Darcio Rundval

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

DARCIO RUNDVALT

PARA ALÉM DO CENÁRIO, DO PALCO OU DO PITORESCO:


a paisagem dos Campos Gerais no Paraná nos relatos de viagem do século XIX —
Auguste de Saint-Hilaire, Thomas P. Bigg-Wither e Visconde de Taunay

PONTA GROSSA
2016
DARCIO RUNDVALT

PARA ALÉM DO CENÁRIO, DO PALCO OU DO PITORESCO:


a paisagem dos Campos Gerais no Paraná nos relatos de viagem do século XIX —
Auguste de Saint-Hilaire, Thomas P. Bigg-Wither e Visconde de Taunay

Dissertação apresentada para obtenção do título de


mestre em história, área de História, Cultura e Identi-
dades.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Alessandra Izabel de Carva-


lho.
Co-orientador: Prof. Dr. José Augusto Pádua.

PONTA GROSSA
2016
Ficha Catalográfica
Elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação BICEN/UEPG

Rundvalt, Darcio
R941 Para além do cenário, do palco ou do
pitoresco: a paisagem dos Campos Gerais no
Paraná nos relatos de viagem do século XIX
— Auguste de Saint-Hilaire, Thomas P.
Bigg-Wither e Visconde de Taunay/ Darcio
Rundvalt. Ponta Grossa, 2016.
130f.

Dissertação (Mestrado em História,


cultura e identidades - Área de
Concentração: História, cultura e
identidades), Universidade Estadual de
Ponta Grossa.
Orientadora: Profª Drª Alessandra
Izabel de Carvalho.
Coorientador: Prof. Dr. José Augusto
Pádua.

1.Relatos de viagem. 2.Campos Gerais do


Paraná. 3.Paisagem. I.Carvalho, Alessandra
Izabel de. II. Pádua, José Augusto. III.
Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Mestrado em História, cultura e
identidades. IV. T.

CDD: 918.162
AGRADECIMENTOS

Franz Kafka certa vez escreveu em seu diário: ―sou incapaz de suportar sozinho os
assaltos de minha própria vida, as exigências de minha própria pessoa, a ofensiva
do tempo e da idade, o vago afluxo do meu desejo de escrever, a insônia, a vizi-
nhança da loucura — sozinho sou incapaz de suportar tudo isso.‖ As palavras do
escritor tcheco poderiam ser minhas, mas infelizmente não são, por não consegui
escrevê-las, agradeço-o por tê-las escrito.
Agradeço, antes de tudo, a Bruna: o porto seguro que me desvizinha da loucura e
das ofensivas do tempo.
A minha mãe e meu pai.
A professora Alessandra Izabel de Carvalho e ao professor (espécie de ídolo laico-
anárquico e amigo) Antonio Paulo Benatte pela orientação, por acreditarem e por me
suportarem.
Ao DEHIS pela prontidão e auxílio.
Aos professores José Augusto Pádua e Dora Shellard pela leitura e críticas que aju-
daram a construir a pesquisa.
Agradeço aos meus amigos, são tantos, eu os poderia chamar Legião, e, por medo
de pecar pela falta, não os nomearei.
Aos amigos Trovadores: Felipe, Will, Augusto e Bortoli.
Obrigado, sem todos vocês eu seria incapaz de suportar a mim mesmo.
RESUMO

O período do fim do século XVIII e XIX é marcado pela realização das chamadas
―expedições científicas‖, nas quais instituições e/ou capitalistas mobilizavam grupos
de cientistas e capital com o objetivo de conhecer as potencialidades e produzir
imagens sobre o que consideravam ser o ―resto do mundo‖. A partir da vinda da cor-
te portuguesa e da abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, em
1808, Sérgio Buarque de Holanda propõe a ideia de um ―novo descobrimento do
Brasil‖: excetuando os primeiros momentos da colonização portuguesa em terras
brasílicas, o país nunca parecera tão atraente aos geógrafos, aos naturalistas, aos
economistas, aos simples viajantes, como naqueles anos. Multiplicaram-se as via-
gens pelo interior do Brasil e a produção e circulação de relatos de viagem sobre o
território seguiram o mesmo ritmo. Desde esse período até o fim século XIX, os
Campos Gerais, no segundo planalto paranaense, foram visitados por viajantes eu-
ropeus e brasileiros. Os relatos deixados por eles constituem um importante conjun-
to documental para a historiografia paranaense. Dessa série, selecionei três para
compor a pesquisa que se segue. São eles: Viagem pela comarca de Curitiba, de
Auguste de Saint-Hilaire, sobre a viagem que o naturalista fez em 1820; Novo cami-
nho no Brasil Meridional, de Thomas Plantagenet Bigg-Wither, relata a permanência
do engenheiro em terras paranaenses de 1872-1874; e Viagem filosófica aos Cam-
pos Gerais e sertão de Guarapuava, de Visconde de Taunay, que narra a viagem do
então presidente da província em 1886. Nesses três relatos cada um dos viajantes
destacou os Campos Gerais, dedicaram várias páginas a descrever a paisagem,
buscando expor os elementos que a compunham e insistindo em sua grande beleza
e possível utilidade.

Palavras-chave: Relatos de viagem; Campos Gerais do Paraná; Paisagem.


ABSTRACT

The period from the end of the XVIII century throughout the XIX is marked by the re-
alization of the so called ―scientific expeditions‖, in which institutions and/or capitalists
mobilized groups of scientists and capital with the objective of learning the potentiali-
ties and produce images about what they considered to be the ―rest of the world‖.
Since the arrival of the portuguese crown and the opening of the brazilian harbors to
international commerce, in 1808, Sérgio Buarque de Holanda proposes the idea of a
―new discovery of Brazil‖: excepting the first moments of portuguese colonization in
brazilian lands, the country never seemed that appealing to the geographers, to the
naturalists, to the economists, to the simple travelers, as in those years. The trips
through the brazilian interior multiplied and the production and circulation of travel
reports about the interior followed the same rhythm. From this period to the end of
the XIX Century, the Campos Gerais, on the second Paraná plateau, were visited by
european and brazilian travelers alike. The reports left by them constitute an im-
portant documental joint for Paraná‘s history and geography. From this joint, I have
selected three to compose the research that follows. They are: Viagem pela comarca
de Curitiba, by Auguste de Saint-Hilaire, about the trip the naturalist made in 1820;
Novo caminho no Brasil Meridional, by Thomas Plantagenet Bigg-Wither, describes
the permanence of the engineer in Paraná‘s lands through 1872-1874; and Viagem
filosófica aos Campos Gerais e sertão de Guarapuava, by Visconde de Taunay,
which narrates the trip of the then president of the province in 1886. In these three
stories each one of the travelers highlights the Campos Gerais, devoting many pages
describing the landscape, looking to expose the elements which composed it and
insisting in it‘s great beauty and possible utility.

Key-Words: Travel-writings; Campos Gerais of Paraná; Landscape.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

IMAGEM 1 - Preparativos de Reinhard Maack antes da expedição


ao rio Tibagi, 1930.......................................................... P. 11

IMAGEM 2 - Shen Zhou (沈周, 1427-1509). O Poeta no topo da


montanha (杖藜遠眺)...................................................... P. 13

IMAGEM 3 - Caspar David Friedrich. O caminhante sobre o mar de


névoa. c. 1818................................................................ P. 13

IMAGEM 4 - Localização dos Campos Gerais do Paraná.................. P. 15

IMAGEM 5 - Pinheiro brasileiro (Araucaria brasiliensis) — Acampa-


mento do grupo I, à margem da floresta de pinheiros.... P. 86

IMAGEM 6 - Briga de mulas bravas, na fazenda fortaleza, em dispu-


ta pelo sal........................................................................ P. 87

IMAGEM 7 - The valleys of the Tibagy & Ivahy. Province of the Pa-
rana, south Brazil, by T. P. Bigg-Wither.......................... P. 115
LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Caracterização dos viajantes. Elaborado a partir dos


dados colhidos na pesquisa........................................ P. 17
Sumário

APRESENTAÇÃO...................................................................................................... 9

Capítulo 1 — A VIAGEM, O RELATO ...................................................................... 20

1. 1 — Saber o mundo: a viagem científica........................................................... 22

1. 1. 1 — Um viajante exemplar: Auguste de Saint-Hilaire................................. 25

1. 1. 2 — O engenheiro aventureiro: Thomas Plantagenet Bigg-Wither ............. 33

1. 1. 3 — Um reformista modernizador, um conservador instável: Visconde de


Taunay .............................................................................................................. 36

1. 2 — A forma e conteúdo: dos olhos do Império e do Imperador ....................... 40

Capítulo 2 — PAISAGEM......................................................................................... 51

2. 1 — Ver a paisagem através das lentes culturais ............................................. 57

Capítulo 3 — FIGURAS ........................................................................................... 74

3.1 — ENTRADA .................................................................................................. 77

3.2 — ÁGUA ......................................................................................................... 82

3.3 — PINHEIRO .................................................................................................. 86

3.4 — ROCHAS .................................................................................................... 92

3.5 — CORES/CONTRASTES ............................................................................. 95

3.6 — VASTIDÃO ............................................................................................... 100

3.7 — JARDINS, POMARES E HORTAS ........................................................... 105

3.8 — LIMITES ................................................................................................... 112

3.9 — SOLO ....................................................................................................... 118

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 122

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 125


9

APRESENTAÇÃO

É fim do mês de Agosto. Estou sentado em frente ao notebook, mas olho pe-
la janela: lá fora o dia está nublado, desde o amanhecer até agora, ao entardecer,
não houve sol; um frio úmido, de fim de inverno, traz consigo uma ansiedade, na
verdade, talvez, apenas revele a ansiedade dos prazos, dos trabalhos, das leituras,
das contas a pagar, das responsabilidades: a ansiedade das obrigações da vida
adulta.
Dessa mesma janela de onde se podia ver há um ano atrás um majestoso
pinheiro de uns quarenta anos, um pinheiro que me viu crescer (se os pinheiros ve-
em… quem sabe?), não há mais muito o que se observar: o pinheiro foi cortado, um
estabelecimento comercial vermelho foi construído em seu lugar. Mas o mercado foi
mal planejado, ou seus donos tiveram azar (minhas maldições pela morte que cau-
saram talvez tenham pegado), e agora está abandonado, trancando a vista. Essa
vista que eu tinha antes da construção é fácil de descrever: estamos no fim do in-
verno, ao fundo as plantações de aveia amarelas que logo estarão secas e darão
lugar a outras plantações, soja dessa vez; não há muito colorido, pois os dias são,
em geral, cinzentos, e todas as terras cultivadas são do mesmo proprietário. Em um
primeiro plano vê-se várias casas, nenhuma regularidade nas construções, algumas
são de dois andares, outras são pequenas casinhas de alvenaria e há ainda algu-
mas de madeira; todo tipo de cor se mistura entre as casas: há verdes, roxas, ama-
relas, vermelhas, rosas, marrons, brancas… enfim, um arco-íris. Quase não existem
árvores, ou jardins; assim que chegou o asfalto — uma legislação municipal obrigou
os moradores a construírem calçadas, passeios, isso foi um pretexto para que todo
tipo de terra e barro fosse concretado — o vermelho e o preto da terra, o verde das
gramas, ou o multicolorido das flores desapareceram: só resta o cinza do concreto,
que começa a ficar empretecido pelas chuvas e o tempo.
Mas, se voltarmos à minha janela, e olharmos para baixo, para o solo, há um
pequeno jardim, um espaço intimista e irregular que insisto em cultivar. Há ali bromé-
lias, arvorezinhas, várias rosas e flores variadas, um xaxim, uma jabuticabeira poda-
da para que não cresça muito, há grama (ainda que quase toda morta pelo inverno e
pela sombra das construções ao lado); esse jardim não é muito rico, nem variado,
mas é fresco, frequentado por alguns míseros pardais e algumas gordas pombas
cinza. Pode-se até respirar com algum prazer.
10

A casa onde moro fica no Brasil, no Estado do Paraná, na cidade de Ponta


Grossa, conhecida como ―Princesa dos Campos‖ — nunca soube exatamente o por-
quê, apenas sei que tem relação com os Campos Gerais.
Quando eu era criança, me lembro de que quase não havia casas por perto,
e para se chegar a algum lugar atravessavam-se longos carreiros em meio aos
campos. Nessa época do ano algumas partes eram queimadas e, entre as cinzas,
era possível ver alguma cobra ou passarinho azarados que morreram queimados.
Em outras partes pastavam vacas e bois e, às vezes, alguma codorna ou perdiz saía
voando quase de baixo dos nossos pés. Os invernos pareciam mais rigorosos, as
noites eram mais escuras, e o que não faltava eram figuras místicas que povoavam
o lugar: meu irmão uma vez contou que viu algumas ―visagens‖, assombrações; mi-
nha mãe me assustava com todo tipo de criatura sobrenatural que saía pelas noites.
Até um piar de coruja era assustador.
Em menos de quinze anos todos os arredores mudaram: hoje se caminha
por ruas, tem-se medo apenas de encontrar algum assaltante à noite na rua ilumina-
da. O infernal latido dos cães e o barulho das buzinas dos automóveis por toda parte
tornam a vida quase impossível. Não que eu sinta uma grande saudade daquele
tempo, mas as mudanças (perceptíveis apenas quando comparadas em décadas)
são chocantes: a perda do horizonte, o ar mais pesado, várias alergias e uma infini-
dade de postes e cabos das redes elétrica e telefônica tornaram minha vida mais
intimista, cada vez mais o espaço parece ter sido reduzido e tudo se complicou. Tu-
do isso move a pesquisa que se segue: estar no mundo, mas não ser tomado pela
grosseria do cotidiano, pelo sufocamento de uma perpetuidade que me faz prisionei-
ro e alheio das imagens do mundo.

Na década de 1930, o geógrafo alemão Reinhard Maack foi fotografado nos


arredores de Ponta Grossa, nos Campos Gerais do Paraná.
11

Imagem 1: Preparativos de Reinhard Maack antes da expedição ao rio Tibagi, 1930. Acervo particu-
lar de Alessandro Casagrande.

Essa fotografia é bastante emblemática para os que conheceram essa pai-


sagem (ou conhecem ainda seus fragmentos). Se fosse colorida, seria possível ver
os variados tons de verde que a compõem: do verde escuro e sombrio dos pinheiros
ao verde claro, quase amarelo ou até mesmo cinza, do campo; também seria possí-
vel ver o azul quase árido do céu sem nuvens, entre tantas outras cores. Se fosse
possível ouvir essa paisagem, o som de um pequeno lajeado faria um fundo quase
imperceptível, um calmante som de águas correndo entre pedras na depressão do
terreno; ainda se ouviria o piar das giticas (passarinhos semelhantes a pardais, os
famosos tico-ticos), um pio longo e solitário de alguma pomba na copa das árvores;
se ventasse (o que é muito provável), os pinheiros estariam balançando, e um som
grave e profundo viria dos capões de mata. Se fosse possível sentir algum odor, se-
ria quase impossível descrevê-lo, nosso vocabulário é pobre em palavras para esse
sentido que foi relegado a um papel secundário. Os paladares da paisagem são
quase inenarráveis — se eu dissesse para um leitor que esse lugar possivelmente
teria gosto de barro, água fresca e mato quase poderia ser compreendido; mas se
esse leitor nunca viu um pinheiro, ou comeu pinhão, a imagem (?) seria falha. E para
narrar as sensações táteis, haveria um vocabulário possível? Infelizmente, acredito
que não. Não é possível saber a estação, se faz frio, se faz calor, se o tempo está
fresco, a camisa de manga comprida de Maack dá entender que o tempos está fres-
co; é provável que ventasse (sempre venta nos Campos Gerais).
Uma longa tradição ocidental privilegiou a visão sobre os outros sentidos. Na
paisagem tudo converge para esse sentido, tudo se dá no olhar. Temos um extenso
vocabulário para descrever o que vemos, um vocabulário reduzido, mas ainda assim
12

operativo, para o que ouvimos; o paladar também tem seus adjetivos; mas as sen-
sações táteis e olfativas são difíceis de descrever. E, se nos perguntarmos, nossas
memórias mais afetivas, e que mais confiamos, não são despertas pelo olfato e/ou
pelo tato? Enfim, nossa cultura primou por uma operatividade dos sentidos e da lin-
guagem, e a nossa tradição de paisagem está totalmente ligada a isso.
Mas é necessário nos voltarmos mais uma vez à fotografia de Maack, para
agora nos perguntarmos sobre os artifícios da foto. Não foi o geógrafo que fotogra-
fou a si mesmo — os tão banais selfies de nosso tempo —, as câmeras da época
não permitiam esse recurso. Alguém distante acionou o dispositivo. Reinhard Maack
posa para a foto, ainda que sua atitude seja aparentemente despretensiosa, como
se fora fotografado distraído, e o fotógrafo (oculto atrás da máquina) se empenhasse
em destacar o seu retorno de uma saída rápida. Essas duas atitudes, tanto do fotó-
grafo quanto do geógrafo, nos fazem sentir como se acessássemos diretamente,
sem qualquer filtro, sem qualquer artifício, uma realidade, uma natureza. E a paisa-
gem, tão natural quanto os artifícios nos fazem querem crer, nos parece dada a vis-
ta, a apreciação.
Ainda que pareça uma atitude de má-fé ―desmascarar‖ o geógrafo e o fotó-
grafo produtores da bela imagem, concordo com Roland Barthes que afirma que fo-
ram ―os pintores que inventaram a fotografia (não tecnicamente, claro, mas fenome-
nologicamente)‖1. Esses artifícios utilizados para nos fazer sentirmos em contato
direto com uma realidade, sem o uso de filtros, sem que vejamos a partir do ponto
de vista de um observador; essas astúcias que nos fazem crer que a paisagem é um
dado, uma natureza, são antigas, milenares.
As duas imagens a seguir expressam a mesma astúcia artística da fotografia
anterior. Ainda que de períodos e locais completamente distantes os artifícios sãos
os mesmos. Os propósitos das três imagens são semelhantes, induzem o leitor a
perceber o entorno como natural, uma espécie de fundo — impressionantes com
certeza, sobretudo nas pinturas que, sob o nevoeiro, nos afastam do detalhe extre-
mado —, para que suponhamos o que se passa na consciência dos observadores
que, também observados (pelo fotógrafo ou pintor), nós observamos.

1
BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. Tradução de Leyla Perrone-Moisés.
São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 146.
13

Imagem 2: Shen Zhou (沈周, 1427-1509). O Poeta no topo Imagem 3: Caspar David Friedrich.
da montanha (杖藜遠眺). O caminhante sobre o mar de né-
voa. c. 1818.

A fotografia, mais do que a pintura, nos ―é obrigada a dizer tudo‖, ela ―é ple-
na, saturada de detalhes inevitáveis‖2. Assim, pela segunda barraca disposta ao fun-
do, posso supor que alguém fotografou Maack; posso também supor também que o
geógrafo posara para a foto (despretensiosamente fotografado), pois ao deixar uma
fogueira acessa em campo aparentemente seco as chamas facilmente se espalhari-
am, e algum companheiro que estivesse ainda dormindo seria queimado vivo. Todas
as suposições sobre a foto são possíveis (e contestáveis) pelos detalhes; detalhes
esses que as pinturas não conseguem transmitir, pois, por mais meticuloso que seja
o olhar do pintor, escapam a narrativa e, como propõem as teorias da leitura e da
recepção, o que parece (ou é) uma falta na obra é então preenchida pela imagina-
ção e os conteúdos culturais do leitor, tornando toda obra artística uma atitude dialó-
gica.
Voltemos mais uma vez às imagens — não quero chatear um possível leitor
já no início do texto, haverão momentos cansativos mais adiante: se se pergunta a
qualquer pessoa o que é esse entorno, esse fundo das três imagens, é muito prová-
vel que a resposta seja ―é uma paisagem‖. A palavra paisagem nos soa como a pró-
pria natureza, não como resultante de uma arte, de um artifício; a paisagem não é
um artefato. Ora, é justamente isso que se pretende discutir nesse trabalho. As três
imagens são metáforas da consciência paisagística: um espaço que é observado por
alguém e que, pelo artifício narrativo, nos faz ver o ponto de vista do observador, e
2
BARTHES, op. cit., p. 151.
14

não a partir do ponto de vista do observador. Três espaços e três temporalidades


diferentes: a pintura de Shen Zhou (沈周) — poeta e pintor chinês do século XV da
era cristã — mostra um monge taoísta que, a partir do topo de um monte observa as
montanhas envoltas em um nevoeiro; dois elementos que compõe o próprio conceito
chinês de paisagem: as montanhas e as águas, o shanshui (山水)3. O quadro de
Caspar Friedrich retrata um homem, possivelmente um aristocrata, sobre uma pe-
quena elevação próxima a cidade de Dresden, na Alemanha, no início do século
XIX; ele observa o local, que não é descrito com detalhes, esse viajante representa
o arquétipo do indivíduo romântico4. Coincidentemente tanto o monge chinês quanto
o viajante alemão portam um bastão, espécie de suporte. E, por último, o geógrafo
Reinhardt, no século XX, nos Campos Gerais do Paraná, que montado a cavalo ob-
serva a mata de um ponto baixo, sem qualquer interferência de nevoeiro, sob um
céu possivelmente muito claro e sem nuvens.
O antropólogo francês Philippe Descola nos diz que ―nenhuma paisagem é
naturalmente dada, essa noção implica na existência de modelos perceptivos e um
trabalho de idealização da coisa percebida de maneira que se conforme a um este-
reótipo‖5. O que se almeja é entender como um ambiente, objeto (in situ)6, é media-
do por um sujeito a partir de um ponto de vista e torna-se uma paisagem, a imagem
do país (in visu), através de astúcias narrativas, e como essa conformação em uma
narrativa oculta toda a problemática que envolve a apreciação de uma realidade e os
interesses nisso envolvidos.

3
Sobre o conceito chinês de paisagem, Augustin Berque nos fala que: ―a palavra que, no século IV
no sul da China, e pela primeira vez no mundo, tomou o sentido de ‗paisagem‘, era shanshui, ‗os
montes e as águas‘. Ela fora utilizada durante séculos sem conotação estética, como o sentido de ‗as
águas da montanha‘, essencialmente pelos engenheiros hidráulicos que se preocupavam em corrigir
os estragos das torrentes. Essas águas da montanha eram também o refúgio de gênios da natureza
selvagem, hostis aos humanos‖. Em francês no original, tradução minha: ―Le mot qui, au IVe siècle en
Chine du Sud, et pour la première fois au monde, prit le sens de ‗paysage‘, était shanshui, ‗les monts
et les eaux‘. Il avait été utilisé pendant des siècles sans connotation esthétique, avec le sens de "les
eaux de la montagne", essentiellement par des ingénieurs hydrauliciens qui se préoccupaient de cor-
riger les ravages des torrents. Ces eaux de la montagne étaient aussi le repaire de génies de la na-
ture sauvage, hostiles aux humains‖. BERQUE, Augustin. Des eaux de la montagne au paysage (La
naissance du concept de paysage en Chine). s.d., p. 1. Disponível em : fundazione.univ-
corse.fr/attachment/407753/. Acesso em 22/06/2015.
4
Cf. GASSNER, Hubertus. O Caminhante sobre o Mar de Névoa, s/d, s/p. Disponível em:
https://www.deutschland.de/pt/topic/cultura/artes-arquitetura/o-caminhante-sobre-o-mar-de-nevoa.
Acesso em 25/06/2015.
5
Em francês no original, tradução minha : ―Aucun paysage n‘étant naturellement donné, cette notion
implique l‘existence de modèles perceptifs et un travail d‘idéalisation de la chose perçue de façon à ce
qu‘elle se conforme à un stéréotype‖. DESCOLA, Philippe. Écologie symbolique. Annuaire de
l‟EHESS, Paris, 2006, p. 380.
6
Essas noções serão explanadas no capítulo 2.
15

Para que possamos compreender de que se tratam os Campos Gerais do


Paraná, eles foram definidos como ―uma região fitogeográfica (isto é, caracteriza
pela sua vegetação natural), compreendendo os campos limpos e campos cerrados
naturais situados na borda do segundo planalto paranaense‖, e ―constituem vegeta-
ção reliquiar, isto é, remanescente de épocas mais secas do Quaternário (últimos
1,8 milhões de anos da história da Terra)‖7. Para se ter uma ideia da sua localização,
segue reproduzido um mapa elaborado pelo geólogo Mário Sérgio de Mello, a partir
dos critérios fitogeográficos definidos por Reinhard Maack:

Imagem 4: Localização dos Campos Gerais do Paraná. In: MELO, Mário Sérgio de; MORO, Roseme-
ri Segecin; GUIMARÃES, Gilson Burigo. Os Campos Gerais do Paraná, p. 17.

A denominação dessa área de Campos Gerais parece datar do final do sé-


culo XVII, quando Artur de Sá e Menezes, então governador do Rio de Janeiro, es-
creveu ao rei de Portugal, informando que ―[…] segue-se a utilidade dos Campos
Gerais, os quais são tão férteis para o gado que dizem estes homens, virão a ser
outra Buenos Aires porque para a parte sul confinam com os caminhos da nova co-

7
MELO, Mário Sérgio de; MORO, Rosemeri Segecin; GUIMARÃES, Gilson Burigo. Os Campos Ge-
rais do Paraná. In: ______. (ed.). Patrimônio natural dos Campos Gerais do Paraná. Ponta Grossa:
Uepg, 2007, p. 17.
16

lônia [possivelmente a Colônia de Sacramento, no atual Uruguai]‖8; mas é difícil ter


certeza sobre a toponímia no período, e o governador menciona ainda uma possível
ligação com a Bahia, no outro extremo do território — o que para o período não pa-
rece absurdo. De fato, a nomenclatura generalizante, campos no plural, define uma
variedade de tipos, entre campos limpos e campos cerrados, intercalados com gale-
rias de matas de araucária.
Como afirmam Mário Sérgio de Mello, Rosemeri Segecin Moro e Gilson Bu-
rigo Guimarães

A região denominada Campos Gerais do Paraná não tem uma definição


única e permanente, visto que esta tem sido modificada, atendendo a ne-
cessidades e conveniências de uma identificação regional dentro de um es-
tado com marcante dinâmica territorial nas últimas décadas.
A identidade histórica e cultural da região dos Campos Gerais remonta ao
século XVIII, quando, graças aos ricos pastos naturais, abundância de in-
vernadas com boa água e relevo suave, foi rota do tropeirismo do sul do
Brasil, com o deslocamento de tropas de muares e, posteriormente, gado de
abate, provenientes do Rio Grande do Sul com destino aos mercados de
São Paulo e Minas Gerais. Nessa época, os campos naturais da região to-
maram-se muito disputados, e a coroa portuguesa começou a expedir car-
tas de sesmarias em favor de homens a ela fiéis e de prestígio político local.
[…]
Mais recentemente, outras definições têm sido adotadas para os Campos
Gerais, atendendo a objetivos e interesses diversos, resultando em delimi-
tações também diferentes9.

No decorrer do século XIX, a partir da vinda da corte portuguesa para o Bra-


sil e a abertura dos portos às nações amigas, os Campos Gerais foram então visita-
dos por alguns viajantes europeus e os relatos deixados por eles constituem impor-
tante conjunto documental para a historiografia paranaense. Dessa série, selecionei
para compor a pesquisa dois relatos de viajantes europeus: Auguste de Saint-
Hilaire, Viagem pela comarca de Curitiba, publicado em 1851, relata a viagem que o
naturalista fez em 1820; e Thomas Plantagenet Bigg-Wither, Novo caminho no Brasil
Meridional, publicado em 1878, relata a permanência do engenheiro em terras para-
naenses de 1872-1874. Ainda, de uma personalidade brasileira bastante atuante
durante o período monárquico, o político e militar Visconde de Taunay, utilizo seu
relato Viagem filosófica aos Campos Gerais e Sertão de Guarapuava, publicado em
1923, relata a viagem que o então presidente da província fez em 1886. Essas três

8
ZULIAN, Rosângela Wosiack. ―A semente de uma grande cidade‖: uma leitura dos discursos cons-
truídos sobre a fundação da cidade de Ponta Grossa, Revista de História Regional, Ponta Grossa,
vol. 14, no. 2, 2009, p. 108-109.
9
MELO, Mário Sérgio de; MORO, Rosemeri Segecin; GUIMARÃES, Gilson Burigo. Os Campos Ge-
rais do Paraná, op. cit., p. 18-19.
17

narrativas foram selecionadas devido ao destaque que cada um dos viajantes deu
aos Campos Gerais. Todos os três dedicaram várias páginas a descrever a paisa-
gem, buscando expor para o leitor os elementos que a compunham e insistindo em
sua grande beleza e possível utilidade.
Para que o leitor possa ter uma ideia de quem eram as três personalidades
(que serão mais bem estudadas no capítulo seguinte) segue um breve quadro des-
critivo:

Nome Nacionalidade Ocupação Financiamento Período Objetivos


Auguste de Francês Naturalista Duque de Lu- 1820 (Janei- Coleta e inven-
Saint Hilaire xemburgo ro-Março) tário da flora

Thomas P. Inglês Engenheiro Visconde de 1872-1874 Construção de


Bigg-Wtiher Mauá estrada de ferro
(Curitiba/Pr-
Miranda/MS)
Visconde Brasileiro Político e Não consta 1886 (Março) Conhecer o
de Taunay Militar território

Quadro 1: caracterização dos viajantes. Elaborado a partir dos dados colhidos na pesquisa.

No primeiro capítulo, cada um dos viajantes e relatos é apresentado. No de-


correr desse capítulo busca-se expor as estreitas relações entre a produção de rela-
tos de viagem e os projetos imperialistas europeus (em especial de França e Ingla-
terra) e nacionalistas brasileiro do século XIX. Partindo da proposição de Sérgio Bu-
arque de Holanda de que a vinda da corte portuguesa ao Brasil em 1808, e a abertu-
ra dos portos brasileiros às nações amigas no mesmo ano, significou um novo des-
cobrimento do Brasil, é possível afirmar que a partir desse momento houve à inclu-
são do país em uma extensa rede de interesses coloniais europeus que se delinea-
vam. Os viajantes estrangeiros que percorrem o território brasileiro no decorrer do
período insistiram na prodigalidade da natureza brasileira, na vastidão do território e
na imensidão de seus recursos, assim como firmaram uma imagem do nativo como
indolente, preguiçoso, incapaz de fazer uso correto de todas as potencialidades da
nação.
A partir da independência brasileira de Portugal em 1822, começam-se a
firmarem projetos nacionalistas, visando integrar as diversas partes da ex-colônia
portuguesa ao Império que então se construíra. Esses projetos demandavam a ne-
cessidade de conhecer o território para administrá-lo; para isso diversos políticos,
engenheiros, eruditos, etc. viajaram pelo país. Essa elite nacional, profundamente
18

inspirada pelos viajantes do início do século, se apropriou dos discursos e formas


dos viajantes estrangeiros. Os relatos de viagem de brasileiros da segunda metade
do século XIX frequentam uma tópica imperial muito semelhante à europeia. Da
mesma forma que os europeus, os brasileiros insistiam nas potencialidades da na-
ção e na indolência de seus habitantes.
O conceito de paisagem é discutido teoricamente no segundo capítulo. Por
frequentar um amplo vocabulário científico, esse conceito é ambíguo e polivalente.
Tenta-se então torná-lo operativo em uma pesquisa em História: o que se compre-
ende quando se fala em paisagem? O que seria uma paisagem? Como os viajantes
apresentam e representam a paisagem dos Campos Gerais? São essas as questões
que norteiam a discussão teórica e multidisciplinar.
No terceiro capítulo proponho um procedimento usado pelo semiólogo fran-
cês Roland Barthes no decorrer de sua guinada pós-estruturalista, a partir dos anos
1970, em que se seleciona um tema, um problema (no caso um conjunto de proble-
mas descritos nos capítulos 1 e 2), fragmenta-se um conjunto de textos (fontes) e os
reordena-se em função daquilo que se denominam figuras. A partir dessas figuras
almeja-se tirar o discurso de sua condição de afirmação, de inatualidade. Nas pala-
vras de Barthes: ―quando um discurso é […] lançado por sua própria força na deriva
do inatual, deportado para fora de toda gregariedade, nada mais lhe resta além de
ser o lugar, por exíguo que seja, de uma afirmação‖10.
As figuras são o elemento fundamental para este procedimento. Uma figura
é uma ―alusão retórica‖, ―um pedaço delimitado de discurso, localizável porque intitu-
lável‖11. Elas não são hierarquizadas, ou quantificadas (pode-se, na medida em que
o discurso toma outras veredas, acrescentar ou retirar figuras); além disso, o objetivo
de reunir, de selecionar, de elencar uma figura de um dado discurso é torná-la atual,
é fazer com que aquele que lê ou ouve uma dada figura a reconheça, tornando pre-
sente a sua enunciação, atualizando, e assim portanto, dando um sujeito ao enunci-
ado.
Para que tal procedimento seja aplicado, uma nova estética textual é neces-
sária, pois se afasta do modelo científico — modelo fortemente marcado pelo méto-

10
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Márcia Valéria Martinez de
Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Roland Barthes), p. XVI.
11
BARTHES, Roland. O neutro: anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France,
1977 -1978; texto estabelecido, anotado e apresentado por Thomas Clerc. Tradução de Ivone Casti-
lho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Roland Barthes), p. 24.
19

do, que nas palavras do semiólogo francês ―fetichiza o objetivo como lugar e, assim,
afastando os outros lugares, o método se põe a serviço de uma generalidade, de
uma ‗moralidade‘‖12. Essa apresentação do texto é mais livre, as citações são usa-
das não enquanto elemento de autoridade, mas sim como a expressão mais clara
possível de uma ideia, de um problema; assim sendo, as referências são colocadas
no canto esquerdo do texto, com o nome do autor e a página citada, visando desta
forma maior fluência do texto principal à direita, composto dos fragmentos reunidos.
Assim, uma figura pode estar dispersa em partes distantes do próprio texto, e o sim-
ples ato de descolocar esses fragmentos e reuni-los a partir de uma figura ressignifi-
ca os elementos textuais, retirando-os de sua aparente ingenuidade narrativa; dis-
persos no enredo, esses elementos operam pela aparente neutralidade do ato de
narrar. Como são utilizados apenas os textos dos três viajantes, as referências à
esquerda indicam somente o autor e a página.
A partir desse procedimento irei elencar algumas figuras que podem ser
consideradas importantes da paisagem dos Campos Gerais e da percepção dos via-
jantes: água; pinheiro (Araucaria angustifolia); rochas; entrada; vastidão; solo; co-
res/contrastes; jardins, pomares e hortas; limites. Em função desse procedimento é
possível perceber que alguns temas e preocupações são constantes, que algumas
imagens se repetem, certos estereótipos se fixaram no imaginário, sobretudo quan-
do se fala na prodigalidade na natureza, na indolência dos habitantes locais e na
semelhança com as paisagens europeias (uma aproximação que visava à imigração
de trabalhadores europeus).

12
BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cur-
sos no Collège de France, 1976-1977; texto estabelecido, anotado e apresentado por Claude Coste.
Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Roland Barthes), p. 6.
20

Capítulo 1 — A VIAGEM, O RELATO

Étonnants voyageurs ! quelle nobles histoires


Nous lisons dans vos yeux profonds comme les mers!
Montrez-nous les écrins de vos riches mémoires,
Ces bijoux merveilleux, faits d‟astres et d‟éthers.

Nous voulons voyager sans vapeurs et sans voile !


Faites, pour égayer l‟ennui de nos prisons,
Passer sur nos esprits, tendus comme une toile,
Vos souvenirs avec leurs cadres d‟horizons.

