TESE Antonio Aílton Santos Silva

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 354

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Antonio Aílton Santos Silva

MARTELO E FLOR: Horizontes da forma e da experiência


na poesia brasileira contemporânea

Recife
2017
ANTONIO AÍLTON SANTOS SILVA

MARTELO E FLOR: Horizontes da forma e da experiência


na poesia brasileira contemporânea

Tese de doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal de Pernambuco, para obtenção do
título de Doutor em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Lourival Holanda.

Recife
2017
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204

S586m Silva, Antonio Aílton Santos


Martelo e flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira
contemporânea / Antonio Aílton Santos Silva. – Recife, 2017.
353 f.: il., fig.

Orientador: Lourival Holanda.


Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Artes e
Comunicação. Letras, 2018.

Inclui referências.

1. Poesia brasileira contemporânea. 2. Forma poética. 3. Experiência. 4.


Espaçotemporalidade. 5. Horizontes de compreensão. I. Holanda, Lourival
(Orientador). II. Título.

809 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2018-25)


Dedico esta tese-ensaio às minhas filhas, Ana Clara e
Ana Letícia e ao meu filho, Lucas Benjamin, os quais sob
horizontes de um outro tempo e novos espaços, hão de
construir caminhos cada vez melhores.
AGRADECIMENTOS

A Deus, sopro vital & Temporalidade sobre todas as versões dos martelos e
dos girassóis perambulados.

A Tereza Martins, em todos os momentos, coragem e força.

A cada um dos professores de minha longa e espinhosa trajetória, cujos


rostos o tempo leva, mas que se atualizam a cada instante que subo em seus
ombros.

A Lourival Holanda, meu orientador, pelo acolhimento gentil e pela


confiança, ao longo deste doutorado.

Aos professores do Doutorado em Teoria da Literatura da UFPE,


especialmente, além de Lourival, Anco Márcio, Roland Walter, Lucila Nogueira,
Alfredo Cordiviola, Vicente Masip, Maria Cristina Hennes Sampaio, Ricardo Postal.

Ao Professor César Giusti, que me estendeu sua mão fraterna e sua


amizade.

Ao apoio do corpo técnico do curso, especialmente Jozaías e Diva.

Aos amigos que se tornaram irmãos das lutas e do coração, de quem Recife
tornou-se ponte e poesia, bem como a tantos outros da jornada: Ricardo Nonato &
Thaís Rabelo, Fabiana Campos, Cassiana Grigoletto, Patrícia Tenório, Suelany
Mascena, Rosana Teles, Michael Iyananga, André Santos, Fernando Ivo, Alisson da
Hora, Vinícius Gomes, Cilene Santos...

A Hagamenon de Jesus, pela revisão do texto com presteza e alegria, crítica


e argúcia.

A todos quantos, de algum modo, contribuíram para que este trabalho


chegasse à sua realização final, seja com um gesto de acolhimento ou auxílio, seja
com uma indicação bibliográfica fundamental, seja com uma crítica para sua
melhora e ampliação de perspectiva.

À Secretaria de Educação do Estado do Maranhão – SEDUC/MA, por seu


apoio, que viabilizou minha estada em Recife e o cumprimento desta tese.
Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.

(João Cabral de Melo Neto. O


ferrageiro de Carmona)

Rose is a rose is a rose is a rose

(Gertrude Stein)
"Eu acho que nessa linha a rosa é vermelha
pela primeira vez em poesia inglesa por cem
anos"

a flor do design

a flor do design é a
mesma,
a flor do design,
é terno furor
é terna forma e
cor (que jamais esperas
do desespero)
a flor do design é sempre a mesma

flor

(Hagamenon de Jesus)
“Procuro minha própria história na singularidade do
meu objeto; e ele encontra em mim, como em
prospectiva, a sua. Encontra uma paixão: a minha; aquela
em que meu discurso conseguirá, talvez, comunicar à
minha volta.”
Paul Zumthor

“Quando todo mundo se deixa levar sem refletir pelo


que os outros fazem e acreditam, aqueles que pensam se
encontram a descoberto, porque sua recusa em se juntar
aos outros é óbvia e torna-se um tipo de ação.”

Hanna Harendt

« On se soucie de ce par quoi l'art déborde l'art et


l'infinitise. »
[Preocupamo-nos com aquilo pelo qual a arte transborda
a arte e a infinitisa.]

Michel Deguy
RESUMO

Este trabalho parte do contexto difuso e multifacetado da poesia brasileira


contemporânea, e da interrogação de suas faces e de seus rumos, para postular
cinco horizontes que, podemos considerar, a têm orientado. Para tal proposta, toma
como base as configurações formais e experienciais inscritas nessa poesia e as
perspectivas de temporalidade e espacialidade que dimensionam tais configurações.
A consecução desta proposta segue uma linha hermenêutica de caráter
transdisciplinar, recorrendo, para seu fundamento, à teoria da lírica, à crítica da
poesia contemporânea e a pressupostos filosóficos, culturais e sociocríticos, na
perspectiva de abordagem das relações entre vida e poesia, linguagem e
afetividade, conforme alguns aspectos da proposta do "pacto lírico", de Antonio
Rodriguez. Por poesia contemporânea brasileira foi entendida, prioritariamente,
aquela produzida por poetas brasileiros, de regiões e extratos editoriais diversos,
publicada a partir da década de 1990, até este momento. As obras selecionadas,
estudadas e discutidas foram compreendidas como casos representativos desta
poesia, num rol de escolhas possíveis, mas que projetam concepções e realizações
capazes de configurar dimensionamentos diferentes, bem como de se constituírem
como "referências axiais" no delineamento dos horizontes perspectivados. São
colocados como referências axiais poemas e livros dos seguintes autores: Salgado
Maranhão, Alexandre Guarnieri, Ana Martins Marques e Carlito Azevedo,
Hagamenon de Jesus e Miró da Muribeca, convocando-se, ainda, obras de outros/as
autores/as, que se colocam como complementares à discussão. A tese foi dividida
em duas grandes partes, a primeira, com dois capítulos, faz um levantamento teórico
e ao mesmo tempo trans-histórico, centralizado nas categorias de tempo e espaço,
forma e experiência, as quais são tomadas como fundamentos e dimensões
configurativas, delineadoras dos horizontes. A segunda parte foi direcionada para o
estudo e análise das obras e para o delineamento dos horizontes que as
perspectivam. Tal delineamento coloca em evidência a importância das dimensões
da forma e da experiência na percepção e apreensão, inclusive pática, dos textos
poéticos, enquanto pactos líricos. Evidencia-se, por outro lado, a importância dos
direcionamentos tensivos e distensivos de tais dimensões para que, a partir das
definições e parâmetros destes horizontes, se ofereça uma ferramenta de análise e
critica que operacionalize uma melhor compreensão da poesia brasileira atual.

Palavras-chaves: Poesia brasileira contemporânea. Forma poética. Experiência.


Espaçotemporalidade. Horizontes de compreensão.
ABSTRACT

This piece of work is based on the diffused and multifaceted context of Brazilian
contemporary poetry and interrogation of its facets and directions to postulate five
horizons, such as considered, and which have oriented this work on the formal and
experiential configurations in which they are inscribed and in the perspectives of
temporality and spatiality which gives them proper dimension. The achievement of
such a proposal follows a hermeneutic line of a transdisciplinary character, recurring,
for its foundations, to the lyrical theory, to criticism of contemporary poetry and
philosophical, cultural and social-critical presumptions in the perspective of the
approach on the relations between life and poetry, language and affectivity,
according to some aspects of the proposal of the "lyrical pact", of Antonio Rodriguez.
Thus, contemporary poetry was understood primarily as the one produced by
Brazilian poets from regions and diverse editorial extract, published from the decade
of 1990 up to the present time. The selected works, studied and discussed, were
understood as meaningful cases of this poetry in a variety of possible choices, but
which project conceptions and achievements capable of configuring different
dimensions, as well as constituting themselves “axial references” in the sketching of
the horizons prospected. The poems and books included as axial references belong
to the following authors: Salgado Maranhão, Alexandre Guarnieri, Ana Martins
Marques e Carlito Azevedo, Hagamenon de Jesus and Miró da Muribeca, convoking
in the discussion works by other authors who place themselves as complementary.
The thesis was divided into two large parts, the first of which with two chapters
makes a theoretical survey and at the same time trans-historical, centered in the
categories of time and space, form and experience, which are taken as fundamental
and configurative dimensions that outline horizons. The second part was directed for
the study and analysis of works and for the outlining of the horizons which prospect
them. Such outlining puts in evidence the importance of the dimensions of form and
experience in the perception and apprehension, including the pathos of the poetic
texts, in the sense of lyrical pacts. It puts into evidence, on the other hand, the
importance of tensional and distensive directions of such dimensions so that,
beginning from the outlining and parameters of these horizons, is to offer a tool for
analysis and criticism to better operate comprehension of today’s Brazilian poetry.
Key-words: Contemporary Brazilian Poetry. Poetic form. Experience. Spatiality-
temporality. Horizons of Comprehension.
RÉSUMÉ

Ce travail part du contexte diffus et multiforme de la poésie brésilienne


contemporaine et de l'interrogation de ses visages et de ses directions, pour postuler
cinq horizons que, l'on pourrait considérer, l'ont orienté. Pour cela, il est basé sur des
configurations formelles et expérientielles inscrites dans cette poésie et les
perspectives de temporalité et de spatialité qui dimensionnent ces configurations. La
réalisation de cette proposition suit une ligne herméneutique de caractère
transdisciplinaire, en recourant à la théorie du lyrisme, à la critique de la poésie
contemporaine et aux présuppositions philosophiques, culturelles et sociocritiques,
dans la perspective de l'approche entre la vie et la poésie, langage et affectivité,
selon certains aspects de la proposition du "pacte lyrique", d'Antonio Rodriguez. On
entend par poésie brésilienne, en premier place, celle produite par les poètes
brésiliens, de différentes régions et extraits éditoriaux, publiée depuis les années
1990 jusqu'à ce moment. Les ouvrages sélectionnés, étudiés et discutés ont été
compris comme des cas représentatifs de cette poésie dans une liste de choix
possibles, mais de manière que ses conceptions et réalisations soient capables de
configurer différents croquis, ainsi que d'être constituées comme «références
axiales» dans la délimitation des horizons perspectivés. On considère comme des
références axiales les poèmes et les livres des auteurs suivants: Salgado Maranhão,
Alexandre Guarnieri, Ana Martins Marques et Carlito Azevedo, Hagamenon de Jesus
et Miró da Muribeca. Des travaux d'autres auteurs sont, aussi, considérés
complémentaires à la discussion. La thèse a été divisée en deux parties principales.
La première partie, avec deux chapitres, faisant un sondage théorique et à la fois
transhistorique, centralisé dans les catégories de temps et d'espace, la forme et
l'expérience, qui sont prises comme fondements et dimensions configuratives,
délimiteurs d'horizons. La deuxième partie a été consacrée à l'étude et à l'analyse
des travaux, et à la délimitation des horizons qui les envisagent. Un tel schéma
souligne l'importance des dimensions de la forme et de l'expérience dans la
perception et l'appréhension, même pathique, des textes poétiques comme des
pactes lyriques. D'autre part, l'importance des directions tensives et directions
distensives de telles dimensions est démontrée afin que, sur la base des définitions
et des paramètres de ces horizons, un outil d'analyse et de critique soit offert pour
permettre une meilleure compréhension de la poésie brésilienne actuelle.

Mots-clés: Poésie brésilienne contemporaine. Forme poétique. Expérience.


Spatiotemporalité. Horizons de compréhension.
LISTA DE QUADROS

Quadro 01 - Quadro 01: Especificidades configurativas


das categorias da forma e da experiência no poema ........ 223
Quadro 02 - Três poemas exemplares em seus direcionamentos ........ 244

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 - Poesia e espaço gráfico no objeto-livro ............................. 45


Figura 02 - Disposição comparativa de algumas obras ....................... 243
Figura 03 - Disposições de algumas obras no horizonte da
objetividade intersemiótica ................................................ 256
Figura 04 - Imagem gráfico-poética de 2 ou + corpos ......................... 262
Figura 05 - Recorte do poema "Livro das postagens" ......................... 288
Figura 06 - Capa Antologia Gengibre .................................................. 317
Figura 07 - Recorte de poema de Miró................................................. 320
Figura 08 - Miró em vídeo performático ............................................... 323
Figura 09 - Expressão do experimentalismo visual-poético na
Antologia Gengibre............................................................. 326
Figura 10 - Projeto coletivo de performances poéticas urbanas .......... 327
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................ 16
1.1 HODOLOGIA.......................................................................................... 34
1.1.1 Vigências do espaço e do tempo: as paisagens de um presente
possível................................................................................................... 35
1.1.2 Instâncias potenciais do espaço: dos espaços vivenciais às paisagens
literárias .......................................................................... 38
1.1.2.1 Espaços urbanos e espaços telúrico-campesinos: fluxos,
devorações, imaginários ..................................................................... 47
1.1.2.2 Transitividades, anima urbis e cidades brasileiras .......................... 52
1.2 SOBRE O TEMPO: COMPREENSÕES DA TEMPORALIDADE E
SUA INCIDÊNCIA SOBRE O LÍRICO ................................................... 66
1.2.1 Tempo objetivo e tempo experiencial: desconjunções,
remembramentos e outras vivências temporais que mobilizam o corpo
lírico ....................................................................................................... 72
1.2.2 O tempo quantitativo/cronológico e o tempo qualitativo/durativo
[Bergson]: duração e memória .............................................................. 76
1.2.3 O tempo suspenso, os jardins irreversíveis e as convocações da
presença ................................................................................................ 80
1.2.4 Nuanças temporais e formações sensíveis do poema: a
temporalidade nas formas verbais e nominais líricas ............................ 88
1.2.4.1 Tempo de presença: perfectividade e imperfectividade, retenção,
lembrança e protenção ....................................................................... 89
1.2.4.2 Duas temporalidades: o caráter mácron [ē'] e o caráter braquiado
[ĕ'] do verbo ser na disposição lírica ................................................. 94
1.2.5 Cronótopos da atualidade confrontada: o presentismo, o pós-
modernismo, o contemporâneo ............................................................. 97
1.2.5.1 O presentismo ...................................................................................... 99
1.2.5.2 O pós-modernismo .............................................................................. 103
1.2.5.3 O contemporâneo ................................................................................ 108
2 PRIMEIRA DOBRADURA...................................................................... 127
2.1 FORMA & EXPERIÊNCIA NO POÉTICO: DIMENSIONAMENTOS E
ESPECIFICIDADES ............................................................................... 131
2.1.1 Forma & poesia ..................................................................................... 132
2.1.1.1 A configuração ..................................................................................... 134
2.1.1.2 Corporeidade ........................................................................................ 137
2.1.1.3 Referencialidade .................................................................................. 141
2.1.1.4 Concessão de linguagem .................................................................... 145
2.1.1.5 Genericidade ........................................................................................ 146
2.1.1.6 Objetividade e subjetividade .............................................................. 148
2.1.2 A textura [da forma poética: "a pelagem da tigra"] ................................ 154
2.1.3 Tessituras inter e/ou hipertextuais ......................................................... 158
2.1.4 Vínculos coletivos: sociedade, ideologias, ideoformas, ideomíticas ..... 164
2.2 EXPERIÊNCIA & POESIA ..................................................................... 170
2.2.1 Experiência, experimentalismo, transgressão e invenção ..................... 177
2.3 A FORMA E A EXPERIÊNCIA NA POESIA BRASILEIRA −
HORIZONTES DE UM PÊNDULO ........................................................ 179
2.3.1 A nossa “tradição da experiência” ......................................................... 179
2.3.2 A “tradição formal” da modernidade e seus caminhos no Brasil ........... 186
2.3.2.1 Influxos formais da modernidade poética - poetas fundamentais... 188
2.3.2.2 Crítica da lírica diarreica e paradigmas da nossa "tradição
formal": Concretismo e João Cabral de Melo Neto .......................... 201
2.3.3 Vibrações de uma querela: quando a flor vermelha é apenas a
mancha de uma bala perdida ................................................................ 210

3 SEGUNDA DOBRADURA - [QUADRO-SÍNTESE INTERPRETATIVO


DA FORMA E DA EXPERIÊNCIA] ....................................................... 222
3.1 HORIZONTES ....................................................................................... 230
3.1.1 Horizontes – 5 configurações e algumas poéticas de referência .......... 231
3.2 O HORIZONTE DO ADENSAMENTO TENSIVO-RETENTIVO
[REFERÊNCIA: ALUMBRAMENTO PRISMÁTICO E CO-
NARRATIVIDADE EM SALGADO MARANHÃO]................................... 233
3.3 O "HORIZONTE-CIBORGUE" OU DA CONSTRUTIVIDADE
INTERSEMIÓTICA [REFERÊNCIA: O LIVRO-GOLEM E O PÓS-
HUMANISMO DE ALEXANDRE GUARNIERI] ...................................... 249
3.4 HORIZONTE DA REMISSÃO DRAMÁTICA E SIMULACRAL
[REFERÊNCIAS: ANA MARTINS MARQUES E A CARTOGRAFIA
DAS SEMELHANÇAS; CARLITO AZEVEDO E A REPETIÇÃO SEM
FIO DO TEATRO-CUBO]....................................................................... 266
3.5 HORIZONTE DA LIRICIDADE FÁCTICA [REFERÊNCIA:
HAGAMENON DE JESUS E A FACTICIDADE DO HOJE NAS
DEVORAÇÕES DO TEMPO]................................................................. 291
3.6 HORIZONTE DO LIRISMO VITALISTA-PERFORMÁTICO
[REFERÊNCIA: MIRÓ: PERFORMANCE DA VIDA & LIRISMO DAS
ENTRANHAS] ........................................................................................ 315

4 CONCLUSÃO ........................................................................................ 329

REFERÊNCIAS....................................................................... 340
16

1 INTRODUÇÃO

Num mundo tão concreto quanto a fome, o drone ou a violência, onde o


futuro está presente e o passado é convocado a agir, ao mesmo tempo em que
oferece paisagens imprevisíveis, hiperdinâmicas, imersões virtuais e
indecidibilidades críticas, a poesia reivindica o seu lugar. Isto porque, se a
modernidade da razão utilitária, do gozo comercial e da imagem massificada lançou-
a à condição de espectro, a contemporaneidade expõe, talvez como nunca antes, os
índices da diferença, da heterogeneidade, da tolerância, mesmo quando
esquizofrênica, e da excrescência, dos quais a poesia também se utiliza para
circunscrever seu espaço, trazer uma palavra de alumbramento, de revolta ou
desconforto, e procurar permanecer, como uma transcendência possível ao mero
instante.
Há muito a poesia afiou seus instrumentos. Hoje, ela raramente se presta
apenas a embalar amores e encantar crianças, apesar de que nada obsta que ela o
faça, mesmo sob moquerie, até porque o reino do sentir, de índole sua, dificilmente
sucumbirá – completamente – sob o reino do pensar, já que sua semântica
comporta a simultaneidade de ambos e, assim, os amplia, ao pensar e ao sentir.
Seu espírito ingressa, portanto, na compreensão do conhecer este mundo pela
clareza do sensível e pelo espanto da metáfora, e sua disposição é a da ampliação e
criação de novas realidades, novos mundos de acolhimento, caminhos e confrontos,
dentro da casa do ser. Com isto ela passa a reivindicar para si outra percepção,
outra dimensão de valor, como instância de alteridade na linguagem, revelação da
complexidade do mundo e de sua expressão. Além disto, entre mundo, espaços de
vivências e linguagem, a poesia estabelece temporalidades e espacialidades que
fogem à história, à lógica e à ciência. É neste sentido, como justificativas iniciais,
que opto pela poesia como objeto de minha investigação e discussão nesta tese,
estendendo essa escolha para além da imediata necessidade acadêmica, já que a
carrego pela vida.
Não será demais ressaltar que tratar da poesia contemporânea é tratar
não apenas do meu tempo, ou de como este tempo se relaciona com esse
fenômeno, a poesia, que insiste em permanecer e em rugir, apesar de tudo, apesar
do capital que obriga a pensar no prato deste dia e me enche com mitologias à
venda. É tratar também de uma escolha antecipada em meus caminhos, um
17

fenômeno no qual também estou imerso, em sua construção e sua práxis, e que de
algum modo se evoca em mim, em voz e mãos.
Martelo é forja, consciência que dobra o ferro e o reelabora. Flor é a
experiência da flor que se torna tempo forjado na palavra, memória que deixa seu
rastro, ou simplesmente imagem forjada no espaço potencial do mundo do texto.
Uma experiência configurada, enfim, que os olhos, o gesto, a mente, tocam
(parecem tocar) sensivelmente, como propõe o Ferrageiro de Carmona, de João
Cabral de Melo Neto: "Forjar: domar o ferro à força,/ não até uma flor já sabida, mas
ao que pode até ser flor/ se flor parece a quem o diga"; ou naquela rosa
repetidamente pronunciada e alterada a cada sopro por Gertrude Stein, dois poemas
que colocam em cheque a flor ofertada pela natureza e a flor ofertada pela
enunciação que forja a forma contemplada. Por essas duas "inspirações", além do
próprio teor da pesquisa, e sem maior compromisso com tais autores, explico a
escolha do título metonímico-alegórico desta tese, que se volta para estas duas
macrodimensões do pacto lírico: a forma e a experiência como configuradoras de
horizontes presentes na poesia brasileira mais recente, a qual tratamos aqui como
"poesia brasileira contemporânea".
Esta tese partiu de uma dúvida – ou suspeita – sobre a pressuposição de
verdade absoluta de um discurso que se tornou comum, isto é, que adquiriu status
de mainstream difuso, creditado tanto por parte da crítica quanto por parte da
criação poética, o qual assegura ter a poesia atual, reconhecidamente pós-
programática, atingido um estágio tal de heterogeneidade e diversidade, a ponto de
lançá-la em tantas escrituras diferentes e correntes quanto a multiplicidade, a
liberdade absoluta e a singularidade sejam capazes de alcançar. Tal discurso vem
perfeitamente ao encontro das condições que tanto a poesia quanto a
contemporaneidade compartilham: a primeira firmada no caráter estético da
singularidade, da autonomia e da imprevisibilidade de sentido, e a segunda, em seu
caráter de indeterminação, enquanto acontecer de um presente em aberto,
estabelecido sobre a precariedade das certezas, os limites difusos e a
simultaneidade/o congraçamento espaçotemporal.
Na medida, porém, em que uma simples "colocação em crise" dessa
poesia (crítica essa que põe sua ênfase em refletir e conhecer, não julgar) e sua
constatação empírica levam-nos a perceber que ela, por ser fundada
inarredavelmente em linguagens, constitui veias de confluências e vigências,
18

recusas e afastamentos de outras tendências, pautando-se em posições,


concepções, relações e visões diferentes dos processos de escrita; e, por outro lado,
na medida em que se percebe que a culminação daquela linha de raciocínio (da
profusão hiperfacetada e difusa) resulta numa elevação da heterogeneidade a uma
concepção superficial do diferente como caótico, o que contradiz os próprios termos
que essa poesia, de um modo geral não mais inocente, reivindica para si, isto é, os
termos do controle, da linha de produção e da racionalidade (das "regras da arte"),
constitui-se, portanto, a possibilidade de verificar em quais termos e direcionamentos
tal poesia se estabelece, e, a partir disto, quais os rumos que ela propõe. Neste
sentido é que esta tese postula a constituição de cinco horizontes que têm orientado
mais fortemente esta poesia brasileira contemporânea, sem excluir outras
possibilidades plausíveis, a partir das configurações formais e experienciais nela
inscritas e das apreensões de temporalidade e espacialidade que as sedimentam.
Por outro lado, a tese também se alicerça sobre a necessidade de compreender
como essa poesia conversa com seu tempo e se oferece à leitura, a uma
interpretação possível, seja ao leitor especializado, seja ao "leitor comum", os quais
se deparam com uma escritura que lhes é colocada (pós)modernamente, como
enigma.
Duas categorias genéricas que compõem a relação entre a realidade em
pauta, o mundo da obra e o mundo do texto, e com as quais o estudioso se depara
em qualquer abordagem, são a forma, e tudo o que ela compreende, inclusive a
linguagem, e o que foi classicamente definido como "conteúdo", ou "matéria" (da
realidade, matéria temática) trazida a essa forma, na obra, e por ela operada
esteticamente. O entendimento da poesia como pacto lírico (RODRIGUEZ, 2003),
que envolve o pathos afetivo, as formações sensíveis, as construções e sentimentos
de temporalidades e a espacialidades no texto, e, por outro lado, a noção de
configuração de Paul Ricoeur (2010a), a ser explorada no decorrer deste trabalho,
que abre um campo para a interrogação da própria relação entre a realidade
empírica e o mundo do texto (RICOEUR, 2008), conduziu-me à inserção desses
termos e questões na categoria da experiência como dimensão compreensiva a ser
considerada na investigação do poema, ao lado da forma, uma vez que podemos
compreendê-la como abrangendo não apenas o configurado (conteúdo, matéria
configurada), mas, também, as questões de sentimento, percepção e historicidades
que o poeta atravessa no ato configurante, isto é, os caminhos da criação/produção
19

sensível da obra. Forma e experiência tornam-se, então, dimensões do texto


capazes de nos1 levar a interrogar sobre a relação entre poesia e a realidade na qual
ela se insere e essa poesia e as questões que balizam a sensibilidade, a criação e
os processos produtivos, bem como, se ainda o desejarmos, a relação entre a
poesia e sua recepção – ou seus horizontes de expectativa.
Foi neste sentido que as tomei como base para a percepção investigativa
das feições, modos e rumos da nossa poesia, referida como "brasileira" e
"contemporânea". Uma poesia que se estabelece em meio à tessitura dos encontros,
tensões e expectativas do cenário literário, cultural e social do momento em que
vivemos, e que se constrói em nosso momento – uma razão a mais para
reflexionarmos sobre nossos projetos, caminhos criativos e possibilidades
produtivas. Estas feições, modos e rumos da nossa poesia foram, por sua vez,
examinados a partir de uma linha hermenêutica compreensiva, discutidos e
propostos como horizontes a serem delineados a partir das percepções e da análise
de obras (poemas representativos e livros) em circulação no momento atual e
tomadas como "referencias axiais" para a orientação e configuração de cada
horizonte percebido.
Com tal objetivo, circunscrevi como foco e objeto da pesquisa a poesia
publicada no Brasil nas últimas três décadas, isto é, a partir dos anos 1990 até o
momento, sem deixar de referir e perceber como abertura para este momento
também a década de 1980, isto é, o quadro da poesia pós-ditadura militar e sua
inscrição num novo momento político e nos modos de vida que se manifestam a
partir daí, como mobilização fundamental de um impulso para o surgimento de um
novo dizer poético. Na avaliação de Paulo Ferraz (2011), essa “é a década
preparatória para uma série de experiências contemporâneas”. Nas escolhas da
poesia a ser estudada, a pesquisa acompanha, portanto, este cenário de
intensificação e de acirramento, circunscrevendo nele a produção poética e o
pensamento crítico a ela relacionado, produzidos nas últimas décadas no Brasil,
priorizando as criações cuja proposta almeje a inserção neste presente e para ele
apontem. A partir desta observação, podemos entender que apesar de o termo
"contemporâneo" ser complexo, e que pode ser perspectivado em vários sentidos,

1
O uso da 1ª pessoa do plural no texto (alternado com o sujeito autoral) não tem a intenção de
indicar um "plural magestático", mas um olhar de aproximação e partilha, invocando uma
possibilidade da implicação e da percepção partilhável com o leitor.
20

como veremos no decorrer do trabalho. A poesia aqui estudada será considerada


“contemporânea” prioritariamente num sentido mais imediato, isto é, de
compartilhamento das inflexões do momento, das criações recentes e próximas
produzidas no atual contexto histórico-cultural.
Desta poesia foram selecionadas obras que apontam para cinco relações
diferentes com a linguagem e com as realidades potencializadas, sensibilidades,
tonalidades, direcionamentos e expectativas diferentes, constituindo, portanto, cinco
horizontes formais e experienciais que configuram propostas diferentes do fazer
poético neste momento, mesmo que tais horizontes se liguem a tradições e
expectativas, seja da lírica, seja do fazer lírico já sedimentado no país. Estes
horizontes partem principalmente do ponto de vista da criação e da produção poética
– mais que do ponto de vista da recepção e da leitura. Na medida do possível, tal
escolha representa obras, autores, espaços de publicação e distribuição diferentes,
alguns bem distanciados, no contexto da poesia brasileira, oportunizando a
apreensão também de círculos, realidades e propostas diferentes para as
referências axiais de cada horizonte. Cabe observar que não foi levado em conta, na
tese, nenhum critério de renome dos autores a serem apresentados como axiais,
dentro da concepção de que, renomados ou não, não é a fama do objeto que faz a
qualidade da pesquisa, mas o que ambos, a partir da sua relação de descoberta,
podem contribuir com o conhecimento e acrescentar à realidade humana e social.
Mesmo porque, num trabalho como este, o trato com estas obras deve levar em
conta, mais do que nunca, que seus autores estão em curso de produção e
consolidação de caminhos, podendo mudá-los e redimensioná-los a qualquer
instante, o que só consolida a precariedade das certezas, no que se refere ao
contemporâneo.
Assim, foram apresentados para direcionar a discussão e a configuração
de tais horizontes os seguintes autores e textos: (1) um poema de Salgado
Maranhão, "A cor da palavra", o qual remete tanto ao título, homônimo da antologia
em que foi publicado, em 2009, quando à proposta poética do autor reflexionada a
partir do poema, o que mobiliza a proposição do horizonte em que se inscreve, ao
qual denominei horizonte do adensamento tensivo-retentivo; (2) o livro Corpo de
festim, com o qual Alexandre Guarnieri recebeu o prêmio Jabuti em 2015, que serve
de base poética discursiva a um aqui denominado "horizonte-ciborgue" ou da
construtividade intersemiótica; (3) O Livro das semelhanças (2015), de Ana
21

Martins Marques e Livro das postagens (2016), de Carlito Azevedo, que compõem
linhas percebidas como pertencentes a um mesmo horizonte, a saber, o horizonte
da remissão dramática e simulacral – obras estas escolhidas pelas
especificidades que revelam, não pelos títulos que os aproximam; (4) Os poemas
"Só o momento" e "A cidade enquanto azula o tempo" (no prelo), cedidos pelo poeta
Hagamenon de Jesus, tendo sido esse último fruto de leitura em evento público de
2012, e ambos, a meu ver, apontando para um horizonte da liricidade fáctica; e,
finalmente, (5) Poemas da obra de Miró da Muribeca, Miró até agora (2016), o qual,
em sua segunda edição colige poemas publicados de 1985 a 2012, que são trazidos
à discussão de um horizonte do lirismo vitalista-performático, no corpo dessa
percepção.
Temos assim representada uma poesia que se estende e estratifica
horizontal e verticalmente, em sua origem e em seu acontecer, por diversas regiões
do país, se pensarmos nestes autores (embora não afirme aqui perspectiva
histórico-biográfica): Salgado Maranhão, com origem maranhense, da região do
município de Caxias, mas com elos fortes com a cidade poética de Torquato Neto e
Mário Faustino, Teresina-PI, e vivendo no Rio de Janeiro desde a década de 1970,
construindo sua poesia nos influxos dessa paisagem e de suas relações; Alexandre
Guarnieri, carioca, com atuações pelo país e nos meios eletrônicos (é um dos
editores da revista literária, crítica e cultural "mallarmargens"); Ana Martins Marques,
mineira, um dos destaques na poesia brasileira atual, com fortes relações no meio
poético e acadêmico-universitário do Sudeste; Carlito Azevedo, carioca do eixo Rio-
São Paulo, com um nome já solidificado pela crítica da poesia contemporânea no
Brasil; Hagamenon de Jesus, poeta com pouca obra publicada, mas com forte
reconhecimento e presença nos círculos de discussão da poesia contemporânea,
em São Luís do Maranhão; Miró ("da Muribeca", bairro da região metropolitana do
Recife), cuja obra visceral, apresentada em performances em espaços urbanos de
Recife e São Paulo, onde morou, ganha reconhecimento e novos territórios nos
ambientes virtuais.
Ao tratar tais escolhas como "referências axiais", admito que desejo dar a
elas um papel representativo, não de exclusividade (já que fazem parte de um rol de
escolhas possíveis no contexto dos horizontes delineados), mas no sentido de que
podem vir a permitir a percepção de obras de outros autores com muitos pontos
significativos de semelhança ou, mesmo, só com alguns pontos significativos de
22

semelhança com os primeiros, representando assim uma confluência entre as obras


destes outros autores e a utilizada como referência axial, o que, metaforicamente,
equivaleria a dizer que, sobre certos aspectos e em determinados momentos e
condições, navegam nos afluentes de um mesmo rio – ou horizonte.
Isto também concorre para uma liberdade tanto na configuração de um
horizonte, quanto da possibilidade de não fecharmos a poesia contemporânea em
tais configurações, concebendo-as, antes, como "horizontes fortes", também
representativos, dessa poesia que se faz a cada dia, e almeja novas caras.
A noção de horizonte, por sinal, é a de uma terminologia espacial com
incidência na temporalidade, o que está "à frente", em prospecção, disposto ao
movimento do (en)caminhar-(se), isto é, do sentido. Segundo Otto Bollnow (2012),
horizonte está ligado à perspectiva, a qual não significa apenas unilateralismo, mas,
no campo intelectual, serve ao esclarecimento de relações e ao resplandecimento
das coisas quando as olhamos de uma perspectiva apropriada. Assim, também o
horizonte de uma pessoa, de uma era está relacionado a um "ver" que inclui tanto o
perceber quanto o sentir (evocações, tonalidades, relevos e "paisagens"), podendo
estreitar-se ou ampliar-se, bloquear-se ou nulificar-se. E explica:

O horizonte se expande no contato diversificado com formas desconhecidas


da vida humana [...]. O horizonte expandido torna o homem capaz do
julgamento, em especial, quando lhe aparecem novas e inesperadas
tarefas. Logo, a vastidão do horizonte é sinal de um espírito superior. [...]
Ninguém escapa à ligação a um horizonte, i. é., à ligação a um círculo visual
que se delineia ao redor de um determinado ponto de vista (BOLLNOW,
2012, p. 84-85).

Em relação à estrutura do horizonte, na concepção de Rodriguez, ela


acaba por constituir uma identidade trans-histórica: "nem totalmente historicizada
nem a-histórica, porque estabelecida entre rupturas, retomadas e transformações de
paradigmas. Na realidade, oferece uma dimensão trans-histórica, na qual as
rupturas não ocultam jamais o horizonte prévio sobre o qual elas se apoiam [...]"2.
Desta maneira, colocamo-nos entre espaçotempos evocados. Podemos considerá-
lo, portanto, um encaminhamento que se dimensiona em relação a uma situação e à
configuração de um repertório, orientando assim o alcance do olhar. Significa que

2
RODRIGUEZ, 2003, p. 84: "[La structure de l'horizon] engage une identité qui n'est ni totalement
historicisée ni anhistoquire. A vrai dire, la structure de l'horizon offre une dimension transhistorique,
c'est-à-dire que les ruptures n'occultent jamais l'horizon d'antériorité sur lequel elles s'appuient" (grifo
do autor, tradução minha – como as demais no decorrer do texto, quando não especificadas).
23

ele está engajado em nossa própria situação em relação ao passado, ao vivido e às


expectativas. Não à toa, Reinhart Koselleck, em seu Futuro passado (2006) une o
espaço de experiência ao horizonte de expectativa, o que é temporalmente
incorporado ao que pode ser previsto ou esperado, dando, porém, ao horizonte, o
sentido de uma abertura: "horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre
no futuro um novo espaço de experiência" (KOSELLECK, 2006, p. 311), e é neste
sentido que a noção é tomada aqui, que não está "à mão" de forma absoluta, porém,
entre atualidade e potencialidade, quer dizer, repousa sobre uma configuração
potencial, sendo ele mesmo um configurante potencial.
Esta tese foi desenvolvida sob uma perspectiva hermenêutica que
assume um caráter transdisciplinar, recorrendo a áreas diferentes: à teoria da lírica,
principalmente em relação às noções de pacto lírico e de lirismo, à filosofia, aos
estudos culturais e à abordagem crítica entre literatura e sociedade, dentro de uma
perspectiva hermenêutica aberta e crítica segundo uma proposta reflexiva e
interpretativa esboçada por Paul Ricoeur (2008)3, que considera as relações entre
mundo da vida, mundo do texto e configurações da obra, tendo aqui como ponto de
partida fundamental o texto poético.
Sobre esta posição hermenêutica, ela será tomada, sobretudo, dentro de
um dialogismo e um confronto de referências, redimensionando-as de modo
reflexivo e crítico em torno da discussão visada, admitindo a postura da "co-
implicação do outro" e da "assunção da alteridade", numa busca também mediadora
do sentido para o contexto, já que interpretar é mediar e "aplicar", "na medida em
que brote de um interesse presente" (BÜRGER, 2008, p. 21); é colocar-se numa
"interlinguagem de vaivém", com a tarefa de apontar para novas possibilidades de
sentido (des-velações/re-velações), dimensões e aberturas do interpretado, como
afirma Andrés Ortiz-Osés (2003, p.95, grifos meus):

A hermenêutica estabelece que todo o entendimento de algo é já


interpretação, de forma que a interpretação se eleva à categoria universal
do conhecer humano. [...] A interpretação não se situa no meio (estático)
entre os diferentes, mas antes na mediação (dinâmica) das suas diferenças
[...] a co-implicação do outro e a assunção da alteridade. [...] O hermeneuta
ou intérprete é então o "tradutor" interposto mediadoramente entre objetos e
sujeitos, línguas e pessoas, à guisa de interlinguagem que vaivém
(lembramos que em espanhol antigo "traduzir" diz-se "volver"); trata-se de

3
Proposta interpretativa esboçada tanto nessa quanto em outras obras/recorrências desse autor em
reflexões ao longo do trabalho.
24

uma mediação intersubjectiva que possibilita a comunicação mútua e o


entendimento ou compreensão do real na sua significação.

A perspectiva da co-implicação hermenêutica insere-se na ideia do


compreender, que a fundamenta, compreender também como exercício de
autocompreensão no horizonte da própria historicidade. Na perspectiva de Paul
Ricoeur, “a primeira função do compreender é a de nos orientar numa situação. O
compreender não se dirige, pois, à apreensão de um fato, mas à de uma
possibilidade de ser” (RICOEUR, 2008, p. 40). Compreender é, portanto, estar
disposto numa abertura, na possibilidade. Por outro lado, a busca interpretativa não
deve centrar-se em si mesma ou estar voltada a si mesma, ainda mais quando se
trata de uma pesquisa no contexto da demanda universitária e de uma realidade que
envolve relações no espaço das experiências humanas. Com isto, a pesquisa
pretende também agregar à leitura da situação, uma feição aplicativa. Estará, assim,
firmada no processo do compreender hermenêutico, o qual, segundo Hans-Georg
Gadamer (2011, p. 406-407), "deve levar a uma aplicação do texto, a ser
compreendido à situação atual do intérprete", sintetizando (p. 408), dentro de uma
posição hermenêutica na qual "compreender é sempre aplicar". Isto não deve
significar, porém que a pesquisa tem um caráter participante, ou de engajamento,
mas que ela pode apresentar possibilidades de instrumentação e elementos que
contribuam operativamente para outras percepções. No caso específico desta
pesquisa, principalmente em relação à noção dos horizontes aqui discutidos, espero
contribuir para a abertura desta poesia, não só no sentido da análise e interpretação
críticas e de sua percepção, mas principalmente a novas percepções e sentidos por
parte de seus leitores.
Na consciência de que essa abertura hermenêutica, interpretativa, coloca
a análise dos elementos, paisagens e estruturações textuais tanto como
necessidade quanto como possibilidade enriquecedora de suas conclusões, o
caminho metodológico aqui empreendido será justamente o que considera esse
trânsito das relações entre o texto, em suas particularidades formativas, e a
situação, em suas inflexões e determinações, ou seja, da passagem do olhar
interpretativo ao analítico e vice-versa, buscando uma visão mais geral e relacional,
tendo como referência central o texto, sem o qual não existe interpretação, mas sem
deixar de levar em conta que esse texto está situado como evento, como
acontecimento discursivo, neste caso, tornando também significativas as questões
25

de sua produção e recepção. Assim, a leitura, análise e interrogação dos poemas


tomados como casos representativos foram articuladas de modo a proporcionar um
fluxo-refluxo entre o particular e o geral, mediante o contexto poético-literário, sócio-
histórico e cultural, e discursos críticos e teóricos formulados nas injunções da
contemporaneidade, que se relacionam às questões aqui tratadas.
A partir da reflexão sobre sua condição lírica, que é a condição primeira
como esse texto poético circula e é compreendido, isto é, que entende a
configuração discursiva e estruturação do poético como pautada por uma interação
afetiva e um caráter mais intensamente ou menos intensamente patêmico 4, os quais
determinam as relações com a escrita e o sentido dos textos, tais texto foram
considerados, num sentido geral, como pactos líricos, conforme propõe Antonio
Rodriguez, em Le Pacte Lyrique (2003). Aproprio-me de algumas propostas dessa
contribuição para a abordagem da lírica escolhida, na medida em que a concepção
desse "pacto", concebido como um ato de escritura sensível que permite configurar
experiências fundamentais particulares, tanto oferece caminhos e possibilidades
para uma análise dos termos em que se estabelecem os textos − os respectivos
elementos estruturantes de sua corporeidade sensível −, quanto abre um horizonte
de sentido, de compreensão que se constrói entre o perceber e o sentir dos projetos
poéticos inscritos nos textos. Assim, também as relações travadas na história da
qual a obra participa e se engaja como evento, isto é, como uma comunicação entre
sujeitos numa historicidade. Assim, a noção de fornecer pressupostos e ferramentas
que possibilitam articular as estratégias e minúcias formativas do texto à dinâmica
de sua realidade e inclinação como presença numa tessitura de relações complexas
mobilizada na realidade temporal e espacial em que se faz e atua.
Uma breve explicação necessária: primeiramente é importante notar a
imediata relação do "pacto lírico" como a noção desenvolvida nos estudos de
Philippe Lejeune sobre a autobiografia (o pacto autobiográfico) enquanto gênero

4
O PATHOS (πάθος, sofrimento, passionamento), juntamente com a afetividade, é considerado por
Rodriguez um dos termos fundamentais para a construção do texto lírico em Le Pacte Lyrique. Daí
uma série de termos cognatos, "pathique", adjetival; "une pathématique", estruturação implicada num
pathos, etc). Aqui desejo preservar, do mesmo modo, a ideia de uma qualificação relativa a essa
noção, do pathos como um dos elementos fundamentais do texto lírico, preservando o termo "pático",
como pertencente à linguagem "do phatos", à ação pática; e "patêmico" para a linguagem
sensivelmente tocada pelo pathos, pela afetividade ou a afecção passionante, relacionada ao sentir, o
padecer como "passar por". Um ato ou uma ação pática pode ou não gerar um texto patêmico. Um
texto patêmico pode levar a uma fruição pática. Assim também, os afasta da categoria do "patético"
como exacerbação, intencional ou não, do pathos na configuração e tonalidade de um texto, e
preservo como diferentes os três termos: pático, patêmico e patético.
26

literário particular e ato comunicacional entre autor e leitor, como explicado por
Rodriguez (2003, p. 63-68). Este autor parte da noção de "pacto" na intenção de
especificá-lo e redefini-lo como categoria própria, como uma dinâmica constitutiva
dos mais diversos tipos de discurso: o pacto narrativo (ou "fabulante"), o pacto
crítico, e que põe em relevo menos um "contrato de leitura" que a estruturação
discursiva de uma determinada proposta textual. Em segundo lugar, é bem marcada
certa ancoragem das concepções de Rodriguez na noção de configuração de acordo
com as formulações do filósofo Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa 1 (2010a),
noção com a qual eu já vinha trabalhando em meus estudos e que também vejo
como muito pertinentes para uma hermenêutica do texto poético, na medida em que
seus pressupostos abrem um campo de interrogação pela própria relação entre a
realidade empírica e o mundo do texto (RICOEUR), implicada, por sua vez, nos dois
eixos que tomo como enfoques deste trabalho para estudo dos textos: a forma e a
experiência.
No entanto, a força congraçadora das espessuras textuais assumirá aqui mais
o caráter compreensivo da disposição relativa a cada poema ou obra em particular,
do que ao matiz afetivo que caracteriza o "pacto lírico" como "forma afetiva geral",
segundo o texto de Rodriguez. A questão da afetividade é certamente central para
esse autor, porque ele a coloca como o fundamento mesmo do pacto lírico, daí ser a
"forma geral de estruturação" necessariamente "afetiva". Esta tese, porém, mesmo
considerando suas colocações, coloca sua ênfase noutro viés.
Numa síntese apropriativa sob os termos desta tese, retomo da noção do
pacto lírico suas proposições em relação à dimensão da forma, enquanto
formação/corporeidade espaciotemporal sensível, afetiva, comunicativa, trans-
histórica e social, e na dimensão da experiência, que busco explorar mais
amplamente, para além da afetividade, a qual recobre as realidades vividas e
refletidas sobre o mundo da obra e o mundo do texto, bem como as temporalidades
e espacialidades que a formam e constituem – como sentimento, memória, atitude,
carnalidade, lugar identitário, lugar de recolhimento, factividade. Por esta razão,
aproprio-me destas duas dimensões também para colocar esta nossa poesia
contemporânea, ou seja, esta "larga lírica"5, que se depara com o mundo presente e

5
Estou considerando a "lírica" no sentido de uma "larga lírica", proposto, por um lado, pela
abrangência, o próprio acolhimento de linguagens do termo "lírico" (cf. abaixo, nota 79), e, por outro
lado, pela reconhecida precariedade de sua definição. Recuso aqui (ou pelo menos coloco "entre
parênteses"), para tratar da lírica de forma geral, a contraposição, por vezes dicotomia, "lírica" x
27

nele se constitui, em relação com este momento e com as concepções de


contemporaneidade que ele suscita.
Deste modo, partindo das categorias de tempo e de espaço, que as
constituem inextricavelmente – como relativos ao ser, à linguagem, às dimensões
vivenciais, históricas e memoriais, à alteridade –, discuti e explorei os conceitos de
forma e de experiência de modo a poderem ser utilizadas como categorias analíticas
e relacionais das obras escolhidas e serem capazes de apontar para as
configurações particularizantes dos horizontes percebidos, ante as próprias
temporalidades e espacialidades em jogo no momento e no país em que vivemos.
Para maior clareza e delineamento das especificidades no âmbito de cada uma
dessas dimensões/categorias, foi elaborada uma síntese de possibilidades
interpretativas da forma e da experiência, para as poéticas contemporâneas
(quadro-síntese, no tópico "Segunda dobradura"), que oferece, justamente, modos e
possibilidades de presença de cada uma dessas noções nos poemas analisados,
demarcando o direcionamento que podem assumir, face aos horizontes propostos.
É, pois, com base nas especificidades coligidas de uma e de outra
categoria que serão analisados os poemas, determinada sua caracterização e
delineado o horizonte em que se configuram, ou do qual se aproximam, já que o
horizonte é, pela própria noção, uma abrangência de fluxos, relevos e refluxos.
Tanto a forma quanto a experiência foram divididas em faixas tensivas, orientadas
por um tensionamento formal até os limiares hoje praticados, e distensivas,
orientadas para sua espontaneidade e cotidianidade, as quais incidem sobre
determinado horizonte, dentre os apresentados.
Ao tratar de forma, é relevante considerarmos que qualquer configuração
textual pressupõe uma estruturação compositiva da obra e um "ordenamento de
relações"6, ou seja, que tal forma diz respeito a um corpo textual-discursivo que
organiza relações, comportamentos, marcas e expectativas; que reúne domínios e
operações, escolhas, estratégias e procedimentos estéticos, os quais se integram e

"antilírica", que considera a primeira como expressando uma poesia subjetiva, de efusão romântico-
sentimental e tomada, constantemente, de maneira depreciativa e caricatural, e a segunda, uma
manifestação poética que se deseja e se apresenta como objetiva e racional, de feição crítica e
comedida. O domínio do lírico (da poesia lírica) pode ser pensado, neste caso, como nuançado, e
não contraposto, entre os dois extremos, já que tanto no corpo da poesia quanto no da literatura
cabem tanto sua vida quanto sua morte.
6
Importante relembrarmos Kant (1980, p. 39 – grifos meus; "forma": itálico do autor), embora que
este fale noutro contexto, o filosófico: "(...) O objeto indeterminado de uma intuição empírica
denomina-se fenômeno (...). Forma do fenômeno [é] aquilo que faz com que o múltiplo do fenômeno
possa ser ordenado em certas relações" .
28

dialogam em confronto ou negociação com certas convenções e tipicidades da


linguagem. Já nas interrogações sobre a noção de experiência, e de experiência do
presente, o caminho aponta para determinações e reflexões de caráter filosófico-
antropológico, histórico e sociocultural, para, no caso da poesia, remeter a questões
que se colocam entre o mundo da vida, entendido como a realidade empírica das
vivências e da coletividade humana, e os possíveis dos atos da linguagem, e tocam
diretamente na formação e configuração do texto poético − alertando para o
fundamento de que "é somente na leitura que o dinamismo de configuração termina
seu percurso" (RICOEUR, 2010b, p. 270).
Estudiosos da experiência [humana] a têm considerado principalmente no
viés da narrativa, da narratividade. Em Ricoeur (2002, p. 16) − proposta concretizada
nos três volumes de seu Tempo e Narrativa −, a experiência é tomada, marcada e
clarificada por seu caráter temporal, no ato de narrar, considerando-a já numa
abertura para possibilidade romanesca moderna, pautada na individualidade da
configuração da narrativa e da mímesis. Já um dos maiores teóricos da
modernidade, Walter Benjamin (1994, p. 197-198), atrela a experiência à
comunidade narrativa, e coloca o narrar (as práticas orais do narrar, das histórias
orais transmitidas por narradores anônimos) como "a faculdade de intercambiar
experiências", um saber que, segundo ele, esvaiu-se com a racionalidade técnica e
cuja morte foi decretada pelo romance no início do período moderno. Na proposta
deste trabalho, entretanto, será necessário recorrer aos fundamentos do sentido de
experiência, que mobilizam aspectos tanto coletivos quanto individuais (pois ambos
dizem respeito à poesia e ao poema), e redimensionar seu conceito, em geral
empregado sobre outros aspectos, para colocá-la no seio do texto lírico, como
constituinte intrínseca das significações e dos processos formativos do poema.
É, portanto, sob a perspectiva destas duas dimensões que se
estabelecem as dominantes configurativas que entrelaçam os regimes de realidades
e suas relações, as espessuras e densidades de sentido, a tessitura de vozes no
espaço potencial do poema, e as articulações discursivas que as impulsionam.
Neste processo, confluem ou tensionam-se os aspectos enunciativos e
comunicativos (graus de formalidade, graus de abertura, cerramento interpretativo e
reserva semântica...); densidades metafóricas, que impulsionam um repertório
imaginário-figurativo; faces intertextuais; pulsações rítmicas e tonais, escolhas
sonoras, aspectualidades verbais, disposições sintagmáticas em harmonia com uma
29

mise-en-scène gráfico-sintática/semiótico-visual. Os direcionamentos num e noutro


sentido dessas dominantes, para as regiões formais ou experienciais, balizam os
horizontes poéticos e orientam sua conceituação.

***

Na liberdade possível de um trabalho com nuanças ensaísticas, como


este deliberadamente se pretende, e de uma área que pressupostamente o aceita,
apesar dos riscos, utilizo dois termos simbólicos para dividi-lo em duas grandes
partes.
À primeira parte, com dois capítulos, chamei de "Hodologia", que não
significa uma disciplina, mas um termo grego para "o Logos do caminho", que se
traduziria como "o caminho melhor" para chegarmos a um objetivo, mesmo que este
caminho não seja o mais curto, nem o mais reto, mas aquele que viabiliza melhor o
prosseguir rumo ao horizonte buscado. Nesta primeira parte do trabalho procurei
reunir quatro pilares teóricos que fundamentam e perspectivam toda a discussão
textos propostos, ou seja: as categorias tempo e espaço, bem como as categorias
forma e experiência.
O primeiro capítulo apresenta e discute os variados conceitos de tempo e
espaço tanto em aspectos culturais quanto em aspectos filosóficos e como a teoria
os tem abordado em relação à lírica e ao lirismo. Assim, o espaço torna-se não
apenas um conceito categorial, mas uma proposição de relação do homem com o
mundo, com o lugar e a identidade, com o imaginário e a afetividade, tal como em
sua relação com a alma da cidade, a anima urbis – aqui discutida também em
relação à cidade brasileira. Por outro lado, a poesia também constitui seus espaços
e suas paisagens no território da escrita e da linguagem, impulsionando os rumos de
seus horizontes. Em relação ao tempo, ele é trabalhado tanto em sua perspectiva de
objetividade e cronologia, quanto em sua perspectiva de subjetividade e memória,
que desencadeiam os aspectos de retenção e protenção. Aí são evocadas
concepções que vão de Husserl a Bergson, bem como as temporalidades que
derivam dessas concepções e operam de forma determinante na lírica. Encerro o
primeiro capítulo trazendo as percepções das temporalidades em questão no
momento, importantes para este trabalho: o pós-modernismo, o presentismo, o
contemporâneo e seus sentidos.
30

Neste ponto, faço um breve interlúdio, ao modo de síntese propositiva, a


que chamei "Primeira dobradura", e que resume os capítulos trabalhados e os
articula com o próximo, reavaliando as questões discutidas nos tópicos do tempo e
do espaço, e já os redimensionando para o contexto da análise [da poesia brasileira
contemporânea] a ser realizada.
O segundo capítulo, ainda nesta primeira parte, trata das questões da
forma e da experiência, buscando aprofundar suas perspectivas e seu caráter
heurístico. Nele, trago a noção de corporeidade e de configuração, que reúnem em
si vários aspectos da forma, tanto daqueles já explorados pela tradição, sob novos
ângulos e concepções teóricas, quanto alguns aspectos que achei válidos ressaltar.
De outro lado, a noção de experiência ganha aqui relevância, porque, mesmo em
outras disciplinas, com exceção da filosofia (sobretudo no sentido do empirismo) e
das ciências naturais (principalmente no sentido experimental), a experiência é uma
categoria importante que é tocada em geral obliquamente. Ela é aqui apresentada e
discutida como um "passar através" de situações, de espaço e tempo, mobilizando o
vivido, a memória, o corpo, a afetividade, os traumas, as expectativas, e tantos
outros aspectos que se tornam importantes na escritura poética.
Também neste ponto, faço um segundo interlúdio, uma "Segunda
dobradura", para outra vez articular as questões vistas às que serão desenvolvidas
em seguida. Porém, aqui, numa perspectiva sintetizante e, ao mesmo tempo, como
especificação dos pontos fundamentais a serem analisados nos poemas, ou seja,
dos aspectos formais e experienciais neles dimensionados que balizarão as
percepções e as configurações dos horizontes, propus, como "síntese de
possibilidades interpretativas", de especificidades das categorias da forma e da
experiência no poema, conforme referido anteriormente.
À segunda macroparte, voltada mais especificamente para a análise e
discussão das obras selecionadas, e que concorre para a concretização do objetivo
e da proposta do trabalho – a investigação sobre os horizontes da poesia brasileira
contemporânea –, denominei "Horizontes", como paisagem que se apresenta à
"hodologia" percorrida.
Esta segunda parte é composta pelo terceiro capítulo, um capítulo mais
longo que apresenta e explora poéticas brasileiras entendidas como representativas,
deste momento, analisando-as, discutindo-as e, por fim, situando-as dentro de
determinados horizontes propostos a partir, necessariamente, mas não
31

exclusivamente, do que foi observado nos poemas, quer dizer, são os poemas que
convocam e evocam determinadas poéticas e suas feições formais e experienciais –
analisadas segundo as especificidades expostas naquele quadro-síntese
anteriormente referido – que irão oferecer bases determinantes para o delineamento
de tais horizontes. Por outro lado, estas poéticas também oportunizam trazer à
discussão poemas e obras de outros autores que não são o foco da discussão, mas
que contribuem para melhor esclarecer o âmbito de cada horizonte, bem como para
melhor compreendermos seus relevos e seus limiares. Assim, os poemas
apresentarão configurações mais ou menos tensas, mais ou menos rigorosas, diante
de um quadro que especifica formas que vão de um distenso coloquial a uma tensão
retesada, e de um quadro experiencial que vai do vivencial cotidiano ao retesamento
traumático/dilacerante. Esse movimento de gestos escriturais, espaços experienciais
e expectativas poéticas, dá-nos o tom, a perspectiva e o caráter de cada "horizonte".
Por fim, a conclusão faz uma síntese geral das discussões e acrescenta
considerações pertinentes aos caminhos desta poesia na atualidade, e em relação
ao trabalho que foi apresentado.

***

Falar de literatura ou de poesia contemporânea no Brasil é lidar com um


caldeirão de complexidades e possibilidades. É compreendê-la como o
incompreensível, como hermética, no processo criativo do enigmático, como observa
Fábio Andrade, que aponta uma outra imagem possível para o poeta dos anos 90,
nem herdeiro da visualidade, nem do espontaneísmo marginal, mas também não
mera cria universitária, nascido do recesso da erudição. Um poeta profundamente
informado em sua sensibilidade por valores modernos, complicando a idéia do pós-
moderno em literatura e, mais especificamente, em poesia" (ANDRADE, 2008, p.
15). Compreendê-la, com Alberto Pucheu (2014), dentro de uma excentricidade [ex-
centricidade] do contemporâneo, ou seja, de uma ausência de centro − naquele
antológico "the time is out of joint" hamletiano (Shakespeare), já retrabalhados por
Derrida, em sua crítica sobre "os espectros de Marx", e por Agamben em sua
contribuição sobre o contemporâneo como anacronia e "disjunção". Propõe que essa
poesia (apoesia) contemporânea, construídas sobre as os muros descaídas, ruínas
32

da espacialidade e paisagens ilocalizáveis, é desterritorializada ou aí repousa sua


proposta:

o que entendo por apoesia contemporânea é a encruzilhada entre o artigo


(a poesia) e o privativo (apoesia), a fusão entre a presença e a ausência, a
indeterminação, ou o indefinido plural, entre o definido e a falta. Na tensão
entre o olho que lê o negativo e a voz que diz o artigo, na inadequação
entre o visual e o oral, nesse sempre indecidível das infinitas possibilidades
entre um extremo e outro [...], está, para mim, a marca por excelência da
poesia contemporânea (PUCHEU, 2014, contracapa).

No que diz respeito a esse espaço brasileiro, é preciso trazer à


consciência e à discussão, o fato, por exemplo, que ela possui territórios de
produção, centros, por vezes ilhotas, dentro de um país com muitas necessidades e
vontades, muita produção, muito elogio, mas escassos leitores - de poesia. A
complexidade se amplia e estratifica-se, portanto. É perceptível, por exemplo, que,
por condições históricas e econômicas que possibilitam a existência e o investimento
de editoras, o enraizamento de grandes universidades e instituições de pesquisa e o
estabelecimento de uma rede de comunicação e propaganda poderosa, entre outros
motivos, as duas regiões que aparecem como os grandes centros de produção
cultural, artística, editorial e literária no Brasil são, reconhecidamente, o Sudeste e o
Sul, sobretudo o chamado "eixo Rio-São Paulo". Não é um lamento. Até porque as
outras regiões do país também nunca deixaram de produzir uma poesia de
qualidade elevada, que busca com afinco e discussão o seu espaço. É apenas a
observação de que existe um jogo de forças para além do ato criativo, e que influi
sobre o que é apresentado, em qualquer que seja o campo, em qualquer que seja o
território ou país, onde alguém sofrerá o apagamento. É uma constatação, como
aquela que Luiz Costa Lima faz sobre a circulação do poeta paraense Vicente Franz
Cecin, no "eixo":

É um grande livro de poesia, mas é um escritor do Norte do Brasil, a


imprensa não fala nada, as editoras não se interessam. O Norte está
isolado, é quase um outro país. Os autores que estão fora daquele
considerado o eixo Rio-São Paulo sofrem um veto, um veto de isolamento.
Pense na expressão por si só: eixo, aquilo que segura algo
(CARPEGGIANI, 2017, p. 09).

Também a esse respeito, é bastante significativo o dossiê CULT [213]


(2016, p. 30-55), Poemas para o nosso tempo: a nova geração de poetas do país
[sic], seguido de breve antologia dos poetas citados no dossiê e suas obras
33

recentes. Sob esse ponto de vista, mesmo levando em conta as ressalvas ali
colocadas, torna-se no mínimo enigmático, para não dizer preocupante o país ali
considerado.
Talvez em decorrência disso, tornou-se comum ao ouvido nacional, em
quase todas as áreas artísticas, tratar de “brasileiro” quando se fala de algo advindo
dessas duas regiões − Sudeste, Sul (desta região, em menor escala) − ou tocada
pela mão de seus possíveis, sendo o restante muitas vezes adequadamente
relegado ao “local” ou “regional”. Trata-se de um procedimento naturalizado por
muitos que precisa ser extirpado. Estes termos restritivos talvez só devam ser
admitidos sob reflexão de seu pertencimento numa afirmação voluntariamente
identitária, de particularidades, mas não em termos de exclusão dentro do que se
entenda como simplesmente literatura - ou algo que aí ainda queira seu espaço.
Na impossibilidade de tratar desse caldeirão poético brasileiro na sua
totalidade e efervescência, as escolhas feitas consideram que cada elemento dá a
sua contribuição representativa para o cenário do conjunto e para o que está além
do conjunto. A poesia ultrapassa o autor, a região, o país. Contemporânea ou não, a
poesia de qualidade superior será sempre universal. Ela pode ser um fantasma que,
do limbo do esquecimento, retorna para pedir vingança. A poesia devora apoesia.
Ela não será o simplesmente contemporâneo.
34

1.1 HODOLOGIA

ὁ = caminho [trilha, rota], denota o espaço aberto


pelo caminho [...]. Aquilo que Lewin chama "o caminho
ótimo" pode ser algo muito variado. Depende dos muitos
requisitos que o homem coloca a esse caminho. [...] O
caminho mais cômodo [adequado] não é
necessariamente o mais curto, e este, por sua vez, não
necessariamente o mais rápido.

[Otto Bollnow, O homem e o espaço. 2008, p. 209]

La perception des choses implique alors un


cheminement de sens, spatial et temporel [...].
[Antonio Rodriguez, Le pacte lyrique, 2003, p. 85]
35

1.1.1 vigências do espaço e do tempo: as paisagens de um presente possível

A experiência do contemporâneo é a experiência do híbrido e do diverso,


da multiplicidade e da potenciação da imediaticidade. Estamos imersos em
realidades liminares, [trans/inter]comunicantes e heterogêneas. Um contraste com
alguns aspectos das sociedades arcaicas e tradicionais, fundamentadas justamente
em demarcações rígidas de certos lugares e hierarquias, bem como na longa
duração dos seus ritmos, na permanência de suas balizas, princípios, costumes e
referências. Pensando historicamente, a "tradição", o tempo perdido no tempo, in illo
tempori, a vivência do tempo mítico e formas outras de temporalidade, são exemplos
conhecidos das extensões de tempo concebidas pela antiguidade. Da mesma forma,
a delonga medieval e a própria modernidade, em seus traços longos, que, se para
alguns já era um frenesi, para o ser contemporâneo apresenta-se como uma câmara
lenta a demorar-se frente a quem vive as instâncias frenéticas e hipermutantes do
tempo real, do agora.
. Evidentemente, as sociedades arcaicas ou o seu pensamento não
desaparecem do cenário terrestre, das cercanias, dos abrigos, como se repelidas
por um passe de mágica ou ao toque de alguma tecla que os delete em nome do
contemporâneo. Tais realidades, tessituras e discursos formam a trama tensiva dos
nossos espaços de vivência ou convivência, instaurando comportamentos,
conhecimentos, e necessidades. E discursos em tramas de convivência, e
imbricação e entrechoques, e fissuras, e violências, e simulacros, e remendos − tudo
como parte igualmente vigentes dessa mesma contemporaneidade, onde as
experiências de realidades e territórios não são unificadas nem sentidas da mesma
forma.
Tal cenário da realidade concreta e cotidiana, como costuma acontecer ao
longo da história da arte, acaba por apontar também os caminhos da criação e da
produção artística (entendendo por criação o fazer sensível do artista, e, por
produção, todo o conjunto de força de trabalho e meios envolvidos na realização da
obra até sua apresentação final para distribuição) que seguem mais ou menos suas
condições e contradições. No que tange à atualidade, uma das diferenças é que ela
talvez permita um pouco mais de facilidade que nos tempos arcaicos, como, por
exemplo, o ingresso do indivíduo desprivilegiado e de sua produção no território das
36

elites abastadas − uma conquista que provavelmente ocorre hoje com muito maior
facilidade que anteriormente, tendo em vista a emergência de espaços tais como o
virtual a abertura de espaços da realidade cotidiana como fruto de reivindicações
sociais.
Dito isto, preliminarmente, creio muito valiosa à discussão do conceito de
espaço (infra) uma pequena nota sobre a noção de território, a que eventualmente
recorro, e que marcam os sentimentos e processos de pertencimento e
desterritorialização, importantes para a interpretação da realidade atual. O território é
marcado ou permeado pela ideia de domínio, campo e pertencimento (elo, disputa,
posse), e sua força demarcadora estabelece um "fora" e um "dentro". Por
conseguinte, determina quem está dentro e quem está fora (os desterritorializados),
bem como a extensão de um limite [prévio], de uma circulação ou de um circuito. A
desterritorialização pode então ser física, mas também sígnica, simbólica,
dimensional. Os territórios podem ser abandonados, perdidos, retomados, refeitos,
repreenchidos. A noção de território de Deleuze [e Guattari], por exemplo, é pensada
a partir da noção dos territórios animais (marcados pela urina, pelo esfregaço nas
árvores, pela cor, pelo som apresentado ao concorrente, etc.). Daí podermos dizer
que as regras do território vigem por relações de dinamismo e poder, não sendo ele,
portanto, nem pacífico nem apolítico. Segundo os filósofos , "todo território supõe
uma desterritorialização prévia (...). O comerciante compra num território, mas
desterritorializa os produtos em mercadoria e se reterritorializa sobre os circuitos
comerciais (...)" (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 89-90).
Portanto, as forças entrelaçadas das realidades e formas culturais em
jogo, cujas matérias, imaginários e ressonâncias vão desembocar nas vozes
assumidas pela lírica em sua ocorrência e em seu caráter visionário, permitem a
validação da consciência dos espaços vivenciais e experienciais do artista. A
realidade em que seu corpo habita o tempo de um país, de uma comunidade, pode
estar completamente alijada de sua poesia, mas ainda assim podem ser índices a
serem levados em conta por aqueles que interrogam os sentidos de mundos,
propostas, posicionamentos e reivindicações de sua arte.
O tempo presente (para lembrar a importante obra ensaística de Beatriz
Sarlo7, que trata da realidade argentina nesse encontro de séculos XX-XXI)
congrega uma série de elementos e confluências que não dizem respeito somente
7
SARLO, Beatriz. Tempo presente. José Olympio Editora, 2005.
37

ao Brasil o a qualquer outro país localizado na América do Sul. Temos o acúmulo de


conhecimentos, tecnologias e saberes, a rede mundial de computadores
interligados, de comunicação e de informação mundial, juntamente com poderosas
redes mass media; temos um investimento no corpo, uma consciência que
poderíamos chamar de "cidadã", mobilizando reivindicações e respostas a uma
afirmação de direitos e identidades; temos, talvez, um impulso (mínimo que seja) à
convivência com as diferenças; temos talvez maiores oportunidades de uma "vida
digna" (dentro do sonho do capitalismo liberal) do que há alguns anos; temos até,
para os mais crédulos, maior liberdade e possibilidade de discurso, comércio,
formação e deslocamento. Porém, em conjunção com as "leituras felizes" desse
tempo, cabe mencionar o crescimento desordenado das cidades e o inchaço
exponencial das metrópoles, com suas mansões, seus arranha-céus de riqueza, sua
força de tração média (intelectuais, inclusive) e sua massa de sobreviventes e
moribundos desassistidos; o consumismo "de celebração" 8 sua retroalimentação, a
indústria cultural e a indústria do entretenimento, incluindo o poderio do futebol; as
chamadas culturas de periferia; o desemprego dos "desqualificados" ou
"incompetentes"; a violência, desde a dissimulada até a barbárie, com a
consequente superlotação de presídios e os becos-com-saída da justiça; os
shopping centers dos corpos e do tráfico de drogas... Este último, um dos territórios
em que mais funciona a falta de controle do Estado e no qual os desassistidos [do
Estado] veem a movimentação financeira, a própria selvageria e o poderio armado
como se fosse a única possibilidade para afirmação de sua identidade (SARLO,
2005, p. 15).
Em meio a esse quadro, e considerada a noção de território, no Brasil a
arte também ocupa lugar primordial, colocando em circulação formas, experiências e
realidades estéticas, contribuindo para a formação do repertório imaginário-cultural
do país, funcionando como espaço de acolhimento e liberdade para indivíduos e
comunidades e mobilizando um mercado de signos e bens materiais e imateriais.
Levando em conta essas questões, fundamentais para a reflexão sobre a
arte dos últimos anos no país, e sobre a conjuntura do tempo presente, ressalto,
então, a partir deste ponto, noções e concepções que tratam do espaço e do tempo,

8
Apropriando-me de um termo de Beatriz Sarlo, que utiliza a expressão cunhada para denominar o
populismo peronista (governo de Juan Perón - 1946-52/1952-55) na Argentina, o qual uniu cultura,
intelectuais e política, e foi transformado em mito nacional.
38

ou seja, às complexas e sutis questões que as envolvem e que considero bastante


significativas para a compreensão da poesia brasileira contemporânea, de modo
particular, e, de modo geral, como instrumentos de aproximação à arte como um
todo, na qual nossa poesia está inserida, pontos estes que se constituem como
injunções, encruzilhadas e sussurros às próprias transformações desta poesia,
dentro das perspectivas aqui possíveis.

1.1.2 Instâncias potenciais do espaço: dos espaços vivenciais às paisagens literárias

Vários campos do conhecimento tratam da categoria "espaço", e dentro


destes campos a palavra estará carregada da historicidade e mudança, no
transcurso que vai delineando sua concepção. A orientação aqui tomada foi apenas
a de traçar uma visão geral para a compreensão de seu papel no texto e de sua
ocorrência no poético.
Comecemos esta discussão por uma concepção relacional de espaço. "O
espaço não é nem uma coisa, nem um sistema de coisas, senão uma realidade
relacional: coisas e relações juntas". Esta noção de espaço apontada por Mílton
Santos (1988, p. 10) coaduna-se com outras implicações fundamentais: 1) o homem
é uma presença que habita e se relaciona, criando o próprio espaço, enquanto
pessoa e ente no mundo, e como ser social por excelência; 2) o espaço, como
realidade relacional sofre transformações qualitativas e quantitativas pela dinâmica
das próprias relações; e 3) o espaço se estabelece como linguagem e por via de
linguagens diversas. Não seria, portanto, uma simples relação bruta de homem,
escala, natureza, mas também de natureza, sociedade, cultura, trabalho,
signicidade/semioticidade. Dentro dessa realidade e de suas implicações, é possível
conceber o espaço de vivências do humano como o espaço vital individual e/ou
coletivo, significativo, da experiência, que é íntima ou objetiva, "vis-à-vis", mediada
pela percepção, com sua quota de intuição e racionalidade; mediada pela linguagem
e pelas disposições do sentir. Em O homem e o espaço (2008), Otto Bollnow o
concebe como "o campo do comportamento da vida humana", e confere-nos:

O espaço [diferenciado com respeito ao espaço puramente matemático, e


distinguido qualitativamente] tampouco é para o homem um meio neutro e
constante, mas é preenchido com significados nas relações vitais de
39

atuações opostas, e esses significados, por sua vez, mudam de acordo com
os diferentes lugares e regiões do espaço. Também esses significados não
são devidos a sentimentos apenas subjetivos que o homem liga ao espaço,
mas são características autênticas do próprio espaço vivido ["espaço de
vivências"9] (BOLLNOW, 2008, p. 16).

Por sua vez, o espaço das particularidades e subjetividades, que se


inscreve na habitação, e das paisagens locais e familiares, estende-se e amplia-se
para uma espécie de totalidade-sempre-móvel de relações, para a comunidade
(ecologia grupal, afetiva e co-narrativa) ou coletividade (ecologia da convivência
pragmática e dos interesses comuns, populações e multidões), bem como para a
hoje chamada “totalidade-mundo”10, realizada, contraditoriamente, de
esgarçamentos e esforços de realização.
Instaurado num complexo de relações e estabelecido em campos
discursivos, ao mesmo tempo em que atua sobre a corporalidade e o espírito
humano, o espaço é vivenciado e historicizado pelo homem, com ocupações
produtivas e narrativas de avanço e progresso − narrativas da modernidade −,
preocupações e desejos, seus valores, cuidados e modus vivendi. A relação do
homem com o espaço não é uma relação unilateral, é complexa, com impulsos para
a harmonia ou a desarmonia, para o "desconcerto", com ameaças constantes de
catástrofes e perdas irreparáveis − seja esse espaço o da cidade, o da floresta, o do
deserto; seja o espaço empírico, virtual ou discursivo, da cultura ou o da economia.
É, pois, com essa complexificação que o espaço se torna confluência de
sentidos, torna-se lugar de habitação experienciada, afetiva e familiar. Seu habitante
será por ele efetivamente tocado, modificado, em seu modo de vida, sua linguagem,
seu corpo: locus vivencial, espaço de vivências, aquele confluente em que o homem
é tocado pelo chão da experiência cotidiana, íntima e social, e se constroem os
espaços da alteridade. O poeta estabelece aí suas percepções, relações,

9
Utilizo esse termo com base na noção de “espaço vivenciado”/"espaço vivido" (que se vivencia), no
sentido de Bollnow (2008), com ênfase nos aspectos experienciais e intuitivos (nos significados das
relações vitais) mais do que físicos ou matemáticos, no sentido de que o homem "nele vive e com ele
vive. Trata-se do espaço como meio da vida humana" (ibidem, p. 16). Penso que a locução torna a
noção mais significativa que o adjetivo com ressonâncias semânticas de formas verbais do particípio
e do pretérito (vivenciado, vivido). Por outro lado, "de vivências" implica uma noção de pluralidade e
multiplicidade, em vez de uma construção sobre uma narrativa ou um pensamento linear, que não
corresponde à realidade vivencial enquanto ocorrência no presente.
10
Para Édouard Glissant, a Totalidade-mundo é a “espécie de comunidade, feita da totalidade
realizada de todas as comunidades do mundo, realizada através do conflito, da exclusão, do
massacre, da intolerância, mas ainda assim realizada” (GLISSANT, 2005, p. 44), e que “torna-se para
nós um difícil mergulho no caos-mundo”. Penso podermos vê-la como uma totalidade feita de
conjuntos, agregações e esgarçamentos.
40

afetividades e conexões, e configura seu projeto de escritura sobre uma


transfiguração de espaços, em negociações possíveis e sensíveis.
Harmonizando-se de certo modo com Glissant (vide nota, acima), o
estudioso da cultura e do imaginário cultural, Paul Zumthor, concebe que o lugar
ordena o movimento do ser, totaliza os elementos e as relações que o constituem:
“um conjunto de signos nele se acumula e nele se organiza em um Signo (sic) único
e complexo. Daí sua coerência, análoga àquela de um texto. Ele é, com efeito, um
texto onde se inscreve uma história”.11 Evidentemente, é preciso entender essa
percepção dentro da visão de um lugar em que a noção de sujeito está interligada à
noção de espaço. Numa realidade contemporânea, aberta e imprevisível, deverão
ser levadas em conta as relações fronteiriças, os entrelugares, a noção de "não
lugar", concebido este como o espaço produzido pela não fixação, pela "maneira de
passar", onde existe somente um pulular de passantes, uma "rede de estradas" 12:
territórios de configuração volátil ou prismática relativos a um sujeito concebido
como disperso, diaspórico, fronteiriço, vazado, cindido ou virtual, sobre cujos
vestígios pode restar apenas o vazio e/ou os rastilhos de memória. São, nas
palavras de Michel Certeau (1994, p. 184), "os lugares vividos como presenças de
ausências, [onde] o que se mostra designa aquilo que não é mais".
O espaço adquire, assim, esta semântica de instância crítica, política,
memorial e identitária, território epistemológico e até instância esvaziada, ou
simplesmente significante, pronta para receber um significado diferencial. Espaço é,
portanto, conceito não independente das diversas ordens discursivas e de
produções de discurso, ora acomodando-se à cadeia oferecida pela linguagem, ora
rompendo com ela, vazando, extravasando, porque muitas definições caracterizam a
tentativa de determinar aquilo que ultrapassa o cabresto.
Essa posição aponta para uma outra concepção de espaço que acentua,
no contexto da modernidade artístico-literária, um caráter de dispersão,
descontinuidade, simultaneidade e fragmentação, onde só podem ser concebidos
lugares simultâneos, fragmentos, cacos, mosaicos:

11
«Un ensemble de signes s’y cumulent et s’y organisent en un Signe unique et complexe. D’où sa
cohérence, analogue à celle d’un texte. Il est texte en effet, où s’inscrit une histoire».
(ZUMTHOR,1993; p. 52).
12
Cf. CERTEAU, 1994, p. 183.
41

Em abordagens [sobre espaço e literatura na modernidade] como as de


Joseph Frank e Georges Poulet,13 o fundamento do texto literário moderno é
a fragmentação, o caráter de mosaico, de série de elementos descontínuos.
Pensa-se a literatura moderna como exercício de recusa à prevalência do
fluxo temporal da linguagem verbal. Espaço é sinônimo de simultaneidade,
e é por meio desta que atinge a totalidade da obra. Em tais abordagens, o
desdobramento lugar/espaço se projeta no próprio entendimento do que é a
obra 14 (BRANDÃO, 2013, p. 61).

Neste caso, entende-se a obra como constituída de partes autônomas,


exigindo-se entre elas uma interação em outro nível, isto é, no espaço da obra.
No contexto atual, a concepção desse esgarçamento e desse mosaico
radicaliza-se (como discutiremos ainda em outros tópicos). As teorias da pós-
modernidade apontaram não apenas para "lugares de indeterminação" e
desagregação, mas para os lugares esquizofrênicos como espaços desejáveis, ou
para uma semiose/psicanálise da esquizofrenia nas representações e nas artes −
que se abre a uma pragmática do aleatório, da incompletude, dos vazios, da
incoerência e do absurdo. Uma abordagem político-cultural ("pós-territorializado")
desse contexto, implementando sobre o conceito de espaço as possibilidades
transformadoras impostas pelo tempo e pelas mais distintas temporalidades
circulantes, o percebe, por seu turno, como um mundo de desterritorializações e
transterriorializações:

o tempo está apto a fazer convergir as variações históricas para a diferença


de um agora acolhedor das mais distintas temporalidades que se
apresentam em mobilidade de constelações, séries, redes e superposições
que se agregam e desagregam, possibilitadoras de outras leituras do
passado e do presente (PUCHEU, 2014, p. 256-257).

Cabe lembrar, por outro lado, que, tanto a literatura quanto a teoria da
literatura estabelecem diferentes relações com a noção de espaço. A relação da
teoria da literatura com esse conceito, conforme Luis Alberto Brandão, em Teorias
do espaço literário (2013), tem sido uma relação de baixa frequência. A teoria tem
consolidação no início do século XX, momento de um desígnio imanentista no
estudo do texto literário (formalismo russo, new criticism, estilística... e
posteriormente fenomenologia, estruturalismo). Isto, somado ao projeto artístico

13
Cf. BRANDÃO, 2013, p. 60-61, onde esse autor apresenta brevemente essas duas abordagens
sobre as relações entre espaço e literatura e suas concepções, as quais confluem para o que foi
sintetizado nessa citação.
14
Neste caso, numa concepção relacional de espaço, entende-se a obra como constituída de partes
autônomas, exigindo-se entre elas uma interação [em outro nível].
42

modernista (de uma arte autotélica, "antimimética" e de exploração das


potencialidades formais da linguagem poética) resultou num desinteresse pelos
estudos do espaço: "ele não despertava especial interesse em um pensamento que,
essencialmente antimimético − por conceber a mimese como imitatio −, elege o
debate sobre a linguagem como alicerce teórico principal" (BRANDÃO, 2013, p. 22-
23).
Mais adiante, elencando as mudanças progressivas de concepção que o
conceito de espaço vai ganhando nos estudos literários, Brandão (2013, p. 58ss),
ressalta que as abordagens passaram, nos estudos literários, por interrogações
sobre a representação do espaço (o espaço dado como categoria existente no
universo extratextual); e sobre esse espaço como forma de estruturação textual
(procedimentos formais, simultaneidades, relações entre paisagens, imagens e
linguagem); sobre a visão, a experiência perceptiva e perspectival, o ponto de vista,
espaço visto e espaço vidente, e, finalmente, sobre espacialidade da linguagem
verbal na literatura, enquanto composta de significantes e elementos estruturados.
Hoje, conforme o autor, o conceito ganha relevância e importância, e as recentes
indagações (desconstrucionistas, recepcionais, culturalistas) vinculam-no a um
debate tanto filosófico quanto antropológico, colocando-o sobre três linhas de força,
em grande parte imbricadas: semiótica, política e filosófico-antropológica.
Expansões dessas concepções seriam observadas em pelo menos quatro
feições/discussões que têm por mérito aclararem e ampliarem, teórica e
metodologicamente, os modos já consagrados de conceberem espaço e literatura,
ressaltando aporias, limitações e potencialidades.
A primeira discussão é a que se refere às "representações heterotópicas",
de Michel Foucault. Nessa "ampliação", o filósofo coloca como eixo o fato de que se
deve indagar não o que é espaço, mas "em que medida a obra literária é capaz de
fazer uso daquilo que em certo contexto cultural é identificado como espaço"
(BRANDÃO, 2013, p. 66). São os modos de subversão, transgressão, transfiguração
e reordenação (agramatical) dos espaços, de modo que uma visão heterotópica
impossibilita a manutenção do do "lugar comum", pensamento linear, e desloca a
concepção prévia.
A segunda discussão pergunta quais os modos de estruturação, além dos
difundidos como espaciais, merecem tal atributo. Fazendo uso da noção de
espaçamento de Jacques Derrida, o qual pergunta quando o espaço pode devir-
43

tempo, ou seja, pela temporalização do espaço nos processos de escrita e leitura,


na direção da "cronotopização" [conceito de "cronotopo artístico-literário"] de Mikhail
Bakhtin15. Entram aí também, nesse quadro de investigações sobre as relações
espaçotemporais, o devir e a duração, as colaborações de Gilles Deleuze e Félix
Guattari. Tais colaborações podem ser investidas sobre os sentidos que o texto é
capaz de suscitar a partir de seus vetores de ordenação e desordenação - que
arrastam consigo relações como as de proximidade e distância, compactação e
extensividade, convergência divergências, descontinuidades. Deleuze enriquece a
discussão e afia a percepção da espacialidade (em conjunção com o tempo), ao
propor os conceitos de "espaços estriados" e "espaços lisos" 16, tomados já de
empréstimo ao compositor e maestro francês Pierre Boulez (1925-2016). Sempre
visados numa relação espaço-tempo, podemos assim entender tais noções:

Ora, ao passo que num espaço estriado fecha-se sua superfície para
"reparti-la" segundo intervalos determinados, segundo cortes assinalados
[cortes determináveis, racionais, medidas], no espaço liso "distribui-se" num
espaço aberto,conforme frequências e ao longo do percursos [é associado à
intensidade e não à extensividade, de "relações preenchidas sem medida" e
"povoado de afetos"] (PELBART, 2007, p. 89-90).

A terceira discussão concerne à associação entre espaço e ponto de vista


literário: "o princípio de que o espaço no texto se define por intermédio de focos,
perspectivas, visões" (BRANDÃO, 2013, p. 69). Visão e voz literária podem
desmembrar-se, e esta pode desejar-se atópica. A relação entre sujeitos e objetos é
como relação entre planos, e eles determinam-se mutuamente. O espaço é definido,
então, não aprioristicamente, mas resultando de uma distribuição relacional.
A quarta posição, relativa aos "espaços de indeterminação", afirma a
espacialidade da linguagem, não nega uma corporeidade do espaço, mas não
concebe “o corpo” nem como “manifestação autofundante”, nem como "noção
autoevidente". Tal posição põe em cheque a relação entre a corporeidade do
espaço, sua "matéria", e as instâncias abstrativas, isto é: a forma, como matéria
culturalizada, semiotizada, e mesmo seus laços com a indeterminação/com o
imaginário:

15
Vide nota 39.
16
Essas duas noções, de "liso" e "estriado" em relação não somente ao espaço, mas também em
relação ao tempo são de fundamental importância para a percepção e análise das questões espaciais
e temporais, neste caso, sobretudo no que se refere, respectivamente, ao tempo durativo e ao tempo
cronológico (vide tópico 1.2.1)
.
44

abre-se uma via que aborda a literatura simultaneamente como realidade,


processo de ficção e movimento do imaginário. [...] Nessa conjuntura
teórica, o espaço literário passa a ser interrogado ao mesmo tempo como
produto (isto é: obra, corpo, dado, referência), como relação (ou seja:
operação, atribuição, articulação) e como condição (tanto da identificação
de produtos quanto do estabelecimento de relações) (BRANDÃO, 2013, p.
72).

No caso particular da poesia, verdade é que também a página ["em


branco"...], possibilitando a interferência, o corte, o recorte ou a ruptura do verso, a
disposição das estrofes ou dos signos poéticos, sempre foi espaço significativo na
disposição gráfica e visual do poema, estabelecendo-a como corpo-espaço. Mas,
sobretudo da modernidade ao momento atual, esse espaço transformou-se mais
intensamente de sua apreensão mimético-perceptiva, ou ainda de sua apreensão
como matéria paisagística de fundo − em geral, em contextos de concepção da
mímesis ainda como imitatio17 −, em sua compreensão como elemento significativo,
sensível/afetivo/afeccional, essencial à corporeidade significativa do poético.
Vejamos um exemplo da relação construtiva do espaço na Figura 01, abaixo: a
página, espacializada, torna-se por sua vez fronteira − neste caso, "estrada" − entre
o suporte material e o suporte estético-imaginário.

17
Isto é, como imitação, espelhamento da natureza ou das ações humanas. Uma discussão sobre o
entendimento do conceito de mímesis será feita mais adiante.
45

[Figura 01: Poesia e espaço gráfico no objeto-livro]

(Fonte: Cavalodadá em Siga os sinais na brasa longa do haxixe 5/6. CAVALODADA, 2016, p. 12-13)

Nesse caso, a disposição do poema espacializa a página, torna-a objeto


de percepção estética, corpo e matéria de uma semiótica visual. Assim, interroga-a,
determina-a, constituindo sua espacialidade sensível como parte intrínseca da
composição, do sentido e do imaginário que o espaço configura, tornando essa
página espaço também de liberdade, palco, ou abismo silencioso e vazio, de onde
as palavras arrancam cosmicamente sua origem primeva, ou onde elas despencam
e sucumbem. Mas isto não é novidade para a poesia. Um dos modelos supremos de
uso do espaço da página em branco é o já mencionado Un coup de dés [...], de
Mallarmé, um dos poemas inaugurais da modernidade. E entre outras ocorrências,
lembremos o poema lírico-social de Maiakovski, os exercícios cubistas ou
concretistas, as leituras cruzadas na página neoconcreta de Ferreira Gullar.
O fato é que o espaço estará sempre entranhado na paisagem ubíqua do
poema, por via da configuração lírica. E o poema pode, assim, configurá-lo como
fragmento de evocação, elipse/pressuposição, ausência ou clarão em suas
paisagens internas. Poderá instalá-lo numa dimensão simbólica e encará-lo como
feliz ou iluminado, de amplidão, cosmológico, ou o espaço aconchegante tal como o
46

do útero ou da casa, mesmo aquela casa dos campos perdidos (BACHELARD,


1993). Mas também como sufocante, desolador ou opressor, espaço de lutas e
habitação dramática, resistência e engajamento; de adequação ou inadequação,
povoado ou deserto, aprazível ou hediondo, em confluência, divergência ou conflito
com outros espaços e representações, nos quais reverbera sempre um determinado
valor de positividade ou negatividade, euforia ou disforia, e que implica em desejo,
em acomodação ou repulsa. No poema, esse simbólico pode manifestar-se também
metaforicamente com imagens topográficas, fisiológicas e orientacionais:
alto/acima/para cima e baixo/abaixo/para baixo; dentro e fora; vertical, horizontal,
diagonal; o cósmico, o caótico; "partes altas" e "partes baixas" do corpo, peso e
leveza.
Assim, ele, o espaço, constitui-se, nos termos da linguagem, da palavra,
como paisagem de vivências, paragem, habitação. Benedito Nunes, relembrando a
fenomenologia poética de Bachelard (a imaginação do espaço da casa), bem como
a fenomenologia do Dasein, de Heidegger (o espaço dado pelo mundo circundante
do cotidiano, como espacialidade não métrica), reitera o seguinte:

[...] Não é o espaço abstrato que conta, mas o espaço recortado em


paragens. Nós existimos em paragens, em nossas casas, nossos quintais,
nosso bairro, nossa cidade etc... pois a paragem é o que está diante e em
torno. Ora, se a espacialidade é, nesse sentido, não métrica, há uma outra
conotação para distância e proximidade. [...] Podemos estar próximo e
distante" (NUNES, 1999, p. 141).

Diante destas discussões, podemos considerar como referência pelo


menos três perspectivas que apontam experiências e propõem formas do espaço na
poesia, ou que são relativas a ela: o espaço extratextual, de onde partem
fundamentalmente os delineamentos conceituais primários e as ancoragens
referenciais e contextuais, histórico-existenciais (mundo da vida), físicos e
simbólicos; o espaço intratextual, virtual, criado no mundo do texto e a partir dele,
por um repertório imagético e um imaginário fundado e configurado entre criação e
leitura, e, por fim, não desvinculado formalmente deste, uma espacialização
estruturante da disposição gráfico-formal do poema, versos, palavras e outros signos
ou elementos gráficos significantes da composição, na página.
Contudo, não é possível desconsiderar também uma outra operação
constitutiva de um espaço sensível, inserida no processo de mediação que o texto
estabelece como lugar de acolhimento do olhar e do jogo estético-imáginário. Trata-
47

se do projeto/objeto-livro, o espaço-livro, liminarmente simbólico − isto é, situado na


fronteira entre o suporte material e o suporte estético-imaginário −, como objeto
sensível, que recebe e acomoda o poema, e, afinal, pode destruir ou incrementar em
grande parte sua proposta de significação. É evidente que essas noções e
referências estão profundamente interligadas (ou é possível pressupor que estejam),
num impulso ou numa vontade de harmonia, ou, ainda, numa proposta crítica de
contraposição entre os termos, mas sempre como fruto de uma relação dialogal.
Essas considerações gerais tornam-se necessárias na medida em que
podem construir uma perspectiva para uma reflexão mais específica sobre a
construção do espaço poético no projeto lírico dos autores tendo em vista o
processo ou “tendo como escopo” a conjugação de uma realidade empírica
somático-afetiva, de tonalidades, cheiros, imagens, colorações, com o de uma
realidade espacial que se constitui nas dimensões possíveis que a linguagem pode
suscitar em seu corpo sensível e em seu rumor imaginário-representativo.

1.1.2.1 Espaços urbanos e espaços telúrico-campesinos: fluxos, devorações,


imaginários

Posto que a história das cidades é uma narrativa já bastante explorada e


por demais extensa e presente, para exigir uma especulação, a questão do espaço
urbano será tratada de uma maneira mais direta e sincrônica. A cidade, enquanto
conceito, discurso e locus vivencial humano, com seu organismo da urb e da orbs
tentacular, com seu sistema panóptico (agora mais do que nunca 18) e apropriador,
tornou-se uma realidade impregnante no corpo e no discurso da poesia.
Abaixo, apresento um poema que, refletindo sobre o indivíduo-urbe,
convoca nosso olhar para a vertigem desse redemoinho, discorrendo crítica e
poeticamente sobre essa realidade da cidade como centro voluptuoso, atraente e
engolidor: o poema Lúcio Costa, de Ronaldo Costa Fernandes (2009, p. 56-57). Que
ele fale por si:

18
Não se trata apenas dos mecanismos de vigilância e/ou segurança, agora espalhados nas ruas,
nos sinais eletrônicos do trânsito, nos ambientes públicos ou particulares, e muitas vezes interligados
em redes ou com o risco iminente de "cair" nelas. Trata-se, principalmente, de um modo de ver, agir,
falar e pensar cuja referência tem a Cidade, a Metrópole, como centro de referência, desejo/meta e
controle.
48

[...]
A cidade tem a volúpia do centro,
o redemoinho de cimento,
o desejo calçado de engolir-se
em sua rota traçada para fugir de si
cada vez que mais se encolhe.
A cidade é enorme roda-gigante,
feita na barroca voluta dos eixos
desfeitos
e tesouras e asas e quadras
que se enroscam no gabarito
do homem estonteado e central.

Esta cidade é cêntrica,


e suas bordas repetem o centro,
como uma pedra lançada na água,
e, embora tudo me tonteie
e engula em sua voracidade de vórtice,
sinto-me sempre prestes
à periferia dos nervos,
à margem da vida,
à borda urbana.

O poeta contemporâneo, por sua vez, é principalmente um sujeito


vinculado ao espaço urbano, mesmo que não tenha aí a sua origem, imerso na
experiência da cidade, cujos pares-leitores são eminentemente urbanos, real ou
idealmente, e visam a esse espaço. Visar a esse espaço quer dizer encaminhar-se
efetivamente para ele, já que aí estão os circuitos de produção e engajamento, os
círculos editoriais, os centros disciplinares e de estudos da literatura, a crítica, os
jornais, os encontros e saraus, a maquinaria e as ferramentas do sistema literário.
É verdade que a cidade proporciona um "catálogo de sensações físicas
do ambiente urbano" para uma população de sujeitos em movimento (SENNET,
2008), elementos de uma "sociedade da imagem" ou "do espetáculo". Catálogo em
cujo acúmulo de opções, podemos ter a visão da paisagem de concreto e edifícios,
aço e vidro, cruzamentos, pontes, viadutos; a grelha das grandes avenidas e o
arabesco das ruas, favelas e ocupações; a parafernália multissensorial, engolfante e
violenta do trânsito; os sons "ao redor" e os barulhos infernais; os centros
49

comerciais; a imensa rede de anúncios, outdoors, painéis iluminados, pichações,


murais; os mercados e camelódromos; o fedor - já tão familiar - dos canais pútridos e
o cheiro clean-refrigerado dos shoppings; os cenários de abastados e de desvalidos,
entre outros), as massas e multidões nas aglomerações públicas, tudo fundando sua
própria matéria multifacetada de memórias e evocações (imagens, imagens) para
aqueles que a vivem e experienciam.
Mas a cidade proporciona também, entre seus impactos de objetivação e
subjetivação, a força máxima da indústria cultural e do entretenimento, a
coletivização dos corpos e sua transformação em simulacros, as concepções e os
desejos massificados, a experiência narcótica da fruição passiva, o medo do
contato, a insegurança, a letargia ante a violência extrema, a volatividade dos bens,
a exclusão, a centralização política, a exploração comercial, a circulação e a
centralização do capital - hoje inclusive altamente migrante, entre o real e o virtual -
e a usura ao limite máximo, altos padrões de riqueza e de miséria, o aparato policial
e jurídico, uma economia do tráfico, com suas leis, suas rotas alternativas e sua
disposição estratosférica de drogas... Enfim, podemos considerar a cidade é um
verdadeiro sistema oximorético, de caráter ao mesmo tempo fático e simbólico, em
movimento contínuo, cotidiano, cujas contradições só a reforçam e a alimentam.
Ao discutir a questão "¿Qué es una ciudad?" [O que é uma cidade?],
Néstor Canclini, em Imaginarios Urbanos (2007, p. 69-97), sintetiza três conceitos
com enfoques que contribuem para repensarmos, de maneira aprofundada, suas
relações problemáticas. Segundo este autor, são, de certo modo enfoques que
comportam ideias limitadas, que dão apenas algumas aproximações, mas que nos
ajudam a pensar esse espaço, proporcionando certo sentido da vida urbana. O
primeiro enfoque sobre a cidade, baseado em aspectos exteriores, de fundo
funcionalista, costuma opô-la ao ambiente rural. O campo seria um lugar de relações
comunitárias e familiares, atividades e relações primárias, enquanto que a cidade
concentraria o lugar das relações associadas de tipo secundário, com papéis
segmentados e eletivos. Canclini ressalta que esse enfoque não explica as
diferenças estruturais, ou como o urbano penetra no rural e vice-versa, e deixa de
levar em conta as interseções e os entrelaçamentos entre os dois espaços.
É importante, contudo, refletirmos sobre o fato de que haja um efetivo
avanço da cidade sobre o campo, não apenas como conquista de território, mas
como domínio ou cooptação dos indivíduos e poder sobre corpos (inclusive pelo
50

aparato político-jurídico-policial, cartorial, médico-hospitalar, educacional...), e uma


relação que se desenha hoje talvez mais sob o signo do capital e do poder de
consumo que sob o olhar reprovativo ao bárbaro, ao caipira ou ao selvagem.
Um segundo enfoque sobre o conceito de cidade, baseado em critérios
geográfico-espaciais, entende-a como localização permanente e densa de
indivíduos heterogêneos. A crítica sobre este enfoque ressalta a ausência dos
caracteres histórico e social que engendraram as estruturas urbanas, as densidades,
a dimensão e a heterogeneidade.
O terceiro enfoque assenta-se em critérios econômicos e coloca a cidade
como resultado do desenvolvimento industrial e do acúmulo do capital, concentração
de produção e consumo massivo. Conforme o autor de Imaginários Urbanos, o
sociólogo Manuel Castells aponta nessa concepção a ausência de uma discussão
dos aspectos ideológicos, e Antonio Mela, representando um discurso questionador
deste "modo economicista de analisar a cidade, a experiência cotidiana do habitar e
as representações que nos fazemos das cidades" (CANCLINI, 2007, p. 71),
considera a cidade a partir de duas características da experiência, do habitar: a
densidade de interação e a aceleração do intercâmbio de mensagens, as quais
influem contraditoriamente sobre a qualidade de vida na cidade. Estas
características tanto exigem adquirir novas competências para situar-se nesta
densidade de interações e seu respectivo aumento de códigos comunicativos,
quanto colocam o problema de quem pode usar a cidade - no que poderíamos incluir
as diversas ordens de marginalização em relação a bens e direitos e do
analfabetismo funcional.
Essa problemática colocaria a cidade sobre uma tensão entre realização
e expressividade, ou seja: insere a cidade também numa rede de práticas,
comportamentos e sistemas comunicacionais, uma visão que, de certo modo,
aponta para as questões das relações informacionais e dos estudos das linguagens.
Na verdade, mesmo pensando na cidade como uma espécie de
redemoinho onívoro, cujo centro a tudo suga, nas suas determinações econômicas,
políticas e discursivas, a imagem da "voluta dos eixos desfeitos" dada no poema
anterior é bem apropriada, porque seus "eixos" não são facilmente determináveis,
são múltiplos e polivalentes, suas composições e relações de intersubjetividades e
corporeidade conjugam-se entre afeto e tensão, quando não são fragmentadas e
esgarçadas. Suas bordas são rarefeitas, esboroadas, esfumaçadas; suas paisagens
51

dinâmicas, sua velocidade vertiginosa, e seus "palcos móveis", não obedecendo a


uma permanência nem limite demarcado, como bem acentua Canclini (referência
supra). A cidade está no ambiente rural, e o ambiente rural está na carroça
arrastada pelo burrico, cruzando a avenida, mesmo quando o carroceiro, celular na
mão, já é um indivíduo perfeitamente urbano.
Deste modo, a cidade e sua conjuntura se constituem como uma
presença que permeia contextos, cotidianos, campos, cenários e linguagens, entre
as quais a literatura. Brandão (2013, p. 36-37) convoca uma analogia recorrente
entre cidade e livros, um paralelo entre "cultura letrada" e "cultura urbana" ou, diz
ele, "mais precisamente cultura metropolitana", lembrando que mesmo a palavra
sentido, conserva os traços semânticos do espaço: orientação, localização,
direcionamento. Esclarece que a analogia dá-se por via da associação da cidade
com os processos de linguagem e, por sua configuração, segundo uma língua,
"paralelo que parte da hipótese de que livros e cidades significam uma espécie de
ápice das possibilidades de organização material e simbólica da humanidade,
sintetizando o ideal da razão moderna. São, de certa forma, dois dos mais
representativos signos da modernidade ocidental" (BRANDÃO, 2013, p. 37). Essa
compreensão, relativa ao uso da analogia (e mais do que analogia, vínculo) como
"jogo de poder intrínseco ao caráter ordenador do espaço", pode ser completada
com esta importante citação de Ángel Rama, referida por Brandão – aqui, recorro ao
original, com breves variações de tradução:

toda cidade pode se apresentar como um discurso que articula variados


signos-bifrontes, de acordo com leis que evocam as gramaticais. Mas há
algumas onde a tensão das partes se agudizou. As cidades desenvolvem
suntuosamente uma linguagem mediante duas redes diferentes e
superpostas: a física, que o visitante comum percorre até perder-se na sua
multiplicidade e fragmentação, e a simbólica, que a ordena e interpreta,
ainda que somente para aqueles espíritos afins, capazes de ler como
significações o que não são nada mais que significantes sensíveis para os
demais, e, graças a essa leitura, reconstruir a ordem. Há um labirinto de
ruas que só a aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos signos que
só a inteligência raciocinante pode decifrar, encontrando sua ordem (RAMA,
2015, p. 47, grifos meus).

