos econmicos e sociais. Em tese, no se trata de ideologia, mas de subjetivao, de processos de subjetividade. A produo da fala, das imagens, da sensibilidade, a produo do desejo no se cola absolutamente representao do indivduo, pois esta produo adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais, a uma multiplicidade de processos de __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 124 produo maqunica, a mutaes de universos de valor e de universos da histria, ou seja, cartografias do desejo, um corpo leve, solto, baseado na fora das intensidades e no Diverso, pois um fato subjetivo, como aponta Guattari (2005), sempre engendrado por um agenciamento de nveis semiticos heterogneos.
A subjetividade coletiva no resultado de uma somatria de subjetividades individuais. O processo de singularizao da subjetividade se faz emprestando, associando, aglomerando dimenses de diferentes espcies. Pode acontecer de processos de singularizao portadores de vetores de desejo encontrarem processos de individuao. Nesse caso, trata-se sempre de processos de responsabilizao social, de culpabilizao e de entrada na lei dominante. Creio que a relao entre singularidade e individualidade fica melhor colocada dessa forma, e no numa disjuno absoluta, que implica o mito de um retorno singularidade pura, a uma pura converso ao processo primrio. H um permanente entrecruzamento no qual a questo se coloca concretamente: como articular o processo de singularizao, que se d ao nvel fantasmtico do objeto do desejo ou a qualquer outro nvel pragmtico, com os processos de individuao que nos pegam por todos os lados? 3
Ao falar de processos de subjetivao e no desingularizao, Guattari no est falando de indivduo, pois no existe unidade evidente da pessoa. O indivduo, o ego ou a poltica do ego, a poltica da individuao da subjetividade, so correlativos de sistemas de identificao os quais so modelizantes 4 . Neste sentido, no se trata aqui, no vilarejo de Goiabeiras, de um grupo identitrio, de uma identidade homossexual ou cultural no serto do Cear, mas de processos de subjetivao que inventam e reinventam suas mquinas estticas, agenciadas pelos afectos mal-ditos. A vida como condutora do desejo, micropoltica, cartografias do desejo, em que a Ordem e o Mesmo do Gnero e da Identidade, como demonstrei no segundo captulo, no os pegam mais. E Guattari continua:
Aquilo que eu chamo de processos de singularizao poder simplesmente viver, sobreviver num determinado lugar, num determinado momento, ser a gente mesmo no tem nada a ver com identidade. (...) Tem a ver, sim, com a maneira como em princpio todos os elementos que constituem o ego funcionam e se articulam; ou seja, com a maneira como a gente sente, como a gente respira, como a gente tem ou no vontade de falar, de estar aqui ou de ir embora. 5
Eis porqu o conceito de identidade cultural reacionrio. A cada vez que o utilizamos, veiculamos sem perceber modos de representao da subjetividade que a reifica e que com isso no nos permite dar conta de seu carter composto, elaborado, fabricado, como o caso da identidade camponesa, no imaginrio institudo do TB. Ainda no que tange identidade cultural, Guattari acresce: __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 125 A noo de identidade cultural tem implicaes polticas e micropolticas desastrosas, pois o que lhe escapa justamente toda a riqueza da produo semitica de uma etnia, de um grupo social ou de uma sociedade. 6
A micropoltica do cotidiano se faz a partir da criao de um agenciamento que permite que os processos de subjetivao se apiem uns aos outros, de modo a intensificar-se e no deixar capturar, em no cair nesses modos de qualificao e de estruturao das teorias sobre sociedades camponesas que bloqueiam o processo. Eis o que define uma experincia alternativa, seu carter processual, pois esse desejo de no acabamento de expresso visa s formas identificveis de criao. uma criatividade processual que faa com que as leis acabem se chocando de certo modo com a vitalidade do movimento em todos os seus componentes. 7
Quando queremos caracterizar a alternativa por seu carter processual simplesmente um sinal de que no podemos totaliza-la numa teoria, numa ideologia, numa prtica. O que no quer dizer que vamos fazer um vago conchavo, um vago sincretismo. Pelo contrrio, vamos elaborar uma compreenso das posies singulares nas quais cada um se encontra, uma compreenso sem parania, sem projeo e sem culpabilizao. Isso exatamente para que seja possvel atravs dessa articulao desenvolver um processo de reflexo e de anlise, todo um trabalho de metabolismo de mudana de percepo das situaes, que eventualmente possa at desembocar em alianas. As alianas, nesse caso, se caracterizariam por construir sistemas de transversalidade cujo critrio a posio do desejo. 8
O incio dos trabalhos de campo, do encontro-experimento com os goiabeirenses, data de 2000 e se estende at 2004. , por meio dos processos de subjetivao, compreendidos aqui como afectao, corprea e incorprea, que o acontecimento se apresenta. Trata-se de ritos, no mbito sexual, entre muitos homens do povoado, um corpo-receptculo que enxerta a arte no corpo humano num exerccio tico e esttico em que o torna extenso, alterao, deslocamento, ebulio dos afectos, tendo como cenrio o meio da caatinga, em que os iniciados se confundem com os iniciantes, em que a liminaridade (cf. Tuner, 1984) no ritual perpassada pelo molar e molecular. Bem longe da pretensa estrutura hierrquica do sexual e do gnero, da binaridade, proposta por Peter Fry & Edward MacRae (1985), entre Macho X Bicha, isto , a velha estrutura hierrquica entre Ativo (logo, Dominante, macho) X Passivo (logo, Dominado, bicha) no intercurso sexual entre homens no que o antroplogo denomina de Brasil popular, que pode ser estendido para um Brasil rural. Nesse sentido, Fry & MacRae (2002) discorrem: __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 126 Neste esquema, ento, as relaes sexuais esperadas tambm so todas heterossexuais em termos de papis sexuais. As pessoas socialmente femininas se relacionam com as socialmente masculinas. As mulheres e bichas se relacionam com os homens e os homens e mulheres-machos se relacionam com as mulheres. O que considerado realmente desviante, de acordo com estas regras, so relaes homossexuais no em termos fisiolgicos, mas em termos dos papis sexuais. Assim, um homem pode se relacionar sexualmente com uma bicha, enquanto o primeiro ativo e o segundo passivo. Nesse sentido, o que causa escndalo quando bicha se relaciona com bicha. Esta, sim, seria a relao homossexual, e ela ridicularizada no ditado popular bicha com bicha d lagartixa. 9
Por sua vez, o que se arma naquele povoado criao de agenciamentos sem dualidades, linhas de fuga, engendradas por um devires imperceptveis no homem do campo. A moita escolhida, o mato capinado, a luz da lua a iluminao, a caatinga passa ser cmplice, paredes do bordel inventado, moiteis, como alguns dizem, naturezas-culturas, pais-de-famlia, rapazes-velhos, jovens imberbes em meio experimentao dos bons encontros, das diversas possibilidades do corpo, nada a imitar, nada a interpretar, aprendizagens de uma pedagogia rizomtica, o clmax vibrtil do indizvel das sexualidades camponesas. Nesse sentido, e recobrando o Brasil colonial no trato dos encontros nas moitas, Del Priore (2005) apresenta um exemplo anlogo:
Processo de sodomia masculina, por exemplo, revelam amantes que andavam ombro a ombro, se abraavam, trocavam presentes e penteavam-se os cabelos mutuamente vista de vizinhos, desafiando a Inquisio, sua grande inimiga. conhecido o caso de certo Joo de Carvalho, um rapaz que ensinava latim e linguagem para os filhos dos moradores de uma freguesia em So Joo del Rey, no sculo XVIII. Apaixonado por um de seus alunos, lhe mandava bilhetes nos quais dizia: Luiz, meu amorzinho, minha vidinha! Vinde para o bananal que eu l vou com a garrafinha de aguardente. 10
No contexto etnogrfico de Goiabeiras, vejamos um fragmento das conversas com Matias, 23 anos, solteiro, em 2001:
A gente escolhe o local, marca com os machos o esquema. Quer ir ver o local? Se quiser participar... s negar tudo depois! Hoje ser prximo do aude X. Vai ser eu e Tadeu e mais cinco machos. Agora o seguinte, isto nunca aconteceu! Voc nunca viu nada! Eu jamais fiz estas coisas! No mesmo? Confirme! Eu nunca fiz e no tenho amizade nenhuma com aqueles pais-de-famlia! Amanh negarei tudo! Nem sequer estive com voc esta noite! (Trecho do relato de Matias, em 2001)
Pude observar um local preparado para o ritual. No cho, folhas de mamoeiro como forro. Alguns galhos de jurema (vegetao nativa) distorcidos e quebrados, na __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 127 tentativa de camuflar o circuito amoroso. Um espao reservado, nas moitas, s catuabas. Geralmente, durante o dia, os afectos mal-ditos vo at o local e o cria para a afectao noite. Locais um pouco afastados do povoado, como por exemplo, na caatinga, prximos aos audes, nos currais e/ou em casas abandonadas. A negao, nesse contexto etnogrfico e como podemos perceber neste primeiro depoimento, nada tem a ver com esquecimento no sentido de amnsia degenerada, mas com estratgia. Muitos homens em Goiabeiras engendram um esquecimento ativo, isto , esquecem de ser, pois existem coisas, no mbito dos afectos, das intensidades e das paixes, que no so para serem ditas. No indizvel das sexualidades camponesas, no meio da caatinga, nada a declarar, nada a oficializar, apenas a experimentar. A negao para e pra o J uzo, a Ordem, o Mesmo, Trade, o TB, s famlias de bem, os rumores e os mexericos vexatrios. Portanto, no se trata aqui de represso ou falta de conscientizao de uma identidade, mas a criao de uma mquina de guerra esttica, uma tica dos afectos mal-ditos que burla com os rumores locais, que atravessa os valores camponeses, ditos hegemnicos e porque no tambm dizer homogneos em ziguezagues. Afectos mal-ditos que escapam aos tericos da homossexualidade e das Coisas do gnero, pois o corpo, nos ritos dos homens de Goiabeiras, matria-prima, suporte ao gozo, lugar de devires que podem ser marcado por um pensamento artstico de reinveno do prprio corpo, sob o signo das paixes intempestivas, rodopiantes, cruis. Os discursos so territorializados, desterritorializados e reterritorializados por homens e mulheres em Goiabeiras. A contradio, o ldico, o falsete, so estratgicos para burlar a vontade de saber das famlias de bem. Negar os esquemas, como eles dizem, ou exalt-los, tem a ver com o espao dado ao discurso. Ele, o discurso, parte de uma mquina de guerra afectao. Porm, vlido ressaltar que discursos afirmativos envolvendo identidades homossexuais ou similares so praticamente inexistentes. Pude observar, em raros momentos, alguns goiabeirenses chamando uns aos outros de bicha, mas, quando do ritual nas moitas de Goiabeiras, tais insgnias desapareciam, pois trata-se de experimento, ancorado nas peles e orifcios rasgados, em coitos cambaleantes, embriagados por paixes intensas, sem muitas palavras, algo prximo do que disserta Lispector (1990) no que concerne ao indizvel das paixes:
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 128 to difcil falar e dizer coisas que no podem ser ditas. to silencioso. Como traduzir o silncio do encontro real entre ns dois? Dificlimo de contar: olhei para voc fixamente por uns instantes. Tais momentos so meu segredo. Houve o que se chama de comunho perfeita. 11
Mormente, para situar o leitor no contexto de Goiabeiras, inicio apresentando um pouco da histria oficial e oficiosa do lugar. Goiabeiras se doa, ela puro contgio. Proponho ao leitor abrir-se ao experimental, abrir-se ao processual, aos afectos, pois a mquina esttica, mquina do desejo, mquina de guerra dos afectos mal-ditos, forja um novo modo de expresso, cria espcie de cartografias de seu prprio universo, pois, doravante, outros mundos passam a ser possveis, pois os ritos dos corpos-receptculo que se seguem, representam os blocos de devires de todas as manifestaes da cultura corporal, de uma pedagogia rizomtica, do pensamento-corpo como pura crueldade, perpassada por sangue e veias, por carne e desejo, das coletividades, das matilhas, dos bandos, em seus processos de subjetivao, contgio. Neste sentido, anuncia Guattari:
A subjetividade coletiva, ela tambm, tem necessidade de uma prtica em constante evoluo. J se foi o tempo em que a razo, a sensibilidade e as mentalidades podiam aparecer como quadros de referncia fixados de uma vez por todas. 12
Por Uma Antropologia Dos Rumores: Das Histrias ntimas Do Lugar
Goiabeiras um povoado localizado no Cariri cearense, nordeste do Brasil. Com aproximadamente 5050 habitantes, a 423km de Fortaleza, a capital do estado, tem como principal fonte de renda a agricultura, alicerada na plantao de arroz e de milho, a pecuria, em pequenas propriedades, e a aposentadoria. Sua escassa histria oficial, pois as fontes bibliogrficas so mnimas 13 , foi forjada em uma pretenso de embranquecimento e aportuguesamento da populao, isto , montada por uma minoria branca, letrada, descendente de portugueses, em uma excluso radical dos negros, cujo ingresso na histria oficiosa do povoado advm da compra de escravos nos municpios do J uazeiro do Norte, Barbalha e Crato, ainda no perodo da escravatura no Brasil, e de muitos indgenas, pegos no lao, provenientes da etnia kariri, como demonstram as histrias orais dos goiabeirenses mais antigos. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 129 Abrindo um parntese, vlido ressaltar aqui que as datas das histrias orais so contraditrias, pois o que vale, ao meu ver, o imaginrio construdo, movimentado, por elas e no a constatao historiogrfica, positivista sobretudo, de verdades, em termos rankianos. A ttulo ilustrativo, vejamos alguns fragmentos:
FRAGMENTO I: Quando eu era criana, meu pai comprou uns pretos l no Juazeiro do Norte. Os bichinhos eram ariscos, outros calados. Eu me lembro bem. Depois, com a abolio, tivemos que soltar, tm muitos que esto soltos por a. (Depoimento de J os, pai-de- famlia, 98 anos, em 2004)
FRAGMENTO II: Na minha famlia tem muita gente que foi pega no lao. Minha bisav foi assim. Agora voc sabe que fica at feio comentar estas coisas! melhor calar. Imagina dizer que ns, os Fulano de Tal, tem algum da famlia que foi pego no lao. (Depoimento de Maria, 60 anos, moa-velha, em 2001)
No caso do Fragmento I, o ambiente foi arquitetado. ramos em cinco, o J os, patriarca de uma famlia abastarda, sua filha mais velha, solteira, duas tias minhas, da linha materna, famlia abastada, e eu. O local escolhido foi o leito do patriarca, haja vista que ele estava debilitado por conta da idade avanada. No trato do fragmento da segunda conversa, o local do acontecido foi o hall da casa, s pressas e relatado em sussurros, ou seja, Maria, tambm proveniente de uma famlia abastada, me contava a histria, pedindo, sobretudo, segredo e decoro. No trato das sexualidades em pocas mais antigas, os poucos fragmentos que consegui, via Mariano, 69 anos, rapaz-velho, afecto mal-dito, foi por meio de conversas espordicas, antes da sua morte. Vejamos alguns trechos:
NESTE FARGMENTO, MARIANO, ESTAVA EM GOIABEIRAS (2001):
Aqui sempre foi assim! Todo mundo se comia, como hoje. Eu sempre encontrei homens querendo dar uma! Aqui, as pessoas ficam nesta hipocrisia, mas a gente sabe, no adianta esconder!
NESTE FAGMENTO, MARIANO J SE ENCONTRAVA EM FORTALEZA, DOENTE, ACOMETIDO COM CNCER (2003):
Quando pequeno, ficava com meus primos, os homens daqui me comiam. Hoje a mesma coisa, como voc v, a gente agrada, prepara a casa para eles. Compra uma __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 130 catuaba e uns queijinhos. Quando eles esto precisando de roupa, de dinheiro para uma festa etc, a gente faz o que pode, pois voc sabe como a paixo! Todo mundo fala mal dos homossexuais. Hoje em dia, os tempos so outros. No meu tempo, quando meninote, ah... quantos encontros, quantas saudades... Amo Alexandre! Voc tem notcias dele? Ele mora em outra cidade, tem trs filhos... ah, mais a outra histria... Voltando ao assunto... quando meninote eu ia muito a Patos, Pombal, Catol do Rocha [no Estado da Paraba]... Eita que tempo bom! E os comcios...nem lhe falo... Hoje, esta doena... esta doena... voc tem notcias de Alexandre?
