Discussão X Construção Do Caso Clínico

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

      

 
 
 

RESUMO
Re n ata D i n ard i
Acerca de quatro anos é realizada, no Re z e n d e A n dra d e
Instituto Raul Soares, a Sessão Clínica - um
espaço destinado à discussão dos casos
clínicos. Esse espaço para discussões
semanais é uma estratégia de intervenção
na instituição e de construção dos casos Especialista em Fundamentos
clínicos. Os casos considerados mais da Clínica Psicanalítica pela
FUMEC, psicóloga do
difíceis, que apontam à instituição o seu
Instituto Raul Soares -
limite de resposta, vão à sessão clínica, F HEMIG, coordenadora da
que tem como método de trabalho a Sessão Clínica do Instituto
entrevista com o paciente e ou a Raul Soares - F HEMIG,
pesquisadora do CNPq e
apresentação do caso pela equipe.
técnica do programa
Inspirada no trabalho de Lacan, a Sessão Liberdade Assistida da
Clínica traz a marca da articulação entre Prefeitura de Belo H orizonte.
psicanálise e instituição: a psicanálise é Rua Araguari, 1214-304 -
Santo Agostinho 30.190.111
aplicada considerando a dimensão singular
Belo H orizonte, MG
de cada caso, o que implica no [email protected]
favorecimento de sua construção e na
atuação da equipe de acordo com a lógica
da prática feita por muitos.
Neste artigo será trabalhada, a partir desta
experiência, a noção de discussão em
contraposição à construção do caso clínico.

PALAVRAS-CHAVE:

construção do caso clínico, discussão do caso clínico, prática de muitos, ato


clínico, caso social, saber do paciente, psicanálise, instituição.



Ao operar na lógica do discurso médico 1 , a instituição psiquiátrica se


coloca em um lugar de saber sobre os seus pacientes. O bjeto deste saber, os
pacientes são inseridos na lógica das discussões clínicas e dos casos sociais.
Caso social, termo proposto por Carlo Viganò (1999) para fazer oposição ao
caso clínico, é a construção baseada num saber outro que não o do paciente,
e que aponta para o manejo institucional. Caso clínico é o resultante da
construção do próprio paciente, de seu trabalho subjetivo.
Como tentativa de romper a lógica das discussões clínicas e dos casos
sociais inaugurou-se no IRS2, há quatro anos, um espaço de conversa, uma
sessão clínica, onde o saber que se privilegia é o do paciente. Ao operar
com a construção do caso clínico3 a sessão clínica do IRS aponta a construção
do próprio sujeito a partir de sua singularidade.
Neste artigo pretende-se desenvolver a idéia de construção do caso clínico em
contraposição à discussão do caso clínico, utilizando um breve relato de caso.
Trago o caso de G ustavo para pensarmos uma lógica de trabalho que
foi apreendida através da singularidade do sujeito, tendo em vista a cons-
trução do caso clínico.
Gustavo é um sujeito psicótico, de 28 anos, solteiro, filho caçula de uma
prole de três, pai falecido. Inseriu-se na rede de saúde mental aos seis anos.
Desde a infância apresentava dificuldades de relacionamento; não se inte-
ressava por brincadeiras e se mantinha distante das pessoas. Criava constan-
temente personagens e estórias de super-heróis e mantinha um interesse
fixo em contá-las e desenhá-las. Acreditava que seus desenhos um dia seri-
am publicados, quando, então, se tornaria rico e famoso . O tema dessas
estórias referia-se à luta entre o bem e mal. Gustavo se colocava sempre ao
lado do bem, do vencedor. Apropriava-se das estórias dos super-heróis e
estabelecia uma justaposição entre a sua história de vida e as estórias deles.
1
A prática médica é sustentada por um saber prévio, por um saber já constituído. Segundo Clavel, por meio das
diversas etapas pelas quais se efetua o ato médico, ou seja, as etapas do diagnóstico, do prognóstico e da
terapêutica, o que se configura é um discurso totalitário que exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade
poderia se manifestar. Por intermédio da utilização de um vocabulário ao qual o doente não tem acesso, o discurso
médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito àquilo que é passível de ser inscrito no discurso
médico. Operação que visa portanto, o estabelecimento da identidade em detrimento da alteridade: o mesmo em
detrimento do outro. A pluralidade de sentido, característica da língua, é abolida para dar lugar à univocidade de
sentido, ideal do código. Desse modo, o discurso médico se apropria do discurso do sujeito, transformando os
significantes de sua fala em signos, em sinais médicos. A fala do sujeito é ouvida apenas para ser descartada
imediatamente, onde se depreende a função silenciadora do discurso médico. (CLAVEL, 1996: 18/19)
2
Hospital psiquiátrico da rede pública do estado de Minas Gerais.
3
Termo proposto por Carlo Viganò 1999, que, em síntese, diz da “forma de se dar uma ordenação lógica acerca
da estrutura de funcionamento do sujeito de forma a possibilitar um cálculo da clínica”.