Inclusive porque também foi a "cidade letrada" que engendrou a criação


da chamada "literatura nacional" e as relações entre o cenário político, a feição e o
imaginário literário pátrio − ou mátrio. E hoje é ela que põe nos territórios
informatizados e eletrônicos uma literatura que não vê mais nenhum sentido em ser
52

chamada de "nacional". Ela pretende ser a literatura de uma hipermegalópole


mundial letrada, que está "em rede", com seus sentidos online.

1.1.2.2 Transitividades, anima urbis e cidades brasileiras

O discurso sobre a cidade tende a construir a imagem de uma cidade


única. Assim, o teórico fala das cidades ou da vida contemporânea e coloca a
imagem de uma megalópole, umas torres de Manhattan, de São Paulo, a Londres
iluminada, um viaduto grafitado, uma calçada com mendigos, ou colagens gráfico-
urbanoides na capa do seu livro. E por aí vai. É uma imagem válida, mas para a
leitura de algo como a poesia, disposta sobre uma absoluta rede de complexidades,
uma capa só não basta.
É imprescindível entender os processos e os movimentos globais de
conurbação (fusão de grandes regiões urbanas), megalopolização e integrações
mundiais, as novas configurações do mundo e seus espaços com suas ecologias e
economias em polvorosa, a insegurança política, os movimentos de migração e
refugiados, as populações e indivíduos diaspóricos, o envelhecimento das pessoas e
o estreitamento de seus cubículos, os novos quadros das relações íntimas e do
desejo; é preciso estarmos abertos ao repentino, previsível/imprevisível.
Assim, como sabemos, a cidade não é uma coisa só, é um entretecido de
diferenças e oportunidades, massacres, injustiças, vozes, direitos, apagamentos,
silenciamentos: um corpo de transitividades, ou seja, de interpenetração e
recorrências de espaços e pertencimentos, desterritorializações e apropriação de
novos espaços, conexões e rupturas, elos e deslocamentos narrativos. Entre
participação nos bens, usufruto dos lugares e qualidade de habitação, tudo está bem
para quem pode pagar. Mas quem não pode se recolhe para o centro de sua pele, e
a cidade vai se resolvendo entre determinações que podem vir de uma caneta ou de
um cano de revólver.
Este conjunto de diferenças, imbricações e lugares fronteiriços − onde
podemos incluir até a sobrevivência de animais silvestres na cidade, bem como o
avanço das cidades (do aparato habitacional, cultural, comercial e industrial urbano)
sobre áreas de preservação ambiental e ambientes selvagens 19 − estão marcados

19
A cidade na verdade também não se estende apenas como um planalto de asfalto e concreto. Seu
pressuposto de sustentabilidade tem por mandamento fundamental "preservar o verde", "plantar
53

em várias referências que também enleiam o físico e o simbólico: cidade alta, cidade
baixa; cidade antiga, cidade nova; e os lugares de habitação: as mansões, os
grandes condomínios e coberturas, os apartamentos de luxo, a casa do conjunto
habitacional, as ocupações, o abrigo, o papelão do andarilho, porém de modo que
todos possam coexistir nem necessariamente conviver:

ao planejar uma via pública, por exemplo, os urbanistas frequentemente


direcionam o fluxo de tráfego de forma a isolar uma comunidade residencial
de uma área comercial, ou dirigi-la através de bairros de moradia,
separando zonas pobres e ricas, ou etnicamente diversas (SENNET, 2008,
p. 18).

O espaço urbano é tido como espaço fundamental de habitação (o


migrante do campo procura-a para "habitar", e o comum de seu discurso é que sua
busca se dá no desejo de uma "vida melhor", transformado no discurso político da
"qualidade de vida"), mas ao revés do acolhimento, do espaço de trabalho e de
conexões, esse espaço é, como foi dito, o lugar de trânsito, de movimento fluídico,
de passagem e do "não lugar", como em Certeau, anteriormente referido. Enfim: um
lugar já erodido. É o lugar dos aeroportos, das rodoviárias, das agências de viagens;
os portos do consumo e o ponto de chegada e partida das rodovias. Sennet (2009,
p. 17) vê nesse deslocamento e nessas travessias a desconexão do espaço:

Hoje em dia viaja-se com uma rapidez que nossos ancestrais sequer
poderiam conceber. A tecnologia da locomoção - dos automóveis às
grandes rodovias - permitiu que as pessoas se deslocassem para áreas
além da periferia. O espaço tornou-se um lugar de passagem, medido pela
facilidade com que dirigimos através dele ou nos afastamos dele. A visão
que o motorista ao volante descortina À sua frente é a de um lugar
escravizado às regras de locomoção e neutralizado por elas [...]. A condição
física do corpo em deslocamento reforça a desconexão do espaço.

Evidentemente aí, nesses cruzamentos, também pode ser lida a dialética


de uma costura e, uma visão ou outra, são sementes de uma experiência que o
poeta vive como possibilidades de transfiguração e confronto nas dimensões da
"esgrima poética".
A vida moderna proporcionou esse lugar ambíguo, do acolhimento ou das
identidades fluidas, enquanto lugar de passagem. A imagem nascente da

árvores", criar áreas verdes e parques-ilhas altamente arborizados e irrigados, os quais servirão, por
sua vez como espaço público de lazer, entretenimento e como atrativo turístico. Quanto maiores as
cidades, mais finanças para esse investimento.
54

modernidade, bem o sabemos, com Baudelaire e Benjamin, é a imagem da multidão


e do flâneur − o andarilho, o amante da cidade, o "detetive amador", o qual, quando
consciente, torna-se capaz de descortinar esteticamente a realidade da cidade, em
seu brilho fascinante e no chamariz de suas vitrines, suas guerras e cicatrizes, onde
a poesia torna-se esgrima. Mas quando estagnado em sua estupefação, também o
sabemos, "o flâneur torna-se um basbaque" (BENJAMIN, 1989, p. 69) − mesmo não
sendo esse o papel que poeticamente o eleva:

O simples flâneur está sempre em plena posse de sua individualidade; a do


basbaque, ao contrário, desaparece. Foi absorvida pelo mundo exterior...;
este o enebria até o esquecimento de si mesmo. Sob a influência do
espetáculo que se oferece a ele, o basbaque se torna um ser impessoal; já
não é um ser humano; é o público, é a multidão (FOURNEL apud
BENJAMIN, 1989, p.69).

A flâneurie atualiza-se no contemporâneo através da "anima urbis" 20, da


"alma da cidade" no corpo do seu andarilho, na formulação de uma poética da
circulação e do sentimento da cidade, inclusive em certos aspectos da street art e da
poesia mural, mesmo que esta se queira apoesia do lugar nenhum, do lugar vazio
ou do lugar cósmico (cosmopolita), ela está bem marcada por seu espaço e suas
circunstâncias. Isto não deprecia nenhuma dessas artes ou as torna anacrônicas (no
velho sentido), mas não as livra da desconfiança do espírito benjaminiano,
conjuntamente atualizável – trata-se de poesia, de exercício de manifestação urbana
da linguagem, ou simplesmente basbaquice?...
Alguns trabalhos mundialmente famosos, estéticos e científicos, exploram
com esse título a ideia da flâneurie na anima urbis. Dois exemplos, um mais antigo e
um mais recente: "Anima Urbis' (2010), documentário em que Xisela Franco
(Espanha) explora a "cidade pós-moderna", em passeios ao modo de flanêur,
deambulando pela cidade de Toronto e seus espaços públicos 21; e Edith Matilda
Tomas (1854-1925), capturando o excitamento da cidade moderna na transição

20
Alguns trabalhos mundialmente famosos, estéticos e científicos, exploram com esse título a ideia
da flânerie na anima urbis. Exemplos, um mais antigo e um recente: Edith Matilda Tomas (1854-
1925), capturando o excitamento da cidade moderna na transição entre os séculos XIX e XX, cujo
poema "Anima Urbis" retrata essa alma que impacta e marca a linguagem da poesia: "Anima Urbis'
(2010), da documentário em que Xisela Franco (Espanha), explora a "cidade pós-moderna" em
passeios ao modo de flanêur, deambulando pela cidade de Toronto e seus espaços públicos; e
"Anima urbis", de
21
http://www.xiselafranco.com/portfolio/items/anima-urbis. Acesso em outubro/2016.
55

entre os séculos XIX e XX, cujo poema "Anima Urbis" retrata essa alma que impacta
e marca a linguagem da poesia:

Cidade, eu não sei que charme tu exerces


que em meu espírito tem se tornado bálsamo sutil,
pelas memórias apunhalantes que tantas vezes curou.
Seus próprios tumultos podem acalmar meus tumultos.
Quem fala da astúcia, do mal que seus feitiços
[podem fazer?
Encantadora Cidade − estou seguro contigo!
Sim, eu tenho sido teu amante por muitos anos.
Como qualquer amante que em teu louvor pudesse cantar,
Por isso - por esta razão - o meu coração te adora tanto.
E ainda, e ainda, várias vezes além de cada coisa
como qualquer amante eu desespero, e digo
"Foi a tua alma que eu tanto amei um dia!"
Tua alma, híbrida de muitas almas! 22

Necessário é considerarmos, contudo, que a relação entre a "alma da


cidade" e o poético ultrapassa o tema do flâneur, andarilho da modernidade e suas
reencarnações contemporâneas. Falar de alma da cidade é acreditar que a cidade é
uma coisa viva, animada, que ela pulsa como corpo e vontade, suas energias e
vibrações, mesmo que em sua fragmentaridade, em suas contradições. Vivências e
experiências sedimentam, por seu turno, a caudal de um imaginário que reúne seus
indivíduos, sua coletividade, seus espaços públicos e particulares, em factividades e
temporalidades que se colocam e se impõem como repetição e diferença. Ela se
torna a casa familiar, afetiva, com seus cuidados e suas tensões, vicissitudes e
sonhos de permanência e saúde. Aí, nessa realidade, paisagem e conjuntura
instauram a clareira de uma imaginação produtiva e criadora, grávida de mundos
dos quais cada arte ao seu modo torna-se a principal via de parimento. E nessa
clareira a alma se faz, compartilhando-se como anima loci, no corpo-cidade. É uma
alma que sofre seus influxos (pathos, chagas não curadas, desregramentos,
paixões, pathos), injunções e representações, sua psique, seus signos, sendo assim

22
[...] City, I do not know what charm you wield/That to my spirit has been subtle balm;/From stabbing
memories it oft has healed./Your very tumults can my tumults calm./Who speaks of guile, of harm your
spells can do?/Enchantress City — I am safe with you!/Yes, I have been your lover many years./Like
any lover I your praise could sing,/For this — for that — which so my heart endears./And yet, and yet,
beyond each several thing,/Like any lover I despair, and say,/" It is your soul I've loved so many a
day!/"Your soul of many souls well mingled up!/ [...]. (THOMAS, Edith M. Anima urbis. In: POETRY
NOOK. http://poetrynook.com/poem/anima-urbis. Acesso em outubro/2016.
56

capaz de estetizá-la, pari-la como obra, como arte, escritura poética, imagem. E, em
seu sussurro, ela se torna linguagem, fala, e pode ser ouvida como alma-linguagem.
No que respeita à alma, constituindo-se como imagem simbólica, ela é
mediação que permite um reconhecimento, um sentido, mas através do qual é
sempre “lançado junto” com o inesperado, o polissêmico, hospedando o sentido
sempre ambivalente e nunca completamente dado, tornando-se polissignificativo e
inesgotável.
Trata-se, como operador conceitual e simbólico, de uma função
hermenêutica, no sentido da mediação, conjunção e negociação entre fraturas,
fragmentos, confrontos, heterogeneidades: força coesiva de tonalidade vital e
afetiva. Instância ou princípio vital (anima), vetor de vida sensível, imaginativa e
dimensão de interioridade (Psique) que se re/vela, como tal, a alma não é instância
apenas positiva (construtiva), mas tem também sua face enigmática e sombria,
alojamento de obscuridades entranhadas na existência. Ela é, portanto,
possibilidade de trânsito entre o humano e o supra ou infra-humano, a materialidade
e a imaterialidade, o quiasma entre o visível e o invisível, o corpo e a abertura de
seu ser, latências e profundidades (MERLEAU-PONTY, 2009), a certeza e o mistério
(o velado), o mundo e a vivência, o vivente e o espaço. Martin Heidegger (2003, p.
31), comentando um verso de Primavera na alma, de George Trakl, (Algo de
estranho, a alma na terra) diz que esse “estranho” é a essência vigorosa da alma, é
justamente o caminho da travessia, o “estar a caminho de...”. “O estranho está em
travessia”, anoitecendo, amanhecendo, deslizando em errâncias, seguindo o apelo
do que lhe é próprio. E como aquela “intimidade” de que fala Hölderlin, mantém as
coisas separadas e, igualmente, as reúne.
Por sua vez, a poesia de qualquer cidade, seja a que se quer
propriamente “da” cidade e não apenas “na” cidade, não é uma só poesia: ela está
carregada de forças e imagens adversas, subjetividades, de adversidades; de
visões, leituras de mundo diferentes e diferentes narrativas, enfim, de visões, pontos
de vista singulares pertinentes a cada poeta e suas “habitações”, suas buscas e seu
pecúlio de linguagens. Mas ainda assim eles devem se tocar, elas tocam a alma que
sopra no imaginário sensível, poético-estético-hermenêutico, não uma instância de
pura ou mera racionalidade, tal qual a ratio, razão na interpretação latina, mas
aquela da dialética heraclitiana em que alma & logos tornam-se o Um: “A alma é o
57

Logos de seu próprio crescimento” (Heráclito, fragmento 115)23 − ou, na tradução de


Gerd Bornheim: “à alma pertence o Logos, que se aumenta a si próprio”.
A cidade se acrescenta, enquanto linguagem, no corpo da poesia.
Num trabalho que decide cogitar sobre as especificidades de um espaço,
tal como o "brasileiro", não basta tratar esse dado como irrelevante, inserido num
painel genérico, mas perceber suas incidências sobre o texto que nasce dessa
experiência, a experiência desta especificidade, em conjunção com a universalidade
da poesia. Isto porque a poesia, conforme aqui concebida, tem um pé fincado na
eternidade, no corpo da linguagem, que se desprega do chão e dos dedos dos seus
criadores/produtores para uma dimensão de existência outra. No entanto, em
princípio, seu outro pé está na contingência, sem a qual ela não poderia sequer ter
nascido, ser lida, ou escrita ("para nascer do espírito, é preciso primeiro nascer da
água", diz o Sábio), e isto é o que faz a beleza de sua existência e o sentido de sua
dialeticidade.
A conversa das cidades brasileiras com a poesia tem, portanto, o seu
próprio, suas particularidades. Neste país, temos grandes metrópoles − dentre as
quais a megalópole São Paulo serviria como paradigma24 − que apresentam um
caráter, ou uma "alma", se quisermos, fundamentalmente cosmopolita, e cujo
horizonte de comportamentos e relações não parece estar sequer no Brasil, mas
fora dele, muito provavelmente num ideal de cidadania-mundo. É plausível que a
vejamos, portanto, como uma espécie de elo entre um cosmopolitismo mundial e um
cosmopolitismo tupiniquim. Sua adoção paradigmática e seu soerguimento,
praticamente, como cidade-referência e parâmetro de comparação com as demais,
do mesmo modo que acontece com o Rio de Janeiro, constituindo-se, as duas, no
"eixo Rio-São Paulo", fica a cargo não só das suas dimensões geo-humano-

23
“ψυχῆς ἐστι λόγος ἑαυτὸν αὔξων”. In: HERÁCLITO. Fragmentos.
http://pt.scribd.com/doc/12892206/Fragmentos-de-Heraclito (Observe-se que os fragmentos aí não
seguem a mesma ordem geralmente adotada por outros autores).
24
João Sette Whitaker Ferreira, em O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do
espaço urbano (2007, p. 52-83) alerta para o fato de que mesmo a cidade de São Paulo é uma
"cidade-global" à brasileira, de periferia do capitalismo mundial, já que a definição "cidade-global"
depende dos aspectos metodológicos usados para no sentido dessa atribuição, e cujos pressupostos
são de modelos importados que se aplicam a outras realidades que não à nossa. "Tomemos por
exemplo a 'alta concentração de empresas de comando do terciário avançado da cidade', um dos
atributos mais lembrados pelos teóricos da 'cidade-global' [...]. Mas o que se entende exatamente por
'empresas de comando'? E por 'terciário avançado'? [...] Esses atributos são aplicáveis a São Paulo
da mesma forma que o são para Frankfurt, ou Paris?...". Diferente de Nova Iorque, Londres ou Hong
Kong, São Paulo é uma cidade-global na intensidade de seus fluxos humanos e culturais, mas com
altos níveis de exclusão social e econômica, e com pouquíssimas sedes de grandes e
megaempresas globais.
58

econômicas, mas da sua promoção pela "grande mídia", ao apresentá-las (Rio e São
Paulo) cotidianamente como "cidades nacionais" − ou, conforme Li-Chang Shuen C.
Sousa, colocadas hegemonicamente como cidades-sinédoque. Estas são
representações de cidades consideradas como referências para o país a partir de
dominantes culturais adotadas ideologicamente como nacionais, tomando núcleos
culturais (particularidades) e transformando-os em representantes de uma "cultura
nacional" (ex. no Brasil: samba, futebol, carnaval carioca, o malandro), gerando
efeitos de estereótipo. Ou seja: "núcleos culturais transmutados em dominantes
culturais" (SOUSA, 2013, p. 108). Estudando a televisão "nacional", Sousa, explica
que "núcleos e dominantes culturais são aspectos complementares: um núcleo
cultural de um determinado lugar pode ser transformado em símbolo cultural
nacional e assumir em conjunto com outros o caráter de um dominante cultural"
(SOUSA, 2013, p. 29). Exemplificando:

O folclórico é mostrado na televisão como curiosidade regional que faz parte


da nação, mas não a resume como a cultura urbana da cidade-sinédoque o
faz. [...] A posição privilegiada do Rio de Janeiro como cidade-sinédoque
advém do fato de ter sido capital na Colônia, no Império e na República
durante quase dois séculos. (SOUSA, 2013, passim)

Na verdade, temos muitas cidades com suas diferenças e alteridades. Por


exemplo: com marcas e elos memoriais de um período colonial, arcaico e provincial
ainda muito fortes, os quais incidem, principalmente, sobre a cultura. São cidades
em que o próprio suposto hibridismo (multitranscultural) ainda é mal engendrado,
mal resolvido: cidade antiga e cidade nova ainda buscam meios de adequação e
convivência. Cidades marcadas, principalmente, pelo colonialismo, pelos espectros
do coronelismo e do engenho, pela escravatura, por uma religiosidade medieval-
barroca e por cicatrizes melancólicas que demoram a sarar, mas cujas
especificidades culturais se fazem justamente sobre tais elementos, que lhe trazem
o peso da vida, as doídas afecções no corpo de sua paisagem e no tom de sua voz.
Que dizer da alma antiga que respira nas frestas de cidades telúricas e
estruturalmente fronteiriças (o colonial e o metropolitano bem marcados), como
Salvador, São Luís, Recife, as pequenas cidades mineiras, o religioso e árido
Nordeste, as cidades de transitividade fluvial da Amazônia, marcadas pela água,
pela floresta e suas narrativas; as cidades regionais e fronteirais (esbatimento de
fronteiras e esboço de um território próprio) dos pampas etc., cujas histórias e
59

autonarrativas se fazem diferentes, por exemplo, das histórias de Brasília, Rio ou


Curitiba? Que narrativas (corporais, identitárias, memoriais, imaginárias) − ou
ausência delas − podem ser esboçadas a partir destes espaços urbanos? A poesia
seria infensa a essas injunções? Evidentemente, todo espaço e todo dizer é
negociável na poesia, porém toda moeda de troca é garantida por seu timbre e sua
efígie.
O trânsito estabelecido entre − e para − as cidades brasileiras suscita
fortemente, por sua vez, a fala das transitividades disposta nas condições que tal
espacialidade oferece. A poesia não nega esse transitar que se estabelece na
mudança do campo para a cidade (muito mais raramente da cidade para o campo);
da cidade pequena para a cidade grande, da província para a metrópole, um trânsito
típico de um país de desigualdades, de padecimentos, resignações e revoltas que
e(s)coam na voz do poeta ou do rapsodo (o "costurador"), o qual arrasta consigo um
imaginário dos espaços vividos e um corpo metafórico: itinerários subjetivos e
reminiscências transfiguradas nessa experiência aparentemente individual,
transladada universalmente pela voz [lírica] que conduz os espaços dentro de outros
espaços, tornando-os espessuras de sentido − como poeticamente não só afirma,
mas também a encarna o mais importante poema de Ferreira Gullar, do qual elejo
este fragmento:

O homem está na cidade


como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade.

[...]

a cidade está no homem


quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra


de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma

(GULLAR, 1991, p. 273-274)

O movimento/deslocamento do sujeito significa, neste caso, a presença


de um mundo que permanece e que se depara com outros mundos: linguagens que
hão de aglutinar-se e tornarem-se poeticamente produtivas por via do corpo
60

sensivelmente tocado e da imaginação que se torna escritura. Assim, certas


geografias poéticas contemporâneas partem da experiência de uma singularidade
em que, mesmo onde se afirma um sentido poético outro, isto é, mesmo onde aquilo
que o poeta projeta não está necessariamente ligado aos espaços, sedimentam-se
sobre tais projetos essas transitividades (com seus respectivos desdobramentos
memoriais e pregnância dos espaços), as quais, sem o clássico esforço da
"coloração local", ou da documentação "nacional", por já incabível, rumorejam
espacialidades e temporalidades de uma territorialidade brasileira − assim como de
uma desterritorialidade praticamente diaspórica, que pode naturalmente manifestar-
se dentro desse espaço (aquiagora: lugar nenhum, campos perdidos). Em nossa
poética contemporânea, um sussurro desses desassossegos da transitividade
memorial provocados pelos confrontos e entrelaçamentos - porosidades fronteiriças
- entre o telúrico e o urbano, ou vice-versa, já transfigurados pela reflexão do sujeito
diaspórico/homem habitado pelos lugares, é oferecida pelo Itinerário de afetos,
paisagens letais e cenacidades de Salgado Maranhão (2009, p. 178-182):

Procuro meu rosto


desgarrado em tuas vias.

(Teresina)

***

Hoje
volto a te ver - ungido
entre palmeiras e parabólicas.

(Itapecuru)

***

No princípio era o MAM;


e era Glorinha a despir-me
a cidade dos loucos
[...]
A vida era um mar
com derivas incertas:
1) atravessar o nada
como o leme do coração
partido;
2) saltar no escuro
com ciladas.

Em mim foi-se erguendo


a cidade aos pedaços
− com as palavras e seu ouro
a eternizarem o provisório.
61

(Cenacidade 2)

Outros exemplos, fartos. A "geografia" [Recife, Rio, Os pampas] de Janice


Caifaia (Estúdio, 2009); "No meio da tarde lenta" [em São Luís do Maranhão] de
Ricardo Leão (2012); a "geografia" universal e cartográfica − a lembrar Elisabeth
Bishop −, ou "a liberdade de seguir por esta via", nas rodovias de Eucanaã Ferraz
(Escuta, 2015); os ecos do finis terrae no canto universal dos ka'apor, de Josoaldo
Rego: a possibilidade de revelar as [frouxas] dobras do mundo, o encurtamento
entre os espaços em frangalhos, entretecidos e comunicantes, cujas distâncias se
relativizam na universalização do olhar, o qual, devorando o longe, enxerga a si, ao
mesmo tempo em que se autodevora para enxergar o longe, na consciência de algo
que é muito maior que o sujeito, como no "antropófago" poema Jauára Ichê, do
Carcaça (REGO, 2016, p. 17): "O mundo não acaba em tuas mãos/ A borda da
dobra é frouxa/ Da Anatólia vês o Piauí/ Do Pantanal, a Antuérpia".
E considerando o encontro sujeito-lugar(es), na experiência que suscita e
deflagra o poético, para fechar a afirmação de reverberações das especificidades
que tocam da poesia contemporânea brasileira e a singularizam, e das formas de
sua transitividade, inseridas nos possíveis de uma poeticidade que assoma de
circunstâncias e realidades vivenciais únicas, acolho este exemplo de Samarone
Lima (2015, p. 33-34):

SOLIDÃO

Cidade a 399 quilômetros do Recife.


As cidades vizinhas são Flores e Água Branca.
Em outubro, a festa de São Francisco começa
com a alvorada
(no sábado, às cinco da manhã).

Depois, a Oração do Santo Oficio da


Imaculada Conceição.
À tarde, o terço da Divina Misericórdia,
na capela do povoado.
A procissão, à noitinha, sai da casa de Dona Pureza.

Domingo, na Capela Mãe Rainha


o bingo em prol da Capela de São Francisco
(animado pelos grupos
Mãe Rainha, Terço dos Homens
Terço das Mulheres e Sagrado Coração de Jesus).

Somente na terça-feira à noite, depois de muitas


rezas e procissões
o programa social:
62

apresentação da banda "Encanto de Mulher".

"Glorioso São Francisco, rogai ao nosso pai criador


que nos conceda as graças que pedimos por
vossa intercessão".

"Amém!"

Responderia minha avó


a 355 quilômetros dali
no Crato
em sua solidão sem flores
com seu vestido azul dominical
o terço nas mãos, entre o polegar e o indicador
passando as aves-marias e os pai-nossos.

O poema insere-se numa proposta de poesia-memória-deslocamento, da


obra Aquário desenterrado, cujo "personagem" (sujeito lírico) insere-se na condição
típica do sujeito diaspórico25, o qual, por algum motivo, está desterrado. Sabemos,
pelo conjunto de poemas do livro (que, em cotejo com a biografia do autor, indicam
uma transladação do próprio itinerário vital autoral para o universo estético, da
experiência individual para sua universalização lírica), tratar-se da problemática da
transitividade [campo/vilarejo] cidade pequena - metrópole: o sujeito que arruma sua
mala e parte. Fato comum no mundo, mas que no Brasil, principalmente no Brasil
nordestino, torna-se crítico, com indivíduos e famílias inteiras em risco de
apagamento permanente, e até de morte física ou simbólica. O sujeito parte, em
busca de sobrevivência, em busca de dias melhores, de formação e oportunidades,
de seu lugar num outro mundo possível, da redescoberta de si. Parte em busca do
seu nome, agora desgarrado/descolado da grande casa familiar (também
25
Conceito-chave para o entendimento da historicidade do mundo contemporâneo, utilizado aqui no
sentido do sujeito em permanente deslocamento e desterritorialização, longe de sua casa, de sua
aldeia, de sua "pátria familiar". Um migrante que caminha sobre o pathos da memória, da saudade,
não raro da nostalgia, entretecido pelo que não mais terá e que o obriga a construir novos caminhos.
Contudo o conceito de "diaspórico" vai além. Está relacionado aos traumas coletivos, de populações
ou minorias em desterro e dispersão causados por situações de escravatura, massacres, genocídios,
coerção e expulsão, guerra e zonas de conflitos, trabalhos forçados, migração econômica, exílio
político, êxodo de refugiados... (HUA, 2005, p. 193). "The word diaspora comes from the Greek verb
speiro, meaning 'to sow' and the preposition dia, meaning 'over' [...] suggests networks of real or
imagined relationships among scattered peoples whose sense of community is sustained by various
communications and contacts, including kinship, trade, travel, shared culture, language, ritual,
scripture [....]. A diaspora connects multiple communities of a dispersed population. [...] Minority and
migrant populations share forms of longing, memory, and identification" (Ibidem, p. 192) [A palavra
diáspora vem do verbo grego speiro, que significa "semear", e a preposição dia, significando "sobre"
[dispersar/lastrear sobre a terra] [...], sugere redes de relações reais ou imaginadas entre povos
dispersos cujo senso de comunidade é sustentado por várias comunicações e contatos, incluindo
parentesco, comércio, viagens, cultura compartilhada, linguagem, ritual, escritura [...]. Uma diáspora
conecta múltiplas comunidades de uma população dispersa. [...] As populações minoritárias e
migrantes compartilham formas de saudade, memória e identificação].
.
63

característica desse mundo ligado ao agrário-provinciano), que se vai ficando e


perdendo no caminho, restando apenas sua representação como espaço simbólico
ou campo perdido (BACHELARD, 1993). Lemos no poema "O coração sobre a
mesa", do mesmo livro (p. 24, 25), o seguinte: "O coração sobre a mesa/ não diz
uma palavra./ [...] São as lágrimas de minha mãe/ na noite de Pentecostes/É o dia
em que cheguei ao Recife/com uma caixa de livros/Na rodoviária sentia frio/não
sabia o que sentir/não sabia meu nome./ Meu coração ainda não era meu".
Diante desse conhecimento subsidiado por poemas coirmãos, na obra,
percebemos que a informação inicial do primeiro verso do "Solidão" - "Cidade a 399
quilômetros do Recife" - não refere apenas uma explicação ou asserção. Tampouco
aqueles outros versos sobre a cidade onde o poeta deixou a casa familiar: "a 355
quilômetros dali/ no Crato". Esses versos referenciais e sem ornamento são na
verdade marcações de distâncias instauradoras de solidão, para quem partiu (para o
Recife) e para quem ficou (no Crato), ambos a meio caminho da cidade Solidão, que
se estabelece como elo físico e simbólico comunicante. As distâncias, deste modo,
são transfiguradas para um sentido outro, que compreende tanto o distanciamento
real, quanto a aproximação afetiva, instaurado na representação afirmativa da
solidão da cidade, de seu afastamento, entre dois pólos ou duas vozes: a do sujeito
lírico e a da evocação da avó.
A situação singular se estabelece no sentido de que o espaço invoca a
condição humana dos sujeitos e os insere num deslocamento existencial, por via do
deslocamento espacial que a sensibilidade poética capta e redimensiona no pacto
lírico o campo semântico do topônimo: o desgarramento, o inóspito, a solidão.
A condição de uma instância lírico-afetiva instaura-se pela toponímia
tornada simbólica e tocada pelo imaginário (um imaginário peculiar, carregado no
seio dessa linguagem dos nomes regionais): uma solidão rodeada de flores e água
branca. O universo da cidade é colocado, então, como o universo das vivências
comuns, do encontro de um mundo vivido, compartilhado. É um mundo que gira em
torno do imaginário religioso católico-cristão, comum nesse espaço de uma região
politicamente deserdada, sendo a própria religião o que acolhe, os meios da petição
e das alegrias, o que lança essa cidade-Solidão numa dimensão diferencial, de
desgarramento e exclusão, porque nessas condições o discurso racional-político-
tecnológico concebe esse modo de vida como fora de sua ordem, fora até de sua
compreensão. Então a cidade desalojada e desagregada dessa realidade, constrói
64

uma narrativa própria, uma temporalidade outra, e se retroalimenta em seu próprio


universo, sustentada pelo corpo e pelas quermesses do divino. É neste espaço
comum que duas vozes a meio caminho da Solidão entrelaçam suas perdas: uma
viúva sem flores, com um terço na mão, vestida - esse marcante "vestido azul" - para
o encontro com Deus, e um sujeito com as cartografias das reminiscências no peito.
Ao mesmo tempo, porém, que o poeta apresenta esse espaço simbólico
de solidões, ele oferta em sua voz memorial um outro lado. Mostra um ritmo
comunitário, um encontro de corações, orações, penitências, petições, votos de uma
alma coletiva, reunida por vicissitudes, necessidades e por alegrias simples e
comuns, no sentido do que aponta Edouard Glissant (2005) sobre a reivindicação, a
importância e o privilégio da construção de um “lugar” de encontro entre a voz do eu
e a voz do mundo, através do qual as próprias comunidades modelam um “grito
poético cuja função é reunir a morada, o lugar e a natureza da comunidade [...] que
se afirma face a uma ameaça.” (GLISSANT, 2005, p. 44).
Até aqui, foi possível fazer o levantamento de diversas concepções de
espaço que fundamentam seus usos e perspectivas, e possibilitam sua ampliação,
tanto nas abordagens do texto literário quanto na própria constituição desse texto, e
discuti-las. Após a percepção de uma "cosmificação" da cidade, a qual pode ser
representada, ora pela imagem de um vórtice cuja força atrativa deseja tragar tudo
ao seu redor, ora como um corpo híbrido, com fronteiras fluidas, dinâmicas,
conexões e desconexões constantes, tornou-se possível refletir que não podemos
generalizar a noção de cidade, como se tudo fosse a mesma coisa: as cidades têm
suas especifidades, realidade ainda mais patente quando pensamos num país como
o Brasil, de cidades provincianas, cidades com cisões entre o velho e o novo, com
histórico colonial, cidades planejadas, megalópoles periféricas com tecnologias e
universidades de ponta e, ao mesmo tempo, inchadas, em estado de guerrilha e
devastadas pela miséria e pelo tráfico de drogas.
Neste ponto, constatamos que de algum modo tais experiências de
espaço e suas especificidades hão de entrar em modos de relação com os espaços
da linguagem e da criação poética - se é a poesia que configura e estabelece os
potenciais dos horizontes dessas relações de presença ou de ausência – na medida
em que, na escrita literária, sempre partimos de algum lugar: o lugar em que
estamos, os lugares vividos, os lugares em construção e prospecção. Num lance
possível, as geografias falam e a narrativa pessoal transfigura-se como memória no
65

território de um pacto lírico. Noutro lance, também possível o poeta recusa qualquer
eco referencial, para que a linguagem, e somente ela, ressoe a experiência de não
pertencer, senão ao lugar nenhum ou ao lugar vazio - a ser preenchido e significado
por um leitor pleno de paisagens. Evidentemente, deslocar-se é também adentrar
incertezas e regiões difusas, tateantes da linguagem e da expressão, o que torna o
deslocamento um novo encontro com a linguagem, uma busca de novos meios de
dizer e para o dizer. O que deve ser abandonado? Qual o universo representativo e
metafórico ligado aos novos imaginários, paisagens, meios, ambientes, aos
horizontes da leitura: serão correspondentes àqueles deixados? Quais os recursos
disponíveis?... Enfim, no deslocamento, em que se espera abertura e a
ultrapassagem da própria de visão de mundo, a linguagem vem tomar satisfação e,
encontrando-se insatisfeita, transtorna o lugar-cômodo: aos trancos e barrancos, a
poesia vai encontrando um novo chão.
O princípio espacial, seus elementos e nuanças constituem-se, deste
modo, aspectos fundamentais de interrogação das dimensões formais e
experienciais do poema, porque inerente à sua própria constituição, à sua
linguagem, à sua cosmicidade. Conforme apontado acima, e discutido adiante de
modo mais específico, a forma, por si só, já construída sob as condições
semioespaciais da linguagem, estabelece seu próprio caráter de relação, situação e
corporalidade [estruturante], enquanto a dimensão experiencial faz-se dentro e a
partir de uma historicidade que inclui não somente o representado pela linguagem,
mas os espaços factuais e vivenciais, suas formações objetivas e subjetivas,
individuais e coletivas configurados pela mímesis poética nas paisagens do poema.
Eis a importância de sua colocação prioritária numa investigação reflexiva sobre a
poesia contemporânea, para que tal discussão ofereça subsídios compreensivos aos
caminhos de sua exploração, e permitindo que ela mesma lance suas
interrogações26.
Mas a face coirmã do espaço é o tempo, até aqui posto "em parêntese",
quando na verdade eles são intrinsecamente interligados, compartilhando o evento,
a presença e o acontecer, e constituindo o sentido de qualquer horizonte. Em

26
Dentre as questões possíveis, as concepções e identidades manifestas e aquelas entranhadas,
latentes/subjacentes ou não claramente assumidas; os lugares assumidos ou representados,
invocados ou evocados; as colorações patêmicas - afetivas ou afectivas, conflitantes - desse espaço,
suas marcas e tipicidades, etc., dentro dos caminhos de leitura e sentidos possibilitados pelos
poemas.
66

algumas culturas, chegam a compartilhar o mesmo signo para o intervalo espacial-


temporal, significando tempo-espaço. E é bem conhecida no meio literário e
linguístico a ideia do cronotopo bakhtiniano. Bakhtin (2010, p. 211), tomando o
tempo e o espaço como formas da própria realidade efetiva 27, entende, por sua vez,
o cronotopo como uma "categoria conteudístico-formal da literatura". O cronotopo
artístico-literário, segundo ele, determinaria não só os "gêneros" (o que ele entende
por gêneros, como o romance), mas também a imagem do indivíduo na literatura28.
Discutidas longamente as concepções e os pressupostos relativos ao
espaço, e apontadas algumas de suas implicações para as questões da teoria
literária, bem como para a poesia contemporânea, na consciência de que essa
categoria − o espaço − está entrelaçada, implicada, na noção de tempo, sendo
conjuntamente determinantes e autodeterminadas, passa-se agora a esta noção e a
suas relações com as dimensões do poético, enquanto acontecimento temporal −
ou, mais propriamente, passemos à discussão da experiência da temporalidade
humana nas configurações líricas.

1.2 SOBRE O TEMPO: COMPREENSÕES DA TEMPORALIDADE E SUA


INCIDÊNCIA SOBRE O LÍRICO

Ao lado do espaço, o tempo é um fenômeno determinante e inseparável


do existir humano, do ser em movimento29, das sociedades e das mudanças do

27
A relação aí é com Kant, que, na Crítica da razão pura - Estética transcendental, concebe o espaço
e o tempo como categorias transcendentais e apriorísticas, ou seja, formas e condições
independentes da experiência sensível humana, mas que podem ser considerados condições das
possibilidades dos fenômenos. Assim, participam ao mesmo tempo de uma idealidade transcendental
e de uma realidade empírica, em relação a tudo que nos pode ocorrer externamente como objetos
(KANT, 1980, p. 36-45). Bakhtin, compreendendo que espaço e tempo também são construtos da
linguagem e realidades do cotidiano acontecer humano, pretende "revelar o papel destas formas no
processo do conhecimento artístico concreto (visão artística) nas condições do gênero romance"
(BAKHTIN, 2010, p. 212).
28
Tratando sobre as formas do tempo e do espaço no romance, ou melhor, sobre o processo de
assimilação do tempo, do espaço, e do indivíduo histórico real que neles se revela, Bakthin explora o
conceito de cronotopo ("tempo-espaço"), o qual, segundo o autor, foi introduzido e fundamentado nas
ciências matemáticas pela teoria da relatividade (Albert Einstein). Bakhtin redireciona o sentido do
conceito no estudo da obra artística (chamando-o, neste caso, de cronotopo artístico-literário): "No
cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo
e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço
intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo
transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse
cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico" (BAKHTIN, 2010, p.211).
29
"O tempo é justamente isto: o número [a medida] do movimento segundo o antes e depois"
(ARISTÓTELES, [Física, Livro IV, 219b] p. 152)
67

próprio mundo, na constituição da experiência e de seus universos possíveis, daí a


importância capital desse conceito e sua infinita complexidade. O tempo é o conceito
de fundamento do ser e do estar, do devir e do ter-sido, da historicidade, da
memória e da projeção antecipatória; do acontecer humano, com seus processos,
multiplicidades e relações de duração, simultaneidade e sucessão, situação,
transformação e transitividade, ritmo, variância e repetição; finitude e infinude, ciclos
de morte e de (re)nascimento. Assim, o tempo é objetivado como uma
transcendência30, mas também visto tanto como "correlato de uma consciência
possível" (ALVES, 2008, p.175), quanto, em sua fisicidade (sabemos, após Einstein),
como relativo ao ponto de vista de um referencial, o que leva, por conseguinte, à
constituição de sua multiplicidade nos possíveis.
No que diz respeito à representação coletiva, cultural, de seu trânsito e
direcionamento, na forma como os sujeitos compreendem cosmologicamente o
mundo, com ele se relacionam, e como representam para si e para o outro sua
história, sabemos que nem todas as culturas têm a mesma representação do tempo.
As temporalidades se distinguem de acordo com as sociedades, suas dinâmicas e
seus ciclos. Shuichi Kato (2011) relaciona, no seu Tempo e espaço na cultura
japonesa, quatro concepções acerca da natureza direcional do tempo (relação entre
o antes e o depois) em algumas culturas tradicionais que influenciaram e têm
influenciado as civilizações.
O primeiro modelo apresentado é o judaico-cristão. Segundo esta
representação, o tempo é concebido como uma linha reta delimitada, com ambas as
extremidades fechadas, do começo para o fim, com forte unidade direcional e sem
retrocedência. É uma linha que podemos conceber como messiânica, na qual a
história avança para um alvo − o qual define os acontecimentos históricos. A
irreversibilidade, porém, é relativa, uma vez que o destino ou objetivo dá-se em
escala maior, de longo prazo e não nos pormenores de curto prazo. Kato observa, a
esse respeito que se originam dessa representação duas concepções determinantes
no mundo judaico e cristão: "a primeira delas, a concepção de um tempo com um
limite que avança sem cessar sobre uma linha reta em direção ao alvo, a segunda a

30
Immanuel Kant, assim como trata do espaço, de imediato trata do tempo dentro de sua Estética
transcendental, e assim o concebe: "o tempo é uma representação necessária subjacente a todas as
intuições. Com respeito aos fenômenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, não obstante
se possa do tempo muito bem eliminar os fenômenos. O tempo é, portanto, dado a priori. Só nele é
possível toda a realidade dos fenômenos. Os fenômenos podem cair todos fora, mas o próprio tempo
(como a condição de sua possibilidade) não pode ser supresso (KANT,1980, p. 44).
68

concepção de que a história é feita pelo ser humano, ou seja, a do antropocentrismo


histórico" (KATO, 2011, p. 32) – assim, os seres humanos, embora divinamente
mediados, fazem história ao mesmo tempo em que são condicionados por ela. O
autor aponta também nesta representação a matriz de variados utopismos, de Hegel
a Marx, isto é, a história tendo como objetivo último um mundo ideal.
O segundo modelo de representação cultural do tempo é a expressão de
um tempo sem começo nem fim, do qual podemos distinguir dois tipos: um, fluindo
de um passado infinito a um futuro infinito; outro, percorrendo infinitamente uma
circunferência, com o acontecimento, em determinado o ponto dela, vindo a repetir-
se depois de transcorrido um determinado tempo, ou seja, um ciclo. Este último seria
a concepção do helenismo. O modelo do tempo para os gregos como cíclico ou
repetitivo seria o "firmamento", os movimentos da abóbada celeste, em que o tempo
podia ser calculado como algo circular, como a contagem numérica do movimento
feita pela consciência humana, e a partir daí problematizar-se a medição do tempo
ao se discutir sobre ele:

Um fato peculiar sobre a concepção de tempo no helenismo é que foi


justamente o movimento dos corpos celestes e não outro fenômeno cíclico
que chamou a atenção; nele enxergou-se uma ordem estrutural de todo o
Universo e pensou-se que o tempo, em si, tinha um movimento cíclico.
Segundo essa forma de pensar, não apenas a posição dos corpos celestes,
mas também todos os acontecimentos deveriam repetir-se em ciclos.
[Entretanto], a fantasia do 'ciclo eterno' não serviu para os historiadores da
Grécia antiga narrarem a história de uma sociedade humana concreta [ou
seja, a história em si não é lastreada no princípio do movimento cíclico ou
da repetição dos acontecimentos] (KATO, 2011, p. 35).

É importante lembrar que a ideia de um tempo cíclico, principalmente de


inspiração grega, foi muito profícua para a filosofia. A ideia de um "ciclo cósmico", de
certo modo "dialético" − segundo a qual o mundo retorna a um caos primitivo e dele
retorna, para recomeçar seu ciclo − encontra-se no orfismo, pitagorismo; em
Anaximandro, Empédocles, Heráclito; no estoicismo (ABBAGNANO, 2007, p. 156).
Modernamente, fundamentado no pensamento e na arte trágica grega, Friedrich
Nietzsche (aquele que disse n'A Gaia Ciência: "Ah, amigos, temos que superar
inclusive os gregos!") propõe a noção do 'eterno retorno", ideia que deixou
inacabada, porém disseminada em algumas de suas obras. "Para ele, o eterno
retorno é um sim que o mundo diz a si mesmo, a vontade cósmica de reafirmar-se e
de ser ela mesma, portanto, a expressão cósmica daquele espírito dionisíaco que
exalta e bendiz a vida" (ABBAGNANO, 2007, p. 15 - itálico do autor).
69

Conforme a tradição do mito grego, versão provavelmente presente nessa


"expressão cósmica do espírito dionisíaco", Dioniso (Δί[ς]+νῡσος/Di[s]+nysos;

Διόνυσος /Diónysos) é "duas vezes nascido", ele é o "deus que [re]vem" (renasce),
isto é, em permanente movimento; o deus que padece e triunfa sobre o sofrimento,
também ligado à mítica noturna e lunar, à embriaguez e ao despedaçamento, a
animais e plantas que "morrem" e "renascem" (a serpente, a hera, a vinha)
(KERÉNYI, 2002). Muito provavelmente é esse movimento trágico (da continuidade
e da revolta vital) que interessa a Nietzsche. Em A Gaia Ciência, o filósofo interroga:

Que dirias se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse furtivamente


em tua mais profunda solidão e te dissesse: "Esta vida, tal como a vives
agora e como a tens vivido, deverás vivê-la uma vez e inumeráveis vezes
mais; e não haverá nada de novo nela, a não ser que haverá de voltar a ti
cada dor e cada prazer, cada pensamento e cada gemido [...], tudo na
mesma ordem e idêntica sucessão [...]? Se te dominasse este pensamento,
te transformaria, convertendo-te em outro diferente do que eras até talvez
triturar-te. A pergunta feita em relação com tudo e cada coisa: "Queres que
se repita isto uma e inumeráveis vezes mais?" pesaria sobre teu agir como
a mais pesada das cargas! De quanta benevolência para contigo e para
com a vida haverias de dar mostra para não desejar nada mais que
confirmar e sancionar isto de uma forma definitiva e eterna?31

Embora essas observações sejam colocadas aqui como ênfase da


concepção helênica sobre o tempo e de sua reverberação filosófica, não podemos
deixar de reconhecer o quanto tudo isso foi e continua sendo extremamente profícuo
para a arte, para a poesia. Ainda mais quando pensamos na importância do
imaginário mítico da filosofia grega e principalmente da filosofia nietzschiana para a
cultura e a estética moderna e contemporânea, especificamente a imaginação do
eterno retorno, que se conjuga e se incorpora ao próprio devir poético, ao caráter de
sua insistência e permanência.
Dentro do tempo infinito e cíclico, a concepção chinesa representa um
segundo tipo. Agora, a representação é determinada pelo tempo histórico, a
repetição é simbólica/humanística, sem ligação com os corpos celestes. Um
31
¿Qué dirías si un día o una noche se introdujera furtivamente un demonio en tu más honda soledad
y te dijera: "Esta vida, tal como la vives ahora y como la has vivido, deberás vivirla una e
innumerables veces más; y no habrá nada nuevo en ella, sino que habrán de volver a ti cada dolor y
cada placer, cada pensamiento y cada gemido.[...] todo en el mismo orden e idéntica sucesión? [...] Si
te dominara este pensamiento, te transformaría, convirtiéndote en otro diferente al que eres, hasta
quizás torturándote. ¡La pregunta hecha en relación con todo y con cada cosa: "¿quieres que se
repita esto una e innumerables veces más?" pesaría sobre tu obrar como la carga más pesada! ¿De
cuánta benevolencia hacia ti y hacia la vida habrías de dar muestra para no desear nada más que
confirmar y sancionar esto de una forma definitiva y eterna? (NIETZSCHE, s/d, p. 86 [aforismo 341])
70

exemplo é o eterno retorno do "caminho real", em contraste com o "caminho da


força". O "caminho real", que concretiza um governo sábio, justo e pacífico, ético,
humanista e moral, há de repetir-se, mesmo que demore quinhentos anos ou que o
sábio não seja necessariamente um imperador, mas sábio filósofo (e. g. Confúcio),
obedecendo a uma lei de revezamento entre prosperidade e declínio. Kato (2011, p.
38) observa que "o interesse dos pensadores da China Antiga estava quase
exclusivamente voltado para a sociedade humana", o que conduziu ao
desenvolvimento de acordo com fatos que alcançam uma visão cíclica. O autor
também aponta para um convívio, na cultura chinesa, dessa visão cíclica com a
visão de uma linha reta infinita, principalmente na poesia, sem início ou escatologia,
em que a luz e a sombra vêm e não voltam mais, e uma noite de primavera não trará
mais as mesmas flores dos pessegueiros.
Um outro modelo, presente no budismo - Índia, nordeste da Ásia e Ásia
Central, norte da China e arquipélago japonês -, o qual absorveu crenças populares
e recebeu influências de cada região. Pensa o tempo como uma sucessão de morte
e vida que se repetem infinitamente, sendo que uma vida e a próxima e respectivos
acontecimentos não são necessariamente iguais. Tal visão sugeriria um tempo meio
cíclico e meio retilíneo − podemos pensar também num movimento representativo de
rotação (particular) e translação (universal). Há budismos com outras vertentes de
concepções, como a que não estabelece um começo do mundo, mas trata de uma
culminância escatológica "crística" (A crença em Maitreya, um iluminado que há de
retornar ), com linha aberta no início e fechada no final. Mas o tempo histórico que a
cultura japonesa antiga concebeu, observa Kato (2011, p. 45), é uma linha reta sem
começo nem fim, as visões de mundo estrangeiras não alteraram significativamente
essa concepção, na qual o tempo é a sucessão do presente = "agora". Sobre a
constituição deste tempo, o "agora", o qual se estica ou encolhe, pode ser percebido
em alguns casos como longo e em outros como curto, diz esse autor:

A totalidade dos acontecimentos passados não é o que determina o


significado do "agora" diante do qual se está, assim como a totalidade dos
acontecimentos que devem vir não é o que se torna o propósito do "agora".
O fluir infinito do tempo é dificilmente captado, e o que se pode apreender é
apenas o "agora", por isso cada "agora" pode se tornar o centro da
realidade no eixo do tempo. Nele, as pessoas vivem o "agora" (KATO, 2011,
p. 48).

Considera-se que estas digressões preliminares sobre diversas


concepções culturais acerca do tempo têm o seu papel. Primeiro, o de ampliar-nos a
71

visão, já que pode lançar luzes sobre nossas próprias concepções e fazer-nos
refletir sobre o necessário cuidado ao lidar com o texto do outro, de modo a que não
seja apenas a reverberação do nosso próprio conceber. Depois, o de manter tais
concepções como referências de comparação ou contraste com aquela disseminada
no texto em foco, em geral configurando um imaginário do tempo que pode ser
relacionado, enquanto tempo no poético, a qualquer uma dessas quatro linhas
mostradas. Por fim, servir como ponto de partida para manifestar a complexidade do
fenômeno tempo e redirecioná-lo para uma perspectiva que viabilize a percepção de
suas formas nas espessuras textuais.
No sentido deste redirecionamento, mantendo de sobreaviso as
concepções arraigadas pelas culturas e seus imaginários, um modo profícuo de
esboçar a questão do tempo para pensar as paisagens temporais poéticas, e, ao
mesmo tempo, operacionalizar verificações na sua realidade enunciativa, é
considerá-lo a partir das noções (agora de uma perspectiva fenomenológica) de um
tempo objetivo e de um tempo experiencial, ou seja: de um tempo formal e
cronologicamente idealizado na medição, e de um tempo mundanal sentido, intuitivo
e experiencialmente vivido, poroso, com suas respectivas manifestações e
possibilidades.
No texto poético, a projeção de sua efetividade pode ser percebida desde
as formações sensíveis e subjetivas, representadas pela corporeidade imagética,
pelas tonalidades e nuanças rítmicas, conexões e descontinuidades, incidências,
temporalidades desempenhadas, invocadas ou evocadas pelo sujeito/vozes líricas
presentes, às suas configurações discursivas e tessituras gramaticais: formas
verbais e dimensões aspectuais, frases nominais, com seus efeitos e impactos
discursivos, questões de evocação e invocação pela nominação, parataxe e
predicação. Assim, a convocação dessas duas compreensões da temporalidade
aprofundam e embasam a discussão também das dimensões de maior preocupação
deste trabalho, quais sejam: a formal, com incidência sobre sua realização textual,
sígnica e relacional; e a dimensão experiencial, com incidência sobre a visão,
compreensão, as disposições do sentir e a configuração do mundo, da vida,
consubstanciadas nas realizações líricas focalizadas.
72

1.2.1 Tempo objetivo e tempo experiencial: desconjunções, remembramentos e


outras vivências temporais que mobilizam o corpo lírico

A temporalidade, ou consciência do tempo, conforme Husserl (2002),


pode ser visada a partir de duas perspectivas: a perspectiva de um tempo objetivo,
cronológico, idealizado ou constituído nas ciências físico-matemáticas − as quais
buscam, trabalham e calculam sua exatidão −, e a de um tempo que (na tentativa de
apresentá-lo como um tempo espesso, inclusivo, transitivo e de caráter patêmico)
denominarei experiencial, relativo às vivências, percepções concernentes à
consciência humana do tempo (Husserl: "consciência interna do tempo") subjetivo e
intersubjetivo, ou seja, relacionado diretamente aos sentimentos da retenção
(presença e reverberações do passado, do prévio) e da protenção (a antecipação do
futuro; o projetar-se), da recordação e do devir - e suas representações. Antonio
Rodriguez (2003, p. 168) o chama de tempo sentido, "em que consciência e tempo
se unem".
Deixando de lado questões filosóficas mais áridas concernentes à gênese
e constituição destas formas de tempo, porque não diretamente relacionadas a esta
discussão do poético, alguns pontos merecem, no entanto, reflexão e destaque. O
tempo objetivo, cronológico, público e determinável, diz respeito a uma visada física
e matemática do espaço e da matéria, da Natureza "e suas leis", entendida em seus
dados materiais, cíclicos ou contínuos, seus cálculos e suas relações de causa e
efeito, vistos por processos técnico-científicos, metodologicamente conduzidos.
Torna-se, enquanto tempo do mundo, totalitário e transcendentalmente projetado,
tendo por prerrogativas: uma forma serial - continuidade (contínuo formado por
pontos inseríveis em outros pontos), ordem (antes, depois), direcionalidade
(movimento de progressão e regressão: passado, presente, futuro ou vice-versa) e
infinitude (passado do passado...; futuro do futuro...) - e uma presumível
homogeneização dos pontos temporais, solidariamente presentes (ALVES, 2008, p.
166-167).
Interessante notar que, mesmo lastreada pela objetividade, essa
concepção de tempo absoluto e transcendente está condicionada às prerrogativas
mesmas dessa objetividade, ou seja, submetida ao alcance e às transformações
dentro da própria objetividade: ao avanço do conhecimento e às novas descobertas
das disciplinas que a fundamentam, às relações estabelecidas com o espaço
73

(portanto sujeitas às representações geométricas), ao conceito de número etc. Foi


justamente o que aconteceu, na Física moderna, com a revolução provocada por
Albert Einstein, ao apresentar, em 1905, a Teoria da Relatividade, fazendo
desmoronar as concepções até então vigentes e trazendo nova compreensão para a
natureza do espaço e do tempo. Pedro Alves (2008, 175, grifos do autor) explica
como a proposição einsteiniana pôde ao mesmo tempo abalar e enriquecer essa
concepção, rasgando-lhe o tapa-olhos, ao instaurar uma multiplicidade temporal no
território mesmo da physis e abri-la à experiência subjetiva do tempo:

Não há nem "relógio" nem "agora" universais. A lição da relatividade restrita


é, portanto, que não há o tempo, mas tempos, que estes têm cadências
diversas e que a ordem sucessiva dos acontecimentos é sempre uma
ordem de sucessão relativa a um referencial determinado. De nenhum
ponto de vista é, portanto, possível falar de um tempo do mundo uno e
único, como quadro de referência universal para todos os acontecimentos.
[...] A Física relativística [coadunando-se com o modo fenomenológico de
pensar] sugere que a grandeza tempo está dependente da fixação de um
ponto de vista (de um referencial) e da transformação ordenada dos pontos
de vistas uns nos outros.

Cabe notar que, embora essa tenha sido uma compreensão consequente
e favorável a um novo entendimento, Alves também reporta uma afirmação de
Husserl32 criticando o distanciamento ainda presente na proposição de Einstein em
relação a um tempo que se desenrola em nossa "vida vivente". O autor observa que
o filósofo não pretendia, com a crítica, minimizar o trabalho do físico, ou contornar a
racionalidade científico-natural, mas, antes de mais nada, assinalar uma lacuna na
fundamentação da racionalidade moderna, no sentido de que as declarações de
Husserl "põem em relevo que os processos de idealização e de uma substrução de
uma realidade 'exacta' 'por detrás' da Lebenswelt [mundo da vida] carecem de uma
aclaração última a respeito da sua possibilidade e de uma justificação da intríseca
validade da figura de um ser objetivo como correlato final das teorias "exactas''
(ALVES, 2008, p. 151).
O que Alves acentua mais adiante é que, apesar de algumas colocações
de Husserl, fenomenologicamente, dentro dessa nova perspectiva o tempo objetivo
não suprime sua conexão com a experiência subjetiva do tempo. O que aparece
32
Esta é afirmação de Husserl reportada por Alves (2012, p. 151) de uma conferência de Viena, de
1935, intitulada A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia: "Os revolucionamentos de Einstein
dizem respeito às fórmulas com que foi tratada a physis idealizada e ingenuamente objectivada. Mas
como as fórmulas em geral, como os objectos matemáticos em geral recebem sentido a partir do
subsolo da vida e do mundo circundante intuitivo, acerca disso não aprendemos nada, e, assim, não
reforma Einstein o espaço e o tempo em que se desenrola nossa vida vivente".
74

como idealizado no conceito de um observador remete à "emergência da


subjetividade e de uma experiência do tempo que originariamente o constitui a partir
de fenômenos da fluência e da passagem, centrada na constante doação de um
agora e de um presente".
Além disso, a rigor, sabemos que a objetividade e a subjetividade, nas
circunstâncias humanas, do sujeito ao mesmo tempo afetivo, pático, mas também
ser social e histórico, não se constituem numa cisão absoluta. As próprias
concepções objetivas deixam, em aberto ou trazem em latência, as possibilidades
subjetivas. Por outro lado, as subjetividades, como sabemos, constroem-se dentro
da convergência ou divergência de certos discursos, crenças e concepções sociais
culturalmente estabelecidas.
Sobre o tempo cronológico Alves avalia também, embora de modo mais
sintético, a posição de Heidegger, autor do monumental Ser e Tempo, e filósofo
sobre os quais os estudos do tempo, da historicidade e da presença, o "ser-lançado"
(ser-aí, Dasein) no mundo não podem passar imunes. Ele vê a posição de Husserl
sobre o tempo objetivo, o tempo medido pelo relógio e pelo calendário, como
inteiramente diversa à Heidegger:

A distinção [heidegeriana] entre temporalidade originária do cuidado, como


forma autêntica de ser do Dasein, e "tempo vulgar" da circunspecção
preocupada pretende localizar nesta última uma forma decaída de
compreensão da temporalidade, [...] e ver nesta compreensão o lugar da
determinação do tempo pelas ciências da Natureza. Podemos surpreender
aqui uma estratégia para situar o lugar da racionalidade científica e,
simultaneamente, se pôr 'para lá' dela, pela reconquista temporal da
questão do Ser. [...] Em Husserl [encontramos] uma correlação estrita entre
o tempo objetivo, público, das coisas e dos processos reais, determinável
pelas ciências da Natureza, e uma inquirição gnosiológica sobre a
experiência subjetiva do tempo, enquanto lugar de sua constituição
originária (ALVES, 2008, p. 155).

De fato, para Heidegger (2009), o tempo do calendário, do relógio, isto é,


o "tempo" vulgar, ou "acessível à compreensão vulgar", é um tempo que se funda na
decadência das ocupações − um tempo decadente, isto é: o "tempo ocupado" na
cadência de ser existencialmente −, diferente da temporalidade originária, uma
temporalização estabelecida na unidade do porvir, do vigor de ter sido e da
atualidade, da qual esse tempo lançado na decadência participa. Segundo o filósofo,
o fundamento ontológico originário da existencialidade da presença [do ser-aí,
Dasein] é a temporalidade, que reúne o vigor de ter-sido e permite a decisão
75

antecipadora, o projetar-se, estabelecendo-se sobre as "ekstases", as


temporalizações “ekstáticas” (ἐÓ≅ o que procede do estabelecido na
presença originária) as quais correspondem ao porvir, ao vigor de ter sido e à
atualidade, que mostram os caracteres fenomenais do "para si mesma", "de volta
para" e "deixar vir ao encontro". Ou seja: "temporalidade é o 'fora de si' em si e para
si mesmo originário" (HEIDEGGER, 2009, p. 413, grifos do autor).
O filósofo ainda afirma que a compreensão vulgar nivela essa
temporalidade originária a pura sequência de agoras, sem começo nem fim, mas
acrescenta que esse nivelamento "funda-se numa determinada temporalização
possível, pela qual a temporalidade temporaliza impropriamente este tempo"
(HEIDEGGER, 2009, p. 512). Quer dizer que há, aí, o reconhecimento desse caráter
temporal dentro da ontologia da presença, como "possibilidade estrutural da datação
medidora do tempo ocupado na perspectiva atualizante do que é simplesmente
dado", na¸ dimensão de lapso, público e mundanidade. Essa temporalidade, por sua
vez, constituída como a temporalidade do ser-no-mundo-fático, faz-se abertura do
espaço, já que constitui a condição de possibilidade de ligar-se ao lugar do espaço
que, enquanto medida, é obrigatório para todo mundo. E completa: "o tempo
ocupado na temporalidade da presença está sempre ligado a um lugar da presença"
(HEIDEGGER, 2009, p. 512). Assim, une de vez a presença, o ser do homem, ao
estar no mundo, dentro das condições que este mundo possibilita, ou seja, dentro de
sua historicidade.
Podemos abstrair dessas posições discutidas que uma perquirição da
poesia advinda desses dois posicionamentos filosóficos deverá, por sua vez,
interrogar para onde se dirige mais fortemente, ou para onde deve dirigir-se o
pêndulo da concepção, ao se considerar as duas vertentes temporais: se no sentido
de uma equivalência entre essas duas temporalizações ou se no sentido de que a
temporalidade cronológica estará marcada, ontologicamente, pela decadência, o que
deve responder necessariamente a um pathos poético específico dessa
mundanidade, muito provavelmente tocado pelo tonalidade da angústia e pelo
espectro da morte, já-presente.
76

1.2.2 O tempo quantitativo/cronológico e o tempo qualitativo/durativo [Bergson]:


duração e memória

A doação de um fluxo temporal contínuo e indivisível do agora, num


movimento vital e criador, por um passado que flui de modo sucessivo e permanece
sob as malhas imprevisíveis e contingentes do presente, é a tese da duração (La
durée), do filósofo Henri-Louis Bergson.
Para Bergson (2006) − este profundo leitor das reflexões sobre o tempo, a
duração e a memória, de Santo Agostinho 33 −, a duração é o próprio tempo,
percebido como sucessão, não como divisão ou justaposição de termos distintos,
com pontos e instantes segmentados. Essa duração que alcança a consciência
imediata é substituída, entretanto, no insaciável desejo de distinguir, próprio da
consciência, por uma representação simbólica tirada da extensão (ou seja, de uma
relação espacial), e que só percebe a realidade através do símbolo, gerando duas
avaliações, duas formas da vida consciente, ou duas formas da multiplicidade
[temporal]: a duração homogênea, que é numérica, e símbolo extensivo da duração
verdadeira, e, sob essa multiplicidade numérica, quantitativa, marcada por
diferenças de graus, de estados definidos e simultaneidade, uma multiplicidade
heterogênea (em que momentos temporalmente heterogêneos se fundem
sucessivamente e se penetram), e que é uma multiplicidade propriamente
qualitativa, marcada por diferenças de natureza. Este tempo quantitativo,
matemático é aplicado ao mundo material, enquanto a duração é sentida num
processo em relação ao todo (a duração é o todo), pelas ações, percepções,
memória, impulsos e sensações próprias do sujeito.
No entanto, o filósofo da durée não despreza, ou ao menos não despreza
radicalmente, como pode parecer, a posição matemático-científica do tempo − nem

33
Santo Agostinho une suas reflexões sobre Deus e a eternidade às reflexões filosóficas sobre a
essência do tempo, bem como sobre a duração e a memória: "Que é, pois o tempo? Quem poderá
explicá-lo clara e brevemente? [...] Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos.
Compreendemos o que nos dizem quando dele falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se
ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém
atrevo-me a, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se
nada houvesse, não existiria o tempo presente" (SANTO AGOSTINHO, Confissões XI, 14 [17], 1987.
- itálico nosso) Esta, a sua clássica referência sobre o tempo. De Santo Agostinho, também Husserl
(2002, p. 25) reconhece: "Todo el que se ocupe com el problema del tiempo, de aún hoy estudiar em
profundidad los capitulos 14-28 del libro XI de las Confessiones. Pues la modernidad, tan celosa de
su saber, no há ido em estos temas assombrosamente lejos, ni há penetrado más hondo [...]. Aún
cabe decir com san Agustín: si nemo a me quaerat, scio, si quaerenti explicare velim, nescio".
77

o aspecto qualitativo do quantitativo34 −, consciente de que esse sistema de


delimitação e segmentação (recortes, "vistas parciais") está indissoluvelmente ligado
ao todo do universo. Diz ele:

É certo que a operação por meio da qual a ciência isola e fecha um sistema
não é uma operação de todo artificial. Se não tivesse um fundamento
objetivo, não se poderia explicar que ela é totalmente indicada em certos
casos e impossível em outros. [...] Se a ciência vai até o fim e isola
completamente, é para facilitar o estudo (BERGSON, 2006, p. 7).

A duração é, pois, nesta concepção, o próprio fundamento e movimento


unificador do universo, e dela se desdobra o impulso vital (élan vital). Seu
movimento é o de "elevação", um trabalho de maturação e criação35, contraposto à
"queda" da matéria. E nessa imanência do movimento e do impulso, diz Bergson
(2006, p. 8) "O universo dura. Quanto mais nos aprofundamentos na natureza do
tempo, mais compreenderemos que duração significa invenção, criação de formas,
elaboração contínua do absolutamente novo".
É também nesse movimento e nesse impulso criador que ergue a
proposta da identidade em Bergson, ou a diferença ente o mesmo e o outro, outro
ponto fundamental na proposta da duração porque estaria ligada, conforme Deleuze,
à sua estatura de grande filosofia, porque coloca problemas verdadeiros, e não
falsos problemas. Na filosofia bergsoniana, o ser é apresentado não em relação à
alteridade, mas em relação à sua mudança, sua alteração. O ser é, assim, um mau
conceito enquanto tentar opor tudo que é ao nada, ou a própria coisa a tudo que ela
não é, o que o tornaria uma abstração. As coisas são, portanto, questionadas em
relação a elas mesmas, no seu transcorrer imprevisível, imersas ao mesmo tempo
em seu passado e em seu porvir. Explica Deleuze, em Bergsonismo:

A questão bergsoniana não é: por que alguma coisa ao invés de nada?


mas: por que isto ao invés de outra coisa? Por que tal tensão da duração?
Por que esta velocidade ao invés de outra? Por que tal proporção? E por
que uma percepção vai evocar tal lembrança, ou colher certas frequências,
umas ao invés de outras? Isso quer dizer que o ser é a diferença, e não o

34
Bergson admite um aspecto qualitativo e um"equivalente emocional" dos números:"[...] poder-se-ia
quase dizer que os números de uso diário têm, cada um, o equivalente emocional. Os comerciantes
sabem muito bem disso e, em vez de indicar o preço de um objeto por um número redondo de
francos, marcarão o número imediatamente inferior, com a possibilidade de intercalar em seguida um
número suficiente de centavos. [...] Sem essa penetração mútua e esse progresso de certo modo
qualitativo, não haveria soma possível. Portanto, é graças à qualidade da quantidade que formamos a
ideia de uma quantidade sem qualidade (BERGSON, 2006, p. 13-14)
35
Um movimento de experiência ["per"] (ver tópico 2.2 Experiência & poesia).
78

imutável e o indiferente, tampouco a contradição, que é somente um falso


movimento. O ser é a própria diferença da coisa, aquilo que Bergson chama
frequentemente de nuança (DELEUZE, p. 2012, p. 107, itálico meu e do
autor [nuança]).

Desenhando planos e níveis que determinam linhas de diferenciações


possíveis, a duração atualiza o virtual 36, e também permite que a memória esteja
sempre [vigorando] em face do presente. Na verdade, na duração o passado pode
dilatar-se e se prolonga em relação ao presente (o que "desliza", que "já-era"), e
este se desdobra nas direções do passado e do porvir. Assim, nossa sensação da
duração, ou seja, a coincidência de nosso eu consigo mesmo, admite gradações
(BERGSON, 2006, p. 52). Nela, coexistem graus de distensão e contração, e ela
pode desdobrar-se numa infinidade de durações.
É nesse sentido da "sobrevivência do passado" (DELEUZE), que a
duração é em si memória, conforme explicita Bergson:

A memória... não é uma faculdade de classificar recordações numa gaveta


ou de inscrevê-las num registro. [...] A acumulação do passado prossegue
sem trégua. Na verdade, o passado se conserva por si mesmo,
automaticamente. Inteiro, sem dúvida, ele nos segue a todo instante: o que
sentimos, pensamos, quisemos desde nossa primeira infância está aí,
debruçado sobre o presente que a ele irá se juntar, forçando a porta da
consciência que gostaria de deixá-lo fora [ou recalcá-lo] (BERGSON, 2006,
p. 48).

Apesar desse jorro incontível, em Bergson, do passado, em forma de


memória sobre o presente, ainda nessa proposta poderemos vislumbrar ou
encontrar uma possibilidade de orientação (utilização) política dessa memória, na
medida em que diante dela, "nunca caímos num grau de passividade absoluta"
(BERGSON, 2006, p. 53), e de que ela está disposta em graus de tensão, "aqui,
mais próxima da imagem pura, ali mais disposta à réplica imediata, ou seja, à ação"
(BERGSON, 2006, p. 56), em que a atualização (o imediato) da sua virtualidade
pode ser redirecionada e convocada pela imagem na lembrança. Ou onde se
encontram lembrança e percepção.
Bergson torna-se, assim uma das maiores referências sobre a memória, e
é a partir dele que contemporaneamente os estudos da memória se ampliam e

36
"A duração só é efetivamente sucessão real por ser coexistência virtual. [...] Os graus coexistentes
são ao mesmo tempo o que faz da duração algo de virtual e o que, entretanto, faz com que ela se
atualize a cada instante, porque eles desenham outros planos e níveis que determinam todas as
linhas de diferenciação possível" (DELEUZE, 2012, p. 115)
79

disseminam. Poderiam ser mencionados, ainda, alguns de seus direcionamentos.


Dentro dos estudos culturais, o tratamento político da memória dos povos e dos
corpos, relativos à exploração, à colonização e ao massacre (e.g. escravização,
massacre indígena, holocausto), o luto e as feridas abertas - o clamor do passado
(e.g. mortos políticos), as afetividades dos espaços, e o desgarramento; o
tratamento afetivo dos vestígios materiais, documentais e das ruínas, na relação
entre a abordagem histórica e a abordagem memorial - e sua respectiva enunciação
discursiva. Tais experiências, somadas a outras, tais como a memória das
linguagens nas tecnologias e nos suportes cibernéticos, vêm somar-se na escritura
literária a um ponto que diz respeito diretamente à contemporaneidade poética: a
questão da anacronia, como presença do passado ou desconjunção do presente,
conforme já referido na introdução deste trabalho e como adiante será tratado.
Para o pacto lírico, assume especial importância o fato de que não
somente a percepção, mas também sensação e imaginação estão ligadas à
lembrança, à recordação: "a sensação, com efeito, é essencialmente atual e
presente; mas a lembrança que a sugere do fundo do inconsciente de onde ela mal
emerge, apresenta-se com esse poder sui generis de sugestão que é a marca do
que não existe mais, do que ainda queria ser" (BERGSON, 2006, p. 50, grifos
meus). Assim, sensação, sugestão e imaginação (constituída num corpo de imagens
da lembrança, que por sua vez se desdobra em evocação), aspectos caros ao pacto
lírico, acompanham o trabalho da memória no sujeito, processo que evidentemente
"vaza" para o texto ou nele se inscreve/se representa, seja através das experiências
ali mobilizadas, seja através do que, no texto, é voz do passado (reverberações,
recorrências textuais e de formas culturais - intertextuais, inter/transculturais),
engendrando uma tonalidade, senão um corpo tocado por um correspondente
imaginário afetivo-sugestivo.
Nessa perspectiva de uma tonalidade afetivo-sugestiva manifesta no
pacto lírico a partir da experiência memorial e, em última instância, pela duração de
modo geral, lembremos que esta não se dissocia dos outros aspectos, e arrasta
consigo a dimensão irmanada do espaço. É neste sentido que Deleuze visualiza a
relação espaço-temporal, trabalhando sobre as noções bergsonianas e propondo,
por sua vez, um espaço-tempo estriado, ou pulsado, com medidas regulares ou não,
determinadas como grandezas entre cortes, do qual se destaca um espaço tempo-
80

liso ou não-pulsado, povoado de afetos, intensidades, ruídos, forças, próprio à


duração, e que

já não se refere à cronometria senão de uma maneira global: cortes


indeterminados, de tipo irracional, medidas substituídas por distâncias,
vizinhanças indecomponíveis exprimindo densidade ou raridade. [...] O
espaço-tempo liso corresponde à Ordem do tempo, e a Ordem do tempo se
refere a uma multiplicidade de graus de densidade e rarefação (DELEUZE,
apud PELBART, 2007, p. 90).

Cabe observarmos, reconsiderando a proposta de Bergson, que, tanto a


multiplicidade quantitativa do tempo matemático-científico, quanto a multiplicidade
qualitativa da sucessão e suas respectivas temporalidades − o corte, a rigidez
absoluta e os graus de distensão ou retesamento −, têm o seu impacto e suas
implicações patêmicas não apenas sobre os sujeitos poéticos, mas também sobre
as dominantes líricas do poema e suas espessuras. Se a duração instaura no pacto
lírico uma temporalidade afetiva que proporciona a retenção, a imperfectividade
temporal (traços de duratividade, inconclusão, permanência), a mobilidade (fluência)
evocativa do eterno, a multiplicidade numérica do relógio, por sua vez, martela suas
pancadas sobre o sujeito lírico, ora impondo-lhe um ritmo cronometrado, ora
assombrando-lhe com o espectro da fugacidade e a sombra da morte, infalível,
contrária ao anseio vital e aos sonhos de eternidade. Uma cronologia que marca a
derrocada da matéria humana. Assim, quaisquer que sejam as formas do tempo, ele
se estende sobre o poema, como um dos senhores de suas determinações, que a
poesia em si tenta aniquilar.

1.2.3 O tempo suspenso, os jardins irreversíveis e as convocações da presença

Coerente com sua proposta do lirismo como exaltação da experiência


infinita da linguagem e voz de um indivíduo em situação de exílio no mundo, Jean-
Michel Maulpoix (2000) assevera no lírico o ensejo (apesar das intermitências do
sonhado em meio ao barulho da vida cotidiana) de suspender o tempo, de livrar-se
do fugaz e do transitório.
Maulpoix parte do Romantismo, Victor Hugo, de Paul Verlaine e
Baudelaire. Este último, segundo o teórico, ao pregar a embriaguez (l'enivrement) de
substrato poético (daquela conjunção entre poesia e vida...), "tenta chacoalhar o
81

fardo fatal do tempo e restaurar a estatura humana subjugada pelo tédio e pelo
relógio esmagador"37. O teórico concebe que o ato lírico fundamental consiste em
cantar, suspendendo os minutos que passam. E como (o) canto, a escritura se faz
momento de eternidade, em que o tempo se esquece, se deposita e se decanta: a
escritura replica, pelas figuras, a irreversibilidade do tempo. Assim, diz ele, é
necessário que aquele que traça signos sobre a página seja como um morto para o
mundo que o cerca. Ele não habita o tempo encantado da emoção, mas "o espaço
distendido e aleatório da página branca", em cuja escritura "a palavra lírica se
imobiliza"38.
Na poesia de Victor Hugo e Paul Verlaine, Maulpoix observa um desejo
nostálgico de tudo rever e o encontro com uma ausência, ou melhor, o desencontro
com uma realidade que já não é, senão sob o signo da ausência. Mergulhado no
sentimento do irreversível, nesses jardins para sempre perdidos, o poeta (o sujeito
poético) incumbe, então, os objetos, os elementos da paisagem de significar a
ausência e o tempo ido, oscilando entre o passado e presente. Assim, sobre um
trecho exemplar de Verlaine39, em que o sujeito lírico volta ao seu jardim, ele aponta
a manifestação de uma espécie de alucinação evocatória da presença, no desejo de
reconquistar liricamente o passado, em que a nostalgia dá acesso a um universo
musical e qualitativo, e a palavra festeja seu encontro com o primordial. Há, então
um consolo do nostálgico no escrever, enquanto permanece um exilado no poema,
construído como o seu "lugar ideal". Maulpoix (2000, p. 335) aponta, aí, a resolução
formal de um paradoxo nostálgico: ao inscrever a vida passada no tempo presente,
o poema sacraliza os bens perdidos [e o exílio], no entanto ao reviver um lugar e
uma duração real, o poeta os enterra para sempre, certificando sua inexistência e
magnificando sua irrealidade.
É certo que, em Du Lyrisme (2000), Maulpoix faz o elogio da escritura
poética tanto do distanciamento quanto da distância, na qual sentimos forte

37
"Il tente désespérement de secouer le fatal fardeau du temps et de redresser la stature humaine
asservie par le spleen et l'écrasante horloge" (MAULPOIX, 2000, p. 332-333).
38
"Il faut que celui qui trace des signes sur la page soit comme mort au monde qui l'entoure. [...] Il
n'habite pas le temps enchanté de l'émotion, mais l'espace distendu et aléatore de la plage blache. Sa
solitude est autrement radical. La parole lyrique s'immobilise dans l'écriture" (MAULPOIX, 2000, p.
333)
39
Trecho de Verlaine (Après trois ans, Saturniens) exemplificado por Maulpoix: "Rien n’a changé. J’ai
tout revu : l’humble tonnelle / De vigne folle avec les chaises de rotin… / Le jet d’eau fait toujours son
murmure argentin/ Et le vieux tremble sa plainte sempiternelle." ("Nada mudou. Eu tudo revejo: o
caramanchão humilde / De videira selvagem com cadeiras de vime ... / O jato d'água sempre faz seu
murmúrio prateado / E o velho balança sua queixa sempiterna.")
82

reverberação dos poetas-críticos do "alto modernismo" francês, principalmente das


posições de Baudelaire (menos), Mallarmé e Valéry (mais), e os ecos de sua
extensão crítica (e.g. Maurice Blanchot de O Espaço Literário40). Mas aqui
especificamente podemos dar atenção a dois pontos. O primeiro é que seu exemplo
comentado nos apresenta um tipo de aproximação do sujeito poético sobre o tempo,
que é a aproximação marcada pela nostalgia, isto é, a ansiedade e o vácuo latente
causado pela ausência do passado, irretornável, irrestituível. Assim, ele reconhece
que a pátria do exílio do poeta é a duração, mas uma duração que elide o sujeito
poético do presente (mesmo lançando-o na presença estabelecida pelo poético) e o
lança ao encontro dessa melancolia: o cancro aberto de um passado não enterrado,
que o poeta parece enterrar com seu poema. Entretanto, este enterro não
acontecerá, porque o caráter do nostálgico e do melancólico é sua abertura para a
falta iniludível, sua queixa sempiterna, seu retorno à ferida aberta. Ou seja: o poema,
neste caso, não funciona como luto, ele é e continuará sendo uma porta para essa
presença do passado.
As reflexões de Maulpoix nos transportam, entretanto, à lembrança de
outra possibilidade lírica, de considerar a presença da duração pelo mergulho num
tempo outro, agora não o do passado do sujeito poético em si, mas a do passado do
mundo, no regime de uma realidade que traz consigo a inocência do espanto
original, da nomeação original (a infância da língua), da eterna transformação das
coisas. Aí, sim, o tempo não é ferida, é alternativa para alma e para o corpo que
descobre o tempoespaço unificador do olhar, desamarrador de pontas.
Espaçotempo liso, flexível, de vai-e-volta, suspensivo do ritmo cronológico e utilitário
pelo estabelecimento do movimento temporal "coleante" e o acolhimento do que foi
lançado à tralha, ao limo, à ferrugem. O exemplo brasileiro aí é Manoel de Barros.
Nesta poesia, o tempo não é algo transcendente, mas imanente aos entes, aos
fenômenos e às ações (de morrer, de nascer, de criar...). Entranhado na natureza, o
tempo pode ser tragado pelas coisas, pelos seres, porque no fundo não há divisão
entre eles, o movimento da vida é uma coisa só, mas resguardada e percebida do
lado das coisas ínfimas, anônimas, deslocadas, pelos infantes ou pelos andarilhos
que perderam a precisão na beira do mundo. E, neste caso, também própria a
poesia torna-se duração (Poesia é "quando"...)":

40
Para quem escrever é uma situação extrema, a experiência radical que leva Mallarmé ao encontro
do Nada, ao desamparo da ausência dos deuses (BLANCHOT, 2011).
83

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:


Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole auroras.

(BARROS, 2000, p.13)


Ou:
No descomeço era o verbo
[...]
Ontem choveu no futuro
(BARROS, 2000, p. 15;33)
Esse descomeço do verbo torna-se tempo recomeçado na linguagem, da
linguagem, no próprio da poesia que pode recuperá-la em sua iluminação primeva,
para lançá-la fora do padrão que a espera apenas signo normalizado e transparente,
mathesis universalis, separado da sua grotesquerie mórfica e da "demência"
sinestésica do mundo. Com ela, também o tempo revém, trazendo seu jardim
adâmico, para incorporar-se na possibilidade do novo, de ser novo sentido, por
descronologia com a Ordem:

Nas Metamorfoses, em duzentos e quarenta fábulas,


Ovídio mostra seres humanos transformados em
pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica,
inaugural −
Que os poetas aprenderiam − desde que voltassem às
crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de
reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma
nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

(BARROS, 1990, p. 299)

Assim, estão colocadas duas possibilidades de temporalidade − a


instaurada no exemplo de Verlaine, mostrada por Maulpoix, e a instaurada no
exemplo de Manoel de Barros −, bem como dois modos de tratar a "naïveté du
monde" [a inocência do mundo] e "l'étonnement primordial" [o espanto primordial],
84

dois exemplos fortes de modos de tratar tempo, que se tocam, sem dúvida, mas que
mostram duas direções, duas temporalidades diferentes.
Outra questão que vibra nas colocações de Maulpoix diz respeito a uma
das mais antigas com as quais a poesia lida, talvez desde o seu nascimento: a
questão da sua participação ou da sua ruptura/seu distanciamento da realidade
social e histórica. Este teórico, ao menos liricamente, ainda açula o sagrado ou
incensa a morte − do poeta para o mundo. A escritura, diz ele, como o canto, é um
momento de eternidade: nela, o tempo é esquecido, mas para que tal prodígio se
cumpra, aquele que traça signos na página deve ser como morto para o mundo que
o cerca (Cf. nota 51, deste trabalho).
É uma posição que, no cultivo da autonomia artístico-poética, parece ir de
encontro à concepção que vê nessa mesma escritura (poética) uma oportunidade de
mergulho vivo na experiência e na realidade do mundo, e a transfiguração dessa
realidade para o regime estético que ultrapasse o particular, o local e o datado. Ou
seja: como a poesia − enquanto lirismo − se estabelece sem que o poeta
(consciente da transfiguração e da configuração poética) "morra para o mundo" ou o
transcenda ao ponto de açular o etéreo.
A linha apresentada pelo teórico é uma linha forte dentro da modernidade,
que sustenta a interpretação da autonomia da arte como independência, e mesmo
como crítica do contexto (por estar "suspensa" em relação a ele), mas diz respeito a
uma especificidade que se quer, não raramente, totalizante, como "arte pura" ou
"autêntica".
Pensando apenas no caso do Brasil, por exemplo, mesmo com exemplos
como o da liricidade evanescente da distância, de Cecília Meireles 41, da ausência e
da "suspensão do próprio tempo"; ou na consciência de que as palavras "rolam num
rio úmido e se transformam em desprezo", como expresso poeticamente por
Drummond, uma tal generalidade para o lírico é arriscada, porque o caráter liminar
da poesia (esse seu caráter sempre liminar e imprevisível), lança-a por outras vias
igualmente fortes e potenciais. Ela, a poesia, tem buscado outros caminhos, desde o
início do século XX, como os aqui representados por não poucas vozes, cada uma à

41
BOSI (2003, p. 123) discorre sobre uma linha mestra do "sentimento de distância do eu lírico em
relação ao mundo" em Cecília Meireles. Lembrando que, no caso dela esse afastamento não é o da
vontade deliberada de ausentar-se do mundo pelo mergulho entre o racional da linguagem e o
idealizante da linguagem poética, mas por estabelecer sua lírica num "pálido mundo só de memória",
em que "o sentimento do tempo coincide com a suspensão do próprio tempo".
85

sua maneira: Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral, Adélia Prado, Ferreira
Gullar, Poesia Marginal... Posições que podemos considerar como diferentes, senão
contraditórias, da apresentada, e que perfazem uma concepção que pode ser
apreendida nestes termos:

[Na sociedade moderna] a linguagem da poesia confunde então com a


prosa, do mesmo modo que o poeta confunde-se com o homem da rua e já
não pode nem deseja reivindicar para si a condição de eleito dos deuses.
[...] O poeta sonha no concreto o sonho de todos. Ele sabe que a poesia
brota da banalidade do mesmo modo que o poema nasce da linguagem
comum. Está na tua boca, na minha boca, a palavra que eventualmente se
converterá em beleza. Ou não (GULLAR, 1989, p. 15).

A posição de Maulpoix é melhor entendida, sem dúvida, como defesa de


uma estética que participa de uma visão anacrônica − no sentido, como adiante se
discutirá, do que é contemporaneamente colocado pela crítica − e que vê na
contemporaneidade uma oportunidade de permanência ou de desconjunção para
uma temporalidade outra (que se tornaria contemporânea de todos os tempos), na
qual o passado está sempre presente, através, sobretudo, no território de uma vida
sonhada frente ao barulho do cotidiano42. Entretanto, a concepção de temporalidade
e de como o sujeito participa, constrói ou se insere nessas temporalidades pertence
ao substrato de uma visão particular do poético e de como se percebe a relação
entre arte e mundo. Insere-se, no fundo, no velho conflito da poesia contra a
utilidade versus a poesia contra a plástica, conforme já a tratava Baudelaire, e de
cuja reflexão e prática é possível abstrair a extensão do problema. Num
posicionamento aparentemente paradoxal, esse poeta recusa tanto a visão utilitária
da arte quanto sua ascese transcendental, conforme expressa na doutrina da arte
pela arte de sua época. Sabemos que Baudelaire ao mesmo tempo que predica o
ideal artístico e poético, quer por meios de uma linguagem "espúria", quer por meios
simbólico-alegóricos, é o revelador da modernidade histórica, industrial capitalista, e
da experiência das transformações urbanas de sua época, trazendo para sua poesia
emblemas "críticos" dessa modernidade e da experiência moderna, tais como a
multidão, o flâneur, a prostituta. É ele quem dimensiona o problema. De um lado, a
poesia contra a utilidade:

42
[La parole poétique] se compose au gré de singuliers tempos qui mêlent les intermittences d'une
vie rêvée au bruit de la vie quotidienne" (MAUPOIX, 2000, p. 332). ([O discurso poético] é feito ao
critério de tempos singulares que misturam as intermitências de uma vida sonhada ao barulho da vida
cotidiana).
86

Há palavras, grandes e terríveis, que atravessam incessantemente a


polêmica literária: a arte, o belo, o útil, a moral. Faz-se uma grande
confusão; e por falta de sabedoria filosófica, cada um toma para si a metade
da bandeira, afirmando que o outro não tem nenhum valor. [...]
Moralizemos! Moralizemos! exclamam [a escola burguesa e a escola
socialista] com uma febre de missionários. Naturalmente, uma prega a
moral burguesa e a outra moral socialista. Portanto, a arte é não será mais
que uma questão de propaganda.43

De outro lado, "a poesia contra a plástica":

Pudessem a religião e a filosofia virem um dia como forçadas pelo grito de


um desesperado. Tal será sempre o destino dos tolos que não veem na
natureza nada além de ritmos e formas. Mesmo a filosofia não lhes aparece
inicialmente que como um jogo interessante, uma ginástica agradável, uma
esgrima no vazio. [...] Sua alma sem cessar irritada e insatisfeita vai-se
através de um mundo ocupado e laborioso, ela se vai, digo, como uma
prostituta gritando: plástica! Plástica! A plástica, esta terrível palavra me
arrepia [...]. O gosto imoderado da forma impele a desordens monstruosas e
desconhecidas. Absorvidas pela paixão feroz do belo, do engraçado, do
lindo, do pitoresco, porque há graus, as noções do justo e do verdadeiro
desaparecem. A paixão frenética da arte é um cancro que devora o resto; e
como a nítida ausência do justo e do verdadeiro na arte equivale à ausência
de arte, o homem inteiro desaparece. A especialização excessiva de uma
faculdade leva ao nada.44

Assim, percebemos que a questão da temporalidade suspensa está


atravessada por esta outra, mais fundamental, porque, ao tratar da questão dos
níveis de historicidade do poético, tratamos de sua relação com as formas do agir
humano, com os regimes (quais sejam, estético, ético, ou político) e discursos que
mobilizam as relações humanas, no que envolve a arte e a alteridade.
O outro grande lado da suspensão do tempo é sua abertura para a
suspensão da linguagem factual, cotidiana, compreensível pelo tempo comum, ao

43
Il y a des mots, grands et terribles, qui traversent incessamment la polémique littéraire: l'art, le
beau, l'utile, la morale. Il se fait une grande mêlée; et, par manque de sagesse philosophique, chacun
prend pour soi la moitié du drappeau, affirmant que l'autre n'a aucune valeur. [...] Moralisons!
Moralisons! s'écrient [l'école bourgeoise et l'école socialiste] avec une fièvre de missionaires.
Naturellement l'une prêche la morale borgeoise et l'autre la morale socialiste. Dès lors l'art n'est plus
qu'une question de propagande. (BAUDELAIRE, in: LEMAITRE 1982, p. 94)
44
Puissent la réligion et la philosophie venir un jour, comme forcées par le cri d'un deséspéré! Telle
sera toujours la destinée des insensés qui ne voient dans la natue que des rythmes et des formes.
Encore la philosophie ne leur apparaîtra-t-elle d'abord que comme un jeu intérressant, une
gymnastique agréable, une escrime dans le vide. [...] Son âme, san cesse irritée et inassouvie, s'en va
à travers le monde occupé et laborieux; elle s'en va, dis-je, comme une prostituée, criant: Plastique!
plastique! La plastique, cet affreux mot me donne la chair de poule [...]. Le gout immoderé de la forme
pousse à des désordres monstrueux et inconnus. Absorbés par la passion féroce du beau, du drôle,
du joli, du pittoresque, car oil y a des degrés, les notions du juste et du vrai disparaissent. La passion
frénétique de l'art est un cancre qui dévore le reste; et, comme l'absence nette du juste et du vrai
dans l'art équivaut à l'absence d'art, l'homme entier s'évanouit; la spécialisation excessive d'une
faculté aboutit au néant (Idem, ibidem).
87

território dessa outra temporalidade, fato que pode não ocorrer por concomitância ou
consequência direta em alguns casos, como aparentemente não ocorre no exemplo
de Verlaine. No entanto, tal fato se tornou recorrente na proposta dessa "suspensão"
temporal que é também elisão de significado, o qual permanece como uma
virtualidade para o homem factual, mesmo após a repetição da leitura. Este é,
portanto, um procedimento que estabelece como correlato o enigma, o hermetismo
ou a obscuridade45, patentes em toda a alta modernidade como alto índice de valor
poético. Sobre essa concepção, que se coloca como o próprio fundamento do
processo criativo, resume o italiano Alfonso Berardinelli (2007, p. 134):

[Modernamente,] o espaço artístico se divide entre o território da regressão


mágica e o da modernização tecnológica. Os poetas tendem a se
apresentar como magos ou engenheiros. Videntes, sacerdotes e herdeiros
de uma tradição oculta, ou filhos de um presente irrefreável, voltado para o
futuro. Frequentemente, essas duas figuras contrapostas se sobrepõem ou
se alternam no mesmo autor. E isso ocorre, como já afirmei [no ensaio em
questão] em relação aos quatro tipos - ou quatro caminhos - de
obscuridade: solidão, mistério, provocação, jargão.

A "suspensão" da imediaticidade da linguagem para uma dimensão


pretensamente imaculada, original e cósmica funciona, contudo, numa visão
conceitual, não como um fechamento, mas, antes, como uma "abertura para o leitor"
e sua tomada de consciência da linguagem − um território onde a poesia poderia
fazer-se em seu máximo grau, e ainda mais polissêmica, porque seria isso o que ela
busca e inclusive o que se poderia entender por poesia:

o poeta se instaura como o operador de enigmas, fazendo reverter a


linguagem do poema a seu eminente domínio: aquele onde o dizer produz
reflexividade. Parceiros de um mesmo jogo, poeta e leitor aproximam-se ou
afastam-se, conforme o grau de absorção da/na linguagem" (BARBOSA,
1986, p. 14).

A "elevação" ou a "exaltação da linguagem" é assim tomada como a mais


alta consciência da poesia e da linguagem, pela qual ela se faz. Seu meio é,
portanto, seu fim: "o coração do enigma que é posto por sua própria condição"46.
Obviamente, como já sabemos, a dialética da poesia é a dialética do imprevisível, e
os seus gumes lacerantes podem fazer jorrar todos os lados. Deste modo, seu
45
Cf. abordagens de João Alexandre Barbosa (1986), da poesia como enigma – tratado, aí, como
"consciência de leitura" ou "abertura para o leitor"; Fábio Andrade (2008), a poesia do hermetismo
atual, e Alfonso Berardinelli (2007) a poesia como obscuridade.
4646
"Le coeur de l'énigme qui lui est posée par sa propre condition" (MAULPOIX, 2000, p. 14).
88

distanciamento pode ser − em alguns casos, poderíamos dizer − justamente seu


mais alto golpe sobre uma realidade comezinha.
Voltando à caracterização da temporalidade aqui discutida, percebemos
que, conforme colocada, o tempo se constitui propriamente num tecido
espacializado, imobilizado em relação ao curso histórico do mundo, e que o recobre
(tornando também a escrita um manto de eternidade). O tempo suspenso é uma
temporalidade espacializada, e talvez não seja impróprio dizer que, em qualquer de
suas modalidades, assume esse caráter de espacialização temporal porque se torna
um lugar − seja de refúgio, de recuperação do ser, seja de pura virtualidades e
paisagens da memória, seja de uma paisagem sígnica, distanciada, de onde se
pode criticar visionariamente, ou, ainda, de onde se possa habitar o ideal da
linguagem e contemplar o vazio. É um tempo que se estabelece como um desafio no
seu tratamento em relação às concepções e às configurações do poético. Mas,
todavia, de uma extraordinária riqueza e possibilidade, mergulhado na duração: ele
abre, afinal, os campos do perceber e do sentir à multidão dos possíveis dessa tão
larga e imprevisível poesia.

1.2.4 Nuanças temporais e formações sensíveis do poema: a temporalidade nas


formas verbais e nominais líricas

Na efetividade textual e discursiva do poema, o tempo concebido, que a


atravessa, nem sempre aparece de maneira clara, mas nuançado, sugerido,
encarnado num corpo sensível, dirigido por uma tonalidade patêmica, pelas
afetividades ou pelas operatividades que a sustém. Sabendo, contudo, que são as
formas verbais os termos discursivos responsáveis pela orientação e pelas marcas
temporais no enunciado poético, o processo das leituras das temporalidades e suas
faces no poema têm nestas formas seu ponto de partida.
Por outro lado, o fluxo temporal pode apresentar (na corporeidade formal
do poema, como no seu ritmo, no seu campo de metáforas e imagens, na sua
referencialidade) possibilidades que serão tratadas nas questões sobre a forma
poética e, de modo mais concreto, na análise dos poemas escolhidos. Entretanto, no
que diz respeito aos elementos formais do enunciado especificamente indicadores
dos aspectos e formas de realização temporal, como é o caso dos verbos, a
contraface construtiva de sua presença seria sua elisão, as construções poéticas
89

nominais: um procedimento que, como recurso da escrita, impinge ao texto poético


uma outra sensibilidade, uma outra duração, de relações e efeitos diferentes
daqueles propostos pela corrente e pela predicação verbal. A proposta, de modo
mais direto, é discutir, ao menos de modo geral, dadas as especificidades deste
trabalho, esses dois processos de constituição de dominâncias e traços temporais:
aquele constituído pelas formas verbais e os constituídos pelas formas nominais.

