O Espaço Do Romance - Questõe Sobre A Origem Do Gênero
O Espaço Do Romance - Questõe Sobre A Origem Do Gênero
O Espaço Do Romance - Questõe Sobre A Origem Do Gênero
O espaço do romance:
questões sobre teoria e historiografia do gênero romanesco a partir da obra de
Daniel Defoe
Belo Horizonte
2016
THIAGO PANINI PRIMOLAN
O espaço do romance:
questões sobre teoria e historiografia do gênero romanesco a partir da obra de
Daniel Defoe
Belo Horizonte
2016
Ao meu pai, Otaide, que me deu Robinson
Crusoé para ser devorado numa tarde da
infância – meu batismo de amor pela leitura.
AGRADECIMENTOS
Tomando por amostra o livro Captain Singleton, de Daniel Defoe, esta dissertação promove
uma crítica a alguns dos conceitos-chave das teorias sobre o moderno romance inglês. Num
primeiro momento, uma discussão mais teórica examina os pressupostos epistemológico-
espaciais que embasam conceitos como os de realismo formal, defendido por Ian Watt e
Sandra Vasconcelos, e gênero dialético, proposto por Michael Mckeon. Argumenta-se que,
por delimitarem uma noção de gênero literário como uma construção monolítica, ordenada
apenas por um único princípio fundador, ou por demarcá-lo como um espaço constituído
somente por relações dualistas, as teorias e os conceitos dos estudiosos mencionados revelam-
se ferramentas insuficientes para fornecer uma estrutura de análise condizente com uma obra
tão propícia à multiplicidade de interpretações como Captain Singleton. Apontando equívocos
comuns na leitura do texto de Defoe feita por críticos orientados pelos quadros da poética
romanesca, o trabalho traz ainda, a título de projeto, a proposição do espaço do romance,
conceito que faz parte de uma abordagem teórico-metodológica alternativa à noção de gênero
literário romanesco.
Taking Daniel Defoe’s Captain Singleton as a symbol, this thesis undertakes a critique of
some of the key concepts of the Modern Novel-theory. At first, a more theoretical discussion
examines the spatial-epistemological assumptions supporting concepts as Ian Watt and Sandra
Vasconcelos’ formal realism, and Michael Mckeon’s dialectical genre. It is claimed that by
delimiting a notion of literary genre as a monolithic construction, oriented by a single
founding principle, or by assuming the genre as a space constituted only by dualistic
relationships, both the scholar’s theories and concepts prove themselves to be scarcely
effective tools for providing a proper framework of analysis for a text so prone to multiplicity
of interpretations as Captain Singleton. Remarking the common misconceptions present on
the critic’s reading of Defoe’s text, and frequently originated from their allegiance to the
novel’s poetics, the work also puts forth, on the form of a proposal, the creation of the novel’s
space, a concept that is part of a theoretical-methodological alternative approach to the notion
of the novel as a literary genre.
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1
1. Introdução
Daniel Defoe é um autor incontornável para a história da literatura ocidental. Por sua
posição peculiar, como ‘expoente literário’ de um período histórico de transição, aquele
ocorrido entre os séculos XVII e XVIII, Defoe é frequentemente citado como o pai do
moderno romance inglês. Certos teóricos e intérpretes de suas obras chegaram inclusive a
conferir a ele a responsabilidade pela gênese do romance moderno tout court. Outros
conseguiram escapar à tentação de invocar Defoe como o founding father do gênero literário,
apenas para cair em outra armadilha, tão atraente e perigosa quanto, que é a de compará-lo à
uma figura intermediária, uma espécie de parteira – midwife1 - do romance moderno.
Progenitor ou figura intermediária do processo de criação de uma nova forma literária,
Defoe acabou servindo, talvez contra seus próprios interesses, como pedra fundamental de
projetos que buscaram erigir um monumento às origens do romance. Desde o século XIX,
esse tipo de narrativa textual vem representando, para a teoria e a história da literatura, o
gênero literário emblemático da modernidade. Em razão de sua procedência recente – para os
padrões de temporalidade histórica –, certos estudiosos chegaram a sugerir que o romance,
mais do que qualquer outro gênero literário, é aquele que conseguiu fincar mais firmemente
suas raízes no solo da história – como se todas as demais variedades anteriores tivessem sido
pouco mais que produtos espontâneos do meio, ou talvez apenas o resultado do
desenvolvimento de funções quase biológicas como a fala, tão antigos, portanto, quanto a
própria humanidade. Contra esse cenário, em que o romance aparece, solitário, como o
modelo ideal de literatura engendrada pelo mundo histórico e moderno, Defoe deve responder
sempre – tão solitário quanto o gênero que capitaneia e munido apenas de um estilo humilde,
em nada tão ‘literário’ como aquele de seus supostos sucessores – pelo movimento
engendrador da ‘Literatura Moderna’.
É desnecessário dizer que tamanha pressão sobre seus ombros tricentenários só
aumenta o risco de fazer soçobrarem, por sob camadas de poeira e exigência dos séculos,
juntos, autor e obra. No entanto, contra todos os olhares de censura presentes ainda nos dias
de hoje, é preciso que se diga: talvez – todas as aspas e cuidados são poucos – Defoe não
tenha inventado um novo gênero. A urgência de tal pronunciamento encontra justificativa nas
1
FALLER, Lincoln B. Crime and Defoe: a new kind of writing. New York: Cambridge University Press. 2008.
p. xvii.
2
2
FERNANDES, M. R. C; ALVES, L. A; CERISARA, F. G. Apresentação. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte,
n.2, v.24, 2015, p. 11.
3
FERNANDES, M. R. C; ALVES, L. A; CERISARA, F. G. Apresentação. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte,
n.2, v.24, 2015, p. 12.
4
2.
Teorias do novel
Talvez Daniel Defoe tenha sido, sem exagero, o escritor mais prolífico de sua época,
apesar de o ofício da pena ter se tornado decisivo num período relativamente tarde de sua
vida. Nasceu provavelmente em 1660 ou 1661 (a data exata de seu nascimento é ainda
incerta), na paróquia de St. Giles, Criplegate, em Londres, de uma família de prósperos
comerciantes. Seu pai, James Foe, fabricava e comerciava velas de sebo animal e fazia planos
para ver Daniel um ministro presbiteriano. Defoe parece ter adicionado esse prefixo francófilo
e aristocrático a seu nome de família em 1695, no período que segue sua primeira bancarrota.
Com efeito, como sugere um recente biógrafo, esta pequena anedota biográfica revela “uma
enorme inconsistência com seus modos assertivamente simples de classe-média, e mais um
aspecto de sua complexa personalidade.” (RICHETTI, 2005, p. 18)4. Quando o jovem ainda
contava com 14 anos de idade, James, seu pai, decidiu matriculá-lo numa das mais respeitadas
academias de ensino superior destinada aos filhos de bem-sucedidos dissidentes, a Charles
Morton Academy for Dissenters, gerida pelo clérigo e estudioso puritano formado em Oxford,
4
Exceto nos casos devidamente indicados em contrário, todas as traduções do inglês são de minha
responsabilidade.
8
Charles Morton, futuro diretor, quando já emigrado para a colônia de Massachusetts Bay, da
então incipiente Harvard College.
Os dissidentes formavam uma classe de religiosos protestantes que não se
conformavam às regras da igreja anglicana estabelecida. Daí também terem recebido outra
denominação equivalente, mais literal, de “não-conformistas”. De acordo com o Ato de
Uniformidade, promulgado pelo Parlamento em 1662, aqueles que se recusassem a aderir
estritamente aos princípios ali estabelecidos viam-se prontamente despojados da maioria de
seus direitos civis, dentre os quais estavam o de poder exercer cargos públicos e o de
frequentar as universidades de Cambridge e Oxford. Os famosos puritanos – grupo ao qual a
família de Defoe pertencia –, por si só já bastante heterogêneo, formado por religiosos das
mais distintas extrações, eram também integrados à categoria dos dissidentes religiosos.
Conhecidos como angry marginality (entre 1660-1714 representavam o percentual pouco
expressivo de 5% da população), eles tinham um peso controverso e importante na vida
político-religiosa (inextricavelmente relacionadas) (RICHETTI, 2005; KISHLANSKI, 1996).
Os anos de aprendizado na Morton’s Academy for Dissenters renderam a Defoe
importantíssimos frutos relacionados ao domínio da escrita. O estilo direto e o vasto domínio
sobre os mais diferentes assuntos, marcas da maturidade do autor, talvez tenham encontrado
no método do clérigo um incentivo fundamental. Lá, o jovem ainda teve o raro privilégio,
para sua época – como em tudo mais, estigmatizada por interdições de ordem político-
religiosa no campo intelectual –, de poder receber um ensino voltado para o aprendizado das
línguas, ciências e filosofia modernas. Desde cedo pôde entrar em contato com as mais
recentes obras do pensamento inglês, como é o caso do Ensaio sobre o entendimento humano
(1690), de John Locke, à época ainda banido nas universidades oficiais (RICHETTI, 2011).
Uma rígida dieta de exercícios intelectuais visava a estimular, nos pupilos de Mr. Morgan, o
gosto pela escrita e pela discussão. Sem dúvida, Defoe deve ao método ensinado na Academy
grande parte de sua combatividade para o debate e a introjeção de uma rígida disciplina de
trabalho de escrita em prosa vernacular, extremamente oportunas nos anos em que viria a se
dedicar integralmente à escrita enquanto profissão.
Já formado, o jovem comete então o mesmo “pecado original” familiar que o seu mais
célebre personagem, Robinson Crusoé. Contrariando a vontade paterna, Defoe desiste dos
planos ministeriais e decide seguir a carreira de seu pai. E talvez tenha expiado mais tarde
essa decisão quando, utilizando a voz literária de Crusoé, pondera sobre os resultados dessa
aferrada obediência à “propensão da Natureza”, que o “conduzi[ria] diretamente à vida de
infortúnios que mais adiante haveria de [..] [lhe] caber.” (DEFOE, 2011, p. 46). Fio condutor
9
de desgraça, sem dúvida, essa consequência nefasta de não conseguir impor limites ao
impulso de seguir a inclinação individual também se provou, tanto no caso de Defoe quanto
no de seu marinheiro náufrago, um indício de que a sabedoria da Providência Divina
ultrapassa, de muitas maneiras insuspeitas, os limitados poderes de compreensão humana.
Segundo seu biógrafo Richetti, a tensão entre a vocação religiosa, profundamente
incutida na criação de Defoe, e sua inclinação ‘natural’ para o comércio permaneceu visível
por toda a vida do autor: “essas carreiras alternativas continuarão a ressoar em toda a obra de
Defoe, em que as exigências às vezes conflitantes (embora frequentemente complementares)
da religião e do comércio, da devoção e da ambição secular, dividem a cena e ocupam os
pensamentos tanto do autor quanto de seus personagens.” (RICHETTI, 2011, p. 11). Para o
biógrafo, a convergência desses interesses intensificou-se com o passar dos anos, ganhando
ares cada vez mais excêntricos. Já bem mais velho, Defoe sustentaria, sistematicamente, em
seu periódico The Review, uma ideia que evocava “o comércio como coexistente à lógica da
intervenção divina”, gastando muitos números do jornal a celebrar “os negócios e o comércio
como exemplificações do sistema último, o universo criado.” (RICHETTI, 2005, p. 153).
Numa dessas edições, Defoe chegou a propor, num rompante de imaginação blasfematória, a
inversão da tradicional explicação bíblica – negativa – do Caos terreno após o Dilúvio. O
artigo procurava convencer os leitores de que o resultado da ruptura e espalhamento dos
continentes – imagem dos poderes devastadores da água enviada ao mundo por motivo de
castigo divino, na visão tradicional –, nada mais teria sido que o primeiro agente a assistir a
causa do comércio na Terra (RICHETTI, 2005, p. 153-54). Depreende-se daí que Defoe não
era de tratar o par temático ‘comércio e religião’ com despretensão.
Não se sabe bem ao certo, mas parece que, ainda nos primórdios de sua carreira como
comerciante, Defoe investira quantias consideráveis de dinheiro em alguns navios que
cobriam o trajeto colônia-metrópole. Na visão de seu biógrafo, nesse ramo de negócios, Defoe
comportava-se como um compulsivo “importador/exportador de qualquer coisa que pudesse
gerar lucro” (RICHETTI, 2005, p. 11). Numa dessas ocasiões, inclusive, tendo aplicado
considerável quantia em um esquema que envolvia risco bastante elevado, Defoe, ainda
jovem, provou sua primeira bancarrota. Segundo Richetti, é possível elaborar, para esse
período de sua vida, um plausível perfil de Defoe “como não só um temerário especulador no
comércio, mas também um mercador distraído de seus negócios propriamente ditos, em razão
de interesses intelectuais e políticos, bem como por aspirações literárias.” (RICHETTI, 2005,
p. 11). ‘Mercador escritor’ e ‘escritor mercador’ são as facetas presentes ainda no velho autor.
10
Ainda nesse ponto, foi em virtude de uma infelicidade de alguma forma relacionada ao
comércio que Defoe se viu obrigado a se descobrir escritor em tempo integral. Em 1704,
acusado de ser o autor de um panfleto considerado sedicioso, Defoe assiste a seus negócios,
abandonados às moscas durante seu encarceramento, sucumbirem. Sem opção de renda
própria e sem ver saída para a condição ignóbil de presidiário em Newgate, Defoe aceita
ajuda de um ambicioso político Tory e membro do parlamento inglês, Robert Harley. Para ele,
Defoe passa a trabalhar, sobretudo, oferecendo o melhor daquilo de que ainda dispunha
naquela altura, ou seja, sua pena, escrevendo conteúdos favoráveis encomendados sob medida
pelo político. A partir de então, mergulhado no universo das letras por necessidade, Defoe se
dedicaria a colher os frutos de suas atividades de poeta, panfletista político, jornalista, escritor
de manuais de conduta, de comércio e de negócios, autor de projetos, de narrativa de viagem e
de algo que, por muito tempo, foi considerado como história – uma narrativa dos eventos
desencadeados pela Grande Praga que se abateu sobre Londres no ano de 1665. Nesse meio
tempo, Defoe também trabalharia para a monarquia e, depois, como agente secreto a serviço
de seu patrono Harley, a mando de quem viajaria para a Escócia, nas imediações do Ato de
Unificação (1707), encarregado de averiguar a situação política local. Próximo ao fim de sua
longa e conturbada vida profissional, Defoe chegaria ao posto de romancista, atividade
literária sem dúvida mais curta e menos expressiva em sua carreira de escritor. Ironicamente,
porém, é em razão desse breve intercurso com a produção de romances que Defoe goza, ainda
nos dias de hoje, de reconhecimento póstumo universal.
Essas pequenas incursões biográficas não têm exatamente por função estabelecer
daqui em diante um índice final interpretativo ao estilo do “vidobra”, termo cunhado por
François Dosse. O historiador definiu o ‘vidobra’ como sendo um modelo metodológico a
partir do qual certo tipo de história literária buscou, nas comparações entre biografia do
escritor e sua obra, uma relação de causa e efeito à moda dos retratos literários de Sainte-
Beuve, cujo fundamento epistemológico estaria em fazer “do relato da vida o ponto principal
do trabalho do crítico” (DOSSE, 2009, p. 81). A vida de Defoe aqui não é mero, nem o único
princípio de explicação estética. De qualquer forma, mesmo que resolvêssemos seguir por
esse caminho à procura por respostas últimas, disporíamos de muito pouca informação a
respeito da vida privada de Defoe.
À falta de algo como um diário íntimo a funcionar supostamente como espécie de
princípio aglutinador, temos necessariamente que nos contentar em buscar alguma identidade
psicológica, mais ou menos coesa, nos retratos fragmentados espalhados pelo próprio autor.
Obedecendo a propósitos retóricos específicos ditados por cada tipo de discurso, e calcando
11
Não deixa de ser algo irônica a constatação de que somente tenham sobrado, como
evidência de sua passagem pelo mundo, na condição de indivíduo privado, os relatos
fragmentados e às vezes contraditórios elaborados por ele próprio e destinados ao grande
público.
[C]onhecemos a pessoa [de Defoe] principalmente por meio da autoprojeção,
e até mesmo por uma espécie de autocriação presente na própria escrita, não
através dos eventos externos de um registro biográfico, apenas singelamente
esboçado, que ele deixou para trás. Há, portanto, uma interessante
circularidade em que o Defoe que conhecemos é o Defoe que ele nos
oferece. (RICHETTI, 2005, p. 20; acréscimo nosso)
Talvez mais razão para otimismo tenham aqueles que se ocupam em procurar pelos
supostos modelos históricos, reais, utilizados por Defoe, para a configuração de seus
personagens fictícios. Assim procede o célebre estudo de Alan Secord (1924) sobre os
personagens e enredos de Defoe inspirados em narrativas de viajantes. Os interessados na
referência ‘real’ à vida de Defoe deparam-se no mais das vezes com as criações de um
escritor que jamais abriu mão da ficção nem mesmo para falar sobre si. São famosas suas
estratégias retóricas de autodefesa e de autodramatização – muitas das quais sem qualquer
ligação verdadeira com a realidade dos fatos vividos pelo próprio escritor –, cuja função,
assim pensava Defoe, deveria ser a de conferir mais peso a seus argumentos (RICHETTI,
2005).
Trabalharemos, portanto, daqui em diante, com a noção de personalidade literária do
autor, passível de ser apreendida a partir de suas monomanias, de seus argumentos preferidos,
dos contumazes artifícios retóricos e invectivas discursivas – todos de alguma forma a trair a
predileção do autor por determinados pontos de vista e, sobretudo, por certos assuntos que lhe
eram caros, como o comércio, a política e a religião. É preciso, contudo, advertir o leitor de
que essa personalidade é especialmente tendenciosa; ela apenas traça um padrão possível,
12
Escritor de mais de 400 textos sobre comércio e negócios, além de outras tantas
publicações de conteúdo político, Defoe elevaria a capacidade de produção de sua “prosa
muscular” (RICHETTI, 2005, p. 6) – cheia de energia, mas não raro assustadoramente prolixa
– às exigências de um verdadeiro Negoce, como gostava de chamar o comércio. Para se ter
uma ideia, “[s]omente em 1711, por exemplo, Defoe publicou mais de vinte panfletos sobre
assuntos de política e economia”, nos informa seu biógrafo, concluindo que “[s]ua energia e
facilidade, sua absoluta copiosidade como escritor, funcionam como um contínuo deslumbre
para qualquer um que se dispõe a entender Defoe.” (RICHETTI, 2005, p. 127). De resto, a
atividade comercial sempre pareceu fascinar nosso autor. Assunto pelo qual Defoe tinha uma
relação verdadeiramente passional, o comércio aparece, em uma passagem escrita na terceira
pessoa e publicada no último número do periódico The Review, como a “Meretriz à qual ele
venerava” [“Whore he doated on”] (DEFOE apud RICHETTI, 2005, p. 93), talvez somente
dividindo espaço, em importância, com outra obsessão do autor, as “atrocidades da facção da
Alta-Igreja.” (RICHETTI, 2005, p. 93).
Dentre essa grande quantidade de escritos hoje ditos ‘econômicos, Defoe se destacou
ao escrever projetos. Segundo Richetti, até meados do século XVIII, o termo project ainda
devia reter alguns dos significados negativos que certamente reputava ao final do século
XVII, quando Defoe produzira suas obras mais significativas nesse campo. Entendia-se por
13
panfletos políticos e de poemas intitulada A true collection of the writings of the author of the
true-born englishmen.
Logo se vê que não há motivo para estranhar o espanto de Cunha, transcrito algumas
páginas acima, diante da reviravolta histórica que envolve a recepção literária de Defoe. De
fato, o escritor gozou de certa reputação sobretudo como escritor de temas políticos e de
economia, mas também foi um dos mais proeminentes jornalistas de seu tempo – o que, a bem
da verdade, parece ter-lhe garantido apenas mais uma plataforma para exposição daqueles
assuntos que lhe eram prediletos. Basta lembrar que Defoe editou e escreveu, sozinho, todo o
conteúdo de um periódico publicado três vezes por semana entre os anos de 1704 e 1713, o
The Review. Após haver encerrado a publicação de seu jornal, Defoe ainda encontraria forças
para editar e escrever, como ghost-writer, para outros periódicos, de ambas as vertentes
ideológicas, tanto Tory quanto Whig. Daniel Defoe realmente parecia ter uma capacidade
fisiológica assombrosamente superior para a escrita.
Embora já se devotando totalmente à produção textual e colhendo os frutos de um
razoável sucesso literário desde pelo menos 1701, Defoe teria que esperar por Robinson
Crusoé – seu primeiro e mais célebre novel, publicado quando o autor já se aproximava da
casa dos 60 anos de idade – para poder colocar seu nome na categoria dos escritores de
reputação universal. O que, nesse espaço de tempo de alguns séculos, fez com que o conjunto
da obra de Defoe fosse sistematicamente ignorado em detrimento de alguns seletos
exemplares de suas narrativas ficcionais de maior extensão? Seriam eles realmente
exemplares do gênero romanesco? Afinal, o que seria um representante do gênero novel,
aquilo que faz do novel um novel?
O ponto menos problemático, e aquele que devemos reter, por hora, é o da correlação
entre o vocábulo novel e a palavra “romance”, no português – diferentemente de romance,
palavra que em inglês significa “romance de cavalaria”. Relembrando que a tradição da
preceptística aristotélica jamais ditou normas específicas para o gênero, Michael Schmidt, em
seu The novel: a biography (2014) [O romance: uma biografia], traz à luz a enorme
dificuldade de biografar um objeto de contornos tão imprecisos. Nesse ponto, Schmidt faz o
trabalho do biógrafo de Defoe parecer drasticamente mais simples. O retratista do gênero
começa dando conta de que a palavra “romancista” teria sobrevivido a uma variedade de
sentidos – alguns deles contraditórios –, tais como inovador, noviço (alguém sem
experiência), original, mexeriqueiro [newsmonger], etc. (SCHMIDT, 2014, pos. 361). Depois,
o autor recorre ao Oxford English Dictionary em busca de uma definição elementar para o
gênero, e acaba se deparando com: “o romance ‘é uma prosa narrativa fictícia ou novela
15
[tale]’” (SCHMIDT, 2014, pos. 391). “Estamos contentes com qualquer um desses termos?”
(SCHMIDT, 2014, pos. 391), pergunta retoricamente ao leitor um Schimidt ansioso pela
resposta negativa; tampouco com o vago “comprimento considerável” (SCHMIDT, 2014,
pos. 418), que o dicionário arremata como se fosse uma conclusão suficiente, diz o autor. O
biógrafo decide então recorrer a diversas referências sobre o gênero, colhendo desde as
definições mais práticas possíveis, já publicadas por romancistas famosos, até as mais
reflexivas ponderações dos teóricos, tudo isso a fim de tensionar ao máximo os precários
elementos da definição apresentada pelo glossário. Schmidt também encontra inúmeros
exemplos de obras que apontam para a insuficiência da ligeira definição oferecida pelo
dicionário. No emaranhado de explicações, conceitos e exemplos, a própria arquitetura
inextricável dos dados coletados pelo autor salta aos olhos como um importante dado sobre o
romance. Schmidt nos oferece, sem dizê-lo claramente, um importante argumento para iniciar
qualquer debate sobre o romance: apesar de não estar previsto nas poéticas clássicas, é preciso
deixar claro que, em termos científicos, é impossível propor uma discussão sobre a definição
do romance sem levar em conta o que esse corpus teórico difuso – mas sintomaticamente
semelhante em alguns pontos – postulou como as características essenciais do gênero
romanesco.
Na época em que começava a compor Robinson Crusoé, a ideia de romance estava
longe de se tornar moeda corrente entre autores, leitores e críticos. Hoje, no entanto, num
rápido acesso aos mecanismos de pesquisa virtual, encontramos associados ao nome de Defoe
outros célebres exemplares de obras que, ao lado de Crusoé, cerram fileiras no gênero
literário moderno. Entre os títulos estão Moll Flanders (1722) e Roxana (1724), além de
outras obras menos conhecidas, como Captain Singleton (1720) e a problemática A jornal of
the plague year [Um diário do ano da peste] (1722) – a maioria publicada na segunda década
do século XVIII, pela pena de um Defoe já na terceira idade.
Não é uma questão simples explicar por que nosso autor ficaria conhecido para a
posteridade como grande romancista, pois essa questão envolve, costumeiramente, a tarefa, já
não menos complexa, de esclarecer o pesado aposto herdado de ‘inventor de um gênero
literário novo’. É forçoso reconhecer que há uma questão subjacente a toda essa discussão:
teriam sido essas obras ficcionais de Defoe reais exemplares romanescos? Responder a essa
pergunta é em parte o propósito desta pesquisa. Mas a questão não se esgota aí. Ela parece,
pelo contrário, regredir ad infinitum: o que há – se é que há –, ou melhor, quanto há de
‘matéria romanesca’ nesses textos? Por outra, ainda, podemos perguntar o que seria algo
como uma substância romanesca de um romance?
16
É provável que a simples indagação pelas qualidades romanescas das obras ficcionais
de Defoe tenha levado gerações de estudiosos a concluir pela adoção de um procedimento
supostamente natural de sair à coleta de retalhos de informação que, em conjunto, fossem
obrigados a formar um objeto a que se convencionou chamar de romance incipiente [early
novel]. O debate todo parece envolver antes de mais nada uma questão de premissas ou de
princípios a partir dos quais os estudos lançaram-se às obras de Defoe. Nesse sentido, é
fundamental especularmos acerca da possibilidade de certas preconcepções teóricas sobre o
gênero romanesco terem introduzido uma sobrecarga interpretativa que acabou por dificultar
o acesso a outros campos semânticos dessas narrativas ficcionais de maior fôlego, que Defoe
publicou no começo do século XVIII.
O leitor contemporâneo, minimamente familiarizado com a tradição ocidental do
romance, imediatamente percebe que há algo de muito estranho nos romances de Defoe. Esse
estranhamento, sem dúvida, excede a mera questão da diferença temporal entre nós e o
universo dessas histórias, na mesma medida em que a afirmação aparentemente inocente
“Defoe inventou o romance” excede um mero projeto de crítica ou de história literária. Está
em jogo uma série de pressupostos que, caso não sejam identificados e inquiridos a tempo,
podem acabar lançando, por sobre a obra do autor, uma pátina de pura veneração,
enrijecendo-a e transformando-a, por fim, na imagem dos ídolos de uma tradição – de todo
interditados de acompanhar de perto a realidade dos vivos e, sobretudo, incapazes de trazer à
luz quaisquer novas e necessárias indagações.
A pergunta pelas origens do novel, traço distintivo das diversas teorias que estudaram
o gênero, surge, invariavelmente, carregada de intenções de definição apriorística da forma
embrionária do romance. Ela revela uma variedade espiritual de obsessão pelo ser inicial –
aquela “voz inominável e sem face do que ainda não é mas olha longe” (FARIA, 2014, p.
107) –, que não cessa de invocar o binômio origem x tradição como a resposta metafísica para
problemas de origem histórica. Foucault, fazendo ecoar a voz de Nietzsche, alerta o
genealogista sobre o idealismo por trás de projetos obsessivos como esses:
[...] primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a
essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade
cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o
que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar
reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem
exatamente adequada de si; é tomar por acidental todas as peripécias que
puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar
todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira. Ora, se o
genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na
metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo
inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo
17
que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a
partir de figuras que lhe eram estranhas. (FOUCAULT, 2006, p. 17-18)
Para lançar um outro olhar sobre os tais ‘romances’ de Defoe, precisamos, primeiro,
começar pelo começo – e não pelas origens –, buscando entender como as premissas que
embasaram as concepções definidoras do romance fixaram, até agora, uma imagem
monolítica das narrativas ficcionais de Defoe. Convém começarmos respondendo à pergunta-
título deste capítulo: seria possível definir o romance? A julgar pela trajetória de sua
historiografia, a resposta é positiva e aparece frequentemente na forma de um imperativo: a
necessidade categórica de demarcar claramente os limites conceituais do gênero literário. Tal
necessidade esteve, volta e meia, vinculada a projetos que pretenderam trabalhar noções sobre
a modernidade ocidental escorados no uso do romance como fenômeno artístico de explicação
ideal ou de simples homologia. Nesses contextos, tanto os romances como suas
‘características essenciais’ serviram, na verdade, não como ponto de partida para o
entendimento das próprias obras – ou como uma explicação mais compreensiva das realidades
particulares às quais estiveram inseridas –, mas, sim, como pontes de entendimento a ligar
forma artística e abstrações históricas tais como classe social, individualismo moderno,
capitalismo incipiente, etc.