Os fragmentos recobrados tratam, de forma limitada, o tempo antigo e as peripcias dos afectos mal-ditos. vlido ressaltar que muitos homens de Goiabeiras, mais velhos, geralmente os pais-de-famlia, utilizam, ainda, da expresso vamos dar uma?, como forma de anunciar o convite, que recobra aquele perodo, diferentemente, os rapazes dos dias de hoje, em Goiabeiras, reinventam o convite, a expresso esquema a mais comum, para marcar um encontro. Porm, as duas expresses coexistem, e curiosamente elas dependem da idade dos agentes e/ou ainda do isolamento da localidade, isto , quanto mais isolada, afastada, de Goiabeiras, ou seja, aqueles homens e mulheres que residem nos stios circunvizinhos, a expresso vamos dar uma? ainda a mais corriqueira 14 . Segundo tal histria oficial sobre o lugar, o primeiro portugus a desbravar aquelas terras, Manuel da Costa, comprou o stio So J os em meados de 1800. E de sua descendncia que se vai fundar a vila de Goiabeiras em 1807. Porm a histria oral de muitos habitantes do povoado, iletrados, principalmente os provenientes das ruas mais afastadas da igreja matriz de So Sebastio, iniciada em 1871 e s inaugurada como parquia em 1961, continua a embaralhar o imaginrio social, pois tais narrativas so formas de resistncias aos moldes oficializados. Neste sentido, em conversaes com os goiabeirenses, pude vislumbrar as visitas graduais de estudantes nica biblioteca pblica do lugar, em sua maioria negra e parda, que iam pesquisar a importncia histrica dos portugueses de vora como nicos fundadores da vila. Segundo a histria oficial, quando um dos filhos do portugus J oo da Costa 15 , Moiss Vieira, resolveu se mudar da Serragem para uma outra localidade mais conveniente, onde hoje a lavanderia pblica, batizou o lugar, que antes era chamado de X, de stio So J os, em devoo ao santo padroeiro do Cear, famoso no imaginrio religioso catlico do sertanejo por atrair chuvas em pocas de seca. Voltando um pouco no tempo, em 1861/62, o Cear foi palco da epidemia de clera. Para se ver livre dessa peste, J oo da Costa, filho de Moiss Vieira, resolveu __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 131 fazer uma promessa para o padroeiro so Sebastio: se a epidemia no chegasse sua casa, construiria uma capela em sua devoo e assim foi feita. Em 1871, foi benta a pedra fundamental da capela, construda ao lado direito da casa de seu fundador. Atualmente, a parquia do referido santo. Assim, em 1961, a capela foi oficialmente inaugurada como parquia, tendo, como primeiro vigrio, o proco Rafael. A primeira missa celebrada, em So J os, data de 1863, pelo frade capuchinho frei Cludio. Em 1900, foram iniciadas as novenas, que posteriormente seriam chamadas, tradicionalmente, de Festa de Janeiro. Como acontece em outras pequenas cidades brasileiras, em perodos diferentes do ano, o padroeiro festejado. Em Goiabeiras, entre os dias 08 e 09, aproximadamente, de janeiro, costume o povo ir busca do pau da bandeira de so Sebastio, madeira extrada da caatinga proveniente dos stios prximos ao distrito, que serve para hastear a bandeira branca e vermelha, simbolizando as cores do santo. Muitos homens, mulheres e crianas se deslocam das suas casas, uns com roupas de cores vermelha e branca, outros descalos, outros com o referido santo nas mos para agradecer e pedir novos milagres contra a peste, a fome e a guerra, em que o santo deve se vexar para respond-los. Em dezembro de 1933, o stio So J os passou a Vila, pela Lei n o X. Em 1938, passou a denominar-se de Vila So J os. O nome So J os permaneceu, at certo tempo, quando pelo decreto-lei n o Y, o nome daquela localidade encravada no interior do estado do Cear, passou a denominar Goiabeiras. A geografia de Goiabeiras tambm passou por algumas mudanas, no decorrer da sua histria. Em meados do sculo XVIII, os limites do ento stio So J os, as ento terras de Moiss Vieira, eram definidos pelas guas do Riacho W, com fundos no olho dgua das Amesclas, com faixas de meia lgua de largura cada uma. Atualmente, com o decreto-Lei n o Z, de 1951, que fixa a diviso territorial e administrativa do Estado do Cear, os limites foram alterados. No que tange ao plano religioso, falar de Goiabeiras ainda associ-la com so Sebastio, padroeiro do pequeno distrito de So J os. no ms de janeiro que acontece a festa mais popular da localidade a Festa de Janeiro (festa que homenageia so Sebastio). nesse perodo em que barracas cobertas de palha de coco seca circundam a nica praa do distrito; quando muitos homens e mulheres exibem as roupas novas __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 132 compradas, quando podem, para cada noite das dez de festa. tambm quando a igreja recebe os paroquianos do distrito, das cidades e dos stios vizinhos, quando se ouvem os zabumbas da Banda Cabaal, esta com instrumentos constitudos de couro de bode, juntamente com os pfaros de taboca que remontam s antigas cantigas da Europa do sculo XVI. Em frente pequena capela, que a posteriori passou a ser parquia, foram ficados quatro bancos, formando um quadrado e algumas rvores foram plantadas. Com o desenvolvimento urbanstico gradual da pequena vila, que de stio passou oficialmente para distrito de um municpio, s em 1988 foi inaugurada oficialmente nica praa do lugar. Logo ela recebeu o nome de um parente abastado, o de um desembargador que participou do projeto da implementao da BR230, conhecida como transamaznica e que corta o povoado, ligando-o a outras localidades. A pracinha, como chamada intimamente pelos habitantes da vila, em dias atuais, ainda um dos locais mais vigiado e ambguo, provenientes dos rumores goiabeirenses. Algo prximo ao que Gregor constatou na vila dos Mehinku no alto Xingu. Analogicamente quela aldeia, homens e mulheres reinventam suas condutas, burlam com o estabelecido, ultrapassam o desejo de fixao das identidades e engendram suas linhas de fuga. A praa, circundada pela igreja, pela lavanderia pblica e por casas de goiabeirenses por quase todos os lados, torna-se espao propcio aos mexericos vexatrios, em sua fora coercitiva do vigiar e punir, que configuram os micropoderes coercitivos das famlias de bem, em sua nostalgia de controle. Espao afetivo onde paradoxalmente pairam a diverso e a punio. Nesse sentido, passo a me ater um pouco mais detalhadamente sobre a pracinha, como exemplo etnogrfico das imbricaes entre o oficial e o oficioso na dinmica de uma moralidade oficial e da coexistncia com uma tica e esttica dos afectos mal-ditos. Ela, a pracinha, percebida como espao pblico capaz de reproduzir o oficial, e concomitantemente um espao experimental afectao, aos encontros indizveis, extraconjugais, muitas vezes marcados por meio de cdigos corporais. Nesse contexto, vejamos o que nos diz Andr, sobre o significado simblico do coar o saco escrotal, bastante comum entre os homens de Goiabeiras, para a marcao dos encontros:
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 133 Aprenda... Quando eles coam o saco porque to afim! Voc est vendo aquele macho ali? desse jeito! (Trecho das conversas com Andr, em 2001)
Para Luiz da Costa Pinto (1980), no que tange as lutas histricas das famlias no Brasil, o poder privado cabia ao grupo familiar ou a sociedade de parentes preservao e reparao dos delitos. O cumprimento das penas, geralmente exibido em praa pblica, tendia, segundo o pesquisador, a ser assegurado pelas represlias exercidas pela famlia contra aqueles que passavam a exceder, indo contra os bons costumes. Portanto, para distinguir e ao mesmo tempo correlacionar a presente dissertao com a leitura de Da Costa Pinto, necessrio estabelecer como este foco especfico, os jogos erticos na pracinha, so uma contextualizao da leitura daquele historiador e at que limite este espao pblico demarca o cenrio prprio da pretensa ordem e do pretenso equilbrio sociais. Recobro, mais uma vez, que essa pracinha carrega o nome de um parente abastado, isto deve desde j situar esse universo rural oficializado em funo do parentesco. Por isto, o que decorre deste nome j refora a discusso e os laos de famlia que concorrem para o poder privado do grupo familiar e poltico, sobre o restante do povoado. Neste sentido, as lutas entre famlias representam a pretensa ordem social pblica exercida pelo privado. Ao invs de um poder organizado, como assegura Da Costa Pinto, reproduz-se a moral dominante para justificar a preservao contra a superao de valores. Por sua vez, do intervalo entre a ordem e o suposto equilbrio social so criados os jogos de interesses, em que a praa torna-se um dos centros: ela um local pblico, nela os agentes deflagram suas estratgias, e o controle tende a ser mais intenso. Nesses termos, o vilarejo de Goiabeiras tende a ser, como na maioria das pequenas localidades, marcadamente montado e pretensamente controlado pelos rumores e pelas lutas de famlias. A nica praa do distrito, cercada pelas casas das famlias de bem, um dos lcus mais vigiado pelas espiadelas, provenientes das frestas das janelas, segundo relatam alguns goiabeirenses acerca dos bisbilhoteiros. A ttulo de visualizao geogrfica do pequeno povoado rural de Goiabeiras, segue abaixo um croqui. Assim, o leitor pode ter a dimenso da pracinha e os itinerrios dos esquemas indizveis que levam s moitas.
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 134 GOIABEIRAS 2004
LEGENDA
Casas das Famlias abastadas Casas das Famlias pouco abastadas
valido ressaltar que a fronteira econmica entre as famlias abastadas e as famlias pouco abastadas muito tnue. O que as distingue basicamente o poder simblico que as primeiras exercem sobre as segundas. Nesse sentido, sobre a inveno dos esquemas, vejamos o que diz Tadeu, em 2002:
No adianta... aqui as janelas tm olhos, as paredes tm ouvidos! Por isto temos que marcar os esquemas s escondidas na praa para depois ir s moitas. como na __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 135 igreja, entre um aperto de mo e outro. Tem que ser bem discreto! Nunca olhe diretamente para os machos!
Chandler (1981) ao estudar a influncia da famlia Feitosa no serto dos Inhamuns entre 1700 a 1930, tambm nos mostra quo marcante, atravs da histria, so as lutas de famlias em prol da honra, do sangue e pelo interesse poltico preservao do controle social. A sociedade de parentes ou parentela, para Chandler, e poderia estender para Da Costa Pinto, desempenha a funo de uma estrutura social total e que, por essa razo, se faz tambm campo das relaes jurdicas, ao lado da vingana privada, como forma de represso ao delito contra a prpria famlia do culpado. Cada grupo parental, como ressalta Da Costa Pinto, possui seu sistema de direito privado, feito pela fora quase inconteste do pater familia, que representa a famlia. Neste sentido, o cuidado de si (cf. Foucault, 2001) evidencia que a arte de governar a si prprio se torna um fator biopoltico. A pracinha, portanto, passa a ser um espao scio- afetivo para a visualizao e como estopim prtica do dbio. Trata-se, portanto, do sentido prtico do jogo, montado estrategicamente pelos afectos mal-ditos. Vejamos mais um exemplo:
Aqui ningum rebola a bunda! Se voc muito viado, ah... todo mundo manga [zomba]! Tem que ser macho! Os homens daqui no suportam afeminados, bichas! Na praa, ah... nem devemos olhar para eles. Mas como voc viu, eles nos procuram! Veja aquele coando o saco! Ele est afim! Paulo[antroplogo] ... tenho que ir, depois conversamos! (Fragmentos das conversas com Andr, em 2004)
A ttulo de exemplificao do controle social, via rumores, curiosa a associao que muitos goiabeirenses fazem entre o expresso rodovirio Vale do Jaguaribe, principal veculo coletivo (nibus intermunicipal) que passa s 21hs:45mim no vilarejo rumo Fortaleza, e sua serventia como uma espcie de relgio coletivo local para as famlias de bem estipularem o horrio adequado para se deixar praa, pois passando deste horrio, restaria na popular pracinha, segundo muitos relatos, o que no presta. Ou seja, condutas com horas marcadas, uma forma direta de uma suposta punio preservao da ordem pblica, via rumores, algo prximo s regras oficializadas do namoro antiga, etnografado por Thales de Azevedo (1986):
Para evitar a maledicncia e os maus-juzos e, sem dvida, pelos riscos de tentativas erticas por parte dos parceiros masculinos, os encontros e os passeios de namorados no devem estender-se at noites altas. Houve tempo em que nove horas da noite era o limite para a despedida, para a entrada das moas em casa. quela __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 136 hora soavam os sinos das igrejas, encerrando o movimento nas ruas, anunciando o aparecimento da Guarda-Noturna em sua ronda caa dos ladres e como que dando o sinal para outro ciclo de atividades: a vida noturna dos bomios, dos vagabundos, das mulheres da vida etc. 16
Nesse contexto, era sintomtico, revelador, quando eu estava em pesquisa de campo, e meus familiares costumavam apregoar:
Meu neto, depois do Vale, s fica na pracinhao que no presta! O que meu filho vai fazer l depois da meia-noite? Voc vai acabar caindo na boca do povo daqui! Veja, voc vem l das Braslia, est no mestrado... No acredito que antropo... nome difcil! ... estude tanto, leia tanto livro, para chegar aqui e cair no desfrute! (Fragmento das conversas e com minha av materna, famlia abastada, em 2001)
Saindo um pouco da pracinha de Goiabeiras e indo at a igreja que est localizada ao lado rever o croqui ( vlido ressaltar aqui que a pracinha, no incio da construo da vila, era uma extenso da igreja), com a dinmica histrico-scio- religiosa do lugarejo, em 1994 foi criado o pequeno coral da igreja catlica. Homens e mulheres dos vrios segmentos sociais, famlias abastadas e famlias pouco abastadas, se articulavam para unir suas vozes em adorao aos santos. Ensaios sistemticos, cultos mensais na sede da vila, e circunstanciais nos stios circunvizinhos, passavam a tecer o cotidiano daqueles segmentos da populao. A primeira vestimenta do coral foi logo confeccionada, composta unicamente de uma bata branca. Dias depois o emblema do grupo tornou-se o passo seguinte, tratava-se de uma pomba branca que simbolizava o Esprito Santo, este que passara a ser fixado na parede do lado esquerdo no templo. No dia seguinte a fundao do coral, alguns rumores burilavam com a pretensa calmaria do lugar, comeava-se a ser propagados, sobre a conduta sexual de alguns membros do coro, mexericos dos mais diversos. O coral ganhava de forma genrica uma outra nomenclatura, passava pejorativamente a ser chamado, corriqueiramente entre a populao, com o codinome de coral dos viados e das sapates, pois havia, via boatos, alguns sujeitos que eram classificados com tais insgnias, por conta de supostos afetos mal-ditos. Durante os primeiros anos de constituio e consolidao do coral, os rumores pareciam tornar ambgua a pretensa identidade social daqueles que o compunha, pois era como se a profano-sacralizao dos membros conduzisse passagem da liminaridade vida til, em termos bataillianos, na comunidade. Portanto, tudo levava a intuir que tais sujeitos ganhavam mais um status, tornavam-se peas estratgicas no __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 137 jogo que configurava a dinmica social daquele lugar, ou seja, como se fosse uma espcie de reaproveitamento de uma mo de obra improdutiva: a parte maldita. Paradoxalmente, uma velada violncia simblica passava a se solidificar em meio aos murmrios vexatrios de muitas famlias de bem, para com alguns agentes do coral. Em quase todas as ruelas, em ligaes interurbanas para outras cidades onde havia colnias de goiabeirenses, propagavam-se mexericos sobre os homens e mulheres do coro, que ganhavam uma posio social dbia no vilarejo: porta-vozes aos santos e concomitantemente condutores de uma afectividade mal-dita. Vejamos alguns fragmentos:
FRAGMENTO I: Dizem que s tem viado e sapato no coral. Todo mundo anda comentando... (Depoimento de Graa, me-de-famlia, 48 anos, em 2002)
FRAGMENTO II: Moo, dizem por a que tem muito viado e sapato no coral. Ontem minha irm ligou de So Paulo avisando que Tadeu estava com o filho de Jos de Tobias no mato. Quanta safadeza! Meu marido, por exemplo, se eu soubesse de alguma coisa, ah... ele iria ver s! Ontem ele foi para o aude com Andr, filho de Lucas de Carlos. Sabe como , as pessoas desse lugar comentam muito sobre Andr. Mas ele disse que nunca fez isto. porque as pessoas no tm o que fazer! Adoram um fuxico... (Depoimento de Marta, 43 anos, me-de-famlia, em 2002)
FRAGMENTO III: Todos comentam que eu fiquei com Juca? Agora lhe pergunto: alguma vez voc me viu no mato? Fazendo o que no deve? Indo contra Deus? Jamais! [trs horas depois, em um outro espao] Hoje tem esquema. Arranjei trs machos, ser na estrada X, prximo aquela cerca, lembra? (Trechos das conversas com Tadeu, em 2001)
No Fragmento I, Graa, me-de-famlia, um exemplo daqueles agentes que elaboram os rumores. Conhecida no povoado como fuxiqueira, ela se utiliza deste instrumento coercitivo na tentativa de controlar os passos dos afectos mal-ditos. No caso do Fragmento II, Marta, me-de-famlia, tambm um agente em prol dos rumores, mas como seu marido, J uca, faz parte dos circuitos amorosos indizveis no lugarejo, no que tange aos afectos mal-ditos, Marta impe o casamento e o respeito da categoria pai-de-famlia a J uca, na tentativa de negar ou silenciar o possvel romance de __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 138 seu marido com Andr. vlido ressaltar que Marta e Andr so bastantes amigos e que, num certo dia, quando estive em campo, em 2000, presenciei uma discusso entre os dois: Marta havia pego Andr na cama com seu marido. Porm, por conta da amizade e de certas intrigas e segredos, Marta defende Andr, como podemos perceber no fragmento II. Por fim, no Fragmento III, Tadeu utiliza da estratgia da negao para no ser taxado de viado. Momentos depois, quando um esquema criando, Tadeu, engendra um esquecimento ativo, um esquecimento de ser, convida o antroplogo ao experimento. vlido lembrar que, com o incio dos trabalhos de campo propriamente ditos in loco, o lugarejo de Goiabeiras aparentava ser mais uma vila esquecida no serto cearense. Sua distncia geogrfica da capital e suas relaes parentais e vicinais passavam caricaturalmente uma imagem de calmaria, de harmonia, incrementadas pelas prosas das mais diversas, seja na escassa literatura sobre o lugar, escrita por intelectuais goiabeirenses migrantes, seja pelas histrias e memrias orais contadas na praa ao anoitecer pelos mais velhos, nos remetendo ao que pensam Godelier (1982) Becker (1997) acerca dos segredos e silncios que perpassam as sociedades, como vimos na introduo desta dissertao. O mito do campo buclico e ldico se apresentava e se engessava para olhares desatentos e apressados. Parece que se concretizava, na aparncia do real, os poemas e os versos dos ditos intelectuais e repentistas goiabeirenses, no que concerne a um povo sofrido, pacfico e temente a Deus. Nesse nterim, no plano econmico, uma das principais fontes de renda daquele povoado passara a ser a aposentadoria, dado que prevalece at os dias atuais. Em nmeros significativos, a quantidade de aposentados tem aumentado gradativamente. Com o dinamismo econmico da aposentadoria, com as secas graduais e com a falta de emprego, muitos jovens deixam de trabalhar e passam a sobreviver por meio da aposentadoria dos pais. A casa de jogo, a caa noturna e as prosas na praa passam a fazer parte de uma reorientao do saber fazer campons para muitos do lugar. Uma replicao deste fenmeno social foi diminuio de jovens rapazes e moas lida no roado, passando a redirecionar suas atividades, em outros redutos. No plano poltico, o vilarejo rural de Goiabeiras ainda conserva resqucios do perodo colonial brasileiro, pois se mostra aparentemente sob o controle, porm __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 139 nostlgico, ideal dos laos e sangue de famlia, como havia comentado. Com a delegacia mais prxima a 18km de distncia, situada na sede do municpio, as famlias mais abastardas traam a tal segurana local, harmonizando a almejada paz que caracteriza pretensamente aquele povoado. Neste sentido, a embriaguez com lcool, a compra de votos em perodo de eleio municipal, a disputa por terras, as traies das mais diversas, os usos de drogas, as sexualidades que no esto para a reproduo da espcie etc so resolvidos muitas vezes sob os conselhos apaziguadores de tais famlias. Paradoxalmente o popular curral eleitoral se estrutura nas relaes de compadrio, como aponta Souza (1981), cidados que ganham notoriedade por parte das famlias de bem com a proximidade das eleies. No plano religioso, os cultos catlicos, um dos principais divertimentos pblicos de muitos do lugar, ora em agradecimento a Deus pela utilidade da chuva, ora implorando piedade e clemncia quando no perodo de escassez ou excessos substanciais da mesma, servem tambm como espao afetivo para a propagao dos mexericos. Tais cultos, que eram antigamente mensais, passaram a ser dominicais, com o acrscimo de um novo segmento que vem se consolidando no plano religioso: as comunidades dos evanglicos. Abrindo um parntese, em 1997, foi inaugurando o nico motel do lugar. Alvoroo e encontros sistemticos na igreja catlica foram programados para tratar de um abaixo assinado contra a construo daquele que, para as ditas famlias de bem, seria uma espcie de antro da perdio e da falta de decoro em prol da luxria e contra os bons costumes. Pouco freqentado pela populao local at hoje, o motel localizado em uma das entradas do lugar (rever mais uma vez o croqui), passou a abrigar casais advindos das cidades circunvizinhas, sendo freqentado esporadicamente por alguns do lugar apenas no perodo liminar da Festa de Janeiro, onde o olhar controlador da populao local se dispersava, por conta do aglomerado de pessoas que vm das mais diversas localidades para os festejos. Nesse sentido, vejamos o que relata Mauro, pai-de-famlia, 32 anos, em 2001:
S bom levar mulher para o motel daqui no perodo da Festa de Janeiro. Primeiro porque vem mulher de todo canto, depois porque com o tumultuo da Festa, os fuxicos diminuem, pois muita gente na praa noite e as barracas ficam cheias. Assim, as pessoas no tm tempo ficar bisbilhotando.