1.2.4.1 Tempo de presença: perfectividade e imperfectividade, retenção,


lembrança e protenção

Além da clara referência verbal à temporalidade (dura/durou,


permancece/permaneceu, ocorre/ocorrerá, faz/há [quanto tempo que...] e outras),
semanticamente marcadas, o caráter da temporalidade revela-se nas formas verbais
principalmente pelo seu valor aspectual de perfectividade ou imperfectividade: o
primeiro assinalando um aspecto pontual, gradual, acabado, limitado ou inserido
numa dinâmica de cronicidade ("estriada", antes/depois), e o segundo assinalando
um aspecto durativo, processual, não limitado, numa estática (que podemos
entender como tempo "liso") ou processos inacabados e inconclusos, em devir e em
constituição.
Para Rodriguez (2003, p. 168-169), a temporalidade no pacto lírico
organiza-se a partir de uma dimensão patêmica da existência, num devir em
movimento que se atualiza na "presença a si" do sujeito em relação à temporalidade
do mundo e a seu "aquiagora". De acordo com sua percepção, estes dois aspectos
verbais exercem papel fundamental: o aspecto perfectivo e o imperfectivo. A
dimensão afetiva estabelece também, segundo o autor, um espaço-temporalidade
específico de relações singulares com o passado e com o futuro.
Recorrendo à fenomenologia de Husserl sobre o tempo, como a vimos,
Rodriguez (2003) associa essas duas temporalidades constituídas pelas formas
verbais aos tempos objetivo e experiencial − ou, como o chama o autor, ao "tempo
sentido" −, ressaltando que os simples modos ou tempos verbais marcados
(presente, passado e futuro) não respondem, na experiência viva do poema, à
complexidade inscrita nas temporalidades pático-afetivas, aos modos nuançados do
estar-no-mundo, ou às relações com o atual, o virtual ou o ausente [ou à espera].
Além disso, o autor de Le pacte lyrique propõe um "tempo" não gramatical, o qual
90

reuniria uma multiplicidade de traços e ofereceria uma orientação "precisa" para


qualificar o jogo linguístico da temporalidade pática: o "tempo de presença",
concebendo por "presença" uma dimensão mais profunda que o tempo [verbal] do
presente, sobretudo do presente do indicativo. Essa presença, carregada de
tonalidades afetivas,

remete à ex-istência, que é abertura ao mundo e do mundo, sendo ao


mesmo tempo exposição sob o horizonte deste. Ela estabelece a iminência,
a urgência do que está à frente, de acordo com a etimologia, e a facticidade,
pelo que está presente. Eis porque sua ambivalência implica uma situação
dupla de limitação e cruzamento de evento e advento, de jorro e
permanência que é característica dos paradoxos do devir. [...] Ora, esse
tempo de presença permite a interação da experiência pática e da forma
enunciativa do discurso, especialmente pelo jogo sobre os tempos verbais. 47

Assim, Rodriguez (2003) associa a perfectividade verbal ao tempo


objetivo. A perfectividade, de um modo geral vetorizado pelo modo indicativo do
verbo, que impulsiona as temporalidades não por vontade ou desejo, mas pela
epocalidade e a referência pontual, está relacionada às três ecstases [ekstases] do
tempo, passado, presente e futuro − frequentes, por exemplo numa literatura
histórica, trivial e realista −, relacionando as referências e as posições do "falante", é
também responsável pelo aspecto de recuperação do passado pelo sujeito por via
do relembrar, isto é, de uma limitação que o distingue da duração de aspecto
retentivo. O relembrar (a lembrança), segundo o autor, perfaz-se como um
"acontecido", uma imagem de referência situada pontualmente, pertencente a uma
representação do tempo que o encadeia e o situa a partir de posições de
acumulação e atualização que o divide em épocas, é o tempo constituído de uma
infinidade de tempos finitos, de instantes-limites.
O aspecto imperfectivo, por seu turno, implica o escoamento do tempo
que reúne as tensões e potencialidade próprias do paradoxo, do que se divide e se
liga, fluxos de instantes mutáveis e limites que vazam e se ultrapassam, distendem-
se, tornam-se contínuos; alongam-se, ou se retraem: liga entre o possível e o real, o

47
La présence renvoie à l'ex-istence, qui est ouverture au monde et du monde tout en étant exposition
sous l'horizon de celui-ci. Elle engage l'imminence, l'urgence de ce qui est à l'avant selon l'étymologie,
et la facticité, par de ce qui est présent. C'est pourquoi son ambivalence implique une situation double
de limitation et de franchissement d'événement et d'avènement, de jaillissement et de permanence qui
est caractéristique des paradoxes du devenir. [...] Or, ce temps de présence permet l'interaction de
l'expérience pathique et de la forme énonciative du discours, notamment par le jeu sur les temps
verbaux (RODRIGUEZ, 2003, p. 169).
91

virtual e o atual, como um chamado a ser do porvir e uma realização de um estado


possível do passado.
Assim, esse imperfectivo está ligado, em primeiro lugar, ao devir. Aí,
Rodriguez invoca a imagem do rio (Heráclito), mas de um ponto de vista interno, em
que o corpo pode mergulhar ou "flutuar", deixando-se levar pela água − o tempo −
ou movimentando-se mais lentamente ou mais rapidamente que ela. Assim mesmo,
a visão do passado, do presente ou do porvir se modificam num sentir próprio do
acontecimento:

o instante pode ser comparado a um ponto não dimensional no entre-dois


de todas as dimensões, carregando-se, por vezes, de afocalismo, numa
origem incessantemente renascente, por vezes de uma estreiteza
circunscrita na irrupção do acontecimento" 48.

Em segundo lugar, o imperfectivo, por essa sua abertura, implica as


regiões contemporâneas do passado e as potencialidades do porvir, reunindo,
portanto, o caráter seja da retenção seja da protenção, as tensões da anterioridade
e da posterioridade − o projetar-se. Reter significa conservar o passado sem dele
desfazer-se, é o passado que sobrevive como voz ressonante − afetivamente ou
como afecção −, aderente ao presente, o qual continuamente se esvai. A retenção
provoca um remanejamento incessante das relações com o mundo, com a
alteridade, porque ela mesma se faz solo habitável: solo individual, solo comunitário,
solo da tradição... "[...] a ressonância de um passado percebido, ainda presente,
mesmo se inatual"49.
É por via do imperfectivo que se constitui o tempo de presença, para
Rodriguez, correspondendo ao tempo do devir: uma duração entre horizonte de
anterioridade e posterioridade, que tem como fonte o agora − pático − e o espaço −
flexível, vivencial e relacional, diríamos −, da situação. Em constante jorro e
renovação, relega ao segundo plano o aspecto perfectivo e adota uma perspectiva
distinta daquela do plano histórico, incluindo, contudo, o imemorial e os tempos idos,
quando estes estão relacionados ao sentir. Assim se estabelece o tempo de
presença sobre o enunciado verbal poético:

48
"l'instant peut-il s'apparenter à un point non dimensionnel dans l'entre deux de toutes les
dimensions, se chargeant tantôt d'afocalisme dans une origine incessament renaissante tantôt
d'étroitesse circonscrite dans une irruption de l'événement" (RODRIGUEZ, 2003, p 170).
49
"[...] la résonnance d'un perçu passé, encore présent même s'il est inactuel" (RODRIGUEZ, 2003, p.
171)
92

Este tempo é construído especificamente com expressões no imperfeito e


no presente do indicativo, quando a forma verbal está centrada sobre este
modo e toma um aspecto imperfectivo. A situação pática terá, por outro
lado, tendência a ignorar o pretérito simples e o pretérito composto, quando
ele toma um aspecto perfectivo. Este aspecto pode, obviamente, incluir o
50
imperfeito ou o presente quando eles apresentam um caráter histórico.

Uma outra possibilidade de manifestação do tempo de presença na


sintaxe textual dá-se nas frases nominais ou quasi-nominais (aquelas com presença
das formas nominais dos verbos, infinitivo, gerúndio e particípio), as quais, mesmo
instaurando um universo frasal, um texto, sem a presença de verbos, ou os deixando
em suspenso na forma de elipses, não deixam de sugerir uma temporalidade
própria, um efeito de tempo. Associam-se, deste modo, conforme Rodriguez, a uma
relação com o mundo que Husserl chamou de "antepredicativa", própria a uma
dimensão afetiva da existência, e produzindo um efeito que se pode associar a uma
prerreflexividade. Contudo, o Rodrigues (2003, p. 174) admite que, mesmo à falta de
determinações pessoais ou temporais, tais tipos de frases implicam "formas originais
de predicação e asserção".
O tempo de presença se estabelece na frase nominal justamente porque
esta manifesta uma impressão de que o enunciado está fora de toda localização
temporal, modal, e da subjetividade do locutor. Opõe-se, deste modo à cronotese
(tese da divisão temporal), e produz um apagamento do ponto fixo do sujeito ao qual
os predicados se relacionam. Deste modo, também suspende a dicotomia entre
subjetividade e objetividade, criando uma relação de imediaticidade e participação
de modo intemporal e permanente, ao mesmo tempo em que

Elas dão uma sensação de essencialidade como se tratassem


ontologicamente do mundo. As distinções entre as três ecstases de tempo
se esfumam para deixar reter uma forma de presença na duração atual. É
por isso que este tipo de frases associa-se ao aspecto imperfectivo
observado anteriormente. [...] Pela não-posição e a não possessão que elas
dão ao locutor, as frases nominais são, portanto, particularmente
adequadas como invocações e evocações no pacto lírico.51

50
Ce temps se construit particulièrement avec de tournures à l'imparfait et au présent de l'indicatif,
lorsque la forme verbale est centrée sur ce mode et qu'elle prend un aspect imperfectif. La situation
pathique aura en revanche tendance à écarter le passé simple et le passé composé lorsqu'il prend un
aspect perfectif. Cet aspect peut évidemment inclure l'imparfait ou le présent quand ils ont un
caractère historique (RODRIGUEZ, 2003, p. 173).
51
Elles donnent une impression d'essentialité, comme si elles traitaient ontologiquement du monde.
Les distinctions entre les trois extases du temps s'estompent pour laisser retentir une forme de
présence dans la durée actuelle. C'est pourquoi ce type de phrases s'associe à l'aspect imperfectif
précedement observé. [...] Par la non-position et la non possession qu'elles donnent au locuteur, les
93

A ideia de um tempo de presença no corpo lírico redimensiona tanto o


texto quanto a percepção compreensiva, no sentido de que amplia não somente os
horizontes temporais a serem considerados, mas de que também redimensiona as
próprias concepções do tempo − ato este realizado primeiramente pelo poeta na
efetivação e na elaboração do seu texto, e que também faz parte do modo próprio
como lidamos com o tempo no mundo das nossas vivências e experiências. Ao
propor a ideia suplementar de um tempo presente, Rodriguez consegue perceber e
esboçar esta outra nuança, esta "diferença", agregando-a às questões filosóficas
sobre o tempo, perceptivelmente relacionadas aos filósofos focalizados, Husserl,
Bergson e Heidegger. Percebemos, em suas colocações, o rastro de Husserl, no
que diz respeito ao tempo objetivo e ao tempo sentido [experiencial]; o de Bergson,
no que diz respeito ao centro do tempo de presença, que é a duração coleada e
inconsútil, deslizante; o de Heidegger, que diz respeito ao próprio vocabulário e
repertório convocados − a presença, a ultrapassagem das ecstases temporais
representadas pela perfectividade verbal de um tempo cadente... −, aplicados ao
processo efetivo da construção frasal, textual, enunciativo-discursiva, na
manifestação escrita do poema. O diálogo de concepções é estabelecido, nessa
convocação, no sentido de buscar as expressões da afetividade como a dominante
estrutural do pacto lírico.
Trazendo essa luz à compreensão da literatura com a qual nos
deparamos hoje, e estendendo-a para outros esclarecimentos e percepções, para
além da dominante da afetividade, a qual pode acabar por estabelecer-se
unidirecionalmente, o tempo - assim como o espaço - é lastro fundamental para se
pensar a dimensão poética da experiência. E isto porque a experiência é a própria
travessia do tempo: não há experiência sem o caminho pelo tempo, a historicidade,
os imaginários, as memórias, as evocações, as formações afetivas e subjetivas.
Então o modo como ele é concebido ou estabelecido pode definir também os limites
ou deslimites da experiência, como determinação que é intrínseca a ela: é preciso
saber como lidamos com o tempo, e o que as maneiras de lidar podem significar.
Lembrando ainda que, também na corporeidade formal do poema, o tempo se

phrases nominales sont donc particulièrement appropriées pour servir les invocations et les
évocations dans le pacte lyrique (RODRIGUEZ, 2003, p. 175, grifos meus).
94

estabelece, em seus ritmos, nos seus andamentos, nas instâncias enunciativas, nas
relações estabelecidas como "dentro" e como "fora". É levando isso em conta que
serão tomadas como orientação e delineamento as concepções ora vistas e
exploradas.

1.2.4.2 Duas temporalidades: o caráter mácron [ē'] e o caráter braquiado [ĕ'] do


verbo ser na disposição lírica

Duas possibilidades importantes de nuanças temporais, que podem ser


relacionadas ao tempo de presença, ocorrem em construções sintáticas e
disposições espaciais do verbo "ser" − embora também possam ser perceptíveis
noutros termos e disposições, como nos provocados pela ruptura rítmica-temporal
do enjambement −, que transformam o sentido do poema pelo investimento temporal
sobre sua disposição e seu significado, ou seja, com incidência no corte sintático e
na relação significativa estabelecida por esse corte, na frase.
É o que podemos chamar de caráter mácron e caráter braquiado,
invocando aqui a ideia básica dos diacríticos latinos clássicos do alongamento
(macro/mácron) e da brevidade (braquia) vocálica, ideia que creio aplicar-se bem às
temporalidades estabelecidas por dois usos do verbo ser, como efeito sintático-
semântico no poema: uma incidência durativa, extática ou de suspensão
significativa, adquirindo um sentido que se orienta para um aspecto durativo-
ontológico, o qual podemos sinalizar com [ē']; e um aspecto copulativo, cujo acento
desliza para ser lançado sobre a predicação qualificativa do sujeito, que podemos
sinalizar com [ĕ']. No poema, tais nuanças são extremamente importantes para sua
apreensão compreensiva e para a orientação temporal que nele se estabelece, pois
se de um lado o acento está numa temporalidade contínua e num desejo de
perpetuação da duração, no sentido de um mergulho na essencialidade ou na
atemporalidade, no outro, o acento é trilha para uma visão outra do sujeito, e outra
relação da linguagem com o mundo (ou da linguagem do mundo).
Recorro a dois exemplos, um deles nos é dado pela poesia de Josoaldo
Rêgo, e o outro, pela de Fábio Andrade, referidas não no sentido de valor
comparativo, mas pelas possibilidades que apontam e fornecem, principalmente no
que diz respeito ao dimensionamento do tempo de presença. De Josoaldo (2016),
em trechos do seu livro Carcaça:
95

A chuva é
o começo

(Calhas, p. 20)

a fratura é
tempo e maresia

(Fraturas, p. 26)

a Terra-é
o quebrar pedras
e desalojar
a botânica dos ossos

(Natimudo, p. 33)

ou é a selva
ou não é

(Alinhador de trilhos, p. 56)

Em todos estes exemplos, o corte do verso define uma temporalidade [ē'],


que recai em primeiro lugar sobre a condição de ser da coisa ou sobre um estado de
permanência, estendendo-se sobre seu próprio alongamento, antes de recair sobre
seu complemento, antes de ser qualificado como isto ou aquilo, é o que é.
Descobrimos, nesse alongamento da coisa-linguagem, que a temporalidade se torna
também tempoespaço suspensivo, delongado, estendido até recobrir tudo, inclusive
o sujeito falante, que desaparece − ou se dilui na paisagem-tempo como mediador
do nosso olhar, do nosso pensamento −, como é ressaltado mais nitidamente na
"antroponáutica" de Fraturas: "a fratura é [ē']/ tempo e maresia". O espaço, por sua
vez, também se temporaliza, transcendendo para uma ontologia, antes de tornar-se
do desalojamento do impulso vital do sujeito pelo trabalho trágico (sisífico) do
absurdo: a Terra-é/ o quebrar pedras/ e desalojar/a botânica dos ossos - resquícios
ainda da fratura entre pele e osso. E, no caso do último excerto, vemos uma
totalização, em que se impõe presença ou ausência absolutas, do tipo "ser ou não
ser", encarnadas na presença da selva.
Podemos convocar, nestes exemplos, também a noção do tempo de
presença, de Rodriguez, que aí se faz, entretanto, na acontecência dos elementos
postos como alocados numa situação de tempoespacialidade e
96

espaçotemporalidade em devir, sendo: o que é, e o que já não é, porque o próprio


presente há-de ser posto em dúvida, para que a coisa encarnada na linguagem se
retenha e se projete, ultrapassando-se para além da ecstase.
Em Fábio Andrade, "a matéria da presença" 52 já pode ser tomada por
outros meios, mas elejo aqui um exemplo para discutir o outro uso do verbo ser, seu
caráter braquiado [ĕ'], conforme estamos trabalhando. Mostras do livro A
transparência do tempo (2009):

Toda palavra
é cruel

não cicatriza
nem fecha
a espera

amarga
quem da palavra
espera trégua

toda palavra
é guerra

campo marcado
ossos arruinando
sem pressa

toda palavra
é menos do que
a seta que a espera

revela com nitidez


o que nos fere
e cerca.

(Dizer, p. 32)

Retomando o questionamento do homem com o dizer − com a


linguagem−, desde que o mundo ganha sua consciência linguística, e, mais
especificamente, o clássico embate do poeta com a palavra, aqui Fábio transforma
essa palavra em mais que "luta vã", mais que o desafio do esgrimista baudelairiano,
num embate ainda mais rude e arcaico: a palavra, enquanto linguagem, é um campo
de guerra corpo-a-corpo, em que o sujeito leva uma seta nas mãos, e, enquanto
necessidade de precisão, é a condição do que nos fere e cerca (mesmo quando
estamos com a seta, à sua espera), deixando a ferida em aberto: esta ferida do dizer
e do sentido, que não sara, por aprofundar-se, sob a casca. Aqui, não estamos
52
Título da segunda parte, de sete, de A transparência do tempo.
97

numa brincadeira de adivinhação de movimentos, de defesa e ataque. Nós


buscamos a palavra certa, nós estamos com a seta para cravá-la (ela, qualquer
uma, é cogitada como menos que a seta...), mas é ela quem, afinal, segundo a
"última" fala dessa voz, cerca-nos e apanha, acertando-nos na imprevisibilidade e
fazendo-nos sangrar, mesmo na (suposição da) certeza − palavra s/ce(r)teira − de
sua transparência e nitidez.
Aí, o tempo é o que se estende sobre o cenário dessa guerra, é o já dado,
ou como tempo gnômico53 da verdade inelutável acerca da palavra, ou na revelação
do movimento, na espera dessa seta e em sua ferina ou cruel atualização. Não
obstante essa omnitemporalidade estabelecida pelo embate, construtivamente há
uma transitividade sintático-semântica imediata proporcionada pela ligação do verbo
ser entre o sujeito e sua predicação, onde repousa o acento, a ênfase, a revelação.
A palavra não é [ē'], ontológica e temporalmente como duração, antes de ser cruel
ou ser guerra: ela simplesmente [ĕ'] cruel, [ĕ'] guerra; deste modo, não sendo, é, ao
menos aparentemente, "menos que a seta que a espera".
Com base, então, nessas ocorrências dentro da poesia, proporcionada
pelos procedimentos escriturais, pelos "modos de dizer", podemos tratar dessa outra
face relativa à duração no poético, concernente ao tempo de presença, e observável
no uso particular das disposições sintáticas, neste caso, em dois usos diferentes das
formas do verbo ser. São, digamos assim, duas formas de desaguamento (do rio) do
tempo, uma do que escoa encarpelado, hesitante entre as pedras da retenção e da
protenção, enquanto o outro jorra na entrega de tudo quanto leva. E, no entanto,
ambos estão no território da imperfectividade, mas o tempo de presença não se
apresenta do mesmo modo: esta é a diferença do que podemos propor como
"temporalidade mácron" e "temporalidade braquiada", nas disposições líricas.

1.2.5 Cronótopos da atualidade confrontada: o presentismo, o pós-modernismo, o


contemporâneo

A rigor, existem tantas temporalidades quantos forem os indivíduos,


apesar de todos partilharem uma cronoespacialidade (uma realidade determinada)
comum, pois a cada um se esboça sua relação com o mundo, seu itinerário

53
O tempo da constatação ou da enunciação de verdades eternas, presente omnitemporal: o homem
é mortal.
98

biográfico, sua circunstância, incidindo sobre a consciência íntima do tempo, e neste


como uma forma de experiência. As realidades, então, constituem suas "ilhotas de
temporalidade", atingindo determinada dimensão: de longo alcance para uns, de
curto alcance para outros, implicando nas vivências de cada temporalidade, em suas
limitações, expectativas e possibilidades. Tal percepção nos coloca em meio a uma
realidade não unânime, que exige negociação de perspectivas, imersões,
adaptações, pressões e, não raro, resignações a temporalidades que se desenham
como algo maior.
Numa breve avaliação que faz Hans Gumbrech sobre cronótopos
(concepções e experiências temporais; temporalidades) da atualidade, em prefácio a
Valdei Lopes de Araújo (2008), aquele autor afirma que o século XIX trouxe uma
grande inovação em relação ao tempo, de extenso domínio, de uma inevitável
assimetria entre retenção e protenção, e suas derivações de lembrança e
expectativa, moldando o sentido do que é percebido como presente. O século XIX
teria trazido a concepção - teria nos convencido - de um tempo como irreversível e
"necessário agente de mudança", com um futuro diferente do passado. Pensemos
na ideia de "progresso", vigente naquele momento, no lastro da industrialização, do
crescimento das metrópoles, do cientismo e do Positivismo.
Essa assimetria entre passado e futuro implicaria num presente
imperceptível, curto momento de transição, trazendo a impressão de que estamos
sempre em momentos de progresso ou de decadência (em relação ao futuro ou ao
passado). É o que Gumbrech denomina de cronótopo historicista, uma confusão
estabelecida e naturalizada entre o tempo e a própria história. Aí, teríamos também
o estabelecimento de uma tensão em alguns países, entre os quais o Brasil, uma
dupla condição da história: entre a dinâmica, a transformação e o incremento da
facticidade histórica e a monumentalidade da figuração da identidade nacional - em
cujo centro, sabemos, está localizada a literatura brasileira que emerge desse
cronótopo. Acerca deste cronótopo, como dominante, Gumbrech ainda reconhece
na obra de Valnei a valiosa descoberta de que as formas de organização do Estado
e do governo jogaram um papel decisivo para estabelecê-lo.
Mas este seria um paradigma em desaparecimento. Desde os anos 1970,
1980, estamos nos movendo em direção a uma construção do tempo distinta, a
construção do tempo com um presente constantemente alargado, entre um futuro
que parece cada vez mais inacessível e um passado que invade o presente
99

alargado com todo tipo de efeitos de memória, significando que estamos passando
por uma profunda transformação em nossa experiência do tempo e impondo-nos
uma tarefa de readaptação, de novas formas de operar o passado. O autor não vai
adiante, senão até o lançamento dessa injunção, este impulso para a percepção do
nosso próprio atravessamento temporal, enquanto sujeitos em historicidade - o que,
pela condição mesma de historicidade como temporalidade, pode estabelecer um
distanciamento do cronótopo historicista naturalizado.
Já é bastante patente que a complexidade do momento presente
ultrapassa as meras pressuposições de um “vir após a” ou de um "estamos nos
encaminhando para", isto é, à previsibilidade de um futuro consequente ou
inevitável, seja no sentido de qualquer narrativa de um progresso material individual
ou coletivo de base industrial ou comercial; seja no sentido de uma luta de classes
com minorias oprimidas vencedoras; seja no sentido da utopia messiânica, com a
construção de uma cidade eterna como recompensa pelos sofrimentos de um
presente terreno, quando este já está enterrado na secularização, nos jogos
discursivos e virtuais, e no comércio da própria bem-aventurança. É, portanto, um
presente que se "alarga" em sua própria instauração e reiteração. As perspectivas
de um presente que aloca a memória e coloniza o futuro estão entregues às
circunstâncias de sua imprevisibilidade, porque a própria presença não está sob
controle.
Para a compreensão desse largo presente e os revezes de suas forças e
formas, principalmente no que diz respeito à situação da poesia contemporânea, não
podemos deixar de referir pelo menos três conceitos de importância máxima para as
discussões propostas, de certo modo interligados, e que redimensionam as
concepções da obra de arte, ao lançá-las nos esboços cronotópicos de seus
discursos: o chamado presentismo, as ressonâncias do termo pós-modernismo e a
concepção disjuntiva do contemporâneo.

1.2.5.1 O presentismo

O presentismo segue na direção do que vimos nas indicações de


Gumbrech, desse presente "dilatado" como um cronótopo dominante, presente-
habitat, constantemente alargado, mas o termo - presentismo - é proposto pelo
historiador François Hartog em seu Régimes d'historicité. Présentisme et
100

expériences du temps (2006 [2015]), que retoma os princípios da "longa duração"


braudeliana54 e se detém sobre aquilo que Gumbrech deixa em aberto, ou seja, a
tarefa de pensar o cronótopo da atualidade. É um efeito, sentimento e, sobretudo,
uma "ordem do tempo" (HARTOG, 2015) que nos atinge historicamente como um
presente hipertrofiado e dobrado sobre si mesmo, voltado para sua própria imagem,
um "presente presentista".
Sobre a categoria "presentismo", Hartog inspira-se no termo "futurismo",
do Manifesto Futurista, lançado por Marinetti em 1909, movimento que estimulou a
postura extrema de uma história em nome do futuro, da "aceleração" do presente e
do progresso triunfante das ciências (o presente já é futuro). Postura não apenas da
história, mas do mundo das artes, das vanguardas, para as quais o passado havia
se tornado gangrena e o presente, acelerado, deveria ser modificado em nome de
uma nova visão estética a ser estabelecida para o porvir. Mas, segundo o
historiador, o próprio futurismo é já também um presentismo: "quando Marinetti
proclama: 'O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já no Absoluto, pois já
criamos a eterna velocidade onipresente' o presente encontra-se 'futurizado', ou não
há mais senão presente. Pela velocidade, o futuro transforma-se em eternidade [...]"
(HARTOG, 2015, p. 141, grifos do autor).
O regime de historicidade vigente no presente seria, portanto, uma ordem
do tempo que se desenvolve ao longo do século XX, a qual inverte os papéis das
expectativas culturais e sociais do início do século, uma expectativa futurista,
resultando numa ordem presentista. Isto sob os influxos das Grandes Guerras, das
reivindicações e contestações sociais, da exacerbação do consumo no âmbito da
civilização material e do capitalismo, das crises das identidades nacionais, da
compressão espaçotemporal efetuada, sobretudo, pela globalização e seus
suportes. Hartog apresenta como expressão simbólica dessa dilatação da
experiência temporal contemporânea a queda do muro de Berlim, em 1989, que
unifica os blocos políticos e econômicos separados política e economicamente, e
estende os mesmos valores e experiências temporais, culturais e sociais sobre

54
Na proposição do historiador Fernand Braudel, da Escola dos Annales de cujo pensamento Hartog
retoma alguns princípios, a história é disposta em camadas de temporalidades heterogêneas,
dialéticas e não exclusivas: a longa duração, o tempo conjuntural, de média duração (história social
de grupos e agrupamentos, conjunturas políticas e econômicas, etc), e o tempo factual ou dos
acontecimentos (o evento social, religioso, uma curva de preços, etc), isto é, o tempo curto, que se
liga ou não a toda uma série de acontecimentos e deve estar submetido à longa duração, em sua
"semi-imobilidade" e ampla abrangência (BRAUDEL, 1958, p. 725-756).
101

comunidades diferentes. O autor detecta nesse período também uma ascensão do


memorialismo e do patrimonialismo, como tentativa de lembrança e produção do
passado, o qual se recusa a passar face aos pontos cegos do futuro, como uma
expressão da crise de nossa relação com o tempo e, ainda, como uma maneira de
procurar responder a ela. A isto se soma o problema da velhice e do
escamoteamento da morte, a recusa do envelhecimento e a valorização crescente
da eterna juventude, mesmo que fabricada, e em contraste com as próprias
sociedades que começam a envelhecer. Ele complementa com um slogan que já se
proclamava desde as barricadas de resistência de 1968, a contribuição dos "Sixties":
"Tudo, rápido!", "esqueça o futuro", e finalmente, "No future":

Nessa progressiva invasão do horizonte por um presente cada vez mais


inchado, hipertrofiado, é bem claro que o papel motriz foi desempenhado
pelo desenvolvimento rápido e pelas exigências cada vez maiores de uma
sociedade de consumo, na qual as inovações tecnológicas e a busca de
benefícios cada vez mais rápidos tornam obsoletos as coisas e os homens,
cada vez mais depressa. Produtividade, flexibilidade, mobilidade, tornam-se
palavras-chave dos novos administradores. Se o tempo é, há muito, uma
mercadoria, o consumo atual valoriza o efêmero. [...] A mídia faz a mesma
coisa [...] A economia midiática do presente não cessa de produzir e de
utilizar o acontecimento [...]: o presente, no momento mesmo em que se faz
deseja olhar-se como já histórico, como já passado, [...] antecipando o olhar
que será dirigido para ele (HARTOG, 2015, p. 147-150).

O autor de Regimes de historicidade: presentismo e experiências do


tempo não está sozinho em sua tese, e há muitos argumentos a seu favor, teóricos
ou empíricos, que se estendem para diversas áreas. É importante percebermos, por
exemplo, a força (ainda a ser estudada com mais afinco) da perda do discurso
escatológico religioso, de um "fim do mundo" que não veio nas passagens dos
séculos, que condena o homem à duração indefinida, à mercê, agora, das forças
físicas universais ou de suas próprias ações destrutivas, da incerteza do controle.
Alarga-se, de outro lado, o sentimento de que "a vida é agora", talvez na eterna
juventude dos corpos, com seus mecanismos plásticos de extensão do sorriso,
associado ao preenchimento hedônico e constante da posse da novidade (de
possuir a cada instante, nas mãos, aquiagora, o objeto futuro), o que o capitalismo
se encarrega de alimentar e retroalimentar não somente através da descartabilidade
e da reiteração dos objetos, do fascínio dos espaços e das mercadorias, mas
também por uma rede de provimento, promoção e circulação de tecnologias
científicas e simbólicas.
102

Somemos isto às conquistas, ainda insatisfatórias, mas já palpáveis, da


autonomia e dos direitos humanos advindos das próprias crises e lutas comunitárias
e sociais, à exclusão de um esperar pela justiça teleológica; a instantaneidade e
simultaneidade promovidas pela tecnologia informática, midiática e da comunicação,
pelos ciberespaços; a desqualificação do passado e da tradição, como o obsoleto, o
demodé, o envelhecido, o que lembra a morte e o escatológico; a legitimação do
simulacro, do efêmero, do substituível − da possibilidade praticamente imediata de
substituir, mesmo o "sujeito" humano −, da prótese plástica ou cibertecnológica, com
seus usos positivos ou negativos, e da moda, a qual se pauta na contradição de
exibir uma identidade única e a diferença social sob a forma sistemática e normativa
da espetacularidade. Neste sentido, o pensamento de Hartog complementa-se com
o de Gilles Lipovetsky, conhecedor de suas proposições:

Dos objetos industriais ao ócio, dos esportes aos passatempos, da


publicidade à informação, da higiene à educação, da beleza à alimentação,
em toda parte se exibem tanto a obsolescência acelerada dos modelos e
produtos ofertados quanto os mecanismos multiformes da sedução
(novidade, hiperescolha, self-service, mais bem-estar, humor,
entretenimento, desvelo, erotismo, viagens, lazeres). [...] A primazia do
presente se instalou menos pela ausência (de sentido, de valor, de projeto
histórico) que pelo excesso (de bens, de imagens, de solicitações
hedonistas). Foi o poder dos dispositivos subpolíticos do consumismo e da
moda generalizada o que provocou a derrota do heroísmo ideológico-
político da modernidade (LIPOVETSKY, 2004, p. 60-61).

Não obstante essa constatação desta realidade - digamos, a descrição da


experiência temporal contemporânea a partir desta visão -, não podemos deixar de
lembrar que as temporalidades não são unânimes, os regimes de historicidade têm
de partir de um modo de vida e dos meios de sustentá-lo. Estamos a tratar de uma
realidade que parte de um princípio cosmopolita, aquele "princípio do vórtice",
sempre necessário a uma generalização. Nem todos têm o poder excessivo do
consumo, do hedonismo e da plástica, do viver um presentismo − se estão alijados
da justa partilha dos bens e de sua fruição, acossados pela necessidade e pelo
sofrimento, que tanto pode "estender" o presente como sensação de que o mal
parece não acabar, quanto lançá-los para o espaço do passado ou do futuro, na
recusa de um presente inaceitável. Por outro lado, há de se concordar que a
realidade propugnada como gozo presentista, com seus suportes, pode se
estabelecer como um talvez "horizonte de expectativa", quando se oferece como
realidade que todos devem alcançar, como forma de controle dos comportamentos
103

(LIPOVETSKY), ou objeto de desejo. Neste sentido está a validade da percepção e


a cobertura reticular do presentismo.

1.2.5.2 O pós-modernismo

Poderíamos entender o pós-modernismo como uma manifestação do


presentismo na cultura, nos objetos artísticos-culturais, comunicacionais e utilitários
estetizados. Assim, se não o percebemos como sintoma, dificilmente podemos
deixar de considerá-lo como partilhante do mesmo espírito. Isto também vincularia a
ideia de uma temporalidade ambivalente, que já lhe é semanticamente intrínseca,
dada pelo prefixo "pós" − aquilo que vem "depois" −, e seu outro sentido, do
ultrapassamento, daquilo que "já não é" (o modernismo), a um cronótopo coerente
com o momento que o acolhe, ou melhor, que acolhe as expressões artísticas e
culturais entendidas como fruto de uma "pós-modernidade" − ou de um "período
pós-moderno", o qual se consubstancia no final do século XX.
"Pós-modernidade", "pós-moderno", "pós-modernismo", embora surgidos
antes do contexto mundial da chamada Guerra Fria, enquanto noções foram
empregadas principalmente a partir dos anos 1970. No Brasil, chega com mais força
só nas décadas seguintes, para referir-se a um momento de imersão das massas no
"ritmo da produção capitalista, do desenvolvimento tecnológico e dos mecanismos
de mercado ao “american way life”, significando, por outro lado, como completa
Jacob Guinsburg e Nanci Fernandes (2005, p. 12), "um deslocamento dos modos e
formas de estar no mundo e na vida, com particular acento na ação pragmática, no
critério funcionalista e na política de resultados". Suas práticas artísticas podem ser
associadas às chamadas "segundas vanguardas internacionais", tendências
artísticas europeias e americanas pós-Segunda Guerra, com auge nos anos 1960-
1970, mas ainda exploradas por curadorias, imprensa e mercados.
Na arte, como na cultura e na teoria, o indivíduo e as sociedades, começam
a ser redimensionados para um mundo mais complexo, de globalização econômica
(de fundamento neoliberal) e cultural, da "sociedade da imagem", do acirramento da
informatização e da cibertecnologia; mundo ao mesmo tempo plural, fragmentado e
tumultuado, de condições transitivas, instáveis e angustiadas, momento da difusão
do polêmico rótulo de “pós-modernidade” com base em teóricos como Jean-François
104

Lyotard, Frederic Jameson, Jean Baudrillard, Zygmut Bauman, David Harvey, Perry
Anderson.55
Importante ressaltar que a ideia de que havíamos encerrado ou
ultrapassado a modernidade, ideia esta marcada pelo prefixo "pós", não foi aceita
pacificamente. Nos meios filosóficos ou nas ciências sociais, áreas de estudos
determinantes, o debate foi intenso. Jürgen Habermas, por exemplo, vê nesse
momento um "'projeto incompleto [inacabado]', mas não esgotado", da Modernidade
que começou, segundo ele, com o Iluminismo, e para quem "os defensores da pós-
modernidade são continuadores do pensamento vanguardista; continuadores que
não compreendem e não aceitam seu prévio fracasso" 56. Marshall Berman, para
quem a Modernidade é um vasto período que começou ainda com o Renascimento,
percebe nesse "pós-modernismo" apenas um "modernismo pop", uma eliminação de
fronteiras entre arte, tecnologia, design e política (BERMAN, 2000, p. 31). Já para
Antony Giddens (1991, p. 60), "o pós-modernismo tem sido associado não apenas
com o fim da aceitação de fundamentos, mas com o 'fim da história'. [No entanto,] a
história não tem teleologia total".
Em relação à noção de "fim da história", como momento “pós-utópico”
associado ao pós-modernismo, tal ideia foi disseminada a reboque dos efeitos do
Neoliberalismo [econômico], do fim da Guerra Fria e da ideia de “fim das
metanarrativas” − ou seja, das grandes narrativas utópicas −, proposta por Jean-
François Lyotard. "Fim das metanarrativas" em prol das “micronarrativas”, das
narrativas das minorias, segmentos, comunidades. O “fim da história”, isto é, o
momento de ápice da histórica, fechamento de um ciclo e eliminação de conflitos
para realização de um mundo ideal, no sentido hegeliano, foi, então, proposto pelo
consultor norteamericano e ideólogo do governo Reagan, o intelectual nipo-
americano [Yoshihiro] Francis Fukuyama, que argumentava em favor de uma
economia de mercado como triunfo incontornável do liberalismo ocidental.
Corroborou com a ideia o fim do socialismo, a queda do muro de Berlim, e a invasão
do capitalismo de feição norte-americana nos países socialistas, de modo
praticamente global.
Em algumas abordagens, relacionado às discussões da cultura e teorias
da colonialidade (pensamento pós-colonial/descolonial), o pós-moderno pode

55
Cf. CONNOR, 1992, p. 29-56.
56
Cf. Discussão em: LIMA, 1991, p. 37.
105

adquirir sentidos contraditórios. Pode ser visto com desconfiança de sua inexistência
nos países colonizados e subalternizados, como uma onda pop-blasé das correntes
artísticas das grandes metrópoles (colonizadoras). É bom lembrarmos que algumas
chaves para seu entendimento foram dadas pelas estéticas do momento e
principalmente pelo desenvolvimento de um urbanismo "pós-moderno" de algumas
megalópoles - Los Angeles, Nova Iorque, e outras "cidades globais" - e estendidas
[digamos: tomadas por extensão] ao resto do mundo (CANCLINI, 2007, p. 75). Ou
pode ser visto como reação e contraposição, associado ao pós-colonialismo,
procurando tornar-se fecundo e opositivo em relação ao moderno:

A modernidade é ao mesmo tempo a consolidação do império e das


nações-impérios da Europa, um discurso construindo a ideia de
ocidentalismo, a subjugação dos povos e culturas e também os
contradiscursos e movimentos sociais que resistem ao expansionismo euro-
americano. Assim, se a modernidade consiste tanto na consolidação da
história europeia (projeto global) quanto nas vozes críticas das colônias
periféricas (histórias locais), o pós-modernismo e o pós-
ocidentalismo/colonialismo são processos alternativos de oposição à
modernidade por parte de diferentes heranças coloniais e em diferentes
situações nacionais ou neocoloniais. (MIGNOLO, 2003, p. 155)

Peter McLaren (1997), em trabalho sobre o multiculturalismo e a crítica


pós-moderna, recolhe, com base em diversos autores57, dois sentidos para pós-
modernismo que esclarece, em termos, essa diferença de sentidos. Ele explica que
a crítica pós-moderna não é monolítica, e que, sem descartar as suas variantes, ela
se distribui, de modo geral, em duas tendências teóricas relativas ao termo pós-
modernismo: a primeira, de um "pós-modernismo lúdico"; a segunda, do que ele
chama de "pós-modernismo de resistência".
O pós-modenismo lúdico, voltado para universo da produção de
significados pelo potencial combinatório dos signos, ocupa-se de uma realidade
"brincalhona", da fruição do jogo significante e da heterogenidade das diferenças.
Constitui uma autorreflexividade na desconstrução das metanarrativas ocidentais,
concebendo o significado como autodividido e polivocal. Seria a linha de Lyotard,
Derrida e Baudrillard.
Para essa feição pós-modernista, a política seria uma prática textual, não
existindo fora da representação, a exemplo do pastiche, da paródia, da

57
Os autores lidos por McLaren, sobre essas duas tendências do pós-modernismo não serão
tratados aqui como referência bibliográfica, por já serem por este sintetizados, sem maiores
necessidades de reportar suas teses e conclusões, e por se tratar de um número considerável. Cf.:
MCLAREN, 1997, p. 65-70.
106

fragmentação, que perturbam as metanarrativas e aparatos discursivos dominantes.


Contudo, segundo McLaren (1997, p. 66), ela oferece problemas no que diz respeito
a análises mais profundas acerca das grandes estruturas de dominação, reduzindo a
história à suplementaridade da significação ou às flutuações das textualidades, e
que "organiza um 'superestruturalismo' que privilegia o cultural, o discursivo e o
ideológico em detrimento da materialidade dos modos e relações de produção". A
essa tendência poderíamos ainda associar o "pós-modernismo cético",
fundamentado num agnosticismo ontológico, no que se refere à primazia da
transformação social, e num relativismo epistemológico, que demanda uma
tolerância por uma gama de significados sem defender nenhum deles (MCLAREN,
1997, p. 67).
O pós-modernismo de resistência − "pós-modernismo crítico",
"oposicional" − não seria o oposto do outro, mas um aporte crítico mais radical
relativo aos conflitos históricos e de classes, às relações assimétricas de poder.
Assim, esta tendência, sem abandonar a polivocalidade da história ou a contigência
social, "por completo", interroga a "semiose política da cultura", de modo que a
diferença e o movimento dos significantes não sejam tomados como mera lógica
imanente da linguagem, mas como efeito de conflitos sociais − o signo como arena
de conflito material −, constituindo-se numa prática política de oposição, produzida
através da atividade de leitura e da compreensão dos textos culturais, e na busca de
reintegrar o cultural ao meio ambiente natural e material:

O pós-modernismo de resistência leva em consideração tanto o nível


macropolítico da organização estrutural quanto o micropolítico de
manifestações de opressão diferentes e contraditórias como forma de
análise das relações globais de opressão. Desta maneira, ela requer um
grau considerável de afinidade com o [...] "pós-modernismo orgânico" [Scott
Lash], o qual busca mover-se para além do ceticismo epistêmico e do
niilismo explanatório para se concentrar em assuntos relacionados não
apenas à mercantilização da linguagem, mas à mercantilização do trabalho
e das relações sociais de produção (MCLAREN, 1997, p. 70).

Nesse contexto, isto é, na perspectiva de um pós-modernismo "de


resistência", ou "orgânico", que intenta trabalhar tanto um nível macro quanto um
nível micropolítico - as relações individuais, as questões minoritárias ou internas às
comunidades oprimidas, McLaren propõe que a ideia do multiculturalismo, em geral
tomado como jargão retórico, seja plenamente inserida no âmbito da discussão do
pós-modernismo, como pertencente às discussões sobre identidade e diferença, o
107

não apagamento, a libertação das injustiças e opressões; a necessidade de


repensar e compreender as políticas de etnicidade, de localização, posicionamento e
enunciação. Aí compreende a necessidade de problematizar a questão das
exclusões e inclusões, das "narrativas de redenção e emancipação", em sua não
subordinação aos grandes discursos do capitalismo tardio, aos discursos esvaziados
e às políticas que o sustentam:

A tendência crítica do pós-modernismo nos oferece uma maneira de


compreender as limitações de um multiculturalismo que está preso dentro
de uma lógica de democracia sob o jugo do capitalismo tardio. Uma das
perversões subreptícias da democracia tem sido a maneira pela qual os
cidadãos são convidados a se esvaziarem de toda a identidade racial ou
étnica, de forma que, possivelmente, eles se apresentarão nus diante da lei
como unvermogender [homem sem recursos, impotente]. Em alguns casos,
com efeito, são convidados a se tornarem um pouquinho mais que
consumidores descorporificados (MCLAREN, 1997, p. 72).

Depois de um uso intenso do termo, em geral confuso e superficialmente


aplicado, o termo "pós-modernismo" e termos correlatos têm sido evitados. Já é
possível nos depararmos com enunciados como "ruínas/escombros da pós-
modernidade". Mas seu uso permanece, ainda eventualmente utilizado, com
conotações já perceptivelmente datadas, referentes a momentos finais do século
XX, margeando o XXI, especialmente com recorrência das formas pop
hipermediadas: estas entendidas como uma "arquitetura de citação" e maneirismo
em aglutinação de pastiches, paródias, glosas, colagens, refacções de texto,
segundo Alfredo Bosi (2002, p. 252) 58. E a isto podemos estender o entendimento
para recorrência (seja coerente ou exagerada) aos suportes midiáticos e
tecnológicos. Podemos também encontrar sua referência ora de maneira ambígua e
precavida, como no registro de Charles A. Perrone (2015), em prefácio ao Ópera de
nãos, de Salgado Maranhão: "nas fases (pós) modernas [sic], os títulos poéticos [...]
revelam uma miríade de aplicações da linguagem: etiquetas, anúncios-propaganda,
publicidade, escrita comercial e científica, manifestos, sinalização rodoviária, artes
visuais, e claro, toda a história da literatura"; ora seu uso midiático como índice de
prestígio para discussões que se querem "hiperconectadas" e atualíssimas, onde o
conceito é dado como fato absoluto e indiscutível.
Recentemente, o termo genérico "contemporâneo (a)" parece haver
ganhado força substitutiva e englobante em relação ao anterior, como registra
58
Discussão do conceito de hipermediação conferir também em: ANDRADE, 2008, p.123.
108

Carlos Zibel Costa (2010, p. 29): "entre o pós-moderno e o contemporâneo, [talvez]


se trate de uma sequência de eventos conectados, mais do que de uma
segmentação conceitual, como certos usos dessas expressões chegam a sugerir".
Pós-modernismo permanece, contudo, um termo de referência global que atinge
diretamente a poesia como discurso de confronto e dialogismo nas estéticas do
momento contemporâneo, e mais que isso, dessa poesia enquanto discurso do
contemporâneo, como uma experiência também de temporalidade.

1.2.5.3 O contemporâneo

Mais do que na feição pós-modernista, em que a experiência temporal se


dá sobretudo pelo poder das formas (culturais, estéticas, sígnicas), o
contemporâneo é uma referência direta ao momento e às relações com o mundo em
presença. Ser contemporâneo é ser hoje; ser contemporaníssimo é ser agora, neste
afã de sobrepujar tanto o passado quanto o futuro, por se apresentar como a
concretização absoluta deste, deixando para trás tudo o que aconteceu exatamente
no dia de ontem. O símbolo maior do contemporanismo (hoje) são os blogs, as
redes sociais, os instagrans, cujo alimento é a última postagem, e cuja punição é a
indiferença e o esquecimento. A poesia, evidentemente, não está infensa a isso, e
os poetas estão temerosos de morrerem amanhã.
É fundamental considerarmos dois sentidos, pelo menos, do conceito de
contemporâneo. O primeiro é um sentido genérico, esse sentido temporalmente
conjuntivo, do qual me utilizo ao falar da "poesia contemporânea", que é o uso do
termo com referência ao quadro do momento e da realidade atual, presente, da
cronoespacialidade que perfaz a circunstância na qual um sujeito está
inevitavelmente imerso.
Mas outro sentido do que seja o contemporâneo, que poderíamos chamar
de "contemporâneo disjuntivo", e que, no fundo, sedimenta-se numa visão de mundo
propriamente irônica, é aquele presente na reflexão do italiano Giorgio Agamben.
Para este, contemporaneidade “é uma relação singular com o próprio tempo, que
adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância” (AGAMBEN, 2009, p. 59).
Mais precisamente, esta relação adere ao tempo através de uma “dissociação” e de
um "anacronismo”. O contemporâneo seria aquele que não está “colado” na
comunidade, não foi “contaminado”. Portantoi, podemos entendê-lo no sentido do
109

necessário distanciamento crítico da situação imediata – situação cuja


particularidade marcante é recolher seus objetos sob as asas do “ainda não
decidido” (do indecidível...). Remete, indiretamente, ao espírito do Hamlet: aquele
que, estando ali, podendo descolar-se, mantém-se numa "desconjunção", o que
também lhe permite ver os espectros que rodam sua realidade.
Nessa concepção paradoxal agambeniana, além da perspectiva
anacrônica, que apreende uma fissura no tempo, e sob cuja compreensão o que é
produzido não pode coincidir com o momento de sua produção, isto é, não pode
estar arraigado no olho do furacão de sua cronicidade, mas situado na sua
transcendência crítica, o contemporâneo também se faz em meio à obscuridade,
implica dizer, deve ser descoberto sob a incidência das trevas, do apagão, sendo
necessário neutralizar as luzes para penetrar nas trevas da época e descobrir a luz
que se distancia. Aqui, o poeta é, especificamente, e por excelência, colocado como
sendo "o contemporâneo", na medida em que deve manter o olhar fixo em seu
tempo, em sua época, para nela perceber não as luzes, mas o escuro:

Perceber no escuro essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo,
isso significa ser contemporâneo. Por isso, os contemporâneos são raros. E
por isso, ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem,
porque significa não apenas ser capaz de manter fixo o olhar no escuro da
época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para
nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num
compromisso ao qual se pode apenas faltar (AGAMBEN, 2009, p. 65).

É, portanto, pertencer a um mesmo tempo e ter participação franqueada


nos mesmos eventos, mas estar, quem sabe, orgulhosamente acima deles. Não é
difícil encontrarmos aí o imaginário do visionário platônico atravessando os círculos
infernais de Dante. O poeta-guia, em meio às trevas, poderia ser Shakespeare: "The
time is out of joint".
Essa concepção (que perfaz um pensamento, mas também um
imaginário) e seu respectivo pensador também sedimentam as conclusões do
brasileiro Alberto Pucheu, que epigrafa seu Efeitos do contemporâneo (2014, p. 321)
com a dita frase shakespeariana. No entanto, Pucheu parece ir mais longe, pois,
apoiado já no abismo fantasmal da imagem reduplicada em Hamlet, detém-se no
espectro, para afirmar que o contemporâneo é um fantasma, uma aparição, um
assombramento. Ao tentarmos apalpá-lo, agarramos apenas o vazio, sendo,
portanto, o contemporâneo, uma carência. Assim, "na tentativa de deixar o
110

contemporâneo se mostrar, o que repercutiu, o que repercute, quer logo se esvair de


sua consistência; mas o contemporâneo não se mostra, ele não é uma concretude
qualquer que possa ser isolada para dissecação (PUCHEU, 2014, p. 322).
Em todo caso, a vida e a história nos ensinam que a condição do
contemporâneo é a condição da incerteza. O contemporâneo (enquanto aspecto
temporal) pode realmente lançar todos os discursos e todas as afirmações
apressadas no vazio, na morte, no esquecimento, pela condição mesma de
imprevisibilidade estabelecida pelo tempo e pelo homem que o habita, sem controle
algum sobre ele. No entanto é preciso considerar o regime da existência empírica,
da historicidade, bem como a imaginação, a reflexão e autorreflexão, e a criação,
pelas quais o homem se transcende na obra, formam um todo integrado e orgânico
na corporalidade da obra. Essa transcendência humana manifesta-se, assim, por via
da linguagem e do simbólico, no sentido daquele Logos heraclitiano, que dispõe
outros modos de viver, outras experiêna cias da espacialidade e temporalidade, as
durações, as relações, as realizações. Deste modo, talvez seja cabível duvidar da
própria dúvida, e reconhecer que o vazio no crânio da caveira só será preenchido
por nosso próprio pensamento, como reflexo ou reflexão ou, até, como uma
iluminação (nova percepção) sobre a vida. O contemporâneo não é um "inacontecer"
ou um pastiche do acontecer, redutível ou destinado ao vazio, ou, em última
instância, ao niilismo. Algo nele, nossos pés fincados na experiência cotidiana,
talvez faça algum sentido quando o concebemos como uma convocação concreta da
presença à circunstância e ao agir: "yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a
ella no me salvo yo [eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo não me salvo
eu]". Ortega y Gasset (1966, p. 322) também parece falar a Hamlet.
As referências e os pressupostos do contemporâneo partem da noção de
contemporaneidade entendida como paisagem de historicidade "em aberto", neste
momento concernente aos rumos sócio-históricos, culturais e de compreensão do
mundo esboçados por uma "modernidade tardia" (HALL; GIDDENS), seja como
desdobramento, seja como ultrapassamento dos pressupostos da modernidade, a
partir dos últimos decênios do século XX e deste início do século XXI. Entretanto, é
preciso ficar claro que a contemporaneidade não pode ser entendida como um
conceito aplicável a uma época de modo específico e definitivo, tal como à nossa.
Ela é uma categoria de bivalência, temporal e trans-histórica, que determina a
temporalidade da coexistência no panorama do atual e do recente de qualquer
111

momento em curso − daí ser necessariamente marcada pela abertura, a


inconclusão, o difuso e o imprevisível, a depender dos fatores que estão em
acontecência e liminaridade.
Esta contemporaneidade aponta para novas organizações sociais globais
e heterotópicas (centros de poder deslocáveis, descentramento e instabilidade de
lugares de forças, identidades "móveis" ou "passíveis de revisão", fragmentação e
despadronização de espacialidades e temporalidades), de feição transcultural e
hipercosmopolita, assessoradas por um capitalismo de mercado global, por
sofisticadas redes de comunicação e instrumentais tecnológicos. Mas é preciso
notar que, não obstante esse caráter global, essa intercomunicação informacional
em nível mundial, a criação de novos territórios individuais ou coletivos nas
realidades virtuais ou, ainda, as rupturas com sistemas geracionais nos termos da
tradição, os espaços e paisagens locais têm sido ressignificados enquanto lugares
memoriais, lugares de afeto e fontes de identidade cultural. O local presente ou
ausente torna-se, por outro lado, uma referência para as experiências de
deslocamento, de recordação, das perdas e diásporas, assim como dos laços
comunitários.
Em relação às circunstâncias sociais, históricas e culturais, e ideias
circulantes constitutivas da experiência temporal deste momento, potencializadoras
do diálogo com sua produção poética, podemos trazer à discussão algumas das
suas manifestações importantes, com a ressalva de que tais assuntos, embora
exigissem uma discussão muito maior do que a que é possível fazer aqui, só podem
ser apresentados de maneira muito sintética e indicativa, devido a sua enorme
complexidade (até possível transitoriedade), inclusive histórica: as dinâmicas do
sujeito, das experiências identitárias, pertencimentos e das lutas emancipatórias,
face aos ajustes do sujeito tradicional (isto é, aos ajustes da tradição); as questões
relativas às afetividades, afecções e políticas do corpo; o redimensionamento
tecnológico das realidades, das relações e do espaçotempo; a experiência digital e
a "ubiquidade do ciborgue", na visão de uma cultura pós-humanística, reatando tais
questões com o quadro situacional dos espaços de experiência em que se coloca
hoje, no Brasil, a poesia.
Uma das primeiras questões a ressaltar no contexto do contemporâneo é
relativa ao sujeito e às identidades que estabilizam ou desestabilizam os processos
individuais e sociais, as relações pessoais e comunitárias envolvidas no "jogo" e na
112

"política das identidades" (HALL, 2006), bem como a consequente visão de si


mesmo e do outro, as relações intersubjetivas, as afetividades, ações e processos
criativos. Assim, as representações do sujeito (para si, para o outro), como o
"sujeito-da-razão" da modernidade, unificado e totalizante (macroestruturas,
macrossistemas, macronarrativas) e depois "indivíduo soberano" (indivíduo x
sociedade) fundamentado em pressupostos humanistas, cartesianos, iluministas,
passam à ascensão de um sujeito fragmentado em um mundo fragmentado, sujeito
de consciência dividida (sujeito do inconsciente); sujeito desagregado, deslocado, e
descentrado, isto é, nem fixo nem estável, e, finalmente a um sujeito pragmático
(indivíduo + sociedade), comunitário e afetivo, no abraço possível dos diferentes.
HALL59 (2006, p. 34-50) reconhece nesse caminho do "descentramento
do sujeito moderno" [e sua respectiva configuração contemporânea] a ação de
alguns agentes. Cita, em primeiro lugar, o pensamento marxista, que desloca a
noção de ação individual para a ação coletiva do sujeito engajado − na luta de
classes, por exemplo. Um segundo grande descentramento seria a descoberta do
inconsciente e dos processos psíquicos subjetivos por Sigmund Freud, que destroi o
conceito absoluto de sujeito cognoscente, estável e senhor da razão. O pensamento
psicanalítico freudiano vai servir, com maior ou menor intensidade a
direcionamentos como o de Jacques Lacan, que reflete sobre um sujeito o qual,
originalmente dividido e disperso, só a custo unifica sua imagem social, pelo olhar do
Outro e dos sistemas simbólicos. Ele destaca ainda a força do trabalho de Michel
Foucault no processo de descentramento, na medida em que este empreende a
crítica dos poderes disciplinares [e discursivo, pelos jogos de "produção da
verdade"], vigilantes, totalitários e administrativos da repressão e violência sobre os
corpos (o assujeitamento do sujeito), os quais trazem a individualidade para o
campo da observação, assim como a fixa no campo da escrita. Por fim, Hall aponta
a força descentralizadora do feminismo, tanto como uma crítica teórica quanto como
movimento social, juntamente com os movimentos juvenis e antibelicistas,
movimentos revolucionários (maio "1968", hippies, movimentos étnicos), todos de
aspecto cultural muito fortes, como ressalta esse intelectual dos estudos culturais:

59
Stuart Hall trata de um quadro da pós-modernidade (A identidade cultural na pós-modernidade,
2006) ou "modernidade tardia". Tomo-o como referência, entretanto, partindo da interpretação de que
a pós-modernidade, assim como o presentismo, são ambos faces ou modos de compreensão desta
contemporaneidade. Ou seja, de que se trata do mesmo contexto, numa inseparabilidade entre o que
ele trata como pós-modernidade e o que podemos entender do contemporâneo, separados apenas
por questões de enfoques ou delineamentos de concepções.
113

cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores.


Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e
lésbicas, as lutas raciais aos negros, os movimentos antibelicistas aos
pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que
veio a ser conhecido como política de identidade − uma identidade para
cada movimento (HALL, 2006, p. 45, grifos do autor).

Tais mudanças e reflexões sobre a identidade e a auto-identidade


(identidade pessoal; identidade dos grupos de pertencimento) trazem consigo forças
subversivas, políticas emancipatórias60 e estruturam-se sobre narrativas históricas,
reivindicatórias e memoriais redimensionadoras dos comportamentos, das ações e
das expectativas, com impacto nas agendas políticas e jurídicas. E não só, mas com
impacto também nas agendas do mercado, na indústria da cultura e da moda: novos
mercados para novos grupos, novos gêneros e novas "tribos". As questões de
gênero, por sua vez, recolocam suas discussões não mais em termos biológicos ou
sexistas (masculino, feminino), mas em termos culturais e políticos:

uma visão genérica interessada, acima de tudo, em libertar os indivíduos e


grupos das limitações que afetam negativamente suas oportunidades de
vida. [Essa política emancipatória] envolve dois elementos principais: o
esforço por romper as algemas do passado, permitindo assim uma atitude
transformadora em relação ao futuro; e o objetivo de superar a dominação
ilegítima de alguns indivíduos e grupos por outros [...] tornando imperativos
os valores de justiça, igualdade e participação (GIDDENS, 2002, p. 194-
195, grifos do autor)*.

O avanço das discussões nessa diretiva (politica-cultural) dos gêneros


chegam, finalmente, às colocações da teoria/ativismo/estudos queer61, cuja principal
teórica é a feminista Judith Butler, com Problemas de gênero − feminismo e
subversão da identidade, de 1990. Tais estudos propõem toda uma gama de
reivindicações baseadas na extrema densidade política do corpo e na resistência à

60
Antony Giddens relaciona o termo (política emancipatória) principalmente à questão de gênero.
Mas tal termo pode ser estendido muito apropriadamente para as questões reinvidicatórias mais
amplas relativas aos grupos, minorias e comunidades subordinadas que buscam emancipação e
autonomia. O próprio autor o reelabora, quando afirma: "a política emancipatória só alcança um
conteúdo mais substantivo quando atenta para as divisões entre os homens. [...] [Para Marx a
emancipação estava no surgimento de uma ordem sem classes] Para autores não marxistas, a
política emancipatória dá maior importância a outras divisões: divisões étnicas e de gênero, divisões
entre grupos dirigentes e subordinados, nações ricas e pobres, gerações presentes e futuras. Mas,
em todos os casos, o objetivo da política emancipatória é libertar os grupos não privilegiados de sua
condição negativa ou eliminar as diferenças relativas entre os grupos na sociedade" (GIDDENS,
2002, p. 194-195).
61
"Estranho", "esquisito", "gay", "bicha", em inglês. A palavra é utilizada (positiva ou negativamente)
para referir-se a homossexuais e experiências "trans" (transexuais, travestis, transgêneros,
crossdressing, drag queen, drag king).
114

normalização da masculinidade e da feminilidade como heterossexualidade


normativa (heteronormatividade) imposta por "dispositivos culturais e políticos
hegemônicos", e na percepção de que "qualquer aspecto da cultura ocidental
perpassa uma análise crítica da definição moderna de homo/heterossexual.
Discutem o corpo objeto e o corpo abjeto (rejeitado, não encaixado). Apontam para
as formas mediante as quais a ação excludente e estigmatizante da matriz sexual
normativa produz contrarreação nos corpos excluídos" (CASTRO, 2016, p. 16). Os
estudos queer partem de alguns eixos que fazem partem de uma linha progressiva
de preocupações e debates inclusive das Ciências Sociais, no que diz respeito às
tensões indivíduo - sociedade, conforme Berenice Bento (2016, p. 23):

1) desnaturalização das bioidentidades (coletivas e individuais); 2) ênfase


nas relações de poder para interpretar as estruturas subjetivas e objetivas
da vida social; 3) a permanente problematização das binaridades; 4)
prioridade à dimensão da agência humana; 5) crítica ao binarismo de
gênero (masculino versus feminino) e sexual (heterossexual versus
homossexual) [ao que poderíamos também incluir: processos disciplinares
voltados à normalização do indivíduo]

É inclusive a partir desse panorama de novas experiências e estudos


contemporâneos, do "grito coletivo" e da construção dessas "narrativas históricas,
reivindicatórias e memoriais", as quais se tornam narrativas de vínculo (co-
narrativas), irmanação e identificação identitária para os indivíduos
coparticipantes/co-partilhantes dos grupos e comunidades (novas e tradicionais),
que proponho, para definir tais relações e experiências (do "grito coletivo"), o termo
"co-narratividade". Concebendo-o como importante para definirmos esse caráter de
pertencimento do sujeito, estendo esse conceito à lírica para referir-me, de modo
genérico, a uma poesia da co-narratividade (sic), ou poesia co-narrativa (sic), que
apresenta como dominante um discurso poético/literário de reverberação
comunitária, polivocal, reivindicatória, equivale a dizer, esteado nas narrativas de
experiência e nos horizontes que sedimentam grupos e comunidades visceralmente
ligadas, pelas reivindicações, lutas, princípios, corpo, afetividade, enfim, pela história
e pela memória: tal como a "poesia étnica/negra/afro-brasileira", a "poesia do outing
gay", a "poesia feminina" etc., quando tais predicativos são reivindicados de algum
modo, ou o texto permite esta discussão.
Uma observação deve ser feita. Essa ideia do "grito coletivo", que remete
a uma anterioridade da comunidade, mesmo a uma imagem das antigas formas
115

comunitárias, não deve ser entendido no contexto do contemporâneo como retorno,


retomada ou reelaboração de antigas formas comunitárias, mas devem ser
entendidas, segundo o campo sócio-filosófico, a partir de uma dialética ao mesmo
tempo do "ser-em-comum" e do "nada-em-comum"62, ou da dialética entre o comum
e o próprio, e dentro de uma "catástrofe dos comunitarismos" na modernidade −
quer dizer, o fracasso dos comunismos, ao mesmo tempo em que as comunidades
não deixam de ser pensadas e os individualismos se reconfiguram. Ainda assim, é
cada vez mais patente a presença das práticas coletivas e das organizações em
comunidade, em torno de projetos comunitários, "vontade de agrupamento" e
articulações afetivas ou recíprocas. Segundo comentário de Leoni (2014, p. 43,44),
que trabalha os agrupamentos afetivos de poetas em torno de novas formas de
poesia por partilhamento e agrupamentos afetivos, há um movimento de
recuperação da singularidade a partir do comum, no qual "as singularidades, mesmo
se assumindo como construídas por diversas vozes, têm a sua vez". Ou seja: a
comunidade não se totalitariza em relação ao indivíduo, mas pelo contrário, pode
fortalecê-lo.
No que diz respeito à questão do corpo e dos (novos) modos de senti-lo,
mais uma vez, só é possível colocá-la aqui como uma breve fosforescência
indicativa que bruxuleia sua forma, tão ampla é sua beleza, sua profundidade e sua
carnalidade. As transformações sobre a visão, concepção e ação sobre o corpo
dizem respeito primeiro a uma quebra das tradicionais oposições dicotômicas corpo
x alma, matéria x espírito, soma x psiché, racionalidade x
irracionalidade/animalidade, de fundo religioso e místico que transpassa das
concepções principalmente medievais às concepções modernas, para serem
continuamente modificadas no âmbito da filosofia, das ciências em geral, num
verdadeiro body boom, da estética e da linguagem. O corpo passa a ser entendido
como linguagem, discurso; é desejo, gozo; é território e desterro, é ferida,
instrumento e vítima de violência. O corpo é arte, signo, simulacro; O corpo é
angústia, é pathos sensível, afetividade, experiência. E por ser experiência,
atravessamento temporal, por reter as paisagens e as marcas do vivido, o corpo
também percebe pelos sentidos e interioriza, é memória e será poetizado como

62
Neste caso, outra vez, não se pode absolutizar a questão, pois não existe apenas uma forma de
comunidade nem um modo de "ser-em-comum", numa realidade multifacetada.
116

memória. O que se diz de uma poética63, podemos, de certa forma, dizer de uma
visão deste tempo:

O corpo, assolado pelo movimento incessante do mundo, está longe de


configurar uma identidade passível de assegurar pertinência a um sujeito
fixo e centrado. Corpo confunde-se com a memória e a memória só se
constitui assimilando a multiplicidade de forças que compõe o mundo. Em
última instância, é a memória corporal, aquilo que confere sentido ao que
percebemos por via intelectual, afetiva e sensorial, Tudo se passa como se,
movimentando-se através da matéria orgânica, o mundo fizesse e refizesse
seu próprio sentido. A criação poética se daria no desposar desse
movimento. (MIGUELOTE, 2008, p. 39)

Torna-se também mais patente a colocação do corpo como instrumento e


bandeira política. No Brasil, a violência do regime militar foi exposta não só pela
censura da voz, mas também pela tortura e pela desaparecimento do corpo dos
torturados, o que faz com que os corpos nunca se calem, com que lamentem e
vociferem por justiça. No mundo, o corpo é um discurso de protesto e inconformismo
social, interposto nas ruas ou nas imagens virulentas, caracterizado ou nu, grafitado,
performatizado, encoberto ou sem burca.
É o caminho também do corpo-signo entre outros signos, corpo-palavra,
corpo-espetáculo, corpo-eisthesis, imagem entre imagens e tecnologias da arte e de
produção da imagem. Com efeito, o corpo-signo está imerso numa complexidade
que pode oscilar da plenitude da consciência produtiva de si ao seu esvaziamento
no corpo-simulacro. A tecnologia do corpo, que ganha impulso a partir do
aprimoramento tecnológico da medicina (engenharia genética, fecundação artificial,
transplante de órgãos, ampliação da expectativa de vida, cirurgia plástica,
cibermedicina, clonagem), do investimento fitness para os corpos malhados,
"saudáveis", duráveis e esteticamente "perfeitos", encarrega-se também de gerar o
simulacro [contemporâneo], palavra utilizada por Jean Baudrillard para referir-se à
cópia da cópia cujo original foi perdido, o "fingimento da presença ausente":
"Dissimular é fingir que não se tem o que se tem. Simular é fingir ter o que não se
tem. Um remete a uma presença, o outro a uma ausência. Mas a coisa é mais
complicada, porque simular não é fingir." (BAUDRILLARD, 1981, p. 12).
Algumas das colocações em relação à questão do simulacro talvez
fossem, logicamente, por seu caráter, aplicáveis a coisas, mas inaplicáveis quando
tratamos do corpo de uma pessoa − a não ser que postulássemos a equivalência,
63
Trata-se de um estudo de Carla Miguelote (2008) sobre a poética de Luís Miguel Nava.
117

neste momento, entre corpo e coisa, ou certos corpos e certos objetos. Podemos
indicar esse processo com esta fala:

Não se trata mais de imitação, nem de redobramento, nem mesmo de


paródia. Trata-se de uma substituição para o real dos signos do real. Isto é,
de uma operação de dissuasão de qualquer processo real por seu duplo
operatório, máquina sinalética metastável, programática, impecável, que
oferece todos os signos do real e em curto-circuito todas as peripécias.64

À lógica dos corpos, parece corresponder − de maneira intensificada −


também uma lógica da arte, já proporcionada pela interpenetração de linguagens
desde as vanguardas, pela fragmentação, pelo embaralhamento irônico da
autenticidade e da inautenticidade artística proporcionada pelo reaproveitamento do
ready-made, pelas novas linguagens, por uma arte empírica, caótica, heterogênea
(JAMESON, 1997), bem como pela autenticação do pastiche pós-moderno: pop art,
Andy Warol, neorrealismo, maneirismos, cultura comercial e publicitária, pela
cooptação do "brega" e do kitsch bem como pela derrocada da ideia do télos
artístico (concepção de que a obra seguinte seja melhor que anterior ou vice-versa).
Finalmente, a isto podemos somar as novas possibilidades de reformulações e
apropriações nos suportes digitais. Fredric Jameson (1997, p. 45) aponta, nesse
contexto, o colapso da noção de estilo no modernismo, como coisa tão específica e
particular quanto uma impressão digital, ou "como o corpo que era, para o jovem
Roland Barthes, a própria fonte da invenção e da inovação estilísticas". E remete a
um fenômeno concebido no âmbito da arquitetura, que podemos reconhecer, com
algumas ressalvas e sem grande esforço, no âmbito da literatura, da poesia − aqui
reconhecido como um fenômeno intertextual −, porque diz respeito a um fenômeno
contemporâneo que atinge todas as artes, a saber:

a canibalização aleatória de todos os estilos do passado, o jogo aleatório de


alusões estilísticas do passado, e, de modo geral, aquilo que Henri Lefebvre
chamou de primazia crescente do "neo". Entretanto, essa onipresença do
pastiche não é incompatível com um certo humor nem é totalmente
desprovida de paixão: ela é, ao menos, compatível com a dependência e
com o vício - com esse apetite, historicamente original dos consumidores
por um mundo transformado em mera imagem de si próprio, por pseudo-

64
Il ne s'agit plus d'imitation, ni de redoublement, ni même de paródie. Il s'agit d'une sbstitution au réel
des signes du réel, c'est-à-dire d'une opération de dissuasion de tout processus réel par son double
opératoire, machine signalétique métastable, programatique, impeccable, qui offre tous les signes du
réel et en court-circuite toutes les péripéties. (BAUDRILLARD, 1981, p. 11)
118

eventos e por "espetáculos" (o termo utilizado pelos situacionistas). É para


esses objetos que devemos reservar a concepção de Platão do "simulacro",
a cópia idêntica de algo cujo original jamais existiu. De forma bastante
apropriada, a cultura do simulacro entrou em circulação em uma sociedade
em que o valor de troca se generalizou a tal ponto que mesmo a lembrança
do valor de uso se apagou, uma sociedade em que, segundo observou Guy
Debord (A sociedade do espetáculo), em uma frase memorável, "a imagem
se tornou a forma final da reificação" (JAMESON, 1997, 45).

No que diz respeito a alguns senões cabíveis sobre as colocações de


Jameson, na parte concernente à arte em geral e à literatura em particular, uma
primeira ressalva diz respeito principalmente à palavra "aleatória/aleatório", que só
pode ser entendida assim, no âmbito da arte consciente, em relação ao ato de
podermos "lançar mão de um repertório disponível". Uma segunda ressalva diria
respeito à visão negativa que relaciona retomada e consumo, uma vez que as
relações estéticas são muito mais complexas que o mero ato de consumir,
compatível com os atos do capitalismo, e, finalmente, uma terceira ressalva deve
dizer respeito à questão desse "valor de uso" na sociedade do consumo, que, em
relação aos objetos marcadamente estéticos, a exemplo da poesia, possa tornar-se
bastante questionável, ainda que possamos considerar aceitável e aplicável em
relação à arquitetura, mesmo que só até certa medida, pelo fato de, pelo menos em
certos estilos e períodos, esta arte pretender reunir ao sentido da utilidade o sentido
da beleza, em suas realizações.
Voltando às questões da cultura do corpo, constatamos então que este se
coloca na roda da cultura dos objetos e na indústria do consumo ( da "Consumer
Society") e das mercadorias culturais e estéticas, uma vez que aí também se inclui a
indústria da qualidade/quantidade de vida e a indústria da aparência, rumo à re-
produção do presente: o desejo do perpétuo ou a efetivação temporal do
presentismo, conforme já tratado. A isto também corresponderia uma simulação da
própria experiência - como experiência imediata, a experiência do imediato e as
infinitas e desdobráveis experiências do mesmo65 −, no jogo de manufaturas, de
discursivização tecno-política-eufemístico-midiática, que coopta a linguagem e a

65
Entre as quais poderíamos mencionar, em diferentes exemplos, o exacerbado e contínuo consumo
de bens que por vezes são desnecessários e, quando necessários, marcados com a descartabilidade
pela indústria, o que gera a repetição de seu consumo; a tentativa de manter-se a todo custo em
certos padrões de beleza, por via de intervenções plástico-cirúrgicas e outros meios; o fascínio
ciberpatológico (experiência da atração "inelutável" ou "irremediável" pelas tecnologias, celulares,
games, computadores, até o nível patológico); as estratégicas midiáticas dos pastiches e repetições
ad infinitum; a prática estética/artística do pastiche e da reiteração do mesmo como grande novidade.
119

experiência do corpo, sua imagens e imaginários para um jogo econômico


sofisticado e insaciável.
Um ponto crucial que não se separa dessas questões, mas lhes dá
consequência, reformulada ora de maneira positiva, ora de maneira negativa, é a
interpenetração ou imbricação entre os organismos humanos, o corpo humano e as
tecnologias (no que se inclui a conjunção homem-máquina). Neste caso, sempre em
processo de avanço, parte-se da relação entre o homem e a máquina − cujo
exemplo é muito bem representado pela ironia humorística de Tempos Modernos, de
Charles Chaplin −, relação na qual a máquina é quase sempre representada como
inimiga do homem, o qual precisa suplantá-la. Passa-se, então, da hibridização
homem-máquina, o ciborgue66 híbrido, o "homem biônico", para o ciborgue como
simulação digital, em que "um usuário plugado no ciberespaço, tendo em vista
entrada e saída de fluxos de informação, até o limite dos avatares (...), cibercorpos
inteiramente digitais que emprestam suas vidas simuladas para o transporte
identificatório de usuários para dentro dos mundos paralelos do ciberespaço"
(SANTAELLA, 2003, p. 190). O corpo humano deverá ser pensado, nesse contexto,
como preparado ora para o alcance de novas possibilidades físicas, ora para a
recuperação ou a superação de mobilidades destruídas, ora para o
superenfrentamento bélico, ora para a sobrevivência extraterrestre. Trata-se de um
mundo pós-biológico e, mais ainda, pós-humano, por via das tecnologias de ponta.
O termo pós-humano, que alcançará imediatamente o meio artístico, as
artes plásticas e a literatura e que segundo Santaella impregna rapidamente a
imaginarização do corpo humano referir-se-á, portanto,

[à] construção do corpo como parte integrada de informação e matéria que


inclui componentes humanos e não humanos, tanto chips de silício quanto
tecidos orgânicos, bits de informação e bits de carne e osso. Nesse sentido,
o pós-humano deve ser também traduzido por trans-humano, mais que
humano (SANTAELLA, 2003, p. 192).

A autora refere, então, nessa mesma página, à obra A Condição Pós-


humana, do artista inglês Robert Pepperell, para quem as profundas transformações
provocadas pela convergência dos organismos e da tecnologia, e que correspondem

66
Ciborgue (Ciborg): abreviatura de cibernetic organism, termo criado por Manfred Clynes
(engenheiro) e Nathan Kline (psiquiatra), em 1960, para descrever um "homem ampliado", melhor
adaptado aos rigores das viagens espaciais, uma espécie de "sonho científico e militar" (KUNZRU,
2016, p. 121-122).
120

a tecnologias pós-humanas, são: realidade virtual (RV), comunicação global,


protética e nanotecnologia, redes neurais, algoritmos genéticos, manipulação
genética e vida artificial.
O discurso da "condição pós-humana" alcançará também muito
rapidamente as discussões feministas, muito provavelmente por sua referência
direta às modificações, estilizações, hibridizações e novas perspectivações do
corpo, objeto de teorização diretamente relacionado às experiências e subversões
de gênero e identidades, conforme já discutido. A principal teórica desta nova
condição do corpo ciborgue e sua elevação à discussão ontológica partindo dos
princípios feministas, da "ciborguização" pós-humana do corpo como algo
revolucionário em relação aos gêneros, à sexualidade e à subjetividade, é Donna
Haraway, cujo "Manifesto Ciborgue" foi publicado nos Estados Unidos em 1980. No
"Manifesto", o ciborgue corresponde à criatura de um mundo pós-gênero e pós-
gênese: trata-se de uma ruptura com o homem e a unidade original, com o projeto
edípico e com a identificação com a natureza, apropriando-se e incorporando uma e
outra. O ciborgue corresponderia a uma ironia final, um telos apocalíptico dos
processos de dominação ocidental que postulam a subjetivação abstrata, o eu
libertado de toda dependência, e deste modo torna-se representância e signo apto à
análise cultural:

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e


organismo, uma criatura da realidade social e também uma criatura de
ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa
relação política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o
mundo. Os movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo
que se pode chamar de "experiência das mulheres". Essa experiência é
tanto uma ficção quanto um fato do tipo mais crucial, mais político. A
libertação depende da consciência da opressão, depende de sua
imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da
possibilidade. O ciborgue é uma matéria de ficção e também experiência
vivida − uma experiência que muda aquilo que conta como experiência
feminina no final do século XX. Trata-se de uma luta de vida e morte, mas a
fronteira entre ficção científica e realidade social é uma ilusão de ótica
(HARAWAY, 2016, p. 36)

Assim, a experiência do corpo na contemporaneidade − que é uma


experiência espaçotemporal da identidade, uma experiência dos sujeitos no mundo
da vida, por conseguinte uma experiência na qual a poesia está implicada, como
escrita pática e afetiva ou como confronto − é uma experiência que irrompe dos mais
diversos mecanismos de limitação e controle (axiológicos, epistemológicos,
121

religiosos, empíricos, disciplinares, discursivos), presentes do medievo à


modernidade, para uma liberdade que parece irrestrita, mas tateante, porque lança
sobre cada novo possível novas interrogações: lugar onde, propriamente, localizam-
se o filósofo, o cientista e o poeta, cada um à sua maneira. Somente ao religioso é
dado ter respostas, pela linguagem cifrada da fé.
A questão do corpo, que é uma questão dos sujeitos que os possuem,
permite, portanto, discutir algumas de suas configurações, nesta
contemporaneidade, tais como seu caráter de particularidade subjetiva, seus
deslocamentos, suas buscas e relações identitárias, e, ainda, sua objetivade pública,
social, participativa. Permite, por outro lado, como aqui foi feito transversalmente e
por via de seus diversos entrelaçamentos, chamar a atenção para as novas portas
de uma vida em rede comunicativa global, para as múltiplas faces dos avanços
científico-tecnológicos, para as novas realidades eletrônicas, cibernético-
informacionais e digitais e, mais ainda, para as "realidades do virtual" 67 que se
imbricam ao cotidiano prático, até as novas possibilidades já em voga do cibercorpo
e da inteligência artificial.
Agora, repensando os espaços de vivências em relação a estes corpos
que o habitam, que já não são meras realidades psicossomáticas, é possível
também apontar para uma visão contemporânea do espaço efetivamente como um
corpo, da cidade como um corpo que sente, que sofre, que tem suas linguagens,
enfim, um corpo potencializado entre seu sistema organizacional − social, político,
econômico, cultural − a materialidade e o simbólico, cuja maior representância é a
anima urbs, enquanto imaginário da cidade como coisa viva, imaginário da
organicidade urbana e ao mesmo tempo, categoria capaz de apreender uma relação

67
Lembro aqui um estudo de Slavoj Žižek sobre Deleuze e Lacan, Organes sans corps (2008), em
que o filósofo esloveno, comentado o fato de que, segundo ele, para Deleuze a realidade do virtual é
muito mais importante que a realidade virtual, diz o seguinte: "La réalité virtuelle, en soi, est plutôt une
idée pauvre: elle renvoie à l'imitation de la réalité, à la reproduction de son expérience par un médium
artificiel. La réalité du virtuel, en révanche, affirme la réalité du virtuel en tant que tel et assume ses
effets et conséquences réels. [...] Mais c'est précisément le virtuel en tant que tel qui, dans ce champ,
est le réel: l'immuable point focal autour duquel circulent tous les éléments. Le virtuel n'est-il pas
finalement le symbolique en tant que tel [jamais plenement réalisé, en menace éternelle]?" [A
realidade virtual, em si, uma ideia bastante pobre: ela remete à imitação da realidade, à reprodução
de sua experiência por um meio artificial. A realidade do virtual, no entanto, afirma a realidade do
virtual enquanto tal e assume seus efeitos e consequências reais. [...] Mas é precisamente o virtual
como tal que, neste campo, é o real: o imutável ponto focal em torno do qual circulam todos os
elementos. O virtual não é, em última análise, o simbólico enquanto tal [jamais plenamente realizado,
em eterna ameaça]? (ŽIŽEK, 2008, p. 15-16). (Tal referência torna-se ainda mais oportuna quanto
mais a pudermos relacionar à realidade mesma da configuração poética.)
122

de afetividade e co-implicação orgânica - quiçá uma extensibilidade transitiva − dos


habitantes em relação ao seu espaço.
Enquanto isso, a alteridade desse espaço de vigência da anima urbs,
quer seja o campo (vitalismo agrícola familiar/comunitário e agronegócio; cultura
popular-caipira; costumes tradicionais e arcaico; patriarcalismo
fazendário/esclarecido/carismático), o sertão (subsistência/resistência/abandono;
cultura popular/telúrica/romanceira; religiosidade hierática; patriarcalismo
68
coronelista/temerário) ou a floresta (natureza selvagem, fauna e flora em foco
ambientalista e ecológico; habitat e cultura indígena; religiosidade de caráter
animista; primitividade), têm se constituído como espaços de memória, espaços de
reserva cultural, ou espaços de reserva ambiental. Isto, evidentemente, no sentido
dos deslocamentos e desterritorialização presentes nas vozes que impregnam os
textos trazendo consigo as reminiscências e as memórias desses espaços; no
sentido de que tais espaços (enquanto lugares da alteridade), podem ser uma fonte
inesgotável de alimentação cultural a que se possa lançar mão nos processos
dinâmicos da arte e das estéticas69, e, finalmente, na medida em que a natureza
passa a ser vista principalmente como fonte de vida a ser preservada em prol de
uma humanidade em hecatombe, que precisa ao mesmo tempo explorar ao infinito
os recursos naturais deixando-os recuperar seu fôlego ou promovendo-o (discurso
da autossustentabilidade).
O Brasil das últimas décadas é um país que emergiu das forças políticas
ditatoriais dos chamados "anos de chumbo", da metade da década de 1960 até
início dos anos 1980, das forças neoliberais oprimentes, com a afirmação da ideia
da interferência mínima do estado na economia e da ampliação de forças do
mercado em todos os setores (inclusive com sua afirmação personificação nos
discursos políticos e midiáticos), enfim de décadas de inflação, instabilidade e

68
Essas indicações características destes espaços não exclusivas, podem estar relacionados a um
ou tro, principalmente quando se trata de campo - sertão (este, referido mais a certos aspectos
sociais, geopolíticos e culturais do Nordeste).
69
Penso compreendermos, neste caso, que essa dinâmica nos processos da criação e produção
artística, de modo geral e no caso específico aqui tratado, que é poesia, não é uma dinÂmica
unilateral, uma vez que as manifestações artísticas e culturais, "eruditas" ou "populares", letradas e
da oralidade, e, finalmente a chamada "cultura de massa" se retroalimenta, autoalimentam e
metalimentam. O que é colocado aqui é que, neste panorama das trocas e das reciprocidades
culturais, levando em conta que determinadas manifestações e aspectos lhes sejam
representativamente originários, tais espaços podem ser vistos como "espaços de reserva e
disponibilidade cultural" aos quais se pode convenientemente lançar mão, enquanto, muito
provavelmente, a cultura urbana funcione tanto como influência quanto como representativas da
"cidade-sinédoque".
123

reorganização política e social, para uma busca de certa estabilidade que permitiu
ao país uma redefinição cultural paralela, integrada aos meios universitários e de
pesquisa. Isto num contexto latino-americano também de ondas de ditadura, de
populismo, de migração, bem como da ascensão de uma cultura do audiovisual e
digital, da imagem publicitária, dos conglomerados televisivos de alcance nacional e
internacional, e um desprestígio – ou, pelo menos, uma reformulação, da cultura da
escrita e da literatura. É bem possível postularmos que tais redefinições, em termos
de liberdade, produtividade, criatividade, e novas relações multitransculturais
intercambiais, novas pesquisas e investimentos educacionais, implicando em
potenciais públicos leitores, novas formas de publicação e um novo quadro editorial
revolucionário e alternativo (editoras alternativas, edições virtuais, criações
artesanais).
Por outro lado, por questões que exigiriam análises sociais específicas,
não pertinentes a este trabalho, se o país conseguiu melhorar as condições de vida,
permitir um maior acesso a certos bens, redes e tecnologias de comunicação e
diminuir o caminho entre o condomínio e a favela, as condições de pobreza, as
cidades cresceram ainda mais, transformando-se no cenário da sobrevivência a
qualquer custo. O espaço público foi tomado pelo terror e pela violência, o tráfico
também globalizou-se e criou território urbanos blindados ao Estado, os presídios
abarrotaram-se, divididos em cruentas facções que operam com o tráfico
internacional, as drogas grassaram a vida de muitos jovens e a lei entrou em crise.
As grifes internacionais encheram as vias com seus outdoors e galpões com
trabalhadores em suspeita de regime de trabalho semi-escravo, em favor dos
mercados globais. A desigualdade, a perversidade crua e a corrupção parecem ter
florescido, na mesma medida em que doentes e desamparados lotam os pátios dos
hospitais e pedintes, mendigos e andarilhos lotam as ruas. Os espaços públicos são,
muitas vezes, restritos aos territórios virtuais e eletrônicos conectados pelos
fascinantes aparelhos, às praças de alimentação dos shoppings - novo espaço para
o exercício da identidade −, aos parques temáticos com entrada vigiada: em tudo
isso, em todos os locais, a presença alegre do capital e do mercado.
O contemporâneo, no Brasil, seja em relação às demandas,
reestruturações e injunções sociais, seja em relação ao pensamento, aos saberes, à
educação e a cultura, seja em relação às estéticas (do corpo, inclusive) e à
produção artística, com foco, neste caso, na poesia, não pode ser pensado sem a
124

agenda das lutas emancipatórias da população negra e dos movimentos


negros/afro-brasileiros, cujas reivindicações perpassam não apenas pela afirmação
de uma autoidentidade negra, mas pela construção/afirmação da identidade do país
como inseparável da contribuição negra e das origens africanas. 70
Tais agendas têm suas bases e enfrentamentos não somente no Brasil,
mas em lutas travadas secularmente em diversos continentes, e, no quadro das
transformações sociais contemporâneas, a partir da segunda metade do século XX.
No continente africano, várias frentes para o fim das dominações colonialistas
portuguesas, francesas e inglesas (as quais reverberam em poetas de movimentos
literários da negritude, como Léopold Sedar Senghor e Aimé Césaire). Ao mesmo
tempo em todo o continente americano (movimentos anti-segregacionistas e de
direitos civis nos Estados Unidos; movimentos antilhanos de libertação,
independência e negritude, em países cuja composição étnica é predominantemente
negra na América Central: Jamaica, República Dominicana, Cuba, Haiti...). No Brasil,
tais movimentos acirram-se a partir dos anos 1970, com reivindicações de direitos
civis, contra a discriminação, a desigualdade, os conflitos raciais, a opressão e
marginalização do negro; debates sobre a identidade negra e afro-brasilidade;
publicações temáticas; inserção do negro nas universidades; organização das
comunidades quilombolas, e movimentos de mulheres negras; coletivos literários
negros e reivindicação de espaços midiáticos. Como fatos marcantes, recentemente,
num governo com ênfase para as questões sociais, foram também introduzidas
nesse cenário duas importantes leis de conquista dessa luta: a Lei 10.639/03, para
o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no Brasil, e (em meio a
controvérsias) a Lei 12.711/12, das cotas para o ingresso nas universidades
brasileiras, reservando percentuais de vagas para negros, pardos, índios e egressos
do ensino público, nos cursos do Ensino Superior.
Tais movimentos tiveram impacto direto na poesia contemporânea, no
sentido de que essas reivindicações, integradoras e formadoras de uma co-
narratividade, resultam também numa escrita poética como voz que reclama seu
lugar em meio aos processos criativos possíveis deste tempo; que demanda, que se

70
É evidente que as lutas emancipatórias e os movimentos sociais étnicos não dizem respeito
somente ao negro, à afrodescendência ou à afrobrasilidade, e que a ausência de outras etnias aqui
não significa pretensão de seu silenciamento − ou o silenciamento a respeito deles. A ênfase dada ao
movimento emancipatório negro, neste estudo, ocorre em razão de entender-se ter ele uma presença
mais representativa na poesia contemporânea brasileira, objeto desta tese.
.
125

expressa e se manifesta, através de "literatura negra" e/ou "literatura afro-brasileira".


Mas precisamos considerar que essa própria poesia não é apenas resultante dessa
luta, compõe-se como parte dela. Reporto, de Edimilson de Almeida Pereira (2010,
p. 16-17), uma breve síntese dessa reivindicação da palavra poética étnica desde os
anos 1970:

Uma cartografia da poesia brasileira realizada a partir dos anos 70 do


século XX até a primeira década do século XXI revela um tráfego intenso
de perspectivas estéticas e ideológicas que atribuíram pertinência aos
mais variados processos de criação, [...] diante da possibilidade de
fragmentação do cânone literário brasileiro. [...] Foi no final da década de
70 que um viés teórica e ideologicamente orientado contribuiu para
sedimentar as bases dessa literatura [negra e/ou afro-brasileira], tanto na
prosa quanto na poesia. Um marco importante desse processo foi, sem
dúvida, a organização de coletivos de escritores e poetas negros, tais
como os Cadernos Negros (1978) e o grupo Quilombhoje (1980), ambos
em São Paulo, e o Negrícia: Poesia e Arte de Crioulo (1984-1992), no Rio
de Janeiro. Além disso, uma série de atividades desenvolvidas em Minas
Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahia (edições autofinanciadas de
livros, "rodas de poemas", recitais, teatro e literatura infanto-juvenil e
circulação fora das grandes editoras) indicam que os autores da Literatura
Negra e/ou Afro-brasileira e os autores da Poesia Marginal partilharam,
pelo menos em tese, alguns procedimentos no decorrer dos anos 70 e 80.

Aqui, uma breve observação faz-se necessária. Em relação aos conceitos


de "literatura negra" e "literatura afro-brasieira", embora possam ser utilizados como
equivalentes e intercambiáveis, como o faz Edimilson, expressam conotações
diferentes. Do que se pode depreender das discussões a respeito, o termo "literatura
negra" está bastante relacionado aos princípios dos movimentos de negritude, em
primeiro lugar, até pedagogicamente, "da consciência de ser negro" (FONSECA,
2010, p. 96), do ser negro, das suas experiências e seu corpo, bem como das
defesas dos direitos civis dos descendentes de africanos escravizados, expostos
aos mais variados processos de violência e inferiorização, na afirmação radical de
uma identidade e cultura negra na luta pela libertação dos negros de todo o mundo,
e ocupação dos espaços socias, intelectuais e profissionais. Na literatura o maior
exemplo talvez sejam os Cadernos Negros. "Quando o negro pega suas
experiências particulares, o "eu", a persona negra, com suas vivências, que o branco
pode imitar, mas não pode ter, isto é literatura negra" (CAMARGO apud FONSECA,
2010, p. 99-100). A expressão 'literatura afro-brasileira", por sua vez,

é uma literatura produzida no Brasil com a agregação de matrizes


[históricas, memoriais, experienciais] culturais africanas ou uma literatura
126

que está cônscia do seu papel na formação de uma brasilidade que não
quer camuflar a presença de matizes culturais africanas que o toponímico
assume. [...] Algumas questões ainda se colocam com relação às
expressões "cultura negra" ou "cultura afro-brasileira" e mesmo com relação
ao termo "afro-descendente". As expressões, ao serem usadas, têm
sentidos que devem ser assumidos em sua complexidade (FONSECA,
2010, p. 99;100, grifos meus).

A essa complexidade, de que fala a autora, devemos ainda elencar a


expressão "Poesia Étnica", utilizada por autores como Salgado Maranhão (in:
FERREIRA, 2014, contracapa): "No panorama da atual poesia brasileira − livre de
conceitos formais hegemônicos −", diz aquele poeta, "é amplamente rica e variada a
profusão de formas e estilos, de norte a sul do país. O que antes se restringia ao
dualismo de dois parâmetros confrontantes (tradição e vanguarda), hoje se desdobra
em variados matizes, entre os quais a Poesia Étnica". É uma expressão utilizada na
significação da poesia de Élio Pinto Ferreira enquanto poesia negra e/ou afro-
brasileira (da respectiva obra América Negra), mas é preciso concordarmos tratar-se
de um termo cujas conotações podem tornar-se realmente bem extensivas.
De qualquer modo, todo esse panorama de experiências não quer dizer
que a poesia contemporânea responda a todas essas realidades de maneira direta,
ou que assim devesse fazê-lo. Não quer dizer, tampouco, que, no caso de uma
poesia co-narrativa, todos os autores desejem, ou tal poesia possa inserir-se numa
legitimação ou termo particularizante. São vieses, singularidades, possibilidades.
A poesia de per si, bem o sabemos, tem seu próprio regime de existência
e permanência seu modo particular de relacionar-se com a realidade, inclusive
rejeitando-a, sentido-a, recolhendo-se. Quer dizer que ela não é extraterrestre e que
a escrita, na sensibilidade de sua solidão e de seu silêncio, é produzida por certo
indivíduo tocado sensivelmente pelas injunções sociais, imaginários, pela linguagem,
representações, desejos e necessidades do seu tempo e seu espaço de
experiências. É nesta perspectiva que podemos lançar nossas interrogações para a
poesia que se manifestou recentemente como "poesia em crise" (SISCAR), que
parece ter retomado seu fôlego de maneira patente (HOLANDA; HOLLANDA) e cujo
passo seguinte foi colocar-se ora numa possibilidade de "retradicionalização", ora
numa perspectiva de voltar-se aos princípios de um regime experiencial crítico das
realidades vividas (SIMON), conforme está sendo discutido neste trabalho.
127

2 PRIMEIRA DOBRADURA

Neste ponto, antes da abordagem de outros fundamentos teóricos,


retomamos, como num interlúdio, alguns tópicos discutidos até aqui neste caminho,
visando dimensioná-los e situá-los, no que concerne ao seu papel e importância no
contexto da análise da poesia brasileira contemporânea que será realizada.
Neste sentido, ainda que servindo de modelo e fundamentação, na medida
em que recuperam entendimentos importantes da atualidade crítico-reflexiva e, ao
mesmo tempo, operacionalizam a interpretação a ser feita, cabe frisar que não nos
propomos a, digamos, dissecar análises específicas de categoriais espaciais ou
temporais, já que nossa intenção não é o resultado técnico quantitativo ou
esquemático, mas, na realidade, a compreensão e o comentário de múltiplas
possibilidades e encaminhamentos das categorias de espaço e tempo, implica dizer,
a percepção de como perfazem seu sentido dentro das dimensões formais e
experienciais do poema, através de alguns delineamentos percepcionais. Ou seja,
mais pelo modo como estas duas categorias esboçam diferentes espacialidades e
diferentes temporalidades líricas.
Serão levados em conta, portanto, certos delineamentos que se desenham
como caminhos ("hodologias"...) − perspectivados o mais empiricamente possível −,
os quais possibilitam uma percepção fundamentada no que podemos chamar de
"elucidação de situações" em relação aos horizontes buscados no pacto lírico,
conforme entende Rodriguez (2003, p. 85), isto é, que a percepção das coisas
implica uma situacionalidade que a atualiza e potencializa. Deste modo, no que
tange à categoria espaço, abordamos, sumariamente, os campos semânticos que
estão compreendidos no termo território, demonstrando que este termo é muito
permeado pelas ideias de elo, disputa e posse, de tal maneira que sua força
demarcadora estabelece, em geral, as noções de “dentro” e “fora”, ou seja, um
termo que sugere sempre relações de dinamismo e poder, não sendo pacífico nem
apolítico, sobretudo porque a territorialização implicaria uma desteritorilização
prévia, ou seja, o seu contrário (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 89-90). Com tais
preliminares estabelecidas, enfatizamos, então, dentre os delineamentos
percepcionais necessários em relação ao espaço, os seguintes: o conceito de
espaço e algumas das suas concepções teóricas vigentes mais importantes, das
quais precisamos reter, principalmente, as ideias de uma espacialidade quantitativa
128

em contraponto com uma espacialidade qualitativa (ou "espaço estriado" e "espaço


liso"); a noção de "espaço de vivências" como instância integradora da subjetividade
e da objetividade, memorial, política e identitária; o caráter múltiplo e transitivo do
espaço urbano, seu imaginário em torno da anima urbs; as relações entre as
espacialidades extratextuais, as paisagens constituídas no mundo do texto e a
espacialização estruturante das disposições poemáticas.
A seguir, foram apresentadas concepções de tempo que se desenham em
diversas culturas, concepções essas que dizem respeito ao nosso próprio modo de
ver o mundo, ou que entra em divergência com esse modo de ver. E, ao propor tal
arcabouço teórico, reiteramos sua enorme importância para o fazer e para o
discurso poético, uma vez que uma concepção culturalmente arraigada e vivenciada
pode constituir-se no próprio princípio temporal de onde parte o poema.
De tais concepções culturalmente arraigadas, pudemos passar a algumas
concepções filosóficas importantes, com foco nas ideias centrais de um tempo
objetivo, formal e cronologicamente idealizado − tempo este cuja visão de unidade
absoluta foi também objetivamente estraçalhada pela física da relatividade
einsteiniana −, e de um tempo íntimo, da consciência e da experiência íntima
(HUSSERL). Assim, estes tempos seriam determinantes, o primeiro, para as
questões cronológicas, cronotésicas e relacionadas à lembrança como um ponto
cronologicamente referido e situado; e o outro, para a questão das durações
experienciadas, subjetivas e intersubjetivamente, como consciência das
temporalidades vividas. Deste modo, a este tempo experiencial, durativo, concernem
também a retenção e a protenção, tão caras aos aspectos patêmicos e afetivos do
pacto lírico.
No que tange às concepções teóricas de Henri Bergson, o filósofo da durée,
estas foram utilizadas no intuito de ratificar e ampliar as discussões sobre as
percepções e o sentimento do tempo, como referência quantitativa ou como
experiência qualitativa de sucessões, fluxos temporais e contingências, dentro da
tese da duração. Tal aporte, inclusive, exigiu o comentum sobre a feição construtiva
do texto poético, e de como instâncias verbais ou nominais desenham nele certas
temporalidades e afetividades temporais.
Então, a partir dos estudos de Maulpoix sobre o lirismo, pudemos situar a
discussão do lírico como suspensão do tempo, vinculando-o à concepção da
linguagem como afastamento do registro e do regime comum. Tal concepção
129

desenha toda uma linha dentro da modernidade, à qual podemos contrapor aquela
que, pelo contrário, tenta justamente aliar-se ou recorrer ao cotidiano e ao regime da
facticidade, do engajamento e do achaque diário para, daí, extrair e construir sua
poesia. Por outro lado, à suspensão lírica do tempo e ao seu ascetismo linguístico
corresponde também um velamento programático do sentido, de forma a propor uma
poesia enigmática, senão hermética - concebida como o mais alto valor poético,
porque tampouco desprovida de um suporte de pesquisa da linguagem e da
tradição, e como "obra aberta" para preenchimento de uma possível multiplicidade
de significados por parte do leitor. A contraparte latente dessa proposta é a
melancólica discussão sobre a utilidade ou a inutilidade da poesia, e, mais
profundamente, da arte como um todo.
Só assim nesta abordagem sobre o tempo foi possível chegar à
consideração das experiências temporais que têm se desenhado no seio da
sociedade do cosmopolitismo moderno e contemporâneo de como a experiência e a
imagem do tempo têm sofrido alterações na visão dessas sociedades. Estas
considerações culminam na apresentação destes três importantes entendimentos de
nossa contemporaneidade: o presentismo, o pós-modernismo e o contemporâneo.
Acreditando já ter deixado claro que entendemos que a categoria tempo não
deve ser considerada, em termos de análise, separadamente da categoria espaço,
mas sempre devendo ser analisada numa dimensão de cronoespacialidade,
podemos, portanto, apontar precisamente quais, dentre os diversos aspectos aqui
apresentados acerca desta categoria, consideramos fundamentais à análise da
poesia brasileira contemporânea a ser realizada. Neste sentido, enfatizamos como
essenciais, as noções de tempo quantitativo (sempre na dimensão de cronoespaço)
e qualitativo (experiencial, íntimo, durativo). Logo, assumirão relevo para a análise
as questões temporais da memória, da retenção e da proteção temporais, que
acabam por adquirir, no poema, uma dimensão definitiva, além de estruturações
gramaticais específicas.
Desse modo, no que diz respeito a tempo e espaço, estes são os suportes
teóricos básicos que servirão à análise, ainda que esta não se limite a fundamentar-
se unicamente nestes, já que outros, aqui tratados e a eles relacionados, também
serão utilizados, quando puderem esclarecer algum ponto a ser analisado. Por fim,
nunca é demais reiterar que as noções de espaço e tempo são aqui colocadas como
noções integradas, imbricadas, autoincidentes, e que entendemos que este é o
130

modo como devem ser mantidas em atenção, na constituição do texto e da


linguagem poética.
131

2.1 FORMA & EXPERIÊNCIA NO POÉTICO: DIMENSIONAMENTOS E


ESPECIFICIDADES

Possibilitar o olhar sobre as dimensões formais e experienciais é pôr em


destaque um papel fundamental para o entendimento do que, afinal, se manifesta
como sentido nascente em meio a uma compreensão do poético, e da
contemporaneidade poética dentro desta. Implica dizer que, se há um sujeito que
cria ou produz, ou mesmo organiza sentidos, e que une a experiência do mundo à
experiência da linguagem, ou mais: que vive a própria experiência da forma pulsante
de sentidos como sentido de sua própria experiência de vida, instaura-se,
consequentemente, a necessidade de interrogar sobre esta(s) experiência(s), sobre
suas especificidades, bem como a necessidade de um dimensionamento desta
forma que perfaz o próprio existir do poema.
A essa necessidade acrescentam-se os próprios objetivos deste trabalho
na discussão dessas duas dimensões para o delineamento dos horizontes
buscados, no que diz respeito à poesia brasileira dos últimos anos, tornando forma e
experiência noções capitais para uma aproximação interpretativa das obras
estudadas. A propósito disto, procuro definir agora seus traços gerais, seu papel e
importância nas poéticas da contemporaneidade, devendo para isso tratar dos
fundamentos e desdobramentos da tradição literária e da escritura poética que
conduzem a algumas concepções contemporâneas.
A relação que estou considerando entre a experiência, invocada ou
evocada pelo sujeito no poema como referencialidade do mundo da vida, incluindo
sua experiência da linguagem, e a forma, a qual se gesta e estabelece como
realidade discursiva dimensionada, busca se estabelecer sobre uma dialética
latente, portanto dados a uma "possibilidade de sentido" que só se efetiva na
proposta singular, dinâmica e pulsante do poema, por si mesmo infinitamente aberto.
Como na proposição de Max Loreau, em nota, no seu De la création (1998, p. 159):

Toda a estética repousa sobre uma cisão fundamental da forma e do


conteúdo. Esta dissociação, que se funda sobre uma concepção da forma e
do conteúdo como constituídos, acabados, portanto isoláveis, se esvanece
e parece ilícita tão logo se considere esses termos em seu
desencadeamento; ela desaparece em proveito de um elemento único: a
forma que é sentido. […] Essa ação de significar é, antes, [...] uma
132

mostração [manifestação] que é condição de possibilidade de sentido, logo


significação em advento.71

Essa relação buscada é, portanto, aquela do sentido proposto pela obra


como unidade e totalidade, daí a perspectivação da experiência como indo muito
além do que pode ser considerado como conteúdo na configuração da obra de arte,
da obra poética, já que esta faz parte do próprio sentir e das percepções, no pacto
artístico/lírico. É com esta proposição em mente, à semelhança do que é possível
considerar nas questões de espaço e tempo, ou espaçotempo, cronotopia, que
podemos tratar de forma e experiência, de experiência lírica e de experiência como
forma.