Dites, qu‟avez-vous vu ?
(Baudelaire, Le voyage)13

Um novo descobrimento do Brasil. É assim, de maneira forte e contundente,


que o historiador Sérgio Buarque de Holanda define a série de acontecimentos de-
correntes da vinda da corte portuguesa e da abertura dos portos brasileiros ao co-
mércio internacional. Afirma o historiador que, excetuando os primeiros momentos
da colonização portuguesa em terras brasílicas, ―nunca o nosso país parecera tão
atraente aos geógrafos, aos naturalistas, aos economistas, aos simples viajantes,
como naqueles anos‖14. A colônia que até então permanecera desconhecida fora do
mundo português (o que se sabia sobre a fauna, a flora e a geografia brasileira não
ia muito além do que fora divulgado por Laet, Piso e Marcgrave na obra Historia Na-
turalis Brasiliae de 1648, quando do governo de Maurício de Nassau 15); a mesma
colônia onde se restringira a permanência ―suspeita‖ do naturalista Alexander von
Humboldt em 1800, sediava a partir de 1815, no Rio de Janeiro, o centro do Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire marca esse episódio na primeira
parte de sua série de relatos da Viagem pelo interior do Brasil; ressalta ele que
“Quando o rei D. João VI mudou para o Rio de Janeiro a sede do seu império, o

13
Na tradução literal para o português os versos de Baudelaire perdem seu efeito musical, obtido
através da métrica e das rimas, por isso a preferência em mantê-los no original em francês. Tradução
literal: ―Surpreendentes viajantes! que nobres histórias / Lemos em vossos olhos profundos como os
mares! / Mostrai-nos os escritos de vossas ricas memórias, / essas joias maravilhosas, feitas de as-
tros e éteres. / Queremos viajar sem vapor e sem vela! / Fazei, para alegrar o tédio de nossas pri-
sões, / passar sobre nossos espíritos, estendidos como uma tela, / vossas lembranças com seus
quadros de horizontes. / Dizei, que vistes?‖
14
HOLANDA, Sergio Buarque de. A herança colonial — sua desagregação. In: ______. (Dir.). História
Geral da Civilização Brasileira (Tomo II, Volume I). São Paulo: DIFEL, 1970, p. 12.
15
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo:
Alameda, 2008, pp. 97-133.
21

Brasil abriu-se, finalmente, para os estrangeiros. Essa terra, nova ainda, prometia
aos naturalistas as mais ricas messes‖16.
A curiosidade estrangeira, sobrepujada por tanto tempo, podia ser enfim sa-
ciada; ou como diz Sérgio Buarque: ―Nesses poucos anos foi como se o Brasil tives-
se amanhecido de novo aos olhos dos forasteiros, cheio da graça milagrosa e das
soberbas promessas com que se exibira aos seus mais antigos visitantes.‖ Daí a sua
tese de um ―novo descobrimento do Brasil‖; descobrimento este divulgado por meio
de textos e imagens dos ―muitos sábios estrangeiros que, pela mesma época, virão
conhecer para depois divulgá-las, as belezas e riquezas da terra‖17.
Para o sociólogo Gilberto Freyre, a presença de D. João VI (príncipe com
poderes de rei; figura singular, geralmente retratado como molenga e porcalhão), de
sua corte e seus ministros; ―a simples presença de um monarca em terra tão anti-
monárquica nas suas tendências para autonomias regionais e até feudais, veio mo-
dificar a fisionomia da sociedade colonial; alterá-la nos seus traços mais característi-
cos‖18. Com isso, um conjunto de medidas sociais e, principalmente econômicas,
―começaram a alterar a estrutura da colônia no sentido de maior prestígio do poder
real. Mas não só do poder real […]; também das cidades e das indústrias ou ativida-
des urbanas‖19. A partir desse momento, ―o patriarcado rural que se consolidara nas
casas-grandes de engenho e de fazenda […] começou a perder a majestade dos
tempos coloniais‖20.
Ainda, conforme Holanda, entre a classe letrada brasileira, formada nas uni-
versidades europeias do período, forjava-se ―a noção cada vez mais nítida das
imensas potencialidades de uma terra que o obscurantismo cobiçoso da mãe-pátria
queria para sempre jungida ao seu atraso e impotência‖21.
Tais mudanças tiveram efeitos significativos nas terras além-mar; a Inde-
pendência, em 1822, certamente foi aquela com maior potencial de reordenação dos
rumos nacionais — tal como havia observado de maneira perspicaz o inglês Robert

16
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais (tomo I).
Tradução de Clado Ribeiro de Lessa. São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/Porto Alegre: Companhia Edi-
tora Nacional, 1938, p. 21.
17
HOLANDA, op. cit., p. 12.
18
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do
urbano. Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil — 2. Rio de Janeiro: Record, 2000, p.
33.
19
Ibidem.
20
Ibidem.
21
HOLANDA, op. cit., p. 10.
22

Southey no início do século XIX: ―galho tão pesado não pode continuar unido, por
muito tempo, a tronco tão gasto‖22.
Para os viajantes, geógrafos, engenheiros, simples curiosos, esse momento
foi, sem dúvida, de intensa descoberta: ―o Brasil do início do século XIX estava sen-
do devassado por muitos viajantes, de várias origens, que vieram ao país motivados
por diferentes razões‖23.
Multiplicavam-se as viagens pelo interior do Brasil e a produção e circulação
de relatos de viagem sobre o território seguiram o mesmo ritmo — de fato a palavra
interior, como marca do desconhecido e do exótico, frequenta o vocabulário de qua-
se todos os viajantes até meados do século XX.
As permissões concedidas pela coroa portuguesa definiam uma complexa
hierarquia àqueles que desejavam visitar e estudar esse novo mundo: nem todos
poderiam ir a todos os lugares, e, em razão da conjuntura política, havia grande in-
disposição à presença de franceses em território brasileiro até 1816. Além disso,
nem todos os viajantes vinham ao Brasil pelo mesmo motivo. Certamente, havia a
atração pelo exótico; mas, para além da aventura, uma viagem além-mar no período
era uma tarefa difícil, que exigia preparação e recursos.

1. 1 — Saber o mundo: a viagem científica

A palavra viajante frequentemente nos soa plena, parece capaz de englobar


em uma única categoria toda uma miríade de indivíduos, projetos e objetivos. Ape-
sar de sua boa aplicação, de sua capacidade de definição, é necessário construir
uma tipologia diferenciada quanto à formação e aos objetivos de cada viajante. Nes-
se sentido, José Augusto Pádua insiste na necessidade de uma leitura mais deta-
lhada dos relatos de viagem; uma leitura capaz de questionar a importância das dife-
renças de condição profissional e institucional, de financiamento e de objetivos, e do
tipo de representação da paisagem local feita por cada viajante24.

22
SOUTHEY apud HOLANDA, op. cit., p. 11.
23
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem
pelo Brasil. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 24.
24
PÁDUA, José Augusto. Natureza e sociedade no Brasil monárquico. In: GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Império, Vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. João
Pacheco de Oliveira Filho propõe que é necessário refletir sobre ―a validade analítica da utilização da
categoria genérica de ‗viajantes‘ para um universo bem diferenciado de produtores intelectuais, onde
existem diferentes tipos de bens simbólicos envolvidos, cada um deles ligado a mecanismos bem
distintos de produção e de circulação, bem como a instâncias variadas de legitimação e consagra-
23

Com efeito, a divulgação era o elemento mais importante dessas


(re)descobertas; pois, se viajar nesse mundo não é novo, tão pouco há novidade em
relatar.
Por apresentar novos saberes, os relatos de viagem foram responsáveis pe-
la mudança de ideias e mitos no ocidente. Impondo imagens fortes e provocando
debates, essa forma de escrita foi bastante cultivada e possuía desde muito tempo
leitores cativos.
A viagem — ―deslocamento que se faz para ir de um local a outro relativa-
mente distante‖25 — é marca frequente de admiráveis figuras do imaginário ociden-
tal, sejam elas reais ou fictícias: Caim, depois de matar seu irmão Abel, foi condena-
do a ser peregrino e errante sobre a terra; Marco Polo ostenta em seu livro as mara-
vilhas do Oriente; Álvar Núñez Cabeza de Vaca, após um naufrágio na costa brasi-
leira, viveu entre os indígenas antropófagos, conheceu as gigantescas cataratas do
Iguaçu; entre tantas outras, essas figuras marcadas pela viagem são apenas alguns
exemplos entre tantas, pois como Réal Ouellet afirma ―sejam laicas ou religiosas,
coletivas ou individuais, fictícias ou históricas, elas [essas figuras] constituem ima-
gens fortes do destino‖26.
Para além de uma marca no imaginário, de um sinal de grandes persona-
gens, a viagem (entre valorizações e desvalorização ao longo do tempo) foi — e
ainda é — considerada uma das formas mais eficientes para aquisição de um saber,
sobretudo laico. Em um sentido específico, que aqui interessa, é a expedição do na-
turalista alemão Alexander von Humboldt à América espanhola (1799–1804) que
define ―o moderno modelo de expedição científica, intimamente associado à expan-
são do conhecimento‖27. Com isso, ―as crônicas de viagem, desde o início dos tem-
pos modernos — sobretudo a partir das últimas décadas do século XVIII — tradu-

ção‖. Portanto, para que essa categoria seja utilizada é necessário ater-se ―ao conjunto de autores
nomeados, recortados e valorizados por esses classificadores, isto é, a um domínio cristalizado de
ideias, fatos, juízos e avaliações, o qual se subordina a regras de produção próprias ao universo inte-
lectual‖. OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. Elementos para uma Sociologia dos Viajantes In:
______(org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 1986,
p. 92-93.
25
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Mini dicioná-
rio Houaiss da língua portuguesa (verbete Viagem). Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 759.
26
Em francês no original, tradução minha: ―Qu‘elles soient laïques ou religieuses, collectives ou indi-
viduelles, fictives ou historiques, elles constituent des images fortes de la destinée.‖ OUELLET, Réal.
La relation de voyage en Amérique (XVI e-XVIIIe siècles). Au carrefour de genres. Québec: Les
Presses de l‘Université Laval, 2010, p. 1.
27
PAZ, Francisco Moraes. Na poética da história: a realização da utopia nacional oitocentista. Curiti-
ba: UFPR. 1996, p. 204.
24

zem o permanente esforço de classificação e sistematização do conhecimento, de


enfrentamento e decodificação da heterogeneidade da cultura‖28.
Alguns eventos são essenciais na redefinição dos projetos, das viagens e
dos relatos de viagem a partir do final do século XVIII: a publicação, já em 1735, do
Systema Naturae (O Sistema da Natureza), de Lineu, que possibilitou a descrição, a
partir de um sistema único, de todas as formas vegetais terrestres em língua não
nacional, o latim; a expedição La Condamine que visava medições no equador para
provar a forma elíptica da Terra, no mesmo ano; e a já mencionada expedição de
Alexander von Humboldt, obra que notabilizou o naturalista alemão e estabeleceu
um novo paradigma para a escrita e compreensão da natureza 29; o aperfeiçoamento
das competências cartográficas, possibilitando viagens marítimas mais seguras e o
avanço aos interiores continentais.
Enquanto projeto de exploração e forma de adquirir conhecimento, a viagem
se difunde entre as instituições europeias de saber. O período do fim do século XVIII
e XIX é marcado pela realização das chamadas ―expedições científicas‖30. Institui-
ções e/ou capitalistas mobilizavam grupos de cientistas e capital com o claro objetivo
de conhecer as potencialidades e produzir imagens sobre o que consideravam ser o
―resto do mundo‖. Trata-se de ver com os próprios olhos, realizar uma autópsia, co-
mo propõe François Hartog — ato que ―fundamenta a veracidade das proposições
mas, além disso, presta contas da maneira de escrever do autor, justificando a pre-
sença repetida de marcas fortes de enunciação‖ 31. A produção de relatos de viagem,
a partir de então, deixa de ser exclusividade de ―viajantes-aventureiros‖, passa às
mãos de ―naturalistas, zoólogos, paisagistas‖ 32; também responde a finalidades es-
pecíficas: comunica descobertas, inventaria potencialidades, cria relações diplomáti-
cas; é, enfim, um ―museu de tudo‖ — para os habitantes do Velho Mundo, é claro.

28
PAZ, op. cit., p. 206.
29
Segundo Karen Macknow Lisboa, ―Humboldt anuncia um novo estilo de descrição de viagens cien-
tíficas. O autor formula uma ‗maneira estética de tratar temas de história natural‘, afim de complemen-
tar e intensificar as revelações da ciência sobre as ‗forças ocultas‘ que regem a natureza.‖ De forma
que ―praticamente todos os naturalistas e viajantes de expedições científicas […] que vieram ao Bra-
sil, desimpedidos com a abertura dos portos, inspiraram-se no estilo de viagem e de narrativa da obra
de Humboldt.‖ LISBOA, op. cit., pp. 40-44.
30
O sociólogo João Pacheco de Oliveira Filho insiste que as viagens científicas precisam ser vistas
enquanto ―um fenômeno regido por um conjunto de normas sociais específicas, um campo onde exis-
tem papéis e posições bem estatuídas e para o qual convergem expectativas e recursos definidos
socialmente‖. OLIVEIRA FILHO, op. cit., p. 102.
31
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Tradução de
Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 1999, 276.
32
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008, p. 45.
25

Unindo, de forma singular, a perspectiva científica e a visão romântica (essencial-


mente humboldtiana) da natureza em uma narrativa de aventuras e descobertas, os
relatos de viagem tinham grande recepção na Europa e, posteriormente, nas Améri-
cas. Além de uma leitura acessível ao público letrado, também ―serviam de fonte
para várias modalidades das ciências empíricas, justamente por sua forma pouco
especializada; em última instância, preenchiam certos requisitos difundidos pelo ide-
al pedagógico da Ilustração‖33. Nesse sentido, como aponta Mary Louise Pratt, ―en-
contramos uma imagem utópica do indivíduo burguês europeu, simultaneamente
inocente e imperial, professando uma benigna visão hegemônica que não instaura
qualquer aparato de dominação‖34.
Os cientistas da natureza, até então presos em gabinetes ou envolvidos em
incansáveis debates, passam a assumir uma postura mais ativa, a autópsia ganha
lugar de destaque em suas práticas; a viagem é, portanto, parte essencial em sua
vida: trata-se, assim, do cientista-viajante. Como expõe Flora Süssekind, ―se ao via-
jante cabe narrar, fixar tipos e quadros locais, ao cientista caberia classificar, orde-
nar, organizar em mapas e correlações o que se encontra pelo caminho‖35. Compete
então ao cientista-viajante do século XIX unir, em uma mesma narrativa, as duas
funções.
É nesse momento, então, que Auguste de Saint-Hilaire realiza sua extensa
viagem pelo país.

1. 1. 1 — Um viajante exemplar: Auguste de Saint-Hilaire

Auguste Prouvençal de Saint-Hilaire nasceu na cidade francesa de Orléans


em 1778, mesma cidade em que faleceu em 1853. De família afortunada e nobre,
dedicou-se aos estudos de História Natural, em especial à anatomia dos frutos e
propriedades curativas de plantas; sua atenção se voltava tanto aos aspectos filosó-
ficos da história natural (cuja inspiração vinha do famoso literato alemão Johann W.
Goethe e de Alexander von Humboldt), quanto aos aspectos práticos de sua especi-
alidade: seu olhar de cientista percorria desde o macro ao micro; tanto a filosofia na-
tural, quanto o utilitarismo se complementavam em sua mirada. Suas biografias dão

33
LISBOA, op. cit., p. 38.
34
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução Jézio
Hernani Bonfim Gutierre. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 69.
35
SÜSSEKIND, op. cit., p. 45.
26

nota de que viajou à Holanda e Alemanha antes de embarcar para o Brasil em 1816,
como componente da expedição do Duque de Luxemburgo; expedição essa que ob-
jetivava resolver o conflito entre Portugal e França quanto à posse da Guiana. Sua
estada no Brasil durou seis anos (1816-1822), fato marcante para a carreira acadê-
mica à qual se dedicou posteriormente.
Diz o próprio cientista:

Consagrei seis anos inteiros a percorrer uma vasta porção do império do


Brasil; palmilhei cerca de duas mil e quinhentas léguas [entre 12.000 a
16.000 quilômetros]; visitei as províncias de Rio de Janeiro, Espírito Santo,
Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Santa Catarina; passei vários meses na
república Cisplatina; vi tudo o que ainda resta das antigas missões jesuíti-
cas da margem esquerda do Uruguai, e ouso esperar que a relação da mi-
nha viagem acrescente numerosas noções novas às que já se possuem re-
36
lativamente à parte oriental da América do Sul .

Em seu primeiro relato da extensa série de Viagens no interior do Brasil, o


viajante afirma que sua saúde ficou debilitada depois da longa excursão; e, em
1828, reivindicou ao Ministério do Interior francês uma pensão pelos serviços pres-
tados à ciência: o cientista-viajante apresenta-se como uma espécie de mártir que
comprometeu sua saúde e vida à pátria e à ciência37.
O naturalista afirma que ―o estudo dos produtos vegetais do Brasil constituía,
sem dúvida, o objetivo principal da viagem‖; no entanto, não se descuidou em ―reco-
lher luzes que possam, sob outros aspectos, dar uma ideia perfeita de região tão
interessante‖38. Associando ciência e viagem, Saint-Hilaire alude que, ―o gosto pela
história natural faz nascer o de viajar‖, e que ―após ter estudado os objetos que o
rodeiam, o observador sente a necessidade de examinar outros, e daí esse desejo
insopitável, que experimentaram quase todos os naturalistas, de visitar regiões lon-
gínquas.‖
Diante da descrição de Saint-Hilaire uma questão se coloca: quais motivos o
impediram de visitar a Amazônia? Sendo a Amazônia uma das regiões de maior in-
teresse para os naturalistas europeus na época, chama a atenção a falta de menção
por parte do viajante francês a essa região; ainda mais, se considerarmos que Saint-
Hilaire acompanhava a expedição do Duque de Luxemburgo que se propunha a re-
solver o conflito entre Portugal e França pela posse da Guiana (em pleno território

36
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 13.
37
Cf. KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Revista Intellèctus, São Paulo, ano
2, n. 1. ROSSATO, Luciana. A lupa e o diário: história natural, viagens científicas e relatos sobre a
Capitania de Santa Catarina (1763-1822). Itajaí: UNIVALI, 2007.
38
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 13.
27

amazônico), as incursões às partes meridionais do Brasil, tidas como menos interes-


santes, pareceriam improcedentes.
Os litígios territoriais e os resquícios da invasão francesa à Portugal, quando
do período napoleônico, explicam a falta de menção do viajante às possessões bra-
sileiras na Amazônia. É muito provável que o naturalista não recebera uma autoriza-
ção da coroa portuguesa para visitar essas áreas praticamente inacessíveis.
Quanto à passagem de Saint-Hilaire pela então 5ª comarca de São Paulo, a
comarca de Curitiba, atual estado do Paraná, esta foi realizada no verão de 1820,
entre 26 de Janeiro e 4 de Março; período, ainda hoje, de frequentes chuvas e tem-
pestades, às quais se referiu repetidamente. Conta o viajante que nesse período
―não houve, talvez, dois dias seguidos sem chuva, e de fato essa é a época em que
as chuvas são mais abundantes‖ 39. Isso marcou de maneira efetiva tanto a sua per-
cepção da paisagem — como se verá adiante —, quanto a realização dos seus tra-
balhos, diz Saint-Hilare que ―choveu durante quase toda a jornada e eu recolhi muito
poucas plantas‖40.
Em território da comarca de Curitiba, Saint-Hilaire seguiu de norte a leste,
atravessando os Campos Gerais do Paraná entre Jaguariaíva, Tibagi e Castro; de-
pois seguiu para Curitiba, de onde rumou até Morretes, passando por Paranaguá e
Guaratuba e, daí, prosseguiu viagem para o litoral norte de Santa Catarina.
A impressão do relato que narra a passagem do viajante pelos Campos Ge-
rais foi realizada apenas em 1851, ou seja, 31 anos depois da viagem. Está contida
no segundo tomo da quarta parte das Voyages dans l‟intérieur du Brésil. Quatrième
partie. Voyage dans les provinces de Saint-Paul et Saint-Cathérine [Viagens no inte-
rior do Brasil. Quarta parte. Viagem nas províncias de São Paulo e Santa Catarina],
e foi impresso por Arthus Bertrand, libraire-éditeur, libraire de la société de géogra-
phie, em Paris. As edições brasileiras para esse relato separam a primeira metade
do segundo tomo para compor um livro à parte, buscando tratar apenas do trecho do
relato que descreve o estado do Paraná (inexistente antes de 1853, quando da
emancipação política da província).
Logo no paratexto editorial, o nome do autor é acompanhado por uma longa
descrição das funções e atividades que exercia, eram elas:

39
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela comarca de Curitiba. Tradução de Cassiana Lacerda
Carolo. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. (Farol do Saber), p. 16.
40
Ibidem, p. 38.
28

Membro da academia de ciências do instituto da França; professor na facul-


dade de ciências de Paris; cavaleiro da legião de honra, das ordens de Cris-
to e do cruzeiro do sul; das academias de Berlim, São Petersburgo, Lisboa;
c. l. c. dos curiosos da natureza; da sociedade lineniana de Londres; do ins-
tituto histórico e geográfico brasileiro; da sociedade de história natural de
Boston; da de Genebra; botânica de Edimburgo; médica do Rio de Janeiro;
filomática de Paris; de ciências em Orleans; etc41.

Todo o conjunto de adjetivações reforça a autoridade daquele que relata. Insere-o


em uma rede de instituições e em comunidades científicas internacionais. De fato
todos os paratextos editoriais — aquilo por meio de que um texto se torna um livro,
se propõe como tal a seus leitores: nome do autor, título, prefácio, ilustrações, etc42.
— revelam o caráter geral do relato, orientam sua leitura, apresentam a feição da
narrativa, manifestando os poderes e propósitos envolvidos na concepção da via-
gem e do próprio relato. O prefácio do autor para edição não é menos esclarecedor.
Diz Saint-Hilaire que em seu relato [relation]:

Encontrar-se-á descrito, com a mesma exatidão, não somente os lugares


que visitou, mas também as mudanças que os escritores indicaram depois
de sua viagem. [...] O autor se entregou às mesmas observações críticas, e
se esforçou a retificar vários erros que estão difundidos nos livros sobre a
geografia e etnografia do Brasil; citou, com o mesmo cuidado, todos os au-
tores dos quais emprestou algo e, com esse fim, se esforçou por reunir as
obras publicadas sobre o Brasil43.

Por trás de todos os paratextos se revela uma preocupação premente de todo via-
jante: a impossibilidade de confiar na própria memória e, inclusive, nas anotações
recolhidas durante a viagem — além, é claro, da afirmação da cientificidade preten-
dida no contexto já exposto. Pois, afinal, nada menos que trinta anos separam a via-
gem da escrita do relato.

41
Em francês no original, tradução minha: ―Membre de l‘académie des sciences de l‘institut de
France, professeur à la faculté des sciences de paris, chevalier de la légion d‘honneur, des ordres du
christ et de la croix du sud, des académies de Berlin, s. Petersburg, Lisbonne, c. l. c. des curieux de la
nature, de la société linnéenne de Londres , de l‘LNSTITUT historique et géographique brésilien, de la
société d'HISTOIRE naturelle de boston , de celle de Genève, botanique d‘Edimbourg, médicale de
Rio de Janeiro, philomathique de paris, des sciences n‘Orléans , etc.‖ SAINT-HILAIRE, Auguste de.
Voyage dans les provinces de Saint-Paul et Saint Catherine, tome second. Paris: Arthus Betrand,
Libraire Éditeur, 1851, p. III.
42
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2009,
p. 9.
43
Em francês no original, tradução minha: ―On y trouvera décrits, avec la même exactitude, non-
seulement les lieux qu'il a visités, mais encore les changements que les écrivains ont indiqués depuis
son voyage. Il s'est livré aux mêmes observations critiques, et a tâché de rectifier les nombreuses
erreurs qui se sont répandues dans les livres sur la géographie et l'etnographie du Brésil ; il a cité,
avec le même soin, tous les écrivains auxquels il a emprunté quelque chose, et dans ce but il a fait
tous ses efforts pour réunir les ouvrages publiés sur le Brésil.‖ SAINT-HILAIRE, Voyage…, op. cit., p.
V-VI.
29

Esse problema enfrentado na parturição do texto é latente quando Saint-


Hilaire descreve a população do distrito de Castro:

Conta a população do distrito de Castro com um número de homens verda-


deiramente brancos, muito maior do que nos distritos de Itapeva e de Itape-
tininga. Em 1820, a população da cidade se compunha de 5.000 indivíduos,
incluindo-se 500 escravos, mas tinha sido muito maior antes que o coronel
Diogo, por sua extrema severidade, não forçasse um grande número de
pessoas a deixar a região. Se os dados fornecidos por Pedro Müller são
exatos, houve a partir de 1820 um aumento de 1.190 indivíduos em dezoito
anos, o que devia dar, em 1839, uma população de 6.190, incluindo-se aí os
1.612 escravos, dos quais 727 eram negros africanos e 292 mulatos44.

Na tentativa de dar a ideia mais exata possível a uma impressão (a de que a


maioria da população dos Campos Gerais era predominantemente branca), o autor
recorre a não menos que três referências bibliográficas apenas nesse trecho, são
elas: Pizarro, Memórias históricas do Rio de Janeiro (1822); Spix e Martius, Reise in
Brasilien (1823); e Daniel Pedro Müller, Ensaio d‟um quadro estatístico da província
de São Paulo (1839). Nesse sentido, a proposição de Daniela Casoni Moscato de
que os cientistas-viajantes do século XIX eram também viajantes-leitores, e que ―os
relatos de viagem do século XIX, mesmo baseados na necessidade de comprovar a
experiência presencial, não descartam o diálogo com outros olhares de viagem‖ 45 é
de todo correta; tais viajantes eram leitores de relatos de viagem e literatura científi-
ca, não apenas europeia, mas também luso-brasileira.
Neste sentido, é preciso lembrar que vinda da corte portuguesa ao Brasil,
―com o imenso séquito de funcionários, fâmulos e parasitas que a acompanham‖,
evidenciou ―a debilidade de um domínio que a simples distância aureolara, na colô-
nia, de formidável prestígio‖46. Quando em 1820, após a derrota das tropas napoleô-
nicas e da revolução liberal, ―a praxe política pede, em Portugal, que se suprimam
no Brasil regalias já alcançadas e irrevogáveis, é fatal que daí por diante os dois rei-
nos devam tomar rumos distintos‖ 47. No Brasil a restauração do estatuto colonial se-
ria impossível: o retorno da corte e mudança da metrópole não deixou para trás a
antiga colônia, ela fora redescoberta, inclusive pelos próprios brasileiros.
A independência do Brasil em 1822 colocou uma série de problemas para a
nova nação. Como sintetiza Karen Macknow Lisboa, ―O domínio sobre a natureza, a
44
SAINT-HILAIRE, Viagem pela comarca…, op. cit., p. 77-78.
45
MOSCATO, Daniela Casoni. Viajantes leitores: algumas considerações acerca da presença das
obras dos naturalistas brasileiros setecentistas nos relatos de viagem dos oitocentos. In: Anais do
XXVII Simpósio Nacional de História, Natal, 2013, s/p.
46
HOLANDA, op. cit., p. 11.
47
Ibidem, p. 14.
30

exclusão do ‗selvagem‘, a miscigenação e a monarquia esboçam o alvorecer do jo-


vem reino no horizonte das nações ‗civilizadas‘, aproximando-o cada vez mais da
história do Velho Mundo‖48.
Havia, porém, aquilo que Capistrano de Abreu definiu como ―a herança dos
três séculos de domínio colonial‖: cinco grupos etnográficos, fracamente ligados pela
língua e a religião, moldados pelas condições ambientes, ―tendo pelas riquezas na-
turais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentindo pelo português aversão ou des-
prezo, não se prezando, porém, uns aos outros de modo particular‖ 49. O Brasil era
um imenso Sertão — possivelmente o sertão é o grande conceito brasileiro: até a
primeira república, imaginar o Brasil era imaginar o sertão, era deparar-se com o
imenso ―deserto‖ que deixava claro que o país ainda não estava terminado.
O gigantesco território ―herdado‖ de Portugal, que abrangia diversas forma-
ções naturais e populações, tornar-se-ia um problema para o exercício do poder.
Unir, sobre um mesmo domínio, toda a vastidão brasileira foi, sem dúvida, o grande
desafio do período imperial.
A abdicação de D. Pedro I e o período regencial marcaram ainda mais a
possibilidade da fragmentação territorial: no norte, o movimento paraense da Caba-
nagem (1835-1840); no nordeste, o movimento maranhense da Cabanagem (1838-
1841) e baiano da Sabinada (1837); no sul a Revolução Farroupilha (1835-1845), e
instituições das repúblicas do Piratini e Juliana.
Data desse período (1838) a fundação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, o IHGB, com a clara proposição de delinear o perfil da nação brasileira, a
partir da repulsa aos modelos das nações vizinhas e a grande influência dos ―redes-
cobridores‖ do Brasil — não à toa a obra do cientista-viajante Karl F. P. von Martius,
Como se deve escrever a história do Brasil, é a vencedora do concurso monografias
elaborado pelo Instituto em 1840, que objetivava selecionar o melhor projeto de his-
tória para a nação50. Para Francisco Paz, ―o texto de Martius configura-se, pois, num
verdadeiro exercício de desobstrução dos constrangimentos locais face ao passado
colonial — salvo quando pensamos nas questão das origens‖51. A proposta do natu-
ralista alemão insere o Brasil compulsoriamente no concerto das nações ocidentais

48
LISBOA, op. cit., p. 26.
49
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, 1500-1800. Belo Horizonte/Itatiaia/São Pau-
lo: Publifolha, 2000, p. 242.
50
PAZ, op. cit.
51
Ibidem, p. 236.
31

que, embora não houvesse cumprido todas as etapas, reunia inúmeras potencialida-
des para realizar sua missão civilizacional. A natureza ocupava nessa proposta o
elemento principal na composição da nação, sua singularidade definia a feição brasi-
leira.
Como diz Pádua, no contexto do Brasil monárquico, ―a fartura de espaços
naturais ainda densos de vida selvagem assumiu diferentes significados simbólicos
e políticos‖52. Ambiguamente ―foi saudada como um sinal de grandeza e poder‖, mas
também ―era uma realidade problemática para autores locais mais preocupados com
um projeto político de construção nacional.‖ Nesse contexto dois movimentos igual-
mente intensos conviviam: ―uma cultura de elogio laudatório da natureza e uma prá-
tica de contínua agressão contra algumas das suas principais manifestações‖53.
No campo cultural, especialmente literário, as imagens produzidas pelos ci-
entistas-viajantes do início do século XIX serviram de protótipo para a construção da
literatura romântica nacional. Flora Süssekind observa que ―o viajante ensina a ver,
organizar para os olhos nativos a própria paisagem e definir maneiras de descrevê-
las‖54. No projeto nacionalista, que de modo algum exclui a produção literária, ―per-
correr o país, registrar a paisagem, colher tradições‖, faz parte do esforço em definir
a nação. Esse projeto está presente em autores como José de Alencar e Visconde
de Taunay: a tentativa de firmar tipos regionais, inventariar a fauna e flora, percorrer
caminhos e desenhar paisagens.
Em 1853, dois meses após da morte de Saint-Hilaire, foi criada a província
do Paraná. Depois da findada as revoluções Farroupilha, no Rio Grande do Sul, e de
Sorocaba, em São Paulo, a nova província, ―fiel‖ ao imperador, teria surgido como
um ―obstáculo‖ que impedia a comunicação dos liberais paulistas e gaúchos e, con-
sequentemente, uma fragmentação do território brasileiro 55. De fato, após a emanci-
pação da província a administração pública se mostrava instável e ineficiente. O de-
creto que assinalou sua criação indicava que Curitiba seria a capital provisória, e as
discussões em torno da sede do governo (e até mesmo do nome 56) incluíam no rol

52
PÁDUA, op. cit., p. 236.
53
Ibidem, 238.
54
SÜSSEKIND, op. cit., p. 39.
55
Cf. OLIVEIRA, Ricardo Costa de. O silêncio dos vencedores: genealogia, classe dominante e Esta-
do do Paraná. Curitiba: Moinho do verbo, 2001.
56
O viajante lapeano Salvador José Correia Coelho reclama em 1860 do nome dado à província.
Dizia ele que: ―Se cumpria dar um nome de rio à nova província, porque não província do — ‗Iguaçu‘
— ? Mas antes porque não província de — ‗Curitiba‘ — ? Que necessidade de confundir essa deno-
32

das possíveis capitais as cidades de Paranaguá e Guarapuava, demonstrando que


em termos de importância na política local Curitiba não se diferenciava de maneira
efetiva das outras duas — até mesmo em números populacionais a diferença não
era significativa; como aponta o relatório de 1854 do baiano Zacarias Góes e Vas-
concellos, primeiro presidente da província, a população parananguara era de 6.333
habitantes, contra 6.791 curitibanos 57.
Aliás, o próprio Saint-Hilaire opinara sobre a possibilidade da criação de uma
província, o viajante insistia na fragilidade da nação e de uma possível nova provín-
cia:

Confesso, entretanto, que se fosse chamado a opinar sobre esse grave as-
sunto, eu hesitaria […] De uns certos tempos para cá cada arraial, cada lu-
garejo brasileiro deseja tornar-se sede de um distrito, cada cidade a cabeça
de uma comarca. Se essas reivindicações se estendessem também às pro-
víncias, se fosse concedida a Curitiba a sua separação de São Paulo, uma
centena de comarcas iriam querer o mesmo privilégio, e os laços, já frágeis,
que ligam as diferentes regiões do Brasil não tardariam a se tornar mais frá-
geis ainda. Ainda que a reivindicação dos curitibanos seja inteiramente justi-
ficada, talvez eles deem uma prova de seu patriotismo adiando-a mais uma
58
vez .

Com a maioridade de Dom Pedro II e o pacto entre as elites escravocratas


do país em favor da monarquia, criou-se um clima de tranquilidade no Império brasi-
leiro desde 1840. Em 1864, o início da guerra contra o Paraguai veio abalar a paz
que então reinava. Como expõe Francisco Doratioto: ―A longa duração da guerra,
que perdurou de dezembro de 1864 a março de 1870, criou uma nova realidade,
uma ‗vida intensa‘, no Rio de Janeiro.‖ Foi um momento crucial na história do país,
representando o ―apogeu da força militar e da capacidade diplomática do Império do
Brasil, mas, de forma paradoxal, contribuiu para o acirramento de contradições do
Estado monárquico brasileiro, enfraquecendo-o‖59.
Findada a guerra, dois anos depois chega a província do Paraná o enge-
nheiro inglês Thomas P. Bigg-Wither.

minação com a de Paraná, cidade capital da Confederação argentina? CORREIA COELHO, Salvador
José. Passeio à minha terra. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. (Coleção Farol do Saber), p. 71.
57
Relatório do presidente da província do Paraná, o conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcellos, na
abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 15 de julho de 1854. Curitiba: Typ. Paranaense de
Candido Martins Lopes, 1854, p. 143.
58
SAINT-HILAIRE, Viagem pela comarca…, op. cit., p. 182.
59
DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: nova história da Guerra do Para-
guai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 17-18.
33

1. 1. 2 — O engenheiro aventureiro: Thomas Plantagenet Bigg-Wither

Thomas Plantagenet Bigg-Wither nasceu na mansão de Tangier Park, em


Hampshire, Inglaterra, em 1845. Formou-se em engenharia civil no King‘s College,
em Londres. E, entre 1872-1875 veio ao Brasil, compondo o grupo organizado pelo
engenheiro sueco Christian Palm e contratado pela Paraná and Matto Grosso Sur-
vey Expedition; que, conforme indica Newton Carneiro, ―obtivera serviço nas docas
de Portsmouth, cujas obras de extensão constituíam a iniciativa mais notável da en-
genharia portuária do tempo. Essa experiência tornou-se a sua recomendação para
o contrato brasileiro‖60. Logo após seu retorno à Inglaterra realizou uma conferência
na Real Sociedade de Geografia sobre a o vale do rio Tibagi. Em 1882, o engenhei-
ro foi contratado para a construção da estrada de ferro Central de Bengala, na Índia,
atividade que exerceu até 1890. Com a saúde debilitada, nesse mesmo ano — após
receber a notícia de que um de seus filhos estava gravemente doente — faleceu em
alto mar, no Oceano Índico, quando retornava à Inglaterra.
O autor descreveu as atividades que realizaria na província durante o perío-
do. Diz ele que:

Em 1871, foi dada uma concessão pelo governo brasileiro ao barão (atual-
mente visconde) de Mauá e a outros para executar um levantamento envol-
vendo uma linha férrea e serviço de barco a vapor que ligaria Curitiba, a ca-
pital da província do Paraná, e a cidade de Miranda, perto da fronteira oci-
dental do Brasil, na província de Mato Grosso. […]
Esse levantamento começou no mês de agosto do ano seguinte, e o autor
foi contratado, junto com outros três engenheiros e uma equipe de índios e
operários brasileiros61.