Na história da teoria do novel, o primeiro passo nesse sentido foi dado por Ian Watt há
mais de meio século, em seu The rise of the novel (1957), com primeira tradução para o
português somente em 1990. Nessa obra, Watt se concentra em entender historicamente o
surgimento do novo gênero, afastando-se de leituras anteriores de caráter evolucionista ou
francamente a-histórico. The rise é, sem sombra de dúvida, um estudo incontornável sobre os
primórdios do romance inglês. Seu impacto na criação de uma tradição de estudos do gênero
não é muito difícil de avaliar. Pelo menos para boa parte da historiografia atuante nos dias de
hoje, a validade conferida ao conceito de realismo formal e ao uso da expressão ascensão do
romance – duas mônadas distintivas da obra de Watt – serve como indício do vigor que o
trabalho do crítico ainda é capaz de demonstrar.
A investigação inicia-se a partir de uma constatação: para Watt, não há respostas
completamente satisfatórias a algumas das perguntas elementares quanto aos primeiros
romancistas do século XVIII e suas obras. A primeira dessas questões que o crítico julga mal
resolvidas é de ordem basicamente retórica. Ela deve servir como o pontapé inicial de sua
pesquisa. “O romance é uma forma literária nova?” (WATT, 1957, p. 8; grifos nossos),
21
pergunta o autor. Interrogação cuja resposta na verdade já estava presente nos próprios título e
subtítulo da obra – The rise of the novel: studies in Defoe, Richardson and Fielding [A
ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding] –, com seu aspecto de
sinopse, em ordem de aparição e de atuação dos primeiros romancistas. De fato, em
conformidade à tradição, é exatamente esse roteiro que Watt nos propõe: “como normalmente
é feito” (1957, p. 8), diz ele.
A pergunta-postulado deixa ainda em aberto outras interrogações, que naturalmente
seguem a resposta positiva à primeira questão. “[C]omo ela [a forma romanesca] se difere da
prosa de ficção do passado? (WATT, 1957, p. 8; grifos e acréscimos nossos) é a primeira
delas. Sua solução é a tarefa que distingue boa parte de seu trabalho, e que envolve a busca
por uma definição para o romance moderno. “Há alguma razão pela qual essas diferenças
apareceram quando e onde elas o fizeram?” (WATT, 1957, p. 8), é o que resta saber,
segundo Watt, para que a questão da primazia britânica, no processo de criação do gênero,
seja de uma vez por todas estabelecida.
Programaticamente, e alegando seguir um faro historiográfico para apurar o processo,
o autor se propõe a negar ao acaso, ou simplesmente à genialidade, a prerrogativa de
explicação do porquê três grandes escritores ingleses de uma mesma geração estiveram entre
os fundadores de uma nova forma literária:
[S]upondo que a aparição de nossos três primeiros romancistas numa mesma
geração talvez não tenha sido mero acidente, e que o seu gênio não poderia
ter criado a nova forma a menos que as condições da época também tivessem
sido favoráveis, [a presente investigação] tenta descobrir quais foram essas
condições sociais e literárias favoráveis e de quais maneiras Defoe,
Richardson e Fielding foram seus beneficiários. (WATT, 1957, p. 8;
acréscimos nossos)
A partir daí estão lançadas as cartas para que o autor possa investigar as origens
inglesas do romance moderno segundo uma dupla perspectiva, que pretende dar conta tanto
das condicionantes epistemológicas do surgimento do gênero, quanto daquelas de origem
socioeconômica. Watt tem ciência da abrangência de sua investigação. Sabe também que as
obras que estuda “apresentam tão poucos sinais de influência mútua e são tão diferentes em
natureza” (WATT, 1957, p. 8), que impõem, a fim de poderem ser aglutinadas em uma
categoria genérica comum, a necessidade do estabelecimento de uma definição
“suficientemente estrita para excluir tipos anteriores de narrativa, e ainda ampla o suficiente
para poder ser aplicada a tudo quanto é usualmente colocado na categoria de romance”
(WATT, 1957, p. 8-9; grifos nossos).
22
indivíduos de todas as épocas teriam sido, de alguma maneira ou de outra, forçados a chegar
ao mesmo tipo de conclusão sobre os processos de ‘filtragem’ do mundo externo a partir das
próprias experiências sensoriais, concluindo que até mesmo a própria “literatura sempre
esteve, até certo ponto, exposta à mesma ingenuidade epistemológica.” (WATT, 1957, p. 11).
Procurando se desembaraçar o mais rápido possível de um iminente e indigesto
aprofundamento na discussão dos “dogmas distintivos da epistemologia realista, e das
controvérsias associadas a eles” (WATT, 1957, p. 11), Watt acaba relegando-os como
“demasiado especializados em natureza, para terem alguma influência sobre a literatura.”
(WATT, p. 1957, p. 11).
Para o romance, a importância do realismo filosófico seria, portanto, “muito menos
específic[a]” (WATT, 1957, p. 11), e estaria relacionada, sobretudo, a certa índole do
pensamento realista, aos métodos de investigação utilizados e aos tipos de problema que
suscitou. Segundo Watt:
A postura geral do realismo filosófico tem sido crítica, antitradicional e
inovadora; seu método tem consistido no estudo dos particulares da
experiência pelo investigador individual, livre, ao menos idealmente, do
corpo de suposições passadas e convicções tradicionais; e tem dado
particular importância à semântica, ao problema da natureza da
correspondência entre palavras e realidade. Todas essas características do
realismo filosófico guardam analogias com atributos distintivos da forma do
romance – analogias que chamam a atenção para o tipo característico de
correspondência entre vida e literatura que tem sido obtida na prosa de
ficção desde os romances de Defoe e Richardson. (1957, p. 11; grifos
nossos)
pondera um otimista Watt, resulta como “preço que ele deve pagar pelo seu realismo”
(WATT, 1957, p. 9).
Novidade e individualidade seriam os dois lados, para Watt, de uma mesma moeda
cunhada no calor de uma mudança geral no background cultural do ocidente. A cultura
ocidental testemunharia uma lenta e generalizada transição epistemológica entre um mundo
regido pelo signo da universalidade, que priorizava o coletivo enquanto valor, para aquele
regido pelo símbolo da particularidade, cuja primazia é dada, especialmente, às noções de
individualidade e de singularidade:
[T]anto as inovações filosóficas quanto as literárias devem ser entendidas
como manifestações paralelas de uma mudança maior – aquela vasta
transformação da civilização ocidental que, desde a Renascença, tem
substituído a imagem de um mundo unificado da Idade Média por outra
bastante diferente, que nos apresenta, essencialmente, uma massa em
desenvolvimento, mas não planejada, de indivíduos particulares tendo
experiências particulares, em tempos e em lugares particulares. (WATT,
1957, p. 27)
Não custa ressaltar que, por se tratar do fundamento de sua teoria histórica sobre o
romance inglês, o conceito de realismo formal recebe, no texto de Watt, uma atenção bastante
minuciosa. Não seria possível deixar passar aqui a explicação do autor sobre cada um dos
elementos narrativos que integram o método do realismo formal, sob pena de perdermos a
oportunidade de vislumbrar aí, já, o princípio dos desentendimentos – uma feliz ambiguidade!
– entre a teoria de Watt e a obra de Daniel Defoe.
São seis as técnicas elementares que formam o conjunto do realismo formal. Watt as
apresenta divididas na forma de subcapítulos, dos quais buscamos captar o essencial: a) o uso
de enredos não tradicionais; b) a particularização realista da caracterização dos personagens e
dos ambientes; c) o papel dos nomes próprios na individualização dos personagens; d) a
figuração realista do tempo; e) a figuração realista do espaço; f) o uso mais referencial da
linguagem.
a) Defoe e Richardson, diz Watt, teriam sido os primeiros escritores “em nossa
literatura” (1957, p. 9; grifo nosso) a não haverem tomado seus enredos da mitologia,
história, lenda ou literatura prévia. Talvez pela precedência temporal, Defoe teria dado o
passo decisivo nesse sentido, segundo o crítico e historiador. Relegando pouca atenção à
teoria crítica dominante à época, que, segundo Watt, ainda pendia em favor do uso de enredos
tradicionais, Defoe iniciou uma nova tendência na ficção ao subordinar o enredo de seus
romances ao padrão da memória autobiográfica. Uma mudança muito importante e, também,
compara Watt, uma declaração tão desafiante “do primado da experiência individual no
romance quanto o cogito ergo sum de Descartes foi na filosofia.” (1957, p. 10). Após Defoe,
Richardson e Fielding também teriam, às suas maneiras distintas, dado continuidade a essa
que estava fadada a tornar-se uma prática habitual do romance. Entretanto, Watt constata que
[n]ão pode ser reivindicado que qualquer um deles tenha alcançado
plenamente a interpenetração de enredo, personagem e tema moral
emergente que é encontrada nos maiores exemplos da arte do romance.
(1957, 10; grifos nossos)
ênfase nos particulares que caracterizam o realismo filosófico.” (WATT, 1957, p. 11). Diz
Watt ainda que,
[n]esse ponto, tal como no da originalidade, Defoe e Richardson
estabeleceram a direção literária característica da forma do romance muito
antes de ela poder contar com qualquer suporte da teoria crítica. (1957,
p.11; grifos nossos)
narrativa, o desenrolar sucessório e plausível das ações dos personagens e do ambiente onde
vivem, diz Watt, o romance, tomando um rumo diverso, estrutura a passagem do tempo de um
modo mais racional, que garante tanto mais coesão ao enredo quanto confere mais
verossimilhança ao desenvolvimento da personalidade dos indivíduos nele representados. Na
história da literatura,
[e]ssas novas ênfases estão refletidas nos romances de Defoe. Sua ficção é a
primeira a nos presentear com uma imagem tanto da vida individual na sua
perspectiva mais ampla, como processo histórico, como na sua visão mais
detida, que mostra o processo sendo encenado contra o pano de fundo dos
pensamentos e ações mais efêmeros. É verdade que as escalas temporais de
seus romances são tanto contraditórias em si mesmas, como inconsistentes
com o cenário histórico pretendido
[...]
Essa impressão é muito mais forte e completamente realizada em
Richardson. Ele foi muito cuidadoso em situar todos os eventos de sua
narrativa em um esquema temporal sem precedentes
[...]
Fielding abordou o problema do tempo em seus romances de um ponto de
vista mais externo e tradicional. (WATT, 1957, p. 20-21; grifos nossos)
Uma constante nessas passagens chama a atenção: as partes grifadas dos trechos
transcritos mostram ressalvas regulares de Watt dentro de seu próprio projeto: é como se sua
teoria sobre o realismo formal criasse um espaço estreito demais para comportar os desvios
aquém da meta de Defoe e aqueles além de qualquer meta de Fielding. O grande escritor –
melhor seria dizer o grande exemplo – de sua teoria sobre o romance é, sem grande surpresa,
Richardson. É de Richardson e para Richardson que o realismo formal, característica
essencial da forma do romance como um todo, ganha sentido e pode, talvez, funcionar como
um conceito eficaz. Mesmo assim, é valido lembrar que nem mesmo Richardson está a salvo
do alto nível da exigência ideal concebida por Watt: “Não pode ser reivindicado que qualquer
um deles tenha alcançado plenamente...” (1957, p. 9-10).
Em artigo recente, em que disseca a fortuna crítica associada ao realismo formal,
Nabil Araújo topa com a mesma “sistematicidade das ressalvas” (2015, p. 147) de Watt.
Percebe aí, também, o caráter eminentemente apriorístico do conceito concebido pelo teórico
inglês – visivelmente o oposto do resultado obtido a partir de uma judiciosa análise de
conteúdo de cada uma das obras de Defoe, Richardson e Fielding. É, antes, conclui Araújo,
algo “sobreposto pelo crítico a tais obras, à guisa de uma premissa à qual devessem se
conformar” (2015, p. 148).
Nem Richardson, nem Defoe, muito menos Fielding, portanto, teriam aceitado o
realismo formal como uma premissa, da maneira como Watt dá a entender. Eles nem sequer
poderiam ter pensado nos termos do teórico, pela simples razão de os quatro não terem
nascido numa mesma geração. Essa afirmação pode soar como um truísmo absurdo, mas ela
pretende escavar todo um pressuposto de peso decisivo em sua teoria. O conceito de realismo
formal elaborado por Watt calca-se num modelo teleológico: ele se beneficia de séculos de
experiência literária de um gênero, supostamente coeso, para tomar a origem como
virtualmente semelhante ao estágio contemporâneo ao período em que Watt escreve.
É também – e aqui vale abusar da redundância – genérico demais. Watt pensa em
ganhar em extensão ao reunir os três autores sob a égide do realismo formal e lastreá-los a
uma tradição filosófica que, de resto, foi fundamental para quase tudo aquilo que a – nossa –
29
tradição moderna nos relegou. Só que seu movimento teórico peca ao abrir mão da
intensidade, atropelando qualquer possibilidade de uma análise detalhada que aponte, por
meio de exemplos (figuras retóricas, metáforas, etc.), as relações as quais o autor busca
evidenciar. Sua teoria não tem tempo e nem pode fazer jus à obra de um autor isolado como
Defoe, por exemplo – muito pelo contrário. Frequentemente, assistimos a um Watt forçado a
desferir golpes duros demais contra seu próprio autor, principalmente quando aborda o
quesito ‘qualidade literária’ da obra. O crítico se vê forçado a investir contra Defoe, por meio
de comparações a romancistas posteriores, ironicamente em razão de o realismo supostamente
“alavancado” por Defoe ser o elo de ligação que o crítico encontra entre os early e os late
novelists [romancistas tardios]. Expliquemos, pois.
Watt viu a seguinte antinomia: onde impera o realismo formal, há uma sensação de
aumento do grau de veracidade do relato; porém, esse acréscimo de verossimilhança ocorre,
de modo necessário, às custas da capacidade estilística e de tudo aquilo que “desvia nossa
atenção do conteúdo do relato para a habilidade do relator” (WATT, 1957, p. 126). Dito de
outra maneira, quanto mais o romancista segue à risca o realismo formal, mais ele tende a ver
empobrecido esteticamente o resultado de seu trabalho:
[a]figura-se, então, que a função da linguagem é muito mais largamente
referencial no romance do que em outras formas literárias; que o gênero por
si só trabalha mais por apresentação exaustiva do que por concentração
elegante. (WATT, 1957, p. 26)
Nessa espécie de escala gradativa, quanto mais perto do realismo formal estiver o
autor em questão (Defoe), pior esteticamente será, necessariamente, sua obra, uma vez que as
intenções realistas do uso da linguagem servem, afinal, a propósitos de referencialidade, de
imitar a realidade. Nada poderia, portanto, haver de mais distante desse projeto do que as
opacidades poéticas advindas do cânone tradicional. O escritor que mais se distancia da
técnica realista moderna (Fielding) – e de sua ‘linguagem transparente’, talvez quisesse ter
dito Watt –, faz dela um objeto de atenção por si só, esmerando-se nos ornamentos e
exercícios figurativos, mas ao preço de desertar da luta ideológico-geracional posta em
questão assim que abandona o realismo formal.
É embalado por essa lógica, estreita demais, que o leitor, quando dá conta de
comentários como este, na obra de Watt, quase nem se sente importunado:
[a]s seções precedentes não pretendem negar a importância de Defoe como
romancista, mas apenas demonstrar um fato que talvez ainda fosse
considerado como ponto pacífico caso não houvesse sido desafiado ou ainda
fosse negligenciado pelos críticos recentes: os romances de Defoe não têm
nem a coerência de detalhes de que muitos escritores menores são capazes,
30
Essas partes, que devem ser interpeladas em sua relação no interior da “estrutura
total”, são, para Watt, “seus principais componentes, enredo, personagem e tema moral”
(1957, p. 103). Mesmo Moll Flanders – obra que, no centro da teoria do crítico, goza de certo
prestígio em termos de qualidade romanesca muito superior a Robinson Crusoe, uma “história
que talvez não seja um romance” (WATT, 1957, p. 91) – não foi capaz de isentar o escritor
setecentista da pecha de romancista menor. Segundo Watt, Defoe teria tanto falhado em
oferecer-nos um enredo coeso – seu “forte eram os episódios brilhantes”, afirma (WATT,
1957, p. 130) –, quanto um personagem e um plano moral coerentes – Moll seria
extremamente volúvel, descritiva e moralmente falando.
Watt nega ainda que Defoe tenha sido capaz de empregar, conscientemente, aquela
que talvez seja a figura de linguagem do romance por excelência: a ironia. Para compor
usando esse tropo linguístico, sugere o teórico, o autor precisa ser capaz de exprimir, em seu
texto, uma profunda percepção das contradições que afligem a humanidade, ao induzir, nele,
de maneira propositada, uma pluralidade de leituras contraditórias possíveis. A opção pela
‘correta interpretação’, que desfaz a sensação gratuita de aleatoriedade e, portanto, possibilita
a chave irônica de leitura, só se conclui quando ficamos a par da ‘verdadeira intenção’ do
autor, isto é, quando puxamos pela meada o fio, deixado por ele, que percorre o texto e aponta
para um caminho seguro em meio à multiplicidade de escolhas. Continua Watt, dizendo que, a
partir desse momento, todas as aparentes contradições, apenas esboçadas, dissolvem-se por
trás de um projeto conciso, que domina a leitura da obra daí por diante, indicando uma atitude
31
extremamente hábil e alerta por parte daquele que escreve. Nada, portanto, mais distante dos
predicados “humilde e imponderada” da prosa literária de Defoe (WATT, 1957, p. 120), uma
carta obviamente fora do baralho.
Por outro lado, o teórico pondera muito bem que a leitura irônica da obra de Defoe
talvez tenha menos a ver com um problema de crítica que de história social. Argumenta, de
maneira apropriada, que nós, leitores contemporâneos, vemos ironia onde Defoe e seus
leitores do século XVIII não poderiam ter tido o distanciamento histórico necessário para
obter o necessário efeito de cinismo. As excessivas preocupações mundanas de Moll Flanders
com o dinheiro, por exemplo, parecem chocar mais o nosso casto e, portanto, pouco cotidiano
senso religioso, do que o de Moll e o do corriqueiro puritanismo já um tanto secularizado de
sua época. Esse justo argumento franqueia terreno ainda para outra boa colocação, que só
tende a aumentar em plausibilidade conforme vamos ganhando ciência da dimensão sincera
do gesto de Watt.
O crítico oferece como uma explicação alternativa para a leitura irônica de Moll
Flanders um desvio interpretativo estimulado pela sua própria teoria. Ao contrário do
anteriormente afirmado, há aqui, também, um problema tanto de crítica quanto de
perspectivismo histórico. O crítico reconhece, nos fatores condicionantes de sua tese sobre a
ascensão do romance, escorada no conceito de realismo formal – a mirada teleológica,
anacrônica, e o caráter extremamente generalista, distanciado dos textos – caminhos que o
teriam levado, assim como a qualquer leitor que partisse das mesmas premissas, a um rumo
equivocado de construção de sentido dentro da obra do escritor:
Há uma outra explicação histórica, ligeiramente distinta, para a tendência
contemporânea de ler Moll Flanders ironicamente: a ascensão do romance.
Situamos os romances de Defoe num contexto muito diverso daquele de seu
próprio tempo; hoje em dia, nós levamos os romances muito mais a sério.
Tal suposição, combinada à maneira de escrever de Defoe, forçam-nos a
explicar grande parte como irônica. Acreditamos, por exemplo, que uma
sentença deva ter unidade; se devemos inventar uma para sentenças que são,
na verdade, uma cumulação aleatória de orações contendo muitos itens
disparatados ou incongruentes, podemos impor uma unidade apenas por
meio da subordinação irônica de alguns itens a outros. O mesmo se dá com
as unidades maiores de composição, do parágrafo à estrutura total: se
partirmos do pressuposto, em bases apriorísticas, que deve estar presente um
plano coerente [o realismo formal?], nós encontraremos um, e a partir dele
elaboraremos um complexo padrão com aquilo que na verdade não passa de
incongruências. (WATT, 1957, p. 129; acréscimos nossos)
Watt não pode escapar de um mea culpa tanto quanto não pode escapar da comparação
dos romances de Defoe com a tradição que veio a seguir – comparação em que este autor leva
o invariável predicado de romancista menor, atributo inevitável dentro de uma estrutura
32
conceitual que toma escritores como Flaubert, Balzac e Zola como parâmetro avaliativo de
um autor em tudo diferente e ainda situado, de maneira desfavorável, a mais de um século de
distância. Comparada com as criações dos escritores posteriores, verdadeiras obras primas no
uso da ironia, repletas de técnicas que desvelam profundos mergulhos psicológicos e que
interpolam cuidadosamente pontos de vista narrativos diferentes, a narrativa de Defoe, plana e
ausente da densidade dos dramas interpessoais e morais, deve sem dúvida parecer
absurdamente limitada. Mas Watt não pode evitar a comparação: “[n]ós não podemos senão
abordar as obras de Defoe através das expectativas literárias que os mestres posteriores da
forma tornaram possível.” (1957, p. 130).
2.3 A ascensão do realismo formal no Brasil: o espalhar das raízes de uma metáfora
conseguiu “romper mais cedo e de modo mais completo com os temas e o estilo da ficção
anterior” (WATT, 1990, p. 54). Vasconcelos insiste na qualidade cross-cultural do gênero.
Além disso, também apresenta uma pesquisa atualizada sobre a posição das mulheres na
sociedade inglesa de então, sublinhando seu papel capital na disseminação do gênero. Outras
interessantes revisitações ao estudo original de Watt dizem respeito à busca por dados
relevantes acerca da recepção da forma literária à época. Vasconcelos analisa prefácios, cartas
de leitores, periódicos e revistas literárias que teriam tido papel significativo na trajetória de
formação do romance. Tudo isso, contudo, não é suficiente para fazer com que a autora veja
maiores complicações na adoção da concepção central à teoria de Watt, isto é, da forma
realista da narrativa do romance.
Mckeon, autor frequentemente referenciado por ela, já pensa o contrário, ao afirmar
que “a vulnerabilidade de Watt” tem sido a de “delimitar uma característica formal do
romance.” (MCKEON, 2002, p. 3) 5. Ciente das críticas, Vasconcelos percorre os caminhos
mais recentes e os estudos mais sofisticados sobre o realismo formal enquanto estratégia
literária, citando autores como o próprio McKeon e Raymond Williams, responsáveis por
terem revisitado o conceito e trazido novos elementos para melhor compreendê-lo. Não
obstante esse esforço de reinterpretação do conceito wattiano, à luz de novas teorias, do ponto
de vista das premissas que dão sustentação à noção de realismo formal, Vasconcelos ainda é
incapaz de livrar do conceito aquilo que o próprio Watt qualificou como uma ingenuidade
epistemológica (epistemological naïveté) (WATT, 1957, p. 7).
Fazendo referência à celebre tese do teórico inglês sobre a equivalência entre a
ascensão do romance e a ascensão da classe média inglesa, a autora vê, no trabalho de Watt, a
possibilidade de um porto seguro em meio à dissolução de sentido pós-moderna:
Nesses tempos ditos pós-modernos em que a realidade e a História são
contestadas enquanto categorias analíticas e em que se quer transformar tudo
em discurso, é reconfortante voltar ao estudo de Watt e acompanhar uma
exposição que procura descobrir, na materialidade da História, as causas de
um fenômeno cultural da mais alta relevância. (VASCONCELOS, 2000,
p.13)
5
Embora teça sérias críticas ao conceito de realismo formal, em razão de crer que este aprisione a forma do
romance, Mckeon não pretende estabelecer uma crítica à ideia de gênero ou de forma, que lhe dá ensejo, pois,
resgatando concepção de Claudio Guillén, acredita que “[u]m gênero é ‘um modelo solucionador de problemas
ao nível formal’” (MCKEON, 2000, p. 1). Veremos mais adiante, ainda neste capítulo, considerações sobre a
teoria do autor inglês.
34
uma introdução crítica que expõe toda sua filiação teórico-metodológica. Justamente nesse
capítulo, é possível avaliar as consequências que suas preconcepções teóricas sobre o gênero
literário acarretam na subsequente análise dos trechos de obras específicas. É sobretudo a
partir do recurso ao trabalho de Vasconcelos, mais emblemático que o de Watt, em razão das
metáforas que sugere – senão pela controvertida atualidade que concede à tese do autor inglês
–, que os modelos explicativos baseados nas ideias de ascensão do romance e de realismo
formal ganham contornos mais visíveis. Assim, somando os conceitos abstratos de Watt às
imagens insinuadas por Vasconcelos, vemos facilitado o acesso a concepções epistemológicas
e visões espaciais particularmente problemáticas para uma discussão sobre o gênero
romanesco e, especialmente, para uma análise da obra de Defoe.
Logo de início, Vasconcelos reconhece a existência de críticas recentes à noção de
realismo formal como Watt a elaborou. Tomando por base a argumentação central da tese de
Mckeon, que questiona a força da ruptura, anunciada por Watt, entre o novel e a narrativa da
ficção anterior, o romance, bem como com a epistemologia e os valores socioéticos pré-
modernos, Vasconcelos chega a afirmar que “[não] cabe, na reivindicação do predomínio do
realismo como traço essencial do romance, o conceito do gênero como forma “pura”, avessa à
mistura, às contaminações, à variedade e ao cruzamento de fronteiras.” (VASCONCELOS,
2000, p. 26). Watt, podemos inferir, a partir do comentário de Vasconcelos, teria
negligenciado dois aspectos importantes: primeiro, a persistência de elementos da tradição no
interior da forma do romance, e, segundo – também uma consequência do primeiro –, a
“impureza de gênero”, impossível de ser dissipada apenas pelo recurso ao realismo como
lastro formal.
Seria de se esperar, portanto, que, a partir dessas prudentes ressalvas, a pesquisa de
Vasconcelos avançasse no sentido de questionar a validade do conceito de realismo formal,
lançando sóbrias dúvidas sobre a necessidade de um aprisionamento apriorístico da forma do
romance. No entanto, a autora se vê mais uma vez obrigada a declarar fidelidade a seu porto
seguro teórico, reconhecendo no legado do gênero romanesco um processo total de ruptura
com a tradição, e ainda afirmando “que uma das balizas fundamentais das reflexões que se
seguem é a concepção hegeliana do romance como epopeia burguesa de tal maneira adequada
à nova ordem do mundo que o realismo passa a ser um dado determinante e inerente à sua
forma” (VASCONCELOS, 2000, p. 7).
O próximo passo de sua investigação – e de todo estudo verdadeiramente histórico,
diria ela – é o de procurar pela passagem que leva diretamente ao modelo original da forma
literária. Ora, afirma Vasconcelos, “quando não se quer abrir mão da visão histórica, é
35
praticamente impossível fugir do problema das origens.” (2000, p. 6). “O desafio”, no entanto,
pondera, estaria em “não confinar o romance em algum ‘celeiro eterno de formas’ [...], mas
radicá-lo no chão firme da História.” (VASCONCELOS, 2000, p. 6). Vasconcelos chega a
afirmar que poucos são os temas tão controversos na história dos gêneros literários como o
das origens do romance. Lança, de modo consequente, sérias dúvidas sobre a pertinência de
embarcar em tal empreitada, mas todo arrazoado não surte o efeito desejável, de impedi-la de
seguir por um caminho já previamente estipulado:
No fundo, talvez seja uma tarefa impossível e um esforço infrutífero tentar
traçar e delimitar as origens de uma forma literária cujo aparecimento e
rápido desenvolvimento apresentam causas complexas e, em grande medida,
obscuras. Pode parecer no mínimo temerário falar em origens e começos,
como se estivéssemos envolvidos na busca de um in illo tempore mitológico,
onde encontraremos as respostas para todas as perguntas e a chave de todos
os mistérios. Mas o fato é que as formas literárias têm uma história, elas não
se colocam para além e para fora da História, como se coexistissem ideal e
eternamente num vazio espácio-temporal. Nenhum gênero literário tem,
como o romance, suas raízes mais firmemente fincadas no tempo histórico e
em contextos sócio-culturais específicos, sem que ele se obrigue, com isso, a
abrir mão da fantasia, da imaginação criadora que lhe permitem, por
exemplo, incorporar elementos romanescos ou fantásticos [...]