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 140 Ainda sobre a eficcia simblica dos rumores, um dos espaos fsicos que o sintetizava como memria coletiva (cf. Halbwachs, 2004) do povoado foi o posto telefnico da Telecear, fechado em 2002. Dizem muitos do lugar que as ligaes telefnicas eram geralmente ouvidas pelas atendentes que l trabalhavam. Quando de um boato sobre a vida sexual de algum era lanado pelos mexericos locais, rapidamente, segundo os goiabeirenses, muitos conterrneos, migrantes em sua maioria, em colnias nas cidades de So Paulo, Fortaleza, J uazeiro do Norte e Crato, logo ficavam sabendo das novidades. O vigiar e o punir ultrapassavam, assim, as serras que circundam o distrito, fortificando a eficcia dos rumores via fibra ptica. Nesse contexto, vejamos mais um relato, Matheus, rapaz-velho, em 2000:
Aqui no tem jeito! povo fuxiqueiro! A gente no pode nem marcar um esquema em paz! Ontem, fui ligar para meu primo que mora em So Paulo e ele j estava sabendo o que se passou com Andr e Drio. No tem jeito, o povo fala mesmo! Estas mulheres que trabalham na Telecear, so elas mesmas que passam as novidades para o pessoal de fora! Por isto nunca diga nada pelo telefone, esconda tudo! Elas esto s esperando voc escorregar, dizer bobagens.
Fofocas das mais diversas so montadas, fenmeno que tornava fluda a ambigidade das sexualidades camponesas. Em 2001, foi implementado o sistema DDD (Discagem Direta Distncia) que preconizou o fechamento do posto, mas at hoje ainda prevalece, na memria local, o mito das atendentes, controladoras das discagens, que parecem controlar e manipular condutas oficiosas, em espaos oficiais, a favor de um modelo ideal. Vejamos esse outro fragmento de relato:
Quem garante que ningum est ouvindo quando ligamos via DDD? Eu que no confio no povo daqui! Acabou o Posto da Telecear, mas continuam os fuxicos... Eu no acredito mesmo em telefonemas neste lugar! (Fragmentos das conversas com Ivo, em 2002)
Com a implementao do ensino mdio na nica escola pblica municipal, em 1997, houve um acrscimo interacional para com os stios circunvizinhos. O vilarejo passara a recepcionar moradores de vrios stios e picadas. Funcionando noite, alguns nibus trazem os estudantes dos mais diversos lugares que compunha a geografia poltica do distrito. Nesse sentido, vejamos o que nos diz Andr, em 2003:
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 141 Andr: Depois que os machos do stio vieram estudar aqui... ah... tudo mudou. Agora temos os machos do stio tambm. Ontem fiquei com dois que moram no stio X, eles me comeram atrs do muro da escola. Vou lhe contar uma coisa... Ontem, na aula, o professor, que eu j fiquei com ele, trouxe uma camisinha [preservativo] para a sala. Ele perguntou quem sabia mexer com aquilo. No sei porqu, mas ele me escolheu e a, ah... todos riram. Eu disse que no sabia mexer com aquilo, que no sabia usar camisinha. Disse para ele que voc era o especialista nisto! Antroplogo: Mas por que eu? Andr: Depois que eu disse que voc era o especialista, ah... os machos me olhavam, quando eu negava tudo e dizia que era voc, arrumei dois depois disto!
Podemos perceber aqui como os afectos mal-ditos inventam os encontros. Ao se distanciar do foco, Andr joga o centro das atenes para o antroplogo, assim, segundo ele, os homens de Goiabeiras compreenderam que Andr seria uma pessoa confivel, pelos menos idealmente, haja vista que todos sabem como Andr, afecto mal-dito, tambm fuxiqueiro. Ao falar que o antroplogo o especialista, para com o uso da camisinha, Andr se aproxima das estratgias discursivas j comentadas anteriormente, quando do uso do termo homossexual como troa. Ele se ausenta e, paradoxalmente, se apresenta. Eis um dos motivos que dificultaram o incio dos trabalhos de campo, frases dbias, que aparentemente parecem negar, mas, etnograficamente, so para se afectar. Nesse sentido, apesar de todo um aparato discursivo, proveniente dos rumores locais, em prol do controle e da ordem, os afectos mal-ditos produzem suas mquinas de guerras, mquinas desejantes que engendravam outros modos de vida. Como podemos perceber no exemplo de Andr, os rumores so reinventados, recambiados s estratgias discursivas. Trata-se aqui de uma questo de micropoltica do cotidiano, isto , uma questo de uma analtica das formaes do desejo no campo social, pois os afectos mal- ditos so algo da natureza de processos, nos quais o que se produz no uma repetio de idias e sim uma vontade de criar, de mudar a ordem do pensamento, burlando, assim, o imaginrio institudo do TB.
FRAGMENTO I: O Paulo [antroplogo] perigosssimo! Dizem que ele adora um esquema. Ontem eu o vi com Joo de Jos de Simo. Ah, eu ando conversando com ele... mas sei no... eu o vi no mato! Gertrudes no conta para ningum, s boato... E voc uma mulher casada, fica feio! (Fragmentos de Tadeu que pude escut-los s escondidas, iniciando o antroplogo na ambigidade dos rumores, o transformando em afecto mal-dito, em 2000)
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 142 FRAGMENTO II:
Sabe Simo, voc e Roberto, eu respeito muito! So homens casados, bons pais-de- famlia. Vocs ouviram falar de Andr? Dizem que ele viado, sei l... Dizem que ele adora chupar os paus dos homens... coisa feia!. Dizem que ele adora dar! J deu at para trs ou quatro de uma vez! Coisa feia... Ah... estou cansado... vamos l para o aude, quero tomar um banho. Hoje est muito quente. Se quiserem podem aparecer por l! [minutos depois] Viu como se marca um esquema. Aprenda! Para de ser frio, Paulo[antroplogo]! Hoje vamos levar catuaba e rum montilha para o mato. Veja, olhe para trs... eles esto vindo! Est vendo Simo coar o saco! assim que se faz! (Fragmentos das conversas com Ivo, em 2000)
FRAGMENTO III: Eu sou casado, pai de trs filhos. Todo mundo anda comentando que eu sou viado. Tudo mentira! [Artur conversava prximo de mais dois homens casados do vilarejo] Se eu fosse, nunca teria me casado! mentira! Aqui s tem fuxiqueiro! Agora tenho que ir, vou caar no mato e passar a noite l. Serafim e eu. (Trechos das conversas de Artur, pai-de-famlia, convidando o antroplogo ao encontro, em 2002)
Podemos perceber, nesses fragmentos, que a iniciao nos afectos mal-ditos se d tambm com o antroplogo. Ao espalhar rumores sobre os provveis esquemas do antroplogo, os afectos mal-ditos inseriam-me nos circuitos amorosos indizveis. Quanto mais mal-dito ia me tornando, mais os homens de Goiabeiras me procuravam, no para conversar sobre sexualidade, mas no intuito de experimentar este nefito na afectao. Um exemplo ilustrativo que recobro da introduo desta dissertao, foi quando Ccero, pai-de-famlia, 46 anos, em 2000, me presenteia com um caju. Naquele momento, de incio de pesquisa de campo, quando estava comeando a me tornar mal- dito, via rumores de Tadeu e Andr, no compreendi o cdigo, apenas agradeci o presente. No mesmo instante, Andr se aproxima e exclama, sorrateiramente: Parabns, ele um homem muito bonito e ele faz! Ele tem um pau bom! A compreendi que no se tratava de um simples presente, mas um convite ao encontro-experimento. Um convite indizvel, que no cabia palavras diretas ou pr-fabricadas. A ambigidade dos rumores reiventada. Produtiva, cmplice, ao bom encontro sem aviso prvio. Os corpos fugidios nunca chegaro a Ser. Quando mais se pensa que os rumores fixaram seus desejos (instituio do desejo) na identidade homossexual, na identidade cultural, na ideologia dos valores camponeses oficializados, os afectos mal- ditos engendram um devir-homossexual, devir-homem, devir-mulher, devir-animal. Devires imperceptveis que perpassam a estrutura, que a movimenta por ritornelos dos mais suaves, dos mais mutantes, dos mais cruis. O caricatural dos gneros no os pega __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 143 mais, corpos em abertura produtiva ao experimental afectao de uma mquina esttica. Os corpos fugidios dos afectos mal-ditos so puro contgio. Uma antropologia rural do contgio, antropologia rural com o corpo. No se trata mais de um antroplogo que vai ao campo com conceitos a priori, apenas para etnografar o oficial, mas que encontra na experimentao, no oficioso, a pulso criao de uma escrita sem interpretao prvia, no mais definida em moldes cannicos, como, por exemplo, o imaginrio institudo do TB, como vimos no primeiro captulo. Os rumores e as identidades entram em parafusos, nada a oficializar, nada a declarar. Represso? No, ato de criao em metamorfose abismal, inscrito com sangue, veia, nus, vagina, pnis, nas ambincias do rural, no corpo paradoxal. Nesse sentido, Guattari (2005) disserta:
A questo est em como fazer com que se mantenham os processos singulares que esto quase na tangente do incomunicvel articulando-os numa obra, num texto, num modo de vida consigo mesmo ou com alguns outros, ou na inveno de espaos de vida e de liberdade de criao. 17
Abrindo um parntese, no trato da migrao e para recobrar o imaginrio institudo do TB como sugere alguns tericos do campesinato, ou seja, a homossexualidade relativa expulso funcional, como o caso do artigo Fuga a trs vozes, de Woortmann, E.F (1993), j comentado no segundo captulo ao indagar para um afecto mal-dito, Drio, solteiro, se ele teria o desejo, a necessidade, de migrar, de viver com outro homem fora de Goiabeiras, ele me questiona:
Para que ir embora de Goiabeiras? A gente sai, mais volta. Deus me livre deixar este lugar, pois aqui eu tenho todos os machos aos meus ps! (Trecho das conversas com Drio, 28 anos, em 2001)
O corpo como movimento, como paixo, npcias entre reinos, entre amantes, nada de casal fixo e reprodutivo, nada de um campons passivo, inerte, esperando para esperar menos, esperando o seu destino, ditames da expulso funcional, j traada pelos tericos do rural. Pelo contrrio, no contexto anlogo ao de Drio, no trato da migrao dos afectos mal-ditos, pude perceber o fluxo de homens em graduais migraes para Fortaleza, J uazeiro do Norte e So Paulo. Porm, meses depois, os mesmos retornavam Goiabeiras, pois, segundo seus prprios relatos, eles no se adaptavam quela vida agitada da cidade grande. Neste sentido, no se trata aqui de retorno ao mesmo, de __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 144 dependncia, mas de movimento, de homens-corpos ativos em sua dinmica experimental. O que eles buscam a vida, o efmero. Parir para Fortaleza, passar uma temporada, nada mais que mobilidade, vivncias errantes sem portos seguros. Os afectos mal-ditos, e no s, migram, pois no se tratam de homens-ncoras. Mas, o retorno da ordem das intensidades nmades, desejos que perpassam vida, dinmica do novo, e que afecta o rito que aqui passarei a etnografar. Ainda, no que tange a movimentao dos migrantes, em 2001, um grupo, de quatro afectos mal-ditos, migrou para Fortaleza. Neste nterim, os pude acompanhar na jornada. Chegando em Fortaleza, foram morar em um bairro de periferia. Com emprego arranjado, pelas colnias de goiabeirenses em Fortaleza, o grupo s conseguiu passar um ms, retornando para Goiabeiras, pois como viver sem as moitas, sem os ritos, sem os afectos l deixados? A cidade grande , pois, para a renovao dos afectos, um time necessrio, experimentos-outros que revigora os encontros, quando do retorno e no um destino. Vejamos o que nos diz Andr e Ivo naquele perodo:
FRAGMENTO I (Andr):
interessante morar aqui... mas, cad o mato, os homens? Esta histria que tem que ir at um motel e pegar um nibus para se encontrar... sinceramente, volto para Goiabeiras no final do ms! No conheo os homens daqui. Nem sei, muito menos, de que famlias pertencem! at perigoso! Voc pode pegar uma AIDS, sei l...
FRAGMENTO II (Ivo):
Tu se lembra das coisas em Goiabeiras? Eita... que tempo bom! Lembra das perseguies no mato? Dos fuxicos? Dos machos? Acho que quando eu receber meu primeiro pagamento vou l! A questo porque muito caro a passagem Fortaleza- Goiabeiras... no sei... eu acho que eu vou voltar de uma vez! No estou gostando daqui!
vlido ainda ressaltar que os migrantes no so todos afectos mal-ditos, mas uma quantidade significativa de mulheres e homens, independente se serem ou no afectos mal-ditos, tambm migram e retornam. Pais-de-famlia, rapazes e, em menor nmero, algumas mulheres e moas, que migram e retornam. A falta de adaptao cidade grande a principal desculpa para o retorno.
