Dramaturgia Feminina Na América Latina Da Década de 1990

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Revele n.

8 maio/2015 187

Griselda Gambaro, Inés Margarita Stranger, Maria Adelaide Amaral e a


dramaturgia feminina na América Latina da década de 1990

Griselda Gambaro, Inés Margarita Stranger, Maria Adelaide Amaral and the
feminine dramaturgy in Latin America of the 1990s

Luísa Lagoeiro Ferreira1

Resumo: a mulher, através dos séculos, foi privada da construção de um discurso próprio e
submetida a gerações e gerações de discursos distorcidos e sexistas. À medida que a mulher
passa a conquistar seu espaço e seu direito à expressão, ela se desloca dentro do ambiente
social e se retira do lugar de passividade e submissão. Considerando que a presença da mulher
na dramaturgia faz parte desse processo, nossa pesquisa se propôs a analisar como a temática
feminina é apresentada dentro da dramaturgia latino-americana na década de 1990, a partir do
lugar de enunciação da própria mulher. Para tal, propusemo-nos a analisar seis textos
dramáticos escritos por mulheres na América Latina. As autoras escolhidas foram: a
argentina, Griselda Gambaro; a chilena Inés Margarita Stranger; e a portuguesa, radicada no
Brasil, Maria Adelaide Amaral.
Palavras-chave: dramaturgia feminina; mulher; silêncio; teatro.

Abstract: Women, over the centuries, have been denied the construction of their own speech
and submitted to generations and generations of distorted and sexists speeches. As they
conquest their space and their right of expression, they move inside of the social environment
and gets out of the passivity and submission place. Considering the female presence in the
dramaturgy as a part of this process, our research proposes to analyze how the female
thematic is presented inside the dramaturgy in Latin America in the 1990’s, from the women
point of view. For this intent, we propose to analyze six dramatics texts written by three Latin
American women. The chosen writers are the Argentinean Griselda Gambaro; the Chilean
Inés Margarita Stranger; and the Portuguese one, rooted in Brazil, Maria Adelaide Amaral.
Keywords: female dramaturgy; woman; silence; theatre.

1
Estudante de graduação em Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do Programa de Bolsas
de Iniciação Científica FAPEMIG, orientada pelo prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre. E-mail:
[email protected]
Revele n.8 maio/2015

Introdução

Ao longo da história a mulher foi constantemente condenada ao silêncio. Silêncio na


vida familiar, na sociedade, na política e nas artes. Privada da construção de um discurso
próprio, foi submetida a gerações e gerações de discursos distorcidos que deram à figura
feminina papéis reducionistas e que a colocam no lugar de submissão e inferioridade diante
do homem.
Até o século XIX, a mulher era pouco ou nada contemplada por procedimentos de
registro primário dos quais a história é tributária. Desses registros, que privilegiavam a esfera
pública da sociedade, sobretudo o mundo político e econômico, somente participava o
homem. Quando aparecem registros de indivíduos do gênero feminino, estes são englobados
dentro de uma “entidade coletiva e abstrata à qual atribuem-se caracteres de convenção. [...]
Assim, olhar de homens, sobre homens, os arquivos públicos calam as mulheres” (PERROT,
1998, p. 35).
Partindo da análise de obras literárias, quando outras formas de registros históricos
não são abundantes, revela-se o silêncio do pensamento legítimo feminino desde a
antiguidade. Segundo Cardoso (2003), a mulher esteve sempre presente na literatura de Roma
desde a instauração da escrita no século IV a.C. até o século VI d.C. Porém, a ausência da
mulher como autora dessas obras contribui para que sua imagem seja trazida de forma
generalista e estereotipada e, assim, como descreve a mesma autora:

A literatura cristalizou e congelou alguns tipos. Deformando os modelos,


certamente. Construindo imagens provavelmente bastante distantes da
realidade. Mas, além dos textos, sem terem sido retratadas ou submetidas a
limites, as mulheres de Roma [...] carregaram seus fardos, palmilharam
caminhos sem fim, mas não deixaram marcas de suas existências.
(CARDOSO, 2003, p. 279)

