Paper 2
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EDUFU,2012 415
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Doutora em Letras com a tese intitulada:Do Corpo ao Texto: a mulher inscrita/escrita na poesia de Paula
Tavares e Hilda Hilst.
Anais do SILIAFRO. Volume , Número 1. EDUFU,2012 416
concluíram que o lar não lhes proporcionava a proteção que as tradições patriarcais as
convencerão de que existia, decidiram lutar por suas “cartas de alforria”.
No entanto, apesar de todas as conquista, ainda subsistem cultural e socialmente
diversas formas de limitações que obstruem o pleno exercício da cidadania para a mulher.
Em Cabo Verde, segundo Gomes (2008)2, dentre os obstáculos impeditivos da emancipação
feminina, enfatiza-se, justamente, essa restrição da mulher ao espaço privado, pois as tarefas
domésticas, incluindo a agricultura, embora constem nas estatísticas do país como força de
trabalho, não são contabilizada no PIB.
A gravidez precoce, a violência familiar, o turismo sexual e o tráfico de mulheres
agravam o quadro da violência na sociedade caboverdiana, literariamante, esse quadro é
pintado com cores muito fortes no livro Na roda do sexo, (2009), de Fernando Monteiro,
conforme observaremos em fragmentos do conto “Descartável”, inserto neste volume.
A coação sexual, muitas vezes praticada em casa, reflete-se nos altos índices de
homicídios e ofensas corporais graves aos companheiros, praticados por mulheres
constantemente espancadas, conforme figura no conto “Foram as dores que o mataram”,
inserto no volume Mornas eram as noites (2002), de Dina Salústio, ainda nesse volume,
consta, de modo exemplar, a abordagem da prostituição e mendicância praticada pelas
mulheres, abortos clandestinos, filhos de pais desconhecidos, alcoolismo e a loucura. Ao
considerarmos a literatura, segundo a acepção aristotélica, como arte mimética, ou seja, como
atividade artística e recriadora da realidade, percebemos que ao recriar uma realidade o autor
também a atualiza a partir de novos parâmetros, de verossimilhança, dentre esses novos
parâmetros, cabe o revisionismo dos conceitos e identidades atribuídos ao feminino.
Nesse jogo de forças constituintes da construção das identidades e experiências
femininas, os textos que aqui nos propomos a analisar apresentam um espaço rico de
produção de saberes ao colocar em evidência algumas formas de violência de gênero, que,
utilizando a caracterização do ICVIEG (Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade
de Gênero)3, particulariza-se por qualquer ato que resulte ou possa resultar em dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou
privação arbitrária de liberdade em público ou na vida privada, bem como castigos, maus
tratos, pornografia, agressão sexual e incesto.
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GOMES, Simone Caputo. Literopintar Cabo Ver de: a criação de autor ia feminina Revista Crioula – nº 3 –
maio de 2008. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/03/Artigo%20Mestre%20-
20Profa.%20Dra.%20Simone%20Caputo%20Gomes.pdf. Acesso em: 25/04/2011
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CABO VERDE. Violência do gênero disponível em <http://www.icieg.cv/files/00396_vbg.pdf> acesso em
15/05/2012
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Esse é o início do conto que apesar de curto pode ser dividido em quatro partes (ou
atos). Nessa primeira parte, aparece a voz do narrador, como uma espécie de apresentador
que sai de cena e dá voz a personagem, retomando-a somente na última linha do conto. Esta
se trata de uma mulher sofrida que, como tantas personagens da autora, viu-se em um
contexto que exigiu uma reação, mesmo que forçada, tal qual acontece a muitas vítimas da
violência doméstica.
Essa mulher sem nome, pois representa tantas outras na mesma situação, assume a
voz narrativa pelo discurso direto, não fica claro se em um monólogo ou em um diálogo,
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mais provável a primeira alternativa, é possível até mesmo perceber um hibridismo de gênero
transitando entre a crônica, o conto o teatro e a poesia, vejamos, então, a segunda parte:
ainda é carregado de poesia, uma poesia que só pode ser encontrada nas esperanças ocas:
“ficava horas e dias à espera que voltasse e me trouxesse um riso e a esperança de que as
coisas iriam mudar”; de amores destruídos: “Mas para mim, não voltava nunca. Apenas para
pedaços do meu corpo que esquecia logo”. Novamente essa personagem/narradoa move-se
para o presente:
De forma silogística, essa mulher assume diversos papéis, tentando entender o que de
fato aconteceu, como passara de vítima a agressora? Parece responder a uma acusação, na
qual ela é a acusante, a acusada e também a defensora: “Ele matou-se. Criou um espaço onde
coabitavam a violência, a destruição, a miséria, o animalesco. E nós.”
