MEZAN, Renato. Freud - A Trama Dos Conceitos
MEZAN, Renato. Freud - A Trama Dos Conceitos
MEZAN, Renato. Freud - A Trama Dos Conceitos
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ZÉ PERSPECTIVA
Equipe de realização - Produção: Ricardo W. Neves e Raquel Fernandes Abranches. 7h|ws
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Sumário.
Muzan. Renato
Freud : a trama dos conceitos / Renato Mezan, —
5. ed. São Paulo : Perspectiva, 2011. — (Estudos : 817
dirigida por £. Guinsburg)
mae «temas e
Bibliogralia.
ISBN 978-85-273-0147-3. EE o rena - NOTAPRELIMINAR
É Freud. Sigmund, 1856-1939 2. Psicanálise INTRODUÇÃO..........
3. Psicanálise - História É. Guinsburg,J. LL. Título,
WI, Sério. PARTEL RUMO AO CONCEITO DE REPRESSÃO
1. TENTATIVA EERRO
VG-1388 CDD-150.1952
1. Janeiro de 1893
Índices para catálogo sistemático: . 2. Nasce uma Teoria....
E. Freud. Sigmund : Métodopsicanalítico 150.1952 3. Nasce um Método
2. Psicanálise Ireudiana 150.1952 4. Primeiros Combates
5. Neurônios e Neuroses...........eeeesereeeeeeeeceneeseresersacaritaces
6. A Sedutora Hipótese da Sedução
7. Às Voltas com a Quadratura do Círculo
8. O Colapso
9. Os Becos do Labirinto
2. OSDEMÔNIOS DAALMA
1. Fantasiar ....................
2. Ora, Direis, Interpretar os Sonhos .
Comoler Freud?
Várias respostas podem ser dadas a esta pergunta um tanto in-
gênua. O presente livro se funda sobre uma aposta: a de que é possível
uma leitura pelo ângulo dos conceitos, isto é, uma abordagem que pri-
vilegia o aspecto sistemático da obra freudiana. De imediato, ela se
depara com uma dificuldade: a de que, afinal, as concepções de Freud
não são sempre as mesmas, e- por vezes se contradizem. Heinz Hart-
mann, um dos teóricos da ego-psychology, julga que por este motivo
estas concepções devem ser “sincronizadas”. Não é esta a posição do
presente estudo: retomando uma observação de Lacan (da qual tive
conhecimento após a conclusão do trabalho), cabe notar que “não se
trata, para nós, de sincronizar as diferentes etapas do pensamento de
Freud, nem mesmo de fazê-las concordar entre si. Trata-se de ver a
qual dificuldade, única e constante, respondia o progresso deste pen-
samento, feito das contradições de suas diferentes etapas” !. A tarefa
é, portanto, delimitar estas “etapas” e compreender de que modo a
teoria se constitui em cada uma delas; sobre os critérios que adotei
e sua justificação, o leitor encontrará explicações mais amplas na
Introdução e no próprio decorrer do livro.
Cinco anos medeiam entre a redação e a publicação deste estu-
do, que foi originalmente tese de mestrado em Filosofia Moderna.
Neste intervalo, uma segunda leitura do conjunto dos textos sugeriu-
-me outra abordagem, para a qual a primeira revelou ser pressuposto
indispensável: a de encarar a teoria em seu contexto, feito de múlti-
plas dimensões. Pressuposto indispensável, porque para realizar este
de Galileu e o pensamento do século XVII, foi assim com as revo- e do “mal-estar na cultura”. A filosofia da' religião, se é que pode
luções burguesas e o Iluminismo, foi assim com a econóômia política haver uma filosofia da religião depois do massacre de O Futuro de
e o pensamento dialético. O apetite voraz da Filosofia, sempre à cata uma Ilusão, tampouco pode eximir-se deste debate com Freud,
de novas iguarias, acabou por descobrir o suculento prato que lhe e é sintomático que um pensador como Paul Ricoeur tenha sentido
preparara a Psicanálise: nas últimas décadas, cada vez mais se pode ver a necessidade de escrever o De [interprétation, para recuperar o
o pensamento filosófico inquirir os textos de Freud e procurar inte- espaço de pensamento que via arrebatado de si pelo advento da
grá-los no seu movimento de totalização. As correntes mais diversas Psicanálise. Estas rápidas pinceladas não pretendem esgotar a enu-
os abordam e os tematizam: vemos o marxismo, de Reich em diante, meração dos problemas que se colocam à Filosofia a partir dos
procurar neles um complemento ou um adversário; vemos os feno- textos freudianos; a produção da escola de Frankfurt e dos modernos
menólogos, de Sartre a Ricoeur, empenharem-se no debate com q pensadores franceses, como Foucault, Derrida e Deleuze, mostra que
inconsciente; vemos os lógicos positivistas, como Nagel, fazerem o inventário da Psicanálise ainda está muito longe de ter sido concluí-
o processo da Psicanálise como aberração da ciência; vemos os estru- do. As temáticas da Finitude, do Desejo, da Lei, da Autoridade, da
turalistas, inspirados em Lévi-Strauss, a procurar em Freud um ponto Linguagem, do Trabalho, da Morte, — o cerne do pensamento contem-
de referência para sua crítica das filosofias da consciência. Não que- porâneo — pesam como signos abertos sobre a modernidade, a exigir
remos entrar no debate acerca de se esta incorporação da Psicanálise dos filósofos que pensem o que há para ser pensado: a maneira pela
no ideário contemporâneo lhe amputa o gumecrítico ou se adota qual o homem se constitui e se perde no jogo de espelhos de sua
de fundamentos mais amplos; este problema fascinante nos condu- prática e de seu saber. E o olhar severo de Freud paira sobre nós
ziria a uma outra tese. Desejamos marcar, simplesmente, a atuali- todos, advertindo-nos que o enigma e a esfinge não desaparecem pelo
dade de um estudo sobre Freud, no momento em que sua obra é expediente de voltar a cabeça e sonhar que eles não existem.
dissecada a partir dos pressupostos mais divergentes.
abundância das referências, julgamos indispensável ao bom êxito interpretações e dissensões que provocaram no meio psicanalítico,
de nossa investigação. Em segundo lugar, afastamos os textos das ou com as críticas que eventualmente se possam fazer às posições
“aplicações” que Freud esboçou para as demais ciências humanas, freudianas. Por outro lado, pareceu-nos indispensável incluir em
como o Leonardo, Totem e Tabu, Moisés e o Monoteismo, O Futuro cada capítulo uma seção sobre a teoria das neuroses e sobre a
de uma Ilusão, A Gradiva de Jensen e os artigos curtos dedicados técnica terapêutica, quando mais não fosse pelo fato de serem estes
a Dostoiévski, a Goethe, e a outros autores e temas. Trabalhamos os temas para os quais convergem os conceitos produzidos nas mais
com todos os textos em que se documenta a produção dos conceitos, diversas investigações. Não temos qualquer intenção de nos manifestar
razão pela qual abrimos uma exceção à regra anterior, retendo de quanto à correção do que ali se diz, nem sobre a questão de se a
Psicologia Coletiva e Análise do Ego o estudo da identificação e de terapia proposta por Freud é ou não a melhor ou a mais eficaz,
O Mal-Estar na Cultura a discussão da agressividade. desejamos apenas verificar que uso se fez do arsenal teórico nascido
da clínica e cuja finalidade era compreender o que ali se passava,
. Nossa leitura é diacrônica. Numa obra que se refaz incessante-
mente, julgamos inadequado e temerário privilegiar qualquer mo- Por fim, o problema das fontes e das traduções. O ideal teria
mento como sendo o “verdadeiro”. Por outro lado, para escapar sido compulsar o texto original das Gesammelte Werke, mas nosso
aos riscos de uma mera cronologia, buscamos discernir as articula- limitado conhecimento do alemão na época em que foi redigido este
ções provisórias dos conceitos, ao mesmo tempo historiando a sua trabalho nos fez optar pela edição crítica inglesa, a Standard Edition
origem e procurando integrá-los nas constelações a que pertencem, of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (SE).
Desta forma, dividimos os textos em quatro períodos: de 1893 à Como a tradução portuguesa da Imago ainda estava, na mesma época,
1897, de 1897 a 1905, de 1905 a 1920 e de 1920 a 1939. Cada um na fase inicial da publicação, utilizamos para confronto a versão espa-
destes períodos é objeto de um capítulo, em que se faz o levanta- nhola da Biblioteca Nueva, revista e ampliada por Jacobo Tognola.
mento dos problemas e noções que o particularizam,e se marcam os O leitor encontrará na Bibliografia a relação completa dos textos
impasses que nos parecem ter obrigado Freud a reformular suas freudianos citados no presente volume. Quanto à terminologia, adota-
posições. Para cada etapa, elaboramos o quadro de referência em cujas mos a tradução portuguesa proposta pela Dra. Elza Hawelka no
malhas se organizam os conceitos: no primeiro, as teorias da defesa, Vocabulaire de la Psychanalyse de Laplanche e Pontalis, com exceção
da sedução e dos sistemas neurônicos, no segundo, as temáticas do termo Verdrângung, que vertemos por repressão e não por re
complementares da sexualidade e do inconsciente, soldadas pelo con- calquel!. :
ceito de repressão; no terceiro, a teoria das pulsões, a análise do ego
e a metapsicologia; e no quarto, o onipresente tema da violência, Nosso trabalho tem, pois, estes pressupostos e estes objetivos:
que unifica os problemas da pulsão de morte, da segunda tópica, ler Freud como se lê um filósofo, buscando a articulação dos seus
do complexo de Édipo, da castração e da angústia. Em cada quadro conceitos e a lógica subterrânea que comanda a sua produção.
de referência, procuramos mostrar o que é pressuposto, que proble- Naturalmente, uma leitura desta ordem é sempre um primeiro passo,
mas emergem, quais conceitos são produzidos para pensá-los e quais a ser completado por um estudo que vincule o autor a seu tempo
os limites da sua aplicação. É evidente que cada período se encontra e aos quadros conceptuais mais amplos em cujo interior se torna
contido e ultrapassado no momento seguinte, de sorte que pensamos possível seu discurso; contudo, nossa justificação essencial coincide
não ter incorrido no erro de propor classificações estanques; é por com a citação que encerra o Além do Princípio do Prazer, com a
esta razão que em momento algum se coloca o problema da “transi- qual, para ressaltar o caráter provisório de suas conclusões, recorre
ção” de uma etapa a outra. Freud à sabedoria muçulmana:
A Filosofia se distingue da Psicanálise sobretudo por ser esta Ao lugar em que não se pode chegar voando,
uma prática, uma relação intersubjetiva que se constitui em meio Há que chegar coxcando;
ao sofrimento e à transferência. Falar sobre a Psicanálise seria então O Alcorão diz que coxear não é pecado.
privilégio dos analistas? Não cremos; parafraseando Spinoza, pode-
ríamos dizer que não nos interessa a verdade do que afirma Freud, 11. A razão desta preferência é simples: em português, “recalque” signi-
fica simplesmente o ato de calcar de novo, de pisar aos pés, enquanto “repres-
mas apenas o seusentido. Os textos são “textos”, isto é, tecidos
são”, segundo a lição de Aurélio Buarque de Hollanda, tem uma gama de signi-
de reflexões e relatos, de digressões e problemas, de princípios e ficações muito mais afim ao conteúdo de violência que, em nosso entender,
conseguências, de debates e corolários. Quisemos simplesmente é a conotação essencial do conceito freudiano. Conseqiientemente, traduzimos
percorrêlos e compreender o que eles dizem. Tomamos a obra Unterdriickung por “supressão”, atentando para a etimologia do vocábulo.
freudiana como um conjunto de significações a que a morte do seu Os dois conceitos jamais se confundem sob a pena de Freud: “Repressão”
alude à exclusão para o inconsciente, enquanto “Supressão” indica o ato de
autor apôs um ponto final, sem nos preocuparmos com as diferentes manter algo no pré-consciente,
li
Parte |: RUMO AO CONCEITO
DE REPRESSÃO
“Tentativa e Erro
1. JANEIRO DE 1893
po ss ib il id ad e de su a oc or rê nc ia e m
“a repressão é a pedra angular do edifício da psicanálise”!. A — com a consegiente exclusão da
ou à di st úr bi os fu nc io na is , is toé ,
Autobiografia não é menos explícita: “as teorias da resistência e da indivíduos do sexo masculino — os
aç ão ou le sã o de es tr ut ur a do s ór gã
repressão do inconsciente, da significação etiológica da vida séxual que não implicavam inflam se pr eo -
st er ia do út er o. M a s Ch ar co t nã o
e da importância dos acontecimentos infantis são os elementos prin- específicos, no caso da hi me nt e
ta do s hi st ér ic os , at ri bu in do va ga
cipais do edifício teórico psicanalítico”?. Mesmo neste texto mais cupava com psicologia dos es
ro et io ló gi co de na tu re za fi si ol óg ic a:
amplo, a colocação da repressão em primeiro lugar denota a impor- sua origem a um quad
tância primordial que Freud lhe atribui na arquitetura teórica da
me nt o da do en ça es ta va es se nc ia lm en te vi nc ul ada
Psicanálise. A metáfora arquitetônica não é casual; sabemos que a a capacidade de desenvolvi is fa to re s et io ló gi co s
cé re br o. To do s os de ma
Psicanálise, ainda que partindo da prática clínica, apresenta-se como a uma deterioração hereditária do at eu rs , En tr e es tes
en ta is , ou ag en ts pr ov oc
eram considerados puramente acid
um sistema conceptual de extremo rigor. Cada elemento deste sistema di am ou nã o fig ura r. Só no ca so de le s int er-
fatores, os eventos traumáticos: po 24 - ne;
''ide
ani “3
ogênicos”*.
articula-se com os outros de maneira precisa, formando no conjunto virem é que a histeria era considerada traumática e os sintomas
um “edifício”, no qual podemos perceber alicerces, andares super-
postos, paredes sólidas e até mesmo janelas que se abrem para outros Breuer e Freud co lo ca m- se fr on ta lm en te co nt ra es ta po si çã o,
campos do conhecimento. A posição privilegiada deste edifício no co mo ag en t pr ov oc at eu r, si mp le sm en te lib er-
negando que O trauma,
panorama das disciplinas que se ocupam do homem é de há muito e en tã o se to rn ar ia in de pe nd en te e co nt in ua ri a
tasse o sintoma, qu
reconhecida, mesmo que as diferentes tendências da investigação não como tal.
estejam — e provavelmente jamais venham a estar — completamente
de acordo quanto à geografia do terreno em que se movem. de ve mo s sus ten tar que o tra uma psí qui co, ou a me mó ri a
Pelo contrário,
mo um cor po est ran ho, dev end o ser con sid era do, me smo
do mesmo, age co
de sua pen etr açã o, co mo um age nte do pre sente”.
Cabe perguntar o motivo do destaque concedido ao conceito muito te mp o dep ois
de repressão pelo próprio fundador da Psicanálise. .Em especial, é
estranho que, nos primeiros esforços de Freud para elucidar os fenô- Porânt o, a his ter ia é de ime dia to col oca da no ca mp o das afe c-
menos neuróticos, ele ocupe um lugar bastante modesto; apenas ções psicológicas, o que explica a eficácia do método hipnótico —
a partir de 1894, ou seja, oito anos depois de ter começadoa se inte- que ope ra no pla no pur ame nte psi col ógi co — tan to par a a ind uçã o
ressar por estes problemas, surge ele num texto publicado (4s Neuro- comopara a remoção dos seussintomas.
psicoses de Defesa), e mesmo assim com outro nome: o de “defesa”.
O que queremos mostrar aqui é de que forma Freud chegou a produzir O método hipnótico, modificado por Breuer, é vigorosamente
este conceito, que podemos considerar como contemporâneo do defendido na Comunicação Preliminar. Seu valor é duplo: teorica-
nascimento da Psicanálise. O caminho foi longo e tortuoso, implican- mente, permite demonstrar que o “fator acidental” é muito mais
do uma revisão das primeiras formulações, assinadas ainda em conjun- significativo do que supunha Charcot;, praticamente, permite o
to com Breuer, acerca do mecanismo da histeria. Tais formulaçõesse estabelecimento de uma técnica altamente eficaz na clínica, o chama-
encontram na Comunicação Preliminar, publicada em 1893 na Neuro- do “método catártico de Breuer”. Este consiste em hipnotizar a
logisches Zentralblatt, e que encabeça os Estudos sobre a Histeria paciente e interrogá-la sobre a origem do sintoma, o trauma psíquico
de 1895. ou a série de traumas que o provocaram. A hipnose põe à disposição
da paciente um “campo psíquico mais amplo”, permitindo-lhe recor-
Esse texto abre-se com uma polêmica contra Charcot, que intro- dar os eventos que contribuíram para a formação do sintoma. Ao
duzira Freud aos domínios do hipnotismo e da histeria. Charcot despertar do estado hipnótico, o sintoma em questão desaparecia.
demonstrara convincentemente que os sintomas histéricos podiam ser Assim, explorando sistematicamente sintoma após sintoma, tornava-se
induzidos em pacientes normais sob o efeito da sugestão hipnótica, possível a desaparição completa dos fenômenos histéricos. O caso
demonstrara convincentemente que os sintomas histéricos podiam ser clássico em que Breuer desenvolvera o método catártico, o chamado
induzidos em pacientes normais sob o efeito da sugestão hipnótica, “Anna O.”, é o primeiro a figurar nos Estudos sobre a Histeria, e é
o que implicava na importância das idéias para a determinação destes recordado por Freud em diversas ocasiões”.
sintomas. Esta constatação ia de encontro aos conceitos médicos
correntes no final do século XIX, que atribuíam a gênese da histeria,
bem como das demais doenças nervosas, à imaginação das pacientes 3. The Aetiology of Hysteria, S.X.., 11, p. 191.