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 145 Ritos Afectivos Como Experimentao
Nesta subseo tratarei dos ritos que contagiam os afectos mal-ditos. Ritos popularmente conhecidos como esquemas, isto , vrios homens, das mais variadas idades, criam mnages, grupais, banquetes amorosos no meio da caatinga, nos arredores do povoado, num intenso intercurso sexual no oficializado, no declarado, ou seja, puro ato de afectao que maquina a tica e a esttica do indizvel das sexualidades camponesas. No descreverei o rito per si, mas me contagiarei com ele, devir-nativo, devir- animal, devir-campons, devires imperceptveis que perpassam esta escrita antropolgica. Assim, o rito aqui no uma etnografia apreendida pelo pesquisador em campo junto ao grupo que ele observa. No se trata dos atos da sociedade, em que atravs dos ritos a sociedade toma conscincia de si, como quer Durkheim (1996), nem se trata das etnometodologias propostas por Boas (1975) e Malinowski (1976) em que o importante fixar o significado nativo do fenmeno ritualstico. Rito ainda no se equivale a reforo da unidade da estrutura, do sistema como resoluo dos conflitos, rituais das relaes sociais construo de papis sociais, caricaturais, categorias, como acentua Max Gluckman (1962). Rito aqui intermezzo, ao do contgio, aliana, ritos focalizados na ao, como acentua Leach (1974) e no como ao performativa, como apregoa Tambiah (1996). Ritos e mitos no mais como bons para pensar, em termos lvi-straussianos (2002), mas como bons para experimentar. Experimentar o encontro, o ato criativo, a margem, o indizvel das sexualidades camponesas, o conceito, a confuso-fisso de corpos, a inocncia do devir. Doravante, o que me interessa no rito o meio, a margem, a passagem, analisadas por Arnold Van Gennep (1978), a liminaridade, conceituada por Victor Turner (1974). Neste sentido, Turner, ao conceituar a liminaridade no processo ritual, discorre:
Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoa) liminares so necessariamente ambguos, uma vez que esta condio e estas pessoas furtam-se ou escapam rede de classificaes que normalmente determinam a localizao de estados e posies num espao cultural. As entidades liminares no se situam aqui nem l; esto no meio e entre as posies atribudas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenes e cerimonial. Seus atributos ambguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de smbolos, naquelas vrias sociedades que ritualizam as transies sociais e culturais. Assim, a liminaridade freqentemente comparada __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 146 morte, ao estar no tero, invisibilidade, escurido, bissexualidade, s regies selvagens e a um eclipse do sol ou da lua. 18
Liminaridade que deflora o J uzo do TB. Liminaridade contra qualquer interpretao, sem conscincia de si, alm da construo do imaginrio institudo sobre o corpo do campons. O que acontece nos ritos, que veremos a seguir, puro contgio, mana, liminaridade, afectao. Portanto, inicio conceituando um corpo-receptculo. Afectos mal-ditos que criam uma mquina de guerra contra a Ordem e o Mesmo. Homens ambguos, via rumores, pais-de-famlia, rapazes-velhos, jovens imberbes que encontram no meio da caatinga suas linhas de fuga s revolues moleculares 19 . Mas o que seria este corpo- receptculo? O corpo-receptculo um corpo atravessado por devires intensos, nem comeo, nem fim, mas meio, inter-ser, extra-ser. A morte to-somente a morte do organismo, em que o devir-vitalidade alcana seu paroxismo quando esttica ao se juntar as celebraes das npcias que so ainda pura aliana, multiplicidade infinita, matilhas, bandos, contgio do corpo-receptculo. Corpos ambguos pelos rumores locais. Construo de um Corpo sem rgos (CsO), experimento, conceito-acontecimento proposto por Deleuze-Guattari (1996):
O CsO o campo de imanncia do desejo, o plano de consistncia prpria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produo, sem referncia a qualquer instncia exterior, falta que viria torn-lo oco, prazer que viria preench-lo). 20
Mas onde ele est? O corpo-receptculo imperceptvel, sem modelo, sem direo, indeterminado. Ele corpo fugidio, corpo-vibrtil, pensamento circulando no sangue e nas veias, estrangeiro em seu prprio territrio, bilnge, multilnge (cf. Khatibi, 1982), para alm do sepulcro da Trade, para alm das Coisas do gnero, para alm das categorias, para alm da histria, pois ele pura geografia. O corpo- receptculo, CsO, uma experimentao sem representao, embriaguez com um copo dgua, o grande porre, nas moitas, dos camponeses de Goiabeiras. Neste sentido, no trato da embriaguez, Lins disserta (2004b):
A embriaguez comea por um ato para assumir a potncia da vida, mas assumir torna-se, sobretudo, libertar, descarregar. A embriaguez no um sonho, e no se sonha estar bbado, pois estar bbado uma experincia e no um sonho. No o sonho que propcio noite, mas a insnia. O novo sonho tornou-se guardio da insnia. A insnia uma vitalidade, a prpria revolta contra o organismo. O __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 147 organismo comanda o sonho e o sono. Os rgos dos sentidos padecem de uma espcie de medo da obscuridade, eles se sentem desarmados. A questo convocada outra vez. A embriaguez delrio artstico, ou sob o signo da esttica do CsO, cujo axioma fundamental a perda de peso, no mediante o regime o regime ainda uma astcia para preservar os rgos, ainda a esttica do juzo mas pelo experimento de um devir-mangue-rizomtico do prprio corpo. 21
Portanto, inicio minha etnografia-experimento com os corpos de Andr, Tadeu, Mrio e Ivo. O ativo e o passivo no intercurso sexual se confundem, nada de estrutura hierrquica para as sexualidades, nos moldes do sistema binrio entre Macho X Bicha, como vimos com Fry & MacRae (1985), nada de representao e de identidade, apenas experimentao. O corpo-receptculo embaralha os nomes, os sentidos, suspende o J uzo, pura margem e contgio. Em uma superao do organismo, Andr, Tadeu, Mrio e Ivo no ejaculam. Mquina de guerra esttica que tem na afectao um contgio rodopiante, intenso, pois o ser para os homens de Goiabeiras que participam- experimentam o rito o ser do desejo, desejo do ser. E Lins (2004b) continua:
Percebemos pouco a pouco que o CsO no de modo algum o contrrio dos rgos. Seus inimigos no so os rgos. O inimigo o organismo. O CsO no se ope aos rgos, mas a essa organizao dos rgos que se chama organismo. verdade que Artaud desenvolve sua luta contra os rgos, mas, ao mesmo tempo, contra o organismo que ele tem: O corpo o corpo. Ele sozinho. E no tem necessidade de rgos. O corpo nunca um organismo. Os organismos so os inimigos do corpo. O CsO no se ope aos rgos, mas, com seus rgos verdadeiros que devem ser compostos e colocados, ele se ope ao organismo, organizao orgnica dos rgos. 22
O corpo-receptculo, de muitos homens de Goiabeiras, no quer ejacular para continuar a se afectar, para se contagiar, pois, como acentuam Deleuze-Guattari (1996), desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexes que supem todo um agenciamento, circuitos, conjunes, superposies e limiares, passagens e distribuies de intensidade, territrios e desterritorializaes mediadas maneira de um agrimensor. 23 Nesse sentido, vejamos o que nos diz Tadeu, sobre a no-ejaculao no intercurso sexual, agenciados nas moitas de Goiabeiras, pelo engendramento dos corpos-receptculos:
No devemos gozar [ejacular o esperma] pois tem muitos homens mais tarde. Como gozar? Voc est louco? Depois de dar duas, ficamos satisfeitos e os machos? Como ficam? Vamos deix-los na mo? Segure esta gala [esperma]! No deixe o seu __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 148 pau encostar em nenhum lugar! Segure, segure mesmo! Pois ainda tem dois esquemas perto do aude e eu, por exemplo, vou dormir na casa do meu primo...vou ficar com ele. J estou cheio de esperma em mim. Juca gozou dentro de mim e Tlio tambm. Hoje ser uma festa! Corra! (Fragmentos de Tadeu, em 2001)
A experimentao substitui toda interpretao da qual ela no tem mais necessidade. O corpo-receptculo, CsO, se revela pelo que ele , conexo de desejos, conjuno de fluxos, continuum de intensidades, porque o corpo-receptculo no uma identidade, pois quando pensamos que o corpo se fixou, se categorizou, se identificou, ele engendra um devir-macho, um devir-mulher, um devir-animal.
FRAGMENTO I: Sabe... eu adoro dar! Agora acontece que alguns machos acabam dando para a gente. Fazer o qu? Ns comemos eles e depois jamais contamos para ningum. Eu prefiro dar, agora se acontecer das coisas mudarem... ah, se o macho for bonito e eu estiver apaixonado, ah... eu como! (Fragmentos de Andr, em 2004)
FRAGMENTO II: Como voc custou a voltar aqui! Nem lhe conto a ltima... voc sabia que Tadeu estava namorando um macho, agora como voc sabe, ele nega tudo! Pois um homem parecido com uma mulher. Que coisa, todo mundo ficava se perguntando: quem a mulher de quem?. um macho da cidade vizinha, cabeleireiro, faz maquiagem. (Fragmentos das conversas com Mrio, 2001)
FRAGMENTO III: Mrio: Eu estou noivo. Vou me casar. Ela uma moa direita. Voc sabe... eu estou amando. Ela me muito carinhosa. Nunca mais irei ficar com estes homens daqui. Isto no tem futuro! [minutos depois chega Andr] Andr: Mrio, hoje tem dois. Vai ser perto da guarita. Disse para todos que voc iria comigo. Corra! (Fragmentos das conversas com Andr e Mrio, 2004)
Ivo, mais uma vez, prepara a moita, o moitel improvisado, como eles dizem. Folhas de mamoeiro servem para forrar o cho. Galhos de jurema so quebrados, torcidos. A catuaba e o rum montilha so escondidos, as camisinhas, quando tm, so colocadas estrategicamente prximas ao local. Chega-se uma hora antes, para averiguar as vizinhanas. A afectao regada com as bebidas e com os espermas. Um banquete indizvel. As cercas de arame farpado muitas vezes servem de apoio, no momento do intercurso. Um malabarismo-experimentao-vida do corpo para evitar a ejaculao dos corpos-receptculo. Corpos se cruzam, se misturam, o tempo urge, pois no h tempo __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 149 para o J uzo do TB. Ivo, Tadeu, Andr e Mrio so puro agenciamento maqunico em prol da philia, do desejo. Cmplices de noites indizveis de afectos, eles no querem lembrar, memorar, pois no se tem tempo para isso. Suas vidas desembocam no acontecimento, nos movimentos contnuos entre o molar e o molecular. Nesse sentido, Deleuze-Guatarri (1996) complementam:
somente atravs do muro do significante que se far passar as linhas de a- significncia que anulam toda recordao, toda remisso, toda significao possvel e toda interpretao que possa ser dada. somente no buraco negro da conscincia e da paixo subjetivas que se descobriro as partculas capturadas, sufocadas, transformadas, que preciso relanar para um amor vivo, no subjetivo, no qual cada um se conecte com os espaos desconhecidos do outro sem entrar neles nem conquist-los, no qual as linhas se compem como linhas partidas. 24
Vejamos, mais um fragmento:
Antroplogo: Lembra de ontem, Andr, quando estvamos indo para o aude, quando levamos aquele rum montilha com um refrigerante de limo? Andr: Que histria esta de ontem? Corra, veja aqueles meninos, esto indo para o aude... apresse o passo, vamos! (Fragmentos das conversas com Andr, em 2001)
No se trata aqui de um corpo-drogado, dependente da Carncia, da Falta, do Mesmo. No uma busca desenfreada por sexo, por parceiros a todo custo. No se trata ainda de represso, de fuga ou de silncio condicionado, mas um esquecimento ativo, produtivo, pois o esquecimento significa transmutao do pesado (das memrias das marcas, lembranas desidratadas em um corpo devedor e culpado) na leveza almejada por Nietzsche e na coragem da superfcie que convoca os novos fluxos da vida como bela arte, ou seja, intensidade que autoriza uma metamorfose permanente de devires, amor fati. No que concerne ao amor fati, Deleuze (1998) disserta:
Amor fati, querer o acontecimento, numa foi se resignar, menos ainda bancar o palhao ou o histrio, mas extrair de nossas aes e paixes essa fulgurao de superfcie, contraafetuar o acontecimento, acompanhar esse efeito sem corpo, essa parte que vai alm da realizao, a parte imaculada. Um amor da vida que pode dizer sim a morte. (...) Vivemos entre dois perigos: o eterno gemido de nosso corpo, que sempre encontra um corpo afiado que o corta, um corpo gordo demais que o penetra e sufoca, um corpo indigesto que o envenena, um mvel que o machuca, um micrbio que lhe faz uma brotoeja; mas tambm o histrionismo daqueles que minam um acontecimento puro e o transformam em fantasia, e que cantam a angstia, a finitude e a castrao. preciso conseguir erigir entre os homens e as obras seu ser de antes da amargura. Entre os gritos da dor fsica e os cantos do sofrimento metafsico, como traar seu estreito caminho estico, que consiste em ser digno do que acontece, em extrair alguma coisa alegre e apaixonante no que acontece, um claro, um encontro, um acontecimento, uma velocidade, um devir? A meu gosto __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 150 pela morte, que era fracasso da vontade, substitui uma vontade de morrer que seja a apoteose da vontade. minha vontade abjeta de ser amado, substituirei uma potncia de amar: no uma vontade absurda de amar qualquer um, qualquer coisa, no se identificar com o universo, mas extrair o puro acontecimento que me une queles que amo, e que no me esperam mais do que eu a eles, j que s o acontecimento nos espera, Eventum tantum. Fazer um acontecimento, por menor que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrrio de fazer um drama, ou se fazer uma histria. Amar os que so assim: quando entram em um lugar, no so pessoas, caracteres ou sujeitos, uma variao atmosfrica, uma mudana de cor, uma molcula imperceptvel, uma populao discreta, uma bruma, uma nvoa. 25
O Corra! dos homens de Goiabeiras para a vida. Afectao que nada tem a ver com Dependncia, Fechamento, Priso, Infra-estrutura do Desejo, mas com o roubo, com o dom. No se trata de uma Eterna Busca, de uma Eterna Caa, mas de contgio, devires imperceptveis, CsO, crueldade e inocncia. Neste sentido, Deleuze (1998) continua:
No acreditamos, em geral, que a sexualidade tenha o papel de uma infra-estrutura nos agenciamentos de desejo, nem que ela forme uma energia capaz de transformao, ou ento de neutralizao e sublimao. A sexualidade no pode ser pensada seno como um fluxo entre outros, entrando em conjuno com outros fluxos, emitindo partculas que entram elas prprias sob esta ou aquela relao de velocidade e lentido na vizinhana de outras partculas. Agenciamento algum pode ser qualificado segundo um fluxo exclusivo. Que idia triste de amor, fazer dele uma relao entre duas pessoas, monotonia, se preciso for, precisaria ser vencida acrescentando a ela outras pessoas ainda. E no melhor quando se pensa deixar o domnio das pessoas reduzindo a sexualidade construo de pequenas mquinas perversas ou sdicas que enclausuram a sexualidade em um teatro de fantasias: algo sujo ou mofado resulta de tudo isso, sentimental demais, na verdade, narcsico demais, como quando um fluxo se pe a girar sobre si mesmo, e a estagnar. Ns tivemos que renunciar, ento, bela palavra de Flix, mquinas desejantes, por estas razes. A questo da sexualidade : com o que mais ela entra em vizinhana para formar determinada hecceidade, determinadas relaes de movimento e repouso? Ela continuar sendo ainda mais sexualidade, pura e simples sexualidade, longe de qualquer sublimao idealizante, quanto se conjugar com outros fluxos. Ela ser ainda mais sexualidade por si s, inventiva, maravilhada, sem fantasia que d voltas, nem idealizao que salta no ar. 26
O rito acontece agenciado pelo dom, entendido aqui no como troca, mas como roubo, pois como trocar, equivaler no Dar-Receber-Retribuir, proposto por Mauss, as intensidades, os afectos e as paixes? Eis uma produo a-significante, produo como processo que excede todas as categorias ideais e forma um ciclo que se refere ao desejo enquanto princpio imanente 27 . Doar-se aqui experimentao. O corpo-receptculo dos afectos mal-ditos, CsO, no espera para esperar menos, no espera a retribuio, pois no se contabiliza, no se espera retorno, no se espera compensao, no se espera equivalncia, no se faz balanos, eis um esquecimento ativo. Os corpos-receptculo __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 151 inauguram na antropologia rural um dom sem contraprestao, pois existem coisas (a paixo, os afectos, por exemplo), como aponta J acques Derrida (1991), que no podemos dar. No momento do encontro, nos grupais nas moitas, corpos entram em parafusos, corpos se misturam, corpos se afectam, perdem o Rosto, perdem o J uzo! Arte da crueldade, pois como disserta Deleuze (1998):
Em seu rosto e em seus olhos sempre se v seu segredo. Perca o rosto. Torne-se capaz de amar sem lembranas, sem fantasias e sem interpretao, sem fazer o balano. Que haja apenas fluxos, que ora secam, ora congelam ou transbordam, ora se conjugam ou se afastam. Um homem e uma mulher so fluxos. Todos os devires que h no fazer amor, todos os sexos, os n sexos em um nico ou em dois, e que nada tm a ver com a castrao. Sobre as linhas de fuga, s pode haver uma coisa, a experimentao-vida. Nunca se sabe de antemo, pois j no se tem nem futuro nem passado. Eu sou assim, acabou tudo isso. J no h fantasia, mas apenas programas de vida, sempre modificados medida que se fazem, trados medida que se aprofundam, como riachos que desfilam ou canais que se distribuem para que corra um fluxo. J no h seno exploraes onde se encontra sempre no oeste o que e pensava estar no leste, rgos invertidos. 28 s
Nesse contexto, chego a alguns questionamentos: como compensar, balancear, o indizvel das sexualidades camponesas? Como instituir o desejo? Como falar em dvidas? Por que o desejo s conhece o roubo e o dom, ignorando a troca? E Deleuze-Guattari (1976) continuam:
Mauss tinha ao menos deixado aberta a questo: a dvida primeira em relao troca, ou ela apenas um modo de troca, um meio a servio da troca? Lvi-Strauss pareceu fech-la sobre uma resposta categrica: a dvida apenas uma superestrutura, uma forma consciente onde se amoeda a realidade social inconsciente da troca. No se trata de discusso terica sobre os fundamentos; toda a concepo da prtica social e os postulados veiculados por essa prtica se acham envolvidos aqui; e todo o problema do inconsciente. Pois se a troca o fundo das coisas, por que preciso que no parea uma troca sobretudo isso? Por que preciso que seja um dom, ou um contra-dom, e no uma troca? E por que preciso que o doador, para mostrar suficientemente que no espera uma troca, mesmo adiada, esteja tambm na posio daquele que roubado? o roubo que impede o dom e o contra-dom de entrar numa relao troquista. O desejo ignora a troca, ele s conhece o roubo e o dom. 29
Nesse sentido, vejamos mais um fragmento de Andr em 2001:
Antroplogo: Como voc vai retribuir o amor de Juca, Andr? Andr: Retribuir? Ah,ah,ah... Que histria esta?
Os afectos mal-ditos encontram no roubo apenas uma memria do futuro, pois cabe louvar a vida que no est ainda inanimada, uma vida sem medo. A tragdia , entre os afectos mal-ditos, positiva. Est marcada por blocos intensivos e no pela __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 152 catarse resignada. Seus corpos fugidios se imiscuem, dom que captura. Andr, Tadeu, Mrio e Ivo se perdem na busca, pois se encontrar se fixar, se identificar, se enraizar. Estes corpos fugidios, rizomticos, so perpassados em suas entranhas, em suas vsceras, por um agenciamento de uma mquina esttica indizvel. Longe de um corpo casto e castrado pelo TB, como explanei no primeiro captulo, pelo contrrio, doravante, como acentua Deleuze, preciso multiplicar os lados, quebrar todo crculo em prol dos polgonos. 30
Encontrar achar, capturar, roubar, mas no h mtodo para achar, nada alm de uma longa preparao. Roubar o contrrio de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e isso que faz, no algo de mtuo, mas um bloco assimtrico, uma evoluo a-paralela, npcias, sempre fora e entre. 31
Vejamos alguns fragmentos, extrados em 2003:
FRAGMENTO I: Antroplogo: Como era o nome daquele menino do stio que voc ficou ontem? Andr: Sei l.. do stio... esqueci de perguntar.
FRAGMENTO II:
(Estvamos em uma guarita, ramos Tadeu, Andr e eu. Repentinamente se aproxima um micro nibus. Descem dele um homem e trs mulheres. Este tal homem assovia para uma das mulheres, em que ela logo responde com um gesto negativo) Tadeu: Est vendo? Pois , elas ficam com estas besteiras, dando uma de mulher direita, pois , enquanto elas fazem isto, ficamos com eles! Veja s o que eu vou perguntar para ele, aprenda!:hoje est quente, no mesmo? Tem um aude aqui prximo, ns aqui estamos indo tomar um banho, quer vir conosco? (Em um sinal bastante comum no vilarejo, como aceite do convite, o homem coa o saco escrotal) Homem: Est calor mesmo, eu estou louco para tomar um banho. Me lavar, tirar esta cueca, lavar meu saco!