2.1.1 Forma & poesia

A forma é a face complexa, sincrética e plurívoca da tessitura de


materialidades, espessuras, sentidos e sensibilidades configurativas da obra,
resultante da compreensão e da disposição da linguagem que constitui um evento
textual sensível − o poema. Bosi (1983, p. 84) ressalta que ela é um lugar de
sensibilidade fronteiriça, do corpo, da alma e da voz: "é o lugar dos estímulos e das
sensações visuais, auditivas, tácteis, olfativas, cinestésicas". Assim, ela reúne em si
componentes e significados, meios, técnicas e recursos em favor de um resultado
final estruturado e organizado discursivamente no texto literário, poiético, e que,
como objeto sensível ofertado à leitura, também remete a um sentido de trabalho,
feitura e procedimentos coerentes, relativos a determinada proposta.
Estabelecida, contudo, entre realidades dimensionais diferentes,
participando ao mesmo tempo do particular e do universal, das escolhas pessoais e
das circunstâncias sócio-históricas, inter-relacionais, ela organiza, por sua vez, uma
realidade de sentidos sobre códigos semiolinguísticos, comunicacionais, e códigos
culturais. E se a forma é participação no universal, é também história (e sociedade)

71 Toute l'esthétique repose sur une scission fondamentale de la forme et du contenu. Cette
dissociation, que se fonde sur une conception de la forme et du contenu comme constitués, achevés,
donc isolables, s'évanouit et paraît illicite sitôt qu'on vise ces termes dans leur déroulement; elle
disparaît au profit d'un élément unique: la forme naissante qui est sens. […] Cette action de signifier
est plutôt […] une monstration qui est condition de possibilité de sens, donc signification em
avènement (grifo do autor).
133

sedimentada, inelutável referência ao universal e à sociedade, mesmo que não se


deva deduzir uma coisa da outra (Adorno, 2003).
Compreender a importância da forma e sua significação para os sentidos
e particularidades na obra requer um trabalho interpretativo cuidadoso e demorado.
Por outro lado, quase que de imediato, é ela que nos faz perceber a diferença de
estilos e direcionamentos estéticos. “O que fez o poeta e como ele o fez?”, pergunta
Suzane Langer (2006, p. 220) apontando para a percepção da forma e seu jogo na
produção de um poema, e completa: “A tarefa do poeta é criar a aparência de
experiências, a semelhança de eventos vividos e sentidos e organizá-los de modo
que constituam uma realidade pura e completamente experimentada, uma peça da
vida virtual” – proposição esta que merece reservas, no sentido de que parece dizer
respeito a alguns tipos de poemas e não a outros, e porque parece pressupor uma
transposição para uma ficcionalidade que esquece os limiares dessa mesma
experiência.
Entretanto, quando falo de “face complexa”, isto é, multidimensional,
estou recordando o fato de que a obra literária não é uma mera “afirmação de fatos
e opiniões” através de uma forma “estética”, ou “peça de simbolismos discursivos,
funcionando segundo o modo comunicativo usual” (LANGER, 2006, p. 217), como
também aquela de Loreau, anteriormente mencionada, isto é, da forma como
advento e possibilidade de sentido, a qual estará sempre condicionada pela leitura e
pelas experiências do leitor, invocadas a cada ato de sua colocação diante dela.
Nesse sentido, a forma que instaura o mundo do texto, em última instância congrega
nesse mundo do texto e no feixe de suas virtualidades a “substância temática”.
Paul Valéry (1995), na concepção estética de sua conferência “Poesia e
pensamento abstrato”, compara a forma à voz em ação, com todos os caracteres
sensíveis da linguagem, o som, o timbre, o ritmo, os acentos, o movimento,
associando em si os valores significativos, as imagens, as ideias, os estímulos do
sentimento e da memória, os impulsos virtuais e as formas de compreensão – o que
ele chamará de “fundo”. Ao também comparar o que chama de linguagem simétrica
da poesia à assimetria da prosa, afirma que

entre a forma e o fundo, entre o som e o sentido, entre o poema e o estado


de poesia, manifesta-se uma simetria, uma igualdade de importância, de
valor e poder que não existe na prosa; que se opõe à lei da prosa – a qual
decreta a assimetria dos dois constituintes da linguagem. O princípio
essencial da mecânica poética, isto é, das condições de produção do
134

estado poético pela palavra é, ao meu ver, esta permuta harmônica entre a
expressão e a impressão. (VALÉRY, 1995, p. 80)

Uma busca interpretativa da forma precisa considerar, portanto, não só


seus diversos níveis ou planos, que dizem respeito fundamentalmente à linguagem e
suas instâncias estruturais, mas igualmente as múltiplas dimensões que nela se
congregam e que têm a ver com os sentidos interpretativos que pode suscitar. Deste
modo, a forma poética, tida como praxis objetiva ou extremamente objetiva e
cerebral, deve ser entendida em suas nuanças, e, na verdade, como uma mediação
(poiética) entre instâncias que através dela se fazem presentes, como aquelas da
imaginação, das sensações e do sentimento; mediação entre a objetividade e a
subjetividade, o intelectual e o afetivo, o racionalizado e o imprevisível, o
dissimulado, o lapso, o insigth (os quais, inclusive, são, muitas vezes, repassados
como presença voluntária, e se tornam forma).
Somos conscientes de que dificilmente poderemos falar de algum aspecto
formal do poema sem que estejamos falando de um sentido que só se faz em
conjunto, no todo que se apresenta. Entretanto, a percepção da forma nos permite
focar em alguns de seus aspectos como tópicos em separado. A característica
imediata da forma é sua corporeidade, considerando que desta participam também o
representativo e o imaginativo simbólico como tais, isto é, como formas produzidas
por uma linguagem. Com base nesta consciência, nos pressupostos e na matéria
sensível dessa forma (ou seja, em sua physis sensível), podemos considerá-la em
cinco de seus aspectos básicos, tomados também como aspectos operativos que
contribuem para a visada analítica do poema: a configuração, a tessitura, a textura,
a espessura e a densidade, termos abaixo esboçados e discutidos.

2.1.1.1 A configuração

A configuração é uma noção de fundamental importância por seu poder


englobante, sendo às vezes usada alternativamente como "forma", "formação" ou
"estruturação", mas da qual podemos tratar, invocando Ricoeur (2010) sobretudo
como uma mediação constituída, fundada no processo mimético, um
estabelecimento de relações entre regimes e realidades estruturadas na composição
poética. Isto é, a configuração "corresponde à confecção [constituição] de uma
135

forma, e 'a forma é obra do poeta'" (NUNES, 1999, p. 143 apud HEIDEGGER, grifo
do autor).
Ricoeur trata da configuração no campo da narrativa, como mimesis da
ação e da experiência, histórica ou ficcional. Ele a chama particularmente de
mimesis II, quer dizer, uma operação que envolve a atividade de narrar e o caráter
temporal da experiência humana, constitutiva da composição da intriga, e que
considera como intermediária entre duas outras, a da pré-figuração das experiências
temporais num campo prático (mímesis I), e da refiguração de nossa experiência
pelo tempo construído, configurado (mímesis III), na recepção e leitura da obra
(RICOEUR, 2010, p. 94-96). Não é o caso de entrarmos na questão, que diz respeito
a um estudo da narrativa. Importa, nesta referência a Ricoeur, compreendermos o
princípio da configuração e trazê-lo para o entendimento do texto poético. É ele
mesmo quem amplia essa noção, ao colocar (2010, p. 94), que a mímesis II, isto é, a
configuração abre o mundo da composição poética e institui a literariedade na obra
literária.
A configuração está, pois, na própria raiz de um trabalho (ergon) de
transfiguração mimética de uma realidade em outra, da constituição dessa realidade
como mundo evocativo e relacional, quando seja pela diferença provocada pela
mimesis. E é neste sentido que podemos tratar dessa configuração como uma
constituição mediadora, e falar de um ato configurante considerado dentro de um
quadro de intencionalidades. Encontramos um respaldo deste entendimento no
Verdade e Método, de Gadamer (2011, p.165-166), para quem, ressalvadas as
condições de que o que é configurado, esse “ato configurante” é o próprio modo de
ser da obra de arte, enquanto jogo, no contexto da experiência da arte, a
configuração é esse próprio jogo de transformação e mediação que "tem o caráter
da obra, do 'ergon', e não somente da 'energia'. É neste sentido que o chamo de
configuração".
Em relação aos textos poéticos, não podemos tratá-los, em verdade, do
mesmo modo que às realidades narradas, nos termos de uma configuração inscrita
na experiência da narrativa, mas, sim, de uma configuração do sentir, do perceber,
do evocar e do padecer ("pathecer", como agenciamento de um pathos particular). É
assim que Rodriguez (2003, p. 93) também nos esclarece ao referir-se ao pacto
lírico: "o pacto lírico articula uma formação humana afetiva do padecer humano, o
pacto fabulante [narrativo], uma configuração do agir humano [...]. A representação
136

da experiência e a configuração [formação lírica] respondem, então, à ordem do


afetivo e não da ação"72. E mais adiante, na mesma página, ainda em relação ao
pacto lírico: "o agenciamento afetivo do padecer busca fazer sentir e experienciar as
relações páticas no mundo"73. Importante esclarecer que padecer no pacto lírico,
não é entendido por Rodriguez como sendo um sofrer intenso, resignado,
insuportável ou inclemente, de um sujeito passivo, conforme em geral
compreendido, mas uma relação pática com a existência, portanto os sujeitos aí
inscritos podem ser existencialmente "pad[th]ecentes" e, ao mesmo tempo, agentes
de uma enunciação.
Configurar, portanto, entendido geralmente como “enquadrar” ou
“arrumar”, “organizar” – ou até “programar para uma função”, sobretudo depois das
tecnologias computacionais – no contexto dos estudos literários, mantém suas
possibilidades semânticas a partir da ideia latente de simultaneidade da imagem
conjunta: con(m)-figurar, figurar junto, organizar ou solidarizar organicamente uma
figuração (já por si compósita) numa figuratividade. Deve, portanto, ser entendida
para muito além de um possível encadeamento retórico de tropos, a invocação, no
discurso, seja narrativo, seja poético, para fora do convencional, da “pura”
referencialidade e factividade, e sim com algo que ruma para uma dimensão
imagética de representatividade e sensibilidade, a formação de uma imagem
complexa e sensível: fracionada, disseminada, evanescente ou definitiva – da qual
não podemos descartar a própria dissimulação de si como figura ou imagem.
Assim, configurar significa “convocar” para uma solidariedade
representativa, instar elementos formais à presença sensível − à corporeidade do
dizer e do significar −, a qual, na composição, organização e integração de seu
próprio sentido e do funcionamento de si como seu próprio advento, funcione como
uma face plurívoca, esteticamente trabalhada e construída, da(s) nova(s)
realidade(s) que representa. Essa é a ideia que podemos compreender de uma
configuração do poema, por meio da linguagem poética e da corporeidade da
palavra carregada de (mistérios, espantos, estranhamentos, tensões e) significados,
mas também das experiências existenciais trans-formadas em poesia.

72
Le pacte lyrique articule une mise en forme affective du pâtir humain, le pacte fabulant une mise en
intrigue de l'agir humain [...]. La répresentation de l'expérience et la mise en forme répondent alors à
l'ordre de l'affectif et non de l'action (RODRIGUEZ, 2003, p. 93).
73
L'agencement affectif du pâtir cherche à faire sentir e ressentir les rapports pathiques au monde"
(ibidem).
137

Podemos conceber como da alçada da configuração alguns tópicos


formais importantes, tais como a corporeidade, a referência, a linguagem, a
genericidade e a visão assumida frente à realidade e ao tratamento da linguagem,
em termos de subjetividade e objetividade, o que será desenvolvido a partir de
agora.

2.1.1.2 Corporeidade

No corpo, presença e ausência é forma.


Configurar é com-por, é congregar mundos num só corpo singular, num
universo: é dar corpo à obra.
Plástica, imagética, imagética, figurativa, enraizada na linguagem
evocativa e sugestiva da virtualidade/transfiguração simbólico-representativa do
literário, a “corporeidade” faz-se presente como textualidade, como realidade
orgânica unificada, concretamente situada: voz, virtualidade, e, sobretudo, enquanto
escrita, como disposição fixada graficamente no aproveitamento do espaço da
página. O poema é verbal, ou, antes de tudo verbal, porque não prescinde da
palavra, e é a palavra que lhe dá corpo, mesmo que seu veículo ou seu suporte
sejam os meios eletrônicos.
Essa corporeidade pode aparecer inclusive como uma pulsão de
iconicidade (Concretismo), ou simplesmente envolta nas camadas sugestivas
sensíveis e imagéticas construídas na e pela linguagem imaginativa: em sua textura
(conforme adiante definida), nas pulsões e movimentos rítmicos, na paisagem
metafórica, simbólica ou representativa, às quais a linguagem responde em sua
própria construção, na composição que se tornará autônoma, circulante entre mãos
de pessoas, olhares e experiências de leituras diferentes. Assim, se podemos
observar o poema como um espaço de relações de organicidade, simetria e
assimetria, regularidade e irregularidade, em seus elementos; de formações,
deformações e transformações, devemos concebê-lo como uma corporeidade
(textual), eivada pela sensibilidade. Podemos encontrar aí sua limpeza ou sua
sujeira, sua gordura ou sua finez, perceber outras relações, como o sublime e o
grotesco, a intensidade do belo ou do feio (Hugo Friedrich, a altivez e a baixeza, a
turbulência e a calmaria, o brutal/rústico/sujo e o delicado/polido/higiênico, o pleno e
o vazio, o sombrio ou o iluminado, o diurno e o noturno, o telúrico e o hierofânico, o
138

uno e o múltiplo, o foco e a dispersão, a inteireza e a fragmentação, enfim, as


infinitas possibilidades destas constituições.
Podemos cogitar em relação a essa corporeidade da forma, as
afirmações que Alfredo Bosi (1983) emprega em relação à imagem: que ela é ao
mesmo tempo dada e construída, dada enquanto matéria e construída enquanto
“forma-para o sujeito”. O fato de as imagens serem discerníveis é algo válido tanto
para a “imago” interna quanto para sua inscrição, a imagem pictórica, diz ele.
Portanto, ao incluir na instância da corporeidade tanto um aspecto material quanto
um imaterial, que depende dos processos linguageiros, imaginativos, simbólicos e
evocativos, é possível recorrer às mesmas possibilidades de percepção e
discernimento que esse teórico concebe em relação às imagens. Assim também em
relação à apreensão destas: “pode-se considerar o imaginário em si na sua camada
material. Mas será sempre também um duplo 'espectral' do ente com que se
relaciona” (BOSI, 1983, p. 17).
Ouvimos falar de uma “frieza” do autor, como poderíamos falar de uma
“frieza” da forma: a forma de corpo marmório e não pessoal, traçado em cálculos,
petrificado. Podemos também lembrar o corpo trágico, a forma conflituosa, o grito, o
lamento, a forma caudalosa, espontaneamente apaixonada, a forma solene e a
forma soturna, a forma alegre, o corpo sintético. O poema nos toca, enleva-nos,
atravessa nosso “comboio de cordas” e evoca algo, uma alegria, uma angústia, uma
falta, uma saudade. Evoca o sentimento trágico do mundo. E isto, é claro, está
relacionado à experiência que torna presente, e mais ainda à sua temática – morte,
revolta, amor, ódio, reencontro, rancor, memória, fúria, desolação, ludismo. No
entanto, entranha-se ele no corpo pelas pulsões eufórica ou disfórica, ou pelo que
Rodriguez chama de tonalidade afetiva, sua disposição afetiva e seu pathos.
Esses elementos inscrevem-se nas tonalidades poéticas, as quais,
embora ultrapassem a dimensão formal (porque impulsionadas pelas próprias
experiências inscritas no poema), mobilizam-se na textura poemática em prol de um
efeito global, uma figura, uma face, numa relação de imediaticidade do sentir. O
ritmo, lento ou ligeiro, solene ou solerte, encarrega-se de uma musicalidade que
fundamenta o texto e a atmosfera evocada no poema, combinando-se às suas
paisagens imagéticas invocativas e evocativas, para além de suas marcas sintáticas
e semânticas, a pontuação, a formas de pessoalização ou impessoalização do
discurso, temporalização marcada, difusa ou indefinida, as temporalidades verbais,
139

as ancoragens ou desancoragens espaciais. Rodriguez (2003, p.106), invocando o


termo Stimmung (que Heidegger retoma da tradição romântica alemã como
tonalidade ou "coloração", e liga ao sentido ontológico, da revelação ontológica),
observa que tal termo age como um filtro na constituição da realidade [poética],
unindo aí, conjuntamente, um lado tópico, de "se-sentir-em-situação" a um lado
humoral, de "se-sentir-em-tal-disposição", e, deste modo, ligado ao humor e ao
afetivo, ele designa a "abertura do espaço-tempo na qual o homem pode se mover e
se orientar na perspectiva tonal que delimita seus possíveis." (RODRIGUEZ, 2003,
p. 107).
O sentido de afetividade deve, portanto, ser considerado em seus efeitos
de mutualidade sintomática e de seus valores fóricos, envolvendo as latências e
manifestações das afecções, no sentido de que

[…] a ideia de afeto se afasta de qualquer associação com a expressão de


uma interioridade inatingível, que marcará a definição romântica e escolar
de lírica. Pelo contrário, o afeto se dá como resultado de uma relação onde
a fronteira entre o interior e o exterior já não é determinável. Resultado dos
efeitos da passagem de um corpo – que bem pode ser uma voz, um texto,
um fantasma – sobre outro, de uma mútua modificação, e não da expressão
unidirecional de um sentimento mais ou menos puro. (LEONI, 2014, p. 32 –
grifos meus, exceto afeto.)

Essa ideia de que “a fronteira entre o interior e o exterior já não é


determinável”, bem como das trocas e forças somáticas envolvidas traz à discussão
o fato de que as disposições afetivas, patêmicas, implicadas na obra têm a ver não
somente com as questões estéticas e sensíveis da linguagem, mas também e
diretamente (assim como a face ideológica), com as provocações e as decisões
éticas, sua marcação, diluição ou subversão de fronteiras, das identidades,
identificações e desidentificações, das visões do objeto, das relações de poder dos
corpos sobre os outros.
No que diz respeito à especificidade do pathos, as paixões em suas
pulsões eufóricas e disfóricas, de dor e prazer, apontando para as emotividades
exacerbadas, o sofrimento que pode nos tocar sensível e profundamente ao ponto
de nos remeter a um sentimento catártico, ele é espetacularizado na tragédia grega
como sofrimento desmesurado que causa “compaixão”, “desolação”, “piedade”
(eleos) e “temor”, “espanto de tremor” (phobos), e considerado na Retórica de
Aristóteles como afecção receptiva da persuasão ou uma das três fontes de que
140

procedem as premissas dos argumentos (ethos, pathos e logos), e que imprimem


confiança subjetiva ao raciocínio. O filósofo, ali, defende que “as emoções [paixões,
πάθη] são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças
nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer” (ARISTÓTELES,
2005, p. 160) (atentemos aqui para a relação entre pathos e ética, confluente com o
que foi discutido anteriormente).
Esse pathos, como afecção e resultado dos conflitos existenciais
deslocados para a experiência cotidiana estendida entre ser e linguagem, mundo e
corpo, pode aparecer assim no intervalo entre o circunstante, o vivido ou a vivência
histórica e os construtos ideais; os desmantelamentos humanos e um impulso de
continuidade de vida; o perene e o perecível, como o eternamente inalcançável (a
“falha” e o “vazio” infinitos) ou irremediável, raiz de uma visão da condição humana
vista como absurda. Por outro lado, instaura-se na dor, na angústia da própria cisão
sentida pelo sujeito, que precisa construir uma habitação possível do “mesmo” com
o “si”, nas contradições que aparecem nas fissuras mais sombrias e insuspeitas do
humano. Assim, o pathos, relacionado primeiramente ao texto trágico, imprime-se
num sentimento ou numa relação de tragicidade que pode estar no próprio
fundamento da lírica, ou ao menos de certa lírica, sendo componente intrínseco das
disposições afe(c)tivas que a obra tendencia.
No acúmulo de suas tensões, a poesia se encarrega também, no nível
das condições de seu infinito dilaceramento e de sua infinita permanência, de
suscitar o pathos de suas próprias crises e incertezas, plenitudes e vazios, porque o
problema da poesia não é só um problema de sua linguagem, mas também da
linguagem, que sofre a pena da incompletude, do desejo e da insatisfação num
corpo que continuamente morre e continuamente ressuscita. Entre silenciamentos e
exclusões, dribles, caminhos e pragmáticas de sobrevivência em meio a uma
sociedade para a qual um poema é incomensuravelmente menos importante ou
necessário (terrível palavra) do que trinta segundos de publicidade na TV, torna-se
válido, senão louvável, negar-se a si mesma e pôr-se em conflito nunca findo com os
próprios estatutos, dos quais nem ela mesma jamais tem certeza de quais são
exatamente. Assim, no pathos de sua angústia e insatisfação, ela pode buscar no
prosaico e no mosaico seus meios de fala, como tem feito aliás desde a alta
modernidade, como também agora na ridicularização de coisas tais como “estilo” ou
“lirismo”, para o abraço dos seus métodos, quem sabe, dos seus métodos
141

“científicos”, instrumentalizados pela satisfação crítica e mercadológica como


afirmação de seu valor “pós-poético”. Esta, hoje, é talvez sua maior ferida, o
pináculo ou o espeto da indecisão, da qual ela tem o conforto de não descer, e
apenas proclamar sua indecidibilidade.
O outro lado da corporeidade formal são os seus limites. Em algum ponto
ela se firma, a começar pela determinação das escolhas e pela implicação dos
resultados, já pelo próprio sistema [de base] verbal pelo qual se constitui, sobre o
qual poderíamos trazer como reflexão um recorte de Roland Barthes: “a língua do
escritor é menos um fundo que um limite extremo; é o lugar geométrico de tudo
aquilo que não poderia dizer sem perder – tal como Orfeu olhando para trás –, a
estável significação de seu andar e o gesto essencial de sua sociabilidade”
(BARTHES, 1971, p. 21), ou seja: o “escritor” se move num jogo de contrabalanças,
entre desejos, atos comunicativos e horizontes individuais e sociais. Outro modo da
contrabalança: o pêndulo entre a originalidade, a criatividade, a glosa e a
trivialidade, onde o corpo enrijece e decreta seu fim, em fórmula ou múmia: o corpo
pode tornar-se apenas fôrma.

2.1.1.3 Referencialidade

A referencialidade diz respeito ao fato de que a poesia fala de alguma


coisa, de que não é (ou ao menos pode não ser) apenas "automostração", dizer
somente como "mostrar-se". Mesmo numa poesia como imagem em si ou como
imagem de si, já muito distante da mímesis clássica, naturalista, e mesmo com a
desnecessidade de explicar essas imagens, o que é de seu complexo caráter, ainda
assim poderíamos tratar de uma poesia como referência a si, autorreferência.
Em meio à invocação e à evocação da experiência, no ponto de encontro
entre as realidades do autor e do leitor, a poesia também refere. Porém, trata-se de
uma referência com base numa autonomia que está sempre no limiar, dentro de um
pacto consciente do regime de historicidade, e que o respeita quando necessário à
sua proposta, mas que não pretende submeter-se aos processos de veridicção, nem
mesmo como pacto autobiográfico: deseja antes apresentar-se como jogo de
experiências e ambiguidades, "um espaço potencial" de presenças, remissões e
142

afetividades. O espaço potencial, conceito formulado por D. W. Winnicott (1971) 74, é


uma co-incidência, um entre-lugar. Neste caso, cada instância se afirma
precariamente em relação à outra, sendo muito válido pensar na questão do jogo –
de que há um jogo em campo, mas que nem sempre esse jogo é de “faz de conta” –
e de como se dão as relações, no poema, entre realidade (empírica, histórica) e
ficção. Nunes (1999, p. 147, grifo meu), com base em Ricoeur, explica que

em toda literatura há um distanciamento do mundo, fazendo-o explodir. Isso


significa que é o mundo dos objetos que pode se dissolver, numa
circunscrição, daquilo que chamamos, com apoio em Ser e Tempo, mundo
circunstante do cotidiano. Em virtude disso surge uma referência de
segundo grau, que substitui a referência descritiva, pois, no texto,
configurado como obra, temos o mundo do texto.

Na lírica, portanto, a referencialidade se instaura na própria


plurivocalidade ou labilidade provocada pela forma que aponta para realidades
múltiplas (empírica, virtual, formal), constituindo sua realidade primordial na
experiência da linguagem. Nela e por ela, o mundo e as experiências do mundo são
evocados, colocando-se entre o “vivível” (as instâncias do possível virtual) e o
vivenciado ou vivenciável (as instâncias da factualidade), o mundo da vida e o
mundo da obra, o mundo do autor, o qual dissimula e transfigura realidades na voz
do sujeito poético, fundado pela linguagem e cuja carnalidade linguística está
próxima do que hoje se entende como a “escrita de si”, autoficção, ou simplesmente
de uma alter-ficção.
A liberdade lírica, então, tanto possibilita discutir poeticamente o “real”
histórico por meio da reflexão, do questionamento, discutir uma experiência, uma
realidade apresentada ou representada, quanto simplesmente mergulhar num
mundo onde tais coisas nem existem nem são levadas em conta pelas paisagens
(internas) do poema ou pela “experiência virtual” nele construída enquanto pacto
lírico, eis o seu “modo” próprio de ser enquanto “forma”. O entendimento da lírica
precisa levar em conta esses espaços potenciais que se estabelecem entre a
ficcionalidade/virtualidade e as instâncias de enunciação/comunicação do poeta (e
do discurso do poema, com suas dêixis) – de ter o direito de guardar ou não em seu
texto sua parcela de realidade. Jean-Marie Schaeffer (1989) percebe que nesse
74
Donald Woods Winnicott (1896-1974), médico psiquiatra, pediatra e psicanalista, fala da relação
especular, lúdica e simbólica entre o bebê e a mãe (como “imagens que se confundem e se
separam), e entre o bebê e os objetos.
143

imbricamento de relações, "o vasto continente que agrupamos sob nome de 'poesia
lírica' realiza todos os casos de figuras possíveis: enunciador real, enunciador
fictício, enunciador fingido, enunciação séria, enunciação lúdica, enunciação lúdico-
fictícia"75.
Uma parcela (ou experiência) de realidade itabirana em Drummond, uma
parcela (ou experiência) de realidade recifense em Bandeira, uma parcela (ou
experiência) de realidade ludovicense no Poema Sujo de Gullar etc. Ora, desde
Wittgenstein, sabemos que há tantas realidades quanto há linguagens. Assim, a
pergunta por “quem diz eu” no texto, ou “quem deve dizer eu no texto” é feita por
aquele que o produz, antes de o leitor real fazê-la, já que quem produz o texto
também é seu primeiro leitor. Isto se é que essa intencionalidade comunicativa
possa ser levada em consideração, ou se a pudermos desentranhar das espessuras
de virtualidade do pacto lírico e ironia que o texto estabeleça.
Até onde é possível aproximar da experiência do real a linguagem poética
que substancia a forma, sem perder a etiqueta do literário? Eis o espectro que ronda
o caso do poema político (Ferreira Gullar) e sua busca da expressão político-social;
o poema engajado de Maiakovski, a poesia marginal, certo Neruda...), o poema
“vital” (beatniks, poesia marginal), a poesia da "compreensão mística", de Luís
Augusto Cassas, e quase que toda a poesia consignária da co-narratividade
reivindicatória, mas é problema que diz respeito também ao próprio esgarçamento
do que seja literatura atualmente e do que esteja sendo produzido sob a imbricação
das mais diversas linguagens.
Sobre a relação entre a ficcionalidade, a virtualidade talvez seja o caso
também de nos perguntarmos que tipo de pacto é estabelecido entre o fato
imagético, a figuratividade (a cadeia figural) e a ficcionalidade, quer dizer de uma
fala dentro de uma realidade alternativa ao regime da factualidade histórica, social,
memorialística etc. O problema da ficcionalidade lírica, portanto, nos casos em que
ela se torna questão, deveria ser inquirida antes como uma ficcionalidade tensiva,
quer dizer, liminar, ou em tensão com o regime da realidade referencial do próprio
autor que se transfigura e mimetiza na obra, como o fingidor (o outro, a persona) que
deveras sente (o si-mesmo).

75
Le vaste continent qu'on regrupe sous le nom de "poésie lyrique" réalise quant à lui tou les cas de
figures possibles : énonciateur réel, énonciateur fictif, énonciateur feint, énonciation sérieuse,
énonciation ludique, énonciation ludique-fictive (SHAEFFER, 1989, 85).
144

Apesar de sua autonomia, a poesia não está desconectada da realidade,


só assim podemos falar em experiência na poesia ou poesia da experiência (a
experiência da poesia, por sua vez, só exige, minimamente, que esta seja sua
própria realidade, que haja um encontro com a realidade poética). Se ela aponta
para si, aponta também para o mundo, para um mundo - a partir da consciência
íntima ou das reentrâncias profundas da intimidade, em comunicação com a
alteridade, remetendo, pois, a outras realidades: pessoais, sociais, vitais, textuais. A
questão é que as formas de referencialidade não podem ser consideradas as
mesmas para todos os textos literários, o que se complexifica ainda mais no texto
poético, pois é preciso perguntar, neste caso, se também os modos de ficcionalidade
e ficcionalização são os mesmos no texto poético. Poderíamos, assim, tratar de
graus de ficcionalidade no poético. Se temos, por antecipação, um pacto de
ficcionalidade a partir das vozes líricas (sujeito lírico, vozes interlocutoras do sujeito
lírico - a amada, a cidade, a natureza etc.), o pacto lírico centra-se na verdade na
relação pática, na consciência íntima do mundo, e as referências à realidade e à
história em geral não entram no texto como ficcionalidade. Entram como
pertencentes a um regime inelutável de realidade, e neste caso, o mundo do texto
não pode ser simplesmente aluído do mundo da vida.
Em Samarone Lima, Crato é Crato, no Ceará, e Recife é uma metrópole,
em Pernambuco, sendo que entre essas duas cidades, ligada por rodovias, há
diferenças incomensuráveis, e há uma distância íntima, a qual agora se constrói na
sua lírica como memória. Mas esse sujeito, essa voz que fala na poesia, já é uma
voz construída para ressoar na universalidade: já é a memória e a dor humanas
quem na realidade falam: plurivocais, carregadas de multiplicidade. Daí, podemos
vislumbrar as dimensões deste território de complexidades, que, enquanto
complexidade reúne regimes diferenciados, modos de existência diferenciados num
mesmo complexo.
Seria, portanto o caso, de repensarmos certas cisões e excludências
próprias dos estudos literários e por eles estabelecidos. De que a poesia não recusa
de uma vez por todas a palavra como signo 76, mesmo se o significado (convocado
pela referencialidade) funcione, por sua vez, como imagem do corpo verbal. Enfim,
talvez fosse o caso de nos apropriarmos de um outro modo de ver, aquele que a

76
"Mas se o poeta se detém nas palavras, como o pintor nas cores ou o músico nos sons, isso não
quer dizer que aos seus olhos elas tenham perdido todo o significado" (SARTRE, 1985, p. 19).
145

contemporaneidade tem proporcionado por via das realidades digitais, da


tecnocultura, do universo cibernético e suas hiper-realidades, em que o virtual se
estende sobre o real e este incorpora o virtual. Na visão de tais redes híbridas, às
quais Donna Haraway (2016) chama de ciborgues, ficção e realidade é apenas uma
ilusão de ótica. Seria a poesia também uma espécie de "ciborgue"?...

2.1.1.4 Concessão de linguagem

A configuração do poema submete-se, em primeiro lugar, ao seu caráter


textual e discursivo, tais como as condições de textualidade, a eventualidade
discursiva e pragmática da obra etc, isto é, à percepção de que o poeta/produtor
consiga responder ao domínio, à capacidade linguística a que se propõe, de uma
determinada escritura num/para um determinado contexto – sabendo-se que,
quando falamos, por exemplo, em “condições de textualidade” tais condições terão
que responder ao texto-poema, cujas exigências talvez nunca preencham às
exigências regulares de outras espécies textuais. No entanto, sabemos que suas
prerrogativas de interpretabilidade partem dos pressupostos linguísticos, que sua
disposições são dadas por termos gramaticais, e que até um direcionamento
estilístico pode relacionar-se a um uso específico ou abusivo de certas classes de
palavras, por exemplo, do adjetivo, do advérbio, dos jogos temporais do verbo, da
matéria substantiva, da flexão ou inflexão, da tendência expressiva, comunicativa,
de qual seja enfim sua concepção e competência de linguagem.
Claro que não precisamos pensar com isso que o poeta esteja
preocupado com qual seja sua concepção de linguagem ou que precisa conhecer os
pressupostos teóricos da Análise do Discurso para escrever, mas apenas que se
depara com as práticas e usos da linguagem, a partir dos quais resolve, à sua
maneira, como apresentar um texto, dá-lo como produzido, acabado.
Não se trata apenas de uma concepção de linguagem, mas de uma
verdadeira “concessão”, “doação” de linguagem, no sentido de que, no poema – no
extrato formal desse poema – o autor pode criar um novo universo linguístico, como
também pode “abrir” ou “fechar” sua linguagem, pressupondo uma linguagem de
determinada comunidade leitora, nos sentidos da erudição ou da coloquialidade, de
um hermetismo desta linguagem ou de uma legibilidade aberta e comunicativa. Do
caráter ou da tendência desta linguagem em si também se pode dizer se ela é
146

objetiva ou subjetiva. Quer dizer, é uma possibilidade ao horizonte de expectativa da


lógica, da clareza e das imagens comuns, até de uma referencialidade daquilo que é
socialmente reconhecível e de níveis de figuratividade mínimos, ou, ao contrário, da
sua imersão no universo totalmente próprio, das imagens particulares, territórios do
estranhamento e congraçamentos obscuros, no ruído comunicativo até as
experiências oníricas e alucinatórias, só apreensíveis simbolicamente − isto é, num
território que já ultrapassa as prerrogativas do signo e beira o simbólico psicanalítico.
Este tipo de subjetividade não deixa, é claro, de ter seu aspecto social. Primeiro no
sentido de que faz parte de um registro artístico socialmente reconhecido ou
reconhecível; segundo, de que pode ser, senão lido, compreendido como recusa
desta sociedade ou até agressão a ela. Por outro lado, não podemos esquecer,
nessa “concessão da linguagem”, que, mesmo na liberdade do poético, pode estar
atenta aos pressupostos mercadológicos ou a um determinado público leitor, o que
podemos chamar de “adequação”.
Fato é que, a partir da consciência desta linguagem, conforme Barbosa
(1986, p. 14), o leitor do poema passa a ser nele incluído como “latência de uma
linguagem possível”. Esta seria uma das marcas da poesia moderna, senão sua
principal característica – que perdura, evidentemente, como conquista. Nela, o poeta
passa a ser aquele que instaura o espaço da esfinge (o poeta nada decifra, recifra) a
um leitor que tem fome de respostas.
Prosseguiremos nesta discussão adiante, no tópico 2.1.1.5, que amplia a
questão da objetividade e da subjetividade, no sentido de que refleti-la ultrapassa a
questão da linguagem em si, para se colocar como uma atitude ante a criação
poética e a reflexão da visão de mundo, na concepção no poema.

2.1.1.5 Genericidade

Este traço configurativo diz respeito ao fato de que os textos se inscrevem


e se classificam em gêneros funcionais ou tipos formais (modos), atualizando-os,
aglutinando-os ou transformando-os. A possibilidade de classificação textual diz
respeito aos traços análogos que modulam os agrupamentos genéricos tradicionais
− épico/narrativo, lírico, dramático − dentro do universo literário, “subgêneros” e
“formas convencionais”: um romance, uma epopeia, as formas fixas − e livres − da
poesia; um “poema em prosa” etc., a partir de marcas de pertencimento ou
147

aproximação a determinadas macrorrelações e às expectativas nas situações de


comunicação. Na definição do gênero, os traços formais podem estar em co-
afirmação com os traços temáticos, como no ponto de vista de Goethe, retomado no
século XX por Julius Petersen77, o qual atribui ao epos e ao drama um traço formal,
a narração e o diálogo, e ao lírico, a definição por um traço temático: aquele [gênero]
que trata de uma situação, em vez de uma ação, como os outros dois. Genette
lamenta neste esquema a “espantosa dissimetria” na determinação categórica, mas,
por outro lado, a reconhece como provavelmente inevitável, nesta tentativa de definir
os traços definidores de um gênero.
Obviamente, tanto no contexto da modernidade e mais ainda no da
contemporaneidade, tornou-se cada vez mais temerário, ou anacrônico, falar em
gênero literário puro, nas suas categorias “ideais” e mais conhecidas: o lírico, o
épico [e demais formas essencialmente narrativas], e o dramático; ou sequer sobre o
gênero literário clássico como gênero, em vez de sua percepção como modo
enunciativo. Para Genette, os gêneros se definem sob uma dialética inextrincável de
fatos de natureza e de cultura, da recorrência e da circunstância: nenhum gênero
pode ser definido totalmente fora de sua ocorrência histórica, nem é totalmente
determinado por ela, daí que

Não há nível genérico que possa ser decretado mais “teórico”, ou que possa
ser alcançado por um método mais “dedutivo” que os outros: todas as
espécies, todos os subgêneros, gêneros ou super-gêneros são classes
empíricas, estabelecidas pela observação empírica, ou, no limite, pela
extrapolação a partir deste dado, isto é, por um movimento dedutivo
superposto a um primeiro movimento sempre indutivo e analítico.78

De qualquer modo, para o que interessa aqui, esse é o ponto de partida.


Não somente as ideias de gênero e subgênero são requeridas ou pressupostas
como referência na prática, sobretudo investigativa, quanto estão na base das
próprias produções literárias que se afirmam estilística ou esteticamente na
“mostração” da sua diluição ou desconstrução, ou mesmo no “dialogismo” entre eles,
isto é, na sua pressuposição: os atos compósitos, o pastiche [do gênero ou

77 Cf. Gerard Genette (1979, p. 56-57), que comenta um esquema de classificação genérica utilizado
pelos autores lembrados, o qual segundo Genette, “nem é tão precioso, nem tão inútil”.
78 Il n'y a pas de niveau générique qui puisse être décrété plus “théorique”, ou qui puisse être atteint
par une méthode plus “déductive” que les autres: toutes les espèces, tout les sous-genres, genres ou
super-genres sont de classes empiriques,établis par observation empirique, ou à la limite par
extrapolation a partir de ce donné, c'est-à-dire, par un mouvement déductif superposé à un premier
mouvement toujours inductif et analytique (GENETTE, 1979, p. 70).
148

subgênero], o simulacro. Portanto, a genericidade é um dos aspectos que a forma


poemática “inscreve”, pressupõe ou desconstrói.
É importante lembrar que o gênero lírico e seus respectivos subgêneros
não são modais (como o épico – narrativo, e o dramático – dialogal/monologal) e
não tomam por base, como sequência discursivo-textual, apenas uma sequência
tipológica, tal como a narração, a descrição – formulação de uma visualidade
transposta para atmosfera poética, por exemplo –, a injunção etc. Ou, invertendo os
polos da questão, tampouco uma “liricidade” (tom e atmosfera líricos) se encontra
apenas em poemas, como sabemos. A feição tipológica do texto poético, quer seja a
apresentação de um acontecimento, a descrição de uma cena ou de um objeto, uma
reflexão sobre uma realidade ou mesmo sobre a própria poesia, efetiva-se na
particularidade do poema, deles se apropriando já dentro de um pacto propriamente
lírico.

2.1.1.6 Objetividade e subjetividade

O autor assume uma postura, uma atitude, frente ao mundo, à percepção


e à própria escritura que resulta numa orientação frente ao tratamento da linguagem
e em sua feição, seu "estilo", determinantes para o modo como podemos nos
aproximar deste texto, em termos de uma disposição afetiva ou cognitiva, de
expectativa de leitura e de interpretação. Diz respeito a uma relação sujeito - objeto,
ao distanciamento (ou à proximidade) sujeito - mundo retratado, arte e vida, e à
autonomia ou objectualidade da linguagem, em termos de como ela é vista
construtivamente, como coisa objetiva e expressividade subjetiva.
No âmbito da sua linguagem, a poesia é construída sobre três esferas: a
do poeta que se coloca como autor/produtor/criador, a da própria linguagem, e a
esfera da coisa tratada – a realidade, a experiência do sujeito poético, o objeto do
poema em seus aspectos e dimensionamentos. No que refere ao sujeito, este
coloca-se diante da realidade, da natureza ou diante da linguagem de diferentes
formas, seja como vaso comunicante vital e simbólico, indiferenciado de suas
transformações, de seus acasos e intempéries, ou como um estudioso que
estabelece entre si e esta realidade uma fissura que constitui uma condição de coisa
a ser poetizada e expressa/esquadrinhada. E, como se sabe, esta atitude do sujeito
em relação ao objeto tem uma fundamental determinação sobre a forma e sobre a
149

linguagem, pois perpassa pela visão de mundo que o poeta oferece à interpretação
da sua obra e à compreensão de sua arte.
Eis por que essa visão de mundo expressa por essa atitude tem a ver
também com o que já vimos como “concessão de linguagem”: sua discursividade,
suas escolhas de material e de matéria, sua estruturação, sua nitidez ou
obscuridade, enfim, definem o processo criativo, a concepção de trabalho poético e
formal.
A objetividade opera, portanto, com noções de controle, rigor, clareza,
contenção, ordenação, evidência e exatidão, na pressuposição do constatável e do
definível. Já a subjetividade, como inversão disso, mergulha no território dos
significados e das imagens pessoais – da imaginação devaneante –, dos
desregramentos e idiossincrasias e do descontrole propiciado pelos acasos e pelas
contingências, dos imprevistos e indefinições, da incontinência, inexatidão,
incertezas e obscuridades, além de uma visão da poesia como expressão de uma
conjunção carnal, vital e unitária, com a vida e a realidade e seus achaques. Não à
toa, as relações de objetividade e subjetividade no texto ganham alta importância
como valorativos do poético na modernidade e no universo da poesia atual, com o
pêndulo atraído pela objetividade como alto poder de consciência, de controle dos
materiais, da linguagem e do objeto poético.
No exemplo do subjetivismo romântico, o mundo se torna um conjunto de
índices correspondentes e símbolos, e o poema um doble do universo: a poesia
seria capaz de, pela analogia, estabelecer uma correspondência entre arte e vida,
natureza e cultura, e o poeta (o dândi, o maldito, o "underground") pode viver sua
vida como arte, de modo a unir, pela linguagem, o princípio poético com a vida
histórica e o sujeito empírico.
As questões que envolvem esses conceitos, entretanto, complexificam-se.
Mais uma vez, não são uma questão de positivo e negativo, zero e um. Os
pressupostos da objetividade devem alertar que a obra artística/literária, o poema,
mesmo mantendo tais pressupostos, quando submetido às circunstâncias da
interpretação, das constituições de sentido e ao jogo da linguagem, jamais pode
funcionar como um tratado científico, nem é este, sabemos, o seu objetivo, sua
razão de ser.
A visão de mundo do poeta, do cientista ou do filósofo podem igualar-se,
podem ser a mesma, mas suas linguagens não: elas guardam suas particularidades
150

– embora que um possa apropriar-se da linguagem do outro, que Nietzsche faça seu
Zaratustra falar poeticamente, que a crítica de Roland Barthes seja uma peça
artística, que a ciência se expresse em Big Bang ou que Francis Ponge tome, a seu
modo, o partido das coisas. Por outro lado, uma obra de visão e/ou linguagem
subjetiva não significa falta de rigor no seu trabalho de criação, mas pode querer
dizer apenas que o artista, consciente, quis estabelecer assim seu jogo
representativo.
Além do mais, podemos estabelecer na mesma obra ou no mesmo
poema um jogo de tensão, conflito e contraste entre objetividade e subjetividade, de
modo a gerar transgressão e ironia no corpo do texto, e mesmo uma posição de
revolta ou desconstrução das visões maniqueístas estabelecidas pela sociedade, ou
das visões esquemáticas propostas pela própria teoria. De tal modo, pode ocorrer de
a forma expressar uma noção enquanto o espírito da matéria temática a contradiz,
ou vice-versa. Não são casos difíceis de encontrar. Na poesia brasileira mais
recente, ninguém desconhece as temáticas e a linguagem escrachada que Glauco
Matoso cultiva em seus regulares sonetos, dando um exemplo de uma rebeldia que
se insere no paletó da forma enrustida.
O fato de o uso da linguagem responder à visão implicada na relação
sujeito – mundo, ou melhor, na atitude sujeito – objeto, no caso de um olhar objetivo
e um rigor da composição também nem sempre tem como consequência uma nitidez
de significância, no sentido de sua compreensão ou de uma compreensão imediata.
É conhecido, por exemplo, que João Cabral de Melo Neto talvez seja, dos mais
próximos de nós, o poeta de maior objetividade e impessoalidade no seu processo
poético, em sua poesia da maturidade. O fato de fazer “poesia com coisas”, de
empregar substantivos de referência concreta ou construir uma imagética, uma
cadeia fanopeica – em conformidade com a linguagem poundiana (POUND, 1977) –
relacionada ao mundo material (PEIXOTO,1983) não garante a imediata apreensão
de sentidos dos seus poemas, isto pela intricada composição tecida sobre
convergências e divergências, por uma lógica de construção e por uma rede de
metáforas, em que os elementos, as coisas remetidas entre si são confrontadas ou
relacionadas também ironicamente e vão revelando camadas/faces de significados.
Deste modo, só no poema, onde as imagens surgem inusitadas de coisas banais e
reconhecíveis (nesse surpreendente poder imagético do poeta, é sempre bom
lembrarmos de que ele também já foi um mestre de imagens surrealistas), elas
151

podem ir aos poucos se clarificando, ou sendo clarificadas em seu próprio


desenvolvimento, e clareando a realidade79.
Qualquer relação de objetividade se resguarda numa relação de frieza e
impessoalidade, condição sine qua non para a reflexão e avaliação perspicaz e
criteriosa dos processos, das realidades em jogo – o não envolvimento. Linguagem
é (re)corte, é submissão a regras, restrição, sistematização, constrição; é pudor de
certos cometimentos, é coisa humana e arbitrária. Nesta relação de esclarecimento
e neste estágio de conhecimento da linguagem e de sua manipulação nos mais
variados discursos, inclusive no poético, não se pode conceber que a poesia venha
do coração, do gozo anímico da linguagem, do “devaneio” imaginante, muito menos
dos deuses, mas da racionalidade, da imaginação como excrecência ponderada,
controlável e produzível, da produtividade (mesmo de uma certa “secreção”) social e
do trabalho. Isto talvez contribua para sua potencialização como capital cultural e
combine mais com sua qualidade de objeto editorial mercadológico.
A crer no poder do poeta-faber, no sentido ideal daquele que controla em
absoluto seu processo de "produção", se a comunicação ou a "convicção de
significância" do leitor sobre o texto poético não se dá de maneira imediata − apesar
do ponto de partida da racionalidade e da clareza − será devido, então, a uma
ruptura estabelecida pelo poeta entre os níveis de relação: a sua atitude ante o
mundo e o seu projeto de comunicabilidade poética. Podemos entender que, em sua
consciência criativa do trabalho, seu controle e domínio sobre a linguagem, o autor
instaurou ruídos calculados no texto, de modo a provocar rupturas ou dificuldade de
compreensão, ambiguidades e labilidades – ou imprecisões da linguagem –,
potencializando assim seu texto para a incerteza da significação, para a obscuridade
e o hermetismo.
Contraditoriamente, um poeta que concebe de maneira subjetiva sua
relação com o mundo e o comunica poeticamente como este lhe (a)parece e como o
sente, pode procurar eliminar ao máximo tais ruídos, de modo que se entenda que
ele, o poeta, “não tem nada a esconder”, já que sua vida “é um livro aberto” − e o
poema é o “seu” livro – conforme a doxa veiculada. Em ambos os casos, a poesia
permite resguardar seu caráter de autonomia ante a expectativa lógica de cada
linguagem ou de cada atitude, e proporciona essa contradição.

79 Cf. NUNES, 1969, p. 266-267.


152

São estabelecidas, assim, algumas contradições concernentes à clareza


e à obscuridade do texto, em confronto com seu teor de objetividade ou
subjetividade. Colocadas em percurso de comunicabilidade que vai da clareza à
obscuridade, tanto a atitude da possível comunicação intersubjetiva quanto a do
espírito intransitivo podem cerrar seu texto, impondo-o um fechamento ou
dificuldade de compreensão (ao menos imediata) que podem alcançar um
hermetismo. Este, porém, tanto pode estar relacionado ao conhecimento, à
experiência da leitura literária, às escolhas de linguísticas e linguageiras
(comunidade leitora que partilha o mesmo registro linguístico - como discutido no
tópico “concessão de linguagem”), quanto às escolhas simbólicas (seleção de uma
comunidade que partilha os mesmos símbolos, a mesma memória e/ou a mesma
mística), e assim podemos falar de uma obscuridade esclarecida ou de uma
obscuridade "aderente", diretamente ligadas às comunidades ou aos grupos visados:
a poesia talvez sim, mas o poema não estará, então, aberto a todos.
Trata-se, portanto da abertura ou cerramento da linguagem implicados no
quadro de um rearranjo de papéis comunicativos enquanto índices de
nitidez/clareza, uma suposta "transparência" do objeto que se reflete na linguagem,
e o embaçamento/obscuridade do objeto recoberto pelas apropriações subjetivas.
Os graus de intensidade desta clareza iriam da (impressão de) nitidez absoluta até o
estágio de uma linguagem difusa e da significação evanescente, até (a impressão
de) um fechamento praticamente total (um surrealismo cerrado, por exemplo),
passando por um ponto relativo onde um e outro se encontram.
Acontece que, para os pressupostos da produção, numa instância de
objetividade a linguagem estará sob o domínio do escopo e orientação do autor, que
pode imprimir a ela um grau de complexidade conceitual, linguística, simbólica ou
discursiva tal que delimita seus leitores por círculos de competências, de repertórios
e graus de erudição, o que resulta numa contrariedade à “clareza”, embaçando-a,
tornando-a difusa ou mesmo fechada para quem não possui o conhecimento
exigido. Tratar-se-ia de um hermetismo letrado (obscuridade esclarecida) da obra –
algo que a poesia já parece possuir em certos graus por sua própria natureza
figurativa, polissêmica e metafórica.
Por outro lado, a obscuridade, que parece localizar-se do lado da
subjetividade, pode simplesmente ser relacionada não apenas às peculiaridades de
um indivíduo e de sua imaginação, mas a comunidades simbólicas, coletividades,
153

“tribos” ou grupos que detêm o conhecimento de certas narrativas, signos, símbolos,


representações, discursos e memórias e que também organizam as subjetividades e
orientam as interpretações. Tratar-se-ia, portanto de uma face enigmática que tem
fundamento na intersubjetividade proporcionada por uma comunidade cultural,
detentora de um tipo de discurso fechado, que a outras comunidades podem
(a)parecer parcial ou totalmente cifradas, codificadas em seu extremo como
enigmas, não raro de fundo sacral, místico ou simplesmente memorial/cultural: é o
que poderíamos chamar de hermetismo simbólico (obscuridade aderente). Neste
caso, o autor, o organizador de sentidos, está parcial ou totalmente comprometido
com o discurso representativo dessa comunidade, e o que pode parecer
subjetividade, na verdade está articulado sobre a contradição da “obscuridade
esclarecida”, que pode ser considerada (lida ou percebida), num primeiro
momento80, apenas como algo genérico, como “imagem”, atmosfera cênico-
sugestiva, quando na verdade trata-se de traço “agregado”, vinculado, "co-narrativo",
apresentado como hermetismo poético. Exemplos comuns são certos traços
memoriais linguísticos numa poesia de co-narratividade afro-brasileira, ligados ao
panteão sagrado e à ritualística religiosa, que pode fazer sentido coletivo para uma
comunidade e não para outras 81.
Trazendo um outro exemplo, João Alexandre Barbosa (1986) chama a
atenção para as diferenças de hermetismos observadas por Octávio Paz entre
Góngora e Rimbaud. O primeiro operando com sistemas de alusões históricas,
simbólicas e culturais que funcionam como empecilho à “cristalina compreensão” do
leitor, e o segundo operando com o esfacelamento da sintaxe. Diríamos, então, que
ambos se colocam num hermetismo que é, fundamentalmente, letrado, mas que
Góngora preserva o desejo da aura de uma comunidade simbólica, de uma tradição
cultural que compõe uma tábua interpretativa (isto é, símbolo daquilo), aproximando-
se muito mais de um hermetismo simbólico do que Rimbaud, estando para o
passado como este está para o presente – para a linguagem dessacralizada.

80 Quando se diz que algo é “hermético” não se pode dizer que é inapreensível ou ininteligível. O que
pode ser percebido inicialmente como “hermético” pode ser desvendado logo que se possuírem os
códigos de decifração: aí entra uma crítica literária mediadora, explicativa e legitimadora
(BERARDINELLI, 2007, p. 142). Ou simplesmente a obra é aceita, em sua condição enigmática
como abertura máxima à experiência receptiva e suas atribuições imprevisíveis de leitura, numa
relação permanentemente tensiva entre seu alto sentido e seu vazio.
81 Coloco aqui "entre parênteses" os problemas que envolvem questões de tradução e
desconhecimento de uma língua estrangeira, discussões não contempláveis neste momento, neste
trabalho.
154

No que concerne à mítica de seu próprio enigma, a poesia encontra seus


meios. Contraditoriamente, a atitude objetiva face à linguagem que se torna um
recurso ao poeta para criação de um “espaço procriador de enigmas” (BARBOSA)
também recupera no leitor aquela fome de respostas que não é (não pode ser)
nunca totalmente satisfeita, pelo próprio vir-a-ser linguagem: o desejo de nova
satisfação, e a suspeita de que novas questões, novos enigmas serão colocados. E
isto também lança a poesia numa rede de reiteração, recordação e intemporalidade.
As questões de objetividade e subjetividade concernentes aos processos
formais do poema, da obra devem, enfim, ser colocados como de primeira ordem na
busca de uma compreensão geral do texto e de seu lugar – ou deslocamento – em
relação à experiência da e com a linguagem, e a experiência do e com o mundo. Na
poesia, sua problemática ultrapassa às questões de abordagem e de concepção de
linguagem para alcançar uma dimensão social e uma dimensão ontológica, a
pergunta pelo ser do eu e o ser do outro, dos processos criativos e da obra com a
qual lidamos.

2.1.2 A textura [da forma poética: "a pelagem da tigra"]

A palavra textura remete de imediato às artes plásticas e visuais, relativa


a uma comunicação dos objetos na perspectivas dessas artes, dos aspectos e
impressões que se tem das superfícies de determinadas formas, dos efeitos de
"pele" dos seres e objetos, no sentido tátil (sentido pelo toque ou pela manipulação
física: aspereza, maciez), ótico/visual (ilusões ópticas, padrões visuais: telas,
revestimentos,), orgânicas e inorgânicas (produzidas pela natureza: pelagens,
plumagens, cascas arbóreas) geométrico (regularidades de formas geométricos). As
tessituras, as marcações, as distribuições, o alto e o baixo relevo também podem
criar efeitos de texturas: sensorialidade e sensualidade das superfícies.
Sartre (1985) critica o uso de certos termos e jargões de outras artes na
literatura − como seria, no nosso caso, a palavra "textura"−, uma vez que não há
uma arte única, à qual se possa aplicar indefinidamente os termos, cada uma possui
não somente formas, mas também matérias diferentes umas das outras, e não estão
"engajadas" [com a referência] da mesma maneira. Conforme ele, um hábito
praticamente naturalizado e tido como "elegante" pelos artistas de todas as áreas, os
quais recorrem costumeiramente a noções de outras áreas para explicar a sua.
155

Entretanto, Sartre acaba reconhecendo que as coisas, cores, sons, estão


impregnadas de valores, de qualidades, e que a poesia (muito mais que a prosa),
também carrega em si essa impregnação partilhante de outras artes. Não se trata
apenas do fato de o poeta conceber como imagem a palavra que usa, ultrapassando
seu caráter designativo.
Como já proposto na discussão sobre a corporeidade da forma, o texto
poético constitui-se numa "carnalidade", a começar pelo fato de que o poeta vê na
palavra não o signo de um aspecto do mundo, mas "a imagem de um desses
aspectos [...]. Sua sonoridade, sua extensão, suas desinências masculinas ou
femininas, seu aspecto visual, tudo isso junto compõe para ele um rosto carnal, que
antes representa do que exprime o significado"82. Podemos assim compreender que,
se na questão da referencialidade a palavra invoca o mundo histórico, a remissão,
para a questão da textura, a palavra repousa no imaginário e na "mostração
sensível". Dentro da atitude poética, a palavra se dá ao poeta como "qualidade
material”, localizada, portanto, nesse espaço potencial articulado entre seu caráter
sígnico - arbitrário e designativo de conceitos, significados - e o caráter imagético,
icônico, simbólico e afetivo impregnado em sua pele, a linguagem poética, a cada
palavra, a cada pronúncia e como um todo, faz ressaltar sua "textura": a "pelagem
da tigra" - para lembrar um título de Salgado Maranhão, de 2009.
É com essa propriedade que utilizo aqui a palavra textura, sem o remorso
do sacrilégio, convencido de sua riqueza e importância heurística para as
percepções das espessuras de significação e seu sentido (seu horizonte) do texto
poético, o qual é ressaltado como objeto estético, plástico, com expressividade
estésica. Quanto mais que já utilizamos regularmente, de maneira própria, noções
advindas de outras artes, como é o caso de "tom" (música), "tonalidade" (música,
utilizada também pelas artes plásticas) e "coloração", "cor local" etc. (termos em que
ressoam as artes visuais). A textura é uma evidenciação da arte poética e da palavra
não só como imagem, mas também como forma, uma vez que é a forma que
comporta o realce, a marcação, o encrespamento de sua superfície.
Esse semblante, essa "sensibilidade de superfície" da corporalidade do
sensível, no poema, apresenta, em grande parte, aspectos hesitantes e difusos, por

82
[Le poète] voit dans le mot l'image d'un de ces aspects [...]. Sa sonorité [du mot], sa longueur, ses
désinences masculines ou féminines, son aspect visuel lui compose un visage de chair qui répresente
la signification plutôt qu'il ne l'exprime (SARTRE, 1985, p. 20, grifos do autor).
156

isso embora desejemos delineamentos precisos, como quase tudo no poético sua
determinação nem sempre é objetiva nem imediatamente dada. Surge como
impressão, efeito, resultado das tramas construtivas, das relações coesivas,
distribuição de suas sonoridades, entrelaçamentos e repetições, da marcação de
seus significantes, da evidenciação da linguagem que não tenta dissimular-se como
transparente em relação ao real, mas direciona-se também para uma translucidez ou
opacidade. Lembremos que, no caso da poesia, a dissimulação da transparência da
linguagem, de sua "lisura" textural é tão significativa quanto seu "encrespamento" -
também, por sua vez, homogêneo ou heterogêneo. Podemos, assim, pensar em
quatro tipos de textura poética (ou de efeitos, impressões de textura): uma textura
gráfico-visual, uma textura sonora, fonológico-distributiva, uma textura comissural e
uma textura tonal.
Podemos considerar a textura gráfico-visual como aquela textura visual já
tradicional nas artes plásticas, e apropriada pela poesia moderna e contemporânea,
os efeitos semiológicos, das fontes gráficas utilizadas, efeitos estésicos (maciez,
suavidade, aspereza, agressividade; limpidez, luminosidade, ferrugem...). O alto e o
baixo relevo, os efeitos de sombra etc, em geral surgem também de uma ilusão ou
de uma realização gráfico visual. Não são, portanto, efeitos desprezíveis, porque
impelem a uma emoção, a memórias resguardadas de leituras, formas e objetos
culturais, ao toque sensível do corpo, a uma "encarnação" do espírito que levam a
determinados tipos de sensibilidade e simpatia. Na poesia, como na televisão, uma
emoção e uma simpatia (ou antipatia) pode se tornar feeling comercial.
A textura fonético-distributiva, por seu lado, diz respeito às camadas
sonoras, suas repetições, reiterações, suas simetrias, assimetrias, distribuições
dentro do texto. Não se trata de dizer que um texto possui rimas, aliterações e
assonâncias - ganhos de tantas "escolas" e estilos literários, tais como na poesia
simbolista, mas há todo um conhecimento já sedimentado pela estilística que trata
disso. Além do mais, se o poema contemporâneo não busca evidenciações claras
de rimas e outros efeitos sonoro-musicais no poema, ele não abandona a
musicalidade repousada em certos sons, em acentos específicos, podendo esses
procedimentos estarem bem ou mal realizados, a depender da integração
significativa, de sua funcionalidade ou de sua necessidade. Não é raro encontrarmos
um procedimento realizado apenas para gerar "efeito de poeticidade" por um engodo
de musicalidade. É, portanto, um traço delicado de abordagem complexa.
157

Observemos um exemplo desta textura fonológico-distributiva na


contemporaneidade poética de Lila Maia, em que a autora traz uma ranhura sonora
à folha branca do papel:

FOLHA BRANCA

Um tigre me espreita.
Fareja cada compartimento da casa
com ar inocente. Nada escapa.
Nem as altas prateleiras da estante.

Eu e a fera nos igualando, nos resumindo.

Quando suas patas me atingem


meu grito é de criança:
oh tigre
oh criação

(MAIA, 2013, p. 68)

Há que se concordar que esta textura que se apresenta como uma


distribuição fonológica, não é apenas uma questão de aliterações ou de
assonâncias, no sentido de evidenciar-se simplesmente como figuras sonoras,
procedimentais. Acaba por ser uma distribuição rítmico-fonológica, porque ascende
a uma regularidade, que vai se modificando, se transformando, mas buscando
discrição, uma sutileza, uma branda difusão, enquanto ressalta o próprio sentido, a
ele integrando-se. Uma chave sonora parece ter se estendido da palavra "branca"
para todo o poema: o grupo consonantal /br/, do qual o "tigre" e a "espreita" se
apropriam; o grupo /an/, que ondula em /en/ e /in/; a oclusividade de /ca/ na reclusão
dos compartimentos, todos estes sons casam, enfim, com uma cadeia que vai se
estendendo, puxando outros sons, harmonizando-se. São unhadas e tocaias, traços
sonoros e sensuais que rompem o corpo da folha e da linguagem sem espantar a
presa. Esta ranhura sobre a linguagem compõe a textura do poema e contribui para
elevar sua composição e seu sentido.
A textura comissural diz respeito aos efeitos das relações de estruturação,
coalescência e esgarçamento, da sintagmaticidade do texto. O termo "comissura"
aponta tanto para urdidura quanto para juntura, ao mesmo tempo em que evoca a
disjunção, a fenda, a fissura, a parataxe. Daí podermos nos apropriar dela para nos
referirmos à questão da coesão, das relações sintáticas marcadas, das junturas e
desconjunções construtivas do texto, de uma forma geral, que aparecem como
158

diferenciações estratégicas evidenciadas como pertinentes a uma linguagem poética


própria e particular do poema. Essa face textural típica da apresentação da fala pode
ser percebida, por exemplo, nas relações coesivas do texto, que vai desde um tecido
frasal entrelaçado, até o esgarçamento enumerativo sem conectivos, articulações ou
elos sintáticos; da estruturação autorremissiva (anábase; catábase), ao retalhamento
paratáxico, do mosaico e da dispersão aleatória, transformando a tessitura do texto
numa colcha de retalhos cujas partes são mediadas apenas pela agudeza do
silêncio. Esse tipo de textura marca intensamente as escritas moderna e
contemporânea.
Finalmente, à textura tonal pertence uma pregnância afetiva, uma
atmosfera, uma orientação pela tonalidade, pelos aspectos subjetivos. Os tons do
poema, tais como o do lamento, da memória, da introspecção reflexiva, da conquista
amorosa ou do humor ácido, a cadência rítmica com suas tensões e distensões, a
dinâmica das metáforas, das imagens e do imaginário (sentidos de subida e descida,
claridade e escuridão), quer dizer, tudo o que constrói um tipo de névoa afetiva tal
que, ao olharmos o poema, ao o lermos, não conseguimos nos desprender de
determinada atmosfera por ele causada, e nele sentida.
Deste modo, é possível então concluirmos por uma produção formal da
textura, fato que não se desagrega da própria noção de corporeidade da forma no
pacto lírico, conforme já discutido, e que, por outro lado, já tem sido largamente
trabalhada, noutra perspectiva, nos estudos literários e estilísticos.

2.1.3 Tessituras inter e/ou hipertextuais

A experiência formal e relacional da literatura é uma experiência do estar


sempre posto diante de seus outros, um movimento de diálogos e confrontos,
recusas e retomadas, de um movimento intertextual ou hipertextual (SCHAEFFER).
O texto poético não anula uma visada sobre o passado e a memória, sobre a
memória de textos. Pelo contrário, ele os invoca (alude), convoca (cita) e os evoca
(lembra, sugere).
A literatura, e por conseguinte o texto poético, simplesmente não existe,
talvez desde sempre, mas sobretudo na modernidade, e menos ainda na
contemporaneidade, fora de um sistema de remissões textuais com vários graus de
relação e presença entre textos, não apenas de modo sutil, vago ou indireto, ou
159

como rememorações intertextuais. Nela, as realidades são constituídas também


pelas mediações dessa remissividade textual.
A remissão intertextual, diz respeito aos processos da recorrência como
economia do empréstimo e da reciprocidade criativa: trabalho de cooptação,
assimilação e transformação de textos outros por um texto centralizador que opera
um comando e centralidade de sentido. Essa remissão estabelece também uma
expectativa sobre um leitor (ideal) dominador de um repertório de leituras, e
minimamente capaz de reconhecer certas pistas intertextuais. Ou simplesmente
como condição para ampliação e abertura de sentidos, já que essa exigência e essa
expectativa não é – ou não deve ser – tida como condição sine qua non para a
legibilidade do texto enquanto tal, e sua inteligibilidade. Cada um, na leitura,
estabelece com o texto sua própria experiência significativa. Eis por que, no
entender de João Alexandre Barbosa (1986), a intertextualidade escapa ao controle
e às intencionalidades do autor, àquelas remissões orientadas ou direcionadas,
porque no espaço aberto da leitura e da cultura o texto está marcado pelas
circunstâncias históricas e pelos sentidos que o leitor lhe imprime.
No que diz respeito à ampliação dessa questão para as transformações
das formas presentes nos processos históricos da continuidade periódica e da
literatura, comentando posições de Harold Bloom e McLuhan, Laurent Jenny (1979)
observa que cada um desses autores, a seu modo, procura uma ordem nesse
processo. Bloom utiliza-se de leis psicológicas, como conflito de gerações ciosas de
se afirmar entre as influências recebidas e sua originalidade; McLuhan, baseando-se
nas condições sociológicas relacionadas aos suportes midiáticos: os períodos de
crise/mudança intertextual corresponderiam à introdução de novos “media”
(jornalísticos, audiovisuais, eletrônicos, etc.) - os media novos favorecendo a
memória de um público letrado. Jenny afirma, no entanto, a necessidade de verificar
a implicação desses processos intertextuais nos momentos de diástole das formas
nas próprias formas, numa visão não estreitamente imanente, mas relacionando-as
com uma dupla rede de relações diferenciais: os textos literários preexistentes e os
sistemas de significação não literários.
Pergunta, então, o autor (JENNY, 1979, p. 10): “Não será um tipo
determinado de formas que suscita a intertextualidade?”. A partir daí defende que as
formas que projetam esse processo intertextual são as formas com codificação mais
estrita, muito codificadas, rígida ou exageradamente codificadas que “dão azo” a
160

essa “repetição”. Exemplifica como tais a retórica épica em geral, o barroco


hispanizante, a escolástica, a poesia romântica e o romance macabro, bem como a
imprensa sensacionalista, os textos bíblicos, a saga irlandesa etc. Entretanto, ele
mesmo se questiona (p. 11) se “todo gênero ultrapassado não aparecerá
automaticamente como super-codificado pela simples razão de que a sua
codificação se torna aparente” – o que, automaticamente, parece lançar todo o
acervo de textos e vozes do passado suscetível à cooptação intertextual, mas que,
por outro lado, deixa em aberto as trocas e assimilações textuais da própria época.
É pouco, senão impróprio, chamar essa relação alusiva, economia de
recorrências, de intertextualidade. Julia Kristeva, que cunhou o termo
[intertextualidade], reconhece certo uso redutor e defende para ele um alargamento
ou ampliação de sentido, como “transposição”, já que o fenômeno diz respeito não
só a textos no sentido estrito, verbalmente codificado:

O termo “intertextualidade” designa essa transposição de um (ou vários)


sistema(s) de signos noutro, mas como este termo foi frequentemente
tomado na acepção banal de “crítica das fontes” dum texto, nós preferimos-
lhe um outro: transposição, que tem a vantagem de precisar que a
passagem dum a outro sistema significativo exige uma nova articulação do
tético – da posicionalidade enunciativa e denotativa.83

Ainda assim temos a sensação de que a propriedade semântica do novo


termo escolhido ainda é insuficiente para a expressão do fenômeno, a exigir
predicados e explicações. Isso porque as relações expandem-se de tal modo que
alcança inclusive a imbricação de discursos, modelos, registros e formas culturais
relativas aos sistemas simbólicos/imaginários. É o que Schaeffer (1989) chama de
“traços de conteúdo” (os motivos, temas), que ultrapassam de longe a mera forma-
texto84, enfeixando-o numa “polissemia”, e numa pluralidade semiótica, conforme
conclui a autora: “a polissemia aparece então também como resultado de uma
polivalência semiótica, de um pertencimento a diversos sistemas semióticos” [e
culturais, portanto] 85.

83 Le terme d'inter-textualité désigne cette transposition d'un (ou de plusieurs) système(s) de signes
en un autre; mais puisque ce terme a été souvant entendu dans le sense banal de “critique des
sources” nous lui préférerons celui de transposition ,qui a l'avantge de préciser que le passage d'un
système signifiant à un autre exige une nouvelle articulation du thétique – de la positionallité
énonciative et dénotative (KRISTEVA, 1974, p. 59-60 – grifo da autora. Cf. também JENNY, 1979, p.
13 – utilizo a tradução desse autor).
84
Cf. referência às formas experienciais migrantes.
85 “La polysémie apparaît donc aussi comme le résultat d'une polyvalence sémiotique, d'une
appartenance à divers systèmes sémiotiques”(KRISTEVA, 1974, p. 60).
161

Consideremos mais alguns pontos de vista importantes acerca desse


fenômeno.
O primeiro é o de Gerard Genette (1979), que – não sem ironizar a
própria insuficiência dos termos cunhados – sugeriu o uso do termo
“transtextualidade”, para as relações “manifestas ou secretas” entre textos, ou
alargando consideravelmente a abrangência do olhar intertextual, no sentido de
incluir no fenômeno dessa “transcendência textual” (segundo ele), bem como entre
estes, seus gêneros, subgêneros e comentários, as seguintes possibilidades de
relações: a) a intertextualidade, em sentido restrito (e usual), como a presença
literal, mais ou menos literal, integral ou não, de um texto em outro; b) a
metatextualidade – sobre o modelo linguagem/metalinguagem –, que une um
comentário ao texto comentado, processo de toda a crítica; c) a paratextualidade,
que ele considera transtextualidade por excelência, e que diz respeito a uma relação
de imitação ou transformação de um texto, da qual o pastiche e a paródia seriam
exemplos fortes; e, por fim, d) a arquitextualidade/o arquitexto/a arquitextura, a qual
aponta para a relação de inclusão que une cada texto aos diversos tipos de discurso
aos quais ele representa ou ressalta, os gêneros e suas determinações modais,
temáticas, formais etc.
Outro tipo de relação visada entre textos é a hipertextualidade, que no
sentido intertextual usual podemos entender como uma relação lincada (hiperligada
por link, isto é, vinculada a outros endereços em rede, para os quais o usuário é
remetido ao clicar). Como exemplo, temos a explicação ressaltada de um termo
primário que engendra um outro texto – ou, ainda, que remete a um outro texto co-
implicado, sem ordem hierarquizante, como no caso dos textos eletrônicos, em suas
remissões semicirculares e praticamente infinitas. Nos textos impressos comuns,
exemplos são as notas de rodapé e os boxes explicativos no texto jornalístico. Jean-
Marie Schaeffer (1989), no entanto, entende a composição hipertextual como uma
relação entre um agrupamento de textos numa classe que modula uma
especificidade genérica. Essa concepção parece assemelhar-se à mesma noção de
arquitexto de Genette. Entretanto, Schaeffer afirma ir mais longe:

Eu dou talvez a este adjetivo [hipertextual] um sentido mais amplo do que


Genette. Eu aceito como relação genérica hipertextual toda filiação plausível
que se possa estabelecer entre um ou vários conjuntos textuais anteriores
ou contemporâneos, sobre os quais, à fé de traços textuais ou de index
diversos, parece legítimo postular que eles funcionaram como modelos
162

genéricos quando da feitura do texto em questão, seja que ele os imite, que
deles se afaste, seja que os misture, que os inverta, etc.86

Ainda segundo o autor, na apreensão das marcas que caracterizam essa


relação e que definem o próprio reconhecimento da genericidade é preciso fazer a
diferença, nos textos, entre o índex, que permite o reconhecimento de um gênero, e
o traço textual, que modula uma característica genérica. Ele exemplifica observando
que diversos nomes de personagens estão ligados a gêneros específicos, como é o
caso de Ajax, nome heroico ligado à epopeia e à tragédia, mas não à comédia; e
Tityrus, nome ligado à poesia pastoral (éclogas). Eles devem ser considerados index
que permitem ao leitor identificar os gêneros dos textos onde aparecem, ou é
preciso ver neles um traço modulando uma característica genérica?
O autor dá algumas indicações: para ele, o índex é basicamente
paratextual (aparecem nos títulos, subtítulos, eventualmente etiquetas genéricas,
declaração de intenção) e mais amplamente no contexto autoral e literário, enquanto
que os traços são intratextuais. Por outro lado, a função dos índexes é metatextual e
seu estatuto é ostentatório, permitindo ao leitor situar o texto em relação ao seu
horizonte de expectativa genérica, enquanto que a função dos traços genéricos é
propriamente estrutural e seu estatuto é não ostentatório: “a relação entre índex e
traço assemelha-se àquela que existe entre a fachada de uma casa e os materiais
dos quais é construída: sabe-se que a fachada pode ser enganosa” 87.
No final das contas, principalmente na atualidade, a relação não parece
ser simples (no caso dos exemplos acima, o autor diz que quando os elementos são
paratextuais é mais fácil determinar, mas quando se coloca a questão a elementos
intratextuais, a decisão fica mais difícil, senão impossível). É preciso apostar na
situação de ocorrência, pois indicar uma relação não significa possibilidade de
determinar um gênero, mas certamente que aí se aponta uma tessitura de
remissões significativas relacionadas ao gênero.
Pensando nos modos e na intensidade dessa remissão alusiva, é bem
possível traçarmos um percurso que vai da intertextualidade mais forte à mais fraca,

86 Je donne peut-être à cette adjectif [hipertextuelle] un sens plus large que ne le fait Genette.
J'accepte comme relation générique hypertextuelle toute filiation plausible q'on peu établir entre et un
ou plusieurs ensembles textuelles anterieurs ou contemporains dont, sur la foi de traits textuelles ou
de d'index divers, il semble licite de postuler qu'ils ont fonctionné comme modèles générique lors de la
confection du texte em question, soi qu'il les imite, soit qu'il s'en écarte, soit qu'il les mélange, soit qu'il
les inverse, etc. (SCHAEFFER, 1989, p. 174)
87 La rapport entre index et traits ressemble à celui que qui existe entre la façade d'une maison et les
matériaux dont elle est construite: ont sait que la façade peut être trompeuse (op. cit.).
163

do mais claro ao mais sutil: a citação, o plágio/apropriação, a paródia e a paráfrase,


o pastiche e a “estilização”, o hipertexto, a glosa, a amplificação e a alteração
paronomástica, por exemplo, até a simples reminiscência como alusão stricto sensu;
como engastes, redirecionamentos escriturais, apropriações estruturais e
sintáticas/sintagmáticas, virtualidades semânticas, jogos de recordações
associativas etc. – procedimentos esses que não são objeto explicativo desta tese,
que apenas discute o fenômeno intertextual como componente perceptível da forma
do poema.
Para além destas relações e retomadas entre os textos, podemos pensar
na própria questão das formas migrantes, a migração das formas culturais, que
transitam pelos textos como transculturação, multiculturalismo e hibridação, inclusive
no que diz respeito aos temas e motivos. A recriação de imaginários, a circulação e
migração dos motivos míticos e simbólicos, por exemplo; o motivo do noivo ou da
“noiva-animal” é retomado, reapropriado e lido por épocas e visões diferentes; o
“caminho” pode ter como fundamento o imaginário do ritual de passagem, a
formação, a transformação, mas também a remissão a marcos da literatura, tal como
Dante; a relação Quixote e novelas de cavalaria, por exemplo, não se reduz a
simples referências textuais, mas ao contraste entre visões de mundos constituídas;
os sistemas culturais postos em xeque pelo Ulisses de Joyce… Um tema sob
determinado enquadramento pode ser recorrente numa época, imbricando-se a um
certo tipo de forma, de tal modo que possa ser sentido como passível de uma
“remissão alusiva”, a exemplo do ciúme e da loucura associado ao romance e ao
conto machadianos, ou do “o anjo torto”, por exemplo, que remete a uma
apropriação do gauchismo poético.
Parece pertinente dizer que os processos de intertextualidade são mais
patentes a partir da poesia moderna. Em seu Ilusões da Modernidade, Barbosa
(1986, p. 15) afirma que “o tempo do poema é marcado, agora, pelo grau de seu
componente intertextual”, no que reafirma também os movimentos internos de
passagem de um poema para o outro, as interseções culturais e a consciência de
uma linguagem que se faz entre relações e não simplesmente por um ato de
vontade puramente pessoal ou “erudito”:

Consciência e história são vinculados pelo mesmo processo de


intertextualidade: o novo enigma é a resolução transitória de numerosos
enigmas anteriores. Para o poeta moderno, a consciência histórica, sendo
164

basicamente social e de classe, é também de cultura” (BARBOSA, 1986, p.


15).

Tais processos, enfim, são colocados pelos teóricos da


contemporaneidade como intrínsecos às produções do momento e da poesia
presente. Foi, aliás, propalado como uma das “marcas” do pós-modernismo, como
um fenômeno de amplitude epocal do qual ninguém estava ou está infenso, as
trocas sígnicas, as trocas simbólicas, os palimpsestos 88, a implosão e
desmistificação das formas, as redes tecidas de linguagens e de códigos,
potencializados pelos media, pela cultura de massa, pela mundialização das culturas
e pelo mercado de sign(ificantes) em diversos níveis.
Obviamente cada caso precisa ser checado empiricamente e verificado,
em seus modos de relações, remissões, transposição, uma vez que, sabemos, estes
não são processos de ocorrência atual: a história da literatura mostra que, desde o
modelo épico e sua imitação, a literatura é uma rede de remissões que amplia a si
mesma.

2.1.4 Vínculos coletivos: sociedade, ideologias, ideoformas, ideomíticas

É sempre possível perguntar se a forma poética, como qualquer forma


artística em si, comportaria traços ideológicos, ou se tal instância diria respeito
apenas à abordagem da obra, sua matéria experiencial e temática. A questão na
verdade é parte de outra bem maior, pois se estende à relação entre literatura e a
coletividade, e se complexifica em relação ao poema, na pergunta de como as
formas poéticas podem trazer à tona diferentes concepções e discursos ideológicos
(ou contrapor-se a elas).
Nenhuma forma está isenta, desagregada das ideias, "sistemas de
significações" (RICOEUR, 2008, p. 77) e imaginários que circulam em sociedade,
como se pertencente a uma transcendência, uma "para além" ou um "para aquém
de", a não ser numa posição de diferença e divergência de outras "representações
de si" igualmente circulantes.
Agora, no que diz respeito ao poder às faces concentradas ou
disseminadas do poder, de que lado está a poesia e o que pode ela fazer contra a
88
Palimpsestos como reescritura sobre o mesmo material, em que a escritura primeira foi raspada e
só restam camadas de texto sobre textos antigos, o que ocorre figurativamente com o processo da
reescrita (intertextualidade textos gerando novos textos), e da linguagem metapoética.
165

tirania e a violência? A quem pertence esse poder e quais os mecanismos e


estratégias de sua manutenção através da naturalização, da dissimulação e do
mascaramento, próprios do conceito de ideologia, assim como, obviamente, as
manifestações de contrapoder, da poesia como reflexão, insatisfação, revolta e
enfrentamento? A poesia deve alijar-se das questões sociais se deseja sobreviver?
Sua saída, quem sabe seu caráter primordial não seria justamente a elisão do tempo
e o sopro do vazio na exaltação da linguagem (MAULPOIX), a autorreferência, a
"inutilidade" como recusa da sociedade utilitária, no seio da qual os objetos existem
como alavancas, mecanismos ferramentas, com seus respectivos desempenhos? O
engajamento histórico seria a corda do seu suicídio enquanto arte - enquanto
permanência e eternidade -, até que ponto ela deve envolver-se com a ética e a
política e ainda continuar sendo arte, poesia?
T.S. Eliot, poeta-crítico de grande influência na poesia moderna, e
expoente do New Criticism, mesmo voltado para a elucidação dos valores formais da
poesia, com a autonomia desta em relação ao contexto espaçotemporal, à biografia
com as emoções pessoais do autor, evidenciando a importância dos materiais
utilizados e das relações entre suas partes, defende uma função da poesia, e, com
ela, de seus princípios formais. Coloca a problemática nos seguintes termos:

As pessoas, às vezes, desconfiam de toda poesia que tenha uma


determinada finalidade: poesia na qual o poeta esteja defendendo pontos de
vista sociais, morais, políticos ou religiosos [...]; assim como outras
consideram algo como verdadeira poesia se expressam uma opinião com a
qual estejam de acordo. Devo dizer que o fato de o poeta estar usando sua
poesia para defender ou atacar uma atitude social não tem importância. A
má poesia pode ter um momento de sucesso se o poeta está refletindo uma
atitude popular do momento; mas a verdadeira poesia sobrevive não só a
uma mudança de opinião popular, como à total extinção do interesse nos
assuntos que tão profundamente agradaram ao poeta. (ELIOT, 1972, p.31).

Eliot, no entanto, não dispõe seu texto à exclusão do social, no sentido de


que a poesia, com sua linguagem, seus ritmos, seus sons, é expressa no idioma de
uma nação, na personalidade de um povo que a fala, língua à qual amplia e cujos
sentimentos explora, enriquece e reformula. Marca, inclusive, suas diferenças,
modos e comportamentos em relação a outras línguas, idiomas de outros povos, tal
que aí também se inserem os problemas da tradução. O poeta-crítico reconhece,
apesar da complexidade da estrutura cultural de toda sociedade, uma ligação desse
caráter poético formal com a linguagem da comunidade e com a sensibilidade social
da qual ela emerge, sem que necessariamente comunidades e sociedades estejam
166

isoladas umas das outras, sendo a poesia justamente um dos modos de sua
interpenetração e de seu conhecimento mútuo.
O problema da relação entre poesia e sociedade remonta à concepção
sobre a literatura como produto social e expressão da civilização em que ocorre,
desde Madame de Staël, no século XIX, ao determinismo de Hippolyte Taine
(CANDIDO, 1967), e mesmo às formulações sobre a História como manifestação da
Ideia, em Hegel. O grande marco, porém, de tratamento do assunto mais próximo de
nós foi, sem dúvida, os estudos ligados ao materialismo dialético de cunho
sociológico das correntes marxistas dos anos 1960, 1970, que viram também na
forma artística a expressão das estruturas e das lutas de classes, centralizadas pela
burguesia, de um lado (a arte “de direita” ou alienada), e, de outro, pelo operariado
ou classes oprimidas (a arte “de esquerda” ou engajada): mundo bipolar, arte,
literatura e obras bipolares.
Uma das mais fortes expressões de estudos na linha do materialismo
dialético foi Georg Lukács, com o seu A teoria do romance: um ensaio histórico-
filosófico sobre as formas da grande épica, de 1965, para quem a épica seria o
ensejo de cantar vitórias e organizar totalidades (do pensamento ingênuo), de ser o
“grito poético” a redimir a derrota comunitária 89, enquanto o romance, que substitui o
canto narrativo épico, representa a narrativa burguesa por essência, tratando de um
herói esgarçado, individual, em meio a uma realidade hostil e esfacelada. Já a forma
lírica, por sua vez − que interessa a este trabalho −, realmente pouco tratada no
livro, reivindica sua importância e privilégio no que diz respeito à constituição de um
“lugar” de encontro entre a voz do eu e a voz do mundo, subjetividade e
objetividade, marcada pela vivência do poeta transfigurada na e pela poiesis.
Esse pensamento nascido em Luckács encontra eco na Palestra sobre
Lírica e Sociedade (2003), ensaio famoso do frankfurtiano Theodor Adorno, para
quem a referencia ao social revela na obra lírica algo de essencial, do fundamento
de sua própria qualidade. Para ele, o teor de um poema não é a mera expressão de

89
No contexto do pós-colonialismo americano, o intelectual Edouard Glissant evoca essa proposta de
Luckács. Para Glissant, as comunidades modelam um “grito poético cuja função é reunir a morada, o
lugar e a natureza da comunidade [...], [sendo o épico] aquilo que é gritado quando a comunidade,
que ainda não está segura de sua identidade, necessita tradicionalmente desse grito para afirmar-se
face a uma ameaça” (GLISSANT, 2005, p. 44, grifo meu). Embora tais concepções (de Luckács a
Glissant) estejam aparentemente distantes do tema aqui tratado – poesia contemporânea –, ou
apenas "transversalmente" lhe diga respeito, é inegável uma relação entre o "grito poético
comunitário" e a "co-narratividade poética", aqui proposta e trabalhada em diversas partes deste
trabalho.
167

emoções e experiências individuais, pois, ao ganhar forma estética, ganham


também participação no universal. Este vago e abrangente sentido do universal,
porém, ganha sua concretude no teor do social.
Fato é que Adorno considera ser próprio do lírico uma individuação, mas
que é justamente na densidade dessa individuação que está sua capacidade de criar
vínculos universais, e sua universalidade é essencialmente social, mergulhada
nessa sociedade que é, por sua vez, individualista:

Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da
humanidade; mais ainda, a própria solidão da palavra lírica é pré-traçada
pela sociedade individualista e, em última análise, atomística, assim como,
inversamente sua capacidade de criar vínculos universais (allgemeine
Verbindlichkeit [vínculos comuns]) vive da densidade de sua individuação
(ADORNO, 2003, p. 67).

Ou seja, o indivíduo (embora fraturado, inclusive da natureza), não vive


isolado da sociedade, reverberada na sua linguagem, sensibilidade e formação
cultural, produção de estilos e costumes. Mas, na obra de arte, à pergunta pela
sociedade deve-se acrescentar em que essa obra de arte lhe obedece e lhe
ultrapassa, já que, mesmo tomada como um todo, a sociedade é essencialmente
contraditória. A pergunta pelo social, é, aliás, para Adorno, uma pergunta a ser feita
a qualquer configuração linguística, na qual a lírica também repousa sua dupla face
e ganha voz universal:

Através das suas configurações, a própria linguagem se molda inteiramente


aos impulsos subjetivos; um pouco mais e se poderia chegar a pensar que
somente ela os faz amadurecer. Mas ela continua sendo, por outro lado, o
meio dos conceitos algo que estabelece uma inelutável referência ao
universal e à sociedade. As mais altas composições líricas são, por isso,
aquelas nas quais o sujeito, sem qualquer resíduo de mera matéria, soa na
linguagem, até que a própria linguagem ganha voz (ADORNO, 2003, p. 74).

Adorno também, à semelhança de Eliot, não lança à linguagem "pura"


todo o sentido do social, a qual, por isso, contraditoriamente, despojar-se-ia de sua
historicidade. Nesta lírica, o próprio sujeito poético ganha foro universal em sua
relação com a comunidade, daí a necessidade de sua localização entre a linguagem,
a universalidade na qual se estabelece e os processos formais que exigem
interpretação. Deste modo, segundo ele, no poema o sujeito poético sempre
representa um sujeito coletivo muito mais universal, e mantém, com a realidade
168

social uma relação não destituída de contradições. Neste processo, ele acrescenta
(2003, p. 78) que "os elementos materiais, dos quais nenhuma composição de
linguagem, nem mesmo a poésie pure, é capaz de despojar-se inteiramente,
precisarão de interpretação quanto os assim chamados elementos formais".
Evocando um exemplo de como as próprias formas tradicionais líricas (e
não somente as macroformas literárias) estão vinculadas às questões sociais e às
comunidades de fala, podemos nos lembrar os casos da redondilha e do
decassílabo, dois modos paradigmáticos de divisão do verso em expressões
poéticas correntes. Sabemos que a redondilha evoca tanto expressões medievais da
poesia cortês e palaciana quanto uma poesia de expressão popular, com base numa
cultura oral que se mistura à literatura do cordel sertanejo. E que, mesmo numa
complexa (histórica) reverberação do caráter cortês, no Brasil a redondilha se coloca
muito mais do lado dessa poesia da oralidade, das cantigas populares, do cordel.
Então ela se torna fala também da gente simples, que pode ser retomada, como tal,
por uma literatura "erudita" cuja “proposta seja trazer à tona essa voz, essa vibração
popular, inclusive como "contracultura", como discurso crítico, contraideologia a uma
cultura letrada, literata. O decassílabo, por sua vez, não está dissociado dos versos
clássicos, do eruditismo técnico do soneto e da poesia que se separa das canções,
da oralidade e dos extratos não acadêmicos.
O mesmo caso se daria nos discursos das escolhas formais relativas às
mais diversas tendências, tais como as formas relacionadas à arte romântica em
contraste com aquelas relacionadas à arte clássica, ou, na América Latina, a forma
barroca que foi apropriada por muitos autores como pulsão criadora representante
do "espírito latino-americano", tomado como um ethos latino-americano; ou ainda, no
Brasil, a proposta antropofágica sobre as "formas europeias" como formulação para
arte/poesia brasílica.
Não obstante estas observações, sabemos que a questão se coloca
permanentemente devido tanto às escolhas que o escritor precisa fazer quanto a
uma "não inocência" do artista, quando ele sabe que mesmo o fragmento e o acaso,
quando cooptados no poema, apontam para uma interpretação possível. Quanto aos
lugares sorrateiros do ideológico e do contraideológico, para a necessidade de
liberar as relações entre literatura e ideologia dominante do mero causalismo,
podemos entender, com Bosi (2013, p. 248), que
169

O que se pode ainda sustentar razoavelmente é que literatura e ideologia se


tangenciam enquanto ambas pressupõem o mesmo vasto campo da
experiência intersubjetiva. Mas os seus modos de conceber e de formalizar
essa experiência são diversos, quando não opostos. […] A ideologia reduz,
uniformiza os segmentos que reduziu, generaliza, oculta as diferenças,
preenche as lacunas, as pausas, os momentos descontínuos ou
contraditórios da subjetividade. A Literatura dissemina. A ideologia fixa cada
signo e cada ideia em “seu devido lugar”, fechando, sempre que pode, o
universo do sentido.

Essas colocações propõem a necessidade de uma consciência do poeta


ante a escolha das formas e o enfoque [formal] de sua escrita, além de uma
interrogação sobre um lugar em que se coloca (a torre de marfim, o ruído histórico,
"o partido das coisas", o mercado...) e uma reflexão sobre as possíveis condições
éticas e políticas da obra e seu lugar social de produção, que podem ser − e em
geral o são − contraditórias à intimidade e ao impulso da criação.
O vínculo entre uma forma/uma linguagem literária e/ou poética e uma
coletividade, uma comunidade também ultrapassa a mera relação lógica, para
estabelecerem relações que estão entre o lógico e o simbólico, entre a objetividade
e as sedimentações da imaginação e da afetividade coletiva (das quais a
coletividade tem clareza imediata ou não), que podemos tratar como ideoformas:
formas culturais típicas e arquetípicas (do imaginário coletivo profundo), formas
simbólicas, memoriais etc., às quais eventualmente se revelam ou são mobilizadas
na lírica. São muito conhecidos os casos, por exemplo, das reminiscências e
apropriações de uma raiz de co-narratividade africana na poesia contemporânea que
retomam as canções antigas, o tam-tam como ritmo paradigmático e arquetípico.
Neste caso, já não estaríamos falando de ideologias, mas de vínculos coletivos (que
estou chamando de co-narratividades) em forma de "ideoimagens", de dominantes
arquétípicas, ideomíticas.
Enfim, podemos pensar que, como linguagem, a primeira articulação da
forma é a de uma expressão dentro de vínculos coletivos e horizontes sociais
perspectivados, atualizados, sentidos e apropriados pela individualidade criativa, em
termos de algo que se apresenta como formulação única, como uma singularidade
que deve levar em conta a alteridade. Assim também suas próprias relações com o
objeto poético, a dinâmica, a afetividades e vivências do mundo convocado no
pacto.
170

2.2 EXPERIÊNCIA & POESIA

"Navegar é preciso; viver não é preciso", a "frase gloriosa" retomada dos


antigos navegadores, ressignificada em verso por Fernando Pessoa como "pôr na
criação a essência anímica do seu sangue" − dar a vida pela criação − tanto
expressa bem o significado fundamental da experiência quanto coloca em cena a
problemática da experiência.
Experiência é a jornada empírica pelo mundo, suas condições e sua
diversidade multiforme: a travessia e o engajamento efetivo no âmago da vida, nas
relações, interações, práticas e sentidos compartilháveis, nas preocupações que o
sujeito estabelece no espaçotempo em que vive90 e sua historicidade − daí Wilhelm
Dilthey (1949) falar de uma "experiência vivida", cujo horizonte é uma "unidade de
vida", um todo91. É o trânsito cotidiano da vida, mas, somente se estabelece com
esta uma relação significativa, um significado participante e efetivo, ante a constante
possibilidade da indiferença, da exterioridade do vazio e da morte, de simplesmente
passar pela vida e não mergulhar nela, não a sofrer, uma vez que experiência é
imersão. Essa talvez seja a principal diferença entre uma vivência apenas como
presenciamento, e a experiência vivida, levando em conta que podemos aceitar dois
entendimentos da palavra vivência. Esta pode estar carregada de um significado
condensador e intensificador, de caráter permanente e associado a uma totalidade
de sentido (é nesta acepção que falamos também de "espaço de vivências" e
vivências do espaço), como uma relação intencional: "só há vivências na medida em
que se vivencia ou se tem em mente alguma coisa nelas" (GADAMER, 2011, p. 112)
e assim adquirir o sentido da experiência:

O que vale como vivência destaca-se tanto de outras vivências, nas quais
se vivencia algo diferente, como do restante do decurso da vida, onde não
se vivencia "nada". O que vale como vivência não é mais algo que flui e se
esvai na torrente da vida da consciência, mas é visto como unidade, e com
isso ganha uma nova maneira de ser do uno. Nesse sentido, é natural que a
palavra surja na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do
uso autobiográfico. O que se pode chamar de vivência constitui-se na
recordação. Com isso, temos em mente o conteúdo semântico de uma
experiência. (GADAMER, 2011, p 112, grifos meus).