4. The Pspchic Mechanism of Hysterical Phenomena, S.E., 1, p. 6.
(Preliminary Communication).
1. On The History of the Psychoanalytic Movement, S.E., XIV,p. 16. 5. Five Lectures on Psychoanalysis, S.E., XI, pp. 12-13 (Primeira Con-
2. An Autoóbiographical Study, S.E., XX, p. 40. ferência).
TENTATIVA E ERRO 7
6 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS
Por que as pacientes são incapazes de recordar os eventos trau- etiologia “ideog ên ic a” da his ter ia, € fu nd am en ta o dir eit o a um es tu do
. Qu an to ao at aq ue his tér ico , oc or re
máticos em seu estado consciente, se sob o efeito da hipnose eles se psicológico deste distúrbio
ci ên ci a hi pn ói de , já ma is or ga ni za da , to ma mo me nta-
revelam de forma tão organizada e fácil? A teoria que explica este quando a cons
nt ro le do in di ví du o: nã o pa ss a de um a ma ni fe st aç ão
fenômenoé exposta na Parte II da Comunicação Preliminar. As recor- neamente o co
dações. em questão correspondem a traumas porque, na ocasião em do “conteúdo hipnoidal” (sic) da consciência.
glo bal , a Pa rt e V ex pl ic a po r qu e a ter api a
que se produziram, foilhes negada a descarga emocional adequada. Dada esta concepção
Tal descarga não se produzira em virtude de duas séries de razões: catártica é eficaz:
ou a situação em que ocorreu o evento traumático tornaria esta reação
não -ab -re agi das , ao per mit ir- lhe s,
penosa, como no caso de uma ofensa ou insulto por parte de alguém ela anula o poder da s idé ias or ig in al me nt e
ua ge m, um a sa íd a pa ra se us afe tos est ran gul ado s. Tr az a estas
merecedor de respeito ou afeto, ou então ela se produziu num estado através da li ng
s na co ns ci ên ci a no rm al (numa
idéias uma correção ass oci ati va, re in tr od uz in do -a
psíquico peculiar, como “um afeto paralisante, por exemplo o medo, el im in an do -a s me di an te su ge st ão mé di ca , co mo no sonam-
hipnose suave), ou
ou diretamente em condições psíquicas anormais, como os estados bulismo com amnésia.
crepusculares de devaneio semi-hipnótico ou condições similares”*.
Tais estados, denominados por Breuer “estados hipnóides”, impe- se si nt et iz a o co nt eú do de to do o ar ti go . A no çã o de
Esta fra
diriam a elaboração associativa do conteúdo psíquico introduzido om pa nh ad a de um a in te ns id ad e af et iv a pa rt ic ul ar
que cada idéia é ac
durante sua vigência com os demais conteúdos psíquicos, carac- da ab -r ea çã o. É pr ec is am en te a au sê nc ia de st a
forma a base da teoria
terísticos da consciência normal, não obstante a intensidade afetiva a o ev en to pa to gê ni co , im pe di nd o qu e a qu an ti da de de
que torn
que caracteriza as idéias assimiladas nestas condições. sc ar re gu e ad eq ua da me nt e. Ao re me mo ra r
afeto a ele vinculada se de
e o ac on te ci me nt o ou a sé ri e de ac on te ci me nt os qu e
verbalment
O fato de tais idéias, embora excluídas da associação com a nt om a, O hi st ér ic o o li be rt a da qu el a qu an ti da de
provocaram o si
consciência normal, serem capazes de se associar entre si, chama a do -o “i no fe ns iv o” e re in te gr an do -o na co ns ci ên ci a
de afeto, tornan
atenção de Breuer e Freud para a tese de Janet, discípulo de Charcot, m é o ve íc ul o da ab -r ea çã o, no mé to do ca tá rt ic o,
normal. À linguage
a respeito da “divisão de consciência”. A tendência a esta divisão su bs ti tu to pa ra o at o ad eq ua do . É es te fa to qu e ma rc a a
porque é um
produz os estados hipnóides, com a consequente aparição das idéias superior id ad e da ca ta rs e de Br eu er so br e à “s ug es tã o mé di ca ” de
hipnóides e sua organização numa segunda consciência. Contudo, um s ps ic ot er ap eu ta s me nc io na do s no fi na l do ar ti go , ai nd a
Charcot e do
trauma severo, ou uma supressão violenta da reação normal, podem re s re co nh eç am du as li mi ta çõ es em se u pr oc ed im en to
que os auto
produzir a dissociação da consciência mesmo em pessoas que não ca pa z de cu ra r a pr ed is po si çã o pa ra a his ter ia,
terapêutico: ele é in
apresentem tal predisposição. Com esta afirmação, os autores con- am os o ca mi nh o pa ra a no va oc or rê nc ia de es ta do s
“pois não bloque
firmam a importância atribuída à situação traumática, em detri hipnóides”? e tamp ou co im pe de a su bs ti tu iç ão do s si nt om as ab -r ea -
mento das disposições constitucionais privilegiadas pela escola r ou tr os no vo s. Co nt ud o, da do qu e “o s hi st ér ic os so fr em
gidos po
francesa, já que mesmo estas são referidas à ocorrência dos estados principa lm en te de re mi ni sc ên ci as ”! 0: — fó rm ul a qu e co nd en sa a
hipnóides antes da manifestação da doença; estes estados é que cons- po si çã o te ór ic a de Fr eu d e Br eu er àq ue la al tu ra — e co mo o pr oc e-
tituem a predisposição para a eclosão da histeria. Um sintoma histé- dimento advogado é capaz de tornar tais reminiscências inócuas,
rico permanente corresponde à atuação do “segundo estado de cons- os autores se sent em ju st if ic ad os em co nc lu ir qu e se u mé to do re pr e-
ciência” sobre uma inervação corporal normalmente controlada pela senta um avanço em relação ao de Charcot.
consciência comum: é o que Freud denomina “conversão”. A possibili- Em sí nt es e, a ba se e a de te rm in aç ão da hi st er ia co ns is te m
dade teórica desta somatização é dada pelo fato de que o histérico nc ia do s es ta do s hi pó id es e em su as ca ra ct er ís ti ca s pe cu -
na ocorrê
delimita seus sintomas por referência às noções leigas sobre o corpo liares. O qu e é su rp re en de nt e na Co mu ni ca çã o Pr el im in ar , da do o
e não em relação à anatomia real. O “braço”, por exemplo, é aquela desenvolvime nt o po st er io r da Ps ic an ál is e, é qu e ne nh um do s ele -
porção quevai da mangada roupa até a ponta dos dedos; a “garganta” mentos que Fr eu d co ns id er ar á es se nc ia is ao se u “e di fí ci o te ór ic o” ,
corresponde ao que usualmente chamamos pescoço, e assim por e que assinalamo s na ab er tu ra de st e ca pí tu lo — a te or ia da re pr es sã o,
diante”. Este fato, demonstrado por Charcot, comprova ademais a a se xu al id ad e e a im po rt ân ci a do s ac on te ci me nt os in fa nt is — me re ça
nela qu al qu er de st aq ue . A ex pr es sã o “r ep ri mi u” oc or re um a ún ic a
vez, no co nt ex to da s ra zõ es pe la s qu ai s O tr au ma nã o pô de ser ab -
6. Preliminary Communication, S.E., HH, p. 11.
7. Esta curiosa forma de se determinarem as regiões corporais indica
que, desde o início, a psicanálise lidará com significações e não com coisas. 8. Preliminary Communication, S.E., 1, p. 17.
A mesma relação que vigora aqui surgirá na esfera da linguagem, quando a
9. Preliminary Communication, S.E., H, p. 17.
matéria fônica sofrerá mutações profundas em função das variações de sentido
produzidas pelas associações individuais ou pelo uso comum dos termos. 10. Preliminary Communication, S.E., HI, p. 7.
8 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA E ERRO 9
nte, importantes modificações temente o paciente não intentara produzir este efeito, mas este
vão-se produzindo na técnica, gerando lentamente o
transformará no método da livre-asso que depois se ocorrera apesar da intenção consciente. Na segunda destas Confe-
ciação. Já em 1892 no caso de rências, Freud afirma que sua concepção da origem da dissociação
Fráulein Elizabet h von R., Freud renunciara ao mét
Por razões muito sólidas, que analis odo de Breuer histérica “inevitavelmente divergiu, de maneira ampla e radical,
aremos em seguida. O artigo das opiniões de Janet, pois meu ponto de partida não era, como o
de 1894, intitulado As -Neuropsicoses de Defesa, formula
dúvidas quanto à etiologia hipnói ní tidas dele, à investigação de laboratório, e sim uma tentativa de tera-
de, e, no capítulo sobre a terapi pia
a
Caso a predisposição para a conversão esteja ausente, a defesa A etiologia sexual das neuropsicoses de defesa, portanto, é
não poderá somatizar o afeto separado da idéia, o qual permanecerá sustentada primeiramente no caso das obsessões, embora, como vimos,
na esfera psíquica. A idéia enfraquecida permanecerá isolada da a ela seja feita uma rápida alusão no início da descrição do meca-
associação com as demais; seu afeto liberado, porém, vincular-se-á nismo defensivo da histeria. Pelos textos publicados deste período,
a outras idéias, em si mesmas não incompatíveis com o ego, mas poder-se-ia inferir que Freud se baseava exclusivamente nos dados
que, por causa desta “falsa” conexão, se convertem em “obsessões” clínicos de que dispunha; a etiologia sexual pertence àquelas porções
É neste contexto que Freud se refere com desembaraço, pela primeira da teoria das neuroses obsessivas que podem ser “diretamente demons-
vez, ao papel da sexualidade. Em todos os casos analisados, o afeto tradas”, frente a outras que se devem à inferência, como a hipótese
penoso vinculado à obsessão se originara na vida sexual. Freud não da transposição do afeto. Com efeito, no capítulo dos Estudos sobre
a “Pisicoterapia da Histeria”, encontramos a seguinte passagem:
17. The Neuropsychoses ofDefence, S.E., HI, p. 50. Para esta descrição
cf. especialmente a Parte I do artigo. . . 18. The Neuropsychoses of Defence, S.E., Ill, p. 52.
14 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS 15
TENTATIVA E ERRO
Quando comecei a analisar Frau Emmy von N., a idéia de neurose histé- a terapia. Contudo, a Comunicação Preliminar só a menciona uma
ria de base sexual estava longe de mim, Eu havia acabado de retornar da escola
de Charcot, «e considerava a vinculação da histeria com o tema sexual uma
vez, entre parênteses, e com ressalva de um “quiçá”. Para compreen-
espécie de insulto, exatamente como meus pacientes estavam inclinados a der a gênese exata desta etiologia, cuja importância para o “edifício
fazer. teórico” da Psicanálise o próprio Freud se encarregou de assinalar,
e ao mesmo tempo dar conta do problema cronológico, bem como
As Conferências de 1909 afirmam expressamente quea etiologia da questão teórica que nos propusemos elucidar —. a vinculação
sexual não era um postulado teórico da psicanálise, e citam os Estudos necessária entre a noção de defesa, a etiologia sexual e o método
como prova de que Freud não se apoiava neste fundamento; “conver- terapêutico — temos que nos voltar agora para este último aspecto:
time a ele somente quando uma experiência mais rica conduziu-me as modificações técnicas que Freud estava introduzindo em sua
“a uma compreensão mais profunda da natureza dos casos”. E na Auto- clínica, e que conduziriam ao nascimento do método da livre-associa-
biografia expressa-se assim: ção.
Portanto, já em 1893, e com certeza em fevereiro de 1894, A explicação proposta por Freud para o fenômeno desta
Freud contava com a etiologia sexual como sua descoberta mais “contra-vontade” consiste em recordar o estado de exaustão geral
importante, e ao mesmo tempo como um précioso instrumento para em que ela se produz — o que concorda com a teoria dos “estados
hipnóides”” — mas logo em seguida afirma que este fator é apenas
parcial, já que as idéias excluídas da associação com o ego normal (este
19. Estes textos, que se referem ao mesmo assunto, estão respectiva- sim exausto) não estão enfraquecidas. É por esta razão que elas pre-
mente em: The Psychotherapy of Hysteria, S.E., II, pp. 259-260; Five Lectures dominam no momento favorável à eclosão da histeria. Mas esta cons-
on Pspchoanalysis, S.E., XI, p. 40; An Autobiographical Study, S.E., XX, p. 22. trução do mecanismo psíquico é caracterizada como tendo sido obti-
Freud sempre teve a preocupação de mostrar que chegara à etiologia sexual das
neuroses através da observação clínica, sem deixar margem a que esta tese fosse da “por inferência”, enquanto, nos casos relatados na Comunicação
atribuída a seus preconceitos pessoais ou teóricos.
20. O.P., carta 16, p. 3487.
21. A Successful Case of Treatment by Hypnosis, S.E., 1, p. 122.
16 FREUD: À TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA E ERRO 17
Preliminar, “eu pude estabelecer a operação de um mecanismo psi- Decidi prosseguir, bascado na suposição de que meus pacientes sabiam
quico similar, nos sintomas histéricos, de forma direta, investigando tudo aquilo que se revestia de significação patogênica, c que tudo o que cra
o paciente sob hipnose”?. 2 -
necessário era forçá-los a revelá-lo??.
Temos aqui o primeiro elo da cadeia. A hipnose com sugestão, Quando o paciente não produzia a recordação desejada, Freud
em que só o médico fala e o paciente permanece silencioso, não insistia até que ela aparecesse. A falha nãosignificava o esquecimento
permite uma investigação direta da origem dos sintomas. Limita-se da recordação pertinente; ela estava ali desde a primeira pressão.
a removê-los, sem que nem o médico nem o paciente compreendam O que na verdade ocorria era que
coisa alguma do que está se passando. Por outro lado, o método catár-
tico funcionava bem melhor, e seu suporte teórico — a teoria da os pacientes ainda não haviam aprendido a deixar de lado sua autocrítica.
ab-reação — parecia bem mais fundamentado do que o da sugestão Repudiavam a recordação emergente porque a considegavam uma perturbação
inútil ec importuna; mas depois de a comunicarem, verificava-se invariavel-
hipnótica. Em 1893, portanto, Freud declara publicamente sua mente ser esta a idéia correta?S.
preferência pelo método de Breuer, como o demonstra o penúltimo
parágrafo da Comunicação Preliminar. O caso de Emmy von N. fora É o fenômeno que Freud vai em seguida chamar de “resis-
tratado por Freud de acordo com as prescrições de Breuer. tência”, embora ainda não se apercebesse da sua imensa importância.
Contudo, a catarse também dependia da hipnose. No capítulo O caso de Friulein Elizabeth von R. é o primeiro em que ocorre
dos Estudos sobre a “Psicoterapia da Histeria””, Freud afirma que se este termo. A técnica de “concentração”, como era denomi-
deparava com dois obstáculos para trabalhar com a hipnose: primeiro, nada, exigia uma absoluta e voluntária cooperação por parte da
nem todos os pacientes eram hipnotizáveis, embora manifestassem paciente, o que nem sempre ocorria. Inicialmente, quando tal obs-
claramente sintomas histéricos; segundo, era preciso descobrir preci- tinação se manifestava, Freud interrompia a sessão, considerando o
samente o que caracterizava a histeria, e em queela diferia das outras dia “pouco propício”. Mas o fato de que a resistência só ocorria
neuroses. A primeira destas pistas pode ser seguida nos casos clínicos quando Elizabeth se encontrava bem disposta, e nunca num dia
com que Freud contribui para os Estudos, especialmente os de núme- em que se queixava de dores, somado à atitude de concentração
to HJ (Miss Lucie) e V (Fráulein Elizabeth von R.). No caso de Miss e às longas pausas que precediam a declaração de nada ter visto,
Lucie, Freud coloca francamente o problema teórico envolvido no levou Freud a suspeitar de que realmente ela se recordara de algo,
abandono da hipnose: mas se recusava a comunicá-lo, ou por submeter o que ihe ocorrera
a uma crítica injustificada, ou, o que é novo, porque o assunto a ser
Ao desistir de utilizar o sonambulismo, talvez estivesse me privando tratado lhe fosse demasiado penoso.
daquele pré-requisito sem o qual o método catártico parecia inaplicável. Pois
ele se baseia na suposição de que, neste estado de consciência alterado, o
paciente tem à sua disposição recordações e associações que aparentemente
Aqui temos uma vinculação com a teoria da defesa. O relato
não existem em seu estado de consciência normal. Quando não se desse a detalhado do caso não apresenta maior interesse, embora Freud
ampliação sonambúlica da consciência, seria impossível trazer à consciência o considere como o seu primeiro caso de análise completa da histe-
aquelas relações causais, que o paciente oferece ao médico como algo desco- ria. O artigo sobre a Psicoterapia da Histeria retoma q fio do racio-
- nhecido para ele??. cínio:
Esta passagem mostra que Freud procurou conciliar a hipó- ria ser. Ela envolve o problema da “escolha da neurose”, com o qual
tese da defesa com a teoria da ab-reação, mas a primeira logo tomou Freud ainda se debateria por longo tempo, a cuja primeira — e errada
desnecessário o recurso à segunda. Com efeito, o raciocínio segue a — solução será fornecida pela teoria da sedução.
linha da primeira parte do texto que citamos. Uma vez apresentada A defesa apresenta um problema, nos termos da fórmula de que
a idéia dolorosa, o ego a repelira, rejeitando-apara se defender do s “histéricos sofrem principalmente de reminiscências”, já que seu
conflito que ela necessariamente acarretaria frente às demais idéias mecanismo implica uma dissociação imediata da idéia e do seu afeto
já unidas nele. Quando, na terapia, Freud tentava dirigir a atenção pelo ego, no próprio momento em que se produz o trauma. Freud
para o traço mnêmico desta idéia, sentia como “resistência” a mesma procura obviar esta dificuldade através da hipótese — confirmada pela
força que na origem do sintoma se manifestara como “repulsa”, clínica — de que não somente um trauma é responsável pelo desenca-
Faltava ainda demonstrar que a idéia excluída se tornara patogênica deamento da histeria, mas que é preciso umasérie deles, cada qual des-
precisamente em virtude da repressão; é o que Freud procura fazer pertando, porsimilaridade, a recordação dos anteriores. Sua conclusão
nas Epicrises, ou reconstituições dos casos clínicos. Tomaremos é formulada nos seguintes termos:
como exemplo o caso de Fráulein Elizabeth von R.
a somação dos traumas c a concomitante latência dos sintomas significa simples-
O conflito inicial se produzira por ocasião do regresso da moça, mente que a conversão pode ser operada tanto com um afeto recente como
com um afeto recordado, e esta hipótese explica plenamente a contradição
que saíra com um rapaz, à casa em que seu pai se encontrava doente, que parece existir na história e na análise de Frâulcin Elizabeth von R.28. -
tendo a condição deste se agravado durante a ausência da filha.