FRAGMENTO III: (Na BR 230, Andr e eu estvamos passeando, repentinamente pra um carro, um transeunte que iria da cidade de Iguatu para a cidade de J uazeiro do Norte estaciona o veculo para urinar) Andr: Corra! Pergunte para o macho se tem algum problema no motor do carro, se est acontecendo alguma coisa! Antroplogo: Mas Andr, percebo que no tem nenhum problema no carro! Andr: Ave! Oi cara, algum problema no carro? Meu amigo e eu estamos dando umas voltinhas e vimos voc parado a... sozinho... Homem: Pois ... estou sozinho mesmo... vocs esto afim de me darem? Andr: Paulo [antroplogo], corra! __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 153 Trata-se aqui de rizomas e no de razes. Abre-se um possvel rizomtico, operando uma potencializao do possvel, contra o possvel arborescente que marca um fechamento, uma impotncia. Dom como roubo e no como troca, sem pesos e medidas, sem balanos, pois, e aqui me aproximo novamente de Derrida (2003), como por exemplo, no trato da hospitalidade, existem coisas que no podemos dar. E Derrida disserta:
Passo da hospitalidade, nada de hospitalidade. (...) Tudo se passa como se a hospitalidade fosse o impossvel: como se a lei da hospitalidade definisse essa prpria impossibilidade, como se no se pudesse seno transgredi-la, como se a lei da hospitalidade absoluta, incondicional, hiperblica, como se o imperativo categrico da hospitalidade exigisse transgredir todas as leis da hospitalidade, a saber, as condies, as normas, os direitos e os deveres que se impem aos hospedeiros e hospedeiras, aos homens e s mulheres que oferecem e queles e quelas que recebem a acolhida. Reciprocidade, tudo se passa como se as leis da hospitalidade constitussem, marcando seus limites, poderes, direitos e deveres a desafiar e a transgredir a lei da hospitalidade, aquela que exigiria oferecer ao chegador uma acolhida sem condies. 32
Vejamos ainda o que nos falam Andr e Tadeu:
FRAGMENTO I: Josu quer que eu seja exclusivamente dele. A gente diz que sim, a gente diz que se entrega para ele, mas o nosso desejo fazem o contrrio.... a gente tenta se controlar, mas voc sabe que sem paixo no dar! (Fragmentos das conversas com Andr, em 2002)
FRAGMENTO II: Eu estou tendo um caso com Joaquim. Eu o amo, disse para ele que jamais olharia para outro homem. Ele me disse que s aceitava se fosse assim. Tive que concordar! Mas por que a gente no consegue ficar s com um? Eu no posso deixar os machos nas mos, mas eu amo Joaquim! Curto a amizade dos homens daqui, mas amo Joaquim. Estou confuso, meu pensamento diz que eu tenho que amar Joaquim que honesto, evanglico, bom pai-de-famlia, mas meu corpo, ao contrrio, diz: corra! No posso dar meu amor eterno a Joaquim como ele quer. Mudando de assunto. Hoje, perto da ponte, no se esquea! Temos cinco! (Fragmentos das conversas com Tadeu, em 2003)
Andr, Tadeu, Mrio e Ivo tm suas vidas aliceradas nos encontros, nos acontecimentos. Corpos vibrteis, articuladores ativos dos jogos erticos, cartografias do desejo que contagiam os laos de sociabilidade do povoado. Eles so corpos- rizomticos. Os audes, as roas, as estradas, os labirintos, as casas abandonadas, so inventados. Se os rumores se propagam sobre os corpos afectados, eles os negam __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 154 veementemente, pois os quatro amigos no so fruto do J uzo do TB, como se fossem espcies de antiestrutura ou fora da estrutura, mas humanos demasiados humanos, em uma inveno do CsO, em que a no-ejaculao permite essa perda de rgos, esta leveza radical do ser ser polissemia infinita de devires: devir-macho, devir-viado, devir-mulher, devir-animal, devir-vegetal, continuando a ser afecto mal-dito e assegurando ao devir, no mais a fatalidade do destino, a negatividade a ele atribuda pelo TB, mas a fora positiva. No se trata de imitao, nem cpia, todavia, devires, isto , inveno contnua de sentidos em detrimento de significaes e redundncias vazias.
Eu... Andr de Joo de Lucas, jamais! Nunca estive em casa abandonada nenhuma! Jamais estive nas moitas depois das 22:00hs! Acho isto horrvel! Se eu tivesse um filho e ele fosse para o mato dar, ah... sinceramente, eu abandonava, mas antes dava uma surra de cinta no meio da pracinha, para que todos vissem! (Fragmentos das conversas de Andr. Neste momento estvamos conversando com uma me-de- famlia da vila, em 2003)
O rito de passagem para o grupo dos homens se d, muitas vezes, em encruzilhadas, no-lugares, terceira margem, em que jovens e homens experimentam a acoplagem de reinos. Ser homem, ser mulher, ser bicha, ser ativo ou passivo, nada disso, corpo vlvula-movimento em que o devir-animal, devir-homossexual, devir-louco so elo-passagens para o desejo, para a recordao do futuro. Neste sentido, Lins (2000) conceitua:
Recordar o futuro o projeto da memria! Recordar o futuro inaugurar no corao do homem o bom esquecimento, formado pela trilogia apolnea, pelos trs prazeres inseridos, segundo Apolo, na palavra cantada, apaziguadora das inelutveis preocupaes: Alegria, Amor e sono suave. 33
noite os esquemas, como eles chamam, so criados, movimentados, afectao que nos momentos-acontecimentos engendram linhas de fuga. Corpo-receptculo, molar perpassado pelo molecular, aliana contagiosa de amizade e gozo. Os meninos-homens e os homens-meninos mesclam seus ritos com os devires-animais aos corpos de Andr, Tadeu, Mrio e Ivo. No se trata mais de sries ou estruturas, para nos aproximarmos de Lvi-Strauss (1969), mas como potncia de vida, para alm da reproduo biolgica em moldes da construo terica da ideologia camponesa, pois o corpo-receptculo rfo da estrutura em sua dimenso nmade. Natureza-cultura, a maioria dos camponeses de Goiabeiras tem a iniciao sexual com animais e plantas (galinhas, cabritos, bezerros, porcos, caule da bananeira, __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 155 melancias, cenouras, bananas etc) 34 . Meninos e meninas que desde muito cedo costumam ir a roa com os pais. O saber-fazer campons passagem, aprendizado, habitus, no sentido proposto por Bourdieu, destes meninos-homens e meninas- mulheres. Ao se iniciarem sexualmente com outros homens e com outras mulheres, estes jovens imberbes, geralmente com seus treze a quatorze anos, engendram devir- animal, este que no se contenta em passar pela semelhana, para o qual a semelhana, um obstculo ou uma parada, mas devires imperceptveis que atravessam e arrastam o homem, e que afetam no menos o animal do que o homem. Vejamos o que nos conta Andr, Tito e J osu, sucessivamente, em 2001:
FRAGMENTO I (Andr): Quando eu era pequeno adorava brincar com os meus primos de boinho. Eu era a vaca, meus primos os touros. Eles me comiam. Eu ficava de quatro, eu era a prpria vaca! Eles mugiam e eu ficava calado, acompanhado a corte. Ficvamos todos vestidos, s na hora que eles iam me cobrir [acasalamento] que eu descia as calas. Sempre gostei de brincar de boinho. E como voc sabe, a vaca, como a galinha, do para todos os machos[risos].
FRAGMENTO II (Tito): Comer viado quase a mesma coisa que comer cabrito! No tem tu, vai tu mesmo! Eu quando menino, e at hoje, como viado e quando tenho vontade como uma jumenta nova que tem na roa. Sou casado, cabra-macho. Ora, homem tem que est preparado para o que der e vier!
FRAGMENTO III (J osu): Quando estou comendo os cabritos eles ficam quietinhos. bom demais! Voc sabe que os homens tm necessidades! A gente inventa quando estamos precisando. Tem hora, quando estou pegando uma cabrita, uma galinha, que nem sei mais se sou homem ou virei bode ou galo.
Devir-animal, devir-bode, devir-touro, devir-jumento. Muitos homens de Goiabeiras se contagiam neste agenciamento. Nos confins do roado, nos currais, nos quintais. Natureza-cultura que criao vida. Nada de sonhos, nada de fantasmas, pois o devir animal perfeitamente real. Mas de que realidade se trata? Deleuze-Guattari (1996) acrescem:
Pois se o devir animal no consiste em se fazer de animal ou imita-lo, evidente tambm que o homem no se torna realmente animal, como tampouco o animal se torna realmente outra coisa. O devir no produz outra coisa seno ele prprio. uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que real o __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 156 prprio devir, o bloco de devir, e no os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou. O devir-animal do homem real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal real sem que esse outro seja real. este ponto que ser necessrio explicar: como um devir no tem sujeito distinto de si mesmo; mas tambm como ele no tem termo, porque seu termo por sua vez s existe tomado num outro devir do qual ele o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. 35
O grupal nas moitas pura expanso, propagao, ocupao, contgio, povoamento, filiao, aliana. Eu sou legio!, fascinao do homem dos lobos diante dos vrios lobos que olham para ele, apontam Deleuze-Guattari. Tal qual o acasalamento nos currais e roas que circundam Goiabeiras, homens em bandos, em matilhas, pois dizem que todo animal antes um bando, uma matilha (...) esse o ponto em que o homem tem a ver com o animal. No tornamos animal sem um fascnio pela matilha, pela multiplicidade. 36
O incrvel sentimento de uma Natureza desconhecida o afecto. Pois o afecto no um sentimento pessoal, tampouco uma caracterstica, ele a efetuao de uma potncia de matilha, que subleva e faz vacilar o eu. Quem no conheceu a violncia dessas seqncias animais, que o arrancam da humanidade, mesmo que por um instante, e fazem-no esgaravatar seu po como um roedor ou lhe do os olhos amarelos de um felino? Terrvel involuo que nos chama em direo a devires inauditos. No so regresses, ainda que fragmentos de regresso e seqncias de regresso juntem-se a eles. 37
Em muitos grupais que etnografei-experimentei, homens em bandos, muitos agachados como os animais, enquanto outros os cobriam. No meio da caatinga, a luz da lua, eles se afectavam em silncio. Uns prximos aos outros, uns roubando os outros. s vezes pude presenciar cachorros e bezerros prximos dos moiteis improvisados. Os corpos-receptculo se apoiavam nas cercas, nas rvores. Nos audes os afectos mal- ditos engendravam um devir-sapo-cururu. Acasalamento nas cacimbas, nos audes, nos rios sazonais. Em matilha, Andr, Tadeu, Mrio e Ivo se afectam com os homens, devir- galinha, devir-vaca, devir-animal. Eis o que o J uzo do TB no abarca, os corpos fugidos vontade de potncia do ato criativo. E Deleuze continua:
O que quer dizer o animal como bando ou matilha? Ser que um bando no implica uma filiao que nos levaria reproduo de certas caractersticas? Como conceber um povoamento, uma propagao, um devir, sem filiao nem produo hereditria? Uma multiplicidade, sem unidade de um ancestral? muito simples e todo mundo __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 157 sabe, ainda que s se fale nisso em segredo. Opomos a epidemia filiao, o contgio hereditariedade, o povoamento por contgio reproduo sexuada, produo sexual. Os bandos, humanos e animais, proliferam com os contgios, as epidemias, os campos de batalha e as catstrofes. 38
Se o TB naturaliza condutas, essencializa os gneros, mito admico, corpo- bblico, corpo-mais-valia, o devir animal, com sua subjetividade antropofgica, captura a preza, a faz rodopiar, puro sangue e veia, multiplicidade de termos heterogneos, e de co-funcionamento de contgio, entrando em certos agenciamentos, pois neles que os homens, mulheres e crianas de Goiabeiras operam seus devires imperceptveis.
Combinaes que no so genticas nem estruturais, inter-reinos, participaes contra a natureza, mas a Natureza s procede assim, contra si mesma. Estamos longe da produo filiativa, da reproduo hereditria, que s retm como diferenas uma simples dualidade dos sexos no seio de uma mesma espcie, e pequenas modificaes ao longo das geraes. Para ns, ao contrrio, h tantos sexos quanto termos em simbiose, tantas diferenas quanto elementos intervindo num processo de contgio. Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vm de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das razes, e no se deixam compreender em termos de produo, mas apenas de devir. O Universo no funciona por filiao. Ns s dizemos, portanto, que os animais so matilhas, e que as matilhas se formam, se desenvolvem e se transformam por contgio. 39
As origens das matilhas, do grupal nas moitas, dos afectos mal-ditos, so totalmente outra que a das famlias camponesas e da ideologia camponesa, e elas no param de trabalh-las por baixo, de perturb-las de fora, com outras formas de contedo, outras formas de expresso. A matilha, para Deleuze-Guattari (1996), ao mesmo tempo realidade animal, e realidade do devir-animal no homem; o contgio ao mesmo tempo povoamento animal, e propagao do povoamento animal do homem. Neste sentido, Viveiros de Castro (2002a) ao conceituar o perspectivismo amerndio e a afeco entre homem e animal nos povos indgenas da Amaznia, discorre:
Os animais vem da mesma maneira que ns coisas diversas do que vemos porque seus corpos so diferentes dos nossos. No estou-me referindo a diferenas de fisiologia quanto a isso, os amerndios reconhecem uma uniformidade bsica dos corpos - , mas aos afetos, afeces ou capacidades que singularizam cada espcie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se gregrio ou solitrio... A morfologia corporal um signo poderoso dessas diferenas de afeco, embora possa ser enganadora, pois uma aparncia de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afeco-jaguar. O que estou chamando de corpo, portanto, no sinnimo de fisiologia distintiva ou de anatomia caracterstica; um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 158 das almas e a materialidade substancial dos organismos, h esse plano central que o corpo como feixe de afeces e capacidades, e que a origem das perspectivas. 40
Os homens-bodes, os homens-galos, os homens-touros, ao se afectarem com os animais no vilarejo de Goiabeiras, engendram uma composio, simbiose, que faz com que a cabrita, a galinha, o bezerro se tornem um pensamento no homem, um pensamento febril, ao mesmo tempo que o animal e o homem no so absolutamente a mesma coisa, mas o Ser se diz dos dois um s e mesmo sentido, numa lngua que no mais a das palavras, numa matria que no mais a das formas, numa afectabilidade que no mais a dos sujeitos. Devires-animais que territorializam, desterritorializam e reterritorializam em devir-homem, devir-mulher, devir-homossexual, devires imperceptveis. Vejamos o que nos diz J uca, em 2001:
FRAGMENTO I: J uca: Quando eu estou comendo mulher ou viado, ah... eu viro um touro, um jumento! Antroplogo: como assim? Voc vira um touro ou um jumento? J uca: Aqui na roa, ns somos todos acostumados a comer bezerro, cabrito, galinha. Com as mulheres a gente se casa, mas nunca esquecemos nossas jumentinhas, nossas galinhas...[risos].
