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Anais do SILIAFRO. Volume , Número 1.

EDUFU,2012 415

QUANDO A LITERATURA REFLETE A VIDA: RETRATOS DA


VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA LITERATURA CABO-VERDIANA

Mailza Rodrigues Toledo e SOUZA1


E-mail: [email protected]

RESUMO: Para este artigo, selecionamos textos cabo-verdianos que representam


literariamente a violência de gênero em Cabo Verde. Com o suporte teórico das teorias
críticas feministas, revelamos retratos dessa violência contra a mulher crioula a partir da
apresentação de dois textos, sendo um de Dina Salústio e outro de Fernando Monteiro.

Palavras-chave: violência de gênero; Dina Salústio; Fernando Monteiro


SUMMARY: For this article, we have selected texts from Cape Verdean that represent
through their literary expression the gender violence in Cape Verde. With the theoretical
support of critical feminist theories, we reveal pictures of this violence against the Crioulo
woman from the presentation of two texts, one from Dina Salústio and another from
Fernando Monteiro.

Keywords: gender violence; Dina Salústio; Fernando Monteiro

Ao considerarmos o gênero como uma categoria de análise para compreender o


contexto histórico-social, é fundamental que levemos em conta os aspectos do cotidiano, daí
a necessidade de estabelecer uma visada feminista às teorias da hermenêutica do cotidiano
para flagrar as manifestações sociais a partir do local da enunciação e, consequentemente,
dar conta e/ou, mais que isso, reescrever a historiografia feminina e perceber suas identidades
sociais, culturais e existenciais. Sendo assim, a experiência social feminina está diretamente
conectada ao cotidiano, pois é por meio dele que podemos observar as interações entre o
espaço público e o privado.
Segundo Rago (2004, p.32), na visão tradicionalista, a atuação das mulheres restringe-
se ao o âmbito privado (Lar), enquanto a atuação dos homens ocupa-se da esfera pública
(trabalho). Mas na prática e na teoria essas associações patriarcais tem sido descontruídas,
pois, a partir do momento em que as mulheres resolveram sair de sua “zona de conforto” e

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Doutora em Letras com a tese intitulada:Do Corpo ao Texto: a mulher inscrita/escrita na poesia de Paula
Tavares e Hilda Hilst.
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concluíram que o lar não lhes proporcionava a proteção que as tradições patriarcais as
convencerão de que existia, decidiram lutar por suas “cartas de alforria”.
No entanto, apesar de todas as conquista, ainda subsistem cultural e socialmente
diversas formas de limitações que obstruem o pleno exercício da cidadania para a mulher.
Em Cabo Verde, segundo Gomes (2008)2, dentre os obstáculos impeditivos da emancipação
feminina, enfatiza-se, justamente, essa restrição da mulher ao espaço privado, pois as tarefas
domésticas, incluindo a agricultura, embora constem nas estatísticas do país como força de
trabalho, não são contabilizada no PIB.
A gravidez precoce, a violência familiar, o turismo sexual e o tráfico de mulheres
agravam o quadro da violência na sociedade caboverdiana, literariamante, esse quadro é
pintado com cores muito fortes no livro Na roda do sexo, (2009), de Fernando Monteiro,
conforme observaremos em fragmentos do conto “Descartável”, inserto neste volume.
A coação sexual, muitas vezes praticada em casa, reflete-se nos altos índices de
homicídios e ofensas corporais graves aos companheiros, praticados por mulheres
constantemente espancadas, conforme figura no conto “Foram as dores que o mataram”,
inserto no volume Mornas eram as noites (2002), de Dina Salústio, ainda nesse volume,
consta, de modo exemplar, a abordagem da prostituição e mendicância praticada pelas
mulheres, abortos clandestinos, filhos de pais desconhecidos, alcoolismo e a loucura. Ao
considerarmos a literatura, segundo a acepção aristotélica, como arte mimética, ou seja, como
atividade artística e recriadora da realidade, percebemos que ao recriar uma realidade o autor
também a atualiza a partir de novos parâmetros, de verossimilhança, dentre esses novos
parâmetros, cabe o revisionismo dos conceitos e identidades atribuídos ao feminino.
Nesse jogo de forças constituintes da construção das identidades e experiências
femininas, os textos que aqui nos propomos a analisar apresentam um espaço rico de
produção de saberes ao colocar em evidência algumas formas de violência de gênero, que,
utilizando a caracterização do ICVIEG (Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade
de Gênero)3, particulariza-se por qualquer ato que resulte ou possa resultar em dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou
privação arbitrária de liberdade em público ou na vida privada, bem como castigos, maus
tratos, pornografia, agressão sexual e incesto.