Este conflito inicial produzira a primeira conversão, fazendo surgir O artigo finaliza com a observação de que é uma questão “quan-
uma dor na perna. O conflito seguinte se produzira quando da morte titativa” que determina a absorção ou a rejeição pelo ego das idéias
de sua irmã; Elizabeth, que sempre alimentara um sentimento afetuo- intoleráveis; se a quantidade de afetos desagradáveis superar o limite
so em' relação a seu cunhado, pensara subitamente: “Agora ele está de suportabilidade do indivíduo, formar-se-á o “ímpeto para a con-
livre; poderei casar-me com ele”. A repressão desta idéia conduzira versão”. Esta preocupação com a quantidade já estava presente no
a uma nova conversão, agravando a dor e difundindo-a para outras
artigo de 1894 sobre as Neuropsicoses de Defesa, que também se
regiões da perna. Neste momento, Freud introduz uma afirmação fecha com umaconsideração quantitativa:
explicita da existência do inconsciente:
todas as qualidades têm uma quantidade, embora não possamos medi-la. É algo
Quando afirmamos que o amor pelo cunhado não era conhecido pela que pode ser aumentado, diminuído, deslocado ou descarregado, e que se esten-
moça, exceto em raras ocasiões, e mesmo assim só momentaneamente, queres- de sobre os traços mnêmicos das idéias, talvez como uma carga elétrica sobre
mos dizer exatamente o que estamos dizendo. Não se trata de uma qualidade a superfície de um corpo. Esta hipotese também está implícita em nossa teoria
mais baixa ou de um grau menor de consciência, mas de uma interrupção do da ab-reação?º.
processo de livre-associação mental com o resto da consciência??.
A tentativa de introduzir este fator quantitativo de maneira mais
Nos dois casos, a idéia reprimida era de natureza erótica e clara em sua psicologia das neuroses vai conduzir Freud ao Projeto
incompatível com a consciência moral da jovem. O mecanismo de de uma Psicologia para Neurólogos, de que trataremos mais adiante,
conversão para finalidades de defesa ficava assim dotado de uma e culminará com a introdução do “ponto de vista econômico” na
base empírica sólida, que Freud comprova também no caso da gover- Metapsicologia de 1915.
nanta inglesa, Miss Lucie. A defesa resultava num benefício para o
ego, que se poupava de um conflito intolerável; mas este benefício
se conseguia às custas de uma anomalia psíquica, de uma divisão
da consciência e do sofrimento físico imposto pelas dores na perna. 4. PRIMEIROS COMBATES
Por que deveria ocorrer uma conversão? A repressão operara
em dois tempos: primeiramente, dissociando a idéia de sua quota de
Sob o familiar, descubra o insólito
afeto, já que apenas uma idéia “enfraquecida” pode ser reprimida. Sob o quotidiano, desvende o inexplicável.
Em seguida, a própria idéia fora excluída da associação mental, for- BRECHT, A Exceção e a Regra, ato II.
mando o núcleo do que já conhecemos como “um segundo grupo
psíquico”. Mas a questão da conversão não é respondida, nem o pode- Através da técnica de concentração, portanto, Freud estava
27. Studies on Hysteria, S.E., II, p. 165 (Case History of Miss Elizabeth 28. Miss Elizabeth, S.E., II, p. 173-174.
von R.). 29. The Neuropsychoses of Defence, S.E., III, p. 60.
20 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA E ERRO 21
VERA
iai =» -— Coma
22 TENTATIVA E ERRO 23
FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS
mente cético quanto ao valor da hipnose para a facilitação do tratamento Esta declaração não invalida, contudo, o fato de que o resto dos
catártico??, escritos deste período tenham em seu centro a noção de defesa.
Este texto toca em três pontos fundamentais. Primeiramente, Podemos considerar que foi a descoberta da resistência e de sua
a limitação da terapia à remoção dos sintomas, o que, aos olhos insuperabilidade pelo método catártico que finalmente conduziu
de Freud, já era suficiente para desqualificá-la, em segundo lugar, Freud 40 abandono das concepções da Comunicação Preliminar. No
ela não se presta à verificação da etiologia sexual, demonstrada pela artigo sobre a Psicoterapia da Histeria, ela ocupa várias páginas,
análise das resistências através da concentração; por fim, os casos aparecendo principalmente como aquilo que determina O agrupa-
“terapeuticamente refratários” evidentemente se referem a neuro- mento das recordações ao redor do núcleo central patogênico: segun-
ses não-histéricas, o que implica que o método catártico consti- do o grau de resistência oferecido para determinado círculo de recor-
tuía um entrave para a classificação e consequente apreensão dos dações, é possível determinar sua posição relativamente ao “núcleo
mecanismos específicos de cada neurose. É curioso que ele ainda central”. Toda esta questão está relacionada ao que Freud denomina
insista. em denominar sua técnica de “método catártico”, como se a “estratificação do material psicopatogênico”: as recordações repri-
já não estivesse abundantemente demonstrado que a hipnose é essen- midas não estão dispostas ao acaso, e sim arranjadas “em boa ordem
cial à catarse, e que sua nova “técnica de concentração”, juntamente lógica” ao redor do núcleo central. No decorrer do tratamento, o
com a hipótese defensiva e a etiologia sexual, nada mais tinham a ver material reprimido é desvelado de maneira aparentemente caótica,
com o método de Breuer, nem com a Comunicação Preliminar. porque o paciente comunica o que lhe vem à cabeça, e enquanto
Apenas a consideração pelo colega com que assinava a obra nos o faz não tem idéia do resto do conjunto reprimido. Cabe ao analista
parece dar conta da reticência de Freud em afirmar a diferença que os organizar estes dados, obtidos mediante a livre-associação e o trabalho
separava, já naquela altura. ' de interpretação das resistências, numa “organização conjetural”,
que Freud compara a um quebra-cabeça chinês. Esta análise, profusa
A base teórica do método catártico era a doutrina dos estados em analogias, é retomada no Manuscrito M, anexo à sua carta nº 63
hipnóides. A aquisição das idéias patogênicas durante tais estados a Fliess (25.5.1897), intitulado “A Arquitetura da Histeria”*, e nos
autorizava a tentativa de removê-las mediante a sua reprodução parece importante por dois motivos. Em primeiro lugar, a rigorosa
controlada, isto é, sob hipnose. A discordância quanto esta etiologia, arquitetura do material patogênico justifica o recurso à livre-associa-
contra a qual Freud propõe a defesa e a sexualidade, é encoberta pelo ção. Com efeito, poderia parecer arriscado substituir o interrogatório
tato na formulação; mas, ainda que reconheça que o caso Anna O. sistemático, sob hipnose ou sob concentração — deste ponto de
pudesse ser considerado de “histeria hipnóide”, o parágrafo seguinte vista, os dois procedimentos se equivalem — pela arbitrariedade na
reduz todas as histerias à de defesa: comunicação dos dados relevantes, implícita na livre-associação.
Ernest Jones cita quatro motivos para este. passo aparentemente
É notável, contudo, que em minha própria experiência jamais tenha anticientífico** : a paciência extraordinária de Freud; sua fideli-
encontrado uma genuína histeria hipnóide; tudo o que eu tratava se transior- dade aos princípios de causalidade professados pela escola de Helm-
mava numa histeria de defesa (. .) Pude demonstrar que o assim chamado
estado hipnóide devia sua separação ao fato de que um grupo psíquico origi- holtz; a suspeita de que os devaneios dos pacientes denotavam sua
nara-se, primeiro, através da defesa. resistência, a qual, embora retardasse a emergência da recordação
desejada, acabava sempre por aludir a ela; e a recordação incons-
O mesmo vale para as histerias de retenção: ciente de um ensaio de Ludwig Bôrme, escritor a quem Freud muito
apreciara em sua adolescência, e que identificava na livre-associa-
presumo, pois, com toda a cautela apropriada à ignorância, que também na ção um método ideal para a criação literária. Destes quatro motivos,
base da histeria de retenção podemos encontrar um fragmento de defesa, que interessam-nos aqui o segundo e o terceiro. Se na mente nada ocorre
lançou todo o processo rumo à histeria. Esperemos que novas experiências por acaso, e se o material reprimido se encontra disposto segundo
decidam logo se estou incorrendo no perigo da unilateralidade e do crro, em uma ordem coerente, a associação só é livre na aparência. Em
minha tendência a ampliar o conceito de defesa para a totalidade da histeria34.
1909, perante seu público americano, Freud dirá que “adotamos
a hipótese de que nada pode ocorrer ao paciente que não se relacione,
33. The Psychotherapy of Hysteria, S.E., II, p. 284. ainda que de forma indireta, com o complexo de idéias e afeios
34. The Psycotherapy of Hysteria, S.E., II, p. 286. Laplanche e Pontalis
obscrvam que o termo “histeria de defesa” desaparece depois do livro conjunto
de Freud e Breuer: “Uma vez asseguradoeste resultado — ver na defesa o proces
so fundamental da histeria, estender às demais neuroses o modelo do conflito 35. O.P., Manuscrito M, p. 3570.
defensivo — o termo “histeria de defesa" perde evidentemente sua razão de ser.” 36. ERNEST JONES, La Vie et "Oeuvre de Sigmund Freud, Paris,
(Vocabulaire, ed. cit., artigo “Hysiérie de Défense”, p. 181). PUF, 1970, tomo I, pp. 270-272. :
24 FREUD: À TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA E ERRO 25
que estamos procurando”?”. As associações do paciente devem ser semo-nos demonstrar que o conceito de defesa só pode ser produzido
tratadas como se fossem sintomas, isto é, elementos originados de uma
através de uma ampla reformulação das teorias iniciais e dos procedi-
transação entre as forças repressoras e o material reprimido. Mas,
mentos técnicos de quê Freud se servia antes de 1895. Tanto estes
como sintomas, devem mostrar certa similaridade com o material
como aquelas lhe foram legados por seus antecessores, Breuer e
reprimido, de forma que é possível, a partir da natureza das associa-
Charcot. De Charcot procedia a vinculação da histeria com a hip-
ções, descobrir o objeto oculto da busca analítica. A associação é,
nose; de Breuer, o método catártico e a teoria dos estados hipnóides.
portanto, uma “alusão” ao reprimido, uma maneira de mencioná-lo
Contudo, Freud possuía uma experiência clínica que faltava a Breuer,
sem dizê-lo diretamente.
e um interesse pela psicologia que faltava a Charcot. Foram estes dois
elementos que lhe permitiriam ultrapassar seus predecessores — na
Em segundo lugar, a estratificação do material reprimido oferece
medida em que podemos considerá-los como tais — e avançar num
a Freud uma prova cabal de que nada há no histérico de anormal
rumo inteiramente novo, que se encontra nas raízes da Psicanálise,
ou degenerado. O alvo visado aqui é Janet, com sua teoria de que a
E foi sem dúvida a prática clínica que lhe forneceu o ponto de partida
histeria se deve a uma incapacidade congênita de síntese psíquica,
para as investigações que iriam conduzir ao nascimento desta discipli-
e indiretamente Charcot, que, como vimos, atribuía a predisposição
na, voltando-se inicialmente contra Charcot e em seguida contra
para a histeria a uma deterioração hereditária do cérebro. Escreve
Breuer.
Freud:
O primeiro combate foi relativamente fácil. Charcot não dispu-
a experiência mostra o contrário: no momento em que os motivos ocultos
são revelados e levados em conta, nada resta no fluxo mental do histérico
nha de uma teoria capaz de explicar os sucessos do método hipnó-
que seja enigmático ou anômalo38, tico; a constatação de que os sintomas podiam ser induzidos ou remo-
vidos mediante a hipnose significava simplesmente que eles eram
A teoria do conflito defensivo, com efeito, explica à aparente “ideogênicos”, isto é, provocados por idéias. Esta constatação exigia
incoerência do discurso histérico mediante o conceito de resistência, uma teoria psicológica, pela qual o mestre francês não manifestava
e proporciona uma teoria bastante completa para a ocorrência deste maior interesse, Daí sua redução dos traumas ao papel de agenis
fenômeno, com o conceito de repressão. Freud ainda não elucidara provocateurs e sua ênfase na predisposição constitucional. Nesta
este último, e na verdade ainda tinha um longo caminho a percorrer; linha, a explicação psicológica proposta por Janet — a tendência
mas o aspecto clínico do problema estava posto de forma bem mais congênita à incapacidade de síntese psíquica — não passava de uma
convincente do que se poderia depreender quer da teoria de Janet, explicação ad hoc, justapondo sem maiores delongas o fator congê-
quer da hipótese de Breuer. Esta, aliás, é descartada de forma cabal nito (de origem orgânica, de onde sua insistência na degenerescência
nas Conferências de 1909: “a idéia de Breuer sobre os estados hip- do cérebro do histérico) e o fator psicológico. Pelo menos assim o
nóides mostrou-se supérflua e nociva a uma investigação posterior, entendeu Freud, nas frequentes polêmicas que o vimos entreter
e foi eliminada das concepções atuais da psicanálise”, Supérílua: com as teses da escola de Paris. Em primeiro lugar, desde a Comu-
a noção de defesa a substitui e a explica. Nociva: encobrindo o confli- nicação Preliminar o trauma recebe um valor etiológico decisivo,
to defensivo, impedia a percepção da resistência e com ela da etio- e uma teoria para explicar este valor; em segundo, a clínica demons-
logia sexual das neuroses, além de fundamentar apenas uma terapia trava precisamente o oposto do que seria de se esperar, caso a hipó-
“sintomal”, incapaz de curar a histeria de forma radical. Não que tese psicológica de Janet fosse fundada: não só o histérico dispunha
Freud considerasse possível esta cura com seu próprio método, de faculdades psíquicas perfeitamente normais, como o material
ainda envolto em tantas obscuridades teóricas; mas 20 menos este patogênico, após correta interpretação por parte do terapeuta,
permitia, atingindo o que supunha ser a raiz da doença, compreen- apresentava-se provido de uma organização rica e complexa. O único
dê-la melhor e esperar melhorias mais significativas na condição fato que Freud retém da psicologia proposta por Janet é o da “disso-
do paciente. ciação psíquica”, mas desde a primeira versão da teoria ele recebe
uma explicação diferente da que lhe outorgava o investigador de Paris.
Podemos, assim, sintetizar o percurso realizado até aqui. Propu-
Com Breuer, as coisas se apresentavam de forma diferente. Os
fulcros da explicação da Comunicação Preliminar são a noção de
37. Five Lectures on Psychoanalysis, S.E., XI, p. 31-32. (Terceira estados hipnóides e seu concomitante, o conceito de ab-reação.
Conferência). , Tecnicamente, o método catártico apresentava uma vantagem sobre
38. The Psychotherapy of Hysteria, S.E., II; p. 294.
o hipnótico, que consistia em dar a palavra ao paciente e desta forma
. 39. Five Lectures on Psychoanalysis, S.E., XI, p. 20 (Primeira Con recuar até a origem dos traumas que o haviam conduzido à histeria.