Esse quadro se repete ao longo da história e a mulher é impedida de expressar-se


publicamente até que algumas reviravoltas, como a entrada da mulher no mercado de trabalho
durante a segunda Grande Guerra, o feminismo e o movimento operário, vão, aos poucos,
quebrando barreiras. Dessa forma: “O volume e a natureza das fontes das mulheres e sobre as
mulheres variam consequentemente ao longo do tempo. Eles são por si mesmos índices de sua
presença e sinal de uma tomada da palavra que se amplia e faz recuar o silêncio [...]”.
(PERROT, 1998, p. 13)
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A presença da mulher na literatura, na ciência, na política e nas artes, de maneira geral,


já configura, por si só, um grande avanço para a desmistificação da figura feminina. A voz da
mulher começa a ser ouvida e a dramaturgia tem fundamental importância na disseminação
desse discurso, como observa Vincenzo (1992, p. 22):

A poesia e a ficção tinham sido sempre os modos preferidos da expressão


literária da mulher. Mas agora, ao lado dessas formas tradicionais (e
fundamentais) a palavra dita em voz alta no palco começa a fazer-se
presente. Era um dos movimentos iniciais de apropriação do espaço público,
uma das metas da luta que a mulher se dispõe a assumir.

Com a palavra dita em cena, a mulher é capaz de se expressar e de expor o


pensamento feminino a uma grande quantidade de pessoas simultaneamente, o que torna o
teatro e a dramaturgia feminina algo capaz de transformar a sua condição.
Por outro lado, a questão da mitificação da figura da mulher, por ser milenar, não se
transmuta rapidamente. A própria representante do gênero, muitas vezes, se enxerga de
maneira equivocada e assim contribui para a continuidade de sua situação de exclusão. Nota-
se a presença dos mesmos “mitos femininos”, relacionados a essa imagem imposta à mulher,
mesmo que agora o discurso venha dela mesma, como também podemos argumentar a partir
da assertiva de Vincenzo (1992, p. 19) que nos diz que “A caracterização psicológica das
personagens femininas nas peças das autoras é muitas vezes tecida dessas distorções, desta
‘incapacidade’ fundamental da mulher”.
De qualquer forma, o texto dramático permite à mulher dar voz às suas convicções e
formas de pensamento no espaço público, há muito renegado à figura feminina. A
possibilidade de ver suas palavras expressas na voz e no corpo de outra representante do
gênero também ampliam o alcance e a importância desse estilo literário.

Escrita feminina e pulsão anárquica

A partir do surgimento das teorias feministas também surge a necessidade de um


melhor entendimento sobre a produção literária da mulher, que podemos chamar de “escrita
feminina”. Esse pensamento compreende a presença do elemento feminino tanto como
significante quanto como significado dentro do texto, estando mais relacionada com a
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condição marginal da mulher na sociedade patriarcal que com a questão gênero-sexual de


quem escreve.
Nelly Richard (1993, p. 35) distingue as escritas feminina e masculina como podemos
observar no seguinte trecho:

[...] para além dos condicionamentos biológico-sexuais e psicossociais que


definem o sujeito autor e influenciam certas modalidades de comportamento
cultural e público, a escrita põe em movimentos o entrelaçamento
interdialético de várias forças de subjetivação. Pelo menos duas delas
respondem uma a outra: a semiótico-pulsional (feminina) que sempre
transborda a finitude da palavra com sua energia transverbal, e a
racionalizante-conceitualizante (masculina) que simboliza a instituição do
signo e preserva o limite sociocomunicativo.2

Essas características podem ser percebidas na escrita literária e, a preponderância de


uma forma sobre a outra pode caracterizar a escrita como masculina (linear) ou feminina
(desestruturadora).
Dessa forma, de acordo com Richard (1993), a escrita feminina está relacionada com
toda literatura que trasgrida a hegemonia masculina, o discurso patriarcal majoritário e a
identidade feminina estereotipada, e que subverta, a partir de sua força semiótico-pulsional, o
formato regulamentar da cultura dominante.
No caso da dramaturgia esses aspectos podem também ser facilmente observados. A
escrita dramatúrgica pode seguir modelos e práticas padronizadas ou os pode subverter,
utilizando de rupturas na linearidade, fragmentação e contextos incomuns. Assim, pode
caracterizar-se ou não como “escrita feminina”.
Também é possível perceber quando o texto dramático feminino perpetua ou não a
cultura do “sexo frágil” ou reforça outros “mitos femininos”. Essa contradição pode ser
observada ao analisarmos não só o conteúdo desses textos, mas também a forma como são
concebidos.
Rojo (2011) denomina de pulsão anárquica essa “força de ruptura formal ou de
conteúdo” presente na escrita feminina. Entende-se que ambas as forças são extremamente
necessárias quando se trata de temas revolucionários com algum engajamento. Isso significa

