TESE Antonio Aílton Santos Silva
TESE Antonio Aílton Santos Silva
TESE Antonio Aílton Santos Silva
Recife
2017
ANTONIO AÍLTON SANTOS SILVA
Recife
2017
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204
Inclui referências.
A Deus, sopro vital & Temporalidade sobre todas as versões dos martelos e
dos girassóis perambulados.
Aos amigos que se tornaram irmãos das lutas e do coração, de quem Recife
tornou-se ponte e poesia, bem como a tantos outros da jornada: Ricardo Nonato &
Thaís Rabelo, Fabiana Campos, Cassiana Grigoletto, Patrícia Tenório, Suelany
Mascena, Rosana Teles, Michael Iyananga, André Santos, Fernando Ivo, Alisson da
Hora, Vinícius Gomes, Cilene Santos...
(Gertrude Stein)
"Eu acho que nessa linha a rosa é vermelha
pela primeira vez em poesia inglesa por cem
anos"
a flor do design
a flor do design é a
mesma,
a flor do design,
é terno furor
é terna forma e
cor (que jamais esperas
do desespero)
a flor do design é sempre a mesma
flor
(Hagamenon de Jesus)
“Procuro minha própria história na singularidade do
meu objeto; e ele encontra em mim, como em
prospectiva, a sua. Encontra uma paixão: a minha; aquela
em que meu discurso conseguirá, talvez, comunicar à
minha volta.”
Paul Zumthor
Hanna Harendt
Michel Deguy
RESUMO
This piece of work is based on the diffused and multifaceted context of Brazilian
contemporary poetry and interrogation of its facets and directions to postulate five
horizons, such as considered, and which have oriented this work on the formal and
experiential configurations in which they are inscribed and in the perspectives of
temporality and spatiality which gives them proper dimension. The achievement of
such a proposal follows a hermeneutic line of a transdisciplinary character, recurring,
for its foundations, to the lyrical theory, to criticism of contemporary poetry and
philosophical, cultural and social-critical presumptions in the perspective of the
approach on the relations between life and poetry, language and affectivity,
according to some aspects of the proposal of the "lyrical pact", of Antonio Rodriguez.
Thus, contemporary poetry was understood primarily as the one produced by
Brazilian poets from regions and diverse editorial extract, published from the decade
of 1990 up to the present time. The selected works, studied and discussed, were
understood as meaningful cases of this poetry in a variety of possible choices, but
which project conceptions and achievements capable of configuring different
dimensions, as well as constituting themselves “axial references” in the sketching of
the horizons prospected. The poems and books included as axial references belong
to the following authors: Salgado Maranhão, Alexandre Guarnieri, Ana Martins
Marques e Carlito Azevedo, Hagamenon de Jesus and Miró da Muribeca, convoking
in the discussion works by other authors who place themselves as complementary.
The thesis was divided into two large parts, the first of which with two chapters
makes a theoretical survey and at the same time trans-historical, centered in the
categories of time and space, form and experience, which are taken as fundamental
and configurative dimensions that outline horizons. The second part was directed for
the study and analysis of works and for the outlining of the horizons which prospect
them. Such outlining puts in evidence the importance of the dimensions of form and
experience in the perception and apprehension, including the pathos of the poetic
texts, in the sense of lyrical pacts. It puts into evidence, on the other hand, the
importance of tensional and distensive directions of such dimensions so that,
beginning from the outlining and parameters of these horizons, is to offer a tool for
analysis and criticism to better operate comprehension of today’s Brazilian poetry.
Key-words: Contemporary Brazilian Poetry. Poetic form. Experience. Spatiality-
temporality. Horizons of Comprehension.
RÉSUMÉ
LISTA DE FIGURAS
1 INTRODUÇÃO........................................................................................ 16
1.1 HODOLOGIA.......................................................................................... 34
1.1.1 Vigências do espaço e do tempo: as paisagens de um presente
possível................................................................................................... 35
1.1.2 Instâncias potenciais do espaço: dos espaços vivenciais às paisagens
literárias .......................................................................... 38
1.1.2.1 Espaços urbanos e espaços telúrico-campesinos: fluxos,
devorações, imaginários ..................................................................... 47
1.1.2.2 Transitividades, anima urbis e cidades brasileiras .......................... 52
1.2 SOBRE O TEMPO: COMPREENSÕES DA TEMPORALIDADE E
SUA INCIDÊNCIA SOBRE O LÍRICO ................................................... 66
1.2.1 Tempo objetivo e tempo experiencial: desconjunções,
remembramentos e outras vivências temporais que mobilizam o corpo
lírico ....................................................................................................... 72
1.2.2 O tempo quantitativo/cronológico e o tempo qualitativo/durativo
[Bergson]: duração e memória .............................................................. 76
1.2.3 O tempo suspenso, os jardins irreversíveis e as convocações da
presença ................................................................................................ 80
1.2.4 Nuanças temporais e formações sensíveis do poema: a
temporalidade nas formas verbais e nominais líricas ............................ 88
1.2.4.1 Tempo de presença: perfectividade e imperfectividade, retenção,
lembrança e protenção ....................................................................... 89
1.2.4.2 Duas temporalidades: o caráter mácron [ē'] e o caráter braquiado
[ĕ'] do verbo ser na disposição lírica ................................................. 94
1.2.5 Cronótopos da atualidade confrontada: o presentismo, o pós-
modernismo, o contemporâneo ............................................................. 97
1.2.5.1 O presentismo ...................................................................................... 99
1.2.5.2 O pós-modernismo .............................................................................. 103
1.2.5.3 O contemporâneo ................................................................................ 108
2 PRIMEIRA DOBRADURA...................................................................... 127
2.1 FORMA & EXPERIÊNCIA NO POÉTICO: DIMENSIONAMENTOS E
ESPECIFICIDADES ............................................................................... 131
2.1.1 Forma & poesia ..................................................................................... 132
2.1.1.1 A configuração ..................................................................................... 134
2.1.1.2 Corporeidade ........................................................................................ 137
2.1.1.3 Referencialidade .................................................................................. 141
2.1.1.4 Concessão de linguagem .................................................................... 145
2.1.1.5 Genericidade ........................................................................................ 146
2.1.1.6 Objetividade e subjetividade .............................................................. 148
2.1.2 A textura [da forma poética: "a pelagem da tigra"] ................................ 154
2.1.3 Tessituras inter e/ou hipertextuais ......................................................... 158
2.1.4 Vínculos coletivos: sociedade, ideologias, ideoformas, ideomíticas ..... 164
2.2 EXPERIÊNCIA & POESIA ..................................................................... 170
2.2.1 Experiência, experimentalismo, transgressão e invenção ..................... 177
2.3 A FORMA E A EXPERIÊNCIA NA POESIA BRASILEIRA −
HORIZONTES DE UM PÊNDULO ........................................................ 179
2.3.1 A nossa “tradição da experiência” ......................................................... 179
2.3.2 A “tradição formal” da modernidade e seus caminhos no Brasil ........... 186
2.3.2.1 Influxos formais da modernidade poética - poetas fundamentais... 188
2.3.2.2 Crítica da lírica diarreica e paradigmas da nossa "tradição
formal": Concretismo e João Cabral de Melo Neto .......................... 201
2.3.3 Vibrações de uma querela: quando a flor vermelha é apenas a
mancha de uma bala perdida ................................................................ 210
REFERÊNCIAS....................................................................... 340
16
1 INTRODUÇÃO
fenômeno no qual também estou imerso, em sua construção e sua práxis, e que de
algum modo se evoca em mim, em voz e mãos.
Martelo é forja, consciência que dobra o ferro e o reelabora. Flor é a
experiência da flor que se torna tempo forjado na palavra, memória que deixa seu
rastro, ou simplesmente imagem forjada no espaço potencial do mundo do texto.
Uma experiência configurada, enfim, que os olhos, o gesto, a mente, tocam
(parecem tocar) sensivelmente, como propõe o Ferrageiro de Carmona, de João
Cabral de Melo Neto: "Forjar: domar o ferro à força,/ não até uma flor já sabida, mas
ao que pode até ser flor/ se flor parece a quem o diga"; ou naquela rosa
repetidamente pronunciada e alterada a cada sopro por Gertrude Stein, dois poemas
que colocam em cheque a flor ofertada pela natureza e a flor ofertada pela
enunciação que forja a forma contemplada. Por essas duas "inspirações", além do
próprio teor da pesquisa, e sem maior compromisso com tais autores, explico a
escolha do título metonímico-alegórico desta tese, que se volta para estas duas
macrodimensões do pacto lírico: a forma e a experiência como configuradoras de
horizontes presentes na poesia brasileira mais recente, a qual tratamos aqui como
"poesia brasileira contemporânea".
Esta tese partiu de uma dúvida – ou suspeita – sobre a pressuposição de
verdade absoluta de um discurso que se tornou comum, isto é, que adquiriu status
de mainstream difuso, creditado tanto por parte da crítica quanto por parte da
criação poética, o qual assegura ter a poesia atual, reconhecidamente pós-
programática, atingido um estágio tal de heterogeneidade e diversidade, a ponto de
lançá-la em tantas escrituras diferentes e correntes quanto a multiplicidade, a
liberdade absoluta e a singularidade sejam capazes de alcançar. Tal discurso vem
perfeitamente ao encontro das condições que tanto a poesia quanto a
contemporaneidade compartilham: a primeira firmada no caráter estético da
singularidade, da autonomia e da imprevisibilidade de sentido, e a segunda, em seu
caráter de indeterminação, enquanto acontecer de um presente em aberto,
estabelecido sobre a precariedade das certezas, os limites difusos e a
simultaneidade/o congraçamento espaçotemporal.
Na medida, porém, em que uma simples "colocação em crise" dessa
poesia (crítica essa que põe sua ênfase em refletir e conhecer, não julgar) e sua
constatação empírica levam-nos a perceber que ela, por ser fundada
inarredavelmente em linguagens, constitui veias de confluências e vigências,
18
1
O uso da 1ª pessoa do plural no texto (alternado com o sujeito autoral) não tem a intenção de
indicar um "plural magestático", mas um olhar de aproximação e partilha, invocando uma
possibilidade da implicação e da percepção partilhável com o leitor.
20
Martins Marques e Livro das postagens (2016), de Carlito Azevedo, que compõem
linhas percebidas como pertencentes a um mesmo horizonte, a saber, o horizonte
da remissão dramática e simulacral – obras estas escolhidas pelas
especificidades que revelam, não pelos títulos que os aproximam; (4) Os poemas
"Só o momento" e "A cidade enquanto azula o tempo" (no prelo), cedidos pelo poeta
Hagamenon de Jesus, tendo sido esse último fruto de leitura em evento público de
2012, e ambos, a meu ver, apontando para um horizonte da liricidade fáctica; e,
finalmente, (5) Poemas da obra de Miró da Muribeca, Miró até agora (2016), o qual,
em sua segunda edição colige poemas publicados de 1985 a 2012, que são trazidos
à discussão de um horizonte do lirismo vitalista-performático, no corpo dessa
percepção.
Temos assim representada uma poesia que se estende e estratifica
horizontal e verticalmente, em sua origem e em seu acontecer, por diversas regiões
do país, se pensarmos nestes autores (embora não afirme aqui perspectiva
histórico-biográfica): Salgado Maranhão, com origem maranhense, da região do
município de Caxias, mas com elos fortes com a cidade poética de Torquato Neto e
Mário Faustino, Teresina-PI, e vivendo no Rio de Janeiro desde a década de 1970,
construindo sua poesia nos influxos dessa paisagem e de suas relações; Alexandre
Guarnieri, carioca, com atuações pelo país e nos meios eletrônicos (é um dos
editores da revista literária, crítica e cultural "mallarmargens"); Ana Martins Marques,
mineira, um dos destaques na poesia brasileira atual, com fortes relações no meio
poético e acadêmico-universitário do Sudeste; Carlito Azevedo, carioca do eixo Rio-
São Paulo, com um nome já solidificado pela crítica da poesia contemporânea no
Brasil; Hagamenon de Jesus, poeta com pouca obra publicada, mas com forte
reconhecimento e presença nos círculos de discussão da poesia contemporânea,
em São Luís do Maranhão; Miró ("da Muribeca", bairro da região metropolitana do
Recife), cuja obra visceral, apresentada em performances em espaços urbanos de
Recife e São Paulo, onde morou, ganha reconhecimento e novos territórios nos
ambientes virtuais.
Ao tratar tais escolhas como "referências axiais", admito que desejo dar a
elas um papel representativo, não de exclusividade (já que fazem parte de um rol de
escolhas possíveis no contexto dos horizontes delineados), mas no sentido de que
podem vir a permitir a percepção de obras de outros autores com muitos pontos
significativos de semelhança ou, mesmo, só com alguns pontos significativos de
22
2
RODRIGUEZ, 2003, p. 84: "[La structure de l'horizon] engage une identité qui n'est ni totalement
historicisée ni anhistoquire. A vrai dire, la structure de l'horizon offre une dimension transhistorique,
c'est-à-dire que les ruptures n'occultent jamais l'horizon d'antériorité sur lequel elles s'appuient" (grifo
do autor, tradução minha – como as demais no decorrer do texto, quando não especificadas).
23
3
Proposta interpretativa esboçada tanto nessa quanto em outras obras/recorrências desse autor em
reflexões ao longo do trabalho.
24
4
O PATHOS (πάθος, sofrimento, passionamento), juntamente com a afetividade, é considerado por
Rodriguez um dos termos fundamentais para a construção do texto lírico em Le Pacte Lyrique. Daí
uma série de termos cognatos, "pathique", adjetival; "une pathématique", estruturação implicada num
pathos, etc). Aqui desejo preservar, do mesmo modo, a ideia de uma qualificação relativa a essa
noção, do pathos como um dos elementos fundamentais do texto lírico, preservando o termo "pático",
como pertencente à linguagem "do phatos", à ação pática; e "patêmico" para a linguagem
sensivelmente tocada pelo pathos, pela afetividade ou a afecção passionante, relacionada ao sentir, o
padecer como "passar por". Um ato ou uma ação pática pode ou não gerar um texto patêmico. Um
texto patêmico pode levar a uma fruição pática. Assim também, os afasta da categoria do "patético"
como exacerbação, intencional ou não, do pathos na configuração e tonalidade de um texto, e
preservo como diferentes os três termos: pático, patêmico e patético.
26
literário particular e ato comunicacional entre autor e leitor, como explicado por
Rodriguez (2003, p. 63-68). Este autor parte da noção de "pacto" na intenção de
especificá-lo e redefini-lo como categoria própria, como uma dinâmica constitutiva
dos mais diversos tipos de discurso: o pacto narrativo (ou "fabulante"), o pacto
crítico, e que põe em relevo menos um "contrato de leitura" que a estruturação
discursiva de uma determinada proposta textual. Em segundo lugar, é bem marcada
certa ancoragem das concepções de Rodriguez na noção de configuração de acordo
com as formulações do filósofo Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa 1 (2010a),
noção com a qual eu já vinha trabalhando em meus estudos e que também vejo
como muito pertinentes para uma hermenêutica do texto poético, na medida em que
seus pressupostos abrem um campo de interrogação pela própria relação entre a
realidade empírica e o mundo do texto (RICOEUR), implicada, por sua vez, nos dois
eixos que tomo como enfoques deste trabalho para estudo dos textos: a forma e a
experiência.
No entanto, a força congraçadora das espessuras textuais assumirá aqui mais
o caráter compreensivo da disposição relativa a cada poema ou obra em particular,
do que ao matiz afetivo que caracteriza o "pacto lírico" como "forma afetiva geral",
segundo o texto de Rodriguez. A questão da afetividade é certamente central para
esse autor, porque ele a coloca como o fundamento mesmo do pacto lírico, daí ser a
"forma geral de estruturação" necessariamente "afetiva". Esta tese, porém, mesmo
considerando suas colocações, coloca sua ênfase noutro viés.
Numa síntese apropriativa sob os termos desta tese, retomo da noção do
pacto lírico suas proposições em relação à dimensão da forma, enquanto
formação/corporeidade espaciotemporal sensível, afetiva, comunicativa, trans-
histórica e social, e na dimensão da experiência, que busco explorar mais
amplamente, para além da afetividade, a qual recobre as realidades vividas e
refletidas sobre o mundo da obra e o mundo do texto, bem como as temporalidades
e espacialidades que a formam e constituem – como sentimento, memória, atitude,
carnalidade, lugar identitário, lugar de recolhimento, factividade. Por esta razão,
aproprio-me destas duas dimensões também para colocar esta nossa poesia
contemporânea, ou seja, esta "larga lírica"5, que se depara com o mundo presente e
5
Estou considerando a "lírica" no sentido de uma "larga lírica", proposto, por um lado, pela
abrangência, o próprio acolhimento de linguagens do termo "lírico" (cf. abaixo, nota 79), e, por outro
lado, pela reconhecida precariedade de sua definição. Recuso aqui (ou pelo menos coloco "entre
parênteses"), para tratar da lírica de forma geral, a contraposição, por vezes dicotomia, "lírica" x
27
"antilírica", que considera a primeira como expressando uma poesia subjetiva, de efusão romântico-
sentimental e tomada, constantemente, de maneira depreciativa e caricatural, e a segunda, uma
manifestação poética que se deseja e se apresenta como objetiva e racional, de feição crítica e
comedida. O domínio do lírico (da poesia lírica) pode ser pensado, neste caso, como nuançado, e
não contraposto, entre os dois extremos, já que tanto no corpo da poesia quanto no da literatura
cabem tanto sua vida quanto sua morte.
6
Importante relembrarmos Kant (1980, p. 39 – grifos meus; "forma": itálico do autor), embora que
este fale noutro contexto, o filosófico: "(...) O objeto indeterminado de uma intuição empírica
denomina-se fenômeno (...). Forma do fenômeno [é] aquilo que faz com que o múltiplo do fenômeno
possa ser ordenado em certas relações" .
28
***
exclusivamente, do que foi observado nos poemas, quer dizer, são os poemas que
convocam e evocam determinadas poéticas e suas feições formais e experienciais –
analisadas segundo as especificidades expostas naquele quadro-síntese
anteriormente referido – que irão oferecer bases determinantes para o delineamento
de tais horizontes. Por outro lado, estas poéticas também oportunizam trazer à
discussão poemas e obras de outros autores que não são o foco da discussão, mas
que contribuem para melhor esclarecer o âmbito de cada horizonte, bem como para
melhor compreendermos seus relevos e seus limiares. Assim, os poemas
apresentarão configurações mais ou menos tensas, mais ou menos rigorosas, diante
de um quadro que especifica formas que vão de um distenso coloquial a uma tensão
retesada, e de um quadro experiencial que vai do vivencial cotidiano ao retesamento
traumático/dilacerante. Esse movimento de gestos escriturais, espaços experienciais
e expectativas poéticas, dá-nos o tom, a perspectiva e o caráter de cada "horizonte".
Por fim, a conclusão faz uma síntese geral das discussões e acrescenta
considerações pertinentes aos caminhos desta poesia na atualidade, e em relação
ao trabalho que foi apresentado.
***
recentes. Sob esse ponto de vista, mesmo levando em conta as ressalvas ali
colocadas, torna-se no mínimo enigmático, para não dizer preocupante o país ali
considerado.
Talvez em decorrência disso, tornou-se comum ao ouvido nacional, em
quase todas as áreas artísticas, tratar de “brasileiro” quando se fala de algo advindo
dessas duas regiões − Sudeste, Sul (desta região, em menor escala) − ou tocada
pela mão de seus possíveis, sendo o restante muitas vezes adequadamente
relegado ao “local” ou “regional”. Trata-se de um procedimento naturalizado por
muitos que precisa ser extirpado. Estes termos restritivos talvez só devam ser
admitidos sob reflexão de seu pertencimento numa afirmação voluntariamente
identitária, de particularidades, mas não em termos de exclusão dentro do que se
entenda como simplesmente literatura - ou algo que aí ainda queira seu espaço.
Na impossibilidade de tratar desse caldeirão poético brasileiro na sua
totalidade e efervescência, as escolhas feitas consideram que cada elemento dá a
sua contribuição representativa para o cenário do conjunto e para o que está além
do conjunto. A poesia ultrapassa o autor, a região, o país. Contemporânea ou não, a
poesia de qualidade superior será sempre universal. Ela pode ser um fantasma que,
do limbo do esquecimento, retorna para pedir vingança. A poesia devora apoesia.
Ela não será o simplesmente contemporâneo.
34
1.1 HODOLOGIA
elites abastadas − uma conquista que provavelmente ocorre hoje com muito maior
facilidade que anteriormente, tendo em vista a emergência de espaços tais como o
virtual a abertura de espaços da realidade cotidiana como fruto de reivindicações
sociais.
Dito isto, preliminarmente, creio muito valiosa à discussão do conceito de
espaço (infra) uma pequena nota sobre a noção de território, a que eventualmente
recorro, e que marcam os sentimentos e processos de pertencimento e
desterritorialização, importantes para a interpretação da realidade atual. O território é
marcado ou permeado pela ideia de domínio, campo e pertencimento (elo, disputa,
posse), e sua força demarcadora estabelece um "fora" e um "dentro". Por
conseguinte, determina quem está dentro e quem está fora (os desterritorializados),
bem como a extensão de um limite [prévio], de uma circulação ou de um circuito. A
desterritorialização pode então ser física, mas também sígnica, simbólica,
dimensional. Os territórios podem ser abandonados, perdidos, retomados, refeitos,
repreenchidos. A noção de território de Deleuze [e Guattari], por exemplo, é pensada
a partir da noção dos territórios animais (marcados pela urina, pelo esfregaço nas
árvores, pela cor, pelo som apresentado ao concorrente, etc.). Daí podermos dizer
que as regras do território vigem por relações de dinamismo e poder, não sendo ele,
portanto, nem pacífico nem apolítico. Segundo os filósofos , "todo território supõe
uma desterritorialização prévia (...). O comerciante compra num território, mas
desterritorializa os produtos em mercadoria e se reterritorializa sobre os circuitos
comerciais (...)" (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 89-90).
Portanto, as forças entrelaçadas das realidades e formas culturais em
jogo, cujas matérias, imaginários e ressonâncias vão desembocar nas vozes
assumidas pela lírica em sua ocorrência e em seu caráter visionário, permitem a
validação da consciência dos espaços vivenciais e experienciais do artista. A
realidade em que seu corpo habita o tempo de um país, de uma comunidade, pode
estar completamente alijada de sua poesia, mas ainda assim podem ser índices a
serem levados em conta por aqueles que interrogam os sentidos de mundos,
propostas, posicionamentos e reivindicações de sua arte.
O tempo presente (para lembrar a importante obra ensaística de Beatriz
Sarlo7, que trata da realidade argentina nesse encontro de séculos XX-XXI)
congrega uma série de elementos e confluências que não dizem respeito somente
7
SARLO, Beatriz. Tempo presente. José Olympio Editora, 2005.
37
8
Apropriando-me de um termo de Beatriz Sarlo, que utiliza a expressão cunhada para denominar o
populismo peronista (governo de Juan Perón - 1946-52/1952-55) na Argentina, o qual uniu cultura,
intelectuais e política, e foi transformado em mito nacional.
38
atuações opostas, e esses significados, por sua vez, mudam de acordo com
os diferentes lugares e regiões do espaço. Também esses significados não
são devidos a sentimentos apenas subjetivos que o homem liga ao espaço,
mas são características autênticas do próprio espaço vivido ["espaço de
vivências"9] (BOLLNOW, 2008, p. 16).
9
Utilizo esse termo com base na noção de “espaço vivenciado”/"espaço vivido" (que se vivencia), no
sentido de Bollnow (2008), com ênfase nos aspectos experienciais e intuitivos (nos significados das
relações vitais) mais do que físicos ou matemáticos, no sentido de que o homem "nele vive e com ele
vive. Trata-se do espaço como meio da vida humana" (ibidem, p. 16). Penso que a locução torna a
noção mais significativa que o adjetivo com ressonâncias semânticas de formas verbais do particípio
e do pretérito (vivenciado, vivido). Por outro lado, "de vivências" implica uma noção de pluralidade e
multiplicidade, em vez de uma construção sobre uma narrativa ou um pensamento linear, que não
corresponde à realidade vivencial enquanto ocorrência no presente.
10
Para Édouard Glissant, a Totalidade-mundo é a “espécie de comunidade, feita da totalidade
realizada de todas as comunidades do mundo, realizada através do conflito, da exclusão, do
massacre, da intolerância, mas ainda assim realizada” (GLISSANT, 2005, p. 44), e que “torna-se para
nós um difícil mergulho no caos-mundo”. Penso podermos vê-la como uma totalidade feita de
conjuntos, agregações e esgarçamentos.