O projeto de ligar os dois pontos (Curitiba e Miranda) evidenciava duas pre-


ocupações do governo Imperial: estabelecer um caminho rápido e eficiente com a
fronteira paraguaia em caso de outra possível guerra e possibilitar um grande fluxo
de pessoas e mercadorias entre as duas províncias: soldar os territórios e civilizar os
sertões.
Em 19 de junho de 1872, aos gritos de ―terra à vista‖, o jovem engenheiro
inglês chegou à capital do Império. Em seu relato, logo após o desembarque, fez

60
CARNEIRO, Newton. Nota biográfica de Thomas Plantagenet Bigg-Wither. In: BIGG-WITHER,
Thomas P.. Novo caminho no Brasil meridional: a província do Paraná, três anos de vida em suas
florestas e campos — 1872/1875. Tradução de Temístocles Linhares. Rio de Janeiro: José Olympio;
Curitiba: Ufpr, 1974, p. 23.
61
BIGG-WITHER, Thomas P.. O vale do Tibagi, Brasil. Tradução de Thomas Bonnici. In: ARRUDA,
Gilmar (org.). A natureza dos rios: história, memória e territórios. Curitiba: UFPR, 2008, p. 179.
34

questão de contar brevemente ao leitor a história da cidade e as estimativas de sua


população. Sua curta primeira estadia no Rio de Janeiro é marcada por um misto de
grandes impressões sobre o mundo natural e não tão menores dissabores cotidia-
nos: hospedagem, correio, doenças, etc.
Sua estada no Paraná durou de 1872 a 1874. Entre idas e vindas em busca
de suprimentos, empregados ou mulas de carga, passou pelas cidades de Parana-
guá, Antonina, Morretes, Curitiba, Campo Largo, São Luís do Purunã, Ponta Grossa,
Palmeira e Tibagi; também conheceu as vilas e colônias de Assungui, Ribeira, Tere-
za Cristina e São Jerônimo da Serra. Mas a maior parte desse tempo passou acam-
pado nos sertões dos vales dos rios Tibagi e Ivaí que, conforme dramatiza em sua
nota introdutória, foram vividos ―em meio a cenas ferozes da natureza selvagem,
onde nenhum homem civilizado antes penetrara e onde, durante semanas e meses,
a condição normal de vida fora a luta sem tréguas contra o meio natural‖62.
Suas experiências foram publicadas em dois volumes, em 1878, sob o título
de Pioneering in South Brazil. Tree years of forest and praie life in the Province of
Paraná, pelo famoso editor de relatos de viagem londrino John Murray 63, conta com
ilustrações do próprio autor e dois outros colaboradores, G. Selwyn Edwards e John
H. Morant, e ainda com um mapa de autoria de Bigg-Wither compilado de observa-
ções feitas pelos engenheiros ingleses que estiveram no Paraná Franz e Joseph
Keller. Uma resenha do mesmo ano no jornal londrino The Spectator diz que:

É da essência de um bom livro de viagem que o autor deve levar seus leito-
res junto com ele, fazendo com que compartilhem suas aventuras e permi-
tindo-lhes participar em seus trabalhos; especialmente, é necessário que
eles compreendam seus objetivos e objetos, de forma que sejam capazes
de simpatizar com ele em seus esforços para alcançá-los. No entanto, exis-
tem alguns escritores que não entendem isso, que dissertam sobre cenários
e história natural, cuidadosamente descrevem lugares e seus habitantes, e
até mesmo dão muitos registros de suas aventuras, sem nada que nos dei-
xe saber o que os levou ao país estrangeiro, ou em que consistia especial-
mente sua ocupação e conexão com esse país; assim, falham em despertar
qualquer interesse pessoal, o livro muito provavelmente é lido de forma
descuidada, e é logo esquecido. Mas não o Sr. Bigg Wither64.

62
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 27.
63
Cf. BRIDGES, Roy. Exploration and travel outside Europe (1720–1914). In: HULME, Peter;
YOUNGS, Tim (eds.). The Cambridge companion to travel writing. Cambridge: Cambridge University
Press, 2002. O autor comenta que John Murray era líder nesse tipo de publicação. Ainda reforça que
o editor tinha estreitas ligações com a Real Sociedade de Geografia de Londres, à qual Bigg-Wither
se associou desde a palestra que ministrara na instituição em 1876, sobre o vale do rio Tibagi e seu
potencial diamantífero.
64
Em inglês no original, tradução minha: ―It is of the essence of a good book of travel that the author
should take his readers along with him, making them share in his adventures and allowing them to
participate in his toils; especially is it necessary that they should understand his aims and objects, so
35

O relato [narrative] de Bigg-Wither, apesar do marcante cientificismo (em es-


pecial o evolucionismo e o racismo), se presta mais a ser ―uma narrativa de viagens
e aventuras‖ em regiões ―inexploradas‖65. Seu texto é, de fato, marcado por uma
visão categórica de mundo, na qual coisas, animais e pessoas têm seu lugar marca-
do, e palavras como ―inferior‖, ―insignificante‖, ―inútil‖, ―desnecessário‖ e seus antô-
nimos positivados frequentam o vocabulário do texto. Bigg-Wither é um representan-
te típico do período Vitoriano: o mundo natural é apreendido enquanto recurso explo-
rável, a indústria é considerada a peça chave para a evolução de uma nação, e as
pessoas estão sujeitas ao estado e as categorias científicas.
No Brasil, a tradução do texto de Thomas P. Bigg-Wither só foi publicada em
1974, pela editora José Olympio em parceira com a Universidade Federal do Para-
ná, na série ―documentos brasileiros‖. Realizada pelo erudito paranista Temístocles
Linhares, o texto reúne em volume único a obra do engenheiro inglês.
A demora na tradução se justifica por dois fatores: primeiramente, o livro se
destinava a um público específico, o destinatário de Bigg-Wither é essencialmente
inglês, possivelmente homem letrado e erudito, capaz de reconhecer as várias ex-
pressões em latim e francês e a grande quantidade de referências a autores da lite-
ratura científica do período (Humboldt, Darwin, etc.) e locais da Inglaterra 66; em se-
gundo, até onde se sabe, depois da viagem, Thomas P. Bigg-Wither rompeu todos
os contatos com Brasil e seu livro não circulou entre as classes letradas brasileiras.
A pouca importância do Paraná até o século XX no cenário brasileiro e a não reali-
zação do empreendimento a que se dedicou o engenheiro esclarecem a demorada
descoberta da obra e sua tradução.

as to be able to sympathize with him in his endeavours [sic] to attain them. Now there are some writ-
ers who do not understand this, who descant upon scenery and natural history, carefully describe
places and their inhabitants, and even give many records of adventure, without at all letting us know
what brought them to this foreign country, or what was their special occupation in connection with it;
and thus failing to arouse any personal interest, the book very likely meets with a careless perusal,
and is soon forgotten. Not so Mr. Bigg-Wither.‖ Pioneering in south Brazil [first notice.]. The Spectator.
Londres, p. 20, 11 mai. 1878.
65
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 27.
66
Nesse sentido Temístocles Linhares cumpre com grande sabedoria e erudição a máxima italiana
que diz ―traduttore, traditore‖ (tradutor, traidor) ao conceber outra imagem de destinatário, alterando
inclusive paratextos e referências textuais com o claro objetivo de trazer o texto ao leitor brasileiro.
Não fossem as interferências do tradutor o relato de Bigg-Wither certamente enfrentaria sérios pro-
blemas de recepção por parte do público brasileiro. Essas interferências e os efeitos interpretativos
por elas suscitados serão exploradas no decorrer desse trabalho.
36

1. 1. 3 — Um reformista modernizador, um conservador instável: Visconde de


Taunay

Dez anos após a partida de Bigg-Wither do Brasil, o então presidente da


província do Paraná, o Visconde de Taunay, realizou uma viagem filosófica aos
Campos Gerais e sertão de Guarapuava67. Como ele próprio afirma:

Em fins de Março de 1886 empreendi, na qualidade de administrador da en-


tão província do Paraná, rápida viagem aos Campos Gerais, levando por
principal objetivo visitar, uma vez concluída a minha excursão aos mais im-
portantes povoados daquele planalto, o sertão e a cidade de Guarapuava,
lugares até onde não havia ainda chegado presidente algum, desde que a
vasta zona paranaense se separara de S. Paulo, a 19 de Dezembro de
185368.

O Visconde de Taunay — título nobiliárquico de Alfredo d'Escragnolle Tau-


nay recebido do Imperador D. Pedro II, em 1889, e a partir do qual suas obras ge-
ralmente são identificadas — nasceu no Rio de Janeiro em 1843, mesma cidade on-
de faleceu em 1899. De família nobre, com longa tradição militar e artística, teve
uma vida bastante movimentada: foi político, presidente de província, deputado e
senador durante o período monárquico; participou da guerra contra o Paraguai; es-
creveu romances (os mais famosos são a Retirada da Laguna, de 1871, e Inocência,
de 1872), contos, peças de teatro, textos de opinião e crítica para jornais, peças mu-
sicais para piano, ilustrações, relatos de viagem; foi um dos fundadores da Acade-
mia de Letras Brasileira e membro do IHGB. Lídia Lichtscheidl Maretti diz que Tau-
nay era

[…] diplomado como engenheiro geógrafo e bacharel em ciências físicas e


matemáticas, ele foi professor de várias disciplinas, sendo que a disparida-
de entre elas — ele ensinou tanto francês quanto geologia, mineralogia e
botânica —, sugere já aqui o avesso da especialização e a amplitude quase

67
Como explica Ana Lúcia Cruz: ―Modelo paradigmático de expedição cientifica do Iluminismo, a via-
gem filosófica caracterizava-se pela pretensão enciclopedista de produzir um conhecimento extensivo
e detalhado sobre o território visitado. O levantamento minucioso e exaustivo a que devia proceder o
viajante naturalista não se restringia às produções do mundo natural; mas abarcava também a inves-
tigação sobre a ‗natureza humana‘ dos habitantes autóctones.‖ CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da.
Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram fábulas sonhadas: cientistas brasileiros do sete-
centos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba: UFPR, 2004. Tese (Doutorado em História), p. 123.
68
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle, Visconde de. Viagem Philosophica aos Campos Geraes e ao
sertão de Guarapuava. In: ______. Visões do Sertão. São Paulo: Cia. Melhoramentos de São Paulo,
1928, p. 69.
37

enciclopédica dos conhecimentos que detinha e que podem ser comprova-


dos em toda a sua obra69.

Taunay foi o exemplo do intelectual e político do período monárquico brasi-


leiro, não apenas pelos títulos nobiliárquicos e ascendência da nobreza francesa. A
extrema admiração que demonstrava pelo imperador D. Pedro II — em nome dessa
fidelidade se desligou do IHGB após a proclamação da república —, a atuação no
partido conservador (apesar de Joaquim Nabuco defini-lo como ―um conservador
instável, com o qual não se pode confiar‖70) e, principalmente, seu envolvimento ex-
tremado no projeto nacional do Império marcaram sua atuação enquanto um ―refor-
mista-modernizador‖71.
Leitor assíduo dos cientistas-viajantes que percorreram o Brasil no início do
século XIX, o Visconde inspirava-se neles para compor seus escritos e atividades.
No seu famoso romance Inocência a figura de Meyer é exemplar, a personagem é
descrita pelo narrador como de uma ―simpatia que em todos incutia o caráter natu-
ralmente inofensivo e meigo‖72. Em suas Memórias, Taunay reforçou a imagem do
cientista-viajante benevolente, desinteressado, quase andrógeno e nada imperialis-
ta.

Então imaginava o indizível enlevo de viajantes como Pohl, Spix, Martius,


Saint-Hilaire, Agassiz, Burton e tantos outros nas dilatadas peregrinações
pelo esplêndido Brasil, levando consigo enorme cabedal de conhecimentos
— inestimável bagagem, mas bem leve, bem fácil de transportar! —, vendo
ante os seus passos um mundo de riquezas ainda não exploradas e a cada
instante colhendo impressões e notícias preciosas para si e para a ciência
de que foram tão nobres e alevantados representantes!
Com sinceridade acredito que seja impossível na terra juntar mais elemen-
tos de felicidade, e reunir maior messe de gozos tão serenos e puros, livres,
portanto, de qualquer eiva, da menor sombra, da mais ligeira névoa.
Que existência tão bem preenchida, tão plácida em suas honestas agita-
ções, tão proveitosa e singela!73.

69
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. Um polígrafo contumaz (O Visconde de Taunay e os fios da
memória). Campinas Tese (doutorado) — Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos
da Linguagem. Departamento de Teoria Literária, 1996, p. 17.
70
Ibidem, p. 22.
71
Ibidem, p. 19. Essa definição de reformista é também utilizada por Pádua para definir ―um conjunto
de intelectuais e homens públicos, quase todos membros da elite imperial, que se preocupou com a
degradação do território a partir de um reformismo tecnológico e administrativo. A destruição ambien-
tal, que eles viam como um dos principais obstáculos ao projeto civilizatório do Império, poderia ser
superada sem a necessidade de reformas sociais mais profundas‖. PÁDUA, José Augusto. Um sopro
de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar, 2002, p. 22.
72
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle, Visconde de. Inocência. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 127.
73
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle, Visconde de. Memórias. São Paulo: Iluminura, 2004, p. 207-208.
38

O Visconde de Taunay foi presidente da província do Paraná durante ape-


nas cinco meses (de 29 de setembro de 1885 a 3 de maio do ano seguinte), uma
curta administração, mas que produziu um longo relatório (nada menos que 157 pá-
ginas) e dois relatos de viagem (Curiosidades naturais da província do Paraná e Vi-
agem filosófica aos Campos Gerais e sertão de Guarapuava). Taunay concebia a
viagem como uma necessidade administrativa, dizia ele que

Verdade é que não me poupava à fadiga, em contínuas viagens, para ajui-


zar das estradas e caminhos, conhecer as localidades, pôr-me em contato
com os seus homens e estudar de visu as questões que lhes eram atinen-
tes.
Nem há melhor sistema de administrar. Mais vale um olhar, uma impressão
repentina e segura dos fatos, do que os mais minuciosos e bem-elaborados
relatórios e exposições.74

A publicação da Viagem filosófica só foi realizada em 1923, graças ao esfor-


ço de seu filho Afonso de Taunay que a compilou, juntamente com outro relato de
viagem sobre o Mato Grosso (Cruzando o sertão), em um volume que intitulou, muito
sugestivamente, Visões do sertão. Diz o filho historiador em nota introdutória ao li-
vro: ―Ao morrer em 1899, ainda lhe ficava muita coisa inédita, em elaboração, às ve-
zes adiantada ou esparsa pela imprensa. […] Em 1923 [se imprimiu] as Visões do
Sertão (inéditas em grande parte)‖75.
O relato sobre o Paraná está incompleto, narra apenas a passagem do en-
tão presidente da província pelos Campos Gerais, faltando o trecho sobre Guarapu-
ava. Na nota introdutória às Visões do Sertão, Afonso de Taunay comenta ainda
que, ―da segunda parte do livro não me foi possível descobrir a conclusão referente
ao termo da excursão do autor a Ponta Grossa, Castro e Guarapuava‖76 — possi-
velmente o Visconde não teve tempo para compor a parte restante do relato. Logo
em 1886 concorreu à vaga de senador do Império por Santa Catarina, para a qual foi
eleito e, em 1889, após a leitura de suas Curiosidades Naturais da província do Pa-
raná no IHGB, a escrita de suas Memórias e os eventos nacionais o envolveram to-
talmente.
No relato de Taunay, por ele mesmo classificado como filosófico, se mes-
clam ―informações exatas e bem firmes com outra parte, toda de devaneios, hipóte-

74
TAUNAY, Memórias, op. cit., p. 557.
75
TAUNAY, Viagem…, op. cit., p. 4.
76
Ibidem, p. 3.
39

ses, conjecturas e meditações, mais ou menos concatenadas e justificáveis‖77. Uma


das características mais marcantes do texto é o misto de inventário e elucubração,
denunciada pela recorrência de expressões, tais como: ―voltemos‖, ―viajemos, po-
rém, em vez de filosofarmos‖, ―enfim, continuemos‖; ou, ―não é raro contemplar‖, ―in-
genuamente o olhar do viajante procura‖78; expressões essas que marcam a disper-
são e definem o caráter geral da narrativa. Temporalmente sua viagem dura de 29
de Março a 30 de Março de 1886, apenas dois dias, e sua redação parcial deve ter
ocorrido em 1890, como denunciam os seguintes trechos do relato: ―[…] começo a
escrever estas páginas aos quarenta e sete annos de idade‖, ―Em fins de Agosto de
1889, quando o Visconde de Ouro Preto escrevendo-me‖, e ―[…] mas nada consegui
e ainda hoje, 1890, Curitiba se dessedenta‖79. Taunay diz que na viagem levava
consigo sua mulher e os três filhos, e estava ―acompanhado do Chefe de Polícia Dr.
Hermínio do Espírito Santo, que tambem levava sua família‖80, ou seja, um misto de
viagem administrativa e passeio familiar; Taunay não menciona se os custos da via-
gem (aluguel das telegas e cocheiros, hospedagem e alimentação) foram por ele
pagos, aparentemente as despesas ficaram por conta do erário público.
Não há registros de que Auguste de Saint-Hilaire, Thomas P. Bigg-Wither e
Visconde de Taunay tenham travado contatos pessoais, ou sequer se encontrado
em um mesmo espaço durante suas vidas. Um contato entre Taunay e Bigg-Wither
não ocorreu no Brasil; enquanto o engenheiro inglês percorria o território brasileiro
(1872-1875), Taunay dedicava-se às atividades literárias, publicava seus romances
Inocência (1872), Lágrimas do coração (1873) e Ouro sobre azul (1875), e exercia o
cargo de deputado geral de Goiás. Nos anos seguintes, a distância física aumentou
e, apesar da viagem de Taunay pela Europa em 1878-1879, um encontro entre o
brasileiro e o inglês não foi registrado81.

77
TAUNAY, Viagem…, op. cit., p. 70.
78
Ibidem, pgs. 84, 141, 145, 119, 132, respectivamente.
79
Ibidem, pgs. 70, 89 e 87, respectivamente.
80
Ibidem, p. 71.
81
Cf BLANC, Claudio. Diários de um Clássico. In: TAUNAY, Inocência, op. cit.; CARNEIRO, op. cit.
40

1. 2 — A forma e conteúdo: dos olhos do Império e do Imperador

O período entre o final do século XVIII e início do XIX é marcado por uma
nova etapa de expansão territorial do capitalismo. Ligados há muito à Europa pelo
sistema colonial e o tráfico negreiro, tanto a América do Sul quanto o continente afri-
cano tornaram-se focos de novas iniciativas expansionistas europeias (em especial
da Inglaterra e da França), determinadas pelo impulso à exploração do interior des-
ses territórios. Essa nova fase, nas palavras de Mary Louise Pratt, foi ―marcada pela
busca de matérias-primas, a tentativa de expandir o comércio costeiro para o interi-
or, os imperativos nacionais de se apoderar de territórios ultramarinos, assim evitan-
do que outras potências europeias os ocupem‖82.
Para Edward W. Said, esse período é de um novo imperialismo, o qual se
pode encontrar em um sistema de ideias coerentes e mobilizadas a partir do final do
século XVIII, a saber: a ascensão do nacionalismo e da nação-Estado europeia, o
advento da industrialização em grande escala e a consolidação do poder da burgue-
sia; ―ao mesmo tempo em que a forma do romance e a nova narrativa histórica ad-
quirem predomínio, e destaca-se a importância da subjetividade para o tempo histó-
rico‖83.
O objeto de disputa nessa nova etapa do capitalismo é, assim como em to-
das as anteriores, sem dúvida, a terra. Mas a legitimidade desse processo, os pro-
blemas que são levantados a partir da ocupação civil e militar europeia de terras dis-
tantes — quem possuía a terra, quem tinha o direito de nela se estabelecer e traba-
lhar, quem a explorava, quem a reconquistou e quem planeja seu futuro —; esses
problemas foram pensados, discutidos e, por vezes, resolvidos na narrativa.
Os relatos de viagem no século XIX, enquanto narrativas de descoberta e
exploração, inventários das diferenças e das potencialidades, ―engajaram o público
leitor metropolitano nos (ou para os) empreendimentos expansionistas cujos benefí-
cios materiais se destinavam, basicamente, a muito poucos‖84. Com efeito, essas
narrativas produziram ―o resto do mundo‖ para leitores europeus ao longo da trajetó-
ria expansionista da Europa.

82
PRATT, op. cit., 1999, p. 35.
83
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011, p. 112.
84
PRATT, op. cit., p. 28.
41

Thomas P. Bigg-Wither, em sua conferência sobre o vale do rio Tibagi, de-


monstrou, sem muito constrangimento, como via os brasileiros do interior. Para ele:

[…] vivendo no meio da riqueza, eles são felizes de passar a vida numa si-
tuação apenas um pouco menos animalesca que a dos índios selvagens.
Esse quadro é apenas uma reprodução do que se pode ver nos povoados
espalhados no interior do Brasil. Não se pode refutar o pensamento, que
ocorre na cabeça do viajante, que tudo isso vê, de que a população não me-
rece esse país85.

Assim, para o engenheiro, a vasta extensão de terras desse vale na provín-


cia do Paraná, ―cobertas de mata virgem e habitadas apenas por algumas tribos
nômades de índios selvagens‖, permanecerá no descaso ―até que a própria região
passe para as mãos de um povo mais empreendedor‖86 — nesse caso, o povo mais
empreendedor seriam os ingleses. Quanto à produtividade e lucratividade da mine-
ração, objeto da conferência, ―as estatísticas colhidas no lugar, verificadas, onde
possível, por fontes independentes, e um exame mais cuidadoso das minas conven-
ceram o próprio autor de que, embora no presente fossem abandonadas, ainda se-
rão capazes de ser trabalhadas com maior lucro‖87.
A partir de todas essas considerações, o autor chega a uma conclusão mar-
cada pelo evolucionismo:

Em todos os lugares abundam a água e a lenha; o clima é incomparavel-


mente salutar.
O que, então, falta para que essas grandes vantagens naturais possam ser
aproveitadas? A resposta é clara: o que falta é uma estirpe de gente mais
empreendedora, enérgica e, acima de tudo, honesta, para substituir o nativo
híbrido. Tudo se transformará com tal substituição. […]
Dessa maneira, novo sangue será injetado onde precisa mais e onde colhe-
rá o maior benefício. Pode-se confiar que as leis da seleção natural façam o
resto88.

Disponibilidade. Conforme explica Pratt, essa é a quintessência do projeto


euro-colonialista.
Não foi de forma ingênua que Saint-Hilare definiu os Campos Gerais como
―paraíso terrestre do Brasil‖; pois, como ele próprio afirma

Entre todas as partes desse império que percorri até agora, não há nenhu-
ma outra onde uma colônia de agricultores europeus tenha possibilidade de
se estabelecer com mais sucesso do que ali. Eles encontrarão um clima
temperado, um ar puro, as frutas do seu país e um solo no qual poderão
desenvolver qualquer tipo de cultura a que estejam acostumados, sem

85
BIGG-WITHER, O vale do Tibagi…, op. cit., p. 186.
86
Ibidem, p. 190.
87
Ibidem, p. 185.
88
Ibidem, p. 196-198.
42

grande dispêndio de energia. Assim como os habitantes do lugar, eles po-


derão criar gado; recolherão o seu estrume para fertilizar as terras, e com o
leite, tão cremoso quanto o das regiões montanhosas da França, poderão
fazer manteiga, queijo, que encontrarão fácil mercado nas partes mais se-
tentrionais do Brasil. Como teria sido vantajoso para essa região, por exem-
plo, se, em vez de ter sido mandada para Cantagalo, a colônia suíça se ti-
vesse estabelecido na parte dos Campos Gerais vizinha das terras habita-
das por índios selvagens. Pelo seu número, eles teriam intimidado os indí-
genas e posto a região a salvo de suas devastações; teriam ensinado aos
antigos habitantes do lugar os métodos europeus de agricultura, que certa-
mente são aplicáveis a essa região e, segundo tudo parece indicar, dificil-
mente se ajustarão às terras vizinhas do Rio de Janeiro. Felizes em sua no-
va pátria, cujo aspecto lhes teria lembrado, em certos pontos, a sua terra
natal, eles teriam descrito o Brasil para os seus compatriotas com as mais
belas cores, e essa parte do império teria adquirido uma população ativa e
vigorosa89.

Menos direto, e mais imaginativo que Bigg-Wither, Saint-Hilaire também não


reconhece qualquer valor aos povos autóctones. As terras ―disponíveis‖ para o esta-
belecimento de colônias de imigrantes eram ocupadas já há muito por várias tribos e
etnias indígenas e, também, e não sem conflito, por populações mestiças e cabo-
clas.
Em outro trecho, Bigg-Wither — que era apaixonado ad nauseam por caça-
das — ao ver nos Campos Gerais ―enxames‖ de codornas e narcejas, e perceber
que em um capão próximo à Ponta Grossa o lugar era frequentado por grande quan-
tidade de animais de médio porte, escreve o seguinte:

Quero recomendá-lo àqueles cujo gênio os induz a abandonar a trilha batida


do caçador ou do turista e procura lugar diferente em que possa expandir a
mente e os músculos. É lugar indicado para agradável repouso de dez dias,
quer como pouso para quem se dirige às grandes zonas de caçada — nas
matas dos Ivaí — quer como completo substitutivo da região em que se ca-
ça galo silvestre na Escócia. Vigas enormes para construir confortável e
cômoda chácara, água abundante e pasto para os animais necessários, as-
sim como a vantagem de passar por ali o caminho principal que leva às du-
as principais cidades da província. Não se paga aluguel ou imposto e nem
há contas exorbitantes de hotel a saldar. Caça e liberdade ad libitum. Ar
mais puro e revigorante não pode se encontrado em nenhuma outra parte
do Velho e do Novo Mundo90.

O projeto de nação imperial brasileira, influenciado pelo olhar europeu, se


depara com questões semelhantes ao do imperialismo daquele continente. Sua atu-
ação diante da ―herança colonial‖ não é menos agressiva e caricata. A nação inde-
pendente tem quase todas as suas fronteiras já definidas, no entanto, elas são con-
sideradas imensos sertões. Para superar tal herança colonial, ao contrário do portu-
guês que em geral ficara preso ao litoral, o brasileiro navega em mares de sertão.
89
SAINT-HILAIRE, Viagem pela comarca…, op. cit., p. 32-33.
90
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 106.
43

Território e população, a partir desse momento, tornam-se dois ―problemas‖ constan-


tes para os intelectuais brasileiros do período. Taunay, que se dedicara à questão da
imigração europeia para o Brasil, vê nas colônias de imigrantes nos arredores de
Curitiba a realização da visão de Saint-Hilaire

Até quanto alcance a vista, campos acidentadas cobertos das mais viçosas
plantações de trigo; aveia, centeio, linho, cânhamo e no meio delas trechos
de milho, feijão, arroz, batatas de Demerara e cana-de-açúcar, enfim o tape-
te mais garrido e curioso com todos possíveis ancenúbios da cor verde.
E aqui, e ali, majestosos pinheiros, uns isolados, outros em grupos de três
ou quatro, a se erguerem do seio das culturas rasteiras e dando a tudo um
cunho da mais poética perspectiva europeia91.

Além de ensinar a ver e organizar para os olhos nativos a própria paisagem,


o viajante também a imagina e a projeta em moldes europeus. Cabe, então, aos
brasileiros trabalhar para sua realização. Na verdade trata-se daquilo que Pratt defi-
niu com uma apropriação particular realizada pelos autores americanos, que seleci-
onaram e adaptaram os discursos (relatos de viagem) à sua própria necessidade de
criar culturas autônomas descolonizadas, ao mesmo tempo em que mantinham valo-
res europeus e a supremacia branca92.
Se, nesse contexto, o poder de narrar é tão importante para produzir aos eu-
ropeus o ―resto do mundo‖ e para os brasileiros o próprio Brasil, como então os rela-
tos de viagem operam essa ação?
A máxima recolhida por Walter Benjamin, de ―quando alguém faz uma via-
gem, então tem alguma coisa para contar, diz a voz do povo‖93, nos informa sobre o
crédito que um relato de viagem recebe apenas por narrar uma viagem. Mas, além
disso, ―o contar é sempre acompanhado de saberes, valores e efeitos‖. Ives Reuter
afirma que, ―De fato, toda narrativa está contida em um ato de comunicação, um dis-
curso ou uma enunciação, que comportam — direta ou indiretamente, explícita ou
implicitamente — alvos, intenções, efeitos almejados‖94. Ora, como bem apontou
Said, ―o poder de narrar, ou impedir que se formem outras narrativas, é muito impor-

91
TAUNAY, Viagem…, op. cit., p. 77.
92
PRATT, op. cit., 30.
93
BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: BENJAMIN, Walter, et all. Textos Escolhidos: Walter Benjamin,
Max Horkheimer, Thedor W. Adorno e Jürgen Habermas. Tradução de Erwin Theodor Rosental. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os pensadores), p. 258.
94
REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Tradução de Mário Pontes.
Rio de Janeiro: Difel, 2002, pp. 128-131.
44

tante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre
ambos‖95.
É possível, portanto, avançar em uma perspectiva narratológica, uma análise
da narrativa que, conforme Reuter, tem duas grandes características: 1) consiste em
interessar-se pelas narrativas como objetos linguísticos, fechados em si, indepen-
dente de sua produção e recepção; 2) as narrativas apresentam formas de base e
princípios de composição comuns. Ainda assim, a análise narratológica ―só é inte-
ressante quando se articula, nesse ou naquele momento, com outras teorias que
permitam avançar na interpretação, prendendo-se pois, a enunciação‖96. Seu maior
mérito é, sem dúvida, limitar os desvios ―selvagens‖ de interpretações prematuras,
forçando a levar-se em conta, de maneira precisa, a organização do texto e a produ-
ção de efeitos, principalmente o efeito de real.
Ainda, se retomarmos a preocupação inicial de que uma viagem além-mar
no século XIX, e até mesmo dentro do Brasil — ainda hoje —, é custosa, nos depa-
ramos com o problema de quem financiava e dava suporte aos viajantes.
Réal Ouellet, ao estudar os relatos de viagem sobre a América dos séculos
XVI a XVIII, propõe que todo relato de viagem parte de um ―pacto viático‖ [pacte via-
tique], estabelecido entre um ―poder mandatário‖ e um viajante que se transmuta em
autor, narrador e protagonista de um relato [relation]. Assim, a produção de uma nar-
rativa sobre a viagem cauciona uma ação, na mesma medida em que legitima uma
escritura97.
Nesse sentido, os paratextos limiares são muito esclarecedores. Diz Saint-
Hilaire, em sua dedicatória ao duque de Luxemburgo, que

Quando partistes para o Rio de Janeiro, na qualidade de embaixador extra-


ordinário, desejastes que a vossa viagem não fosse desprovida de utilidade
para as ciências, e Vos dignastes permitir-me que Vos acompanhasse. Sem
essa tão envaidecedora e vantajosa oportunidade não poderia ter empreen-
dido a visita do interior do império brasileiro. Se, pois, cheguei a poder tor-
nar melhor conhecida uma região tão favorecida pela natureza, se pude
inspirar aos meus compatriotas o desejo de entreter mais íntimas relações
com os brasileiros, se os trabalhos que levei a efeito contribuíram de algum
modo para o progresso da ciência, é a Vós, senhor Duque, que devo tal feli-
cidade; e homenageando-o com a oferta desta relação nada mais faço, por
assim dizer, do que restituir-Vos o que Vos pertence98.

95
SAID, op. cit., p. 11.
96
REUTER, op. cit., p. 16.
97
OUELLET, op. cit., p. 9.
98
SAINT-HILAIRE, Viagem pelas províncias…, op. cit., p. 11.
45

Bigg-Wither, mais modesto e econômico, agradece e dedica sua obra ao


Visconde de Mauá

Dedico, com sua permissão, a SUA EXCELÊNCIA, o VISCONDE DE


MAUÁ, a quem o autor é especialmente devedor pelas oportunidades que
teve de viajar e fazer observações em região pouco conhecida, cujos resul-
tados, dentro das melhores aptidões do autor, estão recordados nas seguin-
tes páginas99.

O texto do Visconde de Taunay, pelos motivos já citados, não possui dedica-


tória, apenas uma nota introdutória, que diante do contexto da escrita (proclamação
da República, desligamento do IHGB), nos faz supor seria dedicada ao Imperador D.
Pedro II

Será certamente esta mescla de informações exatas e bem firmes com ou-
tra parte, toda de devaneios, hipóteses, conjecturas e meditações, mais ou
menos concatenadas e justificáveis, que pode incutir algum encanto à mi-
nha narrativa. E se essa impulsão não for transmitida a quem me fizer o fa-
vor da sua atenção, então não terei alcançado a meta que colimo. J'en serai
pour ma peine.
Aliás tantos e tão grandes desenganos já tenho sofrido, embora ainda não
chegado de todo ao declínio da vida, pois começo a escrever estas páginas
aos quarenta e sete annos de idade, tanta esperança baldada, que mais
uma decepção, e esta de ordem literária, não será a espada de Breno na
balança das desilusões, ao proclamar-se o eterno vae victis tão doloroso
sempre ás almas fracas.

Mas não basta apenas firmar um pacto entre o poder mandatário e o autor,
apresentar-se como viajante é necessário e tão importante quanto, fazer o leitor crer
nas realidades ―redescobertas‖ pela autópsia: não basta apenas o recurso enfático
na experiência, é necessário torna-la literariamente interessante.
Nas palavras de Le Huenen, os relatos de viagem são um gênero antiquís-
simo, cujas Histórias de Heródoto e a Anábase de Xenofonte constituem, talvez, as
primeiras manifestações100. A diversidade de formas discursivas que compõe esse
gênero (livre) variam desde ―o diário (Montaigne, Journal de voyage), a autobiografia
(Chateaubriand, Mémories d‟Outre-Tombe), cartas (Sand, Lettres d‟un voyageur), o
ensaio etnográfico (Lévi-Strauss, Tristes Tropiques), etc‖101. Mas é certo que ―o rela-
to de viagem se torna possível a partir da realização da própria viagem‖, real ou
imaginária, circulando ―entre a memória, a história, a descrição de aventuras, as in-

99
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 29. Os destaques pertencem ao autor.
100
LE HUENEN, Roland. Le récit de voyage: l'Entrée en littérature. Études littéraires, vol. 20, n. 1,
1987, p. 45.
101
Ibidem, p. 46.
46

formações geográficas‖102. Esses elementos abarcados pelo relato são estruturados,


conforme Réal Ouellet, a partir de ―uma tríplice demarcação discursiva: narração,
descrição e comentário.‖ Ou seja, ―contam uma história, propõe um inventário, co-
mentam ou discutem ideias‖103. Por se tratar de um gênero livre, em que suas for-
mas possuem ―uma plasticidade que permite se adaptar às diferentes mutações es-
téticas e ideológicas que afetam o curso de uma sociedade‖ 104, os relatos de via-
gem, a partir do século XIX, tornaram-se veículo de comunicação científica.
Transitando entre um duplo estatuto, literário e documental, o relato de via-
gem comunica um saber na mesma medida em que conta uma aventura, contendo
uma função didática ao mesmo tempo em que entretém.
Nesse sentido, o impulso à exploração dos interiores e sertões brasileiros,
típicos dos projetos imperialistas e nacionalista, ressaltados pelos três viajantes, não
pode ser apenas comunicado, deve, sobretudo, ser dramatizado. Taunay se propôs
a ir a ―lugares até onde não havia ainda chegado presidente algum‖ 105; Bigg-Wither
viveu durante semanas e meses ―em meio a cenas ferozes da natureza selvagem,
onde nenhum homem civilizado antes penetrara‖ 106; Saint-Hilaire consagrou seis
anos ―a percorrer uma vasta porção do império do Brasil‖, palmilhou ―cerca de duas
mil e quinhentas léguas‖ 107. Para além do pacto com o poder mandatário, o viajante,
transformado em narrador e protagonista de sua história, estabelece outro pacto, o
literário, que visa individualizar e dramatizar a experiência.
A escrita é, também, uma experiência complexa e difícil e que deve ser real-
çada. Réal Ouellet afirma que:

[…] uma longa tradição literária nos habituou a ver o texto como um modo
natural de representação do mundo. Ora, o viajante em território estrangeiro
toma rápida consciência de que o essencial de sua experiência não se co-
munica facilmente pela linguagem. Antes de dizer ou escrever, é necessário
organizar no imaginário a descontinuidade do percebido cotidiano108.