(VASCONCELOS, 2000, p. 4, grifos nossos)
Gilles Deleuze e Félix Guattari (2011) chamam a atenção para a lógica binária com a
qual o composto árvore/raiz mantém relação. Apontam também na direção do flerte existente
entre o modelo e a noção de mimese. O sistema baseado na oposição árvore/raiz evidencia, na
opinião dos autores, a tradicional forma por meio da qual muitas teorias explicam, a partir de
dualidades simplistas, fenômenos tipicamente múltiplos. Os diferentes modelos
representativos arborescentes seriam, assim, nada mais que realizações de procedimentos
intelectuais que atuam no sentido de “decalcar” a multiplicidade típica da livre associação dos
processos rizomáticos. Demonstrando um muito oportuno senso de escolha, os autores
recorrem à metáfora dos livros, ao buscarem explicitar o funcionamento, falaciosamente
representativo, dos modelos e sistemas arbóreos:
Um primeiro tipo de livro é o livro-raiz. A árvore já é a imagem do mundo,
ou a raiz é a imagem da árvore-mundo. É o livro clássico, como bela
interioridade orgânica, significante e subjetiva (os estratos do livro). O livro
imita o mundo, como a arte, a natureza: por procedimentos que lhes são
38
próprios e que realizam o que a natureza não pode ou não pode mais fazer.
A lei do livro é a da reflexão, o Uno que se devém dois. Como é que a lei do
livro estaria na natureza, posto que ela preside a própria divisão entre mundo
e livro, natureza e arte? [...] o livro como realidade espiritual, a Árvore ou a
Raiz como imagem, não para de desenvolver a lei do Uno que devém dois,
depois dois que devêm quatro. A lógica binária é a realidade espiritual da
árvore-raiz. [...] Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a
multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é
suposta para chegar a duas, segundo um método espiritual (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p. 19-20, grifo nosso)
Nos trechos grifados, pode-se observar como a noção de mimese, prodigalizada pelos
modelos arborescentes, opera de maneira insidiosa. A passagem evidencia a contradição
presente em discursos que alegam neutralidade objetiva no processo de investigação de uma
lei – por conjectura apreciada como um fenômeno natural, do tipo que estabelece uma ponte
entre a arte e a realidade –, quando na verdade são os próprios discursos os responsáveis por
postular e regular a existência de tal lei, de modo apriorístico. A comparação com a lógica
operante no conceito de realismo formal é inevitável. A categoria de Watt mais impõe um tipo
de leitura específico, mimético, às obras, do que se deixa delas – supondo que isso seja
possível – ser extraído.
O realismo formal está, portanto, impregnado pela ideia de mimese, princípio
constitutivo dos modelos arborescentes. Uma vez que se ergue sobre tais modelos,
responsáveis em última análise por lhe garantir uma arquitetura espacial e epistemológica
pronta, o realismo formal parece incapaz tanto de escapar a um jogo de ‘espelhamento com a
realidade’, quanto de, conscientemente, não se aproveitar dele. A sedução que as
“características quintessencialmente modernas do romance” exerceram sobre vertentes
sociológicas da historiografia literária levou gerações de pesquisadores a optar pelo uso do
conceito de realismo formal como a plataforma ideal para a confecção de um tipo de história
literária que toma o gênero, ou qualquer característica essencial sua, como objeto
representativo – leia-se: espelho artístico da realidade –, na homologia entre processo
histórico e obra literária. Nesta balança, em que arte e história aparecem equilibradas, o
gênero romanesco passa a ganhar sentido – e somente assim, ao que parece – como o
equivalente artístico, vale dizer, representativo, das abstrações do campo histórico – classe
social, individualismo econômico, capitalismo etc. E essa simples premissa pareceu bastar por
muito tempo como uma explicação razoável:
Central para a teorização do romance como uma entidade histórica é a
premissa de que o romance, gênero quintessencialmente moderno, está
profundamente entrelaçado à historicidade do período moderno, da
modernidade em si. (MCKEON, 2000, p. xv; grifos nossos)
39
Conforme afirma Ian Watt, o que o romance suscita de maneira mais contundente que
qualquer outra forma de literatura é “o problema da correspondência entre a obra literária e a
realidade que ela imita.” (WATT, 1990, p. 13). Para Vasconcelos, o “procedimento que é
próprio” do romance, que lhe confere “interioridade orgânica”, que é lastro de uma
“homologia [...] entre a forma literária e processo social” (VASCONCELOS, 2000, p. 13), é o
seu realismo formal. Por essa razão, a autora conclui que, sendo a forma literária “que coloca
de maneira mais premente sua relação com o mundo”, o romance naturalmente “nos obriga a
olhar detidamente para o problema da adequação da forma ao material e para as questões de
elaboração formal.” (VASCONCELOS, 2000, p. 13).
Há, na visão realista do romance, portanto, forte pressuposição de uma anterioridade
do real em relação à sua representação literária. O real é um dado material, emergente de uma
realidade pré-dada, enquanto que a ficção é a tentativa de articular, por um lado, os dados
captados pelos sentidos, e, por outro, o registro escrito que os comporta. O real, o espaço e o
tempo estão sempre em primeiro plano com relação ao que a mente humana é capaz de captar
e de produzir a seu respeito. São, portanto, formas imediatas de conhecimento. O que está
posto em questão é a opção por um modelo empirista do processo cognitivo pelo qual o
homem e seus sentidos são meros captadores no processo de reprodução do mundo.
Entende-se por que Watt descartou como irrelevante o pesado impacto da ingenuidade
epistemológica operante no conceito. Entrar no debate teria significado, para o autor,
submeter-se a uma regressão a pontos problemáticos da teoria do conhecimento, pontos esses
que acabariam por suscitar uma chusma de comentários sobre a sua questionável defesa, em
plena metade do século XX, de formas inatas do conhecimento e da existência de categorias a
priori da psique humana. E isso na contramão de seu interesse primário, que o impulsiona a
pular logo para uma segunda etapa da discussão, propriamente sociológica, de traçar as linhas
fixas que ligam a literatura e a realidade social que ela imita.
De maneira geral, modelos arborescentes ensejam a opção mais conveniente para
fundamentar operações teóricas que lidam com questões de gêneros ficcionais. A pretensão à
generalidade e à correlação entre processo histórico e forma literária, recorrente nos estudos
históricos sobre gênero, frequentemente coloca como questão fundamental a busca por um
dispositivo de interface homológica entre arte e mundo que ela representa. A Hegel, mais
uma vez, e seu casamento promovido entre a filosofia da história e a estética idealista, muitos
teóricos devem a viabilidade conceitual de identificar um conteúdo ideal, essencial de cada
época histórica, na manifestação sensível de uma forma artística (MORETTI, 2007).
40
what if the queen should die? [Uma resposta a uma pergunta a qual ninguém pensa, a saber,
mas e se a rainha morresse?], publicados no decorrer do ano de 1713, tratando sobre a
problemática questão da eventual sucessão de um trono Stuart, após a morte da Rainha Anne,
levaram Defoe mais uma vez à cadeia.
Talvez o recurso às tais retóricas ficcionais se afigurasse aos olhos do autor como uma
promessa de garantia de anonimato, um instrumento útil para esconder as pistas que pudessem
levar da materialidade do escrito à corporalidade do autor – fundamento último de uma
referencialidade hipertextual e, em todo caso, fiança de um contrato jurídico com a escrita a
um só tempo cerceador e potencialmente doloroso. Defoe bem o sabia. Apesar de ele ter
alegado em sua defesa, no caso do The shortest way with the dissenters, que a intenção do
panfleto não era perturbadora, mas, sim, irônica, o autor acabou sendo condenado por libelo
sedicioso e, segundo seu biógrafo, “sentenciado com atípica severidade a ficar três vezes no
pelourinho, pagar uma multa (£135) e voltar ao encarceramento em Newgate [...]”
(RICHETTI, 2005, p. 23). O pelourinho, nas palavras do biógrafo Richetti,
era uma estrutura de madeira erigida em um poste ou pilar; com duas placas
móveis presas a ela, articulada de tal forma que a cabeça e os braços de uma
pessoa pudessem ser inseridos e então travados no lugar. Tal punição era
mais do que desconfortável; pessoas colocadas no pelourinho eram
frequentemente sujeitas ao ridículo, ao abuso verbal, e até mesmo à punição
física por multidões descontroladas que – naqueles dias de maneiras públicas
mais grosserias e mais frouxas – se juntavam ao redor e às vezes
arremessavam perigosos projéteis, tais como pedras e lixo, no infeliz
malfeitor. (2005, p. 23)
Talvez não tenha sido o caso de Defoe haver inventado – quer seja por causa de seus
“geniais” dotes literários, quer seja por ter encontrado um maquinário narrativo pronto ex
machina – uma espécie de forma literária que estabeleceu, pela primeira vez, uma atípica
situação de confusão em torno dos conteúdos de fato e ficção. Pondo em outras palavras,
talvez não seja um atributo nem de Defoe – como muitos biógrafos sugeriram –, nem do
romance, que ele supostamente ajudou a criar, a incontrolável tendência para a falsidade
ideológica.
O baralhamento de fato e ficção, supostamente fabricado por Defoe para que o
romance conseguisse passar-se por um ‘gênero verdadeiro’, numa época em que o público
teria tido – acredita-se – especial aversão aos tipos ficcionais de escritos, parece não dar conta
do real panorama epistemológico no qual circulavam os gêneros e discursos daquele momento
histórico. Mesmo que proceda o dado sobre a repulsa puritana pela ficção – justificada no
argumento de uma visão reverencial da linguagem bíblica e na defesa de um plain style [estilo
simples], no uso cotidiano da linguagem –, nada parece autorizar, a partir dessa suposição, o
45
salto interpretativo a priori em que Defoe, num movimento ousado e original, e ainda o
romance, por meio de sua inovadora linguagem mais referencial, aparecem como os grandes
avatares de uma virada literário-epistemológica no começo do século XVIII. Se, como vimos,
um mero panfleto político era capaz de fazer soçobrarem os frágeis limites entre o verdadeiro
e o simbólico – bem antes de Robinson Crusoé sonhar em abandonar o lar paterno e cravar
pegadas na ilha deserta da ficção moderna ocidental –, talvez a crítica tenha voltado seus
olhos por tempo demais para o brilho excessivo do romance e não pôde, por isso mesmo,
enxergar mais nada à sua volta.
Por hora, e de modo bastante generalista, podemos apenas afirmar que o romance de
Defoe se aproveitou de certo padrão epistemológico da época, que tornava mais complexa a
nossa trivial e ao mesmo tempo aguçada separação entre as categorias de fato e ficção. Parece
razoável, portanto, partindo desse ponto, argumentar contra a tranquila disponibilidade em
distinguir uma primazia da ficção na interpretação que o realismo formal, e sua ideia de
mimese, fizeram da obra de Defoe. Se o autor experimentava, como supõem os críticos, e se
havia uma situação favorável a certa “indecidibilidade” entre fato e ficção – conforme
sustentaremos mais detidamente adiante –, por que não sugerir que, ao contrário do que se
afirma, Defoe não teria feito recurso ao real para disfarçar/melhorar sua ficção, mas, sim, que
o empréstimo teria sido, na verdade, pedido à ficção, e destinado a incrementar o capital
retórico de seus textos, digamos, “sérios”? Ou ainda, por que não insinuar que a cessão feita
pelo escritor à ficção tenha tido por função, também, afiançar a integridade física do autor?
É como se a obra ficcional de Defoe estivesse levantada a meio pau na preceptística
aristotélica, entre a mimese poética e a histórica, mas sensivelmente mais pendente para a
segunda. Ao percebermos que o autor poderia ter se valido do dispositivo de imitação da
natureza humana, facultado pela poética aristotélica como maneira de se atingir um ideal
possível de ‘natureza humana’, espanta-nos perceber o quanto sua ficção é comedida, rés-do-
chão. Moderada, ela nunca alça voo para muito distante, não da Verdade da poesia, mas da
verdade menor, aquela pertencente à história, a do provável e do realmente ocorrido. E isso
até mesmo em textos como panfletos políticos, conforme vimos. A ficção, quase sempre
aparece como um expediente retórico, uma maneira de ilustrar melhor um argumento ou um
ponto de vista. Mesmo quando recorre à ficção, Defoe parece narrar a partir do locus
discursivo da verdade histórica.
Justamente, em razão disso é que as teorias de ascensão do romance, ancoradas no
realismo formal, parecem puxar a explicação pelo lado equivocado. Elas se obstinam em
explicar como o romance, ou sua obra ficcional, é distinta das demais ficções por haver
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tentado ludibriar o leitor valendo-se de atributos próprios dos discursos tendentes ao histórico.
Mas e se elas nunca tivessem partido do ponto da ficção, mas, sim, de seu polo aristotélico
oposto? Como então explicar esses empréstimos ao pensamento filosófico realista, à
autobiografia, às narrativas de viagem? E se muitos dos discursos que, atualmente, creditamos
como ficcionais – o romance inclusive – tivessem estatuto factual para aquele momento de
transição epistemológica? Ou ainda, e se muitos dos discursos sobre o real – autobiografia,
história, economia, etc. – tivessem aceitado a ficção como elemento não perturbador de suas
pretensões descritivas sobre a realidade? Se mesmo alguns discursos contemporâneos, como o
biográfico, parecem reencenar este mesmo drama, que dizer daqueles de quase trezentos anos
atrás?
Se, por outro lado, aceitamos tranquilamente o continuum explicativo de Watt e
Vasconcelos como medida para as obras de Defoe, não resta dúvida sobre as características
ficcionais a priori delas. Afinal, sabemos o que é o romance após séculos de experiência
receptiva e, por isso mesmo, não hesitaríamos em enquadrar a obra realista balzaquiana, por
exemplo, como ficção – este é um nome por demais conhecido e associado à venerável
tradição ficcional moderna. Ora, esse silogismo de orientação temporal invertida raciocina: se
nós, leitores e críticos do século XX ou do XXI, sabemos que o romance é ficção e também
sabemos que a obra de Defoe é romance, então, forçosamente, ela deve ter sempre sido
interpretada como ficção. De qualquer forma, seria muito difícil exigir algo diferente dos
projetos dos teóricos realistas. Conforme pudemos acompanhar, o escopo de seus programas é
de natureza extremamente ambiciosa: neles, a situação particular de um autor ou de um
período isolados não pode merecer muito destaque; o todo é sempre mais importante que as
partes.
Já pudemos ver que, pelo caminho desse tipo de análise, toda possibilidade de explorar
um universo que requer uma zona de incerteza, de estranhamento vivo para fazer vingar seus
frutos, esgotou-se. Resta, à espera pela diminuição da intensidade do brilho da definição do
romance, uma imagem – ainda por ser feita – do espaço discursivo no período em que Defoe
escrevia seus romances. Imagem essa que seja capaz de dar visibilidade às estrelas
secundárias e suas respectivas constelações de sentido no universo de escritos de Defoe e de
sua época.
47
Em 1987, Michael Mckeon publica seu Origins of the english novel, trabalho
responsável por trazer maior nuance ao estudo sobre o surgimento do romance inglês e sua
ascensão naquele país; isso, não obstante o conteúdo de seu título, que, segundo o próprio
autor, em uma referência a Marx de Grundrisse, deve ser tomado “cum grano salis” (2002, p.
19). Em sua obra, Mckeon parece ter compartilhado do mesmo incômodo com a premissa
apriorística presente no postulado do realismo formal de Watt, enfática somente nas
características inovadoras, individualistas e realistas do novel. O principal argumento de
Mckeon, nesse estudo, é o de que a tese da ascensão do romance baseada no conceito de
realismo pecou ao haver deixado de fora do conteúdo formal do gênero elementos oriundos
do principal tipo de narrativa de ficção anterior (o romance de cavalaria [romance]), de forte
caráter idealista e ligado a um universo sociocultural marcado por valores aristocráticos. De
certa forma, conclui Mckeon, a tese de Watt apenas teria reforçado uma inadequação teórica
ao haver aprofundado ainda mais a emblemática clivagem entre o novel e o romance.
O autor também chega à conclusão de que a força do “quadro explicativo” oferecido
pelo conceito de realismo formal de Watt seria inversamente proporcional à capacidade de
análise detida da obra de cada um dos autores. “Se quisermos Fielding”, oferta como
exemplo, “devemos dissipar e enfraquecer o quadro explicativo [de Watt] ao requerer dele
que acomode elementos do romance de cavalaria [romance], tanto no interior do romance
[novel], quanto concomitantemente a sua ascensão” (MCKEON, 2002, p. 3). Colocando em
suspenso, pois, o realismo formal como principal ferramenta de análise do fenômeno da
ascensão do romance, a proposta declarada de Mckeon é a de sofisticar a tese clássica de Watt
– principalmente com respeito à ascensão da classe média –, por meio daquilo que ele chamou
de uma “teoria dialética do gênero” (2002, p. 20). Aqui o crítico-historiador quer deixar clara
sua filiação teórica, demonstrando que o recurso a Marx não se esgota em uma simples
transcrição, à guisa de recomendação relacionada ao título de seu projeto, mas perpassa
decididamente sua estrutura teórico-metodológica.
Central para sua teoria dialética de gênero está a ideia de abstração simples, como a
formulou o autor de Grundrisse. Mckeon introduz a distinção feita por Marx, em algum ponto
dos volumes dos escritos que formam a obra anteriormente mencionada, entre duas
modalidades de abstração – uma a que o pensador alemão chamou de “racional”, e outra a
48
qual denominou “simples”. Utilizando a categoria “trabalho” como exemplo, diz Mckeon,
Marx teria partido para ponderar sobre o significado e os limites de uma abstração racional
como a de “trabalho em geral”. Marx raciocinou que, a despeito de sua antiguidade, uma
categoria “racional” como a de “trabalho em geral” somente poderia atingir sua plenitude de
sentido nos escritos de um sujeito histórico como Adam Smith, para quem “a indiferença com
relação a qualquer tipo específico de trabalho pressupõe uma totalidade bastante desenvolvida
de tipos reais de trabalho, dos quais nenhum mais é predominante” (MARX apud MCKEON,
2002, p. 18). Essa indiferença com relação às formas específicas, para Marx, “corresponde a
uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem, com facilidade, mudar de um trabalho
para o outro” – (apud MCKEON, 2002, p. 18), e na qual essa atividade singular “deixou de
ser organicamente conectad[a] a indivíduos particulares, de um modo específico qualquer.”
(apud MCKEON, 2002, p. 18).
Ou seja, a abstração racional, conforme elaborada por Marx, conclui Mckeon, deve ao
desenvolvimento – dialético, claro – da história sua própria existência enquanto uma categoria
capaz de abstrair fenômenos particulares: a abstração racional consegue refletir sobre formas
específicas e anteriores justamente porque pressupõe um estágio cumulativo do
desenvolvimento material da história em que todas essas formas pregressas, elementares, já
estão dadas como os próprios condicionantes materiais de sua existência. O erro fatal do tipo
de categoria “racional”, no entanto, estaria em seguir o padrão “fundamental a todo tipo de
vida [dialética] histórica” (MCKEON, 2002, p. 18) – significativamente mais evidente nas
categorias próprias ao universo do capitalismo, dizia Marx –, que é sua predisposição em “se
considerar a partir de uma parcialidade unilateral, de se isolar do continuum” dialético da
história em que estão imersas, inseparavelmente, as diversas formações sociais (MCKEON,
2002, p. 18). Deixando-se seduzir por esse impulso narcisístico, a abstração racional
negligencia as demais formas rudimentares pregressas – condicionantes materiais de sua
existência e, em certo sentido, matéria de seu próprio ser –, ao destacar-se enquanto produto
histórico último e único – uma espécie de autoproclamada causa incausável.
O paralelo com a noção de romance de Watt está apenas subentendido a essa altura.
Podemos pensar que sua noção reificada, completamente abstrata de romance se encaixa bem
nessa categoria definida por Marx e retomada por Mckeon. Somos levados a supor, portanto,
que a solução está na categoria oposta, a de abstração simples, e Mckeon de fato segue
explicando os seus benefícios. De maneira adversa à categoria racional, afirma o autor, a
“abstração simples” se aproveita de um inato poder de autorreflexão, consagrado já desde o
princípio pela maneira irônica com a qual Marx dotou o termo enganosamente “simples” de
49
sentido. Sem jamais perder de vista sua aguda autoconsciência histórica, a categoria simples
parece distintamente atenta à sua provisoriedade, enquanto instrumento conceitual
circunscrito a uma historicidade determinada. Ela, ao contrário de sua complementar, nunca
intenciona obliterar a riqueza e a complexidade das formas específicas e pregressas, após
haver conquistado um desejável nível de generalidade.
Consciente de sua própria existência, na condição de um objeto e um conceito
históricos em perpétuo desenvolvimento, ela, na verdade, em um exercício dialético, tanto
integra as formas rudimentares e específicas como partes constituintes de si, quanto também
respeita a individualidade de cada uma delas, como se fossem pequenos todos isolados em
seus universos de sentido próprios. Tal movimento de vai e vem entre enfoques – o todo, as
partes e as partes-todo – é a vantagem do mecanismo metodológico dialético que Mckeon
enxerga na categoria de abstração simples conforme Marx a formulou. Derivando, portanto,
sua perspectiva desse poder de reflexividade e movimentação dialética, Mckeon e sua tese
partem para argumentar que o trabalho com um conceito e com um objeto como o novel6 deve
vir acompanhado de um correspondente movimento analítico amplo e dinâmico. Não mais
centrada no empenho explicativo de uma característica definidora de gênero, a tese de
Mckeon quebra com o rigor categórico das teorias sobre o realismo formal. Mais liberta, ela
se volta, agora, para os reveses de enfoque analítico no interior de um gênero literário
entendido não como um monólito, mas, sim, como um complexo relacional. Complexo
formado de um todo genérico – o novel – cujas partes – traços de outras formas – formam
também pequenas totalidades plenas de sentido, que, por sua vez, se relacionam tanto entre si
quanto com o todo maior.
Tal opção teórico-metodológica amplia o conceito de gênero de Mckeon, afastando-o
de uma busca épica pela definição categórica baseada num conceito estático como o de
realismo formal. Além do mais, a alegada autoconsciência histórica da categoria “simples” e
dialética de gênero faz com que a procura pela origem do novel, no estudo de Mckeon, receba
um tratamento mais problematizado que o de costume. Estimando fazer jus àquela pretensa
característica distintiva de seu objeto de estudo – a autoconsciência histórica do novel,
entendido a partir da noção de ‘abstração simples’ proposta por Marx –, o crítico estabelece,
como uma das premissas de sua investigação, a existência de uma pré-história – também
chamada de pré-imediatidade pelo autor – de evolução material e categorial do romance
6
Sua análise opta por restringir conscientemente o escopo genérico de Watt. Interessa a Mckeon estudar as
origens e a ascensão do romance inglês no século XVIII, sem maiores extrapolações para obras e períodos
posteriores.
50
inglês, ocorrida antes mesmo do surgimento da forma para a consciência coletiva da época.
Pré-história essa frequentemente abstraída em detrimento da ideia de um brotamento
espontâneo, diz o autor.
A data de surgimento do gênero, na perspectiva dialética presente no The origins of
the english novel, é deixada para um momento posterior àquele tradicionalmente estabelecido
por autores como Watt e Vasconcelos. Mais precisamente, ela se dá no “ponto final na longa
história do uso” da abstração simples do romance inglês, um momento em que “este uso
tornou-se suficientemente complexo para permitir uma generalizante ‘indiferença’ com
relação à especificidade dos usos e uma abstração da categoria cuja integridade está
pressuposta por tal indiferença.” (MCKEON, 2002, p. 19). Mais uma vez, crendo estar
fazendo jus a uma determinação presente no conteúdo de seu objeto de pesquisa – a
disposição autorreflexiva da categoria de gênero dialético –, o autor toma a ideia de origem do
romance inglês cum grano salis, alterando, por extensão, também a percepção daquela de
forma incipiente do gênero:
Para começarmos do começo, portanto, teremos que começar pelo fim. Por
volta da metade do século XVIII, a estabilização da terminologia – a
gradativa aceitação “do romance” [of the novel] como um termo canônico,
de forma que os contemporâneos pudessem “falar dele como tal” – sinaliza
para uma estabilidade na categoria conceitual e na classe de produtos
literários que ela agrega. Meu procedimento neste trabalho será o de
regressar para além do ponto de origem a fim de desvendar a história
imediata de sua “pré-imediatidade” [“pre-givenness”]. (MCKEON, 2002, p.
19)
Dessa maneira, o ponto de vista optado pelo autor parece vantajoso como uma
tentativa de conceituação não apriorística da forma primordial característica do novel,
poupando Mckeon de um duplo dissabor: de se ver sem recurso a não ser o de empregar uma
noção espacial restritiva como a de realismo formal, ou de sair às cegas à procura da origem
temporal de uma forma por definição supratemporal. De resto, o conceito de realismo formal
só poderia mesmo trazer malefícios para a sua tese central, ao impedir que o autor defendesse
seu argumento principal, sobre a permanência, no interior do novel, de elementos oriundos da
tradição aristocrática associados ao universo idealista do romance.
Nessa busca pela “pré-história do novel” (MCKEON, 2002, p. xviii), o crítico opera
com dois grandes conjuntos de abstrações relacionais. Uma delas, que recebe o nome de
questions of truth [questões de verdade], o autor conecta às epistemologias narrativas dos
romances, e outra, denominada questions of virtue [questões de virtude], Mckeon relaciona ao
ambiente socioético do período. O novel, enquanto uma abstração simples, longe de encarnar
uma categoria monolítica, franqueia a existência, dialética, em seu próprio interior, de uma
51
disputa entre três tipos contrários de epistemologias narrativas e valores ético-morais. Por um
lado, existem as formas “decadentes” de epistemologias narrativas, que lidam tanto com
modos tradicionais no tratamento da verdade quanto na eleição de valores éticos e sociais
“reacionários”. Por outro, epistemologias narrativas “insurgentes”, acompanhadas de
sentimentos ético-morais mais “progressistas”, são compartilhadas por novos atores sociais no
cenário do século XVIII. Há ainda um terceiro tipo, que mescla elementos tradicionais e
insurgentes.
É dentro de questões de verdade que Mckeon posiciona e identifica as três espécies de
epistemologias narrativas que se enfrentam a fim de garantir preponderância – sem, contudo,
jamais consegui-la no curto prazo, afirma o autor. Estão aí a postura do “idealismo do
romance de cavalaria”, a do “empirismo ingênuo” (de Richardson, por exemplo) e a do
“ceticismo extremo” (de Fielding). Todas reunidas, e cada qual em negação dialética uma
com relação a outra, formam a dinâmica tradição x modernidade x nostalgia tradicionalista,
central para o conteúdo formal do novel na visão de Mckeon. Como valores éticos e sociais, o
autor agrupa no conjunto questões de virtude três distintas posturas, respectivamente
alinhadas às epistemologias narrativas já mencionadas. No conjunto, encontram-se a
“ideologia aristocrática”, a “ideologia progressista” e a “ideologia conservadora” – também
em flagrante conflito na sociedade e agrupadas de maneira quase didática no conteúdo dos
romances.
Para Mckeon, a tese da ascensão do romance de Watt teria falhado ao não haver
percebido que a contradição, mais do que a univocidade, é a característica formadora do
gênero. No brilhante insight a que chega, por meio de sua teoria dialética, o autor entende que
o novel teria ganhado existência individual no cenário moderno como um gênero complexo,
distinto dos demais, somente a partir do momento em que seus contemporâneos teriam tido a
capacidade de identificar uma analogia direta entre os conjuntos das categorias abstratas
questions of truth e questions of virtue. Os leitores e críticos de então teriam reconhecido, no
alinhamento entre as posições epistemológicas dos escritos e aquelas ideológicas em conflito
na sociedade, a delineação de uma forma literária que surgia para a consciência coletiva
enquanto um instrumento mediador no processo de mudança social e intelectual, responsável
por fomentar e registrar os processos de vaivém das diversas posturas, ora mais progressistas,
ora mais reacionárias, que marcaram os debates no período:
Este insight – a analogia profunda e frutífera entre as questões de verdade e
as questões de virtude – é a possível fundação do romance [novel]. E o
gênero do romance [novel] pode ser entendido compreensivamente como um
precoce instrumento cultural moderno projetado para confrontar, ao nível da
52
O novel e suas origens em Mckeon recebem uma nova orientação teórica, mais
generosa e reflexiva, que parece deitar por terra qualquer tentativa de definição e explicação
ancorada em modelos espaciais e epistemológicos apriorísticos. Nesse primeiro contato, a tese
de Mckeon demonstra trazer as ferramentas que precisávamos para elaborar uma estrutura de
análise não refratária à obra romanesca de Defoe; aliás, seria injusto afirmar o contrário.