2
Tradução nossa. No original: “[...] más allá de los condicionamientos biológico-sexuales y psico-sociales que
definen el sujeto autor e influencian ciertas modalidades de comportamiento cultural y público, la escritura pone
en movimiento el cruce interdialéctico de varias fuerzas de subjetivación. Al menos dos de ellas se responden
una a otra: la semiótico-pulsional (femenina) que siempre desborda la finitud de la palabra con su energía
transverbal, y la racionalizante-conceptualizante (masculina) que simboliza la institución del signo y preserva el
límite sociocomunicativo.”
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que uma obra que se propõe à ruptura de paradigmas pode ficar enfraquecida ou até perder
esse poder ao se limitar a uma estética que reforça padrões pré-estabelecidos.
Para analisarmos os textos dramáticos femininos com mais rigor e embasamento, de
forma a perceber de que maneira neles ainda se encontra impregnada a cultura patriarcal,
devemos pensar em como a pulsão anárquica se faz presente, seja como conteúdo, seja dentro
do aspecto formal da obra. A estética anarquista se diferencia do que é padronizado e repetido
sem reflexão e entendimento. Nessa estética o resultado final é menos importante que todo o
processo de criação. Nela se tem liberdade para criar sem restrições de padrões formais e
modos de fazer já desgastados, como a questão temporal que perde a obrigatoriedade de
cronologia, como afirma a autora:

Essa concepção de tempo determina uma ruptura com a causalidade em prol


de uma percepção analógica da própria existência e do fazer artístico. Em
termos práticos, tal percepção permite ao sujeito estabelecer vinculações
inviáveis a partir de uma visão meramente cronológica do tempo, estando,
inclusive, relacionada à maneira dispersa, não centralizada, de os anarquistas
se organizarem como movimento. (ROJO, 2011, p. 19)

A ruptura com esses padrões estéticos se torna, dessa forma, uma ferramenta dentro
dos demais processos que levam a mudanças de paradigmas culturais. A estética que traz o
novo e inusitado pode ser capaz de demonstrar o quanto o padrão conservador pode estar
ultrapassado e, muitas vezes, equivocado.

A dramaturgia feminina na América Latina na década de 1990

A história da América Latina foi marcada por uma constante de dominação, desde sua
colonização, até os dias de hoje. Essa dominação foi se modificando, mas permanece presente
influenciando em diversas questões políticas, econômicas e sociais da região.
A partir da década de 1990 a imposição do neoliberalismo pelos países do centro do
capitalismo mundial aos países da periferia do sistema, como os Latino-americanos, gera uma
nova fase de dependência ligada ao capital fictício e aos endividamentos externos crescentes.
A relação entre centro e periferia gera uma grande perda de recursos e restrições ao
crescimento externo dos países menos desenvolvidos, ao mesmo tempo em que favorece e
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enriquece os países hegemônicos. Essa relação resulta, dentre outras coisas, em uma forte
exploração do trabalho nos países periféricos, como forma de reverter esses prejuízos.
A imposição desse novo modelo econômico, que se deu de forma extensiva, nos países
periféricos, dentre eles os pertencentes à América Latina, se deu por meio de promessas de
melhorias econômicas e sociais como explica Marisa Silva Amaral (2007, p. 4):

[…] o discurso propalado pelos organismos internacionais (destacadamente,


FMI - Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e BIRD - Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento) era o de que as reformas
estruturais que incentivassem o funcionamento dos mercados, apoiado na
iniciativa privada e na menor presença estatal nas atividades econômicas,
garantiriam a retomada das altas taxas de investimento e o crescimento
econômico com distribuição de renda.