40
11
«Un ensemble de signes s’y cumulent et s’y organisent en un Signe unique et complexe. D’où sa
cohérence, analogue à celle d’un texte. Il est texte en effet, où s’inscrit une histoire».
(ZUMTHOR,1993; p. 52).
12
Cf. CERTEAU, 1994, p. 183.
41
Cabe lembrar, por outro lado, que, tanto a literatura quanto a teoria da
literatura estabelecem diferentes relações com a noção de espaço. A relação da
teoria da literatura com esse conceito, conforme Luis Alberto Brandão, em Teorias
do espaço literário (2013), tem sido uma relação de baixa frequência. A teoria tem
consolidação no início do século XX, momento de um desígnio imanentista no
estudo do texto literário (formalismo russo, new criticism, estilística... e
posteriormente fenomenologia, estruturalismo). Isto, somado ao projeto artístico
13
Cf. BRANDÃO, 2013, p. 60-61, onde esse autor apresenta brevemente essas duas abordagens
sobre as relações entre espaço e literatura e suas concepções, as quais confluem para o que foi
sintetizado nessa citação.
14
Neste caso, numa concepção relacional de espaço, entende-se a obra como constituída de partes
autônomas, exigindo-se entre elas uma interação [em outro nível].
42
Ora, ao passo que num espaço estriado fecha-se sua superfície para
"reparti-la" segundo intervalos determinados, segundo cortes assinalados
[cortes determináveis, racionais, medidas], no espaço liso "distribui-se" num
espaço aberto,conforme frequências e ao longo do percursos [é associado à
intensidade e não à extensividade, de "relações preenchidas sem medida" e
"povoado de afetos"] (PELBART, 2007, p. 89-90).
15
Vide nota 39.
16
Essas duas noções, de "liso" e "estriado" em relação não somente ao espaço, mas também em
relação ao tempo são de fundamental importância para a percepção e análise das questões espaciais
e temporais, neste caso, sobretudo no que se refere, respectivamente, ao tempo durativo e ao tempo
cronológico (vide tópico 1.2.1)
.
44
17
Isto é, como imitação, espelhamento da natureza ou das ações humanas. Uma discussão sobre o
entendimento do conceito de mímesis será feita mais adiante.
45
(Fonte: Cavalodadá em Siga os sinais na brasa longa do haxixe 5/6. CAVALODADA, 2016, p. 12-13)
18
Não se trata apenas dos mecanismos de vigilância e/ou segurança, agora espalhados nas ruas,
nos sinais eletrônicos do trânsito, nos ambientes públicos ou particulares, e muitas vezes interligados
em redes ou com o risco iminente de "cair" nelas. Trata-se, principalmente, de um modo de ver, agir,
falar e pensar cuja referência tem a Cidade, a Metrópole, como centro de referência, desejo/meta e
controle.
48
[...]
A cidade tem a volúpia do centro,
o redemoinho de cimento,
o desejo calçado de engolir-se
em sua rota traçada para fugir de si
cada vez que mais se encolhe.
A cidade é enorme roda-gigante,
feita na barroca voluta dos eixos
desfeitos
e tesouras e asas e quadras
que se enroscam no gabarito
do homem estonteado e central.
19
A cidade na verdade também não se estende apenas como um planalto de asfalto e concreto. Seu
pressuposto de sustentabilidade tem por mandamento fundamental "preservar o verde", "plantar
53
em várias referências que também enleiam o físico e o simbólico: cidade alta, cidade
baixa; cidade antiga, cidade nova; e os lugares de habitação: as mansões, os
grandes condomínios e coberturas, os apartamentos de luxo, a casa do conjunto
habitacional, as ocupações, o abrigo, o papelão do andarilho, porém de modo que
todos possam coexistir nem necessariamente conviver:
Hoje em dia viaja-se com uma rapidez que nossos ancestrais sequer
poderiam conceber. A tecnologia da locomoção - dos automóveis às
grandes rodovias - permitiu que as pessoas se deslocassem para áreas
além da periferia. O espaço tornou-se um lugar de passagem, medido pela
facilidade com que dirigimos através dele ou nos afastamos dele. A visão
que o motorista ao volante descortina À sua frente é a de um lugar
escravizado às regras de locomoção e neutralizado por elas [...]. A condição
física do corpo em deslocamento reforça a desconexão do espaço.
árvores", criar áreas verdes e parques-ilhas altamente arborizados e irrigados, os quais servirão, por
sua vez como espaço público de lazer, entretenimento e como atrativo turístico. Quanto maiores as
cidades, mais finanças para esse investimento.
54
20
Alguns trabalhos mundialmente famosos, estéticos e científicos, exploram com esse título a ideia
da flânerie na anima urbis. Exemplos, um mais antigo e um recente: Edith Matilda Tomas (1854-
1925), capturando o excitamento da cidade moderna na transição entre os séculos XIX e XX, cujo
poema "Anima Urbis" retrata essa alma que impacta e marca a linguagem da poesia: "Anima Urbis'
(2010), da documentário em que Xisela Franco (Espanha), explora a "cidade pós-moderna" em
passeios ao modo de flanêur, deambulando pela cidade de Toronto e seus espaços públicos; e
"Anima urbis", de
21
http://www.xiselafranco.com/portfolio/items/anima-urbis. Acesso em outubro/2016.
55
entre os séculos XIX e XX, cujo poema "Anima Urbis" retrata essa alma que impacta
e marca a linguagem da poesia:
22
[...] City, I do not know what charm you wield/That to my spirit has been subtle balm;/From stabbing
memories it oft has healed./Your very tumults can my tumults calm./Who speaks of guile, of harm your
spells can do?/Enchantress City — I am safe with you!/Yes, I have been your lover many years./Like
any lover I your praise could sing,/For this — for that — which so my heart endears./And yet, and yet,
beyond each several thing,/Like any lover I despair, and say,/" It is your soul I've loved so many a
day!/"Your soul of many souls well mingled up!/ [...]. (THOMAS, Edith M. Anima urbis. In: POETRY
NOOK. http://poetrynook.com/poem/anima-urbis. Acesso em outubro/2016.
56
capaz de estetizá-la, pari-la como obra, como arte, escritura poética, imagem. E, em
seu sussurro, ela se torna linguagem, fala, e pode ser ouvida como alma-linguagem.
No que respeita à alma, constituindo-se como imagem simbólica, ela é
mediação que permite um reconhecimento, um sentido, mas através do qual é
sempre “lançado junto” com o inesperado, o polissêmico, hospedando o sentido
sempre ambivalente e nunca completamente dado, tornando-se polissignificativo e
inesgotável.
Trata-se, como operador conceitual e simbólico, de uma função
hermenêutica, no sentido da mediação, conjunção e negociação entre fraturas,
fragmentos, confrontos, heterogeneidades: força coesiva de tonalidade vital e
afetiva. Instância ou princípio vital (anima), vetor de vida sensível, imaginativa e
dimensão de interioridade (Psique) que se re/vela, como tal, a alma não é instância
apenas positiva (construtiva), mas tem também sua face enigmática e sombria,
alojamento de obscuridades entranhadas na existência. Ela é, portanto,
possibilidade de trânsito entre o humano e o supra ou infra-humano, a materialidade
e a imaterialidade, o quiasma entre o visível e o invisível, o corpo e a abertura de
seu ser, latências e profundidades (MERLEAU-PONTY, 2009), a certeza e o mistério
(o velado), o mundo e a vivência, o vivente e o espaço. Martin Heidegger (2003, p.
31), comentando um verso de Primavera na alma, de George Trakl, (Algo de
estranho, a alma na terra) diz que esse “estranho” é a essência vigorosa da alma, é
justamente o caminho da travessia, o “estar a caminho de...”. “O estranho está em
travessia”, anoitecendo, amanhecendo, deslizando em errâncias, seguindo o apelo
do que lhe é próprio. E como aquela “intimidade” de que fala Hölderlin, mantém as
coisas separadas e, igualmente, as reúne.
Por sua vez, a poesia de qualquer cidade, seja a que se quer
propriamente “da” cidade e não apenas “na” cidade, não é uma só poesia: ela está
carregada de forças e imagens adversas, subjetividades, de adversidades; de
visões, leituras de mundo diferentes e diferentes narrativas, enfim, de visões, pontos
de vista singulares pertinentes a cada poeta e suas “habitações”, suas buscas e seu
pecúlio de linguagens. Mas ainda assim eles devem se tocar, elas tocam a alma que
sopra no imaginário sensível, poético-estético-hermenêutico, não uma instância de
pura ou mera racionalidade, tal qual a ratio, razão na interpretação latina, mas
aquela da dialética heraclitiana em que alma & logos tornam-se o Um: “A alma é o
57
23
“ψυχῆς ἐστι λόγος ἑαυτὸν αὔξων”. In: HERÁCLITO. Fragmentos.
http://pt.scribd.com/doc/12892206/Fragmentos-de-Heraclito (Observe-se que os fragmentos aí não
seguem a mesma ordem geralmente adotada por outros autores).
24
João Sette Whitaker Ferreira, em O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do
espaço urbano (2007, p. 52-83) alerta para o fato de que mesmo a cidade de São Paulo é uma
"cidade-global" à brasileira, de periferia do capitalismo mundial, já que a definição "cidade-global"
depende dos aspectos metodológicos usados para no sentido dessa atribuição, e cujos pressupostos
são de modelos importados que se aplicam a outras realidades que não à nossa. "Tomemos por
exemplo a 'alta concentração de empresas de comando do terciário avançado da cidade', um dos
atributos mais lembrados pelos teóricos da 'cidade-global' [...]. Mas o que se entende exatamente por
'empresas de comando'? E por 'terciário avançado'? [...] Esses atributos são aplicáveis a São Paulo
da mesma forma que o são para Frankfurt, ou Paris?...". Diferente de Nova Iorque, Londres ou Hong
Kong, São Paulo é uma cidade-global na intensidade de seus fluxos humanos e culturais, mas com
altos níveis de exclusão social e econômica, e com pouquíssimas sedes de grandes e
megaempresas globais.
58
econômicas, mas da sua promoção pela "grande mídia", ao apresentá-las (Rio e São
Paulo) cotidianamente como "cidades nacionais" − ou, conforme Li-Chang Shuen C.
Sousa, colocadas hegemonicamente como cidades-sinédoque. Estas são
representações de cidades consideradas como referências para o país a partir de
dominantes culturais adotadas ideologicamente como nacionais, tomando núcleos
culturais (particularidades) e transformando-os em representantes de uma "cultura
nacional" (ex. no Brasil: samba, futebol, carnaval carioca, o malandro), gerando
efeitos de estereótipo. Ou seja: "núcleos culturais transmutados em dominantes
culturais" (SOUSA, 2013, p. 108). Estudando a televisão "nacional", Sousa, explica
que "núcleos e dominantes culturais são aspectos complementares: um núcleo
cultural de um determinado lugar pode ser transformado em símbolo cultural
nacional e assumir em conjunto com outros o caráter de um dominante cultural"
(SOUSA, 2013, p. 29). Exemplificando:
[...]
(Teresina)
***
Hoje
volto a te ver - ungido
entre palmeiras e parabólicas.
(Itapecuru)
***
(Cenacidade 2)
SOLIDÃO
"Amém!"
território de um pacto lírico. Noutro lance, também possível o poeta recusa qualquer
eco referencial, para que a linguagem, e somente ela, ressoe a experiência de não
pertencer, senão ao lugar nenhum ou ao lugar vazio - a ser preenchido e significado
por um leitor pleno de paisagens. Evidentemente, deslocar-se é também adentrar
incertezas e regiões difusas, tateantes da linguagem e da expressão, o que torna o
deslocamento um novo encontro com a linguagem, uma busca de novos meios de
dizer e para o dizer. O que deve ser abandonado? Qual o universo representativo e
metafórico ligado aos novos imaginários, paisagens, meios, ambientes, aos
horizontes da leitura: serão correspondentes àqueles deixados? Quais os recursos
disponíveis?... Enfim, no deslocamento, em que se espera abertura e a
ultrapassagem da própria de visão de mundo, a linguagem vem tomar satisfação e,
encontrando-se insatisfeita, transtorna o lugar-cômodo: aos trancos e barrancos, a
poesia vai encontrando um novo chão.
O princípio espacial, seus elementos e nuanças constituem-se, deste
modo, aspectos fundamentais de interrogação das dimensões formais e
experienciais do poema, porque inerente à sua própria constituição, à sua
linguagem, à sua cosmicidade. Conforme apontado acima, e discutido adiante de
modo mais específico, a forma, por si só, já construída sob as condições
semioespaciais da linguagem, estabelece seu próprio caráter de relação, situação e
corporalidade [estruturante], enquanto a dimensão experiencial faz-se dentro e a
partir de uma historicidade que inclui não somente o representado pela linguagem,
mas os espaços factuais e vivenciais, suas formações objetivas e subjetivas,
individuais e coletivas configurados pela mímesis poética nas paisagens do poema.
Eis a importância de sua colocação prioritária numa investigação reflexiva sobre a
poesia contemporânea, para que tal discussão ofereça subsídios compreensivos aos
caminhos de sua exploração, e permitindo que ela mesma lance suas
interrogações26.
Mas a face coirmã do espaço é o tempo, até aqui posto "em parêntese",
quando na verdade eles são intrinsecamente interligados, compartilhando o evento,
a presença e o acontecer, e constituindo o sentido de qualquer horizonte. Em
26
Dentre as questões possíveis, as concepções e identidades manifestas e aquelas entranhadas,
latentes/subjacentes ou não claramente assumidas; os lugares assumidos ou representados,
invocados ou evocados; as colorações patêmicas - afetivas ou afectivas, conflitantes - desse espaço,
suas marcas e tipicidades, etc., dentro dos caminhos de leitura e sentidos possibilitados pelos
poemas.
66
27
A relação aí é com Kant, que, na Crítica da razão pura - Estética transcendental, concebe o espaço
e o tempo como categorias transcendentais e apriorísticas, ou seja, formas e condições
independentes da experiência sensível humana, mas que podem ser considerados condições das
possibilidades dos fenômenos. Assim, participam ao mesmo tempo de uma idealidade transcendental
e de uma realidade empírica, em relação a tudo que nos pode ocorrer externamente como objetos
(KANT, 1980, p. 36-45). Bakhtin, compreendendo que espaço e tempo também são construtos da
linguagem e realidades do cotidiano acontecer humano, pretende "revelar o papel destas formas no
processo do conhecimento artístico concreto (visão artística) nas condições do gênero romance"
(BAKHTIN, 2010, p. 212).
28
Tratando sobre as formas do tempo e do espaço no romance, ou melhor, sobre o processo de
assimilação do tempo, do espaço, e do indivíduo histórico real que neles se revela, Bakthin explora o
conceito de cronotopo ("tempo-espaço"), o qual, segundo o autor, foi introduzido e fundamentado nas
ciências matemáticas pela teoria da relatividade (Albert Einstein). Bakhtin redireciona o sentido do
conceito no estudo da obra artística (chamando-o, neste caso, de cronotopo artístico-literário): "No
cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo
e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço
intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo
transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse
cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico" (BAKHTIN, 2010, p.211).
29
"O tempo é justamente isto: o número [a medida] do movimento segundo o antes e depois"
(ARISTÓTELES, [Física, Livro IV, 219b] p. 152)
67
30
Immanuel Kant, assim como trata do espaço, de imediato trata do tempo dentro de sua Estética
transcendental, e assim o concebe: "o tempo é uma representação necessária subjacente a todas as
intuições. Com respeito aos fenômenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, não obstante
se possa do tempo muito bem eliminar os fenômenos. O tempo é, portanto, dado a priori. Só nele é
possível toda a realidade dos fenômenos. Os fenômenos podem cair todos fora, mas o próprio tempo
(como a condição de sua possibilidade) não pode ser supresso (KANT,1980, p. 44).
68
Διόνυσος /Diónysos) é "duas vezes nascido", ele é o "deus que [re]vem" (renasce),
isto é, em permanente movimento; o deus que padece e triunfa sobre o sofrimento,
também ligado à mítica noturna e lunar, à embriaguez e ao despedaçamento, a
animais e plantas que "morrem" e "renascem" (a serpente, a hera, a vinha)
(KERÉNYI, 2002). Muito provavelmente é esse movimento trágico (da continuidade
e da revolta vital) que interessa a Nietzsche. Em A Gaia Ciência, o filósofo interroga:
visão, já que pode lançar luzes sobre nossas próprias concepções e fazer-nos
refletir sobre o necessário cuidado ao lidar com o texto do outro, de modo a que não
seja apenas a reverberação do nosso próprio conceber. Depois, o de manter tais
concepções como referências de comparação ou contraste com aquela disseminada
no texto em foco, em geral configurando um imaginário do tempo que pode ser
relacionado, enquanto tempo no poético, a qualquer uma dessas quatro linhas
mostradas. Por fim, servir como ponto de partida para manifestar a complexidade do
fenômeno tempo e redirecioná-lo para uma perspectiva que viabilize a percepção de
suas formas nas espessuras textuais.
No sentido deste redirecionamento, mantendo de sobreaviso as
concepções arraigadas pelas culturas e seus imaginários, um modo profícuo de
esboçar a questão do tempo para pensar as paisagens temporais poéticas, e, ao
mesmo tempo, operacionalizar verificações na sua realidade enunciativa, é
considerá-lo a partir das noções (agora de uma perspectiva fenomenológica) de um
tempo objetivo e de um tempo experiencial, ou seja: de um tempo formal e
cronologicamente idealizado na medição, e de um tempo mundanal sentido, intuitivo
e experiencialmente vivido, poroso, com suas respectivas manifestações e
possibilidades.
No texto poético, a projeção de sua efetividade pode ser percebida desde
as formações sensíveis e subjetivas, representadas pela corporeidade imagética,
pelas tonalidades e nuanças rítmicas, conexões e descontinuidades, incidências,
temporalidades desempenhadas, invocadas ou evocadas pelo sujeito/vozes líricas
presentes, às suas configurações discursivas e tessituras gramaticais: formas
verbais e dimensões aspectuais, frases nominais, com seus efeitos e impactos
discursivos, questões de evocação e invocação pela nominação, parataxe e
predicação. Assim, a convocação dessas duas compreensões da temporalidade
aprofundam e embasam a discussão também das dimensões de maior preocupação
deste trabalho, quais sejam: a formal, com incidência sobre sua realização textual,
sígnica e relacional; e a dimensão experiencial, com incidência sobre a visão,
compreensão, as disposições do sentir e a configuração do mundo, da vida,
consubstanciadas nas realizações líricas focalizadas.
72
Cabe notar que, embora essa tenha sido uma compreensão consequente
e favorável a um novo entendimento, Alves também reporta uma afirmação de
Husserl32 criticando o distanciamento ainda presente na proposição de Einstein em
relação a um tempo que se desenrola em nossa "vida vivente". O autor observa que
o filósofo não pretendia, com a crítica, minimizar o trabalho do físico, ou contornar a
racionalidade científico-natural, mas, antes de mais nada, assinalar uma lacuna na
fundamentação da racionalidade moderna, no sentido de que as declarações de
Husserl "põem em relevo que os processos de idealização e de uma substrução de
uma realidade 'exacta' 'por detrás' da Lebenswelt [mundo da vida] carecem de uma
aclaração última a respeito da sua possibilidade e de uma justificação da intríseca
validade da figura de um ser objetivo como correlato final das teorias "exactas''
(ALVES, 2008, p. 151).
O que Alves acentua mais adiante é que, apesar de algumas colocações
de Husserl, fenomenologicamente, dentro dessa nova perspectiva o tempo objetivo
não suprime sua conexão com a experiência subjetiva do tempo. O que aparece
32
Esta é afirmação de Husserl reportada por Alves (2012, p. 151) de uma conferência de Viena, de
1935, intitulada A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia: "Os revolucionamentos de Einstein
dizem respeito às fórmulas com que foi tratada a physis idealizada e ingenuamente objectivada. Mas
como as fórmulas em geral, como os objectos matemáticos em geral recebem sentido a partir do
subsolo da vida e do mundo circundante intuitivo, acerca disso não aprendemos nada, e, assim, não
reforma Einstein o espaço e o tempo em que se desenrola nossa vida vivente".
74
33
Santo Agostinho une suas reflexões sobre Deus e a eternidade às reflexões filosóficas sobre a
essência do tempo, bem como sobre a duração e a memória: "Que é, pois o tempo? Quem poderá
explicá-lo clara e brevemente? [...] Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos.
Compreendemos o que nos dizem quando dele falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se
ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém
atrevo-me a, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se
nada houvesse, não existiria o tempo presente" (SANTO AGOSTINHO, Confissões XI, 14 [17], 1987.
- itálico nosso) Esta, a sua clássica referência sobre o tempo. De Santo Agostinho, também Husserl
(2002, p. 25) reconhece: "Todo el que se ocupe com el problema del tiempo, de aún hoy estudiar em
profundidad los capitulos 14-28 del libro XI de las Confessiones. Pues la modernidad, tan celosa de
su saber, no há ido em estos temas assombrosamente lejos, ni há penetrado más hondo [...]. Aún
cabe decir com san Agustín: si nemo a me quaerat, scio, si quaerenti explicare velim, nescio".
77
É certo que a operação por meio da qual a ciência isola e fecha um sistema
não é uma operação de todo artificial. Se não tivesse um fundamento
objetivo, não se poderia explicar que ela é totalmente indicada em certos
casos e impossível em outros. [...] Se a ciência vai até o fim e isola
completamente, é para facilitar o estudo (BERGSON, 2006, p. 7).
34
Bergson admite um aspecto qualitativo e um"equivalente emocional" dos números:"[...] poder-se-ia
quase dizer que os números de uso diário têm, cada um, o equivalente emocional. Os comerciantes
sabem muito bem disso e, em vez de indicar o preço de um objeto por um número redondo de
francos, marcarão o número imediatamente inferior, com a possibilidade de intercalar em seguida um
número suficiente de centavos. [...] Sem essa penetração mútua e esse progresso de certo modo
qualitativo, não haveria soma possível. Portanto, é graças à qualidade da quantidade que formamos a
ideia de uma quantidade sem qualidade (BERGSON, 2006, p. 13-14)
35
Um movimento de experiência ["per"] (ver tópico 2.2 Experiência & poesia).
78
36
"A duração só é efetivamente sucessão real por ser coexistência virtual. [...] Os graus coexistentes
são ao mesmo tempo o que faz da duração algo de virtual e o que, entretanto, faz com que ela se
atualize a cada instante, porque eles desenham outros planos e níveis que determinam todas as
linhas de diferenciação possível" (DELEUZE, 2012, p. 115)
79
fardo fatal do tempo e restaurar a estatura humana subjugada pelo tédio e pelo
relógio esmagador"37. O teórico concebe que o ato lírico fundamental consiste em
cantar, suspendendo os minutos que passam. E como (o) canto, a escritura se faz
momento de eternidade, em que o tempo se esquece, se deposita e se decanta: a
escritura replica, pelas figuras, a irreversibilidade do tempo. Assim, diz ele, é
necessário que aquele que traça signos sobre a página seja como um morto para o
mundo que o cerca. Ele não habita o tempo encantado da emoção, mas "o espaço
distendido e aleatório da página branca", em cuja escritura "a palavra lírica se
imobiliza"38.
Na poesia de Victor Hugo e Paul Verlaine, Maulpoix observa um desejo
nostálgico de tudo rever e o encontro com uma ausência, ou melhor, o desencontro
com uma realidade que já não é, senão sob o signo da ausência. Mergulhado no
sentimento do irreversível, nesses jardins para sempre perdidos, o poeta (o sujeito
poético) incumbe, então, os objetos, os elementos da paisagem de significar a
ausência e o tempo ido, oscilando entre o passado e presente. Assim, sobre um
trecho exemplar de Verlaine39, em que o sujeito lírico volta ao seu jardim, ele aponta
a manifestação de uma espécie de alucinação evocatória da presença, no desejo de
reconquistar liricamente o passado, em que a nostalgia dá acesso a um universo
musical e qualitativo, e a palavra festeja seu encontro com o primordial. Há, então
um consolo do nostálgico no escrever, enquanto permanece um exilado no poema,
construído como o seu "lugar ideal". Maulpoix (2000, p. 335) aponta, aí, a resolução
formal de um paradoxo nostálgico: ao inscrever a vida passada no tempo presente,
o poema sacraliza os bens perdidos [e o exílio], no entanto ao reviver um lugar e
uma duração real, o poeta os enterra para sempre, certificando sua inexistência e
magnificando sua irrealidade.
É certo que, em Du Lyrisme (2000), Maulpoix faz o elogio da escritura
poética tanto do distanciamento quanto da distância, na qual sentimos forte
37
"Il tente désespérement de secouer le fatal fardeau du temps et de redresser la stature humaine
asservie par le spleen et l'écrasante horloge" (MAULPOIX, 2000, p. 332-333).