     

      

Como uma forma de circular pela cidade, Gustavo entrava em estabeleci-


mentos comerciais, onde oferecia seus desenhos para vender. Desta maneira,
Gustavo se sustentou até os 28 anos sem nenhuma internação psiquiátrica.
Em 2003, Gustavo é encaminhado para a internação psiquiátrica por um
serviço aberto da rede de saúde mental, ao qual estava inserido desde os
dezoito anos, com indicação clínica para uso de eletroconvulsoterapia – ECT.
A indicação do procedimento foi feita devido aos efeitos colaterais pelo uso
de antipsicóticos típicos e atípicos4, assim como pelo grave quadro de ansi-
edade, exaltação do humor, acompanhado de freqüentes episódios de agita-
ção psicomotora apresentados pelo paciente. Esse quadro aponta para o
limite da conduta médica, na medida em que as indicações medicamentosas
eram sempre insuficientes para a melhora do paciente. Dessa forma inaugu-
ra-se sua primeira internação psiquiátrica, ordenada pelo discurso médico. A
internação durou cerca de oito meses. É importante demarcar que esse não
foi o tempo do paciente, mas da equipe; tempo tencionado por uma resis-
tência da equipe na desconstrução de um saber.
Não foi sem dificuldades que uma outra lógica pôde dar lugar àquela em
que o tratamento de Gustavo era anteriormente conduzido. Não se trata de
excluir o discurso médico ou de prescindir da prescrição medicamentosa,
mas de levar em conta, como desenvolverei adiante, aquilo que o saber já
constituído exclui: o que há de mais singular no paciente.
Para essa elaboração, será tomado como referência o seminário teórico
realizado na Sessão Clínica do IRS em junho de 2002. Nesse seminário,
Wellerson Alkimim propõe três pontos para pensarmos a diferença entre a
discussão do caso clínico e a construção do caso clínico: o lugar do profissio-
nal na equipe, a posição investigativa e o ato clínico.

     

Na discussão do caso clínico, o que impera é o discurso do saber já


constituído, da investigação científica e da moral sobre o caso. Ostenta-se a
lógica de “quem sabe mais pode mais”. Prevalece o status do profissional,
ora representado pela figura do coordenador, ora de um médico ou de qual-
quer outro técnico que se coloque nesse lugar de saber. A discussão caminha
4
Com o uso de antipsicóticos típicos, Gustavo apresentou síndrome neuroléptica maligna. Em uso de
Clozapina apresentou priaprismo. Com a Olanzapina apresentou níveis de CPK aumentados.