102
ROSSATO, op. cit., p. 76.
103
OUELLET, op. cit., p. 2.
104
LE HUENEN, op. cit., p. 45.
105
TAUNAY, Viagem…, op. cit., p. 69.
106
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 27.
107
SAINT-HILAIRE, Viagem pelas províncias…, op. cit., p. 13.
108
Em francês no original, tradução minha: ―[…] une longue tradition littéraire nous a habitué à voir le
texte comme un mode naturel de représentation du monde. Or, le voyageur en territoire étranger
prend vite conscience que l‘essentiel de son expérience ne se communique pas facilement par le
langage. Avant de dire ou d‘écrire, il faut organiser dans l‘imaginaire la discontinuité du perçu quoti-
dien.‖ OUELLET, op. cit., 18.
47

Essa difícil parturição do texto é ressaltada frequentemente. Em meio a fre-


quentes cenas ―impossíveis de serem descritas‖, que visam acentuar a novidade do
que é visto, a própria escritura também é dramatizada. Diz Taunay que começava a
escrever seu relato aos quarenta e sete anos, depois de muitas decepções e desilu-
sões, e, após se responsabilizar por um possível insucesso de sua obra (inconclusa,
afinal), afirma que se sua ―impulsão não for transmitida a quem me fizer o favor da
sua atenção, então não terei alcançado a meta que colimo‖109. Saint-Hilaire, que
após ―viagens tão penosas, empreendidas com tão débeis recursos, e acompanha-
das de tantas fadigas e privações‖, que só poderiam ser realizadas com grande ―sa-
crifício das forças do viajante‖ afirma que muitas das páginas de seu primeiro relato
da série ―foram escritas ainda em meio dos sofrimentos mais cruéis.‖ Afirma ainda o
viajante francês que ―escrevia diariamente um jornal minucioso do que se me ofere-
cia aos olhos, e aí consignava, na medida de meus fracos conhecimentos, o que
pudesse contribuir a dar uma ideia exata das zonas que percorria‖110. Bigg-Wither,
preocupado com tédio a que pode levar seu narratário, pede-lhe desculpa; expõe
ele: ―Leitor, ultrapassei os limites que tinha proposto quando comecei este assunto,
[…], mas teria sido quase impossível transmitir em poucas palavras algo que desse
ideia justa da condição importante de nossa vida e trabalho‖111.
Se apenas relatasse, de modo imparcial o que viveu, em quais condições
escreveu, o viajante produziria um documento, no mais das vezes insosso. É neces-
sário, pois, complexificar o registro, fazendo uso frequente de suspenses narrativos
e dramatizações. Se os escritores de relatos de viagem apenas descrevessem o que
viram — se isto fosse de fato possível —, como engajariam o público leitor em seus
projetos?
As extensas descrições dos tormentos com ―bernes‖, ―pulgas‖, ―cobras‖,
―acidentes‖, ―febres‖, ―calores‖, ―frios‖, ―enganações‖, ―mentiras‖, ―índios‖, e muito
mais, justificam (ao menos textualmente) a presença de um engenheiro inglês que
realiza medições para a construção de uma estrada de ferro, e traz consigo não me-
nos que 10 toneladas em equipamentos; a excêntrica figura de um naturalista fran-
cês coletor de plantas e insetos em uma sociedade campeira, trazendo caixas, re-
des, e uma infinidade de instrumentos científicos; ou ainda de um nobre político do

109
TAUNAY, Viagem…, op. cit., 69.
110
SAINT-HILAIRE, Viagem pelas províncias…, pp. 14-17.
111
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., 284.
48

império em distantes terras brasileiras no século XIX. A fama e a riqueza por eles
conseguidas a partir dos empreendimentos, e as benesses de outros empreendedo-
res envolvidos sequer são mencionadas. Quanto mais fechada em si a narrativa,
melhor são resolvidos os problemas em que nela se propõe, maior o efeito de real
sobre seus leitores. Para que isso seja realizado, uma imagem de narratário — com
o qual o autor dialoga textualmente — e de destinatário são essenciais.
Mary Louise Pratt aponta que nos relatos de viagem as passagens pelo inte-
rior do continente americano geram uma ―ladainha de lamúrias‖, seja pelas más
conduções, dificuldade em alugar cavalos, atrasos, etc. Ora, na narrativa todos es-
ses empecilhos funcionam como um dos papéis actanciais (ou atuacionais) proposto
por Greimas112 — o do oponente. O viajante (sujeito), enviado por uma instituição ou
empreendedor (destinador), na busca por um conhecimento ou na tentativa de reali-
zar uma tarefa (objeto) vê sua missão ameaçada por fazendeiros, empregados ou
políticos; é necessário, então, que ele aja de forma mais enérgica ou astuciosa para
resolver o problema sozinho (adjuvante) e possa assim aportar um novo saber para
a humanidade (destinatário). Todas as frequentes lamúrias e micronarrativas contri-
buem fortemente no processo de heroicização actancial do viajante na narrativa.
Nesse sentido, Taunay acredita que o incentivo à vinda em massa de imi-
grantes europeus pode resolver ―a ociosidade inata e fortificada pelas suavíssimas
condições de vida brasileira‖, ―o torpor e a apatia tão arraigados‖, bem como ―a ma-
landrice e a indolência‖ e ―a preguiça‖ que geram um ―círculo apertadíssimo e desa-
nimador da comodidade e gozos em que se mantém o nosso caipira‖, herdeiro das
―mais antigas práticas dos aborígenes do Brasil‖; para Taunay o Brasil é ―uma terra
de promissão, para os laboriosos‖113. Bigg-Wither se vê obrigado a tomar algumas
―precauções‖ contra os brasileiros — que ―não é um trabalhador perseverante‖. Es-
sas medidas foram ―a introdução de um contrato escrito‖, entre analfabetos, ―não

112
Esse modelo atuacional proposto pelo linguista lituano Algirdas Julius Greimas pretende recobrir
toda manifestação mística, ou corpus de comportamentos moralizados, fundado sobre a relação do
desejo, a partir de um número restrito de termos atuacionais, na tentativa de dar conta de um micro-
universo. Diz ele que ―sua simplicidade está no fato de que ele é um todo inteiramente fundado sobre
o objeto do desejo do sujeito e situado, como objeto de comunicação, entre o destinador e o destina-
tário, sendo o desejo do sujeito, por seu lado, modulado em projeções, do adjuvante e do oponente:
Destinador → objeto ← Destinatário

Adjuvante → sujeito ← Oponente
Cf. GREIMAS, Algirdas Julius. Semântica estrutural. Tradução de Haquira Osakbe e Izidoro Blinks-
tein. São Paulo: Cultrix, 1973.
113
TAUNAY, Viagem…, op. cit., pp. 99-103.
49

lhes ser possível abandonar o trabalho sem aviso prévio de um mês, sob pena da
perda do direito a qualquer soma de dinheiro que tivessem‖ e, por último, ―o obstácu-
lo físico de separá-los em dois ou mais grupos distintos‖ 114, em mata fechada e sem
qualquer contato com a vila mais próxima. Saint-Hilaire, não poupa críticas aos habi-
tantes dos Campos Gerais, diz que ―todo mundo trabalha o menos possível‖ e que ―a
vida dos homens muito pobres difere pouco da dos índios selvagens. Eles só plan-
tam o estritamente necessário para o sustento da família‖.115 Segundo o naturalista
francês,

Ali não se cuida senão de assuntos ligados à criação de gado; a ignorância


é extrema; saber ler e escrever é ser um homem instruído, e entre os pro-
prietários mais importantes contam-se muitos que não possuem essa ciên-
cia […] Encontrei por toda parte gente hospitaleira, excelente, à qual não
faltava inteligência, mas cujas ideias eram tão limitadas que na maioria das
vezes eu não conseguia conversar com eles mais que quinze minutos.
O clima temperado dos Campos Gerais deveria, ao que parece, estimular
os homens ao trabalho; mas o gênero de ocupação que a própria natureza
da região os forçou, por assim dizer, a adotar, incutiu-lhes o hábito da pre-
guiça. A criação de gado exige poucos cuidados, e os que se dedicam a ela
só trabalham em determinados intervalos e esse tipo de trabalho chega a
ser quase um divertimento.116

No texto, a presença estrangeira e os incômodos decorrentes sequer são


mencionados, o viajante jamais se pergunta (ou pergunta ao narratário) sobre sua
presença e ações e, por consequente, a desconfiança alheia é de todo injustificada:
as obras que realiza e o protagonismo exercido não merecem oposição, suspeita. O
leitor é levado pelo texto, e suas dúvidas (se afloram) são rapidamente sanadas pela
empatia com aquele viaja e narra. Se no texto de Bigg-Wither a fuga de trabalhado-
res com medo de índios, ―uma peculiaridade dos povos semisselvagens ignorantes,
como o sertanejo brasileiro‖, torna-se uma oposição, tão logo que possível ele orga-
niza uma expedição de caça aos bugres. Isso porque, na narrativa, podemos conhe-
cer os eventos narrados apenas pela perspectiva do viajante. Como explica Ives
Reuter, ―a questão da perspectiva é de fato muito importante para a análise das nar-
rativas, pois o leitor percebe a história segundo um prisma, uma visão, uma consci-
ência que determina a natureza e a quantidade das informações‖. 117 A partir de uma
dada perspectiva, pode-se saber mais ou menos sobre o universo e os seres de
uma narrativa, continuar fora ou penetrar em sua interioridade. Isso leva, conse-

114
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 280.
115
SAINT-HILAIRE, Viagem pela comarca…, op. cit.
116
Ibidem, p. 18-19.
117
REUTER, op. cit., p. 73.
50

quentemente, à instância narrativa, ou seja, ―as formas fundamentais do narra-


dor‖118.
Em um relato de viagem, a instância narrativa é a do narrador homodiegético
passando pelo narrador, ou seja, é a combinação típica das autobiografias, confis-
sões e relatos, na qual o narrador conta sua própria vida retrospectivamente, pos-
suindo ―um saber mais significativo de cada uma das etapas anteriores de sua vida,
e pode, portanto, prever‖ e ―intervir em sua narrativa para explicar ou comentar sua
vida e a maneira como a conta‖. Em compensação, essa instância narrativa ―não
nos permite saber o que se passa (ou se passou) na cabeça de outras personagens
e restringe a mudança de lugares ao trajeto da personagem que narra.‖ Uma das
consequências disso é que ―leva o leitor a defender o ponto de vista de uma perso-
nagem e favorecer assim a identificação‖ 119. Nesse sentido, o viajante, já martirizado
em sua própria narrativa (desde os paratextos) não poderia ser vítima de um leitor
injusto que se pergunta o que ele faz. Tudo isso libera o narrador para que possa
então adjetivar as coisas e pessoas envolvidas em sua narrativa, sem que para isso
se desconfie de seu juízo de valor: redescobrir o Brasil foi imaginá-lo novamente,
produzir novas paisagens.

118
Ibidem, p. 73.
119
REUTER, op. cit., p. 81-82.
51

Capítulo 2 — PAISAGEM

Fala-se... Brasil... e imaginamos impenetráveis flores-


tas tropicais, praias de areia lisa, bordadas de coquei-
ros, plantações onde a cana de açúcar se ergue em
imensos canaviais; e recordamos as planícies panta-
nosas embelecidas pelo verde tenro das bananeiras,
as fazendas com cafezais alinhados a perder de vista,
lembramos os pampas do Sul onde pastam inumerá-
veis rebanhos. Mas o Brasil é também essa paisagem
que poderia ser europeia, com suas cadeias de mon-
tanhas arredondadas, um vale de floresta densa, um
riacho de águas claras, onde podemos pescar caran-
guejos.
(Paul Garfunkel, Far-west do Paraná)

Antes de qualquer consideração é necessário problematizar, apresentar o


conceito de paisagem; pois, quando nos referimos a ele, de forma recorrente, ten-
demos à naturalização (em todos os sentidos) do termo. Termo que ―é ora um obje-
to, ora um conceito, ora uma palavra com muitos significados‖; e, como postula Giu-
liana Andreotti, ―raramente os autores esclarecem o que perguntam, isto é, não indi-
cam se a questão diz respeito ao significado da palavra, ou ao conceito exatamente
ou, até mesmo, ao objeto da geografia e sua essência‖ 120.
O antropólogo Philippe Descola apresenta a seguinte definição:

Não há paisagem sem observador, não há observador sem percepção, e,


portanto, a paisagem é um lugar, mas que é recortado por um olhar, que é
recortado por um ponto de vista, que é recortado por uma perspectiva in-
121
formada por um esquema de percepção visual .

Descola tenta fugir do pecado do etnocentrismo e procura a existência de modelos


perceptivos que integram os objetos reais que compõe o mundo e os esquemas de
representação culturalmente estabelecidos pelos grupos humanos, sejam esses es-
quemas europeus, asiáticos ou americanos. Para isso, propõe que a paisagem é
decorrente de uma dupla transfiguração (in visu e in situ), ou seja, para que a paisa-
gem venha a existir, enquanto objeto e conceito, o entorno deve passar por ―uma
mudança deliberada de aparência, ao termo da qual um sítio torna-se um signo de

120
ANDREOTTI, Giuliana. Paisagens culturais. Tradução de Ana Paula Bellenzier [et all]. Curitiba :
UFPR, 2013, p. 52.
121
Em francês no original, transcrição e tradução minhas: ―Pas de paysage sans observateur, pas
d‘observateur sans perception, et donc le paysage c‘est un lieu, mais qui est découpé par un regard,
qui est découpé par un point de vue, qui est découpé par une perspective informé par un schème de
perception visuelle.‖ DESCOLA, Philippe. Les formes du paysage : cours au Collège de France, 2010-
2011, 29 février 2012, 30‘ 37". Disponível em: http://www.college-de-france.fr/site/philippe-
descola/course-2012-02-29-14h00.htm. Acesso 18/02/2015.
52

outra coisa que si mesmo revelando aquilo que continha potencialmente‖, um pro-
cesso que ―pode se realizar in situ, na medida em que se trata de um arranjo do lu-
gar, ou in visu, a partir da elaboração de um esquema visual que organiza a figura-
ção concreta e serve de filtro ao olhar‖122.
Paisagem é um conceito complexo, ambivalente, e frequenta de maneira
prolixa o vocabulário de historiadores da arte, geógrafos, biólogos, arquitetos, entre
tantos outros — fala-se tanto em paisagens naturais quanto em paisagens sociais,
paisagens urbanas e históricas, etc. —; Augustin Berque chama isso de inflação [in-
flation] do termo, tal inflação leva-nos a falar de paisagem a propósito de tudo e de
nada123: uma palavra esvaziada de conteúdo conceitual e que não remete a nenhum
objeto.
Ora, se um conceito é antes de tudo uma palavra, uma definição de paisa-
gem pode começar em sua etimologia.
Sanderville Jr. informa que a palavra é oriunda do francês, paysage, e tem
sua primeira aparição em dicionário desta língua atestada no século XVI; seu uso
em língua portuguesa é referido como paizagem, em 1656: a ―palavra portuguesa
paisagem deriva de país, que se refere não apenas ao espaço físico, mas a uma
apropriação peculiar do espaço, à construção de um território e de um povo, para
então se tornar, talvez, a imagem desse território‖124. Argumenta ainda o autor que o
sufixo agem, do latim imago, ―remete à ideia de forma, semelhança, aspecto, apa-
rência‖, havendo tanto a ideia tanto de imitação (correspondência, similitude) quanto
de representação (criação, imaginação)‖125.
Jean-Marc Besse chama a atenção para o fato de que no século XVI os vo-
cabulários da emergente pintura de paisagem e da geografia eram idênticos. Diz o
geógrafo que antes de adquirir uma significação principalmente estética, ligada a um
gênero específico de pintura, palavras como landschaft, landschap, paesse, possuí-

122
Em francês no original, tradução minha: ―La transfiguration est un changement d‘apparence délibé-
ré au terme duquel un site devient un signe d‘autre chose que lui et révèle par là ce qu‘il contenait en
puissance […] ce processus peut se réaliser in situ, lorsqu‘il s‘agit de l‘aménagement d‘un lieu, ou in
visu, par l‘élaboration d‘un schème visuel organisant la figuration concrète et servant de filtre au re-
gard.‖ DESCOLA, Philippe. Anthropologie de la nature. Cours : les formes du paysage. I (suite)., An-
nuaire du Collège de France 2012-2013, Résumé des cours et travaux 113 e année, Paris, 2014, p.
680.
123
BERQUE, Augustin. Paysage, milieu, histoire. In : ______ (Dir.) Cinq propositions pour une théorie
du paysage. Seyssel: Editions Champ Vallon, 1994, p. 27.
124
SANDEVILLE JR., Euler. Paisagem. Paisagem Ambiente: ensaios, São Paulo, no. 20, 2005, p. 51.
125
Ibidem, p. 51.
53

am uma significação territorial e geográfica126: ―tomada num sentido sobretudo jurí-


dico-político e topográfico, a paisagem é, de início, a província, a pátria, ou a regi-
ão‖127.
Nesse primeiro momento, a paisagem, o objeto (tendo uma conotação geo-
gráfica sobretudo), não se reduz a extensão de um território que se descortina a um
olhar desde um ponto de vista, ela é um entendida como espaço objetivo da exis-
tência humana. Nas palavras de Piero Camporesi, trata-se de ―uma paisagem do
trabalho, uma paisagem do uso, uma paisagem da saúde e do bem viver. Os valores
paisagísticos são menos pitorescos que práticos‖.

No século XVI, não se conhecia a paisagem no sentido moderno do termo,


mas o ―país‖, algo equivalente ao que é para nós, hoje, território […], lugar
ou espaço considerado do ponto de vista de suas características físicas, à
luz de suas formas de povoamento humano e de recursos econômicos. De
uma materialidade quase tangível, ele não pertence à esfera estética se não
128
de um modo muito secundário .

Como bem observou March Bloch, ―para grande desespero dos historiado-
res, os homens não têm o hábito, a cada vez que mudam de costumes, de mudar de
vocabulário‖129. Em que se tratando de paisagem, a noção de paisagem permitiu que
fosse visto, separado, isolado e identificado?
Não existindo percepções puras, imaculadas, as paisagens são, portanto,
aquisições culturais. Nossa concepção de paisagem, assim como as noções de útil e
de belo — termos que frequentemente associados ao conceito —, está sustentada
por todo um repertório, um imaginário herdado, sedimentado ao longo do tempo.
Pois ―se existe um sentimento de satisfação conferido pela paisagem, é que existe
uma forma que espera uma satisfação, um preenchimento.‖ Para Anne Cauquelin,
―trata-se aqui da adequação de um modelo cultural ao conteúdo singular que é apre-

126
Leo Name, ao tratar da etimologia dessas palavras, traz a seguinte referência: ―[...] landschaft é de
origem alemã, medieval, e se refere a uma associação entre o sítio e seus habitantes, ou seja, morfo-
lógica e cultural. Provavelmente tem origem em land schaffen, que é ‗criar a terra, produzir a terra‘.
Landschaft originou o landschap holandês, que, por sua vez, originou o landscape em inglês. O termo
holandês, apesar de seu significado ser igual ao correlato alemão, se associou às pinturas de paisa-
gens realistas do início do século XVII, relacionando-se então às novas técnicas de representação
renascentistas. Já o termo em inglês, originado do holandês, comumente é definido como view of the
land ou representation.‖ NAME, Leo. O conceito de paisagem na Geografia e sua relação com o con-
ceito de cultura. GeoTextos, vol. 6, n. 2, 2010, p. 164.
127
BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Tradução de Vladi-
mir Bartalini. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 20.
128
CAMPORESI apud BESSE, op. cit., p. 20.
129
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001, p. 59.
54

sentado‖, ―satisfação da mesma ordem que a da validade de um contrato: isso está


de acordo, convém‖130.
Esse valor estético da paisagem é retomado por Besse, ao propor que

Se se está de acordo que a paisagem é efetivamente uma produção cultu-


ral, as significações culturais que ela contém, e que são como que proje-
ções da cultura sobre o ―país‖, não podem ser reduzidas unicamente a sig-
nificações estéticas: é preciso também fazer jus a outros olhares culturais
lançados sobre a natureza, a outros universos de significação, a outros con-
ceitos e a outras práticas que, tanto quanto a estética, são investidas no ter-
ritório (investidas no sentido mais literal do termo). Há o olhar do cientista, o
do médico, o do engenheiro, o do religioso ou do peregrino, etc131.

Em um sentido estético e cultural, Alain Roger é categórico ao afirmar que


―uma paisagem nunca é redutível a sua realidade física — os geosistemas dos geó-
grafos, os ecossistemas dos ecólogos, etc.‖; para este filósofo ―a transformação de
um país em uma paisagem supõe sempre uma metamorfose, uma metafísica, [...] a
paisagem nunca é natural, mas sempre ‗sobrenatural‘‖ 132.
Simon Schama, em seu Paisagem e Memória, afirma que ―a paisagem é
obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto estratos de
rochas‖133. E, ainda mais enfaticamente, considera que ―a nossa tradição da paisa-
gem é produto de uma cultura comum, trata-se, ademais, de uma tradição construí-
da a partir de um rico depósito de mitos, lembranças e obsessões‖134.
Consequentemente, o desafio para que se possa compreender o conceito
parece residir em como integrar seu prefixo (o conceito da realidade objetal) e seu
sufixo, como valorar esses dois termos (país e imagem).
Augustin Berque, nesse sentido, sintetiza o problema das interações entre a
subjetividade do observador (produtor, ou articulador da imagem) e os objetos reais
que compõem a paisagem; como afirma:

[...] a paisagem não reside somente no objeto, nem somente no sujeito, mas
na interação complexa desses dois termos. Essa relação, que põe em jogo

130
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo Martins,
2007, p. 119-120.
131
BESSE, op. cit., p. 61-62.
132
Em francês no original, tradução minha: ―un paysage n'est jamais réductible à sa réalité physique
— les géosystèmes des géographes, les écosystèmes des écologues, etc. —, que la transformation
d'un pays en paysage suppose toujours une métamorphose, une métaphysique, entendue au sens
dynamique. En d'autres termes, le paysage n'est jamais naturel, mais toujours ‗surnaturel'‘‖. ROGER,
Alain. Court traité du paysage. Paris: Gallimard, 1997, p. 9-10.
133
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das
Letras. 2009, p. 17.
134
Ibidem, p. 24.
55

diversas escalas de tempo e espaço, não implica em uma maior valoração


da instituição mental da realidade que da constituição material das coisas135.

Para este geógrafo, a paisagem não se reduz aos domínios visuais do mundo, nem
à subjetividade de um observador, é mais do que um simples ponto de vista óptico,
assim como se remete a objetos concretos que estão a nossa volta, também é es-
pecificada por um sujeito que observa. É possível afirmar, então, que o estudo da
paisagem considera a complexa interação entre o sujeito que observa (sujeito este
vinculado a propósitos, sensibilidades e projetos individuais e/ou coletivos) e os ob-
jetos reais que se lhe apresentam.
Essa é a abordagem antropológica de Descola, que afirma que a noção de
paisagem

remete a dois níveis de realidade distintos, mas difíceis de dissociar. Uma


realidade ―objetiva‖, uma extensão de espaço oferecida à vista, que preexis-
te, portanto, ao olhar, e cujos componentes podem ser descritos de forma
mais ou menos precisa em todas as línguas; e uma realidade ―fenomênica‖,
uma vez que um sítio só vem a ser paisagem em virtude de um olho que o
capta em seu campo de visão e pelo qual se impregna de uma significação
136
particular .

Neste ponto é possível retomar a proposição de Sérgio Buarque de Holanda,


quando afirma que ―num intervalo de cerca de dois séculos [do XVII ao XIX], a terra
parecera ter perdido, para portugueses e luso-brasileiros, muito de sua primeira gra-
ça e gentileza‖, e que e a familiaridade cegou os nativos para o que havia de ―insóli-
to em cada coisa, mormente nessas coisas naturalmente complexas como o são
uma paisagem, uma sociedade, uma cultura‖137. Diz o historiador que aí reside o
interesse suscitados nos escritos e quadros dos viajantes chegados do Velho Mundo
entre o ano da vinda da Corte e, pelo menos, o do advento da Independência: ―de
tão visto e sofrido por brasileiros, o país se tornara quase incapaz de excitá-los‖138.

135
Em francês no original, tradução minha: ―[...] le paysage ne réside ni seulement dans l‘objet, ni
seulement dans le sujet, mais dans l‘interaction complexe de ces deux termes. Ce rapport, qui met en
jeu diverses échelles de temps et d‘espace, n‘implique pas moins l‘institution mentale de la réalité que
la constitution matérielle des choses.‖ BERQUE, Augustin. Introduction. In : ______ (Dir.) Cinq propo-
sitions…, op. cit., p. 5.
136
Cette notion renvoie à deux niveaux de réalité distincts, mais difficiles à dissocier. une réalité «ob-
jective», une étendue d‘espace offerte à la vue, qui préexiste donc au regard susceptible de
l‘embrasser et dont les composantes peuvent être décrites de façon plus ou moins précise dans
toutes les langues, et une réalité «phénoménale», puisqu‘un site ne devient paysage qu‘en vertu de
l‘œil qui le capte dans son champ de vision et pour lequel il se charge d‘une signification particulière.
DESCOLA, Philippe. Anthropologie de la nature. Cours : les formes du paysage. I., Annuaire du Col-
lège de France 2011-2012, Résumé des cours et travaux 112e année, Paris, 2013, p. 650.
137
HOLANDA, op. cit., p. 12.
138
Ibidem, p. 13.
56

As palavras de Holanda encontram eco na asserção de Raymond Williams


que compreende que raramente uma terra em que se trabalha é uma paisagem,
uma vez que ―o próprio conceito de paisagem implica separação e observação‖139.
Ou, mais especificamente, em Alain Corbain que afirma que ―a paisagem é uma for-
ma de ler e analisar o espaço, de representa-lo‖140 e, por isso mesmo, indissociável
da pessoa que a contempla. O historiador francês informa que desde o Renascimen-
to ―lemos a paisagem de uma maneira distanciada, em função de uma atitude que
se pode chamar de espectatorial, pois nos submetemos ao primado da visão‖141.
Ainda segundo Corbain, todas as atitudes espectatorias estão fundadas em uma
distância: ―quando se considera o que chamamos de paisagem, nos sentimos, ao
mesmo tempo, face a um espaço e fora dele‖ 142.
Essa distinção é também apontada por Yi-Fu Tuan, compreende o geógrafo
que visitantes e nativos focalizam aspectos bem diferentes do meio ambiente uma
vez que, de maneira geral, somente o visitante tem um ponto de vista, pois sua per-
cepção se reduz a usar os olhos para compor quadros. Já o nativo, ao contrário, tem
uma atitude complexa derivada da sua imersão no meio ambiente. ―O ponto vista do
visitante, por ser simples, é facilmente enunciado. Por outro lado, a atitude complexa
do nativo somente pode ser expressa com dificuldade e indiretamente por meio do
comportamento, da tradição local, conhecimento e mito‖ 143.
O ato de enunciar a paisagem, de dizê-la, de representa-la, é sem dúvida
um problema histórico. Não é a sua realidade, sua concretude que é contestada (pa-
ra retomar os termos de Andreotti: o objeto, a essência), mas sim a ideia de paisa-
gem e sua percepção e, por fim, a sua enunciação possibilitada por uma palavra ou
outro suporte. Nas palavras de Roger: ―sem dúvidas a denominação é essencial;

139
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução de Paulo Henri-
que Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 201.
140
Em francês no original, tradução minha: ―Le paysage est manière de lire et d'analyser l'espace, de
se le représenter […], le paysage est une lecture, indissociable de la personne qui contemple l'espace
considéré.‖ CORBIN, Alain. L‟homme dans le paysage. Entretien avec Jean Lebrun. Paris : Textuel,
2001, p. 11.
141
Em francês no original, tradução minha: ―Nous lisons les paysages d'une manière distanciée, selon
une attitude que l'on peut qualifier de spectatoriale, parce que nous nous soumettons au primat de la
vue, et cela depuis la Renaissance.‖ Ibidem, p. 19.
142
Em francês no original, tradução minha: ―Quand l'on considère ce que nous appelons un paysage,
nous nous sentons, tout à la fois, face à un espace et en dehors de lui.‖ Ibidem, p. 19.
143
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Tradução
de Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2012, p. 96.
57

mas a sensibilidade paisagística pode se abrir por outras vias, se exprimir por outros
signos, visuais ou não, que requerem, do intérprete, uma atenção escrupulosa‖144.
Ora, se como aponta Michel Collot, ―a paisagem é sempre vista por alguém,
é por isso que ela tem um horizonte, cujos contornos são definidos por esse ponto
de vista‖145, devemos nos perguntar que paisagem é representada por esses obser-
vadores nos relatos de viagem? Como, e em função de quê, os lugares são recorta-
dos? A partir de quais pontos de vista são operados esses recortes?

2. 1 — Ver a paisagem através das lentes culturais

A palavra paisagem está presente nos três relatos de viagem selecionados.


Apesar disso, seu simples aparecimento não possibilita a compreensão do conceito
para os autores. É possível apenas, a partir dos fragmentos existentes, asseverar
que nos relatos esse conceito toma a forma de um inventário estetizado, sem que
esses dois termos se contradigam ou se oponham: trata-se do país, tanto quanto de
sua imagem, e é a distância, a separação do viajante, que lhe permite avaliar a pai-
sagem, dizê-la.
Nos relatos de Bigg-Wither e Taunay o termo é empregado mais em seu
sentido estético, ou seja, a paisagem é uma vista agradável, a ser apreciada, sobre-
tudo por sua grandeza (não perdendo também seu valor de inventário), como, por
exemplo, nas seguintes expressões: ―nos vastos panoramas […] é que a monotonia
se transforma em grandeza, mas, no número infinito de paisagens menos extensas

144
Em francês no original, tradução minha : ―Sans doute la dénomination est-elle essentielle ; mais la
sensibilité, paysagère en l'occurence, peut se frayer d'autres voies, s'exprimer par d'autres signes,
visuels ou non, qui requièrent, de l'interprète, une attention scrupuleuse‖. ROGER, op. cit., p. 57. O
filósofo disserta ainda sobre forte ligação que as palavras francesas pays, paysans e paysage (lite-
ralmente em português país, camponês — mas também paisano em sua origem — e paisagem) pos-
suem: ―a percepção de uma paisagem [...] exige tanto um afastamento quanto uma cultura, uma es-
pécie de recultura. Isso não significa que o camponês é desprovido de qualquer relação com o seu
país e que ele não sente apego à sua terra, ao contrário; mas esse apego é mais poderoso por ser
simbiótico. Falta-lhe, por conseguinte, essa dimensão estética, que é medida, ao que parece, pela
distância do olhar, indispensável à percepção e ao deleite paisagístico. O camponês é o homem do
país, não o da paisagem.‖ Em francês no original, tadução minha: ―La perception d'un paysage […]
suppose à la fois du recul et de la culture, une sorte de reculture en somme. Cela ne signifie pas que
le paysan est dépourvu de tout rapport à son pays et qu'il n'éprouve aucun attachement pour sa terre,
bien au contraire; mais cet attachement est d'autant plus puissant qu'il est plus symbiotique. Il lui
manque, dès lors, cette dimension esthétique, qui se mesure, semble-t-il, à la distance du regard,
indispensable à la perception et à la délectation paysagères. Le paysan est l'homme du pays, non
celui du paysage‖. Ibidem, p. 27.
145
COLLOT, Michel. Do horizonte da paisagem ao horizonte dos poetas. Tradução de Eva Nunes
Chatel. In: ALVES, Ida Ferreira; FEITOSA, Márcia Maria Miguel (org.). Literatura e paisagem: pers-
pectivas e diálogos. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2013, p. 206.
58

com que frequentemente nos deparávamos, sentíamos que em geral faltava um re-
levo à identidade‖146, as ―mais soberbas e magníficas vistas‖147, grandes campos
―com seus horizontes sem fim e de seus soberbos espetáculos‖ 148, ―a vastidão do
campo dourado, estendendo-se para o sul e para o oeste, até se perder de vista‖149,
―grandes campos ondulantes‖150; ―verdejantes vastidões de campos iluminados pelo
sol, com fundas e elegantes ondulações‖151, ―sua formosura como paisagem‖ 152, ―há
nesta terra do Brasil momentos, há perspectivas, há paisagens tão grandiosas, tão
inesperadas, tão solenes, há quadros tão extraordinários em sua repentina aparição,
[…] que nem mesmo o pincel as pode fielmente reproduzir‖ 153, etc.
Já no texto de Saint-Hilaire o emprego do conceito visa tanto uma mirada es-
tética, quanto o utilitarismo. Como na descrição a seguir: ―até onde a vista alcança,
descortinam-se extensas pastagens; pequenos capões, onde sobressai a valiosa e
imponente [utile et majestueux] Araucária, surgem aqui e ali nas baixadas, o matiz
carregado de sua folhagem contrastando com o verde-claro e viçoso do capinzal‖154.
Suspensa temporalmente na narrativa — de fato isso é parte essencial de
toda narrativa; nas palavras de Gérard Genette, ―a descrição é mais indispensável
do que a narração, uma vez que é mais fácil descrever sem narrar do que narrar
sem descrever‖155 —, a descrição da paisagem visa simultaneamente um saber en-
ciclopédico e utilitário, na mesma medida em que produz uma imagem estetizada.
Diz Saint-Hilaire em sua ―Descrição Geral dos Campos Gerais‖:

Esses campos são certamente uma das mais belas regiões que já percorri
desde que cheguei à América; suas terras são menos planas, não tendo
pois a monotonia das nossas planícies de Beauce, mas as ondulações do
terreno não chegam a ser tão acentuadas que limitem o horizonte. […] De
vez em quando apontam rochas à flor da terra nas encostas dos morros, de
onde se despeja uma cortina de água que se precipita nos vales; inúmeras
éguas e bois pastam pelos campos e dão vida à paisagem; veem-se poucas
casas, mas todas bem cuidadas, com pequenos pomares de macieiras e
pessegueiros. O céu ali não é tão luminoso quanto na zona dos trópicos,
mas talvez convenha mais à fragilidade da nossa vista156.

146
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 127.
147
Ibidem, p. 97.
148
Ibidem, p. 101.
149
Ibidem, p. 134-135.
150
Ibidem, p. 350.
151
TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 118.
152
Ibidem, p. 133.
153
Ibidem, p. 143.
154
SAINT-HILAIRE, Viagem pela Comarca…, p. 12.
155
GENETTE, Gérard. Fronteiras da Narrativa. In: BARTHES, Roland; et all. Análise estrutural da
narrativa: pesquisas semiológicas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 263.
156
SAINT-HILAIRE, Viagem pela Comarca…, p. 12.
59

Para Bigg-Wither, os Campos Gerais [the great Prairie] compõe um esplen-


doroso panorama:

Para o lado sul e sudoeste, estendia-se o vasto mar de relva dourada que
se perdia de vista, ondulando em vagas gigantescas até o profundo vale do
Iguaçu, bem distante e muito abaixo; depois, elevando-se novamente do ou-
tro lado, continuava seu movimento ondulatório, diminuindo gradativamente
as vagas, até o céu e a terra se confundirem e se perderem na distância, no
que parecia ser o infinito. Não havia detalhes que chamassem a atenção, a
vista parecendo perder-se na imensidão do panorama. Surgiam apenas al-
gumas árvores raquíticas, vendo-se aqui e ali pinheiros, a refletirem a ra-
magem verde escura nas profundezas dos cursos d‘água que cruzavam as
campinas. Era só. Além disso, a grande planície, quase sem limite em ex-
tensão, não apresentava um só marco onde os olhos pudessem repousar.
[...] Nem na Inglaterra, nem talvez em toda a Europa seria possível encon-
trar qualquer coisa que se aproximasse disto. O que mais me impressionou
foi a sua vastidão — a sua imensidão nos dava a ideia do ilimitado157.

Já o Visconde de Taunay, mais modesto e menos impressionado que os ou-


tros dois viajantes, assim descreve:

Como perspectiva, nada mais formoso do que aquele desdobrar de campos


de um verde alegre, em que nas quebradas se desenvolve compacta vege-
tação, com alterosos pinheiros aqui e acolá e ainda mais aformoseados por
maciços de rochas de todas as configurações, já redondas, já pontiagudas,
ora compactas, ora rendilhadas, esparsas ou em grupos, desnudadas ou
então cobertas de gravatás e outras bromélias.
E isso se estende por léguas e léguas, modificadas só as razões de mais ou
menos propriedade para o cultivo pela aproximação das correntes d'águas,
umas volumosas, como o Iguaçu e Tibagi e outras, mais modestas, já ribei-
rões, já modestos córregos158.