90
"El reino de las personas, o la sociedad humana y la historia, es la más alta manifestación entre las
manifestaciones del mundo empírico" (DILTHEY, 1949, p. 24).
91
Cf. também SCHIMIDT, 2012, p. 62-65.
171

Já a vivência no sentido genérico do "comparecimento à vida", à situação,


ao momento, como presença que nem afeta nem é profundamente afetada, é um
passar ou "estar à margem do rio" (presenciamento), de modo contemplativo ou
indiferente ao seu acontecer histórico: não pode ser marcada como experiência, mas
como alienação − ou, no mínimo, como uma vivência inexpressiva e sem fatura, sem
compra de questão para si, que poderíamos chamar de vivência indébita. A
experiência na vida humana pressupõe ser sempre significativa, deixar marcas.
Podemos dizer, então, que as relações experienciais, como o acontecer singular e
específico do sujeito92 (indivíduo, grupo, comunidade), se dão dentro das vivências,
que podem abarcar uma ou várias experiências. E neste, sentido, ao marinheiro
antigo seria mais importante navegar (estar no enfrentamento, no engajamento da
vida), que viver (passar incólume pela vida, este mar grande e imprevisível, sempre
recomeçado).
Sobre o significado de experiência, Rodriguez (2003) recorre à etimologia
do termo, a qual, conforme ele, irmana essa palavra, de origem latina (experientia)
com a palavra empiria (empeiria), de origem grega, ambas ligadas pela raiz "per",
que tem o sentido de "passar através de", "cruzar", "atravessar". Assim, experiência,
traz a dimensão de um movimento, de um "ir adiante", na frente, entrar, penetrar
em/"dentro de", na travessia de uma espessura (densidade) do real que se
desenvolve pela descoberta dos limiares (Πέρας, péras, extremos) do possível, num
movimento coerente: "a experientia latina organiza o encontro do real a partir de um
sujeito percebedor que se confronta com aquilo que lhe faz face [por atravessar as
espessuras do mundo], enquanto que empeiria grega consiste num movimento de
integração da caminhada na presença"93.
Rodriguez invoca um outro termo o qual, segundo ele, conjuga-se ao
"per"no pacto lírico: o "pres", de expressão. No pacto lírico a experiência é expressa:
"os dois polos, do per- e pres- se conjugam na busca das determinações, dos
possíveis da existência − um atravessando a espessura do mundo, o outro, a

92
Aqui não estou pensando num sujeito de determinação racionalista, uno, totalitário, mas como o
agente ou paciente ao qual podemos nos referir, independente de suas características particulares.
93
"L'experientia latine organise la rencontre du réel à partir d'un sujet percevant qui se confronte à ce
qui lui fait face. Alors que l'empeiria grecque consiste en um mouvement d'integration du
cheminement dans la presense" (RODRIGUEZ, 2003, p. 117).
172

espessura da linguagem. Eles formam um nó, em que cada polo remete a si mesmo
e simultaneamente ao outro"94.
A esse respeito, é fato que a experiência parece ter uma necessidade de
expressão, ela quer ser lembrada, recuperada, constrói-se como memória e abre
lugar para o testemunho de si, pulsante ou gritante na voz do poeta - expressão
manifestante sentida como destino ou fatalidade pessoal. Estamos, assim, a um
passo da concepção de experiência de Walter Benjamin (1994) − uma experiência
essencialmente transmitida pela tradição oral − a qual, segundo ele, vincula os
indivíduos da comunidade, e, tornada experiência para a coletividade, é transmitida
pelas gerações das comunidades de modo benevolente ou ameaçador, "com a
autoridade da velhice, em [forma de] provérbios; de forma prolixa, com a sua
loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos
diante da lareira, contada a pais e netos" (BENJAMIN, 1994, p. 114). Se a narrativa
da tradição coletiva se perde, entretanto, como afirma o autor de Experiência e
Pobreza, resta ao poeta reverberar em sua voz essa experiência coletiva, por vezes
como testemunha de uma aldeia perdida.
Por outro lado, se a experiência promove um movimento de apreensão,
de organização de percepções pelo sujeito que enfrenta, apreende, compreende e
organiza o mundo na caminhada (nas circunstâncias do momento histórico, de uma
existencialidade), evidentemente que é com e através da linguagem que organiza
esses sentidos.
Embora seja uma questão tratada mais adiante, é relevante trazer aqui, a
título de ampliar a compreensão do que foi dito, a concepção do "espaço de
experiência", conforme Reinhart Koselleck (2006). Discutindo o "espaço de
experiência" em contraponto com o "horizonte de expectativas", esse filósofo-
historiador aborda as duas categorias como categorias históricas, embora as
reconheça como categorias formais. Neste aspecto, diz ele, "trata-se de categorias
do conhecimento capazes de fundamentar a possibilidade de uma história. Em
outras palavras, todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e
pelas expectativas das pessoas que atuam ou sofrem." (KOSELLECK, 2006, 306,

94
"Les deux pôles du per- et du pres- se conjuguent dans la recherche des déterminations, des
possibles de l'éxistence − l'un traversant l'épaisseur du monde, l'autre l'épaisseur du langage. Ils
forment un noeud, où chaque pôle renvoie à lui-même et simultanément à l'autre.
173

grifos meus), trata-se, portanto, de categorias formais que "falam de condição de


possibilidade histórica".
Voltando às questões do entrelaçamento do sujeito com suas vivências e
experiências, da circunstância contextual, no atravessamento dos sentidos do tempo
e do espaço, o que fundamenta uma "diegese", uma narração, também descerra
uma dimensão patêmica da existência, típica da liricidade: suas disposições afetivas
e patológicas, seus desejos, seus conflitos, limites, ímpetos e fraquezas. Desperta
um pathei mathos, um conhecimento pela experiência, pela prova e pela provação:
base para instauração de um sentido da vida, como das vias que ela estabelece, de
modo dinâmico e imprevisível: encontro significativo com o mundo e com a
alteridade que ele produz por meio da travessia, a qual proporciona uma colheita,
cultura (marca, cicatriz, expertise, gozo, expressão, coragem para novos
enfrentamentos...), o que significa que esse atravessamento não é unilateral.
Aqui seria importante diferenciar essa noção de um outro sentido da
experiência: aquele do conhecimento científico, conforme compreendido pelas
ciências da natureza: o isolamento de um objeto e sua submissão a uma prova, para
teste de uma hipótese, visando a uma resposta positiva ou negativa. Este ato
constitui-se, então, por um método, num experimento, num "fazer passar
por/"per"/"através de" uma prova e esperar um resultado x ou y − ou, quem sabe, z,
dando uma chance ao inesperado. Digamos que o objeto deve sofrer, deste modo, a
ação orientada de prova, e tem que dar uma resposta à inquirição.
Se pensarmos metaforicamente num caráter de sofrimento participativo
do objeto - isto é, do não passar indiferente - e da sua "passagem pela provação",
parece que teríamos o mesmo princípio relativo à experiência científica,
acrescentando a esta um traço de subjetividade, e a experiência, existencial
humana, "experiência vivida". A diferença, contudo, é que, neste caso, trata-se de
um ser (humano) diante da vida em toda a sua incomensurável complexidade e
imprevisibilidade, o que impossibilita uma analogia profunda com o experimento
objetivo, metodológico, e permitindo somente a permanência de alguns traços
semânticos do termo.
Fato é que a ciência e a respectiva experiência científica, em sua lógica
da descoberta e da indução, é também parte da própria experiência do homem em
sua relação com o mundo, com a natureza, consigo mesmo e com a amplitude de
sua sobrevivência, conforme aponta Dilthey (1949, p. 5): "toda ciência é ciência da
174

experiência, porém toda experiência encontra seu nexo original e a validez que este
lhe presta nas condições de nossa consciência, dentro da qual se apresenta: na
totalidade de nossa natureza". Sobre essa relação, Gadamer (2011, p. 454), reflete
que a falta de uma teoria da experiência, mesmo em Dilthey, "faz com que essa
noção se oriente totalmente na direção da ciência, passando ao largo assim de sua
historicidade interna. O objetivo da ciência é tornar a experiência tão objetiva
[através de um aparato metodológico], a ponto de anular nela qualquer elemento
histórico", em busca da sua possibilidade de repetição e de autoconfirmação.
Gadamer lembra também que Husserl buscou esclarecer esse alijamento
da própria experiência em relação à história, em seu anseio de fundamento de
verdade sobre a própria coisa − essa idealização das ciências − através do
desenvolvimento de uma genealogia da experiência, tentando retroceder à origem
desta pela gênese do seu sentido. No entanto, para o autor de Verdade e Método, a
dificuldade será determinar até que ponto é possível um emprego puro da nossa
razão, procedendo segundo princípios metodológicos e acima de qualquer
preconceito (juízo-prévio) ou atitude pré-concebida. Ou seja: o fato de que em toda
aquisição de experiência já está coimplicada a própria idealização da linguagem.
Nesta aquisição, não está dada uma pura subjetividade transcendental do ego como
tal, pois nela já está atuante a pertença do eu individual a uma comunidade de
linguagem (GADAMER, 2011, p. 455). Importante, neste caso, é percebermos que a
experiência, enquanto coimplicação ambidestra (do lugar histórico e da "comunidade
de linguagem"), anula sua transcendência absoluta das circunstâncias, que são
marcadas inclusive por silêncio e contraste, uma questão fundamental a ser trazida
para interrogação da lírica objetiva "suspensiva".
Uma experiência traz o caráter da repetição e do isolamento, e o fato de
que pode anular, "corrigir" uma outra acrescentar-se a ela, em suma:

o fato de que uma experiência seja válida enquanto não é contradita por
uma outra experiência (ubi non reperitur instantia contraditoria) caracteriza
evidentemente a essência geral da experiência,independentemente de que
se trate de sua produção científica no sentido moderno ou da experiência da
vida cotidiana tal como vem se realizando desde sempre (GADAMER, 2011,
p. 458).

Esse caráter respalda dois pontos importantes tanto para a compreensão


da própria experiência, quanto para o seu tratamento dentro do texto lírico. Primeiro,
o fato de que as experiências podem ser tratadas como "unidades de presença" num
175

espaçotemporalidade, como unidade de um fluxo, com significado definível, partes


interconectadas umas com as outras, conforme Schmidt (2014, p. 61) encontra em
Dilthey, e que podem ser "reexperimentadas na compreensão". As experiências,
assim, em sua multiplicidade e diversificação, em suas "imagens" (e.g nuvens
supercarregadas − "a chegada de uma tempestade") integram-se e se inserem no
todo de outras experiências mais amplas ou na experiência maior, a vida no âmbito
do seu acontecer:

Unidades maiores de significado na vida também são chamadas de


experiência vivida, mesmo se as partes são separadas por outros eventos.
Por exemplo, a unidade de minhas muitas experiências do meu lar é
conectada a um todo de significado que constitui minha experiência vivida
do meu lar. 'O curso de uma vida consiste de partes, de experiências vividas
que são conectadas internamente umas às outras' (SCHIMIDT, 2014, p. 62;
DILTHEY citado por SCHIMIDT)

O caráter de "unidade de significação" assumido pelas múltiplas


experiências leva a um segundo ponto importante para sua manifestação no texto
lírico: podemos entender que sua presença distinta e repetível leva, certamente, à
constituição de formas experienciais migrantes que, para ultrapassar a tipificação (a
"galvanização", no dizer de Benjamin) e constituir-se como verdadeira experiência é
preciso que sejam restabelecidas dialeticamente como ocorrência particular. A título
de exemplo: a experiência do trauma, ou da diáspora judaica torna-se experiência
emblemática da memória e do diaspórico, extensiva não somente a outras
comunidades, mas também a situação de indivíduos isolados, cujo sofrer do
desgarramento evoca uma outra experiência à qual se atribui um significado
evocativo, reverberante de outras experiências - e assim, ela não se cristaliza,
universaliza-se como experiência emblemática ou referencial.
O que podemos entender como uma "forma experiencial migrante",
tipificadas dentro de uma cultura, manifesta-se também por meio dos temas, mitos e
motivos95 (que muitas vezes se torna um mito pessoal), nas reiterações

95
Num texto, o tema é estruturante, o motivo − mais restrito que o tema, porém, talvez, mais
dinâmico, iterativo − aponta para situações, topos ou tópico mobilizador, enquanto o mito diz respeito
a um elemento fundador, pertencente ao imaginário profundo coletivo (traços apolíneos/dionisíacos),
literário (Fausto; o Duplo ) ou da escritura pessoal (o Cisne, em Mallarmé; a Serpente, em Valéry).
"Deverá chamar-se tema a tudo aquilo que é elemento constitutivo e estruturante do texto literário,
elemento que ordena, gera e permite produzir o texto. [...] Em contrapartida, o motivo é um elemento
a que seríamos tentados a chamar de acidental, decorativo, se isso não fosse uma visão
relativamente simplista [...]: não há acaso num texto literário; não há simplesmente um décor
(acessório) e uma história (essencial). Preferimos, portanto conferir [ao motivo] tudo aquilo que não
176

representativas, nos esquemas do imaginário comunitário ou coletivo (experiências


da ascensão e da queda, da jornada, da maturidade) e mesmo em determinados
personagens que ganham expressão experiencial típica universal (Ulisses, D.
Quixote, Capitu, Don Juan), de modo que recorrer à sua imagem, ao imaginário que
o rodeia, é recorrer a uma determinada experiência. E não se trata apenas de
"personagens", mas também de elementos que se tornam forças simbólicas às quais
o lírico pode recorrer: a árvore, a sombra, o azul, a escada, a criança, a mãe, o
sênior. Esses elementos de uma experiência típica, essas vozes e imagens só
apresentam seu estatuto experiencial (e não apenas "já-formal") num sentido
contextual e diferenciado, quando não se trata de uma simples repetição em busca
de autoconfirmação, de uma demonstração, a defesa de uma tese, como na ciência
− embora a literatura já o tenha praticado, na ânsia de aproximar-se desta −, mas
justamente na busca do imprevisível e do inusitado numa situação específica, dentro
de um lugar histórico, na proposta da vida e das vivências.
Daí, vemos que o limite entre o experiencial e o formal é extremamente
tênue, ocorrendo simultaneamente. Podemos dizer que esses elementos
experienciais típicos também podem apresentar aspectos formais por estarem no
território ambíguo em que não remetem apenas a significados e referências sociais,
culturais, históricos e a dinâmicas próprias da vida, mas são também significantes
mobilizados para a intensidade do dizer, da remissão/autorremissão e da tessitura
poético-literária, enquanto situada no espaço potencial da linguagem e do dizer.
Na realização do texto literário, vemos, pois, que tais elementos
remissivos a experiências gerais, universalizadas, servem de bases evocativas para
a atualização, para a mise en texte de outras experiências particulares, do tempo e
do espaço presentes na paisagem poética. Deste modo, umas entrelaçam-se às
outras na configuração da obra (do que é perspectivado em torno de uma unidade
de sentido ou então da destruição de um sentido imediato, pela "costura" de partes
autônomas ou semiautônomas, proposta da arte fragmentária), entre o que é
particular e sua comunicação poética, em termos de uma relação profunda e coesa
com a universalidade.

intervém no plano das estruturas, dos princípios organizadores do texto (MACHADO; PAGEAUX,
2001, p. 90-91)
177

2.2.1 Experiência, experimentalismo, transgressão e invenção

Da experiência como "teste", como verificação de limites e possibilidades


de novas estéticas, numa atitude de cunho intuitivo, inventivo e radicalizante, deriva,
na arte, na literatura, na poesia, os termos "experimental" e "experimentalismo", tão
utilizados na poesia recente de reverberação "vanguardista".
A poesia experimental evoca o cenário e a imagem das vanguardas - das
vanguardas europeias às vanguardas dos anos pós-1950: pop art, concretismo,
neoconcretismo, tropicalismo, street art. Neste caráter, enfatiza um abandono das
tradições artísticas, a visão do clássico como estagnação, arte fossilizada, e, a seu
modo, rechaça a concepção − também radical − da autonomia da obra de arte em
relação à vida, que resultaria numa "suspensão" da historicidade vital, da
espaçotemporalidade factual, como acontecimento autorregulado que valida a si
mesmo.
Ou seja, como pretensão de vanguarda, a poesia experimental está
associada à práxis vital (da experiência), ao prosaísmo e ao aleatório da vida
(improviso, imprevisibilidade, multiplicidade, assimetria, hibridismo), ao engajamento
histórico, aos metadiscursos irônicos, à contestação político-cultural, à voz do corpo
e das ruas, aos movimentos sociais reivindicatórios e comportamentais, às formas
do instante e aos riscos de viver seu próprio hoje - o risco experimental.
Como arte fundada no risco experimental, esta poesia insatisfeita
reivindica para si uma condição de ruptura com o status quoI, adquirindo a feição de
"contracultura" - isto é, contra a cultura dominante e ideologicamente estabelecida -
"arte de protesto", portanto de certa "marginalidade" em relação aos horizontes da
recepção em vigor.
A própria noção de experimental já admite em si também uma função de
autoteste e de teste do olhar do outro, em geral medido pela reação ou pelo impacto
que causa, enquanto abertura ou fechamento, aceitação ou repúdio - sendo este
tratado em geral, intimamente, como valor de efeito, de ação, incorporado a esta
arte, sendo tanto menos intimamente valorizada quanto menor o impacto, o
estranhamento, a distopia que produz: uma característica típica do experimento que,
ao final, pode ser determinante para seu esvaziamento. Isto é: no esvaziamento de
si, enquanto vanguarda e na sua própria formalização (tradicionalização).
178

Em relação a esse aspecto, Steve Connor (1992) explica que ao longo do


século xx, cenário por excelência das vanguardas, essa arte da inovação e da
experimentação − não se trata apenas da poesia, mas ela conjuntamente − foi
sendo incorporada e até canonizada pelas instituições culturais, pelos meios
intelectuais e universitários. Assim, acabou por institucionalizar-se enquanto
modernismo, assumindo, num quadro pós-modernista, uma esfera de livre
expectativa, colocando em cheque o antigo caráter de "contracultura", rebeldia
"underground", "marginalidade", reconhecidos agora como índices de prestígio.
Peter Bürger (2008, p. 172), por sua vez, em Teoria da vanguarda,
reconhece um fracasso das vanguardas em destruir − como era seu intento − a
instituição arte (tradicional, "burguesa", "aristocrática"), mas destruíram a
possibilidade do surgimento de uma tendência artística com pretensão de validade
geral: "o significado da cesura que os movimentos históricos de vanguarda
provocaram na história da arte consiste, na verdade, não na destruição da instituição
arte, mas, sim, na destruição da possibilidade de atribuir validade a normas
estéticas".
A poesia dita experimental procura, aos poucos, livrar-se da carga
semântica do termo, isto é, do que seja considerado como experimentalismo − o
qual assume, não raro, um caráter de tipificação ou autojustificação, o chamado
"experimentalismo gratuito" − e investe no caráter do inusitado, da transgressão
vanguardeira e na terminologia da inventividade, ao apresentar-se como “lírica de
transgressão”, “lírica de invenção”, “poesia de invenção”. Certamente, que, ao
reivindicar para si o título, acaba por colocar em xeque o próprio significado de
"invenção", dado que na tradição, não poucos poetas são também dados como
"poetas inventores". Essa poesia sempre colocará em cheque – com suas investidas
e rupturas com o convencional – não somente seu próprio sentido, quanto o próprio
sentido do que seja arte literária (essa, talvez, sua intenção fundamental).
Entretanto, não podemos negar a ela a mesma verdade percebida sobre as
vanguardas, de que seja uma oportunidade de fruição, de reflexão sobre a arte-vida
e uma abertura às infinitas possibilidades da criação poética.
179

2.3 A FORMA E A EXPERIÊNCIA NA POESIA BRASILEIRA − HORIZONTES DE


UM PÊNDULO

As dimensões da forma e da experiência impõem-se no acontecimento


poético como vetores que acabam por projetar a primazia de uma ou de outra parte,
de dois lados que, levados ao extremo, se estabelecem como um pêndulo de
ocorrências e valorações - pêndulo este não dissociado das circunstâncias e das
injunções sócio-históricas. Tal extremo significa, de um lado, o formalismo típico ou a
vontade idealista da "estética pura", e, de outro, o engajamento funcional 96 ou a
vontade (também idealista, em relação à arte) da poética utilitária - termo que, para
os formalistas, seria certamente considerado como uma aporia. Ambos os lados,
sabemos, são visões que alcançam a radicalidade, que colocam a poesia numa
tensão, a qual, entre fissuras e intransigências, extrapola o campo literário, e muitas
vezes só em nome do respeito pode estabelecer o pacto silencioso do bem comum.
No final das contas, essa tensão funciona como combustível para a própria arte, cujo
logos onívoro trabalha para acrescentar-se a si mesmo.
Vejamos como isso tem acontecido conosco, isto, é no caso da produção
poética no Brasil: se hoje nos referimos à tradição literária como um domínio
sobressalente de preocupação estética, da literariedade e de sua pesquisa, e de um
conjunto de textos em que se ressalta a primazia dos elementos formais objetivados
− os quais constituem uma linha definível principalmente na modernidade −,
podemos falar aqui de um outro tipo de tradição literária que tem como centro de
preocupação a sua própria afirmação, enquanto afirmação histórica, política e
cultural do país.

2.3.1 A nossa "tradição da experiência"

Esta outra "tradição" em geral constituída como afirmação de uma


literatura da experiência nacional e que, por sua vez, se diferencia das questões da
experiência vital (só é vital enquanto considerada como definitiva para a identidade
do país), tem, pelo menos, três grandes momentos fortes.

96
Como, ao falar sobre a questão da referencialidade (2.1.1.2) na forma poética, coloquei, lembrando
os casos bem sucedidos de Maiakovski, de Gullar e dos Beatniks: "até onde é possível aproximar da
experiência do real a linguagem poética que substancia a forma, sem perder a etiqueta do literário?"
180

O primeiro, o momento de sua formação no século XIX, em que está


atrelada à formação das bases culturais, do provimento de identidade nacional para
um país nascente diferente do mundo europeu e da formulação de uma imagem
intelectual capaz de fazer frente ou igualar-se à produção de outras nações, portanto
de uma afirmação política do país. Neste caso, além do trabalho peculiar da poesia,
também seu suporte, a crítica literária, "vincula a atividade literária ao sentido
histórico de identificação da nacionalidade [...] [afirmando] a necessidade de conferir
características peculiarmente nacionais àqueles produtos" (BARBOSA, 1990, p. 63),
características estas que vão desde a ideia de imprimir a "cor local", perpassando
pelo indianismo, pela língua, os modos de dizer ou gramática brasileira e, por fim, o
acento num "sentimento íntimo" de pertença que passa da história ao texto
almejando não ser simples reflexo empobrecedor. Estes pressupostos (identidade,
imagem nacional) possivelmente não deixarão de reverberar nos outros momentos
como luta de um país com vários modos de dependência.
O segundo caso de um forte acento sobre a experiência da poesia e da
arte em geral enquanto experiência do nacional foi, bem o sabemos, sob os
princípios fundacionais do modernismo brasileiro como (re)descoberta dos valores
do próprio país, na formulação de uma arte representativa de nosso jeito de ser, da
nossa cultura, de um país cuja matéria em nada deve a outros, e cuja força telúrica e
festiva, cujo ethos e pujança primitiva o torna capaz de "deglutir" e transformar
conscientemente qualquer arte, dando-lhe um caráter próprio a partir de nossas
raízes. É a experiência também de uma irradiação, cuja fonte prismática só pode ser
o próprio país: tudo só deve ser visto sob o nosso olhar, e para o nosso corpo
trazido. Isto não obstante uma outra linha (a experiência nacional com a tradição
estética), da defesa e busca da reflexão formal e técnica da poesia com base numa
literatura universal, dentro do próprio modernismo − Mário de Andrade, Manuel
Bandeira. Oswald de Andrade, como personalidade poética incisiva, ditará a força
arrebatadora desse momento, no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado em
1924: "A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança. [...] A língua sem
arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os
erros. Como falamos. Como somos"; e no Manifesto Antropófago 97, publicado em
1928:

97
Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acesso em 20/12/2016.
181

Tupi, or not tupi that is the question. [...] Foi porque nunca tivemos
gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era
urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do
Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os
importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida [...].

Essa força oswaldiana aí expressa em prol de uma experiência primal


brasileira será tomada como um "texto fundador" de uma poética da brasilidade, isto
é, de uma poética da experiência brasileira pelas outras poéticas que voltam a tocar
no pertencimento histórico-vivencial ou que se colocam como uma contraproposta à
ênfase estrutural, formal ou metalinguística do texto. Estas, também tidas em geral
como escrituras carregadas de sobriedade e erudição exagerada, o que leva à
valorização nessa experiência primal da brasilidade, da ironia, da irreverência e do
sarcasmo, que funcionariam, em termos bakhtinianos, como carnavalização, riso
carnavalizante, voz desestabilizadora e "destruidora" (a proposta antropofágica
modernista), marcada pelo vínculo com a coletividade, de confronto com a poética
conservadora e "preocupada, da seriedade". Não devemos esquecer, contudo, que a
proposta do Modernismo brasileiro inclui também uma profunda renovação da
linguagem98, através de um programa estético já com base nas revoluções
propostas pelas vanguardas europeias, o que significa que a despreocupação serve
como impulso de renovação dos próprios meios.
O terceiro momento de uma ênfase nos termos da experiência, no que diz
respeito às vivências sociais, éticas e políticas do fazer poético, tem como ponto
crucial as décadas de 1960 e 1970 − não por acaso, contexto dos anos centrais do
regime ditatorial militar brasileiro e dos seus mecanismos de repressão, os "anos de
chumbo" da política brasileira −, e tem como forte expressão aquela poesia que
Pedro Lyra chamou de Variante Alternativa (ou a "poesia do Sufoco" e do
"Desbunde"), em contraste com as variantes formalistas do semioticismo
vanguardista, representados pelo Concretismo, Neoconcretismo, Poema-Processo,
e da tradição discursiva da geração de 1945. Lyra esclarece o seguinte:

Foi a poesia típica da resistência ao "sufoco". Em outras áreas culturais, o


resultado pode ter sido mais expressivo, mas essa produção é o retrato vivo
do "desbunde" de todo um segmento geracional – a recusa do mundo (aliás,
de um mundo que ninguém aceita como seu) à procura de formas não
apenas de resistência, mas de sobrevivência, padrões de comportamento

98
Como exemplos: coloquialismo, humor, intertextualidade parodística, associações surpreendentes,
condensação, fragmentação, o hibridismo das linguagens artísticas e imaginários culturais, a
elevação do popular, do primitivo e do grotesco à mesma altura do sublime poético...
182

condenados pelo sistema de poder; portanto, uma opção negativa de vida,


tragicamente bem expressiva no suicídio de tantos nomes (Torquato Neto,
GuilharmeMandaro, Ana Cristina César) ou no "assassinato cultural" de
tantos outros (Glauber Rocha, Paulo Pontes, Vianinha). [...] Por adotar [as
xérox, cópias mimeografadas, obras datilografados em casa, impressões
populares...] formas novas embora precárias de produção e divulgação,
essa poesia recebeu 2 (sic) rótulos que ainda hoje se permutam nas
referenciações: alternativa – por consistir numa forma divergente em
relação às consagradas; marginal – por se realizar ao largo dos
procedimentos convencionais. "Cultura alternativa" e "Cultura marginal" são
expressões que se podem encontrar em qualquer trabalho sobre o período.
(LYRA, 1995, p. 124).

As linhas experienciais da poesia do momento constituem-se sobre os


princípios ora de entrelaçamento no acirramento/retesamento das transformações
sociais de um tempo em ebulição, ora como resposta engajada,
enfrentamento/bandeira de luta do artista sobre sua realidade. Como
entrelaçamento e evidenciação desse contexto, a poesia faz-se na interrogação da
nossa identidade, de nossa sociedade e nossas ideologias. Insere-se no contexto de
um Brasil percebido como um espaço num mundo que se internacionaliza: seja
pelos influxos da cultura de massa (vinculadas à "indústria cultural", ao
"americanismo"), da televisão, da comunicação de massa, da moda, dos
industrializados e objetos massificados que surgem como novas linguagens, novos
designs e demandas utilitárias; seja pelas reivindicações dos movimentos sociais, do
feminismo, da juventude militante internacional, da revolução cultural transgressiva
(contracultura) e da liberação sexual, das comunidades hippies, do "desbunde"
(LYRA; MORICONE), da (para tomar um clichê) geração "sexo, drogas e rock'n'roll";
seja pelo conflito máximo daquele momento, a Guerra-Fria, que dividia o mundo em
dois blocos de forças políticas, duas correntes ideológicas, e no qual o Brasil tinha
que tomar posição.
A arte em geral e a poesia daquele momento também são convocadas a
tomar posição, entre ser "de esquerda" (comunista, marxista, socialista − defendido
pelo bloco da União Soviética), ou "de direita" (capitalista - [neo]liberal - individualista
- defendido pelo bloco dos Estados Unidos). Num mesmo horizonte transgressor de
angústias e influências recebidas, por caminhos diferentes, unem-se as propostas
da poesia política/engajada de Maiakovski (Rússia) e a da poesia da não
conformidade, da criação espontânea e tendência anárquica, da
Beat Generation(Estados Unidos).
183

Essa "lírica da experiência direta ou da transcrição de sentimentos


comuns" (HOLLANDA, 2007, p. 11) parte para a busca de uma linguagem que
represente tanto o engajamento, a língua do operário, quanto o pertencimento, a
afirmação de uma natureza, um sentimento de uma coletividade vital, um povo, uma
raiz. Neste caso, o primeiro modernismo e sua linguagem também não deixa de se
apresentar como uma fonte de riqueza intertextual direta, e a linguagem primitivista
de Oswald é redescoberta:

Num recuo estratégico [em relação aos padrões e vanguardas dominantes],


os novos poetas voltam-se agora para o modernismo de 22, cujo
desdobramento efetivo ainda não fora suficientemente perseguido. Nesse
sentido, merece atenção a retomada da contribuição mais rica do
modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação poética do coloquial como
fator de inovação e ruptura com o discurso nobre acadêmico. Se em 22 o
coloquial foi radicalizado na forma do poema-piada de efeito satírico, hoje
se mostra irônico, ambíguo e com um sentido crítico alegórico mais
circunstancial e independente de comprometimentos com um programa
preestabelecido. O flash cotidiano e o corriqueiro muitas vezes irrompem
quase em estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração literária
da matéria vivenciada (HOLLANDA, 2007, p. 11).

Nesse momento, com os tropicalistas (nome que já remete ao espaço


tropical, moreno e pujante, brasileiro) − ocorre um movimento de hibridismo entre a
música e a poesia, sintonizado com os movimentos de esquerda e com o
reaproveitamento (no espírito "antropofágico) de elementos da indústria cultural. A
poesia aparece então, como tendo uma feição popular (digamos, de um popular
letrado, universitário, como a MPB dos Festivais da Canção, de Chico Buarque,
Gilberto Gil e Caetano Veloso), "com uma atuação que, restabelecendo o elo entre
poesia e vida, restabelece o elo entre poesia e público" (HOLLANDA, 2007, p 10).
Esse hibridismo também inclui o espaço urbano sob o olhar deglutidor de
uma cultura primitivista, "na geleia geral brasileira/que o jornal do brasil anuncia/ [...]
tumbadora na selva-selvagem/pindorama, país do futuro" (trechos de geleia geral,
de Torquato Neto). Sobre essa conjunção carnal entre música e poesia do
Tropicalismo, organizando e prefaciando uma antologia de poetas da época,
Moricone (2016, passim) afirma:

A poesia surgida nos anos 1970 tem mais a ver com euforia e celebração,
às vezes ironia, frequentemente desencanto. Na proposição entre poesia e
vida, traço típico da geração 70, identificado já por sua primeira crítica e
antologista, Heloísa Buarque de Holanda, os poetas [antologiados]
exploraram até o limite a inextricável e sempre misteriosa sinergia entre
vida, criação e morte. [...] À exceção de Ana Cristina César, todos [Cacaso,
184

Paulo Leminsky, Torquato Neto, Waly Salomão] foram letristas de música.


[...] Torquato e Waly estiveram associados com o Tropicalismo do final dos
anos 60. [...] A duplicidade entre letrista e "poeta de livro" evidenciao caráter
formador que a MPB teve na origem da poesia dos anos 1970.

Um poeta marcante do momento, Ferreira Gullar − o mais significativo


representante da chamada poesia social desse momento −, às voltas com o Centro
de Cultura Popular e com a União Nacional dos Estudantes, e que estava há algum
tempo em "luta corporal" com a linguagem (em interrogação pessoal sobre os limites
da linguagem; ruptura com o Concretismo e fundação do Neoconcretismo, em fins
da década de 1950),passa a buscar uma adesão da poesia à conscientização do
povo (e.g. "meu povo, meu poema"99). Ele quer que a palavra poética "comunique
com o maior número possível de pessoas; é preciso fazer um verso para ser
entendido pelo povo, que necessita ser educado em nome da revolução, mesmo
que, para isso, a qualidade formal da poesia venha a ser sacrificada e fique em
segundo plano".
Esse intento não será ou não poderá ser satisfeito plenamente, por causa
do "ruído" intrínseco da comunicação poética, ou seja, pelo fato de não se tratar
apenas de uma comunicação linear do tipo "eu - referente - tu", mas do pacto
sensível com o espírito e a temporalidade da palavra, esteticamente configurado,
numa relação do tipo "sujeito biográfico/sujeito lírico - formação sensível/linguagem -
sujeitos leitores". Ao constatar certo desinteresse e desconfiar da efetividade
receptiva da mensagem, o poeta terá, então, que rever sua posição. Surgem a
Gullar as perguntas que acossam, de modo geral, a poesia, a arte, localizadas
exatamente entre seu sentido formal, de autorreferência, a demanda de uma função
possível e a necessidade de um repertório mínimo da experiência receptora:

Para que baixar a qualidade artística e tentar explicar questões teóricas


como a exploração capitalista, se as pessoas não têm o direito a coisas
básicas como moradia digna ou água encanada? É preciso repensar tudo
mais uma vez, tentar um novo caminho. Será possível conciliar o verso de
qualidade, formalmente elaborado, e um conteúdo que expresse as
urgências do um país subdesenvolvido como o Brasil? (MOURA, 2001, p.
71).

99
"MEU POVO, MEU POEMA: Meu povo e meu poema crescem juntos/ como cresce no fruto/ a
árvore nova//No povo meu poema vai nascendo/ como no canavial/ nasce verde o açúcar//No povo
meu poema está maduro/como o sol/na garganta do futuro//Meu povo em meu poema/ se
reflete/como a espiga se funde em terra fértil//Ao povo seu poema aqui devolvo/menos como quem
canta/do que planta" (GULLAR, 1991, p. 152).
185

O segundo aspecto de relação direta dessa poesia com a experiência


vivida do momento, isto é, com sua historicidade, é que ela se desenha como
atuação engajada e denúncia, ante as circunstâncias políticas opressivas do regime
ditatorial militar brasileiro e seus mecanismos de repressão. Estes são violentos
"limitadores da experiência", não só na questão da liberdade e dos direitos políticos,
do domínio sobre os corpos, a prisão, a tortura, mas também limitadora da
expressão e da voz, no momento em que se dá ao direito da censura oficial, do que
pode ou não ser dito, com imediata coibição e castigo. Ao bloqueio das editoras, a
resposta surge como uma poesia dos suportes artesanais, a poesia-mimeógrafo; à
falta de distribuição editorial, a circulação e venda nos meios alternativos das ruas,
bares, shows, passeios públicos; ao discurso ditatorial, a ironia, o riso
carnavalizante, a linguagem desbocada, nua e crua, o palavrão. E assume essa
mesma atitude ante o chamado "discurso nobre" da literatura brasileira e da cultura
erudita, numa posição de rebeldia contracultural. Estes foram, então, os principais
motivos de ser cunhada como a poesia marginal da Geração Marginal ou Geração
Mimeógrafo.
Assim, desenha-se uma linha que podemos estabelecer como
representativa de uma lírica ligada aos impulsos experienciais dentro da literatura
brasileira, enlaçadas, talvez, mais que com a experiência vivida no sentido
existencial dos indivíduos, com a experiência dos espaços e das temporalidades
histórica e politicamente constituídos. Algo que evoca mais que a experiência
individual da escritura poética, o sentimento da totalidade 100. São três grandes
momentos ligados pelo que poderíamos chamar de uma poética da tríplice
experiência, no geral esboçada como um cordame trançado em fio tríplice, em que
se apresenta não só a experiência da literatura e sua linguagem, mas também a
experiência do indivíduo ante realidades sociais radicalmente emergentes e a
presença da interrogação pelo problema país.
No sentido de que é possível também surpreender traços estéticos,
elementos e figuras retomadas, os momentos posteriores comunicam-se com os
momentos anteriores. Assim constituídos, ficam disponíveis como fala, vibração, e
manancial de retomada para novas poéticas. Essa vibração também atravessa o
nosso olhar e interroga voluntária ou involuntariamente a poesia que reivindique
qualquer um desses aspectos, do experiencial, do identitário ao
100
O que reverbera uma relação hermenêutica (Cf. GADAMER, 2011, p. 567).
186

"marginal"/experimental, no sentido do que seja ou não consistente das


possibilidades de certas posturas. Na questão da "marginalidade poética", por
exemplo, ainda em evidência dentro das múltiplas facetas do contemporâneo, mas
em radical mudança de contexto, poderíamos perguntar: o que pode ser
considerado "marginal"? Quais os novos termos dessa experiência, hoje, no quadro
de um país estabelecido como democrático? Vejamos o que já nos apontava
Hollanda (2007, p. 13), no prefácio a 26 Poetas Hoje, ainda em 1975:

A aparente facilidade de se fazer poesia hoje pode levar a sérios equívocos.


Parte significativa da chamada "produção marginal" já mostra aspectos de
diluição ou de modismo, onde a problematização séria do cotidiano ou a
mescla de estilos perde sua força de elemento transformador e formativo,
constituindo-se em mero registro subjetivo sem maior valor simbólico e,
portanto, poético.

Uma outra observação importante a ser feita, é a de que a ênfase em um


aspecto ou noutro não elimina os demais. A poesia, como deve vir ficando claro,
neste trabalho, não pode ser considerada sob um olhar dicotômico. As feições
vivenciais, experienciais dessas duas décadas apropriam-se dos ganhos formais
que inundam a época, seja através das bases concretistas e neoconcretistas, que
encabeçaram as pesquisas semiopoéticas, plastipoéticas e linguageiras a partir dos
anos 1950, seja através da força das leituras estrangeiras, com destaque para a
visão crítica radical de Ezra Pound, com sua "lista de grandes autores" (paideuma),
bem como da "descoberta" da poesia oriental pelos "marginais" (e.g. influência do
haikai sobre Leminski), e, finalmente, os poetas de destaque no momento, que
entram no contexto como disponibilidade dialética: João Cabral de Melo Neto, Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes...
Paralelamente à trilha voltada a essa poética da tríplice experiência, a
tradição estética também demarcou, com força provavelmente cada vez maior, os
seus espaços e o seu caminho na poesia brasileira. É a sua direção que seguimos
agora.

2.3.2 A "tradição formal" da modernidade e seus caminhos no Brasil

A experiência da tradição poética, digamos, não de um formalismo


artificial e retórico − com o qual por vezes se confundiu −, mas de uma ênfase na
187

objetividade estética da escritura poética, colocada como "tradição formal", "tradição


estética" ou simplesmente "tradição", na poesia brasileira deve ser entendida em sua
colocação dentro das discussões das poéticas da modernidade mundial, quer seja
nas clássicas poéticas da modernidade francesa do final do século XIX para início
do XX (Mallarmé, Valéry), quer seja por uma influência crítico-teórica sobre a
linguagem poética101, ora com foco em sua particularização, seus procedimentos e
particularidades funcionais; ora como escritura autovalidada, irredutível à
representação (formalismo russo, nova crítica, estruturalismo, semiologia...), ou de
poetas-críticos anglo-americanos (Ezra Pound, T. S. Eliot), que serviram como
suporte de referência à produção poética e, com força cada vez maior, constituiu-se
numa linha híbrida de vasta influência tanto na poesia quanto na crítica brasileira −
influenciadora, por sua vez, do discurso poético.
Na questão da forma, em contraste com o mito da poesia baseada num
exclusivo sopro de prazer e emoção criadora, ou de uma poesia com um pé fincado
na experiência vital, ronda-lhe o mito do absoluto controle da linguagem, comandado
por um cerebralismo radical, por vezes intransigente. Tais posições, levadas ao
extremo, podem acabar por constituir um maniqueísmo, que alguns críticos
procuram aplacar. Rousset (1973, p. IV), por exemplo, recomenda não concluir
rapidamente do resultado construído no texto poético uma atividade puramente
cerebral. Diz ele: “cérebro está aqui para designar uma operação elaborada e
especializada, distinta, de fato, da espontaneidade passional (...). Tenhamos por
certo que este ‘cérebro’ que compõe é um laboratório saturado de experiência
sensível”.
Desse modo, a forma poética, tida como objetiva, cerebral, deve ser
entendida em suas nuanças, como, na verdade, uma mediaçãopoiética entre
instâncias que nela se congregam. É ela que, em última instância, instaura o próprio
mundo do texto. Paul Valéry (1995), na concepção estética de sua conferência
“poesia e pensamento abstrato”, de 1939, compara a forma à voz em ação, com
todos os caracteres sensíveis da linguagem, o som, o timbre, o ritmo, os acentos, o
101
O corpo crítico reflexivo sobre a linguagem literária não pode ser concebido como algo "de fora" do
andamento do sistema literário, ou a ele transcendente, mas, sim, como parte orgânica deste, como
relação direta de reflexão, autorreflexão, metapensamento.Por isso é preciso trazê-la à cena como
um horizonte expectado pelo autor. A crítica almeja um ideal de obra que a modernidade encarregou-
se de prover, um ideal de obra bastante conhecido e teoricamente respaldado. Com a ascensão
recente da crítica universitária e do poeta-crítico-professor universitário, as relações entre teoria e
produção podem ser muito mais próximas do que é geralmente considerada.
188

movimento, associando em si os valores significativos, as imagens, as ideias, os


estímulos do sentimento e da memória, os impulsos virtuais e as formas de
compreensão – o que ele chamará de “fundo”. Afirma ele, ao também comparar a
linguagem simétrica (ambivalente) da poesia à assimetria da prosa:

entre a forma e o fundo, entre o som e o sentido, entre o poema e o estado


de poesia, manifesta-se uma simetria, uma igualdade de importância, de
valor e poder que não existe na prosa; que se opõe à lei da prosa – a qual
decreta a assimetria dos dois constituintes da linguagem. O princípio
essencial da mecânica poética, isto é, das condições de produção do
estado poético pela palavra é, ao meu ver, esta permuta harmônica entre a
expressão e a impressão.(VALÉRY, 1995, p. 80)

Esse pensamento de Valéry contextualiza-se como sequenciamento do


momento ímpar de interrogação do estatuto da poesia e de conflito da linguagem
poética no final do século XIX. A verdade é que a modernidade racional e científica
também proveu seu modelo de poesia ideal, o qual veio se estruturando ao longo do
século XX. Os novos modos de pensar a poesia, e conjuntamente a arte, o mundo,
os novos cenários civilizacionais e finisseculares, vão encontrar, na França, seu
ponto de ebulição, com três das figuras mais emblemáticas para a poesia moderna:
Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, com os quais a poesia buscou os limites da pureza,
da revolta e da autonomia.

2.3.2.1 Influxos formais da modernidade poética - poetas fundamentais

Com Charles Baudelaire (1821-1867), a poesia e sua linguagem tornou-


se objeto não só de um culto ao ideal (poético), mas sobretudo de investigação
estética. O autor de Fleurs du Mal concebia a poesia em unidade técnica com a
pintura e com a música (e com esta a matemática), a partir de uma estética da
analogia e da correspondência capaz de fundar uma poesia universal, poesia pura
da qual a poesia verbal é uma das expressões técnicas possíveis (Lemaitre, 1982).
Sem nos esquecermos de que é seu interesse investigativo que o leva a traduzir
Filosofia da Composição do romântico norte-americano Edgar Allan Poe na França.
Assim, ao mesmo tempo em que ele lança as bases dessa busca, a experiência do
poético até a espiritualidade e a analogia universal também o faz aproximar-se de
Delacroix, de Wagner, do Romantismo e sua espiritualidade sombria, traçará sobre
ele uma identificação de poesia e revolta, inconformidade estética e arte de protesto,
189

fudamentais também para os projetos poéticos como os de Rimbaud e do


Surrealismo.
O ideal da arte pura, para Baudelaire, não significava, entretanto, a “arte
pela arte”, com a qual costuma ser confundida, mas inclusive o que beira seu
oposto: positivismo, naturalismo e formalismo são obstáculos à descoberta do
paraíso alquímico e ao conhecimento da angústia poética que são os portais para o
claro-escuro, o lado insólito da alma: “A arte pura será [então] a arte da
comunicação direta com o interior da alma, uma espécie de lirismo absoluto, e aí
está, profundamente, o que Baudelaire entende por espiritualismo” 102.
Já como “pintor da vida moderna”, na leitura de Walter Benjamin (1994),
Baudelaire foi poeta de sensibilidade extrema às nuanças e transformações do seu
tempo, por isso capaz de engendrar uma poética de ruptura, propriamente uma
poética inaugural da modernidade. Ele traz figuras emblemáticas, desse novo
tempo, à poesia, elementos que se tornam a expressões formais alegóricas, e que,
uma vez estabelecidos e marcados, são motivos circulantes, remissíveis e
reiterativos, motivos codificados como figuras/imagens/alegorias do contexto cultural
da modernidade: a multidão associada à metrópole; o flâneur (o
andarilho/transeunte ocioso, não acumulador, encarnado pelo o dândi, que desenha
o panorama labiríntico de um espaço e de um momento na preservação de sua
individualidade como "contemporâneo distanciado"), a prostituta (que precisa, tal
como o coroinha, jogar seu incensário para ganhar o pão de cada noite 103), o spleen
(o tédio e a melancolia modernas), a passante (figura de um mundo de paixões
evanescentes)...
Stéphane Mallarmé (1842-1898), por sua vez, leva a investigação estética
à obstinação. Aspira a uma linguagem de pureza estética que possa estender-se até
o esgotamento (ou a origem) do dizer, o vazio e o silêncio; até a proposição do Livro
que pudesse reunir em si todos os livros, todas as bibliotecas, todos os sentidos na
realidade pura da linguagem, do passado e do porvir: livro impossível, o Livro por vir
ou Livro sobre Nada.

102 “L'art pur ce sera un art de la communication directe avec l'interieur de l'âme, une sorte de lyrisme
absolu, et c'est là, profondément, ce que Baudelaire entend par spiritualisme”(LAMAITRE, 1982, p.
27).
103
A musa venal, do Flores do Mal de Charles Baudelaire: "Il te faut, pour gagner ton pain de chaque
soir,Comme un enfant de choeur, jouer de l'encensoir" disponível em:
http://poesie.webnet.fr/lesgrandsclassiques/poemes/charles_baudelaire/la_muse_venale.html. Acesso
em set/2016.
190

O que está em jogo em Mallarmé e que reverbera na poesia do presente


é exatamente formar a realidade do poético pela linguagem de modo a despi-la do
objeto. Pretende que a linguagem deixe ascender sua própria realidade, seu
“mostrar-se” enquanto fenômeno estético convocado até o limite da potência ou da
impotência e, que se desdobre, enfim, em seu próprio objeto. Este poeta, de raízes
na impassibilidade parnasiana, leitor de Flaubert e tradutor de Edgard Allan Poe,
dará, portanto, a essa linguagem um caráter essencial, ao mesmo tempo ontológico
e "antimimético", conforme comenta Hugo Friedrich, em A estrutura da lírica
moderna (1956):

Mallarmé aperfeiçoa a concepção, conhecida desde Baudelaire, que a


fantasia artística não consiste em reproduzir de forma idealizadora, mas,
sim, em formar a realidade. Ele a aperfeiçoa dando-lhe um fundamento
ontológico. Além disso, fundamenta ontologicamente a obscuridade do
poetar assim como seu afastamento de uma compreensibilidade limitante;
pois a união entre ideia artística e reflexão sobre a arte é agora exaltada
nele por um pensamento que gira em torno do Ser absoluto (equiparado ao
Nada) e em torno da relação deste para com a linguagem. (FRIEDRICH,
1991, p. 96).

Esta poesia que constitui a linguagem como a essência mesma da


poesia, linguagem meticulosamente pensada, cogitada, carrega em si o pathos da
frieza objetiva e do sofrimento do trabalho, e mesmo não desejando confundir-se
com a doutrina da arte pela arte parnasiana, acaba por compartilhar com ela o que
Hugo Friedrich detecta em Mallarmé como “ausência de uma lírica do sentimento e
da inspiração”, além de um “aniquilamento da realidade e das ordens normais, tanto
lógicas como afetivas” (FRIEDRICH, 1991, p. 95).
É o ponto de identificação entre a poesia e o Verbo, isto é, o ponto em
que a poesia se torna uma “poética do Dizer” fundada sobre uma estética deliberada
e obstinada. Esta poética também deve recusar a “apresentação direta do objeto”
conforme a que os parnasianos costumavam fazer, para constituir uma evocação,
uma sugestão pela linguagem, um enigma104 :

Nomear um objeto é suprimir três quartos do gozo do poema, que é feito de


adivinhar pouco a pouco: o sugerir, eis o sonho. [...] Evocar aos poucos um
objeto para mostrar um estado de espírito, ou inversamente, escolher um
objeto e deflagrar um estado de espírito por uma série de deciframentos. [...]

104 Cf. BARBOSA, 1986, p. 14, já citado acima. A concepção estética de Mallarmé irá abalar ainda
mais as relações de receptividade mesma da lírica, cujas transformações, segundo Benjamin, fazem-
se sentir desde a época de Baudelaire.
191

Sempre deve haver enigma na poesia, e o propósito da literatura – não há


outro – é evocar os objetos.105

Daí também a instauração de um hermetismo provocado por essa


linguagem cifrada, a "obscuridade do poetar assim como seu afastamento de uma
compreensibilidade limitante" observada por Friedrich em Mallarmé – e cujos
longuíssimos reflexos, despido já do teor simbolista original, estendem-se de modo
basilar para a atualidade. Em sua angústia de trabalho solitário, o poeta desce aos
infernos da linguagem para descobrir nos limites desta a origem e o fim, a forma
primal e última, lá, onde ela ainda não diz ou já disse, ou sussurra o que sequer
brotou dos confins inefáveis do Belo e do Mistério: é a diligência cujo resultado
poético inaugura um novo tempo, do qual Un Coup de Dés jamais n'abolira
le Hasard, de 1897, torna-se representante máximo. Deste poema revolucionário,
em seu cálculo e seu arranjo "enigmático" e metafísico, como "subdivisões
prismáticas da Ideia" como ele mesmo afirmava106, apresento o fragmento seguinte.
Nele, são perceptíveis essa voz dada à linguagem objetivante e seu sentido
ontopoético de impulso, dúvida e inconclusão (abertura de sentido), num jogo duplo
de afirmação e negação, plenitude e vazio, bem como sua materialidade, sua
paisagem tipográfica inovadora e disposição espacial ressignificante do "branco da
página" (em silêncios, vazios e galáxias durativas, por exemplo), procedimentos
desde então contemporâneos:

105 Nommer un objet c'est supprimer les trois-quarts de la juissance du poème qui est faite de
deviner peu à peu: le suggérer, voilà le rêve. (…) Évoquer petit à petit un objet pour montrer un état
d'âme, ou inversement, choisir un objet et dégager un état d'âme, par une série de déchiffrements.
(…) Il doit y avoir toujours enigme en poésie, et c'est le but de la littérature – il n'y en a pas d'autre –
d'évoquer les objets (MALLARMÉ apud LEMAITRE, 1982, p. 107, – grifos do autor)
106
Cf. Prefácio de Mallarmé a Un coup de dès.Disponível em:
https://fr.wikisource.org/wiki/Un_coup_de_d%C3%A9s_jamais_n%E2%80%99abolira_le_hasard.
Acesso: setembro, 2016.;e CAMPOS, 2006, p. 32.
192

Un coup de dés[107]:

[...]

Uma das grandes leituras programáticas desse poema no Concretismo


brasileiro, diz o seguinte:
Escrever é uma situação extrema que leva Mallarmé ao encontro do
Nada, ao desamparo da ausência dos deuses (BLANCHOT, 2011). E assim, se o
poeta chega ao Nada, ao Silêncio, também sonha o Livro Absoluto, um Livro sobre
Nada, em que a linguagem atingisse seus confins: o Livro Ideal, o Poema Ideal, a
pura Beleza. O poeta o reconhece como impotência, como o grande Vazio da
linguagem, suas crateras e abismos anteriores ou posteriores ao conceito, sempre
fraturada demais para dizer com exatidão os nascimentos latentes do mundo ou do
Universo.
Por outro lado, afirma-se nessa busca uma “impersonalização” da Obra-Livro
como algo absoluto, provocando não só a impessoalidade e o desaparecimento do
autor, mas também do leitor, para o gozo dela mesma. É o gozo da linguagem
arquitetada e absolutizada, “sem mais autor” e sem leitor possível, “sem o homem
fortuito”, essencializada108 em sua Forma como puro devir. É sem dúvida o gozo que
o próprio Vazio – enquanto simultaneidade de lugar e não lugar, o que já foi ou ainda

107UMA CONSTELAÇÃO/ fria de esquecimento e de obsolescêncência/ não tanto/ que não


enumere/ sobre qualquer superfície livre e superior/ o confronto subsequente/ sideralmente/ de um
cálculo total em formação.
108
Sobre esse entendimento da linguagem poética como essencial, Leuwers (1990, p. 49) reporta uma
frase que Mallarmé escreveu ao fazer uma célebre distinção entre a linguagem poética e a linguagem
‘diária’, cotidiana: “Double état dela parole, brut ou imédiatici, lá essentiel”. "[Duplo estado da
linguagem, bruto ou imediato aqui [cotidiano], lá [na poesia], essencial". Eis por que, segundo este
pensamento, o poeta pode dar “unsenspluspurauxmots de latribu” [um sentido mais puro às palavras
da tribo].
193

não é, pode nos proporcionar. Vazio, portanto, em termos, porque lá a linguagem, se


anula a presença do sujeito, toma-se a si mesma como fim. Sendo estando,
despreocupa-se do mundo das circunstâncias factuais e cotidianas, ou não deseja
alcançá-lo. Berardinelli considera Mallarmé, juntamente com Rimbaud e Cézanne
responsáveis por um desenraizamento da arte, uma "abstratização por meio de
procedimentos ‘despoticamente’ formalistas e absolutizantes, que aniquilam toda
possibilidade de determinação espaço-temporal” (BERARDINELLI, 2007, p. 74). É
desse mundo das ocupações e utilidades, ordinário, corruptível, circunstancial, do
prosaico da mera existência bruta e imediata que a poesia é alijada, e a linguagem
se impessoaliza. Instauram-se, deste modo, as fraturas a partir dessa forma-livro (a
qual, de Livro-por-vir torna Livro impossível):

O livro é livro quando não remete a alguém que o tenha feito, tão puro de
seu nome e livre de sua existência quanto do sentido próprio daquele que o
lê. Se o homem fortuito - o particular - não tem lugar no livro como autor,
como o leitor poderia ser aí importante? "Impersonalizado, o volume,na
mesma medida em que dele nos separamos como autor, não reclama a
aproximação de qualquer leitor Tal, saiba, entre os acessórios humanos, ele
tem lugar sozinho: feito, sendo."
Essa última afirmação é uma das mais gloriosas de Mallarmé. Ela reúne,
sob uma forma que traz a marca da decisão, a exigência essencial da obra.
(BLANCHOT, 2005, p. 335)

Preservando de Mallarmé suas peculiaridades, é necessário reconhecê-lo


como um dos mais importantes "pais" da modernidade, e seu alcance estético lança
luzes a todo instante na poesia e na crítica contemporânea. Seu alcance não está
apenas na base do "paideuma" concretista de Haroldo e Augusto de Campos, ou
quando se fala de "vanguardas" brasileiras, mas nos debates que se fazem hoje
sobre as questões da "retradicionalização", no imaginário do trabalho poético ou nas
discussões sobre o valor negativo ou positivo do ornamental na poesia (SCRAMIM,
2012, p. 121-137).
A pesquisa estética de Mallarmé encontra em Paul Valéry (1871-1945)
seu prosseguidor mais competente e sua intelectualidade mais radical rumo à busca
de uma poesia pura ou absoluta. É a meditação sobre a linguagem que se volta
sobre ela mesma, e que dá origem, segundo Lamaitre (1982, p. 55), ao “mythe
valérien du Nacisse” [mito valeriano do Narciso], em referência à obra Nacisse parle
(1920), de Valéry. Para este autor, as operações técnicas da linguagem devem levar
a uma poesia pura ou absoluta, um universo (o universo poético) construído pela
linguagem onde o espírito humano tenha um lugar pleno. A pureza, aqui,
194

corresponde ao resultado do exercício produtivo que se impõe à linguagem, ou que


esta nos oferece e impõe; resultado da atividade “criadora”, se como tal podemos
chamar aquela atividade que, debruçada sobre o bloco operatório [da linguagem]
“faz a limpeza da situação verbal”, tal qual o cirurgião que tem em suas mãos o
controle dos instrumentos cirúrgicos (VALÉRY, 1995, p. 55).
Apesar dessa colocação, se muitos recorrem a Valéry para justificar um
formalismo, não se diz dele que seja propriamente um formalista. Valéry é um poeta
crítico, um pensador que integra a experiência da poesia à experiência do espírito (o
“conjunto da nossa sensibilidade”, segundo o poeta), sendo a poesia o resultado da
união íntima entre o som e o sentido. Não defende um conhecimento “independente
de toda a pessoa” ou “uma observação sem observador”, buscando o racional e o
irracional em si mesmo, mas também não acredita que alguém chegue a um
“sistema de descobertas felizes” só pelo fruto do acaso.
Em seu ensaio Poesia e Pensamento Abstrato (1937 [1995]), Valéry
reflete sobre o papel do acaso e do fortuito, das ideias súbitas e dos ritmos
repentinamente flagrados ou suscitados pelo corpo. Ele também reitera o termo
“trabalho” quase uma dezena de vezes, e aproximações semânticas do termo: ação,
produção, organização, combinação, operação, formação, fabricação. Daí conceber
a poesia como a arte da palavra, quer dizer, como o produto da ação de um artista
sobre a linguagem, que ultrapassa a prática da comunicação cotidiana, usual e
abolida na sua própria utilidade: assim ela é meio (instrumental), e não fim. A
linguagem do poema, por sua vez, “não morre de ter vivido. Ele é feito
expressamente para renascer […], se tornar naquilo que sempre terá sido. A poesia
reconhece-se nessa propriedade de tender a fazer-se reproduzir na sua forma:
estimula-nos a reconstituí-la identicamente” (VALÉRY, 1995, p. 79).
Para Valéry, o valor de um poema reside na indissolubilidade do som e
do sentido, resultado de um “pêndulo” que oscila entre a Presença e a Ausência –
sendo que a essa Presença relaciona-se à sensação, à forma, à Voz; à Ausência,
por sua vez, relaciona-se o impulso de uma virtualidade convocada, realizada pelo
trabalho do pensamento. Como afirma esse poeta (1995, p. 81), “tudo o que é
propriamente pensamento, imagem, sentimento, é sempre, de qualquer modo,
produção de coisas ausentes. […] O pensamento é, em suma, o trabalho que faz
viver em nós aquilo que não existe”.
195

O que caracteriza Valéry, afinal, é a ideia da busca sem cessar dos


limites da lucidez por entre os esvaziamentos da linguagem (BARBOSA, 1986, p.
77): o esforço de uma consciência poética e de organização da linguagem, uma
união entre as formas da linguagem e a energia do espírito, de modo que a
“recompensa após o ter pensado seja um longo olhar sobre a calma dos deuses” (O
Cemitério Marinho). Acontece que, como observa João Alexandre Barbosa, o poeta
verdadeiramente envolvido com a poesia pensa primeiro na poesia, medita sobre ela
e sobre ela desenvolve longas reflexões, não submisso a um enclausuramento, mas
aplicando sua inteligência a esse fazer poético. Cabe, de nosso lado, observar
também o uso posterior das reflexões desse poeta, as quais, como pele repuxada,
são convocadas para justificar sua diluição ou seu encaixotamento. No caso de
Valéry, a justificação dos mais diversos tipos de formalismo.
A pesquisa e as concepções estéticas de Valéry disputam com aquelas
de Mallarmé uma ressonância que determina, ou pelo menos determinou, os
caminhos da lírica contemporânea, incluindo aí os rumos e as concepções da
própria crítica que se volta para essa lírica, as quais mutuamente se impulsionam e
se modificam. Basta especularmos que sem esses dois grandes mestres e a
repercussão de sua obra, os caminhos que trilhamos e a poesia que apresentamos
– mesmo em se tratando de um país afastado, como o Brasil, cujo itinerário poético
perpassa por um acolhimento, e por certas inflexões, das ideias de ambos os
autores.
No rastro destes grandes mestres, aproveitando-se de seu alcance
investigativo, mas assumindo concepção diferente e um outro caminho, segue uma
“poesia da embriaguez”: desregramento, irreverência, carnalidade, estranheza e
revolta. Rimbaud. Lautréamont. O surrealismo. Outras faces da linguagem que
configuram outras formas e outros modos de dizer a poesia e o "novo" da poesia.
Também não é absurdo observar que tais prenúncios já estão em Baudelaire, como
estiveram, antes dele na grotesquerie barroca e na revolta/desordem ou no
satanismo romântico. Mas tal prenúncio baudelairiano deve-se à união entre a
estranheza – certa estranheza de vibração “satânica” e ruptura inconformista – e a
reflexão sobre o próprio trabalho com a linguagem poética. Rimbaud recebe tão bem
o insólito Baudelaire quanto o enigmático Mallarmé.
Com Rimbaud e Lautréamont, sedimenta-se o “mito do poeta revoltado”,
para além do comportamento meramente romântico, uma poesia da recusa da
196

sociedade, do mundo e da natureza, que se abre como revolta, desregramento,


aberração − uma revolta que se quer criativa: “esforço para o conhecimento do
desconhecido; […] estética que dá lugar à experiência da vertigem e da alucinação”
(LEMAITRE, 1982, p. 101).
Quanto a Rimbaud, Augusto de Campos, no prefácio a Rimbaud Livre
(1992) defende que há muitos Rimbauds. Como este se anunciava: “je est un autre”:
há o poeta-Vidente, “Le Voyant”, afirmado pelo próprio Rimbaud; há o “místico em
estado selvagem”, reivindicado por Paul Claudel, e a esses podem-se acrescentar o
“poeta maldito” ou a “máquina obscena”, de Verlaine; o “chefe de escola decadente
e simbolista”, de Gavoty; há o hipercromático, o minimalista, o pré-surrealista, o
sarcástico, o angelical etc. Campos, que abraça as propostas do crítico Ezra Pound,
ressalta, porém aquele Rimbaud amado por Pound, o visualista, o fanopaico
cromático, em que se manifestam imagens concretas e precisas que, conforme o
crítico, o aproximam do poeta latino Catulo: “Nesse Rimbaud, Pound via ‘qualidade e
solidez catulianas, ‘clareza de expressão’ e ‘objetividade’”, uma objetividade que,
unida ao desregramento absoluto resulta em imagens concretas, mas ao mesmo
tempo enigmáticas: uma língua clara e límpida, mesmo se o sentido se torna
obscuro, como também observou Verlaine.
Rimbaud entrega a um leitor desestabilizado e tateante o estranho
pântano de um mundo que começa a nascer na sua arbitrária heterofonia cromo-
somática, nesse vislumbre mágico da cor e da imagem. Suas incursões no espaço
liminar do verso livre e da prosa-poética de Une Saison em Enfer (1873) e
Illuminations (1886) são “manifestos da modernidade” (Campos), numa densa
floresta de fraturas semânticas, recortes metonímicos e irracionalismo vertiginoso.
De outro lado, pela via dessa linguagem que pode ser obscura, mas se
utilizando de uma feição voluntariamente naïf ou surpreendentemente cotidiana, com
laivos sarcástico-irônicos, linguagem dos bêbados, dos vagabundos (que também
foi) e dos miseráveis, partícipes de uma íntima vivência com a necessidade e com o
grotesco, esse poeta superior consegue o feito de tocar um universo que podemos
propriamente chamar de “mundanal” – a vida comum, a vida dos homens de
camisas suadas e calções lambudos, a vida do corpo, da fome, do desejo e das
garçonetes de peitos fartos. A gorda Vénus Anadyomène, d’unulcère à l’anus; a
garota de enormes tetas, de Au Cabaret-Vert (RIMBAUD, 1998, p. 110):
197

contrapontos prosaicos do jovem Rimbaud à suas Iluminações obscuras e suas


estações enigmáticas e infernais.
Tanto Rimbaud quanto Lautréamont são artistas cujas vidas tornaram-se
atos poéticos. E a poesia os absorve como atos poéticos que transtornam tanto a
objetividade quanto a subjetividade, tornando-se propriamente signos dramáticos de
uma revolta literária que é, por sua vez, uma revolta da linguagem e uma revolta
social, na plenitude de uma “maldição” prometeica, a qual se oferece como maldição
criadora e criativa.
Ainda dentro de uma proposta da pesquisa pela linguagem poética,
enquanto forma autovigente, dois grandes impulsos são dados pelas vias diferentes
do formalismo russo e da crítica poética eliot-poundiana.
A força do formalismo russo dá-se por via das "interfaces" entre os
estudos linguísticos − a partir do Círculo Linguístico de Moscou (1915) e da
Associação para o Estudo da Linguagem Poética (OPAIAZ) (1917), da qual ele
nasce − e os estudos da linguagem poética, do poema e sua construtividade, que
perfazia um dos seus interesses fundamentais (em paralelo com o estudo da
narração), definição da linguagem poética e da literariedade em contraste com a
linguagem prosaica. As discussões de Roman Jakobson, Osip Brik, Viktor Chklovski,
Boris Tomachevski, Yury Tynianov, entre outros, afiam os instrumentos teóricos e
impulsionam os estudos sobre a criação poética do ponto de vista da forma, dos
procedimentos artísticos, a apropriação dos materiais linguísticos e da
"materialidade literária", na diferenciação da comunicabilidade poética em relação à
comunicação prosaica, ou seja, da ruptura com a linguagem cotidiana e a função
dos elementos formais no corpo da poesia. Os estudos sobre a função poética da
linguagem e sobre os elementos contrastantes na cadeia da linguagem, por
exemplo, empreendidos por Jakobson, foram de importância máxima para os nossos
concretistas. Haroldo de Campos em seu texto de 1957, Evolução das formas:
poesia concreta, referencia claramente o formalismo como um dos pilares teóricos
de sua razão criativa:

Os críticos formalistas russos, a partir de 1918, visualizaram com agudeza o


problema, substituindo o binômio forma (fôrma)-conteúdo, de acentuado
pendor parnasiano, por material e procedimento, o que implicava situar
analogicamente a poesia e as outras artes [...].Os formalistas rejeitaram o
conceito idealista de imagem como conteúdo da obra de arte, substituindo-o
radicalmente pela palavra como único e exclusivo material da poesia. V.
Schkóvski: 'A obra literária é forma pura; não é simplesmente uma coisa, um
198

material, mas uma relação de materiais. E. Lo Gatto (A estética e a Poética


na Rússia): para os formalistas, 'o conteúdo − e assim mesmo no sentido de
material − é o elemento implícito daquele que é o elemento explícito da
criação, i.é: o procedimento (priom)" (CAMPOS, 2006, p. 77-78)

A força da crítica eliot-poundiana, por seu turno, podemos dizer, vem do


que Eliot − um dos pilares da Nova Crítica, ou da crítica do texto pela própria
constituição formal imanente − chamava uma "crítica de oficina". Eliot e Ezra Pound
(o que também exerceu forte influência sobre o primeiro) foram poetas
pesquisadores que se debruçam sobre o aperfeiçoamento e o julgamento de seu
próprio trabalho, propondo-se renovar a linguagem poética, a discutir táticas e
estratégias funcionais, a criticar também o trabalho de outros, inclusive da poesia ao
longo do tempo e das civilizações, julgando e elencando aqueles que a seus olhos
dão alguma contribuição ao difícil trabalho da poesia. Este é o caso de Ezra Pound,
que, professoral, chega a propor uma lista particular de grandes autores para a
leitura do nosso tempo (um paideuma, conjunto particular de obras significativas,
referenciais e elevadas) dos grandes mestres, autores que, segundo ele, devem ou
merecem ser lidos por sua genialidade ou inventividade poética, assim como propõe
que cada leitor crie o seu paideuma particular.
Embora seja difícil medir a influência de um ou de outro autor, talvez seja
possível afirmar que a influência das pesquisas formais de Pound tenha sido mais
fulgurantes, pragmáticas (pedagógicas), radicais e vigorosas entre os poetas que a
influência de Eliot, a qual se dá por via da recepção da Nova Crítica e de seus
ensaios no meio universitário, quanto pela leitura de sua produção poética. Apesar
disso, esta continua ainda agora a ecoar, reverberando ainda com força nas
escrituras poéticas do presente. Guardadas as devidas proporções, algo semelhante
ao que aconteceu no Brasil com a confluência entre trabalho e personalidade de
Oswald e Mário de Andrade.
Mas as propostas poéticas, proposições críticas e a radicalidade de
Pound penetraram de maneira avassaladora na poesia de vanguarda no Brasil, a
partir dos anos 1950, principalmente no mais formal dos nossos movimentos
literários do século XX, o Concretismo, para quem os ensinamentos de Pound
pareciam extremamente apropriáveis. Esse movimento plastisemiopoético abraçou o
chamado "método ideogramático" de Pound, no que diz respeito principalmente a
seus dois pontos mais fortes: o imagismo derivado dos estudos da escrita
199

ideográfica (ideogramática) chinesa e a crítica via comparação e tradução - esta


tomada como de primeira ordem no Concretismo, o qual concebe a tradução como
recriação.
O autor de ABC of Reading, ABC da Literatura ([1934]1977) parte da
proposição da aplicabilidade do método científico "dos biologistas contemporâneos"
ao estudo da literatura − método utilizado, segunto o poeta-crítico, por Ernst
Fenollosa ao estudo dos ideogramas chineses −. As bases de tal método seria o
exame cuidadoso e direto da matéria e a contínua comparação de "lâminas" ou
espécimes. A poesia, por sua vez, deve ter uma estrutura ideogrâmica, que é uma
figura abreviada, uma escritura condensada numa imagem. Pound remete a ideia do
ideograma chinês à ideia de poesia na língua alemã, Dichtung (Poesia; junção,
condensação). Dichten = condensare, diz ele: poesia como um dizer condensado,
carregada de significado ao seu máximo grau:

"Começo com a poesia porque é mais condensada forma de expressão


verbal. BasilBunting [poeta objetivista inglês, 1900-1985], ao folhear um
dicionário alemão-italiano, descobriu que a ideia de poesia como
concentração é quase tão velha como a linguagem germânica. "Dichten" é o
verbo alemão correspondente ao substantivo "Dichtung", que significa
"poesia" e o lexicógrafo traduziu-o pelo verbo italiano que significa
"condensar" (POUND, 1977, p. 40)

É sobre essa poesia que, ao mesmo tempo em que condensa o máximo


de significados no mínimo de palavras109, também projeta a imagem visual do objeto
sobre a mente, criando uma imaginação visual e privilegiando o jogo de imagens,
Pound atribui a caracteristica retórica da fanopeia (phanós+poéiö/poien - produzir o
clarão, o luminoso), valorizando, portanto, aquela com o máximo de fanopeia
possível. É o ponto de partida para duas outras classificações poéticas feitas por
Pound (1976, p. 63): a poesia que produz correlações emocionais por intermédio do
som e do ritmo da fala, ou seja, aquela em que se ressalta a produção da
musicalidade, a melopeia, e aquela cuja ênfase construtiva recai sobre a produção
da associação de ideias, dos efeitos intelectuais ou emocionais, associações estas
que "permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras ou grupos

109
Em sua pedagogia poética crítica, Pound diz o seguinte "A incompetência se manifesta no uso de
palavras demasiadas. O primeiro e mais simples teste a que o leitor deve submeter o autor é verificar
as as palavras que não funcionam; que não contribuem em nada para o significado ou que distraem
no fator mais importante do significado em favor de fatores de menor importância" (POUND, 1976, p.
63).
200

de palavras efetivamente empregados, e que o poeta chamará de logopeia. A


fanopeia, a melopeia e a logopeia tornaram-se, a partir da proposta de Pound, um
direcionamento para a percepção que penetrou o universo das poéticas e embasou
a tônica de muito da leitura crítica da poesia no Brasil - observável não só em
trabalhos dos concretistas, mas de poetas-críticos grandemente influenciadores da
nossa poesia pós-1960, como Mário Faustino e José Lino Grünewald, atingindo um
sem número de vozes e "variantes poéticas".
Ao formalismo russo, ao New Criticism e às propostas de Pound,
acrescentaram-se posteriormente os estudos teóricos de René Wellek e Austin
Warren, afirmando os estudos intrínsecos e a organicidade da literatura, na relação
entre poética, teoria, crítica e história, e os pressupostos do estruturalismo francês
(Lévy Strauss, Roland Barthes, Louis Althusser, Michel Foucault). Todo esse
cabedal transformador da visão sobre o texto literário e sobre a poesia vai alterar os
fundamentos e os procedimentos da crítica brasileira, fornecendo elementos para
uma crítica não mais subjetivista, histórico-biográfica, retórico-gramatical ou uma
"crítica dos conteúdos", com foco em elementos exteriores ao texto, vigentes desde
o século XIX. Sequencialmente e ao par de uma nova perspectiva crítica no Brasil,
em que procurou articular critérios estéticos e sociológicos, com Otto Maria
Carpeaux, Afrânio Coutinho, Antonio Candido (BARBOSA, 1990, p. 58), o interesse
passa a uma crítica imanente, na perspectiva formalmente qualitativa, estética,
construtiva e orgânica do texto e da exigência de uma "releitura daqueles valores
históricos que elas integram à composição" (BARBOSA, 1990, p. 61), a partir desta.
Assim, com base na relação sistemática entre perspectiva crítica e perspectiva de
criação, já vastamente solidificada na modernidade, e na relação entre o poeta e a
universidade, solidificada na contemporaneidade, o caminho para uma nova
perspectiva de criação, de trabalho poético e de exigências de abordagem do texto
pautada numa razão formal do poema, pôde estabelecer-se definitivamente.
201

2.3.2.2 Crítica da lírica diarreica e paradigmas da nossa "tradição formal":


Concretismo e João Cabral de Melo Neto

"A verdade é que as "subdivisões prismáticas da ideia"


de Mallarmé, o método ideogramático de Pound, a
apresentação "verbivocovisual" joyciana e a mímica
verbal de Cummings convergem para um novo conceito
de composição, para uma nova teoria de forma − uma
organoforma − onde noções tradicionais como princípio-
meio-fim, silogismo, verso tendem a desaparecer e ser
superadas por uma organização poético-gestaltiana,
poético-musical, poético-ideogrâmica da estrutura:
POESIA CONCRETA."

(Augusto de Campos. pontos-periferia-poesia-concreta.


1965 [2006], p. 42).

"À poesia como uma metáfora crítica acopla-se a poesia


como tradução, articulação interiorizada de palimpsestos
culturais em que o tempo e o espaço são recuperados e,
simultaneamente, consumidos na vertigem dos jogos
com a linguagem. São exemplos os textos críticos e
traduções de Haroldo e Augusto de Campos, para ficar
com o legado mais inovador da vanguarda."

(João Alexandre Barbosa, A leitura do intervalo, 1990, p.


61)

Falar com coisas

As coisas, por detrás de nós,


exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
Dizem: falar sem coisas é
comprar o que seja sem moeda:
é sem fundos, falar com cheques,
em líquida, informe diarreia.

(João Cabral de Melo Neto. 1997 [1985], p. 246-247)

O ferrageiro de Carmona

[...]
Dou-lhe aqui humilde receita
ao senhor que dizem ser poeta:
o ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarreia.

Forjar: domar o ferro à força,


não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga."

(João Cabral de Melo Neto. 1997[1987], p. 289)


202

As citações acima, ao modo de epígrafes, resumem de modo bastante


preciso as duas perspectivas formais, diríamos, mais importantes e influentes das
últimas décadas no Brasil, que se comunicam com a tradição de lógica racional
criativa e da construção objetiva − concreta, cada uma à sua maneira − do poema.
Essas duas perspectivas são o bastante para uma noção geral de um contraponto a
uma poesia menos rígida em seus processos criativo, mais ligada às instabilidades,
acasos e desarranjos vitais. Trata-se dos casos exemplares do Concretismo
brasileiro e do rigor poético-construtivo de João Cabral de Melo Neto.
O movimento concretista teve início com o grupo de poetas e a revista
homônima Noigandres (1), de 1952 – nome que remete a uma palavra utilizada por
um dos "poetas-inventores" pesquisados por Pound, o trovador Arnaud Daniel, e
utilizado por aquele poeta-crítico no "Canto XX" de sua obra The PinsanCantos [Os
Cantos Pisanos]. A palavra foi tomada pelos concretista como significando
"invenção", ato que revela em si já não apenas uma filiação, mas também a
proposição adotada pelo grupo da recorrência à tradição e à tradução (à tradução
como crítica, com base em pressupostos poundianos), como lastro de uma
"vanguarda dialética", como a que se propunha ser. O grupo teve como fundadores,
e mobilizadores/articuladores, os poetas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e
Décio Pignatari, além da participação de José Lino Grünewald, Ronaldo Azeredo e
Ferreira Gullar – este, polemizando contra o núcleo duro da racionalidade
construtiva do Concretismo, e rompendo com o grupo, fundou o Neoconcretismo
com outros artistas (Hélio Oiticica, Lígia Pape...). O Concretismo, seguindo uma
feição de vanguarda, também publicou alguns manifestos − ou textos a propósito de
manifestos −, tais como o "Olho por olho a nu (manifesto)", de Haroldo de Campos;
"Poesia concreta (manifesto), de Agusto de Campos e "Nova poesia concreta
(manifesto), de Décio Pignatari, todos publicados inicialmente na Revista de
Arquitetura n. 20, denovembro/dezembro 1956, e republicados sequencialmente no
Jornal do Brasil, em 1957110.
O Concretismo, como já vem sendo visto em comentários anteriores
apresenta o poeta Mallarmé, por sua obstinação em torno da razão formal do poema
e pela instauração da "crise do verso" como sua principal âncora da tradição
modernista para o movimento. A segunda grande âncora foram os pressupostos
fanopeicos, imagísticos e ideogrâmicos de Pound, mas, deste poeta o grupo
110
Informações retiradas de CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006, passim.
203

incorpora também seu pendor do trabalho com outras línguas, com a formulação de
uma proposição, uma paideia literário-cultural lastreado na eleição de grandes
mestres – da tradição medieval inglesa à chinesa, japonesa, e de um vasto acervo
latino – e na pesquisa metódica. Incorpora também um posicionamento radical e
incisivo, de pendor totalizante. Esta palavra não deve soar estranha ou escandalosa,
neste caso, em relação ao movimento, que a utiliza de maneira "dialética". Ao
mesmo tempo em que é rejeitada, parece ser também preconizada pelo próprio
Haroldo de Campos, como na introdução à 1ª edição da Teoria da poesia concreta
(2006, p. 9, grifo meu) – "[o Concretismo] ofereceu, pela primeira vez, uma
totalização crítica da experiência poética estante, armando-se de uma visada e de
um propósito coletivos" – e, além disso, tal pendor é reconhecido, também como um
fato contraditório, por seus críticos:

O conceito de poema pós-utópico [no sentido de poema sem pretensões de


engajamento estético ou político que lhe seja exterior] foi formulado por
Haroldo de Campos que, renunciando ao "projeto totalizador da vanguarda"
propõe uma poesia de pós-vanguarda "em dialética permanente com a
tradição". Infelizmente, a renúncia ao projeto totalizador da vanguarda não
significou a renúncia ao projeto totalizador do concretismo; e o poema pós-
utópico não é o poema pós-moderno, e sim apenas o desdobrar de uma
tradição específica (a da paidéia concretista) em manifestações como a
poesia digital, a poesia visual e o neobarroco. Tampouco a renúncia ao
projeto totalizador da vanguarda significou, para os descendentes do
concretismo, a renúncia de uma feroz militância pela supremacia de sua
visão sobre a poesia (REZENDE, 2013, p. 127, grifos meus).

O projeto concretista trata de acolher, então, outros autores que


consideram inovadores da forma e da sintaxe visual poética, tais como citam, James
Joyce e Cummings, o primeiro, com larga relação com Pound e Eliot, e o segundo
com vários trabalhos criticados positivamente pelo autor de The Pisan Cantos. De
Joyce, as multitudes formais, texturais, de intertextualidades, variações estilísticas,
linguísticas, idiomáticas, rupturas sintáticas e disposições "verbivocovisuais",
presentes, principalmente nas suas obras Ulysses e Finnegans Wake. São rupturas
e inovações na linguagem que, no Concretismo, e após, comunam-se nos suportes
audiovisuais e digitais, adquirindo um sem-fim de possibilidades plásticas. Do poeta
e ecummings, por seu turno, as quebras sintático-semânticas da linguagem, até o
microrritmo fonemático, fornecem um novo élan de sentido para o corte sígnico-
visual e o design da palavra, próprios das estruturas concretas da poesia verbovisual
e do que podemos chamar de plastipalavra e intersemiopoema (que integra, agrega
204

ou funde conceitualmente vários sistemas ou suportes de comunicação, culturais ou


artísticos):

A poesia concreta coloca o poema sob o foco de uma consciência


rigorosamente organizadora, que atua sobre o material da poesia de
maneira mais ampla e mais consequente possível: palavra, sílaba, fonema,
som, fisiognomia acústico-vocal-visual dos elementos linguísticos, campo
gráfico como fator de estruturação espaciotemporal (ritmo orgânico),
constelações semânticas precipitadas em cadeia e consideradas
simplesmente do ponto de vista do material, em pé de igualdade com os
restantes elementos da composição (CAMPOS, 2006, p. 80-81).

Deste modo, e acrescentando à narrativa de sua gênese a antropofagia


dos experimentos vanguardeiros, com uma base literária forte responsável por
inúmeras transformações no corpo da linguagem literária na modernidade,
transformações propriamente formais que deram os passos fundamentais para a
transformação da literatura e da poesia no que ela é hoje, e unindo a essa base
pressupostos da linguística, da semiótica, do design e da arquitetura, o Concretismo
contribuiu e atuou para que a poesia primasse pela construtividade de sua forma e
pelo esforço intelectual a ser empenhado em sua criação. Porém, para além disso,
também justificou e ainda justifica, em não poucos casos, um discurso da totalidade
dessa forma, alcançando o que, em muitos poetas, descambou para o ludismo
linguístico-semiótico ou para o formalismo autojustificado.
No que diz respeito ao outro grande ponto culminante da tradição formal
brasileira, João Cabral de Melo Neto, embora tenha começado sua produção num
viés surrealista (A Pedra do Sono, 1942), a partir do seu terceiro livro, O Engenheiro,
de 1945, e outras referências metalinguísticas/metapoéticas111 como Poesia e
composição (1952) e Escola das facas (1980), assume o viés poeticamente
declarado do rigor construtivo, do labor poético – a "máquina da escritura" (imagem
associada a Paul Valéry112) –, enquanto precisão de engenharia, simetria, ou
assimetria planejada, enfim da objetividade formal 113. Insere-se de modo original na

111
"Entre o poeta e a poesia inscreve-se um espaço de compromisso autodefinidor: a sua definição
será o seu fazer e este, por sua solidez pretendida, há de evitar a imprecisão (...) e a fuga(...)"
(BARBOSA, 1986, p. 112).
112
Cf. PEIXOTO, 1983, p. 42.
113
Alguns trechos representativos desse projeto de objetividade e sua metapoética: "A luz, o sol, o ar
livre/ envolvem o sonho do engenheiro. /O engenheiro sonha coisas claras:/Superfícies, tênis, um
copo de água. //O lápis, o esquadro, o papel; /o desenho, o projeto, o número: / o engenheiro pensa o
mundo justo, /mundo que nenhum véu encobre." (O engenheiro – CABRAL, 1997, p. 34 ). Ou em
Psicologia da composição – poema VI (idem, p 63.): "Não a forma encontrada/ como a concha
perdida/ nos frouxos areais/ como cabelos//[...] mas aforma atingia/como a ponta do novelo/ que a
atenção lenta,/desenrola".
205

tradição da razão formal poética de um Valéry, uma relação poética assumida, mas
evocando, além de processos compositivos da pintura (Miró, Mondrian), outros
poetas da objetividade, tais como Jorge Guillén114, e os que ele homenageia no
poema "O sim contra o sim", em Serial (1961[1997]): Francis Ponge, autor de Le
parti prisdeschoses [O partido das coisas], publicado na França em 1942, e Mariane
Moore – correspondente de Pound e apreciada por Eliot. Como os poetas
homenageados, João Cabral partilha o interesse pela objetividade das coisas e pela
assepsia poética, secura e concretude da palavra e dos objetos, e sua incisão, mas
também por uma "fala" dos próprios objetos em seus vários desdobramentos,
tendendo a abrangência e ao humor (PEIXOTO, 1983, p. 150) – a própria imagem
do novelo, de "desenrolar, desenovelar, dar voltas ao redor", muitas vezes utilizada
por Cabral e como metáfora de uma poética de desdobramento, reprocessamento
(aclarador, ressignificante, concedendo nova concretude) do objeto funciona
também como um princípio, com sua particularidade, obviamente, na poética
pongiana.
É nesse sentido que Cabral recusa e ironiza tanto uma poética da
verborragia sentimental, abstrata e confessional, quanto uma poética realizada
espontanemante, sem esforço, aquele esforço que dobra o ferro – a palavra trazida
ao território do poético –, até transformá-la no que o poeta deseja, projeta, planeja:
"que pode até ser flor, se flor parece a quem o diga". Ou, como explica Marcos
Siscar (2010, p. 290-291), em seu Poesia e Crise, uma poética pensada
arquiteturalmente, em que a figura da forma aparece como recipiente de um volume,
isto é, o procedimento construtivo precede aquilo que lhe serve como matéria para a
obra.
À lírica sentimental, abstracionista, subjetiva e verborrágica,
pressupostamente inspirada, uma "lírica diarreica", Cabral lança, portanto, sua crítica
feroz e seu humor ácido. Humor e questão que o faz associar poesia, concretude,
substância e fezes, e diferenciar o esforço concreto do descontrole, e elevá-la à
condição de qualquer outra palavra "sublime", com a diferença de que essa possui
da substância e dimensão palpáveis, como em Antiode (E), de Psicologia da
Composição:

114
Segundo Barbosa, um verso de Guillén, "Riguroso horizonte", utilizado por Cabral para epigrafar
Psicologia da composição, Fábula de Anfio e Antiode, une à ideia da "poesia pura" de Valéry a
possibilidade, aprendida com Guillén, de vincular perfeição e abertura, o espaço a ser construído por
uma linguagem, como "frágil e difícil profundidade do mundo" (BARBOSA, 1986, p. 102-103).
206

Poesia, te escrevo
agora; fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras

Palavras és, palavras


impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,

Contanto com sua


breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe

como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.

(CABRAL, 1997, p. 69)

Conjugado a esse projeto crítico e mesmo educativo115 de trabalho com a


linguagem poética, em seu "riguroso horizonte", João Cabral voltou-se para a crítica
social ácida e pungente, tendo como centro e mote de universalização poética, e
humana, as paisagens problemáticas do Nordeste brasileiro, tais como em O Cão
sem Plumas (1950), O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua
Nascente à Cidade do Recife (1954)e Morte e Vida Severina (1955). Traz ainda, em
sua obra, uma contínua presença da Espanha e de Sevilha e a constituição do que
poderíamos chamar de uma "áspera galeria de afetividades" (pessoas, artistas,
paisagens, personagens, objetos e projetos artísticos de interesse, em geral
submetidos a uma "didática poética" universalizante). Contudo, o que penetrou e se
solidificou como rastilho na paisagem poética brasileira como uma fonte de
influências, reverberando a "perfeição", o "trabalho poético" – germe para um
reconhecimento justamente profissional – e a racionalidade necessária ao fazer, foi
o projeto construtivo, concreto e objetivo da poesia de João Cabral. No geral, tal
reverberação não pôde captar, porém, as próprias tensões que Cabral estabelecia
no âmago desse projeto, já pela força da criação poética ao lidar com o horizonte da
linguagem, já pela força da ácida ironia desse poeta.
115
"Há uma espécie de educação em toda sua obra, que se manifesta em termos de uma singular
imitação: aprendendo com os objetos, coisas, situações, pessoas, paisagens, etc., a sua linguagem
foi, aos poucos, montando uma nova forma de ver – que o leitor, por sua vez, aprende ao apreendê-la
– jamais permitindo-se a falcilidade de um dizer didático, desde que sempre dependente do fazer
poético. Uma educação paradoxal porque poética [...]" (BARBOSA, 1986, p. 108).
207

Importante trazer duas observações.


A primeira observação é a de que o projeto poético de João Cabral,
embora leve a questão do rigor formal à sua radicalização, não está sozinho, no
aspecto geracional. Esse poeta é considerado como um dos integrantes (juntamente
com Lêdo Ivo, Geir Campos, Mário Quintana, Tiago de Melo, entre outros[as]...), e
talvez o maior representante, da Geração 45, conhecida por primar pelo cuidado
formal, seja no sentido de uma estética com altos padrões técnicos do verso, com
aposta na discursividade controlada e incisiva, seja na utilização linguística de um
registo formal culto, porém numa linguagem simples, direta, clara, aberta, bem como
na presença de um sentido ético e reflexivo universal.Fato é que tal Geração é
marcada, dentre outras, por controvérsias sobre sua abrangência e vigência
temporal, mas suas obras, incluindo as de João Cabral, vão surgir ou consolidar-se,
na verdade, a partir dos anos 1950, com concepções e reverberações adentrando
por outras décadas. Devemos considerar ainda que ela é representada por
componentes não programáticos, cujos elementos agregadores giraram em torno do
abandono dos ideais do primeiro modernismo brasileiro − o qual lançava seu foco
em destaques da cultura brasileira e numa linguagem "antropofágica-tupiniquim" −,
para justamente, propor essa estética da preocupação de incidência formal (e no
entanto não devemos esquecer sua proposição social, lírico-existencial, humanística
e, até, ecológica).
A segunda observação a ser citada, no caso dessas duas linhas de
construtividade poética, é que elas irão confluir entre si, tanto no que diz respeito a
certas referências preciosas a ambos, como podemos abstrair do que até agora foi
comentado a respeito, como também em relação aos princípios cognitivos e
construtivos bastante aproximados. Isto levando em conta que, diferentemente do
Concretismo, João Cabral opta pelo verso tradicional e sua estruturação estrófica,
procurando exercer sua assepsia e sua objetividade nas potencialidades da
linearidade discursiva da cadeia verbal. Não à toa, invocando essa proximidade,
Haroldo de Campos comenta o seguinte:

No Brasil, depois de raras e casuais realizações – de Mário e Oswald de


Andrade (este tendo a vantagem do gosto pelo emprego da palavra direta,
que funciona, então, como antimetáfora) – somente João Cabral de Melo
Neto veio colocar com lucidez alguns problemas de interesse. Em alguns
poemas seus, a palavra nua e seca, as poucas palavras, a escolha
substantiva da palavra, a estrutura ortogonal, arquitetônica e neoplasticista
208

das estrofes, o jogo de elementos iguais estão a serviço de uma vontade


didática de linguagem direta, lição que não deveria ser esquecida [...]. A
João Cabral deve-se o primeiro ataque lúcido contra o jargão lírico e a peste
metafórico-liriferante que assola a poesia nacional e mundial. Mas caberia à
poesia concreta retomar, em bases críticas, e com propósitos de
continuidade e amplitude, uma tradição perdida de sessenta anos, repondo
tudo em questão e recolocando todos os problemas para a criação de uma
nova linguagem poética (PIGNATARI, 2006, p. 98-99).

Tal confluência de princípios e preceitos veio desembocar numa


confluência de escrituras, na poesia que se seguiu a essas duas vertentes da
tradição, não necessariamente ligada a elas, mas em poéticas que elas serviram
para impulsionar ou alimentar, constituindo-se em ganhos e fontes estéticas às quais
a nova poesia podia lançar mão. Assim, mesmo a poesia dita de vanguarda e com
um pé fincado na experiência histórico-vitalista miscigenou delas o que lhe convinha,
principalmente, num primeiro momento, do Concretismo. Um caso paradigmático é o
de Paulo Leminsky, que uniu a expressão da poesia marginal e "undergroud" à
forma concretista, com acento forte no orientalismo – o haikai, os conceitos zen (que
já estava na cultura beat/hippie do seu momento) e o ideograma −, tanto como
experiências de suas leituras quanto como vestígio das reivindicações da poesia
concreta. Esse hibridismo determinará uma poesia que se delineará como
"compósita"116, ou seja, já dentro de uma rede de possibilidades não programáticas
que caracteriza a contemporaneidade. Entretanto, as projeções concretistas, com
seu discurso e a força estética de João Cabral de Melo Neto terão
reconhecidamente sua herança forte no que se denominou "retradicionalização da
poesia" dos anos 1980/1990, gerando uma preocupação da crítica sobre seus
caminhos:

Não creio que, por esse caminho, a Geração de 1980 venha a construir uma
obra capaz de conduzir a poesia brasileira a níveis mais elevados – pelo
menos ao patamar a que a conduziu a Geração-60. O que temos
constatado em grande parte da produzida e reconheda até agora é uma
ainda forte influência do distante Concretismo – o que seguramente é um
caminho aberto para o fracasso de toda uma geração, pela renúncia à
criação de uma poética própria, como se exige de toda geração (LYRA,
1995, p. 127).

Ainda sobre a influência do Concretismo, comenta Pedro Lyra (1995, p.

127): "[Os concretistas] trataram de promover os jovens mais aproximados de sua

116
"Com vários segmentos e vertentes, estilos e tendências fundindo-se num amplo sincretismo"
(LYRA, 1995, p. 159).
209

estética, denunciando aquele melancólico anseio de toda geração a caminho da


retirada: deixar discípulos, na inútil tentativa de prolongar o seu próprio por outras
gerações". Controvérsias à parte, fato é que, seja sob a égide da intertextualidade,
do esteticismo como índice de valorização colocado a partir da tradição formal
ocidental, de uma "lírica suspensiva" ou do ornamento117, ou das reais conquistas do
concretismo enquanto pensamento e pesquisa do poético, ele continuou ecoando na
poesia contemporânea. Quanto a João Cabral, por sua vez, tornou-se não só um
legado, no sentido de uma educação poética crítica − conforme percebeu Barbosa −,
ou como uma voz que dramatiza o fazer poético, lançando desafios para vozes e
práticas, interlocuções e contraposições, como é o caso do recente a cadela sem
Logos (2007), de Ricardo Domenek118, mas também um ícone cuja poesia foi
aquinhoada por diluidores e imitadores que nada acrescentaram de expressivo à sua
proposta, à linguagem ou à poesia. As duas grandes linhas, de Cabral e do
Concretismo, unem-se, portanto, a outras grandes propostas da literatura brasileira
para a constituição, ao mesmo tempo, de uma "reserva de grandeza e
criatividade"119 poéticas e de um perigo, quando tomados como ponto final de
criação.

117
"Agora todas as tradições estão franqueadas, conquanto o poema desarme a inquietação
autoproblematizadora, caracteristicamente moderna, à procura de dicções elevadas e pluralistas que
desrealizem sua matéria ao mesmo tempo que a ornamentem" (SIMON, 2013, p. 176).
118
Cf. NUERNBERGER, 2013, p. 113-115: "As variações [de cadela sem Logos] são, antes, modos
distintos de observação dos mesmos objetos, o que aliás, aproxima o poema do modo compositivo de
O cão sem plumas. As diferenças, entretanto são gritantes: se Cabral 'fraciona e rearticula
arbitrariamente' a imagem do rio Capibaribe para torná-lo 'cada vez mais concreto, como um bicho'
[palavras de Ferreira Gullar, reempregadas], Domenek renomeia os objetos – por processos como
denotação, tradução, especificação, generalização, etc. – e revela a arbitrariedade inerente à
linguagem e seu instrumento".
119
SIMON, in: CATRÓPA; NUERNBERGER; MARTIN, 2012, p. 165.
210

2.3.3 – Vibrações de uma querela: quando a flor vermelha é apenas a mancha de


uma bala perdida

a flor do design

a flor do design é a
mesma,
a flor do design,
é terno furor
é terna forma e
cor (que jamais esperas
do desespero)
a flor do design é sempre a mesma

flor

(Hagamenon de Jesus. 2002. p. 101)

Rose is a rose is a rose is a rose

(Gertrude Stein)
"Eu acho que nessa linha a rosa é vermelha pela
primeira vez em poesia inglesa por cem anos")120

A questão da forma como artesanato do especialista, como signo vazio ou


como ornamento (espetáculo sofisticado); da forma como a linguagem do ser ou do
desejo objetivado do sujeito (o ferro dobrado é flor a quem o diz; "a flor do design/ é
terno furor", cor abrupta do desespero, repetição erótica); da forma como memória
de uma realidade na eterna tentativa de sua recuperação, da recuperação inaugural
do vermelho da rosa (fraturado entre a linguagem e o esquecimento) – enfim, os
vários problemas levantados pela forma, aqui exemplificados – e as questões sobre
os aspectos da experiência que aí já vibram, no avesso, tem se tornado um debate
digno de atenção nas percepções e abordagens críticas dos últimos anos. Nesse
caso, frente às questões da experiência como mergulho na realidade cuja expressão
poética convincente torna-se impossível ou falseada sem tal imersão, ou, ainda, a
própria recusa da experiência como essencialmente antipoética, como desarranjo,
senão como índice de ingenuidade ou ignorância dos pressupostos elementares da

120
STEIN, G. Sacred Emily (A rose)Disponível em:
http://www.phrases.org.uk/meanings/15900.html.Acesso em novembro/2016.
211

arte, que resultaria numa perda de valor estético ante uma crítica contemporânea
altamente especializada. Isto no reconhecimento de que, se a crítica vive sua própria
crise, ela ainda é um campo detentor de um discurso influenciador do olhar (crítico-
criativo, mercado, aceitação, premiação...), em relação a um objeto cuja circulação
maior ainda se dá, prioritariamente, entre seus próprios pares.
O debate tem sido posto nos termos de uma recente "volta à experiência",
ao presente, aos problemas e acontecimentos comuns, isto é, cotidianos e de todos,
e à referencialidade e à oralidade [coloquial], após um "ciclo de retradicionalização",
formalismo inócuo e sublimização estética, percebido por mais de um estudioso da
poesia surgida nas décadas de 1980 e 1990. O movimento rumo a essa
retradicionalização seria coincidente com um retraimento, um mal-estar, um discurso
de "crise" ou desconcerto da poesia, em contraposição com a mais recente explosão
de produção poética, de "afetividades coletivas" e de alternativas de publicação,
inclusive eletrônicas e artesanais – dentro das perspectivas de compartilhamento,
das trocas e afetividades sociais, da sofisticação dos mecanismos e estratégias
mercadológicas, dos tratamentos comerciais que a situação coloca. Isto justamente
num momento em que, paralelamente a esse boom, surgem interrogações sobre
uma poesia capaz de falar das demandas e angulações deste tempo, dos processos
reivindicatórios, do impacto da violência sobre todos e sobre todas as formas de
vida, das relações entre lírica, interlocução, classe e consumo... enfim, da própria
possibilidade da lírica.
Para termos uma ideia inicial da questão, Pedro Lyra, ao concluir estudo
sobre aspectos geracionais com foco na poesia por ele denominada da Geração-60,
observa na poesia de [19]80 um performatismo como "espetacularização das
formas", associando tradição às estéticas mundializadas da sociedade de massa.
Diz ele: "a [poesia] de 80, entrando em cena em plena pós-modernidade, incorporou
o performatismo de todas as manifestações estéticas vinculadas ao espetáculo
como dependentes da configuração das planetárias e informatizadas sociedades de
massa" (LYRA, 1993, p. 159).
Iumna Maria Simon, por sua vez, vai denunciar o anacronismo da
retradicionalização, enxergando nessa poesia uma situação-limite de beletrismo e
preciosismo verbal, entendendo o pluralismo contemporâneo como sintoma de
incapacidade de posicionamento frente à “catástrofe pós-moderna” e inconsistência
histórica decorrente do que seja entendido como culto, da citação de gêneros e
212

formas já institucionalizadas, bem como do afastamento do presente, quadro que


teria como motivação original “o princípio pós-utópico celebrado por Haroldo de
Campos, ao reconhecer a falência do ideário uniformizador do vanguardismo”
(PEDROSA, 2001, p. 8).
Essa retradicionalização, que, para Simon (2013, p. 178), surge
paradoxalmente nos anos de redemocratização do país, significa, "incorporar as
tradições modernas, traduzir o teor originalmente crítico delas em formas
convencionais e autorreferidas, mediante o trabalho de linguagem e sob o amparo
do 'rigor de construção', paradoxalmente assumidos como capazes de preservar a
autonomia poética e o ofício do verso". Esse movimento não programático parecia,
segundo a autora, reagir à desqualificação formal e à baixa mimese da poesia dos
anos anteriores (1970), porém, ao mesmo tempo, desloca-se da experimentação
para a conceitualização dos conteúdos, tratados frivolamente como "matéria de
variações":

A poesia deixou de ser companheira de viagens, deu as costas aos


acontecimentos, os quais no entanto a afetavam no mais íntimo de sua
capacidade criativa. [...] Em tais circunstâncias, restou aos jovens criadores
– e a outros já não tão jovens – a recombinação desencantada de erudição,
o jogo das referências literárias e artísticas, dentro do espírito genérico da
intertextualidade pós-moderna, que, no caso brasileiro veio auratizar o
poema e sublimar o presente. A escrita abstrata e descarnada precisou se
"poetizar", disfarçando a rarefação referencial e a indeterminação
discursiva, ainda que existissem nela muitas manchas de divagação lírica,
confessionalismo e alguma reflexão existencial. [...] Com a rotinização e o
esgotamento da vanguarda, o que sobreviveu desta no período deixou de
ser matriz de experimentação para se tornar um ideal de alta cultura,
depuração e refinamento poéticos e, acima de tudo, intérprete da tradição
literária mundial (SIMON, 2013, p. 178-179).