Ainda assim, ela também não parece ser capaz de fornecer, de modo amplo, os subsídios para
o esclarecimento de algumas questões cruciais que os romances do autor londrino suscitam.
Há alguns inconvenientes na opção metodológica de Mckeon, que acabam por desembocar
num entendimento tímido tanto do devir histórico, quanto dos objetos que estão sob sua
influência.
Uma primeira inconveniência de sua tese, para um estudo como este, está na opção
pela metodologia dialética. Mckeon quer dar a entender que seu modelo relacional de gênero
dialético seja o mais adequado para abordar a complexidade dos fenômenos, pois sua
“premissa básica” é a de que “todas as categorizações são operacionais e condicionais, ao
invés de uma vez por todas absolutas” (MCKEON, 2002, p. xviii). O teórico é cuidadoso em
não se valer de um esquema dialético já pronto, como é o caso do modelo ‘tese-antítese-
síntese’ hegeliano. Afirma que é na inter-relação entre o(s) todo(s) e a(s) parte(s) que seu
método revela a plenitude de sua potência, evadindo-se da necessidade de uma síntese
completa – uma impossibilidade, afinal, que nem mesmo a dialética hegeliana teria
pressuposto, afirma o autor.
Sem dúvida, trata-se de um método que não pretende maquilar por completo o caos
da complexa realidade, tornando-a insólita como o faz o conceito de realismo formal, mas,
sim, reduzir seu número de variáveis a fim de tentar compreendê-la melhor. O problema é que
seu modelo dialético parece querer fazê-lo justamente a partir de uma perspectiva dualista – e
até Mckeon não pode negar que seu método seja, “ele mesmo, limitado por dois fatores
principais.” (2002, p. xv). O autor o justifica apelando para a suposta – não obstante
problemática – vantagem da dialética enquanto procedimento de investigação histórica (e aqui
temos a chance de evidenciar as distorções provocadas pelos modelos binários arborescentes).
Para Mckeon, o método dialético afigura-se como aquele que melhor se adequa à natureza
específica dos objetos históricos, isto é, à sua “dualidade crucial”:
[A] história se esforça em tratar seu objeto da maneira tal como ele exibe a
continuidade de uma entidade e, dentro desta continuidade, a
descontinuidade que confirma sua existência no tempo e no espaço, sua
53
Ecoa uma frase já transcrita neste trabalho: “Como é que a lei do livro estaria na
natureza, posto que ela preside a própria divisão entre mundo e livro, natureza e arte?”,
perguntavam Deleuze e Guattari (2011, p. 19-20; grifo nosso). Nesse trecho de Mckeon, temos
uma evidência ipsis litteris do que dizem os filósofos: como poderia o método de Mckeon
encontrar a lei dual que preside a natureza do objeto histórico, posto que é ele mesmo o
responsável por presidir a dualidade como lei dos objetos e, em última análise, da própria
história? Aliás, não deixa de ser sintomática a valência atribuída pelo teórico ao par “método
dialético” e “história” na passagem agora mesmo citada. Fica em suspenso a dupla
problemática definição que ela enseja: estaria o autor dando a entender que a história é
dialética ou que a dialética é “a História”? Sua “abstração simples” de novel e seu método
dialético anunciam uma reflexividade e uma consciência superior que, em momentos como
esse, parecem abandonar a tese do autor.
Por meio da alegada identificação de uma dualidade (continuidade/descontinuidade)
essencial ao objeto histórico, o trabalho de Mckeon exemplifica ainda outra prática intelectual
problemática, cunhada como “substancialista” por Gaston Bachelard (1996), em ensaio sobre
as diferentes tendências psicológicas influentes na teoria do conhecimento. A ideia de um
obstáculo substancialista ao pleno desenvolvimento do espírito científico aparece com
frequência, no texto do epistemólogo, associada à imagem de uma continência: “para o
espírito pré-científico”, diz ele, “a substância tem um interior; ou melhor, a substância é um
interior” (BACHELARD, 1996, p. 123) que frequentemente se vê forçado a conter
“qualidades que não lhe pertencem” (BACHELARD, 1996, p. 183), e cuja chave de abertura
é o objeto de desejo para o tipo psicológico substancialista.
Mais do que uma incorrigível predisposição em empregar a metafísica como
explicação válida para o conhecimento científico, o que parece influenciar determinantemente
o espírito “pré-científico” que procura a essência, a substância dos objetos, avalia Bachelard,
é a psicologia do “sentimento de ter” (1996, p. 164). A figura-tipo que parece personificar a
tendência epistemológica substancialista é, para o autor, que não abranda sua censura, aquela
do “avarento”, personagem para quem a obsessão pela posse de um objeto, visto como um
54
bem, revela “o complexo do pequeno lucro que chama a atenção para as pequenas coisas que
não se devem perder porque, uma vez perdidas, a pessoa não as encontra mais.”
(BACHELARD, 1996, p. 164).
Argumenta ainda o epistemólogo que o tipo de prática intelectual substancialista
frequentemente se desatenta do rigor imprescindível a uma investigação científica, trocando o
foco de atenção, de um modo obsessivo, da metodologia para os objetos supostamente
“encontrados como tal” na natureza. Este tipo de pesquisa, afirma Bachelard, costuma saltar
por sobre etapas metodológicas cruciais, que visam a impor, entre o observador e o objeto,
uma série de procedimentos que funcionam como garantias de um resultado, senão menos
induzido, pelo menos mais consciente da dependência com relação aos métodos empregados.
O espírito pré-científico se esquece de que o objeto, enquanto fenômeno, é apenas um dos
momentos posteriores do pensamento teórico, “um resultado preparado [...] mais produzido
do que induzido” (BACHELARD, 1996, p. 126). Ele pode, dessa forma, diz Bachelard,
transformar-se com muita facildiade em “espelho de nossas impressões subjetivas” (1996, p.
184). Ao comparar o avarento – também chamado, sintomaticamente, de realista – com o
cientista, Bachelard diz que:
[o] realista pega logo na mão o objeto particular. Porque o possui, ele o
descreve e mede. Esgota a medição até a última decimal, como o tabelião
conta uma fortuna até o último centavo. Ao inverso, o cientista aproxima-se
do objeto primitivamente mal definido. E, antes de tudo, prepara-se para
medir. Pondera as condições de seu estudo; determina a sensibilidade e o
alcance de seus instrumentos. Por fim, é o seu método de medir, mais do que
o objeto de sua mensuração, que o cientista descreve. O objeto medido nada
mais é que um grau particular da aproximação do método de mensuração. O
cientista crê no realismo da medida mais do que na realidade do objeto.
(1996, p. 262; grifo nosso)
É de se questionar até que ponto sua teoria procura fazer jus à análise detalhada dos
autores e de suas obras, ou se apenas procura defender um campo de estudos – para não dizer
uma concepção muito particular desse campo de estudos, orientada por premissas e por um
corpus teórico específico. Mckeon acaba por fazer uma declarada opção pela segunda linha de
pesquisa:
[É] relevante observar aqui que o argumento do Origins é mais crucialmente
não sobre os autores específicos que leva em conta, mas sobre as categorias
genéricas cuja eficácia foi primeiramente definida por aquela multiplicidade
de práticas narrativas específicas. Nesses termos, o gênero do romance
[novel] é uma técnica projetada para confrontar problemas epistemológicos e
socioéticos simultaneamente. (2002, p. xix)
7
Vale lembrar que, enquanto Vasconcelos admite a eficácia do conceito de realismo formal e o emprega como
modelo explicativo exemplar para a forma do novel no século XVIII, Mckeon o rechaça por razões óbvias: ele
não seria capaz de operar “para trás”, resgatando a permanência da tradição do romance no interior do novel. Ao
57
entrou em dívida com a obra do autor mais importante do romance inglês – sintomaticamente
não um escritor: Ian Watt. Embora traga para a historiografia do novel a necessidade de uma
compreensão temporal mais generosa do surgimento da forma literária, Mckeon ainda parece
preso a um esquema ficção moderna x ficção tradicional que marca um lugar-comum nos
estudos sobre o romance inglês. Sua concepção de gênero pode até ser menos plana, do ponto
de vista de uma discussão epistemológico-espacial, mas seus índices orientadores genéricos e
temporais ainda dão continuidade aos mesmos que informaram as teorias de Watt e de
Vaconcelos: uma concepção generalista de “literatura” – que simplesmente a equivale à ideia
de ficção – e dois vetores planos, horizontais – a apontar para direções distintas. Um deles
orientado para o passado (e tudo aquilo que compõe um campo semântico formado pelas
finitas relações – não gratuitamente miméticas – entre “gênero de ficção/literatura” e
“realidade social”). O outro sinalizando para o futuro (e, mais uma vez, tudo aquilo que
compõe um campo formado pelas possíveis relação entre “gênero de ficção/literatura” e
“realidade social”).
Temporalmente falando, o método de Mckeon, assim como o de Watt e Vasconcelos,
é teleológico, e devemos dar crédito ao autor por ter admitido que, “[a] esse respeito, o
método dialético é (como todos os métodos de investigação) “teleológico”, no sentido de que
inevitavelmente ele delimita e condiciona as respostas que recebe por meio das perguntas que
faz.” (MCKEON, 2002, p. xv). O que não podemos concordar é com sua estreita visão sobre a
circularidade hermenêutica imutável e obrigatória em toda investigação histórica – “[a]
circularidade característica de todo empreendimento hermenêutico advém do fato de que a
interpretação não pode evitar postular como premissa aquilo que deriva como resultado.”
(MCKEON, 2002, p. xvi) –, quando é justamente o que se pede dos estudos históricos sobre o
romance inglês: que eles deixem de lado a necessidade de encontrar, ao final do processo (ora
tomado como começo), o mesmo e sempre idêntico “gênero moderno de ficção”, objeto fruto
das sempre mesmas e idênticas perguntas: “por que o romance é o primeiro gênero de ficção
moderno?”; ou “em que o romance se diferenciaria do tipo de ficção anterior, seja ela próxima
(o romance de cavalaria), ou distante no tempo (antiguidade greco-romana)?
E aqui adentramos território afim da temática defoniana. Se a tese de Mckeon é tão
cuidadosa em não admitir um modelo apriorístico de gênero cuja forma fosse fixamente
regulada por um conceito invariável, o mesmo não se pode dizer do uso que o autor faz da
ideia de ficção. Ela funciona como régua estável na sua tabela de especificações. Admitindo
contrário, o realismo é programado para funcionar enquanto um dispositivo conceitual que aponta “para frente”,
ligado às características modernas e inovadoras, por excelência, do romance.
58
como indesejável a tarefa de estabelecer uma forma a priori do gênero romanesco em seus
primórdios, o autor é menos prudente, no entanto, quando distingue, a partir do uso da ideia
de ficção, o romance inglês dos demais gêneros do período. Ele não questiona até que ponto
seria justo reclamar para aquele momento histórico – de transição, ele mesmo o avalia – uma
clivagem tão absoluta entre discursos ficcionais (romance [novel] e romance de cavalaria
[romance]), de um lado, e a categoria mais ou menos universal dos não ficcionais, do outro.
Não importa o número de camadas e de partes que possam ser destrinchadas a partir
de um todo, se esse todo continuar a ser informado por procedimentos oriundos das mesmas
velhas preocupações. Acertando o ponto nevrálgico da teoria do romance, poderíamos
perguntar, por exemplo, qual a necessidade de tomar o gênero romanesco inglês, surgido na
segunda década do século XVIII, supostamente pelas mãos de Defoe, como uma forma de
ficção? Poucos estudos sobre o novel se deram a tal trabalho, pois ele pressupõe a elaboração
de um corpo teórico ad hoc que implica em um desapego de certas fidelidades teóricas de
longa data. Um exercício de desprendimento que pretende mais lapidar o material
metodológico – e o verbo aqui alude abertamente à ideia de mutilação –, do que burilar o
objeto para fazê-lo surgir como prova da validade universal de um método ou de uma teoria.
Acaso deixássemos de partir a priori da informação de que o romance inglês veio para
o mundo como um tipo de escrita fictícia, que faríamos com a categoria genérica produto
dessa reviravolta? Ela sem dúvida teria de espicaçar-se, mas, também – e de modo mais
promissor –, encontrar outros tipos de apoio que não aqueles convencionais para sustentar
suas possíveis análises. Dessa forma, longe de encontrarmos algo da pergunta na resposta,
como sugere Mckeon, o que poderia aparecer do outro lado do processo investigativo talvez
nem pudesse ser identificado como algo previsto pelas preceptísticas críticas recorrentes
(aliás, seria um tributo a um objeto cujo nome em inglês designa muito bem o conteúdo:
novel).
59
Ou seja, o pacto mais ou menos se estabiliza quando o leitor aceita os termos do autor
e decide pela qualidade ficcional daquilo que lê, partindo daí para uma experiência em que, ao
final do processo, vê incrementado seu repertório sobre o mundo, que sofre uma dilatação
semântica provocada pelo rearranjo de sentido operado pela linguagem da ficção. Se o
romance, ao menos na teoria de Mckeon, só ganha relativa estabilidade enquanto objeto
histórico já quase na metade do século XVIII, como é que se poderiam estabilizar as
narrativas de mais fôlego de Defoe, por exemplo, produzidas no decorrer da década de 1720,
enquanto um gênero de ficção? Que o romance de cavalaria possa ser mais ou menos
facilmente qualificável enquanto tal, pouco importa para este estudo. O fato é que o novel de
Defoe leva à confusão, ao menos para nós, entre ficção e não-ficção quase como um leitmotiv.
Talvez nenhuma de suas obras seja mais significativa a esse respeito do que A journal of the
plague year [Diário do ano da praga].
Publicado em 1722, A journal... de Defoe apresenta uma narrativa em formato de
memória, contada pelo próprio narrador, H.F., que rememora as ações que teria supostamente
vivenciado – quando não recorre, explicitamente, a relatos de testemunhas – no ano de 1665,
que viu a peste bubônica levar um quinto da população londrina para os pits – fossos ou valas
comuns. O narrador estrutura seu relato ao redor do arrependimento de não haver saído de
Londres – a despeito dos esforços de seu irmão em convencê-lo do contrário – num momento
inicial do contágio, quando a população – sobretudo a de melhor condição financeira, a corte
inclusive – afluía para fora dos portões da cidade à procura de uma melhor situação nos
campos.
60
Todo seu remorso está centrado em uma intrigante e bastante típica consciência
religiosa do período. H. F. pensa ter captado avisos divinos que lhe sugeriam ficar na cidade,
mas mais adiante percebe ter agido de modo insensato, confundido, prepotentemente, um
desejo próprio – quem mais haveria de ficar cuidando dos imóveis da família e de seu próprio
negócio?, ponderava o narrador – com uma vontade expressa de Deus. O propósito declarado
do relato é o de instruir as futuras gerações, e para tanto H.F. se esforça em oferecer
informações úteis para a sobrevivência do leitor, caso este, por infelicidade, encontre-se em
condições tão adversas quanto as suas. Aconselha-o também, sobretudo, a não cometer os
mesmos erros de julgamento – especialmente os religiosos – feitos pelo narrador.
Particularmente por essa razão, estudos apontaram para os vestígios de uma tradição de
biografia puritana na obra – um puritanismo sem dúvida um tanto quanto abalado, uma vez
que H. F. desconcerta-se perante uma malha de realidade material que lhe parece em franco
processo de esfacelamento, dificultando a reconciliação do narrador com suas próprias
convicções religiosas (ZIMMERMAN, 1972).
A grande quantidade de dados sobre a realidade material do período oferecida pelo
relato é a principal responsável por trazer elementos desestabilizadores nessa narrativa de
cunho meramente, supõe-se, espiritual. Lidando com a dificuldade em compreender a
moralidade em um tempo ao mesmo fisicamente e moralmente enfermo, e usando uma
miríade de referências bíblicas, H. F. não deixa de oferecer ao leitor um rico inventário dos
acontecimentos factuais e de personagens históricas que preencheram as crônicas daquele
ano. Somos postos a par, por exemplo, das minúcias dos métodos empregados pela
municipalidade para conter o espalhamento da peste – encerramento dos enfermos em suas
casas; fechamento das entradas da cidade; eleição de alguns habitantes para os postos de
inspetores sanitários e de guardas dos cárceres domésticos, etc. Acompanhamos, por meio da
narrativa de H. F., transcrições de uma série de documentos emitidos pelo governo londrino à
época – os inglórios bills of mortality, contendo dados quantitativos do total de vítimas fatais
semanais, por paróquia; decretos, etc. E ainda podemos admirar, esmiuçado, o tecido social
do período, composto pelos mais diversos tipos humanos elencados por H. F. – desde os
desesperados mais ordinários, até pitorescos charlatães gananciosos, um rol de personagens
históricas que não reprime suas opiniões sobre as prováveis causas religiosas e ‘científicas’ da
praga, nem os comentários acerca dos melhores métodos profiláticos para evitá-la.
É em razão dessa riqueza de detalhes do cotidiano social e espiritual de então que
Robert Mayer, especialista na obra de Defoe, em artigo sobre a recepção de A journal... desde
sua publicação em 1722, afirma existirem boas razões para crer que a obra tenha sido
61
considerada durante boa parte do século XVIII e também do século XIX como uma autêntica
versão histórica sobre o surto de peste bubônica ocorrida em Londres em 1665.
Essa obra de Defoe, produzida no mesmo ano de sua publicação, relembra Mayer, não
teria sido o único escrito do período a ter como tema a peste que invadiu a capital inglesa no
século XVII. O historiador assevera que o título teria sido produzido com vistas a aproveitar
um boom editorial que acompanhou uma ameaça de surto de nova peste em Marselha, no
começo da década de 1720. O mercado inglês, preocupado com o possível espalhamento da
doença, também caiu vítima de uma epidemia de “desejo por obras factuais, práticas sobre o
assunto”, afirma Mayer (1990, p. 531). Foram inúmeros os impressos publicados que traziam
desde conteúdos mais pontuais – notícias sobre a situação do outro lado do Canal da Mancha
–, até tratados que destrinchavam a praga e buscavam trazer informações úteis para prevenir
ou tratar o mal. Dentre esses últimos, os mais célebres exemplos citados por Mayer são o
Philosophical account of the works of nature (1721) [Relato filosófico sobre as obras da
natureza], de autoria de Richard Bradley, e também A short discourse concerning pestilential
contagion, and the methods to be used to prevent it (1720) [Um breve discurso sobre o
contágio pestilencial e os métodos a serem empregados para preveni-lo], obra de Richard
Mead, um fellow member da College of Physicians e da Royal Society e também um autor
frequentemente relembrado em subsequentes comentários ao romance de Defoe.
Mayer afirma que essa sede do mercado inglês por conteúdos práticos e factuais sobre
a peste fez surgir um revival de obras já publicadas em decorrência de surtos anteriores. Entre
os trabalhos que, nesse momento, aproveitavam-se do contágio que atingia o mercado
editorial, estavam o seiscentista Bryfe treatise of the pestilence [Breve tratado sobre a
pestilência], de Thomas Phayer – agora relançado com um prefácio de “um médico londrino”
(MAYER, 1990, p. 531) –, e aquela por muitos considerada a principal fonte de Defoe para a
criação de seu novel, o texto-referência sobre os acontecimentos do ano de 1665, Loimologia
(1672), de Nathaniel Hodge – reimpressa junto com An essay on the different causes of
pestilential diseases ... [and] remarks on the infection now in France (1721) [Um ensaio
sobre as diferentes causas de doenças pestilenciosas... [e] observações sobre a infecção agora
na França], de John Quincy.
Mayer diz ainda que todas essas obras estiveram associadas ao relato de Defoe “na
imprensa popular e também, presumivelmente, nas lojas dos livreiros.” (1990, p. 532). Por
essa razão, o crítico entende não haver motivos para crer que o novel tenha recebido
tratamento diferente do daquele dispensado ao conjunto. Mayer julga ser possível concluir
62
que o Journal... tenha sido, de fato, apresentado ao público como uma obra de história, “se
bem que uma que continha certos elementos ficcionais não confessados.” (1990, p. 532).
Durante um bom tempo, ao longo do século XVIII, assevera Mayer, “a visão
prevalecente era a de que o Journal seria um autêntico exemplar de escrita histórica” (1990, p.
533). No entanto, a recepção da obra tendeu a variar no decorrer dos séculos seguintes, indo
tanto para o lado da ficção, quanto para o de uma espécie de híbrido de história e ficção
(MAYER, 1990, p. 533). Que o novel de Defoe tenha continuado a ser lido por algum tempo
como um texto autêntico, diz Mayer, pode ser verificado por meio da nona edição do
Discourse on the plague [Discurso sobre a peste], de autoria do já citado Richard Mead,
publicada em 1744. Nela, o autor, mais de duas décadas depois da publicação do relato, cita o
Journal como fonte confiável para a polêmica sobre o fechamento das casas onde viviam os
enfermos (MEYER, 1990, p. 533). Diferentes edições da própria obra de Defoe ainda
confirmariam que o romance fora interpretado, com o passar do tempo, como relato verídico.
Este parece ter sido o caso da edição de 1754, que, publicada sob um título diferente, The
hystory of the great plague [A história sobre a grande peste], afirmava conter “Observações e
Memoriais de... um Cidadão, que morou o Tempo todo em Londres.” (MAYER, 1990, p.
533). Em 1763, trechos do Journal teriam sido utilizados no The dreadful visitation [A
terrível visitação], aparecendo com o novo título A short account of the progress and effects
of the plague…in the year 1665 [Um breve relato sobre o progresso e os efeitos da peste... no
ano de 1665], afirma Mayer. Nessa edição, um editor anônimo afiançava que o relato “fora
mantido por um Cidadão que permaneceu por lá durante todo o Tempo da Doença”, e
recomendava a leitura da obra como uma ocasião propícia para estabelecer uma “séria e
próxima conversa com a Morte e a Sepultura.” (MAYER, 1990, p. 534).
Somente pelos idos de 1770a autoria de Defoe para o Journal começaria a ficar mais
ou menos estabelecida, conclui Mayer, enquanto as décadas subsequentes do século XVIII
passariam a indicar “um aumento de consciência da autoria de Defoe para o Journal e uma
tendência crescente em concretizá-lo como uma obra de ficção.” (MAYER, 1990, p. 534).
Porém, a recepção da obra não seguiu por um caminho retilíneo a partir de então. Houve
vários casos, como o de Edward Wedlake Brayley, um agora esquecido topógrafo inglês que,
em uma carta endereçada ao Gentleman’s Magazine datada de 1810, afirmava tanto a
ficcionalidade do relato quanto sua historicidade, recorrendo ao argumento de que Defoe
talvez houvesse editado, em 1722, um relato produzido por um indivíduo real, que viveu a
tragédia de 1665 e sobreviveu para contá-la. (MAYER, 1990, p. 536). Quase uma década e
meia mais tarde, uma versão resumida do Journal era publicada junto a um relato do Grande
63
Incêndio, retirado do diário de John Evelyn, sem que “nenhuma distinção fo[sse] feita entre as
duas obras” (MAYER, 1990, p. 536).
O histórico de recepção aponta ainda para interpretações divergentes, a sugerirem
tanto a validade ficcional quanto a histórica do texto. Mesmo na primeira metade do século
XX, um clássico estudo sobre as fontes de Defoe, de autoria de John Lingard, publicado dois
anos antes do célebre trabalho de Secord (1924), declarava não haver “uma única afirmação
no Journal, pertinente à história da Grande Praga em Londres, que não tenha sido verificada”.
(MAYER, 1990, p. 537). Concluía Lingard que a narrativa de Defoe teria sido “um fiel
registro de fatos históricos ... [e] assim foi intencionado pelo autor.” (MAYER, 1990, p. 537).
O estudo de Nicholson, espelhando o entendimento de Brayley e de muitos outros, reforça,
portanto, um modo de interpretação da obra de Defoe “como história, baseado na visão de que
Defoe atuara como um historiador ao escrupulosamente construir sua narrativa a partir de
fontes confiáveis” (MAYER, 1990, p.537).
O Journal sem dúvida continua sendo um caso limite para a teoria e a historiografia do
novel. Não obstante, ele é aquele capaz de trazer, muito oportunamente neste momento, a
atenção para a relação que o romance de Defoe, de maneira geral, estabeleceu com os
discursos sobre o real. Conforme já sugerimos, os estudos da obra de Defoe tendem muito a
ganhar se passarem a prestar mais atenção ao nexo existente entre suas obras ficcionais de
fôlego – recheadas de conteúdo “realista” – e seus textos econômicos, jornalísticos,
moralizantes, políticos – prenhes de construções ficcionais. Um nexo que revela um
imbricamento de estratégias retóricas comuns e de objetivos semelhantes que merece ser mais
profundamente analisado.
No capítulo que se segue, teremos a chance de vislumbrar uma possível interpretação
orientada no sentido que acabamos de propor. Nele, buscaremos, numa relação de conteúdo e
de construção entre o novel Captain Singleton e os escritos econômicos de Defoe – o nexo
intergenérico e interdiscursivo que parece ter marcado os escritos defonianos.
64
3.
Captain Singleton: “ficção econômica” do mercador aventureiro
8
A julgar pela passagem em formato de lista, em que Defoe elenca instrumentos associados à profissão do
mercador – diários, protestos e procurações –, é bastante provável que o autor estivesse na verdade querendo se
referir às bills of foreign exchanges, isto é, às “letras de câmbio estrangeiras”. A ausência do substantivo bill, no
entanto, abre um interessante campo de ambiguidade neste pequeno trecho retirado de seu periódico The Review.
No tempo de Defoe, assim como hoje em dia, Exchange era uma palavra polissêmica. De acordo com os
dicionários da época, seus sentidos abrangiam desde as noções de troca ou transação – comercial ou de simples
escambo –, passando pela ideia de câmbio monetário e abarcando também a referência ao local onde os
mercadores se encontravam para realizarem suas trocas ou transações. Por metonímia, e a partir da grafia
utilizada por Defoe, parece ser legítimo depreender que a expressão foreign exchanges dê margem, ainda, à ideia
de intercâmbio ou interação, conforme os mercadores, nesses espaços de transações estrangeiras, aproveitavam
para trocar, também, informações e conhecimentos entre si.
Numa sociedade cada vez mais afetada pela lógica de um sistema-mundo principiante, é de se supor que as
informações referentes a importantes fatos ligados ao comércio ou às navegações marítimas, principalmente, mas
também aqueles associados ao estado político das nações, valessem tanto para os mercadores quanto qualquer
outra importante mercadoria. Diferentemente do simples comerciante [retailer], o mercador, ou como o define o
dicionário de Samuel Johnson “aquele que trafica com países remotos” (JOHNSON, 1755, p. 2081),
representava, para Defoe, a principal peça dentro desse sistema globalmente integrado de trocas de bens e de
informações. Num período em que o jornalismo popular, tendo em Defoe um importante porta-voz, apenas
começava a ganhar relevância social, a figura desse indivíduo cosmopolita simbolizava o que havia de mais
novo, o contato mais próximo com o outro e seu exotismo, trazidos a bordo de embarcações que esquadrinhavam
o mundo em busca do lucro.
65
Perto do fim da segunda década do século XVIII, época em que Defoe publicava
Captain Singleton, o misto de curiosidade e repulsa que animava a opinião pública com
relação à pirataria destoava completamente da visão romântica construída em torno do corso
do período elisabetano. Todo o simbolismo glamoroso associado a esta atividade havia ficado
para trás, ligado ao universo dos leitores do começo do século XVII, informados por
volumosas coletâneas como as de Richard Hakluyt e Samuel Purchas 10. Responsáveis por
conceder uma sobrevida literária às façanhas de personalidades como Francis Drake, Walter
Raleigh, John Hawkins e James Lancaster, as publicações dos dois autores descrevem uma
realidade histórica bastante específica pela qual passava a Inglaterra de fins do século XVI.
Firmados com o selo da autoridade eclesiástica de Roma, antigos tratados que resguardavam
aos ibéricos a possessão de territórios recém-descobertos ao final do século XV e início do
XVI ainda dificultavam o ingresso da protestante Inglaterra no clube bastante seletivo das
potências imperialistas católicas. A complexidade desse contexto histórico contribuiu para
revestir a empreitada coletiva dos corsários gentlemen de um caráter eminentemente
comercial, político e religioso.