Na descrição de Taunay, a abstenção do narrador em primeira pessoa e o


uso do impessoal tenta anular qualquer presença; a paisagem parece enunciar-se
por si mesma: ela é um dado. Enquanto no relato de Bigg-Wither o narrador aparece
apenas no final do enunciado, dramatizando a experiência descritiva (apesar das
complexas diferenças entre as línguas portuguesa e inglesa, no texto original a des-
crição continua no impessoal: ―what seemed to impress one most was its immensity
— its seeming boundless expansion‖159; uma tradução livre seria ―o que parecia im-
pressionar mais era sua imensidão — sua aparente expansão sem fronteiras‖. A
descrição de Saint-Hilaire, apesar de começar em primeira pessoa, segue o mesmo
roteiro; o detalhe que chama à atenção é o aparecimento do pronome possessivo da

157
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 94-95.
158
TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 134.
159
BIGG-WITHER, Thomas P. Pioneering in South Brazil. Three years of forest and prairie life in the
Province of Paraná, vol.I. London: John Murray, 1878, p. 112.
60

terceira pessoa do plural no final da descrição (―nossa‖): ora, quem é esse ―nós‖ que
possui a vista frágil? Sem dúvida devemos retomar a proposição de Descola de que
―não há paisagem sem observador‖160; e de fato não existe; mas, é parte essencial
de toda narrativa que busca o realismo (uma cópia estrita do referente), apagar as
marcas do enunciador para aproximar leitor do que é descrito. Essa é a marca da
literatura científica: dar a ver um objeto (ou um conjunto de objetos), uma realidade,
sem os sinais da subjetividade de um possível observador: é aquilo que está dado.
Ou, como denomina Barthes, uma linguagem considerada ―espontânea‖, ―instrumen-
tal‖; linguagem esta que deve ser apenas ferramenta de um conteúdo mental ou
dramático, que não possui consistência em si mesma: ―as escritas científicas, não se
oferecem como escrituras, mas somente como transparências a serviço de um rela-
tório, de uma relação, de uma recensão do pensamento‖161. Parte da operação retó-
rica primordial para a concepção de paisagem, pertencendo àquilo que Cauquelin
denominada ―grande arte da ilusão sedutora‖: ―a presença de um autor por trás da
obra ou da paisagem é apagada: pensamos ter acesso direto a uma realidade total.
A perfeição é atingida quando se crê que não há mediação alguma entre a natureza
— exterioridade total — e a forma segundo a qual ela é percebida‖162.
Esse tipo de descrição só é possível porque o viajante está (de passagem)
na paisagem, mas não faz parte dela — não é o camponês, o paisano. Essa ―abs-
tração do homem‖, essa postura de observador, como descreve Raymond Williams,
possibilitou o aparecimento de ―ideias mais seculares e mais racionais sobre a natu-
reza‖163, trata-se de ―uma mente separada observando uma matéria separada‖164. O
aprimoramento da agricultura, a Revolução Industrial, etc. foram desencadeadas a
partir dessa ênfase; muitos ―desses efeitos práticos‖ dependeram de um olhar sobre
a natureza enquanto um conjunto de objetos, passíveis de serem manipulados e
operados pela mente humana165. Esse olhar sobre o mundo natural, sobre o espaço;

160
Cf. supra p. 51.
161
BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade: notas de curso no Collège
de France 1979-1980. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 338.
162
CAUQUELIN, op. cit., p. 124.
163
WILLIAMS, Raymond. Ideias sobre a natureza. In:_____. Cultura e materialismo. Tradução de
André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 101.
164
Ibidem, p. 102-103.
165
A diferença entre ver e o olhar é discutida por Sérgio Cardoso: ―o ver e o olhar, na sua oposição,
configuram campos de significação distintos; assinalam em cada extremidade do nosso fio justamen-
te ‗sentidos‘ diversos. O ver, em geral, conota no vidente uma certa discrição ou passividade ou, ao
menos, alguma reserva. Nele um olho dócil, quase desatento, parece deslizar sobre as coisas; e as
espelha e registra, reflete e grava. […] Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e
61

essa distância que permite ao viajante ver a paisagem, era condicionada por diver-
sos fatores, como visto anteriormente. Mas, sobretudo, uma questão se fez determi-
nante: a oposição entre rural e urbano e a convicção de que os ambientes urbanos
sofriam uma profunda deterioração, tidos cada vez mais como sujos e pestilentos; o
campo, ao contrário, era representado enquanto saudável e terapêutico166. Como
lembra Corbain ―a terapêutica determinou significativamente a apreciação. A partir
dos últimos decênios do século XVII, viu-se desenhar uma admiração das paisagens
‗saudáveis‘, consideradas como terapêuticas‖167. Essa preocupação é mais evidente
ainda no relato de Taunay em função de sua atividade enquanto presidente da pro-
víncia.
Bigg-Wither define as florestas do Ivaí como um ―Inferno terrestre‖, repletas
da ―praga dos insetos e pequenas misérias‖, um ambiente em que ―há alguma coisa
em seu silêncio perpétuo, nas suas sombras escuras e nos seus horizontes limita-
dos que age compassivamente sobre a mente e o corpo, reduzindo ambos a um pe-
rímetro mais estreito‖168. Já nos Campos Gerais, próximo a Tibagi, sua mirada tera-
pêutica fica clara:

Há alguma coisa, na atmosfera ou no cenário desses campos, ou ainda em


determinados dias, muito sutil para ser analisada ou explicada, que, todavia,
exerce poderosa influencia sobre o espírito. Não posso imaginar restaurador
mais eficiente para a cura dos dissabores a que estamos especialmente su-
jeitos do que um ou dois meses de viagem nestas planícies refrescadas pe-
la viração. A simplicidade do modo de viver não seria mera questão de es-
colha, mas necessidade de mudança completa de vida em todos os senti-
dos — mudança do inatural para o natural, em que se come apenas para
satisfazer a fome, se dorme durante as horas em que estiver escuro, sem
levanta com o sol num dia de não aborrecimento e tédio, mas de gozo pleno
e prazer, tanto para o espírito como para o corpo — eis o que produz a mais
perfeita alegria de existir, independente de todos os tônicos preparados pela
farmácia169.

às virtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura de sua interioridade […] Por
isso é sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor… Como se irrompesse
sempre da profundidade aquosa e misteriosa do olho para interrogar e iluminar as dobras da paisa-
gem.‖ CARDOSO, Sérgio. O olhar do viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São
Paulo: Companhia das letras, 1988, p. 348.
166
Cf. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e
aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2010, pp. 345-359.
167
Em francês no original, tradução minha: ―La visée thérapeutique a, elle aussi, largement déterminé
l'appréciation. À partir des dernières décennies du XVII e siècle, on voit se dessiner une admiration des
paysages « sains », considérés comme thérapeutiques.‖ CORBAIN, op. cit., p. 71.
168
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., pp. 350-352.
169
Ibidem, p. 408.
62

A noção de horizonte é, sem dúvida, uma chave para a compreensão do


conceito de paisagem: não há paisagem sem horizonte; ainda que essa noção reme-
ta à ideia de ―uma linha que encerra a nossa vista‖, é o horizonte que permite uma
seleção do todo. Embora esta noção remeta a certa negatividade, ela está ligada à
pluridimensionalidade do espaço. Collot lembra que: ―se a paisagem tiver partes es-
condidas, é porque comporta um relevo, e organiza-se segundo uma escala de pon-
tos sucessivos que se mascaram uns aos outros‖, e que ―essa limitação da visibili-
dade faz da paisagem uma ‗estrutura de apelo‘: incompleta, ela pede para ser com-
pletada por uma intervenção ativa do sujeito, o qual deverá esforçar-se para preen-
cher as lacunas da paisagem graças à imaginação, à palavra ou ao movimento.‖
Como afirma o autor: ―o invisível solicita a imagem‖170. Por isso tantas referências à
―ondulações‖, ―vagas‖, ―desdobrar‖, etc.: caminhar (viajar) é atualizar a paisagem.
Experiência impossível para um viajante europeu em florestas americanas, descrita
por Bigg-Wither como ―tão densas que, sem o auxílio do machado ou do facão, o
horizonte possível de uma pessoa ali estacionada não podia ir além, em muitos ca-
sos, do alcance da mão‖171.
Importante ressaltar que a noção de olhar opera significativamente para a
compreensão do espaço e sua posterior apreciação. Tanto Tuan quanto Descola
insistem na variedade de culturas e modos de percepção do entorno. Aí investem
diversos fatores como sexo, idade, interesses, cultura de origem, etc.: ―o meio ambi-
ente natural e a visão do mundo estão estreitamente ligadas: a visão do mundo, se
não é derivada de uma cultura estranha, necessariamente é construída dos elemen-
tos conspícuos do ambiente social e físico de um povo.‖ Tanto o contato com a pai-
sagem quanto a própria noção remetem a um forte conteúdo etnocêntrico europeu.
Saint-Hilaire — astuto narrador, talvez interessado na divulgação de seus re-
latos anteriores — compara os Campos Gerais à região mineradora de Minas Ge-
rais. Diz o naturalista que:

Embora o inverno seja rigoroso [nos Campos Gerais], pode-se afirmar que o
clima é temperado; há ventos frequentes e o ar circula livremente por toda a
região; suas águas, embora inferiores às da parte oriental de Minas Gerais,
são mesmo assim bastante boas; não existem brejos em nenhum lugar, pra-
ticamente, e os rios correm celeremente […] por leitos de rochas.
Do dia 26 de janeiro a 4 de março de 1820 não houve, talvez, dois dias se-
guidos sem chuva, e de fato essa é a época em que as chuvas são mais
abundantes; porém não se conhecem ali as prolongadas secas de seis me-

170
COLLOT, op. cit., p. 210.
171
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 439.
63

ses que em Minas e em Goiás afetam de forma tão penosa o sistema ner-
voso172.

Os dois viajantes europeus insistem (para além das duas citações apenas,
mas em todo o relato) na relação salubre, saudável, do ambiente e do corpo. O ima-
ginário terapêutico atua significativamente na apreciação da paisagem, na apreen-
são de um espaço enquanto paisagem.
Taunay, influenciado por um imaginário eurocêntrico e, sobretudo, por Saint-
Hilaire, não deixa de insistir sobre a circulação do ar e dos frequentes ventos:

Falávamos, porém, da salubridade dos Campos Gerais. É ela geralmente


reconhecida incontestável. Ponta Grossa e Castro gozam da fama de serem
climas excepcionais, sobretudo para doentes de tísica pulmonar. O ar, com
efeito, é muito puro e fino. […]
Um dos pontos mais reputados pela sua salubridade nos Campos Gerais,
muito embora seja bastante ventoso, é a cidade de Ponta Grossa. Com uma
população fixa de talvez 1.200 habitantes e lugar de bastante trânsito, pas-
sou-se um ano inteiro, sem que lá morresse uma só pessoa! Cita-se o fato
com orgulho, e com efeito parece extraordinário e poderia suscitar increduli-
dade se não fosse coisa averiguada e de poucos anos.
São Luiz, logo à entrada dos Campos Gerais, depois de Serrinha, é um dos
lugares mais frios e húmidos de toda aquela região. […]
Saint-Hilaire, com toda a razão, preconiza as condições de salubridade de
todos esses lugares. O clima é temperado, embora caiam no inverno copio-
sas geadas. Venta bastante, muito até, em vários pontos, como por exem-
plo em Ponta Grossa. Os pântanos são raros, quase não existentes e no
geral os rios e ribeirões correm por sobre grandes lajeados173.

O olhar do viajante está subordinado a convicções científicas, sobretudo das


teorias neo-hipocráticas, que preconizavam a salubridade dos ambientes. Como
lembra Corbain, a partir do século XVII são insistentes as referências médicas à
qualidade do ar, da terra e da água; se espalha a convicção de que ―as doenças se
transmitiam não pelo contágio, mas pela contaminação do ar, da água e da terra‖,
―tudo o que é estagnado é considerado insalubre. Tudo que é móvel, tudo que é
ventilado, é percebido como saudável‖, sem dúvidas, ―tal sistema de convicções ci-
entíficas levou a apreciar os espaços ventilados e a depreciar profundamente as
paisagens nas quais parecia reinar uma total imobilidade‖174. Daí as referências in-
sistentes às características consideradas como ―qualidades‖ dos Campos Gerais:
aberto, ventilado, fresco, abundantemente regado por água corrente, etc.

172
SAINT-HILAIRE, Viagem pela Comarca…, op. cit., p. 16.
173
TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 149-150.
174
Em francês no original, tradução minha : ―les maladies se transmettent non par la contagion mais
par l'infection de l'air, de l'eau et de la terre. […] Tout ce qui stagne est alors considéré comme mal-
sain. Tout ce qui est mobile, tout ce qui est ventilé, est perçu comme sain. […] Un tel système de con-
victions scientifiques a conduit à goûter les espaces ventilés et à déprécier très fortement les pay-
sages au sein desquels semblait régner une totale immobilité.‖ CORBAIN, op. cit., pp. 66-68.
64

A oposição entre urbano e rural também adjetivava o primeiro enquanto


atrasado, obsoleto diante a modernidade desejada, gerava uma dualidade complexa
para o olhar do viajante (tanto europeus, quanto brasileiros).
O olhar dos viajantes europeus se constrói a partir da ambivalência que pro-
põe ao mesmo tempo a busca de elementos que remontem à Europa rural (uma Eu-
ropa em profundas transformações), mas que também projeta uma modernização
profunda, uma alteração muitas vezes radical da paisagem175. Tanto para Saint-
Hilaire quanto para Bigg-Wither, o projeto imigratório responde a essas duas ques-
tões.
Taunay por sua vez expressa essa dualidade quando expõe seu interesse
sobre os nativos. Influenciado pelo romantismo e pelo gosto suscitado pelo estudo
do povo (da gente), o autor-narrador da Viagem filosófica escreve que ―de tudo
quanto cerca o homem observador pode ele tirar motivos de instrução e interesse‖, e
por isso tomava ―nota de alguns vocábulos que foram enriquecer o curioso e impor-
tante dicionário da língua brasileira popular‖, obra que então preparava seu primo
Henrique de Beaurepaire Rohan. Em contrapartida, não suportava o fato de ―ficarem
durante o dia inteiro sete, oito, dez e até mais malandros, na força da idade, a atu-
lharem os ranchos entregues à vadiação, dormitando à sombra, ou contando casos
de jogo e proezas de caça‖; estes eram comparados por Taunay aos ―filhos da Eu-
ropa‖ que, segundo o autor, quando ―se lhes entrega um canto de terra, estão a ele
presos nos múltiplos misteres do seu amanho e cultivo de sol a sol!‖176.
Thomas Bigg-Wither, após sair de Curitiba em 11 de Agosto de 1872, e gal-
gar a Serrinha com ―as mulas cansadas, esgotadas da dura caminhada da subida do
desfiladeiro‖, ele, juntamente com os tropeiros, empregados e companheiros ―deita-
ram-se na relva verde, como um rebanho de carneiros num dia de verão na Inglater-
ra [at home], o focinho inclinado para o solo, ofegantes e com a carga ainda no lom-
bo.‖ Esse quadro, semelhante ao que poderia ser visto em terras inglesas, ―refletia
perfeito estado de sossego e satisfação‖, visto do alto parecia até uma parte de Kent
ou Sussex, e ―na aparência geral, não diferia de certas partes de uma daquelas duas
regiões.‖ Mas, ao alcançar o topo da Serrinha, marco que separa o primeiro do se-

175
Raymond Williams lembra ―as origens rurais‖ do capitalismo europeu, sobretudo na Inglaterra do
século XVII e o cercamento de terras, com suas mansões senhoriais e as grandes propriedades.
Thomas Bigg-Wither era herdeiro de toda a tradição descrita por Williams, o engenheiro nasceu na
mansão de Tangier Park em Hampshire, na Inglaterra, um dos primeiros condados ingleses a perpe-
trar os cercamentos. WILLIAMS, O campo e a cidade…, op. cit.
176
TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 104.
65

gundo planalto paranaense, sua impressão foi a de que ―nem na Inglaterra, nem tal-
vez em toda a Europa seria possível encontrar qualquer coisa que se aproximasse
disto‖. Para o viajante inglês não haviam detalhes que chamassem a atenção, a vis-
ta parecia perder-se na imensidão em que ―surgiam apenas algumas árvores raquíti-
cas, vendo-se aqui e ali pinheiros, a refletirem a ramagem verde escura nas profun-
dezas dos cursos d‘água que cruzavam as campinas.‖ 177
Segundo Mary Louise Pratt, ―os vitorianos optaram por uma marca pictórica
verbal, cuja função maior era a de reproduzir para a audiência de seu país de origem
os momentos culminantes em que ‗descobertas‘ geográficas eram ‗vitórias‘ para a
Inglaterra‖178, e que dessa forma inserem-se ―referentes materiais na paisagem, refe-
rentes que invariavelmente, do aço a neve, ligam explicitamente a paisagem à cultu-
ra nativa do explorador, temperando-a com alguns pequeninos pedaços da Inglater-
ra‖179. Bigg-Wither utiliza diversas vezes a expressão ―at home‖180, sobretudo quan-
do estabelece comparação entre os serviços prestados no Brasil (correios, transpor-
te, hotel) e as paisagens dos Campos Gerais e do primeiro planalto (Curitiba). O via-
jante inglês se remete às estações, criação de carneiros e a aos pastos da Inglaterra
quando utiliza a expressão.
Também, ao encontrar um colono inglês próximo a cidade de Ponta Grossa,
o viajante narra a seguinte passagem

Mr. Edenborough, corpulento rapaz, feito naturalmente de boa cepa, nos re-
cebeu no tradicional estilo inglês e, em pouco tempo, já nos conhecíamos
perfeitamente. Contou-nos estar aqui já havia uns sete anos e que estivera
na Inglaterra uma vez nesse período de tempo, trazendo de volta muitos
implementos agrícolas, além de grama e outras sementes. Logo se pôs a
trabalhar para ver o que conseguia obter da campina. […] Aquele pedaço de
terra era bem pobre e toda a região de Ponta Grossa era sujeita a secas de
vários meses de duração. […] Mr. Edenborough também nos informou já ter
empregado bastante capital na propriedade, em construção de casas, na
abertura de fossos e na campina, e não podia recuar agora181.

Se, neste caso, as qualidades da paisagem possuem valor estético e mate-


rial para a cultura de origem tanto do viajante quanto do colono, as suas ―deficiên-
cias‖ sugerem a necessidade de intervenção e aperfeiçoamento.

177
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 93-94.
178
PRATT, op. cit., p. 339-340.
179
Ibidem, p. 344.
180
No primeiro volume do relato em inglês o termo aparece 10 vezes, já no segundo 9 vezes. O tra-
dutor brasileiro, Temístocles Linhares, em geral faz uso do termo ―Inglaterra‖ quando a expressão em
língua inglesa aparece.
181
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 121.
66

O engenheiro inglês escreve que a ―região de Ponta Grossa era sujeita a se-
cas de vários meses de duração‖, contrariando (ainda que sem qualquer intenção)
tanto Saint-Hilaire, quanto sua própria narrativa, na qual registra chuvas frequentes
durante todo o período em que esteve nos Campos Gerais. Trata-se de uma estra-
tégia em que desqualifica a paisagem para legitimar a atividade de colonizadora e
modernizante de Edenborough (por ele definido como ―homem de boa cepa‖ — ali-
ás, esta é uma praxe no texto de Bigg-Wither, que define Miles, cozinheiro da expe-
dição, como ―um rapaz do Condado de Warwick, de cerca de vinte anos, de peque-
na estatura, franzino, mas fiel como um cão a seu amo‖; para depois se perguntar
retoricamente: ―com um empregado desse naipe para nos servir, quem não ficaria
contente?‖182).
Saint-Hilaire reflete sobre a relação entre a paisagem e o trabalho humano
em alguns trechos exemplares. Contrariando a si mesmo em sua ―descrição geral‖,
quando anteriormente em seu texto afirmava que as terras dos Campos Gerais, por
serem menos planas, não tinham a monotonia das planícies de Beauce, ele então
afirma que:

Toda a região […] oferecia ainda imensas pastagens, no meio das quais al-
guns bosques se elevavam nas baixadas. De tempos em tempos aproveitá-
vamos uma vista expandida, mas o aspecto das terras era sempre o mes-
mo; nada é mais monótono do que essas regiões desérticas, são os traba-
lhos do homem que dão variedade à natureza183.

Segundo o que afirma autor, o pessoal que o servia era ―cheio de vícios‖, pois, em
geral ―os brasileiros das classes baixas não dispõem de qualquer instrução moral e
religiosa, e em vista disso raramente mostram possuir alguma virtude, […] não têm
família, tendo sido criados por mulheres de má fama, que lhes ensinaram todos os
vícios.‖ Gente de hábitos caracterizados pelo viajante francês ―por um permanente
marasmo moral‖ e que ―se saem dele é durante alguma crise, que resulta sempre
em crime‖184.
Um elemento importante para a percepção da paisagem, ou melhor, para a
construção da paisagem, é a maneira como apreciamo-la. A tradição da pintura de
paisagem nos ensina a vê-la a partir de um ponto fixo, essa não é de forma alguma
a condição do viajante, que está de passagem e, em movimento, a observa. Ainda

182
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p.113-114.
183
SAINT-HILAIRE, Viagem pela Comarca…, op. cit., p. 57.
184
Ibidem, pp. 82-86.
67

assim, para que seja inteligível na narrativa, os três autores compõem quadros, qua-
dros esses feitos a partir de um ponto fixo, para, daí então (e isso para contribuir
narrativamente à valorização actancial do autor/narrador) voltar a narração e especi-
ficar, nomear os elementos da paisagem. Esse é o caso de Saint-Hilaire que inicia
seu relato a partir de uma ―Descrição geral dos Campos Gerais‖, dedicando nada
menos que 22 páginas a essa tarefa. Também Bigg-Wither e Taunay usam esse re-
curso em seus relatos: uma descrição geral, de conteúdo estetizante e forte impres-
são, como visto acima.
O ato de denominar é por si só, como descreve Alain Corbain, ―um revelador
das formas de apreciar o espaço e, portanto, de construir paisagens‖, ―a denomina-
ção dos elementos da paisagem contribui para a heroicização do indivíduo que a
efetua‖185.
O Visconde de Taunay ressalta sua mirada científica e reformista em alguns
momentos que descreve a composição florística, por exemplo:

A vegetação rasteira dos campos é bastante interessante sobressaindo em


muitos pontos os araçazeiros (eugenias), que dão frutozinhos de sabor
agradável, pitangueiras, uvaias, guabirobas, tudo de crescimento acanhado,
contrastando por vezes o tamanho do fruto com o do vegetal, o que se ob-
serva sobretudo no cajuí (anacardium humile)186.

Ou a constituição geológica dos Campos Gerais, que conforme o autor

não favorece mais enérgica vegetação, por isso que a exígua camada de
terra ou solo arável assenta sobre espesso e prolongado lajeado.
Não fosse esta circunstância, em alguns e largos trechos insanável, o Para-
ná, sobretudo os Campos Gerais, teriam diante de si o mais prospero e bri-
lhante futuro pastoril, se se tratasse do replantio dos pastos, como fazem
com tamanho êxito a Austrália, a Nova Zelândia e muitos Estados da Con-
federação Norte Americana187.

A impressão de Saint-Hilaire é a de que a instalação de uma colônia de suí-


ços nos Campos Gerais teria ―intimidado os indígenas e posto a região a salvo de
suas devastações‖ e que os imigrantes ―teriam ensinado aos antigos habitantes do
lugar os métodos europeus de agricultura, que certamente são aplicáveis a essa re-
gião‖188. Como é o caso em que descreve a criação de gado:

185
Em francês no original, tradução minha: ―un révélateur des manières d'apprécier l'espace et donc
de construire des paysages. […] La dénomination des éléments du paysage contribue à l'héroïsation
de l'individu qui l'effectue.‖ CORBAIN, op. cit., p. 70-71.
186
TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 125.
187
Ibidem, p. 154-155.
188
SAINT-HILAIRE, Viagem pela comarca…, op. cit., p. 32-33.
68

[…] o número de bezerros corresponde, todos os anos, a mais ou menos


um quarto do das vacas. É bem verdade que o número de bezerros que
nasce é muito maior do que esse, mas as doenças dizimam uma boa parte,
e muitos são levados pelos ladrões ou devorados pelos animais selva-
189
gens .

Ou do cultivo de linho — em que também aparece o pronome possessivo da terceira


pessoa do plural:
Alguns agricultores semearam linho nos Campos Gerais, com bons resulta-
dos, disseram-me mesmo que puderam ser feitas três colheitas por ano.
Havia nos arredores da Fazenda de Jaguariaiba um homem da comarca de
São João d‘El Rei que cultivava o linho e tecia com ele panos com os quais
vestia as pessoas de sua casa. Teria sido fácil aos agricultores das redon-
dezas observar quais os métodos empregados por ele, mas ninguém se in-
teressou em aprender. A cultura do linho poderia, entretanto, ser de grande
utilidade para os habitantes dos Campos Gerais. Com efeito, ninguém igno-
ra como eram apreciados os nossos tecidos, tão frescos e agradáveis, nas
regiões quentes da América, antes que nossas guerras com a Inglaterra for-
çassem os colonos a se contentar com os tecidos de algodão; se em sua
própria terra eles voltassem a encontrar o cânhamo e o linho, cuja falta tan-
190
to lamentavam, estou certo de que não hesitariam em voltar a comprá-lo .

Ao ressaltar as qualidades estéticas e produtivas da paisagem — qualidades


na medida em que se assemelham às paisagens europeias —, os três viajantes in-
sistem no mau uso ou no ―abandono‖ das terras; exaltam a necessidade de um ma-
nejo racional dos recursos disponíveis e, consequentemente, destacam a necessi-
dade de projetos imigratórios. Ou como assevera o próprio Taunay: ―há ferramenta e
utensílios de mais, instrumentos e máquinas de sobra: Escasseiam os operários. De
gente é que carecemos‖191.
É recorrente a ideia de que existe paisagem uma lacuna a ser preenchida,
uma necessidade de aprimoramento, seja das técnicas, sejas dos elementos, seja
dos usos; para tanto, os três viajantes insistem na necessidade de uma onda civiliza-
tória: a imigração de trabalhadores europeus.
Nos três textos, reitera-se a ideia (hoje arraigada no senso comum) de que
os habitantes locais fazem mal-uso dos recursos disponíveis, desconhecem as suas
potencialidades, ou ainda são descritos como inaptos para explorar corretamente os
recursos da paisagem; pois, apesar das semelhanças que os Campos Gerais pos-
suem com as paisagens europeias, estes não podem aprimorá-la em moldes euro-
peus. Os nativos estariam tão integrados à paisagem, que seria muitas vezes im-
possível para o viajante imaginar a possibilidade de que eles a alterassem: enquanto

189
SAINT-HILAIRE, Viagem pela comarca…, op. cit., p. 22.
190
Ibidem, p. 31.
191
TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 98.
69

parte da paisagem (a noção de paisano) seria necessário que seus modos de vida
fossem radicalmente transformados. Ainda que bela e cheia de potenciais, a paisa-
gem dos Campos Gerais é erma ou desértica: isso significa pouco marcada pelos
traços da civilização.
Outra convicção científica, essa emergente a partir do final do século XVIII,
que influenciou bastante a apreciação do espaço foi o nascimento da geologia. Para
Corbain ―geólogos e geógrafos impuseram, pouco a pouco, uma leitura do espaço,
socialmente restrita, e ordenada pela morfologia‖ 192. Essa apreciação não prezava
apenas um valor estético, mas, como dito anteriormente, permitia uma leitura bas-
tante utilitarista em busca de recursos minerais.
A partir da emergência da geologia como conhecimento explicativo para a
formação da terra e, consequentemente, a expansão cronológica decorrente disso
instruiu os viajantes a se aterem ao relevo e a buscar descrevê-lo em termos menos
estéticos. No seu relato Saint-Hilaire dedica pouca atenção às rochas e pedras;
atem-se ele a esse elemento, principalmente, quando descreve a possível existência
de diamantes ou outras pedras preciosas. Diz o viajante francês sobre uma forma-
ção próxima à cidade de Tibagi:

O terreno descia bruscamente de uma altura considerável, e tínhamos que


andar sobre rochas escorregadias e quase a pique. Eu receava que as mu-
las se despencassem lá de cima com a sua carga, mas felizmente não ocor-
reu nenhum acidente. Essa encosta temo nome de Serra das Furnas, e no
entanto não existe ali uma montanha propriamente dita e sim, como acabei
de ver, um desnível brusco no terreno. O nome de Furnas foi, sem dúvida,
dado ao lugar por causa de uma gruta muito profunda que se vê no meio
das rochas, onde os viajantes muitas vezes passam a noite, mas que não
me parecem ter nada de notável. Lamento não ter tido a ideia de verificar se
ela não continha ossadas fósseis193.

Thomas Bigg-Wither faz uma extensa digressão sobre a formação do se-


gundo planalto paranaense, extensa em tamanho do texto e de temporalidade anali-
sada:

Havíamos chegado agora ao limite ocidental do planalto [plateau] de Curiti-


ba. Erguia-se, então, à pouca distância, o elevado penhasco da ―Serrinha‖,
transformando, assim, a segunda palavra em nome próprio.
A elevação média desta segunda serra, que formava o confim oriental de
outro planalto ainda mais elevado, era de 800 a 1.000 pés acima daquela
em que nos encontrávamos então. Sua distância, em linha reta, partindo da

192
Em francês no original, tradução minha: ―Géologues et géographes ont, peu à peu, imposé une
lecture de l'espace, certes socialement cantonnée, ordonnée par la morphologie‖. CORBIN, op. cit., p.
69.
193
SAINT-HILAIRE, Viagem pela comarca…, op. cit., p. 69.
70

Serra do Mar, era de cerca de quarenta milhas. Nossa estrada seguia zi-
guezagueando por largo desfiladeiro, cheia de pinheiros gigantes e de uma
vegetação de bambu e outras árvores menores. Com exceção deste lugar,
a Serrinha apresentava um flanco quase vertical em direção do oriente, com
um horizonte grosseiramente definido, embora recortado. Dava ideia de gi-
gantesco penhasco, que formara outrora o limite com o oceano, não obstan-
te tivesse, agora, uma elevação de 3.000 a 4.000 pés acima do nível do
mar. O fato é que quem está habituado a fazer comparações entre coisas
grandes e pequenas via a semelhança, em suas características físicas ge-
rais, da vasta região em que viajávamos com a costa sudoeste da Ilha de
Wight. Era um fato que não podia deixar de chamar a atenção de quem co-
nhecesse esta última. Estavam ali os dois penhascos, um sobre o outro, di-
ferindo apenas em proporções — testemunha silenciosa do passado e do
presente. O mesmo planalto sobreposto, separando os dois, diferia, apenas,
em extensão. Por último, as mesmas gargantas profundas ou ravinas estrei-
tas, mais marcantes, nos dois exemplos, no penhasco inferior do que no
superior. Certamente essa semelhança geral não é coincidência casual da
natureza, mas deve ser o resultado de causas naturais e análogas. Saber-
se em que época remota do mundo abandonou o mar este planalto mais al-
to, só cuidadoso estudo geológico da região poderia dizer. Deixo a discus-
são desta parte para aqueles que têm mais autoridade de assim o fazer.
Posso, no entanto, adiantar um fato importante que auxiliará na solução do
problema.
Dois anos mais tarde, estava viajando pela Serrinha quando me perdi den-
tro de intenso nevoeiro, que sobreveio logo depois do pôr-do-sol. Quando a
cerração se desfez, descobri que me achava à beira de um precipício, des-
viado cerca de três milhas do caminho que levava à planície aonde deseja-
va ir. A fim de admirar a soberba vista [grand view], que o planalto embaixo
oferecia, continuei a cavalgar na beirada do barranco e observei que o pe-
nhasco tinha uma capa toda de granito. Uso a palavra capa, porque não pa-
recia ser granito toda a fachada do penhasco, mas apenas o cume ou co-
roa. Até aonde a coroa de granito se estendia para oeste, não sei respondei
Contudo, outras observações me levaram a deduzir que esta era apenas
uma das extensas séries de erupções de granito que se estendiam pelo
Vale do Tibagi, do lado sul e oeste. De qualquer forma, era agora evidente
que a formação peculiar da própria Serrinha, senão a própria existência do
planalto que ficava por detrás, tem sido devido à influência protetora desta
couraça de granito194.

O Visconde de Taunay também expõe seu conhecimento geológico em um


fragmento semelhante ao de Bigg-Wither, e exatamente no mesmo trecho, mas suas
constatações são completamente diferentes às do viajante inglês:

Na Serrinha e ao finalizar-se a estrada de Mato Grosso que a transpõe tive


ocasião de observar um facto geológico que, segundo suponho, não foi ain-
da assinalado em livros ou memórias, embora atraia necessariamente as
vistas até do mais desatento e inilustrado viajante.
É à direita de quem sobe uma grande e grandiosa concavidade de forma
quase rigorosamente circular e revestida no fundo da bacia e até certa altu-
ra, nas bordas, de ampla vegetação e riscada, em sua parte superior, um
tanto desnudada, por linhas de bem pronunciado paralelismo, como que li-
nhas geométricas deixadas pelo afloramento de águas paradas, que a pou-
co e pouco e com largos intervalos foram baixando de nível.
Vem logo à ideia a possibilidade de ser aquilo uma cratera de vulcão extin-
to; mas os sinais paralelos das camadas de terminação se não inclinam o
espírito a ver ali só os efeitos da ação das águas, pelo menos fazem crer,

194
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 92.
71

que esse elemento poderosamente concorreu para a formação e regulariza-


ção do fenômeno no seu todo.
Aliás, por perto e mais adiante se notam aglomerações de rochas com pito-
rescas configurações mais ou menos regulares, com seus cortes e disposi-
ções lembrando espécies de castelos, torres e outras construções familiares
à reminiscência senão à imaginação do povo.
Serão simples rochas metamórficas? Será aquela bela solução de continui-
dade do campo resultado de antiga erupção ou mera curvatura de terrenos,
como é o celebre e tão citado Circo de Gavarnie, nos Pireneus?
Não tenho autoridade para decidir; causa-me, porém, espécie a existência
de bastantes calcários nas adjacências, onde abundam igualmente a cha-
mada pedra de fogo (dioritos e anfibolitos) e muitos sílex195

Nos fragmentos de Bigg-Wither e Taunay acima citados duas coisas cha-


mam à atenção. A primeira delas é a necessidade de justificativa dos dois autores:
―Deixo a discussão desta parte para aqueles que têm mais autoridade de assim o
fazer.‖; ―Não tenho autoridade para decidir‖. Ora, por que a insistência em negar a si
mesmo a competência de tal análise, e mesmo assim fazê-la? Parece que a emer-
gente ideia de ―curiosidades naturais‖ era tão forte que quase exigia dos autores que
as contemplassem e as mencionassem, ainda que tais hipóteses exigissem análises
sistemáticas que eles não poderia fazer no momento: a experiência não poderia ser
perdida196. Outro ponto que chama à atenção são as referências utilizadas para
comparativo: a ilha de Wright na Inglaterra e o Circo de Gavarnie na França; esses
locais além de demonstrar a erudição dos autores, demarcam seu lugar social, os
destinatários de seus relatos e imaginário que guiava suas escritas.
É evidente a influência exercida por Alexander von Humboldt sobre a apreci-
ação do espaço e, principalmente, na produção de relatos de viagens: o geógrafo-
naturalista não apenas concebeu um modelo de escrita, mas, sobretudo, construiu

195
TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 93-94.
196
Sobre a noção de ―curiosidades naturais‖, Corbain comenta que ―no fim do século XVIII, período
do nascimento da geologia, eruditos, movidos por um vivo desejo de saber, examinam as costas lito-
râneas, consideram as colunas de basalto, analisam as falésias reveladoras (a seus olhos) da história
geológica. A atração das ‗curiosidades naturais‘ dessas regiões foi reforçada pela onda da poesia
ossiânicas e sua exaltação das tempestades.‖ Em francês no original, tradução minha: ―À la fin du
XVIIIe siècle, période de la naissance de la géologie, des savants, animés d'un vif désir de savoir,
arpentent les rivages, considèrent les orgues basaltiques, scrutent les falaises révélatrices, à leurs
yeux, de l'histoire géologique. […] L‘attrait des « curiosités naturelles » de ces régions se trouvait
renforcé par la vogue de la poésie ossianique et son exaltation des tempêtes.‖ CORBAIN, op. cit., p.
68-19. O Visconde de Taunay possui um texto chamado ―Curiosidades Naturais do Paraná‖, em que
descreve (a partir do que lhe narrou seu amigo e colega político parnanguara Manuel Eufrázio Correia
e pelos textos publicados pelo jornalista e professor Nivaldo Braga no jornal Gazeta Paranaense, em
1889) as formações geológicas mais ―notáveis‖, como a Vila Velha, as Furnas e as grutas, hoje gran-
des atrativos turísticos. Cf. TAUNAY, Alfredo de Escragnolle, Visconde de. Curiosidades Naturais do
Paraná. In: ______. Paisagens brasileiras. Brasília: Senado Federal, 2007. Em Saint-Hilaire esse
interesse está expresso em seu resumo lido na Academia de Ciência de Paris. Cf. SAINT-HILAIRE,
Auguste. Viagem à província de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil, Cisplatina e Missões do
Paraguay. Tradução de Rubens Borba de Morais. São Paulo: Martins Fontes/Edusp, 1972.
72

arquétipos de apreciação da paisagem. Como insiste Corbain: ―Não se pode dizer o


suficiente sobre a influência exercida por Humboldt sobre o imaginário do espaço‖;
suas obras ―contribuíram a ancorar o desejo da descoberta do planeta. Ampliaram o
alcance das paisagens sonhadas. Revelaram a diversidade do mundo‖197. Os dois
viajantes europeus se remetem à obra de Humboldt. Diz Bigg-Wither em seu relato
sobre uma curiosidade: ―penso que Humboldt se referiu a homens que comem la-
ma‖198; e Saint-Hilaire em sobre uma questão científica: ―os Campos Gerais devem
ser considerados, no Brasil, a região das Escalonáceas. Ora, o sr. Humboldt situa
essa região vegetal entre 1.440 e 2.460 pés [aproximadamente entre 440 e 750 me-
tros] acima do nível do mar, nas terras vizinhas do Equador‖ 199. Essas referências
não são gratuitas, elas reforçam a autoridade científica dos viajantes dentro de um
contexto expansão dessa forma de conhecimento. Neste sentido, e ainda mais im-
portante para esse trabalho, a influência de Humboldt foi sensível na mudança da
tópica dos relatos de viagens, que até o século XVIII guardavam muito do gosto pe-
las maravilhas. Apenas para exemplificar duas figuras — ou clichês estilísticos, ou
ainda temas estereotipados — recorrentes nos relatos dos séculos XVI, XVII, e
XVIII, apontadas por Sérgio Buarque de Holanda 200 e Réal Ouellet, ―o Paraíso‖ e o
―bom selvagem‖: o famoso ―bom selvagem‖ ganhou contornos dramaticamente dife-
rentes, tornando-se apenas o ―selvagem‖ e recebendo os seguintes adjetivos por
Saint-Hilaire: ―devastadores‖, ―ladrões‖, ―assassinos‖ e, finalmente, ―inimigos‖201; em
Bigg-Wither os termos são, por sua vez, muito mais pejorativos e marcados pelas
teorias raciais, grosseiramente eurocêntricos: ―seres infelizes‖, ―imbecis‖, ―de apa-
rência repulsiva‖, ―degenerados aborígenes sul-americanos‖202. Já o famoso mito
genésico do Paraíso, o Éden, perdeu sua força imaginativa: para Taunay é apenas
uma referência de Saint-Hilaire; em Saint-Hilaire é a imagem de disponibilidade, bas-
tante semelhante às paisagens europeias que dá o teor de paraíso, como visto ante-
riormente; em Bigg-Wither o uso do termo perde referências como a primavera eter-

197
Em francês no original, tradução minha: ―On ne dira jamais assez l‘influence exercée par Humboldt
sur l‘imaginaire de l‘espace. […] [Ses œuvres] ont fortement contribué à ancrer le désir de découverte
de la planète. Ils ont élargi la gamme des paysages rêvés. Ils ont révélé la diversité du monde.‖
CORBAIN, op. cit., p. 76.
198
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 247.
199
SAINT-HILAIRE, Viagem pela Comarca…, op. cit., p. 74.
200
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e coloni-
zação do Brasil. São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000.
201
SAINT-HILAIRE, Viagem pela Comarca…, op. cit., pgs. 31, 42, 43, 45.
202
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 328-329.
73

na, a temperança do ar, a árvore da sabedoria, lugar livre de fadigas e enfermida-


des, etc.203, para tornar-se, estranhamente, ―um lugar misterioso‖, ―cheio de aconte-
cimentos‖, ―grande cenário de montanhas e florestas, feroz e belo‖ 204.
O meio continuava praticamente o mesmo, mas as representações muda-
ram.