-
ferência). : o
Do ponto de vista teórico, lançava-se mão de um postulado — o de que
CRIEid
26 EREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA E ERRO 27
toda idéia comporta uma representação e umafeto — bem mais plau- do método co m in di ví du os pe rf ei ta me nt e hi pn ot iz ad os .
sível do que a especulação sobre a incapacidade de sintetizar os con-
teúdos psíquicos de forma satisfatória"?. O postulado conduzia Freud come ço u po r ab an do na r a hi pn os e e a cat ars e, in tr od u-
a um teorema, o dos estados hipnóides, cujas premissas consistiam a da co nc en tr aç ão *! . A pe rc ep çã o da s res ist ênc ias ,
zindo a técnic
no caráter ideogênico do sintoma e na possibilidade de sua remo- pe lo es ta do no rm al de co ns ci ên ci a em qu e se co nd u-
tornada possível
ção por uma técnica psicológica, e cujos corolários podemos seguir o a sus pei tar de ex is tê nc ia da def esa . Es ta
zia o tratamento, levou-
no desenvolvimento do método catártico. Se os traumas são desco- en te ide nti fic ada co m um ato vo lu nt ár io do in di ví du o,
foi inicialm
nhecidos pela consciência normal do paciente, só podem ter sido co m a in tr od uç ão da co ns ci ên ci a de sp er ta no cu rs o
o que condiz
adquiridos numa condição que impedisse quer sua ab-reação, quer sua ei to de de fe sa ma nt in ha os el em en to s ex pl ic ad os
da terapia. O conc
inclusão no complexo de associações conscientes. A hipnose, alargan- pela teoria de Br eu er — a im po rt ân ci a do fat or tr au má ti co e o car áte r
do o campo da consciência, tornava possíveis ambas as coisas, desde secund ár io da di ss oc ia çã o ps íq ui ca — ma s ev it av a Os es co lh os de
que se deixasse o paciente falar: o caráter patogênico do trauma ou contradição e da cir cul ari dad e em qu e aq ue la inc orr ia. A ca us a da
da série de traumas era eliminado pela ab-reação verbal, permitindo defesa foi encont ra da na in co mp at ib il id ad e da idé ia pe no sa co m o
a inclusão da idéia correspondente no psiquismo normal, onde seria testo do eg o, o qu e, lo ng e de inc orr er no er ro da cir cul ari dad e, abr ia O
associada a outras ou esquecida. campo pa ra a qu es tã o de po r qu e tai s idé ias se ri am pe no sa s. À re sp os ta
A crítica de Freud incide precisamente sobre o teorema dos de Freud con sis tia em af ir ma r o car áte r se xu al da s re pr es en ta çõ es
estados hipnóides. Dois pontos essenciais pareciam-lhe falhos: a excluídas, o qu e no va me nt e abr ia um ca mp o fe cu nd o: po r qu e a
origem destes estados e a vazão pela qual as idéias neles se xu al id ad e ser ia viv ida co mo um to rm en to ? Da de fe sa à eti olo gia
surgidas tinham necessariamente que ser excluídas da consciência sexual , po rt an to , o pe rc ut so é im pe cá ve l, ao co nt rá ri o do qu e ver ifi -
desperta. A explicação de Breuer para o primeiro ponto — a camos ser o ca so co m o te or em a do se st ad os hi pn ói de s. Mu it o nat ura l-
exaustão psíquica do indivíduo — não era satisfatória, já que outras mente, Freud dedicou-se em seguida à questão sexual, embora, como
pessoas podiam passar pelas mesmas experiências sem se tornarem veremos na próxima seção, sua primeira hipótese estivesse equivocada
histéricas. Na verdade, tal explicação desembocava na reintrodução (trata-se da teoria da sedução).
do fator predispositivo, único capaz de dar conta do problema.
Ora, era precisamente a desvalorização deste fator que a teoria se Mas a noção de defesa tinha outra implicação, muito mais
propunha a fundamentar. O segundo ponto conduzia a uma expli- import ant e: per mit ia clas sifi car as neu ros es seg und o as mod ali dad es
cação circular: as representações adquiridas no estado hipnóide sériam defensivas, superando a excessiva amplitude da teoria dos “afetos
privadas de ulterior absorção associativa devido às peculiaridades estrangulados”. Com efeito, na histeria a defesa conduzia à conversão
deste estado, o qual por sua vez tinha que ser introduzido para dar do afe to, nas neu ros es com pul siv as ao seu des loc ame nto , e na con -
conta da impossibilidade daquelas representações serem associadas às fusão alucionatória à repressão tanto do afeto quanto da idéia. Esta
demais. O mesmo valia para o estrangulamento dos afetos: sua reten- classificação vai ser bastante alterada no curso dos anos seguintes,
ção dependia da condição hipnóide, que por sua vez se caracterizava mas o essencial será mantido. Novamente vemos abrir-se um ouiro
por impedir a ab-reação dosafetos. Por fim, a identificação da eficácia campo: a que stã o da “es col ha de neu ros e” que , evi den tem ent e,
do método catártico com a reprodução dirigida dos estados hipnóides
era desmentida pelos fatos clínicos aduzidos por Freud: a impossibili-
dade de hipnotizar certos histéricos e, conversamente, o fracasso Est a mod ifi caç ão não se res umi a, por ém, nu ma alt era ção téc nic a.
41.
ava em tra nsf orm ar a ter api a nu m diá log o, aba ndo nan do o médico a
implic
tár ia do sem ide us oni sci ent e. Fre ud se con fes sav a ign ora nte c,
postura aut ori
to res idi a sua for ça. Por out ro lad o, as “id éia s” pat ogê nic as,
socraticamente, nis
40. O conceito em questão — considerar a idéia como associação de um as na ses são ana lít ica , tra nsp unh am o pas sad o par a O
ao serem rememorad
componente representativo e em elemento afetivo — recorda a noção espinosiana o que con ver tia O tra tam ent o nu m pro ces so de aut oco nsc ien tização.
presente,
de idéia. Segundo Richard Wollheim (As Idéias de Freud, S. Paulo, Cultrix da lin gua gem gan hav a ass im a dim ens ão de fat or pre pom -
O registro simbólico
1974), Freud a teria aprendido de Franz Brentano, a cujos cursos assistiu na a cur a, o que não ces sar á de pre ocu par os pos iti vis tas , que esp eram
derante par a
Universidade de Viena. O fundamental, porém, não é a origem da noção, mas lug ar da fer ida sim ból ica um a les ão org âni ca. A psi can áli se, no
encontrar no
seu papel decisivo para a constituição de uma psicologia dinâmica. Ao consi- da, est abe lec e um val or éti co irr edu tív el: a sin cer ida de
gesto mesmo que à Jun
derar complementares os registros intelectual e emocional, Freud mune-se ar do dis cur so do pac ien te, a dis cri ção e a sus pen são do juízo moral
como pil
do instrumento capaz de, mediante a intervenção da repressão, dar conta do diç ões da esc uta do ana lis ta. Est a esc uta , à caç a das resistências,
como con
surgimento do inconsciente e do conflito defensivo, sem necessitar de qualquer pei ta: a sob red ete rmi naç ão, só tem ati zad a na Int erp rei açã o
é um exercício de sus
elaboração especulativa para explicar o laço que unc à representação e o afeto;
hos , apa rec e aqu i imp lic ita men te co mo fun dad ora da lóg ica da loucura,
dos Son
eles já estão vinculados ex hypothese. O problema não é, portanto, o seu liame, nte , à int erp ret açã o se eri ge co mo mét odo ins upe ráv el para detectar
e, inversame
mas a sua separação. Esta exige a intervenção de uma força que opere neste sob a lin gua gem . Mas est es são tem as cuj as rep erc uss ões só
o desejo oculto
sentido: eis aí o ponto de partida para pensar a repressão. . ceptuais.
poderão ser notadas posteriormente, em outras constelações con
28 EREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA E ERRO 29
só pode ser posta no contexto das modalidades da defesa, e jamais sistema de neurônios, procura dar conta tanto dos processos psíquicos
com base no estrangulamento do afeto, hipótese'em que modali- normais quanto dos patológicos, entre os quais Freud inclui as neuro-
dades de realização diferentes não têm qualquer sentido. ses. Ela é encarregada, portanto, de fundamentar a teoria da sedução,
a partir do que poderíamos denominar uma psicologia do normal: o
“OQ caráter voluntário que Freud atribui ao movimento da defesa valor etiológico da sedução tem que ser explicado pela mecânica dos
— embora posteriormente este ponto de vista fosse abandonado — neurônios e pelos eventuais distúrbios na distribuição de energia
explica também, no plano da teoria, o motivo da eficácia do procedi- no interior do sistema nervoso. Freud procurou realizar esta tarefa,
mento de Breuer: ao colocar sob hipnose o paciente, sua vontade explicitamente, na Parte I! do Projeto, em que a repressão é conside-
se encontra paralisada, e as defesas superficiais podem ser transpostas rada como uma forma patológica de defesa. Por outro lado, as desco-
sem maiores dificuldades. Contudo, as limitações do método catár- bertas clínicas e as próprias contradições internas da hipótese quanti-
tico são igualmente explicadas de maneira satisfatória: a hipnose tativa conduziram-no a abandonar este esquema de explicação;
reencontra as defesas fundanientais e é incapaz de dissolvê-las, já que embora as primeiras tenham valor decisivo aos olhos de Freud, é
encobre as resistências de;as derivadas, sendo a interpretação a única provável que as segundas também tenham desempenhado um papel
forma de desvendar e desfazer os movimentos defensivos iniciais. importante neste ponto. A descoberta da sexualidade infantil exigia,
naturalmente, o abandono de qualquer tentativa de fundamentar
A introdução do conceito de defesa, assim, marca o início da os processos psíquicos na fisiologia do cérebro, contudo, veremos
teoria psicanalítica. Ele não nasceu simplesmente da prática clínica; que Freud, ainda que renunciando a um paralelismo simplista, jamais
foi produzido mediante uma reflexão sistemática sobre os dados desta se desfez da esperança de que um dia a correlação entre a psicologia
prática, cujas etapas procuramos reconstituir, e uma crítica coerente e a realidade orgânica pudesse ser estabelecida.
dos defeitos lógicos da teoria dos estados “hipnóides”, que ele vem
substituir com grandes vantagens. A dissociação psíquica passa a ser Interroguemos, pois, os textos. Em maio de 1894, Freud envia
pensada em termos dinâmicos, como conseqiiência de um conflito a Fliess o Manuscrito D, intitulado Sobre a Etiologia e a Teoria
entre forças psíquicas. Sendo o objetivo visado pela defesa invariavel- das Grandes Neuroses; um dos parágrafos deste manuscrito assinala
mente a sexualidade, toma-se preciso investigar de perto o funciona- os “Pontos de Contato com a Teoria da Constância”. São eles:
mento da vida sexual, o problema da determinação das magnitudes
das forças em presença conduz Freud à elaboração do Projeto e Incremento interno e externo da estimulação; excitação constante
posteriormente à introdução do “ponto de vista econômico”. Abrem- e efêmera — Somação como caracteristica da excitação interna. — Reação Espe-
-se assim as duas frentes em que seu pensamento vai-se desenvolver cífica. - Formulação e Exposição da Teoria da Constância. — Intercalação do
ego, com a acumulação da excitação.
no curso dos anos seguintes, percurso que seguiremos agora através
dos textos publicados entre os Estudos sobre a Histeria (1895) e a
Quatro linhas mais abaixo encontramos o
Interpretação dos Sonhos (1900), bem como através da correspon-
dência com Fliess, que atingiu o auge de sua intensidade precisa-
Mecanismo das Neuroses: As neuroses como transtornos do equilíbrio
mente durante este período.
provocados por crescentes dificuldades de descarga. — Tentativas de compen-
sação, de eficácia limitada. - Mecanismo das diferentes neuroses em relação
com sua etiologia sexual. — Afetos e neuroses*2.
o
TENTATIVA E ERRO 31
30 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS
a uma concepção que poderiamos formular assim: “(perturbações Cabe perguntar por que. Em primeiro lugar, pensamos na polê-
do) mecanismo (do sistema nervoso, que resultam na produção) mica contra Janet, em que Freud sustenta serem os histéricos pessoas
das neuroses”. Ora, aqui se encontra implícita uma idéia do sistema normais até o momento da eclosão da doença, descartando a hipótese
nervoso como algo semelhante a um aparelho, no interior do qual de degeneração constitucional. É evidente que, se a histeria é uma
a energia circula de uma forma “normal” até que se produzam desar- perturbação psíquica adquirida — e demonstrar isto é o objetivo da
tanjos. Estes, comparáveis a curto-circuitos, desencadeiam reações teoria da defesa —, torna-se necessário compreender por que um
processo psíquico até então normal assume características pato-
antifuncionais, o que. expresso em termos biológicos, equivale a dizer
reações patológicas.
lógicas. Em segundo lugar, a fórmula da Comunicação Preliminer,
A tentativa de explicar os processos psíquicos através da fisio- segundo a qual os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.
logia do sistema nervoso estava, por assim dizer, na ordem do dia”. é retida no Projeto, embora a explicação para a intensidade anormal
Mas pensamos que Freud tinha suas próprias razões para aventirar-se destas reminiscências oferecida naquele texto (a impossibilidade
pelo campo da psicologia, « que entre estas razões avultava a questão de ab-reação devido aos estados hipnóides) já não seja satisfatória.
de encontrar uma base psicofisiológica para a sua teoria das neuroses, Se as reminiscências são demasiado intensas, é preciso investigar a
centrada sobre a hipótese da sedução. isto é confirmado pela mancira natureza da “intensidade” psíquica e descobrir de que forma elas
como ele introduz a concepção quantiiativa, considerada o “Primeiro assumiram tal característica. As duas “ambições” podem ser resu-
Teorema Principal” do Projeto: midas numa única questão: Por que os nistéricos sofrem de reminis-
cências? A memória é uma função psíquica normal; trata-se de desco-
Esta (concepção quantitativa) é derivada diretamente da observação brir em que ela consiste e através de que processos ela se Lransíorma.
clínico-patológica, especialmente no caso de idéias excessivamente intensas — É por esta razão, parece-nos, que a primeira questão de Freud
na histeria e nas obsessões, nas quais a característica quantitativa emerge mais no Projeto se refere à memória. Suas hipóteses iniciais sobre o sistema
claramente que nos casos normais. Processos como o estímulo, a substituição, nervoso são bem conhecidas: ele se compõe de células especiais,
a conversão c a descarga (...) sugeriram diretamente a concepção da excitação
neuronal como uma quantidade em estado de fluxo. Parece legítimo gencralizar
os neurônios, através das quais circula uma quantidade Q de encrgia**,
o que foi reconhecido nestas perturbações? Os neurônios pelos quais passa esta energia procuram livrar-se dela
mediante uma descarga, finalmente operada pelo aparelho motor.
A expressão “diretamente” ocorre duas vezes nesta passagem. A É o modelo do arco reflexo simples que conduz Freud ao Princípio
noção de que toda idéia consiste numa representação e numa quota de de Inércia Neurônica, segundo o qual os neurônios tendem a desin-
afeto aparece desde a Comunicação Preliminar; mas já vimos como vestir-se de Q, sendo esta descarga a função primária do sistema.
Freud produziu o conceito de defesa para explicar a dissociação destes Contudo, como as excitações provêm tanto do mundo exterior
componentes e a origem das neuroses. Trata-se agora de encontrar quanto do corpo do indivíduo, e como frente a estas últimas a reação
o modelo normal deste processo e explicâ-lo em função de diferentes de fuga do estímulo é impossível, o sistema nervoso tem que apren-
distribuições da excitação nervosa. Na carta 24 a Fliess, de 25.5.1895, der a suportar uma certa carga de Q, suficiente para provocar à ação
Freud declara que especifica capaz de, mediante uma modificação do meio externo,
pôr fim à excitação endógena. A manutenção deste investimento
duas ambições me dominam: primeiro, averiguar qual será a teoria do de Q no nivel mais baixo possível, e ao mesmo tempo suficiente
funcionamento psíquico se se introduzir o ponto de vista quantitativo, uma para realizar a ação específica, constitui a função secundária do siste-
espécie de economia da energia nervosa, segundo, extrair da psicopatologia ma nervoso, que segundo Freud é uma decorrência da necessidade
tudo o que puder ser útil para a psicologia da normalidade. Com cteito,
da sobrevivência do organismo. Vemos aqui o primeiro afloramento
seria impossível alcançar uma compreensão global c satisfatória dos transtornos
neuropsicóticos, se não se pudesse fundá-la sobre claras hipóteses acerca dos do registro biológico, já que a função secundária é imprescindível
processos psíquicos normais*S, para a atividade vital do indivíduo. Contudo, isto é imediatamente
traduzido em termos mecânicos: como a função secundária implica
que ao menos um certo volume de Q seja retido, é preciso que entre
os neurônios existam resistências que se oponham à descarga ime- duplo registro, mecânico e biológico, em que o Projeto se articula.
diata; Freud as denomina “barreiras de contato”. Conseqientemente, Conclui Freud:
ele postula duas classes de neurônios: os neurônios à, totalmente
permeáveis à excitação, e os neurônios y, que dificultam a passagem é do interior do sistema que surge o impulso que mantém toda a atividade
de Q: Ao transitar entre um neurônio e outro, Q abre caminho por psíquica. Conhecemos esta força comoa vontade — o derivado das pulsões*º.
entre estas barreiras, marcando seu percurso por “facilitações” nas
barreiras de contato. “A memória é representada pelas diferenças Toda esta elaborada construção teórica visa acomodar no
de facilitações entre os neurônios y”'*?. Esta facilitação é função sistema nervoso as três funções psíquicas que Freud considera essen-
da intensidade de Q que atravessa o neurônio e do número de repeti- ciais: a percepção, a memória e a consciência. Elas são correlativas
ções deste processo. É importante que o “fator operativo” seja Q e aos três sistemas neurônicos estabelecidos; o sistema à é encarregado
não a natureza dos neurônios, pois o histólogo Freud sabe perfeita- de receber a excitação e fracioná-la: uma parte vai para os órgãos
mente que as células são idênticas tanto no sistema y como nosiste- motores, outra segue para y. Este sistema é subdividido em neu-
ma à. rônios “corticais”, em contato com y, onde se forma a imagem
Para dar conta da consciência, que trabalha com qualidades perceptiva, e neurônios “nucleares”, que recebem Q do interior
psíquicas e não com quantidades de energia, é introduzido o sistema do organismo. Assim, a rigor, a percepção é função conjunta do
«. Este grupo de neurônios apresenta total permeabilidade, o que é sistema q e dos neurônios corticais. Mas o sistema y é o mais impor-
exigido pela natureza transitória da consciência, mas se distingue tante, já que através dele fluem as quantidades, tanto exógenas quanto
dos neurônios do sistema & por trasmitir apenas a “peridiocidade” endógenas, que irão investir «w e transformar-se em qualidades da série
do movimento neuronal, e não as intensidades de Q. A importância prazer-desprazer. É à estimulação endógena que Freud atribui maior
da consciência é dada pelo fato de nela se manifestarem as sensações importância; recordemos que, segundo nossa hipótese de trabalho,
qualitativas do prazer e do desprazer. A passagem merece ser citada a construção mecânica visa dar conta do funcionamento tanto normal
por inteiro, já que é a primeira formulação do Princípio do Prazer: quanto patológico da mente, para poder explicar os dados clínicos
e a teoria da defesa. Esta exige a repulsa de umarepresentação penosa;
Como conhecemos uma tendência na vida psíquica a evitar o desprazer, consequentemente, o passo seguinte do Projeto vai elaborar os concei-
somos tentados a identificar esta tendência com a tendência primária à inércia. tos de “experiência de satisfação” e de “experiência de dor”, que,
Neste caso, o “desprazer” teria que ser considerado como coincidindo com uma através do percurso que analisaremos a seguir, vão desembocar nos de
elevação do nível de Q ou com um aumento na pressão quantitativa: seria a
sensação () quando há um aumento de Q em “desejo” e “defesa”.