Dessa forma, vários países da América Latina foram impelidos a privilegiar a


produção de mercadorias com maior demanda internacional em detrimento de estratégias mais
adequadas ao crescimento de cada país especificamente. A intenção de se inserir no mercado
externo tornou-se prioritária, sendo norteada por processos de abertura comercial e financeira.
Porém, esses países, cada vez mais dependentes, perderam sua capacidade de negociação com
o mercado externo, por terem sido precocemente inseridos na concorrência internacional.
O Estado, nesses países periféricos, por sua vez, se afastava cada vez mais da
atividade econômica, realizando diversas privatizações; perdia sua autonomia política por
estar à mercê do capital financeiro e; devido à grande dificuldade de crescimento por
restrições desse mercado se via obrigado a manter altas taxas de juros.
De acordo com Ibarra (2011), as consequências sociais desse tipo de política
econômica são contrárias àquela prevista inicialmente. O que podemos ver, especificamente
na América Latina, é um crescimento muito inferior ao dos países desenvolvidos.
Internamente, nos países latino-americanos, o que observamos, segundo Amaral (2007), é a
crescente desigualdade na distribuição da renda e a ampliação do desemprego ou a
superexploração do trabalhador. Além disso, como descreve um dos autores mencionados:

Em matéria social, salvo exceções, as políticas deixam de procurar a


ampliação do mercado interno, o pleno emprego e a universalização dos
acessos aos serviços públicos, como os de saúde ou educação. Por outro
lado, através da reforma dos sistemas de aposentadorias e levando-se em
conta a focalização na distribuição orçamentária de bens, se procura isentar o
fisco das obrigações, transferirem riscos do Estado às famílias e multiplicar
as oportunidades de negócios privados. (IBARRA, 2011, p. 242).
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Dentro desse cenário a sociedade é obrigada a arcar com diversos prejuízos sociais,
dentre eles o não acesso à educação de qualidade para grande parte da população dos países
latino-americanos. Esse quadro permite que se perpetuem antigos pensamentos e atitudes
preconceituosas, já superadas em algumas culturas do mundo. A título de exemplo, para
justificar este argumento, podemos fazer alusão aos altos índices de violência sofridos pelas
mulheres nesses países, seja ela pela opressão cultural, seja pela sua forma física, que, sem
sombra de dúvidas, é ainda mais brutal.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (2013)3, 70% das mulheres sofrem
algum tipo de violência no decorrer da vida, que pode ser física, psicológica ou sexual. Um
estudo da Iniciativa de Pesquisa sobre Violência Sexual na América Latina e no Caribe
(Sexual Violence Research Initiative, 2010, p. 28; p.40)4 demonstra que além desse tipo de
violência ainda ser uma realidade constante, acontece com mulheres e crianças e em grande
parte das vezes é realizada por pessoas próximas, inclusive parceiros, que ainda acreditam ter
esse direito. Além disso, ainda hoje, as vítimas de violência sexual muitas vezes não
denunciam esses atos por medo de represarias ou até mesmo por vergonha e sentimento de
culpa.
Isso demonstra e reafirma que, apesar dos avanços alcançados pelos movimentos
feministas e pela luta político-social da mulher, ela ainda é vítima de preconceitos,
estereótipos, padrões culturais discriminatórios e violência.
Diante desse contexto, onde a mulher ainda se encontra em processo de afirmação
dentro da sociedade latino-americana, e dos demais problemas socioeconômicos criados pela
política neoliberalista dos anos 1990, é que pretendemos analisar textos de três de suas
importantes dramaturgas.
Griselda Gambaro nasceu em Buenos Aires em 1928, iniciou sua carreira como
romancista, mas logo se dedicou à escrita dramatúrgica. Suas obras estão sempre em
consonância com o contexto político-social do momento em que foram escritas, pois
preocupava-se em romper com os padrões opressores e se apoiava na estética do absurdo para
tal. Devido à grande capacidade questionadora de suas obras, teve uma delas, Ganarse la
muerte, proibida no período ditatorial argentino por ter sido considerada contrária à instituição
familiar e à ordem social, além de ter vivido exilada na Espanha durante os anos de 1977 e
1980. Detentora de uma série de prêmios tanto por sua produção literária quanto pela