para a universalização; o enfoque dado é o saber sobre o paciente. Os técni-


cos atuam de acordo com a sua especificidade, com o seu entendimento
sobre o caso e com um saber pronto. Não há uma lógica única para o caso.
Já a construção do caso clínico implica em compor a história do sujeito,
partindo do princípio de que a equipe que o acompanha nada sabe a seu
respeito. O lugar que cada técnico ocupa na relação com o paciente é interroga-
do pela própria equipe. A decisão de uma condução não é tomada pela maioria;
não se trata de uma decisão democrática; a autoridade clínica5 passa a ser o
saber do paciente - este é o saber focalizado na construção do caso clínico.
Antônio Di Ciaccia nos lembra que o paciente é o verdadeiro mestre
de ensinamentos sobre o saber e sobre a estrutura do inconsciente.6 Trata-
se de um trabalho de recolhimento das passagens subjetivas que possam
apontar a relação do sujeito com o O utro, assim como pontos de
desestabilização, desencadeamento, repetição, que permite a equipe que
o acompanha operar em uma lógica de trabalho na qual o próprio pacien-
te nos dirá qual é a direção de sua cura. Neste sentido, todos os técnicos
passam a operar de forma articulada.

  

A discussão do caso clínico propõe a investigar as causas, as formas de


apresentação e a intensidade dos sintomas, enfocando novamente o com-
portamento. O objetivo é eliminar a sintomatologia da doença, buscando
aproximar o sujeito da normalidade.
Na construção do caso clínico as causas, as formas de apresentação e a
intensidade dos sintomas também são importantes, mas não nos atemos
somente a esses pontos. Segundo Carlo Viganò, construir o caso clínico é
colocar o paciente em trabalho, registrar seus movimentos e recolher as
passagens subjetivas que contam, para que a equipe esteja pronta para
escutar a sua palavra, quando ela vier. É compor a história do sujeito e de sua
doença, delimitando assim, os fatores que precipitaram a doença, buscando

5
“A tarefa de uma orientação psicanalítica, eu proporia centrá-la na construção de uma autoridade clínica, isto
é, fazer uso do discurso do psicanalista que é um discurso capaz de restaurar uma autoridade clínica, não mais
o da médica antiga, mas a partir da experiência freudiana, ou seja, a partir da autoridade clínica do próprio
paciente, enquanto inventor de seu próprio sintoma.”(VIG AN Ò , 2000:44)
6
DI CIACCIA, A. Da função do Um à prática feita por muitos. Curinga - Psicanálise e Saúde Mental. Belo
Horizonte: EBP-MG, no.13, set,1999 p.65.


     

      

reconhecer os pontos mortíferos, os pontos de repetição, os tratamentos


realizados, e as saídas que o próprio sujeito tem desenvolvido para lidar com
seu sofrimento. A construção serve para operar o deslocamento do sujeito
dentro do discurso. É necessário reativar a relação do sujeito com o O utro,
de forma que essa relação possa se sustentar na realidade.
A partir da história do sujeito, apreendemos a sua relação com o Outro e como
esse sujeito interpreta o mundo. O objetivo é intervir na relação do sujeito com o
Outro e em seu modo de gozo, possibilitando alguma mudança subjetiva.
Desta forma, os efeitos colaterais causados pela medicação, reproduzi-
dos por Gustavo, tomam outra dimensão quando são entendidos como uma
forma de prender a atenção dos profissionais. Os tremores eram freqüentes
e com eles vinham as agitações e a falta de implicação diante dos atos. Tais
episódios demonstravam um contentamento em ocupar um lugar de desta-
que, sustentado em suas atuações e em frases repetidas: “ O meu caso é
grave, é muito grave”” . Do destaque ao ataque emergiam o sujeito e algu-
mas perguntas para a equipe do IRS: O que faz este sujeito aparecer? O que
motiva suas agitações? Do que ele sofre?
A partir das frases repetidas, Gustavo é incentivado a localizar o que
antecede os seus atos. Neste contexto, cabe grifar a fala que escapa em uma
das entrevistas realizadas com sua mãe, Dona Maria, que disse: “Deixei de
ter um homem para ter Gustavo”. Essa frase permitiu à equipe entender a
lógica das respostas dadas pelo paciente frente ao desejo do Outro. Gustavo
faz,, a todo momento,, um pedido de aproximação excessiva. Podemos ve-
rificar isso quando ele quer, a todo custo, colocar-se em destaque. Ao mes-
mo tempo, se o O utro responde colocando-o nesse lugar, isso se torna insu-
portável para ele e, no momento seguinte, desencadeia-se uma crise como
uma tentativa desesperada de distanciamento.
Testemunhamos inúmeras tentativas de separação feitas por Gustavo
em resposta ao O utro materno. Uma delas se deu após a liberação da equi-
pe para passar um final de semana em casa. Gustavo deixa o hospital em
companhia da mãe e retorna dois dias depois, conforme o acordo feito,
porém desacompanhado. Chega contando que dormiu uma noite fora de
casa, pois havia reencontrado uma antiga namorada. Gustavo não foi o pri-
meiro a dar essa notícia à equipe. Sua mãe já havia se adiantado e, com base
nessa antecipação,, ele tem o pátio externo cortado e sua restrição à unidade
indicada. A mãe se antecipa e a equipe também...