203
Cf. KRAUSS, Henrich. O Paraíso: de Adão e Eva às utopias contemporâneas. Tradução de Mário
Eduardo Viaro. São Paulo: Globo, 2006.
204
BIGG-WITHER, Novo caminho…, op. cit., p. 116.
74

Capítulo 3 — FIGURAS

O Paraíso era perfeito e, portanto, sem futuro.


(Milôr Fernandes, A verdadeira história do paraíso)

Devemos concordar com Anne Cauquelin que afirma que a paisagem é ―um
conjunto de valores ordenados em uma visão‖ 205. Textualmente, não apenas pelo
pacto de leitura206 que os autores firmam com os destinatários — sobretudo, porque
se propõem a descreverem da forma mais fiel possível uma realidade —, os relatos
de viagem apresentam elementos biofísicos, referentes concretos e, por isso, tentam
não fabular sobre esses termos. Ainda assim essa ―visão‖ só é possível a partir de
um ponto de vista, físico, social e narrativo. Portanto, a construção de uma paisagem
em um relato só é possível nesse cruzamento entre os objetos e o sujeito que ob-
serva.
O ato de narrar nos parece tão natural, tão comum, que por isso mesmo es-
conde toda contingência entre ―nossa experiência do mundo e nossos esforços para
descrever linguisticamente essa experiência‖ 207. Sob a superfície aparentemente
clara da narrativa, sob o transcurso muitas vezes tranquilo de uma história que nos é
contada, está contida toda uma rede de interesses, disputas e projetos, como já
descritos.
Ora, como observou de modo perspicaz Raymond Williams, a partir do final
século XVIII ―a natureza cada vez mais estava ‗lá fora‘, e era natural remodelá-la
para uma necessidade dominante, sem a obrigação de ponderar muito profunda-
mente o que essa remodelação poderia trazer para os homens‖, uma vez que ―a
ação sobre a natureza produzia riqueza, e objeções às suas outras consequências
poderiam ser descartadas como sentimentais‖208.
Os discursos construídos sobre a natureza do atual estado do Paraná são
complexos, disformes e dispersos temporalmente. Os relatos aqui estudados discor-
rem sobre a prodigalidade da natureza paranaense enquanto recursos naturais. O
205
CAUQUELIN, op. cit., p. 16.
206
Vicent Jouve diz que ―é propondo a seu leitor um certo número de convenções que o texto pro-
grama sua recepção. É o famoso ‗pacto de leitura‘. Num nível muito geral, a obra define seu modo de
leitura pela sua inscrição num gênero e seu lugar na instituição literária. O gênero remete para con-
venções tácitas que orientam a expectativa do público‖. JOUVE, Vincent. A leitura. Tradução de Bri-
gitte Hervot. São Paulo: Unesp, 2002, p. 67.
207
WHITE, Hayden. El valor de la narrativa en la representación de la realidad. In:______. El conteni-
do de la forma: narrativa, discurso y representación histórica. Barcelona/Buenos Aires: Ediciones
Paidós Ibérica, S.A, 1992, p. 17.
208
WILLIAMS, Ideias… op. cit., p. 107.
75

inventário estabelecido nesses textos dá conta de uma série de especificidades téc-


nicas e localiza espacialmente as principais reservas de recursos no estado (5ª co-
marca de São Paulo ou província do Paraná dependendo da época). Também são
responsáveis pela construção de uma série de imagens que hoje permeiam o senso
comum: a abundância, a facilidade da exploração, a dissociação humana da nature-
za, entre tantas outras. Essas imagens nos parecem inatuais, desencarnadas em
sua maioria, e os sujeitos que as transfiguraram (para retomar o conceito de Desco-
la) em sua grande maioria eram homens brancos europeus que buscavam mapear
recursos para um novo projeto imperialista, que seria corporificado principalmente
pela França e Inglaterra.
Os relatos de viagem do século XIX percorrem frequentemente um discurso
bastante fechado, um lugar comum dos projetos imperialista que no início do século
começava a tomar forma e expandir suas operações pelos quatro cantos do globo, e
que seria posteriormente apropriado pelas elites dos países recém-independentes
na América Latina.
Algumas imagens são repetidas ad nauseam, frequentam uma tópica209,
afirmam estereótipos: o nativo indolente, a barbárie e a violência, o racialismo —
que, em geral, irrompe simplesmente para o racismo —, a selvageria dos indígenas,
a exuberância da natureza, a incompetência administrativa das elites locais, a busca
por áreas onde se posam estabelecer colônias de imigrantes europeus (uma espécie
de pedagogia exemplar pelo trabalho disciplinado), entre tantas outras. Essas ima-

209
Para a definição de tópica ver VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Tradução de Antonio
José da Silva Moreira. Lisboa: Edições 70, 1987, pp. 239-261; BARTHES, O neutro…, op. cit., pp. 21-
24.
Carlos Manuel explica que: ―Em 1948, com a publicação da sua obra Literatura Europea y Edad Me-
dia Latina, Ernst Robert Curtius fundou a topologia literária, imprimindo-lhe uma orientação histórico-
filológica que iria marcar os estudos posteriores dos topoi literários. O ponto de partida é a observa-
ção de constantes semânticas (extensionais e intensionais) e da sua presença e difusão nos textos
ao longo da história da literatura. O topos começa a surgir com a detecção de um conjunto de ele-
mentos comuns dotados de unidade estrutural, que se organizam de acordo com determinados prin-
cípios, e que se vão fixando em certos textos, géneros e épocas literárias. Curtius baseia-se na se-
lecção, redução e esquematização dos elementos dos topoi, que cataloga em inventário. Concebe-
os, pois, como formas ideais, convencionais e recorrentes. Este método implica, assim, uma leitura
global, simultânea e de tipo sincrónico da literatura, à semelhança da que praticou o estruturalismo,
[…], no entanto, observa-se nos estudos topológicos uma grande diversidade de terminologias, méto-
dos e objectos de análise: uns autores insistem nas formas, outros nos conteúdos, uns concentram-
se nas constantes e outros nas variações, incidindo ora na fixação semântica, ora na polissemia, na
generalidade arquetípica ou na cópia de modelos prévios, no seu valor simbólico ou nas convenções
linguísticas e sociais de uma época histórica. Tal diversidade vem mostrar que a tópica literária não
existe a se, dependendo em grande parte do objecto formal e do método analítico adoptados‖.
CUNHA, Carlos Manuel F. da. Da impossível atopia… Braga: Centro de Estudos Humanísticos, 1994,
p. 1-2.
76

gens são dispersas ao longo da narrativa em um jogo de causa e efeito proposto


pelo relato em sua tríplice demarcação discursiva, ou seja: narração, descrição e
comentário210.
Ao leitor de um relato de viagem, subjugado pelo efeito estético, pela fluên-
cia da leitura, nenhuma tópica fica clara, justamente por a tópica se tratar de uma
leitura que visa a construção de problemas. Para que se possa prosseguir a análise
dos relatos, propõe-se elencar em figuras (dispostas posteriormente de maneira ale-
atória ao longo do capítulo) elementos que estão dispersos no correr dos textos: o
relato de viagem não é um relatório exaustivo, cientificista, uma descrição atida a
determinados elementos, mas sim uma narração que se pretende prazerosa, instru-
tiva e de rápida progressão. Isolar esses elementos biofísicos ou características que
compunham (compõem) a paisagem dos Campos Gerais, e questões específicas da
percepção e apreciação dos viajantes, é o que se propõe a seguir: perseguir, a partir
de uma tópica, reunidas em figuras, com idas e vindas aparentemente disparatadas
e distantes no texto, o aparecimento dessas informações nos relatos.
Tal procedimento, ao ser aplicado, demanda outra organização textual. Essa
apresentação do texto é mais anárquica, mais livre dos moldes científicos. As cita-
ções usadas não compõem elementos de autoridade, são expressões de uma ideia
— como esclarece a etimologia da palavra citar, trata-se de chamar —; assim, as
referências são colocadas no canto esquerdo do texto, com o nome do autor e a pá-
gina de que foram tiradas, visando dessa forma maior fluência do texto principal à
direita. Para que não haja confusão, as citações extraídas dos relatos estão em itáli-
co e qualquer referência teórica está em nota de rodapé. As referências bibliográfi-
cas exatas dos relatos utilizados são as seguintes:

BIGG-WITHER, Thomas Plantagenet. Novo caminho no Brasil meridional: a provín-


cia do Paraná, três anos de vida em suas florestas e campos — 1872/1875. Tradu-
ção de Temístocles Linhares. Rio de Janeiro: José Olympio; Curitiba: Ufpr, 1974.

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem pela comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação


Cultural, 1995. (Farol do Saber).

TAUNAY, Visconde de. Viagem Philosophica aos Campos Geraes e ao sertão de


Guarapuava. In: ______. Visões do Sertão. São Paulo: Cia. Melhoramentos de São
Paulo, 1923.

210
Cf OUELLET, op. cit.
77

3.1 — ENTRADA

Os Campos Gerais são muitas vezes representados como semelhantes a um jardim,


um imenso jardim ―natural‖ 211. A forma como eles são vistos pela primeira vez pelos
viajantes, e o caminho por eles percorrido, diz muito sobre como essa paisagem é
percebida; essas entradas são apresentadas nos relatos em número de três: uma
delas, a leste, àqueles vindos de Curitiba, subindo a serrinha; outra ao norte, àque-
les vindo o Rio de Janeiro, passando pela província de São Paulo; e, por fim, àque-
les que vem do Oeste, seja de Guarapuava (os tropeiros) ou da colônia de Tereza
Cristina. Thomas P. Bigg-Wither e Visconde de Taunay vieram pela primeira; Saint-
Hilaire conheceu os Campos Gerais pela segunda; Bigg-Wither, ainda, depois de
passar quase um ano realizando os trabalhos sediados na colônia de Tereza Cristi-
na, retornou aos Campos Gerais pelo Oeste. Sem dúvida existiam muitos outros
caminhos, muitas outras entradas, mas os registros usados indicam apenas essas
três. Os textos evidenciam as duas principais entradas utilizadas pelos ―civilizados‖,
vindos do Leste ou do Norte, da capital do Império, o Rio de Janeiro, ou da capital
da província, Curitiba; os tropeiros entravam nos Campos Gerais vindos do Sul ou
do Oeste, chegados dos Pampas ou de Guarapuava e Palmas, cruzando territórios
indígenas e os ditos sertões.

Após saírem de Curitiba em 11 de Agosto de 1872, e galgarem a


Bigg-Wither, Serrinha com ―as mulas cansadas, esgotadas da dura caminhada da
pp. 93-95.
subida do desfiladeiro‖; narra Bigg-Wither que os tropeiros, empre-
gados e companheiros ―deitaram-se na relva verde, como um reba-
nho de carneiros num dia de verão na Inglaterra [at home], o focinho

211
Michel Conan define o jardim como um ―espaço organizado, que permite uma escolha de vegetais,
cuja disposição, a cultura e o tratamento obedecem a intenções de refinamento. Este último podendo
concernir ao tratamento dos limites do jardim, dos cuidados e técnicas de horticultura, dos usos aos
quais está destinado e a escolha de plantas que aí se encontram.‖ Em francês no original, tradução
minha: ―Jardin: espace aménagé comportant un choix de végétaux dont la disposition, la culture et
l'entretien obéissent à des intentions de raffinement. Ce dernier peut concerner le traitement de la
limite du jardin, les soins et techniques horticoles, les usages auxquels il est destiné et le choix des
plantes qui s'y trouvent.‖ Apud DONADIEU, Pierre. Des sciences écologiques à l'art du paysage ou
l'invention du sauvage dans les marais paysagistes. Courrier de l'environnement de l'INRA n°35, nov.,
Paris, 1998, p. 16. Disponível em: http://www7.inra.fr/dpenv/sommrc35.htm. Acesso em 27/09/2015. A
definição de Alain Roger é a de ―um espaço fechado, separado, interior, cultivado pelo homem para
seu próprio prazer, longe de todo propósito utilitário imediato‖. Em francês no original, tradução mi-
nha: ―un espace fermé, séparé, intérieur, cultivé par l‘homme pour son propre plaisir, loin de tout pro-
pos utilitaire immédiat‖. ROGER, op. cit., p. 31.
78

inclinado para o solo, ofegantes e com a carga ainda no lombo‖; um


quadro que segundo o viajante inglês ―refletia perfeito estado de
sossego e satisfação‖. Decorrido algum tempo, Curling (um dos
companheiros ingleses de Bigg-Wither) o chamou: — „Venha cá,
meu velho‟ — disse ele em seu português de aprendiz, quando me
viu subindo a elevação, com a espingarda e as aves abatidas, „tenho
aqui uma coisa para você ver‟.
Quando cheguei ao alto, meus músculos se relaxaram, minhas per-
nas cederam e deixe-me cair no chão.
Sem nenhum receio de que me chamem de exagerado, tentarei
descrever alguma coisa do que vi, quando me retemperei e pude
olhar em torno. Estávamos repousando, segundo me parecia, num
dos mais altos pontos do grande penhasco, que, pela manhã, haví-
amos avistado da planície, de uma distância de mil pês [aproxima-
damente 305 metros] abaixo, quando nem de longe imagináramos
que dali teríamos tão esplendoroso panorama. Para o lado sul e su-
doeste, estendia-se o vasto mar de relva dourada que se perdia de
vista, ondulando em vagas gigantescas até o profundo vale do Igua-
çu, bem distante e muito abaixo; depois, elevando-se novamente do
outro lado, continuava seu movimento ondulatório, diminuindo grada-
tivamente as vagas, até o céu e a terra se confundirem e se perde-
rem na distância, no que parecia ser o infinito. Não havia detalhes
que chamassem a atenção, a vista parecendo perder-se na imensi-
dão do panorama. Surgiam apenas algumas árvores raquíticas, ven-
do-se aqui e ali pinheiros, a refletirem a ramagem verde escura nas
profundezas dos cursos d‟água que cruzavam as campinas. Era só.
Além disso, a grande planície, quase sem limite em extensão, não
apresentava um só marco onde os olhos pudessem repousar. [...]
Nem na Inglaterra, nem talvez em toda a Europa seria possível en-
contrar qualquer coisa que se aproximasse disto. O que mais me
impressionou foi a sua vastidão — a sua imensidão nos dava a ideia
do ilimitado. A gente se sentia diminuída fisicamente quando olhava
para aquela grandeza, enquanto os nossos sentidos se expandiam
indefinidamente. Foi, pelo menos, essa a sensação que experimen-
79

tei, embora tão pobremente descrita, ao entrarmos nos Campos Ge-


rais [great Prairie].‖
A primeira impressão de Bigg-Wither é bastante estetizada, o viajan-
te inglês insiste tanto na vastidão quanto na sua incapacidade en-
quanto escritor para descrever, uma clara astúcia narrativa que visa
reforçar uma imagem ingênua, nada imperial do viajante-narrador.
Para além da estética é possível perceber que o engenheiro inglês
não se atém a qualquer traço humano na paisagem, reforçando uma
imagem de vazio e incivilizado no quadro que apresenta.
Em um segundo momento, no dia 3 de outubro de 1873, após mais
de um ano de trabalhos nas florestas do Oeste, Bigg-Wither retorna
Bigg-Wither, aos Campos: ―passei pela última faixa de floresta que marcava a
p. 350.
fronteira da Grande Planície [great Praie].
Oh, Deus! como me saltava dentro do peito o coração ao ver os
grandes campos ondulantes, estendendo-se até o horizonte infindo,
para chegar às vizinhanças do céu. […]
Fiquei surpreso quando pensei no tempo que pude suportar vivendo
na floresta tropical que, comparada ao campo, eu via agora como
uma espécie de inferno terrestre‖.
Nessa segunda descrição, Bigg-Wither faz aparecer no seu vocabu-
lário um termo essencial para a o conceito de paisagem: horizonte.
Pois, se a definição de paisagem insiste que ela é vista por alguém
de algum lugar, a existência de um horizonte é fundamental para
que exista uma paisagem. A experiência de viver em uma espécie
de inferno terrestre, e passar depois para seu oposto, só pode ser
expressa pela privação do horizonte, a privação mesmo do sujei-
to212.
Taunay, por sua vez, é bem menos dramático em sua descrição. O
Visconde expressa sua mirada científica ao descrever a Serrinha: é
Taunay, ela “o degrau do segundo planalto do Paraná, constituído de três
p. 92-93.
platôs perfeitamente distintos, que o deixam dividido em quatro

212
Michel Collot afirma que o horizonte é ―a fronteira que me permite apropriar-me da paisagem, que
a define como meu território, como espaço ao alcance do olhar e a disposição do corpo‖, pois a pai-
sagem ―se revela em uma experiência em que sujeito e objeto são inseparáveis.‖ COLLOT, op. cit., p.
206.
80

grandes zonas: a do litoral […]; a zona denominada chapada ou


Campos de Curitiba […]; a dos Campos Gerais, […] e, finalmente, a
quarta chamada Campos de Guarapuava‖.
Taunay menciona a estrada de Mato Grosso, que termina ao chegar
à Serrinha. Essa via era no período a principal ligação entre Curitiba
Taunay, e os Campos Gerais, e o Visconde comenta que desde que ―tomara
pgs. 72, 94.
conta da administração, a 28 de Setembro de 1885, me empenhara
energicamente em fazer cessar as muitas queixas e reclamações
que encontrei a pedir imediatas providencias a bem das comunica-
ções mais importantes e essenciais à vida provincial!‖, bastando-lhe
para isso ―alguma força de vontade, três ou quatro inspeções de vi-
su, a renovação do pessoal dirigente das obras públicas e a regula-
rização de vários serviços indispensáveis que encontrei, senão com-
pletamente desorganizados, pelo menos muito mal encaminhados‖.
Taunay revela sua expressão de administrador, como visto em capí-
tulos anteriores, ao mencionar os dioritos e sílex213 que afirma cons-
tituir a geologia da Serrinha, visto seus usos em calçamentos de ru-
as e estradas e na construção civil, como a mencionada estrada do
Mato Grosso.
Saint-Hilaire, Saint-Hilaire descreve que: ―na margem esquerda do [rio] Itararé
pgs. 12, 37,
38. começam os Campos Gerais, região bem diferente das terras que a
precedem do lado nordeste, e ele termina a pouca distância do Re-
gistro de Curitiba, onde o solo se torna desigual e às verdejantes
pastagens se sucedem sombrias e imponentes matas‖.
Na continuação de seu relato, o naturalista afirma que ―do outro lado
desse rio as terras mudam inteiramente de aspecto: a região se tor-
na montanhosa e não se veem pastos muito extensos; aparecem
pedreiras nas encostas dos morros, a sombria e estática Araucária
surge por todos os lados, ora isolada, ora agrupada com outras árvo-
res; o capim, menos espesso, é de um verde mais carregado, e o
solo, quase todo escuro e arenoso, contribui para dar uma tonalida-

213
Cf Supra, p. 71.
81

de sombria à paisagem. Apesar das previsões do meu guia, choveu


durante quase toda a jornada e eu recolhi muito poucas plantas‖.
No final de seu texto, com um marcado teor racialista, Saint-Hilaire
Saint-Hilaire, conclui que uma vez do lado esquerdo do rio Itararé ―começa um
p. 181.
mundo novo para os que vêm do norte da província de São Paulo.
Os campos tem outro aspecto, os produtos não são os mesmos, e
há nas raças uma diferença notável: os habitantes do norte de São
Paulo são, em sua maioria, descendentes de portugueses e índios,
ao passo que a maior parte dos curitibanos pertence à raça euro-
peia‖.
Impossibilitado pela chuva (quase diária durante sua estadia) de rea-
lizar sua atividade principal, a coleta e preparação de plantas, Saint-
Hilaire entrou nos Campos Gerais, por assim dizer, mais disposto a
observações estéticas e de costumes.
Sua impressão ao entrar nos Campos Gerais é muito menos impac-
tante que a de Bigg-Wither, por exemplo. O viajante francês se ateve
mais em seu texto à tentativa de demarcar os limites da paisagem
que a descrever a primeira impressão, insistindo na delicadeza e na
singularidade contrastante do lugar.
82

3.2 — ÁGUA

Em uma sentença simples, mas não simplória, a água é a base de toda forma de
vida existente na Terra, um dos recursos materiais que Camporesi afirma ser parte
essencial do prefixo, do país. Nos relatos de viagem esse item recebe diversos signi-
ficados e funções: enquanto elemento estético, para Saint-Hilaire e Taunay, é ela
que dá aos Campos Gerais um frescor característico; Bigg-Wither se detém à possí-
vel utilização enquanto força motriz para mover indústrias; e, por último, e mais im-
portante, recurso para manutenção da vida humana, de outros animais e plantas.

Saint-Hilaire, Em seu relato, Saint-Hilaire descreve que ―numerosos rios e riachos


pgs. 15, 16,
27. ajudam a embelezá-la [a paisagem], além de proporcionarem frescu-
ra e fertilidade”; prosseguindo afirma que as “águas, embora inferio-
res às da parte oriental de Minas Gerais, são mesmo assim bastante
boas; não existem brejos em nenhum lugar, praticamente, e os rios
correm celeremente, […], por leitos de rochas.
Do dia 26 de janeiro a 4 de março de 1820 não houve, talvez, dois
dias seguidos sem chuva, e de fato essa é a época em que as chu-
vas são mais abundantes; porém não se conhecem ali as prolonga-
das secas de seis meses que em Minas e em Goiás afetam de forma
tão penosa o sistema nervoso.‖
A inexistência de um período de secas, como é o caso, conforme
esse viajante, de outras províncias setentrionais do Império, faz dos
Campos Gerais um espaço bastante salubre, e propício ―a todo tipo
de cultura, e seus produtos principais são o miIho, o trigo, o arroz, o
feijão, o fumo e o algodão‖.
As fontes de água na paisagem são tratadas pelo viajante francês de
maneira desatenta. Ao estetizar mais do que fazer um inventário sis-
temático das potencialidades aquíferas dos Campos Gerais, Saint-
Hilaire reforça uma imagem positiva e marcadamente prodigiosa dos
seus recursos.
Bigg-Wither, por sua vez, afirma, ao ver a serraria de Antônio Re-
bouças que era movida a vapor e não a energia hidráulica, que a di-
ficuldade e despesas consequentes da colocação eram enormes
83

Bigg-Wither, não lhe saindo ―da cabeça a ideia de que a força hidráulica poderia
pgs. 75, 138,
140, 108. ter sido aproveitada com a mesma eficiência e por muito menos‖.
Essa também é sua opinião ao ver um Monjolo, ―uma das mais curi-
osas e primitivas máquinas que se tenha podido inventar para subs-
tituir o trabalho manual, movida pela força hidráulica‖, que tinha por
simples função triturar milho para o fabrico de farinha. Diz o enge-
nheiro inglês que ―o elemento de absurdidade reside no enorme
desperdício de energia requerido para a consecução de uma quanti-
dade tão microscópica de trabalho‖.
Quanto às reservas de água para consumo humano e de outros
animais seu texto é bastante genérico, menciona apenas as ―fontes
e os cursos d‟água‖, ―deliciosa água fresca‖, rios e riachos.
Já o Visconde de Taunay é extremamente detalhista quando se
Taunay, atém a descrever ―a qualidade da linfa indispensável à vida” e a lo-
pp.149-152.
calização de seus reservatórios 214. Diz ele em relação à salubridade
os Campos Gerais que “é ela geralmente reconhecida incontestá-
vel‖, pois ―os pântanos são raros, quase não existentes e no geral os
rios e ribeirões correm por sobre grandes lajeados. Entretanto as
águas se não são de todo ruins, deixam bastante a desejar. Pode-se
afirmar que, com raras exceções, em todo o Paraná não há água
que satisfaça bem o paladar senão nas serras. Assim disso se des-
vanece Paranaguá em comparação com a de Curitiba e ainda mais
Antonina, ou então Ponta Grossa e mais que todas Castro‖.
O inventário de Taunay é bastante detalhista quanto à qualidade da
água nas principais cidades da província e sua potabilidade e gosto.
Seu texto é sistemático e, em certas partes, evidencia sua atuação
enquanto administrador e a marca da viagem e da experiência para
sua administração. Comenta o ex-presidente da província que:

214
José Augusto Pádua nos lembra sobre o caso exemplar do reflorestamento da Tijuca e o empenho
dos intelectuais reformistas naquela ―que provavelmente constituiu a realização mais impressionante
e bem-sucedida‖ desse grupo. Tratava-se da ―questão muito concreta de garantir o abastecimento de
água para a capital‖ que ―representou um fator fundamental na decisão de reflorestar aquela área‖.
PÁDUA, Um sopro…, op. cit., p. 220. O Visconde de Taunay menciona em seu relato o empenho de
seu tio, o Barão D‘Escragnolle (Gastão d'Escragnolle), no embelezamento do parque. Isso nos mostra
que Taunay conhecia, e estava profundamente imerso, nos debates sobre o abastecimento de água
na capital do Império e sobre o reflorestamento da Tijuca. Tamanho conhecimento de causa se revela
na atenção dedicada ao assunto em sua Viagem filosófica. Cf TAUNAY, Visões…, op. cit., p. 95.
84

Taunay, ―Pode-se afirmar que, com raras exceções, em todo o Paraná não
pp.149-152.
há agua que satisfaça bem o paladar senão nas serras. Assim men-
cionarei com particular encômio a que se bebe na Estrada de Ferro,
de Paranaguá a Curitiba, depois do Pico do Diabo na Serra do Ma-
rumby: a de uma cascatinha na Serrinha, entre o Itaqui, uma légua
além de Campo Largo, e o alto, antes de São Luiz, as da Serra da
Esperança, no sertão de Guarapuava. Estas, então, abundantíssi-
mas e deliciosas.
Esta questão de boa água torna-se motivo de rivalidade entre as po-
voações paranaenses. É das primeiras e mais apreciadas causas de
elogio gabar-se a qualidade da água. Em Ponta Grossa teimam os
habitantes que o abastecimento que lhe dão as suas nascentes é
muito superior a das melhores fontes da cidade de Castro, o que é
aliás contestável.
O que não há duas opiniões, é que a água de Curitiba é de qualida-
de muito inferior a de qualquer outro povoado, em certas ocasiões
bastante ruim, e às vezes quase intragável. Situada a capital no
meio de um vale largo e longo, e todo cercado de colinas, é o terre-
no em que assenta muito encharcado e fofo, o que dá a cada mora-
dor a facilidade de abrir uma cacimba em seu quintal e, portanto, ter
meio cômodo de se abastecer mais ou menos abundantemente de
água. Como, porém, ali mesmo se escavam fossos e buracos para
toda a sorte de despejos, acontece que pelas infiltrações naturais e
facílimas em chão tão poroso e empapado, os poços que servem pa-
ra o uso comum, vão se impregnando de matérias animais em de-
composição, que não só tornam a água pesada ao estômago, e de
gosto desagradável, como também concorrem para produzir graves
enfermidades de caráter típico que já tem aparecido naquela cidade
com feição epidêmica um tanto séria. Os médicos de contínuo cla-
mam por providências urgentes e por mais tempo não pode Curitiba,
com o desenvolvimento de população que vai tendo, procrastinar
essa grande questão do abastecimento d'água potável, que o rio
Bareguy a uma légua de distancia pode fornecer-lhe por enquanto
copiosamente.
85

Paranaguá ufana-se de ter muito boa água. Não é com efeito de to-
do má, entretanto um tanto pesada e inferior à de Antonina na costa
e mais para dentro, à de Morretes e Porto de Cima. As da serra da
Graciosa e Marumby são puríssimas, leves, deliciosas. No planalto
de Curitiba, a da Capital é, como já fizemos ver, pouco apreciável e
deve sempre ser filtrada. A de São José dos Pinhais não é desagra-
dável, mas em Campo Largo, pode ser considerada boa; melhor
ainda a de Castro. Os rios, ribeirões e nascentes dos Campos Ge-
rais não oferecem boa água senão por exceção. Enfim, no geral e
até em Guarapuava, o abastecimento é feito por meio de poços e
cacimbas‖.
Os três viajantes insistem que nos Campos Gerais existem poucos
pântanos ou brejos (marais, para o texto original de Saint-Hilaire e
swamps, para o de Bigg-Wither)215, apenas Taunay ressalva que
São Luís do Purunã, primeiro vilarejo que se avista para quem entra
nos Campos Gerais vindo de Curitiba, ―é lugar de pântanos, saindo
de um deles, atravessado por ponte em estado regular de conserva-
ção, um riacho que mais longe é o rio Assunguy, confluente do Ri-
beira. Entretanto a altitude geral e os ventos quase constantes im-
pedem o desenvolvimento de moléstias endêmicas e febres intermi-
tentes. A agua não é boa e tem gosto bem pronunciado de lodo‖.
Ora, a menção, tanto por Saint-Hilaire quanto por Taunay, na parca
quantidade de pântanos e brejos reflete uma preocupação recorren-
te do período (como já visto) que concebia esse tipo de formação
ambiental enquanto um lugar de proliferação de febres e sezões,
como. A salubridade dos Campos Gerais, aliada a imagem de dis-
ponibilidade e prodigalidade de recursos, e ainda da beleza da pai-
sagem, reforça o discurso favorável à imigração europeia para o lo-
cal.

215
Sobre a história dos pântanos Cf. DONADIEU, op. cit.; CORBAIN, op. cit., p. 66-67.
86

3.3 — PINHEIRO

Araucaria angustifolia: árvore de porte majestoso que, com o tempo, toma a forma
de taça; é também conhecida como Pinheiro-do-paraná. Essa árvore é retratada nos
relatos de viagem como uma figura arquetípica dos Campos Gerais, e suas cores
lhes dão uma feição particular. Simultaneamente à exaltação de sua beleza, em to-
dos os relatos insiste-se em seu valor comercial e na exploração de sua madeira e
os viajantes europeus mencionam a qualidade de seu fruto: o pinhão.

Dos três viajantes, Bigg-Wither foi o único que retratou o pinheiro.


Imagem 5: ―Pinheiro brasileiro (Araucaria brasiliensis) — Acampa-
mento do grupo I, à margem da floresta de pinheiros‖:

Bigg-Wither,
pgs. 137, 73-
74.

Sua descrição dessas árvores no primeiro planalto dá conta de que


―muitos deles tinham dimensões gigantescas, medindo de 20 a 22
87

pés [6 a 6,7 metros] de circunferência na base e, fazendo um cálculo


por alto, de 120 a 140 pés [36 a 42 metros] de altura, subindo reto e
sem ramificações até alguns pés próximos do seu ápice, onde se es-
tendia uma copa abundante, de galhos e folhas, com cerca de 35 a
40 pés de diâmetro. Visto á distância, oferecia efeito muito curioso,
dando a impressão de uma floresta de cogumelos. Eram senhores
do solo na região, sendo considerados superiores aos do Báltico‖.
No segundo planalto, Campos Gerais, Bigg-Wither menciona apenas
Bigg-Wither, ―capões‖ e ―bosques‖ de ―pinheiros frondosos‖, e a ilustração da dis-
pgs. 103, 105,
108, 405, 415. puta de mulas bravas pelo sal apresenta pinheiros de grande pro-
porção ao fundo. (Imagem 6: ―Briga de mulas bravas, na fazenda
fortaleza, em disputa pelo sal‖).