Y. O prazer seria a sensação
de descarga (...) Desta maneira, os processos quantitativos em também
alcançariam a consciência, uma vez mais como qualidades?8. A experiência de satisfação é descrita da seguinte maneira:
quando Q preenche os neurônios nucleares de: y, ocorre um aumento
A energia do sistema «w provém de y e não de q, porqueeste, de tensão que é sentido como desprazer. Mediante a ação específica
sendo o sistema mais próximo da percepção, recebe apenas quanti- adequada, produz-se uma modificação no mundo exterior, que conduz
dades, que são transmitidas para y, de onde a periodicidade da energia à descarga e ao prazer: por exemplo, a criança sente fome, chora,
passa para O sistema «, como “qualidades” sensoriais, já que as per- a mãe lhe traz alimento e a fome é aplacada, A percepção da figura
cepções iniciais estão quase desprovidas de quantidade. Todo este da mãe ou do seio equivale a um investimento dos neurônios corti-
esquema será modificado na carta 37, quando Freud inserir o sistema cais correspondentes; quando estes são informados da descarga da
w entre y e 4. Contudo, o que nos interessa neste momento é mostrar tensão, estabelece-se uma facilitação entre estes neurônios corticais
que a consciência é antes de mais nada consciência das alterações e os neurônios nucleares, cujo investimento por Q deu origem ao
internas do indivíduo, representadas pelo acúmulo de tensão no processo. Freud diz que se estabelece uma tendência a reproduzir
sistema y, único a estar em contato direto com os órgãos do corpo.
O modelo de que se serve Freud aqui é o da necessidade biológica,
em especial a fome, que, como todo estímulo endógeno, só se torna 49. Project, S.E., 1, p. 317. O termo “vontade” não torna a ser utili-
zado por Freud depois do Projeto, embora tivesse desempenhado um papel
acessível à consciência após transpor um certo limiar de intensidade. relativamente importante nos textos iniciais sobre a defesa. A razão disto é
Em outras palavras, é preciso uma somação de excitações para varar simples: “vontade” é um conceito vinculado à consciência, e tanto a teoria
as barreiras de contato do sistema y. Eis aqui mais um exemplo do da defesa quanto o jogo de investimentos de que se trata aqui são inconscientes,
no sentido descritivo do termo. Por esta razão, não vemos maior interesse em
discutir a estranha definição oferecida aqui. Tanto é verdadeiro que a vontade
4
não tem qualquer importância para o pensamento freudiano, que não figura
00
47. Project, S.E., 1, p. 300. entre as funções psíquicas essenciais mencionadas no parágrafo seguinte,
48. Project, S.E., 1, p. 312. isto é, a percepção, a memória e a consciência.
34 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA E ERRO 35
este percurso quando o estado de tensão voltar a aparecer, de sorte percepção do objeto hostil, um aparelho que tende a descarregar
que energia iria investir uma imagem mnêmica que envolve o aumento
de tensão? Além disto, a percepção do objeto hostil não precisa
a imagem mnêmica do objeto (que satisfez a necessidade anteriormente) será conduzir à sua recordação; no caso da experiência de satisfação,
a primeira a ser afetada pela ativação do desejo. Não tenho dúvidas de que, é precisamente a ausência da percepção que conduz ao investimento
em primeiro lugar, esta ativação produzirá a mesma coisa que chamamos uma
percepção, isto é, uma “alucinação”. Se a ação reflexa for introduzida a seguir, alucinatório. O reconhecimento do objeto como hostil exige a
será impossível evitar um desapontamento*9. presença de um juízo, o que é inconcebível neste ponto Ga argu-
mentação, em que a instância judicante — o ego — ainda não apareceu.
É deste fato — que em seguida será chamado de “processo O próprio Freud se sentiu embaraçado ao ter que recorrer à hipótese
primário” — que se segue a necessidade da indicação de realidade, dos neurônios-chave, que, ao contrário de todos os outros, não
para distinguir a percepção real da alucinação. Antes de discutir tendem a descarregar energia, mas a gerá-la. É verdade que esta Q é
este ponto, porém, seguiremos o raciocínio de Freud e descreveremos transmitida ao sistema y, mas a hipótese envolve supor uma exci-
a “experiência de dor”. tação endógena de origem neuronal, enquanto até aqui tal excitação
provinha apenas do “interior do corpo”, quer dizer, dos órgãos
A dor é nitidamente diferenciada do desprazer. Ela surge como exteriores ao sistema nervoso. O único exemplo aduzido como apoio
consegiência do excesso de Q transmitido ao sistema y pelo sistema a esta suposição claramente ilegítima é o caso da liberação do afeto
&, quando este se defronta com vma estimulação excessiva provinda sexual. Tudo parece indicar que aqui Freud tinha em mente sua teoria
do exterior. O desprazer acompanha a “qualidade peculiar” da dor, da sedução, que, como veremos mais adiante, exige que a recordação
sobre a qual nada mais se diz. Para Freud, é mais importante o des- da experiência sexual esteja dotada de um investimento superior
prazer que se origina quando a recordação do objeto que provocou ao que acompanhou a própria experiência. Seja como for, a conclusão
a dor é reinvestida, por exemplo, numa nova percepção. Neste caso, que Freud extrai destas análises da experiência de satisfação e da
surge um estado que não é a dor, mas se assemelhaa ela, por incluir experiência de dor é que ambas deixam um resíduo: a primeira resulta
o desprazer e a inclinação à descarga que acompanha a experiência num estado de desejo, que se vincula à atração para O objeto graii-
desta. Mas como o desprazer equivale a um aumento do nível de Q, ficador; a segunda conduz a uma repulsa frente ao objeto hostil e a
surge um problema: de onde provém este Q adicional? Na experiên- uma falta de inclinação para manter investida sua imagem mnêmica.
cia de dor, tratava-se de uma irrupção originada do “exterior”; mas Esta tendência a abandonar a imagem mnêmica hostil é o que Freud
o investimento de uma recordação corresponde a qualquer outra denomina “defesa primária ou repressão. (...) A explicação para
percepção de imagem, e não pode ter como consequência um aumento este fenômeno deve estar no fato de que as experiências primárias
do nível de Q. de dor foram levadas à finalização por uma defesa reflexa” 2. O
sistema y aprendeu, biologicamente, que o surgimento de outro
Freud é obrigado então a supor que, devido ao investimento da objeto marcou a cessação da dor, e procura reproduzir este estado
recordação do objeto hostil, o desprazer é liberado do interior do de coisas quando a recordação hostil é investida.
corpo e retransmitido ao sistema W, mediante um complexo sistema
de neurônios secretores de Q, os quais, quando excitados, causam o Com a introdução da “atração para o objeto gratificador” e
surgimento, no corpo, de algo que opera como estímulo sobre os da “inclinação à repressão”, Freud dá um passo além na elaboração
condutos que levam a y. Estes neurônios, que ao invés de descarre- da teoria. Estes processos sugerem a presença de uma organização
garem Q a produzem, são denominados “neurônios-chave”. Ora, especial no interior do sistema y, capaz de interferir com a livre
como resultado da experiência de dor, “a imagem mnêmicça do objeto passagem de Q. A esta organização dá ele o nome de “ego”. Constan-
hostil adquiriu uma excelente facilitação para estes neurônios-chave, temente investido de Q, o ego corresponde ao lugar de armazena-
em virtude da qual o desprazer é agora liberado no afeto”'*!. mento da energia exigido pela função secundária do sistema nervoso,
Como se pode perceber, esta explicação não é em absoluto que é a manutenção de Q no nível mínimo necessário para desen-
convincente. Com efeito, é fácil conceber que no estado de tensão cadear as ações específicas. No Projeto, a principal função do ego é
provocado por. uma necessidade endógena o indivíduo invista a inibir o trânsito de Q para os neurônios corticais em que se alojam
recordação do óbjeto gratificador; mas por que, excetuada a nova as recordações dos objetos percebidos como hostis ou gratificadores;
em outras palavras, ele é encarregado de inibir o processo primário.
Esta tarefa é realizada pelo “investimento lateral”: como os neurô- frente às excitações emanadas do seu próprio organismo. Isto signi-
nios do ego estão permanentemente investidos, podem atrair para fica que a função elementar do psiquismo é servir ao corpo como um
si o fluxo de Q que se encaminhava para as imagens mnêmicas cuja meio de defesa contra seus inimigos, na esfera da vida, Esta é encarada
reprodução se trata de evitar. E neste ponto que a indicação de como o perigo constante, que deve ser neutralizado pelo indivíduo,
realidade fornecida pelo sistema « se torna imprescindível: a para permanecer vivo. O darwinismo de Hreud encontra aqui sua
excitação que atinge «w — o sistema de neurônios vinculado à cons- primeira expressão: quem não é apto para à luta pela existência é
ciência — é descarregada, e a informação desta descarga atinge O sis- vencido por ela. Daí a referência às “exigências da vida” no texto
tema y. Sendo a indicação de percepção superior em intensidade do Projeto: elas representam o preço a pagar pela dependência do ser
à indicação de investimento mnêmico, no caso de ocorrer apenas vivo frente a seus meios de subsistência, sempre exteriores a ele.
este a indicação de qualidade ou de realidade não se produzirá. Esta Incidentalmente, podemos observar que no Projeto a morte é implici-
hipótese é justificada por Freud com o argumento de que, tamente vista como um fracasso do ser na luta pela vida, o que sugere
o alcance da revolução introduzida pelo conceito de “pulsão de
se provier do exterior, a indicação de realidade será transmitida, qualquer que morte”, que estudaremos no Cap. 4. Os processos secundários são,
seja o investimento, enquanto se se originar de Y, tal só ocorrerá quando portanto, uma expressão da “astúcia da razão”, que poderíamos
houver grandes intensidades. É, portanto, a inibição pelo ego que torna possível ver como consubstancial à própria idéia freudiana do que seja a razão.
um critério para distinguir a percepção da memória*?. Contudo, os processos primários não desaparecem por causa do
adventô dos secundários: diariamente, eles retornam durante o sono,
A inibição pelo ego se refere evidentemente ao fluxo de Q
quando o ego afrouxa seu nível de investimento e portanto diminui
no interior do sistema nervoso, que impede o sistema y de ser inves-
a inibição que exerce na vigília sobre o livre fluxo de Q. O sonho,
tido com “grandes intensidades” de Q. Um processo semelhante
cuja primeira análise é apresentada aqui, fornece uma prova satisfató-
ocorre quando Q se dirige para uma recordação hostil: a inibição pelo
ria das hipóteses avançadas até o momento. Ora, os mecanismos
ego impede que ela venha a ser investida com energia, provocando
patológicos revelados pela análise das psiconeuroses são idênticos
liberação de desprazer. Esta mesma energia serve ao ego para reforçar
aos processos do sonho. Isto significa que funcionam segundo o
seus investimentos laterais, de sorte que, quanto maior for o
processo primário, e que portanto o ego fracassou no seu propósito
desprazer, maior será a defesa primária.
de inibilos. Quais são estes mecanismos psiconeuróticos? Para res-
ponder a esta questão, vamos voltar-nos agora para a teoria freudiana
Freud sintetiza seu raciocínio:
das neuroses, tal como ela se apresentava no momento da redação
do Projeto.
Portanto: se há a inibição por um ego investido, as indicações de descarga
se tornam em geral indicações de realidade, que o sistema y aprende, biologica-
mente, a utilizar. Se, quando surgir uma indicação de realidade deste gênero,
o ego estiver num estado de tensão e desejo, permitirá que a descarga ocorra
rumo à ação específica que satisfaz o desejo. Se um aumento de desprazer 6. A SEDUTORA HIPÓTESE DA SEDUÇÃO
coincidir com a indicação de realidade, então o ego instituirá, mediante um
investimento lateral de magnitude conveniente, uma defesa de intensidade
normal no ponto indicado. Se não ocorrer nem um caso nem outro, o inves- Esta teoria, exposta em várias cartas e manuscritos enviados a
timento prosseguirá desimpedido, segundo as circunstâncias da facilitação. Fliess, em especial o Manuscrito K, de 1.1.1896, recebe sua forma
Descrevemos investimentos de desejo suficientemente intensos para produzir acabada no artigo de 1896, Novas Observações sobre as Neuropsicoses
alucinações e gerar desprazer, que envolvem um dispêndio completo de energia de Defesa, e na conferência sobre a Etiologia da Histeria. Freud
para a defesa, como “processos psíquicos primários”. Em contrapartida,
aqueles processos que só podem ocorrer através de um investimento adequado
começa o artigo recordando três pontos já estabelecidos em publi-
do epo, e que representam uma moderação dos anteriores, são. descritos como cações anteriores: que o aspecto comum à histeria, às obsessões e a
“processos psíquicos secundários” 54. certos casos de confusão alucinatória aguda consiste no mecanismo
de defesa, pelo qual o ego procura reprimir uma idéia intolerável
A importância dos processos psíquicos secundários é sobretudo que lhe causa desprazer; que os sintomas da histeria só se tomam
biológica: sem eles, o indivíduo estaria constantemente às voltas com compreensíveis se forem reduzidos a experiências traumáticas; e que
alucinações e com liberações endógenas de desprazer, que termina- estes traumas psíquicos se referem à vida sexual. A novidade é a
riam por fazê-lo sucumbir frente aos perigos do mundo exterior e apresentação, com todas as letras, da teoria da sedução. A seção inti-
tulada “A Etiologia Específica da Histeria” contém, no primeiro
parágrafo,a seguinte afirmação:
53. Project, S.E., |, p. 326.
54. Project, S.E., I, p. 326. Para causar uma histeria, é preciso que a experiência que vai se tornar
E)
centado a 4. O processo patológico é o deslocamento, que já conhecemo pois no intervalo o advento da puberdade aumentou imensamente a capaci-
s do
sonho — portanto um processo primários8, dade de resposta do aparelho sexual. Através do retardamento da puberdade,
em contraste com a função psíquica, a vida sexual oferece a única possibilidade
Ora, o processo defensivo neste caso conduz a possível para esta inversão da eficácia relativa da experiência e da recordação.
um resultado Os traumas infantis agem subsequentemente como experiências recentes, mas
bastante diferente do da defesa normal, que pode
mos identificar então já se tornaram inconscientesso,
com a inibição pelo ego da recordação do objeto
hostil. O que dife-
tencia a repressão histérica da defesa comum é a
formação de uma Assim, a função sexual se caracteriza por seu advento tardio e
associação estável entre Be 4, que provoca a apariç
ão compulsiva pela intensidade, tanto somática quanto psíquica, das experiências
de 4 frente à percepção de algo que record
a B. A explicação mais a ela relacionadas. Este fato é o que, aos olhos de Freud, explica o
imediata, segundo a qual a defesa ampliada re
sultaria de um desprazer motivo da repressão abater-se precisamente sobre as representações
muito intenso vinculado a B, não dá cont
a do problema, pois os sexuais e não sobre as outras, contra as quais basta uma defesa normal.
remorsos, que são justamente as idéias associadas
a um desprazer Mas como explicar o terceiro problema que levantamos acima —
partic ularmente forte, não são substituíveis
por símbolos estáveis o envolvimento do ego num processo primário? Os outros dois rece-
do tipo 4/B. Além disto, a experiência clínica verifi
ca que sã beram uma solução satisfatória, em termos da teoria quantitativa:
riav elmentntee idéi
eias sexuaiis que sofrem a repressão, e na
da auSt
toor
riia
za o afeto sexual é mais intenso do que os outros porque é concomi-
a supor que os afetos sexuais sejam mais gerado
res de desprazer tante às decisivas modificações biológicas que ocorrem na puber-
º que os outros. Por fim, como compreender que o
ego esteja envol- dade, e a idéia sexual é objeto de uma defesa mais violenta precisa-
vido num processo primário, quand:: sua função
é precisamente inibir mente porque a intensidade do investimento nevrônico que a acom-
este processo e substituí-lo pelo secundário?