Como podemos perceber, J uca engendra seu devir-bicho, devir-animal, afectao. No se trata de uma mera Carncia, de uma Falta, mas confuses entre reinos, npcias. J uca arma sua estratgia, burla com o oficial e com o oficioso. Ele se afecta com os animais, com as mulheres e homens. Ele da ordem da matilha, do bando. No coito com mulheres e homens, J uca se perde no devir-touro, se confunde com o devir-jumento. Ele dupla-captura, uma mquina de guerra, pura experimentao, larpio de intensidades. Ainda nesse contexto, ao tratar da sexualidade, Deleuze-Guattari (1996) acrescem:
A sexualidade coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que so como n sexos, toda uma mquina de guerra pela qual o amor passa. O que no pode ser remetido s deplorveis metforas entre o amor e a guerra, a seduo e a conquista, a luta dos sexos e a briga do casal, ou mesmo a guerra-Strindberg: s quando o amor acabou, a sexualidade secou, que as coisas aparecem assim. Mas o que conta que o prprio amor uma mquina de guerra dotada de poderes estranhos e quase terrificantes. A sexualidade uma produo de mil sexos, que so igualmente devires incontrolveis. A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 159 e pelo devir-animal do humano: emisso de partculas. No preciso bestialismo para isso, se bem que o bestialismo possa aparecer por a (...) No se trata de se fazer de cachorro, como um velho no carto postal; no se trata tanto de fazer amor com os bichos. Os devires-animais so, antes, de uma outra potncia, pois eles no tm sua realidade no animal que se imitaria ou ao qual se corresponderia, mas em si mesmos, naquilo que nos toma de repente e nos faz devir, uma vizinhana, uma indiscernibilidade, que extrai do animal algo de comum, muito mais do que qualquer domestificao, qualquer utilizao, qualquer imitao: a Besta. 41
Andr, Tadeu, Mrio e Ivo so matilhas no meio da caatinga, agenciamento de devires-animais, pois o quarteto encontra nos ritos, na construo do corpo-receptculo, CsO, uma dupla captura, porque o prprio cabrito, ou a galinha, ou o viado e o macho que param de ser sujeitos para se tornarem acontecimentos em agenciamentos que no se separam de uma hora, de uma estao, de uma atmosfera, de um ar, de uma vida. A moita compe-se com o bezerro, como os corpos-receptculo se compem com as juremas da caatinga, como os homens se compem com os audes, e o bicho e a lua cheia se compem juntos. Eis as cartografias do desejo, homens e mulheres em seus devires imperceptveis, pura inocncia. E Deleuze-Guattari (1996) dissertam:
Um corpo no se define pela forma que o determina, nem como uma substncia ou sujeito determinados, nem pelos rgos que possui ou pelas funes que exerce. No plano de consistncia, um corpo se define somente por uma longitude e uma latitude: isto , pelo conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relaes de movimento e de repouso, de velocidade e de lentido (longitude); pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele capaz sob tal poder ou grau de potncia (latitude). Somente afectos e movimentos locais, velocidades diferenciais.(...) Latitude e longitude so dois elementos de uma cartografia. 42
Reinventar o prprio corpo, ir conta o organismo. O nosso quarteto corpo- receptculo philia foucaultiana, prazer que sobretudo amizade. Estar passivo no intercurso sexual no se equivale a Ser (desejo de identidade) bicha, viado, a se fechar no sistema Macho X Bicha, caricatura que no dar conta da passagem-margem no rito. Os homens que depositam (doam) seu esperma para Andr, Tadeu, Mrio e Ivo, doam junto sua amizade-cmplice. Provas de virilidade, comer viado para muitos homens de Goiabeiras, parece ser, na economia amorosa da dominao masculina, e sertaneja, uma necessidade bsica, um habitus. vlido ressaltar que quando muitos homens de Goiabeiras se contagiam com outros homens, quando eles atravessam o corpo-receptculo do Outro, esta passagem- __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 160 margem no ilesa, no apenas sexuada per si, mas afectada, pois como acentua Guy Hocquenghem (1980):
Nossos desejos, porm, encontram seu alimento em todos os lugares. Fazer amor com algum tambm querer transform-lo. Subestimamos esse dado, reduzindo o desejo homossexual ao desejo de dormir com outros homens. 43
Ora, a cada encontro, os homens de Goiabeiras se transformam, se metamorfoseiam, engendram novos devires, eis a afeco de uma filosofia nativa. Os bons encontros, criados no meio da caatinga, fazem dos que se dizem machos e os que se dizem bichas ou viados um acoplamento maqunico, tico e esttico, desejante. Quem o macho de quem? De quem o pnis ou o nus de quem? Pois, nos encontros indizveis existe toda uma afirmao, uma atuao de outra maneira de falar, de ver, de se comportar, pois tais elementos de singularidade molecular podem coexistir e estar implicados em nveis totalmente heterogneos, segundo a natureza dos processos aos quais se encontram incorporados, pois os homens-meninos de Goiabeiras, no meio do rito, inventam sua prpria linguagem, uma lngua estrangeira a sua prpria lngua, no-lugares, margens, que no se deixam capturar, em no cair nesses modos de qualificao e de estruturao que bloqueiam o processo. Vejamos alguns fragmentos, extrados em 2003:
FRAGMENTO I: Quando estou no mato, ah... eu no penso mais nada. No d tempo pensar. (Andr, no mato, em 2001)
FRAGMENTO II: Eu gosto de mulhe! Eu respeito todo mundo. Acho que cada um deve levar a vida que quiser! Eu nunca fiz sexo com viado, pois meu negcio mulher mesmo! Respeito, mas mulher bom demais! Elas so cheirosas, sabem agradar um homem... Eu dou duas, dou quatro de uma vez, pode perguntar, as mulheres nunca reclamaram de mim, sou cabra-macho, eu dou conta... ah... que teso... Voc no quer ir ao aude comigo? Cabra, estou afim de dar um mergulho. [Neste nterim, Tlio coa o saco escrotal e se excita] Vamos l, Vamos! Chega de conversa! (Tlio, convidando o antroplogo, em 2003)
FRAGMENTO III: Para que falar? Corra, s faa isso, corra! (Tadeu, na igreja, no trmino da missa, em 2001)
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 161 Os homens de Goiabeiras, nos instantes do rito, engendram tambm um devir- criana. A linguagem o berro, o grito, o choro. O vocabulrio o dos sussurros, o dos suspiros, da pele suada e lisa, pura inocncia. Quando eu estava com Lucas, ele s falava: vai! Toma! no isto que voc quer? Toma! A... toma, toda tua... vai! Vira! Leva! Vai! a... vou gozar! Ah... ah... Vai! toma seu viado... chupa! engole! (Andr, em 2001). O devir-criana brinca com o corpo, o baguna, Andr toca-inventa o pnis de Lucas fazendo arte como as crianas. Mas o que engendrar um devir-criana? Guattari & Rolnik (2005) exemplificam as peripcias do devir-criana:
A atitude da criana que ganha do pai um piano de brinquedo para que tome amor pela msica desde cedo; ao invs de bater nas teclas, como manda o design do instrumento, esta criana enfia a mo por baixo e comea a dedilhar diretamente as cordas, ou bate no brinquedo para que as cordas vibrem e produzam um rudo agradvel. Ou seja, a criana inventa uma maneira inteiramente nova de se relacionar com o instrumento. 44
O devir-animal, o devir-criana, o devir-homossexual, o devir-macho, devires imperceptveis que fazem do pensamento pura inveno. Um estupro na Razo, no J uzo do TB, para me aproximar aqui de Artaud, pois o essencial no est nas formas e nas matrias, nem nos temas, mas nas foras, nas densidades, nas intensidades. No dia seguinte o rito se revigora, novos encontros, outros acontecimentos. Andr marca novos esquemas, ele faz acontecer, se multiplicando, agenciamento de um coletivo. Andr convida Tadeu, amizades no indizvel das sexualidades camponesas, Tadeu corpo-fora ao. Cumplicidades que perfiguram a afectao. Tadeu, ao acompanhar Andr no banquete antropofgico dos afectos mal-ditos, parte mal-dita do rito-processo-margem. Vejamos alguns fragmentos, extrados em 2002:
FRAGMENTO I (Andr): Sempre levo Tadeu. interessante ir para o mato em pares. Chamamos os machos, escolhemos quem vai ficar com quem. A, no prximo encontro, a trocamos os pares. A ltima vez, Tadeu ficou com Juca e eu fiquei com Tlio. Por que Tadeu j tinha ficado com Tlio e eu com Juca. No grupal todos ficam prximos uns dos outros. A gente transa olhando os outros transarem. Ns nos agarramos na cerca ou em uma rvore enquanto eles metem. Eles gritam, ficam chamando a gente de viado, de minha mulherzinha e s vezes de minha cabrita.
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 162 FRAGMENTO II (Tadeu): Quando eu transei com Joaquim foi assim... Ele s falava: Vai! Vira! Chupa! Toma! Depois que ele gozou, nunca mais ficamos. Foi s aquela vez. Hoje ele est casado. Pai-de-famlia, homem-de-bem. Ainda me lembro daquele encontro [bom encontro], mas nunca comentamos sobre ele, nunca falei com Joaquim sobre ele. Quando o vejo... ah... a gente lembra, lembra o quanto foi bom. Hoje estou transando com o filho dele e com dois irmos dele... ele sabe, porm finge que no... mas a...ah, outra histria...
FRAGMENTO III (Matias) : Ah... eu gosto de comer viado discreto! A gente come e eles ficam na deles. Por que viado tem que ser macho, ficar na sua! Viado afetado, a gente pe para fora daqui! Somos todos de famlia-de-bem!
No Fragmento I, Andr nos fala do roubo e do dom. Sua amizade-intensidade com o amigo Tadeu, sua cumplicidade, o faz convidar Tadeu a se afectar com os homens de l. No h aqui, o casal, o julgamento, a dvida, apenas ddivas roubadas, paixes sem medidas, sem balanos. No Fragmento II, o indizvel das sexualidades camponesas. Aps o experimento-acontecimento, surge o no-dito, a cumplicidade, o nada a oficializar. No Fragmento III os esteretipos em confuso. Viado tem que ser macho, peripcias do desejo. Abrindo um parntese, pois daria uma outra dissertao, o indizvel das sexualidades camponesas ganha flego aps os ritos iniciticos, com o mesmo, para alguns homens goiabeirenses, que, geralmente, no incio do namoro ou noivado com mulheres, esquecem tais ritos, isto , homens que se iniciam sexualmente com outros homens e depois, quando do namoro, noivado ou casamento com as mulheres, o esquecimento, o no-dito, em que o indizvel das sexualidades perpassa tais relaes clandestinas. Acompanhei alguns casos, em Goiabeiras, de homens que aps o casamento, se silenciaram, no falam mais sobre suas experincia com homens. Em campo, ao conversar com muitos pais-de-famlia que no faziam parte dos circuitos amorosos, nas moitas de Goiabeiras, sempre, depois de longas conversas sobre roa e chuva, deixavam escapar que, na infncia, eles mantinham casos espordicos com os primos ou amigos, mas que, aps conhecerem as mulheres, isto foi deixado para trs, pois no so coisas para ser mais comentada. Vejamos o que nos diz J os, pai-de-famlia, 47 anos, em 2001:
Eu j comi viado, foi na infncia. Mas sou macho! Hoje meu negcio mulher!
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 163 Corpos-receptculo que emana linhas de fuga. Trs ditados populares, no que tange ao intercurso sexual, no vilarejo de Goiabeiras, podem aqui nos servir para exemplificar tais agenciamentos: 1) Tem que ser macho para ficar em baixo de outro macho!; 2) Todo homem tem direito a sete mulheres e uma banda! e 3) Cu de bbado no tem dono! Quem o macho de quem? Quem a mulher, o viado e o macho? A banda de mulher no seria um devir-mulher no homem? O macho que fica em baixo de outro macho no seria um devir-macho no viado? Eis o que o sistema Macho X Bicha proposto por Fry & MacRae (1985) no compreende, as linhas de fuga, as criaes dos corpos contra a Ordem e o Mesmo, pois a ordem do discurso conforme dos tericos da homossexualidade, e da campesinidade, continuam a traar, ordenar, uma misso sobre o Outro. Como exemplo ilustrativo, recobro a seguir a paixo segundo Mariano, como um experimento-vida que configura uma mquina de guerra tica e esttica que movimentam os afectos mal-ditos no vilarejo rural de Goiabeiras.
Inocncia e Crueldade: A Paixo Segundo Mariano
Mariano tinha 69 anos quando o conheci em 2000. Um rapaz-velho bastante popular no vilarejo, em que os rumores locais faziam dele um afecto mal-dito. Morava sozinho em uma rua afastada do centro. Em vrias conversas-encontros com ele, sua vida-experimento me foi reinventada, revisitada, por suas palavras-corpo apaixonadas pelos homens goiabeirenses. Ele me narrava com as veias, com o sangue, com o nus, seus bons encontros. No se tratava de uma confisso ou remisso, mas de um corpo rodopiante que inventava a vida, que burilava com o J uzo, que descrevia seus experimentos-acontecimento, entre suspiros indizveis com os mais variados homens de l. Muitos rapazes e pais-de-famlia o visitavam, s escondidas, em que o indizvel das sexualidades camponesas movimentava os laos de sociabilidade, de afectividade e de amizade dos homens do lugarejo com Mariano. Portanto, o que se segue a paixo segundo Mariano, atravs de seu contgio, atravs de suas vibraes das vsceras, do orifcio desejante do nus. Narrativas regadas com o corpo, com uma violncia cruel que a paixo, o pensamento. Desconforto perene, pois o J uzo do TB, campo das certezas e dos modelos, no o pegava mais. Antes de sua morte, Mariano explodia em __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 164 afectao: Esta doena [o cncer] est em levando, di tudo, estou longe de l, nesta fria Fortaleza. Saudades dos homens de l, saudades do meu Alexandre, saudades dos fuxicos. Estou aqui, longe de todos. Voc tem notcia de Alexandre? s isto que me interessa! Que fogo a paixo... que fogo... (Fragmentos das conversas com Mariano, em 2002). Antes de Mariano ser acometido pelo cncer, no incio das minhas pesquisas de campo, ele estava lcido, em plena terceira idade, homem-menino, perpassado por devires imperceptveis, por uma memria ativa. Sua vida era agitao. Homens e meninos das mais variadas ruas e stios o visitavam. Amigo de todos, Mariano era um caso mpar das peripcias do indizvel das sexualidades. Em Goiabeiras, seus experimentos com os homens aconteceram muito cedo. Seu corpo foi tomado pela paixo por primos, amigos, em que Mariano era corpo-receptculo que presenciava, experimentava a pouca experincia de muitos, eu quebrei muitos cabrestos [rompimento da pele da glande do pnis] dos homens daqui e experimentei as gozadas rpidas de muitos meninotes e o nervosismo de muitos querendo provar que so machos. (Fragmento das conversas com Mariano, em 2001) Nesse sentido, vejamos o que nos declara Zeca, 17 anos, solteiro, um dos amigos-amantes de Mariano, em 2002:
Sabe... Quando Mariano morreu, o sino da igreja tocou, disseram que todos os cabras-machos daqui agarram o saco em sua homenagem, inclusive eu agarrei no meu!
Mariano uma mquina esttica desejante, engendrada por seu devir-pedagogo. Aprendizagem de vida, ao iniciar, via ritos, os imberbes nos solos movedios das sexualidades, das intensidades e das paixes, Mariano fazia os jovens goiabeirenses agenciarem um devir-homem, um devir-macho, um devir-homossexual. Mariano pode ser coroa, mas o macho aqui sou eu! Sou eu que o como! (Fragmento das conversas com Ivan, 14 anos, em 2001). O sexo oral e anal experimentado. Viado chupa melhor do que muitas mulheres daqui! Viado para ser comido mesmo. bom demais quando eles aliviam nossas necessidades! (Fragmentos de Lucas, em 2002). Mariano para ser comido sem histrias de amor, sem memria do casal, sem memria das marcas, sem memria das palavras, pois se as esposas, as namoradas, so para o amor, para o matrimnio, para a histria de casal, como acentua os bons costumes, __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 165 Mariano, Tadeu, Andr, Mrio e Ivo so para o prazer, para os coitos apressados, pois como conceitua Lins (1997) s se come o que no se ama. Mariano, rapaz-velho, celibatrio, nada tem a ver com reserva estratgica casa camponesa ou devotado aos seminrios ou aos mosteiros, ele, pelo contrrio, corpo- receptculo ao gozo, s amizades indizveis, ao que o Olho do sistema Macho X Bicha no alcana, Mariano paixo vibrtil e no um ato institucionalizado. Neste sentido, em O combate da castidade, Foucault (1987) ao tratar do celibato religioso entre os monges catlicos, disserta:
Nesse ascese da castidade, podemos reconhecer um processo de subjetivao que relega para a distncia uma tica sexual centralizada na economia dos atos. Mas necessrio sublinhar logo duas coisas. Esta subjetivao indissocivel de um processo de conhecimento que faz da obrigao de procurar e de dizer a verdade de si mesmo uma condio indispensvel e permanente dessa tica; se existe subjetivao, ela implica uma objetivao indefinida de si e por si indefinida no sentido de que, no tenho jamais sido adquirida definitivamente, ela no tem um termo no tempo, e no sentido de que necessrio levar to longe quanto possvel o exame dos movimentos do pensamento, por mais tnues e inocentes que possam parecer. Por outro lado, essa subjetivao em forma de busca da verdade do eu se efetua por meio de complexos relacionamentos com o outro. E de diversos modos: porque se trata de desemboscar em si o poder do Outro, do Inimigo, que a se oculta sob as aparncias de si mesmo; porque se trata de travar com esse Outro um combate incessante, do qual no se poderia sair vencedor sem o auxlio do Todo- Poderoso, que mais poderoso que o Outro; porque, finalmente, a confisso aos outros, a submisso a seus conselhos e a obedincia permanente aos diretores so indispensveis a este combate. 45
Vejamos mais alguns fragmentos, extrados em 2000:
FRAGMENTO I: Gosto de morar sozinho. Sempre tem algum l em casa. Os machos dormem, se alimentam. Eu adoro fazer um caf, comprar uns pes e queijo para agrad-los. J fiquei com muitos daqui. (Fragmentos das conversas com Mariano, em 2000)
FRAGMENTO II: A gente sempre comeu Mariano. Ele mora sozinho. E quando precisamos de um dinheiro para ir a uma festa ou quando estamos com fome, ele nos abastece. E ainda tem as nossas necessidades de homem, que ele tambm nos alivia. (Fragmentos das conversas com J uca, em 2000)
No se trata aqui de troca, mas de roubo e de dom. Mariano, em sua paixo pelos homens, se doa, agrada os rapazes e os pais-de-famlia. Porm, no h retorno, pois a paixo que Mariano aparentemente poderia esperar, por parte dos homens, eles __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 166 no a podem dar. Ela, a paixo, roubada, capturada, pelos homens, Mariano dom sem contraprestao, sem equivalncias, nada de dvida, pois como equivaler o afecto? Como esperar retorno de algo to singular e individual como a paixo? O que tento demonstrar so os enigmas do dom, como acentua Godelier (1996). Os agrados de Mariano nada mais so que o extravasamento de sua paixo, sua intensidade, sua afectao, sem esperar retribuio ou equivalncia de afectos. E Godelier (1996) acresce:
Mas no nos esqueamos que se os amigos se escolhem, no se escolhem os irmos, as irms ou os co-iniciados. Entre amigos, quer sejam do mesmo sexo ou de sexo diferente, existe entreajuda sem obrigaes de retribuio, mas sabendo que se pode contar com o outro, d-se, partilha-se. Em suma, a amizade uma relao entre indivduos no aparentados, normalmente (mas no necessariamente) da mesma gerao, que manifestam os seus sentimentos atravs de gestos de entreajuda e trocas de ddivas, de presentes. 46
Mariano, freqentador assduo da Igreja de So Sebastio, era amigo de todos, das beatas, dos agricultores. Sempre pronto para doar-se ao Outro, a ambigidade dos rumores no abalava, aparentemente e paradoxalmente, seu prestgio de homem de bem. Um homem pobre, mas visto como digno. Gostava muito de ler na biblioteca particular do lugar, e foi nesta ambincia, quando estvamos as ss, haja vista que a freqncia na biblioteca mnima, que ele me narrava sua paixo pelos homens de Goiabeiras, sua vida como pura experimentao. Nesse sentido, o rapaz-velho, o celibatrio Mariano, contradiz o que pensam Bourdieu (1962) e ONiell (1983) ao tratar do celibato como uma categoria quase assexuada ou devotada s estratgias de compensao nas sociedades camponesas, como o caso dos filhos de famlias abastadas com as jornaleiras pobres em Fontelas, Portugal, como vimos no primeiro captulo. Em Goiabeiras, o rapaz-velho tem sexo, desejo, paixo. Diferente de ser apenas esta reserva, ele sobretudo uma mquina desejante, afectos. Mariano, e no s, um exemplo de que o rapaz-velho, o filho solteiro, no passivo, recusa-se o destino abrupto da expulso funcional ou a realocao na funcional estrutura camponesa, professadas no TB. No perodo de pesquisa de campo, Mariano estava junto com um homem de fora do lugar, pai-de-famlia, o amante-amigo Alexandre que o visitava freqentemente. Porm, sua amizade se estendia para alm de Alexandre, para alm do casal monogmico. Mariano tinha o vilarejo como o Grande Amigo. Sou amigo de todos! __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 167 Conheo mais da metade dos homens daqui! Muitos passaram pela minha cama, muitos fiquei nas roas, na Lavanderia Pblica, nos stios. Sou amigo de todos, morrerei aqui, pois a minha terra, amo a minha terra, amo os homens deste lugar! (Fragmentos de Mariano, em 2001). Sua paixo nada tem a ver com a Falta, com a Carncia, mas com cartografias do desejo, com os bons encontros.