Na última linha, o narrador novamente assume a voz, interrompendo o relato ou
depoimento da personagem, mostra-se solidário ou mesmo partidário desta: “Um soluço
frágil absorve a última palavra.”, quase um defensor e assim, fecham-se as cortinas deste
palco/conto/poema.
Embora tenha mudado o quadro social e legal, a violência de gênero continua a fazer
parte do cotidiano de muitas mulheres, articulando outras vulnerabilidades sociais e
econômicas e alicerçando-se nas desigualdades das relações de gênero. São essas relações
que encerram a mulher numa malha de dependências que marca o seu processo de vítima e
que condicionam a sua forma de olhar a violência.
Ainda na esfera da violência doméstica, mas contemplando também a gravidez
precoce e a pedofilia, o conto “Descartável” de Fernando Monteiro legitima essa vitimização
da mulher que, ao contrário da narrativa de Dina Salústio, apresenta uma personagem que em
momento algum reage sendo a sua vida totalmente conduzida por outros:
Como diz Dina Salústio em entrevista a Simone Caputo Gomes: “Em Cabo Verde,
quando nasce uma menina, ela já é uma mulher.”4. A história de Catarina, a protagonista do
conto “Descartável” corrobora essa assertiva. Pois, trata-se da vida de uma menina que aos
doze anos engravida e é expulsa da casa do pai, onde morava junto aos tios, e da casa do pai
da criança. A malfada gravidez de quatro meses é revelada por uma vizinha, cujo nome não
é citado, que é também a narradora da história que é contada em primeira pessoa, embora
apresente características de um narrador onisciente.
Após sofrer toda sorte de agressões verbais e físicas dos próprios parentes, a menina é
enviada para a casa de Papá, o avô paterno da criança ainda em gestação. Lá, na mesma casa
onde fora violada por Betinho, o pai do bebê, que agiu com a conivência da mãe, Mimi: “(...)
ela começou a gritar por socorro porque Betinho queria fazer tal coisa com ela _ foi violada
naquela casa pelo filho da mulher que se encontrava a dois passos, mas não fez o mínimo
gesto para evitar o sucedido” (MONTEIRO, 2009, p.90). De lá, mais uma vez expulsa, a
menina vagueou pela cidade até criar coragem de voltar novamente para a casa dos parentes,
de onde foi de novo enxotada, sob toda sorte de desaforos e humilhações.
Em absoluto desespero Catarina foi procurar a mãe, que já a havia abandonado desde
sempre, e mais uma vez a desprezou: “_ Ficar contigo, só se é para ganhar dinheiro contigo,
como uma boa pixinguinha5 que és. Mas nem pra isso serves (...)” Com mais esta porta que
se fechava para a menina, esta desesperada encontrou abrigo provisórios na casa de Vovó,
uma espécie de benfeitora de crianças abandonadas, que mesmo sem recursos, a hospedou,
até que o Instituto Cabo-verdiano de Menores tomou frente da situação.
O Instituto primeiro procurou Tony, o pai de Catarina, mas este já havia fugido para
Portugal; vendo que a mãe da menina não tinha a menor condição de cuidar dela, foi atrás do
pai da criança e, além de processar Betinho condenando-o a oito anos de prisão, obrigou-o a
pagar uma pensão que garantisse o bem-estar da mãe e da criança. Ao final do conto, o leitor
descobre que o primeiro a violar a menina foi Samy, o próprio tio, quando ela ainda tinha
nove anos de idade.
Depois de muitas desgraças, a história de Catarina ainda teve um final, se não feliz,
menos trágico que o de tantas outras meninas cabo-verdianas. O livro Na roda do sexo, de
Fernando Monteiro, no qual está inserto o conto, mimetiza literariamente diversas formas de
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Praia, nov. 1994. In: GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: Literatura em chão de cultura.São Paulo: Ateliê
Editorial, 2008, p. 218.
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Em Cabo Verde “ são chamadas de pixinguinhas as meninas que, estigmatizadas para o mercado matrimonial, se supõe estarem expostas
a um mercado sexual extraconjugal e, portanto, imoral(ANJOS 2005, p. 164).
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violência frequentes em Cabo Verde, que ainda é uma sociedade machista, e faz uma crítica à
cultura sexual patriarcal, pois revela uma situação centrada no prazer masculino, na qual
predomina a conquista e a dominação da mulher como um objeto “maleável, instrumental e
descartável” (FUNCK, 2003, p. 476).