38
"Il faut que celui qui trace des signes sur la page soit comme mort au monde qui l'entoure. [...] Il
n'habite pas le temps enchanté de l'émotion, mais l'espace distendu et aléatore de la plage blache. Sa
solitude est autrement radical. La parole lyrique s'immobilise dans l'écriture" (MAULPOIX, 2000, p.
333)
39
Trecho de Verlaine (Après trois ans, Saturniens) exemplificado por Maulpoix: "Rien n’a changé. J’ai
tout revu : l’humble tonnelle / De vigne folle avec les chaises de rotin… / Le jet d’eau fait toujours son
murmure argentin/ Et le vieux tremble sa plainte sempiternelle." ("Nada mudou. Eu tudo revejo: o
caramanchão humilde / De videira selvagem com cadeiras de vime ... / O jato d'água sempre faz seu
murmúrio prateado / E o velho balança sua queixa sempiterna.")
82
40
Para quem escrever é uma situação extrema, a experiência radical que leva Mallarmé ao encontro
do Nada, ao desamparo da ausência dos deuses (BLANCHOT, 2011).
83
dois exemplos fortes de modos de tratar tempo, que se tocam, sem dúvida, mas que
mostram duas direções, duas temporalidades diferentes.
Outra questão que vibra nas colocações de Maulpoix diz respeito a uma
das mais antigas com as quais a poesia lida, talvez desde o seu nascimento: a
questão da sua participação ou da sua ruptura/seu distanciamento da realidade
social e histórica. Este teórico, ao menos liricamente, ainda açula o sagrado ou
incensa a morte − do poeta para o mundo. A escritura, diz ele, como o canto, é um
momento de eternidade: nela, o tempo é esquecido, mas para que tal prodígio se
cumpra, aquele que traça signos na página deve ser como morto para o mundo que
o cerca (Cf. nota 51, deste trabalho).
É uma posição que, no cultivo da autonomia artístico-poética, parece ir de
encontro à concepção que vê nessa mesma escritura (poética) uma oportunidade de
mergulho vivo na experiência e na realidade do mundo, e a transfiguração dessa
realidade para o regime estético que ultrapasse o particular, o local e o datado. Ou
seja: como a poesia − enquanto lirismo − se estabelece sem que o poeta
(consciente da transfiguração e da configuração poética) "morra para o mundo" ou o
transcenda ao ponto de açular o etéreo.
A linha apresentada pelo teórico é uma linha forte dentro da modernidade,
que sustenta a interpretação da autonomia da arte como independência, e mesmo
como crítica do contexto (por estar "suspensa" em relação a ele), mas diz respeito a
uma especificidade que se quer, não raramente, totalizante, como "arte pura" ou
"autêntica".
Pensando apenas no caso do Brasil, por exemplo, mesmo com exemplos
como o da liricidade evanescente da distância, de Cecília Meireles 41, da ausência e
da "suspensão do próprio tempo"; ou na consciência de que as palavras "rolam num
rio úmido e se transformam em desprezo", como expresso poeticamente por
Drummond, uma tal generalidade para o lírico é arriscada, porque o caráter liminar
da poesia (esse seu caráter sempre liminar e imprevisível), lança-a por outras vias
igualmente fortes e potenciais. Ela, a poesia, tem buscado outros caminhos, desde o
início do século XX, como os aqui representados por não poucas vozes, cada uma à
41
BOSI (2003, p. 123) discorre sobre uma linha mestra do "sentimento de distância do eu lírico em
relação ao mundo" em Cecília Meireles. Lembrando que, no caso dela esse afastamento não é o da
vontade deliberada de ausentar-se do mundo pelo mergulho entre o racional da linguagem e o
idealizante da linguagem poética, mas por estabelecer sua lírica num "pálido mundo só de memória",
em que "o sentimento do tempo coincide com a suspensão do próprio tempo".
85
sua maneira: Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral, Adélia Prado, Ferreira
Gullar, Poesia Marginal... Posições que podemos considerar como diferentes, senão
contraditórias, da apresentada, e que perfazem uma concepção que pode ser
apreendida nestes termos:
42
[La parole poétique] se compose au gré de singuliers tempos qui mêlent les intermittences d'une
vie rêvée au bruit de la vie quotidienne" (MAUPOIX, 2000, p. 332). ([O discurso poético] é feito ao
critério de tempos singulares que misturam as intermitências de uma vida sonhada ao barulho da vida
cotidiana).
86
43
Il y a des mots, grands et terribles, qui traversent incessamment la polémique littéraire: l'art, le
beau, l'utile, la morale. Il se fait une grande mêlée; et, par manque de sagesse philosophique, chacun
prend pour soi la moitié du drappeau, affirmant que l'autre n'a aucune valeur. [...] Moralisons!
Moralisons! s'écrient [l'école bourgeoise et l'école socialiste] avec une fièvre de missionaires.
Naturellement l'une prêche la morale borgeoise et l'autre la morale socialiste. Dès lors l'art n'est plus
qu'une question de propagande. (BAUDELAIRE, in: LEMAITRE 1982, p. 94)
44
Puissent la réligion et la philosophie venir un jour, comme forcées par le cri d'un deséspéré! Telle
sera toujours la destinée des insensés qui ne voient dans la natue que des rythmes et des formes.
Encore la philosophie ne leur apparaîtra-t-elle d'abord que comme un jeu intérressant, une
gymnastique agréable, une escrime dans le vide. [...] Son âme, san cesse irritée et inassouvie, s'en va
à travers le monde occupé et laborieux; elle s'en va, dis-je, comme une prostituée, criant: Plastique!
plastique! La plastique, cet affreux mot me donne la chair de poule [...]. Le gout immoderé de la forme
pousse à des désordres monstrueux et inconnus. Absorbés par la passion féroce du beau, du drôle,
du joli, du pittoresque, car oil y a des degrés, les notions du juste et du vrai disparaissent. La passion
frénétique de l'art est un cancre qui dévore le reste; et, comme l'absence nette du juste et du vrai
dans l'art équivaut à l'absence d'art, l'homme entier s'évanouit; la spécialisation excessive d'une
faculté aboutit au néant (Idem, ibidem).
87
território dessa outra temporalidade, fato que pode não ocorrer por concomitância ou
consequência direta em alguns casos, como aparentemente não ocorre no exemplo
de Verlaine. No entanto, tal fato se tornou recorrente na proposta dessa "suspensão"
temporal que é também elisão de significado, o qual permanece como uma
virtualidade para o homem factual, mesmo após a repetição da leitura. Este é,
portanto, um procedimento que estabelece como correlato o enigma, o hermetismo
ou a obscuridade45, patentes em toda a alta modernidade como alto índice de valor
poético. Sobre essa concepção, que se coloca como o próprio fundamento do
processo criativo, resume o italiano Alfonso Berardinelli (2007, p. 134):
47
La présence renvoie à l'ex-istence, qui est ouverture au monde et du monde tout en étant exposition
sous l'horizon de celui-ci. Elle engage l'imminence, l'urgence de ce qui est à l'avant selon l'étymologie,
et la facticité, par de ce qui est présent. C'est pourquoi son ambivalence implique une situation double
de limitation et de franchissement d'événement et d'avènement, de jaillissement et de permanence qui
est caractéristique des paradoxes du devenir. [...] Or, ce temps de présence permet l'interaction de
l'expérience pathique et de la forme énonciative du discours, notamment par le jeu sur les temps
verbaux (RODRIGUEZ, 2003, p. 169).
91
48
"l'instant peut-il s'apparenter à un point non dimensionnel dans l'entre deux de toutes les
dimensions, se chargeant tantôt d'afocalisme dans une origine incessament renaissante tantôt
d'étroitesse circonscrite dans une irruption de l'événement" (RODRIGUEZ, 2003, p 170).
49
"[...] la résonnance d'un perçu passé, encore présent même s'il est inactuel" (RODRIGUEZ, 2003, p.
171)
92
50
Ce temps se construit particulièrement avec de tournures à l'imparfait et au présent de l'indicatif,
lorsque la forme verbale est centrée sur ce mode et qu'elle prend un aspect imperfectif. La situation
pathique aura en revanche tendance à écarter le passé simple et le passé composé lorsqu'il prend un
aspect perfectif. Cet aspect peut évidemment inclure l'imparfait ou le présent quand ils ont un
caractère historique (RODRIGUEZ, 2003, p. 173).
51
Elles donnent une impression d'essentialité, comme si elles traitaient ontologiquement du monde.
Les distinctions entre les trois extases du temps s'estompent pour laisser retentir une forme de
présence dans la durée actuelle. C'est pourquoi ce type de phrases s'associe à l'aspect imperfectif
précedement observé. [...] Par la non-position et la non possession qu'elles donnent au locuteur, les
93
phrases nominales sont donc particulièrement appropriées pour servir les invocations et les
évocations dans le pacte lyrique (RODRIGUEZ, 2003, p. 175, grifos meus).
94
estabelece, em seus ritmos, nos seus andamentos, nas instâncias enunciativas, nas
relações estabelecidas como "dentro" e como "fora". É levando isso em conta que
serão tomadas como orientação e delineamento as concepções ora vistas e
exploradas.
A chuva é
o começo
(Calhas, p. 20)
a fratura é
tempo e maresia
(Fraturas, p. 26)
a Terra-é
o quebrar pedras
e desalojar
a botânica dos ossos
(Natimudo, p. 33)
ou é a selva
ou não é
Toda palavra
é cruel
não cicatriza
nem fecha
a espera
amarga
quem da palavra
espera trégua
toda palavra
é guerra
campo marcado
ossos arruinando
sem pressa
toda palavra
é menos do que
a seta que a espera
(Dizer, p. 32)
53
O tempo da constatação ou da enunciação de verdades eternas, presente omnitemporal: o homem
é mortal.
98
alargado com todo tipo de efeitos de memória, significando que estamos passando
por uma profunda transformação em nossa experiência do tempo e impondo-nos
uma tarefa de readaptação, de novas formas de operar o passado. O autor não vai
adiante, senão até o lançamento dessa injunção, este impulso para a percepção do
nosso próprio atravessamento temporal, enquanto sujeitos em historicidade - o que,
pela condição mesma de historicidade como temporalidade, pode estabelecer um
distanciamento do cronótopo historicista naturalizado.
Já é bastante patente que a complexidade do momento presente
ultrapassa as meras pressuposições de um “vir após a” ou de um "estamos nos
encaminhando para", isto é, à previsibilidade de um futuro consequente ou
inevitável, seja no sentido de qualquer narrativa de um progresso material individual
ou coletivo de base industrial ou comercial; seja no sentido de uma luta de classes
com minorias oprimidas vencedoras; seja no sentido da utopia messiânica, com a
construção de uma cidade eterna como recompensa pelos sofrimentos de um
presente terreno, quando este já está enterrado na secularização, nos jogos
discursivos e virtuais, e no comércio da própria bem-aventurança. É, portanto, um
presente que se "alarga" em sua própria instauração e reiteração. As perspectivas
de um presente que aloca a memória e coloniza o futuro estão entregues às
circunstâncias de sua imprevisibilidade, porque a própria presença não está sob
controle.
Para a compreensão desse largo presente e os revezes de suas forças e
formas, principalmente no que diz respeito à situação da poesia contemporânea, não
podemos deixar de referir pelo menos três conceitos de importância máxima para as
discussões propostas, de certo modo interligados, e que redimensionam as
concepções da obra de arte, ao lançá-las nos esboços cronotópicos de seus
discursos: o chamado presentismo, as ressonâncias do termo pós-modernismo e a
concepção disjuntiva do contemporâneo.
1.2.5.1 O presentismo
54
Na proposição do historiador Fernand Braudel, da Escola dos Annales de cujo pensamento Hartog
retoma alguns princípios, a história é disposta em camadas de temporalidades heterogêneas,
dialéticas e não exclusivas: a longa duração, o tempo conjuntural, de média duração (história social
de grupos e agrupamentos, conjunturas políticas e econômicas, etc), e o tempo factual ou dos
acontecimentos (o evento social, religioso, uma curva de preços, etc), isto é, o tempo curto, que se
liga ou não a toda uma série de acontecimentos e deve estar submetido à longa duração, em sua
"semi-imobilidade" e ampla abrangência (BRAUDEL, 1958, p. 725-756).
101
1.2.5.2 O pós-modernismo
Lyotard, Frederic Jameson, Jean Baudrillard, Zygmut Bauman, David Harvey, Perry
Anderson.55
Importante ressaltar que a ideia de que havíamos encerrado ou
ultrapassado a modernidade, ideia esta marcada pelo prefixo "pós", não foi aceita
pacificamente. Nos meios filosóficos ou nas ciências sociais, áreas de estudos
determinantes, o debate foi intenso. Jürgen Habermas, por exemplo, vê nesse
momento um "'projeto incompleto [inacabado]', mas não esgotado", da Modernidade
que começou, segundo ele, com o Iluminismo, e para quem "os defensores da pós-
modernidade são continuadores do pensamento vanguardista; continuadores que
não compreendem e não aceitam seu prévio fracasso" 56. Marshall Berman, para
quem a Modernidade é um vasto período que começou ainda com o Renascimento,
percebe nesse "pós-modernismo" apenas um "modernismo pop", uma eliminação de
fronteiras entre arte, tecnologia, design e política (BERMAN, 2000, p. 31). Já para
Antony Giddens (1991, p. 60), "o pós-modernismo tem sido associado não apenas
com o fim da aceitação de fundamentos, mas com o 'fim da história'. [No entanto,] a
história não tem teleologia total".
Em relação à noção de "fim da história", como momento “pós-utópico”
associado ao pós-modernismo, tal ideia foi disseminada a reboque dos efeitos do
Neoliberalismo [econômico], do fim da Guerra Fria e da ideia de “fim das
metanarrativas” − ou seja, das grandes narrativas utópicas −, proposta por Jean-
François Lyotard. "Fim das metanarrativas" em prol das “micronarrativas”, das
narrativas das minorias, segmentos, comunidades. O “fim da história”, isto é, o
momento de ápice da histórica, fechamento de um ciclo e eliminação de conflitos
para realização de um mundo ideal, no sentido hegeliano, foi, então, proposto pelo
consultor norteamericano e ideólogo do governo Reagan, o intelectual nipo-
americano [Yoshihiro] Francis Fukuyama, que argumentava em favor de uma
economia de mercado como triunfo incontornável do liberalismo ocidental.
Corroborou com a ideia o fim do socialismo, a queda do muro de Berlim, e a invasão
do capitalismo de feição norte-americana nos países socialistas, de modo
praticamente global.
Em algumas abordagens, relacionado às discussões da cultura e teorias
da colonialidade (pensamento pós-colonial/descolonial), o pós-moderno pode
55
Cf. CONNOR, 1992, p. 29-56.
56
Cf. Discussão em: LIMA, 1991, p. 37.
105
adquirir sentidos contraditórios. Pode ser visto com desconfiança de sua inexistência
nos países colonizados e subalternizados, como uma onda pop-blasé das correntes
artísticas das grandes metrópoles (colonizadoras). É bom lembrarmos que algumas
chaves para seu entendimento foram dadas pelas estéticas do momento e
principalmente pelo desenvolvimento de um urbanismo "pós-moderno" de algumas
megalópoles - Los Angeles, Nova Iorque, e outras "cidades globais" - e estendidas
[digamos: tomadas por extensão] ao resto do mundo (CANCLINI, 2007, p. 75). Ou
pode ser visto como reação e contraposição, associado ao pós-colonialismo,
procurando tornar-se fecundo e opositivo em relação ao moderno:
57
Os autores lidos por McLaren, sobre essas duas tendências do pós-modernismo não serão
tratados aqui como referência bibliográfica, por já serem por este sintetizados, sem maiores
necessidades de reportar suas teses e conclusões, e por se tratar de um número considerável. Cf.:
MCLAREN, 1997, p. 65-70.
106
1.2.5.3 O contemporâneo
Perceber no escuro essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo,
isso significa ser contemporâneo. Por isso, os contemporâneos são raros. E
por isso, ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem,
porque significa não apenas ser capaz de manter fixo o olhar no escuro da
época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para
nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num
compromisso ao qual se pode apenas faltar (AGAMBEN, 2009, p. 65).
59
Stuart Hall trata de um quadro da pós-modernidade (A identidade cultural na pós-modernidade,
2006) ou "modernidade tardia". Tomo-o como referência, entretanto, partindo da interpretação de que
a pós-modernidade, assim como o presentismo, são ambos faces ou modos de compreensão desta
contemporaneidade. Ou seja, de que se trata do mesmo contexto, numa inseparabilidade entre o que
ele trata como pós-modernidade e o que podemos entender do contemporâneo, separados apenas
por questões de enfoques ou delineamentos de concepções.
113
60
Antony Giddens relaciona o termo (política emancipatória) principalmente à questão de gênero.
Mas tal termo pode ser estendido muito apropriadamente para as questões reinvidicatórias mais
amplas relativas aos grupos, minorias e comunidades subordinadas que buscam emancipação e
autonomia. O próprio autor o reelabora, quando afirma: "a política emancipatória só alcança um
conteúdo mais substantivo quando atenta para as divisões entre os homens. [...] [Para Marx a
emancipação estava no surgimento de uma ordem sem classes] Para autores não marxistas, a
política emancipatória dá maior importância a outras divisões: divisões étnicas e de gênero, divisões
entre grupos dirigentes e subordinados, nações ricas e pobres, gerações presentes e futuras. Mas,
em todos os casos, o objetivo da política emancipatória é libertar os grupos não privilegiados de sua
condição negativa ou eliminar as diferenças relativas entre os grupos na sociedade" (GIDDENS,
2002, p. 194-195).
61
"Estranho", "esquisito", "gay", "bicha", em inglês. A palavra é utilizada (positiva ou negativamente)
para referir-se a homossexuais e experiências "trans" (transexuais, travestis, transgêneros,
crossdressing, drag queen, drag king).
114
62
Neste caso, outra vez, não se pode absolutizar a questão, pois não existe apenas uma forma de
comunidade nem um modo de "ser-em-comum", numa realidade multifacetada.
116
memória. O que se diz de uma poética63, podemos, de certa forma, dizer de uma
visão deste tempo:
neste momento, entre corpo e coisa, ou certos corpos e certos objetos. Podemos
indicar esse processo com esta fala:
64
Il ne s'agit plus d'imitation, ni de redoublement, ni même de paródie. Il s'agit d'une sbstitution au réel
des signes du réel, c'est-à-dire d'une opération de dissuasion de tout processus réel par son double
opératoire, machine signalétique métastable, programatique, impeccable, qui offre tous les signes du
réel et en court-circuite toutes les péripéties. (BAUDRILLARD, 1981, p. 11)
118
65
Entre as quais poderíamos mencionar, em diferentes exemplos, o exacerbado e contínuo consumo
de bens que por vezes são desnecessários e, quando necessários, marcados com a descartabilidade
pela indústria, o que gera a repetição de seu consumo; a tentativa de manter-se a todo custo em
certos padrões de beleza, por via de intervenções plástico-cirúrgicas e outros meios; o fascínio
ciberpatológico (experiência da atração "inelutável" ou "irremediável" pelas tecnologias, celulares,
games, computadores, até o nível patológico); as estratégicas midiáticas dos pastiches e repetições
ad infinitum; a prática estética/artística do pastiche e da reiteração do mesmo como grande novidade.
119
66
Ciborgue (Ciborg): abreviatura de cibernetic organism, termo criado por Manfred Clynes
(engenheiro) e Nathan Kline (psiquiatra), em 1960, para descrever um "homem ampliado", melhor
adaptado aos rigores das viagens espaciais, uma espécie de "sonho científico e militar" (KUNZRU,
2016, p. 121-122).
120
67
Lembro aqui um estudo de Slavoj Žižek sobre Deleuze e Lacan, Organes sans corps (2008), em
que o filósofo esloveno, comentado o fato de que, segundo ele, para Deleuze a realidade do virtual é
muito mais importante que a realidade virtual, diz o seguinte: "La réalité virtuelle, en soi, est plutôt une
idée pauvre: elle renvoie à l'imitation de la réalité, à la reproduction de son expérience par un médium
artificiel. La réalité du virtuel, en révanche, affirme la réalité du virtuel en tant que tel et assume ses
effets et conséquences réels. [...] Mais c'est précisément le virtuel en tant que tel qui, dans ce champ,
est le réel: l'immuable point focal autour duquel circulent tous les éléments. Le virtuel n'est-il pas
finalement le symbolique en tant que tel [jamais plenement réalisé, en menace éternelle]?" [A
realidade virtual, em si, uma ideia bastante pobre: ela remete à imitação da realidade, à reprodução
de sua experiência por um meio artificial. A realidade do virtual, no entanto, afirma a realidade do
virtual enquanto tal e assume seus efeitos e consequências reais. [...] Mas é precisamente o virtual
como tal que, neste campo, é o real: o imutável ponto focal em torno do qual circulam todos os
elementos. O virtual não é, em última análise, o simbólico enquanto tal [jamais plenamente realizado,
em eterna ameaça]? (ŽIŽEK, 2008, p. 15-16). (Tal referência torna-se ainda mais oportuna quanto
mais a pudermos relacionar à realidade mesma da configuração poética.)
122
68
Essas indicações características destes espaços não exclusivas, podem estar relacionados a um
ou tro, principalmente quando se trata de campo - sertão (este, referido mais a certos aspectos
sociais, geopolíticos e culturais do Nordeste).
69
Penso compreendermos, neste caso, que essa dinâmica nos processos da criação e produção
artística, de modo geral e no caso específico aqui tratado, que é poesia, não é uma dinÂmica
unilateral, uma vez que as manifestações artísticas e culturais, "eruditas" ou "populares", letradas e
da oralidade, e, finalmente a chamada "cultura de massa" se retroalimenta, autoalimentam e
metalimentam. O que é colocado aqui é que, neste panorama das trocas e das reciprocidades
culturais, levando em conta que determinadas manifestações e aspectos lhes sejam
representativamente originários, tais espaços podem ser vistos como "espaços de reserva e
disponibilidade cultural" aos quais se pode convenientemente lançar mão, enquanto, muito
provavelmente, a cultura urbana funcione tanto como influência quanto como representativas da
"cidade-sinédoque".
123
reorganização política e social, para uma busca de certa estabilidade que permitiu
ao país uma redefinição cultural paralela, integrada aos meios universitários e de
pesquisa. Isto num contexto latino-americano também de ondas de ditadura, de
populismo, de migração, bem como da ascensão de uma cultura do audiovisual e
digital, da imagem publicitária, dos conglomerados televisivos de alcance nacional e
internacional, e um desprestígio – ou, pelo menos, uma reformulação, da cultura da
escrita e da literatura. É bem possível postularmos que tais redefinições, em termos
de liberdade, produtividade, criatividade, e novas relações multitransculturais
intercambiais, novas pesquisas e investimentos educacionais, implicando em
potenciais públicos leitores, novas formas de publicação e um novo quadro editorial
revolucionário e alternativo (editoras alternativas, edições virtuais, criações
artesanais).
Por outro lado, por questões que exigiriam análises sociais específicas,
não pertinentes a este trabalho, se o país conseguiu melhorar as condições de vida,
permitir um maior acesso a certos bens, redes e tecnologias de comunicação e
diminuir o caminho entre o condomínio e a favela, as condições de pobreza, as
cidades cresceram ainda mais, transformando-se no cenário da sobrevivência a
qualquer custo. O espaço público foi tomado pelo terror e pela violência, o tráfico
também globalizou-se e criou território urbanos blindados ao Estado, os presídios
abarrotaram-se, divididos em cruentas facções que operam com o tráfico
internacional, as drogas grassaram a vida de muitos jovens e a lei entrou em crise.
As grifes internacionais encheram as vias com seus outdoors e galpões com
trabalhadores em suspeita de regime de trabalho semi-escravo, em favor dos
mercados globais. A desigualdade, a perversidade crua e a corrupção parecem ter
florescido, na mesma medida em que doentes e desamparados lotam os pátios dos
hospitais e pedintes, mendigos e andarilhos lotam as ruas. Os espaços públicos são,
muitas vezes, restritos aos territórios virtuais e eletrônicos conectados pelos
fascinantes aparelhos, às praças de alimentação dos shoppings - novo espaço para
o exercício da identidade −, aos parques temáticos com entrada vigiada: em tudo
isso, em todos os locais, a presença alegre do capital e do mercado.
O contemporâneo, no Brasil, seja em relação às demandas,
reestruturações e injunções sociais, seja em relação ao pensamento, aos saberes, à
educação e a cultura, seja em relação às estéticas (do corpo, inclusive) e à
produção artística, com foco, neste caso, na poesia, não pode ser pensado sem a
124
70
É evidente que as lutas emancipatórias e os movimentos sociais étnicos não dizem respeito
somente ao negro, à afrodescendência ou à afrobrasilidade, e que a ausência de outras etnias aqui
não significa pretensão de seu silenciamento − ou o silenciamento a respeito deles. A ênfase dada ao
movimento emancipatório negro, neste estudo, ocorre em razão de entender-se ter ele uma presença
mais representativa na poesia contemporânea brasileira, objeto desta tese.