, panha é superior à dos investimentos com que o ego lida normal-
o Freud Procura responder a estas três mente. Contudo, esta diferença de intensidade não basta para explicar
questões recorrendo a uma por que a defesa fracassa, pois a substituição da idéia reprimida
única hipótese. É preciso que as idéias
da esfera sexual possuam por outra compulsiva não significa outra coisa. Se o processo defen-
determinantes psíquicos especiais, para
transtornar a este ponto sivo tivesse êxito completo, a idéia em questão simplesmente desa-
o funcionamento do sistema dos neurônios.
pareceria sem deixar rastros.
Para dar conta deste distúrbio, Freud recorre a uma explicação
Ora, há uma característica natural da sexualid
este propósito. (...) Uma recordação desp er
ade que nos serve para engenhosa. Da análise anterior resultaram duas conclusões: que a
ta um afeto que não despertou
enquanto experiência, po rque no intervalo ( entre a experiência liberação sexual reprimida estava ligada a uma recordação e não a
a mudança produzida pela puberdade to e a recordação)
n ou possível uma compreensão dife- uma experiência, e que esta liberação sexual ocorreu prematura-
rente daquilo que foi recordado. inva
riavelmente, chegamos à conclusão de mente. Ambas podem ser fundidas na concepção de que o processo
que so é reprimida uma recordação
que se tornou traumática em virtude de liberação de afetos se assemelha a um processo primário, já que nos
“ação diferida”. A causa deste estado de cois da
as é o retardamento da pu
se comparado com o restante do desenvolvimento do indiví dois o processo normal de pensamento é perturbado por uma corrente
duos?, Puberdade,
excessivamente intensa de Q. Freud se expressa assim;
Numa nota de rodapé aposta à discus
são da predisposição
para a histeria nas Novas Observações sobr A função do ego é não permitir qualquer liberação de afeto, já que isto
e as Psiconeuroses de possibilita ao mesmo tempo um processo primário. Seu melhor instrumento
Defesa, Freud aborda o mesmo problema, de
maneira mais completa para isto é o mecanismo da atenção. Se um investimento liberador de desprazer
» Taciocínio é o seguinte: as idéias de conte
údo sexual produzem conseguir evitar este mecanismo, o ego entrará em ação demasiado tarde. Ora,
enômenos de excitação nos órgãos geni
tais, análogos aos que acom- é precisamente o que ocorre no caso do proton pseudos histórico. A atenção
panham a experiência real, Normalmente, o efei está normalmente focalizada no sentido das percepções, que em geral oferecem
to desta experiência
ê muito mais intenso no momento da su mais ocasiões para a liberação do desprazer. Aqui, contudo, o que apareceu
a ocorrência do que no não foi uma percepção, mus uma recordação, que inesperadamente liberou
da sua recordação, Mas, se a experiência sexu
al tiver ocorrido na o desprazer; e o ego só descobriu isto tarde demais. Ele permitiu o processo
infância, não despertará uma excitação forte,
em virtude da imatuti- primário porque não o esperava. (...) O retardamento da puberdade possibilita
dade do sujeito; e se a tecordação ocorrer dura o aparecimento de processos primários póstumosê!.
nte a vida madura, ela
despertará uma excitação proporcionalmente supe
rior à da própria
experiência, e O manuscrito da Parte ii se interrompe precisarnenie nesta
frase, e boa parte da Parte III é dedicada ao estudo da atenção. É fácil
REAdad o 4
42 FREUD:A TRAMA DOS CONCEITOS TENTATIVA |; ERRO 43
perceber que neste ponto Freud precisava de uma explic sistema ner vos o ten de a evi tar o au me nt o do nív el de ten são em seu
ação mais
convincente do mecanismo da atenção, já que todo o ônus da
prova interior, ou, o que neste momento significa O mesmo, tende a manter
recai sobre ele. Mas não o seguiremos neste trajeto; é tempo de nos con sta nte a qua nti dad e de Q. O nív el de Q pod e sub ir de dua s man ei-
determosnas dificuldades que a hipótese proposta envolve. ras: ou uma excitação muito intensa provém do exterior e atravessa
o sis tem a & se m que est e con sig a blo que á-l a, ou um a exc ita ção end o-
O próprio Freud se deu conta delas. A carta 29 à F liess gena transmite Q ao sistema W, que então procura a descarga motora.
(8.10.1895) tem um tom lamentoso: A experiência biológica obriga ao surgimento, no interior de y, de
uma massa neuronal constantemente investida, O ego, capaz de evitar
as coisas ainda não concordam, c talvez nunca cheguem a con
cordar que o processo de descarga opere automaticamente, porque neste caso
C. 5) O que não se ajusta é a explicação da repressão, em cujo conhecime
clínico, por outro lado, fiz grandes progressoss2.
nto se seguirá um desprazer: para aplacar a excitação endógena, conce-
. bida constantemente sobre o modelo da fome do lactante, é preciso
uma ação específica (por exemplo, o choro), capaz de provocar
Esta mesma carta anuncia a teoria da sedução, embora em
termos um pouco diferentes dos do artigo de 1896: a hister uma alteração conveniente no mundo exterior (o aporte de alimento
ia está pela mãe). Para que este esquema teórico seja aceitável, é preciso
condicionada por uma experiência sexual acompanhada de re
pulsa explicar como a energia, originalmente em estado de livre fluxo —
e de susto, enquanto a neurose obsessiva está condicionada
pelo em virtude do “princípio de inércia neurônica” — chega a ser ligada
mesmo tipo de experiência, mas vivida com prazer. Como a Pa
do Projeto está datada de 5.10.1895, no momento em qu
rte HI no ego, o que envolve descobrir como se criam as barreiras que
e Freud impedem a porção de Q ligada no ego de se esvair pelos neurônios
enviava esta carta a Parte II já estava concluída, com
a explicação adjacentes. Aqui Freud recorre à biologia: só a ameaça de desprazer
para a repressão que acabamos de mencionar. Uma cart
a eufórica vinculada a uma descarga prematura pode originar estas barreiras,
de 20.10.1895 anuncia que
que devem ser imaginadas como interpondo-se entre O ego e o apare-
lho motor, por um lado, e entre o ego e as imagens mnêmicas,
de repente os véus caíram, as barreiras se | evantaram, e pu por outro. Pois o ego também aprendeu que, se investir as imagens
de penetrar,
num só golpe, desde as particularidades das neur. Oses até as
da consciência. Tudo parece encaixar- se no seu lugar; (..
próprias condições mnêmicas de objetos gratificadores além de um certo ponto, ocor-
.) tudo concordava rerá uma alucinação, ineficaz para aplacar o desprazer engendrado
e continua concordando ainda hoje!63
pela excitação endógena; e, se não inibir o fluxo de Q para as imagens
Mas, dez dias depois, a carta 33 declara que mnêmicas dos objetos hostis, ocorrerá a liberação do desprazer
associado a elas.
a teoria .do prazer-dor, aduzida por mim co m tanto entusi
asmo para a explica-
ção da histeria, bem como da neurose obsessiva, come Tudo o que denomino uma “aquisição biológica” do sistema nervoso
çou a inspirar-me certas
dúvidas. É evidente que aqueles são os elementos ess representado, em minha opinião, por uma “ameaça de desprazer”, cujo efeito
enciais, mas percebo que
ainda não atinei com a correta ordenação das peças neste consiste em que os neurônios que conduzem à liberação do desprazer não estão
quebra-cabeçõãos,
investidos. Esta é a defesa primária, uma consequência compreensível da
Pos quê? tendência original do sistema nervoso. O desprazer é o unico meio de educa-
çãoss,
direção; isto acarreta que o ego, para poder desencadear a ação espe- ção” para outro lugar, evidentemente significando outra imagem
cífica adequada, deve complementar o investimento daqueles neurô-
nios em que um investimento de percepção real já apareceu. Ora, mnémica. Poderíamos supor que o termo “atenção” estivesse aqui
a recordação é uma pré-condição necessária para toda verificação sendo empregado de maneira ampla, significando o engajamento
de realidade efetuada pelo pensamento, pois, antes de desencadear do ego no processo de investir a recordação adequada, segundo os
a ação específica, é preciso assegurar-se de que o objeto percebido critérios da indicação de realidade. Mas isto não soluciona o proble-
é ao menos parcialmente idêntico ao que motivou uma experiência de ma principal, que é o do mecanismo quantitativo da defesa: a recor-
satisfação. Mas, no percurso rumo à imagem mnêmica, o pensamento dação não pode ter, dentro da teoria do Projeto, a mesma intensi-
pode encontrar subitamente uma imagem associada ao desprazer. dade que a percepção, pela simples razão de que esta é invariavel-
As recordações que geram desprazer ainda não foram “domesticadas” mente acompanhada da indicação de realidade, enquanto o acesso
pelo ego, segundo a terminologia do Projeto. Tendo sido original- àquela está em parte bloqueado pela inibição do ego, quer se trate de
mente vinculado à percepção durante uma experiência de dor, o des- uma recordação de objeto gratificante (pura não desembocar na alu-
prazer associa-se ao traço mnêmico do objeto percebido àquela altura. cinação), quer de objeto hostil (para não desembocar no desprazer).
Mas, justamente por serem experiências de dor, isto é, produzidas A “facilitação anormalmente forte”, a que Hreud se vê constrangido
mediante o ingresso de quantidades intoleráveis de excitação, as a atribuir a geração de desprazer por uma recordação, remete à hipó-
imagens mnêmicas em questão foram investidas com Qs muito tese dos neurônios-chave, tão evidentemente construída ad hoc, que
intensas, adquirindo uma facilitação muito forte para a liberação ele não a menciona mais no resto do texto, nem, ao que saibamos,
do desprazer. É por esta razão que o ego leva muito tempo para no resto dos seus escritos.
“domesticá-las”, isto é, despojá-las de sua carga desproporcionalmente
grande de Q. Isto é feito através da ligação desta energia aos próprios Não importa por qual lado Freud retorça a teoria, a questão da
neurônios do ego. - experiência de dor não pode ser solucionada mecanicamente. É por
isto que se torna necessário recorrer cada vez mais ao registro bioló-
Estamos aqui frente à mesma dificuldade com que Freud gico, concebendo a defesa e a atenção como “regras biológicas” e,
se defrontou para explicar o resíduo da experiência de dor. Como sintomaticamente, jamais como regras mecânicas. Para dar conta
é possível que uma recordação possa liberar o desprazer associado da defesa patológica que se encontra na origem da histeria, a teoria
a uma percepção? Naquela altura, Freud se vira obrigado a introduzir remete ao fato biológico do retardamento da puberdade. Com efeito,
os neurônios-chave, capazes de gerar Q, ao invés de, como todos a tese de que os histéricos sofrem de reminiscências exige uma expli-
Os outros, procurar descarregá-la. Já então, a hipótese lhe parecera cação quantitativa para o fato de que estas reminiscências sejam
embaraçosa. Aqui, ele reconhece francamente a impossibilidade capazes de conservar sua força, apesar das sucessivas inibições do ego.
de dar uma explicação mecânica da defesa primária, embora procure Elas correspondem ao que Freud chama, no Projeto, de “recordações
no mecanismo da atenção o fator explicativo da inibição: não-domesticadas”. Se estas reminiscências forem vinculadas à teoria
da sedução, sem que a sexualidade infantil intervenha, é necessário
Como a defesa primária, isto é, o não-investimento devido a encontrar uma explicação para o fato de que uma percepção anódina
uma ameaça
de desprazer, deve ser representada mecanicamente, confes
so que não sei dizer. — a cena da sedução, ocorrida ex hypothese no período pré-sexual
€...) Mas parece que o processo de subjugar a recordação dei — dê lugar a uma recordação extremamente penosa, por ocasião de
xa um traço per-
manente na passagem do pensamento: há uma tendência a inibir est
assim que a recordação domesticada gera o seu traço de desprazer
a passagem sua revivescência no momento da puberdade. O problema é ainda
(...). Assim mais complicado que o da recordação vinculada a uma percepção efe-
surge a defesa-de-pensamento primária. que, no pensamento
prático, toma a
liberação de desprazer como um sinal para abandonar um caminh tivamente dolorosa, em que ele se resume a descobrir o motivo da
o particular
de investimento — isto é, para dirigir O investimento de atençã
o para “outro conservação do desprazer. Ora, se Freud não consegue resolver,
ugar” 66, no quadro da teoria mecânica, nem mesmo esta questão preliminar,
não poderá dispor de pista alguma para solucionar o problema, clini-
Este texto é redondamente contraditório. Em primeiro lugar camente muito mais grave, do acréscimo de desprazer a uma recor-
se a domesticação da recordação significa a retirada do seu investi- dação que durante dez ou doze anos parecera perfeitamente domes-
mento energético, uma recordação domada não pode “Berar um traço ticada.
de desprazer”. Em segundo lugar, se a atenção está focalizada para o
sistema perceptivo, o ego não pode dirigir o “investimento da aten- A hipótese dos neurônios-chave já extravasa do quadro mecã-
nico para o campo da fisiologia. Recordemos que o exemplo aduzido
para justificar esta aberração era precisamente a liberação do despra-
66. Project, S.E., 1, pp. 370 c 382.
zer na esfera sexual. As considerações biológicas intervêm de maneira
mais decisiva quando é introduzido o retardamento da puberdade
t!
46 EFREUD: À TRAMA DOS CONCEITOS
TENTATIVA E ERRO 41
como fator explicativo. Mas a tentativa de seguir esta via até o meca-
nismo da atenção — também biologicamente determinado, ainda que adiante que o Projeto deixou fundas marcas nopensamento freudiano,
embora os conceitos básicos nele expendidos jamais voltassem a ser
seja possível descrevê-lo em termos mecânicos, com o auxílio do con-
repetidos.
ceito de “indicação da realidade” — esbarra novamente na impossibili-
dade de resolver a questão da recordação. Freud considerava que, no
Freud supôs, por um momento, ter encontrado no retarda-
caso da reminiscência de ordem sexual, o ego tinha sido surpreendido
mento da puberdade a explicação teórica para a repressão. A carta
por uma descarga de desprazer vinculada a uma recordação, enquanto
46 a Fliess, de 30.05.1896, traça um elaborado esquema para loca-
a atenção estava focalizada na direção da percepção, da qual, como
vimos, provêm as indicações de realidade tanto dos objetos gratifica- lizar a repressão no curso da vida infantil, e para determinar o condi-
dores como dos objetos hostis. Ora, é precisamente esta questão que cionamento cronológico dos períodos em que ocorreu a cena de sedu-
ção. Assim, cabe distinguir vários períodos na vida: até os quatro
não pôdeser resolvida no quadro da teoria mecânica, já que se tornava
anos, dos quatro aosoito, dos dez aos treze e dos dezessete em diante.
impossível explicar o mistério da não-domesticação da recordação,
A repressão ocorre nos intervalos de oito a dez e de treze a dezessete.
mesmo que ela fosse sexual, E ainda que o fosse, “é completamente
impossível que os afetos sexuais penosos excedam tanto em intensi-
A evocação de uma recordação sexual de um período anterior em outro
dade todos os demais afetos desagradáveis”6?. Na Parte II do Projeto, posterior introduz no psiquismo um “excesso de sexualidade”, que exerce
é exatamente esta consideração que conduz Freud a buscar no retarda- efeito inibidor sobre o pensamento, c empresta à recordação e aos seus derivados
mento da puberdade a condição sine qua non para a formação da de- o caráter compulsivo que os torna inacessíveis à inibição. (...) O excesso de
fesa patológica. sexualidade, por si só, não chega a causar a repressão, sendo necessário para
isto a ajuda da “defesa”; mas esta, sozinha, não produzirá a neurose sem o
excesso de sexualidade*?,
Vemos, portanto, a contradição fundamental da hipótese quan-
titativa: a exigência de que a recordação patogênica conserve ou mes-
Esta passagem, altamente obscura, tem o mérito de procurar
mo aumente seu investimento de Q, quando todo O funcionamento do
explicar o caráter compulsivo das idéias histéricas, tema aflorado na
sistema nervoso tende ao objetivo oposto, conduz Freud simultanea-
Parte II do Projeto, e que ali não fora retomado em termos teóricos.
mente rumo à biologia e rumo à psicologia. De nada adianta, aliás,
A que, porém, atribuir o “excesso de sexualidade” introduzido no
argumentar que a recordação se torna patogênica porque escapa à
inibição do ego, já que este argumento não passa de uma petição de psiquismo pela evocação da recordação sexual a um período anterior?
princípio. A nota de rodapé das Novas Observações sobre as Neuro- E por que tal evocação seria capaz de produzir este efeito? É o mesmo
psicoses de Defesa que citamos anteriormente contém umafrase reve-
problema que Freud não conseguira resolver em termos mecânicos,
ladora: e que tampouco conseguirá em sua versão biológica. Um eco das
concepções quantitativas aparece na segunda parte do texto, em que
uma recordação desperta um afeto que não despertou quando experiên-
se declara que para produzir a repressão é necessária a “ajuda” pres-
cia, porque no intervalo a mudança dapuberdade tornou possível uma compre- tada pela defesa ao excesso de sexualidade, quer dizer, a somação
ensão diferente daquilo que foi recordado*8. das respectivas intensidades. Mas o mecanismo desta operação não
é descrito.
