Tese Raquel Alves Mota
Tese Raquel Alves Mota
Tese Raquel Alves Mota
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2016
RAQUEL ALVES MOTA
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2016
“Mas é que as impressões perduram”.
LIBBOA, Henriqueta. Obras Completas: I poesia Geral, p. 346.
À professora Drª Graciela Inés Ravetti de Gómez, pelo constante apoio e orientação nesse
longo período em que tive o privilégio de estudar Literatura argentina e hispano-americana
(em geral) e Teoria Literária – de Quixote aos contemporâneos –; a sua importância foi
extrema nessa caminhada – da graduação ao doutorado – e para as portas que se me abriram:
muito obrigada!
Ao professor Dr. Néstor Ponce, por ter me coorientado em meu período do “Doutorado
Sanduíche”, em Rennes, França. Manifesto meu agradecimento, principalmente, pelos
contatos que, graças a ele, tive com outros pós-graduandos e com professores com expertise
no tema de minha tese e, também, por me permitir conhecer o gabinete de Juan José Saer, em
Rennes 2, lugar que, possivelmente, foi de escrita de alguns dos seus romances.
Ao professor Dr. Georg Otte, por ter me assessorado desde a entrega do projeto final de
doutorado: agradeço imensamente as suas contribuições e sugestões à minha pesquisa, e
também, pela oportunidade de cursar a disciplina “A natureza na Modernidade”, tema que se
acerca ao pesquisado nesta tese.
À professora Drª Maria Zilda Ferreira Cury, que esteve na minha qualificação de doutorado e
se constituiu em canal para que eu conseguisse um coorientador acadêmico em Rennes.
Ao professor Dr. André Abath, por ter me aberto as portas do grupo de estudos da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH da Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG, que coordena, cujo objetivo é discutir a filosofia de Merleau-Ponty.
Ao professor Dr. Renaud Barbaras, por ter me recebido e permitido que participasse, como
ouvinte, do curso “Sur Phénoménologie et Poétique”, em Paris 1.
Ao professor Dr. Julio Premat, por ter me indicado bibliografia para minha pesquisa: foi
sensacional poder falar sobre esta tese com uma das maiores autoridades em Saer.
Ao professor Dr. Wander Melo Miranda, pelo riquíssimo curso sobre Literatura Comparada,
antiga disciplina obrigatória do doutorado.
Ao professor Dr. Luis Alberto Brandão pelo precioso curso “O Espaço Literário”, cursado no
final da graduação, uma inspiração para este trabalho com o espaço.
Aos professores da banca examinadora de doutorado, já mencionados – Dr. Georg Otte, Drª
Maria Zilda Ferreira Cury e Dr. André Abath –, e a estes outros: Drª Elena Cristina Palmero
González e Dr. Walter Carlos Costa.
Ao meu colega do Francês, Bruno Domingos Ramalho, por me ajudar nas traduções do
Francês.
À doutoranda Yara dos Santos Augusto Silva, pela amizade aqui no Brasil e, também, na
França: nosso convívio foi frutífero e compartilhamos conhecimentos e experiências em
visitas a museus da Europa.
Aos meus irmãos, pela força; principalmente, a Isaac Alves Mota (pelas traduções do Inglês),
a Ester Alves Mota, pelo apoio, e a Samuel Alves da Mota, pela presença na defesa.
À Lydia, minha linda sobrinha, por me tirar, muitas vezes, do foco e me chamar para brincar.
À memória do Pr. Délcio Rodrigues Pinto, pelo incentivo ao prosseguimento dos meus
estudos.
A todos esses e outros muitos que fizeram parte deste percurso: muito obrigada!
RESUMO
It traverses the Saerian literary space and describes the character-world relationship
in the novels that favor the space of nature. The discussion begins with the analysis of La
grande (2005), posthumous novel of Juan José Saer and other novels that run into it:
Cicatrices (1969), El limonero real (1974), Nadie nada nunca (1980), El entenado (1983), La
ocasión (1986), Lo imborrable (1992) La pesquisa (1994) and Las nubes (1997).
Commencing from the theoretical discussion of Saer’s critical text El río sin orillas (1991)
and the essays "El concepto de ficción" and "La narración-objeto" – the primacy granted to
the space of experience is presented by advocating a concept of fiction that focuses on the
human-world experience. Saer’s concept of fiction "speculative anthropology" enables this
absolute relationship with the world. Unlike the objectivity postulated by much of Saerian
critics on account of an affiliation to the nouveau-roman, it is claimed that Saer builds a space
of experience in which man and world elements perform reversibility movements. From this
reading, it takes hold of Merleau-Ponty’s most radical thoughts: his last philosophy-
remarkable characteristic of this discussion -, and delves into the analysis of space in
“Phenomenology of Perception” (1945) and into the reading of Saer’s phenomenological
space in light of Merleau-Ponty. The understanding of the seer-visible reversibility is enabled
by the reading of Merleau-Ponty’s ontology. The core of the discussion is his posthumous
book “The visible and the Invisible” (1964) – which reveals itself as a space of ontological
ideas. Ideas developed by the philosopher such as body, chiasm, visible and invisible, seer-
visible, and flesh, converted into "concepts" enhance the analysis of the space of experience,
the potential relationship with the world. The guiding theme of this research in the
philosopher's work is the "maximum grip", or the exercise of describing the characters
movement in order to track their relationship with both other bodies and the body of the
world. It aims to understand how Saer exquisitely handles the space of experience with such
descriptive detail which is built on the route of a ceaseless quest for meaning.