.
125
que está cônscia do seu papel na formação de uma brasilidade que não
quer camuflar a presença de matizes culturais africanas que o toponímico
assume. [...] Algumas questões ainda se colocam com relação às
expressões "cultura negra" ou "cultura afro-brasileira" e mesmo com relação
ao termo "afro-descendente". As expressões, ao serem usadas, têm
sentidos que devem ser assumidos em sua complexidade (FONSECA,
2010, p. 99;100, grifos meus).
2 PRIMEIRA DOBRADURA
desenha toda uma linha dentro da modernidade, à qual podemos contrapor aquela
que, pelo contrário, tenta justamente aliar-se ou recorrer ao cotidiano e ao regime da
facticidade, do engajamento e do achaque diário para, daí, extrair e construir sua
poesia. Por outro lado, à suspensão lírica do tempo e ao seu ascetismo linguístico
corresponde também um velamento programático do sentido, de forma a propor uma
poesia enigmática, senão hermética - concebida como o mais alto valor poético,
porque tampouco desprovida de um suporte de pesquisa da linguagem e da
tradição, e como "obra aberta" para preenchimento de uma possível multiplicidade
de significados por parte do leitor. A contraparte latente dessa proposta é a
melancólica discussão sobre a utilidade ou a inutilidade da poesia, e, mais
profundamente, da arte como um todo.
Só assim nesta abordagem sobre o tempo foi possível chegar à
consideração das experiências temporais que têm se desenhado no seio da
sociedade do cosmopolitismo moderno e contemporâneo de como a experiência e a
imagem do tempo têm sofrido alterações na visão dessas sociedades. Estas
considerações culminam na apresentação destes três importantes entendimentos de
nossa contemporaneidade: o presentismo, o pós-modernismo e o contemporâneo.
Acreditando já ter deixado claro que entendemos que a categoria tempo não
deve ser considerada, em termos de análise, separadamente da categoria espaço,
mas sempre devendo ser analisada numa dimensão de cronoespacialidade,
podemos, portanto, apontar precisamente quais, dentre os diversos aspectos aqui
apresentados acerca desta categoria, consideramos fundamentais à análise da
poesia brasileira contemporânea a ser realizada. Neste sentido, enfatizamos como
essenciais, as noções de tempo quantitativo (sempre na dimensão de cronoespaço)
e qualitativo (experiencial, íntimo, durativo). Logo, assumirão relevo para a análise
as questões temporais da memória, da retenção e da proteção temporais, que
acabam por adquirir, no poema, uma dimensão definitiva, além de estruturações
gramaticais específicas.
Desse modo, no que diz respeito a tempo e espaço, estes são os suportes
teóricos básicos que servirão à análise, ainda que esta não se limite a fundamentar-
se unicamente nestes, já que outros, aqui tratados e a eles relacionados, também
serão utilizados, quando puderem esclarecer algum ponto a ser analisado. Por fim,
nunca é demais reiterar que as noções de espaço e tempo são aqui colocadas como
noções integradas, imbricadas, autoincidentes, e que entendemos que este é o
130
71 Toute l'esthétique repose sur une scission fondamentale de la forme et du contenu. Cette
dissociation, que se fonde sur une conception de la forme et du contenu comme constitués, achevés,
donc isolables, s'évanouit et paraît illicite sitôt qu'on vise ces termes dans leur déroulement; elle
disparaît au profit d'un élément unique: la forme naissante qui est sens. […] Cette action de signifier
est plutôt […] une monstration qui est condition de possibilité de sens, donc signification em
avènement (grifo do autor).
133
estado poético pela palavra é, ao meu ver, esta permuta harmônica entre a
expressão e a impressão. (VALÉRY, 1995, p. 80)
2.1.1.1 A configuração
forma, e 'a forma é obra do poeta'" (NUNES, 1999, p. 143 apud HEIDEGGER, grifo
do autor).
Ricoeur trata da configuração no campo da narrativa, como mimesis da
ação e da experiência, histórica ou ficcional. Ele a chama particularmente de
mimesis II, quer dizer, uma operação que envolve a atividade de narrar e o caráter
temporal da experiência humana, constitutiva da composição da intriga, e que
considera como intermediária entre duas outras, a da pré-figuração das experiências
temporais num campo prático (mímesis I), e da refiguração de nossa experiência
pelo tempo construído, configurado (mímesis III), na recepção e leitura da obra
(RICOEUR, 2010, p. 94-96). Não é o caso de entrarmos na questão, que diz respeito
a um estudo da narrativa. Importa, nesta referência a Ricoeur, compreendermos o
princípio da configuração e trazê-lo para o entendimento do texto poético. É ele
mesmo quem amplia essa noção, ao colocar (2010, p. 94), que a mímesis II, isto é, a
configuração abre o mundo da composição poética e institui a literariedade na obra
literária.
A configuração está, pois, na própria raiz de um trabalho (ergon) de
transfiguração mimética de uma realidade em outra, da constituição dessa realidade
como mundo evocativo e relacional, quando seja pela diferença provocada pela
mimesis. E é neste sentido que podemos tratar dessa configuração como uma
constituição mediadora, e falar de um ato configurante considerado dentro de um
quadro de intencionalidades. Encontramos um respaldo deste entendimento no
Verdade e Método, de Gadamer (2011, p.165-166), para quem, ressalvadas as
condições de que o que é configurado, esse “ato configurante” é o próprio modo de
ser da obra de arte, enquanto jogo, no contexto da experiência da arte, a
configuração é esse próprio jogo de transformação e mediação que "tem o caráter
da obra, do 'ergon', e não somente da 'energia'. É neste sentido que o chamo de
configuração".
Em relação aos textos poéticos, não podemos tratá-los, em verdade, do
mesmo modo que às realidades narradas, nos termos de uma configuração inscrita
na experiência da narrativa, mas, sim, de uma configuração do sentir, do perceber,
do evocar e do padecer ("pathecer", como agenciamento de um pathos particular). É
assim que Rodriguez (2003, p. 93) também nos esclarece ao referir-se ao pacto
lírico: "o pacto lírico articula uma formação humana afetiva do padecer humano, o
pacto fabulante [narrativo], uma configuração do agir humano [...]. A representação
136
72
Le pacte lyrique articule une mise en forme affective du pâtir humain, le pacte fabulant une mise en
intrigue de l'agir humain [...]. La répresentation de l'expérience et la mise en forme répondent alors à
l'ordre de l'affectif et non de l'action (RODRIGUEZ, 2003, p. 93).
73
L'agencement affectif du pâtir cherche à faire sentir e ressentir les rapports pathiques au monde"
(ibidem).
137
2.1.1.2 Corporeidade
2.1.1.3 Referencialidade
imbricamento de relações, "o vasto continente que agrupamos sob nome de 'poesia
lírica' realiza todos os casos de figuras possíveis: enunciador real, enunciador
fictício, enunciador fingido, enunciação séria, enunciação lúdica, enunciação lúdico-
fictícia"75.
Uma parcela (ou experiência) de realidade itabirana em Drummond, uma
parcela (ou experiência) de realidade recifense em Bandeira, uma parcela (ou
experiência) de realidade ludovicense no Poema Sujo de Gullar etc. Ora, desde
Wittgenstein, sabemos que há tantas realidades quanto há linguagens. Assim, a
pergunta por “quem diz eu” no texto, ou “quem deve dizer eu no texto” é feita por
aquele que o produz, antes de o leitor real fazê-la, já que quem produz o texto
também é seu primeiro leitor. Isto se é que essa intencionalidade comunicativa
possa ser levada em consideração, ou se a pudermos desentranhar das espessuras
de virtualidade do pacto lírico e ironia que o texto estabeleça.
Até onde é possível aproximar da experiência do real a linguagem poética
que substancia a forma, sem perder a etiqueta do literário? Eis o espectro que ronda
o caso do poema político (Ferreira Gullar) e sua busca da expressão político-social;
o poema engajado de Maiakovski, a poesia marginal, certo Neruda...), o poema
“vital” (beatniks, poesia marginal), a poesia da "compreensão mística", de Luís
Augusto Cassas, e quase que toda a poesia consignária da co-narratividade
reivindicatória, mas é problema que diz respeito também ao próprio esgarçamento
do que seja literatura atualmente e do que esteja sendo produzido sob a imbricação
das mais diversas linguagens.
Sobre a relação entre a ficcionalidade, a virtualidade talvez seja o caso
também de nos perguntarmos que tipo de pacto é estabelecido entre o fato
imagético, a figuratividade (a cadeia figural) e a ficcionalidade, quer dizer de uma
fala dentro de uma realidade alternativa ao regime da factualidade histórica, social,
memorialística etc. O problema da ficcionalidade lírica, portanto, nos casos em que
ela se torna questão, deveria ser inquirida antes como uma ficcionalidade tensiva,
quer dizer, liminar, ou em tensão com o regime da realidade referencial do próprio
autor que se transfigura e mimetiza na obra, como o fingidor (o outro, a persona) que
deveras sente (o si-mesmo).
75
Le vaste continent qu'on regrupe sous le nom de "poésie lyrique" réalise quant à lui tou les cas de
figures possibles : énonciateur réel, énonciateur fictif, énonciateur feint, énonciation sérieuse,
énonciation ludique, énonciation ludique-fictive (SHAEFFER, 1989, 85).
144
76
"Mas se o poeta se detém nas palavras, como o pintor nas cores ou o músico nos sons, isso não
quer dizer que aos seus olhos elas tenham perdido todo o significado" (SARTRE, 1985, p. 19).
145
2.1.1.5 Genericidade
Não há nível genérico que possa ser decretado mais “teórico”, ou que possa
ser alcançado por um método mais “dedutivo” que os outros: todas as
espécies, todos os subgêneros, gêneros ou super-gêneros são classes
empíricas, estabelecidas pela observação empírica, ou, no limite, pela
extrapolação a partir deste dado, isto é, por um movimento dedutivo
superposto a um primeiro movimento sempre indutivo e analítico.78
77 Cf. Gerard Genette (1979, p. 56-57), que comenta um esquema de classificação genérica utilizado
pelos autores lembrados, o qual segundo Genette, “nem é tão precioso, nem tão inútil”.
78 Il n'y a pas de niveau générique qui puisse être décrété plus “théorique”, ou qui puisse être atteint
par une méthode plus “déductive” que les autres: toutes les espèces, tout les sous-genres, genres ou
super-genres sont de classes empiriques,établis par observation empirique, ou à la limite par
extrapolation a partir de ce donné, c'est-à-dire, par un mouvement déductif superposé à un premier
mouvement toujours inductif et analytique (GENETTE, 1979, p. 70).
148
linguagem, pois perpassa pela visão de mundo que o poeta oferece à interpretação
da sua obra e à compreensão de sua arte.
Eis por que essa visão de mundo expressa por essa atitude tem a ver
também com o que já vimos como “concessão de linguagem”: sua discursividade,
suas escolhas de material e de matéria, sua estruturação, sua nitidez ou
obscuridade, enfim, definem o processo criativo, a concepção de trabalho poético e
formal.
A objetividade opera, portanto, com noções de controle, rigor, clareza,
contenção, ordenação, evidência e exatidão, na pressuposição do constatável e do
definível. Já a subjetividade, como inversão disso, mergulha no território dos
significados e das imagens pessoais – da imaginação devaneante –, dos
desregramentos e idiossincrasias e do descontrole propiciado pelos acasos e pelas
contingências, dos imprevistos e indefinições, da incontinência, inexatidão,
incertezas e obscuridades, além de uma visão da poesia como expressão de uma
conjunção carnal, vital e unitária, com a vida e a realidade e seus achaques. Não à
toa, as relações de objetividade e subjetividade no texto ganham alta importância
como valorativos do poético na modernidade e no universo da poesia atual, com o
pêndulo atraído pela objetividade como alto poder de consciência, de controle dos
materiais, da linguagem e do objeto poético.
No exemplo do subjetivismo romântico, o mundo se torna um conjunto de
índices correspondentes e símbolos, e o poema um doble do universo: a poesia
seria capaz de, pela analogia, estabelecer uma correspondência entre arte e vida,
natureza e cultura, e o poeta (o dândi, o maldito, o "underground") pode viver sua
vida como arte, de modo a unir, pela linguagem, o princípio poético com a vida
histórica e o sujeito empírico.
As questões que envolvem esses conceitos, entretanto, complexificam-se.
Mais uma vez, não são uma questão de positivo e negativo, zero e um. Os
pressupostos da objetividade devem alertar que a obra artística/literária, o poema,
mesmo mantendo tais pressupostos, quando submetido às circunstâncias da
interpretação, das constituições de sentido e ao jogo da linguagem, jamais pode
funcionar como um tratado científico, nem é este, sabemos, o seu objetivo, sua
razão de ser.
A visão de mundo do poeta, do cientista ou do filósofo podem igualar-se,
podem ser a mesma, mas suas linguagens não: elas guardam suas particularidades
150
– embora que um possa apropriar-se da linguagem do outro, que Nietzsche faça seu
Zaratustra falar poeticamente, que a crítica de Roland Barthes seja uma peça
artística, que a ciência se expresse em Big Bang ou que Francis Ponge tome, a seu
modo, o partido das coisas. Por outro lado, uma obra de visão e/ou linguagem
subjetiva não significa falta de rigor no seu trabalho de criação, mas pode querer
dizer apenas que o artista, consciente, quis estabelecer assim seu jogo
representativo.
Além do mais, podemos estabelecer na mesma obra ou no mesmo
poema um jogo de tensão, conflito e contraste entre objetividade e subjetividade, de
modo a gerar transgressão e ironia no corpo do texto, e mesmo uma posição de
revolta ou desconstrução das visões maniqueístas estabelecidas pela sociedade, ou
das visões esquemáticas propostas pela própria teoria. De tal modo, pode ocorrer de
a forma expressar uma noção enquanto o espírito da matéria temática a contradiz,
ou vice-versa. Não são casos difíceis de encontrar. Na poesia brasileira mais
recente, ninguém desconhece as temáticas e a linguagem escrachada que Glauco
Matoso cultiva em seus regulares sonetos, dando um exemplo de uma rebeldia que
se insere no paletó da forma enrustida.
O fato de o uso da linguagem responder à visão implicada na relação
sujeito – mundo, ou melhor, na atitude sujeito – objeto, no caso de um olhar objetivo
e um rigor da composição também nem sempre tem como consequência uma nitidez
de significância, no sentido de sua compreensão ou de uma compreensão imediata.
É conhecido, por exemplo, que João Cabral de Melo Neto talvez seja, dos mais
próximos de nós, o poeta de maior objetividade e impessoalidade no seu processo
poético, em sua poesia da maturidade. O fato de fazer “poesia com coisas”, de
empregar substantivos de referência concreta ou construir uma imagética, uma
cadeia fanopeica – em conformidade com a linguagem poundiana (POUND, 1977) –
relacionada ao mundo material (PEIXOTO,1983) não garante a imediata apreensão
de sentidos dos seus poemas, isto pela intricada composição tecida sobre
convergências e divergências, por uma lógica de construção e por uma rede de
metáforas, em que os elementos, as coisas remetidas entre si são confrontadas ou
relacionadas também ironicamente e vão revelando camadas/faces de significados.
Deste modo, só no poema, onde as imagens surgem inusitadas de coisas banais e
reconhecíveis (nesse surpreendente poder imagético do poeta, é sempre bom
lembrarmos de que ele também já foi um mestre de imagens surrealistas), elas
151
80 Quando se diz que algo é “hermético” não se pode dizer que é inapreensível ou ininteligível. O que
pode ser percebido inicialmente como “hermético” pode ser desvendado logo que se possuírem os
códigos de decifração: aí entra uma crítica literária mediadora, explicativa e legitimadora
(BERARDINELLI, 2007, p. 142). Ou simplesmente a obra é aceita, em sua condição enigmática
como abertura máxima à experiência receptiva e suas atribuições imprevisíveis de leitura, numa
relação permanentemente tensiva entre seu alto sentido e seu vazio.
81 Coloco aqui "entre parênteses" os problemas que envolvem questões de tradução e
desconhecimento de uma língua estrangeira, discussões não contempláveis neste momento, neste
trabalho.
154
82
[Le poète] voit dans le mot l'image d'un de ces aspects [...]. Sa sonorité [du mot], sa longueur, ses
désinences masculines ou féminines, son aspect visuel lui compose un visage de chair qui répresente
la signification plutôt qu'il ne l'exprime (SARTRE, 1985, p. 20, grifos do autor).
156
isso embora desejemos delineamentos precisos, como quase tudo no poético sua
determinação nem sempre é objetiva nem imediatamente dada. Surge como
impressão, efeito, resultado das tramas construtivas, das relações coesivas,
distribuição de suas sonoridades, entrelaçamentos e repetições, da marcação de
seus significantes, da evidenciação da linguagem que não tenta dissimular-se como
transparente em relação ao real, mas direciona-se também para uma translucidez ou
opacidade. Lembremos que, no caso da poesia, a dissimulação da transparência da
linguagem, de sua "lisura" textural é tão significativa quanto seu "encrespamento" -
também, por sua vez, homogêneo ou heterogêneo. Podemos, assim, pensar em
quatro tipos de textura poética (ou de efeitos, impressões de textura): uma textura
gráfico-visual, uma textura sonora, fonológico-distributiva, uma textura comissural e
uma textura tonal.
Podemos considerar a textura gráfico-visual como aquela textura visual já
tradicional nas artes plásticas, e apropriada pela poesia moderna e contemporânea,
os efeitos semiológicos, das fontes gráficas utilizadas, efeitos estésicos (maciez,
suavidade, aspereza, agressividade; limpidez, luminosidade, ferrugem...). O alto e o
baixo relevo, os efeitos de sombra etc, em geral surgem também de uma ilusão ou
de uma realização gráfico visual. Não são, portanto, efeitos desprezíveis, porque
impelem a uma emoção, a memórias resguardadas de leituras, formas e objetos
culturais, ao toque sensível do corpo, a uma "encarnação" do espírito que levam a
determinados tipos de sensibilidade e simpatia. Na poesia, como na televisão, uma
emoção e uma simpatia (ou antipatia) pode se tornar feeling comercial.
A textura fonético-distributiva, por seu lado, diz respeito às camadas
sonoras, suas repetições, reiterações, suas simetrias, assimetrias, distribuições
dentro do texto. Não se trata de dizer que um texto possui rimas, aliterações e
assonâncias - ganhos de tantas "escolas" e estilos literários, tais como na poesia
simbolista, mas há todo um conhecimento já sedimentado pela estilística que trata
disso. Além do mais, se o poema contemporâneo não busca evidenciações claras
de rimas e outros efeitos sonoro-musicais no poema, ele não abandona a
musicalidade repousada em certos sons, em acentos específicos, podendo esses
procedimentos estarem bem ou mal realizados, a depender da integração
significativa, de sua funcionalidade ou de sua necessidade. Não é raro encontrarmos
um procedimento realizado apenas para gerar "efeito de poeticidade" por um engodo
de musicalidade. É, portanto, um traço delicado de abordagem complexa.
157
FOLHA BRANCA
Um tigre me espreita.
Fareja cada compartimento da casa
com ar inocente. Nada escapa.
Nem as altas prateleiras da estante.
83 Le terme d'inter-textualité désigne cette transposition d'un (ou de plusieurs) système(s) de signes
en un autre; mais puisque ce terme a été souvant entendu dans le sense banal de “critique des
sources” nous lui préférerons celui de transposition ,qui a l'avantge de préciser que le passage d'un
système signifiant à un autre exige une nouvelle articulation du thétique – de la positionallité
énonciative et dénotative (KRISTEVA, 1974, p. 59-60 – grifo da autora. Cf. também JENNY, 1979, p.
13 – utilizo a tradução desse autor).
84
Cf. referência às formas experienciais migrantes.
85 “La polysémie apparaît donc aussi comme le résultat d'une polyvalence sémiotique, d'une
appartenance à divers systèmes sémiotiques”(KRISTEVA, 1974, p. 60).
161
genéricos quando da feitura do texto em questão, seja que ele os imite, que
deles se afaste, seja que os misture, que os inverta, etc.86
86 Je donne peut-être à cette adjectif [hipertextuelle] un sens plus large que ne le fait Genette.
J'accepte comme relation générique hypertextuelle toute filiation plausible q'on peu établir entre et un
ou plusieurs ensembles textuelles anterieurs ou contemporains dont, sur la foi de traits textuelles ou
de d'index divers, il semble licite de postuler qu'ils ont fonctionné comme modèles générique lors de la
confection du texte em question, soi qu'il les imite, soit qu'il s'en écarte, soit qu'il les mélange, soit qu'il
les inverse, etc. (SCHAEFFER, 1989, p. 174)
87 La rapport entre index et traits ressemble à celui que qui existe entre la façade d'une maison et les
matériaux dont elle est construite: ont sait que la façade peut être trompeuse (op. cit.).
163
isoladas umas das outras, sendo a poesia justamente um dos modos de sua
interpenetração e de seu conhecimento mútuo.
O problema da relação entre poesia e sociedade remonta à concepção
sobre a literatura como produto social e expressão da civilização em que ocorre,
desde Madame de Staël, no século XIX, ao determinismo de Hippolyte Taine
(CANDIDO, 1967), e mesmo às formulações sobre a História como manifestação da
Ideia, em Hegel. O grande marco, porém, de tratamento do assunto mais próximo de
nós foi, sem dúvida, os estudos ligados ao materialismo dialético de cunho
sociológico das correntes marxistas dos anos 1960, 1970, que viram também na
forma artística a expressão das estruturas e das lutas de classes, centralizadas pela
burguesia, de um lado (a arte “de direita” ou alienada), e, de outro, pelo operariado
ou classes oprimidas (a arte “de esquerda” ou engajada): mundo bipolar, arte,
literatura e obras bipolares.
Uma das mais fortes expressões de estudos na linha do materialismo
dialético foi Georg Lukács, com o seu A teoria do romance: um ensaio histórico-
filosófico sobre as formas da grande épica, de 1965, para quem a épica seria o
ensejo de cantar vitórias e organizar totalidades (do pensamento ingênuo), de ser o
“grito poético” a redimir a derrota comunitária 89, enquanto o romance, que substitui o
canto narrativo épico, representa a narrativa burguesa por essência, tratando de um
herói esgarçado, individual, em meio a uma realidade hostil e esfacelada. Já a forma
lírica, por sua vez − que interessa a este trabalho −, realmente pouco tratada no
livro, reivindica sua importância e privilégio no que diz respeito à constituição de um
“lugar” de encontro entre a voz do eu e a voz do mundo, subjetividade e
objetividade, marcada pela vivência do poeta transfigurada na e pela poiesis.
Esse pensamento nascido em Luckács encontra eco na Palestra sobre
Lírica e Sociedade (2003), ensaio famoso do frankfurtiano Theodor Adorno, para
quem a referencia ao social revela na obra lírica algo de essencial, do fundamento
de sua própria qualidade. Para ele, o teor de um poema não é a mera expressão de
89
No contexto do pós-colonialismo americano, o intelectual Edouard Glissant evoca essa proposta de
Luckács. Para Glissant, as comunidades modelam um “grito poético cuja função é reunir a morada, o
lugar e a natureza da comunidade [...], [sendo o épico] aquilo que é gritado quando a comunidade,
que ainda não está segura de sua identidade, necessita tradicionalmente desse grito para afirmar-se
face a uma ameaça” (GLISSANT, 2005, p. 44, grifo meu). Embora tais concepções (de Luckács a
Glissant) estejam aparentemente distantes do tema aqui tratado – poesia contemporânea –, ou
apenas "transversalmente" lhe diga respeito, é inegável uma relação entre o "grito poético
comunitário" e a "co-narratividade poética", aqui proposta e trabalhada em diversas partes deste
trabalho.
167
Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da
humanidade; mais ainda, a própria solidão da palavra lírica é pré-traçada
pela sociedade individualista e, em última análise, atomística, assim como,
inversamente sua capacidade de criar vínculos universais (allgemeine
Verbindlichkeit [vínculos comuns]) vive da densidade de sua individuação
(ADORNO, 2003, p. 67).
social uma relação não destituída de contradições. Neste processo, ele acrescenta
(2003, p. 78) que "os elementos materiais, dos quais nenhuma composição de
linguagem, nem mesmo a poésie pure, é capaz de despojar-se inteiramente,
precisarão de interpretação quanto os assim chamados elementos formais".