Num ato de punição, a equipe intervém a partir do discurso moral, (levando


em consideração a fala do Outro sobre o paciente, nesse caso o Outro materno,
objeto visado da sua tentativa de separação, ou melhor, de distanciamento míni-
mo) e não a partir do cálculo clínico, que nesse caso, seria sustentar com o
paciente sua opção de afastar-se, o mínimo que fosse, da condição de “cola”
com a mãe (não o colocando como objeto da fala do outro).

   

Na discussão do caso clínico, o que prevalece no ato clínico é a história


factual do sujeito: ele é esquizofrênico; logo necessita de medicação para
redução dos sintomas, tem habilidade com o desenho, então vamos
encaminhá-lo para algum lugar onde isso possa ser trabalhado, quem sabe
uma exposição...
A construção do caso clínico valoriza, no ato clínico, a história subjetiva.
O que irá orientar e estabelecer a condução da escuta é tudo aquilo que se
pode extrair de sua história e, em menor grau, a sintomatologia, a conduta
ou o comportamento do paciente.
Gustavo nos diz que aos seis anos via o incrível Hulk na parede, via os
monstros que lutavam com o Ultraman, via o Ultraman desfigurado... “Quan-
do eu desenhava as figuras eu as soltava para fora, para fora da mente”.
Soltava as alucinações para fora da mente. Gustavo conta-nos que conseguia
dar um tratamento para aquele real que o invadia; passava-o para o papel
como uma tentativa de simbolização.
Se trabalhássemos na lógica do caso social poderíamos incentivar Gustavo
pela via da arte, já que possuía grande habilidade nessa área. Sendo assim,
poderíamos ajudá-lo a promover uma exposição dos seus desenhos, como
era, a princípio, um pedido seu. Entretanto, o que o sujeito nos aponta é o
insuportável que aparece cada vez que seus desenhos são expostos. O
lugar de objeto era logo assumido por Gustavo, e como resposta a esse
lugar decorriam os episódios de “agitação psicomotora” seguidos de acusa-
ções: “Vocês me fazem de objeto, querem explorar os meus dons...”
Eliminar as alucinações da mente traz para Gustavo um certo apazigua-
mento diante do real que o invade. Percebemos que o desenho tem uma
função importante em sua história, mas colocá-los em exposição é como
fazer um convite ao real, à devastação, devido à relação transitivista que


     

      