2
GOMES, Simone Caputo. Literopintar Cabo Ver de: a criação de autor ia feminina Revista Crioula – nº 3 –
maio de 2008. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/03/Artigo%20Mestre%20-
20Profa.%20Dra.%20Simone%20Caputo%20Gomes.pdf. Acesso em: 25/04/2011
3
CABO VERDE. Violência do gênero disponível em <http://www.icieg.cv/files/00396_vbg.pdf> acesso em
15/05/2012
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Assim, ao percebermos os sentidos do ambiente social espelhados nas narrativas aqui


apresentadas, essa forma de violência ganha materialidade histórica pelas vias do discurso
literário, promovendo um encontro profundo com a realidade social cabo-verdiana, por meio
dos “retratos” pintados por Dina Salústio e Fernando Monteiro.
Segundo Almeida (2007, p. 43), são diversas as formas de nomear a violência
contras as mulheres, trata-se de uma violência “maldita”, para quem a experimentou ou
tentou enfrentá-la ou mediá-la; e uma violência “mal-dita”, para quem tenta estudá-la.
Assim, são utilizadas expressões diversificadas para designar significados similares:
violência de gênero, violência doméstica, violência intrafamiliar,violência contra a mulher.
Porém, algumas poucas diferenciações podem ser notadas, a saber: a violência de
gênero tem um caráter relacional, pois designa a produção da violência em um contexto de
relações produzidas socialmente, portanto em um âmbito público; a violência doméstica e
intrafamiliar têm sentidos bastante próximo, pois sua ocorrência instaura-se na esfera privada
e a violência contra a mulher enfatiza não o espaço, mas a vítima contra a qual a violência é
direcionada.
Nos textos que nos propomos a apresentar, veremos reflexos dessas diversas formas
de especificações da violência, em especial da violência doméstica e intrafamiliar. No
entanto, concordando com Almeida (2007, p.26-27), posicionamo-no pelo emprego do termo
“violência de gênero”, por considerarmos este mais abrangente, tanto em sentido analítico
quanto histórico. Esse tipo de violência ocorre por razões diversas: seja pelo alcoolismo ou
uso de outras drogas, ciúmes, desvios de personalidade, incompatibilidade de gênios,
desconfiança, obsessão, diversas formas de opressão, enfim, seria impossível “catalogar” tais
motivações para a violência, visto que se trata de relações humanas e, por isto, intensamente
complexas, chegando aos extremos da violência física e até morte de um dos parceiros.
Assim, as narrativas aqui apresentadas dão voz às mulheres que ainda temem
denunciar qualquer tipo de violência de gênero, desde o abandono durante a gestação,
estopim de outras formas de violência, até a violência física, conforme a narrativa “Foram as
dores que o mataram”

Mornas eram as noites (1995) é um livro composto por 35 crônicas ou mini-contos, a


matéria prima dessas narrativas são os conflitos humanos reveladores de subjetividades
diversas, trazendo para o espaço literário diferentes cenas da(s) realidade(s) cabo-verdiana(s),
começar pelo título, pois, a palavra “morna” abrange muitos sentidos, podendo ser associada
tanto à prosa quanto à poesia, uma vez que é a
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modalidade musical típica de Cabo Verde que veicula a poesia oral.