Seguindo essa linha, a autora afirma que tais elementos já estavam na


poesia concreta, e por isso também esta pôde associar-se a esse novo quadro – ou
vice-versa −, suprindo o debate ou o programa estético. Simon tem abordado
contínua e criticamente essa retomada de certos pressupostos e modus operandi,
concebido como um "ideal de chegada" da contemporaneidade, em termos de uma
"retradicionalização frívola" que acaba por ser exultória de nossas deficiências
(SIMON, in: CATRÓPA; NUERNBERGER; MARTIN, 2012, p. 165). Entretanto,
conforme a autora, essa "retradicionalização" veio continuamente perdendo fôlego a
partir dos anos 1990: aos poucos, em paralelo com o boom produtivo da poesia, a
sintaxe deixa de ser recurso de obscurecimento do assunto (atenuação do
213

hermetismo); o poema que espetaculariza a proliferação e desmontagem de suas


imagens perde espaço para uma poesia de horizonte oprimido e desanimado, de
rotina de ninharias; redescobre-se o tom menor associado a contextualizações mais
densas e pessoais, que podem se unir ao experimentalismo de enunciação
assimétrica121, e ressurge o interesse pelo poema em prosa e certos impulsos de
narratividade (SIMON, 2013, p. 179). Este aspecto, por sua vez, o do impulso de
narratividade nessa poesia contemporânea, ganha interesse cada vez maior nas
análises da autora, e de poetas-críticos que seguem sua linha, como no caso de
estudos recentes de Heitor Ferraz a partir desse viés, mostrando novíssimas
publicações que ratificam essa percepção122.
A esta altura é que Simon, embora com ressalvas, aponta para um
encaminhamento dessa lírica em direção à retomada da experiência e da
contextualização da referência, colocando dois exemplos comparativos bastante
significativos para entendermos o conjunto dessa problemática.
Essa autora traz o exemplo de uma publicação de Regis Bonvincino,
Página órfã, de 2007, que à resenha jornalística pareceu "poesia política", e que, na
leitura de Simon, trata de uma violência escancarada, em que se equipara sujeira e
consumo, selvageria e técnica, top models e mendigos. Trata da miséria das ruas e
do desaforo do consumismo com o olhar objetivamente ostensivo do grafite. Assim,
ao mesmo tempo em que "extravasa uma indignação aparentemente explosiva, uma
gesticulação exacerbada de ativismo que não articula (sobrepõe apenas) as
imagens do horror econômico [...], a plenitude literal do mundo online a apodrecer
fica sempre preservada para assegurar a radicalidade dessa exposição vexaminosa"
(SIMON, 2013, p. 189). À sujeira mostrada e ao lixo social, o poeta contrapõe
instantes líricos da natureza, flores, vegetação rara. Para a autora, ainda não é o
caminho. Ela reflete que esse tipo de poesia privilegia a excitação hedonista do

121
Simon aponta como exemplo de uma poesia de espetáculo e proliferação de desmontagens, a
poesia de Carlito Azevedo, e como essa poética blasé, de horizonte desanimado e rotina de
ninharias, a de Tiago de Melo e Ronald Polito. Já em relação aos novos impulsos de
"experimentalismo da linha gráfica e do arranjo em blocos fora de sincronia com o ritmo e a
enunciação", essa crítica aponta obras de Ricardo Domeneck.
122
Fazendo um recorte para o seu “breve e precário balanço”, Heitor Ferraz de Mello (in: REVISTA
CULT 208, 2015, p. xx), focaliza, dentre a produção de 2015, os livros com “poemas longos, quase
narrativos, quando não inteiramente narrativos”, “...que já vêm chamando a atenção há algum tempo”:
obras recentemente lançadas de Ademir Assunção, Waldo Motta, Nuno Ramos, Chacal (e de outros
não exatamente narrativos, mas com "séries" de poemas divididos em seções, como Eucanaã
Ferraz), além de Fábio Weintraub, Arnaldo Antunes, Marcos Siscar. Cabe observar que Heitor, em
seu doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, é orientando de Iumna Maria
Simon, o que pode contribuir para essa confluência crítico-discursiva.
214

consumo da violência que, franqueando uma ilusão de proximidade, dessensibiliza e


dessolidariza, assim como a rotinização das imagens chocantes da mídia. E reitera
(2013, p. 190): "uma poesia que é só exterioridade ao que é dito e descrito, assim
como cabe à sua linguagem dar proteção e assertividade à posição de classe do
poeta, que parece blindado contra a miséria e a barbárie".
O outro exemplo, trata do poema Sítio123, de Cláudia Roquette-Pinto, que
é o foco, realmente, dessa abordagem crítica de Simon. Esta autora explica que
Cláudia manteve uma interlocução sistemática com várias frentes [de feições tanto
formais quanto experienciais] da poesia contemporânea, e com poetas de diferentes
registros, fundindo experiências nacionais e internacionais, o que pode explicar o
"curto-circuito" do poema em questão, um poema que trata do inferno da violência
urbana a partir de um centro enunciador subjetivo, apresentando tomadas
indeterminadas de uma zona de conflito que se depara ante a objetividade – e, ao
mesmo tempo, com a linguagem objetiva de um relato oral ou notícia – real de uma
bala perdida. Simon (2013, p. 183) vê ainda no poema uma dificuldade em lidar com
a referência, dificuldade esta advinda de uma poeta pertencente a uma geração que
"cultiva a desrealização do referente, o lacunar, imagens obscuras e autônomas, a
pura intertextualidade das designações em cadeia, cuja prática poética não se
disciplinou na relação com o dado imediato da realidade. Daí a ousadia de um
poema como esse [...]", estabelecido entre a poesia referencialmente rarefeita, a
explicitação referencial e a imagética introspectiva.
Nessa análise crítica, também o arranjo formal do poema de Cláudia
atesta uma vulnerabilidade da poesia ante a realidade. Ela oferece proteção por
imagens, mas falha diante da bala perdida, que a metáfora não dá conta, e que a
realidade precisa tudo redefinir, mesmo que com isso, se rompa toda sua estrutura:
123
"[Sitio]
O morro está pegando fogo./O ar incômodo, grosso,/faz do menor movimento um esforço,/como
andar sob outra atmosfera,/entre panos úmidos, mudos,/num caldo sujo de claras em neve./Os
carros, no viaduto,/engatam sua centopéia:/olhos acesos, suor de diesel,/ruído motor,
desespero surdo./O sol devia estar se pondo, agora/ − mas como confirmar sua trajetória/
debaixo desta cúpula de pó,/ este céu invertido?/ Olhar o mar não traz nenhum consolo/ (se ele
é um cachorro imenso, trêmulo,/vomitando uma espuma de bile,/e vem acabar de morrer na
nossa porta)./Uma penugem antagonista/deitou nas folhas dos crisântemos/ e vai escurecendo,
dia a dia,/os olhos das margaridas,/o coração das rosas./De madrugada,/muda na caixa
refrigerada,/a carga de agulhas cai queimando/ tímpanos, pálpebras:/ O menino brincando na
varanda./Dizem que ele não percebeu./De que outro modo poderia ainda /ter virado o rosto: -
Pai! /acho que um bicho me mordeu! assim /que a bala varou sua cabeça?"
– Cláudia Roquette Pinto. Disponível em: http://www.claudiaroquettepinto.com.br/livros-
margem.html#sitio. Acesso: dezembro/2016.
215

Por ser o poema meio desconjuntado, na alternância de registros descritivos


e expressivos, ao reproduzir o mesmo desconhecimento da criança sobre o
que se passa. [...] Vejo aí a similaridade entre a criança baleada e o ponto
de vista do poeta, cuja posição é equivalente à do menino que morre sem
saber o que está acontecendo e pronunciando uma fala também imagética.
[...] A grande fala que o poeta poderia enunciar seria com toda
probabilidade uma fala errada numa hora errada – a de quem morre por
acaso por engano por uma bala perdida (sugestão reforçada pela tipologia).
Esta pode ser uma alegoria do que é fazer poesia hoje numa sociedade
como a brasileira: o testemunho que o poeta poderia dar está aquém dos
acontecimentos (SIMON, 2013, p. 186, 187).

A questão central para Simon é, portanto, como tratar da violência e não


apenas incluí-la no poema, trazendo para dentro dessa questão problemáticas tais
como a discussão dos mecanismos de subjetivação e objetivação dentro do lírico, as
formas de apresentação do mundo contemporâneo, ou como tratar da experiência,
da realidade e da referencialidade sem perda de qualidade estética e sem demarcar
apenas um território do olhar preservadamente transcendente, na estética do
pitoresco e do espetáculo negativo. Daí, o exemplo dessa busca no poema de
Cláudia Roquette-Pinto, busca esta que precisa assumir a vulnerabilidade da poesia
e expor as carências do sujeito no sítio contemporâneo, ao mesmo tempo que, por
outro lado, apresenta um padrão novo de resposta poética reflexiva à experiência do
presente, ao não se subtrair aos aspectos negativos das transformações da vida
urbana.
Aliás, esta já era uma postura encontrada, na forma de uma preocupação
meio que premonitória, em outros poetas que vinham produzindo desde a década de
1980 (participando em antologias e outros eventos), ainda que publicando seus
livros apenas posteriormente, poetas estes já inseridos no contexto desta busca de
uma poesia e de uma linguagem para este novo tempo de intensa transformação. É
o caso, por exemplo, do livro The Problem e/ou os poemas da transição, de
Hagamenon de Jesus (2002), cujo título bastante significativo contempla não apenas
os aspectos da violência e do sujeito subjugado pela exasperação urbana, mas, da
mesma forma, um trajeto à procura de um corpo metafórico e de uma linguagem
simbólica correspondente a este novo olhar sobre o espaço, o tempo, o mundo. Este
livro já coloca, poeticamente, este problema tratado por Simon e que se apresenta à
poesia contemporânea, liricizando-o e discutindo-o em termos de uma relação
pragmática entre a linguagem da natureza e a linguagem da cultura, expondo-se
claramente a questão quando o poeta nos diz que seu livro “busca a metaforização
216

do que possa haver de permanência e sentido neste constante conflito de valores


essenciais x contingenciais, nesta transição de um mundo primordialmente agrícola
(extraído à Natureza), para um mundo gestado a partir da Segunda Natureza, a
tecnológico-cultural" (contracapa da obra, grifos meus), algo que, no livro, se coloca
em versos como os do poema Um dos cânticos dos cânticos:

Os que lutam com o Anjo


Estão mais alto que o Empire State Building

São os que abrem o coração para Deus

Os que lutam com o Anjo


Estão mais mais alto que o edifício Empire State Building

São os para quem foi escrito


"Que o amor é uma guerra perdida."
Os que talvez se matem.
[...]
Mas que não se enganem e/ou perturbem
Se, eternamente, os olhos de Prometeu estejam bicados
[...]
Com os olhos de Édipo nas TV's,
O silêncio da arca cheio de objetos, e os arcos
As alianças com aquilo que não vêem,
O amor
Ainda arde, em arco-íris, no coração dos CD's.
[...]

(CARVALHO, 2002, p. 83)

Nesse ponto, o poeta coloca em negociação aquilo que há de mais antigo


(um universo mítico-religioso, a pulsão sentimental/afetiva/erótica encarnada pela
dimensão amorosa), e, de outro lado, elementos que poderiam se contrapor
frontalmente, destruir ou se apropriar de tais universos para seus interesses e fins (o
mundo capitalista, o mundo da cultura massificada e tecnológica), mas que, talvez,
também possam vir a proporcionar novas chances de sobrevivência das dimensões
essenciais, arcaicas e atávicas, sob novas faces.
Outros teóricos, porém, têm apresentado uma visão diferente da de Simon,
como é o caso dos posicionamentos de Flora Süssekind e Susana Scramim,
posicionamentos estes que ficam mais claros tomando como ponto de partida a
avaliação que, tanto de um lado, quanto de outro, fazem sobre a poesia de Carlito
Azevedo. Para Iumna Simon (2013), Carlito é o representante por excelência da
retradicionalização e do espetáculo hermético/intertextual/pós-modernista, práticas
estas que Flora Süssekind entende como qualidades consistentes e produtivas. A
217

análise de Süssekind124 valoriza o construtivismo rigoroso, o redimensionamento do


prosaísmo e da subjetividade e aproveitamento das artes plásticas como discurso de
referência. Uma poesia como a de Carlito Azevedo representaria, “um esforço de
redefinição da forma e do significado do próprio tempo, da própria hora histórica em
território especificamente lírico” (PEDROSA, 2001, p. 8). A respeito de críticas feitas
ao livro As Banhistas de Carlito Azevedo, avaliado como esteticista por Simon,
Süssekind não deixa de acentuar que tal crítica seria uma nostalgia da poesia dos
anos 70125:

Se, em torno do segundo livro de poemas de Carlito Azevedo, parece ter se


criado consenso positivo incomum, há um tipo, desconfiado, de comentário,
também bastante repetido, sobre ele, que merece reflexão. Trata-se da
reclamação de que As Banhistas seriam um livro "limpo demais".
Comentário marcado por indisfarçável nostalgia estética dos anos 70
(SÜSSEKIND, 1998, p. 171).

Já não se trata, porém, de uma referência somente a Simon, mas


principalmente a Ítalo Moricone, outro crítico da poesia contemporânea que
considera esta como asséptica, higienizada e sublimizante. Para Moricone, esse
“momento sublimador” (o hoje) seria concomitante ao processo de despolitização
das questões de linguagem, de estética, de sujeito e de corporalidade na produção
poética contemporânea. Trata-se, para ele, de uma poesia de “pulsão retrógrada e
fascista […] direcionada para restaurar a ideia e a prática de um sistema totalizante,
excludente, fechado, homogêneo” (MORICONE, 1998, p. 104), uma poesia “clean”,
ascética, que não escancara a carnalidade e abjeções do corpo em sua contingência
e em seu caráter, deformado, grotesco, abjeto, escatológico.
Voltando à questão da posição de Süssekind, e certa insistência na
abordagem de Carlito Azevedo – como "mote" para algumas considerações da
poética contemporânea brasileira −, em novo comentário, agora sobre Versos de
Circunstância, publicado pelo poeta em 2001, ela ressalta positivamente outras
questões na poesia deste autor, a teatralidade e a narratividade (ou, já, uma
narrativização dramatizada nesta poesia), pontos que se encontram em paralelo nos

124 Cf. SÜNSSEKIND (1998, p. 171ss).


125 Bom lembrar que Iunma Maria Simon juntamente com Vinícius Dantas escreveram o artigo
“Poesia ruim, sociedade pior” (1985) sobre a poesia dos anos 1970, o que pode ter levado Süssekind
a essa fazer colocação. Por outro lado, constatamos também uma aproximação de Süssekind da
poesia de uma poesia de preocupação formal, vide o seu A voz e a série, de 1998, com destaque
para poesia de João Cabral de Melo Neto (rigor formal) de Augusto de Campos (concretismo) – e
Jorge Luís Borges (mestre da intertextualidade e da "biblioteca inifita").
218

trabalhos de Simon, em tom negativo (espetacularização) ou em tom positivo (a


narratividade). No entanto, Süssekind lembra que "nem narrativizações, nem
dramatizações são exclusividades do poeta, ou do momento atual da literatura
brasileira, sua conjunção tem se mostrado fundamental na produção recente de
Carlito Azevedo" (SÜSSEKIND, 2008, p. 63). Comentando sobre outro ponto
também caro a Simon, a relação entre a poesia e a realidade, que pode ser
especificamente tratada em termos de "referencialidade" ou termos de mímesis,
Süssekind aponta um processo de criação que se dá via dramatização textual
interna, teleologias e analogias que se fazem via "decomposição textual
segmentada". E, neste processo que se alimenta de "movimentos contraditórios,
uma semântica em ato, teatralizada no poema", a partir de imagens que remetem ou
sugerem a realidade do Holocausto − porém, no poema, colocadas como imagens,
por vezes em tom kitsch − que essa teórica reconhece, então, com o poeta, que a
possiblidade daquele "compromisso mimético da literatura brasileira" (grifo meu), já
se encontra dentro de uma "marca anacrônica da impossibilidade mesma da lírica
segundo Adorno"126:

É quase uma provocação em meio à violência das imagens do Holocausto e


da marginalização social nos grandes centros urbanos, em meio ao
compromisso mimético da literatura brasileira, que Carlito Azevedo aponte
como interlocutores Claude Lanzmann 127, que recusa as imagens de
arquivo, em prol de "restos de restos", e o de Rachel Whiteread 128, que
busca a tangibilidade do que não está lá e que tenta capturar essa ausência
com seus moldes de resina. Nos dois casos, é o que está a à margem que
passa a ocupar a atenção. Agindo como se não houvesse centro – vide
Gertrude Stein. Ou melhor, multiplicando os núcleos de focalização
(SÜSSEKIND, 2008, p. 80).

Nessa linha de Süssekind, outra teórica, Susana Scramim, também


questiona algumas das conclusões de Iumna e discute a crítica que esta faz – agora
juntamente com Vinícius Dantas − em texto129 sobre Carlito Azevedo. Se para Iumna

126
Cf. Süssekind, 2008, passim.
127
Claude Lanzmann (1925-1985) – cineasta franco-judeu, trabalha com testemunhos orais e
imagens recolhidas sobre o Holocausto.
128
Rachel Whiteread (1963-) – escultora inglesa, cujas esculturas também são memoriais do
Holocausto.
129
Trata-se do ensaio Negativo e ornamental. Um poema de Carlito Azevedo em seus problemas
(2011), de Iumna Maria Simon e Vinícius Dantas, em que, conforme resume Suzana Scramim, "os
críticos brasileiros, autores do ensaio apontam as características encontradas na poesia de Carlito
Azevedo que os fazem julgá-la como ornamental e sem função ou, em suas palavras, negativa: [e cita
trecho do referido ensaio] 'A autorreferencialidade, rebaixada a elemento, entre, outros, de
ouriversaria, obviamente perdeu o teor crítico- metalinguagem passa a significar produção de ilusão
encadeada, mera componente de uma maquinaria neoesteticista de efeitos, sem compromisso de
219

e Vinícius "a poesia de Carlito é ornamental e negativa, vazia de conteúdo vivido",


sendo que mesmo erotismo, que alguns consideram qualidade em Carlito ao ser
mostrado através de um procedimento de vertigem, para aqueles críticos não passa
de "espetáculo textual gozosamente tatuado" (SCRAMIM, 2012, p. 125), Scramim
concebe que o erotismo sempre foi um uso discursivo e performático, que a crítica
de Simon e Vinicius guarda estreitas relações com a prática crítica modernista, que
não incluiu em si mesma no quadro no qual o ornamento vicejaria, e nem inclui a si
mesma no interior da crise, instalando-se fora da crise mesma da linguagem, da
representação e do legado a ser transmitido:

Não produz dessa maneira o questionamento sobre aquilo que não cessa
de se inscrever, não cessa de nos escapar: a de como lidar com a relação
vital entre a crítica e a história do pensamento ocidental que a produz. Ou,
ainda: a de "como" prover de um sentido revolucionário a batalha da crítica
contra a superficilidade e a banalidade na primeira década do século XXI?
Entre o progressismo e o cinismo, há algum espaço de manobra que possa
fornecer a possibilidade da existência de uma cultura? (SRAMIM, 2012, p.
128).

Scramim entende que, se há uma "retradicionalização", conforme


percebida por aqueles críticos, isso significa que é preciso ouvir esse movimento
como voz capaz de produzir cultura a partir do reacomodar de camadas da história.
Se há uma "per vivência" [permanência/sobrevivência/resíduo vital] da tradição, de
elementos do passado, é preciso achar um espaço de manobra entre o tradicional e
sua retradicionalização, "entre morte e vida, para que se possa compreender o
sentido que essa ressonância devolve ao presente, ou seja, colocar em jogo, em
movimento esse processo de reverência ao passado observado" (SCRAMIN, 2012,
p. 128). Esta teórica, então, após referir-se a pressupostos benjaminianos sobre a
possibilidade de transformação e amadurecimento ao fazer história das cinzas da
história, do que "per vive na faísca do vivo nas cinzas", e de referir às propostas do
contemporâneo de Agambem, como uma temporalidade do presente que não cessa
de se repetir, que nunca funda uma origem, aproximando-se com isso da poesia,
avalia positivamente a poesia de Carlito Azevedo, e sua relação com as poéticas de

revelar os elementos materiais de figuração. Não exerce a função de criticar seu veículo e refletir
sobre o fazer poético, pois agora compõe a retórica da imagem (ou da metáfora), valendo por um
espetáculo verbal e conceitualmente prolífico de figuras e paramentações sem fim. A tônica deixou de
ser posta na desmontagem das imagens, ou nas interrupções autorreflexivas, porquanto a
metalinguagem tornou-se instrumento para a produção de beleza dentro do programa esteticista do
poema – programa mesmo da vanguarda e da poesia moderna. Negatividade ornamental, pois.'"
(SCRAMIM, 2012, p. 123, nota)
220

caráter formal, do passado. Por fim, a autora de Utópica e Funcional? Sobre a crítica
de poesia e seus impasses, texto em que coloca as questões comentadas, faz uma
observação bastante coerente, que a resguarda: "Contudo, que fique dito: a poesia
de Carlito Azevedo não é a poesia brasileira, bem como esse texto não é
representativo da crítica de poesia no Brasil de hoje. São apenas tentativas, um
'fazer' motivado pela 'vontade' artística" (SCRAMIM, 2012, p. 137).
Essas críticas mostradas em termos de linhas de avaliação sobre a
poesia brasileira – as quais se esboçam como uma contraposição de paradigmas
que por pouco evitam a querela –, são visões assumidas que não deixam de
provocar interrogação sobre possíveis motivações político-ideológicas que acabam
por retesar tais posições. De qualquer modo, sabemos que a questão vai muito além
de um pêndulo, uma dicotomia ou de lados contrapostos, para adentrar nas
ambivalências e nos "espaços potenciais" do poético (performance-
realidade/realidade-teatralização/poesia-mundo/pertencimento-afastamento; o vivido
e a forja e, até, a representação da representação), nas fragilidades e
complexidades provocadas entre poesia, linguagem e expressão, numa criação que
não pode ser simplesmente enquadrada, ou cujos indícios não podem ser
subestimados quando esse for o caso, uma vez que a poesia se coloca entre o peso
secular de sua voz, a contribuição individual de cada poeta, as realidades em que
este está imerso e as demandas que a cercam.
Por outro lado, não obstante a recusa muitas vezes apressada da
questão, de se houve recentemente, ou há, uma retradicionalização no sentido de
uma pauta poética construtivista constituindo-se como uma força na poesia
contemporânea, e quais seus termos, certamente há − de maneira difusa, mas
reconhecível − a ideia de uma interrogação pelos novos termos da poesia para este
tempo, de modo que ela também seja acontecimento que, a seu modo, não fique "de
fora" nem "por fora". E esta discussão não é apenas brasileira (TODOROV, 2012, p.
20-23). Quanto à inquietação recente em poetas brasileiros, apresento, de uma
entrevista ao Suplemento Pernambuco130 a voz oportuna do próprio poeta cuja obra
tem servido de combustível/combustão à referida discussão, que parece apontar
para a questão, buscando respondê-la de maneira inesperada:

130
GOMES, Igor. Todo poeta é de oposição: entrevista com Carlito Azevedo, em SUPLEMENTO
PERNAMBUCO – Entrevistas.. Disponível em:
http://www.suplementopernambuco.com.br/entrevistas/1736-todo-poeta-%C3%A9-de-
oposi%C3%A7%C3%A3o-,-diz-carlito-azevedo.html. Acesso em dezembro/2016.
221

A partir [de um trabalho com oficinas de poesia nas favelas da Rocinha e


Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro], qualquer coisa que eu escreva vai
ter, pelo menos idealmente, na minha cabeça, cada vez menos relação com
o que tradicionalmente se pensa que deve preencher um livro de poemas. O
que quer que eu escreva e faça agora tem que encarar o fato de que luta de
classes não se apazigua, luta de classes se ganha. E a poesia ou aumenta
o número de véus sobre esse fato, ou rasga esses véus. [...] Penso que
parte da poesia atual se aproveita do vazio deixado pelos “grandes letristas”
de MPB, e tenta aquela mesma voz dócil ao ouvido do leitor, aquele mesmo
poema-afago. É uma poesia que cumpre exemplarmente as expectativas do
leitor de poemas: colocar a mão no coração, dar um suspirinho e pensar:
“ah, é isso mesmo o que eu sempre quis dizer e não sabia como”... A
poesia que desejo é outra. Quase uma poesia de que se dissesse: “ah,
como eu preferia não saber isso, mas agora que sei não tem mais jeito, ela
não me permite mais o auto-engano”. Não há ninguém que ame mais a vida
do que eu, uma caminhada pelo centro do Rio [...]. E por isso minha
discordância do agora, todo feito de inviabilidades. Querem que você não
saia mais de casa, não vá mais para a rua, que a rua seja só a rota de
passagem de mão de obra para o trabalho, não mais o lugar do encontro.
Todo poeta é de oposição, já dizia o polonês, Zbigniew Herbert, e agora
mais ainda.

A fala vem colocar, por sua vez, a relação entre o poeta e o mundo/o
poeta e seu mundo e as fortes implicações desta no fazer poético. E não apenas a
relação entre poeta, linguagem e realidade, mas também entre a experiência e
expectativa do poeta e a experiência e expectativa do leitor, e as possibilidades que
esse conjunto de forças mobiliza sobre a realização poética. Uma pergunta sobre o
que o leitor espera dessa poesia, enquanto poesia, enquanto arte que pode
acalentar ou transtornar.
Tratar dessas questões na poesia é deparar-se com todas essas relações
e nuanças de relações, que acabam por ficar submersas e pulsantes dentro da
necessidade de um delineamento objetivo. Entretanto, todas elas vêm se colocar
sob as mesmas prerrogativas de um horizonte que sempre apresentou um duplo
chamado, mas que cada vez mais, recusa a ignorância, a bitola ou a indecisão.
Assim é que, dada sua importância para os caminhos da poesia atual, tais relações
e prerrogativas são trazidas à discussão (à querela?...) dessas duas categorias que
vêm sendo postas em evidência crítica na criação poética do nosso tempo: a forma
e a experiência.
222

3 SEGUNDA DOBRADURA - [QUADRO-SÍNTESE INTERPRETATIVO DA FORMA


E DA EXPERIÊNCIA]

Ao longo deste percurso do segundo capítulo – isto é, nessa possibilidade


hodológica dentre outras −, foi possível discutir a constituição da forma poética em
suas configurações e realizações, linguagens, vínculos e extensões; e os
pressupostos da experiência, tanto como imersão histórica, atravessamento factual,
individual e coletivo, qualificativo e quantificativo de cronoespacialidades
(espaçotemporalidades), quanto como constituição de possibilidades que laboram e
reelaboram as vivências, a duração e a retenção, a recordação e a lembrança, a
protenção e a expectativa. Mas foi possível também inserir nesta mesma discussão
certos traços históricos indicativos de como têm sido consideradas as categorias
forma e experiência dentro da tradição poética, das concepções da literatura, da
poesia e de sua crítica no Brasil – chegando, por fim, a um panorama da poesia no
momento atual, que se interroga cada vez mais pelo sentido do que é ser
contemporâneo, na ambivalência entre a fratura e a imersão, ante o mundo e seus
possíveis.
Esta segunda dobradura, no tríptico da tese, é uma pausa para definir
melhor os traços da forma e da experiência, no sentido de delinear especificidades e
elementos que contribuam para uma percepção mais objetiva de como se
configuram e constituem os horizontes de uma e de outra categoria. Para isso,
apresento abaixo um quadro-síntese e seu esclarecimento, que, ao mesmo tempo,
reforçam o que já foi apresentado e o suplementam, fechando este capítulo e, ao
mesmo tempo, ampliando-o, por evidenciar pontos fundamentais sobre a forma e a
experiência, os quais podem ser observados nas particularidades de cada poema
em discussão.
223

[Quadro 01: Especificidades configurativas


das categorias da forma e da experiência no poema]

(Fonte: [Própria] SILVA, 2017)

Neste quadro, forma e experiência são tomadas como categorias ou


dimensões fundantes do texto poético, operacionalizadas em termos semelhantes,
ou aproximados, basicamente para manter uma correlação de terminologias, ainda
que as saibamos não totalmente equivalentes. Devemos ter em mente que,
enquanto os traços formais apontam para as estruturações, a organização e
224

apresentação da escritura poética, as especificidades da experiência referem-se aos


processos vivenciais, existenciais, históricos e da vida coletiva, os modos de sentir e
relacionar-se com o mundo.
Um primeiro dimensionamento das categorias diz respeito a uma
orientação para a tensão ou para a distensão, no sentido de seu retesamento, isto é,
o acirramento, o endurecimento preocupado ou, no sentido inverso, para seu
relaxamento e sua espontaneidade. Temos, portanto, em termos de configuração,
direcionamento e intensificação, a formulação de um "quadro tensivo" e de um
"quadro distensivo", seja em relação à forma, seja em relação à experiência.
Detalhando um pouco mais estes quadros, teremos, para uma forma
tensa, uma proposição mais radicalizada, racionalizada e objetivada (claramente
construtiva ou formalista, tendente para o ideal da forma), e outra perceptivelmente
trabalhada, preocupada, por vezes, com uso das formas clássicas, porém menos
radical. A primeira seria o caso da podemos chamar de forma retesada e, o segundo
caso, o da forma densa. Talvez seja necessário esclarecer que o fato de um poema
ter uma forma densa, no sentido aqui colocado para vias de análise, não implica
num sentido denso, e vice-versa, já que podemos postular também a hipótese de um
"esvaziamento de sentido" da forma, quer dizer de um investimento formal sem uma
correspondência significativa.
Aprofundando mais o detalhamento, a coluna distensiva da forma foi
dividida em forma focalizada e forma coloquial (espontânea ou dissoluta).
Focalizada, no sentido de que ela tem uma proposta de simplicidade e
informalidade, sem densidade figurativa, porém com uma linguagem regular e
normativa que não admite o descuido, ao mesmo tempo em que esta simplicidade
pode ser apenas aparente, de fundo despojado ou prosaico, mas que não extravasa
para o espontâneo absoluto. Podemos ver alguns desses casos em Bandeira, em
Drummond, em Gullar e outros. A forma coloquial, por sua vez, localiza-se entre a
despreocupação, a informalidade e a dissolução intencionada, não raro, por uma
orientação experimental ou proposta contranormativa.
Mantida a mesma proposta de configuração, a dimensão da experiência
foi dividida do mesmo modo que a forma, em tensa e distensa. E, como já foi dito,
devemos pensar agora nos processos experienciais, páticos, vitais e históricos,
contexto e circunstâncias (dos sujeitos, das vozes, dos elementos implicados nas
espessuras do lírico) que são trazidos, invocados ou evocados no texto poético.
225

Assim, a experiência tensa pode adensar-se e recrudescer até o seu retesamento,


sua tensão máxima. Exemplos de uma experiência de tensão máxima, a
experiência retesada, são os casos de traumas, das torturas, da loucura, do
desregramento visceral e violento, das alterações e interferências no corpo, das
situações de violência, da desterritorialização/diáspora pela ruptura violenta do seu
lugar. Podemos definir uma experiência não retesada, mas densa, como aquela de
uma imersão contínua numa situação de forte patência, ou proposta específica, mas
não radicalizada, como são os casos do engajamento na luta política, a melancolia
da perda sem luto, o desregramento voluntário, o sofrimento silencioso, a
resignação, a errância ou a perda do centramento. Quanto à experiência do "des-
locamento", do não lugar, do "sair de seu lugar" e seus respectivos movimentos
insistentes de memória, do não pertencimento ao lugar, esta foi colocada entre a
experiência densa e seu retesamento, pelo caráter não taxativo, mas cambiante,
dessas experiências.
No quadro das experiências distensas, uma experiência focalizada diz
respeito, em primeiro lugar, às experiências formalizadas e aparelhadas, em geral
por via de um programa, um projeto específico, mas aí poderíamos também incluir
as experiências orientadas e culturalizadas não formalizadas, bem como as
propostas experienciais da linguagem das formalizações e construtos estéticos,
assim como a relação de mediação com o mundo, focalizadas/ordenadas em
discursos e propostas, onde cabem também formas de experiência projetadas, de
mediações, do jogo ou do lúdico. As experiências de aprendizagem tradicionais e
geracionais, da vida comunitária, geracionais, podem constituir-se também em
experiências focalizadas, mesmo que não formalizadas. Do mesmo modo,
experiências de longo prazo, como uma formação educativa, são experiências
focalizadas, mesmo quando consomem quase uma vida inteira, definindo muito do
indivíduo, inclusive proporcionando outras experiências que daí advêm. Do mesmo
modo, poderíamos ainda considerar nesta faixa de experiência aquele interesse e
sentimento de conjunto, ao ponto do "tomar partido", mas sem comprometimento, ao
ponto de chegar ao engajamento (denso), bem como o sentido esperançado e
utópico que conduz ao empenho, isto é, a experiência interessada e a experiência
empenhada que se comunica tanto com faixa da experiência densa quanto com o
prosaísmo da vida.
226

Finalmente, a experiência cotidiana, no sentido da vivência cotidiana


diária e prosaica, é colocada justamente como a factualidade, a circunstancialidade
no mundo da vida, a cotidianidade, as relações dia após dia que nos proporcionam a
afetividade, as ocupações diárias, mas que de algum modo vão se entranhando em
nós, modificando-nos, com picos de intensidade que podem transformar-se em
experiências mais radicais. São experiências que vão se incrustando de maneira
quase imperceptível, mas reflexionáveis, proporcionadas pelo nosso estar no tempo
e no espaço, nas circunstâncias; a experiência dos nossos fazeres e afazeres,
linguagens e hábitos.
Em relação às determinações destas faixas de especificidades formais e
experienciais, para um trabalho com relações em geral ambíguas, nem sempre
claramente definíveis, como é um trabalho com a poesia, e neste caso, sem um
lastro estatístico, não podemos considerá-las nos termos do isto ou aquilo, quando
as situações práticas podem apontar para uma relação difusa, compósita ou mesmo
indecidível. Assim, no caso da forma, como texto escrito, esses limiares, ou sua
composição, podem até ser mais claros. Porém, em se tratando da experiência, na
imprevisibilidade da vida, sabemos que tudo é mais instável, mais difuso, às vezes
indefinido, e o que pode apresentar-se num momento de uma maneira, em outro
pode ter-se alterado. Tal ambiguidade e latência certamente também influem na
configuração, na leitura e análise do texto poético, cabendo a cada situação sua
percepção e seu argumento. Deste modo, recorrendo aqui à linguagem de Deleuze,
podemos considerar tais limiares de especificidades da forma como "estriados", ou
seja, em geral mais determináveis, mesmo nas situações de um hibridismo formal
(formas compósitas) e das intertextualidades ou interdiscursividades, enquanto que
os limiares experienciais seriam limiares "lisos", quer dizer, com fronteiras não
fechadas, mais instáveis e indistintas – casos que talvez se complique ainda mais na
poesia com pouco índice de referencialidade.
No quadro-síntese, a questão dos limiares lisos e dos limiares estriados
foi representada por duas setas – estriada, no caso da forma, e lisa, no caso da
experiência – ambas com dupla direção, para indicar, em primeiro lugar, um trânsito,
uma possível comunicabilidade de uma para outra faixa, numa poesia que, sem
descartar as opções e projetos de cada um, neste momento, está aberta a inúmeras
possibilidades e, em segundo lugar, que esse trânsito não é unidirecional.
227

Uma segunda instância do quadro-síntese diz respeito à expectativa e à


realização. A expectativa é, segundo Koselleck (2006, p. 310, grifos meus), o
contraponto da experiência, no sentido de que, embora de caráter protensivo,
enquanto categoria que aponta sempre para o futuro, a expectativa está sempre
vinculada à experiência (o passado, o hoje). Diz ele:

A expectativa é ao mesmo tempo ligada ao pessoal e ao interpessoal,


também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o
ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto.
Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise
racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a
constituem.

Koselleck se refere, tanto à experiência quanto à expectativa, como


possibilitadoras, propulsoras de criação e invenção na história humana, embora que
de maneira diferente para diferentes classes sociais. As civilizações antigas, diz ele,
ligadas à natureza cíclica e seus elementos, da qual dependiam, para seus plantios,
sempre se basearam na experiência para suas realizações e nas habilidades e
técnicas advindas dessa vivência. Assim, as organizações sociais também se
estabeleciam sobre essa experiência, a vida era envolvida num ritmo de lentidão. O
mundo urbano dos artesãos, cujas regras corporativas contribuíam para que tudo
permanecesse como era, acabam também por girar em torno desse mundo e de sua
economia. A própria expectativa era sustentada pela experiência e não chegava a
romper com o mundo da vida que se transmitia e, por outro lado, as expectativas
que referiam a um mundo vindouro não se referiam a este mundo, mas a um telos
apocalíptico e à imagem de um novo mundo espiritual. Tal expectativa, frustrada ao
longo de gerações, foi aos poucos substituída por um novo horizonte de expectativa,
do âmbito do "profectus" para o âmbito do "progressus". Ela acaba, assim, ao lado
da experiência, sendo um propulsor de criação, pela projeção, pelo projeto do futuro,
pela invenção do progresso, o qual, por sua vez, também almejou a perfeição
infinita, "perfeccionemment" – aperfeiçoamento –, crente, já com Rousseau, numa
"perfectibilité" – perfectibilidade do homem. E desse modo, expectativa e experiência
sofrem uma fratura, porque a expectativa passa a basear-se mais no projeto, na
projeção do futuro, com novas possibilidades que já não correspondem apenas à
experiência, mas à projeção, ao desejo, à visão do novo realizado. E assim, o futuro
portador do progresso também passa a permitir a aceleração e a modificar o valor
histórico do passado (KOSELLECK, 2006, p. 316-317).
228

Ressaltemos, porém, mais uma vez, que a projeção, a propulsão criativa


e a realização não serão impulsionadas apenas pela expectativa, ou que seriam
prerrogativas desta – digamos, dentro da projeção de uma vontade calculada,
racionalmente formulada, que parece ser característica dessa expectativa defendida
por Koselleck –, mas também, conforme dito acima, estarão no horizonte dessa
matéria coletiva e individual que perfaz a experiência. Não só Koselleck deixa isso
claro, como também já podemos encontrar tal proposição em Walter Benjamim, na
perspectiva do desejo como constituinte originário da experiência, quer dizer, que se
projeta a partir dela para uma formulação na expectativa de sua realização. Diz este
filósofo:
Na vida, quanto mais cedo alguém formular um desejo, tanto maior será a
possibilidade de que se cumpra. Quando se projeta um desejo distante no
tempo, tanto mais se pode esperar por sua realização. Contudo, o que nos
leva longe no tempo é a experiência que o preenche e o estrutura. Por isso,
o desejo realizado é o coroamento da experiência (BENJAMIN, 1989, p.
129).

O que podemos colher da abordagem desse filósofo-historiador para o


presente trabalho é justamente a afirmação destes dois fenômenos, o da experiência
e o da expectativa como propulsores de um horizonte de criação e invenção: de um
lado, as realizações promovidas e possibilitadas pela experiência, pelo acúmulo,
pelo vivido, e, do outro, o horizonte de criação projetado pela expectativa do que não
foi experienciado, mas objetivado e levado à realização via projeto, quem sabe até
mesmo por uma ruptura consciente com a experiência, com o já experienciado.
Contudo, neste impulso de horizontes não existe uma regra definitiva, já, que, por
vezes, como alerta Koselleck (2006, p. 326), "as velhas expectativas se desgastam
nas novas experiências".
É com base nesta abordagem que apresento, no quadro anterior, esse
contraponto/conjunção da expectativa ao lado da experiência (sem descartar a
possibilidade mesma de uma expectativa da experiência, ou seja, da expectativa
incrustrada no âmago da experiência), e trazendo para o seu âmbito termos
projetivos: projeto e projeção, objetivos, metas (projeções quantitativas e
estatísticas), desafios, a serem realizados a partir de determinada perspectiva. A
impulsão deste horizonte pela expectativa está representado por uma seta que parte
da direita (coluna expectativa) para a esquerda (coluna realização), e de uma outra
seta, estriada, e de mão dupla, que, indicando a possibilidade de fazer o caminho
229

inverso, possibilita uma dinâmica da reelaboração e da refacção a este processo.


Ladeada, portanto, pela coluna da expectativa, devido à sua indissolúvel correlação
com esta, mas colocada no âmbito da coluna da forma (já que uma expectativa em
poesia tende a delinear-se como atualização formal), temos a realização de tal
expectativa, que implica uma incógnita prévia ou inicial (x) de um resultado factível,
o qual, efetivado, pode ou não corresponder ao projetado, daí, portanto, advindo sua
constante possibilidade de reformulação, isto é, apresentando-se continuamente
como condição aberta a qualquer projeto.
Tais considerações, direcionadas à reflexão sobre a produção poética,
pretendem a abertura de um ponto de vista consistente e operacional acerca dos
horizontes históricos da experiência e da expectativa, no sentido de que a condição
da experiência já não se torna exclusiva para considerarmos os processos criativos
que se nos apresentam, instalando uma possibilidade de percepção da ruptura que
lança a diferença no centro da criação lírica como aquela projetada sobre um ou
outro horizonte, o horizonte da experiência e o horizonte do projeto que a ela se
desvincula enquanto realização – mesmo que a mantenha enquanto contraponto.
Eis, portanto, a borda de um caminho que se desenhou, talvez não como o mais
curto, mas como o caminho possível e viável a apontar dinamicamente os horizontes
buscados nos poemas a serem discutidos. Dinamicamente, digo, no sentido de que
o próprio caminho já é, em si, reflexão, perspectivação e vislumbre de uma
compreensão que não se faz numa análise das obras escolhidas, ou não se faz
apenas nessa, mas no todo de uma jornada. É nesta perspectiva que trago, a partir
deste ponto, a análise e discussão dos poemas propostos, interrogando seus
horizontes, enquanto vou ampliando e desdobrando os meus.
230

3.1 HORIZONTES

"HORIZONTE quer dizer aquela linha por trás da qual se


abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um
espaço que ainda não pode ser contemplado. A
possibilidade de se descobrir o futuro, apesar de os
prognósticos serem possíveis, se deparar com um limite
absoluto, pois ela não pode ser experimentada."

[Reinhard Koselleck. Futuro Passado, 2006, p. 311]

Le paysage possède un horizon, un relief, il implique une


situation, avec des faces cachées. Le sujet adhère à cet
espace dans lequel il se meut e qui se modifie avec son
mouvement. Il est toujours dans une relation d'ensemble.

[A paisagem tem um horizonte, um ressalto, pois envolve


uma situação com rostos ocultados. O sujeito adere a
esse espaço no qual ele se move, e que muda com o
movimento. Ele está sempre em uma relação de
conjunto.]

[Antonio Rodriguez, Le pacte lyrique, 2003, p. 105]


231

3.1.1 Horizontes – 5 configurações e algumas poéticas de referência

Seguindo as diretivas do que foi colocado até este momento sobre o


sentido dos aspectos formais e das experienciais, como campo de forças na poesia
brasileira deste momento, e dos rumos que tais aspectos vêm tomando
recentemente, apresento agora cinco poéticas a serem discutidas, reflexiva e
analiticamente. São trazidas na perspectiva de que contribuam para o entendimento
não apenas de uma poética dos autores referidos, no que diz respeito aos modos
como lidam com as duas dimensões em jogo, mas, ao mesmo tempo, na perspectiva
de que, através de um mergulho de exploração no horizonte de suas obras,
possamos descobrir pontos significativos para o entendimento do horizonte maior
que se desenha na paisagem poética brasileira. Trata-se, portanto, de possibilidades
que apontam tanto legibilidades quanto questões a serem consideradas dentro de
um conjunto cerrado de práticas líricas, as quais, por sua amplitude, complexidade e
dinâmica, certamente ultrapassam qualquer recorte – mas que, no entanto, têm seu
papel desembaçador.
A escolha dos textos poéticos para serem analisados e mobilizarem essa
discussão reflexivo-compreensiva foi feita com base, primeiro, numa percepção de
que, ao mesmo tempo em que apontam para determinadas linhas da escrita poética
atual, também nos dão oportunidade de que o problema seja discutido sob diversos
ângulos, pela mobilização das dimensões focadas. Em segundo lugar, trata-se de
obras de poetas não centralizados numa região de publicação única, ou seja, que
não convivem numa realidade local semelhante, que não são partícipes das mesmas
oportunidades de publicação, divulgação e distribuição localizados numa faixa
territorial única, mesmo que haja, em um caso ou outro, coincidência de espaços
semelhantes. Enfim, o terceiro destaque nessa escolha se deve ao fato de que tais
obras são constituídas como referências axiais que possibilitam trazer, ao horizonte
em perspectiva, outras obras ou poéticas em teor exemplificativo ou comparativo,
tensionando-as ou distendendo-as, tornando mais claros não somente os seus
projetos, mas as faixas dos horizontes em que se movem no lirismo atual. Assim
sendo, a proposta de cada poema/obra selecionada é a proposta não somente de
um caso ilustrativo, exemplar, mas de trazer a si novas facetas, intensificações,
distensões, contrapontos e aberturas.
232

Os textos poéticos foram considerados por sua força de


representatividade em relação a cada um dos 5 horizontes, isto é,em relação às
especificidades de cada um deles ou, numa palavra: nunca pela quantidade de
linhas que remeta a determinado horizonte, mas pela amplitude significativa que se
estabelece entre a obra do poeta e a proposta de análise e interpretação. Desta
maneira, eles passam a ser analisados e discutidos como referências axiais, à
proporção que se vislumbram os termos e o tópico de cada horizonte.
Resta afirmar que o tratamento de tais poemas-obras não busca o
ineditismo da colocação sobre o que deles se possa levantar, pressentir ou ter
interpretado. Não se trata disso, uma vez que nenhuma autoridade se constitui (ou
pode constituir-se) como posse particular sobre os sentidos de uma obra que se doa
a todos e ao imprevisível. O tratamento dado a tais textos busca, antes, sua inserção
no campo da discussão e da ressiginificação que a tese se propõe a interrogar e que
aclara (traz à luz) a relação que entrelaça e confronta, simultaneamente, as
dimensões postas em jogo.
233

3.2 O HORIZONTE DO ADENSAMENTO TENSIVO-RETENTIVO [REFERÊNCIA:


ALUMBRAMENTO PRISMÁTICO E CO-NARRATIVIDADE EM SALGADO
MARANHÃO]

− A lírica vestiu minhas cidades rotas

(Salgado Maranhão, Mar deriva/VI,


A pelagem da tigra, 2009, p. 381)

O poema A cor da palavra, de Salgado Maranhão, pode ser tomado como


um poema paradigmal de certas questões em sua obra e, em se tratando de um viés
da contemporaneidade poética, como uma referência. Isto no sentido do que fala
Eliot em seus ensaios (1972), de que as grandes poéticas de um país constituem
uma imagem representativa deste país131. O que podemos acrescentar a isto é que,
se esta imagem carreia consigo as entranhas de um espaço, certamente também
está impregnada, lambuzada do tempo que a permitiu vir a lume.
A cor da palavra, com seu título paronomástico (a cor da palavra/a corda
palavra/acorda palavra) é o poema-fechamento de uma antologia homônima
publicada em 2009, a qual contém grande parte dos sete livros escritos por Salgado
até aquele ano. O poema compõe a última seção do livro, intitulada Tear de Prismas
(finis), a qual, por sua vez, traz uma epígrafe épica de Camões: "Cantando
espalharei por toda a parte/se a tanto me ajudar o engenho e arte" (CAMÕES apud
MARANHÃO, 2009, p. 401). Eis, para começar, alguns indicativos de que se trata de
um poema significativamente relacionado à obra como um todo, do autor, e ao
projeto compositivo deste, mas reverberando ainda outros níveis de entrelaçamento,
entre eles o de um papel universalizante, acentuado pelo sentido de uma
concepção, ou pela instauração de uma poética:

A cor da palavra

Poeta é o que esplende


a labareda entranhada
ao rugir
das pequenas agonias.

131
Esta referência articula-se com um depoimento de Salgado Maranhão (2016, p. 37-38), segundo o
qual, Em Harvard, um jovem professor lhe disse: “Gostamos de sua poesia porque ela nos apresenta
um Brasil que não conhecíamos, não queremos poetas brasileiros que imitam nossos movimentos
literários”. Independentemente de sua ocasião, a afirmação remete ao aspecto tensivo da
particularidade-generalidade que o poeta adquire em relação a sua pátria ou à pátria que ele
pretende como sua (lugar, não lugar, entre-lugar).
234

Assim se erguem
(em meio ao tropel dos dias)
as cidades da memória:
contêineres feitos de gestos,
palavras incendidas de milagres;

assim se alumbra o coração


em seu charco de prímulas:

este atol que atou-me


à borda do deserto e ao sangue
em que partilho
estas horas carnívoras,

tangido a barlavento
por minhas perdidas ítacas.

(MARANHÃO, 2009, p. 402)

A irradiação, as invocações (alusões claras) e as evocações (alusões


difusas, reminiscências, vestígios, sugestões) de A cor da palavra requerem um
olhar que incida sobre ele interpretativamente não de forma isolada, mas ancorando-
o no todo, no contexto da obra. É imprescindível levar em conta, em seus feixes de
sentido, as notações a que ele também remete, as quais nele se encontram como
enlace e eco de outras palavras, de outros textos ao longo do caminho de escrita na
qual se insere (pressupondo que se trata de um sujeito lírico uníssono, na obra).
Trata-se, portanto, de um poema que está no centro – e no ápice – de uma poética,
que o aponta e sustém, ao longo do livro, em cujo percurso é possível encontrarmos
imagens e termos que lhe são caros, com ela entretecendo reiterações e
correspondências.
Podemos enumerar alguns desses pontos (dentre inúmeras variações
luminescentes e irisadas) destas remissões que enlaçam o poema, com seu
respectivo título, e o livro, tais como: a) a imagem do poeta "tangido no mar",
imagem esta por vezes fundida com a condição [social ou] memorial do sujeito ou
das vozes líricas envolvidas: "frugal mercador de eternidades/ − porto a porto − / aos
quatro cantos do luar/ ao mar/ ao ar/ sob o tempo/ e o temporal" (Corda bamba132, p.
59), ou: "Tudo é íngreme e acossado/ ao sonho/ungido/ em nossa âncora; tudo//
lapso de esplendores/ fincados na memória/ e no raio alastrado/da palavra// sob a
névoa de mares/ imêmores" (Tribal, p. 169); b) a imagem das cintilações do
alumbramento sublimizante, como em Voz (p. 67): flui de mim um girassol/ lilás que

132
Para simplificar, cito apenas as páginas da mesma obra (SALGADO, 2009)
235

luz, que jazz, que mais que alumbra/ esculpe as esquadrias do arrebol [...], ou em
Deslimites 10 (p. 96): "eu sou a luz em seu rito e sombras/ − esse intocável brilho";
c) uma textura imagética e sensorial desta cor: imagem-pele da palavra repleta de
lírios, dias, pupilas e lambidas que nos permite associar elementos sensoriais,
estésicos ou sinestésicos, suscitando uma corporeidade, uma sensualidade
sugestiva na cor dos elementos: fogo, labaredas, rubi, ouro, silêncio rubro (mas
também o azul – este, tantas vezes nomeado), o rossio na pelagem da tigra, ou,
ainda, o corpo étnico que declara identitariamente ao mundo: "sou bem um outdoor/
de preto/ com a cara pro luar/ inflando a percussão/ do peito/ feito um anjo feliz"
(Negro soul, p. 25); "A palavra física/ em meu uivo esventrado (Sol sanguíneo, p.
217), e o sol sanguíneo desse campo florido: "auroram prímulas de sangue e
amargaridas" (p. 84, grifos meus)...
De início, essa luminiscência da cor que a palavra irradia – isto é, de
qualquer cor que palavra possa irradiar, mas que nessa poesia de Salgado remete a
cores definidas e potencializadas pela experiência do sujeito inscrito no poético -
difrata-se em dois feixes de sentido mais fortes: o do esplendor luminoso, labareda
inquieta, o ardor do fogo criador de vida; e o da corporalidade, da condição não
apenas estética, mas da própria carnalidade sensível e estésica de tal palavra
relacionada ao sujeito que lhe concede cor e corpo, o poeta. A palavra não está
descarnada, esvaziada do sujeito que a pronuncia (condensa e projeta), e o signo,
assim, passa a ter carne, sentimento, valor(es), textura. Neste sentido, o poeta
impregna essas palavras de canção e força étcnica, e de uma beleza telúrica e
ígnea, unindo o ferro ao fogo (e vice-versa), que se torna física, vibrante, potente,
dimensionalmente fálica, tal como em Deslimites 10:

[...]

(noite que adentra a noite e encerra


os séculos,
farrapos das minhas etnias,
artérias inundadas de arquétipos)

eu sou ferro. eu sou a forra.

e fogo milenar desta caldeira


elevo meu imenso pau de ébano
obelisco as estrelas.

eh tempo em deslimite e desenlace!


eh tempo de látex e onipotência!
236

leito de terra negra


sob a água branca,
eu sou a lança
a arca do destino sobre os búzios.

e de blues a urublues
ouça a moenda
dos novos senhores de escravos
com suas fezes de ouro
com seus corações de escarro.

eh tempo em deslimite e desenlace!


eh tempo de látex e onipotência!

eu sou a luz em seu rito de sombras


— esse intocável brilho.
(MARANHÃO, 2012, p. 95-96)

Podemos, a partir dos feixes de "carne e faísca", de A cor da palavra, e


em sintonia com Deslimites 10, palmilhar as duas trilhas que deflagram o alumbre
desse "charco de prímulas", ou seja, que permitem adentrar nas espessuras dessa
densidade poética.
Em primeiro lugar, a da apresentação do poeta como portador do fogo,
com os mais variados elementos, imagens e imaginários a ele relacionados,
incluindo a iluminação poética e a chama erótica da vida. Trata-se, portanto, do fogo
prometeico, como energia vital e elemento primordial entranhada em toda carne
humana, possibilitadora da visão e do conhecimento em meio a um mundo obscuro,
possilitador da propulsão criadora, inclusive biomecânica, da caça, do sexo, do
engenho criativo, e que, nas mãos do poeta – este Prometeu –, é ofertado aos
homens como labaredas de sua própria vida, de suas próprias angústias, "palavras
incendidas de milagres". Como num movimento de ascensão e queda prometeica, a
cor da palavra também se transmuda na corda palavra, que ata o sujeito, pelo pacto
lírico, ao duplo sofrimento imposto pelo tempo entre o fenecer e o permanecer, a
conjunção do aquiagora sanguíneo e experiencial, enquanto corpo exposto à
devoração das entranhas, e a desconjunção provocada pela temporalidade outra da
palavra, que aclara a consciência do sujeito sobre sua condição intervalar, que
anseia pelas dimensões primordiais do sublime e do divino, ao mesmo tempo em
que acentua o desterramento pático e a exposição ao deserto sígnico.
Em segundo lugar, como já posto anteriormente, nos deparamos nesse
poema com imagens da corporalidade e sua vibração sensível, as quais emergem
237

no sentimento entranhado, no tropel dos dias (as circunstâncias, as vicissitudes e


atropelos cotidianos), nos contêineres feitos de gestos, na memória, que também é
física, na textura-sensação-morenice solar-lunar das prímulas, nas horas carnívoras,
no corpo-embarcação.
Porém, neste segundo feixe de sentidos, duas coisas requerem atenção.
A primeira é esse deslocamento, agônico, espaçotemporal do corpo, que vagueia
num mundo ao sabor do mar existencial e das memórias, dimensionado no espaço
do não lugar, justamente porque as ítacas, o espaço do retorno, já estão perdidas. É
um chão solapado pelo tempo, constituído apenas na memória – muito
provavelmente diferente daquela Ítaca mítica que aguardava por Ulisses ou que
Ulisses guardava, navegando de volta na certeza de que sua casa estava lá, isto é,
ambos perspectivados por uma realização possível. No poema, o que é possível
efetivar pelo sujeito lírico (e, neste espaço potencial, o sujeito da enunciação) é fazer
o cadastro dos seus bancos perdidos, de suas cidades da memória e da lembrança.
E a propósito destas cidades, é relevante trazer à luz desse prisma a série
"Cenacidade", do Itinerários de afetos, uma das partes de Mural de ventos (1998
[2009]), presente na antologia A cor da palavra – série esta em que, justamente, o
poeta Salgado Maranhão põe em cena as cidades que lhe foram ou são
memorialmente significativas. É importante lembrar, inclusive como determinante
para a compreensão desta poesia numa proposta mais abrangente, e em harmonia
com a perspectiva deste trabalho, que a jornada deste poeta, o "itinerário" tão
ressaltado, liricizado inúmeras vezes pela imagem do mar existencial, temporal,
social, poético, numa navegação flamulada pelo vento, não pode ser desvinculada
de uma biografia pessoal que inclui seu atravessar experiencial telúrico e urbano:
dos campos de pobreza, babaçuais e carnaubais das regiões fronteiras do
Maranhão e do Piauí, no Nordeste brasileiro, ao enfrentamento das dificuldades
próprias ao sujeito de origem humilde nas grandes cidades brasileiras, até sua
inserção nas relações importantes para sua opção e projeto de vida, a começar pela
Teresina de Mário Faustino e de Torquato Neto.
Retornando a questão dos feixes de sentido relativos à corporalidade e
sua vibração sensível, um segundo ponto relevante para esta compreensão trata-se
do fato de que se essa memória é individual, ela é uma memória do corpo que
carrega em si também uma comunidade, uma coletividade. Assim, precisamos
inserir no espaço potencial dessa cor uma leitura das reminiscências, relativas às re-
238

percussões projetadas pelo livro como luz de um novo ângulo: a memória do corpo
étnico, negro, em condição diaspórica, nas origens guardadas dos campos de arroz,
dos traços disseminados na sua poesia. Tal interpretação pode ultrapassar,
portanto, muito provavelmente, os limites do poema em questão, porém podemos
alcançá-la em sua possibilidade e amplitude, do sentido dessa poética, respaldando-
nos no título da antologia, o mesmo A cor da palavra, do qual o poema assume um
caráter ressonante, especular e espectral em e cujo sentido ético dificilmente pode
ser negado, com suas inúmeras referências: escravatura, tambores, negro soul,
autorretrato, boi de prata... ou seja, o solo atávico, a terra chã, o sol sanguíneo... –
poesia esta compartilhada com/por uma comunidade que já tece sua esperança num
território pós-mar.
Excluir tais marcas da obra de Salgado Maranhão sob a desculpa de uma
leitura fechada nos termos exclusivamente manifestos do texto é desprezar suas
evocações e mutilar sua riqueza e possibilidades interpretativas, uma vez que tal
realidade emerge justamente como aquela coloração afetiva, a tonalidade que
compõe a mediação entre as formações subjetivas e objetivas de sua poesia, tendo
como pólo o sujeito lírico (RODRIGUEZ, 2003, p. 149).
A partir destas considerações e da leitura analítica efetivada, podemos
delinear num segundo nível de compreensão que insere o poema nas questões da
forma e da experiência em relação à poética que ele representa, o fato de que nele
se estabelece uma tensão entre essas duas dimensões. Ou seja, no sentido de que
o pulsar experiencial desta poesia são as questões vivenciais nos espaços
potenciais tensivos da subjetividade e da objetividade, entre o sujeito lírico e o
sujeito historial, as quais se elevam do mínimo (pequenas agonias, horas
carnívoras) ao macro (cidades da memória, barlavento, mar existencial) através de
uma temporalidade durativa (retentiva) que permite trazer à paisagem poética uma
experiência vivida que se faz conjuntamente com os espaços de experiências
vividos (explorados poeticamente, por exemplo, no Itinerário de afetos133, e o
entrelaçamento com a experiência de uma co-narratividade que é imanente nesta

133
Nesse itinerário de afetos, encontramos o canto dos lugares de origem e os lugares marcantes,
significativos ao poeta, tais como o lugar de origem (município de Caxias-MA), às margens do rio
Itapecuru, no Maranhão; cidades como Teresina, São Paulo, Rio de Janeiro, sem contar as relações
fraternas, os amores etc, que de algum modo estão presentes nessa vida-poesia. Em Minha terra
(epígrafe de Gonçalves Dias, poeta da mesma origem local de Salgado): "Mesmo listando ao
presente/as memórias do futuro,/acabo por te encontrar,/ cada vez que me procuro" (MARANHÃO,
2009, p. 180)
239

fala, neste caso, partícipe de uma afro-narratividade, afro-historicidade – como, por


exemplo, no poema Aboio ([in: Solo de Gaveta, 2005] MARANHÃO, 2009, p. 314) ,
oferecido ao compositor João do Vale e à cantora Alcione, e em que se irmana pelo
tom/pela forma da cantiga do bumba-meu-boi, a uma representatividade coletiva
eminentemente pobre, de ascendência negra e indígena:

Quem olha na minha cara


já sabe de onde eu vim
pela moldura do rosto
e a pele de amendoim
só não conhece os verões
que trago dentro de mim.

Mas esta retenção também é trazida à tona, em seu caráter formal,


através da memória que resgata à experiência íntima e coletiva os imaginários
(motivos) culturais acolhidos e da intertextualidade, através das figuras alegóricas de
Prometeu e Ulisses, aí conjugadas e reelaboradas como formas de expressão
simbólica de uma outra realidade.
Trata-se, portanto, de uma experiência que se estabelece a partir de uma
temporalidade qualitativa cuja disponibilidade se abre para a retenção pática no
pacto lírico, do padecer/do sofrido, bem como para a memória e o resgate, por
intermédio de uma sintaxe da presença, da situação colocada construtivamente
através de aspectos verbais durativos que espalham no presente uma experiência
configurada propriamente como densa, entranhada e constante, do sofrimento
memorial, das feridas abertas, da errância e do "des-locamento". Isto, porém, dentro
de um discurso metapoético (a cor da palavra; poeta é o que..., palavras incendidas
de milagres...), cujo campo parte da própria interrogação modal desta palavra,
dentro uma forma tensiva, perceptivelmente densa – conforme a proposta
estabelecida no quadro-síntese − mas que oculta sua preocupação formal e susta
sua densidade por via de uma comunicabilidade, linguagem não pejada de
hermetismo embora em sermo nobilis, e da disposição discursiva que congrega a
reflexão da subjetividade e a contenção da objetividade.
É relevante, no sentido desta estruturação formal agora não propriamente
semântica, observar também a construtividade da textura melódica e sintática, a
qual recorre a traços fônicos num movimento que coloca sua tessitura em padrões
tonais muito aproximativos, como os acentos a (menos), em e/ê/,en/m (mais) e i/ir/ím
(intensos), além de aproximações ou recorrências consonantais, que dão à leitura
240

uma fluidez e um impulso à oralização. Ora, o cuidado formal é uma preocupação


extensiva à poesia de Salgado, perceptível na aproximação de sua sintaxe, de seus
ritmos, lapidações, de sua disposição textual contida e de sua linguagem precisa,
onde lumina se aproxima de lâmina. Esse cuidado laboral é confirmado pelo autor,
que também reconhece as relações esteticamente estabelecidas por sua poesia,
como a atenção à aproximação entre poesia e música, imerso que está nas
discussões sobre canção e poesia, afirmando sua visão da poesia como universo
esplendoroso de cores e de corporalidade (MARANHÃO 2016, p. 38-39), buscando
"sobrepor imagens como num quadro cubista" (MARANHÃO, 2016, p. 40). Sobre
isto é bem significativo o fato de o poema em discussão localizar-se na antologia
como o centro de um "tear de prismas". O prisma, com sua superfície polida de
ângulos exatos, proporciona visões de luz, fagulhas de uma fonte geometrizada, que
remete aos feixes angulares de seu alumbre colorido e sua forma projetiva. É
também a imagem que Mallarmé utiliza para explicar a montagem estilhaçada de
seu "lance de dados", no prefácio de Un coup de dês n'abolira le hasard: "não se
trata, ao modo de sempre, de traços sonoros regulares ou versos – antes, de
subdivisões prismáticas da Ideia".134 Ora, no caso de Salgado, o prisma surge mais
como nova face de som, de imagética e sentido, de tal modo que a imagem traz
também, à leitura e visão dos poemas, um outro olhar que alia feixes sonoros a
feixes sintáticos, sutis espacializações que operacionalizam o que chamei
anteriormente de "temporalidades mácron", entre outras procedimentos, e que se
desdobram em novas imagens e perspectivas semânticas do objeto.
A tensão estabelecida na poesia de Salgado perfaz-se, deste modo, de
um lado, pelo impulso de uma forma laborada, lapidada, angulada, simultaneamente
autoremissiva em sua construção como objeto fascinante, de tom elevado (em
sermo nobilis135), e projetiva para a iluminação irisada, dispensadora de visões,
centelhas de imagens e sentidos. Ou seja, um sublimizante alumbramento, por
vezes ao modo de revelação [prismática e] epifânica, como ocorre em Deslimites 1,
em que, por exemplo, os termos em jogo reorganizam novas faces/realidades/visões

134
Il ne s’agit pas, ainsi que toujours, de traits sonores réguliers ou vers — plutôt, de subdivisions
prismatiques de l’Idée. Disponível em:
https://fr.wikisource.org/wiki/Un_coup_de_d%C3%A9s_jamais_n%E2%80%99abolira_le_hasard.
Acesso em setembro/2015.
135
Reporto a citação de Jorge Wanderley por Luís Fernando Valente: "(A poesia de Salgado
Maranhão é marcada) 'pelo tom ático, elevado, do mais indiscutível sermo nobilis e também pela
notável consciência artesanal da palavra" (VALENTE, in: MARANHÃO, 2009,p. 406).
241

inesperadas que surgem e revelam um sentido suplementar: finge que me


chama/em chamas/ − transexsymbol −/esta saga/ esta cidade/ sagacidade [...]/ sei
que há luares/ labores/prolabore/azul/no caos/ lumina (MARANHÃO, 2009, p. 78-
79): alumbre, aliás, com suas respectivas fulgurações e variações, disseminado e
recorrente em toda a obra poética deste autor. O outro lado que impulsiona essa
tensão é, como já foi dito, justamente a experiência de realidades que gestadas pelo
tempo histórico e memorial, pelos cantos e afetos, pelas pulsões do corpo e pelo
tropel dos dias nos espaços cosmopolitas contemporâneos, exigem, ao mesmo
tempo, no aspecto co-narrativo, uma linguagem aberta à comunidade e uma
resposta/ação do sujeito, por via desse projeto cuja, cujo impulso dominante é
estabelecer seus próprios fins, seu enigma, sua autorreflexividade.
A tensividade da poética de Salgado foi tratada por Luiz Fernando
Valente, noutro aspecto, em O traço apolíneo de Salgado Maranhão (2009), sob a
pespectiva de uma vertente apolínea da "sobriedade e da disciplina" (VALENTE, in:
MARANHÃO, 2009, p. 406). Ele afirma que "a poesia de Salgado se origina do
engajamento com o cotidiano, da aceitação agônica da materialidade do corpo e de
uma profunda consciência da fugacidade do tempo, da precariedade da existência e
da inevitabilidade da história" (VALENTE, in: MARANHÃO, 2009, p. 406), recorrendo
ao Nietzsche de O nascimento da tragédia para apontar na poesia deste autor traços
de uma pulsão dionisíaca que traz uma tensão a essa pulsão claramente apolínea,
assim como a conexão "entre o sensível e o transcendente", observando em alguns
poemas "o papel mediador do poeta que, cuja atividade se situa entre os extremos
da carne e do intelecto" (VALENTE, in: MARANHÃO, 2009, p. 410). Este texto
convém à discussão para acentuar sua relevância na problemática entre a
consciência formal e os traços perturbadores experienciais, sob outro aspecto, isto
é, a partir da leitura simbólica. Entretanto, precisamos também observar que, dentro
deste simbólico, o dionisíaco presente na arte de Salgado é cingido, é controlado,
uma vez que a pulsão dionisíaca, pelas prerrogativas do deus, pode chegar à
dissolução, ao dilaceramento, à embriaguez e ao desregramento impulsivo ou,
mesmo, ao desvario, o que realmente não ocorre ou é sublimado na poesia em
questão. Além do mais, uma possível katharsis projetada no geral dessa arte, com
base em sua eisthesis e em sua poíesis, não é uma catarse de alívio (da
substituição do meu sofrimento/da platéia pelo castigo do outro, com horror), mas
uma katharsis de esperança (a situação atual será certamente iluminada, quem sabe
242

mais construtivamente direcionada para uma situação melhor), projetanto o


dionisíaco como exaltação/criação de vida, e aliando-o a Eros.
Num terceiro nível interpretativo, podemos relacionar tal tensão poética ao
horizonte de uma poesia atual que, permanecendo no limiar entre a discursividade, a
ruptura (mas não a "crise") do verso e a contínua interrogação metapoética, seja do
sujeito poético, seja da linguagem ou da estética, não renega, de outro lado, o
atravessamento da experiência vivida. Esse horizonte, perspectivado como uma
linha de força dentro da poesia brasileira, perpassa por afluentes mais recentes, que
vão de Jorge de Lima e Vinícius ao Tropicalismo, e da "Geração de 45", Cabral,
Gullar à poesia marginal – esta, que nos ensinou congrassar, no seu tom rebelde-
patético-jocoso, uma composição de múltiplas formas, experiências individuais e
coletivas, e registros. No entanto, no caso em questão, trata-se de um horizonte que
controla seus dados e os lança para a região do registro sublime, que não os deixa
ao acaso nem ao sabor do sermo vulgaris pantagruélico.
Esse primeiro horizonte em pauta na paisagem poética brasileira, localiza-
se numa região configurativa mais central e aberta dos aspectos formais e
experienciais (vide quadro-síntese), que tanto pode mover-se numa direção de
tensão e acirramento de seus termos quanto pode mover-se no sentido de sua
distensão, embora que, pelo seu caráter racional e tom elevado, pelo seu impulso ao
alumbramento da palavra e pela recusa de qualquer descuido, sua orientação
parece direcionar-se para a intensificação destes elementos rumo a um retesamento
formal, principalmente no sentido construtivo (técnica, racionalidade, controle, rigor),
bem como à expressão simbólica da experiência, no sentido do enigmático, do
hermetismo, configurando-se num duplo tensionamento. Um exemplo, a este
respeito, é a linguagem do livro mais atual do próprio Salgado Maranhão, Ópera de
nãos (2015), muito mais cifrado, e cujo primeiro alumbramento dá-se na direção do
simbólico numa série de poemas significativamente entitulados "Lacres" – Lacre 1,
Lacre 2... – o que não implica, é claro, o fechamento de suas variadas difrações e
possibilidades.
A tal horizonte configurativo podemos relacionar, comparativamente,
algumas poéticas que o ladeiam para uma direção ou outra, isto é, orientando-se
para uma distensão formal do seu projeto estético já mostrado – porém
intensificando no sentido experiencial de alguns elementos, no caso, da experiência
co-narrativa; ou, ao contrário, orientando-se para uma tensão formal, mas
243

distendendo sua matéria experiencial no sentido dos espaços vivenciais ou do


prosaico existencial. Esses casos exemplificativos podem ser aqui referidos
brevemente136, neste sentido: o da seleção Negroesia (2010), do poeta Cuti, o da
poesia de Extravio Marinho, de Simone Homem de Mello (2010) e o de No fim das
terras, de Mílton Torres (2004). Para maior clareza, disponho-os na seguinte
"paisagem" representativa:

[Figura 02: Disposição comparativa de algumas obras]

Extravio marinho Negroesia

No fim das terras (Coletividade)

Negroesia (Co-narratividade) Extravio marinho

(Fonte: [Própria] SILVA, 2017)

Trazendo à ocasião alguns poemas desses livros, podemos tornar mais


claros tais direcionamentos comparativos, expondo essas forças de tensionamento e
distensão que ampliam a visão, a paisagem poética desses horizontes:

136
Pelas proposta restrita deste trabalho, foram apresentados apenas apenas um poema de cada
autor, de livros extensos e variados, porém trata-se de textos exemplificativos.
244

[Quadro 02: Três poemas exemplares em seus direcionamentos]


Extravio Marinho No fim das terras Negroesia

Fragmento de um tiposcrito de James TRADIÇÃO


Joyce de 1923, em torno de Tristão e
Isolda, parcialmente reinserido no
sob a vasta bigodeira de
capítulo II.4. de Finnegans Wake
DEMOCRÁCIO, OH PANCRÁCIO [machado
os lábios da raça
[escondidos acho
Enquanto lento seu navio, o mar era tênue, a lâmina do riso e o
[discreto escracho
sobre a face das águas movia por cortesia
"DEMOCRACIO, Democrâcio, ou De-
de Deus................................................ mocratico, governo. Vid. Democracia. em cruz fico muito à
.................................................................. , O governo Democracio se julga mostro, [vontade
.................................................................. , porque he governo vulgar, & o vulgo para reunir setas de
, sempre o há sido. & com domínio, mõ- [revolta
.................................................................. angústia e cravos
, tro formidável, sem conselho, sem ra-
.................................................................. , zão, sem espera, sem segredo, & sem
.................................................................. , resolução. Todos querem ser cabeças ensaio o arrombamento
.................................................................. & ...................................................... * [de portas
com o pé de cabra
.................................................................. que me empresta
.................................................................. com o deboche de sua
(TORRES, 2004, p. 84)
.....Aquela boca de mandíbulas jurou à [pura [risada
beleza o gama
elocucionou de pronto clara campanular com o lima afio as facas
[uma flor entro na trama
lírica favorita em hexâmetro decassílabo * Do dicionário de Rafael
[iâmbico Bluteau, Lisboa, 1712-1721. solano eu abraço
no boi-bumbado
[socialistado
− Desli zefun doazul escu romar ! num salto a-rap-iado
chego junto com os mano
.................................................................. nossa vida
muito tato e tutano
....O mar, de amável matiz e alindado por

(MELLO, 2010, p. 50) (CUTI, 2010, p. 14)

DIRECIONAMENTOS
Tessitura de Entrelaçamento compositivo de ---
Tensiva formas e formas, de línguas, de
remissões; temporalidades das línguas, de
Forma Palimpsestos gêneros, de registros//colagens
--- --- Discursividade
Distensiva comunicativa,
referencialidade,
simplicidade focada
(não espontânea)
--- Experiência histórica da Experiência histórica
Tensiva coletividade/ colonização das da co-narratividade
Américas; experiência subjetivda negra, marcada, por via
Experiência da historicidade da nação da participação na
literatura e na formação
político-cultural do país.
(Experiência --- ---
estética/ estésica)
Distensiva Retensões,
projeções e
mediações de
leitura
(Fonte: [Própria] SILVA, 2017)
245

Dentro das possibilidades que esses poemas nos mostram, nos termos
colocados nessa perspectiva e tomando como referência a configuração poética
realizada por Salgado Maranhão, vemos que, no poema de Simone, os elementos
estéticos em jogo exemplificam um acirramento, uma intensificação de uso e
reiteração das espessuras formais, levando-o ao seu retesamento máximo. O
poema compõe uma terceira parte do Extravio Marinho, a qual começa com um
poema que faz referência a Gôngora no título e numa epígrafe, evocando já, por si,
justamente o espetáculo barroco cultista, em sua profusão e suas volutas retorcidas
de palavras e retomadas – o que, nesta poética de reenvios, camadas e
palimpsestos, é expresso pelo pensamento que o toma como interlocução com
outros tempos, outros espaços, marcados pela própria profusão literária e formal
através dos tempos.
Assim, no poema exposto, que começa justamente por um longo título
evocativo da maneira barroca, a autora coloca em campo a metarreferencialidade
literária até atingir não só a sua história e a sua memória, mas também seu extravio,
através de uma linguagem e de uma narrativa que, ao buscar a si mesma, encontra,
por fim, sua queda no poço sem fim de um silêncio que já não é sequer elipse, é, ao
mesmo tempo, a sua infinitude e a sua perda nas ondas do mar, enroscado em suas
próprias ondas, quer dizer, suas diversas formas de morte e ressurgimento através
dos tempos ("La mer, la mer, toujours recomencée" – como diria Paul Valéry em Le
Cimetière Marin, outra evocação [alusão fundamental] do livro). Isto também a leva a
um ponto que nos faz compreendê-la já como um extremo crítico, em retesamento e
concepção que está no limiar deste horizonte, apontando para uma remissão
dramática da realidade, embora tocando seus vestígios anacrônicos/nostálgicos, em
perda e possível saudade (saudade marinheira). De outro lado, essa experiência
propriamente da escrita e da literatura, do curso de seus processos através dos
tempos, de seus impactos sobre a criação localizada num desses pontos do espaço
e do tempo, pode ser compreendida dentro da experiência cotidiana da jornada
vivencial, factual, distensa do sujeito e da própria literatura, diferente daquela
experiência densa, em Salgado, reconhecendo esta como bem mais marcada,
patêmica e vivencialmente, sendo o atravessamento do mar vital, a errância e as
relações memoriais os do próprio sujeito, em sua inserção mundanal e atávica,
como vimos.
246

No que diz respeito à poesia de Milton Torres, dá-se um retensamento


formal aproximado ao de Simone, mas noutro sentido. Em seu livro No fim das
terras, do qual trago como exemplo o poema "Democrácio, oh pancrácio", ele
recorre a um exuberante acervo e "empréstimos" de formas, gêneros textuais e
literários, línguas (latim, português, espanhol, língua geral, inglês) e temporalidades
e extratificações da língua (português arcaico, moderno, erudito, coloquial, "vulgar"
[grotesco carnavalizante]), não visando ao espetáculo, em si, da língua/da
linguagem, mas como parte da própria história e memória coletiva civilizacional, isto
é, como representantes da formação de uma cultura e de uma civilização, cujo
centro é o povo português com seus substratos, sua inserção entre os povos, nas
Américas e seus superestratos civilizacionais. Constrói uma macrotemporalidade e
macroespacialidade de todas essas formas, fragmentos e vestígios, numa imensa
cartografia da civilização americana marcada pelo colonialismo, e por suas
estratégias de erosão do poder, tanto em nível macroestrutural, quanto num nível
microestrutural, como denotam as partes do seu livro: Portugueses (Hispania; da
memória; do império etc.); Novo mundo ([Américas] poemas brasileiros, quadras do
Sul; poemas do Rio. Assim, se o livro (TORRES, 2004) começa com uma origem de
base simbólico-premonintória, entre morte e vida em que se ergue o grande Império
lusitano, com poema "O Tempo e a Lusitânia" (p. 29) ["O gran juízo esperando/
Jaço aqui, nesta morada" [...]], encerra-se com um cenário crítico do Rio de Janeiro,
entre crack, funk, estupro e o mar de "Copacabana" (p. 216) ["a noite de bunda de
fora (não que desfoque)/ a outra aferrolhada em casa, mais outra pelo chão. esta"
[...]]. No poema exemplificativo do quadro 02, o poeta se serve de um verbete de
dicionário para, à maneira do aproveitamento dos ready-mades/construtos da
linguagem, ironizar a democracia iluminista como um vale-tudo (pancrácio), onde
"todos querem ser cabeças". Formas, ideologias e experiências civilizacionais aqui
são postas em jogo. Neste sentido é que o apresento como um tensionamento
máximo, um retesamento de seus procedimentos e de sua matéria tanto no sentido
formal quanto no experiencial.
Em relação ao poema de Cuti, que retrata de forma bem representativa
sua lírica de Negroesia, ele convoca de forma metonímica por uma linhagem de
escritores/poetas brasileiros negros (Machado de Assis, Cruz e Sousa, Luís Gama,
Lima Barreto e Solano Trindade), em "Tradição", uma historicidade que é a da
conscientização e luta pelo respeito ao negro, pela conquista de seus lugares de
247

direito, no âmbito de uma co-narratividade étnica. Importante notar que a própria co-
narratividade leva-nos a considerar que essa referencialidade não é uma "crença"
numa suposta transparência da linguagem poética, mas um tratamento da questão
experiencial como fato histórico, uma vez que os escritores apontados/invocados, se
se tornam simbólicos no âmbito da linguagem, isto é, não são meros signos
esvaziados desprovidos de existência social e de força histórica.
Esse entrelaçamento narrativo comum, por outro lado, conjugando uma
voz étnica conjunta, perpassa pelas escritas individuais (as quais se tornam "gritos
comunitários", ou que podem ser reivindicadas como tais), pelos padecimentos e
pela revolta subjetiva, acaba por explodir numa comunidade de vozes irmanadas,
que não discrimina as expressões artísticas nem a fala, o corpo das ruas ("chego
junto com os mano/ nossa vida"...), as quais também estão no centro da mesma
força e pulsão étnica, nos enfrentamentos que exigem "tato e tutano".
Vista comparativamente em relação à poética de Salgado, observamos
em Cuti, a distensão da forma, para uma expressão focalizada, no sentido de uma
linguagem mais direta, mais denotativa e referencial, em que se articula uma
"simplicidade" – até por "liricizar" uma linguagem das ruas −, mantendo, porém, um
foco de concisão do verso e organização objetiva dos elementos. Uma referenciação
direta das questões relativas ao negro, em sua experiência histórica renitente, torna
esta experiência da co-narratividade mais densamente marcada que no poema de
Salgado, enquanto outros aspectos de uma patência subjetiva é menos relevada.
Deste modo, com base no caso singular de Salgado Maranhão,
considerado representativamente como uma referência axial, podemos tratar não de
uma "vertente", no sentido esquemático, mas do delineamento de um horizonte que
pode restringir-se ou ampliar-se, intensificar-se ou atenuar-se, de acordo com a
perspectiva, com as especificidades ou aspectos considerados. Neste caso, a
configuração de tal horizonte se estabelece dentro de uma mobilidade, de uma
sinuosidade de enfoques e acentos, deslocáveis numa paisagem redimensionável
historicamente ou trans-historicamente, no âmbito da multiplicidade e da diversidade
que a contemporaneidade nos oferece. Também sob este prisma, poemas, obras e
poéticas podem ser consideradas como novos eixos e evocar novas obras para
aquela "relação de relevância e conjunto" (RODRIGUEZ, 2003, p. 105) que perfaz
um horizonte e compõe uma paisagem.
248

A faixa deste horizonte de adensamento tensivo-retentivo revela-nos a


dominância de uma poética eminentemente discursiva que se alinha à tradição da
autorreflexidade, da veemência e da elevação da linguagem, da consciência formal
apurada, da precisão construtiva e da objetividade estética, tão bem representada
na poesia brasileira − com os aspectos retentivos dessa concepção formal – que
poderia despreocupar-se no autoespelhamento metapoético. Porém, seu teor é
também o do tensionamento com as circunstâncias do sujeito nos espaços de sua
experiência vivida, da corporalidade, do pathos, das entranhas do gozo e da pulsão
libidinal; dos lugares, relações, realidades e temporalidades histórico-memoriais,
como no caso mostrado com a experiência coletiva da co-narratividade, os quais
também se constituem como um polo de força a impulsionar a expressão, em sua
tonalidade ("sentir-em-disposição" e "sentir-em-situação") e perspectiva, e a
linguagem − no limiar conflagrante de uma disputa no campo aberto da lírica. .
249

3.3 O "HORIZONTE-CIBORGUE" OU DA CONSTRUTIVIDADE INTERSEMIÓTICA


[REFERÊNCIA: O LIVRO-GOLEM E O PÓS-HUMANISMO DE ALEXANDRE
GUARNIERI]

[...] \ cada qual a seu tempo, distintos,


consolidem sacos de caldo biológico,
coagulados \ (carnes existem da diferença
entre si de seus tecidos / (se especializaram
as células, em aparelhos e sistemas ) /
[...]
/ (mas quando lhe autopsiam
a frio \ ( sangria & bisturis / ( se mostra,
um monstro sob as próprias ataduras \
(o frankenstein exposto, que, apenas por medo
do escuro, só morto poderiam demonstrá-lo ) \

(Alexandre Guarnieri [ | ( os órgão internos ) |.


Corpo de Festim], 2016, p. 39)

No poema-livro Corpo de festim (2014[2016]), Alexandre Guarnieri


apresenta a imagem emblemática do corpo através da especulação de seus
processos, da sua gênese natural e universal e da sua condição vital, da descrição
mofossintática, anatômica, de suas partes e órgãos externos e internos e, por fim, da
sua inserção numa ordem discursiva, ideológica e socialmente opressiva. O poema
alegoriza tal corpo das dimensões biológicas à sua dimensão universal e escritural,
tornando-o alegoria da escritura poética e do próprio livro, enquanto carne, fato e
pele da escritura.
Esta obra, Corpo de festim, poderia também ser inserida na mesma faixa
do horizonte anterior, em sua tensão formal-experiencial, enquanto uma forma-
poema-livro que coloca em evidência gêneses, maquinarias, números, parafernálias
orgânicas, foles, texturas, órgãos, gemidos, fluidos, a vida e a morte − enfim, um
cumulativo esquadrinhamento da experiência corporal. Porém, ele toma outra
diretiva, em dois sentidos. Primeiro, na medida em que sua expressão formal
ultrapassa a linha da discursividade do verso para dar lugar ao emblema sígnico
arquitetural e icônico, evocativo da "crise do verso" mallarmeana, operando com
imagens semiológico-tipográficas e assumindo uma visão técnico-materialista do
poético. Em seus processos "poiéticos" e procedimentais, entrelaça no corpo
escritural uma profusão (sonora, simbólica, signico-iconográfica, pictórica)
neobarroca de mistura com a tradição concretista e, ao mesmo tempo, associada ao
250

imaginário do maquinário bioindustrial e da poesia científica retrofit137. Um fragmento


do poema, abaixo138, encarna a ideia dessa proposta:

> (os pulmões) <

Em segundo lugar, essa obra toma outra diretiva em relação ao horizonte


anterior porque assume uma postura objetiva, como o trato de um cirurgião, ante o
objeto da experiência em jogo, objeto este perspectivado sob uma "poietese"
dissecante. Nesta perspectiva, o "EU" só existe enquanto sombra monstruosa,
impregnante (uma sombra que a efeméride crítica e acadêmica tenta acorrentar a
qualquer custo), o duplo que ronda a figura demiúrgica do autor desse corpo
antropo-biológico139 objetivo (o qual ora pode ter uma face simplesmente
biomecânica, ora uma face biopolítica e biopoética). Não há, portanto, um sujeito
lírico, patêmico, que assuma, por sua vez, vozes líricas respectivas, ou por estas
seja assumido, mas um enunciador que objectualiza de modo analítico, "austero e
frígido" essa experiência do corpo como uma experiência, afinal, totalizante.

137
"Retrofit": termo utilizado na engenharia para designar uma reutilização
renovada/readaptação/restabelecimento de equipamentos considerados ultrapassados ou fora de
norma, como exemplo do pré-industrial junto com a tecnologia de ponta.
138
No livro, a disposição gráfica do fragmento corresponde a duas páginas paralelas.
139
Conforme termo de RIBEIRO NETO, 2015. Disponível em:
https://augustapoesia.wordpress.com/2015/10/09/corpo-de-festim. Acesso em setembro/2016.;
Orelha do livro Corpo de festim, 2ed. 2016.
251

Há, portanto, conforme discutido nas relações entre forma e


objetividade/subjetividade, em tópico anterior, uma fissura estabelecida que põe seu
acento na esfera da coisa tratada, poetizada, esquadrinhada, determinando a forma,
a linguagem, a visão de mundo que são projetadas. É neste sentido que se torna
possível estabelecermos um outro território do poético e de concepção poética que
dimensionam e configuram, por sua vez, um horizonte diferente do anterior, no qual
o sujeito lírico se estabelece sem rupturas.
O livro divide-se em três capítulos. No primeiro, Darwin não joga dados,
Mallarmé sim, o poeta parte do big bang e do átomo de carbono – elemento químico
versátil, vital para o surgimento da vida, formação e compleição propriamente
orgânica do corpo; desenvolvimento e manutenção das moléculas desse corpo,
assim como a água, o líquido original e placentário da vida – encerrando com o
poema ( (( útero ~ incubadora ) )), cuja disposição gráfica remete, no espaço da
página, à imagem do útero, envolvendo símbolos tipográficos que evocam a imagem
do ventre e do feto. Conjuga nessa parte, alegoricamente, pelo menos quatro tipos
de gênese: a gênese do universo, a gênese embrionária do corpo humano e seu
nascimento, a gênese embrionária da linguagem e o ato da criação poética
demiúrgica, para o surgimento do livro-corpo, todos eles aparecendo na condição de
"conjuntos-mecanismos".
No segundo capítulo, Corpo-só-órgãos (ao qual pertence o poema "> (os
pulmões) < ", mostrado anteriormente), o poeta executa sua clínica anatomista do
corpo, dos órgãos internos, da mecânica dos fluidos, da numerologia articulatória
dos membros, do crânio humano e do rosto, esta máscara-persona de duas faces
[medusa ou budha (ternura ou luxúria), jekyll & hyde (desgraça ou paz),
multiplicadas em máscaras e maquiagens.
Por fim, o terceiro capítulo, Vigiar e punir, já se define pelo título sugestivo
que remete à obra fundamental de Michel Foucault, Surveiller et Punir: Naissance de
la prison, de 1975, em que o autor faz uma genealogia dos diversos tipos de prisão
do corpo, mecanismos e estratégias sociais e teóricas, de caráter humanista, de
controle, vigilância, sanções, regras, suplício e punição. Guarnieri encerra o livro
com o poema mandala de houdini (adiante, fragmento), em que expõe a vigilância
do discurso teórico-critico que tenta controlar o sentido (na pressuposição do
sentido) e os processos criativos da poesia – essa "outra coisa", conforme alegoriza
o poeta, no corpo de "uma coisa desabitada de si/ enquanto afirmada, mas coisa
252

quase vazia / uma coisa firmada no nada, no vácuo, fora/ de qualquer foco, no
vestígio de vulto e no/ entanto lá [...]". Desse modo, o último panóptico (ou "torre-
vigia") da poesia é a vigilância crítica do discurso acadêmico que deseja apreender
os labirintos da escritura até sua intimidade, seu self, e da qual o poeta tenta
escapar, espetacularizando tanto a objetividade quanto a subjetividade – e tornando
a própria luta um espetáculo, de modo a descobrir a impossibilidade mágica de
"desaparecer de vez", uma vez que a escritura (poética?), corpo imerso na
circunstância mundanal, é seu próprio monstro, sua mandala, seu ouroboro.
Sendo essa poesia a constituição de um projeto poético que parte do
antropobiológico, é também a constituição de uma negação desagregadora, "cínica",
no sentido nietzschiano: a negação, sem falsa consciência, do idealismo poético do
sentimental, do sublime, e do uso da poesia para a simpatia humanística; a recusa
de uma doxa da linguagem lírica, da sua face político-pragmática de formação (ao
revés, o corpo funciona claramente sob a mecânica dos sistemas), acolhimento e
enquadramento (com o "prezado leitor", com os meios de comunicação, com a
academia, com o sujeito humano); sua moral anti-cristã (como no poema ânus
humano ( . ) ônus santo, p. 86-87) e, finalmente, o próprio autoacorrentamento do
poeta, conjurando sua mandala, isto é, o eterno retorno do mesmo à impossibilidade
de fuga metafísica do corpo, distante de um telos que lhe seja salvífico. Só por essa
negação cínica, esta poesia já poderia ser pensada no âmbito de um horizonte pós
(ou mesmo anti) humanista.
Aqui, um breve parêntese explicativo. Algumas dessas propostas anti-
humanistas, estão explicitadas ou sugeridas por Peter Sloterdijk em seu Crítica da
razão cínica (1983[2012), do qual retiro dois trechos. O primeiro, relativo ao
"cinismo" de Nietzsche, acima mencionado e relacionado à proposta de Guarnieri
(no que diz respeito a [1] uma deposição do espírito poético idealista, o "mijar contra
o vento poético" e [2] um escancaramento desinibido dos mecanismos do corpo e de
seus processos biológicos no corpo dessacralizado do poético): "A autodesignação
decisiva de Nietzsche, com frequência desconsiderada, é a de um 'cínico' [...]. No
'cinismo' de Niezsche se apresenta uma relação modificada com o 'dizer a verdade':
trata-se de uma relação de estratégia e tática, de suspeita e desibinição, de
pragmatismo e de instrumentalismo [...]" (SLOTERDJIK, 2012, p. 14). O segundo
trecho insere-se na proposta do anti-idealismo que desafia as ordens constituídas,
no caso do poema, a ordem de certo intelecto acadêmico, que representa uma doxa
253

interpretativa, e a ideia de uma poética centrada no belo a partir da subjetividade de


um "EU lírico". Diz Sloterdijk (2012, p. 157):

No idealismo, que justifica a ordem social e a ordem do mundo, as ideias se


encontram no topo e brilham na luz de todas as atenções; a matéria vem
abaixo, simples reflexo da ideia, uma sombra, uma mancha. Como pode a
matéria viva se defender contra essa degradação? Do diálogo acadêmico
ela está evidentemente excluída: é autorizada apenas como tema, não
como existência. Que fazer? O lado material, o corpo desperto, conduz
desse modo a prova de sua sabedoria. A baixeza excluída vai ao mercado
público e desabafa ostensivamente a elevação. Fezes, urina, esperma!:
"vegetar" como um cão [grego: kŷon, kynós → kynikos; kynismos], mas
viver, rir e produzir a impressão de que por traz de tudo isso não há
confusão, mas clara reflexão.

Na verdade, não se trata, em Corpo de Festim, de uma risada/gargalhada


cínica, de um riso sarcástico e da exibição do corpo e seus fluxos em meio à praça,
próprios ao cinismo clássico. É mais uma corrosão por outros meios, pela
desautorização do poder constituído, através da demonstração de que este, com
seus mecanismos/cadeados, não suporta o que está além de sua compreensão, de
sua linguagem ou do cânon de seu paradigma, e, por outro lado, através da ironia de
poder jogar com os próprios mecanismos desse poder para contradizê-los ou
desmascarar seus processos discursivos e sua falsa consciência. Neste sentido, um
dos pontos-chave é a reflexão crítico-poético que dá fechamento ao livro (e descerra
a voz encaixotada):

mandala de houdini

[...] como frankenstein, EU sou este poeta, sou o autor deste poema (onde o
excêntrico cientista e a brutal criatura se misturam), sou EU o prisioneiro
solitário desta cela simétrica a 35 graus centígrados (são braços e pernas,
são duas janelas) cujas paredes de células me encerram na vigília das
sensações que se enlevam à quase exaustão do estar em mim,enquanto
criador deste específico livro de poemas cujo título corpo de festim revisita a
minha própria sina de estar vivo e produtivo
[...]
pois desisto de permanecer no cio desse rossio, nesse recinto sonoro
de letras ciosas e me esquivo, insidioso, e me livro de encontrá-lo
do outro lado, no virar da página, na linha de chegada, me ausento,
austero e frígido, da cópula contigo, meu leitor (o rei que deponho do
trono da alteridade), eu me livro de você a quem dirijo estas palavras
que escrevo sem segredo e nenhum delírio, enquanto eu mesmo me
incluo (ou excluo) destas inscrições por alguma convicção oriunda das
teses, da mesma seleta baderna, da efeméride dos mais sérios intelectos,
das disputas da academia sobre esta ou aquela forma de poesia(...)

(GUARNIERI, 2016, p. 111, grifos meus, exceto academia)


254

O horizonte propriamente pós-humanista dessa poesia dá-se a partir da


experiência da reflexão sobre o corpo, mas que se constitui sobre um projeto
respaldado no âmbito da expectativa (conforme aquela expectativa projetiva
anteriormente retratada, no quadro-síntese, com base nas proposições de
Koselleck), aberta, por sua vez, pela estética de uma forma retesada, pelo caráter
objetivo assumido pela imagem do corpo como instrumento alegórico pautada no
imaginário do duplo: o corpo-monstro, o corpo frankenstein, o golem-livro, criado por
esse "autor" (Dr. Viktor Frankenstein; Dr. Jekyll) para ser vivo e autônomo – ou seja,
ter uma biomecânica suficiente para funcionar por si mesmo. No horizonte desta
expectativa projeta-se não apenas o frankenstein pré-industrial, mas também a
figura teórica do encontro de realidades mistas e transdimensionais promovidas no
território integrado da antropotecnologia, na era das tecnologias avançadas, o corpo-
ciborgue,.
Trata-se de uma expectativa tanto do corpo quanto da linguagem poética
proposta, do homem e das tecnologias que ele cria, na mesma proporção em que
frankenstein remete ao corpo integrado, homem-eletricidade, o livro híbrido (livro-
frankenstein) vislumbra e constitui a imagem do "poema-ciborgue". Por mais
elementos antropobiológicos que o Corpo de festim nos apresente (e nisto mesmo já
recusando a visão metafísica humanista), ele propõe e aceita a realidade do objeto
integrado, a convivência com o "monstro" e a inseparabilidade dele: a hibridização
da máquina e do organismo – estetizada como a hibridização entre a linguagem de
cunho objetivo-cientificista (trata-se de uma ciência demiúrgica, cinematográfica, "de
festim") e a linguagem da poesia, e que, ao "integrá-los" num circuito, coloca em
xeque um e outro sujeitos destes discursos, perguntando pelas bases de sua
natureza, de seu caráter. Tal proposição remete-nos ao que diz Tomaz Tadeu em
Nós ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano (2016, p. 10):

Ironicamente, são os processos que estão transformando, de forma radical,


o corpo humano que nos obrigam a repensar a "alma" humana. Quando
aquilo que é supostamente animado se vê profunda e radicalmente afetado,
é hora de perguntar: qual é mesmo a natureza daquilo que anima o que é
animado? É no confronto com clones, ciborgues e outros híbridos
tecnonaturais que a "humanidade" de nossa subjetividade se vê colocada
em questão.

É nessa perspectiva que se torna possível compreendermos essa poesia


dentro de um horizonte que parte da experiência pós-humanista, e do universo
255

humano bioantropológico, para uma expectativa do pós-humano, do corpo


desmembrado e recosturado sob os auspícios de sua animalidade, de sua física
híbrida e do sopro vital da palavra demiúrgica, constituindo uma poética do ciborgue
– uma poética que, no final, trabalha também com o sopro de seus tropos e de seu
próprio corpo físico, sígnico-semiológico. Essa poética não dispensa a organização,
a ordem estrutural dos elementos; a lógica cognitiva dos ícones, símbolos, índices; o
signo-objeto da expressão plástica-gestual-visual, como resgate bastante explorado
da poética concretista; a combinação de linguagens, como, acrescentando ao que
foi dito, a linguagem verbal, em seus próprios escombros e formas privilegiadas, com
um cenário cinematográfico (de estética noir), as linguagens massificadas do gibi
(numa narrativa semiótica visual), enfim, uma poética que almeja transportar o
campo do próprio suporte, o livro, para o território de sua virtualidade, elevando-o a
um outro objeto para além de seu papel corriqueiro – o de mero suporte da poesia.
Facilmente este livro seria um mecanismo tecnológico de passeio tridimensional por
um corpo – corpo humano, corpo linguístico. Esta é, portanto, sua expectativa, seu
horizonte, e, por todos estes elementos é que podemos tomá-lo como referência de
uma escritura que podemos tratar como a de um "horizonte-ciborgue da escritura
semiopoética" que se apresenta como uma das linguagens que pode unir a tradição
(semiopoética), com as novas linguagens contemporâneas e, potencialmente, com
as linguagens visuais.
O horizonte potencial dessa experiência poética não está, portanto, na
poesia tradicional em si. Está entre o suporte-livro e as realidades possíveis no limiar
do poético, podendo alcançar, em sua expectativa, até os suportes imersivos e
interativos, na usina projetada da pós-palavra. E, se as poéticas tecnológicas e
virtuais, as poéticas dos suportes eletrônicos, digitais, pertencem a um outro campo
instrumental, certamente que a arte aí possível comunica-se com os projetos de
base intersemiótica do suporte-livro, e com a linguagem dentro desse horizonte-
ciborgue, aqui representados pela obra de Alexandre Guarnieri, a qual conserva no
sonho do livro o que já é sonho de outro corpo, "livro em devir".
E tanto mais podemos tirar tais conclusões na medida em que não é o
suporte, o meio comunicativo, que faz o poema, o que nos leva a refletir que o
horizonte propriamente poético não muda por mudar o suporte. Um poema
discursivo prosaico, uma lírica clássica, podem ser publicados em vários meios e
performances tecnológicas e continuarem na faixa de seu horizonte, do mesmo
256

modo como um poema de estética liminar e forma retesada, intersemiótica, como a


da referência apresentada, se utiliza do suporte-livro. Tais questões podem ser
discutidas e aprofundadas tomando-se por base a seguinte relação entre obras e
perspectivas apresentadas na imagem abaixo, e recorrendo-se às obras aí
nomeadas: Corpos em cena (2013), de Susanna Busato (2013) e 2 ou + corpos no
mesmo espaço (1998), de Arnaldo Antunes:

[Figura 03: Disposições de algumas obras


no horizonte da objetividade intersemiótica]

(Fonte: [Própria] SILVA, 2017)

Num horizonte em que Corpo de festim seja tomado como referência


axial, os elementos formais são elevados ao seu retesamento máximo, isto é à
máxima exploração de seus recursos e de seus efeitos dentro de um quadro do
poético, até sua liminaridade. Isto quer dizer que o plano tensivo desse retesamento
estende-se para uma projeção sobre a expectativa: uma forma que repousa, para
além do ideal poético do puro significante, da sua absoluta "autonomia", ou do "livro
sobre nada", sua realização na linguagem das puras formas estetizadas e dos
suportes empregados a serviço dessa totalidade estética formal. Tal transcurso
entraria naquela proposta de avanço das formas que já foi propugnado por Haroldo
de Campos, retomando uma fala de Walter Benjamin, de que a escrita estaria
destinada a "avançar", a "desenvolver-se" cada vez mais rumo ao domínio gráfico, à
figuralidade e a uma "escrita icônica", e sobre a qual podemos pretender que hoje,
257

com o domínio das tecnologias avançadas, tal linguagem pode ganhar realmente
inúmeras faces e possibilidades. Diz o texto de Benjamim sobre Mallarmé, traduzido
por Haroldo de Campos em favor da causa concretista:

Chega o momento em que quantidade se transforma em qualidade, e a


escrita, avançando cada vez mais fundo no domínio gráfico de sua nova e
excêntrica figuralidade, conquista de súbito os seus adequados valores
objetais (Sachegehalte). Nesta escrita icônica (Bilderschrift), os poetas que,
como nos primórdios, antes de mais nada e sobretudo, serão expertos da
grafia (Schriftkundige), somente poderão colaborar se explorarem os
domínios onde (sem muita celeuma) se perfaz sua construção: os do
diagrama estatístico e técnico (BENJAMIN [1926], in: CAMPOS;
PIGNATARI; CAMPOS, 1991, p. 193).