O próprio título do conto: “Descartável” já é revelador quanto ao papel que essa
menina-mulher assume na realidade em que se encontra e a maneira como o narrador a
descreve, metaforicamente, representa o estigma que marcar muitas meninas cabo-verdianas:
Olhei para ela. Doze anos de idade. Uma criança e já com o peso de
uma vida dentro de si. Uma criança que trazia no ventre outra criança. (...)
tinha apenas um metro e mais dez ou quinze centímetro, não pesava nem
trinta e cinco ou quarenta quilos (...)
Era uma criança feia. Muito feia, rainha de feia. Vendo o rosto dela,
sem se saber concretamente porquê, pensava-se logo numa ratazana. E a
fealdade de Catarina não se resumia apenas ao rosto, o corpo também era
feio. (...) Catarina era burra e fraca da cabeça. (...) Mas ela não teve a quem
puxar senão à mãe. Na verdade, a mãe de era uma leviana que só pensava
em matar porcos _ também parecia porco da índia, tantos eram os filhos que
tinha: a Catarina era a terceira, dos dez que deu à luz, sete vivos. No resto,
era uma inépcia, uma mulher sem iniciativa nem brilho (...) não estudou,
não procurou uma profissão, não arranjou qualquer outra forma de ganhar
dinheiro, só procurou melhorar, e conseguiu, a sua performance sexual e
reprodutiva. (MONTEIRO, 2009, p. 81-83)
normal nas famílias, uma coisificação do corpo da mulher que já nasce predestinada a ser um
objeto descartável e/ou até mesmo um “saco de pancadas”:
Em relação à historiografia da mulher narrada pela voz masculina, Rago (1998, p. 31)
constata “[...] é possível dizer que as mulheres estão construindo uma linguagem nova,
criando seus argumentos a partir de suas próprias premissas”. Podemos notar essa
constatação ao analisarmos o tratamento dispensado a essa duas personagens. Catarina, ao
contrário da personagem do conto de Dina Salústio, que reage e responde violentamente a
violência sofrida, apenas chora e resigna-se silenciosamente: “tinha que levar porrada, que de
insulto já estava curada e vacinada” (MONTEIRO, 2009, p. 94).
A maneira como a Catarina, de Fernando Monteiro, e a “mulher anônima”, de Dina Salústio,
são construídas patenteiam uma tendência da escritura feminina que visa a construir personagens
femininas que rompem o silêncio e se libertam, fazendo emergir suas subjetividades, ainda que de
forma violenta; enquanto na escritura masculina, segundo Queiroz (2010, p. 128) não há redenção
para as mulheres que não se comportam dentro dos padrões patriarcais, pelos quais se espera um
estatuto virginal ou um honroso casamento, são retratadas como objeto de desejo ou vítimas pré-
destinadas, como Catarina, condenada pelo histórico da mãe. Em outros contos do volume Na roda do
sexo, também percebemos essa tendência.
Assim, é pela escrita que muitas autoras cabo-verdianas têm inscrito/escrito a mulher
crioula por meio das vozes, dos sentimentos, dos dramas, dos conflitos, dos sonhos, das
angústias, dos medos e também das vitórias de suas personagens, rasurando estereótipos e
reescrevendo a trajetória feminina pela perscrutação do cotidiano.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Suely Souza Essa violência mal-dita Violência de Gênero e políticas públicas,
Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2007.
FUNCK, Susana Bornéo. “O jogo das representações”. In: BRANDÃO, Isabel & MUZART,
Zahidé L. Refazendo nós: ensaios sobre mulheres e literatura. Florianópolis: Ed. Mulheres,
2003. P.475-481.
GOMES, Simone Caputo. “Mulher com paisagem ao fundo”. In: África e Brasil: Letras
em Laços. SEPÚLVEDA, Maria do Carmo e SALGADO, Maria Teresa (org.).
São Paulo: Atlântica, 2006. (p.97 a 117).
RAGO, Margareth. “Ser Mulher no Século XXI ou Carta de Alforria” In: VENTURI,
Gustavo & RECAMÁN, Marisol & OLIVEIRA, Suely de. A Mulher Brasileira nos Espaços
Público e Privado. SP: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
QUEIROZ, Sonia Maria Alves de. Literatura e representação social das mulheres em
Cabo Verde: vencendo barreiras. 2010. Dissertação da área de Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. 3 ed. Praia: Instituto Biblioteca Nacional, 2002