No entanto, com a assinatura do Tratado de Madri em 1670, a situação alterava-se
completamente. Ao levar a Espanha a reconhecer as possessões inglesas nas Índias Ocidentais
e ainda firmar um pacto de não agressão com a antiga potência rival, o armistício demandava
9
Usamos como base para esse introito sobre a situação histórica da pirataria no tempo de Defoe, principalmente,
a extensa introdução de Manuel Scholhorn para a edição de 1999 de A general history of the pirates [Uma
história geral dos piratas], da Dover Editions, publicada pela primeira vez em 1972, e a recente obra do
historiador da pirataria Marcus Rediker, Villains of all nations: atlantic pirates in the golden age [Vilões de
todas as nações: piratas atlânticos na década de ouro], publicada em 2004 pela Beacon Press. Conforme fomos
sentindo a necessidade de trocar o enfoque generalista da exposição por um mais detalhista, ou mesmo quando
recorremos a citações, o devido crédito ao autor responsável pelo conteúdo original foi mencionado, entre
parênteses.
10
Respectivamente, The principall navigations, voiages, traffiques and discoueries of the English Nation (1589-
1600) [As principais navegações, viagens e descobrimentos da nação inglesa], e Hakluytus posthumus or
Purchas his pilgrimes... (1625) [Hakluytus posthumus ou Purchas, seus peregrinos]. Arthur Secord, até hoje a
maior autoridade dos estudos sobre as fontes utilizadas por Defoe para a confecção de seus novels, afirma que o
escritor londrino, na condição de um ávido leitor de narrativa de viajantes, teria seguramente travado contato
com o conteúdo desses dois volumosos compêndios, pois acredita que eles tenham “forma[do] o pano de fundo
de seu conhecimento geográfico.” (SECORD, 1924, p. 89).
66
11
Secord é quem mais uma vez afiança, agora com base no testemunho de George Aitken – um editor e
estudioso entusiasta das obras de Defoe –, que o criador de Robinson Crusoé teria tido, em sua biblioteca, um
exemplar da edição de 1699 do livro de Exquemelin, com as quatro partes reunidas. (SECORD, 1924, p. 115).
12
Como as versões de livro para Kindle geralmente não contêm numeração por página, mas, sim, por posição,
optamos por deixar grafada, nas referências, a abreviatura “pos.”, referente à “posição”, no lugar de “p.”, que é
aquela normalmente utilizada para indicar a paginação.
67
ocorridos no ano de 1696. Cobertas ‘em tempo real’, as audiências daquele ano levaram para
o banco dos réus ex-membros da tripulação do famoso capitão pirata, acusados de haverem
participado, sob o comando de Avery, de um saque extraordinariamente bem-sucedido ao
navio de tesouros do Grão Mongol, abarrotado de ouro e joias na ocasião em que fora
capturado nas proximidades de Surate (SCHONHORN, 1999, pos. 268). O episódio alcançou
enorme fama à medida que os homens liberavam mais detalhes à narrativa sobre o crime.
Peças de teatro, panfletos e livros prodigalizavam em acréscimos os feitos já bastante
formidáveis – não obstante duvidosos – atribuídos a Avery. Defoe, inclusive, fez questão de
incluir a célebre passagem do roubo ao navio do Grão-Mogol ao final da narrativa de
Singleton, quando alguns homens de sua frota, se aventurando pelo Oriente, encontram a
tripulação do famoso pirata logo após o saque.
A partir das narrativas sobre a vida, ou melhor, sobre as vidas de Avery, Defoe teria
feito render ainda um outro novel sobre pirataria, The king of pirates: being an account of the
famous enteprises of Captain Avery [O rei dos piratas: um relato sobre os audaciosos
empreendimentos13 do Capitão Avery], publicado meses antes de Captain Singleton, em
1719. Nessa obra, apresentada na forma de duas cartas redigidas pelo próprio pirata, Avery
busca avidamente corrigir os “ridículos e extravagantes relatos anteriores” (DEFOE, 1720, p.
iii), lançando carga, especialmente, contra o tom sensacionalista empregado por seus
detratores. Alguns estudiosos dos escritos de pirataria de Defoe chegaram a sugerir que as
duas obras, Captain Singleton e The king of pirates, seriam nada mais que variações
estilísticas consistentes do mito do pirata Avery (GRASSO, 2010, p. 22; NOVAK, 1996, p.
41; SECORD, 1924, p. 116). Mutações da lendária figura do pirata ou não, o certo é que os
dois relatos guardam em comum a vontade de afastar da figura dos piratas – e da pirataria, de
maneira geral – todo o pendor pelo sensacionalismo que as imagens de violência tanto
suscitaram. Dessa forma, resgatam, quer seja por meio do tratamento dos personagens, quer
pela imagem que fazem da pirataria enquanto um comércio, elementos do período dourado da
história corsária inglesa.
Atraídos pelas riquezas transportadas por navios europeus e pelas embarcações árabes
e mongóis – mais interessantes porquanto mais precariamente defendidas que as demais –,
piratas como Avery e seu grupo, ao final do século XVIII, tomaram de assalto o comércio
13
Segundo o dicionário de Johnson, “e’nterprise s.f. [enterprise, Francês]” não vinculava, na época, o mesmo
significado econômico que lhe é atribuído hoje em dia. Antes de mais nada, o vocábulo denotava “um
empreendimento de risco; uma tentativa árdua.” (1755, p. 707).
68
realizado nos mares das Índias Orientais. Perturbando as boas relações mercantis que a
Inglaterra matinha com as zonas comerciais do oriente, a atividade dos flibusteiros
conterrâneos punha as autoridades britânicas em um estado de constante exasperação,
premidas cada vez mais pelas veementes súplicas dos prejudicados negociantes imperiais. A
Companhia das Índias Orientais, por exemplo, aflita com a possibilidade sempre iminente de
retaliação mongol a navios mercantes ingleses, em razão da atuação descontrolada dos piratas
britânicos na região, chegou a encaminhar, no ano de 1695, uma representação em que
solicitava ao governo inglês um emprego mais enérgico da frota naval, com o propósito
declarado de aniquilar a pirataria que ameaçava naufragar os negócios britânicos na região
(SCHONHORN, 1999, pos. 256).
Por muito tempo até os anos próximos à virada para o XVIII, praticamente todos os
embates travados entre as grandes potências foram motivados por questões ligadas à aquisição
de terras. As sangrentas disputas pela fé entre católicos e protestantes agravavam o quadro dos
conflitos expansionistas, colaborando para desestabilizar ainda mais um cenário europeu por
si só já extremamente instável em razão dos delicados jogos de sucessão monárquica.
Contudo, aos primeiros sinais do alvorecer do novo século, a situação se alterava. Nesse
singular período de transição, em que os impérios territoriais dos vários reinos encontravam-
se já razoavelmente bem estabelecidos – e assim tenderiam a permanecer por mais meio
século –, as guerras religiosas e expansionistas rapidamente cediam lugar àquelas de origem
mercantil. “O poderio comercial e o naval expandiram-se conjuntamente” nesse momento,
afirma Rediker, “conforme os impérios atlânticos consideravam o comércio de longa distância
como [...] ‘uma forma branda de guerra’” (2004, pos. 358).
Segundo percepção generalizada já entre os críticos da época – e ainda reforçada por
estudos atuais sobre a pirataria do século XVIII –, a nociva combinação formada por períodos
assolados por grandes conflitos mercantis seguidos de breves momentos de paz teria resultado
na eclosão do maior surto de pirataria da história ocidental. Ironicamente, o elemento que no
interior desse mecanismo responde como a principal causa do boom histórico da atividade era
o mesmo que, há pouco mais de um século, havia ofertado a imortalidade aos famosos
viajantes exploradores a serviço da Rainha Virgem. Conforme embates de grande magnitude,
tais como a Guerra dos Nove Anos (1688-1697) e a Guerra de Sucessão Espanhola (1702-
1714), exigiam das nações envolvidas um efetivo militar até então sem precedentes, muitas
nações viam no corso uma conveniente arma de guerra. A Inglaterra mesma, que havia anos
evitava tal expediente – porquanto os negócios favorecessem relações mais ou menos
amistosas com antigas rivais –, chegou a acenar, no contexto desses grandes combates da
69
virada do século, com a oferta de perdão generalizado a todo pirata inglês que se dispusesse a
servir como corsário defendendo sua pátria (SCHONHORN, 1999, pos. 281). Agindo de tal
modo, a nação parecia seguir à risca um popular adágio do período, que dizia que “os
melhores dentre todos os marinheiros eram piratas” (REDIKER, 2004, pos.470). Por meio da
concessão das bills of marque – equivalentes britânicas das cartas de corso ibéricas –, a Coroa
conseguia angariar o máximo de marinheiros ociosos que conseguia, colocando-os sob
contratos de “privateering comission [comissão de corso]” (REDIKER, 2004, pos. 386). O
clima beligerante da época era tal que, segundo Rediker, as sucessivas guerras do período
fizeram do típico marinheiro das primeiras décadas do século XVIII alguém que, “a não ser
que tivesse sido ‘criado para o mar’ desde garoto (isto é, servido como aprendiz), teria
passado toda sua vida profissional imerso no cheiro da fumaça de canhão das hostilidades
nacionais e imperiais.” (2004, pos. 338).
Entretanto, em 1713, a assinatura do Tratado de Utrecht vinha pôr fim às hostilidades
entre as grandes potências envolvidas no último grande conflito, a Guerra de Sucessão
Espanhola. Coincidentemente, nesse mesmo ano, Defoe também levantava bandeira branca na
luta ideológica travada três vezes por semana, durante nove anos, em seu periódico The
Review. Um novo cenário promissor, para os piratas e para nosso autor, começava a se
anunciar. O período que vai de 1713 a 1715 marcou o momento do pós-guerra em que o
comércio procurou retomar o equilíbrio perdido durante o conflito (REDIKER, 2004, pos.
386). Porém, nem bem a explosão mercantil engrenava, e ainda no final daquele mesmo ano
de 1715, o breve surto de prosperidade comercial cedia lugar a uma grave estagnação das
atividades econômicas. Avançando até os primeiros anos da década de 1730, uma crise
mercantil sem precedentes fez com que o “enorme excedente de mão de obra marítima”
produzisse “efeitos sociais devastadores” (REDIKER, 2004, pos. 386).
De modo algum uma mera coincidência, o período de dez anos que acompanha a
depressão da atividade comercial do pós-guerra passaria para os anais como “a grande década
da atividade pirata na história moderna.” (SCHONHORN, 1999, pos.256). Não à toa: a força
militar granjeada entre os mais variados extratos de marinheiros, durante os períodos de
conflito, agora se via em meio a uma situação particularmente crítica. Acostumados à
brutalidade do corso e ainda por cima bem equipados pelas marinhas nacionais, os
marinheiros viam-se, uma vez findados os conflitos, transformados do dia para a noite em
fardo inútil para suas respectivas nações de origem, que preferiam abandoná-los à própria
sorte. Um fator cumulativo como o da falta de perspectiva de obter ocupação honesta em
70
tempos de crise somente causaria efeitos ainda mais devastadores sobre essa população
errante dos mares.
Ainda no calor do momento, vozes críticas se levantavam apontando os efeitos
nocivos do abandono dos marinheiros por parte das autoridades britânicas. Dentre elas, o
autor do célebre A general history of the pyrates [Uma história geral dos piratas] dizia “que os
navios corsários, nos tempos da guerra, [eram] um verdadeiro berçário de piratas, nos tempos
da paz.” (JOHNSON, 2008, pos. 125). Diferentemente dos antecessores elisabetanos, ou
mesmo dos aventureiros viajantes descritos pelo holandês Exquemelin, que voltavam para a
casa condecorados pelas autoridades e imortalizados como grandes heróis da pátria, o atual
“bando de rebeldes muito mais anárquico e perigoso, que via pouca distinção entre um butim
inglês ou espanhol” é aquele que povoa o imaginário coletivo a respeito dos “piratas que são
mais lembrados hoje em dia” (GRASSO, 2010, p. 24).
Em vista dessa situação social calamitosa, a atividade ilícita dos marinheiros quase
chegou a “paralis[ar] o comércio existente com as índias ocidentais” (SCHONHORN, 1999,
pos. 308). E isso mesmo depois dos tímidos esforços das autoridades britânicas em tentar pôr
fim à pirataria, ensaiados a partir de 1718, em movimentos como o da oferta de perdão
àqueles indivíduos que resolvessem se entregar espontaneamente ou, ainda, o do oferecimento
de recompensas aos que trouxessem os marujos delinquentes à justiça. O problema chegou a
tal magnitude que, em 1721, o governo inglês e o francês, no auge da rivalidade entre as duas
nações, chegaram a promover uma espécie de acordo de proteção militar mútua contra a
atuação dos piratas, determinados a erradicá-los da região do Caribe. (REDIKER, 2004, pos.
532).
No plano doméstico, ainda nesse mesmo ano de 1721, tendo a tática do perdão
fracassado, os governantes imperiais da Inglaterra sentiram a necessidade de recrudescer as
leis contra a atividade. Prometiam, agora, a pena de morte a quem cooperasse com os marujos
transviados, além de perda dos ordenados, mais detenção de seis meses, a qualquer um que se
recusasse a defender seu navio durante um ataque pirata (REDIKER, 2004, pos. 455).
Decretavam também que os navios de guerra não deveriam comerciar com os navios
bucaneiros, senão persegui-los e abatê-los, na contramão de um costume que parece ter sido
bastante difundido entre as tripulações das fragatas inglesas. Conforme alertava o Boston
News-Letter, marinheiros feridos em combate contra os piratas, agora, “dever[iam] ser
compensados como se na verdade estivessem a serviço da Coroa.” (REDIKER, 2004, pos.
455). O parlamento britânico também não deixava restar qualquer dúvida a respeito da
ambição que acalentava quanto ao alcance da punição capital que punha em prática. Constava,
71
no mesmo ato expedido em 1721, que a jurisdição do documento devia “estender-se a todos
os domínios de Sua Majestade na Ásia, África e América” (REDIKER, 2004, pos.456) – um
dado que, por sinal, denuncia também a atuação internacional dos bucaneiros por aquela
altura.
Os arquivos de época, produzidos por autores que tentavam acompanhar a atividade
dos navios piratas tomando por base projeções acerca do tamanho de suas tripulações,
apontam para um expressivo declínio da atividade a partir do final da década de ouro iniciada
ao termo de 1715. Rediker extrai números “bastante precisos” (2004, pos. 494) de
documentos como os registros do governo de Bermuda, o relato de Woodes Rogers – ex-
pirata e posteriormente governador da Jamaica –, dos relatos de Charles Johnson e, ainda, da
compilação de Abel Boyer, em seu The political state of Great Britain [O estado político da
Grã-Bretanha] – com conteúdo originário extraído de um periódico mensal publicado durante
os anos de 1711 a 1729. O que mais assombra, diz Rediker, é a proximidade dos resultados
obtidos pelos próprios autores à época dos diagnósticos. Analisando os dados referentes ao
efetivo humano empregado pela pirataria, os antigos constataram a existência de micro
períodos – de início, apogeu e declínio – no interior daquela grande década de ouro da
atividade (1716-1726).
Os dados, todos muito conexos, apontam que, entre os anos iniciais de 1716 a 1718,
algo entre 1500 e 2000 piratas velejavam os mares internacionais. Já no intervalo entre 1719 e
1722, período que representa o apogeu da década e o contexto mais próximo em que está
inserida a publicação de Captain Singleton, estiveram à solta entre 1800 a 2400 indivíduos.
Apenas 1000 piratas praticavam seu ofício em 1723, número que se reduziu rapidamente para
a metade no ano seguinte. O último ciclo, que vai de 1725 a 1726, contou com o pouco
expressivo efetivo de menos de 200 almas (REDIKER, 2004, pos. 494), refletindo o
desenlace bem-sucedido dos esforços radicais empregados pelas autoridades inglesas. A partir
desse momento, a pirataria, ao menos como a grande década daquele século a conheceu,
ficaria para sempre restrita à cultura livresca.
72
Em 4 de junho de 1720, Defoe publicava Captain Singleton, seu segundo livro sobre a
pirataria, lançado, como vimos, alguns meses após The king of pyrates e Robinson Crusoé. A
obra chegava, portanto, em um momento duplamente significativo para a história daquela
atividade. O ano que assiste ao lançamento da narrativa de Singleton insere-se no pequeno
intervalo em que a pirataria alcançou seu ponto máximo, justamente no contexto da década
mais favorável, no conjunto da história da humanidade, às operações dos bucaneiros. Ao
mesmo tempo, 1720 sinaliza também a última brecha antes do derradeiro cerco promovido, a
partir do ano seguinte, pelas autoridades inglesas.
Conforme avalia William Minto, antigo crítico e um dos primeiros biógrafos de Defoe,
Captain Singleton ingressa na categoria que enquadra praticamente todas as produções do
autor: aquela das “pièces de circonstance” (1887, p. 131). O biógrafo explica que “Defoe
sempre escreveu aquilo que um grande número de pessoas estava disposto a ler” (1887, p.
131). Minto explora aí aquilo que se tornaria um memento biográfico do autor, um topos que
recorre a uma homologia com a imagem de um homem de negócios absorto em seus afazeres
empresariais para descrever o excessivo zelo de Defoe pela escrita. Aproveitando-se dessa
dualidade que parece ter sempre acompanhado a produção do escritor, o crítico avalia as duas
“peças ocasionais” Captain Singleton e Robinson Crusoé como produzidas sob medida para a
satisfação de uma demanda momentânea, estimulada pelos recorrentes relatos de “façanhas de
famosos piratas” (MINTO, 1887, p. 132). A frenética circulação de tais narrativas, afirma
Minto, teria promovido uma renovação, após um longo hiato, de um “vívido interesse pela
sorte de aventureiros em ilhas distantes, nas costas da América e da África.” (1887, p. 132).
Contudo, pelo menos nesse momento, Defoe não parece haver se aproveitado da
circunstância oportuna para, com a publicação de Captain Singleton, engrossar o coro em
censura à pirataria. Com tal propósito, apareceriam obras mais famosas, como A general
history of the robberies and murders of the most notorious pyrates [Uma história geral dos
roubos e assassinatos dos mais notórios piratas], popularmente abreviada para A general
history of the pyrates. Publicada pela primeira vez em 1724 e assinada por um tal Capitão
Charles Johnson – sobre quem praticamente nada se sabe até hoje –, a obra foi considerada,
sem dúvida em razão do sucesso de vendagem, como uma das principais encarregadas de
imprimir, no imaginário popular, a figura do pirata criminoso e, por associação, a da pirataria
73
como uma atividade nociva ao comércio mundial. Por mais de duzentos anos, o silêncio ao
redor da figura quase anônima de Johnson não causou importuno. Porém, já bem tarde, mais
especificamente no ano de 1932, abruptamente a autoria do escrito passava a ser questionada,
e o trabalho considerado uma produção de Defoe.
A influente personalidade por trás desse processo de novo batismo e conversão é John
Robert Moore. Especialista em Defoe, Moore publicou naquele ano um trabalho, hoje tido
como controverso, em que afirmava haver encontrado a “mão de Defoe” na coletânea de
Charles Johnson, “tornando claro que o Capitão [..] era apenas mais uma das máscaras do
infatigável Daniel Defoe.” (SCHONHORN, 2004, pos. 328). Schonhorn, autor de um apurado
estudo sobre a pirataria, utilizado como material introdutório a uma das edições de A general
history, acata a versão de Moore sobre a autoria de Defoe e, nesta mesma peça editorial,
aproveita a ocasião para narrar brevemente o descobrimento do estudioso de 1932. Após
concluir os exames de dois conjuntos distintos de evidências, diz Schonhorn, Moore julgou
ter reunido indícios suficientes para crer que A general history era na verdade um produto de
Daniel Defoe.
Por um lado, Moore interpretou uma série de elementos estilísticos presentes no texto,
tais como frases idiomáticas, inversões de pensamento com efeitos cômicos ou irônicos,
introduções de diálogos que visavam a trazer mais peso dramático às cenas, além do uso de
reflexões morais intercaladas ao tecido da narrativa, como sendo “todos de Defoe.”
(SCHONHORN, 1999, pos. 328). De outro, o conteúdo da obra, isto é, todos aqueles
elementos responsáveis por remeter às “ideias e interesses” de Defoe (SCHONHORN, 1999,
pos. 328), pareceram a Moore os mais conclusivos indícios de que o texto pertencia ao mesmo
autor de Robinson Crusoé. O comércio transatlântico, a pesca, os projetos coloniais em
Madagáscar e nos Mares do Sul, a construção de navios, as relações matrimoniais, a lei dos
devedores e a origem dos governos seriam, segundo Schonhorn, em leitura rente ao trabalho
de Moore, evidências incontestáveis e propícias para “conecta[r] a história dos piratas aos
inúmeros escritos de Defoe.” (1999, pos. 328). Avançando ainda mais, o autor diz que Moore
teria encontrado também, nas “observações e experiências de Defoe – seus alinhamentos
familiares, seus negócios especulativos e empreendimentos comerciais, suas propagandas
políticas, visão colonial e jornalismo periódico” (SCHONHORN, 1999, pos. 338) –
argumentos incontroversos para estabelecer de uma vez por todas a autoria de Defoe.
Todavia, estudiosos como Philip Furbanks e W. R. Owens, autores do aclamado The
canonisation of Daniel Defoe, discordam de Moore a respeito da assinatura de A general
history. Afirmam que nem o estilo nem o assunto seriam exclusividade de Defoe. (GRASSO,
74
2010, p. 35). Porém, segundo Joshua Grasso – que prudentemente se coloca para além da
polarização gerada pela discussão –, afora a crítica contumaz àquilo que entendem ter
configurado um excesso de entusiasmo avaliativo de Moore, a dupla de pesquisadores não
apresentou qualquer tipo de prova definitiva para sustentar sua posição contrária à autoria de
Defoe (2010, p. 35). Ou seja, o debate em torno da assinatura da obra parece estar longe de
encerrado – fato que, talvez, represente apenas mais um tributo à complexidade da tarefa de
analisar os textos da época.
A semelhança entre os aspectos estilísticos de A general history e os de algumas obras
de Defoe pode realmente levar o leitor a tirar conclusões precipitadas. No prefácio à história
dos piratas de Johnson, os artifícios retóricos empregados são praticamente os mesmos
utilizados por Defoe em Roxana, Moll Flanders, Colonel Jack e Robinson Crusoé (Captain
Singleton não conta com um prefácio próprio). Na primeira dessas obras de Defoe, a voz
anônima de um editor alega que as alterações realizadas na história original de Roxana são de
competência do relator dos fatos – a tradução usa, equivocadamente, o termo redator –,
alguém que “conheceu particularmente o primeiro marido da dama, o fabricante de cerveja” e
que “sabe que esta parte da história é verdadeira” (DEFOE, [198-?], p. 9). A figura do relator
funciona, portanto, como um interposto entre os fatos narrados pela protagonista e aqueles
posteriormente publicados pelo editor. Pode sugerir, nesse contexto, a existência de uma
testemunha – se ocular, não sabemos, mas certamente auditiva – que serve como “garantia
para o resto” (DEFOE, [198-?], p. 9) da história da mulher sobre quem, aliás, o editor afirma
não encontrar “nenhuma razão para pôr em dúvida a [...] sinceridade” (DEFOE, [198-?], p. 9).
Diz o mesmo editor que o livro “se distingue da maior parte das obras do mesmo gênero [of
the modern performances of this kind] pelo fato de que o fundo está estabelecido sobre dados
verdadeiros [in truth of fact]: esta narração não é uma ficção, mas uma história real [not a
story, but a history]” (DEFOE, [198-?, p. 9). Distinto também é o seu propósito: “[a]s nobres
lições que se desprendem desta história justificarão bastante o fim que se propôs o autor ao
entregá-la à publicidade.” (DEFOE, [198-?], p. 10).
A narrativa da célebre ladra Moll Flanders segue pelo mesmo caminho. No prefácio, o
editor alega que a utilidade da obra é dupla: de um lado, estão as instruções morais e
religiosas – “este livro é recomendado como um trabalho que há de proporcionar uma lição
em cada um de seus incidentes; e o leitor poderá extrair dele referências justas e religiosas que
lhe valerão boa instrução” (DEFOE, 2014, pos. 61); do outro, os ensinamentos são de
natureza prática – “todas as ações dessa dama famosa [...] são avisos para que as pessoas
honestas se acautelem [..], pois mostram os métodos utilizados para atrair, saquear e roubar os
75
inocentes e, portanto, a forma de evitá-los” (DEFOE, 2014, pos. 61). O editor conclui dizendo
que, conquanto “alguns incidentes” tenham sido “narrados de forma agradável” (DEFOE,
2014, pos. 62), ele espera que “a moralidade faça o leitor manter-se sério, mesmo quando,
aqui ou ali, a história possa incliná-lo ao contrário” (DEFOE, 2014, pos. 33).
No curto prefácio de Robinson Crusoé, uma voz anônima afirma que a ‘estória’ é
contada com modéstia, seriedade e “com uma aplicação religiosa dos eventos aos usos que os
sábios sempre lhes dedicaram, a saber, instruir os demais pelo exemplo e justificar e honrar a
sabedoria da Providência [...]” (DEFOE, 1908, p. xxix). Diz ainda que o editor “acredita que o
caso presente seja uma história somente de fatos [a just history of fact]”, uma vez que não há
“qualquer aparência de ficção nela” (DEFOE, 1908, p. xxix). “[E]ntretanto”, afirma o sujeito
anônimo, o mesmo editor “ajuíza, em razão de todas estas coisas estarem tão fugazes, que o
melhoramento que ela contém será o mesmo, seja ele referente à diversão ou à instrução do
leitor.” (DEFOE, 1908, p. xxix).
O prefácio de Johnson apela para lugares-comuns muito parecidos:
É possível que este livro venha a cair entre as mãos honestas de comandantes
de navios e de outros homens do mar, que vivem enfrentando grandes
aflições por ventos adversos ou outros acidentes tão comuns nas viagens
longas, tais como a escassez de provisões ou a falta de estoques. Acho que o
livro poderá servir-lhes como uma orientação, sejam quais forem as
distâncias a que se aventurarem sem violar a Lei das Nações, no caso de
serem lançados a alguma praia inóspita ou se depararem com outros navios
no mar, que se recusem a negociar o que for extremamente necessário à
preservação da vida, ou à segurança do navio e da carga. (JOHNSON, 2008,
pos. 105; grifo nosso)
[...]
[...]
[...]
Sempre que encontra ensejo, o narrador prossegue o relato dos fatos valendo-se de um
discurso recriminatório contra a atitude de piratas que, após terem ganhado o perdão emitido
em massa depois da publicação do Ato de Clemência de 1717, reincidiram na antiga profissão
“como cães retornando ao próprio vômito” (JOHNSON, 2008, pos. 472). As vidas dos
inúmeros “pobres desgraçados” narrados por Johnson, que frequentemente encontram na
forca o único fim para sua obstinada tendência a recair no erro, servem “como triste exemplo
de que o perdão de pouco serve para os que se deixaram levar por um mau caminho na vida.”
(JOHNSON, 2008, pos. 509). Esforçando-se por fazer com que sua versão “divertida” das
histórias dos piratas mantenha firme a intenção instrutiva, o narrador não quer que a simpatia,
derivada do tom “agradável e vívido” do relato, leve seu leitor a pensar que ele esteja
“encorajando essa profissão” (JOHNSON, 2008, pos. 348).
78
Procedendo desse modo, seu A general history segue por um caminho muito menos
ambíguo que aquele trilhado por Captain Singleton. Hans Turley chegou a afirmar que, nessa
obra, “Defoe complica a costumeira tradição literária do pirata violento, ávido por sangue”,
principalmente por meio da caracterização de “personagens como Singleton e William.”
(1997/1998, pos. 204). Eles “não são assassinos brutais, cujo desejo por ganhos ilícitos está
associado a seu comportamento incontrolável”, conclui o crítico (TURLEY, 1997/1998, pos.
204). Não agem da mesma maneira que os piratas de Madagáscar de Johnson, que, “tornados
grandes de uma hora para outra, usavam o poder como verdadeiros tiranos, [...] ficando cada
vez mais desumanos em sua crueldade.” (JOHNSON, 2008, pos. 820). Para Turley, “[e]m
Captain Singleton, Defoe faz alusão à afinidade dos piratas com o comércio legal, e mais, os
próprios piratas têm um código de honra – seus artigos – nos quais o lucro é levado em
conta.” (1997/1998, p. 208).