Gustavo tem com o que desenha. Transitivismo é um termo utilizado na


psiquiatria que se refere à consciência do eu em oposição ao mundo exter-
no. No transitivismo, o indivíduo sente algo do mundo exterior como parte
de seu eu. Ele identifica-se com os objetos do mundo externo. Trata-se da
impossibilidade de estabelecer a distinção entre o que é próprio do indiví-
duo e o que pertence ao mundo exterior.
Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, irá dizer do transitivismo imagi-
nário como um mecanismo de projeção. Traz o exemplo da criança que bate
em semelhante e diz: “Ele me bateu”. Isso ocorre, explica Lacan, porque para a
criança, o seu semelhante e ela são a mesma coisa. Assim é a relação que
Gustavo estabelece com o que desenha. Ele e o desenho são a mesma coisa.
A partir desse ponto a equipe cuida para que Gustavo não se exponha.
Seus desenhos são trabalhados nas oficinas terapêuticas, com o cuidado de
não serem colocados em um lugar de destaque.
“ O que se tenta, com esse procedimento, é introduzir a dimensão
do trabalho feito por muitos7, proposta pouco sustentada nas
instituições, em função da dificuldade de se operar com sua lógica.
A tendência institucional é responder com um saber pronto, um
saber sobre o paciente, bastando enquadrar aquele caso em um
dos diagnósticos já conhecidos, com a proposta terapêutica
decidida a priori. H á um privilégio dos discursos em que a
subjetividade se encontra excluída8.”

Gustavo, atualmente, realiza seu tratamento em um serviço de saúde mental,


em regime de permanência dia. Podemos dizer que a circulação pela cidade é
feita por ele, não sem barulho, mas com uma intenção: a de seu tratamento!
“Crio personagens para amenizar a dor de não ter tido um pai.
Quando a esquizofrenia vinha eu me vestia de Batman. Foi assim
que eu cheguei aqui. A fraqueza da minha alma, nesta hora, era
camuflada pela história do Batman e então, eu me sentia protegido.
Mas aí vinham as pessoas me criticarem, me chamarem de doido, e
eu respondia a elas com agressividade. O u então se vinha uma
injustiça, queria ser o justiceiro - aquele que defendia os fracos e

7
Termo utilizado pela psicanálise como referência clínica realizada por profissionais de formações diversas,
mas que levam em conta, como princípio ordenador, a relação do sujeito com o grande outro.
8
ALLKMIM,W. Construir o caso clínico, a instituição enquanto excessão. Almanaque- Psicanálise e Saúde
Mental. Belo Horizonte: EBP-MG, Ano 6, no.9 nov. 2003 p.45





oprimidos. Foi assim durante muitos anos de minha vida. Aqui eu


criei o Capitão Alegria. O Capitão Alegria não tem que ser justiceiro
como o Batman. Não tem que fazer justiça com as próprias mãos;
ele é um vicentino como eu, não usa armas, não bate em ninguém,
não dá chutes, não destrói prédios, não destrói nada! Agora consigo
controlar mais a minha agressividade.”

Podemos considerar essa passagem como efeito de um trabalho realiza-


do à luz da construção do caso clínico, fragmento que aponta uma saída
encontrada pelo sujeito para lidar com o seu gozo, de uma forma menos
invasiva, menos mortífera.

     


   

Em Freud, encontramos a primeira formalização da noção de construção


em psicanálise, no texto Construções em Análise (1937). Nele, Freud pro-
põe três operações para pensarmos a construção: o trabalho do analista, o
trabalho do analisante e o trabalho de elaboração teórica.
Na primeira operação - trabalho do analista, Freud utiliza-se do termo cons-
trução como uma palavra que designa a relação do analista com o que perma-
nece recalcado, com aquilo que não se consegue extrair, restituir. Para Freud,
os sintomas são conseqüências do recalcamento,, das lembranças esquecidas.
Sendo assim, pensamos que a matéria-prima do trabalho do analista se consis-
te nos fragmentos que surgem nos sonhos, nas associações livres, nas repeti-
ções que habitam o paciente. Por meio das manifestações do inconsciente, o
recalcado surge sob forma de fragmentos. Cabe ao analista fazer uma certa
ordenação, a partir da coleção desses fragmentos. Freud compara o trabalho
de construção do analista ao trabalho de um arqueólogo.
“Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a
partir dos alicerces que permanecem de pé, determina o número
e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói
as d e c o r a ç õ e s e as p i n t u r as m u r a is a p art ir d o s r e st o s
encontrados nos escombros, assim também o analista procede
quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos das
lembranças, das associações e do comportamento do sujeito
da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstituir


     

      

por meio da suplementação e da combinação dos restos que


sobreviveram.”(FREU D . 1975:293)

Apesar de fazer essa comparação, Freud aponta diferença entre estes


trabalhos: o do analista e o do arqueólogo. Segundo ele, o trabalho do analis-
ta é infinito uma vez que se trata de um trabalho preliminar. O trabalho do
arqueólogo pressupõe um fim, um encerramento.
Na segunda operação - trabalho do analisante, a construção feita pelo
analista é comunicada ao paciente. Ao se referir a um trabalho preliminar,
Freud envolve a primeira e a segunda operação.
À medida que apresenta a construção de um fragmento ao analisante, o
analista possibilita o surgimento de novos elementos, de novas matérias-
primas que convidam o analisante ao trabalho subjetivo. O analisante pode
ou não concordar com a veracidade da construção feita pelo analista. Impor-
ta pouco ao analista a aceitação ou não dessa construção; o que interessa são
as reações indiretas do sujeito – a produção de novas matérias-primas que
emergem do inconsciente. Neste sentido, Freud localiza uma vantagem em
relação ao trabalho do arqueólogo.
“Todos os elementos essenciais estão preservados: mesmo coisas
que parecem completamente esquecidas estão presentes, de alguma
maneira e em algum lugar, e simplesmente foram enterradas e
tomadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade como sabemos, é
possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente
ser vítima de destruição total. Depende exclusivamente do trabalho
analítico obtermos sucesso em trazer à luz o que está completamente
oculto”. (FREUD, 1975:294)

Nesse mesmo texto, Freud coloca a diferença entre construção e inter-


pretação. A interpretação para Freud é mais restrita, pois diz de um elemen-
to isolado; já a construção, por propor a ordenação do material psíquico, é
mais abrangente.
“O inconsciente recalcado se apresenta sob um aspecto fragmentário.
A interpretação toca um destes elementos, enquanto que a construção
liga diversos elementos. Então eu teria a tendência a dizer da preferência:
a interpretação faz ressoar e a construção liga”. (MILLER, 1996:100)

A terceira operação – o trabalho de elaboração teórica consiste na articulação


da primeira e da segunda operação. Para Freud, o objetivo da psicanálise é





recuperar as lembranças; caso elas não sejam recuperadas não há problema.


“ O caminho que parte da construção do analista deveria terminar
na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão longe.
Com bastante freqüência, não conseguimos fazer o paciente
recordar o que foi reprimido”. (FREU D, 1975: 300)

Se não podemos recuperar integralmente as lembranças, como iremos


trabalhar no sentido da cura? Freud responde a essa pergunta dizendo que
“a convicção da verdade da construção tem o mesmo efeito que uma lem-
brança reencontrada” . No texto Marginalia de Construções em Análise, Miller
irá polemizar essa afirmação proposta por Freud, ao dizer que há um enga-
no em acharmos que o efeito da substituição de uma lembrança pela cons-
trução do analista possa ser dado pela convicção da verdade, pois dessa
forma poderíamos incorrer na sugestão do analista. Em Função e Campo da
Palavra e da Linguagem , Lacan considera que as lembranças comportam
uma construção interna, são elaborações significantes, e a construção é um
trabalho do analisante.
“A construção está mais a cargo do analisante que do analista. O
próprio curso da análise é uma construção da parte do analisante.
A análise é como que a construção de uma narrativa, de uma
epopéia, da parte do sujeito, fazendo das peças e dos pedaços
uma narrativa. Se a construção fica ao lado do analista somos
obrigados a falar da convicção do paciente e abrimos as portas
para a sugestão.” (MILLER:1995:97)

Cabe, então, ao analisante duas tarefas: a de rememorar e a de construir.