Tradicionalmente canto de mulher, o entendimento do lugar cultural da
morna no mundo cabo-verdiano pode derramar outras luzes sobre a
significação do título: “música eram as noites” é uma leitura para Mornas
eram as noites. Música de mulheres, em que a mulher é a peça principal.
Para além, música de nacionalidade e identidade (GOMES, 2006, p.99)

Assim, podemos também interpretar as mornas como crônicas do cotidiano


apreendido sob o olhar da mulher, podendo exprimir dor, prazer, tristeza, alegria, nostalgia,
esperanças e toda ordem de conflitos existenciais. Morna também é um signo que pode
remeter-nos a sensação de conforto ou, até mesmo de passividade, tendo uma conotação
negativa de uma situação que exige uma reação, na verdade, todos esses significados tornam-
se relevante ao termos contato com os textos desse volume que apresenta “um discorrer de
situações surpreendentes, de sensações, de informações, de acontecimentos imprevistos
envolve o leitor, levando-o a um enforque diferente para situações sociais e existenciais
cristalizadas ou estagnadas” (GOMES, 2006, p.99). São, portanto, histórias que focalizam
variadas classes e tipos sociais, representando personagens e espaços da sociedade cabo-
verdiana, pela voz de um narrador sensível e empenhado em revelar os dramas do universo
que o circunda.
Um exemplo da sensibilidade desse narrador e dos dramas que o circundam pode ser
verificado no fragmento do conto transcrito a seguir:

Não importa o dia. Nem importa mesmo o ano em que se


conheceram. Aconteceu. E houve um momento em que se amaram. Talvez
tenha havido muitos momentos em que se amaram.
Depois a rotina de vidas que se afastaram e, incompreensivelmente,
continuam juntas. E, dramaticamente caminham juntas, num desafio
permanente à vida, à morte, ao direito de viver.
(SALÚSTIO,2002,p.17)

Esse é o início do conto que apesar de curto pode ser dividido em quatro partes (ou
atos). Nessa primeira parte, aparece a voz do narrador, como uma espécie de apresentador
que sai de cena e dá voz a personagem, retomando-a somente na última linha do conto. Esta
se trata de uma mulher sofrida que, como tantas personagens da autora, viu-se em um
contexto que exigiu uma reação, mesmo que forçada, tal qual acontece a muitas vítimas da
violência doméstica.
Essa mulher sem nome, pois representa tantas outras na mesma situação, assume a
voz narrativa pelo discurso direto, não fica claro se em um monólogo ou em um diálogo,
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mais provável a primeira alternativa, é possível até mesmo perceber um hibridismo de gênero
transitando entre a crônica, o conto o teatro e a poesia, vejamos, então, a segunda parte:

Não matei o meu marido.


Eu amava-o. Por quê matá-lo?
Foram as dores do meu corpo que o condenaram. Foram o sangue
pisado, o ventre moído, as feridas em pus.
Foram as pancadas de ontem, as de hoje e, sobretudo, as pancadas
de amanhã que o mataram.
Eu amava-o. Por quê matá-lo?
Foi o meu corpo recusado e dolorido após o uso e os abusos. Foram
a tristeza, o desespero e a dor do amor que não tinha troco.
Eu amava-o. Por quê matá-lo?
(SALÚSTIO,2002,p.17)

Percebemos, no fragmento acima umcerto ritmo cadenciado, predominantemente,


em sons anasalados e oclusivos, produzindo uma matéria fônica com possibilidades
expressivas que nos remetem à angústia, à melancolia, à dor e até mesmo à incredulidade da
personagem que de vítima passou à agressora: “ Eu amava-o. Por quê matá-lo?”. Esse
questionamento se repete por quatro vezes ao longo do texto, como se a agressão que resultou
na morte do marido tivesse acontecido em um momento de privação dos sentidos. Assim, a
vítma/agressora/vítima atribui a agressão a outros agentes: “as dores do corpo”, “o sangue
pisado”, “ventre moído”, “as feridas em pus”; o medo: “as pancadas de ontem, as de hoje e,
sobretudo, as pancadas de amanhã”; as dores da alma, “a tristeza, o desespero e a dor do
amor que não tinha troco”.
A concisão dos parágrafos também aproxima a estrutura narrativa da poética, o
pungente lamento dessa voz, cujo sentido é potencializado pelos sons e ritmos, produz
também um efeito imagético de um ser que se encontra em profundo conflito, em uma
espécie de estado de choque que a leva ao evasionismo:

Às vezes ficava à janela, meio escondida, vendo-o partir para o


trabalho com a roupa que eu lavara e engomara. Gostava do seu modo de
andar, do jeito como inclinava a cabeça. Via-o partir e ali ficava horas e dias
à espera que voltasse e me trouxesse um riso e a esperança de que as coisas
iriam mudar. Nesse dia não lembraria mais os tempos duros, os paus de
pedra que me roíam e me desgastavam as entranhas. Mas para mim, não
voltava nunca. Apenas para pedaços do meu corpo que esquecia logo.
(SALÚSTIO,2002,p.17-18)

Nessa parte, percebemos as memórias de um cotidiano que agora parece


inacreditavelmente distante, marcado linguisticamente pelas formas verbais “ficava”,
“gostava”, “via”. Embora o discurso adquira novamente nuanças mais narrativa, o sentido
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ainda é carregado de poesia, uma poesia que só pode ser encontrada nas esperanças ocas:
“ficava horas e dias à espera que voltasse e me trouxesse um riso e a esperança de que as
coisas iriam mudar”; de amores destruídos: “Mas para mim, não voltava nunca. Apenas para
pedaços do meu corpo que esquecia logo”. Novamente essa personagem/narradoa move-se
para o presente:

Eu amava-o. Por quê matá-lo?


Ele matou-se. Criou um espaço onde coabitavam a violência, a
destruição, a miséria, o animalesco. E nós.
Deu-me as armas e fez-me assassina.
...depois ficou tudo escuro.
E o corpo a doer, a doer, a...
Um soluço frágil absorve a última palavra.
(SALÚSTIO,2002,p.18)

De forma silogística, essa mulher assume diversos papéis, tentando entender o que de
fato aconteceu, como passara de vítima a agressora? Parece responder a uma acusação, na
qual ela é a acusante, a acusada e também a defensora: “Ele matou-se. Criou um espaço onde
coabitavam a violência, a destruição, a miséria, o animalesco. E nós.”
Na última linha, o narrador novamente assume a voz, interrompendo o relato ou
depoimento da personagem, mostra-se solidário ou mesmo partidário desta: “Um soluço
frágil absorve a última palavra.”, quase um defensor e assim, fecham-se as cortinas deste
palco/conto/poema.
Embora tenha mudado o quadro social e legal, a violência de gênero continua a fazer
parte do cotidiano de muitas mulheres, articulando outras vulnerabilidades sociais e
econômicas e alicerçando-se nas desigualdades das relações de gênero. São essas relações
que encerram a mulher numa malha de dependências que marca o seu processo de vítima e
que condicionam a sua forma de olhar a violência.
Ainda na esfera da violência doméstica, mas contemplando também a gravidez
precoce e a pedofilia, o conto “Descartável” de Fernando Monteiro legitima essa vitimização
da mulher que, ao contrário da narrativa de Dina Salústio, apresenta uma personagem que em
momento algum reage sendo a sua vida totalmente conduzida por outros:

_ A solução é entregá-la ao Papá, para saber o que fazer com ela.