3
Disponível em: http://www.onu.org.br/unase/sobre/situacao. Acesso em: 20 dez. 2014.
4
Disponível em: http://www.svri.org/ViolenciaSexualnaALenoCaribe.pdf. Acesso em: 20 dez. 2014.
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dramatúrgica, Gambaro vive hoje no subúrbio de Buenos Aires. Dentre as temáticas presentes
em sua dramaturgia, a feminina possui grande destaque. No presente trabalho, analisaremos as
obras Falta de Modestia e De Profesión Maternal (GAMBARO, 2011), ambas do ano de
1997.
Inés Margarita Stranger é chilena, atriz, formada pela Escola de Teatro da Pontifícia
Universidade Católica do Chile, mestre em Artes do Espetáculo e Estudos Teatrais pelo
Institut d’Études Théâtrales, de la Université, Paris III, de la Sorbonne Nouvelle, onde
desenvolve, atualmente, seu doutorado. Também é diretora, desde 2006, do Teatro da
Universidade Católica do Chile e dramaturga, tendo escrito dentre outros, os textos Cariño
Malo (STRANGER, 1996) em 1990 e Malinche (STRANGER, 2012) em 1992, ambos os
trabalhos serão analisados a seguir.
Maria Adelaide Amaral nasceu em 1942 em Alfena, distrito do Porto em Portugal.
Aos doze anos, mudou-se para São Paulo, onde, anos depois, se formou em jornalismo pela
Faculdade Cásper Líbero. Já em 1975 escreveu seu primeiro texto dramático, denominado A
Resistência, inspirando-se na situação econômica do período e em seus impactos nas relações
sociais. Em 1990, inicia seu trabalho junto à Rede Globo como dramaturga, escrevendo
diversas novelas, séries e minisséries de sucesso. Pensando na temática feminina dentro do
trabalho da autora, serão analisados seus textos intitulados: Para Tão Longo Amor
(AMARAL, [1993]) escrito em 1993, e Querida Mamãe (AMARAL, 1995) de 1994.

Griselda Gambaro

Falta de Modestia é um breve monólogo de uma mulher presidiária. No texto a


personagem narra como se deu sua convivência com as outras presas e como a vida a levou
até aquele lugar.
A prisão da personagem revela a influência negativa da figura masculina que, se
aproveitando de sua paixão cega, a corrompeu. Esse aspecto pode em certa medida afirmar
uma fragilidade feminina diante do amor, porém pode também ser vista como o desejo
reprimido da mulher, que é constantemente obrigada pela sociedade a ser correta, se casar e
cuidar de sua família. Essa mulher presa, então, seria aquela que rompe com o modelo
imposto socialmente e acaba sendo excluída do convício social. Uma frase presente no texto
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ressalta essa afirmação: “Eu recebi a vida como uma camisa apertada demais para os meus
desejos” (GAMBARO, 2011, p. 182)5.
A troca com um possível público, que acontece ao longo do texto, demonstra um
rompimento com a forma mais tradicional e naturalista do teatro que opta pela presença da
quarta parede. Esse rompimento aproxima o público da atriz-personagem e permite uma
maior comunicação entre eles.
A personagem narra que durante toda a vida desejou fazer parte da parcela mais bem
abastada da sociedade, porém sempre foi pobre e jamais pôde consumir aquilo que era
consumido pela população de classe alta. O contexto da época em que o texto foi escrito, que
permanece bastante atual até os dias de hoje, explica a ênfase dada à desigualdade social. O
contexto do neoliberalismo agravou essa situação em toda a América Latina, o que demonstra
o engajamento político-social da autora.
Outro aspecto bastante enfatizado na obra é a ausência do chamado “instinto maternal”
por parte da personagem. Ao descrever seus filhos, marido e sua vida em família com
desprezo, a personagem deixa claro não sentir a esperada vocação feminina para o trato
familiar.
O texto De Profesión Maternal narra o tumultuado reencontro entre mãe e filha depois
de quarenta anos de separação. O conflito está baseado na falta, na ausência, da mãe para a
filha, que se ressente profundamente disso. A sensação de abandono pela figura cujo amor é
considerado incondicional gera tristeza e rancor na filha, que é incapaz de perdoar a mãe.
Mais uma vez, Gambaro questiona o “instinto maternal” considerado intrínseco à
mulher. No caso do texto em questão a personagem principal se comporta de maneira
contrária ao esperado e deixa sua filha, ainda bebê, aos cuidados do pai. É interessante
observar que as características atribuídas à personagem, como egoísmo, individualismo e
irresponsabilidade, são normalmente destinadas à figura masculina sem que isso implique o
mesmo peso que têm quando dedicadas à mulher.
A presença de um casal homossexual no texto também revela a preocupação da autora
em fugir dos modelos tradicionais de família e discutir questões de diversidade. Ao mesmo
tempo, Gambaro revela o tabu existente nesse tipo de relação já que uma das personagens
evita comentar a relação diante de sua filha.
O contexto socioeconômico da América Latina também pode ser observado quando,
ao justificar sua ausência, a mãe revela as dificuldades econômicas que enfrentou por optar