Evocando um exemplo de como as próprias formas tradicionais líricas (e
não somente as macroformas literárias) estão vinculadas às questões sociais e às
comunidades de fala, podemos nos lembrar os casos da redondilha e do
decassílabo, dois modos paradigmáticos de divisão do verso em expressões
poéticas correntes. Sabemos que a redondilha evoca tanto expressões medievais da
poesia cortês e palaciana quanto uma poesia de expressão popular, com base numa
cultura oral que se mistura à literatura do cordel sertanejo. E que, mesmo numa
complexa (histórica) reverberação do caráter cortês, no Brasil a redondilha se coloca
muito mais do lado dessa poesia da oralidade, das cantigas populares, do cordel.
Então ela se torna fala também da gente simples, que pode ser retomada, como tal,
por uma literatura "erudita" cuja “proposta seja trazer à tona essa voz, essa vibração
popular, inclusive como "contracultura", como discurso crítico, contraideologia a uma
cultura letrada, literata. O decassílabo, por sua vez, não está dissociado dos versos
clássicos, do eruditismo técnico do soneto e da poesia que se separa das canções,
da oralidade e dos extratos não acadêmicos.
O mesmo caso se daria nos discursos das escolhas formais relativas às
mais diversas tendências, tais como as formas relacionadas à arte romântica em
contraste com aquelas relacionadas à arte clássica, ou, na América Latina, a forma
barroca que foi apropriada por muitos autores como pulsão criadora representante
do "espírito latino-americano", tomado como um ethos latino-americano; ou ainda, no
Brasil, a proposta antropofágica sobre as "formas europeias" como formulação para
arte/poesia brasílica.
Não obstante estas observações, sabemos que a questão se coloca
permanentemente devido tanto às escolhas que o escritor precisa fazer quanto a
uma "não inocência" do artista, quando ele sabe que mesmo o fragmento e o acaso,
quando cooptados no poema, apontam para uma interpretação possível. Quanto aos
lugares sorrateiros do ideológico e do contraideológico, para a necessidade de
liberar as relações entre literatura e ideologia dominante do mero causalismo,
podemos entender, com Bosi (2013, p. 248), que
169
O que vale como vivência destaca-se tanto de outras vivências, nas quais
se vivencia algo diferente, como do restante do decurso da vida, onde não
se vivencia "nada". O que vale como vivência não é mais algo que flui e se
esvai na torrente da vida da consciência, mas é visto como unidade, e com
isso ganha uma nova maneira de ser do uno. Nesse sentido, é natural que a
palavra surja na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do
uso autobiográfico. O que se pode chamar de vivência constitui-se na
recordação. Com isso, temos em mente o conteúdo semântico de uma
experiência. (GADAMER, 2011, p 112, grifos meus).
90
"El reino de las personas, o la sociedad humana y la historia, es la más alta manifestación entre las
manifestaciones del mundo empírico" (DILTHEY, 1949, p. 24).
91
Cf. também SCHIMIDT, 2012, p. 62-65.
171
92
Aqui não estou pensando num sujeito de determinação racionalista, uno, totalitário, mas como o
agente ou paciente ao qual podemos nos referir, independente de suas características particulares.
93
"L'experientia latine organise la rencontre du réel à partir d'un sujet percevant qui se confronte à ce
qui lui fait face. Alors que l'empeiria grecque consiste en um mouvement d'integration du
cheminement dans la presense" (RODRIGUEZ, 2003, p. 117).
172
espessura da linguagem. Eles formam um nó, em que cada polo remete a si mesmo
e simultaneamente ao outro"94.
A esse respeito, é fato que a experiência parece ter uma necessidade de
expressão, ela quer ser lembrada, recuperada, constrói-se como memória e abre
lugar para o testemunho de si, pulsante ou gritante na voz do poeta - expressão
manifestante sentida como destino ou fatalidade pessoal. Estamos, assim, a um
passo da concepção de experiência de Walter Benjamin (1994) − uma experiência
essencialmente transmitida pela tradição oral − a qual, segundo ele, vincula os
indivíduos da comunidade, e, tornada experiência para a coletividade, é transmitida
pelas gerações das comunidades de modo benevolente ou ameaçador, "com a
autoridade da velhice, em [forma de] provérbios; de forma prolixa, com a sua
loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos
diante da lareira, contada a pais e netos" (BENJAMIN, 1994, p. 114). Se a narrativa
da tradição coletiva se perde, entretanto, como afirma o autor de Experiência e
Pobreza, resta ao poeta reverberar em sua voz essa experiência coletiva, por vezes
como testemunha de uma aldeia perdida.
Por outro lado, se a experiência promove um movimento de apreensão,
de organização de percepções pelo sujeito que enfrenta, apreende, compreende e
organiza o mundo na caminhada (nas circunstâncias do momento histórico, de uma
existencialidade), evidentemente que é com e através da linguagem que organiza
esses sentidos.
Embora seja uma questão tratada mais adiante, é relevante trazer aqui, a
título de ampliar a compreensão do que foi dito, a concepção do "espaço de
experiência", conforme Reinhart Koselleck (2006). Discutindo o "espaço de
experiência" em contraponto com o "horizonte de expectativas", esse filósofo-
historiador aborda as duas categorias como categorias históricas, embora as
reconheça como categorias formais. Neste aspecto, diz ele, "trata-se de categorias
do conhecimento capazes de fundamentar a possibilidade de uma história. Em
outras palavras, todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e
pelas expectativas das pessoas que atuam ou sofrem." (KOSELLECK, 2006, 306,
94
"Les deux pôles du per- et du pres- se conjuguent dans la recherche des déterminations, des
possibles de l'éxistence − l'un traversant l'épaisseur du monde, l'autre l'épaisseur du langage. Ils
forment un noeud, où chaque pôle renvoie à lui-même et simultanément à l'autre.
173
experiência, porém toda experiência encontra seu nexo original e a validez que este
lhe presta nas condições de nossa consciência, dentro da qual se apresenta: na
totalidade de nossa natureza". Sobre essa relação, Gadamer (2011, p. 454), reflete
que a falta de uma teoria da experiência, mesmo em Dilthey, "faz com que essa
noção se oriente totalmente na direção da ciência, passando ao largo assim de sua
historicidade interna. O objetivo da ciência é tornar a experiência tão objetiva
[através de um aparato metodológico], a ponto de anular nela qualquer elemento
histórico", em busca da sua possibilidade de repetição e de autoconfirmação.
Gadamer lembra também que Husserl buscou esclarecer esse alijamento
da própria experiência em relação à história, em seu anseio de fundamento de
verdade sobre a própria coisa − essa idealização das ciências − através do
desenvolvimento de uma genealogia da experiência, tentando retroceder à origem
desta pela gênese do seu sentido. No entanto, para o autor de Verdade e Método, a
dificuldade será determinar até que ponto é possível um emprego puro da nossa
razão, procedendo segundo princípios metodológicos e acima de qualquer
preconceito (juízo-prévio) ou atitude pré-concebida. Ou seja: o fato de que em toda
aquisição de experiência já está coimplicada a própria idealização da linguagem.
Nesta aquisição, não está dada uma pura subjetividade transcendental do ego como
tal, pois nela já está atuante a pertença do eu individual a uma comunidade de
linguagem (GADAMER, 2011, p. 455). Importante, neste caso, é percebermos que a
experiência, enquanto coimplicação ambidestra (do lugar histórico e da "comunidade
de linguagem"), anula sua transcendência absoluta das circunstâncias, que são
marcadas inclusive por silêncio e contraste, uma questão fundamental a ser trazida
para interrogação da lírica objetiva "suspensiva".
Uma experiência traz o caráter da repetição e do isolamento, e o fato de
que pode anular, "corrigir" uma outra acrescentar-se a ela, em suma:
o fato de que uma experiência seja válida enquanto não é contradita por
uma outra experiência (ubi non reperitur instantia contraditoria) caracteriza
evidentemente a essência geral da experiência,independentemente de que
se trate de sua produção científica no sentido moderno ou da experiência da
vida cotidiana tal como vem se realizando desde sempre (GADAMER, 2011,
p. 458).
95
Num texto, o tema é estruturante, o motivo − mais restrito que o tema, porém, talvez, mais
dinâmico, iterativo − aponta para situações, topos ou tópico mobilizador, enquanto o mito diz respeito
a um elemento fundador, pertencente ao imaginário profundo coletivo (traços apolíneos/dionisíacos),
literário (Fausto; o Duplo ) ou da escritura pessoal (o Cisne, em Mallarmé; a Serpente, em Valéry).
"Deverá chamar-se tema a tudo aquilo que é elemento constitutivo e estruturante do texto literário,
elemento que ordena, gera e permite produzir o texto. [...] Em contrapartida, o motivo é um elemento
a que seríamos tentados a chamar de acidental, decorativo, se isso não fosse uma visão
relativamente simplista [...]: não há acaso num texto literário; não há simplesmente um décor
(acessório) e uma história (essencial). Preferimos, portanto conferir [ao motivo] tudo aquilo que não
176
intervém no plano das estruturas, dos princípios organizadores do texto (MACHADO; PAGEAUX,
2001, p. 90-91)
177
96
Como, ao falar sobre a questão da referencialidade (2.1.1.2) na forma poética, coloquei, lembrando
os casos bem sucedidos de Maiakovski, de Gullar e dos Beatniks: "até onde é possível aproximar da
experiência do real a linguagem poética que substancia a forma, sem perder a etiqueta do literário?"
180
97
Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acesso em 20/12/2016.
181
Tupi, or not tupi that is the question. [...] Foi porque nunca tivemos
gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era
urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do
Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os
importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida [...].
98
Como exemplos: coloquialismo, humor, intertextualidade parodística, associações surpreendentes,
condensação, fragmentação, o hibridismo das linguagens artísticas e imaginários culturais, a
elevação do popular, do primitivo e do grotesco à mesma altura do sublime poético...
182
A poesia surgida nos anos 1970 tem mais a ver com euforia e celebração,
às vezes ironia, frequentemente desencanto. Na proposição entre poesia e
vida, traço típico da geração 70, identificado já por sua primeira crítica e
antologista, Heloísa Buarque de Holanda, os poetas [antologiados]
exploraram até o limite a inextricável e sempre misteriosa sinergia entre
vida, criação e morte. [...] À exceção de Ana Cristina César, todos [Cacaso,
184
99
"MEU POVO, MEU POEMA: Meu povo e meu poema crescem juntos/ como cresce no fruto/ a
árvore nova//No povo meu poema vai nascendo/ como no canavial/ nasce verde o açúcar//No povo
meu poema está maduro/como o sol/na garganta do futuro//Meu povo em meu poema/ se
reflete/como a espiga se funde em terra fértil//Ao povo seu poema aqui devolvo/menos como quem
canta/do que planta" (GULLAR, 1991, p. 152).
185
102 “L'art pur ce sera un art de la communication directe avec l'interieur de l'âme, une sorte de lyrisme
absolu, et c'est là, profondément, ce que Baudelaire entend par spiritualisme”(LAMAITRE, 1982, p.
27).
103
A musa venal, do Flores do Mal de Charles Baudelaire: "Il te faut, pour gagner ton pain de chaque
soir,Comme un enfant de choeur, jouer de l'encensoir" disponível em:
http://poesie.webnet.fr/lesgrandsclassiques/poemes/charles_baudelaire/la_muse_venale.html. Acesso
em set/2016.
190
104 Cf. BARBOSA, 1986, p. 14, já citado acima. A concepção estética de Mallarmé irá abalar ainda
mais as relações de receptividade mesma da lírica, cujas transformações, segundo Benjamin, fazem-
se sentir desde a época de Baudelaire.
191
105 Nommer un objet c'est supprimer les trois-quarts de la juissance du poème qui est faite de
deviner peu à peu: le suggérer, voilà le rêve. (…) Évoquer petit à petit un objet pour montrer un état
d'âme, ou inversement, choisir un objet et dégager un état d'âme, par une série de déchiffrements.
(…) Il doit y avoir toujours enigme en poésie, et c'est le but de la littérature – il n'y en a pas d'autre –
d'évoquer les objets (MALLARMÉ apud LEMAITRE, 1982, p. 107, – grifos do autor)
106
Cf. Prefácio de Mallarmé a Un coup de dès.Disponível em:
https://fr.wikisource.org/wiki/Un_coup_de_d%C3%A9s_jamais_n%E2%80%99abolira_le_hasard.
Acesso: setembro, 2016.;e CAMPOS, 2006, p. 32.
192
Un coup de dés[107]:
[...]
O livro é livro quando não remete a alguém que o tenha feito, tão puro de
seu nome e livre de sua existência quanto do sentido próprio daquele que o
lê. Se o homem fortuito - o particular - não tem lugar no livro como autor,
como o leitor poderia ser aí importante? "Impersonalizado, o volume,na
mesma medida em que dele nos separamos como autor, não reclama a
aproximação de qualquer leitor Tal, saiba, entre os acessórios humanos, ele
tem lugar sozinho: feito, sendo."
Essa última afirmação é uma das mais gloriosas de Mallarmé. Ela reúne,
sob uma forma que traz a marca da decisão, a exigência essencial da obra.
(BLANCHOT, 2005, p. 335)
109
Em sua pedagogia poética crítica, Pound diz o seguinte "A incompetência se manifesta no uso de
palavras demasiadas. O primeiro e mais simples teste a que o leitor deve submeter o autor é verificar
as as palavras que não funcionam; que não contribuem em nada para o significado ou que distraem
no fator mais importante do significado em favor de fatores de menor importância" (POUND, 1976, p.
63).
200
O ferrageiro de Carmona
[...]
Dou-lhe aqui humilde receita
ao senhor que dizem ser poeta:
o ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarreia.
incorpora também seu pendor do trabalho com outras línguas, com a formulação de
uma proposição, uma paideia literário-cultural lastreado na eleição de grandes
mestres – da tradição medieval inglesa à chinesa, japonesa, e de um vasto acervo
latino – e na pesquisa metódica. Incorpora também um posicionamento radical e
incisivo, de pendor totalizante. Esta palavra não deve soar estranha ou escandalosa,
neste caso, em relação ao movimento, que a utiliza de maneira "dialética". Ao
mesmo tempo em que é rejeitada, parece ser também preconizada pelo próprio
Haroldo de Campos, como na introdução à 1ª edição da Teoria da poesia concreta
(2006, p. 9, grifo meu) – "[o Concretismo] ofereceu, pela primeira vez, uma
totalização crítica da experiência poética estante, armando-se de uma visada e de
um propósito coletivos" – e, além disso, tal pendor é reconhecido, também como um
fato contraditório, por seus críticos:
111
"Entre o poeta e a poesia inscreve-se um espaço de compromisso autodefinidor: a sua definição
será o seu fazer e este, por sua solidez pretendida, há de evitar a imprecisão (...) e a fuga(...)"
(BARBOSA, 1986, p. 112).
112
Cf. PEIXOTO, 1983, p. 42.
113
Alguns trechos representativos desse projeto de objetividade e sua metapoética: "A luz, o sol, o ar
livre/ envolvem o sonho do engenheiro. /O engenheiro sonha coisas claras:/Superfícies, tênis, um
copo de água. //O lápis, o esquadro, o papel; /o desenho, o projeto, o número: / o engenheiro pensa o
mundo justo, /mundo que nenhum véu encobre." (O engenheiro – CABRAL, 1997, p. 34 ). Ou em
Psicologia da composição – poema VI (idem, p 63.): "Não a forma encontrada/ como a concha
perdida/ nos frouxos areais/ como cabelos//[...] mas aforma atingia/como a ponta do novelo/ que a
atenção lenta,/desenrola".
205
tradição da razão formal poética de um Valéry, uma relação poética assumida, mas
evocando, além de processos compositivos da pintura (Miró, Mondrian), outros
poetas da objetividade, tais como Jorge Guillén114, e os que ele homenageia no
poema "O sim contra o sim", em Serial (1961[1997]): Francis Ponge, autor de Le
parti prisdeschoses [O partido das coisas], publicado na França em 1942, e Mariane
Moore – correspondente de Pound e apreciada por Eliot. Como os poetas
homenageados, João Cabral partilha o interesse pela objetividade das coisas e pela
assepsia poética, secura e concretude da palavra e dos objetos, e sua incisão, mas
também por uma "fala" dos próprios objetos em seus vários desdobramentos,
tendendo a abrangência e ao humor (PEIXOTO, 1983, p. 150) – a própria imagem
do novelo, de "desenrolar, desenovelar, dar voltas ao redor", muitas vezes utilizada
por Cabral e como metáfora de uma poética de desdobramento, reprocessamento
(aclarador, ressignificante, concedendo nova concretude) do objeto funciona
também como um princípio, com sua particularidade, obviamente, na poética
pongiana.
É nesse sentido que Cabral recusa e ironiza tanto uma poética da
verborragia sentimental, abstrata e confessional, quanto uma poética realizada
espontanemante, sem esforço, aquele esforço que dobra o ferro – a palavra trazida
ao território do poético –, até transformá-la no que o poeta deseja, projeta, planeja:
"que pode até ser flor, se flor parece a quem o diga". Ou, como explica Marcos
Siscar (2010, p. 290-291), em seu Poesia e Crise, uma poética pensada
arquiteturalmente, em que a figura da forma aparece como recipiente de um volume,
isto é, o procedimento construtivo precede aquilo que lhe serve como matéria para a
obra.
À lírica sentimental, abstracionista, subjetiva e verborrágica,
pressupostamente inspirada, uma "lírica diarreica", Cabral lança, portanto, sua crítica
feroz e seu humor ácido. Humor e questão que o faz associar poesia, concretude,
substância e fezes, e diferenciar o esforço concreto do descontrole, e elevá-la à
condição de qualquer outra palavra "sublime", com a diferença de que essa possui
da substância e dimensão palpáveis, como em Antiode (E), de Psicologia da
Composição:
114
Segundo Barbosa, um verso de Guillén, "Riguroso horizonte", utilizado por Cabral para epigrafar
Psicologia da composição, Fábula de Anfio e Antiode, une à ideia da "poesia pura" de Valéry a
possibilidade, aprendida com Guillén, de vincular perfeição e abertura, o espaço a ser construído por
uma linguagem, como "frágil e difícil profundidade do mundo" (BARBOSA, 1986, p. 102-103).
206
Poesia, te escrevo
agora; fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.
Não creio que, por esse caminho, a Geração de 1980 venha a construir uma
obra capaz de conduzir a poesia brasileira a níveis mais elevados – pelo
menos ao patamar a que a conduziu a Geração-60. O que temos
constatado em grande parte da produzida e reconheda até agora é uma
ainda forte influência do distante Concretismo – o que seguramente é um
caminho aberto para o fracasso de toda uma geração, pela renúncia à
criação de uma poética própria, como se exige de toda geração (LYRA,
1995, p. 127).
116
"Com vários segmentos e vertentes, estilos e tendências fundindo-se num amplo sincretismo"
(LYRA, 1995, p. 159).
209
117
"Agora todas as tradições estão franqueadas, conquanto o poema desarme a inquietação
autoproblematizadora, caracteristicamente moderna, à procura de dicções elevadas e pluralistas que
desrealizem sua matéria ao mesmo tempo que a ornamentem" (SIMON, 2013, p. 176).
118
Cf. NUERNBERGER, 2013, p. 113-115: "As variações [de cadela sem Logos] são, antes, modos
distintos de observação dos mesmos objetos, o que aliás, aproxima o poema do modo compositivo de
O cão sem plumas. As diferenças, entretanto são gritantes: se Cabral 'fraciona e rearticula
arbitrariamente' a imagem do rio Capibaribe para torná-lo 'cada vez mais concreto, como um bicho'
[palavras de Ferreira Gullar, reempregadas], Domenek renomeia os objetos – por processos como
denotação, tradução, especificação, generalização, etc. – e revela a arbitrariedade inerente à
linguagem e seu instrumento".
119
SIMON, in: CATRÓPA; NUERNBERGER; MARTIN, 2012, p. 165.
210
a flor do design
a flor do design é a
mesma,
a flor do design,
é terno furor
é terna forma e
cor (que jamais esperas
do desespero)
a flor do design é sempre a mesma
flor
(Gertrude Stein)
"Eu acho que nessa linha a rosa é vermelha pela
primeira vez em poesia inglesa por cem anos")120
120
STEIN, G. Sacred Emily (A rose)Disponível em:
http://www.phrases.org.uk/meanings/15900.html.Acesso em novembro/2016.
211
arte, que resultaria numa perda de valor estético ante uma crítica contemporânea
altamente especializada. Isto no reconhecimento de que, se a crítica vive sua própria
crise, ela ainda é um campo detentor de um discurso influenciador do olhar (crítico-
criativo, mercado, aceitação, premiação...), em relação a um objeto cuja circulação
maior ainda se dá, prioritariamente, entre seus próprios pares.
O debate tem sido posto nos termos de uma recente "volta à experiência",
ao presente, aos problemas e acontecimentos comuns, isto é, cotidianos e de todos,
e à referencialidade e à oralidade [coloquial], após um "ciclo de retradicionalização",
formalismo inócuo e sublimização estética, percebido por mais de um estudioso da
poesia surgida nas décadas de 1980 e 1990. O movimento rumo a essa
retradicionalização seria coincidente com um retraimento, um mal-estar, um discurso
de "crise" ou desconcerto da poesia, em contraposição com a mais recente explosão
de produção poética, de "afetividades coletivas" e de alternativas de publicação,
inclusive eletrônicas e artesanais – dentro das perspectivas de compartilhamento,
das trocas e afetividades sociais, da sofisticação dos mecanismos e estratégias
mercadológicas, dos tratamentos comerciais que a situação coloca. Isto justamente
num momento em que, paralelamente a esse boom, surgem interrogações sobre
uma poesia capaz de falar das demandas e angulações deste tempo, dos processos
reivindicatórios, do impacto da violência sobre todos e sobre todas as formas de
vida, das relações entre lírica, interlocução, classe e consumo... enfim, da própria
possibilidade da lírica.
Para termos uma ideia inicial da questão, Pedro Lyra, ao concluir estudo
sobre aspectos geracionais com foco na poesia por ele denominada da Geração-60,
observa na poesia de [19]80 um performatismo como "espetacularização das
formas", associando tradição às estéticas mundializadas da sociedade de massa.
Diz ele: "a [poesia] de 80, entrando em cena em plena pós-modernidade, incorporou
o performatismo de todas as manifestações estéticas vinculadas ao espetáculo
como dependentes da configuração das planetárias e informatizadas sociedades de
massa" (LYRA, 1993, p. 159).
Iumna Maria Simon, por sua vez, vai denunciar o anacronismo da
retradicionalização, enxergando nessa poesia uma situação-limite de beletrismo e
preciosismo verbal, entendendo o pluralismo contemporâneo como sintoma de
incapacidade de posicionamento frente à “catástrofe pós-moderna” e inconsistência
histórica decorrente do que seja entendido como culto, da citação de gêneros e
212
121
Simon aponta como exemplo de uma poesia de espetáculo e proliferação de desmontagens, a
poesia de Carlito Azevedo, e como essa poética blasé, de horizonte desanimado e rotina de
ninharias, a de Tiago de Melo e Ronald Polito. Já em relação aos novos impulsos de
"experimentalismo da linha gráfica e do arranjo em blocos fora de sincronia com o ritmo e a
enunciação", essa crítica aponta obras de Ricardo Domeneck.
122
Fazendo um recorte para o seu “breve e precário balanço”, Heitor Ferraz de Mello (in: REVISTA
CULT 208, 2015, p. xx), focaliza, dentre a produção de 2015, os livros com “poemas longos, quase
narrativos, quando não inteiramente narrativos”, “...que já vêm chamando a atenção há algum tempo”:
obras recentemente lançadas de Ademir Assunção, Waldo Motta, Nuno Ramos, Chacal (e de outros
não exatamente narrativos, mas com "séries" de poemas divididos em seções, como Eucanaã
Ferraz), além de Fábio Weintraub, Arnaldo Antunes, Marcos Siscar. Cabe observar que Heitor, em
seu doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, é orientando de Iumna Maria
Simon, o que pode contribuir para essa confluência crítico-discursiva.
214
126
Cf. Süssekind, 2008, passim.
127
Claude Lanzmann (1925-1985) – cineasta franco-judeu, trabalha com testemunhos orais e
imagens recolhidas sobre o Holocausto.
128
Rachel Whiteread (1963-) – escultora inglesa, cujas esculturas também são memoriais do
Holocausto.