Aqui não mora nem mais um dia. Se não a quiserem ter na rua da amargura,
amanhã, logo pela manhã, levem-na para o Sucupira e entreguem-na ao
Papá. Não foi o filho dele que a emprenhou? Então que fique também com a
responsabilidade.
(MONTEIRO, 2009, p.88)
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Como diz Dina Salústio em entrevista a Simone Caputo Gomes: “Em Cabo Verde,
quando nasce uma menina, ela já é uma mulher.”4. A história de Catarina, a protagonista do
conto “Descartável” corrobora essa assertiva. Pois, trata-se da vida de uma menina que aos
doze anos engravida e é expulsa da casa do pai, onde morava junto aos tios, e da casa do pai
da criança. A malfada gravidez de quatro meses é revelada por uma vizinha, cujo nome não
é citado, que é também a narradora da história que é contada em primeira pessoa, embora
apresente características de um narrador onisciente.
Após sofrer toda sorte de agressões verbais e físicas dos próprios parentes, a menina é
enviada para a casa de Papá, o avô paterno da criança ainda em gestação. Lá, na mesma casa
onde fora violada por Betinho, o pai do bebê, que agiu com a conivência da mãe, Mimi: “(...)
ela começou a gritar por socorro porque Betinho queria fazer tal coisa com ela _ foi violada
naquela casa pelo filho da mulher que se encontrava a dois passos, mas não fez o mínimo
gesto para evitar o sucedido” (MONTEIRO, 2009, p.90). De lá, mais uma vez expulsa, a
menina vagueou pela cidade até criar coragem de voltar novamente para a casa dos parentes,
de onde foi de novo enxotada, sob toda sorte de desaforos e humilhações.
Em absoluto desespero Catarina foi procurar a mãe, que já a havia abandonado desde
sempre, e mais uma vez a desprezou: “_ Ficar contigo, só se é para ganhar dinheiro contigo,
como uma boa pixinguinha5 que és. Mas nem pra isso serves (...)” Com mais esta porta que
se fechava para a menina, esta desesperada encontrou abrigo provisórios na casa de Vovó,
uma espécie de benfeitora de crianças abandonadas, que mesmo sem recursos, a hospedou,
até que o Instituto Cabo-verdiano de Menores tomou frente da situação.
O Instituto primeiro procurou Tony, o pai de Catarina, mas este já havia fugido para
Portugal; vendo que a mãe da menina não tinha a menor condição de cuidar dela, foi atrás do
pai da criança e, além de processar Betinho condenando-o a oito anos de prisão, obrigou-o a
pagar uma pensão que garantisse o bem-estar da mãe e da criança. Ao final do conto, o leitor
descobre que o primeiro a violar a menina foi Samy, o próprio tio, quando ela ainda tinha
nove anos de idade.
Depois de muitas desgraças, a história de Catarina ainda teve um final, se não feliz,
menos trágico que o de tantas outras meninas cabo-verdianas. O livro Na roda do sexo, de
Fernando Monteiro, no qual está inserto o conto, mimetiza literariamente diversas formas de

4
Praia, nov. 1994. In: GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: Literatura em chão de cultura.São Paulo: Ateliê
Editorial, 2008, p. 218.
5
Em Cabo Verde “ são chamadas de pixinguinhas as meninas que, estigmatizadas para o mercado matrimonial, se supõe estarem expostas
a um mercado sexual extraconjugal e, portanto, imoral(ANJOS 2005, p. 164).
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violência frequentes em Cabo Verde, que ainda é uma sociedade machista, e faz uma crítica à
cultura sexual patriarcal, pois revela uma situação centrada no prazer masculino, na qual
predomina a conquista e a dominação da mulher como um objeto “maleável, instrumental e
descartável” (FUNCK, 2003, p. 476).
O próprio título do conto: “Descartável” já é revelador quanto ao papel que essa
menina-mulher assume na realidade em que se encontra e a maneira como o narrador a
descreve, metaforicamente, representa o estigma que marcar muitas meninas cabo-verdianas:

Olhei para ela. Doze anos de idade. Uma criança e já com o peso de
uma vida dentro de si. Uma criança que trazia no ventre outra criança. (...)
tinha apenas um metro e mais dez ou quinze centímetro, não pesava nem
trinta e cinco ou quarenta quilos (...)
Era uma criança feia. Muito feia, rainha de feia. Vendo o rosto dela,
sem se saber concretamente porquê, pensava-se logo numa ratazana. E a
fealdade de Catarina não se resumia apenas ao rosto, o corpo também era
feio. (...) Catarina era burra e fraca da cabeça. (...) Mas ela não teve a quem
puxar senão à mãe. Na verdade, a mãe de era uma leviana que só pensava
em matar porcos _ também parecia porco da índia, tantos eram os filhos que
tinha: a Catarina era a terceira, dos dez que deu à luz, sete vivos. No resto,
era uma inépcia, uma mulher sem iniciativa nem brilho (...) não estudou,
não procurou uma profissão, não arranjou qualquer outra forma de ganhar
dinheiro, só procurou melhorar, e conseguiu, a sua performance sexual e
reprodutiva. (MONTEIRO, 2009, p. 81-83)