Mariano: Quando Alexandre vai l para casa, ele disfara. Ele grita: COELCE! [Companhia de Energia Eltrica do Estado do Cear] a eu sei que ele, que ele veio me ver. Eu sou apaixonado por este homem! Antroplogo: E Tlio, Juca, Jos, Tiago etc? Mariano: So amigos tambm. Qual o problema? Somos todos filhos deste lugar! (Fragmentos das conversas com Mariano, em 2001)
Mariano engendra devires imperceptveis. Devir-pedagogo, devir-pai, devir- mulher, devir-homossexual, devir-criana. Sua vida-experimento da ordem da crueldade e da inocncia, pois ele estuprou a Razo, a Certeza, a Ideologia Camponesa, o J uzo, o Texto Brasileiro sobre o Rural. O devir-pedagogo de Mariano experimenta- ensina a violncia da paixo, a crueldade da amizade, a fora da vida, eis porque, no J uzo do TB, quer-se sempre falar no lugar dos outros, pelos outros.
Eu adoro ensinar os machos a serem educados! A serem honestos e bons! Quando eles vo l em casa, sempre h mimo. Sempre compro alguma coisa, pois interessante que haja a festa, que eles saiam satisfeitos. Quando um amigo est precisando de uma ajuda, de uma casa para transar com um outro macho ou quando uma amiga tambm precisa, dou um jeitinho. S no pode deixar um macho na mo! (Fragmentos das conversas com Mariano, em 2001)
Aprendizado de vida, amizades indizveis. Geraes e mais geraes se iniciaram com o corpo maqunico desejante de Mariano. Seu corpo-receptculo mquina de guerra contra a naturalizao de muitas teorias sobre sociedades camponesas. Paixo cortante, nmade, que metamorfoseia os homens de Goiabeiras, que os fazem passar dos meninos aos homens e dos homens aos meninos em um infinito processual, que os fazem se perder no encontro, pois Mariano aprendeu a pensar com o nus, a caminhar com a cabea e a rodopiar com as vsceras. Vejamos mais alguns trecho das conversas com Mariano, no trato da iniciao de muitos rapazes, em 2002:
Eu j dei para muitos homens daqui! Para pai e depois filho e teve um que cheguei a pegar o neto! Homem tem necessidade, voc sabe disso! Cuido deles, ajudo eles. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 168 Teve um que chegou para mim e disse: Dizem por a que meu filho j est pronto, anda pegando uns viados a. cabra-macho!. Entendi o que ele queria me dizer. Aqui, as putas so poucas, os meninos acabam procurando a gente. Sou amigo de vrios! Somos todos cmplices neste lugar!
Abrindo um parntese, vlido ressaltar que no h prostbulos em Goiabeiras. O prostbulo mais prximo fica a 20km, na cidade vizinha. Neste sentido, a prostituio e suas prerrogativas no se aplicam neste contexto etnogrfico. Trata-se de amizades, de dom, de roubo, de paixes e de afectos. Os agrados, presentes, so da ordem da intensidade da paixo e no do pagamento ou da dvida. Quando, em campo, em 2002, perguntei a um homem de Goiabeiras se ele faria sexo por dinheiro, ele veementemente me respondeu: me respeite, sou homem de bem! Fala-se de agrado, de comida, de pagar um ingresso para as festas locais, mas no de preos ou tabelas, por enquanto. O devir-pedagogo pura afectao. Mariano inicia os meninos em seu processo de devir-homem, devir-mulher, devir-homossexual. Nada de ponto fixo de transio, mas puro contgio, matilha. No falo aqui de estrutura, de identidade, mas de um devir- homem nos meninos e um devir-meninos nos homens, homens e meninos que quebram o cabresto com Mariano, nada tem a ver com gnero, com machismo ou virilidade a toda prova, mas com afectividade, com amizade. No se trata de representao, de atuao, mas agentes na paixo, anlogas s peas do go territorializadas, desterritorializadas e reterrritorializadas, pois ao perguntar, no incio da pesquisa se Mariano se via como homossexual, vejam sua resposta:
Antroplogo: Voc homossexual? Mariano: Eu homossexual? Jamais! Que histria esta? Nunca fiquei com nenhum homem daqui! (Fragmentos das conversas com Mariano, em 2000)
Eis o indizvel das sexualidades camponesas. Nada a declarar, nada a oficializar. Mariano multido, nada a ver com identidade prt--porter. Sua vida se pauta no experimento, na contaminao da matilha. O devir-animal de Mariano, caa e caador, comido pelo Outro. Devir-canibal, npcias entre reinos.
No penso em mais nada quando estou com os machos. Eles so a minha fora, a minha vida. Dane-se se h fofoca neste lugar! J dormi com vrios. Vou lhe contar: Alexandre quando vem l para casa, eu armo a rede, arrumo a cama. Primeiro ele se deita na rede, ficamos os dois na rede. Ele me beija, ficamos horas na rede sem falar nada um para o outro, nada mesmo! Depois ele se deita na cama, diz que me ama. Ento eu caio na cama, fazemos amor noite inteira. J vi as fotos dos filhos __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 169 dele. Muitos bonitos! Ele casado na cidade vizinha. (Fragmentos das conversas com Mariano, em 2001)
A paixo segundo Mariano produz uma gramtica da vida polissmica. Em 2002, Tadeu, Andr e eu estvamos em uma das barracas de palha, coordenadas pela Igreja matriz, confeccionada para os dez dias da Festa de Janeiro, quando repentinamente se aproxima Mariano e Alexandre, nos cumprimentam e sentam em uma mesa ao lado. No decorrer da noite, aps algumas cervejas, Mariano comea a declarar sua amizade por Alexandre e o beija na boca, rapidamente. Veja antroplogo que paixo! Disse Mariano baixinho, ao se aproximar de mim, em um gesto audacioso, quebrando o indizvel das sexualidades. Aps, aquele acontecimento, no outro dia pela manh, Mariano negava tudo. Nunca o beijei! Onde voc viu isto? No se trata aqui de um delrio, mas de uma estratgia contra os rumores locais. Porm a audcia de Mariano ao beijar Alexandre s refora minha hiptese sobre a fora da paixo, esta que o TB pouco se atenta, deixando-a reduzida e subordinada ao Ns. Vejamos mais um fragmento:
FRAGMENTO I: Aprenda! Negue tudo sempre. Quando voc extrapolar as coisas, algum ver, as negue! No confie nunca em ningum! Nunca assuma nada! Aqui as coisas no so fceis. Minta mesmo! Nunca deixe sair da sua boca nenhuma besteira. O povo daqui no perdoa! Negue, at mesmo para os que voc acha que so seus amigos! (Fragmentos das conversas com Mariano, em 2002)
Mariano no tem tempo a perder. Sua paixo pela vida movimento, acontecimento, linhas de fuga do TB. Seu corpo-receptculo para o gozo. Gozo com o Mesmo, com a philia. Eis alguns fragmentos da vida-experimento de Mariano. No se trata de um caso singular, isolado, mas processos de territorializao, desterritorializao, reterritorializao dos corpos em constante devir tambm no campo. Mquinas de guerra esttica que burila o molar perpassado pelo molecular, que faz acontecer outros modos de vida, longe da Caricatura, da Ordem, de uma naturalizao, substancializao, essencializao do que se categoriza como campons.
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 170 Adeus Ao Corpo Campons
Como foi explicitado no primeiro captulo, a doutrina do J uzo do TB atribui-se a cada corpo uma funo, um lugar-priso de onde ele no deve sair. Lcus do Dever e da Obrigao Moral, a doutrina do TB, como vimos, traada por um plano hierrquico, corpo-mais-valia, corpo-mutilado, corpo-funcional, corpo-bblico, corpo- assim, em que a cabea (pensante) mais importante que os ps (andantes). Neste sentido, ao analisar o conceito J uzo em Deleuze, Lins (2002a) acresce:
O juzo repousa, de fato, numa espcie de agenciamento maqunico que visa a uma totalidade significante, a um organismo. O signficante, a forma, a idia superior povoam a doutrina do juzo. No topo da pirmide desta sombria organizao encontra-se a personagem conceitual do padre. 47
Para alm do Bem e do Mal, h um modo de viver, de experimentar, uma maneira de escapar, pois os afectos mal-ditos so a produo de uma coisa que dela se desvincula para devir independente, ou para ser um bloco de sensaes. Eles aspiram variao, modificao, escapam-se da petrificao, das estruturas rgidas, do modelo estabilizado e fechado do imaginrio institudo sobre o corpo campons, pois os afectos mal-ditos se abrem sem cessar s singularidades que os sacodem. Eis a inveno de uma mquina esttica desejante, uma filosofia nativa, como vimos neste captulo, um rompimento com o corpo casto e castrado do campons, para territorializar, desterritorializar e desterritorializar o corpo. Neste sentido, Lins continua:
Experimento, pois, como Mquina de Guerra, alheio perspectiva do juzo, que reduz o pensamento conscincia e permanece prisioneiro de uma imagem dogmtica daquilo que significa pensar. Ao impor como verdadeiro aquilo que j formalmente conhecido, isto , o pensamento que deve ser pensado, os filsofos do juzo fazem da Filosofia uma empresa de reconhecimento. 48
O corpo-receptculo insuportvel para o TB, pois o implode e o explode em mil plats, pois os afectos mal-ditos no precisam mais de organismos. Neste contexto, e aqui me aproximo de Lins (2002a), anunciar a primazia do organismo nomear um bloco de pensar, transformando-o em um corpo-peneira, corpo drogado, vaso trincado, de onde escorre sem cessar a gua que sustenta o corpo, extenuando-o 49 . neste sentido, fazer da conscincia uma potncia de julgar a validade de proposies e de valores dos seres e das coisas transformar a antropologia rural em um tribunal. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 171 No TB, tudo linear, tudo dado de antemo, impossvel neste contexto dar conta da no-lgica do pensamento, daquilo que engendra pensar o pensamento. O que tentei demonstrar nestas pginas foi a terceira pessoa do acontecimento, o it em Clarice Lispector (1990), que no parece com os dois outros (he e she), e que permite dar ao pensamento sua velocidade infinita e sua criao. Os corpos fugidios dos afectos mal- ditos do Adeus ao Corpo Campons. Nada mais a interpretar, nada mais a oficializar, nada mais a resgatar. Eis as mltiplas possibilidades do corpo. Se o TB naturaliza condutas, se o J uzo da campesinidade delineia uma sexualidade no singular, mito admico sobre o corpo, a tica e a esttica dos afectos mal-ditos, rfo de organismo na sua dimenso nmade, rodopiam os plos e se espraiam no meio. Homens, mulheres e crianas em devires imperceptveis. O corpo dos goiabeirenses e para alm deles, tem vsceras, veias, sangue, nus, vagina e pnis. O Adeus ao Corpo Campons se d atravs dos orifcios do corpo, do andar com a cabea, do defecar com os ps, do saltar com as orelhas. Profunda desorganizao que faz dos homens e mulheres em Goiabeiras um experimento do CsO. Eis as revolues moleculares que subjazem as estranhas do indizvel das sexualidades camponesas. Matilha, contgio, de um corpo paradoxal, anlogo as mnodas, reinventadas por Tarde, subjetividades antropofgicas como conceitua Rolnik. O que um campons? O que a ideologia camponesa? O que o campesinato? Identidades e modelos fadados caricatura de um nostlgico iderio sobre o rural. Modelos fabricados que no do espao ao corpo transbordar, se reinventar, se afectar. Um iderio que institui, sobretudo, o desejo, que castra o homem rural brasileiro. curioso como tais correntes ideolgicas desde a dcada de 40 at os dias atuais continuam apregoado uma Ordem do Discurso fixa, fechada em seu J uzo, um periclitante retorno ao Mesmo. O campons doravante se perde, imenso rio de variabilidade que perpassa o corpo, finalmente ele pode gozar. Eis o que trao, a crueldade de um pensamento sem imagens nem pressupostos, auto-referencial, violentado pelo ser ao qual ele se iguala, desenha como que o eco do movimento de uma arte, passando da cpia de uma vida modelada, julgada, para a produo intensiva do real. Os afectos mal-ditos acontecem nesta escrita-experimento antropolgico, pois com Deleuze (1998):
O desejo nunca deve ser interpretado, ele que experimenta. 50 __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 172
NOTAS
1 Sobre a criao de uma mquina esttica do desejo, Guattari (2000) conceitua: As mquinas de desejo, as mquinas de criao esttica, pela mesma razo que as mquinas cientficas, remanejam constantemente nossas fronteiras csmicas. Por essa razo, elas devem tomar um lugar eminente no interior dos Agenciamentos de subjetivao, eles mesmos chamados a substituir nossas velhas mquinas sociais, incapazes de seguir a eflorescncia de revolues maqunicas que fazem explodir nosso tempo por todos os lados. GUATTARI, F. Caosmose. So Paulo: EDITORA 34, 2000, pp. 117-118. 2 Isto , ao mesmo tempo que experimenta novas subjetividades, esquece e cria uma memria-outra, que no de negao ou revisionismo histrico negao da memria mas inveno, pelo esquecimento ativo de memria revisitada. Tradio sim, contudo, nem repetio, nem imitao, mas criao constante de outros modos de vida, que atravessam tambm uma economia do corpo e do desejo. 3 GUATTARI, F & ROLNIK, S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: VOZES, 2005, p. 46. 4 Idem, p. 47. 5 Idem, p. 81. 6 Idem, p. 85. 7 Idem, p. 141. 8 Idem, p. 147. 9 FRY, P. & MACRAE, E. O que homossexualidade. So Paulo: ABRIL CULTURAL/EDITORA BRASILIENSE, 1985, p. 45. 10 DEL PRIORE, M. Histria do amor no brasil. So Paulo: EDITORA CONTEXTO, 2005, p. 48. 11 LISPECTOR, C. gua viva. Rio de J aneiro: FRANCISCO ALVES EDITORA, 1990, p. 59. 12 GUATTARI, F & ROLNIK, S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: VOZES, 2005, p. 309. 13 Por uma questo tica, isto , para preservar a intimidade, as sexualidades, no povoado, as referncias bibliogrficas sero omitidas. 14 Sobre outros vocbulos no trato das sexualidades no serto, ver SANTOS, F. Sangue e sexo no serto: a vida sexual em cangaceiros e pedra bonita de jos lins do rego. Braslia: UNIVERSIDADE DE BRASLIA, 1990. (Dissertao de Mestrado). 15 Os nomes dos personagens histricos tambm so fictcios. 16 AZEVEDO, T. As regras do namoro antiga: aproximaes socioculturais. So Paulo: TICA, 1986, p. 75. 17 GUATTARI, F & ROLNIK, S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: VOZES, 2005, p. 213. 18 TURNER, V. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrpolis: VOZES, 1974, p. 117 grifo meu. 19 A problemtica que chamo de revolues moleculares no passa prioritariamente pelo dilogo. Essas revolues passam pela experincia de instaurao de processos concretos que encaram a problemtica, independentemente do fato de as pessoas pensarem isso ou aquilo. GUATTARI, F. Cosmose. So Paulo: EDITORA 34, 2000, pp. 188-189. 20 DELEUZE, G & GUATTARI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3, So Paulo: EDITORA 34, 1996, p. 15. 21 LINS, D. Juzo e verdade em Deleuze. So Paulo: ANNABLUME, 2004b, p. 76. 22 Idem, p. 21. 23 DELEUZE, G & GUATTARI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3, So Paulo: EDITORA 34, 1996, p. 22. 24 Idem, p. 59. 25 DELEUZE, G. & PARNET, C. Dilogos. So Paulo: ESCUTA, 1998, p. 80. 26 Idem, pp. 117-118. 27 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de J aneiro: IMAGO, 1976, p. 19. 28 DELEUZE, G. & PARNET, C. Dilogos. So Paulo: ESCUTA, 1998, pp. 60-61. 29 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de J aneiro: IMAGO, 1976, p. 235. 30 DELEUZE, G. & PARNET, C. Dilogos. So Paulo: ESCUTA, 1998, p. 27. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ 173
31 Idem, p. 15. 32 DERRIDA, J . Anne dufourmantelle convida Jacques derrida a falar sobre hospitalidade. So Paulo: ESCUTA, 2003. 33 LINS, D. Esquecer no crime. In. LINS, GADELHA e VERAS (Orgs.) Nietzsche e Deleuze. Rio de J aneiro: RELUME DUMAR, 2000, p. 59. 34 Sobre as lendas na Idade Mdia no trato das relaes com os animais e plantas, Keith Thomas (1989) discorre: Tambm se acreditava, e muito, que pudessem nascer filhos da unio sexual entre homens e animal. Alguns achavam que o resultado seria ou humano ou animal, mas a maioria entendia que o produto seria um hbrido. A bestialidade, declara William Gouge, era causa de monstros abominveis. Esse tipo de cpula antinatural, dizia William Ramesey, produziria um monstro, contando em parte com os membros do corpo humano e em parte com os do animal. A essas produes sempre se dava a maior publicidade; como anotou um pregador: Quando nasce um monstro, o pas anuncia. Em Shrewsbury, no ano de 1580, um menino de oito anos foi exibido com ambos os ps fendidos e a mo direita tambm, como as patas de um carneiro. Em Birdham, perto de Chichester, por volta de 1674, o cadver de um monstro, supostamente gerado em uma ovelha por um jovem, foi pendurado no prtico da igreja para que ningum o esquecesse. Poucos anos antes o lascivo Anthony Wood foi ver o filho deformado de uma irlandesa, originalmente gerado por um homem, em cujo smen um co mastim ou um macaco acrescentou uma pitada. Estas histrias terrveis (e havia muitas delas) mostram que, pelo menos na avaliao popular, o homem no era uma espcie to distinta a ponto de no poder cruzar com os animais. Foi porque a separao da raa humana parecia to precria e fcil de ser perdida, que se vigiava to estritamente a fronteira. No final do sculo XVII, Edward Tyson esforou-se por invalidar a crena de que as crianas que nasciam deformadas eram resultado de concepes mistas. Mesmo assim, a tradio persistiu . THOMAS, K. O homem e o mundo natural: mudanas de atitude em relao s plantas e aos animais (1500-1800). So Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 1989, pp. 161-162. 35 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil plats: capitalismos e esquizofrenia. Vol 4. So Paulo: EDITORA 34, 1996, p. 18. 36 Idem, p. 20. 37 Idem, p. 21. 38 Idem, p. 22-23. 39 Idem, p. 23. 40 VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstncia da alma selvagem. So Paulo: COSAC & NAIFY, 2002a, p. 380. 41 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol 4. So Paulo: EDITORA 34, 1996, p. 72. 42 Idem, p. 47. 43 HOCQUENGHEM, G. A contestao homossexual. So Paulo: BRASILIENSE, 1980, p. 53. 44 GUATTARI, F & ROLNIK, S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: VOZES, 2005, p. 139. 45 FOUCAULT, M. O combate da castidade. In. ARIS, P & BJ IN, A Sexualidades ocidentais: contribuies para a histria e para a sociologia da sexualidade. So Paulo: EDITORA BRASILIENSE, 1987, pp. 37-38. 46 GODELIER, M. O enigma da ddiva. Lisboa: PERSPECTIVA DO HOMEM/EDIES 70, 1996, p. 182. 47 LINS, D. Juzo e verdade em Deleuze. So Paulo: ANNABLUME, 2004b, p. 39. 48 Idem, p. 33. 49 Idem, p. 38. 50 DELEUZE, G. & PARNET, C. Dilogos. So Paulo: ESCUTA, 1998, p. 111. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ I CONSIDERAES FINAIS
O Texto Brasileiro sobre o Rural (TB) tem a reciprocidade como engrenagem manuteno dos valores compreendidos como centrais construo de uma ideologia camponesa. Ela, a reciprocidade, organiza os arranjos parentais, as relaes vicinais, o corpo do campons. Neste sentido, em Com parente no se neguceia: o campesinato como ordem moral, Woortmann, K (1988) recobra a categoria reciprocidade, alicerada nas relaes troquistas, como basilar ao seu conceito de campesinidade.