5
Tradução nossa. No original: “Yo recibí la vida como una camisa demasiado estrecha para mis deseos”.
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pela carreira artística. A política neoliberal ao se preocupar exclusivamente com o


crescimento econômico do país, se ausenta das questões relacionadas a incentivos artístico-
culturais, o que torna a vida dos profissionais ligados a área extremamente difícil
financeiramente.
O embate geracional também se faz presente na obra em questão, já que mãe e filha
não compreendem o contexto em que cada uma está inserida ou foi criada. Esse embate gera
sempre uma série de conflitos de opinião já que cada personagem entende seu ponto de vista
como o único aceitável. Em De Profesión Maternal, a filha, ao contrário do que se espera, é
quem repreende a mãe por ter levado uma vida boêmia e sem grandes responsabilidades.

Inés Margarita Stranger

O texto Malinche de Stranger traz a história de uma família de mulheres oprimidas


pela guerra. O estrangeiro opressor é visto de diversas maneiras por cada uma delas e os
pontos de vista diferentes trazem conflitos e problemas para o lar.
Mais uma vez a figura da mãe tem presença importante no enredo e representa a
mulher que lutou para criar, sozinha, seus filhos. A mãe enfrenta situações econômicas
desfavoráveis que excluem a oportunidade de buscar estudo ou construir a vida da maneira
que deseja.
A autora opta por situar os acontecimentos em uma situação de guerra típica da
América Latina, em que a chegada do estrangeiro traz diversos conflitos e consequências
desastrosas para as comunidades locais. Não por acaso, o título do texto faz referência a uma
importante personagem da história da colonização mexicana. A Malinche é hoje considerada a
grande traidora em seu país por ter servido de tradutora aos colonizadores espanhóis.
Mesmo que os fatos descritos no texto não estejam contextualizados no período em
que o mesmo foi escrito, podemos interpretar que há uma referência às novas formas de
colonização da América Latina, como o imperialismo norte-americano, apoiado pela política
neoliberal desses países na década de 1990.
A aliança entre opressor e oprimido aparece de várias maneiras na obra de Stranger
trazendo a ideia de diversos pontos de vista sobre uma mesma atitude. Todas as mulheres
presentes no texto em questão se envolvem de alguma forma com o estrangeiro, podendo ser
consideradas traidoras ou serem absolvidas de acordo com o contexto no qual se situam.
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O texto também aborda o tema da violência contra as mulheres que ainda é bastante
atual no contexto da América latina na contemporaneidade. Após ser violentada pelos
estrangeiros uma das filhas diz um texto forte que pode resumir a dor posterior a um ato de
violência sexual: “Minha boca já não é minha boca. Minhas mãos já não são minhas mãos.
Estou muda para a dor e muda para o prazer” (STRANGER, 2012, p. 18)6.
Cariño Malo é um texto dramático construído de forma colaborativa e conta com as
experiências pessoais e pesquisa das três atrizes e da própria autora como base para sua
construção. No texto três mulheres discutem sobre a relação afetiva entre homem e mulher
trazendo os conflitos de gênero e as opressões comumente presentes nessas relações.
Em Cariño Malo observamos a presença de três pontos de vista diante de uma mesma
questão: a relação entre gêneros. As três personagens parecem estar presas em relações
amorosas desgastantes e lidam de formas diferentes com essa questão. Eva, fazendo jus ao
nome, tem medo de se desvincular do amor, mas procura uma saída menos dolorosa. Victória,
mais realista, percebe a situação ruim em que se encontra e procura se livrar da mesma. Já
Amapola é mais condescendente e busca justificativas para permanecer onde está.
A violência aparece no texto como a forma de se libertar da figura masculina
opressora. De maneira alegórica elas assassinam o ser amado e passam a tentar lidar com esse
fato sob os três pontos de vista, mais uma vez.
Ao final nota-se que pode se tratar de uma única personagem em um conflito interno,
rompendo assim com os estereótipos da figura feminina.
A dramaturgia fragmentada corresponde à ideia de escrita feminina. O texto é divido
em quadros aparentemente pouco relacionados entre si e com quebras bruscas entre as cenas.
O texto das personagens também é truncado e, muitas vezes elas parecem não se escutar
enquanto dialogam. Além disso, a quebra com os padrões de escrita dramática demonstra a
presença de uma pulsão anárquica que evita a linearidade e coerência entre os textos e ações.