É importante ressaltar que o narrador descreve Catarina em três páginas, como se o


autor quisesse concentrar nessa personagem todos os estigmas e males a que estão sujeitas
muitas meninas cabo-verdianas que, como Catarina, já nascem predestinadas à miséria, à
prostituição, à gravidez precoce e a toda sorte de maus tratos . Essa ideia é reforçada pela
descrição da mãe, a qual ela é comparada, indiciando que esta também fora uma menina cujo
passado não fora diferente da filha, ou seja, uma estrutura familiar (ou falta de estrutura) que
se perpetua de geração para geração, em que a violência física é banalizada no cotidiano:

As crianças vivem em um ambiente em que são comuns as brigas entre


homens e mulheres, as lutas da mãe com o pai ou parceiros, enfim, vivem
em um meio onde a agressão física é um comportamento vigente. O filho
aprende desde cedo que uma forma, e das mais importantes, para sobreviver
e alcançar prestígio é impor-se pela força. Mesmo a mulher, ao observar
cotidianamente o comportamento social de sua mãe, e das outras mulheres,
vê tal tipo de conduta como modelo a ser seguido (BACELAR, 1982, p.
123).
Essa realidade é muito bem retratada no conto, que apresenta uma personagem, que se
quer, possuía atrativos físicos que explicassem a violência sexual que sofreu já aos nove anos
e fora simplesmente banalizada e ignorada, como se essa forma de abuso fosse comum e
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normal nas famílias, uma coisificação do corpo da mulher que já nasce predestinada a ser um
objeto descartável e/ou até mesmo um “saco de pancadas”:

Não aguentando mais o choro de Catarina, capaz de cortar pelo meio


qualquer coração humano, o tio, explodindo em uma “puta de merda, ainda
choras!” (...) aplicou-lhe duas vergastadas nas costas, que se abriram em
sangue e ferida. O pai, erguendo-se de forma tão abrupta que a cadeira se
estatelou no chão, quando se julgava que ia impedir o tio de bater na filha,
alçou o punho cerrado e lançou um petardo em direção à cara de Catariana,
atingindo-a na boca.

(MONTEIRO, 2009, p. 86)

Em relação à historiografia da mulher narrada pela voz masculina, Rago (1998, p. 31)
constata “[...] é possível dizer que as mulheres estão construindo uma linguagem nova,
criando seus argumentos a partir de suas próprias premissas”. Podemos notar essa
constatação ao analisarmos o tratamento dispensado a essa duas personagens. Catarina, ao
contrário da personagem do conto de Dina Salústio, que reage e responde violentamente a
violência sofrida, apenas chora e resigna-se silenciosamente: “tinha que levar porrada, que de
insulto já estava curada e vacinada” (MONTEIRO, 2009, p. 94).
A maneira como a Catarina, de Fernando Monteiro, e a “mulher anônima”, de Dina Salústio,
são construídas patenteiam uma tendência da escritura feminina que visa a construir personagens
femininas que rompem o silêncio e se libertam, fazendo emergir suas subjetividades, ainda que de
forma violenta; enquanto na escritura masculina, segundo Queiroz (2010, p. 128) não há redenção
para as mulheres que não se comportam dentro dos padrões patriarcais, pelos quais se espera um
estatuto virginal ou um honroso casamento, são retratadas como objeto de desejo ou vítimas pré-
destinadas, como Catarina, condenada pelo histórico da mãe. Em outros contos do volume Na roda do
sexo, também percebemos essa tendência.
Assim, é pela escrita que muitas autoras cabo-verdianas têm inscrito/escrito a mulher
crioula por meio das vozes, dos sentimentos, dos dramas, dos conflitos, dos sonhos, das
angústias, dos medos e também das vitórias de suas personagens, rasurando estereótipos e
reescrevendo a trajetória feminina pela perscrutação do cotidiano.

Referências bibliográficas:

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GOMES, Simone Caputo. “Mulher com paisagem ao fundo”. In: África e Brasil: Letras
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