A reciprocidade, seja como troca obrigatria, seja como o esprito que se ope ao de mercadoria, opera no interior do Stio (ou de outras construes sociais anlogas) porque este, sendo um territrio de reciprocidade, tambm um campo de honra. O princpio em jogo o da honra e no o da honestidade. (...) No universo que estamos examinando, a honra delimita um campo especfico para o jogo da reciprocidade, como bem mostra Bourdieu (1977), onde as prticas so obrigatrias, pois o que realmente est em jogo o todo (a comunidade, a casa, etc). Se a reciprocidade exige um outro para que possa haver a troca, ela supe, a construo de um ns que se contrape a um outro outro o estranho. Esse ns constitudo por iguais em honra. Por isso, a reciprocidade se realiza no interior de um territrio que , tambm, um espao de identidade. 1
Podemos, de antemo, perceber, mais uma vez, uma hierarquizao de determinados valores, o Todo sobre as Partes, como eu j havia demonstrado no primeiro captulo. Porm, o que interessa nessa assertiva a dinmica da categoria reciprocidade, sua relao troquista, no pautada nas relaes de mercado, mas nos valores referentes famlia, honra e vizinhana, fundamentando assim a identidade cultural camponesa. Em tese, a instituio da campesinidade como ordem moral, uma identidade cultural reacionria, em que o Todo oficializado (estruturas) assimetricamente mais importante que as Partes oficiosas (paixes). Como vimos no TB, o imaginrio institudo do desejo, as intensidades e as paixes so colocadas em segundo plano, pois so perigosas ou poluidoras (cf. Douglas, 1976) ordem vigente. As relaes troquistas ganham um status de superioridade, acima dos sentimentos, em que a reciprocidade d o conforme para o campons. Neste sentido, chego a algumas consideraes finais: por que traar uma campesinidade em que os sentimentos, os afectos mal-ditos, devem ficar a merc de valores selecionados pelo TB? Como centralizar apenas nas obrigaes das trocas vida __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ II cotidiana do homem do campo? Como colocar na balana da reciprocidade as paixes com seus rompantes? Em Ensaio sobre a ddiva, Mauss (2003) ao analisar as sociedades ditas primitivas e/ou arcaicas se interroga sobre a reciprocidade da ddiva:
Qual a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz que o presente recebido seja obrigatoriamente retribudo? Que fora existe na coisa dada que faz que o donatrio a retribua? 2
Ainda no Ensaio, Mauss, ao tratar da dvida, nos deixa a questo: ser a dvida primeira em relao troca? Mas Lvi-Strauss (2003) que parece fech-la em uma superestrutura, uma espcie de forma consciente onde se amoenda a realidade inconsciente da troca.
Um curioso aspecto da argumentao seguida no Ensaio sobre a ddiva nos dar a pista da dificuldade. Mauss mostra-se ali, com razo, dominado por uma certeza de ordem lgica, a saber, que a troca o denominador comum de um grande nmero de atividades sociais aparentemente heterogneas entre si. Mas essa troca, ele no consegue v-la nos fatos. A observao emprica no lhe fornece a troca, mas apenas como ele prprio diz trs obrigaes: dar, receber e retribuir. Toda a teoria reclama assim a existncia de uma estrutura, da qual a experincia no oferece seno os fragmentos, os membros esparsos, ou melhor, os elementos. Se a troca necessria e se ela no dada, preciso ento constru-la. De que maneira? Aplicando os corpos isolados, os nicos presentes, uma fonte de energia que opere sua sntese. Pode-se... provar que nas coisas trocadas... h uma virtude que fora as ddivas a circularem, a serem dadas e retribudas. Mas aqui que a dificuldade comea. Essa virtude existe objetivamente, como uma propriedade fsica dos bens trocados? Evidentemente, no; alis, isso seria impossvel, pois os bens em questo no so apenas objetos fsicos, mas tambm dignidades, cargos, privilgios, cujo papel sociolgico no entanto o mesmo que o dos bens materiais. preciso ento que a virtude seja concebida subjetivamente; mas, nesse caso, estamos diante de uma alternativa: ou essa virtude no seno o ato de troca ele prprio, tal como o representa o pensamento indgena, e nos vemos encerrados num crculo; ou ela de uma natureza diferente, e, em relao a ela, o ato de troca torna-se ento um fenmeno secundrio. 3
Revisando estas duas assertivas, maussiana e levistraussiana, muitos tericos do campesinato brasileiro encontram na obrigatoriedade da retribuio, na obrigatoriedade da dvida, nesta fora, a dinmica scio-afetiva consciente e inconsciente, pautadas quase que exclusivamente nas relaes de troca, aliceradas no parentesco, que passa a ser central, uma espcie de superestrutura, como vimos, dos discursos sobre os universos camponeses. O Todo oficializado funcional, castrador do desejo, desta forma o Dar-Receber-Retribuir onipresente e onipotente no e pelo TB. como se tudo, em ambincias rurais, pudesse ser passvel de retribuio. Institui-se, __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ III sobremaneira, o ato de objetivao do sujeito objetivante (cf. Bourdieu, 2003), em que a paixo desconsiderada ou secundria. A contraprestao da ddiva fundante das condutas postas. Assim, com parentes que no neguceia em prol de valores arbitrariamente, reciprocamente, filtrados, moralizados no TB. Representaes sociais sobre as sexualidades, naturalizadas, limitadas, por um insistente, e curioso, retorno ao Mesmo, pois como acentua Godelier (1996) as representaes que nada dizem de verdadeiro ou de falso sobre o mundo dizem muito sobre os homens que as pensam. 4 Mas com Derrida (1991) em Donner le temps: la fausse monnaie, que uma nova perspectiva sobre a ddiva proposta. Ao anunciar que existem coisas que no podemos dar o filsofo apresenta uma ddiva sem contraprestao. Assim, problematizando sobre os enigmas do dom, discorre:
Une fois encore, repartons en effet du plus simples et fionsnous toujours cette pr- comprhension smantique du mot don dans notre langue ou dans quelques langues familires. Pour quil y ait don, il faut quil ny ait pas de rciprocit, de retour, dchange, de contre-don ni de dette. Si lautre me rend ou me doit, ou doit me rendre ce que je lui donne, il ny aura pas eu don, que cette restituition soit immdiate ou quelle se programme dans le calcul complexe dune diffrence long terme. Cela est trop vident si lautre l donataire, me rend immdiatement la mme chose. Il peur dailleurs sagir dune bonne ou dune mauvaise chose: et nous anticipons ici une autre dimension du problme, savoir que si donner est spontanment valu comme bon (il est bon et bien de donner et ce quon donne, le prsent, le cadeau, le gift, est un bien),il reste que ce bon peut aisment se renverser: comme nous le savons, en tant que bon, il peut aussi tre mauvais, empoisonnant (Gift, gift), et cela ds le moment o le don endette lautre, si bien que donner revienne faire mal, faire du mal, sans compter que dans certaines langues, par exemple en franais, on dira aussi bien donner un cadeau que donner un coup, donner la vie que donner la mort, soit quon les dissocie et les oppose, soit quon les identifie. Nous disions donc que, lvidence, si le donataire rend la mme chose, par exemple une invitation djeneur (et lexemple de la nourriture ou des biens dits de consomation ne sera jamais un exemple parmi dautres), le don est annul. Il sannule chaque fois quil y a restitution ou contre- don. Chaque fois selon le mme anneau circulaire qui conduit rendre, il y a paiement et acquittement dune dette. Dans cette logique de la dette, la circulation dun bien ou des biens nest pas seulement la circulation des choses que nous nous serons offertes mais mme des valeurs ou des symboles qui sy engagent et des intentions doffrir, quelles soient conscientes ou inconscientes. Bien que toutes ls anthropologies, voire les mtaphysuques du don, aient, juste titre et avec raison, trait ensemble, comme un systme, le don et la dette, le don et le cycle de la restituiton, le don et lemprunt, le don et le crdit, le don et le contre-don, nous nous dpartissons ici, de faon vive et tranchante, de cette tradition. Cest--dire de la dissociation, dans laveuglante vidence de cet autre axiome: il ny a de don, sil y en a, que dans ce qui interrompt le systme ou aussi bien le symbole, dans une partition sans retour et sans rpartition, sans ltre-avec-soi du don-contre-don. 5
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ IV
E ao me aproximar do enigma do dom em Derrida, pergunto: como retribuir os afectos? Como pensar em uma contraprestao para as paixes que envolvem o homem do campo? Como pensar em reciprocidade como troca no mbito do desejo? Por que o desejo s conhece o roubo e dom? As sexualidades camponesas so da ordem do roubo e do dom, como foi exposto no terceiro captulo. Nada de relaes troquistas, nada de contraprestao, nada de retribuio. Neste sentido, em O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia, Deleuze- Guattari (1976) acrescem:
A sociedade no troquista, o socius inscritor: trocar, no, mas marcar os corpos, que so da terra. Vimos que o regime da dvida decorreria diretamente das exigncias dessa inscrio selvagem. Pois a dvida a unidade de aliana, e a aliana a prpria representao. a aliana que codifica os fluxos do desejo e que, pela dvida, faz para o homem uma memria das palavras. ela que recalca a grande memria filiativa intensa e muda, o influxo germinal como representando fluxos no codificados que submergiriam tudo. a dvida que compe as alianas com as filiaes tornadas estendidas, para formar e forjar um sistema em extenso (representao) sobre o recalcamento das intensidades noturnas. 6
Os encontros noturnos no meio da caatinga, em Goiabeiras, e para alm daquele povoado, nada mais so que ddivas sem contraprestao, pois as sociedades camponesas tambm so permeadas por intensidades e paixes. A reciprocidade nada mais que a oficializao de um iderio mutilador, contra a vida, encabeada pelo TB. Uma campesinidade de ordem moral que obscurece o intempestivo, o indizvel, o intratvel, o intangvel. Caricatura de corpo campons que no deve gozar. Neste nterim, como no perceber, dentro deste contexto, resqucios do iderio cristo em que o prazer extirpado em funo da reproduo da espcie? Ora, ddivas sem contraprestao burilam, rodopiam, aquelas moitas de Goiabeiras. Afectos roubados, esquecimento ativo do TB, esquecimento ativo de uma memria das palavras. Nesse sentido e ainda no trato de uma ddiva sem contraprestao, em O enigma da ddiva, Godelier (1996) disserta:
As trocas, sejam elas quais forem, no constituem a globalidade do funcionamento de uma sociedade, no bastam para explicar a totalidade do social. A par das coisas, dos bens, dos servios, das pessoas que se troca, existe tudo aquilo que no se d e que no se vende, e que igualmente objeto de instituies e de prticas especficas que so uma componente irredutvel da sociedade como totalidade e contribuem, tambm, para explicar o seu funcionamento enquanto tal. 7
__________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ V Nas dimenses do desejo, a troca e sua contraprestao so vazios categricos. Se, como j sabido, nas sociedades camponesas, humanas demasiadas humanas, as paixes, as intensidades, so uma constante, movimentam dons sem contraprestao, independente do lcus etnogrfico, pois evidente que no podemos retribuir a paixo, como continuar a discursar sobre um Ns castrador e arbitrrio em detrimento dos afectos e seus processos de subjetivao? O indizvel das sexualidades camponesas no conhece a retribuio. Nada a balancear, nada a mensurar, nada a dever. Os afectos mal-ditos so larpios de intensidades. Capturas abruptas e rpidas, enigmas do dom. Assim, dado os limites desta dissertao, pois a inteno no encerrar por aqui, gostaria por fim, de endossar, mais uma vez, esta dimenso significativa dos afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas. Se existem coisas que no podemos dizer esta assertiva tem como engrenagem o roubo e o dom. H dimenses nas paixes que palavra nenhuma abarca, que puro contgio imensurvel, como vimos. Neste contexto, indago mais uma vez: como dizer o indizvel? Derrida e Godelier nos tm mostrado que tambm existem coisas que s podemos guardar. Os afectos passam por a. Uma memria ativa contra a memria do TB. Logo, posso interir que uma sociedade camponesa que despreza tudo aquilo que a inquieta, que a faz gozar, no seria da ordem do humano, mas da ordem dos discursos, imaginrio institudo, de um TB que evitou dar prazer ao corpo, o fez devotar. O que proponho uma antropologia rural pulsante, viva. Permeada por ddivas roubadas, por corpos capturados pelas cartografias do desejo. O indizvel das sexualidades camponesas agencia bandos, matilhas, de corpos fugidios, puro ato de crueldade que a vida. Devires imperceptveis que abrem os possveis do corpo, o faz acontecer. Portanto, essa dissertao um processo, um meio. Uma abertura para o doutorado na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales em Paris, sob a orientao da Profa. Marie-lisabeth Handman, em parceira com o Laboratoire dAnthropologie Sociale (LAS), dirigido pelo Prof. Philippe Descola. Neste novo contexto acadmico, a temtica continuar sua travessia nmade, criando encontros, experimentando os instantes, revisitando a antropologia rural, que me to cara, tendo como lcus um outro contexto distinto e distante do cenrio brasileiro: a campagne franaise. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas _____________________________________________________________________________________________________ VI Em tese, proponho ao leitor o imperativo Corra! dos afectos mal-ditos de Goiabeiras. Corra para a vida, para o movimento fugidio dos corpos excitados, para os prazeres apressados da paixo, crueldade e inocncia que subjazem o desejo desejando o desejo, seja entre camponeses, seja entre urbanos, seja entre indgenas, seja entre acadmicos. Eis o que se apresenta doravante: o j, o risco, o que no cabe em palavras: o indizvel das sexualidades camponesas, pois como explode Clarice Lispector (1990):
Liberdade pouco. O desejo ainda no tem nome. 8
NOTAS
1 WOORTMANN, K. Com parente no se neguceia: o campesinato como ordem moral. Braslia: SRIE ANTROPOLGICA/88, 1988, pp. 83-84. 2 MAUSS, M. Ensaio sobre a ddiva. In. MAUSS, M. Sociologia e antropologia. So Paulo: COSAC & NAIFY, 2003, p. 188. 3 LVI-STRAUSS, C. Introduo obra de marcel mauss. In. MAUSS, M. Sociologia e antropologia. So Paulo: COSAC & NAIFY, 2003, pp. 33-34. 4 GODELIER, M. O enigma da ddiva. Lisboa: PERSPECTIVAS DO HOMEM/EDIES 70, 1996, p. 33. 5 DERRIDA, J . Donner le temps: la fausse monnaie. Paris: DITONS GALILE, 1991, pp. 25-26.. 6 DELEUZE, G & GUATTARI, F. O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de J aneiro: IMAGO, 1976, p. 234. 7 GODELIER, M. O enigma da ddiva. Lisboa: PERSPECTIVAS DO HOMEM/EDIES 70, 1996, p. 85. 8 LISPECTOR, C. Perto do corao selvagem. Rio de J aneiro: A NOITE, 1942, p. 73. __________________________________________________________________________________________________________ Dissertao de Mestrado Paulo Rogers Os afectos mal-ditos: o indizvel das sexualidades camponesas __________________________________________________________________________________________________________ I BIBLIOGRAFIA
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MULATEZ E TRANSCULTURAÇÃO. Um Estudo Comparado Entre A Poesia de Nicolás Guillén e A Antropologia de Fernando Ortiz. Aristinete Bernardes Oliveira Neto PDF
Sociopoética e Contracolonialidade: relatos de pesquisas e diálogos teóricos com Ailton Krenak, Antônio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo) e alguns filósofos de tradição ocidental