O engenheiro inglês menciona ainda o pinhão, fruto do pinheiro: ―o


pinhão, fruta oblonga, de cerca de uma polegada e meia de compri-
mento [4 centímetros], com um diâmetro de meia a três quartos de
polegada [1,2 centímetros] na parte mais grossa, tem uma casca co-
riácea, como a da castanha espanhola. O paladar é, entretanto su-
perior ao desta última e, como produto alimentício, basta dizer que
os índios muitas vezes só se alimentam dele, durante muitas sema-
nas. […] O estado mais delicioso do pinhão é quando ele começa a
germinar, fazendo aparecer um pequenino grelo verde numa extre-
midade. Nada excede à guloseima desse fruto em tal estado. […] Se
eles pudessem ser importados frescos para a Inglaterra, fariam sem
88

dúvida a fortuna dos senhores que, em certa época do ano, gritam


sugestivamente em cada esquina, de rua: „Tudo quente, tudo quen-
te‟‖.
A primeira ilustração de Bigg-Wither insiste na prodigalidade das ma-
tas de pinheiro no Paraná, dando a entender que a linha do horizon-
te se confunde com a floresta. Em sua ilustração, a mesma mata pa-
rece ser composta apenas de pinheiros, todos em igual estágio de
desenvolvimento ao que está em primeiro plano. Também estão res-
saltadas as dimensões da árvore pelo comparativo com as barracas
armadas no acampamento e a figura de um homem em pé. A se-
gunda imagem, referente especificamente aos Campos Gerais, não
insiste na quantidade da árvore, mas busca ressaltar sua dimensão,
de maneira desproporcional até. As árvores distantes parecem ter
um tamanho irreal e um desenvolvimento completo. Por último, a
descrição do pinhão, e o interesse em exportá-los para Inglaterra faz
entender que os recursos são mal explorados, mesmo diante da real
possibilidade de obtenção de lucros.
Saint-Hilaire também inventaria o pinhão, diz que ―as sementes, que
Saint-Hilare, são compridas, medindo aproximadamente metade de um dedo, não
p. 14-15.
são na verdade farinhentas como a castanha, mas lembram o sabor
deste fruto, sendo porém mais delicadas do que ele; desde tempos
imemoriais, essas sementes vem contribuindo para a subsistência
dos indígenas, que as chamam de ibá, ou fruto — o fruto por exce-
lência. Mal os europeus desembarcaram no litoral do Brasil, apren-
deram a conhecer a árvore que produz esse fruto, que constituía a
maior parte da alimentação dos antigos paulistas em suas bárbaras
e aventurosas expedições contra o Paraguai. Ainda hoje os habitan-
tes dos Campos Gerais comem as sementes da Araucaria brasilien-
sis e as empregam com sucesso para engordar suínos. Sabedores
da enorme utilidade dessa árvore, eles a respeitam e não a abatem
a não ser em caso de necessidade, o que constitui talvez um caso
único em todo o Brasil, que menciono aqui com prazer‖.
O naturalista francês descreve com detalhe a árvore que lhe causou
grande impressão:
89

Saint-Hilare, ―essa árvore muda de porte em suas diferentes fases e que, quando
pgs. 12-13,
40. nova, seus ramos parecem partidos e lhe dão uma aparência bizar-
ra; que mais tarde ela se arredonda, à semelhança de nossas maci-
eiras; e que, mais tarde, ela se projeta, perfeitamente ereta, a uma
grande altura e termina por um corimbo de galhos, uma espécie de
platô imenso perfeitamente regular, de um tom verde-escuro; acres-
centei, finalmente, que suas sementes — comestíveis — e as esca-
mas que formam seus enormes cones se soltam quando maduras e
se espalham pelo solo. É a Araucaria brasiliensis que, por sua altura,
pela majestosa elegância de suas formas, por sua imobilidade e pelo
verde-escuro de suas folhas contribui, particularmente, para dar uma
fisionomia característica aos Campos Gerais.
Em alguns trechos essa pitoresca árvore, elevando-se isolada no
meio das pastagens, deixa-se admirar em toda a beleza do seu talhe
e faz ressaltar, pelos matizes sombrios de suas folhas, o verde tenro
da relva que cresce a sua sombra.
Em outros lugares ela forma densos bosques; mas, enquanto os
nossos pinheiros mal permitem que algumas plantas raquíticas cres-
çam em seu meio, nascem sob a conífera brasileira numerosas er-
vas e subarbustos, cuja folhagem variada e delicada ramagem con-
trastam com a rigidez de suas formas.
A Araucária não apenas enfeita os Campos Gerais, como é também
extremamente útil aos seus habitantes; sua madeira branca, cortada
por uns poucos veios cor de vinho, é empregada em carpintaria e
marcenaria e, embora seja mais dura, mais compacta e mais pesada
do que o pinho da Rússia ou da Noruega, ela poderá ser utilizada
vantajosamente no fabrico de mastros e vergas quando for estabele-
cido um meio de comunicação mais fácil entre os Campos Gerais e
o litoral‖.
Auguste de Saint-Hilaire é bastante esteta ao descrever o pinheiro,
insistindo em sua forma ―estática e imponente‖, em sua coloração
―verde-escura‖ e na majestade de seu porte. Ao tratar de um possí-
vel uso para marcenaria menciona apenas a possibilidade do esta-
90

belecimento de uma rota de comércio com a Europa, mas não insis-


te na vastidão ou nas grandes ―reservas‖ então existentes.
O Visconde de Taunay, por sua vez, retrata o pinheiro em termos es-
tritamente administrativos, enquanto recursos para a produção de ri-
quezas. Comenta ele que:
Taunay, pgs. ―Não ha dúvida que o pinheiro constitui uma das maiores e mais fa-
117, 118, 123,
98. cilmente exploráveis riquezas de que o Paraná pode tirar opulentís-
sima renda. O depósito natural da utilíssima madeira é quase ines-
gotável, senão nas regiões mais próximas por enquanto dos merca-
dos existentes e servidos já por estrada de ferro, pelo menos em to-
dos os pontos a que possa chegar a atividade humana, que um dia a
irá buscar junto ás margens do Paraná‖.
E, ao retomar a menção breve de Saint-Hilaire de que a madeira do
pinheiro seria ―mais compacta e mais pesada do que o pinho da
Rússia ou da Noruega‖, o ex-presidente da província afirma que ―a
comparação feita entre a araucária do Paraná e os diversos pinhos
do comércio, o de Riga, o sueco vermelho e o branco, estabelece in-
contestável superioridade daquela nossa madeira sobre todas as ou-
tras de procedência estrangeira.
Assim, ao passo que o pinho do Paraná suporta, até o ponto de rup-
tura, 5.655 quilos com uma flecha de 18,2 milímetros, o branco sue-
co não vai além de 3,282 quilos de carga, dando uma flecha de 26,3
milímetros.
A resistência permanente por milímetro é no nosso pinho de 2 k.10,
em quanto no de Riga não excede de 1,9, descendo nos outros, da
Suécia, vermelho e branco a 1,6 e 1,5.
A araucária do Paraná distingue-se, pois, das outras qualidades de
pinho pelo seu maior peso específico, muito maior resistência à rup-
tura e mais elasticidade, além da superioridade em beleza, pois, com
as diversas colorações que tem — preta, encarnada e branca, sendo
as duas últimas mais comuns, presta-se de modo admirável para
múltiplas obras de carpintaria e marcenaria‖.
O Visconde diz ainda que ―como tipo de vegetação, o pinheiro é no
Paraná uma verdadeira planta de ornamentação gigantesca. Quem
91

viaja pelos Campos Gerais, não pode por vezes reprimir um movi-
mento de admiração, ao contemplar aquelas verdejantes vastidões
que se desenrolam, […], vastidões em que os pinheiros, já em gru-
pos, já isolados, já no encontro das quebradas, já no ponto culmi-
nante dos outeiros, já solitários, já casando a sua folhagem áspera e
glauca com a coloração multicor de outros vegetais, dão cunho par-
ticular e imprimem feição toda sua àqueles campos iluminados pelo
sol‖.
É curioso que no texto Taunay a única menção ao fruto do pinheiro,
Taunay, o pinhão, é de que Augusto de Saint-Hilaire ―extasia-se ante a bele-
p. 148, 115.
za das Araucárias, […], de ramúsculos espinhosos, entre os quais
crescem os volumosos frutos, as apetecidas pinhas, que alastram,
quando caem, ou juntas ou soltas, o chão dos saborosos pinhões”.
Para o Visconde essa árvore possui apenas valor utilitário ou ―orna-
mental‖, desconsiderando completamente a possibilidade de um uso
menos predatório da árvore: sua utilidade consiste apenas na extra-
ção da madeira. Enquanto que para os viajantes europeus o fruto
ganha algum destaque em seus textos, seja enquanto alimento ou
para produção de ração animal, o viajante brasileiro faz uma parca
menção do pinhão. Quando se pensa que atualmente a árvore que
Taunay dizia cobrir ―todo o Paraná, com exclusão da estreita orla
marítima e do contraforte da serra do Mar que olha para o Oceano‖
corre sério risco de extinção, restando apenas 0,5% de sua área de
cobertura anterior à chegada dos europeus ao continente americano.
As ressaltadas opiniões de um ―depósito natural quase inesgotável‖
e do ―quase total despovoamento‖ foram decisivas para refiguração
dos Campos Gerais e o quase total desaparecimento da Araucária.
92

3.4 — ROCHAS

As rochas, montanhas ou pedras adquirem nos relatos de viagem um forte sentido


utilitário. São elas possíveis indicadores de riquezas minerais, principalmente dia-
mantes. Em outro sentido, a reiterada presença de rochas à flor do solo marca a
pouca fertilidade do solo dos Campos Gerais, a sua inutilidade para uma cultura
agrícola rentável de grande escala.

Em sua descrição generalizante, Saint-Hilaire relata que ―de vez em


Saint-Hilaire, quando apontam rochas à flor da terra nas encostas dos morros, de
pp. 12-15.
onde se despeja uma cortina de água que se precipita nos vales‖ e
que ―vários desses rios, entre eles o Tibagi e o Caxambu, têm dia-
mantes, que vão rolando pelo leito e caem dentro dos caldeirões,
onde os contrabandistas vão procurá-los. Essa valiosa pedra é en-
contrada também nas margens dos rios e riachos, constituindo uma
das riquezas dos Campos Gerais‖.
Em seu texto, o viajante francês reitera o sentido de um inventário
estetizado, pouco específico no caso das riquezas minerais; exalta a
prodigalidade, mas se abstém, enquanto naturalista, de comentários
mais especializados.
Por sua vez, o engenheiro Thomas Bigg-Wither, após recolher in-
Bigg-Wither, formações locais que ―são unânimes em afirmar — não foram pou-
p. 395.
cas as pedras grandes e valiosas lavadas‖, descreve com precisão
as potencialidades diamantíferas da cidade Tibagi:
―1) Os diamantes são encontrados em certos extratos estreitos e ho-
rizontais, e separados por outros extratos ou camadas de composi-
ção ligeiramente diferente;
2) Que esses extrato de aluvião determinam o lugar onde foi, em di-
as remotos o leito de um rio, que recebeu depois, juntamente com
toda a região circunvizinha, vastos aluviões de idades subsequentes.
Esses aluviões formam os morros da vizinhança imediata, que se le-
vantaram mais uma vez, sofrendo uma „desnudação‟, por meio da
qual a fisionomia da região, como então existia — as montanhas, os
vales, os morros e as ravinas — ficou esculpida;
93

3) Que esse processo de entalhação tenha atravessado o leito do


antigo rio já mencionado no ponto em que estava situada a mina em
questão, e que, com toda probabilidade, em outra mina semelhante,
até então não descoberta, correspondendo a outra seção exposta do
leito do antigo rio, existia muito perto e que, com uma pesquisa inte-
ligente, podia ser descoberta sem muita dificuldade. Isso tudo é o
que se relaciona com o depósito diamantífero‖.
Assim, como referido anteriormente, a descrição detalhada do po-
tencial diamantífero rendeu ao engenheiro inglês a condição de só-
cio da Real Sociedade de Geografia de Londres. Isso demonstra o
interesse de forças coloniais europeias, especialmente inglesas, na
busca por recursos naturais em terras fora da Inglaterra e de seu
domínio colonial em expansão no período. As frequentes menções
aos maus usos, a falta de recursos locais, ou a falta de iniciativa e
responsabilidade dos habitantes, reforçam a necessidade de intervir
diretamente. O que na narrativa representa uma falta — ―uma pes-
quisa inteligente‖ — evoca a essa aparente necessidade de inter-
venção para que não se percam tais recursos.
O Visconde de Taunay, por sua vez, construiu uma narrativa aparen-
temente mais singela, de teor literário para inventariar a possibilida-
de da existência de recursos minerais:
Taunay, ―No encontro de grandes outeiros mais chatos do que altos, quase
p. 131.
despidos de vegetação, com exceção de uma grama cheia de flores
em certo tempo do ano, mas no geral uniforme e rala, corre o rio,
como dissemos, rápido e límpido, formando caldeirões sucessivos
em que as águas redemoinham antes de se despejarem em outras
concavidades, as menores então admiráveis em sua regularidade. E
desse movimento particular em círculo resulta o arredondamento
das inúmeras pedras, algumas muito interessantes, que pejam o lei-
to. As há de todo tamanho, pequeninas, quase microscópicas, de to-
das as cores, parecendo a sua presença confirmar o que vulgarmen-
te se diz, que o rio carrega muito ouro, muitos diamantes. Virá daí o
seu valor imaginativo? E não é que ingenuamente o olhar do viajante
procura divisar no fundo das cristalinas e naturais bateias ou palhe-
94

tas denunciadoras, o brilho repentino e fascinador de alguma gema


de muitos quilates? São tão puros aqueles caixões no contínuo volu-
tear a buscar saída para continuarem de queda em queda a correr
por sobre a areia alva e fina!‖
Ao escrever que ―ingenuamente o olhar do viajante procura‖, o Vis-
conde insiste em uma imagem benevolente do cientista-viajante;
inocente, ele parece professar um saber benévolo, o qual em sua
prática não teria qualquer impacto local. Diz Taunay ainda que para
Taunay, dar ideia muito exata do que sejam os Campos Gerais do Paraná,
p. 135.
que lhe seja ―lícito reproduzir uma apreciação em extremo pitoresca,
concisa e justíssima do Imperador:
„É um tapete verde sobre uma grande mesa de pedra‟, disse-me D.
Pedro II.
Estas palavras exprimem o fato com a maior clareza e incisão e es-
tabelecem a verdadeira relação de espessura entre a camada que
poderia dar lugar à vegetação e à cultura e aquela que a tudo isso
se opõe, contraria‖.
O imperador visitara a província em 1880, e essa impressão foi dada
pessoalmente à Taunay. A admiração que o Visconde nutria por D.
Pedro II fica clara quando, de uma consideração bastante simples,
embora sábia, Taunay é capaz de aborda-la em termos técnico-
científicos.
95

3.5 — CORES/CONTRASTES

―Os campos são mais verdes no dizer-se do que no


seu verdor.‖
(Fernando Pessoa. Livro do Desassossego por Ber-
nardo Soares).

Tanto Saint-Hilaire quanto Taunay mencionam a fragilidade de suas vistas. A visão é


um dos sentidos mais cultivados entre as elites 216, e a frequente menção a ela nos
relatos reforça uma distância entre o viajante e o nativo. As cores e os adjetivos utili-
zados para definir a paisagem reforçam duas ideias principais: a brandura e delica-
deza da paisagem; ou certa aridez, irritação decorrente da repetição, insistindo na
ideia de vazio, desocupação, dando o sentido de que se trata de um espaço quase
ideal para a ocupação europeia. Sobretudo para os viajantes europeus, as menções
às cores da paisagem buscam criar uma correspondência, enfatizando a existência
de referentes concretos muito próximos as suas culturas de origem.

Saint-Hilaire, sobre a possível instalação de uma colônia de imigran-


Saint-Hilaire, tes suíços nos Campos Gerais, comenta que ―eles [os colonos suí-
pgs. 33, 15,
16, 25, 87. ços estabelecidos em Cantagalo no Rio de Janeiro] teriam descrito o
Brasil para os seus compatriotas com as mais belas cores‖. Contra-
riamente, em seu relato, o viajante francês é bastante sucinto em
descrever as cores que comporiam a paisagem, ressaltando, sobre-
tudo, a cor verde.Em sua descrição geral, na abertura do relato, o
naturalista escreve sobre o ―verde claro e viçoso do capinzal‖, o
―verde escuro‖/―verde sombrio‖ das folhas da Araucária que contras-
ta com ―verde tenro da relva‖; esse ―verde das pastagens dos Cam-
pos Gerais é tão fresco quanto o de nossas campinas, mas de um
modo geral não se apresentam tão floridos como os nossos. Em al-
guns lugares, entretanto, principalmente entre Pitangui e Carrapatos,
vi uma quantidade considerável de Flores, […], ao passo que o ama-
relo e o branco são as cores predominantes em nossos prados, é o
azul celeste, […], que colore as pastagens que acabo de mencio-
nar‖. Saint-Hilaire também se refere à aparição de ―rochedos ne-
gros/pedreira negra‖, que fazem com que a paisagem perca o ―ar de
216
Cf CARDOSO, op. cit.; e a noção de autópsia (ver com os próprios olhos) em HARTOG, op. cit.
96

alegria‖. Suas descrições se concentram mais em contrastar/opor (a


partir de adjetivos) mata e campo: os bosques são lugares de som-
bra e escuridão, representando um perigo oculto, ou seja, a presen-
ça de ―selvagens‖; os campos, por sua vez, são claros e risonhos,
ainda que intocados e quase desérticos. No seu relato, o viajante
francês é bastante dualista, insiste no contraste claro/escuro e a ele
atribui uma interpretação: a ocupação humana e a paisagem. O ín-
dio ―selvagem‖ se esconde, vive na mata, como se tivesse medo da
luz e da claridade por estar sempre preparando emboscadas; o ―civi-
lizado‖ por sua vez busca a claridade e teme a escuridão. Encontra-
mos no texto a ideia de horizonte: visão e domínio, ainda que os
brasileiros não estejam suficientemente ―dispostos‖ a realizar essa
tarefa.
Thomas Bigg-Wither, em sua escrita, é um pouco menos econômico
que Saint-Hilaire ao tentar descrever as cores que compõe a paisa-
gem. Do campo não cultivado, em especial, ele busca definir sua
Bigg-Wither, ―perpétua cor‖: ―o castanho sem vida do prado‖; ―a vastidão do cam-
pgs. 105, 121,
134, 408, 94, po dourado estendendo-se para o sul e para oeste‖; ―o campo ama-
105, 350, 352.
relo pontilhado de capões verde-escuros‖. Nos meses em que este-
ve nos Campos Gerais (julho, agosto, setembro e outubro), o viajan-
te inglês descreve a vegetação dos campos como ―aparentemente
seca‖, contrastando com os bosques de pinheiros ―a refletirem a ra-
magem verde-escura nas profundezas‖; nesses bosques ―o capim
era verde e fresco como se fora regado diariamente por bondosa fa-
da, ao passo que, fora deste círculo mágico, tudo estava seco e tor-
rado pelas brisas quentes e o pelo sol abrasador‖.
Em outra descrição, essa de forte teor literário, Bigg-Wither insiste
na beleza e na vastidão da paisagem, toda com um colorido leve,
bastante contrastante com as matas que o autor descreve, em seção
anterior, como um ―inferno terrestre‖: ―A neblina branca começava a
levantar, desde os desvãos onde estivera em repouso. Ainda não se
havia levantado, porém, a ponto de impedir a vista das grandes ex-
tensões de planície ondulante […]. Quando o sol subiu um pouco
mais, saindo de trás de uma elevação, à guisa de nuvens bem bran-
97

cas, agora, deixava seu posto de repouso nas cavidades; cobrindo


por algum tempo a face toda da região, como um campo resplande-
cente e então, levantando-se mais alto, se desfazia lenta e gradual-
mente no éter azul‖. Essa descrição do engenheiro inglês reforça
ainda mais a ideia de uma paisagem salubre e vasta, que se adequa
a modelos perceptivos estabelecidos 217.
O contraste entre mata e campo, claro e escuro, também é ressalta-
Saint-Hilaire, do por Bigg-Wither. Ao deixar a mesma fazenda que Saint-Hilaire
p. 60.
descrevera como ―incrustada nas terras ocupadas pelos selva-
Bigg-Wither, gens”218, o engenheiro narra a seguinte situação vivida na ―solidão
p. 412-413.
tenebrosa da floresta‖: ―depois de deixar Fortaleza, quando eu viaja-
va a certa distância adiante da tropa, na esperança de poder atirar
em algum porco, […], assustei-me com a aparição de seis índios
quase nus, três homens e três mulheres, que saíram, de repente da
floresta para a picada. Meu cavalo, manhoso, virou bruscamente pa-
ra a direita, ao avistar aqueles seres selvagens‖219. Esse temor pelas
matas, ou capões, que os dois viajantes sentem cria um forte con-
traste em suas narrativas e ressaltam o medo do que está fora do
alcance da visão, a falta de horizonte lhes causa profundo temor220.
Os contrastes que tanto atemorizam os viajantes europeus também
estão presentes na narrativa de Taunay.
Taunay, Ao descrever as ―verdejantes vastidões‖ que compõe os Campos
pgs. 118, 134,
146. Gerais, ―aquele desdobrar de campos de um verde alegre‖, o Vis-
conde narra que há ―por toda a parte lindas quebradas, inúmeros
217
Podemos retomar a afirmação de Corbin de que ―o código da beleza clássica implica um espaço
limitado, estritamente circunscrito, submisso ao homem: o alegre campo‖. Em francês no original,
tradução minha: ―Le code de la beauté classique implique un espace limité, strictement bordé, soumis
à l'homme : c'est la campagne riante‖. CORBIN, op. cit., p. 86.
218
Ver seção Limites.
219
Há nesse trecho do relato uma diferença importante entre o texto em inglês e a tradução. Na
versão em língua inglesa a passagem é a seguinte: ―My horse, which was a nervous animal, swerved
right round in its tracks with fright at the wild appearance of these beings‖. Em uma tradução literal
para o português o texto seria: ―Meu cavalo, que era um animal nervoso, desviou bruscamente da
trilha para a direita com o susto pela aparência selvagem desses seres‖. O termo ―seres selvagens‖
que o tradutor utiliza deixa margem para um forte teor etnocêntrico que o viajante inglês não utiliza,
ao menos não nesse trecho do seu relato.
220
Yi-Fu Tuan afirma que ―o medo do escuro é mundial. […]. A escuridão produz uma sensação de
isolamento e de desorientação. Com a falta de detalhes visuais nítidos e a habilidade de movimentar-
se diminuída, a mente está livre para fazer aparecer por mágica imagens, inclusive de assaltantes e
monstros, com o mais leve indício perceptível‖. TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia
de Oliveira. São Paulo: Unesp, p. 25.
98

capões de mato a salpicarem de pontos sombrios a imensa, intermi-


nável alfombra verde do prado, cortada, aqui, ali, além, ou por graci-

Taunay,
osas combinações, ou, então, solenes e severos agrupamentos de
pgs. 134, 119, grandes rochas a nu, sem falar nos pinheiros isolados ou juntos em
126, 125.
meio do campo‖.
Os contrastes que se produzem pela variada claridade são para
Taunay motivo de interesse, pois como escreve: ―há paisagens tão
grandiosas, […], que nem mesmo o pincel as pode fielmente repro-
duzir‖. Essa paixão que Taunay cultiva pelas paisagens brasileiras é
exemplificada em seu relato sobre os Campos Gerais em um trecho
bastante estético:
―Quando no céu correm nuvens ou destacadas ou em maciços um
tanto bojudos, é de ver-se a contraposição das manchas de sombra
aos trechos de luz que salpicam o verde de relva do terreno e mais
realce ainda lhe imprimem.
Então não raro é contemplar-se uma verdadeira graciosidade de óti-
ca: a coma sombria do pinheiro cercada como que de resplendente
auréola, ao passo que o tronco liso e perpendicular fica mergulhado
nas sombras. E fantasmagoricamente se apagam aqueles contras-
tes e se transmudam, passando de súbito para o claro aquilo que há
poucos instantes estava no escuro e submergindo-se em tristes tin-
tas largos trechos esclarecidos minutos antes, por vivíssima luz‖.
As descrições que o viajante brasileiro faz do campo são ricas na
tentativa de passar as cores que a compõe: ―nos meses de Outubro,
Novembro e Dezembro aqueles campos ficam todos floridos, arre-
bentando dos muitos vegetais humildes que os revestem flores cujas
cores, às vezes bastante vivas, causam ao viajante a mais agradável
impressão. Assim os hyptis, os neandriuns (espirradeiras), as gom-
phrenas e muitas outras, [sic] especialidades das famílias das com-
positas, em geral de um amarelo que de longe atrai as vistas‖.
Assim como os viajantes europeus, Taunay também dá destaque ao
verde que compõe a paisagem, mas, ao contrário deles, busca
transmitir ao destinatário as ricas variações de verde que compõe a
paisagem: ―em alguns rios e sobretudo em certos trechos do Iguaçu
99

aparecem com grande frequência os salgueiros, e então é muito


[agradável] de ver-se o contraste da folhagem miúda e cor verde cla-
ro quase amarelada a destacar-se dos maciços gerais em que se
casam todas as gradações do verde, desde o verde-paris e verde-
cré até o verde glauco ou fundo de garrafa‖.
As descrições mais atidas desse viajante às cores buscam afirmar
uma ideia de riqueza, sobretudo quando se trata de madeira. Para
Taunay a variedade de cores é considerada uma dupla fortuna, tanto
estética quanto material. A paisagem é tanto fonte de inspiração ar-
tística quanto de riqueza financeira, e a sua variedade em colorido é
uma das provas disso.
100

3.6 — VASTIDÃO

Uma das figuras que se repete nos três relatos é na verdade um encadeamento de
ideias para os dois viajantes europeus; Taunay por sua vez deu um sentido diferente
a essa figura. Nas três narrativas a vasta dimensão espacial dos Campos Gerais é
ressaltada; mas, tanto para Saint-Hilaire, quanto para Bigg-Wither, como conse-
quência da imensidão do espaço percorrido vive-se a monotonia da repetição, mo-
notonia essa decorrente da falta de cultura. Os viajantes europeus insistem conse-
quentemente na ideia de deserto, de falta de cultura e civilização que (de)marquem
a paisagem. Para Taunay, entretanto, a vastidão da paisagem não é assinalada pela
repetição, ainda que o viajante brasileiro também insista na noção de deserto221.

Saint-Hilaire, O naturalista francês descreve a ―vasta extensão‖, as ―imensas as


pgs. 11, 25,
44, 23, 11, 57, pastagens dos Campos Gerais‖; pastagens estas ―pontilhadas de
18-19.
pequenos grupos de Araucaria‖. Para que o seu leitor imagine essas
dimensões comenta Saint-Hilaire que ―as fazendas [dos Campos
Gerais] são muito vastas, gastam-se vários dias para percorrê-las na
sua totalidade‖.
Ao sair da fazenda Caxambu, próximo a Jaguariaíva — contrariando
sua Descrição Geral em que dissera que as terras menos planas dos
Campos Gerais não tinham ―pois a monotonia das nossas planícies
de Beauce‖ —, o viajante narra que ―toda a região, que era ondula-
da, oferecia ainda imensas pastagens, no meio das quais alguns
bosques se elevavam nas baixadas. De tempos em tempos aprovei-
távamos uma vista expandida, mas o aspecto das terras era sempre
o mesmo; nada é mais monótono do que essas regiões desérticas,
são os trabalhos do homem que dão variedade à natureza.‖ Essas
vastidões imprimiam, segundo Saint-Hilaire, um estilo de vida aos
nativos, o que os impedia, consequentemente, de dar variedade à
natureza: ―galopar pelas vastas campinas, atirar o laço, arrebanhar o
gado e levá-lo para um local determinado (fazer o rodeio) constituem
para os jovens atividades que tornam detestável qualquer trabalho

221
Sobre a noção e o imaginário de deserto ver CORBIN, op. cit., pgs. 63-64, 86-88; ROGER, op. cit.,
pp. 106-111.
101

sedentário; e nos momentos em que não estão montados a cavalo,


perseguindo as vacas e touros, eles geralmente descansam.‖
Já próximo à Tibagi, na fazenda Caxambu, depois de um longo tem-
Saint-Hilaire, po nas ―vastas solidões‖ dos campos, Saint-Hilaire relata: ―Andei du-
pgs. 70, 50,
54. rante muito tempo sem ter visto uma única casa, sem ter encontrado
um só viajante, mas eis que, ao cair da tarde, no meio de um deserto
e não muito distante das terras habitadas pelos selvagens, deparei
de repente com pastos cercados de fossos, e tapumes e muros mui-
to bem feitos, brancos e cobertos por telhas. Isso indicava a fazenda
mais agradável e mais bem cuidada que já tive o prazer de encon-
trar, depois da de Ubá. Sua vista causou-me uma surpresa deliciosa.
Eu acabava de percorrer uma região agreste, desabitada, e tinha
agora diante dos olhos uma encantadora morada, cuja entrada me
lembrava a de certas casas de campo nos arredores de Paris.‖ Essa
fazenda pertencia a Xavier da SiIva, que o viajante francês descreve
como não sendo ―um homem muito comum, pois vencendo os inú-
meros obstáculos que lhe haviam imposto a natureza e os seus se-
melhantes, criou no meio de um deserto uma morada que deveria
ser considerada muito aprazíveis mesmo num país civilizado; tinha
sabido formar e dirigir os seus empregados e, desprovido de modelo
não tinha, por assim dizer, mais que a si mesmo e a suas lembran-
ças como inspiração. Desnecessário é dizer que esse fazendeiro era
„português europeu‟. Os habitantes da região que acabei de descre-
ver são indolentes, têm muito pouco gosto, pouca noção de simetria
para fazer algo semelhante.‖
O que chama à atenção no trecho acima é a mencionada falta de
modelos para que se possa dar variedade à natureza e vencer os
obstáculos. Esses modelos, conforme Saint-Hilaire, seriam providos
pela vinda de trabalhadores imigrantes europeus, como os já citados
suecos. Ainda as reiteradas ideias de vastidão e de deserto refor-
çam, mais uma vez, a noção de disponibilidade.
Thomas P. Bigg-Wither ao adentrar aos Campos Gerais se impres-
Bigg-Wither, siona com ―a vastidão do campo dourado, estendendo-se para o sul
p. 134-135.
102

e para o oeste, até se perder de vista‖. O viajante inglês também in-


siste na noção de deserto. Em três trechos seguidos o engenheiro
faz menção a essa ideia. Relata ele que depois de dois dias de via-
Bigg-Wither, gem encontrara uma paragem: ―o local escolhido para nosso acam-
pgs. 105-106,
109-110. pamento nessa tarde era verdadeiro oásis no deserto. Nos meses de
Julho e Agosto, os aspectos da campina são, em detalhe, bonitos,
por causa da vegetação aparentemente seca. Só nos vastos pano-
ramas, como aquele que tínhamos contemplado do alto da Serrinha,
é que a monotonia se transforma em grandeza, mas, no número infi-
nito de paisagens [views] menos extensas com que frequentemente
nos deparávamos, sentíamos que em geral faltava um relevo à iden-
tidade perpétua da cor e do colorido da forma. […] O espaço claro,
dentro da zona do bosque, tinha talvez vinte e cinco acres de exten-
são e, assim, completamente inglesa era a aparência geral deste
pequeno oásis, que a gente esperava ver quase uma velha e gosto-
sa mansão patrícia como um convite para nos receber. Do lado mais
baixo corria um riacho, sob a sombra de muitas árvores temperadas
e subtropicais, arbustos e samambaias. […] Que lugar maravilhoso
para se acampar durante uma caçada!‖. Ao ressaltar as semelhan-
ças que aquele ―oásis‖ tinha com a Inglaterra, Bigg-Wither deixar sua
marca discursiva de vitoriano ao ligar os Campos Gerais a sua terra
natal. Cultura de explorador, espaço conquistado, como aponta Mary
Louise Pratt222. Diante dessa perspectiva desértica, Thomas Bigg-
Wither não deixará de se lamentar pela monotonia e pela falta de
cultura e marcas humanas e civilizadas na paisagem: ―o tempo pas-
sava e a vontade de caçar cedia terreno diante da momentosa ques-
tão de ter de dormir ao relento, sem cobertas, sem fogueira ou comi-
da! Até os pequenos bosques e os arvoredos, cuja abundância e va-
riedade haviam distraído a nossa visão durante a marcha da manhã,
tinham agora desaparecido, para dar lugar à monotonia da campi-
na‖. Sua descrição ganha contornos ainda mais dramáticos quando
após quatro dias de viagem pelos Campos Gerais (11-15/08/1872)

222
PRATT, op. cit., p. 339-340.
103

Bigg-Wither, avista a cidade de Ponta Grossa: ―o aparecimento de uma grande


pgs. 117,
446. cidade no meio dos campos desertos, com quatro dias de marcha
distante dos lugares civilizados, parecera-nos tão curioso e incon-
gruente quanto o aparecimento de uma aldeia florescente no meio
das planícies áridas do deserto do Saara‖. A partir desse encadea-
mento de ideias é possível compreender o elogio tecido a Edenbo-
rough e a sua iniciativa modernizadora, mostrada no capítulo anteri-
or. Aliás, Bigg-Wither aconselha os possíveis emigrantes: ―Emigran-
te! Vá para essa província, se quiser, pois há, sem dúvida, ali uma
bela região à sua espera, mas não se iluda‖.
Uma das principais preocupações de Taunay enquanto administra-
Taunay, dor dizia respeito ao ―quase total despovoamento‖ da província, aos
pgs. 98, 100,
142, 146. ―verdadeiros desertos‖ que encontrou em sua viagem. Mas nos
Campos Gerais, ao contrário dos viajantes europeus, o Visconde
não conheceu a monotonia ou o tédio por eles descrito: ―as paisa-
gens todas são muito interessantes. É sempre o mesmo desenvol-
vimento de campos dobrados, mas sem monotonia, muito embora se
reproduzam sempre os mesmos grupos de vegetação, predominan-
do em todos eles os pinheiros. São tantas, porém, as combinações
que com idênticos elementos a natureza pode fazer e produzir, que
as vistas do viajante vão sempre apreciando perspectivas muito va-
rias.‖ Taunay, enquanto reformista e herdeiro do romantismo, busca-
va a construção de arquétipos paisagísticos que valorizassem as ri-
quezas naturais ao mesmo tempo em que insistia na modernização
e na prodigalidade, sua percepção é tanto estética quando utilitária:
―por toda a parte, lindas quebradas, inúmeros capões de mato a sal-
picarem de pontos sombrios a imensa, interminável alfombra verde
do prado, cortada, aqui, ali, além, ou por graciosas combinações, ou,
então, solenes e severos agrupamentos de grandes rochas a nu,
sem falar nos pinheiros isolados ou juntos em meio do campo. E na-
queles capões quanta riqueza em madeiras, já pinhos colossais,
embuias pretas, amarelas, rajadas e brasinas, paus de murta, cane-
las de muitas qualidades, cipó florão, cedros, perobas brancas e
vermelhas; cabriúvas pardas, além de muita erva mate.‖ Chama à
104

atenção a ideia de que as árvores são uma das riquezas da nação,


disponíveis ao uso e ao empreendedorismo.
105

3.7 — JARDINS, POMARES E HORTAS

A ideia reiterada pelos três viajantes de dar variedade à natureza, de modificar a


paisagem em função de objetivos utilitaristas, se materializa em arranjos de peque-
nas proporções, como jardins, pomares ou hortas. Essa transfiguração in situ, como
propõe Philippe Descola, é sempre digna de nota por parte dos viajantes europeus:
as (consideradas por eles) marcas de ações humanas ditas racionais e regulares
sobre o terreno são vestígios da civilização, atitudes nobres. Para Taunay a ideia de
jardim, além da expressa por Saint-Hilaire e Bigg-Wither, é complementada pela de
beleza natural, reforçando a imagem romântica de uma natureza ímpar, grande for-
tuna da nação.

No início da Descrição Geral dos Campos Gerais, Saint-Hilaire relata


Saint-Hilaire, que ―veem-se poucas casas, mas todas bem cuidadas, com peque-
pgs. 12, 51.
nos pomares de macieiras e pessegueiros‖, dando a entender que o
―cuidado‖ faz parte da cultura de todos os habitantes. A ideia de que
em todas as casas se veem pomares é rapidamente descartada
quando o naturalista francês inicia sua narração. Apenas ao chegar
à Fazenda Caxambu, propriedade de Xavier da Silva, é que o
viajante francês se depara com um jardim, por ele então descrito
com riqueza de detalhes: ―um jardim que tinha mais ou menos 350
pés [105 metros] de comprimento. Esse jardim se estendia pela en-
costa da colina, e a água chegava até ele através de um desses rús-
ticos aquedutos muito em uso entre os mineiros, caindo de uma altu-
ra regular num pequeno canal e refrescando todo terreno. Uma car-
reira de roseiras, muito juntas umas das outras, muito altas e sempre
cobertas de flores, defrontava a casa do dono e as construções pró-
ximas, estendendo-se por todo o comprimento do jardim, e o tom de
suas rosas causava um encantador efeito ao se misturar com o das
laranjeiras e das outras árvores. Por trás da carreira de rosas havia
uma outra, de marmeleiros, abaixo da qual tinha sido plantada uma
fileira de limoeiros e de laranjeiras. Romãzeiras, ameixeiras, pesse-
gueiros e figueiras espalhavam-se aqui e ali, e mais abaixo ainda se
via, em toda a extensão do jardim, uma latada de parreiras, que à
106

época de minha viagem estavam carregadas de uvas brancas e pre-


tas.‖
Saint-Hilaire, O pomar cultivado por aquele ―naturalmente português europeu‖
pgs. 54, 52.
também foi descrito detalhadamente: ―Abaixo do jardim […] havia
uma espécie de pomar muito mais extenso que o jardim, cercado
simplesmente por fossos. Viam-se ali macieiras de várias qualida-
des, ameixeiras, cerejeiras, jabuticabeiras (Myrtus cauliflora, Mart.).
Cada espécie formava uma extensa fileira bem alinhada, e entre du-
as fileiras havia um canteiro de ananases, cortado por uma trilha on-
de se podia passear. Ao lado dessas árvores havia uma plantação
de bananeiras, que recebia muitos cuidados. Não seria possível pro-
teger todas as árvores da danosa ação da geada, mas a plantação
era tão grande que sempre restava, todos os anos, um grande nú-
mero de árvores que haviam permanecido intactas e das quais se
colhiam excelentes frutos. Vi também nesse pomar uma pequena
plantação de cana-de-açúcar do Taiti (Cana-caiana, Saccharum tai-
tense). Tinha-se o cuidado de cobrir as plantas novas para protegê-
las da geada, e em 1819 se obteve açúcar suficiente para o fabrico
de uma quantidade consideráveis de vinho de laranja. Sorocaba
constitui, como já disse, o limite dos cafeeiros; não obstante, existi-
am em Caxambu alguns pés desse arbusto, mas teve-se o cuidado
de plantá-los num lugar bem abrigado e somente se conservaram
graças ao grandes cuidados que lhes dispensavam. Junto da casa
havia também uma horta cercada, mas nela só vi couves, ainda que
em grande quantidade. Tinham sido plantadas com simetria e os
canteiros estavam cuidados‖.
Toda essa atenção detalhada às fileiras, aos cuidados prestados di-
ante das geada, aos sabores e aos efeitos produzidos pelo jardim,
pomar e horta cultivados na fazenda, Saint-Hilaire comenta que
(contrariando, mais uma vez, sua descrição geral): ―É evidente que
eu não faria semelhante observação se eu descrevesse um de nos-
sos jardins da Europa, mas neste país tudo o que demonstra cuida-
do e perseverança deve ser considerado como uma maravilha‖.
107

A sua descrição geral, estetizante, não encontra modelos reais na


narração. Não que o ato de narrar seja mais verdadeiro que o de
descrever; apenas que a seção denominada descritiva do relato de
Saint-Hilaire, Saint-Hilaire preza por um efeito específico: a ideia de ―Paraíso ter-
pgs. 32, 33,
60. restre do Brasil‖, onde se pode plantar as frutas, verduras e legumes
europeus, onde se podem estabelecer colônias de imigrantes daque-
le continente para que sejam importados modelos de cultivo e cultu-
ra.
Esses europeus, como imaginava o viajante, ―teriam intimidado os
indígenas e posto a região a salvo de suas devastações‖; pois como
ele próprio descreve a fazenda Fortaleza — ―a fazenda que se acha-
va mais profundamente incrustada nas terras ocupadas pelos selva-
gens‖ —: as construções da sede ―eram dispostas à volta de um
grande pátio quadrado, e nos fundos da casa do proprietário, onde
não cheguei a entrar, havia um pomar, no qual também não entrei,
mas onde vi de longe muitas laranjeiras simetricamente alinhadas‖.
A atenção de Saint-Hilaire à geometria, a regularidade reforçam a
ideia de disciplina, noção tida por ele como ausente entre os brasilei-
ros.
Bigg-Wither, por sua vez, é mais enfático em suas considerações.
Ainda em Curitiba, antes narrar sua experiência nos Campos Gerais,
Bigg-Wither, conta o engenheiro inglês que: ―Se nos voltarmos para os subúrbios
pgs. 83, 130,
254. da cidade, veremos hortas bem cultivadas, com muitas hortaliças de
uso familiar europeu plantadas nelas. Quando um brasileiro passa
por elas diz: „É uma propriedade alemã!‟ Se perguntarmos como ele
pode saber, responderá logo: „Sei, pela hora‟. Também se você en-
xergar um homem trabalhando com uma pá ou picareta, não será
necessário olhar-lhe o rosto. Pode dirigir-se a ele em alemão‖. Para
além da astúcia narrativa de inserir um diálogo, que imprime no des-
tinatário um efeito de real, uma atitude etnográfica, Bigg-Wither
atém-se aos produtos que compõe a alimentação dos brasileiros, por
ele descritos como uma ―gordurosa mistura de feijão com farinha‖.
Após cruzar os Campos Gerais e chegar a Colônia de Teresa Cristi-
na, o engenheiro afirma que: ―os brasileiros destas regiões remotas
108

que, como os povos semisselvagens, pouco apreciam ou não


apreciam a beleza‖. Já instalado na colônia as suas considerações
Bigg-Wither, tornam-se mais severas: ―A preguiça e a falta de iniciativa pareciam
p. 178.
ser, realmente, o grande mal do povo da colônia, e isso era visível
de todos os lados. Embora o solo fosse muito fértil e o clima propício
ao cultivo de frutas e legumes tropicais e temperados, não tentavam
cultivar coisa alguma, nem mesmo o necessário à subsistência, co-
mo feijão, arroz e milho. Apesar de não terem em que se ocupar du-
rante nove meses do ano, não se via uma horta no lugar e creio que
ninguém nunca pensou em fazer mesmo um jardim, como coisa que
a imaginação mais selvagem nunca sonhou. Eis um fato digno de
ser lembrado: nunca vi pessoa alguma pronunciar na povoação a
palavra „jardim‟. Chego até a pensar que ninguém saberia a sua sig-
nificação se a palavra fosse pronunciada diante de alguém‖. Além da
ruminante consideração de que os brasileiros são preguiçosos, so-
ma-se (ainda que sem qualquer intenção) ao relato de Saint-Hilaire a
noção de que faltam modelos, inclusive ao ressaltar que na colônia
não se saberia o significado da palavra jardim. Bigg-Wither afirma,
mais uma vez, a falta de ideias civilizadas entre os nativos, faltam-
lhes, inclusive, as palavras223.
Nos Campos Gerais, o viajante inglês encontrou três modelos que
considerou dignos de nota: o de seu compatriota Edenborough; o de
um pequeno proprietário chamado Garcez e, por último, do sogro de
Mercer, um colono inglês que Bigg-Wither conhecera em Tibagi. Diz
Bigg-Wither,
pgs. 121. ele sobre os cultivos de Edenborough: ―Ao chegar mais perto da ca-
sa de nosso compatriota, vimos a primeira tentativa de cultivo da
campina, em que os nossos olhos ainda não se tinham comprazido
nesta região. Uma área de cerca de dois acres em frente da casa,
cercada por um fosso, ostentava vegetação verde e brilhante, em re-

223
Alain Roger, ao discutir os jardins gregos e romanos, e o aparecimento de uma sensibilidade pai-
sagística nessas culturas, afirma que a não existência de uma palavra específica que defina o objeto
não significa a ausência de uma sensibilidade; o filosofo chama isso de ―obsessão do léxico‖ [l'obses-
sion du lexique] (p. 56). Philippe Descola também se atém a questão das palavras e das sensibilida-
des; para este antropólogo a fixação às palavras é, no mínimo, uma atitude de má-fé etnocêntrica,
que a descrição de Bigg-Wither parece aclarar. Cf ROGER, op. cit., p. 56; DESCOLA, Les formes…,
op. cit.
109

frescante contraste com o castanho sem vida do prado circunvizinho.