A expressão fundamental aqui é “compreensão diferente”. Ape-
sar de todo o esforço de Freud para representar mecanicamente os O primeiro período se caracteriza por não conter registros ver-
processos de pensamento, a “compreensão” pertence exclusivamente bais, de sorte que a evocação de uma cena sexual ocorrida nesta etapa
à dimensão psicológica; não pode ser representada em termos do des-. não conduz a consequências psíquicas, e sim a resultados físicos: a
locamento de energia num sistema de neurônios. Mas a psicologia já recordação é “convertida”, produzindo uma histeria devido ao efeito
era o “tirano” de Freud; caso contrário, não teria embarcado na teme- combinado da defesa e da sexualidade excessiva. As cenas que produ-
rária aventura do Projeto. O que ocorreu, sem que o próprio Freud zem uma neurose obsessiva se situam entre os quatro e oito anos;
se apercebesse disto — ou pelo menos sem que o tenha registrado por como estão providas de tradução verbal, ao serem evocadas nos perío-
escrito —, foi que o conceito de psicologia foi modificado: deixou dos posteriores resultam em sintomas obsessivos psíquicos. A para-
de conotar asvicisssitudes do investimento neuronal e passou a desig- nóia se reporta a cenas ocorridas entre os dez e os treze anos, que ao
nar o que podemos saber do “aparelho psíquico”. Veremos mais serem evocadas no período da puberdade (depois dos dezessete) pro-
duzem uma defesa que se manifesta como incredulidade.
uz a re pr es sã o nã o tê m im po rt ân -
Portanto, os períod os em qu e se pr od
e ocorre a
ligar-se com os processos de descarga e de percepção por intermédio
da ne ur os e, en qu an to os pe ri od os em qu
cia alguma para a es co lh a
te , na me di da em qu e possa da associação verbal, permite a Freud a seguinte formulação:
cena são decisivos. O “'c ará ter ” da ce na é im po rt an
.
determinar a defesa",
O conflito entre a condição orgânica puramente quantitativa e os pro-
vergonha ou de repugnância. Neste caso, haveria realmente um “con- inicial de passividade toma possível reprimila, substituindo-a por um
flito” entre a sensação consciente inicial, de prazer frente ao objeto “sintoma primário de defesa”. Segue-se O período de aparente saúde,
sensual, e o processo de condução orgânica, liberador de desprazer mas na realidade de defesa bem-sucedida, que começa com os sinto-
originalmente vinculado aos objetos sexuais. Mas nada disto pode mas de vergonha, desconfiança e limpeza excessiva; e o quarto período
ser atribuído a Freud, de modo que a obscuridade quanto à origem é caracterizado pelo retorno das reminiscências reprimidas, isto é,
do desprazer sexual permanece intocada. pelo fracasso da defesa. O que se toma consciente, no entanto, na qua-
lidade de idéias e afetos obsessivos, jamais é idêntico às recriminações
. O Manuscrito K é explícito: originais; são formações de compromisso entre as idéias reprimidas
e as idéias repressoras.
Sem dúvida, nos encontraremos submersos nos enigmas mais profundos Este texto introduz dois conceitos fundamentais, que discuti-
da psicologia ao perguntarmo-nos pela origem do desprazer que seria suscitado remos com mais vagar nos próximos capítulos: o de “'retorno do repri-
pela estimulação sexual prematura, c sem o qual não se poderia explicar a ori- mido” e o de “formação de compromisso”. Freud prossegue seu racio-
gem da repressão. (...) Em minha opinião, deve existir na vida sexual uma
fonte independente de desprazer, fonte essa que, uma vez estabelecida, € susce- cínio, fazendo depender o tipo de neurose compulsiva da circunstân-
tível de ativar as percepções repugnantes, de emprestar força à moral, e assim cia de apenas as recordações da ação reprovável penetrarem na consci-
por diante. (.. .) Enquanto não dispusermos de uma teoria correta deste proces- ência, ou de estarem elas acompanhadas do respectivo afeto desagra-
so, permanecerá insolúvel o problema da origem do desprazer que atua na re- dável. No primeiro caso, surge a obsessão típica, em que o conteúdo
pressão?2,
é duplamente distorcido em relação à ação infantil: algo atual subs-
titui a experiência passada, e o sexual é substituído por uma experiên-
Como este texto foi enviado juntamente .com carta 39, parece
legítimo supor que Freud não dispunha da “teoria correta” em ques- cia análoga de ordem não-sexual. No segundo caso, o afeto de repro-
tão,.e que a passagem que acabamos de analisar não passava de um
vação retorna, mas transformado em outro afeto desagradável, como
alarme falso. Se nossa hipótese estiver correta, este fato é perfeita- a “vergonha”, caso alguém descubra a ação sexual infantil, ou a “an-
mente explicável: nenhuma modificação na mecânica do sistema ner- siedade hipocondriaca”, por causa das consequências presumivelmente
voso poderia dar conta da contradição que domina a teoria, e que maléficas da ação sobre o corpo, ou a “angústia social”, que consiste
consiste precisamente na impossibilidade de encontrar um percurso no temor de ser castigado por outrem, e assim sucessivamente.
viável para o fluxo de Q encarregado de provocar o acréscimo de des-
prazer a uma recordação por definição já “domesticada”. É justa- Por fim, além dos sintomas, compromissos que denotam o fra-
mente por isto que Freud recorre à biologia, embora tampouco aqui casso da defesa, a neurose compulsiva forma uma série de outros sin-
encontre uma solução. tomas, de natureza completamente diferente:
A tentativa mais ampla que Freud empreendeu, no quadro da o ego realmente procura se defender daqueles descendentes da recordação
inicialmente reprimida, e neste conflito de defesa produz sintomas que podemos
teoria da sedução, visou elucidar a estrutura e o sentido da neurose compreender como uma“defesa secundária" 74.
obsessiva. O Manuscrito K contém boa parte do trabalho desenvol-
vido a este respeito, mas preferimos analisá-lo em sua formulação pu- Estas medidãs de proteção, caso tenhamêxito em reprimir os
blicada, na: Parte II das Novas Observações. A fórmula etiológica do sintomas iniciais, absorvem a compulsão que os caracterizava, produ-
que aqui é denominado “neurose compulsiva” é a seguinte: “As zindo um tipo novo de formações obsessivas: as “ações compulsivas”,
obsessões são sempre 'recriminações” transformadas que retornam da quer sejam de penitência, de privação, ou de dipsomania, todas com
repressão, e que sempre se referem a uma ação sexual infantil reali- o mesmo objetivo: impedir a emergência de situações em que os sin-
zada com prazer"?, Para compreender esta fórmula, é preciso des- tomas iniciais pudessem se manifestar. Mas em todos os casos, a
crever o curso da doença. Há quatro períodos bem definidos: na pri- compulsão obsessiva se caracteriza por sua inexplicabilidade através
meira infância, ocorrem as experiências de sedução que posterior- da atividade psíquica consciente, o que pressupõe a defesa incons-
mente possibilitam a repressão, seguidas pelas ações de agressão se- ciente,
xual, que depois se manifestam como recriminações. Uma “'maturi- Esta elaborada descrição é essencialmente correta; Freud não
dade sexual autônoma” faz com que uma reprovação se vincule à a modificará, nos anos seguintes, em seus aspectos essenciais. Mas
recordação daquela ação prazerosa, e a conexão com a experiência em termos de explicação teórica, ela deixa muito a desejar. A base
de todo o esquema é claramente a teoria da sedução, e a repressão
de co m à pu bl ic aç ão do se gu nd o
é nitidamente diferenciada da defesa, da qual ela é apenas uma moda- 1896) ao Manuscrito K., coin ci
io de
ocorrida em ma
lidade. Note-se, por exemplo, que os “sintomas secundários” não são artigo sobre as Neuropsicoses de Defesa,
to rn an do cl ar o qu e a bi ol og ia nã o po de
objeto de uma repressão, mas de uma defesa. Podemos inferir que a 189678. Paulatinam en te , va i- se
es sã o, ta nt o po rq ue es ta te m lu ga r mu it o
repressão designa um mecanismo que atua exclusivamente sobre resolver o problema da re pr
od o da pu be rd ad e, co mo pe la im po ss ib il id ad e de si tu ar ,
idéias de conteúdo sexual acompanhadas de um afeto penoso; como antes do perí
em do de sp ra ze r in di sp en sá ve l pa ra qu e O
os sintomas já são fruto de uma transação entre a sexualidade e a também neste registro, a orig
ca pa z de ad qu ir ir va lo r pa to gê ni co .
defesa, não caem sob a alçada da repressão. Ela é “possibilitada” pela investimento da recordação seja
experiência da sedução, cuja recordação se vincula, na segunda fase
do distúrbio, às recriminações frente à agressão sexual recordada, Uma tentativa um pouco diferente para resolver estas questões
por Fr eu d na Con fer ênc ia de abr il de 189 6, qu e tra z
Surge uma “maturidade sexual autônoma”, sobre cuja origem e meca- foi empreendida
olo gia da His ter ia. Aq ui cle faz par a a his ter ia o me s-
nismo nada se diz, e que é encarregada de proporcionar o desprazer o título de A Eti
mo que o vimosf az er co m à neu ros e obs ess iva no art igo qu e ac ab am os
necessário à repressão. O retorno do reprimido e a formação dos
ar: pro cur a rev ela r o me ca ni sm o de se nc ad ea do r da mol ést ia
sintomas como compromisso são atribuídos ao fracasso da repressão, de ana lis
referindo -o à teo ria da sed uçã o. A cen a tra umá tic a, a qu e se che ga
sem que se dêem maiores esclarecimentos sobre como e por que se
pelo método da con cen tra ção , te m qu e sat isf aze r du as con diç ões
constitui este fenômeno. A ocorrência dos processos de defesa secun-
dária tampouco é explicada, a não ser por um conflito do ego com os para ser con sid era da res pon sáv el pel o sur gim ent o da his ter ia: a con ve-
niência como det erm ina nte e a apr opr iad a for ça tra umá tic a. Se as
sintomasiniciais. Mas estes já eram produto de umatransação, na qual
evidentemente o ego tomara parte. A compulsão tem de ser conce- cenas recordadas pelo paciente não preencherem ambos os requisitos,
bida como dotada de potencialidades de crescimento, pois só o au- é preciso continuar o interrogatório até que por trás delas surjam
mento progressivo da sua intensidade pode explicar a necessidade de out ras , ad eq ua da s par a pro duz ir o efe ito pat oló gic o. Ora , as cad eia s
uma nova defesa. No Manuscrito K, é a libido constantemente engen- associ ati vas co nd uz em ine vit ave lme nte ao ca mp o da exp eri ênc ia
drada pelo indivíduo que explica esta intensidade: sexual; mas as primeiras cenas recordadas, que geralmente ocorrem
na puberdade, são de caráter trivial, não possuindo a força traumá-
Pareccria que são os estados de libido atual insatisfeita que empregam a tica requerida, e por vezes sequer a conveniência como determinantes.
força do seu desprazer para despertar a auto-recriminação reprimida. Umavez Ma s a cad eia de ass oci açõ es ch eg a até a pri mei ra inf ânc ia, um pe rí od o
produzida esta recriminação e engendrado um sintoma pelo impacto do matcrial
reprimido sobre o ego, não cabe dúvida de que este material continua operando
“anterior ao desenvolvimento da vida sexual”, o que pareceria invali-
independentemente, mas as oscilações quantitativas do seu poderio continuam dar a etiologia proposta. Tal não se dá, porém, porque se trata de
dependendo sempre da magnitude que em cada momento seja alcançada pela experiências que exercem seu efeito psíquico através dos traços
tensão libidinal. (...) Os neuróticos obsessivos são pessoas que estão expostas mnêmicos que deixaram, o que apenas confirma a descoberta de que
ao perigo de que a totalidade da tensão sexual diariamente gerada neles termine
os sin tom as só su rg em atr avé s da co op er aç ão de div ers as rec ord açõ es:
por converter-se em auto-recriminações ou nossintomas correspondentes?S.
RAROS imo 4
TENTATIVA |: ERRO 55
s4 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS
s ps íq ui co s no rm ai s e do pa pe l ne le s
ce rt as hi pó te se s ac er ca do s processo
Mas, se a sedução é tão mais frequente do que se supõe, como de
co ns ci ên cia?º.
de se mp en ha do pe la
explicar que tantas pessoas tenham passado por este trauma sem se
tornarem histéricas? A resposta de Freud envolve um aspecto lógico A referência é cl ar am en te à psi col ogi a do Pr oj et o, qu e já es ta va
e outro empírico. Em primeiro lugar, a objeção peca contra a lógica: já vi mo s, ela é in ca pa z de da r co nt a
elaborada há meses; mas, como
o fato relevante não é que muitos indivíduos tenham sido seduzidos do problema , e Fr eu d sab ia pe rf ei ta me nt e dis so. Ou tr as du as qu es tõ es
sem se tornarem histéricos, mas o de que “todos os histéricos pas- são classificadas por Freud no ca pí tu lo do “p ur am en te ps ic ol óg ic o” :
saram pela sedução”. Da mesma forma, muitas pessoas absorvem o o tipo de processo qu e pe rm it e o ac úm ul o de re co rd aç õe s pe no sa s
bacilo de Koch sem sucumbir à tuberculose; o que prova o valor inconscientes, tal que a reação ao ev en to tri via l qu e pr ov oc ou o de se n-
etiológico do bacilo é que todos os tuberculosos o apresentam. Em cadeamento da neuros e po ss a ser in cl uí da na sér ie cu ja so ma tó ri a de
segundo lugar, a sedução não basta para explicar a origem da his- intensidades justifica O si nt om a, e O pr ob le ma da “e sc ol ha de ne u-
teria; os histéricos passam ainda por um conflito defensivo, mediante rose”, isto é, o que dete rm in a se a ex pe ri ên ci a de se du çã o irá co nd uz ir
o qual o ego reprime uma idéia incompatível com o restante do a um a ne ur os e obs ess iva . Ma s a me câ ni ca do s inv est i-
a umahisteria ou
psiquismo do indivíduo, Esta idéia é incompatível porque se encontra s ai nd a est á mu it o dis tan te de um a ex pl ic aç ão “p ur a-
mentos neuronai
conectada com a experiência infantil da sedução, segundo aspectos mente psicológica”...
de semelhança visual ou por meio de uma associação lógica. Além
disso, as recordações destas cenas estão sob regime de inconsciência,
e somente nesse caso são capazes de gerar e manter sintomas histé-
ricos.
8. O COLAPSO
Os sintomas começam a se formar por volta dos oito. anos de A tentativa fin al de res olv er o pr ob le ma da rep res são no qu ad ro
idade, o que mostra ser esta uma espécie de linha-limite, após a qual de co or de na da s de te rm in ad o pel a teo ria da se du çã o e pel a hip óte se
uma experiência sexual já não parece estar dotada de poder patogê- iva se en co nt ra na lo ng a car ta 52, de 06 .1 2. 18 96 , em qu e as
quantitat
nico. idéias do Projet o são re ma ne ja da s pel a úl ti ma vez , a par tir de um a
hipóte se nov a, a me io ca mi nh o ent re a fis iol ogi a e a psi col ogi a: a da
A existência desta linha-limite está provavelmente vinculada com os pro-
cessos do desenvolvimento sexual (...). Exemplos isolados de ocorrência da transcrição das recordações. Escreve Freud:
histeria antes dos oito anos podem ser interpretados como fenômenos de matu-
ração sexual precoce (...) a qual pode ser inclusive provocada por uma estimu- O ess enc ial men te nov o em min ha teo ria é a afi rma ção de que a mem óri a
ca, mas em vári as, ou seja , que se ach a tran scri -
lação sexual prematura?8, não se encontra numa ver são úni
nte s clas ses de “si gno s” (... ). As dif ere nte s tra nsc riç ões tam bém
ta em difere
embora não seja
Até aqui, portanto, Freud formulou claramente a teoria da se- estão separadas quanto aos neurônios que são seus portadores,
precis o sup or que ess es est eja m top ogr afi cam ent e sep ara dos 8º.
dução, afastou as objeções que poderiam ser levantadas contra ela, e
fundamentou-a na abundante experiência clínica de que dispunha. O
Segue-se um esquema em que os neurônios perceptivos condu-
registro biológico é mais uma vez decisivo para a argumentação; o ros , do sis tem a y, em qu e se efe tua a pri -
zem as per cep çõe s até out
início da segunda infância, por volta dos oito anos, traça uma barreira
meira transcrição das percepções, estruturada por relações de simul-
ao futuro desenvolvimento dos sintomas histéricos. A maturação alm ent e inc apa z de se tor nar con sci ent e. O se gu nd o
taneid ade e tot
sexual precoce, que surgira tão intrigantemente a propósito da neurose (in con sci ent e) se est rut ura po r rel açõ es
registro, deno mi na do “c s”
obsessiva, recebe um esboço de explicação, através da “estimulação- am cor res pon der a rec ord açõ es con cep -
causais, e seus tra ços po de ri
prematura”. A teoria da sedução valida a da defesa: esta se exerce so- tra nsc riç ão, ch am ad a “P cs ” (pr é-c ons cie nte ), cor res
tuais. A terceira
mente no caso da idéia intolerável estar associada à cena traumática, rut ura se gu nd o im ag en s ver bai s; em det erm i-
ponde ao eg o e se est
Mas o grande, o ineludível problema que encontramos por toda parte nci as, est es po de m che gar a se tor nar con sci ent es. Às
nadas circunstâ
— por que a “recordação” de uma experiência sexual produziria efei- nsc riç ões rep res ent am a obr a psí qui ca de dif ere nte s per íod os
várias tra
tos patológicos tão intensos, quando a própria experiência não levou ite ent re tai s épo cas , O mat eri al psí qui co dev e
de vida; em cada lim
a nenhuma consequência — reaparece aqui, como não poderia deixar a no va tra nsc riç ão; cad a no va tra nsc riç ão ini be a
ser su bm et id o a um
de acontecer. A: resposta de Freud é reveladora: so exc ita tór io, se gu nd o a ten dên cia à
anterior e apa rta del a o pro ces
Este é um problema puramente psicológico, cuja solução talvez necessite
Cada vez que falta uma transcrição, a excitação será resolvida de acordo ,
n o s o l t a a o a r g u m e n t o d a p u b e r d a d e a t r a s a d a q u e j á
com as leis psicológicas vigentes no período psíquico anterior, e pelas vias que Eis- de v
então eram acessíveis... À falta de tradução é o que conhecemos clinicamente a m o s s a s e s . a s a q u i e l e é a m p l i a d o p a r a e x p l i c a r a
enco n t r d i v e r v e z M
por “repressão”. Seu motivo é sempre a provocação do desprazer que resul- s ã o ” , a d a n d e n t e n a s d i s c u s s õ e s a n t e r i o r e s . C o m o a
“com p u l d e i x p e
taria da tradução efetuada, como se este desprazer engendrasse um transtorno
ê n c i a s u a i s r o v o c a m p r a z e r é n ã o d e s p r a z e r , a
do pensamento, que por sua vez impedisse o processo de tradução?1. maio r i a s
da e x p e r i s e x p
u ç ã o o m p a n h a d a d e u m p r a z e r q u e n ã o p o d e s e r i n i -
sua reprod está ac
r s t i t u i u m a c o m p u i s ã o .