Nesse sentido, podemos pensar no território já da expectativa dos


suportes para além do livro e do signo, que se torne ele mesmo um ambiente
poético interativo, ou imersivo para o corpo agora poetizável (não apenas poetizado)
e que sejam poeticamente significantes. É bem possível que este seja um alcance
em que ainda possa se falar do espaço da poesia nesse "horizonte-ciborgue".
Em relação a um direcionamento distensivo dessa forma, neste horizonte,
é bem esclarecedora a concepção de Corpos em cena, de Busato, o qual, apesar de
um despojamento maior do teor formal icônico, preferindo um investimento numa
rede cromática lançada sobre a erótica do corpo, numa textura fonemática e numa
sinuosidade musical (esta, uma das relações intersemióticas do livro), há, sem
dúvida, uma busca de quadrejamentos, de rupturas, fragmentações e
espacializações que se integram à proposta temática do livro: os corpos encenam-se
numa erótica, mas também no espaço como palco, como cenário onde os corpos se
relacionam, empreendem gestos, se movimentam, dançam. O corpo é colocado na
pespectiva de que crie esse espaço, a lembrar o que já foi dito nesta tese (vide
tópico 1.1), de que o corpo é uma presença que cria o espaço e de que este, como
realidade relacional, sofre transformações qualitativas e quantitativas pela dinâmica
das próprias relações, estabelecendo-se como linguagem e por via de linguagens
diversas. Deste modo, as dominantes formais da configuração desta poética, de
Busato, realizam-se como estruturas gráficas espacializadas, que percebe a página
como o espaço para a disposição de formas-corpos e sentenças mínimas, sintéticas,
as quais, por vezes atingem aquele microrritmo típico de cummings, como no poema
silêncio (p. 15, de Corpos em cena):
258

seu
sil
ên
cio
sil
vo
do
ce
do
sol
so
me
de
mim

Ou, ainda, combinações de outras línguas, outras formas, insinuações de


uma representação gráfica que participam da integração proposta numa "erótica"
das formas – encontro/desencontro; abertura/fechamento – ou no "jogo" dos corpos
postos na cena da atração e da recusa, por vezes no campo da força:

un régard

onde ) ouverte (
oferta aérea
) fenêtre de l'esprit (
vacante vaga
palavra ) ivre (
intacta
ronda-me
cibernética
e assalta? )

(BUSATO, 2013, p. 55)

Por outro lado, nessa obra de Susanna Busato há a representação de


uma experiência intermediada pelo eu, pelo "me", mais que um gesto de ruptura
objetivista entre enunciação e enunciado, uma certa entrega desse sujeito poético
259

que se torna sujeito lírico e emerge da matéria de sua poética procurando a própria
voz, o próprio corpo, a forma dessa poética. A voz que está atrás do olho da câmera
também se desalinha e sente a gravidade da clave (quer dizer, a tonalidade,
arrastando consigo um pathos que vaza pelos ângulos assumidos da objetiva, pelas
hesitações, e toca a afetividade do corpo enunciador):

olho da câmera

a cidade
pentagrama
desalinha
minhas pausas
minhas claves
graves
ao sol

(BUSATO, 2013, p. 72)

É nesse sentido que podemos perceber que Corpos em cena propõe um


traço da participação experiencial mais tensivo em relação a Corpo de festim, onde a
localização do sujeito como analista clínico do corpo tenta excluir de antemão o
percebedor, em seu processo de escriturização e sua temporalidade demiúrgica
(ampla), do objeto percebido, da matéria em causa e sua maleabilidade empírica,
testável, controlável (do domínio do experimental), fazendo com que tal
escriturização se projete como racionalização num processo de ruptura – ou de
relação impossibilitada pelo distanciamento que o signo permite – com o
experimentado.
Em relação à proposta de Arnaldo Antunes, em 2 ou + corpos no mesmo
espaço, cujo título já supõe a proposta de um espaço intersemiótico de integração
de "corpos" e linguagens, podemos dizer que ele intensifica também os processos
formais a partir de poemas e fragmentos de poemas iconográficos, arranjos formais,
vazios, "plastipalavras", colagens, (con)fusão de imagens, e de recursos
intermidiáticos (dos suportes comunicativos, uma vez que o livro já apresentado
como objeto iconológico se faz acompanhar de um cd com performances poéticas
verbivocais). Eis um dos poemas icônicos do livro:
260

da sua memória

m i l
e
m u i
t o s
o u t
r o s
r o s
t o s
s o l
t o s
p o u
c o a
p o u
c o a
p a g
a m o
m e u

(ANTUNES, 1998, p. 22)

Assim, em Antunes, enquanto se eleva um cunho experimental, o cunho


experiencial se arrefece e distende ao seu prosaísmo, na medida em que tal
experiência é a experiência ludoestética do próprio corpo da palavra, uma
experiência metaformal, que acontece no evento [acontecimental] do livro e da
fruição de seu jogo e de seus signos, no sentido lúdico-construtivo do Scriptor
ludens, que Wladimir Krysiski localizou na literatura pós-moderna: "O texto pós-
moderno é absolutamente lúdico, porquanto não cuida da direcionalidade
representativa, do logocentrismo do sentido, e constitui sua espetacularidade e sua
performance sem nenhuma constrição diegética ou mimética" (KRYSISNKI, 2007, p.
123). Há aí, portanto, uma performance da linguagem, do "jogo da linguagem", uma
performance textual (diferente daquela performance do corpo e da voz, a qual
veremos), entendida aí como uma "pragmática da performatividade" como o reino do
pensamento calculante e objetivante, com a qual François Lyotard definiu a condição
261

pós-moderna (KRYSINSKY, 2007, p. 124). Desse modo, numa literatura presente


em muitos escritores e poetas da atualidade,

A performance pós-moderna desemboca antes no processo do que num


objeto temporal acabado. [...] O performer encena a si mesmo enquanto
cofessor das próprias leituras e jogador das próprias obsessões. [...] A
multiplicidade e a variedade de objetos como fotografias, desenhos,
ilustrações, as referências e as citações literárias que entram no texto
descontínuo dão a impressão de uma progressão contínua do performer
que supera todos os obstáculos. [...] O texto jogado, "performado", torna-se
uma performance do prazer que propulsiona o fazer cognitivo mediante o
texto (KRYSISNKI, 2007, p. 124;127).

De outro lado, a comunicação de 2 ou + corpos no mesmo espaço (assim


como de uma contínua poética do autor) com os pressupostos da tradição
concretista é total, e podemos mesmo dizer que o Concretismo encontra nessa
semiopoesia sua realização contemporânea ideal, quer dizer, congraçante. Logo,
dá-se aí também uma retenção do projeto poético concretista que pode ser
entendido como anacronia ou como permanência valorativa desse projeto, ainda
mais quando o poeta, Arnaldo Antunes, é também um conhecido artista multimídia.
De fato, há também no livro fotografias, como na imagem abaixo, de outras
realizações artísticas do autor, como exposições de cartazes, instalações,
sobreposições e textos ou fragmentos de canções.
262

[Figura 04: imagem gráfico-poética de 2 ou + corpos]

(Fonte: ANTUNES, 1998, p. 72-73)

Fazendo um resumo do que foi visto das três obras discutidas no


panorama deste horizonte e considerando-as em relação ao quadro-síntese da
forma e da experiência, anteriormente apresentado para servir como orientação
desta análise, podemos então situar a obra de Guarnieri, Corpo de festim, dentro da
faixa daquela forma de orientação tensa, do tipo retesada. E isto em função da
extrema exploração, no âmbito de sua poética, dos recursos formais e estéticos, ou,
263

conforme o quadro-síntese, um caráter formal e objetivo praticamente absoluto, que


orienta a obra, ao ponto de quase projetá-la para além da forma-palavra. Já no que
tange à experiência, esta também se apresenta objetivamente, mas como distensa e
focalizada, o que implica em empreender uma discussão tanto do fazer quanto do
ser poético, mas sem pôr em jogo uma experiência nas temporalidades e
espacialidades do vivido por meio de um sujeito vicário, da experiência pática.
Guarnieri entende sua obra como projeto sobre uma expectativa dos rumos da
linguagem, da fruição estética e do vir-a-ser do fazer poético.
Já Corpos em cena, de Suzanna Busato, em comparação com a nossa
referência axial, apresenta também uma forma tensa, mas do tipo densa (em vez de
retesada), o que equivale a dizer que há nela, como em Guarnieri, um contundente
cuidado formal e objetividade, esta porém significativamente atenuada por uma
perceptível intervenção da subjetividade, marcada pela voz que fala, e por uma
textura tonal que lhe dá coloração sensível e erótica. No que diz respeito à
experiência, na obra de Busato, entendemos que esta se apresenta como distensa e
cotidiana/prosaica, no sentido de que esta autora parece se propor a trazer à cena a
fruição poética e a presença cotidiana do sujeito lírico, vicário, imerso na afetividade
e nas vivências erótico-patêmicas.
Quanto a Arnaldo Antunes, podemos dizer que, no que se refere à forma, sua
obra se apresenta como tensa do tipo retesada (à semelhança de Guarnieri), na
medida em que reverbera fortemente a tradição construtivista-concretista e, em
função disto, uma temporalidade retentiva e mesmo anacrônica. Mas, por outro lado,
reverberando o caráter autorreferenciado, intersemiótico e experimentalista do
construtivismo-concretismo, isto acaba por lhe dar certo teor de fruição ludo-estética,
enquanto a experiência na obra deste autor se apresenta como distensa, focalizada,
com manifestações cotidianas.
Podemos, desse modo, pensar numa faixa desse horizonte relacionado à
tradição das poéticas que têm por foco a linguagem objetiva, cognitivista e
arquitetural, que ultrapassa o panorama discursivo da palavra e do verso para o
panorama da sua compleição sígnica, significante, de intersemióticas e interfaces
entre artes, códigos, suportes, tecnologias. Sua raiz está na "arte da palavra", porém
projeta sua realização (vide quadro-síntese) sobre outras linguagens e espaços,
dando lugar à sua expectativa para além do livro. A sugestão da poesia-ciborgue é
também a expectativa de alcance dos espaços liminares, os espaços virtuais, a
264

expectativa do salto "experiencial-participante" dos ambientes digitais e ciberdigitais,


para o pathos poético do andróide ou do co-autor interativo. É uma poesia cuja
expectativa impulsiona, por outro lado, para além do semioticismo concretista – e do
poema-livro, a vídeo poesia ou poema-quarto, como nas experiências neoconcretas
de Gullar.
Trata-se de novas possibilidades para uma linguagem já ameaçada de
esvaziamento, esteticismo e ludismo (LYRA, 1995, p. 112-115), e que atingiu certo
fascínio no jogo "elevado" das formas de teor pós-modernista. Aliás, Ricardo Araújo
(2005, p. 298) detecta no Concretismo o começo do pós-moderno e do que ele
chamou de formas "analoirônicas" (sic), ou seja, "de uma sobreposição do analógico
ao irônico", encetado, segundo ele, pelo Concretismo via Mallarmé, e que abriria
espaço para os traços paradigmáticos da poesia "pós-moderna", não só no Brasil,
como também em várias partes do mundo. Tais traços são, segundo Araújo (2005,
p. 298), os seguintes:

a) Valorização do estrato visual;


b) Busca de uma estrutura "verbivocovisual";
c) Utilização de outras linguagens;
d) Extremo rigor no sentido formal do arranjo das letras e palavras;
e) Busca de estruturas linguísticas que dialoguem em um sentido
intersemiótico;
f) Uma espécie de dissonância cartesiana antevista por Mallarmé no seu
famoso poema Un Coup de Dès;
g) Visualização do poema como uma espécie de tradução interlinguística e
intralinguística e, principalmente, intersemiótica;
h) Aproximação da palavra ao ritmo musical, com a disposição coreográfica
e os esforços da dança e da arquitetura.

Com base no que foi colocado acima, podemos considerar válidos todos
os traços apontados por Araújo, mas é preciso pensar nesse "horizonte-ciborgue" de
modo que não se restrinja às formas, estéticas e modos anacrônicos ou
consequentes do Concretismo, as quais se tornariam empobrecidas se
permanecesse no horizonte poético de uma anacronia formalista-icônica. Não é
disso que se trata, como podemos apreender da referência axial em pauta, Corpo de
festim. Trata-se, isto sim, dessa integração orgânica de realidades e paradigmas
diferentes, cujo entrechoque seja capaz de gerar expectativas no próprio limiar do
265

poético, interrogando o que seja o poético, o que seja o pathos lírico e o que seja o
próprio humano ser – então já não se trataria de um mero jogo de processos
formais. Por outro lado, não se trata tampouco de um experimentalismo de caráter
performático-subjetivista, que, enquanto horizonte, já reflete uma experiência
completamente diferente, conforme ainda veremos.
266

3.4 HORIZONTE DA REMISSÃO DRAMÁTICA E SIMULACRAL [REFERÊNCIAS:


ANA MARTINS MARQUES E A CARTOGRAFIA DAS SEMELHANÇAS; CARLITO
AZEVEDO E A REPETIÇÃO SEM FIO DO TEATRO-CUBO]

Título

Suspenso
sobre o livro
como um lustre
num teatro

(MARQUES [O livro das


semelhanças], 2015, p. 15)

Corro de um canto a outro do palco


ainda que ele não passe do menor cubo
entre os cem que se encaixam uns nos
[outros
e onde mal consigo me mexer
[...]

(AZEVEDO [Livro das postagens]


2016, p. 19)

Consideremos duas proposições: só o que se


assemelha difere; só as diferenças se
assemelham.

(DELEUZE, 1968, p. 171)

A repetição opõe-se à representação: o prefixo


mudou de sentido, pois, num caso, a diferença se
diz somente em relação ao idêntico, mas no outro,
é o unívoco que se diz em relação ao diferente.

(DELEUZE, 1968 p. 95 , grifos do autor)

A rigor, toda literatura põe em xeque a relação entre as palavras e as


coisas, entre a literatura e a referencialidade, sob os auspícios da mímesis literária.
Sua concepção, como representação de realidades, passou, historicamente, da
relação estabelecida por um simulacro de terceira ordem, cópia duplicada de um
mundo ideal, em Platão, ao seu entendimento como representação poiética, isto é,
composição e organização de acontecimentos humanos em um mythos, uma "ficção
verossímil", com Aristóteles. Daí, à ideia de uma imitatio naturae [imitação da
natureza; da realidade] ou imitatio antiquorum [imitação dos Antigos], na concepção
267

clássica humanística, até o seu questionamento, o seu desterro e sua reabilitação,


no último século140.
A mímesis foi questionada na medida em que, com a centralidade do eu
no romantismo, a representação desloca o papel da imitatio para as profundezas
desse eu, ", ou seja, a "realidade" subordina-se às tonalidades de uma realidade
íntima, como explica Luiz da Costa Lima (2007, p. 768): "com o romantismo vitorioso
uma nova demanda se consolida: a da orientação a partir do eu; que, a partir dela, a
imitatio é sepultada em tamanha profundidade que dela nada ou ninguém mais
parece descender. O desterro da mímesis acontece na linha que vai de Baudelaire,
passando por Mallarmé – hostis às linguagens comuns –, aos princípios
construtivistas, de plasticidade e autoreferencialidade da poesia e da arte em geral
em algumas vanguardas, com a ascese técnica promotora de uma Gestalt (forma)
da obra, isto é, uma "meditação meditada da formatividade (Gestaltung)" (LIMA,
2007, p. 779). Essa linha atrela-se, enfim, ao longo do século XX (principalmente na
teoria e crítica estruturalista), à ideia derrisória da própria realidade em si como
elaboração discursiva e ideológica141, "ilusão referencial", palimpsesto textual e
intertextual. E sendo a "realidade", neste caso, mais um código de representação,
produto de uma manipulação arbitrária, é apresentada com a ilusão de uma
linguagem transparente, naturalizada 142.
A reabilitação da mímesis, em nova perspectiva, tem sido, porém,
efetivada através das obras de teóricos como Paul Ricoeur, que, conforme foi visto
no tópico sobre configuração, a relaciona a uma pré-figuração e configuração da
temporalidade narrativa, e sua reconfiguração por parte do leitor – mímesis I, II e III
– , (mas de modo a permitir a reelaboração desses pressupostos em outros campos,
conforme faz, por exemplo, Antonio Rodriguez, já bastante citado neste trabalho, na
configuração lírica), bem como através dos reiterados trabalhos do brasileiro Luiz da
Costa Lima que exploram o fenômeno da mímesis em sua expressão estética e
cotidiana. Na visão deste autor, tratando aqui de maneira bastante resumida, tal
fenômeno, longe dos pressupostos da imitatio – um erro de tradução e de
140
Cf. LIMA, 2007, p. 767-811; LIMA, 2012, p. 97-127.
141
"Lo que llama «real» (en la teoría del texto. realista) no es más que un código de representación
(de significación)" (BARTHES, 2004, p. 66)
142
"La denotación no es la verdad del discurso: la denotación no está fuera de las estructuras, posee
una función estructural igual a las otras, precisamente la de declarar inocente a la estructura;
proporciona a los códigos un excipiente precioso, pero circularmente es también una materia
especial, marcada, de la que se sirven otros códigos para suavizar su articulación." (LIMA,2007, p.
107)
268

concepção, segundo Costa Lima –, é orientado por um vetor de diferença, nos


pressupostos da produção (e da tekné, que pode seguir os passos da natureza, mas
não reproduz o seu fazer). A diferença prepondera sobre os princípios da
semelhança, que servem de orientação ao receptor, ou seja, "a mímesis, ao
contrário de sua tradução equívoca, imitatio, não é produção da semelhança, mas
produção da diferença, sob um fundo de semelhança. Diferença que se impõe a
partir de um horizonte de expectativas de semelhança" (LIMA, 2007, p. 806). O autor
de A ficção e o poema faz também uma correlação desse fenômeno, nos aspectos
relacionados à semelhança, com os processos imitativos de uma "ficção conjetural"
que, conforme ele, "permeia o nosso cotidiano" e é por nós obedecida sem que a
tenhamos como tal − na medida em que, seguindo Aristóteles, compreende que a
mímesis é própria do homem, é social. Essa "ficção conjetural" é construída
socialmente dentro de um contexto que "funciona como o pano de fundo da
semelhança, dentro do qual o leitor [inserido dentro de um imaginário social], situa o
desenrolar da ação ou da reflexão poemática" (LIMA, 2012, p. 115). Sobre a
questão, é válido reportar a voz do próprio autor:

Na mímesis de função estética, o vetor "diferença" – cujo grau de presença


e modo de manifestação são por completo dependentes da força de poiesis
do/s autor/es – prepondera sobre a semelhança, cujo papel se restringe a
servir de princípio de orientação do receptor; sem que se confunda com um
elemento de codificação automático, a semelhança ronda a redundância e
assinala que a obra que a desprezasse por completo correria um sério risco
de receber um entendimento próximo ou idêntico a zero. Já na mímesis do
cotidiano, cujo exemplo-padrão é o adolescente que, participante de um
grupo, imita seu ídolo pelo modo de vestir-se, de falar, se não de agir, a
semelhança ocupa o lugar quase exclusivo.

(LIMA, 2012, p 116, grifos meus)

Claro que, nessa questão do "entendimento próximo ou idêntico a zero",


Costa Lima não está levando em conta o próprio gozo do hermetismo e do enigma,
ou a sombra deste, que paira sobre certas linhas da literatura/da poesia moderna (e
contemporânea), e que realmente não está preocupado com o "entendimento" do
leitor, mas até, por vezes, posta-se na suprema ironia de não estabelecer sequer
comunicação. Sobre isso, a própria poesia construiu, na sua racionalidade, a irônica
justificativa – já apontada por Berardinelli, e tratado supra, ao discutirmos a questão
da obscuridade na poesia contemporânea – de que o texto "sem sentido" estaria,
pelo contrário, seja sob a jurisdição do hermetismo, seja sob a alegação do
269

"estranhamento", completamente aberto a todos os sentidos, isto é, ao vazio


estrutural do signo, ao nada, ao nonsense, o qual, de qualquer modo,
independentemente da mímesis "da semelhança", ainda seria compreensível a
ponto de "fazer sentido" nos termos do gozo estético e do sensível. Ora, tal posição
envolve um outro aspecto relacionado à mímesis, que é o gesto, a mímica (na
performance da linguagem poética, se assim podemos dizer), a qual investe nas
possibilidades e suposições de sentido, adivinhações, erros e acertos da platéia, e
que, elevada a seu grau de generalização máxima, com a universalidade que a
poesia pode proporcionar, põe em cena a dimensão de um mundo como jogo de
encenações, um theatrum mundi. Essa ideia, sabemos, não é estranha na história
do conhecimento nem da literatura, mas atravessa a filosofia (mito da caverna,
eterno retorno, "sociedade do espetáculo"143), a religião, as artes – arte barroca, por
exemplo, como o grande espetáculo do mundo, suas figurações, espetacularização
dos gestos, camadas alegóricas de sentido – enfim, vários campos. Neste sentido, a
ideia da realidade como gestos de um palimpsesto textual não deixa de ser uma
versão no campo linguístico-literário para essa compreensão, convocando a esse
palco também a memória da linguagem.
A problemática da mímeses está presente, portanto, em todo o fazer
literário em geral, assim como no fazer poético, em particular, na medida em que os
fenômenos da representação e da referência são próprios de qualquer linguagem, e
na medida em que esta tem a possibilidade de estabelecer relações de
aproximação, distanciamento ou ruptura com o mundo referencial, criando sua
própria realidade – nas palavras de Valéry, a potencialidade de morder a própria
cauda144.
No entanto, essa breve introdução sobre esse assunto nas
especificidades deste horizonte da poesia contemporânea deve-se ao fato de que
este se desenvolve colocando em questão, de forma posta ou pressuposta, o cerne
da mímesis, a relação de atavismo ou fissura inexorável entre as palavras e as
coisas, a palavra e a palavra, o mundo da vida e a expressão poética desse mundo
mediada pelos textos (e seus mundos), seja por seu ataque direto, seja pela
pressuposição dessa fissura irreparável. Trata-se de um theatrum mundi em que a
linguagem poética pode revelar/aclarar-esconder pelo jogo de cortinas do sentido,

143
Cf., acima (em 1.2.5.3 O contemporâneo) citação de F. JAMESON (1997, 45).
144
Penser: Serpent (VALÉRY, P. in: CAMPOS, 1984, p. 101-115).
270

ou pela impossibilidade da realidade do mundo da vida, convertida numa teia sem


fim de linguagens, pastiches, ruídos, gritos, massificações, manipulações e ordens
discursivas, representações, traços, esboços, personagens, máscaras e paisagens
cartográficas.
Sendo assim, podemos trazer ao âmbito deste horizonte alguns conceitos
de fato interpostos por ele, no caso, os conceitos de semelhança, de repetição e de
simulacro, todos com raizes estabelecidas na mímesis e nas relações do mundo da
linguagem com o mundo da vida. Por outro lado, o pressuposto é, na verdade, o de
que essa relação é, no mínimo, esgarçada, quando não impossível, de modo a pôr
em questão crítica a própria realidade, as ações e as relações humanas. Isto é, põe
também em questão crítica as pressuposições do que seja a verdade, assim como
as paisagens, os fenômenos espaciais/temporais e a memória, que ficam sob
suspeição ou relativização nesse contexto.
A ideia da circularidade e da repetição, sem fim, dos textos sobre si
mesmos, bem como da linguagem sobre si mesma, traz ao problema da
representação a noção de uma remissão que se pergunta pelo mesmo e pelo
diferente, pelo original e por sua cópia, e, enfim, quando ou onde o original (a
realidade, e não a cópia de sua cópia) se perdeu; pergunta-se mesmo se esse
original um dia chegou realmente a existir. Tal experiência torna-se, neste sentido,
uma experiência simulacral de teor dramático, ao mesmo tempo reinterpretativo (re-
playing) e conflituoso, em dois sentidos: o da mutabilidade e da imutabilidade, e o da
representação e da repetição, cujas perguntas latentes são as seguintes: "o original
existe?", "o original é possível?", "o que faz com que o repetido não seja a mesma
coisa?...". Para Deleuze (2006, p. 50), "repetir é elevar a primeira vez à enésima
potência. [...] Opõe-se, pois, a generalidade [o conceito] como generalidade do
particular, e a repetição como universalidade do singular". Entretanto, sabemos que,
se no âmbito histórico encontra-se o acontecimento inaugural a ser intensificado por
suas repetições, na dimensão das relações textuais o fato poético encontra-se
imerso numa rede de palimpsestos, de inter/intratextualidades, provocando uma
metarremissão que opera sob o signo da repetição e propõe que o original (o ato
original que inaugura a repetição145) sempre esteve perdido. Assim, resigna-se às
variadas faces do que aparece, admitindo que o que passa a importar, afinal, é a

145
Deleuze evoca três filósofos (Nietzsche, Kierkegaard e Peguy), os quais, por sua vez,
fundamentam sua filosofia em torno do pensamento da repetição (o eterno retorno,
271

autencidade dessa repetição, podendo, sob nova perspectiva, partir para a


descoberta da singularidade de cada momento, e cada oportunidade de vida nessa
repetição, elevando-as à enésima potência e, por fim, alegrando-se com elas.
Nessa experiência da repetição, a atuação focaliza-se na pertença à
linguagem, senão numa pertença a uma "comunidade de linguagem", conforme já
explicitado supra, e pode tornar-se correlativa − isto é, aparentar-se − ao modo da
experiência objetiva e controlada praticada pela repetição na ciência, na qual,
permanecendo o cerne (a repetição profunda) da questão, mudam-se as faces, os
termos operativos, e dando lugar a que uma experiência possa, inclusive,
contradizer a outra. Outra vez, como foi dito supra (ubi non reperitur instantia
contraditoria), uma experiência traz o caráter da repetição e do isolamento, e o fato
de que pode anular, "corrigir" uma outra, ou acrescentar-se a ela, em suma.
Considerando agora o simulacro como uma repetição não desqualificada,
aplicando a ele as prerrogativas da repetição deleuziana, ele não operaria sobre o
signo da semelhança (da imitatio), mas da diferença, pelo disfarce e pela máscara
que remete a outras experiências internas ao fenômeno. Isto conflui com o sentido
de uma afirmação positiva que o autor de Différence et Répetition vai encontrar na
repetição: o movimento da máscara, do travestimento, do disfarce (ao que
poderíamos acrescentar o movimento da "signi-ficação e da re-signi-ficação"),
porque, segundo ele, essa repetição possui "todos os recursos do signo, do símbolo
e da alteridade que ultrapassam o conceito enquanto tal" (DELEUZE 2006, p. 50).
Desse modo, acrescenta o autor,

sob o trabalho geral das leis [das generalizações], subsiste sempre o jogo
das singularidades. As generalidades de ciclos da natureza são a máscara
de uma singularidade que desponta por meio de suas interferências; e, sob
as generalidades do hábito, na vida moral, reencontramos singulares
aprendizagens" (DELEUZE, 2006, p. 51).

Essa repetição assume, dessa maneira, a força que irrompe na


temporalidade e na eternidade pelo caráter do intempestivo que promove "o 'parte
alguma' originário e o 'aqui-agora' deslocado, disfarçado, modificado, sempre
recriado" (DELEUZE, 2006, p. 17).
Deste modo, o movimento da repetição (o si sobre o si) torna-se, para ele,
diferente da mediação representativa, a qual estabelece uma falsa profundidade por
ter apenas um centro, em contraponto com a repetição, cujo movimento implica uma
272

pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de


pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam essencialmente a
representação. Uma obra de arte seria o exemplo de um "deformador" que obriga a
uma perspectiva "rasante" e "mergulhante", isto é, a não permanecer no espaço de
seu elo representativo. Por outro lado, segundo ele, não é multiplicação da
representação que torna o ponto de vista divergente. Poderá haver, ao contrário,
uma convergência de todos os pontos de vista sobre um mesmo objeto ou um
mesmo mundo. Na verdade, "a representação componente é que deve estar
deformada, desviada, arrancada de seu centro. É preciso que cada ponto de vista
seja ele mesmo a coisa ou que a coisa pertence ao ponto de vista" (DELEUZE,
2006, p. 94). Essa seria a dobra afirmativa da repetição sobre si mesmo.
No sentido dessa dobra afirmativa da repetição sobre si mesmo, é
relevante acrescentar a invocação da visão do eterno retorno de Nietzsche 146, por
Deleuze, para salientar nela a ideia da geração da diferença por um caosmo que
compõe a diferença na repetição, ou constitui sua própria afb ohoirmação, conforme
ressaltada nesta citação:

Nietzsche já dizia que o caos e o eterno retorno não eram duas coisas
distintas, mas a mesma afirmação. O mundo não é finito, nem infinito, como
na representação: ele é acabado e ilimitado. O eterno retorno é o ilimitado
do próprio acabado, o ser unívoco que se diz da diferença. No eterno
retorno, a [sic] caos-errância opõe-se à coerência da representação; ela
exclui a coerência de um sujeito de um sujeito que se representa, bem
como de um objeto representado. A repetição opõe-se à representação: o
prefixo mudou de sentido, pois, num caso, a diferença se diz somente em
relação ao idêntico, mas, no outro, é o unívoco que se diz em relação ao
diferente. A repetição é o ser informal de todas as diferenças, do fundo que
leva cada coisa a esta "forma" extrema em que sua representação se
desfaz. O díspar é o último elemento da repetição que se opõe à identidade
da representação. O círculo do eterno retorno, o da diferença e da repetição
(que desfaz o do idêntico e do contraditório) é um círculo tortuoso que só diz
o Mesmo daquilo que difere (DELEUZE, 2006, p. 95, grifos do autor).

Um outro ponto importante que precisamos considerar no movimento do


"repedir", "repeticionar" (o não satisfeito, o não obtido, o não comunicado, o não
atendido/legalizado), é o caráter "faltante" da linguagem, do ser imperfectivo da
linguagem, que engendra o movimento do "dizer de novo", no cerne da
impossibilidade do sentido total do mundo ou do objeto, ora do drama da
compreensão-incompreensão, da necessidade fazer-se compreender por outros
146
Faz referência não só a Nietzsche, mas também à repetição em Kierkegaard (o movimento, a
metamorfose e o ritual; a contestação [Jó] e a resignação ao encontro da singularidade [Abrão]), e em
Péguy (a repetição no entrelaçamento história e fé – Joana D'Arc e Gervaise).
273

modos, da irrealização do encaixe (o marido, a esposa, o amante) comunicativo, ora


do desejo de velamento ou de resgate da coisa, sua retenção ou reordenação.
Podemos encontrar o sentido desse caráter dessa claudicância imanente à
linguagem, mais uma vez, ainda na concepção do Logos fundamental de Heráclito,
invertendo seus termos: “O Logos é a alma de seu próprio crescimento” (Heráclito,
fragmento 115)147.
Dar a esse horizonte o título de "horizonte da remissão dramática e
simulacral", é, portanto, apontar para a ideia de uma linguagem que vai buscar em si
suas próprias máscaras, seus simulacros, a experiência dos textos sobre textos, das
formas autorremissivas onde reverbera (projeta-se) o sentido do simulacro, não no
sentido de uma avaliação depreciativa, proveniente, justamente, da "pretensão
metafísica de capturar uma realidade absoluta presente ou futura" (PERNIOLA,
2000, p. 134), mas na condição da superação, no âmbito da linguagem, da distinção
entre mundo verdadeiro e mundo aparente, que não tem mais necessidade de
promover uma "verdade" referencial. Isto quer dizer que a remissão referencial ou é
dada como impossível ou é posta em dúvida, já que a "verdade" está imersa numa
rede complexa e intrincada de palimpsestos linguísticos e textuais. Esta visão é
reiterada por Perniola (2000, p. 134-135, grifo meu), ao tratar de uma reafirmação do
simulacro enquanto imagem.

A avaliação positiva da imagem enquanto imagem é uma perspectiva


moderna que implica o fim da metafísica e a completa aceitação do mundo
histórico. O conceito de simulacro só pode nascer num contexto que tenha
superado definitivamente tanto a teoria platônica da ideia e de sua cópia
sensível (sobre a qual se fundamenta a iconofilia oriental) como o
profetismo visionário da Bíblia (sobre o qual se fundamenta a iconoclastia
protestante). Tais condições existem na Itália do século XVI: a teoria das
imagens de São Roberto Bellarmino, exposta em sua obra De controversiis
christianae fidei, marca precisamente o surgimento de uma nova posição,
irredutível à iconofilia e à iconoclastia tradicionais.

O sentido de "remissão", por sua vez, comporta, nesse caso, uma riqueza
de acepções que se estendem do sentido de reenvio de vozes, interlocução poética
num palco de textualidades, ora no sentido de recuperação vicária ("pathecente"), de
uma relação propriamente "trágica" constituída entre o mundo da vida e a
linguagem, e que a poesia traz à tona, ou de uma referencialidade esgarçada,

147
No original: “ψυχῆς ἐστι λόγος ἑαυτὸν αὔξων”. In: HERÁCLITO. Fragmentos.
http://pt.scribd.com/doc/12892206/Fragmentos-de-Heraclito (Observe-se que os fragmentos aí não
seguem a mesma ordem geralmente adotada por outros autores).
274

perdida, ou aniquilada, só encontrada como universo dos discursos e das palavras.


Tal proposta toma como impulso as questões acima discutidas, mas também não
deixa de trazer a este espaço a percepção de certas confluências de orientação que
tanto Michel Foucault quanto Mário Perniola 148 encontram, por exemplo, na
concepção artística do simulacro em Pierre Klossowski, este intérprete do eterno
retorno de Nietzsche (e de Sade) – e que, nesta figura do eterno retorno e do
simulacro, remete à questão que viemos tratando.
É na perspectiva desta remissão dramática e da figura do simulacro que
podemos encontrar agora O livro das semelhanças (2015), da poeta mineira Ana
Martins Marques, e Livro das postagens (2016), do poeta carioca Carlito Azevedo.
Essa obra de Ana Martins é dividida em quatro seções: Livro,
Cartografias, Visitas ao lugar-comum e O livro das semelhanças. A primeira seção
retrata a estruturação poética de um "livro", cujos elementos e divisões clássicas
(capa, contracapa, colofão...), do processo de produção gráfico-editorial ("papel de
seda", p. 23) e de um suposto conteúdo ("primeiro poema", "segundo poema", etc)
correspondem a um poema realizado. A segunda seção estabelece relações entre
sujeitos (você, eu; nós), lugares, deslocamentos, mediadas e construídas em torno
de um/o mapa. A terceira seção tem como foco a busca de um sujeito pelo lugar do
encontro possível (precário, mas esforçado) – no tempo, no espaço, na linguagem,
no "teatro", no vazio, no silêncio, no 'lugar-comum" – com o outro, com a alteridade.
A quarta seção, por sua vez, estabelece um espaço de "semelhança" (no sentido de
que os diferentes encontram suas semelhanças), íntima, dialogal, entre o "eu" e o
"você", entre os sujeitos híbridos, os seres compósitos (sereia, centauro, Ícaro),
entre as temporalidades desencaixadas, desse mundo cartográfico e sensível.
O poema-epígrafe desse livro é o seguinte:

148
Assim tratam os dois filósofos sobre a operação com a figura do simulacro por Pierre Klossowski:
"Já que todas as figuras que Klossowski delineia e faz morrer em sua linguagem são simulacros, é
preciso entender esta palavra com a ressonância que agora podemos lhe dar: vã imagem (em
oposição à realidade); (...) signo da presença de uma divindade (e possibilidade recíproca de tomar
este signo pelo seu contrário); vinda simultânea do Mesmo e do Outro (simular é, originariamente 'vir
junto'). Assim é estabelecida esta constelação característica de Klossowski, e maravilhosamente rica:
simulacro, similitude, simultaneidade, simulação e dissimulação. (FOUCAULT, 2006, p. 114 – grifos
meus). E PERNIOLA (2000): "O retorno às coisas mesmas é impossível porque, a partir do momento
em Deus está morto, nada mais existe de originário. A morte de Deus, que é definida por Klossowski
como 'o acontecimento dos acontecimentos', está estritamente ligada à necessidade circular do ser',
expressa na teoria nietzschiana do eterno retorno. As "coisas mesmas" já são desde sempre cópias
de um modelo que jamais existiu, ou melhor, que a morte de Deus dissolveu para sempre; trata-se de
simulacros, não de fenômenos.
275

Ideias para um livro

I
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance

II
Uma antologia de poemas-
-epitáfios

III
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram

IV
Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III

V
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas

VI
Este livro
de poemas

(MARQUES, 2015, p. 9)

No poema, a realidade do livro permanece, antes de tudo como a


realidade constituída pelo livro e para o livro, mas de uma escrita que se desagrega
da instância do real para as virtualidades constituídas na dimensão da obra poética,
a começar pela eleição de autores que não pertencem ao mundo real, mas ao
mundo fictício dos textos. Obviamente que se trata de "ideias para um livro", mas
ideias estas que se constituem no cerne do que se segue no decorrer da obra,
relações conflituosas e reduplicações entre a imagem e a realidade. Significa dizer
que aí as instâncias estão abertas às vivências, não há realidade absoluta, todas
elas estão colocadas sob suspeição ou sob análise crítica partindo do ponto de vista
de sua relação com a escrita, com a linguagem, e das relações da linguagem como
intérprete da própria linguagem – e isto faz deste horizonte um horizonte também
aberto, que se realiza sobre relações precárias, inconclusas, trágico-dramáticas.
Não à toa, nessa paisagem poética, a receita para o Livro perpassa por
poemas-epitáfios e "poemas que citem/ o nome dos poetas que os escreveram", o
que é reiterado na estrofe tópica seguinte – como dobra do poema-livro sobre si
mesmo −, lançando esse ato da escrita e o sujeito da enunciação produtiva do ato
poético na temporalidade límbica da morte, ou do nome (escrito agora no poema-
lápide) que encerra a realidade do autor e inaugura a realidade da sua memória
276

incrustrada na lápide, já que o que restará desse poeta será apenas seu nome, um
signo para um novo jogo de realidades e sentidos.
O círculo reiterativo de uma realidade crítica da linguagem recai então
sobre o que o poema não pode pretender alcançar, mas também o apresenta como
uma realidade efetiva que se realiza enquanto voz intempestiva que exige
continuidade de diálogo, e onde a antologia, melhor dizendo, a biblioteca (o "Livro-
biblioteca", de Mallarmé), iluminada pelo lustre, se assemelha ao teatro (como
insinuado no poema "Título", na epígrafe deste tópico): "Suspenso/ sobre o livro/
como um lustre/ num teatro".
Mas Ana Maria Marques, no livro em discussão, não se atém a esse jogo
de reflexividades. Conforme já dito antes, sua poesia questiona de maneira profunda
a possibilidade/impossibilidade de dizer da palavra, até onde vai realmente, sua
expressão, até onde ela se torna afastamento e encontro. É o signo da diferença
que promove o signo do encontro sob outros signos, digamos, interpretantes,
lugares-possíveis, "lugares-comuns", tais como um mapa, onde a compreensão, o
entendimento, quiçá o amor entre seres díspares que se amam, mas não podem
falar de amor; da aproximação/afastamento na raiz do desejo, de realidades,
temporalidades e espacialidades também díspares seja possível existir:

E então você chegou


como quem deixa cair
sobre um mapa
esquecido aberto sobre a mesa
um pouco de café uma gota de mel
cinzas do cigarro
preenchendo
por descuido
um qualquer lugar até então
deserto

Você fez questão


de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1720 km
fizessem subitamente
fronteira

[...]

Combinamos por fim nos encontrar


na esquina de nossas ruas
que não se cruzam

[...]
277

O mar não é mais molhado


Do que o deserto logo ao lado

[...]

Quando enfim
fechássemos o mapa
o mundo se dobraria sobre si mesmo
e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
iluminaria os lugares
mais secretos

(MARQUES, 2015, p. 37-47)

Os fragmentos do poema Cartografias, a segunda parte do livro expõe o


problema do desejo e da busca da conjunção entre elementos díspares
(companhia/solidão; confluência/paralelismo; mar/deserto; meio-dia/meia-noite)
justamente através de uma cartografia mediadora que é um elemento discursivo,
composto de signos, símbolos, indicações, um mapa ou um território de linguagem,
que traz o sentido mas não indica os lugares secretos, os lugares obscuros
pertencentes a uma outra dimensão, só possivelmente alcançável quando esse
mapa se fecha. A sintaxe da linguagem, porém, lança tal possibilidade na condição
verbal da hipótese, da dúvida, do desejo, o qual continua vibrando (quando
fechássemos o mapa...) e buscando sua realização numa erótica do silêncio distante
de qualquer pronúncia, de qualquer tentativa de explicação e mapeamento.
É essa possibilidade de interpretação que coloca essa obra no horizonte
de uma remissão dramática da linguagem, de uma fissura sempre presente entre a
conjunção e a desconjunção das realidades. A propósito, Ana Martins Marques não
se afasta dos elementos históricos, experienciais, do vivido. Sua obra traz sua Minas
Gerais, traz, em alguns momentos, o encontro entre Minas e Rio de Janeiro e a
presença de lugares frequentados. Porém, ela coloca essa dimensão histórica-
espacial-temporal sob a expressão de um sujeito poético que impõe o problema da
linguagem, seja poética, seja de outras artes (pintura, fotografia), seja de outras
atividades (cartografia) sob os auspícios e sobre a crítica da linguagem, que a tudo
abarca, porém de modo performativo, instaurando realidades. E, finalmente, coloca
a dimensão histórica-espacial-temporal como "matéria" de um livro, "este livro de
poemas", que a torna, afinal, matéria simbólica e manipulável, índices em um mapa
que será aberto, e não fechado por nós. Entre tantos poemas que poderiam gerar
278

outras discussões neste sentido, como a própria relação entre a semelhança e a


diferença, é suficiente mostrar ainda este fragmento, o qual aponta, outra vez para
um alinhamento com o horizonte aqui proposto:

É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra


[cavalo
É mais fácil se livrar de um piano do que de um
[sentimento
Posso tocar o seu corpo mas não o seu nome
É possível terminar uma frase com um beijo assim
[como é possível
encerrar subitamente uma dança com uma palavra
será preciso então estender o beijo como um
[elemento gramatical
acrescentar as palavras entre os movimentos básicos
[da dança
Quanto do desejo mora
na palavra desejo?

(MARQUES, 2015, p. 63)

A última expressão dos dois últimos versos sintetiza a questão: o que está
em jogo não é o desejo, que não será apagado e continuará queimando, mas a
palavra desejo. Será ela um vazio, mera forma? O quanto ela foi capaz de expressar
ou mostrar de determinado desejo? Somos então, levados a equacionar uma
realidade pela palavra que nos obriga a encontrar, através dela, um lugar comum
num cenário em que a coisa é mediada por uma máscara: você acredita que disse,
eu acredito que ouvi, fomos lançados num lugar-em-comum fundado sobre um
abismo irremediável (trágico), o qual nos obrigará a dizer de novo, a dizer melhor, a
repetir de outro modo o que foi dito.
Pelo que foi visto até aqui, em relação a um horizonte que põe a mímesis
sob suspeita ou a recusa de modo categórico, podemos concluir que ele não se
afasta das concepções que fundamentam o horizonte mostrado anteriormente (o da
construtividade intersemiótica), por existir entre eles uma coincidência de concepção
sobre a questão da autorreferência e da antimímesis. Há, porém, alguns motivos
fortes para que não os consideramos dentro de uma mesma faixa de horizontes,
mas pertencentes a propostas diferentes.
A primeira grande diferença encontra-se justamente no fato de esta
proposta não focalizar-se numa lógica construtivista arquitetural e signo-semiológica,
de dar relevância ao fatores visuais, plástico-formais, e interfaces no limiar da
279

palavra, mas de colocar sua poética no âmbito discursivo, do verso que dialoga com
as rupturas e com sua própria crise, mas que, mantendo sua concepção de base,
em relação à forma, se orienta no sentido da forma discursiva distensa focalizada e
prosaica. É o caso bem nítido da obra de Ana Martins Marques, que apresenta um
caráter formal distenso focalizado, no sentido de que opta por uma normatividade
discursiva, e estruturação sintática regular e um registro formal simples e despojado.
Um segundo traço diferencial deste horizonte em relação ao anterior diz
respeito ao fato de que no horizonte intersemiótico, a expressão sígnica busca sua
objetividade absoluta, uma separação "sem dor" entre o sujeito e seu objeto, a
linguagem-coisa. Já no horizonte especificamente da remissão dramática, há o
tônus da subjetividade, as tonalidades patêmicas postas no ambiente da linguagem
– seja em relação à sua fissura trágica, do signo que se esvazia, presente neste,
seja em relação ao caráter pático de sua própria repetição palimpsesta, a paixão dos
textos, a paixão da linguagem, a impossibilidade de preencher o signo com o vivido.
A poesia de Ana Martins não exclui o pathos (do deslocamento espaçotemporal, do
encontro, da diferença, do amor, por exemplo) de seu pacto lírico com a linguagem.
E embora a poesia de O livro das semelhanças coloque como dominante uma
experiência focalizada (a experiência da linguagem e sua relação com o mundo; as
mediações simbólicas em dimensão crítica), ao "por em crise" a relação entre as
palavras e o mundo, também promove, na efetivação dessa krisis uma abertura para
a voz da experiência cotidiana, prosaica, do vivido, experiência dos espaços/lugares
de vivências, das relações afetivas, da apropriação pessoal de certas simbolizações
(o centauro, a sereia, Ícaro...), colocando-as sob o espaço potencial da linguagem.
O poeta Carlito Azevedo estabelece, por sua vez, um caso mais radical,
dentro deste horizonte. Vou situar a questão. Foi discutido anteriormente 149 que esse
poeta carioca, laureado com o Jabuti por seu Collapsus Linguae (1991), está no
centro de um questionamento do fazer poético atual, representado por um educado
cabo de guerra empreendido por forças críticas acadêmicas que, de um lado,
repudiam e, de outro, defendem a proposta poética que esse autor havia mostrado
até então.
Na concepção crítica de Iumna Maria Simon, por exemplo, Carlito estaria
no rol de uma "retradicionalização pós-moderna da poesia brasileira", isto é, de uma
poesia que "deu as costas aos acontecimentos" e emprendeu uma "recombinação
149
Essa questão foi discutida no tópico 2.3.3 deste trabalho.
280

desencantada de erudição, o jogo das referências literárias e artísticas, dentro do


espírito genérico da intertextualidade pós-moderna, que, no caso brasileiro veio
auratizar o poema e sublimar o presente" (SIMON, 2013, p. 178-179). A respeito
especificamente do poeta, diz a autora:

Pouco a pouco, a sintaxe deixa de ser um recurso de obscurecimento do


assunto, cuja dissolução se convertia em espetáculo, como é recorrente na
obra de Carlito Azevedo. Ou seja: o poema que espetaculariza a
proliferação e a desmontagem de suas imagens perde espaço para uma
poesia de horizonte oprimido e desanimado, de rotina de ninharias, como se
vê nos livros de Tarso de Melo e Ronald Polito. Redescobre-se o tom menor
associado a contextualizações mais densas e pessoais, que pode se
conciliar com algum experimentalismo na linha gráfica e do arranjo em
blocos fora da sincronia com o ritmo e a enunciação – como nos poemas de
Ricardo Domeneck (SIMON, 2013, p. 179, grifos meus).

Estaríamos, portanto, nesse caso, diante de uma poesia que recorre ao


paradigma tradicional do enigma, construído sintaticamente como espessura textual,
e à espetacularização de suas formas pela dissolução do assunto, com a
consequente vertigem semântica. É muito provável que Simon estivesse se referindo
a realizações como esta, de Collapsus linguae:

D'après Grosjean

l i n g u a
g e m a
g e m a
à
m a r g e m
a
a l g e m a
a
i m a g e m
a i r a
c e m a
d a
m e n s
a g e m
p o e s i a
a
v i r g e m
v i a g e m
a
t r a v é s
a g e m a
t r i a
o u
t r a v e z

(AZEVEDO, 1991)
281

Tal poema, sintaticamente disperso e semioticamente estruturado em


coluna, apelando para os blocos plástico-visuais, a leitura intercruzada, certamente
reintegra os procedimentos concretistas dessa "retradicionalização" propugnada por
Simon. Se o poeta, no poema "D'après Grosjean", assim como em outros da mesma
obra, investe, pelas justificativas apresentadas, em um horizonte da construtividade
intersemiótica ao modo de um dejà vu concretista, num poema de mesma linha,
como "Traduzir", atinge, no dizer de José Lino Grünewald (in: AZEVEDO, 1991 –
folha de rosto), "um dos pontos mais altos – concretos – da poética recente: o
poema 'Traduzir'. Talvez seja o momento de maior invenção do livro [...] [formulando]
uma alta tensão significante", conforme podemos considerar, abaixo:

Traduzir

(dua s(li ng(u a g e(


nsd) i f)e r)en ) t es
(uma s (o n a n ( t e & a (
OUT) ra)a u)se ) n t e
( l ua m (I N g u ( a n t e (
l u a) c r)e s)ce ) n t e

(AZEVEDO, 1991, p. 13)

A avaliação de Flora Süssekind, intelectual que acompanha a poesia de


Carlito e sobre ela já realizou vários estudos, por sua vez avalia positivamente o
projeto poético desse autor, como também já comentado, em tópico supra. Num
artigo sobre o poema "Margens", de 2003, incluso em Monodrama, de 2009, detecta
uma "mudança de inflexão" na poética do autor, apontando uma tensão entre
quadros estacionários e itinerância, perspectiva intrasubjetiva e desdobramento
coral, complementada por uma referência ao teatro de Gertrude Stein – mudança
essa que se intensifica, segundo Süssekind (2007, p. 63), num "método
crescentemente conflituoso e dilatório de composição no trabalho do poeta". A
propósito dessa nova perspectiva poética, a teórica faz ainda um comentário valioso
tanto para os pressupostos do horizonte que aqui viemos tratando, no que diz
respeito ao caráter de teatralidade que o poeta manifesta, quanto no que diz respeito
à discussão do novo livro do poeta, Livro das postagens, publicado em 2016, no
282

tratamento de alguns de seus vieses. Diz a autora, prosseguindo seu comentário,


num tom que propõe um outro olhar crítico sobre o autor:

E há uma espécie de teatralidade relutante, mas insistente, que tem se


manifestado de diversas maneiras, na poesia de Carlito Azevedo, sobretudo
desde Versos de Circunstância (pequeno livro, de tiragem limitada,
publicado em 2001). Curiosamente, porém, uma inclinação à teatralização
que se realiza em estreita ligação com certos modos narrativos de
composição poética – em particular com a do poema figurado como
percurso – o que acontece em textos como "O poeta", "Margens" ou ainda
no inédito "O tubo", por exemplo. E se nem narrativizações, nem
dramatizações são exclusivas do poeta, ou do momento atual da literatura
brasileira, sua conjunção tem se mostrado fundamental na produção
recente de Carlito Azevedo (SÜSSEKIND, 2008, p. 63, grifos meus).

Em Livro das postagens, o poeta já parece preencher completamente


essa percepção de Süssekind, da teatralidade, do poema figurado como percurso.
Isto porque a primeira parte do livro, intitulada "Livro do cão", traz o longo poema
"Prólogo canino-operístico", ao tom assumido de um monólogo operístico, não
tragicômico, mas trágico-irônico, que remete diretamente ao teatro utilizando-se
justamente da figura de um personagem (cão) sobre um palco. Este personagem
sem autor cumpre uma fala vicária pelo autor que "se escafedeu" e o deixou
desgarrado, lançado no palco-mundo: "personagem sem autor", ao modo dos
personagens de Pirandello (o qual coloca em cena a crise de representação da
realidade), dirigindo-se à sua suposta platéia (outros cães, uma relação especular,
sendo a verdadeira plateia o leitor, incluso ou pressuposto). Aí, nesse palco
opressivo e irremediável, porque a máscara pode ser uma escolha, mas também
uma imposição social tirana (Piradello, outra vez150), o personagem tece sua
narrativa, improvisa, revela-se, faz suas conjecturas, expia sua condição com
lamentos e bravatas, esbraveja: ele é um cão que tem de representar um papel, o
papel de ser cão. Esse palco em que o personagem-cão se encontra lançado pelo
autor desaparecido (esperto? covarde? sábio?), talvez inexistente, é também
apresentado como o cenário opressivo de um universo feito de cubos que se
repetem, e que fazem lembrar círculos infernais de Dante (mas sem o Guia para a
saída), o Huis-Clos de Sartre, o Cubo patético de Vincenzo Natali. Eis um fragmento
do poema:
Eu não deveria estar aqui.
Outro deveria estar em meu lugar.
Eu não fui treinado para isso.

150
Nessas alusões a Pirandello, estou me baseando em BOSI, 2002, p. 136-143.
283

É como se estivesse no menor daqueles cubos


Que se encaixam vinte vezes uns dentro dos outros.
O autor deveria estar aqui.
Assuma o que tem a dizer.
[...]
Eu nem deveria estar aqui.
Outro deveria estar em meu lugar.
Se vim parar aqui
foi por curiosidade.
foi porque me chamaram.
foi abanando o rabo para o futuro.
foi arreganhando os dentes para o futuro.
E ansiava por futuro.
Foi sem ninguém me chamar.
Vim cair aqui
Dentro desse cubo
Que sendo um lugar
É o lugar onde estou
E sendo uma coisa
Deve estar em algum lugar.
[...]
Corro de um canto a outro do palco
ainda que ele não passe do menor cubo
entre os cem que se encaixam uns nos outos
e onde mal consigo me mexer
parece impossível mas é bem possível
isto aqui ora é grande por fora
e pequeno por dentro
ora é pequeno por fora
e grande por dentro
só nunca é grande por fora
e simultaneamente
grande por dentro
[...]
Comigo não tem
o simultaneamente
a não ser quando me tocam a pontapés
e simultaneamente
saio do lugar.

(AZEVEDO, 2016, p. 13-21)

Essa primeira parte do livro, "prólogo canino-operístico", serve de


"prólogo" mais no sentido do que "vem antes" que de intróito à segunda parte do
livro, homóloga ao título, pois se tratam de poemas independentes. Essa segunda
parte, "livro das postagens", corresponde à montagem de um poema que vai
costurando inserções intermitentes (ou vice-versa), de postagens em redes sociais,
citações, paráfrases de pensadores e cineastas, frases recebidas de casos
amorosos, de anônimos, e que perfazem, no fim, uma espécie de narrativa
esgarçada, em que entre reflexões, entrelaçamento de situações íntimas e públicas
(participações em manifestações sociopolíticas, inclusive) e relações sensíveis, se
reconhecem espaços urbanos de São Paulo, Rio de Janeiro, como na "postagem"
284

abaixo, que flagra o contexto das manifestações na Saenz Peña contra a realização
das Olimpíadas de 2016, no Rio; referências constantes à Embaixada da
Argentina...

B.: Tá foda. Tem um jornalista canadense todo arrebentado.


E agora bateram no carinha da Mídia Ninja. Bateram muito.
Quebraram o equipamento dele.
P.: Caralho. Todos que estamos fora da Praça temos que
mobilizar as autoridades. É caso de urgência.
B.: Estou aqui online, P., vamos dividir as ações. Já ligou pra
quem?
P.: Eles batem e riem.
E.: A Praça Saenz Peña está sitiada agora, com manifestantes
gravemente feridos (braços quebrados, cortes profundos) e não
chega ajuda médica. Ninguém entra e ninguém sai. Se alguém
morar na Praça ou conhecer algum médico (*) que mora por
aqui é importante ajudar! Policiais dispersaram com bombas um
grupo com cerca de 300 manifestantes que tentou se aproximar
do Maracanã.

(AZEVEDO, 2016, p. 67)

Há, de imediato, uma aparente desconexão entre a primeira e a segunda


parte do Livro das postagens, seja em termos de realidades e perspectivas de
realidade apresentadas pelo mundo do texto, seja em termos de elementos e
procedimentos construtivos, de tom e estruturação. Isso pressupostamente
impulsionaria ambos os poemas à configuração de horizontes formais e
experienciais diferentes: um, correspondendo a um mundo teatral e alegórico, no
sentido de realidades (palco x mundo histórico) mediado por um personagem não
apenas fictício, mas simbólico-enigmático, uma máscara; e o outro correspondendo
à flagrantes/fragmentos de uma realidade referencial, o mundo das experiências e
situações reais vividas e pessoalmente sentidas, praticamente não mediadas, mas
dentro de uma correspondência pessoa–persona.
285

Esta leitura, de uma obra preocupada com a relação entre poesia e


realidade, poesia e experiência vivida/vivível, tem sido respaldada pelo autor, Carlito
Azevedo, pelo menos em dois aspectos.
No primeiro aspecto, isso acontece ao mostrar uma contraproposta crítica
(uma possível crítica da crítica), no âmbito do livro, de como essa aproximação pode
ser ou não ser percebida. No poema inicial é proposto, via personagem, que o
sentido está abandonado à própria sorte, e que cada um pode dizer o que bem lhe
parece, pode sugerir uma fala e até mesmo desempenhar um papel "em cena", no
teatro da linguagem. Isto não é afirmável apenas pelo desafio na voz do "cão" à sua
platéia (cães, também), sabendo que, já que não há autor: "[...] Façamos assim:/
cada um anote em um papel/ o que deseja e coloque sobre a cena./ Ou ainda,
subam aqui. Falem à vontade" (p. 17, 18); ou pelas críticas do personagem
abandonado pelo autor (esperado por todos, mas sempre ausente), que o faz
questionar o estatuto da "realidade", da presença e da ausência, na peça (na ópera,
obra) em jogo: "O autor deveria estar aqui./ Visa a realidade e depois/ se proíbe os
meios de atingi-la?/ Onde é que nós estamos/ Cézanne me conhece./ Mostro em um
segundo/ o que é atingir a realidade [...]" (p. 21). A menção a Cézanne, aí referido
pelo cão, não é gratuita, se a relacionamos a um importante texto de Merleau-Ponty
(filósofo referido por Carlito no "coro e agradecimentos", no final do livro) sobre
Cézanne, O olho e o espírito (2004). Neste texto, o filósofo, tratando da obra de
Cézanne, explora justamente o jogo de espelhamentos entre a realidade íntima da
obra e a natureza (externa), que é olhada pela obra, com a qual olhamos tal
natureza, destacando o fato de que ao mesmo tempo em que olho, sou olhado, pela
reflexividade do sensível que reduplica os corpos e, assim como a imagem do
espelho, transforma esse mundo visto em espetáculo:

[...] O homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o


instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em
espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim
[...]. O "instante do mundo" que Cézanne, queria pintar e que há muito
transcorreu, suas telas continuam a lançá-lo para nós" (MERLEAU-PONTY,
2004, p. 23).

Por outro lado, invertendo os polos, já no segundo poema, como vimos,


ao assumir a voz da própria persona em suas relações, leituras e vivências
286

pessoais, o poeta como que apresenta uma realidade "do autor" – o autor que agora
"está ali".
O segundo aspecto dessa preocupação em lidar com a questão do
afastamento ou da aproximação da experiência vivida e da referencialidade
histórica, em contraponto a uma "espetacularização da linguagem" (que a crítica
realmente lhe coloca), surge não mais no texto poético, mas em comentário do autor
sobre sua nova proposta poética em Livro das Postagens, publicado no Suplemento
Pernambuco de janeiro/2017, p. 3.
No comentário do Pernambuco, Carlito Azevedo fala da inserção desse
seu último livro numa escrita imprevisível e inclassificável e de inúmeros fatores que
contribuíram para a escrita do Livro das postagens, entre eles "impossibilidade de
seguir escrevendo como antes, por exemplo. A impossibilidade de combinar a
necessária sensação de 'aventura na escrita' com qualquer pré-formatado", bem
como do seu processo de escrita, uma escrita que ao começar não determina a hora
de seu ponto final, como aconteceria com alguém que escreve um soneto, em seus
14 versos, revelando também a configuração perceptível, principalmente, no último
poema, em montagem fragmental, do livro, ao falar "da [sua] consciência de que
escrever poemas está mais perto de escrever ensaios sobre a vida danificada [grifos
meus] do que dar a luz a mais um alexandrino com referencia mitológica". O poeta
acolhe esta possibilidade de escrita, ao mesmo tempo em que repudia o que ele
chama de "poema-canção", o qual, segundo ele, insurgiu-se na poesia brasileira nas
últimas décadas, na esteira da canção popular. Trata-se daquele "poema que dura
um pedaço razoável de página como uma canção dura em média 3 minutos e meio.
E, como a canção, enfeixa um sentimento e uma voz única. É o formato mais
comercial e de maior sucesso. Mas há tempos deixou de ser qualquer outra coisa
além de “bonito”, até “lindo”, pero inutil. Ao menos para o que eu quero da poesia".
Por fim, coroando essa argumentação em defesa de uma proposta de
poesia que "decifre a experiência comum" – ou que se volte para experiência comum
imprevisível, como fez a poesia brasileira do início aos meados do século XX –
Carlito propõe o tatear no escuro, rosnando outras novas formas de “narratividade,
de expressividade e de inteligibilidade, e expõe o fundamento criativo do livro das
postagens:
Ao escrever este Livro das postagens, colei na parede em frente à mesa de
trabalho, mesa de montagem, as perguntas que o poeta norte-americano
Kenneth Koch se fazia para aprovar (ou não) um poema que tivesse
287

acabado de escrever: Diz algo que eu desconhecia antes de me sentar para


o escrever? Revela algo sobre mim que eu desejo que ninguém saiba?
Haverá nele efeitos baratos pedindo ilegitimamente a atencão? Exibicões,
pseudoprofundidade, ou outros lixos “literários”, “beija-me-que-eu-sou-
poético”? É o tipo de poema que eu invejaria se outro o pudesse escrever?
Ficaria feliz em ir para o céu com isto bordado no meu casaco angelical
como visto de entrada?” (AZEVEDO, 2017, p. 3).

É possível postular, a partir dessas últimas considerações, que o autor já


se encontra bem distante de alguns dos seus projetos iniciais. E pelo que se
apresenta nessas falas (mesmo que não seja esta a intenção do autor) certamente
inferir que ele coloca em questão justamente alguns dos pontos pelos quais tem sido
acusado pela crítica – o "espetáculo da linguagem" e o afastamento da "experiência
comum" −, o que nos remete a uma leitura de sua poesia em que, a não ser que se
detivesse somente em seus aspectos gramaticais, estas questões não deixam de
reverberar e de exigirem que sejam levadas em conta nas abordagens de sua
compreensão.
A questão deve aprofundar-se, entretanto, na perspectiva de que, sem
descartar a proposta do autor, a leitura do poema também reivindica sua autonomia
e vai além do que o autor coloca sob seu viés, apontando novos aspectos a serem
postos em discussão sem que com isso desvirtue uma orientação válida e
fundamental de sentido (a voz do próprio autor). Levando isto em conta, entendemos
que ao mesmo tempo em que "Livro das postagens" pode ser lido como um ensaio
poético-político sobre o mundo, numa leitura imediata, também pode ser interpretado
noutro sentido, o qual também muito provavelmente não está fora da consciência do
autor. Trata-se do fato de que essa forma-texto lança a própria realidade de que
trata numa corda bamba – fragmentária, caótica e narrativamente esquizóide –
elementos transfigurados pela relação de uma autopoiesis que os vê como textos e
retalhos de textos, em que cabem, justamente, aquela "multiplicade e variedade de
objetos", como referida em citação de Krysinski (2007, p. 127), anteriormente:
colagens, citações, desenhos, postagens, partituras, enfim, fragmentos e simulacros
de um mosaico reiterativo e de um mundo descontínuo, in progress, "mundo em
aberto". Quer dizer, eles não estão no espaço poético do livro porque aconteceram,
mas porque, conservando seu caráter acontecimental, puderam ser transfiguradas
para uma espacialidade e uma temporalidade da linguagem poética. Assim, o
"instante do mundo" – torna-se o "instante mundo" pintado por Cézanne, em que se
percebe até a cera da maçã, mas não é uma maçã. A temporalidade e a
288

espacialidade constituídas nesta experiência passam da superfície do real para uma


espaçotemporalidade lisa (ou seja: que continuará a ser lançada para nós, não mais
historicamente) proposta pela ressignificação formal adquirida na poética do livro.
Sua nova configuração será, fundamentalmente, a de uma temporalidade e
espacialidade palimpsesta, que atribui ao acontecimento o mesmo papel que atribui
à sua "postagem" (alta e baixa, facebookiana, especulativa, reflexiva, cotidiana,
pública e íntima – porque talvez não haja a coisa íntima, senão a coisa pública).
Ainda no que diz respeito a esse semblante fragmentário que as
postagens/o palimpsesto alusivo, a refacção e a reinterpretação adquirem, é
importante lembrar que o fragmento vem propor justamente uma estética irônica do
mundo como não totalidade, mas como vivências metonímicas ("o fragmento − como
o simulacro do momento − é escolhido como o universal", diz Luíza Lobo (2007, p.
17), com base em Benjamim e Baudrillard), típicas da fotografia do detalhe, da
imagem esgarçada, das fraturas, cortes e planos urbanos, dos flagrantes e
incertezas nos quais o sujeito fragmentário e cindido torna-se responsável em viver,
como vidas possíveis, como o mesmo e como outro.

[Figura 05: Recorte do poema "Livro das postagens", de Carlito Azevedo]

(Fonte: AZEVEDO, 2016, p. 41;49)


289

Podemos, com esses motivos, manter tais possibilidades de leitura em


aberto, porque não se conflitam no domínio de um espaço potencial do poético e
seus sentidos, que justificam tal configuração. Porém, na perspectiva do horizonte
aqui tratado, essa segunda leitura deve ser levada em conta, uma vez que seus
termos orientam-se sobre duas perspectivas: a da relação do mundo com as
máscaras palimpsestas promovidas pela linguagem e pelos discursos, até a sua
autonomia em relação à referência, e o segundo ponto, advindo deste, a da dobra
da palavra sobre si mesma: vista em seu caráter significante, aponta para outros
significantes, a dominante passa a ser a de uma proposta intertextual profunda,
autopoiética, admitida como um domínio positivo do simulacro. Tal configuração
realiza-se claramente na mesma concepção de uma antimímese (anti-imitatio)
proposta nos horizontes da construtividade e da intersemiose, como já mencionado
anteriormente, uma vez que a relação esgarçada ou fissurada deixa de encarar a
palavra como tocada simbolicamente pelo real, nomeadora, para encará-la na sua
condição de código linguístico, a linguagem semiotizada, arbitrária, interpretante de
si mesma. Porém, como estamos acompanhando nas duas obras aqui referidas
axialmente, sua forma se estabelece no âmbito dos versos discursivos e prosaicos,
até mesmo do poema em prosa ou do ensaio poético, sem ênfase na semiotização
estrutural icônico-figurativa, inscrita num outro horizonte formal.
Lembrando aqui o nosso quadro-síntese, percebemos que o Livro das
postagens, de Carlito Azevedo, constitui seus poemas sobre duas configurações
formais tensas promovendo uma poética sobre formas intertextuais, interculturais e
intersemióticas, porém dentro de uma escrita prosaico-discursiva, densa, pois não
opta, como em alguns poemas de Collapsus linguae, pelo retesamento da
objetividade e da construtividade estrutural intersemiótica, o que justifica também
sua proposta de um abandono da "espetacularidade" própria à "retradicionalização"
construtivista. Ao mesmo tempo, a experiência proposta nesse livro não possui sua
centralidade numa experiência focalizada na experiência da linguagem em si, como
sói acontecer no mais das vezes da retradicionalização, a linguagem pela
linguagem, a linguagem em seu fluir e fruir, mas nos faz imergir numa experiência
que atravessando sua dimensão focalizada, a da linguagem teatral, das postagens,
citações e paráfrases, fazem emergir o caráter "liso" da experiência, que nos
impulsiona para o prosaico da realidade vivida, já não mais sentida − ou ainda não
290

sentida − como palimpsesto. Eis a grande arte do ilusionista, da tradição retomada


ao fingidor.
291

3.5 HORIZONTE DA LIRICIDADE FÁCTICA [REFERÊNCIA: HAGAMENON DE


JESUS E A FACTICIDADE DO HOJE NAS DEVORAÇÕES DO TEMPO]

existencialetcetera

quando toda loucura da vida acaba


nem mesmo algumas raparigas lindas
conseguem resolver o lado b da perda

mergulhar na melancolia de pijama e tudo


é esbarrar nos degraus do inferno de fridakahlo

cruel existência entre livros


que nunca dizem o que viveremos

é lindo garis recolhendo


folhas caídas na porta de nina simone

quando tudo desaba sobre a vida


recuamos em busca de sombra e música
este é o exato momento de caminhar

(BioqueMesito. a anticópia dos placebos


existenciais, 2008, p. 29)

Organizado
[A Dráuzio Varela]

Do crime uma facção já se nomeia


Congresso Brasileiro dos Bandidos,
além daquela antiga entre os partidos:
Partido Comunista da Cadeia.

A tática da máfia, já apontei-a


em muitos dos sonetos difundidos
na marginalidade: os oprimidos
não podem reclamar de boca cheia.

Aos membros da quadrilha as instruções


incluem o esculacho ao brasileiro,
que engole porra e mijo hoje aos milhões.

Os três poderes, já no cativeiro,


terão nome mais próprio dos ladrões:
Mandante, Executor e Justiceiro.

(Glauco Matoso. Poética na política,2004, p. 17)

Uma vigília

Quarenta anos depois


o silêncio da chaleira que ferve.
Na infância, sempre acendi uma vela na outra.
As surras que levei não se enraizaram.
Cada dia soletrei um tempo do verbo partir.
Vivi com a indiferença e a saudade presas ao calendário.
292

Quarenta anos depois


não sei me despedir da saudade:
continuo ouvindo o arrastar daquele chinelo
número trinta e três pela casa.

(Lila Maia. As maçãs de antes, 2013,p. 31)

O termo "facticidade" pode soar bastante estranho quando associado à


lírica, porque, ao ser relacionado às circunstancias factuais, ao fortuito e à
experiência imprevisível da realidade; ou associado à realidade cotidiana – embora
não lhe seja correspondente –, pode ser entendido como confrontante com o regime
do poético e seus mundos subjetivos e imaginativos, tocados pela linguagem afetiva
do pacto lírico. Entretanto, também sabemos que uma das revoluções da
modernidade poética foi justamente a de tornar poético o que assim não era
considerado e lançar sobre a realidade ordinária o olhar da liricidade (o
"entrechoque" do lírico com o prosaico, desde Baudelaire a Mário de Andrade,
Drummond, Manuel Bandeira, por exemplo), trazendo a essa liricidade os espaços e
as relações "banais", o contingente, o corpo cotidiano, o humor ácido, as
circunstâncias. A partir desse contexto, como já vimos, em observação de Gullar
(1989, p. 15),
a linguagem da poesia confunde-se então com a prosa, do mesmo modo
que o poeta confunde-se com o homem da rua e já não pode nem deseja
reivindicar para si a condição de eleito dos deuses. [...] [O poeta] sabe que a
poesia brota da banalidade do mesmo modo que o poema nasce da
linguagem comum.

Por outro lado, precisamos ter em mente o uso filosófico, propriamente


ontológico e existencial da facticidade, na dimensão do "ser-lançado" que toma
consciência do fato do mundo, e nele se dispõe. Em vez de tal uso postar-se contra
essa apropriação relacionada à poesia, ele a respalda, ao acrescentar o sentido
mesmo da existencialidade, da relação do homem com o mundo 151 e com a
"mundanidade", ao horizonte do poético. Deste modo, a facticidade reverbera na
expressão "fáctica", aqui utilizada para designar este horizonte e associada à
condição da liricidade, ou seja, no campo de uma poeticidade lírica. A utilização da
palavra "fáctica", em vez de sua prosódia mais comum, "fática", tem também o
propósito de afastá-la, ao menos de imediato, dos usos comuns desse último termo
("fática") nos campos da linguística e da comunicação.
151
Sobre isso, esclarece Heidegger (2009, p. 194): "Facticidade não é a fatualidade do factumbrutum
de um ser simplesmente dado, mas um caráter ontológico da presença [do ser-no-mundo] assumido
na existência, embora desde o início reprimido
293

O mundo circundante e o mundo íntimo, subjetivo, ou seja, o universo da


experiência e das vivências tocados pelo olhar lírico, tornam-se, no horizonte de
uma liricidade fáctica, referências capazes de criar um espaço ao mesmo tempo
liricamente representativo e potencialmente enunciado pelo poema, no sentido de
que tal enunciação ora se utiliza do discurso de caráter realista-denotativo – na
concepção de que este não é empobrecedor, mas presentificador e potencializador
de uma dimensão poética não separada do mundo –, ora metafórico, do discurso
simbólico-representativo, da mostração sensível das paisagens interiores ou
exteriores e de uma semântica aberta no regime do poético que tece um elo de
realidades entre si ou entre a realidade da linguagem e as camadas da realidade
impossíveis de serem expressas pela lógica racional da linguagem "comum" ou
científica.
Em ambos os aspectos, a linguagem, embora utilizando-se do código,
não deseja apontar para ele, mas para uma matéria experiencial, mundanal ou
interior, que adquire maior pregnância. É possível, assim, que essa linguagem
poética, mesmo trabalhada com esmero, possa, principalmente no seu uso "realista-
denotativo" – e justamente por essa construção da simplicidade pela referência ou
por uma coloquialidade – parecer "transparente", ou poeticamente "superficial". Não
se trata, no entanto, de configurarmos este horizonte nesse equívoco banal, mas de
percebermos aí o papel de uma pragmática da linguagem poética, que, ao se
estabelecer sobre aquele trânsito mimético entre a semelhança e a diferença de que
fala Costa Lima (2007), abre-se bifrontalmente em seu espaço estético-discursivo
para a convivência, a coexistência com a vida que não seja apenas sua
autorreferência. Isto é, que não pretenda instalar-se sobre uma semiótica pura nem
simplesmente decantar o regime do mundo da vida. Nesta abertura, a palavra se
permite voltar a ser nomeadora, simbólica, no sentido da imagem que remete à sua
face deixada para ser resgatada pelas mãos mundanas, antes de ser uma estrutura
funcional – signo – dentro de um código em seu paraíso artificial, metapoiético. Essa
nomeação está instalada, justamente, no território da metáfora que funciona como
elemento instaurador de uma virtualidade ficcional, mas também como relacional,
conjuntivo e redescritivo, no sentido que o concebe Paul Ricoeur (2015, p. 374). No
seu ponto de vista,
294

A junção entre mythos e mímese é obra de toda poesia. Recorde-se a


aproximação que faz Northrop Frye entre o poético e o hipotético. Ora, o
que é esse hipotético? Segundo a crítica, a linguagem poética, voltada "para
dentro" e não para "fora", estrutura um mood, um estado de alma, que nada
é fora do próprio poema: é aquele que recebe forma de poema enquanto
agenciamento de signos. Não deve dizer, antes de tudo, que o mood é o
hipotético que o poema cria e que, nessa condição, ele ocupa na poesia
lírica o lugar que mythos ocupa na poesia trágica? Não se deve dizer,
então, que a esse mythos lírico é acrescida uma mimese lírica, no sentido
em que o mood assim criado é um tipo de modelo para "ver como" e "sentir
como"? [...] O movimento "para dentro" do poema não poderá, portanto, ser
oposto pura e simplesmente ao movimento "para fora", pois ele designa
somente o abandono da frequência costumeira, a elevação do sentimento
ao hipotético, a criação de uma ficção afetiva; mas a mimese lírica, que se
pode considerar, caso se queira, um movimento "para fora" é a própria obra
do mythos lírico.

Seguindo essa linha de raciocínio, Ricoeur defende que na raiz dessa


mímese lírica que aponta para o outro da linguagem, bem como para a expressão
desse sentimento encontram-se os diversos processos e níveis metafóricos – nos
níveis da palavra, da frase e do discurso, conforme defende em A metáfora viva -
por meio dos quais "o sentimento poético, também ele, desenvolve uma experiência
de realidade em que inventar e descobrir deixam de opor-se e na qual criar e revelar
coincidem", onde a coincidência do "inventar e descobrir" e "criar e revelar" devem
ser entendidos como o papel central de toda metáfora sobre a realidade e a
linguagem.
A partir dessas considerações, podemos reafirmar que a configuração
deste horizonte da poesia brasileira contemporânea se estabelece justamente sobre
o princípio da conjunção, da aproximação entre linguagem e realidade referencial, e
não de seu esgarçamento ou de seu expurgo, que já são princípios dos horizontes
anteriormente mostrado, o da remissão dramática/experiência simulacral e o
horizonte-ciborgue da construtividade intersemiótica.
No entanto, devemos admitir também que os limiares deste horizonte da
liricidade fáctica, lançados nos territórios das diversas realidades experienciais –
pois a realidade que não é una, nem unívoca, mas compósita e factível, contingente
– tornam-se mais difusos, na medida em que pode tanto enlaçar realidades objetivas
quanto realidades subjetivas, comportando entrelaçamentos, variações,
adensamentos. Um poema de Ronaldo Costa Fernandes nos ajuda evocar as
variações sensíveis das realidades da realidade, insistentemente fugidia, neste
horizonte:
295

Realidade

A realidade nega consórcio e condomínio:


cada um é dono do seu desatino.
A realidade tem lá seu espelho
De água que narciso algum
Ousa mirar com medo de não ver.

A realidade só não acusa o inconsciente,


Que é outra realidade dentro da realidade,
Lá onde há algaravia desenfreada,
Mundo de sombras ao meio dia,
Refúgio de cães danados, cela dos desesperados,
Desejos da loucura e razão sem razão.

A realidade tem realidade


Que a própria realidade desconhece.

O sentimento sentadinho na cadeira dos réus.

(FERNANDES, 2009, p. 70)

Dentro desse leque de realidades dentro de realidades, que vai, por


exemplo, do que está fora do espelho (por exemplo: condomínio, narciso, dia e
repressão) à sua imagem ou à sua obscura sombra (flor, ego, desejo, sentimento),
podemos enfeixar essas referências em experiências objetivas e experiências
subjetivas, assim como poéticas que apontam para realidades objetivas e outros
para realidades subjetivas, ou que buscam entrelaçá-las em seus rumores e
interpenetrações. Esse foi o sentido, por exemplo, dos três poemas que compõe a
epígrafe deste horizonte, que ora conjugam essas realidades em seus impactos
existenciais, reflexivos e íntimos (existencial etecetera e uma vigília) ora apontando
para a experiência política ordenada sobre uma estrutura corrupta do país, utilizando
uma linguagem que se apropria do humor mordaz e do grotesco (expurgos
corporais, porra e mijo) para criar um distanciamento avaliativo, uma objetividade
crítica em relação ao contexto sociopolítico.
Com base nessas percepções e nas especificidades aqui
mostradas, podemos então, num vasto campo, delinear alguns direcionamentos
mais marcantes que, apesar de suas diferenças de tom e de perspectiva, podem
orientar-se para/configurar-se dentro deste horizonte de uma liricidadefáctica que
pode configurar várias linhas (ou "relevos", se pensamos na ideia do horizonte),
dentro face compósita, quais sejam: a) um lirismo crítico-testemunhal da vida diária e
296

prosaica pública ou particular – o qual se debruça sobre as nuanças dos


acontecimentos em suas interseções interiores e exteriores, os objetos, a vida
mínima/minimalista, podendo assumir diversas estruturações e texturas, sobre as
quais se tornaram comuns as estruturações paratáxicas e texturas comissurais, que
se tornam um dos modos de representar a fragmentação desde a modernidade,
assim como são encontrados uma frequência do tom irônico frente ao cotidiano, de
uma ironia blasée (como, por exemplo, em certa poética "casual" contemporânea,
"de horizonte desanimado e rotina de ninharias", conforme já percebida por Simon –
2013, p. 179, e referida em nota anterior), de uma imagética surrealista, da vertigem
ou do confronto do sujeito ante o mundo circundante, muitas vezes na tentativa de
tocar o indizível ou traduzir os absurdos de suas realidades – uma imagética que
não chegou a constituir-se num horizonte tensivo de autorreferência/encantamento
da linguagem, isto é, funcionando mais como meio que como fim –, e da
expressividade afetuosa dos sentimentos pessoais; b) um lirismo patêmico da
subjetividade pungente, solene/elegíaca– em geral voltado para o impacto das
experiências vividas, tensas (retesadas e densas, vide quadro-síntese), sobre as
realidades subjetivas, de onde ascende o grito interior, sob uma forte textura tonal
patêmica; c) um lirismo cáustico – que investe no humor mordaz, satírico ou
resignado e pode assumir a coloração grotesca e os pressupostos da
carnavalização, do riso da praça (esse lirismo cáustico poderemos entendê-lo
também como intensificações não separadas de propostas relacionadas ao crítico-
testemunhal); d) um lirismo da co-narratividade direta – cuja preocupação é
prioritariamente transparecer uma voz reivindicatória, numa "retórica da
argumentação poético-afetiva", e que mesmo se utilizando de certas linguagens
também representativas da mesma realidade em pauta (como por exemplo
referências vocabulares ou culturais típicas), não engaja um acento tensivo em
direção à própria linguagem poética, como no "horizonte do adensamento tensivo-
retentivo"; e, finalmente, e) um lirismo dos espaços de vivências e da reflexão do
lugar – que também pode ser visto na abrangência crítico-testemunhal da vida diária
e prosaica, porém poderemos compreendê-lo como voltado para uma narrativa,
evocação ou reflexão do lugar, do lugar experiencial, do lugar do mundo ou do lugar
no mundo, em que os elementos da espacialidade, da temporalidade, do
deslocamento do locamento afetivo ou atávico, o lugar entranhado no corpo e nas
dimensões páticas do sujeito tornam-se, em geral, eixos dominantes. Aí podemos
297

localizar, principalmente, uma poética da anima urbis e da anima orbis, isto é, uma
"alma ou sentimento da cidade" e uma "alma ou sentimento do mundo".
Devemos entender, entretanto, que, se as expressões do lirismo voltado
ao cotidiano são uma conquista da modernidade, os traços de contemporaneidade
de tal lírica dizem respeito a um projeto e a um modus vivendi referido às
experiências do mundo presente, atual, perceptível no próprio referencial, nas
estruturações linguageiras e espessuras vocabulares, numa imagética referida ao
universo da atualidade, com repercussão na sua articulação metafórica, mas
sobretudo no que se refere às espacialidades, temporalidades confluentes no
presente e às concepções contemporâneas conforme já tratado em capítulo anterior.
Assim, quando falamos da anima urbis, as situamos no atual contexto das cidades
globais, quer dizer, imersas em movimentos globais de conurbação,
megalopolização, como já foi dito, vistas como cidades-corpo, cidades-signo, com
seus problemas, suas crises, suas relações e seu espetáculo fascinante. Do mesmo
modo, entendendo uma anima orbis como o sentimento/o sentir, a alma de um
mundo não apenas globalizado, mas transhibridizado, multidimensional, onde as
dimensões dos territórios empíricos, cibernéticos, virtuais, geopolíticos,
socioeconômicos, psicológicos, imbricam-se de maneira inextricável.
Como referência axial para essa discussão, são apresentados dois
poemas do poeta Hagamenon de Jesus: o sintético e incisivo "Só o momento" e o
longo "A cidade enquanto azula o tempo", componentes do livro 21 ou A cidade
enquanto azula o tempo (no prelo) e cedidos pelo autor para este trabalho, − e,
assim, não afastados do processo em curso desse contemporâneo em produção.
Conforme já foi comentado (no subitem 2.3.3), uma das preocupações
poéticas de Hagamenon está relacionada à formulação de um corpo metafórico da
linguagem – como o processo central da constituição do objeto [/dos objetos] e da
realidade no campo do poético – condizente o mundo presente, seu sentir e seu
sentido (ou falta dele). Assim, seu esforço, seja na atualização do antigo, em seus
travestimentos, seja na busca da expressão do novo, interroga em primeiro lugar
pelo papel do tempo, em suas transformações e circunstâncias, relacionando ao
espaço de sua efetivação, atualização e realizações efetivas. Assim, torna-se mais
significativa para nós a proposta dos títulos de seus livros: The problem&/ou os
poemas da transição (2009), apontando para uma estrutura de sentido de trânsito e
percurso, e 21 ou A cidade enquanto azula o tempo, no prelo, em que olha
298

justamente para a presentificação deste século XXI – coincidindo com 21 poemas no


projeto do livro – bem como para a ação tonal deste tempo sobre a experiência do
lugar. É justamente a reflexão crítica desse tempo, fragmentário, mas com
pretensões simultaneamente de infinitude e de adquirir um caráter durativo,
definitivo, que podemos encontrar em Só o Momento:

só o momento, deus
de um único salto,
te dará a palavra certa
ou o silêncio, mago.

O poema projeta um objetivo a ser alcançado: "a palavra certa",


alcançada somente no "momento", essa porção fundamental do tempo, e por ele
concedida. É um objetivo que pode ser relacionado àquele que busca a palavra
exata, e que podemos entender como relativo à escrita, ao poeta – que dizer, pode
ser relacionado de imediato, mas não necessariamente, uma vez que a palavra certa
tem a ver com "dizer a coisa certa e precisa para o lugar certo", ou seja, sua
importância para a realidade fática da vida, algo que pode ser determinante para a
existência – busca essa que pode redundar no mais sapiente e puro silêncio. Mas,
visto na perspectiva relativa ao universo do escrever e da escrita, o poema não se
afastaria do âmbito tensivo daquele primeiro horizonte, em que tratamos da poesia
de Salgado Maranhão. Mas a sua relação com o horizonte lírico da facticidade
fundamenta-se na sua orientação para o momento desse falar, momento esse
predicalizado, no poema, como "deus/ de um único salto" (falaremos, adiante, da
dupla referência desse único salto).
Esse elo com a realidade dá-se, inicialmente, numa direção pragmática
que atrela a palavra à realidade, à sua atualização, ao relevo ou importância que o
momento a faz ocupar. Neste sentido, num mundo já dessacralizado e sem deuses
que promovam alguma "inspiração", o poema parece conceder um papel relevante
não somente ao acaso, redimindo-o enquanto "demiurgo da escritura que sugere
(sub-gere) palavras e frases [a imago verbal animada de um matiz afetivo ou
cognitivo] a partir de sua radical indeterminação" (BOSI,1992[1993], p. 14 – prefácio
a Philippe Willemart), assim como um desestruturador do planejamento racional
radical, mas também reconhecendo o momento, o acontecimento como
299

determinante do valor dessa palavra "certa", o qual deve estar preparado para
deparar-se também com irrupção do silêncio (e seu valor). A pragmaticidade e até a
ética desse sentido coloca-se sobre o fato de que só o momento, em sua
atualidade/realidade de não ser antes nem depois, torna-se determinante para a
conveniência do falar ou do calar. E o silêncio, por sua vez, torna-se este mago
conciliador que, com sua névoa, faz a mágica de suplantar ou operacionalizar o
vazio, abrindo a possibilidade, em sua espaciotemporalidade virtual, da escuta
sábia.
Por outro lado, o poema, antes, recorta o momento e distende sua
temporalidade existencial de modo incisivo ("só" o momento), ao mesmo tempo em
que o predicaliza como um deus/de um único salto. Assim, apropria-se também de
uma tonalidade crítico-irônica que percebe as nuanças totalitárias desse momento –
que pode adquirir semânticas de totalidade e de cegueira: esse caráter de
divinização nele entranhado como vontade de poder apagar tudo o que não gire em
seu entorno, que a ele não se subordine, ou seja, vontade de instaurar uma
centralidade sobre uma temporalidade que descarte passado e futuro.
É possível percebermos que o próprio termo "deus", ao cindir o verso de
modo a articular um enjambement com o segmento seguinte, ou seja, com o
próximo verso que complementa o sintagma, instaura uma ênfase extática,
ensimesmada, isto é, uma temporalidade mácron que absorve tudo ao seu redor.
Nesse entendimento, o momento torna-se presente total, torna-se um presentismo
(vide seu caráter, já apresentado), presente dilatado que o poema situa, com a
palavra "salto", rumo à estrutura do seu descolamento temporal do que vem antes
ou depois. Porém, ao mesmo tempo em que constitui sua força de omnipresença,
quebra com uma crítica avassaladora e ridicularizante sua omnipotência: deus "de
um único salto". Passamos, assim, a um segundo nível de sentido oferecido pelo
poema: o momento pode ser visto como um deus, porém, pela ambiguidade
constituída na palavra "salto", é figurado coma imagem de um deus manco,
mutilado, cuja onipotência, firmeza e beleza pode ser questionada. Essa semântica
do salto impele ao universo da indumentária, da elegância, aí destruída, aos salões,
festas, ocupações e passeios públicos, e ao campo da moda,este campo atrelado ao
consumo, ao fugaz e ao descartável, fortes características do mundo
contemporâneo. Eis por que o silêncio torna-se o reverso dessacralizante da fala e a
assombração da altivez fútil.
300

O fato de esse "deus" ser "de um único salto" evoca ainda um terceiro
nível de compreensão que reconfigura o poema em outra bifrontalidade de sentido,
uma relacionada ao universo simbólico grego, outra relacionada ao universo
simbólico bíblico utilizado pelo campo filosófico. No primeiro caso, trata-se não
apenas da simbologia do "mancar", da "falha", como tragicidade, presente na
literatura trágica grega, mas da evocação do imaginário simbólico deus manco, deus
"de um único salto", Hefaístos/Hefestos (para os gregos) ou Vulcano (para os
romanos), que foi justamente "lançado ao mundo", ao viver mundano, por sua
deficiência e disformidade. Ele, entretanto, é o deus da forja, do fazer instrumentos,
mecanismos e engenhos, bússolas, próteses, asas mecânicas, e até do criar, moldar
seres sob sua brasa e faísca, em suma, o deus da tecnologia e arquiavô do ciborgue
– que divide o lastro do imaginário contemporâneo com a simbólica de Hermes, o
deus da informação revelada e oculta (decifração, cifração e enigma), deus da cura,
do prolongamento da vida, e da comunicação/diplomacia pragmática.
Simbolicamente, tais pressupostos reafirmariam essa crítica patente à reivindicação
da palavra final pelo momento, ao revelar ainda mais do seu caráter.
Já em relação à questão do "salto" tomada da narrativa bíblica pela
filosofia, remete-nos, entre outras possibilidades, ao sentido da transposição abrupta
de domínios e situações, de sequências de pensamento, realidades ou dimensões
do conhecimento, tais como o "salto" do domínio da lógica, racional, para o domínio
da fé, religiosa. Foi o que Kierkegaard, de Temor e Tremor (1979), encontrou na
narrativa bíblica do sacrifício de Abraão152, que rompe com a lógica pela mais pura
confiança em Deus e se lança, não sem angústia, sobre o escuro, sobre o absurdo
do instante, do que só ocorre na deparação com o momentocrucial. Kierkegaard é,
justamente, que, como um dos pais do existencialismo filosófico, pensa a existência
temporal e coloca o instante sobre o paradoxo de sua absoluta presença e, ao
mesmo tempo, de sua infinita evanescência. Assim, oferece-nos também uma visão
que proporciona novas leituras sobre a questão da "dilatação" da temporalidade do
momento, conforme vista a propósito do poema: "o momento designa o presente

152
"Abraão tomou a lenha do holocausto e a colocou sobre seu filho Isaac, tendo ele mesmo tomado
nas mãos o fogo e o cutelo, e foram-se os dois juntos. Isaac dirigiu-se a seu pai Abraão e disse: 'Meu
pai!' Ele respondeu: 'Sim, eis-me aqui, meu filho!' – 'Eis o fogo e a lenha,' retomou ele, 'mas onde está
o cordeiro para o holocausto?' Abraão respondeu: 'É Deus quem proverá o cordeiro para o
holocausto, meu filho'. E foram-se os dois juntos. Quando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara,
Abrão construiu o altar, dispôs a lenha, depois amarrou seu filho Isaac e o colocou sobre o altar, em
cima da lenha. Abraão estendeu a mão e apanhou o cutelo para imolar seu filho." (GÊNESIS 22, 6-9)
301

como aquele que não tem passado nem futuro; nisso está precisamente a
imperfeição da vida sensível. O eterno designa também o presente, que não tem
nenhum passado, nem nenhum futuro, e esta é a perfeição do eterno"
(KIERKEGAARD, 1982, p. 109). Ora, um salto ao domínio do momento, como o
propugnado nos primeiros versos do poema, é um salto no próprio absurdo do
tempo, no imprevisível do que só o momento pode proporcionar enquanto ato, num
salto radical, quase irresponsável, um único lance de dados na existência.
Nessa experiência radical, tudo está entregue ao momento, porém, o
sujeito, atinado, deve aceitar o silêncio, caso a palavra prometida não lhe seja
provida – caso esse presente não lhe tenha nada a dizer, senão que o deixe à
escuta do silêncio, o qual passa a ser o demiurgo, o mago, em meio ao tempo. Quer
dizer, no fim, a submissão ao momento é uma crítica ao momento, uma tomada de
consciência de que o momento, com sua presença radical, pode nada suprir. Com
isto, esboça-se o salto propriamente irônico, que permite ao enunciador descolar-se,
desjuntar-se, de seu enunciado, e assumir aquela posição preconizada por
Agamben, e já discutida neste trabalho, acerca do contemporâneo, mas que, nesta
situação pode ser melhor traduzida nestas de palavras Terry Eagleton (2000, p. 141,
grifo meu): "somos menos sínteses esplêndidas de natureza e cultura, de
materialidade e significado, do que animais anfíbios presos no salto entre anjo e
fera".
Todas essas considerações levam-nos a entender que apesar de num
primeiro nível de compreensão, o poema aduzir ao processo criativo e à práxis da
escrita, um aprofundamento dessa compreensão mostra seu redirecionamento para
uma revelação crítica, e onde podemos até perceber certo tom mordaz, da vontade
de totalização desse momento nos termos de um presentismo cujos valores e bases
simbólicas repousam sobre o imaginário contemporâneo, e cuja pulsão pragmática é
reflexionada pela resignação (a aceitação do silêncio como fala). Deste modo,
podemos também compreender que a preocupação do seu horizonte formal e
experiencial se volta para as relações do sujeito com a espaciotemporalidade, e
suas implicações, localizando-se deste modo no horizonte de uma liricidadefáctica,
quiçá existencial.
No que diz respeito à situação do poema em relação ao quadro proposto
desse horizonte formal e experiencial, é possível compreendê-lo dentro da faixa de
uma forma tensiva, e densa, pela exploração marcada de seus recursos formais e
302

linguísticos, um investimento na condensação da linguagem e na articulação de uma


espacialidade significativa, incisiva, do poema, mas sem a pretensão da radicalidade
tensivo-retentiva (marcação da objetividade, da racionalidade e da semiose). A nos
atermos – apenas – a uma dupla referencialidade experiencial do poema, ele
mobiliza também uma dupla faixa de experiência: por um lado, uma faixa focalizada
no ato determinante e criativo da escrita, apontando assim para um regime estético;
por outro lado, lança-nos nessa experiência prosaica do mundo que corresponde ao
existir humano e que supre, a cada momento, sua fala e seu ato definitivo,
delineando, assim um regime ético. A levar em conta a crítica de uma temporalidade
social, que perceptivelmente o fundamenta, temos a afirmação dominante de uma
faixa da experiência distensa cotidiana da vida, e de sua prática.
O segundo poema de Hagamenon, A cidade enquanto azula o tempo
(prelo), a ser discutido agora, na verdade representa mais propriamente uma das
linhas relevantes deste horizonte, que é a linha do lirismo dos espaços de vivências
e da reflexão do lugar, entrelaçando anima urbis e anima orbis. Porém sua escolha
deve-se também ao fato de que esse poema tem a vantagem de reunir uma lírica
das paisagens, imaginários, memorial e historicidade do lugar à reflexão do próprio
espaço e do tempo contemporâneos – e suas linguagens – à crítica testemunhal da
vida diária e prosaica, ou seja, a outros aspectos apontados como pertinentes a este
horizonte. Numa outra perspectiva, a escolha recai também sobre a intenção de
ampliar a discussão desse espaço e sua localização na multiplicidade do
contemporâneo no sentido de que o espaço abordado no poema reúne, na
perspectiva do urbano não convencional, mas típico do espaço brasileiro, o antigo e
novo, o arcaico e o agora, a cidade de pedra, liberal-humanista-colonial, e a cidade
de condomínios, conjuntos habitacionais, shoppings e grandes avenidas, capitalista-
contemporânea. Tal perspectiva traz um olhar particularmente rico de como a poesia
também se torna o um trabalho da memória e da história desses lugares híbridos do
país e da língua(gem), e, deste modo, torna o tempo, e não o espaço o fundamento
vertical da reflexão e a determinante configuradora do movimento poemático.
O poema foi objeto de leitura pública em evento comemorativo do quarto
centenário da cidade de São Luís do Maranhão, promovido pela Secretaria de
Cultura do Estado. Por tratar-se de um poema longo, serão trazidos alguns
fragmentos, de modo a não perder seu conteúdo geral, para impulsionar a
discussão:
303

A cidade enquanto azula o tempo


(Fragmentos)

“Um sol de fino ouro, num campo azul.”


Claude d’Abbeville

São Luís recolhe o tempo


para que o tenhamos na mão
quando a memória nos falhe
Daí que exige
de nós
mais poesia
para pagar o preço
de seu encanto
José Chagas

Essa é mesmo a cidade azulejada,


Ou a cidade aleijada em seu azul?

José Chagas

[...]

Azul?
Não, ainda não era o azul.
Azul?
Não, ainda não era o azul sob a ponte de Tribuzi abrindo seus dois braços

Ainda não era


sequer o turvo, o escuro mais que escuro
o cru e o sujo
no oco do mundo.
Ainda não era este azul e/ou o anil na fábrica do futuro,
fábrica
de poetas. Ou
nenhuma carranca
chorando à espera
do tempo que erra
e nenhum ribamar
sua fome, sua fera
suas garras, sua guerra
(que a vida é sempre combate),
e por isso ainda não era
a louça deste tempo
partido em chagas
nos confundindo como um espelho
tempo sem recheio
tempo só espelho.

Não,
este azul
ainda não era.
304

Ainda era
só o balanço
e/ou
o maracá
de seus ventos cotidianos
Ainda era
só a boca
aberta do boqueirão
sem timbiras nem tupinambás
ainda era só o cofo de palha e ouro de nossa bela escuridão
de inocência e de mar,
sem máquinas de existir.

Era só o azul.
Meninos, eu também vi.

*
* *

Eu sei, que depois veio jacques, depois veio charles, e vieram


o senhor de razilly e laravardière e duplessis e o senhor de sancy, e
[ veio
o padre claudio e o padre ivo,
e vieram jerônimos, martins e alexandres
e vieram os holandeses
o azul nos olhos, nas mãos o fogo
e os escravos negros
vieram
antes do sangue
azul e sórdido
de um tal crochrane, mercenário e lord.

[...]

E mesmo de azulejos
racionalizados,
de pura poesia vestiu-se a cidade,
e ainda é azul.

[...]

*
* *

Por isso
pode parecer estranho
que eu desça
oco
dentro deste tempo
como o sino
vazio e insaciado
da Igreja do Carmo
antes de tocar.

E direto me toque
agora puro (ou de inox)
para as encarnadas substâncias do Roxy.
305

[...]

e entre anúncios lojas sonhos sapatos


jóias brincos beijos e tênis de marca
e na loja de acessórios anti-vazio
também celulares modens links e fones
pra falar de longe
agora que tudo está tão perto e pode estar tão longe
e no lugar do amor vibradores sutiãs sedosos preservativos
e um cisne de acrílico
com assinatura de arte
e também bijus maçãs chocolates
e camisinhas
já que, no fundo, somos intocáveis.