São significativas as diferenças de propósito que orientam a construção de cada uma
das obras, mas termos chegado a essa conclusão não deve nos autorizar a entrar no debate
sobre a autoria de A general history pendendo em favor de Furbanks e Owens, autores que
negam a produção da obra a Defoe. Na verdade, parece mais vantajoso para os nossos
propósitos evitarmos a polêmica. Conquanto atualmente haja mais autores assinalando o
equívoco de ligar à Defoe a produção do texto, não parece convir fazer do caso um modelo de
disputa. Nada parece garantir que, após os anos haverem passado – A general history foi
publicada em 1724, três anos depois de Captain Singleton – e os piratas remanescentes
haverem se tornado meros simulacros de Avery, Defoe não tivesse mudado de opinião. Para
nós, o ponto que mais chama atenção, no amplo contexto da discussão sobre a autoria da obra,
não é exatamente aquele de sua assinatura. Mais relevante parece ser o fato de tanto os
pesquisadores que sustentam quanto os que desacreditam a autoria de Defoe, ao haverem
procurado estabelecer relações de semelhança ou de discordância entre A general history e
outros textos que supostamente refletem as “ideias e interesses” ou as “observações e
experiências” do escritor londrino – para ficarmos nas expressões de Schonhorn –, acabaram
recorrendo, mesmo sem o dizer claramente, a um método de investigação relacional que
transcende barreiras genéricas. Em suas análises comparativas, os pesquisadores relacionam
escritos econômicos, narrativas de viagem, textos de história, de ‘jornalismo’ e novels, como
se pouca diferença formal houvesse de fato entre eles, além de seus conteúdos.
Enquanto as teorias realistas se esforçam por fazer da ficção um ponto de clivagem
entre o romance e os demais gêneros da época de seu surgimento, os estudos de alguma forma
envolvidos no debate ao entorno da autoria de A general history não a destacam enquanto um
79
Diz Mayer que, mesmo historiadores na maior parte do tempo críticos, como é o caso
do próprio Camden, “dependiam”, em seus trabalhos, “de informações anedóticas que lhes
chegavam por meio de suas experiências corriqueiras de vida” (2004, p. 54). Segundo o
estudioso, esse “aspecto da prática histórica significava que havia amplo espaço, no discurso
historiográfico do período, para eventos maravilhosos e relatos escandalosos” (2004, p. 54).
Além de elementos oriundos da mitologia, portanto, “fofoca, boato e rumor foram todos
incorporados nos textos históricos do período.” (MAYER, 2004, p. 54).
Lennard Davis, pesquisador do surgimento do novel e de sua ligação primeira com o
discurso ‘jornalístico’ dos séculos XVII e XVIII, chega a um tipo parecido de conclusão. Diz
Davis que, durante os séculos XVI, XVII e até quase a metade do XVIII, importantes veículos
da imprensa popular, tais como “baladas e newsbooks, bem como contos fictícios, todos
entrecruzavam-se e interpenetravam-se, de modo que seria difícil isolar o que era mera estória
daquilo que era algo mais do que uma estória.” (1996, p. 89). Nessa época, afirma Davis, não
havia qualquer espécie de “consenso sobre a narrativa capaz de sustentar a questão da
factualidade na imprensa, uma vez que fato e ficção não eram discriminadores de gênero
significativos” (1996, p. 67). Isto não quer dizer, assegura o autor, “que não havia critérios
para fato e ficção durante o período, mas, sim, que os gêneros não eram definidos a partir de
sua fidelidade à verdade ou à ficção” (DAVIS, 1996, p. 67). Davis afirma ter sido contra esse
pano de fundo, no qual “não havia uma clara distinção entre as notícias e a ficção” (1996, p.
155), que obras como Robinson Crusoé foram produzidas no final da primeira década do
século XVIII.
Sandra Sherman tensiona ainda mais esse argumento acerca da dispersão dos gêneros
e a dificuldade em distinguir fato e ficção, levando-o a um ponto radical. Diz a pesquisadora
que “justamente quando Robinson Crusoé alegadamente deixa a primeira pegada nas areias de
um gênero emergente, a cultura – até mesmo Defoe – está passando por uma crise de
abstinência devido a uma overdose de ficção.” (SHERMAN, 2005, p. 1). Estudiosa da
interconexão entre os discursos econômicos e a literatura do século XVIII, Sherman
argumenta que “a esfera pública – o mercado nas ideias, na literatura – e o mercado
constituído por papéis comerciais (ambos se desenvolvendo nesse período) gera[ra]m um
campo discursivo mutuamente inflexionado ao redor da noção de ‘ficção’”. (2005, p. 2). Sua
análise, diz a própria autora, apoia-se em textos “não estritamente financeiros” (SHERMAN,
2005, p. 7), tais como panfletos, tratados e narrativas. Dentre essas produções textuais não
exclusivamente financeiras, Sherman afirma ter encontrado, na ficção de Defoe – categoria
81
que, para ela, “abarca mais do que seus ‘novels’” (SHERMAN, 2005, p. 7) –, a melhor
representação do “crédito de longo prazo [...] como ficção, um fenômeno apelativo à
‘imaginação’” (2005, p. 7).
Segundo Sherman, os argumentos contundentes de críticos do sistema financeiro do
período, como o próprio Defoe – indivíduos que apontaram os efeitos nocivos da ausência de
referencial/lastro nos instrumentos inventados por esse sistema –, possibilitaram-na perceber
no crédito, muito mais do que um mero contexto, um vetor epistemológico que “implicou a
cultura em um novo tipo de narratividade” (2005, p. 5). A autora destrincha esse ponto ao
afirmar que as “promessas em ações, anuidades e instrumentos negociáveis eram somente
verificáveis com o tempo”, permanecendo, portanto, durante todo o intervalo restante até o
momento do desfecho, “apoiadas na ficção potencial.” (SHERMAN, 2005, p. 5). Diz ela que
a homologia possível de ser feita entre uma ferramenta financeira como “uma nota endossada
por doze assinantes, emitida contra um promitente remoto, e uma narrativa como Crusoé,
baseava-se na experiência de que ambas realizavam representações que eram inverificáveis”.
(SHERMAN, 2005, p. 5). Ou seja, ambas as formas de ‘narratividade’ ou de ‘textualidade’,
nas palavras Sherman repletas de um economês analítico, “recuavam mais e mais de um
autenticador originário, que poderia demonstrar a ‘verdade’ do texto pagando-o ou
aparecendo (em carne e osso)” (2005, p. 5).
Assim, é provável que nem Defoe, nem um leitor seu contemporâneo – ambos
interessados em jornalismo, história, textos sobre comércio e novels – recorressem a
elementos supostamente intrínsecos e suficientemente discriminadores de cada gênero – como
o realismo formal –, quando queriam averiguar a factualidade ou a ficcionalidade de um texto.
Muito mais plausível é a hipótese de que esses leitores procurassem distinguir os escritos a
partir da tessitura de malhas de hipertextualidades semelhantes às que vemos nos debates
envolvendo A general history. Sandra Sherman, aliás, percebeu tal padrão de leitura ao
analisar os textos financeiros e literários que estuda:
O objetivo crucial de todos esses textos, literários e financeiros, era o de
permanecerem em suspensão, jamais revelando seu valor ou sua
proveniência, forçando o leitor a suspender sua descrença... e a esperar. A
textualidade aspirava à condição de uma opacidade epistemológica, em que
os leitores não podiam negociar sem subsídio extratextual. (2005, p. 5; grifo
nosso)
Johnson, Defoe e das diversas narrativas de viagem e textos noticiosos existentes na época,
caso contasse com algum repertório cultural, tivesse mais chance de discernir materiais mais
confiáveis dentre a grande variedade disponível no mercado editorial da época. G. Maynadier,
em prefácio à edição de 1903 de Captain Singleton, afirma que a leitura contínua de
narrativas de viagem e de mapas deve ter tido alguma influição na “admirável” capacidade de
Defoe de sempre “discriminar os livros que eram ‘confiáveis’ daqueles que não eram” (1903,
p. x) nesse campo.
Obviamente, Defoe não devia ser uma regra. O próprio crítico Maynadier noticia um
fato narrado por William Minto, em artigo publicado no Macmillan’s Magazine de 1878, a
respeito do caso de um “homem de letras inglês que havia acabado de se assombrar com uma
descoberta numa banca londrina” (1903, p. x). Na ocasião, o erudito escolheu, a esmo, um
livro “manifestadamente do começo do século XVIII, apesar de não conter data nem nome do
autor” (MAYNADIER, 1903, p. x), cujo relato de uma travessia pelo continente africano
antecipava muitas das descobertas de Henri Morton Stanley, jornalista que se tornou célebre
em fins do século XIX por divulgar suas descobertas, após haver viajado o interior daquele
continente em busca do explorador David Livingstone. O livro escolhido pelo inglês, diz
Maynadier, era nada mais nada menos que Captain Singleton. (1903, p. x).
Se um indivíduo “das letras”, vivendo no último quartel do século XIX, podia se
equivocar, não sabendo a quem, ou melhor, a que contexto – factual ou ficcional – atribuir a
obra, o que poderíamos esperar de um leitor menos instruído da época de Defoe? Este
certamente teria que se ver a sós com a tarefa impossível de computar a veracidade do texto
baseado apenas “em seu ‘valor nominal’”, como Sherman gosta de pontuar (2005, p. 4). Essas
considerações servem para indicar que, caso queiramos seguir por um caminho distinto
daquele do realismo, devemos avaliar qualquer texto do autor, mas especialmente seus novels,
a partir de métodos ‘supragenéricos’. E isso implica em abstermo-nos de tomar partido fácil
por discriminadores de gênero óbvios para nós, tais como dados sobre realidade ou ficção.
Malgrado tenha recorrido a uma interpretação que, em linhas gerais, lembra aquela de
Watt, sobretudo nos momentos em que este autor compara desvantajosamente Defoe a
escritores posteriores, G. Maynadier, dessa vez em prefácio a uma edição de Robinson
Crusoé, tem também um outro motivo interessante para grafar em seu texto o termo novel
entre aspas. Além da crítica à capacidade romanesca de Defoe, a ressalva se justifica ainda em
um insight do crítico a respeito do tipo de escrita exercida pelo autor durante sua fase pré-
romancista. Diz ele que enquanto Defoe se dividia entre as tarefas de editor e hack writer para
um bom número de jornais, tanto Whigs quanto Tories, e ainda atendia ao chamado de espião
83
a serviço de Robert Harley, manteve sua destreza literária no exercício das “narrativa[s]
semifictícia[s], ao introduzir ilustrações populares em seus escritos políticos e ao compor
histórias de eventos contemporâneos revestidos em trajes semifictícios.” (MAYNADIER,
1908, p. xvii).
Lennard Davis pensa de modo semelhante. Para ele, “as obras fictícias de Defoe são,
com muita frequência, nada ficcionais”, parecendo-se, de maneira geral, mais com “estórias
estendidas, do tipo das que apareciam nos jornais, baladas ou panfletos”. (DAVIS, 1996, p.
156). Enquadram-se, dessa forma, na categoria de factual fictions [ficções factuais] – título
mesmo do trabalho de Davis. Nessa linha, Sandra Sherman percorre as “political fictions”
[ficções políticas] de Defoe, para concluir que elas parecem ter sido “narrativas ficcionais [...]
ideologicamente carregadas e destinadas a persuadir.” (2005, p. 55; grifo nosso). Em nota de
referência a esse último aspecto, retórico, da narrativa de Defoe, a autora transcreve uma
passagem de Geoffrey Sill em que o crítico afirma que, após haver encerrado seu periódico
The Review em 1713, Defoe “começou a usar ficções... não somente para ilustrar ideias
políticas – tal qual ele havia feito durante anos no Review –, mas, sim, como a própria forma
daquelas ideias”. (2005, p. 200).
Seguindo pelas pistas deixadas pelos diferentes autores, o objetivo dos próximos
subitens será o de explorar mais detidamente o texto de Captain Singleton por meio de um
enfoque que deverá, em primeiro lugar, afastar-se de uma leitura orientada pelos quadros do
gênero romanesco. Teremos chance de perceber que a origem das restrições analíticas da
maior parte dos intérpretes da obra está relacionada ao fato de eles a terem enfocado
justamente a partir do viés romanesco. Ao procederem de tal forma, fizeram sobressair no
texto de Defoe apenas os defeitos inevitáveis de uma comparação com romances posteriores.
A narrativa de Singleton, vista por esse enquadramento anacrônico, parece sempre desprovida
de algo: ora lhe falta uma unidade central, ora seu enredo parece “apenas um registro de fatos
não elaborados o suficiente para parecerem reais” (MAYNADIER, 1903, p. ix), ora seus
personagens não parecem convencer – até mesmo quaker William, eleito unanimemente
como o melhor personagem do livro, não consegue se destacar como algo mais que um mero
elemento “desajeitado, como se fosse feito de madeira” (MAYNADIER, 1903, p. xiii).
Em segundo lugar, argumentamos que Captain Singleton ganha mais sentido quando
avaliado como uma espécie de “ficção econômica”, isto é, um híbrido que resulta de sua
posição mestiça entre vários discursos factuais do período – relatos de viagem, história, news,
etc. Nem somente fato nem somente ficção, a obra vive, por conseguinte, instalada numa rede
de sentido com os demais discursos do começo do século XVIII, com os quais divide certas
84
características em comum. Essa ficção econômica parece ter sido aquela que Defoe elegeu
para “ilustrar” ou, como diria o crítico Geoffrey Sill, “dar forma” a suas convicções teóricas a
respeito da missão Providencial do comércio no mundo. Inesperadamente, o autor escolheu
fazê-lo justamente por meio da história de um controvertido personagem pirata. Essa é a
história de Singleton. É ela que, cingida pela força da costumeira “narrativa com grande
variedade” (DEFOE, 2014, pos. 3731) de Defoe, rica em “grande número de incidentes”
(DEFOE, 2014, pos. 47), deverá cumprir tão importante função instrutiva.
adventures, and piracies of the famous Captain Singleton: containing an account of his being
set on shore in the island of Madagascar, his settlement there, with a description of the place
and inhabitants: of his passage from thence, in a paraguay, to the main land of Africa, with
an account of the customs and manners of the people: his great deliverances from the
barbarous natives and wild beasts: of his meeting with an Englishman, a citizen of London,
among the Indians, the great riches he acquired, and his voyage home to England: As also the
Captain’s Return to Sea, with an account of his many adventures and pyracies with the
famous Captain Avery and others.15
Embora sejamos levados a supor que a observação do padrão dos extensos títulos
tenha sido exclusividade dos livros que compartilhavam das estruturas dos relatos de viagem
– como os dois exemplos transcritos dão a crer –, a comparação com outras obras pode
desfazer a impressão equivocada. Nesse sentido, os espaços publicitários dos periódicos da
época de Defoe, além de formarem um valioso inventário do horizonte de expectativa dos
leitores comuns, demonstram que outros tipos de produção escrita também recorriam à mesma
fórmula. Na edição do dia 26 de julho de 1705 do periódico The Review, editado por Defoe
(1705, p. 248), o anúncio de um livro dizia: A pathological theory of several national ails,
and endemical diseases, that have afflicted Europe almost ever since the breaking forth of the
Sudor Anglicus in 1486. Containing a geometrical account of their causes, and pointing out a
way whereby the procatarxis of each may be traced backward and forward, from causa cause
[sic] in the macrocosm: so that the seeds of every individual Malady may be both seen and
handl’d by such as are habituated to the study of numbers and geometry: Finally shewing,
from the anatomy of the earth, and from the magnetic globes that abound therein, the names
and nature of a many clandestine contents that irradiate the air, and infest the atmosphere, to
the signal destruction of mankind, in each unhealthful situation […]16
15
[A vida, aventuras e piratarias do célebre Capitão Singleton: contendo um relato de seu abandono em terra na
ilha de Madagáscar e seu estabelecimento por lá, com uma descrição do local e seus habitantes; de sua travessia,
feita numa piroga, desde a ilha até o continente africano, com um relato dos hábitos e costumes dessa população;
suas grandes libertações dos bárbaros nativos e feras selvagens; de seu encontro com um inglês, cidadão de
Londres, entre os indígenas; as grandes riquezas que adquiriu e sua viagem de regresso à Inglaterra: Como
também do retorno do Capitão ao mar, com um relato de suas inúmeras aventuras e piratarias ao lado do célebre
Capitão Avery e outros.]
16
[Uma teoria patológica de diversas moléstias nacionais e doenças endêmicas que têm afligido a Europa quase
desde o surto da Sudor Anglicus, em 1486. Contendo uma explicação geométrica de suas causas e apontando um
caminho pelo qual a procatarxis de cada uma pode ser rastreada a retrocesso e adiante, desde a causa cause [sic]
no macrocosmo, até a causa causati no microcosmo: para que, assim, as sementes de cada mal possam tanto ser
descobertas quanto manipuladas por aqueles que estão habituados ao estudo dos números e da geometria:
demonstrando, finalmente, desde a anatomia da Terra e dos globos magnéticos que nela abundam, os nomes e a
natureza de muitos elementos ocultos que irradiam o ar e infestam a atmosfera, até o sinal de destruição da
humanidade em cada situação insalubre [...]
87
A diferença, claro, está no fato de que em obras como Captain Singleton e A voyage to
the South Sea, and round the world, que circulavam entre as convenções formais dos diários
de viagem, história, etc., o resumo do conteúdo necessariamente adianta a trama do livro, já
que seu conteúdo é basicamente narrativo. De todo modo, a comparação deve servir para
mostrar que, no início do século XVIII, apenas o título de uma obra não compunha
informação suficiente para ajudar o leitor a desvendar a procedência genérica do texto; muito
menos para lhe fornecer pistas seguras sobre o tipo, verdadeiro ou ficcional, de seu conteúdo.
Podemos supor que obras como aquela anunciada pelo jornal de Defoe, que recorrem à
retórica típica dos discursos factuais da época – “uma explicação geométrica”, que “não será
exposta à venda geral” (DEFOE, 1705, p. 248), mas, sim, destinada àqueles “que estão
habituados ao estudo dos números e da geometria”, para proteger “alguma arcana [...] que
não deve ser prostituída” (DEFOE, 1705, p. 248) –, não estejam propriamente situadas no
campo seguro de um discurso totalmente livre de ficção. Convenhamos que, mesmo se
houvesse insinuações de que a tal “teoria patológica” tenha sido produto do engenho ficcional
do escritor de Robinson Crusoé, ainda assim dificilmente ousaríamos chamá-la, pelo menos
atualmente, de novel. A essa altura, podemos afirmar com relativa segurança que tanto a
ausência de padrões claros sobre ficção e factualidade, quanto a utilização de recursos formais
comuns a vários gêneros literários – os longos títulos, por exemplo – faziam com que a
classificação de gêneros literários baseada em protótipos genéricos não fosse a maior das
preocupações do leitor daquele início de século.
Detendo-nos um pouco mais no grande título de Captain Singleton, há um termo que
merece destaque, por ser bastante recorrente nos escritos de Defoe. Segundo a edição de 1755
do dicionário de Samuel Johnson, “deliverance” [livramento, libertação ou salvação]
significava: “1. O ato de entregar algo a alguém; 2. O ato de libertar do cativeiro, escravidão
ou qualquer opressão; 3. O ato de fala; expressão; pronunciação; 4. O ato de dar à luz filhos.”
(JOHNSON, 1755, p. 560-561). Mais usado por Defoe, em sua época o segundo sentido do
vocábulo vinha impregnado de uma forte conotação religiosa. Inúmeras passagens bíblicas
evocavam a imagem de um Deus deliverer da condição humana, presa em seu cativeiro da
materialidade física pecadora. Os exemplos escolhidos por Johnson para contextualizar o
emprego dessa segunda definição são sintomáticos: “Enviou-me a curar os quebrantados de
coração, a pregar liberdade [preach deliverance]” aos cativos (BÍBLIA, Lucas, 4: 18-19);
“[...] ó Deus; ordena salvações [command deliverance] para Jacó” (BÍBLIA, Salmos, 44:4).
Em notas à edição de Robinson Crusoé, John Richetti comenta que várias das citações
bíblicas utilizadas por Defoe deviam “ter sido feitas de memória” (DEFOE, 2011, p. 154),
88
Nascido de uma família rica, na ocasião em que sua ama o levava para passear nos tais
“campos de Islington”, quando ainda contava com apenas dois anos de idade, Singleton foi
raptado por uma pedinte e logo vendido para uma cigana. Com essa mulher, a quem lhe
ensinaram a chamar de mãe, o jovem convive até os seis anos de idade, momento em que a
velha decide lhe contar toda a história que lhe serve de arremedo de genealogia. Diz Singleton
que, por não ter sido aperfeiçoado a tempo no “comércio errante [strolling trade]” (DEFOE,
1720, p. 2) da cigana, após a morte da mulher ele foi transferido para a guarda de sucessivas
paróquias. Numa delas, justamente situada perto do mar, o garoto fixa-se de vez, e é ali que,
com idade aproximada de doze anos, Singleton é levado para sua primeira aventura em alto
90
para fazer o mal. Começou bem cedo a pirataria... Mas cuidado com o cadafalso, jovem!
Cuidado, pois você será um notável ladrão!” (DEFOE, 1985, p. 28).
A realidade, contudo, se opõe aos planos iniciais dos homens. Não encontrando navio
algum pela região a não ser um velho barco holandês encalhado, o grupo adota uma tática
diferente. Decidem montar, a partir dos destroços do navio holandês, uma fragata com a qual
possam navegar até a parte central do continente africano. O objetivo é finalmente atingido
após vinte e quatro dias de viagem. A travessia, a pé, “desde a costa de Moçambique, situada
na parte oriental, até a de Angola ou da Guiné”, pelo interior do continente africano,
representando “um percurso de 1.800 milhas” (DEFOE, 1985, p. 44), ocupa metade da
narrativa de Captain Singleton e é um dos pontos altos da história de suas aventuras. Além de
ser o momento do texto em que Defoe nos revela sua faceta de voraz leitor de relatos de
viagem, a narrativa africana é também a parte da obra na qual somos apresentados a uma
espécie de história dos ‘anos de formação’ de Singleton.
Recém-chegados ao continente, e ainda no começo da grande travessia, os homens
espantam-se com a diferença de comportamento da população nativa. Em uma primeira
tentativa de troca comercial, são trapaceados e revidam, iniciando uma contenda com os
“indígenas”, que, muito convenientemente, são aprisionados após o fim do conflito. Dentre
eles encontra-se “o príncipe” da tribo, personagem que segue como companheiro de
viagem/escravo do grupo até o fim do périplo africano, concluído na Costa do Ouro, de onde
se despedem dele “como amigos” (DEFOE, 1985, p. 111). Pouco antes de chegarem a seu
destino, no entanto, encontram, isolado numa tribo nativa, um europeu nu, de origem inglesa,
que se junta ao grupo e os persuade a explorar a região em busca de ouro. Da Costa do Ouro,
Singleton volta para a Inglaterra, mas seu regresso não se parece em nada com um retorno ao
lar. De volta à Europa, Singleton não encontra ninguém, nem “parentes, nem amigos, nem
mesmo nenhuma amizade [...], embora ali fosse [sua] terra natal.” (DEFOE, 1985, p. 113).
Em menos de dois anos, enfadado com uma existência de pura dissipação – Singleton gasta
toda a fortuna acumulada durante a viagem africana –, o personagem principal decide se
lançar em nova aventura.
Desde o começo do relato, Singleton demonstra sempre certa aptidão para a pirataria.
Porém, não é senão quando decide abandonar sua “pátria” inglesa, embarcando em um navio
com destino a Cádiz, que ele encontra a chance de estar em seu elemento. No meio do trajeto,
a embarcação é forçada a fazer escala em La Coruña, devido ao mau tempo. Naquela
localidade, Singleton e um companheiro iniciam uma tentativa, rapidamente frustrada, de
amotinação no barco. Insaciados com o fracasso, os dois ficam a par de que a tripulação de
92
uma embarcação vizinha tece planos semelhantes. Bob e seu comparsa não pensam duas
vezes, correndo ao encontro dos amotinados sob o comando de Wilmot. Tomam, com eles, o
barco, e Wilmot logo alça Singleton à posição de tenente.
Não demora muito e o nosso protagonista, sem dúvida em razão de sua habilidade no
comando, sobe ao posto de dirigente de uma fragata espanhola capturada. É no período de
dois anos em que viaja por águas espanholas em companhia de Wilmot e seu bando, que
Singleton encontra William Walters, personagem que muda definitivamente os rumos da sua
história. Ao atacar uma escuna que ia da Pensilvânia para Barbados, o grupo se depara com
um jovem médico cirurgião quaker, que “não mostrou repugnância em nos seguir”, mas que
“desejava parecer ter cedido à força.” (DEFOE, 1985, p. 117). Jovem inteligente, corajoso,
sensato e extremamente bom na condução dos negócios, William é quem servirá como
conselheiro, amigo e mentor de Singleton, sobretudo a respeito dos aspectos religiosos e
comerciais – inseparáveis, para Defoe – da vida. É o quaker quem, num último gesto de
deliverance, deflagra em Singleton um processo de renúncia da pirataria e redenção que
culmina no retorno de ambos à Inglaterra e no casamento do protagonista com a irmã de
William.
No Brasil, o livro ganhou a primeira edição, traduzida por Vera Mourão, apenas em
1985, pela editora Global. Na verdade, trata-se de uma adaptação, uma vez que algumas
passagens do original foram extirpadas no texto em português. Mesmo assim, nem o essencial
da história nem o estilo de escrita de Defoe estão perdidos para o leitor brasileiro. As
supressões servem, claro, num outro sentido, como indício da mudança na recepção atual da
obra. Ou talvez nem tão atual assim. Os trechos eliminados da adaptação brasileira fazem
parte de um projeto, sem dúvida mais prático que teórico, de adequar o texto às interdições de
conteúdo relacionadas à faixa etária do público alvo dos livros de Defoe nesses últimos dois
séculos. Desde então, os novels do autor – com destaque para Robinson Crusoé – vêm sendo
sistematicamente qualificados como literatura destinada a crianças em fase de primeira
aprendizagem.
Virginia Woolf dizia que nunca lhe ocorrera, enquanto jovem, pensar que existisse
uma pessoa concreta como Defoe por trás da narrativa de Robinson Crusoé. “Parte disso”, diz
a escritora, “podemos atribuir ao fato de que todos nós tivemos alguém que nos lesse
Robinson Crusoé em voz alta, quando crianças, e ficávamos num estado de espírito, em
relação a Defoe e sua história, muito parecido com o dos gregos em relação a Homero.”
(WOOLF, 2014, pos. 5359). Do lado de cá do oceano, a situação não parecia muito diferente.
No poema Infância, Carlos Drummond de Andrade relembra quão longa era a história do
93
náufrago Crusoé; todavia, com grande nostalgia, constata também o quanto do elemento
natural da infância, passada nas tardes de leitura sob a copa das mangueiras, a lembrança do
livro ainda era capaz de evocar.