129
Trata-se do ensaio Negativo e ornamental. Um poema de Carlito Azevedo em seus problemas
(2011), de Iumna Maria Simon e Vinícius Dantas, em que, conforme resume Suzana Scramim, "os
críticos brasileiros, autores do ensaio apontam as características encontradas na poesia de Carlito
Azevedo que os fazem julgá-la como ornamental e sem função ou, em suas palavras, negativa: [e cita
trecho do referido ensaio] 'A autorreferencialidade, rebaixada a elemento, entre, outros, de
ouriversaria, obviamente perdeu o teor crítico- metalinguagem passa a significar produção de ilusão
encadeada, mera componente de uma maquinaria neoesteticista de efeitos, sem compromisso de
219
Não produz dessa maneira o questionamento sobre aquilo que não cessa
de se inscrever, não cessa de nos escapar: a de como lidar com a relação
vital entre a crítica e a história do pensamento ocidental que a produz. Ou,
ainda: a de "como" prover de um sentido revolucionário a batalha da crítica
contra a superficilidade e a banalidade na primeira década do século XXI?
Entre o progressismo e o cinismo, há algum espaço de manobra que possa
fornecer a possibilidade da existência de uma cultura? (SRAMIM, 2012, p.
128).
revelar os elementos materiais de figuração. Não exerce a função de criticar seu veículo e refletir
sobre o fazer poético, pois agora compõe a retórica da imagem (ou da metáfora), valendo por um
espetáculo verbal e conceitualmente prolífico de figuras e paramentações sem fim. A tônica deixou de
ser posta na desmontagem das imagens, ou nas interrupções autorreflexivas, porquanto a
metalinguagem tornou-se instrumento para a produção de beleza dentro do programa esteticista do
poema – programa mesmo da vanguarda e da poesia moderna. Negatividade ornamental, pois.'"
(SCRAMIM, 2012, p. 123, nota)
220
caráter formal, do passado. Por fim, a autora de Utópica e Funcional? Sobre a crítica
de poesia e seus impasses, texto em que coloca as questões comentadas, faz uma
observação bastante coerente, que a resguarda: "Contudo, que fique dito: a poesia
de Carlito Azevedo não é a poesia brasileira, bem como esse texto não é
representativo da crítica de poesia no Brasil de hoje. São apenas tentativas, um
'fazer' motivado pela 'vontade' artística" (SCRAMIM, 2012, p. 137).
Essas críticas mostradas em termos de linhas de avaliação sobre a
poesia brasileira – as quais se esboçam como uma contraposição de paradigmas
que por pouco evitam a querela –, são visões assumidas que não deixam de
provocar interrogação sobre possíveis motivações político-ideológicas que acabam
por retesar tais posições. De qualquer modo, sabemos que a questão vai muito além
de um pêndulo, uma dicotomia ou de lados contrapostos, para adentrar nas
ambivalências e nos "espaços potenciais" do poético (performance-
realidade/realidade-teatralização/poesia-mundo/pertencimento-afastamento; o vivido
e a forja e, até, a representação da representação), nas fragilidades e
complexidades provocadas entre poesia, linguagem e expressão, numa criação que
não pode ser simplesmente enquadrada, ou cujos indícios não podem ser
subestimados quando esse for o caso, uma vez que a poesia se coloca entre o peso
secular de sua voz, a contribuição individual de cada poeta, as realidades em que
este está imerso e as demandas que a cercam.
Por outro lado, não obstante a recusa muitas vezes apressada da
questão, de se houve recentemente, ou há, uma retradicionalização no sentido de
uma pauta poética construtivista constituindo-se como uma força na poesia
contemporânea, e quais seus termos, certamente há − de maneira difusa, mas
reconhecível − a ideia de uma interrogação pelos novos termos da poesia para este
tempo, de modo que ela também seja acontecimento que, a seu modo, não fique "de
fora" nem "por fora". E esta discussão não é apenas brasileira (TODOROV, 2012, p.
20-23). Quanto à inquietação recente em poetas brasileiros, apresento, de uma
entrevista ao Suplemento Pernambuco130 a voz oportuna do próprio poeta cuja obra
tem servido de combustível/combustão à referida discussão, que parece apontar
para a questão, buscando respondê-la de maneira inesperada:
130
GOMES, Igor. Todo poeta é de oposição: entrevista com Carlito Azevedo, em SUPLEMENTO
PERNAMBUCO – Entrevistas.. Disponível em:
http://www.suplementopernambuco.com.br/entrevistas/1736-todo-poeta-%C3%A9-de-
oposi%C3%A7%C3%A3o-,-diz-carlito-azevedo.html. Acesso em dezembro/2016.
221
A fala vem colocar, por sua vez, a relação entre o poeta e o mundo/o
poeta e seu mundo e as fortes implicações desta no fazer poético. E não apenas a
relação entre poeta, linguagem e realidade, mas também entre a experiência e
expectativa do poeta e a experiência e expectativa do leitor, e as possibilidades que
esse conjunto de forças mobiliza sobre a realização poética. Uma pergunta sobre o
que o leitor espera dessa poesia, enquanto poesia, enquanto arte que pode
acalentar ou transtornar.
Tratar dessas questões na poesia é deparar-se com todas essas relações
e nuanças de relações, que acabam por ficar submersas e pulsantes dentro da
necessidade de um delineamento objetivo. Entretanto, todas elas vêm se colocar
sob as mesmas prerrogativas de um horizonte que sempre apresentou um duplo
chamado, mas que cada vez mais, recusa a ignorância, a bitola ou a indecisão.
Assim é que, dada sua importância para os caminhos da poesia atual, tais relações
e prerrogativas são trazidas à discussão (à querela?...) dessas duas categorias que
vêm sendo postas em evidência crítica na criação poética do nosso tempo: a forma
e a experiência.
222
3.1 HORIZONTES
A cor da palavra
131
Esta referência articula-se com um depoimento de Salgado Maranhão (2016, p. 37-38), segundo o
qual, Em Harvard, um jovem professor lhe disse: “Gostamos de sua poesia porque ela nos apresenta
um Brasil que não conhecíamos, não queremos poetas brasileiros que imitam nossos movimentos
literários”. Independentemente de sua ocasião, a afirmação remete ao aspecto tensivo da
particularidade-generalidade que o poeta adquire em relação a sua pátria ou à pátria que ele
pretende como sua (lugar, não lugar, entre-lugar).
234
Assim se erguem
(em meio ao tropel dos dias)
as cidades da memória:
contêineres feitos de gestos,
palavras incendidas de milagres;
tangido a barlavento
por minhas perdidas ítacas.
132
Para simplificar, cito apenas as páginas da mesma obra (SALGADO, 2009)
235
luz, que jazz, que mais que alumbra/ esculpe as esquadrias do arrebol [...], ou em
Deslimites 10 (p. 96): "eu sou a luz em seu rito e sombras/ − esse intocável brilho";
c) uma textura imagética e sensorial desta cor: imagem-pele da palavra repleta de
lírios, dias, pupilas e lambidas que nos permite associar elementos sensoriais,
estésicos ou sinestésicos, suscitando uma corporeidade, uma sensualidade
sugestiva na cor dos elementos: fogo, labaredas, rubi, ouro, silêncio rubro (mas
também o azul – este, tantas vezes nomeado), o rossio na pelagem da tigra, ou,
ainda, o corpo étnico que declara identitariamente ao mundo: "sou bem um outdoor/
de preto/ com a cara pro luar/ inflando a percussão/ do peito/ feito um anjo feliz"
(Negro soul, p. 25); "A palavra física/ em meu uivo esventrado (Sol sanguíneo, p.
217), e o sol sanguíneo desse campo florido: "auroram prímulas de sangue e
amargaridas" (p. 84, grifos meus)...
De início, essa luminiscência da cor que a palavra irradia – isto é, de
qualquer cor que palavra possa irradiar, mas que nessa poesia de Salgado remete a
cores definidas e potencializadas pela experiência do sujeito inscrito no poético -
difrata-se em dois feixes de sentido mais fortes: o do esplendor luminoso, labareda
inquieta, o ardor do fogo criador de vida; e o da corporalidade, da condição não
apenas estética, mas da própria carnalidade sensível e estésica de tal palavra
relacionada ao sujeito que lhe concede cor e corpo, o poeta. A palavra não está
descarnada, esvaziada do sujeito que a pronuncia (condensa e projeta), e o signo,
assim, passa a ter carne, sentimento, valor(es), textura. Neste sentido, o poeta
impregna essas palavras de canção e força étcnica, e de uma beleza telúrica e
ígnea, unindo o ferro ao fogo (e vice-versa), que se torna física, vibrante, potente,
dimensionalmente fálica, tal como em Deslimites 10:
[...]
e de blues a urublues
ouça a moenda
dos novos senhores de escravos
com suas fezes de ouro
com seus corações de escarro.
percussões projetadas pelo livro como luz de um novo ângulo: a memória do corpo
étnico, negro, em condição diaspórica, nas origens guardadas dos campos de arroz,
dos traços disseminados na sua poesia. Tal interpretação pode ultrapassar,
portanto, muito provavelmente, os limites do poema em questão, porém podemos
alcançá-la em sua possibilidade e amplitude, do sentido dessa poética, respaldando-
nos no título da antologia, o mesmo A cor da palavra, do qual o poema assume um
caráter ressonante, especular e espectral em e cujo sentido ético dificilmente pode
ser negado, com suas inúmeras referências: escravatura, tambores, negro soul,
autorretrato, boi de prata... ou seja, o solo atávico, a terra chã, o sol sanguíneo... –
poesia esta compartilhada com/por uma comunidade que já tece sua esperança num
território pós-mar.
Excluir tais marcas da obra de Salgado Maranhão sob a desculpa de uma
leitura fechada nos termos exclusivamente manifestos do texto é desprezar suas
evocações e mutilar sua riqueza e possibilidades interpretativas, uma vez que tal
realidade emerge justamente como aquela coloração afetiva, a tonalidade que
compõe a mediação entre as formações subjetivas e objetivas de sua poesia, tendo
como pólo o sujeito lírico (RODRIGUEZ, 2003, p. 149).
A partir destas considerações e da leitura analítica efetivada, podemos
delinear num segundo nível de compreensão que insere o poema nas questões da
forma e da experiência em relação à poética que ele representa, o fato de que nele
se estabelece uma tensão entre essas duas dimensões. Ou seja, no sentido de que
o pulsar experiencial desta poesia são as questões vivenciais nos espaços
potenciais tensivos da subjetividade e da objetividade, entre o sujeito lírico e o
sujeito historial, as quais se elevam do mínimo (pequenas agonias, horas
carnívoras) ao macro (cidades da memória, barlavento, mar existencial) através de
uma temporalidade durativa (retentiva) que permite trazer à paisagem poética uma
experiência vivida que se faz conjuntamente com os espaços de experiências
vividos (explorados poeticamente, por exemplo, no Itinerário de afetos133, e o
entrelaçamento com a experiência de uma co-narratividade que é imanente nesta
133
Nesse itinerário de afetos, encontramos o canto dos lugares de origem e os lugares marcantes,
significativos ao poeta, tais como o lugar de origem (município de Caxias-MA), às margens do rio
Itapecuru, no Maranhão; cidades como Teresina, São Paulo, Rio de Janeiro, sem contar as relações
fraternas, os amores etc, que de algum modo estão presentes nessa vida-poesia. Em Minha terra
(epígrafe de Gonçalves Dias, poeta da mesma origem local de Salgado): "Mesmo listando ao
presente/as memórias do futuro,/acabo por te encontrar,/ cada vez que me procuro" (MARANHÃO,
2009, p. 180)
239
134
Il ne s’agit pas, ainsi que toujours, de traits sonores réguliers ou vers — plutôt, de subdivisions
prismatiques de l’Idée. Disponível em:
https://fr.wikisource.org/wiki/Un_coup_de_d%C3%A9s_jamais_n%E2%80%99abolira_le_hasard.
Acesso em setembro/2015.
135
Reporto a citação de Jorge Wanderley por Luís Fernando Valente: "(A poesia de Salgado
Maranhão é marcada) 'pelo tom ático, elevado, do mais indiscutível sermo nobilis e também pela
notável consciência artesanal da palavra" (VALENTE, in: MARANHÃO, 2009,p. 406).
241
136
Pelas proposta restrita deste trabalho, foram apresentados apenas apenas um poema de cada
autor, de livros extensos e variados, porém trata-se de textos exemplificativos.
244
DIRECIONAMENTOS
Tessitura de Entrelaçamento compositivo de ---
Tensiva formas e formas, de línguas, de
remissões; temporalidades das línguas, de
Forma Palimpsestos gêneros, de registros//colagens
--- --- Discursividade
Distensiva comunicativa,
referencialidade,
simplicidade focada
(não espontânea)
--- Experiência histórica da Experiência histórica
Tensiva coletividade/ colonização das da co-narratividade
Américas; experiência subjetivda negra, marcada, por via
Experiência da historicidade da nação da participação na
literatura e na formação
político-cultural do país.
(Experiência --- ---
estética/ estésica)
Distensiva Retensões,
projeções e
mediações de
leitura
(Fonte: [Própria] SILVA, 2017)
245
Dentro das possibilidades que esses poemas nos mostram, nos termos
colocados nessa perspectiva e tomando como referência a configuração poética
realizada por Salgado Maranhão, vemos que, no poema de Simone, os elementos
estéticos em jogo exemplificam um acirramento, uma intensificação de uso e
reiteração das espessuras formais, levando-o ao seu retesamento máximo. O
poema compõe uma terceira parte do Extravio Marinho, a qual começa com um
poema que faz referência a Gôngora no título e numa epígrafe, evocando já, por si,
justamente o espetáculo barroco cultista, em sua profusão e suas volutas retorcidas
de palavras e retomadas – o que, nesta poética de reenvios, camadas e
palimpsestos, é expresso pelo pensamento que o toma como interlocução com
outros tempos, outros espaços, marcados pela própria profusão literária e formal
através dos tempos.
Assim, no poema exposto, que começa justamente por um longo título
evocativo da maneira barroca, a autora coloca em campo a metarreferencialidade
literária até atingir não só a sua história e a sua memória, mas também seu extravio,
através de uma linguagem e de uma narrativa que, ao buscar a si mesma, encontra,
por fim, sua queda no poço sem fim de um silêncio que já não é sequer elipse, é, ao
mesmo tempo, a sua infinitude e a sua perda nas ondas do mar, enroscado em suas
próprias ondas, quer dizer, suas diversas formas de morte e ressurgimento através
dos tempos ("La mer, la mer, toujours recomencée" – como diria Paul Valéry em Le
Cimetière Marin, outra evocação [alusão fundamental] do livro). Isto também a leva a
um ponto que nos faz compreendê-la já como um extremo crítico, em retesamento e
concepção que está no limiar deste horizonte, apontando para uma remissão
dramática da realidade, embora tocando seus vestígios anacrônicos/nostálgicos, em
perda e possível saudade (saudade marinheira). De outro lado, essa experiência
propriamente da escrita e da literatura, do curso de seus processos através dos
tempos, de seus impactos sobre a criação localizada num desses pontos do espaço
e do tempo, pode ser compreendida dentro da experiência cotidiana da jornada
vivencial, factual, distensa do sujeito e da própria literatura, diferente daquela
experiência densa, em Salgado, reconhecendo esta como bem mais marcada,
patêmica e vivencialmente, sendo o atravessamento do mar vital, a errância e as
relações memoriais os do próprio sujeito, em sua inserção mundanal e atávica,
como vimos.
246
direito, no âmbito de uma co-narratividade étnica. Importante notar que a própria co-
narratividade leva-nos a considerar que essa referencialidade não é uma "crença"
numa suposta transparência da linguagem poética, mas um tratamento da questão
experiencial como fato histórico, uma vez que os escritores apontados/invocados, se
se tornam simbólicos no âmbito da linguagem, isto é, não são meros signos
esvaziados desprovidos de existência social e de força histórica.
Esse entrelaçamento narrativo comum, por outro lado, conjugando uma
voz étnica conjunta, perpassa pelas escritas individuais (as quais se tornam "gritos
comunitários", ou que podem ser reivindicadas como tais), pelos padecimentos e
pela revolta subjetiva, acaba por explodir numa comunidade de vozes irmanadas,
que não discrimina as expressões artísticas nem a fala, o corpo das ruas ("chego
junto com os mano/ nossa vida"...), as quais também estão no centro da mesma
força e pulsão étnica, nos enfrentamentos que exigem "tato e tutano".
Vista comparativamente em relação à poética de Salgado, observamos
em Cuti, a distensão da forma, para uma expressão focalizada, no sentido de uma
linguagem mais direta, mais denotativa e referencial, em que se articula uma
"simplicidade" – até por "liricizar" uma linguagem das ruas −, mantendo, porém, um
foco de concisão do verso e organização objetiva dos elementos. Uma referenciação
direta das questões relativas ao negro, em sua experiência histórica renitente, torna
esta experiência da co-narratividade mais densamente marcada que no poema de
Salgado, enquanto outros aspectos de uma patência subjetiva é menos relevada.
Deste modo, com base no caso singular de Salgado Maranhão,
considerado representativamente como uma referência axial, podemos tratar não de
uma "vertente", no sentido esquemático, mas do delineamento de um horizonte que
pode restringir-se ou ampliar-se, intensificar-se ou atenuar-se, de acordo com a
perspectiva, com as especificidades ou aspectos considerados. Neste caso, a
configuração de tal horizonte se estabelece dentro de uma mobilidade, de uma
sinuosidade de enfoques e acentos, deslocáveis numa paisagem redimensionável
historicamente ou trans-historicamente, no âmbito da multiplicidade e da diversidade
que a contemporaneidade nos oferece. Também sob este prisma, poemas, obras e
poéticas podem ser consideradas como novos eixos e evocar novas obras para
aquela "relação de relevância e conjunto" (RODRIGUEZ, 2003, p. 105) que perfaz
um horizonte e compõe uma paisagem.
248
137
"Retrofit": termo utilizado na engenharia para designar uma reutilização
renovada/readaptação/restabelecimento de equipamentos considerados ultrapassados ou fora de
norma, como exemplo do pré-industrial junto com a tecnologia de ponta.
138
No livro, a disposição gráfica do fragmento corresponde a duas páginas paralelas.
139
Conforme termo de RIBEIRO NETO, 2015. Disponível em:
https://augustapoesia.wordpress.com/2015/10/09/corpo-de-festim. Acesso em setembro/2016.;
Orelha do livro Corpo de festim, 2ed. 2016.
251
quase vazia / uma coisa firmada no nada, no vácuo, fora/ de qualquer foco, no
vestígio de vulto e no/ entanto lá [...]". Desse modo, o último panóptico (ou "torre-
vigia") da poesia é a vigilância crítica do discurso acadêmico que deseja apreender
os labirintos da escritura até sua intimidade, seu self, e da qual o poeta tenta
escapar, espetacularizando tanto a objetividade quanto a subjetividade – e tornando
a própria luta um espetáculo, de modo a descobrir a impossibilidade mágica de
"desaparecer de vez", uma vez que a escritura (poética?), corpo imerso na
circunstância mundanal, é seu próprio monstro, sua mandala, seu ouroboro.
Sendo essa poesia a constituição de um projeto poético que parte do
antropobiológico, é também a constituição de uma negação desagregadora, "cínica",
no sentido nietzschiano: a negação, sem falsa consciência, do idealismo poético do
sentimental, do sublime, e do uso da poesia para a simpatia humanística; a recusa
de uma doxa da linguagem lírica, da sua face político-pragmática de formação (ao
revés, o corpo funciona claramente sob a mecânica dos sistemas), acolhimento e
enquadramento (com o "prezado leitor", com os meios de comunicação, com a
academia, com o sujeito humano); sua moral anti-cristã (como no poema ânus
humano ( . ) ônus santo, p. 86-87) e, finalmente, o próprio autoacorrentamento do
poeta, conjurando sua mandala, isto é, o eterno retorno do mesmo à impossibilidade
de fuga metafísica do corpo, distante de um telos que lhe seja salvífico. Só por essa
negação cínica, esta poesia já poderia ser pensada no âmbito de um horizonte pós
(ou mesmo anti) humanista.
Aqui, um breve parêntese explicativo. Algumas dessas propostas anti-
humanistas, estão explicitadas ou sugeridas por Peter Sloterdijk em seu Crítica da
razão cínica (1983[2012), do qual retiro dois trechos. O primeiro, relativo ao
"cinismo" de Nietzsche, acima mencionado e relacionado à proposta de Guarnieri
(no que diz respeito a [1] uma deposição do espírito poético idealista, o "mijar contra
o vento poético" e [2] um escancaramento desinibido dos mecanismos do corpo e de
seus processos biológicos no corpo dessacralizado do poético): "A autodesignação
decisiva de Nietzsche, com frequência desconsiderada, é a de um 'cínico' [...]. No
'cinismo' de Niezsche se apresenta uma relação modificada com o 'dizer a verdade':
trata-se de uma relação de estratégia e tática, de suspeita e desibinição, de
pragmatismo e de instrumentalismo [...]" (SLOTERDJIK, 2012, p. 14). O segundo
trecho insere-se na proposta do anti-idealismo que desafia as ordens constituídas,
no caso do poema, a ordem de certo intelecto acadêmico, que representa uma doxa
253
mandala de houdini
[...] como frankenstein, EU sou este poeta, sou o autor deste poema (onde o
excêntrico cientista e a brutal criatura se misturam), sou EU o prisioneiro
solitário desta cela simétrica a 35 graus centígrados (são braços e pernas,
são duas janelas) cujas paredes de células me encerram na vigília das
sensações que se enlevam à quase exaustão do estar em mim,enquanto
criador deste específico livro de poemas cujo título corpo de festim revisita a
minha própria sina de estar vivo e produtivo
[...]
pois desisto de permanecer no cio desse rossio, nesse recinto sonoro
de letras ciosas e me esquivo, insidioso, e me livro de encontrá-lo
do outro lado, no virar da página, na linha de chegada, me ausento,
austero e frígido, da cópula contigo, meu leitor (o rei que deponho do
trono da alteridade), eu me livro de você a quem dirijo estas palavras
que escrevo sem segredo e nenhum delírio, enquanto eu mesmo me
incluo (ou excluo) destas inscrições por alguma convicção oriunda das
teses, da mesma seleta baderna, da efeméride dos mais sérios intelectos,
das disputas da academia sobre esta ou aquela forma de poesia(...)
com o domínio das tecnologias avançadas, tal linguagem pode ganhar realmente
inúmeras faces e possibilidades. Diz o texto de Benjamim sobre Mallarmé, traduzido
por Haroldo de Campos em favor da causa concretista:
seu
sil
ên
cio
sil
vo
do
ce
do
sol
so
me
de
mim
un régard
onde ) ouverte (
oferta aérea
) fenêtre de l'esprit (
vacante vaga
palavra ) ivre (
intacta
ronda-me
cibernética
e assalta? )
que se torna sujeito lírico e emerge da matéria de sua poética procurando a própria
voz, o próprio corpo, a forma dessa poética. A voz que está atrás do olho da câmera
também se desalinha e sente a gravidade da clave (quer dizer, a tonalidade,
arrastando consigo um pathos que vaza pelos ângulos assumidos da objetiva, pelas
hesitações, e toca a afetividade do corpo enunciador):
olho da câmera
a cidade
pentagrama
desalinha
minhas pausas
minhas claves
graves
ao sol
da sua memória
m i l
e
m u i
t o s
o u t
r o s
r o s
t o s
s o l
t o s
p o u
c o a
p o u
c o a
p a g
a m o
m e u
Com base no que foi colocado acima, podemos considerar válidos todos
os traços apontados por Araújo, mas é preciso pensar nesse "horizonte-ciborgue" de
modo que não se restrinja às formas, estéticas e modos anacrônicos ou
consequentes do Concretismo, as quais se tornariam empobrecidas se
permanecesse no horizonte poético de uma anacronia formalista-icônica. Não é
disso que se trata, como podemos apreender da referência axial em pauta, Corpo de
festim. Trata-se, isto sim, dessa integração orgânica de realidades e paradigmas
diferentes, cujo entrechoque seja capaz de gerar expectativas no próprio limiar do
265
poético, interrogando o que seja o poético, o que seja o pathos lírico e o que seja o
próprio humano ser – então já não se trataria de um mero jogo de processos
formais. Por outro lado, não se trata tampouco de um experimentalismo de caráter
performático-subjetivista, que, enquanto horizonte, já reflete uma experiência
completamente diferente, conforme ainda veremos.
266
Título
Suspenso
sobre o livro
como um lustre
num teatro
143
Cf., acima (em 1.2.5.3 O contemporâneo) citação de F. JAMESON (1997, 45).
144
Penser: Serpent (VALÉRY, P. in: CAMPOS, 1984, p. 101-115).
270
145
Deleuze evoca três filósofos (Nietzsche, Kierkegaard e Peguy), os quais, por sua vez,
fundamentam sua filosofia em torno do pensamento da repetição (o eterno retorno,
271
sob o trabalho geral das leis [das generalizações], subsiste sempre o jogo
das singularidades. As generalidades de ciclos da natureza são a máscara
de uma singularidade que desponta por meio de suas interferências; e, sob
as generalidades do hábito, na vida moral, reencontramos singulares
aprendizagens" (DELEUZE, 2006, p. 51).