Eis porque não me acho


e é azia este azul
(depois de tantos hambúrgueres).
É azia este azul mais do que foi a transa
ou do que são os cardápios: que nenhum deles logra
adoçar em mim
o que em mim é ácido.
É azia este azul
feito das migalhas
de horizontes restritos
e fragmentários,
mas sob medida
para nós, os peixes no aquário.
Eis porque não me acho
no escurecer deste azul
que se despedaça
enquanto cai a tarde
e que corta como navalha
no transe do trânsito
rente às tuas pernas, junto ao táxi.
E repercute em todos os sinos e nos ouvidos dos bem-te-vis dos canários
e grita aos meus ouvidos, por sobre o silêncio de todos os pássaros:
“A ilha já não é mais ilha!”,
enquanto eu sigo, tonto
triste,
turvo, disperso e vago.

[...]

Então constato,
que minha cidade se fez mais de versos
que de suas de várias versões,
se fez mais de cantos
que de suas pedras de cantaria.

E é neles então que me acho,


nas suas pedras, nos seus cantos, nos seus versos.

*
* *
Eis a minha cidade,
nela já me acho.
que a carrego comigo,
306

eu a digiro, meu alimento

mesmo que dela agora só me sirvam


este azul despedaçado
e, deste azulejo, um fragmento

eu a carrego comigo
porque aprendi
(com seus versos e os seus poetas):

a cidade é dentro

Devemos levar em conta em primeiro lugar, sobre esse poema, que ele,
por óbvio, não está desvinculado da cidade de que fala e a quem fala (São Luís do
Maranhão), nem em sua matéria nem em sua enunciação, uma vez que sua primeira
atuação dá-se como reflexão sobre a vida da cidade num determinado contexto –
sua compleição de quatro séculos – e como leitura para o público que participa
desse espaço, e que, neste sentido, interlocutor privilegiado em relação à história, a
certos detalhes da constituição do lugar e a certas significações vocabulares, o que
faz com que o autor sinta a necessidade de explicar, em nota, no fim do poema, que
"O verbo azular, além de se referir à cor azul, pode ter também o significado de fugir,
conforme as crianças de São Luís da minha época o utilizavam, forma e uso estes,
inclusive, registrados nos dicionários Aurélio e Caldas Aulete".
Na impossibilidadede tratar aqui do poema em seus detalhes, pelas
determinações deste trabalho, serão focalizados alguns pontos que podem
enriquecer as definições e o delineamento deste horizonte, conforme se vem
desenvolvendo. Tais pontos serão a experiência do lugar, vista pelo viés da relação
sujeito e espaço sob o fluxo do tempo, da cronotopia e da memória, e a experiência
poética intertextual como medium dessa memória do lugar.
O poema opera sob dois fluxos de progressão. O primeiro é um fluxo
histórico e cronotópico; o segundo, um fluxo memorial e experiencial-subjetivo.
O fluxo histórico e cronotópico é representado pelo elenco de seus
fundadores, personagens e situações importantes, cronotopia esta que se desloca
para a apresentação das transformações que o espaço vai sofrendo ao longo do
tempo, e, com eles, os sujeitos que o habitam, uma transformação que é
particularmente determinada pela anterior colonização guerreira, pela saga
exploratória, depois pelas novas formas de colonização e exploração, com seus
307

impactos sobre o caráter, sobre o ser dos sujeitos, de quem a voz lírica passa a ser
representante dos impactos e revezes sofridos.
A palavra "azul" é a palavra-chave em todo o poema, porque é ela que
conduz também esse duplo sentido do lugar, o lugar histórico, instalado na
cronotese (tempo objetivo e cronológico) que estabelece o fluir/fugir do tempo, as
transformações do passado ao presente, e o lugar memorial, entranhado num tempo
liso, inconsútil, subjetivo e inter/intracomunicante, apropriado pela experiência
individual e pela coletividade do lugar. Este azul é apropriado no poema em primeiro
lugar como ontológico, como uma qualidade positiva do ser do mundo, associado
imaginariamente ao celeste, ao urânico, ao alto, ao espiritual, ao claro e ao amplo (o
abraço da "ponte"), e, finalmente índice de uma harmonia entre sujeito e espaço,
cultura e natureza, além de condutor da relação com uma poesia memorial da
cidade (a ser discutida posteriomente). Mas o "azul" é também um signo histórico do
lugar, determinado pela sua valorização colonizadora-religiosa (muito bem marcada
na epígrafe do poema em questão), retratando, em frase antológica sobre os
campos do Maranhão a apreciação do padre capuchinho Claude d'Abeville: “Um sol
de fino ouro, num campo azul", transformando-se ele mesmo, o padre capuchinho,
um dos signos históricos da "Isle de Maragnan 153". Desse modo, o significado
cronotópico do azul vai delineando no poema sua ausência, a aproximação e o
afastamento dos sentidos positivos que a palavra conota, até a derrocada do azul
em azia, pela angústia imposta por uma realidade fria, fragmentária e distanciadora,
determinada pela corrosão recorrente dos interesses mercantis, econômicos,
capitalistas.
Tal compreensão pode ser acompanhada ao longo do poema, desde um
momento inaugural, originário, nesse sentido "pré-histórico", "pré-sígnico" para a
língua portuguesa, porque a nomeação do espaço se dá analogicamente, e a
expressão "azul" não é vocabulário desse espaço sem maquinários, ainda
significado pela unidade analógica da natureza. Momento histórico e língua, então,
andarão juntos: "Azul? / Não, ainda não era o azul [...] ainda era só o cofo de palha e

153
Claude d'Abeville era missionário capuchinho e entomólogo francês que participou como cronista
da missão de tentativa de fundação da França Equinocial no Maranhão, expedição de Daniel de La
Touche, Senhor de La Ravardière e do almirante François de Rasilly, Senhor de Rasilly e Aumelles.
Em retorno à França, publicou , em 1614, um relato sobre as terras do Maranhão e seus habitantes
nativos, e o fracasso da colonização francesa, com Histoire de lamissiondespèresCapucinsenl'Isle de
Maragnan et terres circonvoisines [História da missão dos padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão
e terras circunvizinhas] .
308

ouro de nossa bela escuridão/ de inocência e de mar,/ sem máquinas de existir".


Nesse sentido da importância da linguagem na cronotopia da terra, na relação de
apropriação e identificação entre homem e espaço da alteridade, é que, em meio a
uma sequência irônica de senhores (numa reiteração fonêmica do /y/[i] que parece
demarcar o outro estereotipado e sensível da nobreza francesa) – "Eu sei, que
depois veio jacques, depois veio charles, e vieram/ o senhor de razilly e laravardière
e duplessis e o senhor de sancy, e veio/o padre cláudio e o padre ivo,/ e vieram
jerônimos, martins e alexandres/e vieram os holandeses [...] – aparecem "padre
cláudio" (Claude d'Abeville) e "padre ivo" (Ives d'Évreux 154), os quais se identificaram
com a terra, com a linguagem dos índios e com a natureza tropical brasileira.
Depois das naus e dos lords, dos momentos fundacionais (nomeação e
instauração do "azul") e da configuração de uma cidade em sua estabilidade
cotidiana, sua poesia floresce e o passado se solidifica como como memória, uma
cidade que passa a viver o cotidiano e a no olhar inocente da criança e na canção
do poeta ou ainda da criança que se tornará poeta, como na menção daquele
"ribamar" (José de Ribamar Ferreira, o Ferreira Gullar, do Poema Sujo), cujo nome é
generalizado com o uso da minúscula para estender-se a tantos outros "ribamares",
entre fomes e feras; ou a louça azul do tempo partido em tantos chagas (José
Chagas, o poeta). O azul transforma-se em ponte de Tribuzi (Bandeira Tribuzi,
poeta), em abraço. A cidade, constrói seu azul sobre os azulejos – também ainda
conciliados, uniformes –, azulejos estes que são índices de uma cidade que precisa
apostar na "negociação do azul", acolher o azul mediado pela vida, entre as suas
versões e as pedras de cantaria.
A desterritorialização do sujeito do locus conciliado será marcado, num
terceiro estágio cronotópico desenvolvido no poema, pela azia do azul, a cidade
inflada, fragmentada e desterritorializada, com a perda dos modos de vida
pacificados, de temporalidade longa ou média, imersa na tradição e na circulação da
província, para suas feições de cidade expandida, ao espírito metropolitano, e, por
154
Yves d"Évreux, que esteve no Maranhão por quatro anos (mais que Claude, que ficara apenas dois
meses), era chefe da missão dos capuchinhos que vieram com os franceses. Também entomólogo,
era conhecedor do grego, do latim e do hebraico. Entregou ao mesmo editor de Claude d'Abeville,
François Huby, em 1615, uma obra intitulada "Suitte de
l'HistoiredesChosesplusMemoralesAdvenéesenMaragnan, és annees 1613 & 1614" [Continuação da
história das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614]. Sua Obra,
entretanto por razões escusas, foi destruída ainda na gráfica, salvados pouquíssimos exemplares,
encontrados mais de 250 anos depois, e publicado no Brasil em 1864, pelo historiador e crítico
Ferdinand de Denis. Hoje a edição encontra-se mais completa (Cf. Prefácio de Joaquim Campelo
Marques, in: ÉVREUX, 2007).
309

outro lado, pelas novas faces do capitalismo, com seu urbanismo funcional, suas
placas e outdoors, seus fastfood, sua indústria do entretenimento, e a corrosão
avassaladora, reificante, da sua vida íntima, suas inserções no comportamento, na
visão do corpo e no desejo, suas soluções para facilitar a vida, ao mesmo tempo em
que precisa destruí-la para sua própria manutenção, bem como criar novos
territórios de satisfação, novas crenças e redimensionamentos da percepção. É o
impacto dessa grande cidade, mundializada, sobre esta outra cidade, local, da
impermanência sobre a permanência. Aí, há indivíduos que não se tocam, tocam-se
sem se tocarem, desenvolvem formas de autossatisfação – um emblema
fundamental, nesse aspecto, é representado no poema pelo Cine Roxy, cinema
tradicional que, após fracasso comercial ante a chegada dos cinemas dos centros
comerciais e shoppings, passa a exibir apenas filmes pornôs: "Por isso/ pode
parecer estranho/ que eu desça/ oco/ dentro deste tempo/ como o sino/ vazio e
insaciado/ da Igreja do Carmo/ antes de tocar./ E direto me toque/ agora puro (ou de
inox)/ para as encarnadas substâncias do Roxy". Nessa nova perspectiva, portanto,
azul e azulejos se despedaçam, virtualizam-se, e o sujeito se dá conta dessa
transformação do tempo, que esgarça sua unidade, cinde as relações, e transforma
afetividade em afecção:

Eis porque não me acho


e é azia este azul
(depois de tantos hambúrgueres).
É azia este azul mais do que foi a transa
ou do que são os cardápios: que nenhum deles logra
adoçar em mim
o que em mim é ácido.
É azia este azul
feito das migalhas
de horizontes restritos
e fragmentários,
mas sob medida
para nós, os peixes no aquário.
Eis porque não me acho
no escurecer deste azul
que se despedaça
enquanto cai a tarde
e que corta como navalha
no transe do trânsito
rente às tuas pernas, junto ao táxi.

Mas as versões desta cidade estão ponderadas dentro do sujeito ante a


versão memorial, do azul superior que insiste como conciliação permanentemente
buscada na temporalidade conciliadora e urânica da anima orbis; estão ponderadas
310

ante uma cidade que está "dentro" do sujeito – individual ou coletivo –, guardada por
seu corpo e seu andar, imersa nas temporalidades lisas ou retentivas de sua
memória. Esse redimensionamento parte de uma constituição da cidade que permite
tocar tanto o memorial quanto o imemorial, no sentido de que a cidade é a própria
encarnação do tempo além dela, o tempo do ser, que repousa na pedra, nos portais,
nos telhados, no óleo de baleia que escorre por entre as eras nos casarões. É este
tanto o sentido da epígrafe, de José Chagas – o poeta por excelência do tempo
imóvel, qualitativo, e dos telhados ludovicenses – quanto a orientação do poema de
Hagamenon para a origem turva, duvidosa, da cidade (que tem se tornado motivo de
infirmações e embates históricos inflamados, nos últimos anos), expressa, no poema
primeiro com a sugestividade de um tempo mítico, pelo uso do aspecto imperfectivo
do verbo ser (era...), que traz logo no início do poema, a conotação do surgimento
remoto da cidade, in illo tempore: "Eram dez naus /e eram/ cem cavalos/ e
novecentos homens, para logo/ de berço ou a bordo aprendermos/a dor de um
naufrágio!/pois também aqui veloz vida e estrangeiro destino iriam se criar/entre as
fissuras do trágico [...]", sob o mítica trágica da devoração de Chronos sobre seus
filhos, onde a temporalidade histórica engole a temporalidade mítica, que se
internaliza. É a essa cidade mítica e permanente (memorial), que a outra cidade (de
Chronos, cronológica) tem a avidez de devorar: "esta cidade outra cidade toda
cidade/ tem a ânsia de devorar: eis sua flora/ como o tempo sempre a devorar os
tempos/assim ela se faz senhora". Eis por que o poeta invoca a outro poeta a
imagem da cidade como repositório do tempo, e a poesia como repositório memorial
da cidade. Assim, se o sujeito se torna repositório afetivo da cidade internalizada ("a
cidade é dentro"), esta é figurada como uma cápsula do tempo imemorial, tempo que
deve elevar o sujeito acima do tempo (histórico).
Analogamente, a poesia dessa experiência torna-se medium da memória,
uma poesia que adquire um papel xamânico155 (um xamã provecto: "Meninos, eu
também vi!", verso que retoma intertextualmente o I-Juca-Pirama, de Gonçalves
Dias) capaz de evocar o tempo do ser – tempo encarnado na louça "azulírica" da
cidade, em suas ruas antigas, fontes e becos, crepúsculos e pedras –, e fazer com
que os mortos falem. É uma poesia que assume, pois, um duplo papel relativo ao
papel da memória: o papel de repositórios escritos, lugar de armazenamento da sua

155
Cf. ASSMANN, 2011, p. 193: "Eles [os poetas] são xamãs e mantêm uma conversa permanente
com as vozes dos ancestrais e dos espíritos do passado".
311

animaurbis, e sobrevivência material da memória da cidade, e ao mesmo tempo de


potência da memória e da recordação, ou seja, a memória enquanto ars (arte,
matéria, suporte, meio de eternização), e a memória enquanto vis (potência,
recordação, memória de experiência, contingente, evocativa, aleatória, de
associação errática e imprevisível, indissociada do esquecimento) (ASSMANN,
2011).
Esse andamento memorial do poema, como seu segundo fluxo de
progressão, é configurado nessa dimensão experiencial explorada, porém cingido
numa configuração dimensionada por processos e disposições formais remissivas a
uma biblioteca poética do lugar, ou seja a uma intertextualidade que tem como
referência uma poesia que opera também como fundamento poético e memorial da
cidade, desde uma disseminação de alusões a José Chagas (o próprio azul, por
exemplo, que é um motivo recorrente em José Chagas, assim como percorre o
Poema Sujo), a uma estruturação discursiva espacializante que segue os mesmo
princípios do Poema Sujo de Ferreira Gullar, a reiteração, a cisão dos blocos
(estróficos), os espaçamentos que provocam vazios e fraturas, as sequências
sintéticas quebradas por linhas extensas e distensas, em rajadas verbais livres que
deixam assomar uma subjetividade prosaica e provocam assimetria rítmica:

turvoturvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menosmenos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu

[...]
Que imporá um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa dojantar sob uma luz de febre entre irmãos
312

e pais dentro de um enigma?

(GULLAR, 1991, p. 218-219)

Em A cidade enquanto azula o tempo, Hagamenon passa a retomar o


poema gullariano para o re-velar, redobrando-o em novos sentidos provocados pela
articulação, ou reempregando seus termos de forma a moldá-los para novas
significações de acordo com os fluxos delineados pelo seu olhar. Assim, por
exemplo, a associação do "turvo" ao escuro imemorial e histórico-fundacional da
cidade, o azul como imaginário analógico do homem-bicho-natureza, ampliada em
imagem emblemática de temporalidades (articulação entre o cronotópico e o
memorial), uma apropriação intertextual, enfim, que prosseguirá até o final de um e
de outro poema, com as considerações sobre o estatuto da cidade, a sua relação
com o ser da cidade e com o ser do homem:

o homem está na cidade


como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

[...]

cada coisa está em outra


de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma

a cidade não está no homem


do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas

(GULLAR, 1991, p. 274)

Comparemos com a compreensão proposta por Hagamenon, ora da


cidade que está dentro da outra porque uma devora a outra, sendo este o seu modo
de continuidade e crescimento, ora porque a cidade que o homem habita, como
espaço de recordação ou provocação trágica, pode ser a cidade ontológica, que
habita no homem e o povoa, que "é" dentro:: (ó boqueirão do mundo!)/ uma cidade/
esta cidade outra cidade toda cidade/ tem a ânsia de devorar: eis sua flora (...)//
mesmo que dela agora só me sirvam/ este azul despedaçado/ e, deste azulejo, um
fragmento/ eu a carrego comigo/ porque aprendi/ (com seus versos e os seus
poetas): /a cidade é dentro.
313

É bem verdade que, conforme já foi dito em tópico anterior, com João
Alexandre Barbosa (1986), a intertextualidade escapa ao controle e às
intencionalidades do autor, porque está aberta no espaço da leitura e da cultura,
além de que o texto é marcado pelas circunstâncias históricas e pelos sentidos que
o leitor lhe imprime. No entanto isso não impede postularmos certos
direcionamentos que essa textualidade adquire. Assim, compreendemos que existe
uma diferença entre a intertextualidade proposta no poema de Hagamenon de
Jesus, a qual se insere de maneira cabal neste horizonte, e a intertextualidade
praticada de maneira geral num horizonte intersemiótico (e simulacral). Enquanto
nestes a intertextualidade assume a proposta da metarremissão e da autorremissão
para o próprio mundo dos textos ou da linguagem, na intenção de reiterar
justamente sua condição sígnica, semiótica, do texto como signo interpretante de
outros textos-signos, a linguagem como interpretante da linguagem, ou de acentuar
o processo literário como um papel formal-simulacral (a literatura nasce da literatura
que nasce da literatura...), numa proposta como a apresentada em A cidade..., os
textos têm essa experiência da cidade como alvo, como já foi dito, servindo de
medium (ars), de mediação para a experiência do lugar ou de potência (vis) para a
memória efetiva do lugar que aí guarda seus vestígios e reminiscências. Se o lugar
pode ou não ser alcançado, isso não é colocado como proposta da sua pura
virtualidade como signo, porque permanece como animainteriorizável, como
experiência vivida, nomeação e memória – a ser "recontextualizada" (SCHAEFFER,
1989, 144).
Assim, chegamos à questão de como essa poesia pode contribuir com a
compreensão e o delineamento deste horizonte da liricidade fáctica, em que a
facticidade, o ser do homem se depara com este mundo prosaico e efetivo, e se
torna mundano, cotidiano, histórico e pragmático, e sua poesia precisa levantar-se
de manhã cedo, tomar café e pegar seu ônibus sob os vidros das janelas
intranquilas. A poesia precisa efetivamente transar, masturbar-se e pegar táxi,
perceber e sentir o que o momento tem a dizer, falar ou calar-se diante dele quando
for preciso ouvi-lo, ou simplesmente ter o discernimento de esperar o momento
conveniente. Trata-se, portanto, de uma experiência da jornada e do viver diário, da
experiência do seu lugar e do seu tempo cotidiano, como nos casos representados
pelos dois poemas apresentados de Hagamenon de Jesus, assim como dos demais
mostrados neste horizonte, configurando experiências distensas cotidianas.
314

Entretanto, para o delineamento dos traços deste horizonte podemos configurá-lo


formalmente também dentro de uma faixa que não se deixa apreender pela
espontaneidade dissoluta, pelos coloquialismos nem caoticidade de expressão,
utilizando-se de uma disposição formal ora tensa, densa, conforme os
procedimentos e disposições formais dos poemas mostrados, insclusive pela
apropriação formal intertextual bem marcada o último, ora distensa, mas focalizada,
por uma linguagem que busca a comunicabilidade simples e discursiva, dentro do
poético. Se esta poesia "não verifica dicionário" e eventualmente se utiliza do ritmo
solto e dissoluto, estará dentro daquela dissolução de uma poética do
"espontanemente controlado", típico de Manuel Bandeira, capaz de inserir, sem que
nos demos conta, decassílabos num "lirismo descomedido". É para esse espírito que
recolhe todo o riso (irônico) e o espírito dos loucos e dos bêbados. O foco deste
horizonte é simplesmente a facticidade da vida, em seu acontecer, sua sabedoria,
sua convivência e sua oferta.
315

3.6 HORIZONTE DO LIRISMO VITALISTA-PERFORMÁTICO [REFERÊNCIA:


MIRÓ: PERFORMANCE DA VIDA & LIRISMO DAS ENTRANHAS]

Confesso que também vivi


meio século

aos 48 anos não conheço ainda um outro país


mas tenho uma nação de amigos
outro dia um amigo me liga:
Miró, posso me abrir contigo?
diz aí
o amor é cego ou enxerga demais
Tarciana tava saindo com o cara da ótica
talvez por ser leonino caem tantos amigos
na minha juba pra pedir conselhos
leão, leão, leão
és o rei da depressão

quando criança me perguntava:


o papa caga?
o presidente tem tempo
para dar uma trepadinha?
por que eu nasci pobre?
o que me acalmava era saber
que todos morrem
e que nesse planeta nunca faltará música
e se faltar
o silêncio canta
aqui no meu canto,
canto Zeca Baleiro, Fagner, Djavan,
Rita Ribeiro, Reginaldo Rossi, Chico Science
Cazuza e Raul
vivos na memória

[...]

sou do tempo em que guerra era de murro


que se brincava de trinta e um alerta
que degustávamos fruta-pão
que ladrão entrava nas casas das pessoas
só de noite
que de noite as pessoas ficavam
conversando nas calçadas
que de mentira existia Papa-figo
perna cabeluda
que bacia d'água atrás da porta
tirava cheiro de maconha
que se ficava feliz
apenas com um beijo na boca
que não se falava tanto que, que, que
simplesmente vivíamos

(Miró [da Muribeca]. Miró até agora. In:


RAMOS [Org.], 2016, p. 62-63)
316

O horizonte do lirismo vitalista-performático não é uma invenção


contemporânea nem mesmo modernista, suas raízes e expressões estão na
expressão mágica cantante e dançante; na performance do melopoios, ancestral da
lírica na Grécia; no renga/haiku andarilho e peregrino japonês dos séculos
(reapropriados com outros tons na poesia brasileira recente por Leminsky); na
cantiga popular medieval do menestrel e/ou do desafio maldizente – reverberada no
rap/pente da atualidade; na poesia europeia romântica e "maldita" fin-de-siècle
(século XIX).
Contudo, para efeito particularizante de sua concepção mais recente,
podemos associá-lo às vertentes marginalistas, experienciais e experimentalistas
dos anos 1960-1970, aquela poesia ligada à transposição imediata da vida para a
lírica (contando também como "vida" tudo aquilo que o poeta apreende do mundo,
inclusive os textos lidos as músicas ouvidas156, a vida cultural e política, etc, sendo o
próprio poema apresentado como canto), de modo tocante, sensível e com sua dose
de corrosão contracultural e sensualidade. O poeta/o artista pode estar na rua
vivendo, produzindo e performatizando sua arte, convivendo e produzindo com
artistas de outros campos, como, por exemplo, da canção, das artes plásticas e
visuais, da "cultura popular" ou da "cultura de massa", vivendo o que a vida tem de
risco e delírio a oferecer. Assim encontramos tais posturas na nossa poesia marginal
compósita, da experiência engajada – já comentada anteriormente –, e nos influxos
de outras poesias e posturas que nos chegam e se agregam ao que vem sendo
produzido: dos ecos transgressivos e drogados da Beat Generation, ao "teatro da
crueldade" de Antonin Artaud, que desconhece separação entre ator e platéia, vida e
arte, corpo [patológico] e palavra, à prosa poética vitalista e obscena de Charles
Bukowski – entre vários outros. Todas essas referências e experiências, além de
muitas outras, têm se acumulado sobre o horizonte vitalista-performático, que por
sua natureza, ganha feição hipercompósita, híbrida, transcomunicante. Podemos
encontrar mostras desse caráter híbrido e compósito, por exemplo, em trabalhos
recentíssimos que, numa linguagem escrachada, nos dão o tom de tal proposta,
como a Antologia Gengibre (janeiro/2017), a qual reúne poetas e escritores de

156
Como no caso do poema em epígrafe, em cujo título Miró faz uma alusão à obra, não por acaso,
autobiográfico, do poeta chileno Pablo Neruda, Confesso que vivi (1974), bem como à canção O Leão
(1970), do poeta e compositor brasileiro Vinícius de Moraes, e a tantos outros artistas brasileiros (aqui
no meu canto, canto Zeca Baleiro, Fagner, Djavan, Rita Ribeiro, Reginaldo Rossi, Chico Science,
Cazuza e Raul vivos na memória.
.
317

diversas posturas e intersecções sob esse horizonte "guarda-chuva" de uma


poesia/literatura vital/visceral alternativa, na curadoria do poeta Felippe Regazio. Diz
ele, na prosa libertina e metafórica que a poesia permite:

Tá tudo aqui [na antologia]. Ladrões, justiceiros, caçadores de recompensa,


assassinos de aluguel, xerifes, ripadores de carteiras, donzelas, bruxas,
mocinhos e mocinhas, lobos solitários, putas barbadas circenses e toda a
laia da mais duvidosa corja existente em todas as quebradas e fronteiras
literárias, frente a frente pra uma conversa. E o crime? Escrever (REGAZIO,
2017).

[Figura 06: Capa Antologia Gengibre157: proposta hipercompósita no tom do


horizonte vitalista-performático]

,
(FONTE: REGAZIO, 2017)

Ricardo Vieira Lima, organizador de uma outra antologia, a Roteiro da


poesia brasileira anos 80 (2011), inspirado em Benedito Nunes, classificou, nesta
antologia, a lírica produzida naquela década em quatro vertentes, uma dos quais
seria a vertente de uma lírica vitalista, de onde retomo o conceito, traços e

157
Disponível em: https://antologiagengibre.files.wordpress.com/2017/02/gengibre-dcphm4.pdf.
Acesso: maio/2017.
318

particularidades que vejo como pertinentes para o delineamento do horizonte em


pauta. Na concepção de Lima, a poesia dos anos 80 poderia ser vista, então, como
configurando uma lírica da tradição – em diálogo com as fontes clássicas da poesia
brasileira e estrangeira; uma lírica de transgressão, vertente que contestaria “os
padrões estéticos vigentes”, buscando realizar a “poesia de invenção” e cujos
adeptos seriam, segundo a sua leitura poundiana, os “inventores”; uma lírica
vitalista, vertente que adaptaria à contemporaneidade o binômio “arte/vida”, seriam
os “herdeiros da poesia marginal”, defensores das políticas do corpo e da ecologia,
poesia das tribos, da libido, em oposição à lógica de mercado e à indústria cultural e
cultores de uma nova sensibilidade; e uma lírica de síntese unificadora – síntese e
mescla das tendências anteriores. Assim, pois, ele concebe a vertente vitalista como
aquela que

atualiza o ideário da contracultura, calcado no binômio "arte/vida",


adaptando-o à contemporaneidade. Herdeiros da poesia marginal, os
partidários dessa corrente estética defendem as políticas do corpo e da
ecologia, ainda que, por vezes ostentem, simultaneamente, uma
sensibilidade alternativa, homossexual ou bissexual, das drogas e da
libertação psicanalítica, em oposição às lógicas do mercado, do
consumismo desvairado, tipo shopping and fucking (Fredric Jameson), e da
"indústria cultural" de que falava Theodor Adorno. Essa tensão de forças
gerou o que poderíamos chamar de poesia das tribos: poesia negra, poesia
outing gay, poesia pornô, poesia da causa da mulher, tudo isso permeado,
muitas vezes, por uma nova sensibilidade irônica/social/surrealista/sexual,
refreada em meados da década de 1980 pela presença devastadora da
AIDS" (LIMA, 2010, p. 17-18).

Aqui, podemos apreender das colocações de Lima o sentido desse


vitalismo erigido sobre o binômio "arte/vida", e certas particularidades dessa
vertente, a questão do ideário e de sua linha marginalista. No entanto, percebemos
que certas abordagens aí colocadas, tais como a da "poesia das tribos" não é
prerrogativa, pelo menos hoje, desse horizonte, mas são abordadas em outros,
apenas dentro de uma perspectiva, tom e direcionamento de escrita diferente, como
no caso da poesia da co-narratividade, já discutida.
A poesia de João Flávio Cordeiro da Silva, o Miró da Muribeca [Muribeca:
bairro de Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana de Recife/PE] vem
contribuir para aprofundar essa discussão e orienta referencialmente as perspectivas
desse horizonte, conforme podemos percebê-lo.
319

De Muribeca ao centro

o cheira-cola coçando piolhos


de frente ao aeroporto
fantasias eróticas domingo e segunda
– 21h – não percam!!

um pedreiro negro sem camisa e chapéu


dizendo ao patrão branco
o que tá faltando na construção do mundo
dois caras enconstados na estátua
da calçada do Geraldão

na inércia de uma terça nublada


o motorista do ônibus dá um banho
num cara de gravata todo arrumado
é melhor evitar a Mascarenhas de Moraes
(disse o cara pelo celular)

uma sirene da polícia bem alto


avisando ao ladrão que está chegando

um ser humano se arrastando


no alumínio do ônibus
descendo com duas moedas de 10 centavos

[ * * *]

botecos na Luz:
putas
homens esperando mulheres
para um sexo relâmpago
espermas por 10 reais
beijos com gosto de torresmo
cocaína e Sula Miranda

(MIRÓ, in: RAMOS, p. 134-135)

O que podemos encontrar nessa poesia? Percepções da vida com as


paisagens de seus submundos (submundo significa um mundo frenético e ferido, em
carne viva, coagido, opresso e subjugado e lançado na sombra escusa da miséria,
porém que cata seus meios de sobrevivência e cria as expressões do seu grito de
revolta) e o sentimento de quem está entranhado nesta experiência estertora, mas
cujo olhar flagra criticamente o existir cotidiano e é capaz de rir das condições da
existência. Ocorre aí um engajamento do corpo e da oralidade – sermo vulgaris,
inclusive – na poesia, e um engajamento da poesia no corpo ético-político-social da
320

realidade. Daí que seu lirismo torna-se expressivo das próprias mazelas e dos
achaques mundanos, do corpo social dilacerado, discriminado, insatisfeito, e adquire
a feição da experiência vivida e do relato testemunhal, na linguagem ao mesmo
tempo bruta, escancarada, libertina, de um "sermo vulgaris", sem abandonar a luz
sensível que redime essa experiência – como podemos ver reafirmada nestes
recortes:

[Figura 07: Recorte de poema de Miró, de O penúltimo olhar


sobre as coisas (3ª edição, 2016)]

(Fonte: MIRÓ, 2016, p.12-13)

Assim, em acordo com essas paisagens das suas vivências e do olhar


testemunhal do socialmente excluído, a vida comum, a vida dos homens
descamisados ou de camisas suadas e calções lambudos, a vida do corpo, da fome,
do sexo, das drogas e das putarias precisam ser expressas numa linguagem
engajada, que lhe corresponda, direta e sem metáforas eufemizantes, daí seu
caráter eminentemente denotativo – alçando-se a uma metáfora reflexiva no nível
discursivo – e seu registro de uma cultura oralizada, suas marcas de oralidade do
321

gesto que acompanha a fala, da atitude mostrativa dessa linguagem: "fantasias


eróticas domingo e segunda/ – 21h – não percam!!". Ascende à poesia uma língua
voluntariamente simples, mas vivida, escolada – não necessariamente escolarizada
– capaz de expressar ao mesmo tempo a névoa da sensibilidade e os laivos
sarcásticos-irônicos, a linguagem dos bêbados, das ruas, do grotesco, do patético e
do abjeto, expressões da realidade mundanal.
Tais condições e procedimentos levam essa poesia à configuração de
uma forma distensa coloquial, aos coloquialismos e espontaneidade, dessa faixa
formal despreocupada (e cuja organização nos versos dá-se, muitas vezes,
editorialmente, como posteriormente explicado), bem como para uma experiência
que ora se apresenta como distensa/cotidiana, naquele lirismo que, cotidiano,
também apresenta dentro desse cotidiano momentos de tensão e retesamento
experiencial, levando em conta que a experiência não tem configuração estriada,
mas lisa, isto é, o próprio cotidiano pode detonar, principalmente em paisagens
como a da poesia de Miró, situações tensas, dilacerantes ou estertoras – densas e
retesadas.
Uma particularidade dessa poesia é a da sua dupla performance, mas
caracterizadas como aquela performance textual, do scriptor ludens pós-moderno,
objetivada e calculante, conforme vimos anteriormente. Aqui, dá-se o caráter
integrador (ou reintegrador) das realidades e vivências do sujeito empírico à do
sujeito lírico, em outras palavras, ela apresenta-se sempre como uma performance
vital158 em que o autor, sujeito empírico assume "aberta e funcionalmente a
responsabilidade" (ZUMTHOR, 2000, p. 12), a vicariedade e o sofrimento patêmico
que corresponde ao sujeito lírico – o que torna ainda mais difícil a distinção entre os
dois, em mútua performance; e, por outro lado o fato de que essa poesia é
eminentemente uma poesia oralizada, apresentada à recepção (em geral um público
interlocutor "em presença" num espaço atualizador do poético e das virtualidades aí
propostas, ou de espectadores e ouvintes que hão de se estabelecer como leitores)
pela relação conjunta de voz e corpo, vivo e atuante – gesto e gesta na instauração
e mobilização de um espaço sensível e "potencial" de encontro, ou de

158
Para diferenciar a performance na concepção de Zumthor para aquela faceta pragmática e
linguístico-semiológica concebida no contexto do pós-modernismo (da qual trata Krysinski, 2007),
estou chamando a primeira de performance textual, e a segunda – de Zumthor – de performance
vital/vitalista, por se tratar de uma performance que se realiza por meio do corpo, gesto e voz no
espaço do mundo da vida, e relacionada à tradição da cultura oral.
322

reencontro/reiteração, e de um efeito sensibilizador/emotivo sobre a plateia. Voz e


corpo constituem, portanto, as duas nervuras da performance, conforme concebe e
estudioso Paul Zumthor (2000). Importante notarmos que essa performance (vital)
também atua sobre o valor e a valorização do que é apresentado, porque tem na
voz, na presença cara a cara, e não na escrita, a força maior de sua dicção e de sua
passionalidade – isto sem desprezar essa escrita que se imbrica poeticamente em
forma de intertextualidades, de apreensões do mundo convocadas à expressão. Em
corroboração com essas nuanças de compreensão e sentimento que se instaura na
performance, Zhumthor diz o seguinte:

A performance e o conhecimento daquilo que se transmite estão ligados


naquilo que a natureza da performance afeta o que é conhecido. A
performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é
simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca. [...] O
poético tem de profundo, fundamental necessidade, para ser percebido em
sua qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de
um sujeito em sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneira própria
de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos
perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético
(literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade
para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este, a meu ver,
um critério absoluto. Quando não há prazer - ou ele cessa - o texto muda de
natureza (ZUMTHOR, 2000, p. 32;35).

A poesia de Miró é, pois, inseparável de tais nuanças. A sua


apresentação dá-se dentro do contexto de uma performance, seja na rua, no
calçadão, numa farmácia, num palco improvisado e mambembe ou (já agora) de um
teatro. É também no contexto dessa performance que ele passa a recitar e ser
divulgado ou promovido por colegas e interessados nos suportes eletrônicos, tais
como o youtube. Não deixará de ser performance por isso, porém agora mediada
pelo virtual, em que corpo e voz estão em atuação e o público passa a ser o
espectador isolado, na sua fruição individual e afetiva, ou o coletivo direcionado:
grupos de interesse, escolas etc. – no território instaurado pelo acesso da mídia em
causa.
323

[Figura 08: Miró em vídeo performático]159

(Fonte: www.youtube.com/watch?v=MTrMpBqWNfU)

A escrita dessa poesia e sua publicação também não se separam deste


contexto, já que perpassam pelo semblante do livro artesanal, de uma pequena
editora como a Mariposa Cartoneira, de modo artesanal, capa de papelão
reutilizado, pintado à mão, chegando até a uma editora institucional como a Cepe, a
partir desse trabalho. Com o pé na performance, o livro pode ter contribuição de
outras mãos, não apenas na editoração, mas na própria escolha das fontes,
disposição formal de sua escrita, dos versos, dos espaços entre blocos discursivos,
conforme explica Welligton de Mello em nota à segunda edição de Miró até agora
(2016):

Foi adotada preferencialmente a grafia com minúsculas e simplificada a


pontuação no final dos versos. Na organização dos versos e estrofes,
tentou-se aproximar ao máximo do ritmo adotado pelo poeta em suas
declamações. Junto ao poeta, também foram revisados alguns versos. A
revisão ortográfico-gramatical foi feita apenas nos casos em que se
percebeu algum desvio de digitação, respeitando as marcas de oralidade
características da poética de Miró (MELO, in: RAMOS, 2016, nota da 2ª
edição).

É desse modo que a poesia de Miró pode ser colocada como uma
referência axial, no centro desse horizonte poético experiencial vitalista-performático.
Na configuração deste horizonte, no entanto, precisamos relembrar e levar em conta
dois fatores. O primeiro é que, como no domínio da cultura, na poesia não se pode

159
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MTrMpBqWNfU. Acesso: novembro/2015.
324

falar de pureza, mas de relevos, dominâncias ou predominâncias, que orientam


justamente a abertura de todo horizonte para suas faixas tensivas e distensivas. O
segundo ponto é que, como sabemos, este horizonte é extremamente agregador e
"compósito", em prosseguimento a um caráter que já fora detectado por Pedro Lyra
(1995) em relação à Poesia Marginal, considerando que ela baliza a configuração
deste horizonte, com suas "variantes". Conforme já foi colocado inicialmente, o
horizonte vitalista-performático é, por sua natureza "antropofágica", hipercompósito,
híbrido, transcomunicante.
Tal perspectiva nos traz outra compreensão: a de que o impulso
experiencial deste horizonte, ligado ao engajamento vital, ao movimento de
liberdade e imprevisibilidade do mundo; sua associação às manifestações
vanguardeiras e contraculturais, e sua rejeição de tudo o que pode representar um
tradicionalismo, pode conduzi-lo a assumir uma postura experimental, a qual o faz
acolher também em si/recolher para si poéticas cujos pressupostos lhe poderiam ser
paradoxais, mas que são, ao revés, conclamados para o seu território deglutidor-
anarquista. Assim, ele pode aglutinar o que há de mais experiencialmente subjetivo
ao que há de mais formalmente racional, como, por exemplo, o "desbunde"
desregrado e subjetivo e a visualidade concretista, procedimento que ocorreu ainda
na poesia marginal, sob os auspícios, principalmente de Paulo Lemisky, que pôde
trazer Mallarmé ao haikai zen-budista.
Essas apropriações e junções podem ter seu princípio na razão de que,
entre outras, o construtivismo de feição concretista também vendeu sua imagem de
revolução contracultural ante a poesia discursiva praticada no momento, e inseriu
em seu paideuma uma poesia oriental, nem sempre racionalista ou construtivista
como foi propugnada; o crítico imagista Ezra Pound, que adorava a (boa) poesia
mundana e subversiva medieval, François Villon..., e preferia Corbière e Jules
Laforgue a Mallarmé (embora não o desprezasse), não o colocando em seu
paideuma (POUND, 1977; PERRONE-MOYSÉS, 1998); e, do lado brasileiro, o
Concretismo (construtivista-objetivista-semiótico), aglutina à tradição de seu passado
a antropofagia pindorâmica brasileira, de raiz oswaldiana, base de uma poética da
carnavalização, da ironia prosaica. A questão, porém, pode ser mais radical, porque,
no fundo, a performance vital tem também o seu aspecto e sua raiz intersemiótica.
Ela já é, por natureza, teatral, cenográfica, e pode reunir, no seu acontecimento, o
verbivisual, a repetição onomatopaica junto ao gestual, a mímica, a música e a
325

dança (esta é, inclusive a raiz da lírica, o melopoios). A diferença fundamental,


porém, dá-se no âmbito daquela atitude e colocação ante a linguagem, a poesia e
ao mundo, ou seja, à percepção e à própria escritura que resulta numa orientação
frente ao tratamento da linguagem e em sua feição, como já foi discutido
anteriormente, sobre as posturas da objetividade e da subjetividade (tópico 2.1.1.5),
as quais também determinam um pathos sobre as duas performances. De um lado,
a vontade de razão, controle e objetividade – que mobiliza um investimento formal;
de outro lado, a dissolução, o desregramento, a visceraliade da paixão – que
mobiliza um investimento experiencial da subjetividade.
Temos aí, portanto, uma questão bastante complexa, de modo que, para
uma compreensão coerente da poesia atual dentro deste horizonte agora ampliado e
complexificado, devemos considerar que se abrem nele duas vertentes: uma de
cunho experiencial, subjetivo-vivencial, e outra de cunho experimental, objetivo-
formal. A primeira vertente, que concebemos como sendo a linha relevante e
fundamental deste horizonte, de modo geral está preocupada em viver e sentir, e
sobre esse pressuposto, pode corroer, devorar e até carnavalizar o racionalismo
percepcionante. Neste caso, poderemos falar de nuanças deste horizonte,
realizadas por uma lírica que opta patemicamente por uma textura tonal carregada,
somática, visceral, uma subjetividade vivencial de linguagem de configuração
espontânea. Por outro lado, uma poesia intelectualizada e conceitual, que busca
ressaltar seu caráter experimental, ou inventivo, reinvindicando para si uma "anti-
tradição", ao mesmo tempo em que abraça os pressupostos da "crise do verso" – o
visual-fragmentário, a poética elíptica e a desarticulação sintática, o microrritmo, o
minimalismo, a sobreposição do "som ao sentido" (linguagem de Valéry) –
dificilmente configuraria sua dominante sobre o horizonte do lirismo vitalista. Seu
foco será claramente um performatismo experimental, mas sem dificuldade para
encontrá-lo, também, na perfomance do experiencial/vital, isto é, do humanamente
vivido.
326

[Figura 09: expressão do experimentalismo visual-poético na Antologia Gengibre]

(Fonte: REGAZIO, 2017, p. 71)

A partir da reflexão anterior, percebemos que a atitude "anticultural" (que


propõe destituir/destruir uma ideologia cultural de caráter dominante, que se impõe
de várias formas, para eleger outra, ou simplesmente demarcar sua posição de
diferença), e a atitude experimental/inventiva (que propõe invenção de novas formas
e seu impacto, o teste, a reutilização de elementos ou formas antigas, ou, ainda, a
descoberta de novos suportes e seus usos), do "jogo de linguagens", embora muitas
vezes sejam colocados sob a ideia da "não tradicionalidade" de uma revolução
visceral da poesia a partir da vida, do movimento vital (postura vanguardista), não
podem, por si sós, configurar este horizonte, pois tanto uma atitude quanto outra
podem estar presentes em qualquer dos horizontes anteriores, de modo igual, mais,
ou menos intenso, e sem estarem ligadas necessariamente à ideia das vivências.
Além do mais, se novas concepções e novos suportes podem ser fornecidas pelo
movimento da vida, como as paisagens/os espaços da cidade, os muros, as
paredes, os grafites, as praças, as telas, eles nem sempre são trabalhados nesta
perspectiva (de uma lírica vitalista), mas, por vezes, na perspectiva da própria
formalidade e, enquanto novidade – isto quando não toma o velho por novo, e cai no
simulacro improdutivo deja vu –, um dos desgastes característicos das vanguardas.
Deste modo, tais questões exigem uma sensibilidade acurada e uma coerência para
o delineamento configurativo de uma poesia "impura" (quer dizer, intensamente
híbrida). Com isso, podemos dizer que há, aí também uma poética liminar, pois um
horizonte da construtividade semiótica talvez acolhesse com melhor propriedade
determinadas poéticas de base construtivista/experimentalista, de sorte que seria
327

mais coerente falarmos de uma relação interativa/integrativa/fronteiriça desses


horizontes dialogantes. A sua força arrebatadora, acolhedora (espécie de horizonte
"guarda-chuva"), seu gosto pelo novidadeiro (que tenta preencher uma ânsia pelo
novo quase sempre malograda pelo mascaramento do "já-feito"), e sua densidade
encarnada nos espaços da experiência, disponibiliza este horizonte lírico vitalista-
performático para uma abertura mais pragmática a outros horizontes, a enriquecer
seus projetos poéticos, bem como para o enriquecimento deste horizonte com outras
propostas, tais como a promoção de uma integração entre a performance textual e a
performance vital. Recolho um exemplo dessa integração na imagem abaixo, de
uma realização proposta como ato poético (performático-semiótico) por Reuben da
Rocha (utlizando o pseudônimo "Cavalodada"160) e outros parceiros da poesia
(Fábio Weintraub, Gê Viana, Josoaldo Lima Rego [na imagem], Márcio Honório de
Godoy e Pádua Fernandes), cujas fotografias foram publicadas (redimensionadas
pelo suporte escritural/impresso autoral) em Siga os sinais na brasa longa do haxixe,
vol. 6 (2016, contracapa):

[Figura 10: Projeto coletivo de performances poéticas urbanas]

(Fonte: CAVALODADA, 2016, contracapa)

160
Não podemos ignorar que tal pseudônimo, Cavalodada, utilizado por Reuben para os seis volumes
do seu libreto "alternativo" Siga os sinais na brasa longa do haxixe (2015-2016), em prosa/experiência
poética, remete de imediato à experiência dadaísta (Dada, "cavalinho"), portanto sugerindo uma
proposta de retomada da tradição vanguardista que atua entre o experimental, a ironia da arte por
outros construtos, e o haxixe da revolta vital.
328

Voltando às questões dos traços marcantes deste horizonte, certo é que


suas especificidades perpassam por uma disposição formal do tipo distensa
coloquial(ista), na espontaneidade e dissolução heretodoxa de cunho subversivo dos
formalismos e formalidades, e, ao mesmo tempo pela experiência cotidiana que
pode acirrar-se até seu retesamento; das jornadas diárias que se tornam a jornada
de um dia a cada vez – o que pode aparecer, às vezes, como uma placidez
irresponsável diante do mundo – e momentos de angústia, solidão, sofrimento
exacerbado (faixa tensa da experiência, do tipo densa, dentro da nossa
particularização), até o trauma, o desregramento, o delírio, o caos, exercendo essa
disposição lisa, não estriada, da experiência. Entretanto, ocorre no âmago deste
horizonte uma peculiaridade que não é, em geral, interposta ou colocada como uma
expectativa íntima, intrínseca, a ela: sua configuração de proximidade entre arte e
vida, poesia e experiência vivida, que parece exigir uma "verdade" da condição vital
do poeta coerente com sua poesia. Em outras palavras, uma verdade que não está
manifesta apenas como "forma", mas que vem do entrelaçamento o viver do sujeito,
como ser do sujeito, e a poesia que este produz, e, neste caso, a vida ultrapassaria
a linguagem como aquela que ainda tem algo a dizer, de onde a poesia arranca seu
verdadeiro grito.
329

4 CONCLUSÃO

A poesia brasileira recente que, no olhar de alguns críticos, sofrera certo


marasmo reordenador, autorreflexivo, nos anos 1980, momento em que um espírito
de "crise da poesia" passa a frequentar a já secular discussão da "crise do verso" −
sob a nova ótica das possibilidades e recursos proporcionados pela excrescência
formalista e pelas hipertextualidades pós-modernistas −, nas últimas décadas
passou por uma intensificação multidirecional. Destacam-se, neste sentido, uma
amplitude produtiva e editorial, novos espaços de leitura, de apresentação e
mobilização, o incremento dos suportes eletrônicos, das publicações virtuais; e, no
que diz respeito à escrita poética, uma heterogeneidade propositiva coerente com
um mundo que investe no valor da alteridade e da diversidade, digamos, na medida
do seu possível.
Nesse contexto, de uma lírica que se tornou incomensurável e
emaranhada, textual, cultural, social e historicamente, é que nesta tese foram
propostos, dentre os caminhos da sua leitura, cinco horizontes interpretativos
concebidos como fortes, senão as mais fortes perspectivas de escrita que se
apresentam atualmente nessa literatura, capazes, ao mesmo tempo, de proporcionar
uma visão do que vem, ou está, sendo feito, de flagrar expectativas, e de se
tornarem operativos para a leitura de uma poesia que, muitas vezes, sob os
pressupostos do enigma ou do hermetismo, demanda também instrumentos
diferenciados, colaborativos para sua compreensão e estudo. No sentido desta
percepção, este trabalho, embora não faça parte de um quadro de pesquisas
participantes, as quais pretendem interferir na realidade pesquisada, adota certo
caráter participativo inserido na concepção hermenêutica da aplicação, recusando
uma postura meramente constatativa, na medida em que permite mobilizar a visão
dos autores sobre seu próprio lugar e sua criação.
Os princípios que determinam os caminhos configurativos, isto é, as
"hodologias" (primeira parte da tese) para chegarmos aos "horizontes" (segunda
parte), enquanto atos configurados como pacto lírico (que se dá com a linguagem,
com a proposição de uma realidade lírica, afetiva e sensivelmente perspectivada,
com a interação e experiência receptiva da obra), partem de toda uma discussão,
primeiro, sobre as categorias de tempo e espaço evocados, convocados ou
330

projetados na escrita, e, depois, sobre as categorias da forma e da experiência que


estão no centro da formação destes horizontes.
Portanto, tempo e espaço impulsionam a constituição de paisagens e
espessuras espaçotemporais que fundamentam as posturas tanto formais, em sua
estruturação e corporeidade, quanto às posturas experienciais instaladas ou
propostas na poesia. Assim, tempo e espaço enlaçam-se textual, intratextual e
extratextualmente, ora como movimentos de retenção e protenção, subjetivos e
qualitativos, ora como cronotopias objetivadas, historicidades, ora como
"temporalidades [e espacialidades] suspensivas" constituídas no âmbito de um
lirismo que promove a exaltação da linguagem.
No que diz respeito à forma e experiência, a primeira foi colocada desde o
início como constituição e organização de relações, comportamentos, marcas e
expectativas num corpo textual-discursivo que reúne domínios e operações,
escolhas, estratégias e procedimentos estéticos, os quais se integram e dialogam
em confronto ou negociação com certas convenções e tipicidades da linguagem. Já
segunda, a experiência, veio sendo construída, por sua vez, como a travessia (“per”)
e o engajamento efetivo no âmago da vida, nas relações, interações, práticas e
sentidos compartilháveis; nas preocupações que o sujeito estabelece no
espaçotempo em que vive sua historicidade e sua existencialidade; no confronto
com o imprevisível, o desconhecido, a alteridade, o diferente, assim como a
integração nas e das vivências. Ambas, forma e experiência, são entendidas por seu
significado dimensional profundo como configuradoras do pacto lírico, isto é, do
trabalho poético em si mesmo, em sua corporeidade, constituição e movimentos
remissivos, ora impulsionados para o centro da linguagem, ora impulsionados para a
referencialidade concebida como "em potencial", aberta ao mesmo tempo ao mundo
e à vicariedade que a linguagem lírica pode proporcionar, ao colocar em jogo não
apenas dimensões formais, mas também dimensões experienciais.
No sentido de estabelecer particularidades, relevos e nuanças destas
duas dimensões configurativas, bem como no de apontar traços que balizem o
delineamento de horizontes poéticos da poesia brasileira contemporânea, foi
apresentado um quadro-síntese de direcionamentos formais e experienciais,
divididos em duas grandes faixas de abrangência orientadas para a sua direção
tensiva e para sua direção distensiva, em que recaem, nas especificidades de um e
de outro lado, elementos determinantes na estruturação dos horizontes. Teremos,
331

pois, horizontes que privilegiam a tensão, o retesamento formal ao mesmo tempo


em que apontam para uma experiência distensa, cotidiana, de propensão retentiva,
e, por outro lado, teremos horizontes que privilegiam uma forma distensa, sem níveis
preocupados de rigor construtivo, ao mesmo tempo em que trazem à paisagem do
poema experiências tensas, retesadas, dos espaços agônicos e de um pathos
traumático. Simultaneamente a esse processo, alguns horizontes perspectivam uma
compreensão sígnico-semiótica da linguagem, enquanto outros se debruçam sobre
uma realidade do mundo da vida, mediada pela palavra evocativa, nomeadora,
acolhedora. De qualquer modo, a proposta de delineamento de tais horizontes
fundamenta-se na busca de uma compreensão da poesia hoje realizada em nosso
país, em nosso tempo, nossos espaços, adotando uma postura crítico-reflexiva,
porém encarando os horizontes de modo equivalente, sem tentar sobrepor o valor
de um sobre outro.
Assim, o primeiro horizonte, denominado horizonte do adensamento
tensivo-retentivo, para o qual elejo como foco de discussão um poema de Salgado
Maranhão e, a partir desse poema, algumas particularidades do trabalho do poeta,
vai apontar para uma poesia que coloca em tensão a referencialidade, os espaços
de memória e questões co-narrativas (de cunho étnico) ante o lirismo da exaltação e
da força da linguagem pelo viés do alumbramento poético, isto é, sua orientação
para o sublime lírico. O segundo horizonte, o "horizonte-ciborgue" ou da
construtividade intersemiótica, traz à discussão uma poesia que insere no corpo
afetivo da lírica o corpo da lógica semiótica, com sua estruturação gráfico-visual,
eletrônico/digital, musical, até o somaticoverbivocoaudiovisual (que projeta suas
realizações para além do suporte-livro, impresso), assim como sua incidência sobre
o caráter conceitual, lúdico ou objetivo do signo linguístico, criando uma lírica-
frankenstein, ou conforme atualmente se concebe, um corpo de peças híbridas,
intersemiótico, um poema-ciborgue. A poesia abordada neste horizonte foi a da obra
Corpo de Festim, de Alexandre Guarnieri. O terceiro horizonte, dito da "remissão
dramática e simulacral", o qual traz como referências axiais a poesia de Ana Martins
Marques (O Livro das Semelhanças) e a de Carlito Azevedo (Livro das postagens),
considera uma poesia que, assumindo também uma concepção formal-
construtivista, e, embora por vezes assumindo um caráter paratáxico e fragmentário,
move-se dentro de escrita discursiva do texto poético. Este horizonte põe em dúvida
não apenas a relação entre a linguagem e a realidade, mas a própria realidade em si
332

como theatrum mundi. Daí que a sua remissão dá-se entre cartografias, alegorias e
espessuras intertextuais que envolvem suas realidades em redes de escrituras, de
significantes, simulações, ordens discursivas (campos tensivos), ou reiterações
simulacrais. Nele, a poesia e a tradição poética retorna como reatualização, re-
petição via sua retomada crítica, sua retextualização. Podemos, então reafirmar que
a intertextualidade e a hipertextualidade dentro deste horizonte é primordialmente
um fenômeno metarremissivo ao próprio corpo da poesia, da linguagem ou do
discurso que se revela por meio desta. O quarto horizonte, delineado como sendo da
“liricidade fáctica", que traz como referência dois poemas de Hagamenon de Jesus,
"Só o momento" e "A cidade enquanto azula o tempo", volta-se para uma poesia da
efetividade e da experiência do dia a dia prosaico, do prosseguir cotidiano
resignado, iluminado e/ou revoltado, ou seja, na referencialidade dos espaços de
vivência das realidades subjetivas e objetivas, tidos como tais e potencializados
poeticamente, com seus impactos, achaques, seu gozo eventual e suas vibrações
existenciais, numa lírica de linguagem tendente ao teor denotativo, que reúne
consciência formal, simplicidade e comunicabilidade, de tal modo que, neste caso, é
exatamente a facticidade que vem ampliar seu lirismo para os espaços e as
temporalidades empíricas, do acontecer histórico efetivo, isto é, que o complexifica
para além da mera reflexividade, da recordação, da proteção e da introspecção
meditativa. Importante notar que este quarto horizonte concebe os fenômenos
intertextuais e hipertextuais primordialmente como fonte de um memorial que
resgata tempo, espaços de vivências e afetividades, isto é, de um armazenamento
memorial e possibilidade de conversa com o passado evocado, que abre nos textos
suas vozes, mundos e frestas. Finalmente, no "horizonte do lirismo vitalista-
performático", exemplificado pela poesia do pernambucano Miró da Muribeca, temos
uma lírica ao mesmo tempo sensível e anárquica, da forma espontânea e dissoluta,
hiperagregadora, coloquial e visceral, de cunho alternativo e "marginal", que não faz
separação entre poesia e vida, arte e realidade, portanto, de teor vitalista (a vida
escancarada em sua vivência/sobrevivência diária, em geral marginal, dissonante,
anárquica, "maldita" e imprecativa) e testemunhal das mazelas, misérias e
contradições sociais, daí seu apelo, muitas vezes, a um universo grotesco, delirante,
libertino e desregrado, como modos de contraposição ao proceder social hipócrita e
ao discurso metafórico-sublime-eufemístico. Este horizonte, não raramente, integra
formas típicas de outros horizontes sob o seu olhar "guarda-chuva" – mas de força
333

subjetivista –, ou serve sua agressividade anarquista e não tradicionalista a outros,


numa propensão vanguardista, inventiva e experimental, assimilando, sob a
experiência da performance vital diversas expressões da performance textual,
semiótico-linguística, sendo ela mesma, essa performance vital, um complexo
intersemiótico tocado pelo pathos da experiência vivida, e pela memória de um
lirismo integrador.
Em relação aos direcionamentos formais e experienciais das obras
analisadas, compreendemos que, no caso de Salgado Maranhão, a situação de uma
poética que prima pela elevação da linguagem lírica à experiência do seu cultivo e
alumbramento, ao mesmo tempo em que orienta sua forma também para uma
construção prismática, tensiva, densa, uma escrita, digamos, "racional sem alarde
da razão"; e, por outro lado construindo nessa poética uma tonalidade passional
densa, carreando tanto o corpo memorial, o corpo co-narrativo, quanto um erotismo
ígneo e cintilante, coloca-o axialmente no horizonte do adensamento tensivo-
retentivo. O horizonte apontado por, e em Corpo de Festim, de Alexandre Guarnieri
foi de uma intensa intersemiose, concebendo o livro como um ciborgue arquitetural e
elevando-o à condição de partícipe de uma racionalidade construtiva, ao mesmo
tempo em que objectualiza a linguagem, através da recuperação de um
"cientificismo poético", inserindo-a no âmbito de uma forma conceitual, tensa,
retesada, e de uma experiência que desliza entre a tensão (densa) e a distensão
(focalizada). O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques, e o Livro das
postagens, de Carlito Azevedo, apesar das diferenças entre ambos, uma trazendo
uma discursividade mais linear, ou outro apresentando, principalmente em sua
segunda parte uma discursividade fortemente paratáxica, que aposta no fragmento,
nas colagens, nas citações, optam por formas tensas e densas, sem acento numa
racionalidade construtiva, investindo num vocabulário prosaico, e ao mesmo tempo
numa experiência de uma realidade dramatizada entre significantes, linguagens e
máscaras. Nos poemas de Hagamenon de Jesus, "Só o momento" e "A cidade
enquanto azula o tempo", encontramos uma forma que ora se apresenta como tensa
e densa, pela elaboração atenta, sua disposição gráfica significando espaços vazios,
etc., ora cuidada, mas buscando a simplicidade da distensão focalizada, combinadas
a uma experiência que recupera o viver humano, existencial, diário, cotidiano e
prosaico, que podem ser definidas, em seu conjunto, dentro de um horizonte da
liricidade fáctica. A poesia de Miró, por sua vez, é a expressão de uma
334

coloquialidade formal – uma forma distensa/coloquial –, de um lirismo espontâneo e


dissoluto, no sentido do que está na rua e na performance, como
coração/afetividade/emoção impulsiva, corpo e voz expressam, em vitalidade e
força, sua liricidade, em experiências singelas, doloridas, ou intensamente
delirantes: essa é a expressão de uma horizonte do lirismo vitalista-performático.
Algumas considerações devem ser feitas acerca desse conjunto dos
horizontes.
A primeira é que a categoria do horizonte, enquanto categoria
perspectival de intensificações (relevos), distensões e regiões liminares “lisas”
delineadas em torno de um ponto de vista, conforme já apresentada na introdução
desta tese, deve ser entendida como mais ampla, por exemplo, do que a noção de
"linha" ou de "vertente" poética, e abranger a estas, uma vez que dentro dos próprios
horizontes podemos ter aspectos e direcionamentos passíveis de serem entendidos
como "vertentes", o que, no decorrer da discussão, também pressupõe
determinados eixos e integrações, centro e margem, como vemos principalmente no
quarto e quinto horizontes. Deve ser levado em conta, portanto, que o termo
horizonte pressupõe uma extensão orientada, perspectivada, atingida por diferentes
realizações, ora com traços mais definidos ou com outros que colocam a obra no
limiar do horizonte percebido.
A segunda consideração a ser feita é que foram apresentados/delineados
alguns horizontes percebidos como bastante presentes na poesia atual, e até
remetendo a certa presença histórica, na lírica, com base em alguns traços
relevantes. Isto, porém, diz respeito a uma perspectivação dos textos em análise,
não se colocando como ponto de vista absoluto. Outras concepções podem
encontrar outros horizontes, a partir de outros traços, perspectivas e até
expectativas (aqui não foram levados em conta, necessariamente, os horizontes de
expectativa da recepção dos textos e obras, por exemplo). Do ponto de vista da
criação e da produção poética e de suas apropriações formais e experienciais,
devemos, contudo, observar que algumas linhas e procedimentos muitas vezes
considerados como um novo horizonte da poesia não necessariamente o constitui.
Um exemplo é a questão do "poema narrativo" ou da "poesia narrativa", que é
simplesmente a opção de utilizar-se de um determinado modo textual, uma tipologia,
como a opção de dar ao poema um tom reflexivo-argumentativo, ou a descrição de
uma paisagem, mas que ambos podem simplesmente compartilhar o mesmo
335

horizonte formal e experiencial, conforme aqui apresentados. Outra situação


bastante citada para a poesia contemporânea é a associação entre poesia e
canção/música (e vice-versa), que levanta diversos embates, mas que, na
perspectiva dos horizontes, um poema-canção ou uma canção-poema é uma
questão de recurso, procedimento ou intenção que se utilizam de faixas formais e
experienciais de um ou outro horizonte. A questão da poesia experimental, por sua
vez, ou a expressão do que comumente é denominada "poesia de invenção", apesar
de sua expressão formal acentuada, enquanto atitude é também encontrada em
todos os horizontes. É necessário compreender, considerando-se um contexto mais
amplo, que tais termos podem estar funcionando, inclusive, dentro de uma
pragmática mercadológica contemporânea, mas não numa diferença literária de fato,
entre, por exemplo, uma perspectiva semiológica e uma perspectiva vitalista, sendo
que ambos podem ser colocados sobre a mesma bandeira de uma poesia
"inventiva".
A partir daí, podemos tecer nossa terceira consideração: o fato de que os
horizontes apresentados não são exclusivistas nem solitários, apesar de que alguns
sejam mais refratários que outros, mas que se movem dentro da abertura do que a
poesia, as possibilidades e as imprevisibilidades permitem. Podemos, assim,
entender seus entrelaçamentos, interpenetrações e cooptações de um horizonte por
outro, quando realizada a submissão de um horizonte a uma configuração que o
subverte e impõe sobre ele outra dominante. Podemos questionar, por exemplo, os
limiares da presença construtivista/concretista dentro do horizonte vitalista, isto é, se
se tornam casos de inter-relação, apropriação, ou aporias entre horizontes, o que
exige um trabalho acurado e uma abertura teórica e perceptiva, por parte da
interpretação. Desta maneira, se o enriquecimento de um horizonte pode ocorrer em
sua própria reflexão e na extrapolação dos seus limites, no sentido da projeção e da
expectativa que concebe a experiência do já-feito como superável, pode,
igualmente, ocorrer em seu direcionamento na relação com outros, tentando buscar
nestes o que eles tiverem de enriquecedor ou de novas perspectivas a oferecer.
Ao pensarmos nos rumos dessa poesia contemporânea, brasileira, em
correlação com seus horizontes, algumas conclusões se nos impõem. Dificilmente
podemos deixar de admitir que o pêndulo de seu enriquecimento tem sido o pêndulo
experiencial, a incomensurável riqueza que as circunstâncias contemporâneas, a
cultura, os modos de vida, os novos espaços de experiência e dimensões da
336

realidade que essa contemporaneidade nos traz, isto é, que tal enriquecimento é
carreado por esta aguda e incontornável experiência, mas, da mesma forma que, no
âmbito formal, os horizontes têm se apresentado dentro de formas já historicamente
solidificadas, ainda que comumente haja interpolações destas formas. Não à toa,
agora e cada vez mais, faz-se a convocação, tanto do lado da crítica quando do lado
dos poetas, à lírica, para que se volte para os quadros da experiência vivida, de
reaprender a lidar com referencialidade, como forma de recuperação de sua
vitalidade, uma vez que as práticas formalistas que o pós-modernismo prometia
exaurem-se nelas mesmas, e o mundo digital e seus suportes tornariam brincadeira
de criança o que a poesia teria a oferecer, caso olhasse apenas este caminho.
Deste modo, nossa atual poesia pretende atingir dois alvos: ser a poesia de um
tempo presentista, tal como foi discutido no trabalho, oferecendo a ele justamente o
que ele pede, como seu aliado pragmático; e renovar seu próprio corpo, sua voz,
ante uma realidade em polvorosa, com suas novas faces, sua reivindicações sociais,
políticas de gênero, de aceitação das diferenças, de graus exponenciais de
violência, com o câncer da corrupção em todos os níveis, do massacre diuturno dos
mais pobres do país e do mundo, os novos fluxos migratórios mundiais, diásporas
de refugiados, e, mais recentemente, com o retorno assustador do espectro das
bombas mundiais. A poesia tenta, e precisa (re)encontrar aí sua voz, para ter algo a
dizer fora do umbigo, mesmo atuando sob um pacto cuja aliança não é exatamente
com a história.
Há também o fato de que essa poesia, nos novos contextos, estende seu
olhar para o mundo numa renovação da Weltliteratur – não necessariamente num
sentido do universal, nem da base humanista que esse termo carrega, mas no
sentido da literatura em circulação mundial e que se torna mundializada de um modo
mais prático e efetivo. Não à toa, uma das referências bibliográficas da qual foi
colhido um depoimento de Salgado Maranhão, e que respaldam este trabalho, tem
justamente, por título Poesia na era da internacionalização dos saberes: circulação,
tradução, ensino e crítica no contexto contemporâneo. É uma publicação que retrata
o que a poesia (com a literatura de um modo geral) já vem colocando em prática em
níveis intensos. Compreendemos, então, que o local aspira, mais do que nunca ao
mundo, e os meios digitais, a web, com seus diversos instrumentos e redes
proporcionou meios para que na mesma velocidade e oportunidade que o mundo
chegue ao local, o que é local chegue ao mundo, embora que as relações e a
337

recepção possam não ocorrer da mesma maneira. Além disto, é inegável que tem
ocorrido uma frequente rede de intercâmbios e encontros entre escritores num nível
mundial, e uma frequência de línguas estrangeiras (inglês, alemão, francês,
espanhol), obras de poetas brasileiros, que as utilizam em geral como recurso
semântico desse trânsito mundial, como traço de uma experiência simulacral da
linguagem (horizonte da remissão dramática e simulacral) e/ou dos índices de
prestígio que daí possam advir. No entanto, trata-se de uma poesia/literatura que
não constitui horizontes estranhos, mas pelo contrário, podem ser compreendidos
dentro daqueles aqui propostos. Por outro lado, as leituras poéticas realizadas a
propósito desta tese e da formulação desses horizontes têm mostrado que esse
olhar "Weltliteratur" é um olhar que se dirige ainda fortemente para a literatura
européia, como literatura mundial, e, agora mais frequentemente para a literatura
norte-americana – no rastro de herança da Language Poetry e de Gertrude Stein –,
com alguns intercâmbios afetivos com alguns países da América Latina (mais
comumente, com a Argentina), para quem, no geral, na sua profundidade e no
sentido de uma "descolonização", o Brasil ainda vira as costas. Um fato promissor a
ser admitido, neste cenário, é trabalhado por Luciana de Leoni, em Poesia e
escolhas afetivas (2014), pesquisa sobre a atual poesia do Brasil e da Argentina,
que apresenta como fenômeno de revitalização da poesia contemporânea, pós-
1990, a formação de “agrupamentos afetivos” baseados em “escolhas afetivas”,
mobilizados em torno de projetos de publicação, conforme um critério que “tanto
surge na experiência do convívio, quanto opera na formação de grupos, na
organização de coletivos de produção e nos mecanismos de consagração e
visibilidade, através das revistas, editoras especializadas, oficinas, encontros”
(LEONI, 2014, p. 27). De qualquer modo, são fatos que alicerçam as novas
possibilidades de interação, modos de produção poética e meios de publicação de
uma poesia que fundamenta os horizontes propostos.
Em relação às suas perspectivas de contribuição, este trabalho espera
ser válido para o aprofundamento da compreensão não apenas da situação dessa
poesia no contexto contemporâneo, e das próprias circunstâncias do contemporâneo
em si, em que nos constituímos como seres de relações, espacialidades,
temporalidades e linguagem(ns), mas também para compreender o ser da poesia
hoje, na discussão dinâmica de seu ato criativo e criador, das faces que apresenta
às expectativas de leitura e, por que não dizer, de seu trânsito nos mais diversos
338

setores. Tudo isso tem a ver com essa força dos horizontes propostos e discutidos e
com as concepções mais profundas que os lastreiam. No sentido acadêmico, dos
estudos poéticos e literários, almeja também ampliar a visão das próprias categorias
e possibilidades de abordagem, redimensionando as costumeiras perspectivas de
análise, dando-lhes – sem abandonar critérios – flexibilidade e abertura para que
explorem nuances, espessuras, "rugas", instâncias liminares, e suscitem, deste
modo, novos caminhos para a compreensão de um objeto como a poesiadentro de
um leque de possibilidades. Acrescentemos nessa perspectiva o fato de que os
enfoques dos horizontes em si, possibilitam trazer a eles suas prerrogativas e
princípios formativos próprias de sua visão e de sua evocação teórica/paradigmática,
ampliando o horizonte maior de compreensão, bem como, por outro lado, a
possibilidade de abertura daquele ponto de vista, tratado na formulação de um
quadro-síntese da forma e da experiência, que seja coerente e consistentemente
operacional, acerca dos horizontes históricos da experiência e da expectativa, no
sentido de que a condição da experiência já não se torne exclusiva para
considerarmos os processos criativos que se nos apresentam. Ainda no sentido das
expectativas de contribuição, este trabalho apresenta à comunidade leitora e à
recepção da poesia brasileira deste momento um rol de caminhos, poéticas, autores
que perfazem uma riqueza insuspeita e muitas vezes desconhecida nos mais
diversos ambientes em que nossa poesia mais recente deve estar presente, ser lida,
apresentada, "posta em crise". Por fim, conforme foi proposto desde o seu início,
este trabalho espera constituir um instrumental operativo sobre noções fundamentais
de aproximação e interpretação dos corpos, gestos e vozes das poéticas
contemporâneas, dentro das possibilidades de sentido que o enigmático e o
imprevisível nos permitirem alcançar.
É sua ocorrência no corpo da linguagem e sua postulação de um mundo
do texto ante um mundo vivido ou vivenciável que insere essa poesia atual nas
dimensões espaciotemporais, formas e experiências que elaboram horizontes diante
dos quais podemos nos postar como pessoas reais, efetivas e afetivas. Comemos,
expelimos, sofremos os revezes do país em que habitamos e do tempo inexorável
do qual não podemos fugir, constituímos ou não família e trabalho, sofremos
injustiça e solidão, mas onde podemos construir nossas próprias temporalidades,
nossa outra localização: ampla, crítica, insuspeita, insatisfeita. É deste mundo e
deste país que a poesia se torna contemporânea, mesmo quando o contemporâneo
339

troca passos ou se desgarra para além ou aquém de nós. Com isto, fica aqui
também o registro de que esta tese se estabelece, desde o seu início, sobre a
admissão de sua abertura e incompletude, na consciência de que, se o fenômeno
poético é imprevisível e heteróclito, o contemporâneo é o instante que se esvai,
levando consigo as certezas. Nessa consciência, é que esta tese propõe que essa
larga lírica imprevisível, mas constituída, aqui tratada, constrói suas faces e seu
sentido sobre o potencial da contemplação e da construção mútua, porque ela nos
compreende, a nós, seus leitores, no contemporâneo fugidio que impulsiona a
deslocar-se para outro espaço − onde já esteve, ou já está.
340

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ed. revista e ampliada. São Paulo:


Martins Fontes, 2007.

ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ______. Notas de


Literatura I. Trad./Apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34, 2003. (Coleção Espírito Crítico).

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius


N. Honesko. Chapecó, SC: Editora Argos, 2009, p. 59.

AGOSTINHO, Santo. Confissões (Livro XI - O homem e o tempo). 4ed. São Paulo:


Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores). p. 207-231.

ALVES, Pedro. Tempo objectivo e experiência do tempo. A fenomenologia


husserliana do tempo perante a Relatividade Restrita de A. Einstein. In:
Investigaciones fenomenológicas: Anuario de la Sociedad Española de
Fenomenología. n. 6, año 2008. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/240728. Acesso em: 20 outubro 2015.

ANDRADE, F. C. de. A transparência impossível: lírica e hermetismo na poesia


brasileira atual. 2008. 331 p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de
Pernambuco. CAC. Teoria da Literatura. Recife: 2008. Encadernação.

ANDRADE, Fábio. A transparência do tempo. Recife: Fundação de Cultura Cidade


do Recife, 2009.

ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. Disponível em:


http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acesso em: 08 dezembro 2016.

ANTUNES, Arnaldo. 2 ou +corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva,


1998.

ARAÚJO, Ricardo. Poesia e pós-modernidade. In: GUINSBURG, J.; BARBOSA, Ana


Mae (Orgs.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Stylus,12). p.295-
314.

ARISTÓTELES. Física (Livro IV). p. 112-128. [pdf] Disponível em:


http://www.librodot.com/. Acesso em: 28 julho 2014.

ARISTÓTELES. Retórica. 2ed. Trad. e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo


Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. In: MESQUITA, António Pedro.
Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2005.

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória


cultural. Trad. Paulo Soethe. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
341

AZEVEDO, Carlito. Collapsus liguae. Rio de Janeiro: Editora LYNX, 1991. (Coleção
SERIAL)

AZEVEDO, Carlito. Livro das postagens. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.

AZEVEDO, Carlito. Poemas que são ensaios sobre a vida danificada [breve ensaio].
In: SUPLEMENTO PERNAMBUCO. n. 131, jan/2017. Recife: Cepe Editora, 2017.

BACHELARD. Gaston. 1993. A poética do espaço. Trad. A. de Pádua Danesi. São


Paulo: Martins Fontes, 1993. (Coleção Trópicos)

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance).


6ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec Editora, 2010.

BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo: ensaios de crítica. São Paulo:


Secretaria de Estado da Cultura; Iluminuras, 1990.

BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva,


1986. (Coleção Debates/Crítica 196)

BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. São Paulo: Editora Record, 2000.

BARTHES, R. O grau zero da escritura. Trad. Anne Arnichand e Álvaro Lorencini.


São Paulo: Cultrix, 1971.

BARTHES, R. S/Z. Trad. Nicolás Roxa. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2004.

BAUDELAIRE. Flores do Mal (A musa venal). Disponível em:


http://poesie.webnet.fr/lesgrandsclassiques/poemes/charles_baudelaire/la_muse_ve
nale.html. Acesso em: 12 setembro 2016.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulations. Paris: Éditions Galilée, 1981.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire - um lírico no auge do capitalismo. Trad.


José M. Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras
escolhidas, v. 3)

Benjamin. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da


cultura. 7 ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Pref. Jeanne Marie Gagnebin. São
Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1).

BENTO, Berenice. Queer o quê? Ativismo e estudos transviados. Revista Cult -


Revista Brasileira de Cultura. São Paulo: Editora Bregantini, n. 06, ano 19, p. 20-24,
jan. 2016. ISBN 85-89882-17-9. (Edição especial).

BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Trad. Maurício Santana Dias Org.


Maria B. Amoroso. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
342

BERGSON, H. Memória e vida. Textos escolhidos por Gilles Deleuze. Trad. Claudia
Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da


modernidade. Trad. Carlos F. Moisés; Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Cia. das
Letras, 2000, p. 31.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:


Rocco, 2011.

Blanchot. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes,
2005. (Tópicos)

BOLLNOW, Otto. O homem e o espaço. Trad. Aloísio Leoni Schimid. Curitiba:


Editora UFPR, 2008 (Pesquisa; n. 125)

BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.
252.

Bosi. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas
cidades; Ed. 34, 2003.

Bosi. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.

BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do espaço literário. São Paulo: Perspectiva; Belo
Horizonte: FAPEMIG, 2013. (Estudos; 314)

BRAUDEL, Fernand. Histoire et Sciences sociales : La longue durée. In: Annales.


Économies, Sociétés, Civilisations. 13e année, N. 4, 1958. pp. 725-753.

BRITO, F. H. G. [MESITO, Bioque]. A anticópia dos placebos existenciais. São


Luís: EdFUNC, 2008.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Trad. José Pedro Antunes. São Paulo
Cosac Naify, 2008, p. 25.

BUSATO, Susanna. Corpos em cena. São Paulo: Patuá, 2013.

CAIFAIA, Janice. Estúdio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

CAMPOS, Augusto. Pontos-periferia-poesia concreta. In: In CAMPOS, A.;


PIGNATARI, D.; CAMPOS, H. Teoria da poesia concreta: texto críticos e
manifestos 1950-1960. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. p. 31-42.

CAMPOS, Haroldo. Evolução de formas: poesia concreta. In: CAMPOS, A.;


PIGNATARI, D.; CAMPOS, H. Teoria da poesia concreta: texto críticos e
manifestos 1950-1960. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. p. 77-87.

CANCLINI, Néstor Garcia. Imaginarios urbanos. 3ed. Buenos Aires: Euderba,


2007. (Pensamento Contemporáneo).
343

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 2ed. São Paulo: Companhia Editora


Nacional, 1967.

CARPEGGIANI, Schneider. Anotações, memórias e planos da resistência (Entrevista


com Luiz da Costa Lima). In: SUPLEMENTO PERNAMBUCO, n. 131, jan/2017.
Recife: Cepe Editora, 2017.

CARVALHO, Hagamenon de Jesus. 21 ou A cidade enquanto azula o tempo. São


Luís: Edição do Autor. (No prelo).

CARVALHO, Hagamenon de Jesus. The problem &/ou os poemas da transição.


São Luís: Edição do Autor, 2006.

CASTRO, Susana de. Queerificando Antígona. Revista Cult - Revista Brasileira de


Cultura. São Paulo: Editora Bregantini, n. 06, ano 19, p. 20-24, jan. 2016. ISBN 85-
89882-17-9. (Edição especial).

CATRÓPA, A.; NUERNBERGER, R.; MARTIN, C.F. B. Tentativa de balanço:


entrevista com Iuna Maria Simon. Revista Novos Estudos, n. 94. São Paulo:
CEBRAP, 2012. (nº 94 - ISSN 0101-3300)

CAVALODADA (Reuben da Rocha). Siga os sinais na brasa longa do haxixe


(2/6). São Luís: Pitomba, 2016.

CAVALODADA (Reuben da Rocha). Siga os sinais na brasa longa do haxixe


(6/6). São Luís: Pitomba, 2016.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes do fazer. 9 ed. Trad.


Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 183.

CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo.


Trad. Adail U. Sobral; Maria S. Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 29-
56.

COSTA, Carlos Zibel. Além das formas: introdução ao pensamento contemporâneo


no design, nas artes e na arquitetura. São Paulo: Annablume, 2010.

CUTI. Negroesia: antologia poética. 2 ed. Belo Horizonte: Mazza edições, 2010.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. Luiz B.L. Orlandi. São Paulo, Editora 34,
2011. (Coleção Trans)

Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. 2ed. Trad. Luiz Orlandi; Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Graal, 2006.

Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva, 1974. (Estudos, 35).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Trad. Bento Prado Jr. e
Alberto A. Munoz. São Paulo: Editora 34, 2010. (Coleção Trans).
344

D'ÉVREUX, Yves. Continuação da história das coisas mais memoráveis


acontecidas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614. Trad. Dr. César Augusto
Marques. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007 (Edições do Senado
Federal; volume 94)

DILTHEY, Wilhelm. Introducción a las ciencias del espíritu: en la que se trata de


fundamentar el estudio de la sociedad y de la historia. Trad. Eugenio Imaz. México –
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1949.

EAGLETON, Terry. Ideia de Cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São Paulo:
Editora UNESP, 2005.

ELIOT, T. S. A essência da poesia: estudos e ensaios. Trad. Maria Luiza Nogueira.


São Paulo: Editora Artenova, 1972.

FERNANDES, Ronaldo Costa. A máquina das mãos. Rio de Janeiro: 7Letras,


2009.

FERRAZ, Eucanaã. Escuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

FERRAZ, Paulo (Org.). Roteiro da Poesia Brasileira: anos 90 [Prefácio]. São


Paulo: Global, 2011. (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira; Direção Edla Van
Steen).

FERREIRA, João Sette Whitaker. O mito da cidade global: o papel da ideologia na


produção do espaço urbano. Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora Unesp;
Salvador, BA: Anpur, 2007.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Cultura/literatura negra, cultura/literatura afro-


brasileira: impactos, paradoxos, contradições. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida
(Org.). Um tigre na floresta de signos: estudo sobre poesia e demandas sociais no
Brasil. Belo horizonte: Mazza Edições, 2010. (coleção Setefalas). p. 15-40.

FRANCO, Xisela. Anima Urbis (Documentário experimental). Disponível em:


http://www.xiselafranco.com/portfolio/items/anima-urbis. Acesso em: 15 outubro
2016

FRIEDRICH. Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX à


metade do século XX). 2 ed. Trad. Marise M.Curioni; Dora F. da Silva. São Paulo:
1991.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma


hermenêutica filosófica. 11 ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011.

GENETTE. Gérard. Introduction à l'architexte. Paris: Editions du Seuil, 1979.


(Collection Poétique)

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São


Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 60.
345

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce


Albergaria Rocha. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2005. (Coleção Cultura, v. 1)

GOMES, Igor. Carlito Azevedo: Todo poeta é de oposição. SUPLEMENTO


PERNAMBUCO – Entrevistas. Disponível em:
http://www.suplementopernambuco.com.br/entrevistas/1736-todo-poeta-%C3%A9-
de-oposi%C3%A7%C3%A3o-,-diz-carlito-azevedo.html. Acesso em 02 dezembro
2016.

GUARNIERI, Alexandre. Corpo de Festim. Guaratinguetá, SP: Editora Penalux,


2016. (Poesia).

GUINSBURG, J.; FERNANDES, Nanci. No rastro do pós-modernismo. In:


GUINSBURG, J.; BARBOSA, Ana Mae. O Pós-Modernismo. São Paulo:
Perspectiva, 2005. (Stylus; 12).

GULLAR, Ferreira. Indagações de hoje. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1956-1987). 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1991.

GUMBRECH, Hans. O tempo como forma da experiência: Valdei Lopes Araújo e o


futuro de uma tradição alemã de pensar a história (Prefácio).In: ARAÚJO, V. L. A
experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira. São
Paulo: Aderaldo & Rothschild, 200. (Estudos históricos).

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Trad. Tomaz


Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HAMBURGER, Kate. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1975.


(Teoria Literária).

HARAWAY, Donna J. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista


no final do século XX. In: ______; SILVA, Tomaz Tadeu da; KUNZRU, Hari (Orgs.).
Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2 ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016. p. 34-118.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do


tempo. Trad. Andrea Sousa de Menezes et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015. (Coleção História e Historiografia).

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4ed. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

HERÁCLITO. Fragmentos. Disponível em:


http://pt.scribd.com/doc/12892206/fragmentos-de-heraclito. Acesso: 21 janeiro 2015.

HOLANDA. Lourival. Em torno da Poesia. In: Eutomia – Revista de Literatura e


Linguística. v. 01, n. 09, jul/2012. Recife: Repositórios UFPE, 2012. (ISSN 1982 -
346

6850) p. 155. Disponível em:


http://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/881. Acesso: 12 junho 2013.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje: antologia. 6 ed. Rio de


Janeiro: Aeroplano Editora, 2007.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Esses poetas – Uma antologia dos anos
90. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1998.

HUA, Anh. Diaspora and Cultural Memory. In: AGNEW, Vijay (Org.). Diaspora,
Memory, and Identity. Toronto: University of Toronto Press, 2005. 191-208.

HUSSERL, E. Lecciones de fenomenología de la conciencia interna del tiempo.


Trad. Agustín Serrano de Haro. Madrid: Editorial Trotta, 2002. (Colección Estructuras
y Procesos/Serie Filosofía).

ISER. Wolfgang. O fictício e o imaginário. In: ROCHA, J. C. de Castro. Teoria da


Ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. Trad. Bluma Waddington Vilar, João
César de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2 ed.


Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1997.

JENNY, Laurent. A estratégia da forma. In: POÉTIQUE: Revista de teoria e análise


literárias. n. 27: Intertextualidades. Coimbra: Livraria Almeida, 1979.

KANT, I. Doutrina transcendental dos elementos. In: KANT (I). Crítica da razão
pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).

KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação


Liberdade, 2011.

KERÉNYI, Carl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. Trad. Ordep


Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2002.

KIERKEGAARD, Søren A. El concepto de la angustia: uma sencilla investigación


psicológica orientada hacia el problema dogmático del pecado original. 2ed. Introd.
Por José Luis L. Aranguren.Madri. Espasa-Calpe, S.A, 1982.

KIERKEGAARD, Søren A. Temor e tremor. Trad. Maria José Marinho. São Paulo:
Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado:contribuição à semântica dos tempos


históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro:
Contraponto;Ed. PUC-Rio, 2006.

KRISTEVA. Julia. La révolution du langage poétique – L’avant-garde à la fin du


XIXe. siècle: L’autréamont et Mallarmé. Paris: Éditions du Seuil, 1974

KRYSINSKI, Wladimir. Dialéticas da transgressão: o novo e o moderno na


literatura do século XX. Trad. Inácio A. Neis; Michel Peterson; Ricardo I.Kanko.
SãoPaulo: Perspectiva, 2007. (Estudos, 242; Dirigida por J.Guinsburg).
347

KUNZRU, H. Genealogia do ciborg. In: HARAWAY, D. J.; SILVA, Tomaz Tadeu da;
KUNZRU, Hari (Orgs.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2
ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. p. 119-126.

LAMAITRE, Henri. La poésie depuis Baudelaire. Paris: Armand Colin, 1982.


(Collection U).

LANGER, Susanne. Sentimento e forma: uma teoria da arte desenvolvida a partir


de Filosofia em nova chave. Trad. Ana M. Goldberger Coelho, J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2006. (Coleção estudos; 44)

LEÃO, Ricardo (Ricardo André Ferreira Martins). No meio da tarde lenta. Jundiaí,
SP: Paco Editorial, 2011.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. 2 ed. Org.


Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução: Jovita M. G. Noronha e Maria Inês
Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

LEONI, Luciana di. Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia


contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

LIMA, Luís Costa. A ficção e o poema: Antonio Machado, W. H. Auden, Paul Celan,
Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

LIMA, Luís Costa. O fingidor e o censor.In:______.Trilogia do controle:O controle


do imaginário; Sociedade e discurso ficcional; O fingidor e o censor. Rio
deJaneiro:Topbooks,2007.

LIMA, Luís Costa. Pensando nos trópicos (dispersa demanda II). Rio de Janeiro:
Rocco, 1991, p. 37.

LIMA, Ricardo Vieira (Org.). Roteiro da Poesia Brasileira: anos 80 [Prefácio].


Direção Edla Van Steen. São Paulo: Global, 2010 (Coleção Roteiro da Poesia
Brasileira)

LIMA, Samarone. O aquário desenterrado. Rio de Janeiro: Confraria do Vento,


2015. (Os contemporâneos).

LIPOVETSKY, Gilles. Tempo contratempo, ou a sociedade hipermoderna. In: LIMA,


Luís Costa. Os tempos hipermodernos. Trad. Mário Vlilela. São Paulo: Editora
Barcarolla, 2004.

LOBO, Luíza. Crítica sem juízo. 2 ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

LOREAU, Max. De la Création: Peinture, poésie, philosofie. Lecture d'Éric Clémens.


Belgique, 1998.

LYRA, Pedro. Sincretismo: a poesia da Geração 60 – introdução e antologia. Rio


de Janeiro: Topbooks, 1995.

MACHADO, Álvaro Manuel; PEGEAUX, Daniel-Henri. Da literatura comparada à


teoria da literatura. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2001.
348

MAIA, Lila. As maçãs de antes. 2ed. Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel, 2013.

MALLARMÉ. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard - Préface. Disponível em:


https://fr.wikisource.org/wiki/Un_coup_de_d%C3%A9s_jamais_n%E2%80%99abolira
_le_hasard. Acesso: 19 setembro 2016.

MARANHÃO, Salgado. A cor da palavra. Rio de Janeiro: Imago; Fundação da


Biblioteca Nacional, 2009.

MARANHÃO, Salgado. Minhas palavras e suas laterais. In: FERNANDES, M.L.O.;


ANDRADE, P.; PERRONE, C. A. Poesia na era da internacionalização dos
saberes: circulação, tradução, ensino e crítica no contexto contemporâneo. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2016. (Série Estudos Literários, 17). p. 35-44.

MARANHÃO, Salgado. O grito da América negra (apresentação/contracapa). In:


FERREIRA, Elio Pinto. América Negra & outros poemas afro-brasileiros. São
Paulo: Quilombhoje, 2014.

MARANHÃO, Salgado. Ópera de nãos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.

MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.

MATTOSO, Glauco. Poética na política: cem sonetos panfletários. São Paulo:


Geração Editorial, 2004.

MAULPOIX, Jean-Michel. Du lyrisme. José Corti. Paris, 2000.

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo e a crítica pós-moderna: por uma pedagogia da


resistência e da transformação. In: Multiculturalismo Crítico. São Paulo, 1997. p.
54-104.

MELLO, Simone Homem de. Extravio Marinho. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2010.

MELO NETO, João Cabral. Agrestes. In: ______ A educação pela pedra e depois.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

MELO NETO, João Cabral. Crime na Calle Relator. In: ______ A educação pela
pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

MERLEAU-PONTY. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as


vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. Trad. Paulo Neves; Maria Ermantina G. G.
Pereira. São Paulo: Casac & Naify, 2004.

MERLEAU-PONTY. O visível e o invisível. Trad. José Artur Gianotti e Armando


Mora d'Oliveira São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates, 40).

MIGNOLO, Walter D. A razão pós-ocidental: a crise do ocidentalismo e a


emergência do pensamento liminar. In: ______. Histórias locais/projetos globais:
colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. Solange R. de
Oliveira Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
349

MIGUELOTE, Carla. A poética de Luís Miguel Nava: "Vem sempre dar à pele o que
a memória carregou". In: PEDROSA, Célia; ALVES, Ida. Subjetividades em devir:
estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p. 33-
40.

MIRÓ (João Flávio Cordeiro da Silva). O penúltimo olhar sobre as coisas. 3 ed.
Recife: Mariposa Cartonera, 2016.

MIRÓ. Cotidiano [declamação/performance]. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=MTrMpBqWNfU. Acesso: 20 março 2017.

MORICONE, Ítalo. Quatro (2+2): Notas sobre o sublime e a dessublimação. In:


Revista brasileira de Literatura Comparada, n. 04 (1998). Florianópolis, 1998.

MORICONE. Ítalo (Org.). Destino: poesia - antologia. 2 ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2016.

MOURA, George. Ferreira Gullar: entre o espanto e o poema. Rio de Janeiro:


Relume Dumará; Prefeitura do Rio, 2001 (Perfis do Rio, v. 33).

NIETZSCHE, F. La gaya ciência. [pdf] Disponível em: http://www.librodot.com.


Acesso: 02 julho 2014.

NUERNBERGER, Renan. Poesia em desenvolvimento. In: RUFINONI, S. R.;


REDONDO, T. (Orgs.) Caminhos da lírica brasileira contemporânea. São Paulo:
Nankin, 2013. p. 109-134.

NUNES, Benedito. Confrontos: Martin Heidegger, Gaston Bachelard e Paul Ricoeur.


In: CAMPOS, Maia José. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999. p. 139-149.

NUNES, Benedito. Crise, mediania e transitividade (uma poética do comum). In:


PEDROSA, Célia; ALVES, Ida (Orgs.). Subjetividades em devir: estudos de poesia
moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

NUNES, Benedito. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo:Perspectiva, 1969.


(Coleção Debates/Crítica)

ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quixote (1914), p. 322. In: . ______.
Obras completas. Tomo 1 (1902-1914). 7 ed. Madrid (España): Revista de
Occidente, 1966. p. 309-400.

ORTIZ-OSÉS, Andrés. Hermenêutica, sentido e simbolismo. In: ARAÚJO, Alberto F.;


BAPTISTA, Fernando P. (Coord.) Variações sobre o imaginário: domínios,
teorizações, práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. (Pensamento e
Filosofia).

PEDROSA, Célia. Considerações Anacrônicas: lirismo, subjetividade, resistência. In:


CAMARGO, M. L. de Barros; Pedrosa, Célia (Orgs.). Poesia e contemporaneidade:
leituras do presente. Chapecó: Argos, 2001.
350

PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas (uma leitura de João Cabral de Melo Neto).
São Paulo: Perspectiva, 1983. (Col. Debates; dirigida por J. Guinsburg, v. 181.).

PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2007.
(Coleção estudos; 160/ dirigida por J.Guinsburg).

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Negociação e conflito na construção das poéticas


brasileiras contemporâneas. In: ______ (Org.). Um tigre na floresta de signos:
estudo sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo horizonte: Mazza Edições,
2010. (coleção Setefalas). p. 15-40.

PERNIOLA, Mário. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. Trad. Maria do


Rosário Toschi. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

PERRONE, Charles A. Da titulação à ação dos títulos: o novo livro de Salgado


Maranhão (Prefácio). In: MARANHÃO, Salgado. Ópera de nãos. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2015.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de


escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PIGNATARI, Décio. Poesia concreta: pequena marcação histórico-formal. In:


CAMPOS, A.; PIGNATARI, D.; CAMPOS, H. Teoria da poesia concreta: texto
críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. p. 95-104.

POUND, Ezra. ABC da literatura. 3 ed. Trad. Augusto de Campos e José Paulo
Paes. São Paulo: Cultrix, 1976.

PUCHEU, Alberto. apoesia contemporânea: efeitos do contemporâneo. Rio de


Janeiro: Azougue Editorial, 2014 - contracapa.

RAMA, Ángel. A cidade das letras. Trad. Emir Sader. São Paulo, Boitempo, 2015,
p. 47.

RAMOS, Sennor (Org.) Miró até agora. 2ed. Recife: Cepe, 2016.

REGAZIO. Felipe. Gengibre: uma antologia.


https://antologiagengibre.files.wordpress.com/2017/02/gengibre-dcphm4.pdf.
Acesso: 05 maio 2017.

RÊGO. Josoaldo. Carcaça. São Paulo: 7Letras, 2016.

REZENDE, Renato. A poesia contemporânea e sua crítica. In: VIOLA, Alan Flávio.
Crítica literária contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p.
123-142.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. 3ed. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo:
Edições Loyola, 2015. (Leituras Filosóficas).

RICOEUR, Paul. Del texto a la acción. Ensayos de hermenéutica II. 2 ed.


Traducción de Pablo Corona. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 2002.
351

RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologia. Trad. Apres. Hílton Japiassu.


Petrópolis-RJ: Vozes, 2008.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 1: A intriga e a narrativa histórica. Trad. Cláudia


Berliner. Rev. Márcia V. Martinez de Aguiar. São Paulo: Editora WMF; Martins
Fontes, 2010a.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3: O tempo narrado. Trad. Cláudia Berliner.


Rev. Márcia V. Martinez de Aguiar. São Paulo: Editora WMF; Martins Fontes, 2010b.

RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1987.

RODRIGUEZ, Antonio. Le pacte lyrique: Configuration discursive et interaction


affective. Sprimont (Belgique), 2003. (Philosophie et langage).

ROQUETTE-PINTO. Sítio [poema]. Disponível em:


http://www.claudiaroquettepinto.com.br/livros-margem.html#sitio. Acesso: 14 março
2017.

ROUSSET, Jean. Forme et signification: Essais sur lês structures littéraires de


Corneille à Claudel. Paris: Librairie José Cortí, 1973.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à


cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado, fundamentos teóricos e


metodológicos da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988.

SARLO, Beatriz. Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura. Trad.
Luís Carlos Cabral. Rio deJaneiro: José Olympio Editora, 2005.

SARTRE. J.-P. Qu'est-ce que écrire? In: ______. Qu'est-ce que la littérature?
Paris: Gallimard, 1985. [Folio essais]. p. 13-44.

SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. 3 ed. Trad. Fábio Ribeiro. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2014. (Série Pensamento Moderno).

SCRAMIM, Susana. Utópica e funcional? Sobre a crítica de poesia e seus impasses.


In: ______ (Org.). O contemporâneo na crítica literária. São Paulo: Iluminuras,
2012. p. 115-137.

SENNET, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental.

SHAEFFER, Jean-Marie. Qu'est-ce qu'un genre littéraire? Paris: Éditions du Seuil,


1989.

SIMON, I. M.; DANTAS, Vinícius. Negativo e ornamental. Um poema de Carlito


Azevedo em seus problemas. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/nec/n91/a06n91.pdf. Acesso12 março 2017.
352

SIMON, Iumna M. Situação de sítio. In: RUFINONI, Simone Rossinetti; REDONDO,


Tércio. Caminhos da lírica brasileira contemporânea: ensaios. São Paulo: Nankin,
2013. p. 177-194.

SISCAR, Marcos. Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da
modernidade. Campinas (SP): Editora Unicamp, 2010.

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. Trad. Marco Casanova et al. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012.

SOUSA, Li-Chang S. C. S. Mídia e Cultura Nacionalizada: processos de


homogeneização cultural e a televisão brasileira e argentina. 2013. 189 p. Tese
(Doutorado) – Universidade de Brasília. Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre
as Américas (CEPPAC). Ciências Sociais. Brasília, 2013. Encadernação.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Trad. Celeste Aída Galeão.


Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.

STEIN. Gertrude. Sacred Emily (A rose). Disponível em:


http://www.phrases.org.uk/meanings/15900.html.Acesso: março/2017.

SÜSSEKIND, Flora. A poesia andando. In: ______. A voz e a série. Rio de Janeiro:
Sette Letras; Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1998.

SÜSSEKIND, Flora. Imagens em estações- observações sobre "Margens", de Carlito


Azevedo. In: PEDROSA, Célia; ALVES, Ida. Subjetividades em devir: estudos de
poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p. 63-81.

THOMAS, Edith M. Anima urbis. In: POETRY NOOK.


http://poetrynook.com/poem/anima-urbis. Acesso em: 15 outubro 2016.

TODOROV, Tzvetan. Poderes da poesia. Trad. de Caio Meira. In: CÍCERO, Antonio
(Curadoria). Forma e sentido contemporâneo: poesia. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2012.

TORRES, Mílton. No fim das terras. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

VALENTE, Luiz Fernando. O traço apolíneo de Salgado Maranhão. In: MARANHÃO,


Salgado. A cor da palavra. Rio de Janeiro: Imago; Fundação da Biblioteca
Nacional, 2009.

VALÉRY, Paul. [Fragmentos] Dos cadernos de Valéry. In: CAMPOS, Augusto. Paul
Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 71-99.

VALÉRY, Paul. Discurso sobre a estética – Poesia e pensamento abstrato.


Trad.Pedro Schachtt Pereira. Lisboa: Vega/Passagens, 1995.

WINNICOTT. D. W. Jeu et réalité: l'espace potentiel. Traduit de l'anglais par Claude


Monod. Paris: nrf; Gallimard, 1975.

ŽIŽEK, Slavoj. Organes sans corps: Deleuze et conséquences. Paris: Éditions


Amsterdan, 2008.
353

ZUMTHOR, Paul. La mesure du monde: représentation de l’espace au Moyen Âge.


Paris : Éditions du Seuil, 1993; p. 52,53.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e


Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.

Você também pode gostar