Era uma plantação de centeio ainda nova e o terreno em que estava
feita fora preparado e arado à moda inglesa.
Logo chegamos à casa da fazenda, passando primeiro por um laran-
jal, todo carregado de frutos dourados e maduros. […] Antes de nos
retirarmos, fomos visitar o pomar, para experimentar as laranjas.
Achamos deliciosas as diferentes qualidades e ficamos surpresos
quando soubemos serem elas cultivadas para os porcos.‖ Ainda que
tenha descrito a pobreza do solo dos Campos Gerais, Bigg-Wither
insiste na possibilidade de cultivo nas terras e, mais ainda, sua des-
crição dá a entender que o esforço do colono inglês foi recompensa-
do, a fazenda verde e refrescante contrastava com a campina dou-
rada, e as laranjas plantadas pelo colono inglês produziam grande
quantidade de frutos que, apesar da boa qualidade, lhes sobravam.
Bigg-Wither, Sobre o sr. Garcez, Bigg Wither diz: ―foi o fazendeiro mais inteligente
pgs. 362, 361.
que encontrei na classe, nas minhas viagens pela província‖, e que
era ―até certo ponto, um homem educado, conhecendo alguma coisa
de história e geografia europeias‖; esse proprietário diferia-se da
―maioria dos fazendeiros que encontrei na província ignorava com-
pletamente o mundo exterior‖, pois eram, em geral, completamente
ignorantes, e ―no entanto, viviam e prosperavam! O que não deixa
de evidenciar ser necessário muito pouco capital intelectual para
prosperar neste país‖. Na propriedade de Garcez, o viajante inglês
comenta que viu ―pela primeira vez vi uma horta grande e bem culti-
vada‖, da qual ―o proprietário se orgulhava‖, ―pois ficava satisfeito
quando se lhe pedia que a mostrasse. Além da horta, havia, no lado
da casa, uma bem cuidada plantação de café que, segundo o sr.
Garcez declarou, lhe dava uma pequena fortuna anualmente‖. Não é
por coincidência que as descrições de Bigg-Wither e de Saint-Hilaire
se assemelham: os relatos de viagem produzidos por europeus nes-
se período dão a ver uma realidade promissora, mas pouco explora-
da. Edward Said chama isso de ―o mito do nativo indolente‖ 224.

224
SAID, op. cit., p. 89.
110

A última descrição do engenheiro inglês foi a do pomar do sogro de


Bigg-Wither, Mercer, que ―rivalizava ou superava o do sr. Garcez‖: ―Laranjas,
p. 399.
ameixas pêssegos, abacaxis, gengibre, batata, cebola, tudo era cul-
tivado com evidente cuidado e inteligência e, por fim, adornavam o
pomar diversos pés de algodoeiro, cujo produto depois de preparado
era transformado em lençóis e também em fios para a fabricação de

Saint-Hilaire,
rendas‖. Saint-Hilaire se ateve ao cultivo de linho, e Bigg-Wither ao
pgs. 31, 62, de algodão. Cultivar produtos que pudessem estabelecer comércio
117.
entre a Europa e a América e, sobretudo, fornecer matérias-primas
aos países daquele continente é uma referência constante em todos
os relatos, mesmo de brasileiros.
O Visconde de Taunay se lamenta ao descrever ―os desconsolado-
Taunay, p. res ranchos de caboclos‖: ―um telhado pesado, baixo, crivado de go-
101-102.
teiras sobre paredes a meio esboroadas, uma área de cultivo insigni-
ficante, um milharal plantado sem método, nem alinhamento, muitas
crianças, muitos porcos, esfaimados e soltos […]; mato por toda a
parte, nenhuma cadeira; uma ou outra canastra; eis o círculo aperta-
díssimo e desanimador da comodidade e gozos em que se mantêm‖.
Tudo isso cria um ―doloroso contraste‖ se comparado à ―casinha do
alemão, do polaco, do italiano‖ que ―levanta-se airosa, de súbito in-
fundindo no seu aspecto a ideia do bem estar, do conforto e da feli-
cidade; suas vidraças limpas, suas cortinas modestas, mas sempre
alvas, seu jardinzinho cheio de flores em derredor, plantações viço-
sas ocupando toda a área de trabalho, o centeio ondulando a menor
brisa e pondo com o verde claro de sua cor uma gota alegre em lar-
gas perspectivas, o milho plantado com regularidade e todo perfila-
do, em linhas de rigoroso paralelismo, o feijoal separado, a vinha ze-
lada cuidadosamente, ora em pé, ora em latada e cobrindo-se de
adocicados e bastos cachos, frutas saborosas e só colhidas em sa-
zão, enfim, de todos os lados o assinalamento do trabalho, o cunho
da atividade e do amor à ordem, que tantos benefícios trazem ao
homem laborioso‖. O político não perdoa em sua descrição nem a
falta de cadeiras, ícone de conforto e regularidade.
111

Os modelos em que tanto insistiam os viajantes europeus já se fazi-


am presentes, ao menos em termos de políticas imigratórias. O
grande dilema para a construção de uma sociedade nacional e civili-
zada, na perspectiva de Taunay, era então ―afugentar a ociosidade
inata e fortificada pelas suavíssimas condições de vida brasileira‖225.
Taunay, Se comparados com os imigrantes europeus e seus jardinzinhos
pgs. 99, 95,
126-127. cheios de flores os nativos pecam pela falta de preocupação estéti-
ca, regularidade e conforto; a paisagem, em sua singularidade, é
fonte de gozo e elogios por parte de Taunay: ―o terreno coberto de
lindíssima e folhuda grama que se prolonga para o interior do mais
lindo bosquete, como que coisa arranjada com o cuidado de inteli-
gentes jardineiros, zelosos em impedir e corrigir os exageros da na-
tureza, mas atentos sempre em dar valor às suas belezas e indica-
ções. Em todo o Paraná são em extremo frequentes esses aspectos
da mata, árvores possantes e arbustos elegantíssimos um tanto
afastados uns dos outros, a ensombrarem o chão muito limpo e
gramado, cheio de atrações, sobretudo ao sol do meio dia, como
que a convidarem os dilettanti do far niente a estirarem o corpo dis-
posto ao repouso e ali fruírem deliciosa sesta‖. A descrição do vis-
conde, bem ao estilo e sabor de sua famosa obra Inocência, define a
paisagem como um grande jardim natural, em que os excessos da
natureza tão caros às paisagens tropicais são de alguma forma cor-
rigidos. Diz ele que: ―nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro
aqueles campos ficam todos floridos. […] Falavam-me muitas vezes
no aspecto surpreendente dessas extensões, que constituem jardins
naturais‖. O entusiasmo de Taunay pelas paisagens brasileiras é
evidenciado em muitos de seus textos, pois o Visconde considerava
a natureza brasileira enquanto uma das grandes riquezas da nação.
O elogio à beleza da paisagem dos Campos Gerais é devido, em
parte, a sua inaptidão para uma cultura agrícola ou pecuarista de
larga escala, como se verá adiante.

225
Nas palavras de Pádua, a crítica reformista insistia na necessidade de ―explorar de forma cuidado-
sa os elementos da natureza, plantar o que for retirado, valer-se do apoio da ciência, aperfeiçoar os
métodos de produção, construir uma vida social estável e gerar um sólido processo civilizador‖.
PÁDUA, Um sopro…, op. cit., p. 208.
112

3.8 — LIMITES

O que são os Campos Gerais na perspectiva dos viajantes? Quais seus limites? O
que os define? Para Taunay os limites da paisagem são incertos, mas podem ser
demarcados a partir de rios e serras; ainda assim, para esse viajante a presença e
repetição de alguns elementos arquetípicos é o que define os Campos Gerais. Saint-
Hilaire também insiste na unidade dos componentes para definir os limites da paisa-
gem, mas, por sua vez, reitera o contraste entre campo e mata, sendo as matas o
refúgio dos ―selvagens‖, e uma espécie de fronteira entre civilização e barbárie. Essa
oposição entre mata e campo, civilização e selvageria, também é retomada por
Bigg-Wither, havendo ainda para o engenheiro inglês uma oposição entre o saudá-
vel e o pestilento, entre campo e matas, sendo o campo terapêutico e saudável; as
matas, por sua vez, são úmidas e repletas de insetos; essa oposição, conforme o
engenheiro deixa marcas no espírito dos seus respectivos habitantes.

Taunay, pgs. A frase de D. Pedro II, ―os Campos Gerais são um tapete verde so-
135, 118, 134.
bre uma grande mesa de pedra‖, define para Taunay o que é essa
paisagem, ou seja: ―verdejantes vastidões que se desenrolam, não
chatas e uniformes como planícies intermináveis, porém, sim, do-
bradas, cheias de pitorescos acidentes, com fundas e elegantes on-
dulações, verdadeiras bacias de colossal parque inglês, vastidões
em que os pinheiros, já em grupos, já isolados, já no encontro das
quebradas, já no ponto culminante dos outeiros, já solitários, já ca-
sando a sua folhagem áspera e glauca com a coloração multicor de
outros vegetais, dão cunho particular e imprimem feição toda sua
aqueles campos iluminados pelo sol com luz sempre mais ou menos
branda‖. O pitoresco (aquilo que é digno de ser pintado), o inusitado,
são qualidades que Taunay atribui como arquetípicas da paisa-
gem226. Essas características, conforme o viajante, ―se estendem por
léguas e léguas, modificadas só as razões de mais ou menos propri-

226
―O pitoresco se impôs no fim do século XVIII: foi precisamente estabelecido nos escritos do pastor
William Gilpin. O pitoresco é resultado de uma verdadeira cassada. Insiste-se nas surpresas escondi-
das nos caminhos‖. Em francês no original, tradução minha : ―Le pittoresque s'impose à la fin du
XVIIIe siècle: il a été très précisément établi par le pasteur William Gilpin, au fil de ses livres. Le pitto-
resque résulte d'une véritable chasse. Il est quête de la surprise au détour du chemin.‖ CROBAIN, op.
cit., p. 104.
113

edade para o cultivo pela aproximação das correntes d‟águas, umas


volumosas, como o Iguaçu e Tibagi e outras, mais modestas, já ri-
beirões, já modestos córregos‖.
A delimitação que Taunay apresenta a essa formação é a seguinte:
Taunay, ―a parte da província do Paraná conhecida pela denominação de
p. 97.
Campos Gerais tem limites bastante incertos. Podem ser assinala-
dos ao Sul a Serrinha e o rio Iguaçu, a Oeste a Serra da Ribeira, ao
Norte os Campos do Imbituva ou Cupim e a Leste os Campos do Ia-
pó e a serra das Furnas. Entretanto positivamente nada há fixo e fica
à vontade mais ou menos de cada qual alargar ou restringir essas
divisas. Assim querem alguns que a cidade de Lapa esteja compre-
endida nessa zona dos Campos Gerais, embora fique para lá do rio
Iguaçu‖. Os limites, para Taunay, não são políticos, os marcos da
paisagem seriam naturais, delimitados por elementos geográficos ou
pela simples imaginação de quem os vê, ainda que respeite as ca-
racterísticas arquetípicas.
A definição de Saint-Hilaire do que são os Campos Gerais é muito
semelhante à de Taunay — ou melhor, a definição de Taunay é pa-
recida a de Saint-Hilaire. Comenta o naturalista francês que os
Saint-Hilaire, Campos Gerais são ―um desses territórios que, independentemente
pgs. 11-12,
88, 93. das divisões políticas, se distinguem em qualquer região pelo seu
aspecto e pela natureza de seus produtos e de seu solo; onde dei-
xam de existir as características que deram à região um nome parti-
cular — aí ficam os limites desses territórios. Na margem esquerda
do Itararé começam os Campos Gerais‖, e estes ―só terminam onde
acabam as pastagens e começam as grandes florestas‖. As noções
de começo e término dizem respeito ao itinerário percorrido pelo via-
jante. Ao seguir o sentido norte-sul, e depois oeste-leste, rumo à Cu-
ritiba, descreve Saint-Hilaire a mudança da paisagem: ―entre Fre-
guesia Nova e Caiacanga a paisagem me pareceu menos aprazível,
e se tornou ainda menos atraente depois de Caiacanga. Os vales
eram mais profundos, viam-se pedreiras nas encostas dos rochedos,
o capim já não se mostrava tão verde e viçoso: eu me aproximava
dos limites dos Campos Gerais. No seu começo, nos arredores de
114

Morangava, seus belos campos tinham-se mostrado destituídos de


encanto, e ali, no seu final, tornavam a adquirir um aspecto tristo-
nho‖.
Saint-Hilaire, Já no início de seu texto, narra Saint-Hilaire que passou por uma
pgs. 42, 60,
43, 45, 60, 32. cruz, esta sinalizava ―onde algumas pessoas haviam sido mortas pe-
los índios selvagens‖. Esse marco deixou vestígios em toda sua nar-
rativa. Para o naturalista, ―as terras dos Campos Gerais são vizinhas
dos territórios dos selvagens‖, formando assim uma espécie de cor-
redor, do qual relata temeroso: ―me aproximei, tanto quanto possível,
das terras habitadas pelos índios selvagens‖. Os indígenas que habi-
tam as matas são descritos como ―inimigos‖, ―audaciosos‖ e ―ousa-
dos‖. Essa espécie de fronteira que representam os Campos Gerais,
uma fronteira que separa a civilização da barbárie, é bastante instá-
vel, pois Saint-Hilaire relata que a fazenda Fortaleza estava na épo-
ca de sua viagem ―incrustada nas terras ocupadas pelos selvagens.
Eles frequentemente causavam desordens, eram perseguidos, ma-
tava-se alguns homens, aprisionavam mulheres e crianças‖. Em sua
descrição geral, como já dito anteriormente, o viajante francês insiste
que a presença de imigrantes estrangeiros poderia intimidar os indí-
Bigg-Wither, genas e ―posto a região a salvo‖.
p. 133.
Em relação aos ―grandes campos do Oeste‖, diz Bigg-Wither que
―não há, nesta província, a rigor uma divisão bem definida separan-
do a floresta do prado. Não são ambos divididos por nenhuma linha
única e estreita‖.
O viajante inglês foi o único que deixou ilustrações ou material ico-
nográfico a respeito dos Campos Gerais. No primeiro volume de seu
livro encontra-se o mapa a seguir em que tenta localizar e dimensio-
nar para seus leitores os territórios que percorreu. (Imagem 7: The
valleys of the Tibagy & Ivahy. Province of the Parana, south Brazil,
by T. P. Bigg-Wither.)
115

Esse trabalho cartográfico, produzido com auxílio dos irmãos Franz


e Joseph Keller227, revela as redes de interesses e contatos que os
viajantes do período estabeleciam entre si mesmos e instituições
públicas e privadas. Ainda nesse sentido, o do viajante-leitor, Bigg-
Wither apresenta uma rica mostra de seu imaginário viageiro, quan-
Bigg-Wither, do ao adentrar pela primeira vez aos Campos Gerais diz que ―ainda
pgs. 100, 98.
não sabíamos se seríamos ou não atacados por algum feroz touro
selvagem ou por índios de cara pintada. É muito difícil a gente liber-
tar-se de ideias sensacionais incrustradas em nossas cabeças de
moços‖. As recorrentes menções ao ―Oeste‖, e a possibilidade de
encontrar ―touros ferozes‖ ou ―índios de cara pintada‖, remetem o
destinatário a uma paisagem familiar, ao menos em termos literários:
o oeste americano (Western, ou Wild West) e as narrativas de aven-
tura, diz ele sobre uma queimada que assistiu: ―fui assaltado pelos

227
Cf KARPINSKI, Cezar. Gentes e paisagens do rio Iguaçu na viagem expedicionária dos engenhei-
ros Keller. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 17, n. 1, 2012.
116

pensamentos das queimadas fantásticas à la Mayne Reid228 e todas


as excitações que elas provocam: índios velozes, búfalos, cavalos,
veados, viajantes e caçadores apanhados e queimados vivos‖. Dian-
te dessa ideia, em sua narrativa o viajante insiste na noção de fron-
teira, uma separação entre civilização e barbárie, marcada,
sobretudo, pelo racismo. Diz Bigg-Wither que a Oeste, depois de
Bigg-Wither, duas horas após cruzar o rio Tibagi, “chegamos às fronteiras ociden-
pgs. 131, 237
tais‖ das áreas de campos. Essa região de campos, ―situada 3.000
pés [aproximadamente 915 metros] acima do nível do mar, dentro de
uma área de 20.000 [aproximadamente 32.000 quilômetros] milhas
quadradas, que possui clima temperado e saudável, propícia à cons-
tituição das raças da Europa setentrional e central‖. Na cartografia,
chama à atenção ainda a menção aos pântanos [swamps] a leste no
litoral, e aos territórios dos índios botocudos [indians botocudos] e
coroados [indians coroados] a oeste, como se o viajante destacasse
a salubridade dos campos ainda que cercado de perigos.
A Oeste, nas matas do Ivaí, encontra-se a verdadeira antítese dos
Bigg-Wither, campos: o ―inferno terrestre‖, na qual Bigg-Wither esteve durante
pp. 350-352,
355. mais de um ano. Narra ele que: ―No dia 3 de Outubro, […], passei
pela última faixa de floresta que marcava a fronteira da Grande Pla-
nície. Oh, Deus! como me saltava dentro do peito o coração ao ver
os grandes campos ondulantes, estendendo-se até o horizonte infin-
do, para chegar às vizinhanças do céu! Na excitação e entusiasmo
do momento, saí da trilha e galopei até o salto de uma elevação, ali
ficando pelo espaço de cinco minutos, o peito dilatado e os braços
estendidos, a aspirar a brisa magnífica que vinha varrendo aquelas
planícies, procedente do Atlântico. Senti-me como um prisioneiro
solto de sua masmorra. Por treze meses eu não sabia o que era
sentir um sopro de ar em meu rosto, nem ver mais longe do que po-
dia alcançar minha voz. Gritei de prazer […]. Fiquei surpreso quando
pensei no tempo que pude suportar vivendo na floresta tropical. […]
Essa sutil, mas poderosa influência, atuando através de diversas ge-

228
Thomas Mayne Reid, escritor estadunidense, nasceu em 1818, em Ballyroney, Irlanda. Ficou co-
nhecido por suas novelas de aventuras ambientadas no oeste dos Estados Unidos da América.
117

rações, é, provavelmente, uma das causas que tornam, em geral, o


índio da floresta tão inferior em espírito e iniciativa ao seu irmão do
Bigg-Wither, campo‖. Depois de sair do Sertão do Ivaí no dia 3 de Outubro de
p. 72.
1874 e chegar à capital Curitiba cinco dias depois, o viajante inglês
relata que ―estávamos armados até os dentes, com pistola revólve-
res e compridas facas, tudo no cinturão em volta do corpo‖, fato esse
que foi notado pelos habitantes da cidade-capital, em especial ―o
elemento alemão‖: ―o povo se voltava nas ruas para nos olhar, que-
rendo adivinhar talvez de que parte longínqua do mundo tínhamos
vindo, pois as roupas do sertão e a aparência de viajantes indicavam
que éramos forasteiros‖. Forasteiros dentro de uma mesma provín-
cia, essa é a constatação de Bigg-Wither, que ressalta, sobretudo, a
ideia de uma fronteira entre civilização e barbárie, sentida pelo porte
de armas de foco e facas, as mesmas facas que eram então porta-
das pelo viajante inglês haviam sido definidas alguns capítulos ante-
riores como ―de dimensões desconhecidas nos países civilizados‖.
118

3.9 — SOLO

Se os valores paisagísticos são também práticos, e seu prefixo remete às suas ca-
racterísticas físicas, as formas de povoamento humano e seus recursos, o solo é um
elemento essencial para definir a paisagem. Todos os três viajantes dedicam aten-
ção especial a esse item. Uma preocupação advinda de uma racionalidade técnica,
que visa conhecer as potencialidades de amanho racional e/ou de cultivo de pasto
para a pecuária. Como visto, Bigg-Wither ao encontrar seu compatriota Edenbo-
rough comenta a má qualidade do solo dos Campos Gerais. Saint-Hilaire inicia o
relato com a descrição geral que deixa a entender que o solo possibilita o cultivo
qualquer tipo de cultura, mas, ao longo do texto, essa generalização é contradita,
não pela qualidade do solo, mas pelo clima. Taunay não vê para os Campos Gerais
nem um futuro pastoril, dada a imprestabilidade do solo para qualquer cultura, inclu-
sive para que se pudessem replantar os pastos.

Em seu segundo dia nos Campos Gerais, Bigg-Wither relata a se-


Bigg-Wither, guinte impressão sobre o solo: ―pelas características gerais, o su-
pgs.102, 121-
122. persolo da campina parecia pobre. Na sua maior extensão havia
uma camada vermelha e arenosa, onde o capim crescia em moitas
isoladas. Aqui e ali alguns blocos de pedra cobertos de líquen, des-
tacando-se pitorescamente das outras partes, em terrenos de altos e
baixos. Esta região jamais poderia ser transformada em terra arável,
pois até o capim duro ali parecia sofrer por falta de nutrição‖. Essa
impressão foi confirmada logo após conhecer Mr. Edenborough, que
contara a Bigg-Wither que ―tornar arável terra de campina era quase
o mesmo que transformar regiões de matas na Inglaterra em cam-
pos lavrados. O arado não podia operar ali, sem que cada moita de
capim, com suas profundas raízes, fosse primeiro arrancada à mão‖.
A conclusão de engenheiro é bastante clara: ―a terra da campina,
geralmente, não produz nenhum desses artigos [feijão preto, milho e
arroz] ou, para falar mais acertadamente, não compensa cultivá-los
ali (exceto para o gasto, sob certas condições) quando a terra da
mata é dez vezes mais rica”. Mr. Edenborough tentara também, sem
sucesso, cultivar capim de origem inglesa em sua propriedade, mas
119

―o capim inglês não teve o desenvolvimento que ele esperava‖. O


Bigg-Wither, conselho final de Bigg-Wither é de que ―a criação de gado, e não a
p. 122.
agricultura, deve ficar sempre como sendo o traço distintivo destas
extensas campinas‖.
O Visconde de Taunay se tivesse lido o relato de Bigg-Wither — o
que provavelmente nunca aconteceu — teria concordado com as
Taunay, pgs. advertências do viajante inglês. O político brasileiro afirma que ―em
133, 154-155.
todos estes campos, as terras férteis são escassas e mesmo a pou-
ca espessura da camada arável aproveitável sobre o extenso lajea-
do não consente a cultura […], em todos eles se notam, muito embo-
ra a sua formosura como paisagem, sinais evidentes de imprestabili-
dade para a cultura e até para servirem de simples pasto ao gado.
Foi esta uma das decepções da minha viagem. Supusera antes de
verificar por meus olhos o contrário, que aqueles campos todos po-
deriam dar lugar, em futuro mais ou menos chegado, ao desenvol-
vimento, na mais alta escala, da indústria pastoril, não com a erva
que os cobre, mas depois de feito um plantio regular e científico de
pastos, conforme se praticou e se pratica na Austrália, Nova Zelân-
dia, em que vastas superfícies são cultivadas e plantadas de nevada
grass e victoria grass, antes de entregues ao gado vacum, cavalar o
ovino‖.
Taunay finaliza seu relato sem esperanças de conserto para a má
qualidade do solo dos Campos Gerais — que ele considera ser re-
sultado em grande parte dos maus hábitos dos habitantes locais, em
especial as queimadas. Possivelmente por isso o político insiste tan-
to na beleza da paisagem, em seu valor estético como ressaltado
pela frase de D. Pedro II, ou na extração de madeira: ―atualmente a
indústria pastoril, e sobretudo de cavalos, vai quase radicalmente
desaparecendo nos Campos Gerais, verificando-se o prognóstico,
aliás fácil como dedução lógica dos factos […]
As multiplicadas queimadas exauriram a terra, modificando-lhe os
elementos que lhe eram próprios para auxiliarem e provocarem a
vegetação, de maneira que hoje há grandes extensões que só pro-
120

duzem pasto enfezado e que não pode alimentar o gado por mais
sóbrio e menos exigente que seja.
Aliás a constituição geológica de toda aquela região, […], não favo-
rece mais enérgica vegetação, por isso que a exígua camada de ter-
ra ou solo arável assenta sobre espesso e prolongado lageado.
Não fosse esta circunstância, em alguns e largos trechos insanável,
o Paraná, sobretudo os Campos Gerais, teriam diante de si o mais
próspero e brilhante futuro pastoril, se se tratasse do replantio dos
pastos, como fazem com tamanho êxito a Austrália, a Nova Zelândia
e muitos Estados da Confederação Norte Americana.
A cultura cuidadosa das ervas preconizadas para essa transforma-
ção, a nevada grass e victoria grass, substituindo em grandes exten-
sões os pastos naturais, deu lugar a pasmosos resultados e originou
o extraordinário e admirável movimento comercial, que, por meio dos
vapores frigoríficos da Oceania, abastece os mercados de Londres
de carne de vaca e de carneiro do mais delicado sabor, satisfazendo
as exigências dos mais difíceis e meticulosos gastrônomos‖.
Na descrição geral Saint-Hilaire diz que os Campos Gerais são uma
Saint-Hilaire, dessas regiões que se distinguem por ―seu solo‖, que essa região
p. 12, 27, 28-
31. desfruta ―de uma grande vantagem: suas terras não se esgotam em
poucos anos, como ocorre na província de Minas, e quando isso
acontece é fácil devolver-lhes, com um pequeno período de descan-
so, a primitiva fertilidade‖. O naturalista ainda dá exemplos de várias
plantas que, segundo ele, eram cultivadas com bons resultados: fei-
jão, trigo, milho, arroz, fumo e linho, e aconselha que ―seria extre-
mamente proveitoso que fossem trazidas da Europa novas semen-
tes‖. A conclusão é a de que ―não são só os nossos cereais e o nos-
so linho que se cultivam nessa bela região; ali se plantam também
com bons resultados quase todas as nossas árvores frutíferas. Infe-
lizmente, como já tive ocasião de dizer, a época das chuvas mais
abundantes coincide com a da maturação dos frutos, e estes nunca
ou quase nunca atingem o grau máximo de perfeição. Deve ser, po-
rém, feita uma exceção para os figos, que, como os de Minas, são
excelentes. Saboreei também, em fevereiro, uvas brancas de muito
121

boa qualidade.‖ Tudo isso para afirmar que se que se os colonos su-
íços que foram para Cantagalo no Rio de Janeiro fossem enviados
Saint-Hilaire, aos Campos Gerais teriam encontrado ―um solo no qual poderão de-
p. 32.
senvolver qualquer tipo de cultura a que estejam acostumados‖.
Todos os viajantes compreendem essa dimensão prática, essa di-
mensão cotidiana da vida humana da paisagem em seus relatos e,
sobretudo, pelo incentivo à imigração de trabalhadores europeus,
destacam as qualidades e/ou deficiências do solo.
122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[…] quando a obra está feita [há] uma espécie de de-


cepção, de chatice final do objeto: como? é somente
isso? (a primeira releitura é penosa), passemos logo
a outra coisa!

(Roland Barthes, A preparação do romance, vol. II)

Do início da redação desse texto até a data de sua finalização praticamente


um ano se passou. Nos arredores que descrevi na apresentação pouca coisa mu-
dou, na verdade nada que seja digno de uma descrição detalhada: alguns vizinhos
pintaram as casas, o inverno desse ano tem sido mais rigoroso que o anterior, enfim,
mudanças poucas, magras, que não enchem uma página.
Em outro sentido, o percurso do texto e da pesquisa propôs uma leitura críti-
ca dos relatos analisados.
No primeiro capítulo a proposta era discutir sistematicamente os relatos de
viagem selecionados, desde uma contextualização a uma crítica narratológica, pas-
sando por uma análise da biografia dos viajantes e o surgimento das chamadas via-
gens científicas. Esse percurso intentava mostrar as redes de interesse, tanto pes-
soais (profissionais) quanto institucionais, que determinou o tipo de viagem e de re-
lato produzidos no século XIX. A partir disso foi possível compreender que, apesar
da subjetividade de cada um dos viajantes, os relatos de viagem do período possuí-
am uma estrutura comum, uma sistemática de interesses e financiamentos, que
buscava unir à fluência narrativa de uma história contada um inventário mais ou me-
nos sistemático de recursos possivelmente exploráveis.
A partir da análise narratológica é possível compreender as astúcias narrati-
vas utilizadas para a composição dos relatos: a heroicização actancial, os pactos
estabelecidos (palavra religiosa que demonstra a força quase de fé que o ato da lei-
tura requisita) tanto literários quanto com os poderes, a autópsia, a estereotipia, etc.
O conceito de paisagem, discutido no segundo capítulo, visou expor a com-
plexidade e o protagonismo dessa noção para a análise aqui proposta. O rizoma
paisagem (em que se ligam termos tais como observador, perspectiva, olhar e ponto
de vista) nos ajuda a compreender que um conjunto de ideias informa e molda a
nossa visão da realidade e, consequentemente, determina a avaliação do meio. Es-
se conceito e essa percepção não são transcendentes, são ideias construídas em
123

função de necessidades ou interesses e, portanto, são históricas, datadas e especia-


lizadas.
O olhar dos viajantes, suas lentes culturais, era informado por termos diver-
sos, desde as teorias neo-hipocráticas da terapêutica à oposição emergente entre
campo e cidade, passando pela geologia e o racialismo. Nesse sentido é possível
compreender a influência exercida por Alexander von Humboldt, tanto para a apreci-
ação do espaço quanto para a composição dos relatos de viagem, e como o concei-
to de paisagem tornou-se um protagonista nesse tipo de escrita.
A imigração de trabalhadores estrangeiros foi exaltada pelos três viajantes e
a paisagem dos Campos Gerais foi por eles considerada como quase ideal dentro
desse projeto, sobretudo porque esses imigrantes seriam capazes de corrigir as ―de-
ficiências‖ da paisagem. A raiz do conceito permite entender as estreitas relações
entre o espaço e as formas de ocupação humana, como exposto com as noções de
país, paisagem e paisano.
Outro elemento importante para que se possa compreender a noção de pai-
sagem, e sua escrita em um relato de viagem, é o afastamento que o viajante man-
tém, a distância entre as culturas: o próprio conceito implica em separação e obser-
vação; para que um determinado meio venha a ser uma paisagem, para que possa
ser enunciado enquanto paisagem, é necessária uma clivagem.
Na seção denominada Figuras as discussões e procedimentos analíticos do
primeiro e segundo capítulos foram retomados para abordar, de forma mais atenta,
os relatos de viagem. Seguiu-se a premissa de que em uma narrativa a contingência
entre a experiência e os esforços para descrevê-la linguisticamente são ocultos pelo
decorrer pacífico de uma história que nos é contada — o termo pacífico é interes-
sante, pois nos alerta sobre o potencial pacificador das narrativas, como tanto insis-
tem autores do pensamento pós-colonial.
A tríplice demarcação discursiva do relato de viagem (narração, descrição e
comentário) é destacada ao se fragmentar os textos e expô-los em função de ele-
mentos que compões (compunham) a paisagem e noções importantes para a per-
cepção e apreciação da paisagem. Assim, para que se possa compreender o quanto
a primeira impressão do contato com os Campos Gerais foi importante para a expe-
riência do viajante, trechos dispersos foram reunidos na figura Entrada, e as suas
impressões demonstram certo fascínio e admiração. Essa fascinação inicial é então
124

substituída por um sentimento de monotonia, destacado nas figuras Vastidão e Limi-


tes.
As deficiências da paisagem são apontadas pelos viajantes a partir de co-
mentários sobre sua extensão e os, por eles considerados, maus hábitos dos nati-
vos, como a preguiça, a falta de noções de regularidade e disciplina; esses comentá-
rios dispersos foram reunidos em figuras como Água; Jardins, pomares e Hortas;
Solo. A presença autóctone, os indígenas, e as ideias racialistas estão expostas em
Cores/Contrastes. E, também, a função de inventário dos relatos de viagem está
destacada nas mesmas figuras anteriores, além de Rochas e Pinheiro.
Os valores paisagísticos são tão estéticos quanto práticos. Por um lado, os
relatos de viagem, enquanto narrativas de descoberta e exploração, inventário das
diferenças e potencialidades, que buscavam engajar o público leitor em certos em-
preendimentos, escreveram parte do mundo e deram a ver a diversidade das paisa-
gens do planeta. Por outro lado, muitas das imagens que esses viajantes construí-
ram deixaram marcas nas práticas sociais: o racismo, a exploração irracional dos
recursos por eles apontados com pródigos, o eurocentrismo, o fortalecimentos das
elites locais, etc.
Os três viajantes eram homens, brancos, integrantes de elites políticas e
econômicas. Seus relatos afirmavam a autoridade discursiva de seus lugares soci-
ais, suas representações ajudaram a firmar sentidos para a sociedade paranaense,
(re)produziram a violência dos estereótipos afirmada pela narrativa. Ainda que acei-
temos a máxima de que não é qualquer um que pode falar qualquer coisa em qual-
quer lugar, nada nos impede de realizarmos uma releitura crítica de suas obras.

… passemos então à outra coisa.


125

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