Vimos com Lacan que é o analisante, e não o analista, que ficará a cargo de
fazer a construção daquilo que não pode ser lembrado. O analista se encar-
regará de fazer falar o sujeito e sua função consiste em autorizar simbolica-
mente o trabalho do analisante – de construir um saber sobre si, sobre seus
modos de gozo, sobre seu sintoma e sobre sua fantasia. A construção da
fantasia fundamental corresponde, segundo Miller, ao recalque originário. O
trabalho analítico norteia-se pela construção do fantasma, possibilitando que
o sujeito saiba de si, de sua fantasia, intervindo, assim, na mudança da rela-
ção que tem com a mesma.
Ao constituir a terceira operação como uma clínica do retorno do recalcado,
Miller, em Marginálias de Construção em Análise, nos dirá que o recalcado retorna


     

      

na lembrança, mas poderá retornar também no delírio. Sugere, então, um novo


título para a terceira operação: O delírio como construção do paciente.
Para Freud todo objetivo da psicanálise é recuperar a lembrança, sendo a
alucinação e o delírio considerados como um retorno do recalcado. “Talvez
a lembrança recalcada não possa surgir senão sob forma alucinatória ou de-
lirante, ou seja, a verdade quando ela ressurge comporta sempre um coefi-
ciente de delírio.” (MILLER,1996:96) Ao dizer que a verdade tem estrutura
de delírio, Freud aponta afinidades estreitas entre a verdade e o delírio,
chegando a dizer que a verdade se manifesta sob forma de delírio.
Ainda em Construções em análise, Freud dará indicações acerca do trata-
mento da psicose, ao finalizar o texto indicando uma afinidade entre o delírio e
a construção. A construção apresentada por ele como um método equivalente
ao método científico da arqueologia se revela, segundo Miller, sobretudo paren-
te do delírio psicótico. Ao considerar a alucinação e o delírio como o retorno do
recalcado, Freud estende à psicose os mecanismos pertencentes à neurose.
“A alucinação é como um sonho, o delírio é como um sonho, isso
corresponde ao retorno do recalcado, como um ângulo. O que é
que isso quer dizer, que a alucinação e o delírio respondem a mesma
estrutura que os mecanismos neuróticos? Isso quer dizer que no
fundo da alucinação e do delírio, há uma verdade recalcada. É o
essencial de sua demonstração clínica.” ( MILLER, 1996:106)

Freud, em sua obra, irá utilizar-se dos casos clínicos9 como método de
teorização. “Construir o caso era também construir a teoria.” (VIG AN Ò ,
1999:56). Por meio dos casos, Freud nos apresentava e construía a sua teo-
ria. “Desde a clínica da histeria, ele se valeu das histórias clínicas e, articulan-
do teoria e prática, foi construindo as noções fundamentais da psicanálise.”

9
“A noção de caso clínico surgiu no percurso de constituição da clínica, situando-se na passagem da, assim
denominada, medicina das espécies à medicina hospitalar. Conforme Foucault, em O Nascimento da Clínica,
antes de ter emergido na clínica médica o momento em que se supõe um sujeito da doença, não podemos
falar de caso clínico e, sim, dos quadros da doença ou mesmo de exemplos da doença. A noção de quadro
implica o modelo clínico naturalista e o pensamento classificatório que instituiu a doença é natural, uma vez
que ela enuncia, em si mesma, sua verdade essencial; ela é ideal porque nunca se dá na experiência, sem
alteração, sem distúrbio. A clínica médica buscava ordenar uma ciência pelo exercício e decisões do olhar por
meio das ações de ver, isolar traços, reconhecer os que são idênticos e os que são diferentes, reagrupá-los,
classificá-los por espécies ou família. O olhar mais o raciocínio devem conduzir ao conhecimento científico....
Do encontro de Freud com Charcot resultou, para a psicanálise, a passagem do quadro ao caso clínico, o qual
corresponde a substituição da operação de apresentação e descrição do caso à sua construção. Ali onde se
buscava um saber geral, precisamente, um saber do quadro da histeria reproduzido na apresentação, busca-
se com a psicanálise, um saber do particular do sujeito.” (BARROSO , 2003: 20-22)