Apesar de ter sido um autor por muito tempo recomendado a crianças das mais
diferentes nacionalidades, parece haver uma ostensiva diferença entre os jovens leitores do
século XIX e primeira metade do XX e aqueles atuais. É possível que, para os pequenos de
séculos anteriores, trechos como o transcrito abaixo, em que Singleton não poupa injúrias a
seus camaradas portugueses, passassem relativamente incólumes. Mas, hoje, ele já não consta
na adaptação brasileira. Narrando a época em que vivia sob a guarda de seu patrão português,
a bordo da embarcação comercial da mesma nacionalidade, Singleton diz que:
O destino certamente assim dirigiu meu início, sabendo que havia, para mim,
trabalho a ser feito neste mundo que pessoa alguma, a não ser alguém
endurecido contra qualquer senso de honestidade ou religião, seria capaz de
suportar; e, ainda assim, no estado de maldade original em que me
encontrava, eu entretinha uma tal aversão assente pela vileza abandonada
dos portugueses [Portuguese], que não podia senão odiá-los com todo o meu
coração, desde o início até os últimos dias de minha vida. Eles eram tão
brutalmente perversos, tão baixos e pérfidos – não somente com estranhos,
mas uns com relação aos outros; tão mesquinhamente submissos quando
subordinados; tão insolentes ou bárbaros e tirânicos quando superiores, que
eu pensei haver neles algo que chocava minha própria natureza. Some-se a
isso que é natural a um inglês odiar um covarde e tudo isso se juntou para
fazer do diabo e de um português um e o mesmo objeto de aversão para
mim. (DEFOE, 1720, p. 5)
É possível que estejamos, mais uma vez, diante de um problema ocasionado pelo
ingresso forçado de narrativas como Captain Singleton e Robinson Crusoé na categoria de
romance, na qual, conforme já vimos observando, por vários motivos elas parecem mal
acomodadas. Sobre esse ‘descompasso receptivo’ das histórias de aventura de Defoe, John
Richetti cita a tese explicativa de Martin Green. Para este autor, ao terem se aproximado
demais das desagradáveis realidades da expansão imperial e da pilhagem colonial britânicas,
as “perigosas e lucrativas aventuras masculinas no ultramar (como Robinson Crusoé)”
(RICHETTI, 2005, p. 216) puseram-se na rota de colisão com a ideologia sentimental difusa
na tradição que deu seguimento a Fielding e Richardson, com sua preferência por temáticas
relacionadas ao mundo doméstico dos cortejos e dos casamentos. Diz Richetti ainda que, para
Green, o padrão sentimentalista e seu desdém pelas narrativas de aventura têm origem num
mecanismo instintivo de alienação frente aos excessos de brutalidade envolvidos nas
explorações de populações indígenas pela política imperial. O desconforto viria do fato de que
tanto as explorações quanto seus excessos colaterais estiveram, necessariamente, presentes na
94
própria origem da riqueza e do ethos do lazer, elementos “que sustentam o universo social
descrito no romance tal qual como viemos a conhecê-lo.” (RICHETTI, 2005, p. 217). O
biógrafo conclui dizendo que:
Em suas linhas gerais, a tese de Green esclarece muito sobre o romance no
século XVIII. A comparação que ela nos permite fazer com aquilo que veio
a se transformar na principal tradição do romance inglês realça a estranheza
peculiar que as estórias de aventura de Defoe representam no interior dessa
tradição. Elas exibem todos os interesses e opiniões mais convictas do autor
– uma frequente mistura contraditória de admiração pela crueldade
econômica e imperial, introspecção moral-religiosa, ansiedade com relação à
justificação individual e salvação, além de um cosmopolitismo secular com
elenco decididamente Iluminista. Isto tudo para dizer que os romances de
aventura que se seguem a Robinson Crusoé não são, de forma alguma, livros
para meninos; eles são muito intelectuais e maduros, muito sérios e bem-
informados a respeito de realidades contemporâneas e complexas, e sobre
delicadas questões sociais, morais e históricas. Estão repletos de ideias
acerca de uma emergente ordem global e ainda comunicam algo da excitação
de Defoe com relação às possibilidades do comércio mundial e o agressivo
expansionismo mercantil e imperial da Inglaterra. Apesar de dificilmente
serem sistemáticos, eles confrontam o sistema mundial da época; exploram
realidades mercantis, tecnológicas e imperiais que a ficção subsequente irá
amplamente ignorar. (RICHETTI, 2005, p. 217)
criativo de sua carreira, entre 1715 e 1724, em que Defoe experimentou com os usos da ficção
de diversas maneiras, ele, assim como praticamente todos os escritores de todos os tempos,
“derivou certas técnicas de tradições ainda existentes” (1996, p. 41).
No contexto dessa discussão, talvez tenham acertado os críticos que compreenderam o
nexo mercadológico e efêmero das produções de Defoe. Dentre eles, William Minto com sua
noção de “peças ocasionais” parece ter chegado mais perto de compreender a cogente
delimitação temporal a que estiveram submetidas as obras do autor. Compartilhando da lógica
dos periódicos e dos panfletos, estilos em que o autor se especializou, é possível que a
produção de escritos como Captain Singleton tenha sido, como diz Minto, orientada para o
suprimento de demandas passageiras. Do ponto de vista da construção, a própria linguagem
de Captain Singleton parece almejar o gosto do público da época. De maneira geral, a
narrativa do pirata apresenta-se em um estilo direto [plain style], desadornado de qualquer
efeito poético ou dramático, e ainda excessivamente carregado de verbos que parecem
multiplicar ao infinito as ações do protagonista e de seu grupo. Não são poucos os momentos,
porém, em que a narrativa é atravessada por um modo de escrita ainda mais austero, em que
predominam os artigos numerais, companhias obrigatórias na relação dos bens encontrados e
acumulados pelo grupo de Singleton. Esses três aspectos, uma linguagem plana, muita ação e
bastantes enumerações, sem dúvida contribuem para aproximar o texto de Singleton dos
journals de aventureiros e piratas do século XVII e início do XVIII.
Contra o pano de fundo geral das narrativas mais antigas de Hakluyt e de Purchas,
Captain Singleton deriva os aspectos mais detalhados de sua estrutura daquelas narrativas e
diários de viajantes e piratas mais recentes como Mandelso, Knox, Dampier e Misson.
(SECORD, 1924, p. 114). Um leitor da época, minimamente familiarizado com o estilo,
muito possivelmente perceberia na história de Singleton mais um exemplar ‘do gênero’.
Contudo, para o leitor contemporâneo, os momentos culminantes desse tipo de combinação
estilística podem se revelar uma fonte de certo desnorteio. Talvez ele julgue não estar
apreendendo corretamente a passagem do tempo ou, quem sabe, a ordem exata das sucessivas
ações – tudo isso em razão da rapidez com que a narrativa passa por lapsos temporais que
deveriam ser, para os padrões atuais, descritos de maneira mais detalhada. Assim é o caso, por
exemplo, do regresso do protagonista à Inglaterra, ocasião em que narra dois pródigos anos
em menos de três parágrafos – três parágrafos que são, para os propósitos do narrador,
perfeitamente dispensáveis, diga-se de passagem; divergem, nesse sentido, daqueles
parágrafos enumerativos, que recebem tratamento excessivamente detalhado, nos quais bens,
96
riquezas e experiências parecem (talvez Defoe flertasse seriamente com a possibilidade dessa
ideia) provir de fontes inesgotáveis.
A respeito desse ponto, Richetti captou um importante elemento referente ao horizonte
de expectativa da obra. Mesmo tecendo um comentário dirigido a outro texto, A new voyage
around the world (1724) [Uma nova viagem ao redor do mundo] – um relato de viagem
discutivelmente atribuído a Defoe –, o biógrafo toca no ponto da diferença de interesses que
separa, de um lado, Defoe e seus leitores das primeiras décadas do século XVIII, e, de outro,
o leitor contemporâneo e às vezes entediado de Captain Singleton. Para Richetti, Defoe não
parecia equivocar-se ao achar que uma viagem de aventura mercantil, “com suas acumulações
de riquezas e experiências triunfantes”, valia a produção de grandes narrativas, pois “havia,
claramente para ele e para muitos leitores da época, uma fascinação com relação a esses
relatos de aventura em lugares exóticos, especialmente em seu sentido econômico.” (2005, p.
222).
Aliás, sobre esse aspecto econômico, não são poucas as passagens do relato do pirata
que ecoam a aridez típica dos “resumos de riqueza e de bens adquiridos e comercializados
presentes em um Livro Razão” (RICHETTI, 2005, p. 229). Por isso, diversos críticos
orientados pelos quadros explicativos do romance apontaram, na tendência do narrador em
aprofundar detalhes sobre transações e acumulações materiais, um desvio patente de Captain
Singleton do padrão de realismo que toma por modelo as narrativas de pirataria e de viagem.
Assim, Manuel Schonhorn, por exemplo, em um artigo provocativo, em que comenta
mordazmente a ambígua carreira pirata do protagonista, afirma que “Captain Singleton
guarda pouca semelhança com os registros de pirataria aos quais se propunha a aparentar.”
(apud BLACKBURN, 1978, p. 119). Outro crítico, Gary J. Scrimgeour, diz que os métodos
narrativos empregados na metade africana da narrativa sugerem “que uma tentativa de
realismo de superfície ou de caracterização foi completamente subordinada a outros
interesses.” (apud BLACKBURN, 1978, p. 119). Os “outros interesses” que respondem pela
frustração do projeto realista/romanesco idealizado pelo crítico são, segundo ele, de ordem
estritamente comercial e, consequentemente, “sem relação alguma com a literatura.”
(SCRIMGEOUR apud BLACKBURN, 1978, p. 119).
Em um dos trechos que podem ter desorientado os críticos realistas, vemos Singleton
extasiado junto a seus homens a enumerar as possibilidades virtualmente inesgotáveis de
aventuras e de enriquecimentos fáceis em meio à planície africana:
Afinal nos decidimos a ficar ali mais seis meses, e nos deslocamos um pouco
para o sudeste.
97
De modo semelhante, Moll Flanders opta por expor minuciosamente seus bens
pecuniários e cálculos financeiros que parecem multiplicar-lhes o valor conforme a narrativa
se estira ao detalhá-los. Recém-casada com o marido proprietário de plantations na Virginia –
quem a protagonista descobre mais tarde ser seu irmão –, Moll decide contar ao esposo a
verdade sobre sua origem humilde, desfazendo a imagem de mulher rica que até então
ostentou com o único propósito de arranjar para si um vantajoso contrato matrimonial.
Contudo, a narradora não age de forma impulsiva. Ainda que dispondo de pouquíssimo dote,
ela o entrega a seu marido aos poucos, seguindo um intricado plano traçado com o objetivo de
tornar o homem, se não um pouco mais feliz em sabê-la enfim possuidora de algo, no mínimo
menos triste com a notícia de sua pobreza:
Deixei que se satisfizesse com aquelas cento e sessenta libras durante dois
ou três dias, e depois de ter passado um dia fora, como se tivesse ido buscá-
las, entreguei-lhe mais cento e vinte libras em ouro, dizendo que era um
complemento do dote para ele, e daí a mais ou menos uma semana dei-lhe
mais cento e oitenta libras e cerca de sessenta libras em linho, que fiz crer
que fora obrigada a aceitar, juntamente com o ouro, como parte da quitação
de uma dívida de seiscentas libras, a uma taxa de cinco xelins por semana,
acima do valor real. (DEFOE, 2014, pos. 1269)
substituído pelo de parceria, conforme William e seus conselhos dominam o relato. Aliás,
sobre esse personagem, um dos “melhores criados por Defoe”, George Aitken (1904, p. viii)
chega a afirmar, em prefácio à edição de 1904 de Captain Singleton, que o quaker é o único
responsável por “empresta[r] o principal interesse à segunda metade das aventuras de
Singleton” (1904, p. xvi). Porém, para o mesmo crítico, o relato de Singleton situa-se em um
“nível mais baixo” (1904, p. viii) que aquele ocupado por Robinson Crusoé e A journal of the
plague year, em razão de não apresentar uma unidade de propósito como o das duas obras-
primas. Mas o argumento que parece pesar definitivamente no juízo desfavorável do crítico –
e aqui ele se aproxima de Bakhtin – é o fato de, segundo Aitken, Singleton ser “um homem
tão completamente ausente de princípios que fica difícil tomar muito interesse por ele.” (1904,
p. viii).
A formulação de Bakhtin parece, portanto, reunir e sofisticar os elementos da crítica
que julga o texto de Defoe a partir dos valores estéticos do romance. Para o russo, o fator
dispersivo de narrativas como Singleton, que emolduram heróis sem características essenciais
distinguíveis e que, justamente por isso, conseguem dar destaque a seus movimentos de
perambulação e escapadelas aventureiras, está em fazê-lo de uma maneira que revela “uma
concepção da diversidade do mundo puramente espacial e estática” (BAKHTIN, 1986, p. 11).
No entanto, afirma Richetti – e só podemos concordar com o biógrafo –, Bakhtin se esqueceu
de um detalhe da maior importância para a compreensão da história de Singleton: sua origem
problemática. Singleton não é o herói regido pelos destinos dos grandes protagonistas; ele é
um órfão, desde sempre um abandonado, “um puro indivíduo do lumpemproletariado, que
cresce como uma folha em branco potencial (um perfeito exemplo da famosa tábula rasa de
Locke [...])”, diz Richetti (2005, p. 225).
Na primeira fase de sua vida, Singleton é um indivíduo que apenas reage aos estímulos
do meio e por ele é moldado. Poucos críticos, no entanto, mencionaram a infância e a
juventude miseráveis do bucaneiros como experiências decisivas para a formação do futuro
caráter do adulto. Defoe sempre procurou ressaltar a força presente na ligação indissociável,
100
para ele, entre, por um lado, a pobreza extrema e, por outro, a falta de alternativas, que
inexoravelmente abandona o sujeito à mercê dos efeitos sedutores da criminalidade. E não
foram poucas as oportunidades em que o escritor ilustrou, por meio da ficção, essa sua
opinião: Moll Flanders, Colonel Jack e Roxana estão entre os mais célebres personagens
criados por Defoe; todos, sem exceção, encarnam criminosos cuja ‘vida profissional’ se inicia
após eles terem sido, em distintos momentos de suas existências, vitimados por algum tipo de
extrema pobreza. William Minto, no século XIX, já afirmava que os infratores das
“biografias” de Defoe “não são criminosos por malícia: eles não cometem crimes somente
pelo prazer de fazê-lo”, mas, sim, “acreditam que, a não ser pelas forças das circunstâncias,
eles poderiam ter sido, certamente, contentes e virtuosos membros da sociedade.” (1887, p.
131). É sobre esse ponto que Crusoé medita em seu Serious reflections [Reflexões sérias],
terceiro livro a se aproveitar do sucesso da primeira história do náufrago:
A necessidade faz de um homem honesto um canalha [...].
Um homem rico é um homem honesto, não graças a ele, visto que seria um
duplo canalha caso enganasse a humanidade quando não tem motivo algum
para fazê-lo [...]. Diga-me sobre um homem que seja muito honesto,
porquanto paga a todos pontualmente, não entra em débito com ninguém,
não faz mal a pessoa alguma; pois bem – em qual circunstância ele se
encontra? Pois bem, ele tem uma boa propriedade, um bom rendimento
anual e não precisa atender aos negócios. O demônio só pode estar em total
possessão deste homem para que ele aja como um tratante, uma vez que
ninguém pratica o mal somente por fazê-lo: até mesmo a própria besta tem
algum desígnio superior para pecar que não a simples maldade. Nenhum
homem é tão embrutecido pelo crime a ponto de praticá-lo pelo mero prazer
de praticá-lo – há sempre algum vício gratificado. Ambição, orgulho ou
avareza fazem do homem rico um canalha; a necessidade, o pobre. (DEFOE
apud MINTO, 1887, p. 150)
Ninguém melhor para dizê-lo do que a ladra Moll Flanders. Quando narra “aquele
capítulo feliz” de sua vida, ao lado de seu penúltimo marido, banqueiro em Londres, a
protagonista parece mergulhada no mais puro recato e crente do mais sincero arrependimento.
A antiga pecadora, que no começo da juventude abandonou um filho, fez outros com seu
próprio irmão, desamparou mais outro ainda, nunca tendo deixado de se deitar com estranhos,
fica para trás no relato da penitente – e isso somente porque suas condições melhoraram. Esse
cálculo a própria protagonista não esconde dos leitores:
[...] quão mais digna é a vida de virtude e seriedade do que aquela que
chamamos de vida de prazer!
Ah, prouvera a Deus que aquele capítulo feliz de minha vida tivesse
perdurado ou que eu aprendesse, quando o vivi, a apreciar seu verdadeiro
dulçor, que eu não recaísse na pobreza, o veneno fatal da virtude! Teria sido
a mais ditosa das mulheres, não só naqueles dias, mas talvez para todo o
sempre; porque enquanto assim vivi, senti-me realmente arrependida de toda
101
Singleton dificilmente teria tido, sozinho, a mesma clareza penitente de Moll – pelo
menos não antes do desfecho de seu relato, e, principalmente, não antes da presença e dos
ensinamentos cruciais do quaker William Walters. É William quem, agindo como
instrumento da Providência Divina, aviva em Singleton o interesse pelo lado civilizado da
existência humana, acenando-lhe com a possibilidade de uma vida voltada para o despertar
moral e religioso, isto é, para sua deliverance. Contra o padrão formado por Moll Flanders e
Roxana, personagens viciosas apenas na fase adulta da vida, tendo sido educadas formal e
religiosamente durante a juventude, Singleton, um indivíduo que começa sua existência como
tábula rasa, representa o protótipo ideal a partir do qual Defoe poderia ilustrar os efeitos de
suas teses sobre as benesses do trade. Ainda muito jovem, e não sendo capaz de, como os
demais, olhar para dentro de si em momentos oportunos, a fim de encontrar deliverance,
Singleton explica seu estado de necessidade absoluta:
[N]ão tinha o senso da virtude ou da religião no meu íntimo. Pouco lidara
com essas coisas, salvo quando, com a idade de oito ou nove anos, ouvia as
exortações de um venerável pastor.
Mas, como diz o provérbio inglês: “Quem embarca com o diabo deve
navegar com o diabo”, eu tinha, custasse o que custasse, de permanecer no
meio de meus desprezíveis companheiros. (DEFOE, 1985, p. 13)
Durante a fase inicial de sua vida, Bob encarna o ser humano vivendo em estado bruto,
reagindo tão somente a estímulos propiciados pelo meio: “Meu patrão ficava em terra, de
modo que eu não tinha nada a fazer, senão me acostumar com o vício, tomando como
exemplo meus rudes companheiros.” (DEFOE, 1985, p. 13). Pouco adianta a tentativa do
capelão do navio comercial português, Padre Antonio, de tomar para si a tarefa de educar
Singleton religiosamente, a fim de torná-lo “um tão bom papista quanto qualquer um deles
[dos demais marinheiros] no tempo de cerca de uma semana” (DEFOE, 1720, p. 6; acréscimo
nosso). A ironia pode ser entendida, sem dúvida, como um registro sardônico do sentimento
anticatólico de Defoe. Podemos comprová-lo conforme avançamos na narrativa. Ao perceber-
se explorado além dos limites por seu patrão português, que vende seus serviços de garoto de
cabine para o capitão do barco e não lhe repassa sua merecida – pensa o jovem – parte do
negócio, Singleton começa a reclamar melhorias para sua condição. O amo, contudo, não
transige; na realidade, irado com o que entende ser ingratidão do garoto por ele libertado
[delivered] das garras dos turcos, ameaça entregá-lo como herege à Inquisição, jogando
102
Diz ainda Singleton que, caso fosse realmente levado para a Inquisição,
provavelmente responderia “sim” para a primeira pergunta feita a respeito de qual a
verdadeira fé que professava. Se tivessem lhe perguntado se sua religião era a protestante,
especula o narrador, teria dito “sim” por pura ignorância, e “isto certamente teria feito de mim
um mártir” (DEFOE, 1720, p. 6; grifo nosso). O que o jovem tem de uma irredimível
ignorância acerca de questões espirituais, o narrador do relato, o velho ex-pirata arrependido e
possivelmente penitente, tem de sagacidade quando escolhe suas palavras. O conceito de
martírio, resgatado pelo termo martyr presente na passagem, deve ter sido um resquício da
educação religiosa que Defoe recebeu durante sua juventude. Em 1563, era publicado o Actes
and monuments [Atos e monumentos], popularmente conhecido como Foxe’s book of martyrs
[O livro dos mártires de Foxe] em referência ao nome de seu autor, John Foxe. Trata-se de
uma obra responsável por ter formado na Inglaterra, durante muito tempo, uma noção
extremamente popular e depreciativa de catolicismo.
O livro conta a longa história das perseguições religiosas a protestantes ingleses
promovidas por católicos, desde a Idade Média até o reinado de Mary Tudor – a infame
Bloody Mary. Embora tenha sido alternadamente estimado e criticado tanto por formalistas
quanto por antiformalistas, no decorrer dos séculos XVI e XVII, o rigor teológico presente na
obra de Foxe conseguiu atrair leitores dissidentes e não-conformistas à medida que, entre os
anos de 1630 e 1640, o episcopado e a monarquia cresceram em impopularidade entre esse
grupo de religiosos. (KING, 2011, p. 309). Algumas décadas mais tarde, durante a agitação
social que culminou na Guerra Civil Inglesa e no Interregno, muitos leitores ainda
procuravam o Livro dos mártires como uma fonte de ideais político-religiosos dissidentes
(KING, 2011, p. 308). Esse era o contexto mais próximo de Defoe, no qual, afetados pela
crescente inflexibilidade da Alta Igreja anglicana, que a partir da segunda metade do século
XVII apertava ainda mais o cerco aos religiosos dissidentes, os anos de formação do nosso
103
A comparação com a obra de Locke não é fortuita. Segundo Timothy Blackburn, John
Locke é um autor em que Defoe “se baseia fortemente [...] para formar a estrutura conceitual
e a coerência de Captain Singleton” (1978, p. 120). Reproduzindo as palavras do filósofo
autor de Dois tratados sobre o governo (1689/90), Blackburn afirma que, em Captain
Singleton, o princípio de que “uma criança não nasce súdita de qualquer país ou governo”
(LOCKE apud BLACKBURN, p. 122) funciona como o pontapé inicial de uma obra que
pode ser vista, de maneira geral, “como a busca de Singleton pelo seu verdadeiro ‘negócio’
[‘business’] e, portanto, seu ‘lar’”. (BLACKBURN, 1978, p. 120). Nesses termos, o
protagonista de Captain Singleton parece realmente personificar o arquétipo da criança
lockiana. O único lugar do qual ele pode se afirmar um súdito é o mar, diz Blackburn (1978,
p. 122). Desde o começo do relato, Defoe parece ter estabelecido uma condição de
necessidade extrema para Singleton: falta-lhe uma pátria física, um lar, parentes e amigos,
dinheiro, amor. “[C]om uma alusão à dimensão religiosa da salvação [deliverance], Defoe
estabelece”, diz Blackburn, como mais um elemento da situação de carestia extraordinária de
Singleton, “o padrão de uma necessidade contínua por salvação [deliverance].” (1978, p.
122).
Ainda em Madagáscar, é a busca por deliverance que anima os homens abandonados a
decidirem atravessar, a pé, o interior do continente africano, a fim de alcançarem a parte mais
civilizada situada a leste, local de entreposto comercial com a Europa. O que os move,
portanto, é a possibilidade de serem salvos/libertos de uma condição de drástica privação de
civilidade. Come exceção de Singleton, todos procuram “a vida e a liberdade, igualmente”,
afirma Blackburn (1978, p. 123). Recém-delivered da péssima condição em que se encontrava
a bordo do navio comercial português, onde sofreu os abusos de seu mau patrão, porém ainda
ignorante de um real contato civilizatório como o vivido pela maioria de seus companheiros,
Singleton é o único dentre os homens que pode se dar ao luxo de dizer, por exemplo, que
“achava a região [de Madagáscar] maravilhosa e esboçava vagamente o sonho de ali voltar
um dia.” (DEFOE, 1985, p. 36; acréscimo nosso). Nesse momento da narrativa, conclui
Blackburn, Singleton “pertence ao estado de natureza” (1978, p. 123): incapaz de, sozinho,
tomar decisões sobre o rumo de sua futura jornada, o protagonista resignadamente se
abandona ao sabor do desejo da maioria.
Críticos não hesitaram em apontar as lacunas na descrição de Singleton sobre a vida
humana e selvagem desse continente. Realçando a ausência de estranhamento em Captain
Singleton (BLACKBURN, 1978, p. 124) – elemento que, segundo a maioria deles, deve
integrar formalmente as narrativas de viagem –, os estudiosos, mais uma vez, censuraram a
105
vacilante obediência de Defoe aos padrões da poética realista. As árvores, afirmam eles, são
europeias; os animais, iguais aos de qualquer outro lugar; as populações, pouco diferenciam-
se umas das outras (BLACKBURN, 1978, p. 124). Blackburn, levantando a vista alguns
palmos acima dos enclaves realistas, aproveita a opinião geral depreciativa para tirar dela
algum proveito. Conclui que esse ‘defeito’ realístico apenas vem para reforçar a ideia de que,
em Captain Singleton, a África serve como o próprio “mundo natural de Locke”, um
ambiente amorfo, no qual predominam “as noções [...] de penúria, igualdade e ausência de
sociedade” (1978, p. 124).
Mesmo vivendo nesse estágio de natureza, Singleton parece desfrutar algumas das
vagas noções civilizatórias que conseguiu reter de seu breve contato com povos civilizados.
Uma delas é seu olho vivo para os bens passíveis de serem comercializados. Desde a vida a
bordo do navio mercantil português, o protagonista já demonstra um faro apurado para as
mercadorias que podem render negócios vantajosos. Durante a jornada africana, peles e presas
de elefante são descritas com esmero de atenção. Outro elemento também retido por Singleton
é a confiança na superioridade tecnológica dos europeus. Armas, roupas, pão, instrumentos e
livros que os homens transportam para a terra parecem garantir, a priori, um superávit de
poder do grupo frente à destituição generalizada dos nativos de Madagáscar e África. Importa
ressaltar, porém, que os instrumentos se revelam inúteis em mãos como as de Singleton,
talhadas para coisas menos dignas, como a pilhagem. A sorte, no entanto, está do lado do
protagonista: dentre os vinte e sete homens que desembarcam com ele em Madagáscar,
encontram-se “dois carpinteiros, um artilheiro e, o que não era desprezível, um cirurgião ou
médico” (DEFOE, 1985, p. 25). O cuteleiro, não mencionado nessa passagem, ganha destaque
na narrativa a partir do momento em que os homens descobrem, em sua habilidade de
trabalhar o metal, o modo mais eficaz de transformar as moedas de prata que o grupo carrega
em algo de algum valor entre os selvagens – indivíduos que, integrados ao estado natural da
existência, nas palavras de Locke transcritas por Blackburn, “não consentem no uso do
dinheiro” (1978, p. 126).
Dinheiro, aliás, conclui Singleton ecoando Locke, “nos era de bem pouca valia, visto
que os índios não conheciam nem o seu uso nem o seu valor intrínseco” (DEFOE, 1985, p.
26). Assim é que, um indivíduo anônimo como o cuteleiro, alguém que sabe se aproveitar
“dos efeitos de sua engenhosidade”, consegue surpreender Singleton com a puerilidade dos
selvagens: “por um pedacinho de prata recortada em pássaro, eles trocaram duas vacas, –
teriam dado a mesma coisa pelo cobre, – e em troca de duas correntes formando braceletes,
obtivemos de cinqüenta a sessenta libras de diversas provisões e assim por diante.” (DEFOE,
106
A origem desamparada de Singleton, figura sem vínculos afetivos, mais uma vez
parece ser o embrião de seus desvios de conduta. Porém, pelo menos nesse caso, de tal defeito
o protagonista pôde auferir alguma vantagem. Ao contrário dos demais, Singleton é o único
indivíduo do grupo que afirma algo como: “não tendo nada a perder nem ninguém a quem
107
deixar para trás, eu não me importava aonde ir.” (DEFOE, 1720, p. 91). Sem nada, nem
ninguém, nem lugar para chamar de seus, cabe a Singleton viver o presente e disputar seu
espaço entre os homens tal qual um selvagem, impondo sua presença física à falta de atributos
mais louváveis, tais como sabedoria ou uma habilidade manual qualquer. Mesmo alçado ao
posto de comando, é importante ressaltar, o capitão Bob não conta jamais com um tipo
absoluto de autoridade. Seu grupo, afinal de contas, é formado por uma aglomeração de
piratas, distantes mais espacialmente de seu ambiente de business, o mar, do que em razão de
qualquer escrúpulo ou receio moral de praticar seu vicioso ofício (nesse ponto, não deve
escapar ao leitor a analogia, implícita, que Defoe estabelece entre a atividade, lícita, dos
viajantes imperiais e exploradores da África, e aquela, ilícita, da pirataria). Diversas pesquisas
sobre os costumes e a organização das tripulações de flibusteiros afirmam que um alto valor
era depositado, entre os piratas, nas deliberações tomadas em conjunto. Defoe se aproveitou
desse tipo de conhecimento, seguramente adquirido pela leitura insaciável de número sem fim
de histórias sobre piratas, para demonstrar que mesmo um capitão tão temerário quanto
Singleton jamais poderia se sobrepor à vontade da maioria:
As decisões que tinham maior impacto no bem-estar da tripulação eram
geralmente reservadas ao conselho, a maior autoridade dentro de um navio
pirata. Os piratas inspiravam-se num antigo costume, largamente caducado
por volta do começo da era moderna, no qual o superior consultava toda a
tripulação ao fazer deliberações cruciais. Os corsários também conheciam a
tradição naval do conselho de guerra, em que os oficiais superiores de um
navio ou frota encontravam-se para planejar a estratégia. Mas os piratas
democratizaram o costume naval. Seus conselhos convocavam todos os
homens da embarcação a decidirem sobre assuntos como o local onde
poderiam ser obtidas as melhores presas ou o recurso mais eficaz para
solucionar questões de desavenças disruptivas. Algumas tripulações
utilizaram continuamente o conselho, “levando tudo na base da maioria de
votos”; outras montavam conselhos como cortes. As decisões feitas por esse
corpo eram sacrossantas, e mesmo o capitão mais audacioso não ousava
contestar as diretrizes do conselho. (REDIKER, 2014, pos. 152)
Afora a temeridade, portanto, o que Singleton parece realmente ter é sorte, sobretudo
de estar na companhia de vários artífices – no lado da balança que pesa contrariamente à
hostilidade e à nivelação que presidem a natureza lockiana. Se por acaso estivesse sozinho em
território africano, podemos supor que o protagonista sobrevivesse a duras penas, sem ter ao
menos tido a chance de exercer o único business que domina razoavelmente bem até o
momento – a impetuosa vocação para o mando. O conhecimento do valor do dinheiro, no
entanto, decisivo fiapo de civilidade ao qual o marujo se agarra, demonstrará no longo prazo
ser sua tábua de salvação. Somado ao apurado faro para reconhecer bens e produtos
comerciáveis – outra característica presente desde a mais tenra juventude –, tal conhecimento
108
Nada mais distante do estado de natureza que essa preocupação de Singleton com a
“boa harmonia” do grupo. Se engana quem toma ao pé da letra a apreensão do protagonista
com relação ao estado do entendimento geral entre os homens como a real causa do primeiro,
não apenas audacioso, modo racional de conduta de Singleton. O que de fato parece
preocupar o protagonista é a falta de uma organização minimamente lógica tanto do trabalho
quanto da acumulação e distribuição da riqueza. Se Blackburn não toca nessa consequência
do gesto de Singleton, por outro lado desvenda o mistério quando afirma que o conhecimento
do valor do ouro tem, nessa narrativa de Defoe, a função de destruir o estado de igualdade
natural. A mudança logo se faz sentir. O capitão Bob propõe, e o grupo aceita, criar para todos
uma nova e mais sofisticada substituta daquela igualdade que preside o estado de natureza
110
lockiana: um tipo de equidade baseado numa forma organizada de política – uma verdadeira
democracia pirata.