6
Tradução nossa. No original: “Mi boca ya no es mi boca. Mis manos ya no son mis manos. Estoy muda para el
dolor y muda para el placer”.
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Maria Adelaide Amaral

O texto Para tão longo amor narra os conflitos presentes no relacionamento amoroso
da poeta Raquel com o editor Fernando, trinta anos mais velho. Os personagens pertencem à
classe alta carioca e precisam lidar com um constante conflito de gerações. Por isso,
discordam sobre várias questões como trabalho, relacionamento e família.
A personagem feminina é uma jovem de classe alta que apresenta atitudes infantis e de
constante rebeldia, o que se justifica pelo autoritarismo do pai. Raquel apresenta
características que, num primeiro momento, parecem refletir autonomia e liberdade, mas ao
longo do texto percebe-se que se trata de uma mulher frágil e depressiva. O contrário acontece
com Fernando que parece se fortalecer com a decadência da parceira. O personagem reflete a
figura do homem pobre, porém batalhador, que alcança sozinho prestígio e riqueza.
O texto é escrito de forma bem convencional, apesar de apresentar planos diferentes
que se intercalam. Esses planos permitem que o leitor saiba logo no início do texto que aquela
personagem jovem, petulante e cheia de vida se transformará em um ser debilitado e
dependente da figura masculina que despreza inicialmente.
A violência aparece diversas vezes ao longo do texto, sendo constante de maneira
verbal e vinda de ambos os personagens. Já a violência física é descrita mais de uma vez
quando Fernando bate em Raquel durante as discussões. Podemos dizer que o texto reflete a
realidade latino-americana já que a violência doméstica é bastante comum nesses países. Em
uma dessas situações, após agredir Raquel, Fernando diz: “Eu não queria fazer isso, mas você
me fez perder o controle” (AMARAL, [1993], p. 52), como se as provocações de Raquel
justificassem a agressão empreendida.
Por tentar ser independente e livre sexualmente Raquel acaba tachada de promíscua e
preguiçosa. Fernando a descreve como a chamada “mulher fácil” e insinua que “dois tanques
de roupa suja iam resolver todos os seus problemas” (AMARAL, [1993], p. 47). Essas
afirmações reafirmam o machismo presente na sociedade descrita pelo texto.
O contexto sexista é, mais uma vez, confirmado com o trágico final da personagem
feminina. Raquel retoma a posição de dominada, agora por outro homem que possui os
recursos e a saúde que ela já não mais possui.
Querida mamãe descreve o conflito de gerações presente na relação entre mãe e filha.
As discussões geradas pelas ideias contrárias e pelo contexto da falta, no qual a filha, que
também é mãe, se insere, faz com que, aos poucos, as personagens se revelem.
Revele n.8 maio/2015

Ao longo do texto, a ideia do que seria uma boa filha, ou uma mulher bem sucedida, é,
várias vezes, reforçada. Esse pensamento é personificado na figura da irmã mais velha de
Helô, também filha de Ruth, que é bonita, inteligente, “bem casada” e com uma carreira de
sucesso. Já Helô, de acordo com a própria personagem, foge desse padrão, pois tem
problemas na relação com a filha e separou-se do marido. Assim, percebe-se que a relação
entre mãe e filha é constantemente minada pelo discurso patriarcal.
A personagem de Helô parece não possuir um “instinto maternal” muito bem resolvido
como a mãe e a irmã e, por isso, se sente ainda mais frustrada como mulher. Além disso, seu
sentimento de rejeição é agravado quando sua relação amorosa com uma mulher é fortemente
repudiada pela mãe e pela filha.
A relação da mulher com a maternidade é ainda mais discutida no decorrer do texto.
Apesar de a personagem Helô reforçar a cada instante sua indiferença com relação à filha,
Ruth afirma que, apesar de todas as ofensas e desgostos vindos da caçula, o amor de mãe é
mais forte. Em revelação final Ruth diz a filha: “E também é verdade que muitas vezes odiei
você. Mas por mais rude e pervertida que você possa ser, você é minha filha. E eu te amo.”
(AMARAL, 1995, p. 81)
A violência aparece mais uma vez no texto de Maria Adelaide Amaral quando a mãe,
ofendida com as declarações da filha, bate-lhe no rosto. Há outro momento em que Helô,
irritada com a mãe, confessa ter vontade de agredi-la fisicamente.
O contexto é o da classe média brasileira e não há qualquer forma revolucionária de
escrita. O texto e as rubricas apontam para uma interpretação naturalista, assim como
acontece em outros textos de Maria Adelaide Amaral. Como afirma a própria autora:

Meu teatro não tem qualquer pretensão formal, não pretendo revolucionar a
dramaturgia brasileira e não me incomodo com aqueles que dizem que faço
um teatro velho. Estou mais preocupada em retratar a minha realidade,
dentro daquilo que uma vez disse Arthur Miller – o dramaturgo escreve com
os ouvidos. É isso que eu faço. Exatamente isso. (AMARAL apud
VINCENZO, 1992, p. 190).