(BARROSO, 2003:19) A partir da construção dos casos clínicos, Freud iden-


tificava os pontos de embaraço colocados pelo tratamento.
“O analista lacaniano deve construir, não há dúvida. Aliás, se existe
algo como a supervisão, ela é antes de tudo uma construção do
analista. Não é recomendável dirigir um tratamento analítico sem
fazer uma construção, sem estruturar o caso. Não é impossível conduzir
uma análise sem fazer isso, é por esta razão que é muito recomendável
fazê-lo, é muito recomendável porque isso não é absolutamente
necessário. Muitos analistas deixam as coisas por conta do paciente
e já é alguma coisa quando eles deixam, pois muitos o param. Mas
o que é recomendável, é fazer uma construção e depois modificá-la
segundo os elementos que surgem.” (MILLER, 1996:98).

Com base nas premissas da reforma psiquiátrica, o Instituto Raul Soares


colocou-se, durante algum tempo, em um lugar de exceção. Ao interrogar-
se sobre a função das internações abria possibilidades para o surgimento da
subjetividade e, assim, da singularidade do caso a caso.
O tempo de internação não era lido somente como um ato de reclusão,
mas sim como uma entrada em tratamento. “Tratamento diz mais de um
movimento analítico, no sentido de pôr o próprio caso a trabalhar, e pôr o
sujeito em condições de produzir por si sua própria cura”. (VIGAN Ò, 2000:44)
É nesse contexto que nasce a Sessão Clínica como um espaço privilegiado,
um dispositivo para buscar novas formas de lidar não só com as dificuldades do
tratamento como também com as questões e os impasses institucionais. Nesse
espaço a escuta clínica se faz sob orientadora de um trabalho, e não sob o olhar
burocrático, permitindo, assim, existir o lugar de exceção!
Na medida em que o funcionamento institucional não é mais norteado
pelas exigências dos especialistas ou técnicos, mas sob as exigências do
sujeito na sua relação com o campo da fala e da linguagem, os técnicos se
colocam num mesmo plano, em um lugar de ignorância em relação ao saber
sobre o paciente, permitindo que a construção do caso clínico possa operar.
Além do efeito de transmissão, podemos dizer que a Sessão Clínica tam-
bém opera como um espaço de formação, de supervisão institucional. Dar
lugar ao subjetivo, ao particular, dentro do universal da instituição, permite
que se extraia o que existe de mais crucial, de mais singular - a construção
de uma equipe que trabalha na direção da construção dos casos clínicos.


     

      



ALKMIM, Wellerson. Construir o caso clínico, a instituição enquanto excessão.


In: Almanaque: Psicanálise e Saúde Mental. EBP-MG, Belo Horizonte: 2003.
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



    

ABSTRACT

For four years, is has being executed at Raul Soares, the IRS Clinic Session:
There is a place designed to discuss the clinical cases. This place of weekly
discussions, is an strategy of intervention in the institution an in the
Construction of the Clinic Case. The case, which are considered the most
difficult and which requires from the institution an answer, attend the Clinic
session, which has as approach an interview with the patients as well as a
presentation of the case by the group responsible for the patient.
Inspired by the work of Lacan, the clinical session brings the mark of the
institution psychoanalysis articulation: Psychoanalysis, applied bringing a sin-
gular dimension of each case, trying to make it favorable to construct each
case and making it possible for the group to act accordingly to the practical
logic done by many.
In this article will be worked, from this experience, the notion of the discussion
in counter- balance to the construction of the clinical case.

KEY W ORDS:

Recebida em 30/9/2004
Revisada para publicação em 28/3/2005



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