Este texto, verdadeiramente limitrofe entre a fisiologia e a psi- bido: este praze con
cologia, postula que a excitação (biológica) seja resolvida de acordo
com as leis psicológicas vigentes no período anterior; a transcrição Chegamos assim às seguintes conclusões: quando uma vivência sexual é
ere nte , e se ao me sm o tem po há um des pre ndi men to de
para o novo registro é exigida pelo advento de uma nova “época da secordada numa fase dif
ado é a com pul são ; mas se a rec ord açã o é aco mpa nha da de
prazer, o result
vida”; a repressão tem uma face biológica e outra psicológica; e seu desprazer, o result ado é a rep res são . Em amb os os cas os, par ece est ar imp e-
motivo é simultaneamente mecânico, biológico e psicológico. Come- dida a tra duç ão par a os sig nos da nov a fas c83 . -
cemos por este último ponto. Sabemos que o desprazer resulta, nos
termios do Projeto, de um incremento no nível de tensão de Q, e que Esta distinção parece servir para fundamentar a ocorrência da
a tendência a evitar este aumento é dada pelo “Princípio da Cons- neurose obsessiva, que segundo Freud dependeria de uma experiência
tância”. Por outro lado, o evitar desprazer é uma regra biológica, de agr ess ão sex ual seg uid a de pra zer , cal cad a sob re um a exp eri ênc ia
indispensável para a sobrevivência do indivíduo. E o desprazer é uma prévia de sedução vivida passivamente.
sensação consciente, ocorrendo no sistema de neurônios «, sede de
todos os processos da consciência. Assim, a repressão deve ser formu- Ora, no momento em que tudo parece encaixar-se no devido
lada em três registros diferentes, mas é evidente que na última frase lugar, o edi fíc io int eir o ve m aba ixo . O res to da car ta não nos ocu par á
Freud privilegia o biológico. Também podemos admitir uma explica- neste mom ent o, emb ora toq ue pon tos imp ort ant es par a a evo luç ão
ção mecânica, embora mais claudicante: vimos atrás que, quando o do pensamento de Freud; este, aliás, não se apercebeu no momento
pensamento esbarra numa recordação penosa, ele tomaa liberação de das contradições em que incorria, e que apontaremos agora. Em pr
desprazer concomitante como o sinal para abandonar aquele caminho meiro lugar, o termo “compulsão” não é privativo da sintomatologia
particular de investimento neuronal e dirigir a atenção para outro lu- da neurose obsessiva: vimos na Parte Il do Projeto que existe uma
gar. A este processo Freud denominava “defesa-de-pensamento”. compulsão histérica, que força a entrada do pensamento de um subs-
Aqui esta idéia se torna mais explícita: ao desviar-se para “outro tituto — Freud então o designava como “símbolo” — da representação
lugar”, o pensamento passa ao largo da recordação penosa, deixando- reprimida, mas dotado da mesma intensidade afetiva. Escrevia Freud
-a imune ao processo de transcrição que está sendo efetuado. Mas o então: “A é compulsiva, B é reprimida”. Portanto, a compulsão não se
mesmo problema deixado em suspenso na Parte III do Projeto retorna opõe à repressão, mas representa simplesmente o reverso concomi-
aqui: o que permite esta liberação de desprazer de uma recordação tante desta, caso a “tendência à equalização quantitativa” deva ser
“não-domesticada”? Freud aceuisa que há dois tipos de defesa: a levada a sério. Em segundo lugar, a compulsão se origina do desprazer
normal, que atua contra a geração de desprazer dentro de uma mesma provocado por B, isto é, pela idéia reprimida, e é justamente por
fase psíquica, isto é, entre transcrições da mesma natureza,e a patoló- estar vinculada a este desprazer que a idéia compulsiva parece despro-
gica, que se exerce contra os traços mnêmicos de uma fase anterior, porcionalmente trivial para causar o efeito patogênico do sintoma his-
não traduzidos. O fracasso desta última não pode depender dá magni- térico. Se a compulsão derivasse do prazer vinculado a uma represen-
tude do desprazer provocado pela recordação, já que é comum esfor- tação ou recordação sexual, não haveria motivo para a irrupção da
çarmo-nos por esquecer as recordações que acarretam maior despra- idéia compulsiva em lugar da idéia reprimida; em outras palavras, O
zer. À inibição do desprazer só pode fracassar se ao desprazer provo- afeto desagradável da segunda jamais poderia unir-se à primeira, caso
cado. por tal recordação, no momento em que foi uma experiência esta estivesse investida como recordação prazenteira.
real, vier se somar um “novo” desprazer, que não poderá ser inibido. Mas a falha mais grave é a postulação de um “prazer” na esfera
da sex ual ida de, no me sm o nív el do des pra zer , já que dep end e da pre -
Tal caso só pode sc dar quando se trata de acontecimentos sexuais, por- sença de um ou de outro que a compulsão ou a repressão se mani-
que as magnitudes de excitação que cles liberam crescem por si mesmas à me-
em
Uia ssa bio À
58 FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS
TENTATIVA E ERRO 59
o ouvido, seguindo determinadas tendências, as quais perseguem o objetivo interior. A um au me nt o des te nív el, man ife sta do co mo des pra zer ,
de tornar inacessível a recordação de que surgiram ou poderiam surgir sin- o sis tem a res pon de de dua s man eir as: co m um a des car ga ime dia ta
tomas. . .88,
ou com uma inibição do fluxo de Q para os neurônios cujo investi-
mento liberaria desprazer. Contudo, vimos que a par deste registro
- Mas o Manuscrito N, intitulado “Impulsos”, abre-se com a
mecânico-termodinâmico, é imediatamente introduzido o registro
declaração de que os impulsos hostis contra os pais, o desejo de sis tem a ner vos o não é um a máq uin a, e sim um
bio lóg ico , já que o
que morram, também constituem elementos integrantes das neuroses:
co mp on en te do org ani smo hu ma no . Al ém de ser um a ind ica ção do
v
acréscimo de Q, o desprazer é também a mola da educação do indi-
víduo, em sua luta pela sobrevivência em meio a um ambiente relati-
Parece que este desejo de morte se dirige nos filhos contra o pai e nas
filhas contra a mãe... Estes impulsos são reprimidos naquelas ocasiões que
reanimaram a compaixão pclos pais, como sua enfermidade ou morte??. vamente desfavorável.
O primeiro ponto de contato entre as duas teorias é a noção de
E a carta 66, de 7.7.1897, quando Freud iniciava sua auto- “trauma”. Aparentemente fundamentado pelos dados clínicos, o
-análise, firma o conceito de que as fantasias e os impulsos perversos, trauma satisfaz as condições mecânicas, biológicas e psicológicas re-
cuja repressão mais tarde se tornará inevitável, “dão lugar às queridas para provocar uma neurose. Mecanicamente, corresponde a
determinações superiores dos sintomas, já engendrados pelas recor- um grande fluxo de Q a atingir do exterior o sistema nervoso; biologi-
dações, bem como novos motivos para ater-se à enfermidade”*º, É camente, engendra um considerável desprazer e acarreta a inibição,
fácil perceber que o impulso vai ocupando um lugar cada vez mais pelo ego, dos neurônios facilitados pelo ingresso de excessiva dose
importante na teorização freudiana, embora nesta fase, interme- de estimulação; psicologicamente, possui as duas características exigi-
diária entre sua descoberta (maio de 1897) e o abandono definitivo das para que um evento possa ser considerado como causador de neu-
da teoria da sedução (setembro de 1897), sua posição no esquema rose, a saber: a conveniência como determinante e a força traumática.
conceptual ainda não esteja bem definida. Mas. torna-se evidente Mas durante o período em que se ateve a este conjunto de hipóteses,
que, com a importância cada vez menor conferida à recordação Freud permaneceu fiel à fórmula da Comunicação Preliminar, segundo
da cena traumática, vira-se uma página na história dos conceitos a qual os pacientes sofrem principalmente de reminiscências. O pró-
de Freud: a partir da carta 69, todo o esquema teórico vai cair, prio trabalho de anamnese desenvolvido durante a terapia analítica
sendo substituído pelo que conhecemos como “sexualidade infantil” parecia fundamentar esta afirmação, aparentemente indubitável, se
e “inconsciente”. levarmos em conta a intensa resistência que os analisandos opunham
ao desvelamento de suas recordações.
de esvaziar-se rumo aos neurônios adjacentes. Freud recorre nova- as vezes de causa: a energia sexual não pode .ser descarregada porque
mente ao conceito de desprazer: estas barreiras se interpõem entre o é atraída para a recordação, e é atraída para a recordação porque não
ego e os neurônios que conduzem à motilidade e à percepção, para pode ser descarregada. O próprio Freud se confessa incapaz de dar
evitar a descarga prematura e a alucinação. Solução absolutamente uma explicação convincente para este processo, em passagem que ci-
não-mecânica, e completamente biológica. Primeiro problema, pois, tamos anteriormente.
insolúvel no quadro da teoria quantitativa: a questão do ego. .
A hipótese da transcrição das recordações, invocada na carta 52,
Muito mais graves, porém, são as duas outras dificuldades: o também esbarra com os mesmos obstáculos. Mas quando Freud se
problema do investimento da recordação penosa e a questão do in- dá conta de que a maioria das recordações sexuais são acompanhadas
sucesso da defesa. Já vimos como repetidas vezes Freud procura en- de prazer e não de desprazer, a própria teoria da sedução passa a se
contrar uma solução para a primeira delas: supondo que a “domes- mostrar insustentável. Além de criar inúmeros problemas no registro
ticação” das recordações deixasse traços indeléveis que facilitariam mecânico, a biologia também se revela incapaz de fornecer uma expli-
o percurso de Q, admitindo a hipótese dos neurônios-chave, e assim cação para este fenômeno: a imaturidade sexual da criança no momen-
por diante. Todas as tentativas esbarram no mesmo rochedo intrans- to da sedução é incongruente com a liberação de prazer através do
ponível: não é possível encontrar o percurso de Q capaz de rein- investimento de recordações da esfera sexual.
vestir a recordação até então ““domesticada”, e é necessário que um
novo e intenso fluxo de Q venha quebrar as resistências inibidoras A puberdade retardada já não serve como hipótese explicativa,
impostas pelo ego. A puberdade retardada explicaria de um golpe só pois o aumento de tensão sexual não pode dar conta do prazer envol-
esta dificuldade e a outra: o excesso de sexualidade provocado pelo vido em tais recordações. Então, das duas uma: ou o trauma geraria
seu advento aumentaria em geral o nível de Q no organismo,facili- prazer, o que é absurdo, ou a recordação do trauma, através de vias
tando o investimento das recordações sexuais mediante a percepção extremamente complicadas, também acabaria por gerar prazer, o que
de elementos similares aos que haviam marcado a situação traumá- é igualmente absurdo.
tica, e a defesa fracassaria porque a excitação se originaria do interior A descoberta das fantasias e dos impulsos vai assestar umgolpe
do corpo, burlando a vigilância da atenção, focalizada normalmente definitivo nas duas teorias. Se o que é reprimido são impulsos e não
para o mundo extemo. Mas esta hipótese, ainda que aparentemente recordações, o problema de descobrir o mecanismo que permite in-
aceitável do ponto de vista biológico — a puberdade efetivamente vestir novamente uma recordação, insolúvel no quadro da hipótese
produz um aumento da tensão sexual, e também é verdade que esta, quantitativa, se torna supérfluo. E se a fantasia é a produtora das
no sentido não-psicanalítico, só aparece bem depois de outras fun- cenas de sedução, o trauma real também passaa ser dispensável. Com
ções, tanto orgânicas quanto psíquicas, já estarem quase completa- o abandono da hipótese do trauma, todas as considerações quantita-
mente desenvolvidas — tropeça em obstáculos mecânicos ainda mais tivas se revelam redundantes: não é preciso mais procurar a quadra-
espinhosos. Segundo a primeira teoria da repressão, que a concebia tura do circulo mecânico na evolução biológica, pois o ponto de
como “desinvestimento de Q”, a recordação fora esvaziada de sua partida de toda a problemática já foi suprimido. Quando as conside-
carga energética, transferida precisamente para a idéia compulsiva que rações quantitativas reaparecem, na Metapsicologia, já não se fará alu-
se manifestava em seu lugar: portanto, a percepção de objetos sexuais são a uma energia “nervosa”, mas a uma energia psíquica, o que é
não poderia conduzir a libido atual para a recordação do trauma, ou bastante diferente. Freud não abandonará jamais o ideal de encontrar
mesmo de suas circunstâncias acidentais (idéia compulsiva), sem des- uma base orgânica para a psicologia, mas este ideal é afastado para um
fazer o trabalho da repressão. Ou seja, um círculo perfeito: para que. futuro longínquo, em detrimento de considerações estritamente psi-
haja repressão, é preciso que tenha havido repressão; o mesmo investi- cológicas. A renúncia à teoria da sedução e à sua contrapartidafísico-
mento tem que-.estar vinculado à idéia reprimida e à idéia compul-- -fisiológica, a hipótese quantitativa, marca o advento dos conceitos
siva; O que, nos termos da Parte II do Projeto, é impossível. Portanto, propriamente psicanalíticos de “inconsciente” e “sexualidade infan-
a hipótese biológica não é passível de explicação nos termos mecã- til”. À incapacidade daquelas hipóteses para dar uma explicação con-
nicos que deveriam validá-la. Mas tampouco se sustenta em termos vincente do fenômeno da repressão, somavam-se os numerosos pontos
psicofisiológicos. Com efeito, para que a energia oriunda da sexuali- contraditórios e becos sem saída a que conduziam, se tomadas ao pé
dade possa ser. encaminhada para a recordação patogênica — ainda da letra. A etiologia sexual das neuroses teria então de apoiar-se sobre
que este processo seja ininteligivel em termos mecânicos — é preciso uma teoria mais ampla, que evitasse os escolhos da hipótese da sedu-
que ela não encontre uma saída normal pela descargá motora, mesmo ção, já por si só um tanto inverossímil, em que pese a enérgica defesa
masturbatória. Ora, isto não ocorre porque o indivíduo já é neurótico, que Freud fez dela em várias ocasiões. A inverossimilhança, contudo,
quer dizer, já passou pela repressão anteriormente — e Freud ilustra não deve ser referida às críticas do senso comum; é por ter sido supe-
este mecanismo no caso da neurose obsessiva. Ouseja, O efeito assume tada por um mergulho mais profundo na trama do inconsciente que
PR FREUD: A TRAMA DOS CONCEITOS
2.0s Demônios da Alma
ela se revela como tal. Além de improvável, nos termos da psicanálise
nascente, ahipótese da sedução era contraditória com a metapsicolo-
gia que deveria fundá-la, se podemos chamar assim a hipótese quanti-
tativa, e com suas próprias implicaçõesinternas. Invertendo a epí-
grafe que Freud escolheu para a História do Movimento Psicanali-
tico, a teoria da sedução e as hipóteses do Projeto formavam um con-
junto que, sob a pressão combinada dos fatores que apontamos,
e ido rima
dos demônios semidomesticados que habitam o peito
humano, e que com eles procure se medir, pode esperar
sair ileso do combate.
Caso Dora
1 FANTASIAR
ciopome teia
1. An Autobiographical Study, S.E., XX, p. 40,