Esse novo modelo de igualdade, muito menos arbitrário que seu correlato natural, é
produto de um consenso decisório, e tem por base um raciocínio legal: um código, com seus
artigos, prescrições e penalidades. Os subsequentes movimentos não deixam restar dúvidas: o
artilheiro também opina e tem sua decisão acatada; os homens se preocupam com questões
sobre bem-estar básicas, como os cuidados com o vício do jogo, um fator dispersivo que, no
longo prazo, pode levar o grupo a um estado indesejável de desigualdade, desestabilizador do
pacto político. A Providência saberá abençoar a saudável escolha dos homens: até os negros
terão sua chance de deliverance com esse novo acordo.
Mas Singleton ainda tem um longo caminho pela frente. O brilho do ouro e a
deliverance, representada pelo aprofundamento do conhecimento da função antinatural do
dinheiro, já o colocaram nos trilhos de sua salvação. O próximo capítulo decisivo para a
história de redenção do pirata não há de surpreender o leitor, uma vez que está
necessariamente relacionado ao poder do tão ambicionado metal, mas ganha, agora, um
elemento inusitado. Quanto mais os homens avançam para o lado oeste do continente
africano, aproximando-se da Costa do Ouro, mais os habitantes e seus costumes transformam-
se. Primeiro, diz o narrador, “tivemos uma relação cordial e íntima [...] com o povo mais
civilizado e mais amigo que encontramos [...] e, coisa interessante, nos compreendiam mais
facilmente que os outros” (DEFOE, 1985, p. 91). Avançando ainda mais em direção à costa,
os homens chegam “perto de cinco cabanas de negros construídas diferentemente das que [...]
[haviam] visto até então” (DEFOE, 1985, p. 97; acréscimo nosso). “Perto da porta de uma
delas”, diz Singleton, “cinco presas de elefantes empilhadas ao longo da parede pareciam
esperar que fossem negociadas.” (DEFOE, 1985, p. 97). Como afirma Blackburn, “[g]rande
parte do percurso africano de Singleton é pontuado por imensas e impressionantes presas de
marfim, emblemas da riqueza potencial da natureza.” (BLACKBURN, 1978, p. 126). O que
estas cinco17 presas têm, no entanto, de diferente das demais é o fato de apontarem “para a
presença do homem como trader, tanto o trader civilizado quanto o trader selvagem.”
(BLACKBURN, 1978, p. 126).
Cobrindo ainda mais um bom trecho da extensão total que os separa do litoral, à certa
altura o narrador diz que os homens encontram “algumas choupanas” e, “num terreno baixo,
uma plantação de milho indicava que ali os habitantes eram menos bárbaros do que os que
17
Não se sabe por quê, mas a tradução grafou cinco ao invés de sete presas, que é o número grafado na narrativa
original em inglês.
111
havíamos encontrado até agora.” (DEFOE, 1985, p. 99). Assim que se aproximam do local, os
negros do grupo, que iam à frente, “exclamaram que estavam vendo um homem branco.”
(DEFOE, 1985, p. 99). Acreditando tratar-se de algum engano, é com profunda estupefação
que Singleton diz ter percebido, “com efeito, perto da porta, um homem branco inteiramente
nu.” (DEFOE, 1985, p. 99). O branco, um inglês de Londres, não consegue conter a comoção
ante a surpresa de sua deliverance pelo grupo. “Pensava”, diz Singleton, “certamente, que, de
qualquer jeito, éramos enviados do céu para salvá-lo, arrancando-o da condição mais triste a
que um homem pode se ver reduzido.” (DEFOE, 1985, p. 101). O homem não é o único
surpreso com o encontro, na verdade. Singleton não consegue conter a admiração que o
homem lhe inspira, diz que ele “parecia ser um gentleman, não um sujeito de criação
ordinária, um marinheiro ou um trabalhador” (DEFOE, 1720, p. 80), e que “seu
comportamento [era] o mais cortês e cativante que eu jamais tinha visto em qualquer outro
homem; e os mais evidentes sinais de uma boa criação e educação afloravam de tudo que ele
fazia ou dizia.” (DEFOE, 1720, p. 80). Aliás, não só Singleton, mas até mesmo seus
“companheiros ficaram encantados com ele.” (DEFOE, 1985, p. 100).
O grupo descobre que o inglês foi por muito tempo um agente da Companhia da Guiné
Inglesa, em Serra Leoa, mas que, não se sabe se porque seu estabelecimento fora pilhado ou
“porque a companhia não lhe tivesse feito justiça transferindo-o para um outro cargo ou lhe
confiado novo trabalho, deixou seu serviço e foi utilizado pelos chamados traficantes
particulares [separate traders].” (DEFOE, 1985, p. 104). Após haver abandonando o emprego
junto a esses traficantes particulares, o homem teria passado a negociar por conta própria,
quando, passando, por descuido, pelo território dos estabelecimentos da companhia, talvez por
traição, talvez por surpresa, diz Singleton, acabou caindo nas mãos dos nativos. Fugindo de
um grupo de nativos para outro, o homem conseguiu chegar até aquela tribo em que Singleton
e seus camaradas justamente o encontraram. Sobre a relação do inglês nu com esses últimos
indígenas, o narrador diz que o chefe da tribo acolheu bem o homem, que “lhe ensinou, em
troca, a tirar partido de seu trabalho e a impor suas condições aos negros que vinham
comprar-lhes o marfim.” (DEFOE, 1985, p. 104).
Como o inglês demonstra ser um bom conhecedor da localidade, servindo como
garantia de uma viagem mais segura até a Costa do Ouro, local onde se encontram “os
estabelecimentos e agências comerciais dos europeus” (DEFOE, 1985, p. 105) – e o ponto de
deliverance do périplo africano –, Singleton e seus homens o convidam para guiá-los. À
medida que se aproximam de seu destino final, Singleton e seus homens percebem que os
indígenas vão se tornando pouco a pouco “mais ferozes e zangados que os selvagens até agora
112
encontrados” (DEFOE, 1985, p. 103). As armas que levavam, diz o narrador, também
amedrontavam menos os habitantes locais (DEFOE, 1985, p. 103). O motivo dessa mudança é
descoberto pelo próprio narrador: “tendo estado em contato comercial com europeus e outras
populações negras, eram menos ignorantes e não pareciam dispostos a trocar bibelôs
fabricados pelo nosso artista.” (DEFOE, 1985, p. 103). Blackburn sugere, a partir das palavras
de Defoe, que, à medida que
Singleton se aproxima dos centros de trade ao longo da Costa Oeste
africana, ele começa a compreender abstrações econômicas simples: aprende
sobre noções de trabalho com os nativos que negociam presas; absorve
lições de uma ‘gente ainda mais feroz e política’ habitando perto da costa,
que não aceita bibelôs, mas que consegue ‘as coisas do jeito que quer’.
(BLACKBURN, 1978, p. 126)
Como é de costume, mais uma vez o narrador destina um trecho insignificante de sua
narrativa a descrever um grande transcurso temporal. Em apenas dois parágrafos, Defoe faz
Singleton retornar à Inglaterra e explicar que, nesse país, o herói dissipou toda sua fortuna em
menos de dois anos. Sobre o comportamento inconsequente de Singleton nesse episódio,
Novak sugere duas explicações – a segunda mais elucidativa que a primeira. Para o crítico,
114
faltavam a Singleton, com relação ao dinheiro, “tanto a prudência necessária para mantê-lo
quanto o conhecimento de seu valor na sociedade ocidental.” (NOVAK apud BLACKBURN,
1978, p. 127). A convivência com o inglês nu certamente lhe ensinou algo sobre tal noção
abstrata, mas o conhecimento adquirido pelo protagonista na África, razoável apenas para os
padrões naturais, mostrou-se insuficiente quando transposto para um universo tão complexo
como o europeu. Ponto alto da civilização, a pátria de origem de Singleton deve ter lhe
parecido um local ainda mais inóspito do que o vasto continente da travessia. Se na África ele
era o capitão Bob Singleton, na Inglaterra ele é apenas o solitário Bob Singleton. Faltando-
lhe, além dos laços afetivos proporcionados por amigos e familiares, os conhecimentos
necessários para adentrar de uma vez por todas o estágio civilizado da existência humana,
Bob sente urgir dentro de si o chamado – divino – para a aventura do trade.
Imprimindo em Singleton a imagem de uma força que deve progredir constantemente
no sentido de deliverance, Defoe aponta dessa vez para outra vastidão: aquela simbolizada
pelo mar. Elemento representativo na teoria lockiana (BLACKBURN, 1978, p. 128), como
um remanescente comum a toda a humanidade, o mar, na história de Singleton, é o meio
através do qual Defoe situa a ascensão de Singleton à condição de civilizado. Ao fazer do
protagonista um bucaneiro, Defoe inaugura uma representação da pirataria como um estágio
necessário do progresso da raça humana rumo ao estado de razão lockeano – mas o faz de
forma a promover uma peculiar aproximação da atividade dos piratas àquela praticada pelos
negociantes transoceânicos. Blackburn percebeu isso ao comparar os dois momentos da vida
de Singleton, o africano e o da pirataria, concluindo que:
Enquanto o seu tempo passado imerso no estado de natureza é dominado
pelo medo imperativo da morte violenta, a temporada vivida no “Comum”
do mar é dominada pelo uso consciente de sua faculdade do raciocínio. Ele
já não vive mais do trabalho de apropriação da terra, mas, sim, do processo
mais abstrato do trade, embora na forma graficamente mais crua do roubo.
(BLACKBURN, 1978, p. 128)
Uma forma de comércio graficamente mais crua – sem dúvida –, mas ainda assim
graficamente também menos chocante que tudo aquilo que costumamos associar à atividade
dos piratas. Sobre esse ponto, afinal, não é senso-comum afirmar que o relato de Singleton
não convence? Para os diversos intérpretes da obra, tal falta de convencimento está
relacionada a duas questões. A primeira remonta a um precário realismo de ambientação – os
piratas representados em Captain Singleton não matam, chantageiam ou agem de maneira
sádica com suas vítimas, ou ao menos seu autor não quis dar a devida atenção que esse ponto
merece. O texto se vê enfraquecido ainda, sugerem os críticos, devido a uma caracterização
115
Além de todas as qualidades que Singleton encontra, já desde o princípio, em seu novo
amigo quaker, o narrador descobre ainda ter ganhado um excelente conselheiro. São inúmeras
as passagens da narrativa em que frases como “William nos demonstrou” ou “William me
aconselhou” vêm seguidas, após alguns parágrafos, pelas confirmações de que “William tinha
razão”. Singleton confia no julgamento de William como só confiara, antes dele, no do
homem nu inglês. O personagem principal admite abertamente a ascendência do médico sobre
toda a tripulação, inclusive sobre ele mesmo, em momentos nos quais afirma que William
“teria sido um melhor capitão que qualquer um de nós.” (DEFOE, 1985, p. 118). Em um
comentário presente na introdução à edição de 1908 de Captain Singleton, o crítico G.
Maynadier supõe que Defoe, após haver concluído seu trabalho de caracterização de William
Walters, deva ter imaginado haver conseguido chegar o mais próximo possível de um
personagem real. Mas, afirma o crítico, mesmo com todos os loucáveis esforços do escritor, o
quaker jamais passou ou passará de “um personagem bastante inanimado” (MAYNADIER,
1903, p. xiii). Se Maynadier deixasse de lado os parâmetros avaliativos que empresta da
poética romanesca, ao julgar um personagem como William, talvez pudesse cogitar que toda a
‘limitação’ decorrente da ‘falta de habilidade na construção’ – mais uma vez, para os padrões
romanescos – dos personagens, nesse texto de Defoe, pudesse ter sido na verdade resultado de
uma intenção proposital do escritor. Ainda sobre o quaker, Maynadier afirma que:
[C]om certeza se mostra valente ao nunca recuar ante o perigo inevitável;
mas manifesta seu ‘muito sólido bom senso’ apenas ao opor razão à patente
insensatez de Singleton, que, aparentemente para deixar William brilhar o
mais intensamente, perde em suas aventuras tardias muito do senso-comum
que o tornou o líder de seus companheiros pelo interior da África. (1903, p.
xiii)
O crítico parece resolver a questão, quando afirma que William dá ares de ser um
personagem fadado a apenas opor bom senso à insensatez de Singleton. Porém, os motivos
que o levam a apontar o esquematismo da caracterização dos dois homens não são os
mesmos, por exemplo, que os de Grasso e Blackburn. Ao contrário de Maynadier, sem dúvida
em razão de um menor apego às convenções da ‘boa literatura de ficção’, os dois críticos
118
poderia tornar real essa transformação ficcional [...] (GRASSO, 2010, p. 23;
acréscimo nosso)
frequentemente conseguem escapar do status de transviados, cujo qual o meio baixo em que
vivem tende a conformá-los. Analisando o papel desses tipos de personagem, bastante
comuns no universo de Defoe, batizados por Adam Hansen de “tradutores sociais”, o crítico
conclui que o modelo ao qual se ligam, desde o nível mais elementar da linguagem até aquele
do comportamento em sociedade, é o da “figura do gentleman desinteressado, objetivo,
universal, um projeto com o qual Defoe, entre outros, esteve implicado.” (HANSEN, 2004, p.
31). A respeito desse projeto, Hansen afirma que:
Como a sociedade e a economia se tornavam um emaranhado de interesses,
trades e profissões convergentes, cada qual com seus próprios códigos,
sociais e linguísticos, somente um “observador compreensivo”, sem
“qualquer atividade regular determinada”, seria capaz de perceber, conciliar
e, portanto, organizar e governar as relações entre os grupos profissionais.
Nos diálogos e declarações presentes no The complete english gentleman,
Defoe delineia tal tipo ideal. Ele não é tão inutilmente informado pelo
pedantismo e pelo conhecimento universitário impraticável, a ponto de ser
“pura glossolalia, sem qualquer idioma”. Ao contrário, encontra-se
equipado, por meio de um processo educativo – autodidata se necessário –,
com as habilidades de comunicar e compreender as necessidades, as
fraquezas e as forças dos outros. Além disso, apreende o modo que a
sociedade se inter-relaciona como um todo tão seguramente quanto
compreende as “conjunções, revoluções e influências dos planetas”: “ele tem
tudo isso sob sua vista.” (2004, p. 31)
Nesses momentos finais da narrativa, Singleton parece pouco a pouco dominar o bom-
senso que aprende com William. No meio do caminho até o Oriente, após terem deixado
Wilmot e parte da antiga frota para trás, os homens apresam um veleiro tripulado por
negociante holandeses, mas, não sabendo que atitude tomar com relação à tripulação refém –
com medo de que, uma vez libertos, os homens dessem alarme nos estabelecimentos das
Índias – a maioria mostra-se favorável a atirar os comerciantes ao mar. William não concorda,
e tenta pleitear a causa dos homens, esclarecendo a Singleton a crueldade desse tipo de
tratamento. Assim que o restante da tripulação fica a par dos desígnios de William, diz
Singleton, “entraram em violenta cólera, ameaçando o amigo de fazê-lo compartilhar da sorte
deles.” (DEFOE, 1985, p. 148). Singleton, que por essa altura “estava [...] resolvido a não
deixá-los fazer o que queriam.” (DEFOE, 1985, p. 148), toma para si a tarefa de solucionar o
impasse, chamando os reféns para um canto e questionando-os se topariam acompanhá-los.
Apenas dois dos homens respondem que sim, enquanto o restante, quatorze ao todo, guardam
reserva. “Eu lhes retruquei”, diz Singleton, “que não podia autorizá-los a ir para um
estabelecimento holandês e lhes expliquei o motivo. Renderam-se às minhas razões.
Comuniquei-lhes o cruel plano de nossos homens e acrescentei que estava resolvido a salvá-
los, se possível.” (DEFOE, 1985, p. 148). O bom-senso de Singleton vence a crueldade da
tripulação, e os homens são liberados enquanto seu navio é encalhado em um ponto qualquer.
Seguindo pela rota das Filipinas, Singleton dá mais uma mostra de um aprendizado
frutífero. Ao pilharem um navio de Amboina, localidade famosa pelos maus tratos a que os
aventureiros ingleses eram submetidos ao caírem nas mãos dos holandeses, no controle do
local, os homens de Singleton, transidos de raiva ao saberem a origem da embarcação,
decidem massacrar toda sua tripulação. Singleton custa mas consegue enfim convencê-los do
contrário. Fazem uma enorme presa de noz-moscada, ao que Singleton confessa: “[p]or mim,
eu teria consentido em comprá-la, mas meus homens tinham horror a pagar, mesmo que fosse
em troca de mercadorias.” (DEFOE, 1985, p. 152). O narrador diz que teriam preferido
negociar abertamente a presa com as embarcações indígenas, mas como os holandeses tinham
se tornado donos dessas ilhas e proibiam todo o comércio com estrangeiros, não havia outra
solução a não ser prosseguir pilhando e viajando em outro sentido.
Aconselhando o grupo a tentar uma descida até as ilhas Dumas, famosas por suas
moscadeiras, os homens são detidos por um fenômeno natural portentoso. Uma nuvem negra
estaciona sobre o barco, e dela, diz o narrador, “jorrou uma série de relâmpagos tão terríveis e
tão próximos” que todos os homens acreditaram que o “navio estava em chamas.” (DEFOE,
1985, p. 154). “O calor era tão intenso”, diz Singleton, “que alguns entre nós ficaram com
124
bolhas no rosto, não talvez diretamente provocadas pelo ar quente, mas por fragmentos
nocivos misturados à atmosfera inflamada.” (DEFOE, 1985, p. 154). O deslocamento de ar,
de tão forte, joga as velas do navio para trás, enquanto o som dos trovões rebomba como os de
“[c]em mil barris de pólvora, explodindo ao mesmo tempo” (DEFOE, 1985, p. 154). Esse
instante dramático, afirma Singleton, inspirou terror em todos os membros da tripulação,
inclusive nele próprio. “Somente o amigo William”, diz, “teve sangue frio bastante para
executar algumas manobras que nos impediram de ser desmastreados.” (DEFOE, 1985, p.
154). Estarrecido e confuso durante o acontecido, Singleton experimenta, “pela primeira vez
na [sua] vida, [...] os efeitos do horror [...] pensando na [sua] vida passada.” (DEFOE, 1985,
p. 154; acréscimo nosso), dizendo ainda que:
Pareceu-me que eu estava destinado a perecer assim num justo castigo pelos
meus crimes e que o próprio Deus era o executor da sentença. Entretanto, eu
não sentia o arrependimento de uma sincera penitência, estava tão abalado
pelo julgamento, não pelo crime, alarmado pela vingança, mas nem um
pouco apavorado com a falta, e no entanto estava aterrorizado ao máximo
pelo castigo que devia sofrer nesse momento.” (DEFOE, 1985, p. 154)
4.
Conclusão
questão da ‘instabilidade com relação à verdade’, mencionada por Sherman, merece vir
primeiro, pois parece estar na origem dos demais.
Ao que tudo indica, na época em que Defoe publicava seus novels, as afirmações
contidas em um texto, garantindo a factualidade de seu conteúdo, eram apenas uma frágil
garantia de que o leitor, durante o ato da leitura, fosse realmente encontrar somente materiais
factuais, de origem completamente verdadeira. Nesse contexto ainda, o elemento correlato, a
ficção, longe de sustentar a função de discriminador de conteúdos e gêneros a qual representa
para os leitores e estudiosos nos dias de hoje, parecia mais imiscuída às práticas de muitos dos
discursos que afirmavam serem factuais. Do ponto de vista desse estado generalizado de
“opacidade epistemológica”, nas palavras de Sherman (2005, p. 2), procede a percepção de
que a garantia de um autor ou de um editor, a respeito da factualidade de um relato, não
excluía a sobrevivência de ingredientes ficcionais no texto. Um tipo de consideração que nos
leva a admitir que, talvez, tais afirmações cumprissem funções mais retóricas, no sentido do
termo que, talvez de modo apressado demais, taxamos como pejorativo hoje em dia: clichês,
lugares comuns, fórmulas, etc. – que devem receber estudos mais aprofundados. Em vista
desse estado de coisas, parece despropositado falar em gênero romanesco como um tipo
moderno de ficção surgido no início do século XVIII, uma vez que, para os próprios padrões
daquele século, demarcadores de ordem genérica e factual e/ou ficcional não eram elementos
muito claros ou bem-estabelecidos.
Talvez seja mais interessante, no futuro, podermos expandir o conceito de gênero
romanesco, a fim de abarcar esses empréstimos retóricos que pareciam ocorrer à revelia de
discrições genéricas, factuais ou ficcionais. Em A arqueologia do saber, Foucault (1986)
defende veementemente a necessidade de que o genealogista parta da suspeita quanto à
validade imediata de toda forma prévia de síntese unificadora de um discurso. Para o pensador
francês, antes de lidar com ‘romances’, ‘economia’ ou ‘história natural’, como princípios
ordenadores autoevidentes, devemos levar em conta que, uma vez liberado o imenso domínio
de elementos de todos os grupamentos considerados como unidades naturais, imediatas e
universais, temos a possibilidade de descrever outras unidades, mas, dessa vez, por um
conjunto de decisões controladas. Contanto que se definam claramente as condições, diz o
pensador, é legítimo constituir, a partir de relações corretamente descritas, conjuntos que não
seriam arbitrários, mas que, por força das grandes unidades, apenas permaneceram por muito
tempo invisíveis. (FOUCAULT, 1986, p. 33).
Seguindo o conselho do autor e deixando em suspenso o uso de gênero literário como
chave de leitura para uma história do surgimento do romance inglês – pelo menos do modo
128
como a ideia de gênero tem sido teorizada até então –, procuramos por substitutos que possam
funcionar como um suporte teórico-metodológico adequado para a nova tarefa. Em certo
sentido, uma experiência já bem-sucedida existe, porém em outra área dos estudos literários.
Em O espaço biográfico, publicado primeiramente em 2002, a teórica argentina
Leonor Arfuch (2010) oferece uma inovação teórico-metodológica para os estudos de crítica e
historiografia biográfica. Ao tentar traçar a proliferação contemporânea das narrativas de
subjetividade, que, segundo a autora, vêm imiscuindo formas canônicas àquelas oriundas da
cultura de massas, Arfuch lança mão de um movimento que marca o ponto de partida de seu
trabalho, e o de interesse, para nós. O desafio, para ela, assim como para os nossos propósitos,
consistia em trabalhar uma multiplicidade de escritos sem ter de ser obrigada a recorrer a
ferramentas conceituais que normalmente dão primazia às ‘especificidades’ e ‘singularidades’
– ferramentas que frequentemente se apegam a noções de “pureza genérica”, em prejuízo das
heterogeneidades e das hibridizações. A recorrência à autobiografia como forma clássica,
princípio ordenador, ou óbvio ponto de partida para qualquer estudo sobre materiais com
conteúdo biográfico revelava-se, portanto, bastante insuficiente para a tarefa que Arfuch
deveria levar a cabo. Assim, a teórica propõe, como uma forma de colocar em suspenso as
problemáticas inerentes ao uso da noção de gênero, um método de ‘espacialização’ das
relações entre os variados materiais biográficos.
Arfuch vislumbra, na promissora ideia de um espaço biográfico, um horizonte de
inteligibilidade que lhe parece ideal para o tipo de estudo que se propõe a realizar.
Emprestando “metaforicamente”, como gosta de ressaltar, o termo cunhado por Lejeune,
autor que vê na expressão a possibilidade da elaboração de um espaço como reservatório de
gêneros, a autora parte para uma ampliação do conceito, afirmando que o propósito de seu
trabalho é o de
[I]r além da busca de exemplos, mesmo ilustres ou emblemáticos, para
propor relações [...] entre formas com grau diverso de proximidade, relações
nem necessárias nem hierárquicas, mas que adquirem seu sentido
precisamente num espaço/temporização, numa simultaneidade de
ocorrências que por isso mesmo podem se transformar em sintomáticas e
serem suscetíveis de articulação, ou seja, de uma leitura compreensiva no
âmbito mais amplo de um clima de época. (ARFUCH, 2010, p. 58)
Vale ressaltar, do modo como faz a autora, que esse espaço não é um tipo de
macrogênero, que supostamente albergaria uma coleção quase infinita de formas “mais ou
menos reguladas e estabelecidas” (ARFUCH, 2010, p. 74). É, antes, “um cenário móvel de
manifestação – e de irrupção – de motivos, talvez inesperados.” (ARFUCH, 2010, p. 74).
Justamente contra a insistência classificatória, a obstinada tendência de encarar o gênero
como outra coisa que não a repetição, com maior ou menor grau de ‘acerto’ ou de ‘erro’, de
modelos bem-sucedidos, é que o espaço do romance pode servir como possibilidade
heurística para a pesquisa de história da literatura.
Em termos de visualização desse espaço, pensamos que algumas teorias já apontaram
para as vantagens de modelos epistemológicos espaciais em forma de rede ou teias. Alguns
exemplos são as noções de ‘vizinhança’, de Bachelard (2010), ou de ‘semelhanças de
família’, de Wittgenstein (CONDÉ, 2004), e de ‘rizoma’, dos já mencionados Deleuze e
Guattari (2010). No interior do espaço do romance, os sistemas de sentido pensados a partir
desses modelos poderiam ser organizados em nódulos de coerência, com recurso às relações
de semelhanças entre os gêneros de um mesmo período. Poderiam entrar para esses
complexos relacionais, por exemplo, as figuras de retórica comuns, as estratégias, parecidas,
empregadas para atingir determinado domínio receptivo semelhante, as formas análogas com
as quais determinados gêneros delimitam um objeto do discurso em comum – ou seja,
elementos multiplicáveis a gosto, dependentes somente da habilidade relacional do
pesquisador e da disponibilidade dos discursos do período por ele estudado. Ora inchando, ora
desinchando, conforme as mudanças exigem o rompimento de certas articulações semânticas,
aqui, empurrando-as para zonas de sentido mais distantes, acolá, os nódulos – sempre
provisórios – são constitutivamente incapazes de fornecer um fundamento duradouro, do tipo
projetado para servir a uma estrutura rígida de gênero, que se pretende infensa às rupturas
causadas pela passagem do tempo e pelas mudanças das perspectivas teóricas.
130
5.
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