Nietzsche já dizia que o caos e o eterno retorno não eram duas coisas
distintas, mas a mesma afirmação. O mundo não é finito, nem infinito, como
na representação: ele é acabado e ilimitado. O eterno retorno é o ilimitado
do próprio acabado, o ser unívoco que se diz da diferença. No eterno
retorno, a [sic] caos-errância opõe-se à coerência da representação; ela
exclui a coerência de um sujeito de um sujeito que se representa, bem
como de um objeto representado. A repetição opõe-se à representação: o
prefixo mudou de sentido, pois, num caso, a diferença se diz somente em
relação ao idêntico, mas, no outro, é o unívoco que se diz em relação ao
diferente. A repetição é o ser informal de todas as diferenças, do fundo que
leva cada coisa a esta "forma" extrema em que sua representação se
desfaz. O díspar é o último elemento da repetição que se opõe à identidade
da representação. O círculo do eterno retorno, o da diferença e da repetição
(que desfaz o do idêntico e do contraditório) é um círculo tortuoso que só diz
o Mesmo daquilo que difere (DELEUZE, 2006, p. 95, grifos do autor).
O sentido de "remissão", por sua vez, comporta, nesse caso, uma riqueza
de acepções que se estendem do sentido de reenvio de vozes, interlocução poética
num palco de textualidades, ora no sentido de recuperação vicária ("pathecente"), de
uma relação propriamente "trágica" constituída entre o mundo da vida e a
linguagem, e que a poesia traz à tona, ou de uma referencialidade esgarçada,
147
No original: “ψυχῆς ἐστι λόγος ἑαυτὸν αὔξων”. In: HERÁCLITO. Fragmentos.
http://pt.scribd.com/doc/12892206/Fragmentos-de-Heraclito (Observe-se que os fragmentos aí não
seguem a mesma ordem geralmente adotada por outros autores).
274
148
Assim tratam os dois filósofos sobre a operação com a figura do simulacro por Pierre Klossowski:
"Já que todas as figuras que Klossowski delineia e faz morrer em sua linguagem são simulacros, é
preciso entender esta palavra com a ressonância que agora podemos lhe dar: vã imagem (em
oposição à realidade); (...) signo da presença de uma divindade (e possibilidade recíproca de tomar
este signo pelo seu contrário); vinda simultânea do Mesmo e do Outro (simular é, originariamente 'vir
junto'). Assim é estabelecida esta constelação característica de Klossowski, e maravilhosamente rica:
simulacro, similitude, simultaneidade, simulação e dissimulação. (FOUCAULT, 2006, p. 114 – grifos
meus). E PERNIOLA (2000): "O retorno às coisas mesmas é impossível porque, a partir do momento
em Deus está morto, nada mais existe de originário. A morte de Deus, que é definida por Klossowski
como 'o acontecimento dos acontecimentos', está estritamente ligada à necessidade circular do ser',
expressa na teoria nietzschiana do eterno retorno. As "coisas mesmas" já são desde sempre cópias
de um modelo que jamais existiu, ou melhor, que a morte de Deus dissolveu para sempre; trata-se de
simulacros, não de fenômenos.
275
I
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance
II
Uma antologia de poemas-
-epitáfios
III
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram
IV
Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III
V
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas
VI
Este livro
de poemas
(MARQUES, 2015, p. 9)
incrustrada na lápide, já que o que restará desse poeta será apenas seu nome, um
signo para um novo jogo de realidades e sentidos.
O círculo reiterativo de uma realidade crítica da linguagem recai então
sobre o que o poema não pode pretender alcançar, mas também o apresenta como
uma realidade efetiva que se realiza enquanto voz intempestiva que exige
continuidade de diálogo, e onde a antologia, melhor dizendo, a biblioteca (o "Livro-
biblioteca", de Mallarmé), iluminada pelo lustre, se assemelha ao teatro (como
insinuado no poema "Título", na epígrafe deste tópico): "Suspenso/ sobre o livro/
como um lustre/ num teatro".
Mas Ana Maria Marques, no livro em discussão, não se atém a esse jogo
de reflexividades. Conforme já dito antes, sua poesia questiona de maneira profunda
a possibilidade/impossibilidade de dizer da palavra, até onde vai realmente, sua
expressão, até onde ela se torna afastamento e encontro. É o signo da diferença
que promove o signo do encontro sob outros signos, digamos, interpretantes,
lugares-possíveis, "lugares-comuns", tais como um mapa, onde a compreensão, o
entendimento, quiçá o amor entre seres díspares que se amam, mas não podem
falar de amor; da aproximação/afastamento na raiz do desejo, de realidades,
temporalidades e espacialidades também díspares seja possível existir:
[...]
[...]
277
[...]
Quando enfim
fechássemos o mapa
o mundo se dobraria sobre si mesmo
e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
iluminaria os lugares
mais secretos
A última expressão dos dois últimos versos sintetiza a questão: o que está
em jogo não é o desejo, que não será apagado e continuará queimando, mas a
palavra desejo. Será ela um vazio, mera forma? O quanto ela foi capaz de expressar
ou mostrar de determinado desejo? Somos então, levados a equacionar uma
realidade pela palavra que nos obriga a encontrar, através dela, um lugar comum
num cenário em que a coisa é mediada por uma máscara: você acredita que disse,
eu acredito que ouvi, fomos lançados num lugar-em-comum fundado sobre um
abismo irremediável (trágico), o qual nos obrigará a dizer de novo, a dizer melhor, a
repetir de outro modo o que foi dito.
Pelo que foi visto até aqui, em relação a um horizonte que põe a mímesis
sob suspeita ou a recusa de modo categórico, podemos concluir que ele não se
afasta das concepções que fundamentam o horizonte mostrado anteriormente (o da
construtividade intersemiótica), por existir entre eles uma coincidência de concepção
sobre a questão da autorreferência e da antimímesis. Há, porém, alguns motivos
fortes para que não os consideramos dentro de uma mesma faixa de horizontes,
mas pertencentes a propostas diferentes.
A primeira grande diferença encontra-se justamente no fato de esta
proposta não focalizar-se numa lógica construtivista arquitetural e signo-semiológica,
de dar relevância ao fatores visuais, plástico-formais, e interfaces no limiar da
279
palavra, mas de colocar sua poética no âmbito discursivo, do verso que dialoga com
as rupturas e com sua própria crise, mas que, mantendo sua concepção de base,
em relação à forma, se orienta no sentido da forma discursiva distensa focalizada e
prosaica. É o caso bem nítido da obra de Ana Martins Marques, que apresenta um
caráter formal distenso focalizado, no sentido de que opta por uma normatividade
discursiva, e estruturação sintática regular e um registro formal simples e despojado.
Um segundo traço diferencial deste horizonte em relação ao anterior diz
respeito ao fato de que no horizonte intersemiótico, a expressão sígnica busca sua
objetividade absoluta, uma separação "sem dor" entre o sujeito e seu objeto, a
linguagem-coisa. Já no horizonte especificamente da remissão dramática, há o
tônus da subjetividade, as tonalidades patêmicas postas no ambiente da linguagem
– seja em relação à sua fissura trágica, do signo que se esvazia, presente neste,
seja em relação ao caráter pático de sua própria repetição palimpsesta, a paixão dos
textos, a paixão da linguagem, a impossibilidade de preencher o signo com o vivido.
A poesia de Ana Martins não exclui o pathos (do deslocamento espaçotemporal, do
encontro, da diferença, do amor, por exemplo) de seu pacto lírico com a linguagem.
E embora a poesia de O livro das semelhanças coloque como dominante uma
experiência focalizada (a experiência da linguagem e sua relação com o mundo; as
mediações simbólicas em dimensão crítica), ao "por em crise" a relação entre as
palavras e o mundo, também promove, na efetivação dessa krisis uma abertura para
a voz da experiência cotidiana, prosaica, do vivido, experiência dos espaços/lugares
de vivências, das relações afetivas, da apropriação pessoal de certas simbolizações
(o centauro, a sereia, Ícaro...), colocando-as sob o espaço potencial da linguagem.
O poeta Carlito Azevedo estabelece, por sua vez, um caso mais radical,
dentro deste horizonte. Vou situar a questão. Foi discutido anteriormente 149 que esse
poeta carioca, laureado com o Jabuti por seu Collapsus Linguae (1991), está no
centro de um questionamento do fazer poético atual, representado por um educado
cabo de guerra empreendido por forças críticas acadêmicas que, de um lado,
repudiam e, de outro, defendem a proposta poética que esse autor havia mostrado
até então.
Na concepção crítica de Iumna Maria Simon, por exemplo, Carlito estaria
no rol de uma "retradicionalização pós-moderna da poesia brasileira", isto é, de uma
poesia que "deu as costas aos acontecimentos" e emprendeu uma "recombinação
149
Essa questão foi discutida no tópico 2.3.3 deste trabalho.
280
D'après Grosjean
l i n g u a
g e m a
g e m a
à
m a r g e m
a
a l g e m a
a
i m a g e m
a i r a
c e m a
d a
m e n s
a g e m
p o e s i a
a
v i r g e m
v i a g e m
a
t r a v é s
a g e m a
t r i a
o u
t r a v e z
(AZEVEDO, 1991)
281
Traduzir
150
Nessas alusões a Pirandello, estou me baseando em BOSI, 2002, p. 136-143.
283
abaixo, que flagra o contexto das manifestações na Saenz Peña contra a realização
das Olimpíadas de 2016, no Rio; referências constantes à Embaixada da
Argentina...
pessoais, o poeta como que apresenta uma realidade "do autor" – o autor que agora
"está ali".
O segundo aspecto dessa preocupação em lidar com a questão do
afastamento ou da aproximação da experiência vivida e da referencialidade
histórica, em contraponto a uma "espetacularização da linguagem" (que a crítica
realmente lhe coloca), surge não mais no texto poético, mas em comentário do autor
sobre sua nova proposta poética em Livro das Postagens, publicado no Suplemento
Pernambuco de janeiro/2017, p. 3.
No comentário do Pernambuco, Carlito Azevedo fala da inserção desse
seu último livro numa escrita imprevisível e inclassificável e de inúmeros fatores que
contribuíram para a escrita do Livro das postagens, entre eles "impossibilidade de
seguir escrevendo como antes, por exemplo. A impossibilidade de combinar a
necessária sensação de 'aventura na escrita' com qualquer pré-formatado", bem
como do seu processo de escrita, uma escrita que ao começar não determina a hora
de seu ponto final, como aconteceria com alguém que escreve um soneto, em seus
14 versos, revelando também a configuração perceptível, principalmente, no último
poema, em montagem fragmental, do livro, ao falar "da [sua] consciência de que
escrever poemas está mais perto de escrever ensaios sobre a vida danificada [grifos
meus] do que dar a luz a mais um alexandrino com referencia mitológica". O poeta
acolhe esta possibilidade de escrita, ao mesmo tempo em que repudia o que ele
chama de "poema-canção", o qual, segundo ele, insurgiu-se na poesia brasileira nas
últimas décadas, na esteira da canção popular. Trata-se daquele "poema que dura
um pedaço razoável de página como uma canção dura em média 3 minutos e meio.
E, como a canção, enfeixa um sentimento e uma voz única. É o formato mais
comercial e de maior sucesso. Mas há tempos deixou de ser qualquer outra coisa
além de “bonito”, até “lindo”, pero inutil. Ao menos para o que eu quero da poesia".
Por fim, coroando essa argumentação em defesa de uma proposta de
poesia que "decifre a experiência comum" – ou que se volte para experiência comum
imprevisível, como fez a poesia brasileira do início aos meados do século XX –
Carlito propõe o tatear no escuro, rosnando outras novas formas de “narratividade,
de expressividade e de inteligibilidade, e expõe o fundamento criativo do livro das
postagens:
Ao escrever este Livro das postagens, colei na parede em frente à mesa de
trabalho, mesa de montagem, as perguntas que o poeta norte-americano
Kenneth Koch se fazia para aprovar (ou não) um poema que tivesse
287
existencialetcetera
Organizado
[A Dráuzio Varela]
Uma vigília
Realidade
localizar, principalmente, uma poética da anima urbis e da anima orbis, isto é, uma
"alma ou sentimento da cidade" e uma "alma ou sentimento do mundo".
Devemos entender, entretanto, que, se as expressões do lirismo voltado
ao cotidiano são uma conquista da modernidade, os traços de contemporaneidade
de tal lírica dizem respeito a um projeto e a um modus vivendi referido às
experiências do mundo presente, atual, perceptível no próprio referencial, nas
estruturações linguageiras e espessuras vocabulares, numa imagética referida ao
universo da atualidade, com repercussão na sua articulação metafórica, mas
sobretudo no que se refere às espacialidades, temporalidades confluentes no
presente e às concepções contemporâneas conforme já tratado em capítulo anterior.
Assim, quando falamos da anima urbis, as situamos no atual contexto das cidades
globais, quer dizer, imersas em movimentos globais de conurbação,
megalopolização, como já foi dito, vistas como cidades-corpo, cidades-signo, com
seus problemas, suas crises, suas relações e seu espetáculo fascinante. Do mesmo
modo, entendendo uma anima orbis como o sentimento/o sentir, a alma de um
mundo não apenas globalizado, mas transhibridizado, multidimensional, onde as
dimensões dos territórios empíricos, cibernéticos, virtuais, geopolíticos,
socioeconômicos, psicológicos, imbricam-se de maneira inextricável.
Como referência axial para essa discussão, são apresentados dois
poemas do poeta Hagamenon de Jesus: o sintético e incisivo "Só o momento" e o
longo "A cidade enquanto azula o tempo", componentes do livro 21 ou A cidade
enquanto azula o tempo (no prelo) e cedidos pelo autor para este trabalho, − e,
assim, não afastados do processo em curso desse contemporâneo em produção.
Conforme já foi comentado (no subitem 2.3.3), uma das preocupações
poéticas de Hagamenon está relacionada à formulação de um corpo metafórico da
linguagem – como o processo central da constituição do objeto [/dos objetos] e da
realidade no campo do poético – condizente o mundo presente, seu sentir e seu
sentido (ou falta dele). Assim, seu esforço, seja na atualização do antigo, em seus
travestimentos, seja na busca da expressão do novo, interroga em primeiro lugar
pelo papel do tempo, em suas transformações e circunstâncias, relacionando ao
espaço de sua efetivação, atualização e realizações efetivas. Assim, torna-se mais
significativa para nós a proposta dos títulos de seus livros: The problem&/ou os
poemas da transição (2009), apontando para uma estrutura de sentido de trânsito e
percurso, e 21 ou A cidade enquanto azula o tempo, no prelo, em que olha
298
só o momento, deus
de um único salto,
te dará a palavra certa
ou o silêncio, mago.
determinante do valor dessa palavra "certa", o qual deve estar preparado para
deparar-se também com irrupção do silêncio (e seu valor). A pragmaticidade e até a
ética desse sentido coloca-se sobre o fato de que só o momento, em sua
atualidade/realidade de não ser antes nem depois, torna-se determinante para a
conveniência do falar ou do calar. E o silêncio, por sua vez, torna-se este mago
conciliador que, com sua névoa, faz a mágica de suplantar ou operacionalizar o
vazio, abrindo a possibilidade, em sua espaciotemporalidade virtual, da escuta
sábia.
Por outro lado, o poema, antes, recorta o momento e distende sua
temporalidade existencial de modo incisivo ("só" o momento), ao mesmo tempo em
que o predicaliza como um deus/de um único salto. Assim, apropria-se também de
uma tonalidade crítico-irônica que percebe as nuanças totalitárias desse momento –
que pode adquirir semânticas de totalidade e de cegueira: esse caráter de
divinização nele entranhado como vontade de poder apagar tudo o que não gire em
seu entorno, que a ele não se subordine, ou seja, vontade de instaurar uma
centralidade sobre uma temporalidade que descarte passado e futuro.
É possível percebermos que o próprio termo "deus", ao cindir o verso de
modo a articular um enjambement com o segmento seguinte, ou seja, com o
próximo verso que complementa o sintagma, instaura uma ênfase extática,
ensimesmada, isto é, uma temporalidade mácron que absorve tudo ao seu redor.
Nesse entendimento, o momento torna-se presente total, torna-se um presentismo
(vide seu caráter, já apresentado), presente dilatado que o poema situa, com a
palavra "salto", rumo à estrutura do seu descolamento temporal do que vem antes
ou depois. Porém, ao mesmo tempo em que constitui sua força de omnipresença,
quebra com uma crítica avassaladora e ridicularizante sua omnipotência: deus "de
um único salto". Passamos, assim, a um segundo nível de sentido oferecido pelo
poema: o momento pode ser visto como um deus, porém, pela ambiguidade
constituída na palavra "salto", é figurado coma imagem de um deus manco,
mutilado, cuja onipotência, firmeza e beleza pode ser questionada. Essa semântica
do salto impele ao universo da indumentária, da elegância, aí destruída, aos salões,
festas, ocupações e passeios públicos, e ao campo da moda,este campo atrelado ao
consumo, ao fugaz e ao descartável, fortes características do mundo
contemporâneo. Eis por que o silêncio torna-se o reverso dessacralizante da fala e a
assombração da altivez fútil.
300
O fato de esse "deus" ser "de um único salto" evoca ainda um terceiro
nível de compreensão que reconfigura o poema em outra bifrontalidade de sentido,
uma relacionada ao universo simbólico grego, outra relacionada ao universo
simbólico bíblico utilizado pelo campo filosófico. No primeiro caso, trata-se não
apenas da simbologia do "mancar", da "falha", como tragicidade, presente na
literatura trágica grega, mas da evocação do imaginário simbólico deus manco, deus
"de um único salto", Hefaístos/Hefestos (para os gregos) ou Vulcano (para os
romanos), que foi justamente "lançado ao mundo", ao viver mundano, por sua
deficiência e disformidade. Ele, entretanto, é o deus da forja, do fazer instrumentos,
mecanismos e engenhos, bússolas, próteses, asas mecânicas, e até do criar, moldar
seres sob sua brasa e faísca, em suma, o deus da tecnologia e arquiavô do ciborgue
– que divide o lastro do imaginário contemporâneo com a simbólica de Hermes, o
deus da informação revelada e oculta (decifração, cifração e enigma), deus da cura,
do prolongamento da vida, e da comunicação/diplomacia pragmática.
Simbolicamente, tais pressupostos reafirmariam essa crítica patente à reivindicação
da palavra final pelo momento, ao revelar ainda mais do seu caráter.
Já em relação à questão do "salto" tomada da narrativa bíblica pela
filosofia, remete-nos, entre outras possibilidades, ao sentido da transposição abrupta
de domínios e situações, de sequências de pensamento, realidades ou dimensões
do conhecimento, tais como o "salto" do domínio da lógica, racional, para o domínio
da fé, religiosa. Foi o que Kierkegaard, de Temor e Tremor (1979), encontrou na
narrativa bíblica do sacrifício de Abraão152, que rompe com a lógica pela mais pura
confiança em Deus e se lança, não sem angústia, sobre o escuro, sobre o absurdo
do instante, do que só ocorre na deparação com o momentocrucial. Kierkegaard é,
justamente, que, como um dos pais do existencialismo filosófico, pensa a existência
temporal e coloca o instante sobre o paradoxo de sua absoluta presença e, ao
mesmo tempo, de sua infinita evanescência. Assim, oferece-nos também uma visão
que proporciona novas leituras sobre a questão da "dilatação" da temporalidade do
momento, conforme vista a propósito do poema: "o momento designa o presente
152
"Abraão tomou a lenha do holocausto e a colocou sobre seu filho Isaac, tendo ele mesmo tomado
nas mãos o fogo e o cutelo, e foram-se os dois juntos. Isaac dirigiu-se a seu pai Abraão e disse: 'Meu
pai!' Ele respondeu: 'Sim, eis-me aqui, meu filho!' – 'Eis o fogo e a lenha,' retomou ele, 'mas onde está
o cordeiro para o holocausto?' Abraão respondeu: 'É Deus quem proverá o cordeiro para o
holocausto, meu filho'. E foram-se os dois juntos. Quando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara,
Abrão construiu o altar, dispôs a lenha, depois amarrou seu filho Isaac e o colocou sobre o altar, em
cima da lenha. Abraão estendeu a mão e apanhou o cutelo para imolar seu filho." (GÊNESIS 22, 6-9)
301
como aquele que não tem passado nem futuro; nisso está precisamente a
imperfeição da vida sensível. O eterno designa também o presente, que não tem
nenhum passado, nem nenhum futuro, e esta é a perfeição do eterno"
(KIERKEGAARD, 1982, p. 109). Ora, um salto ao domínio do momento, como o
propugnado nos primeiros versos do poema, é um salto no próprio absurdo do
tempo, no imprevisível do que só o momento pode proporcionar enquanto ato, num
salto radical, quase irresponsável, um único lance de dados na existência.
Nessa experiência radical, tudo está entregue ao momento, porém, o
sujeito, atinado, deve aceitar o silêncio, caso a palavra prometida não lhe seja
provida – caso esse presente não lhe tenha nada a dizer, senão que o deixe à
escuta do silêncio, o qual passa a ser o demiurgo, o mago, em meio ao tempo. Quer
dizer, no fim, a submissão ao momento é uma crítica ao momento, uma tomada de
consciência de que o momento, com sua presença radical, pode nada suprir. Com
isto, esboça-se o salto propriamente irônico, que permite ao enunciador descolar-se,
desjuntar-se, de seu enunciado, e assumir aquela posição preconizada por
Agamben, e já discutida neste trabalho, acerca do contemporâneo, mas que, nesta
situação pode ser melhor traduzida nestas de palavras Terry Eagleton (2000, p. 141,
grifo meu): "somos menos sínteses esplêndidas de natureza e cultura, de
materialidade e significado, do que animais anfíbios presos no salto entre anjo e
fera".
Todas essas considerações levam-nos a entender que apesar de num
primeiro nível de compreensão, o poema aduzir ao processo criativo e à práxis da
escrita, um aprofundamento dessa compreensão mostra seu redirecionamento para
uma revelação crítica, e onde podemos até perceber certo tom mordaz, da vontade
de totalização desse momento nos termos de um presentismo cujos valores e bases
simbólicas repousam sobre o imaginário contemporâneo, e cuja pulsão pragmática é
reflexionada pela resignação (a aceitação do silêncio como fala). Deste modo,
podemos também compreender que a preocupação do seu horizonte formal e
experiencial se volta para as relações do sujeito com a espaciotemporalidade, e
suas implicações, localizando-se deste modo no horizonte de uma liricidadefáctica,
quiçá existencial.
No que diz respeito à situação do poema em relação ao quadro proposto
desse horizonte formal e experiencial, é possível compreendê-lo dentro da faixa de
uma forma tensiva, e densa, pela exploração marcada de seus recursos formais e
302
José Chagas
[...]
Azul?
Não, ainda não era o azul.
Azul?
Não, ainda não era o azul sob a ponte de Tribuzi abrindo seus dois braços
Não,
este azul
ainda não era.
304
Ainda era
só o balanço
e/ou
o maracá
de seus ventos cotidianos
Ainda era
só a boca
aberta do boqueirão
sem timbiras nem tupinambás
ainda era só o cofo de palha e ouro de nossa bela escuridão
de inocência e de mar,
sem máquinas de existir.
Era só o azul.
Meninos, eu também vi.
*
* *
[...]
E mesmo de azulejos
racionalizados,
de pura poesia vestiu-se a cidade,
e ainda é azul.
[...]
*
* *
Por isso
pode parecer estranho
que eu desça
oco
dentro deste tempo
como o sino
vazio e insaciado
da Igreja do Carmo
antes de tocar.
E direto me toque
agora puro (ou de inox)
para as encarnadas substâncias do Roxy.
305
[...]
[...]
Então constato,
que minha cidade se fez mais de versos
que de suas de várias versões,
se fez mais de cantos
que de suas pedras de cantaria.
*
* *
Eis a minha cidade,
nela já me acho.
que a carrego comigo,
306
eu a carrego comigo
porque aprendi
(com seus versos e os seus poetas):
a cidade é dentro
Devemos levar em conta em primeiro lugar, sobre esse poema, que ele,
por óbvio, não está desvinculado da cidade de que fala e a quem fala (São Luís do
Maranhão), nem em sua matéria nem em sua enunciação, uma vez que sua primeira
atuação dá-se como reflexão sobre a vida da cidade num determinado contexto –
sua compleição de quatro séculos – e como leitura para o público que participa
desse espaço, e que, neste sentido, interlocutor privilegiado em relação à história, a
certos detalhes da constituição do lugar e a certas significações vocabulares, o que
faz com que o autor sinta a necessidade de explicar, em nota, no fim do poema, que
"O verbo azular, além de se referir à cor azul, pode ter também o significado de fugir,
conforme as crianças de São Luís da minha época o utilizavam, forma e uso estes,
inclusive, registrados nos dicionários Aurélio e Caldas Aulete".