Querida mamãe, utilizando a relação mãe e filha e o conflito de gerações, atravessa


diversas questões femininas sem definir um único ponto de vista. O texto permite que o
próprio leitor, por meio de suas experiências e vivências, tire suas próprias conclusões.
Revele n.8 maio/2015

Considerações finais

O contexto do Neoliberalismo latino-americano está presente de formas diversas em


todos os textos analisados. A crítica à desigualdade social e aos seus reflexos na construção
das relações pode ser observada com frequência. Stranger e Gambaro partem do ponto de
vista dos menos abastados enquanto Amaral traz o foco para as classes alta e média.
A escrita feminina descrita por Nelly Richard (1993) pode ser encontrada claramente
no texto Cariño Malo. A dramaturgia de Stranger pode ser entendida como feminina no que
diz respeito tanto à forma quanto ao conteúdo. A presença de textos desconexos e a ausência
de linearidade apontam para esse formato desestruturador da escrita feminina.
Em Malinche o próprio título já apresenta uma figura feminina complexa que foi
condenada pela sociedade mexicana como a grande traidora. Ao longo do enredo, Stranger
problematiza essa traição por meio dos pontos de vista discordantes de quatro mulheres,
sendo que todas podem, de alguma forma, serem consideradas traidoras. Dessa maneira, a
autora desmistifica a chamada “natureza feminina” e mostra a diversidade que
verdadeiramente existe até mesmo dentro de uma mesma família.
A temática fortemente feminina e de ruptura com padrões culturais acerca da mulher
traz aos dois textos de Griselda Gambaro aqui analisados o caráter de escrita feminina.
Em ambos os textos o “instinto maternal” mostra-se como algo fantasioso que não é
intrínseco às mulheres. Além disso, Gambaro descreve personagens que prezam por sua
liberdade e rompem constantemente com o padrão social imposto à figura feminina. Dessa
forma, a construção dessas personagens se torna questionadora na medida em que elas são
consideradas individualistas, egoístas e insensíveis, o que seria normalmente aceitável a um
homem.
A questão da maternidade em Querida Mamãe de Maria Adelaide Amaral aparece das
duas formas. A personagem Ruth demonstra que o amor materno é maior que qualquer
problema ou discordância, enquanto Helô, descrita como uma mulher problemática, tem
dificuldades em lidar com a própria filha.
Em Para tão longo amor essa mulher “problemática” volta a aparecer na figura de
Raquel que parece não sustentar a postura independente e forte e acaba sempre sendo
amparada pelo amante. Os dois textos, por reproduzirem algumas ideias ligadas ao estereótipo
feminino e por não romperem com padrões estéticos, não podem, baseando-se em Richard
(1993), ser descritos como escritas femininas. Essa ausência de questões inovadoras no ponto
Revele n.8 maio/2015

de vista da mulher também leva a crer que não há indícios de uma pulsão anárquica em sua
escrita.
O caráter de ruptura presente tanto em Stranger quanto em Gambaro, caráter este
apresentado tanto na forma quanto no conteúdo de suas obras, oferece às suas dramaturgias
um cunho anárquico. Essa ruptura acontece na valorização de personagens fora do padrão
feminino disseminado e no esforço pela desmistificação da mulher, mostrando sua
diversidade e, assim, quebrando com algumas questões de gênero.
Em um contexto como o da América latina, onde a mulher ainda sofre com
preconceitos, opressões sociais e violência, a busca pelo rompimento com o padrão sexista da
sociedade é sempre de grande importância. Por outro lado, o fato de termos mulheres
dramaturgas encenadas, que trazem personagens femininos importantes e mais próximos da
realidade, também faz parte da luta contra essa cultura opressora. Rompermos o silêncio já
configura um avanço em direção a mais e novas mudanças.

Referências

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Recebido em: 14/09/2014

Aceito em: 20/10/2014

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