Na impossibilidadede tratar aqui do poema em seus detalhes, pelas
determinações deste trabalho, serão focalizados alguns pontos que podem
enriquecer as definições e o delineamento deste horizonte, conforme se vem
desenvolvendo. Tais pontos serão a experiência do lugar, vista pelo viés da relação
sujeito e espaço sob o fluxo do tempo, da cronotopia e da memória, e a experiência
poética intertextual como medium dessa memória do lugar.
O poema opera sob dois fluxos de progressão. O primeiro é um fluxo
histórico e cronotópico; o segundo, um fluxo memorial e experiencial-subjetivo.
O fluxo histórico e cronotópico é representado pelo elenco de seus
fundadores, personagens e situações importantes, cronotopia esta que se desloca
para a apresentação das transformações que o espaço vai sofrendo ao longo do
tempo, e, com eles, os sujeitos que o habitam, uma transformação que é
particularmente determinada pela anterior colonização guerreira, pela saga
exploratória, depois pelas novas formas de colonização e exploração, com seus
307
impactos sobre o caráter, sobre o ser dos sujeitos, de quem a voz lírica passa a ser
representante dos impactos e revezes sofridos.
A palavra "azul" é a palavra-chave em todo o poema, porque é ela que
conduz também esse duplo sentido do lugar, o lugar histórico, instalado na
cronotese (tempo objetivo e cronológico) que estabelece o fluir/fugir do tempo, as
transformações do passado ao presente, e o lugar memorial, entranhado num tempo
liso, inconsútil, subjetivo e inter/intracomunicante, apropriado pela experiência
individual e pela coletividade do lugar. Este azul é apropriado no poema em primeiro
lugar como ontológico, como uma qualidade positiva do ser do mundo, associado
imaginariamente ao celeste, ao urânico, ao alto, ao espiritual, ao claro e ao amplo (o
abraço da "ponte"), e, finalmente índice de uma harmonia entre sujeito e espaço,
cultura e natureza, além de condutor da relação com uma poesia memorial da
cidade (a ser discutida posteriomente). Mas o "azul" é também um signo histórico do
lugar, determinado pela sua valorização colonizadora-religiosa (muito bem marcada
na epígrafe do poema em questão), retratando, em frase antológica sobre os
campos do Maranhão a apreciação do padre capuchinho Claude d'Abeville: “Um sol
de fino ouro, num campo azul", transformando-se ele mesmo, o padre capuchinho,
um dos signos históricos da "Isle de Maragnan 153". Desse modo, o significado
cronotópico do azul vai delineando no poema sua ausência, a aproximação e o
afastamento dos sentidos positivos que a palavra conota, até a derrocada do azul
em azia, pela angústia imposta por uma realidade fria, fragmentária e distanciadora,
determinada pela corrosão recorrente dos interesses mercantis, econômicos,
capitalistas.
Tal compreensão pode ser acompanhada ao longo do poema, desde um
momento inaugural, originário, nesse sentido "pré-histórico", "pré-sígnico" para a
língua portuguesa, porque a nomeação do espaço se dá analogicamente, e a
expressão "azul" não é vocabulário desse espaço sem maquinários, ainda
significado pela unidade analógica da natureza. Momento histórico e língua, então,
andarão juntos: "Azul? / Não, ainda não era o azul [...] ainda era só o cofo de palha e
153
Claude d'Abeville era missionário capuchinho e entomólogo francês que participou como cronista
da missão de tentativa de fundação da França Equinocial no Maranhão, expedição de Daniel de La
Touche, Senhor de La Ravardière e do almirante François de Rasilly, Senhor de Rasilly e Aumelles.
Em retorno à França, publicou , em 1614, um relato sobre as terras do Maranhão e seus habitantes
nativos, e o fracasso da colonização francesa, com Histoire de lamissiondespèresCapucinsenl'Isle de
Maragnan et terres circonvoisines [História da missão dos padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão
e terras circunvizinhas] .
308
outro lado, pelas novas faces do capitalismo, com seu urbanismo funcional, suas
placas e outdoors, seus fastfood, sua indústria do entretenimento, e a corrosão
avassaladora, reificante, da sua vida íntima, suas inserções no comportamento, na
visão do corpo e no desejo, suas soluções para facilitar a vida, ao mesmo tempo em
que precisa destruí-la para sua própria manutenção, bem como criar novos
territórios de satisfação, novas crenças e redimensionamentos da percepção. É o
impacto dessa grande cidade, mundializada, sobre esta outra cidade, local, da
impermanência sobre a permanência. Aí, há indivíduos que não se tocam, tocam-se
sem se tocarem, desenvolvem formas de autossatisfação – um emblema
fundamental, nesse aspecto, é representado no poema pelo Cine Roxy, cinema
tradicional que, após fracasso comercial ante a chegada dos cinemas dos centros
comerciais e shoppings, passa a exibir apenas filmes pornôs: "Por isso/ pode
parecer estranho/ que eu desça/ oco/ dentro deste tempo/ como o sino/ vazio e
insaciado/ da Igreja do Carmo/ antes de tocar./ E direto me toque/ agora puro (ou de
inox)/ para as encarnadas substâncias do Roxy". Nessa nova perspectiva, portanto,
azul e azulejos se despedaçam, virtualizam-se, e o sujeito se dá conta dessa
transformação do tempo, que esgarça sua unidade, cinde as relações, e transforma
afetividade em afecção:
ante uma cidade que está "dentro" do sujeito – individual ou coletivo –, guardada por
seu corpo e seu andar, imersa nas temporalidades lisas ou retentivas de sua
memória. Esse redimensionamento parte de uma constituição da cidade que permite
tocar tanto o memorial quanto o imemorial, no sentido de que a cidade é a própria
encarnação do tempo além dela, o tempo do ser, que repousa na pedra, nos portais,
nos telhados, no óleo de baleia que escorre por entre as eras nos casarões. É este
tanto o sentido da epígrafe, de José Chagas – o poeta por excelência do tempo
imóvel, qualitativo, e dos telhados ludovicenses – quanto a orientação do poema de
Hagamenon para a origem turva, duvidosa, da cidade (que tem se tornado motivo de
infirmações e embates históricos inflamados, nos últimos anos), expressa, no poema
primeiro com a sugestividade de um tempo mítico, pelo uso do aspecto imperfectivo
do verbo ser (era...), que traz logo no início do poema, a conotação do surgimento
remoto da cidade, in illo tempore: "Eram dez naus /e eram/ cem cavalos/ e
novecentos homens, para logo/ de berço ou a bordo aprendermos/a dor de um
naufrágio!/pois também aqui veloz vida e estrangeiro destino iriam se criar/entre as
fissuras do trágico [...]", sob o mítica trágica da devoração de Chronos sobre seus
filhos, onde a temporalidade histórica engole a temporalidade mítica, que se
internaliza. É a essa cidade mítica e permanente (memorial), que a outra cidade (de
Chronos, cronológica) tem a avidez de devorar: "esta cidade outra cidade toda
cidade/ tem a ânsia de devorar: eis sua flora/ como o tempo sempre a devorar os
tempos/assim ela se faz senhora". Eis por que o poeta invoca a outro poeta a
imagem da cidade como repositório do tempo, e a poesia como repositório memorial
da cidade. Assim, se o sujeito se torna repositório afetivo da cidade internalizada ("a
cidade é dentro"), esta é figurada como uma cápsula do tempo imemorial, tempo que
deve elevar o sujeito acima do tempo (histórico).
Analogamente, a poesia dessa experiência torna-se medium da memória,
uma poesia que adquire um papel xamânico155 (um xamã provecto: "Meninos, eu
também vi!", verso que retoma intertextualmente o I-Juca-Pirama, de Gonçalves
Dias) capaz de evocar o tempo do ser – tempo encarnado na louça "azulírica" da
cidade, em suas ruas antigas, fontes e becos, crepúsculos e pedras –, e fazer com
que os mortos falem. É uma poesia que assume, pois, um duplo papel relativo ao
papel da memória: o papel de repositórios escritos, lugar de armazenamento da sua
155
Cf. ASSMANN, 2011, p. 193: "Eles [os poetas] são xamãs e mantêm uma conversa permanente
com as vozes dos ancestrais e dos espíritos do passado".
311
turvoturvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menosmenos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
[...]
Que imporá um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa dojantar sob uma luz de febre entre irmãos
312
[...]
É bem verdade que, conforme já foi dito em tópico anterior, com João
Alexandre Barbosa (1986), a intertextualidade escapa ao controle e às
intencionalidades do autor, porque está aberta no espaço da leitura e da cultura,
além de que o texto é marcado pelas circunstâncias históricas e pelos sentidos que
o leitor lhe imprime. No entanto isso não impede postularmos certos
direcionamentos que essa textualidade adquire. Assim, compreendemos que existe
uma diferença entre a intertextualidade proposta no poema de Hagamenon de
Jesus, a qual se insere de maneira cabal neste horizonte, e a intertextualidade
praticada de maneira geral num horizonte intersemiótico (e simulacral). Enquanto
nestes a intertextualidade assume a proposta da metarremissão e da autorremissão
para o próprio mundo dos textos ou da linguagem, na intenção de reiterar
justamente sua condição sígnica, semiótica, do texto como signo interpretante de
outros textos-signos, a linguagem como interpretante da linguagem, ou de acentuar
o processo literário como um papel formal-simulacral (a literatura nasce da literatura
que nasce da literatura...), numa proposta como a apresentada em A cidade..., os
textos têm essa experiência da cidade como alvo, como já foi dito, servindo de
medium (ars), de mediação para a experiência do lugar ou de potência (vis) para a
memória efetiva do lugar que aí guarda seus vestígios e reminiscências. Se o lugar
pode ou não ser alcançado, isso não é colocado como proposta da sua pura
virtualidade como signo, porque permanece como animainteriorizável, como
experiência vivida, nomeação e memória – a ser "recontextualizada" (SCHAEFFER,
1989, 144).
Assim, chegamos à questão de como essa poesia pode contribuir com a
compreensão e o delineamento deste horizonte da liricidade fáctica, em que a
facticidade, o ser do homem se depara com este mundo prosaico e efetivo, e se
torna mundano, cotidiano, histórico e pragmático, e sua poesia precisa levantar-se
de manhã cedo, tomar café e pegar seu ônibus sob os vidros das janelas
intranquilas. A poesia precisa efetivamente transar, masturbar-se e pegar táxi,
perceber e sentir o que o momento tem a dizer, falar ou calar-se diante dele quando
for preciso ouvi-lo, ou simplesmente ter o discernimento de esperar o momento
conveniente. Trata-se, portanto, de uma experiência da jornada e do viver diário, da
experiência do seu lugar e do seu tempo cotidiano, como nos casos representados
pelos dois poemas apresentados de Hagamenon de Jesus, assim como dos demais
mostrados neste horizonte, configurando experiências distensas cotidianas.
314
[...]
156
Como no caso do poema em epígrafe, em cujo título Miró faz uma alusão à obra, não por acaso,
autobiográfico, do poeta chileno Pablo Neruda, Confesso que vivi (1974), bem como à canção O Leão
(1970), do poeta e compositor brasileiro Vinícius de Moraes, e a tantos outros artistas brasileiros (aqui
no meu canto, canto Zeca Baleiro, Fagner, Djavan, Rita Ribeiro, Reginaldo Rossi, Chico Science,
Cazuza e Raul vivos na memória.
.
317
,
(FONTE: REGAZIO, 2017)
157
Disponível em: https://antologiagengibre.files.wordpress.com/2017/02/gengibre-dcphm4.pdf.
Acesso: maio/2017.
318
De Muribeca ao centro
[ * * *]
botecos na Luz:
putas
homens esperando mulheres
para um sexo relâmpago
espermas por 10 reais
beijos com gosto de torresmo
cocaína e Sula Miranda
realidade. Daí que seu lirismo torna-se expressivo das próprias mazelas e dos
achaques mundanos, do corpo social dilacerado, discriminado, insatisfeito, e adquire
a feição da experiência vivida e do relato testemunhal, na linguagem ao mesmo
tempo bruta, escancarada, libertina, de um "sermo vulgaris", sem abandonar a luz
sensível que redime essa experiência – como podemos ver reafirmada nestes
recortes:
158
Para diferenciar a performance na concepção de Zumthor para aquela faceta pragmática e
linguístico-semiológica concebida no contexto do pós-modernismo (da qual trata Krysinski, 2007),
estou chamando a primeira de performance textual, e a segunda – de Zumthor – de performance
vital/vitalista, por se tratar de uma performance que se realiza por meio do corpo, gesto e voz no
espaço do mundo da vida, e relacionada à tradição da cultura oral.
322
(Fonte: www.youtube.com/watch?v=MTrMpBqWNfU)
É desse modo que a poesia de Miró pode ser colocada como uma
referência axial, no centro desse horizonte poético experiencial vitalista-performático.
Na configuração deste horizonte, no entanto, precisamos relembrar e levar em conta
dois fatores. O primeiro é que, como no domínio da cultura, na poesia não se pode
159
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MTrMpBqWNfU. Acesso: novembro/2015.
324
160
Não podemos ignorar que tal pseudônimo, Cavalodada, utilizado por Reuben para os seis volumes
do seu libreto "alternativo" Siga os sinais na brasa longa do haxixe (2015-2016), em prosa/experiência
poética, remete de imediato à experiência dadaísta (Dada, "cavalinho"), portanto sugerindo uma
proposta de retomada da tradição vanguardista que atua entre o experimental, a ironia da arte por
outros construtos, e o haxixe da revolta vital.
328
4 CONCLUSÃO
como theatrum mundi. Daí que a sua remissão dá-se entre cartografias, alegorias e
espessuras intertextuais que envolvem suas realidades em redes de escrituras, de
significantes, simulações, ordens discursivas (campos tensivos), ou reiterações
simulacrais. Nele, a poesia e a tradição poética retorna como reatualização, re-
petição via sua retomada crítica, sua retextualização. Podemos, então reafirmar que
a intertextualidade e a hipertextualidade dentro deste horizonte é primordialmente
um fenômeno metarremissivo ao próprio corpo da poesia, da linguagem ou do
discurso que se revela por meio desta. O quarto horizonte, delineado como sendo da
“liricidade fáctica", que traz como referência dois poemas de Hagamenon de Jesus,
"Só o momento" e "A cidade enquanto azula o tempo", volta-se para uma poesia da
efetividade e da experiência do dia a dia prosaico, do prosseguir cotidiano
resignado, iluminado e/ou revoltado, ou seja, na referencialidade dos espaços de
vivência das realidades subjetivas e objetivas, tidos como tais e potencializados
poeticamente, com seus impactos, achaques, seu gozo eventual e suas vibrações
existenciais, numa lírica de linguagem tendente ao teor denotativo, que reúne
consciência formal, simplicidade e comunicabilidade, de tal modo que, neste caso, é
exatamente a facticidade que vem ampliar seu lirismo para os espaços e as
temporalidades empíricas, do acontecer histórico efetivo, isto é, que o complexifica
para além da mera reflexividade, da recordação, da proteção e da introspecção
meditativa. Importante notar que este quarto horizonte concebe os fenômenos
intertextuais e hipertextuais primordialmente como fonte de um memorial que
resgata tempo, espaços de vivências e afetividades, isto é, de um armazenamento
memorial e possibilidade de conversa com o passado evocado, que abre nos textos
suas vozes, mundos e frestas. Finalmente, no "horizonte do lirismo vitalista-
performático", exemplificado pela poesia do pernambucano Miró da Muribeca, temos
uma lírica ao mesmo tempo sensível e anárquica, da forma espontânea e dissoluta,
hiperagregadora, coloquial e visceral, de cunho alternativo e "marginal", que não faz
separação entre poesia e vida, arte e realidade, portanto, de teor vitalista (a vida
escancarada em sua vivência/sobrevivência diária, em geral marginal, dissonante,
anárquica, "maldita" e imprecativa) e testemunhal das mazelas, misérias e
contradições sociais, daí seu apelo, muitas vezes, a um universo grotesco, delirante,
libertino e desregrado, como modos de contraposição ao proceder social hipócrita e
ao discurso metafórico-sublime-eufemístico. Este horizonte, não raramente, integra
formas típicas de outros horizontes sob o seu olhar "guarda-chuva" – mas de força
333
realidade que essa contemporaneidade nos traz, isto é, que tal enriquecimento é
carreado por esta aguda e incontornável experiência, mas, da mesma forma que, no
âmbito formal, os horizontes têm se apresentado dentro de formas já historicamente
solidificadas, ainda que comumente haja interpolações destas formas. Não à toa,
agora e cada vez mais, faz-se a convocação, tanto do lado da crítica quando do lado
dos poetas, à lírica, para que se volte para os quadros da experiência vivida, de
reaprender a lidar com referencialidade, como forma de recuperação de sua
vitalidade, uma vez que as práticas formalistas que o pós-modernismo prometia
exaurem-se nelas mesmas, e o mundo digital e seus suportes tornariam brincadeira
de criança o que a poesia teria a oferecer, caso olhasse apenas este caminho.
Deste modo, nossa atual poesia pretende atingir dois alvos: ser a poesia de um
tempo presentista, tal como foi discutido no trabalho, oferecendo a ele justamente o
que ele pede, como seu aliado pragmático; e renovar seu próprio corpo, sua voz,
ante uma realidade em polvorosa, com suas novas faces, sua reivindicações sociais,
políticas de gênero, de aceitação das diferenças, de graus exponenciais de
violência, com o câncer da corrupção em todos os níveis, do massacre diuturno dos
mais pobres do país e do mundo, os novos fluxos migratórios mundiais, diásporas
de refugiados, e, mais recentemente, com o retorno assustador do espectro das
bombas mundiais. A poesia tenta, e precisa (re)encontrar aí sua voz, para ter algo a
dizer fora do umbigo, mesmo atuando sob um pacto cuja aliança não é exatamente
com a história.
Há também o fato de que essa poesia, nos novos contextos, estende seu
olhar para o mundo numa renovação da Weltliteratur – não necessariamente num
sentido do universal, nem da base humanista que esse termo carrega, mas no
sentido da literatura em circulação mundial e que se torna mundializada de um modo
mais prático e efetivo. Não à toa, uma das referências bibliográficas da qual foi
colhido um depoimento de Salgado Maranhão, e que respaldam este trabalho, tem
justamente, por título Poesia na era da internacionalização dos saberes: circulação,
tradução, ensino e crítica no contexto contemporâneo. É uma publicação que retrata
o que a poesia (com a literatura de um modo geral) já vem colocando em prática em
níveis intensos. Compreendemos, então, que o local aspira, mais do que nunca ao
mundo, e os meios digitais, a web, com seus diversos instrumentos e redes
proporcionou meios para que na mesma velocidade e oportunidade que o mundo
chegue ao local, o que é local chegue ao mundo, embora que as relações e a
337
recepção possam não ocorrer da mesma maneira. Além disto, é inegável que tem
ocorrido uma frequente rede de intercâmbios e encontros entre escritores num nível
mundial, e uma frequência de línguas estrangeiras (inglês, alemão, francês,
espanhol), obras de poetas brasileiros, que as utilizam em geral como recurso
semântico desse trânsito mundial, como traço de uma experiência simulacral da
linguagem (horizonte da remissão dramática e simulacral) e/ou dos índices de
prestígio que daí possam advir. No entanto, trata-se de uma poesia/literatura que
não constitui horizontes estranhos, mas pelo contrário, podem ser compreendidos
dentro daqueles aqui propostos. Por outro lado, as leituras poéticas realizadas a
propósito desta tese e da formulação desses horizontes têm mostrado que esse
olhar "Weltliteratur" é um olhar que se dirige ainda fortemente para a literatura
européia, como literatura mundial, e, agora mais frequentemente para a literatura
norte-americana – no rastro de herança da Language Poetry e de Gertrude Stein –,
com alguns intercâmbios afetivos com alguns países da América Latina (mais
comumente, com a Argentina), para quem, no geral, na sua profundidade e no
sentido de uma "descolonização", o Brasil ainda vira as costas. Um fato promissor a
ser admitido, neste cenário, é trabalhado por Luciana de Leoni, em Poesia e
escolhas afetivas (2014), pesquisa sobre a atual poesia do Brasil e da Argentina,
que apresenta como fenômeno de revitalização da poesia contemporânea, pós-
1990, a formação de “agrupamentos afetivos” baseados em “escolhas afetivas”,
mobilizados em torno de projetos de publicação, conforme um critério que “tanto
surge na experiência do convívio, quanto opera na formação de grupos, na
organização de coletivos de produção e nos mecanismos de consagração e
visibilidade, através das revistas, editoras especializadas, oficinas, encontros”
(LEONI, 2014, p. 27). De qualquer modo, são fatos que alicerçam as novas
possibilidades de interação, modos de produção poética e meios de publicação de
uma poesia que fundamenta os horizontes propostos.
Em relação às suas perspectivas de contribuição, este trabalho espera
ser válido para o aprofundamento da compreensão não apenas da situação dessa
poesia no contexto contemporâneo, e das próprias circunstâncias do contemporâneo
em si, em que nos constituímos como seres de relações, espacialidades,
temporalidades e linguagem(ns), mas também para compreender o ser da poesia
hoje, na discussão dinâmica de seu ato criativo e criador, das faces que apresenta
às expectativas de leitura e, por que não dizer, de seu trânsito nos mais diversos
338
setores. Tudo isso tem a ver com essa força dos horizontes propostos e discutidos e
com as concepções mais profundas que os lastreiam. No sentido acadêmico, dos
estudos poéticos e literários, almeja também ampliar a visão das próprias categorias
e possibilidades de abordagem, redimensionando as costumeiras perspectivas de
análise, dando-lhes – sem abandonar critérios – flexibilidade e abertura para que
explorem nuances, espessuras, "rugas", instâncias liminares, e suscitem, deste
modo, novos caminhos para a compreensão de um objeto como a poesiadentro de
um leque de possibilidades. Acrescentemos nessa perspectiva o fato de que os
enfoques dos horizontes em si, possibilitam trazer a eles suas prerrogativas e
princípios formativos próprias de sua visão e de sua evocação teórica/paradigmática,
ampliando o horizonte maior de compreensão, bem como, por outro lado, a
possibilidade de abertura daquele ponto de vista, tratado na formulação de um
quadro-síntese da forma e da experiência, que seja coerente e consistentemente
operacional, acerca dos horizontes históricos da experiência e da expectativa, no
sentido de que a condição da experiência já não se torne exclusiva para
considerarmos os processos criativos que se nos apresentam. Ainda no sentido das
expectativas de contribuição, este trabalho apresenta à comunidade leitora e à
recepção da poesia brasileira deste momento um rol de caminhos, poéticas, autores
que perfazem uma riqueza insuspeita e muitas vezes desconhecida nos mais
diversos ambientes em que nossa poesia mais recente deve estar presente, ser lida,
apresentada, "posta em crise". Por fim, conforme foi proposto desde o seu início,
este trabalho espera constituir um instrumental operativo sobre noções fundamentais
de aproximação e interpretação dos corpos, gestos e vozes das poéticas
contemporâneas, dentro das possibilidades de sentido que o enigmático e o
imprevisível nos permitirem alcançar.
É sua ocorrência no corpo da linguagem e sua postulação de um mundo
do texto ante um mundo vivido ou vivenciável que insere essa poesia atual nas
dimensões espaciotemporais, formas e experiências que elaboram horizontes diante
dos quais podemos nos postar como pessoas reais, efetivas e afetivas. Comemos,
expelimos, sofremos os revezes do país em que habitamos e do tempo inexorável
do qual não podemos fugir, constituímos ou não família e trabalho, sofremos
injustiça e solidão, mas onde podemos construir nossas próprias temporalidades,
nossa outra localização: ampla, crítica, insuspeita, insatisfeita. É deste mundo e
deste país que a poesia se torna contemporânea, mesmo quando o contemporâneo
339
troca passos ou se desgarra para além ou aquém de nós. Com isto, fica aqui
também o registro de que esta tese se estabelece, desde o seu início, sobre a
admissão de sua abertura e incompletude, na consciência de que, se o fenômeno
poético é imprevisível e heteróclito, o contemporâneo é o instante que se esvai,
levando consigo as certezas. Nessa consciência, é que esta tese propõe que essa
larga lírica imprevisível, mas constituída, aqui tratada, constrói suas faces e seu
sentido sobre o potencial da contemplação e da construção mútua, porque ela nos
compreende, a nós, seus leitores, no contemporâneo fugidio que impulsiona a
deslocar-se para outro espaço − onde já esteve, ou já está.
340
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