INTRODUÇÃO.................................................................................. 13
REFERÊNCIAS........................................................................................................... 283
INTRODUÇÃO
1
Sobre a ontologia de Merleau-Ponty afirma Ferraz: “[...] a formulação de uma ontologia por Merleau-Ponty não é
uma tarefa que se limita a sanar alguns problemas teóricos de seus primeiros textos, mas um empreendimento
que visa renovar as bases dos sistemas simbólicos e das relações interpessoais da civilização contemprorânea”
(FERRAZ, 2009, p. 60).
14
2
A fenomenologia pode ser entendida como: “[...] a doutrina que fornece o método para que se priorize a relação
entre consciência perceptiva e estruturas concretas em contraposição à ideia de um mundo objetivo tal como
delimitado pelo senso comum e pelas abordagens científicas” (FERRAZ, 2009, p. 184).
3
Um dos mais respeitados especialistas em Merleau-Ponty, Renaud Barbaras – filósofo que, adentra, aqui, como
comentador principal dos textos de Merleau-Ponty – “defende que “parece que é à luz de O visível e o invisível
que os trabalhos anteriores adquirem coerência e consistência, de tal modo que nós não podemos lê-los senão por
meio da retomada a qual finalmente eles propiciam”” (FERRAZ, 2009, p.12).
15
pensamento sobre o espaço da experiência em Saer. El río sin orillas apresenta uma
encenação da própria ficção saeriana – ou de seu pensamento ficcional –, quando Saer se
propõe a escrever uma “ficção não-voluntária”. É como se esse escritor estivesse legislando
sobre o seu conceito de ficção, sua relação com a representação do mundo. Posteriormente,
desvela-se o próprio “El concepto de ficción”, que se define como uma “antropologia
especulativa”. A ficção apresenta-se como essa abertura à exploração do homem, como um
lugar em que variantes de relações com o mundo podem ser experienciadas. “La narración-
objeto”, último ensaio que analisamos nesta tese, confirma a relevância da presença humana
no conceito de ficção de Saer. Esse passo teórico é, então, primordial, porque esclarece a
estrutura da experiência, o potencial do espaço saeriano.
Apresentamos, no segundo capítulo, abordagens filosófica e teórico-literária sobre
o espaço. Para o seu desenvolvimento, foram de suma importância dois movimentos de
pesquisa. O primeiro foi minha vinculação ao grupo de estudos da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas – FAFICH da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG sobre
Merleau-Ponty, coordenado pelo Prof. André Abath, no segundo semestre letivo de 2012;
lemos, juntos, a Fenomenologia da percepção, O olho e o espírito e alguns textos de análise
dessa filosofia. Participei desse grupo por dois anos, desvinculando-me dele para fazer meu
segundo movimento de pesquisa: o “doutorado sanduíche” na França. Essa estada, por um
ano, em Rennes, me possibilitou ricas leituras, principalmente, sobre a fase ontológica de
Merleau-Ponty. Pude ler, na íntegra, a tese de Barbaras, intitulada De l’être du phénomène:
sur l’ontologie de Merleau-Ponty, texto-base que utilizei para analisar O visível e o invisível.
Li outros textos de grande relevância para o desenvolvimento desta tese, como os artigos:
« Le soi incarné: Merleau-Ponty et la question du sujet », de Villela-Petit ; « Merleau-Ponty et
la pensée du dedans », de Françoise Dastur ;« Motricité et phénoménalité chez le dernier
Merleau-Ponty », de Renaud Barbaras ; e « La notion de « transcendance » dans Le visible et
l’invisible : de l’indetermination au désir », de Agata Zielinski, entre outros.
Outro grande ganho que tive com essa temporada na França foram meus contatos
com professores altamente competentes quanto ao tema desta tese. O primeiro contato foi
graças ao meu coorientador acadêmico em Rennes 2, Prof. Néstor Ponce, que me passou o e-
mail do Prof. Julio Premat. Um dos textos-base para a leitura crítica de Saer foi sugerido por
Premat: Juan José Saer: la construcción de una obra. Nesse livro, tive acesso a vários artigos,
muito citados, principalmente, no primeiro capítulo desta tese. Dentre eles, destaco: “Antes de
que cuenten: la estética de Juan José Saer”, de Dardo Scavino; “El ciclo de novelas sobre el
tiempo: Saer y Robbe-Grillet”, de Rafael Arce; “La política, la devastación”, de Beatriz Sarlo
16
e “El desafío de lo clásico”, de Julio Premat. Outro contato foi com o Prof. Renaud Barbaras:
tive o prazer de participar, como ouvinte, do seminário de Master 2 “Sur Phénoménologie et
Poétique”, em Paris 1. Agradeço imensamente minha orientadora, por me incentivar a fazer o
“doutorado sanduíche”, e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior -
CAPES, pelo investimento: posso afirmar que esta tese não seria a mesma, se não tivesse feito
essas leituras e contato com a desafiadora contribuição de todos esses professores.
No segundo capítulo, desenvolvemos, então, uma discussão sistemática sobre o
conceito de espaço: iniciamos com a discussão literária do tema e, em seguida, procedemos ao
exame da ideia de “apreensão máxima” em Merleau-Ponty. A parte filosófica inicia-se com
exame do conceito de espaço em Fenomenologia da Percepção, como entrada para o tema da
reversibilidade entre vidente e visível. O objetivo ou o que interessa são, principalmente, as
últimas ideias de Merleau-Ponty, porque se defende, aqui, que elas dinamizam a compreensão
da potencialidade da experiência no mundo. A complexidade de se deambular pelas etapas
filosóficas de Merleau-Ponty – ou de se fixar em mais de uma de suas fases filosóficas – é
justificada por nós acompanharmos a linha de estudos que defende o prosseguimento das
ideias dos primeiros trabalhos e sua última filosofia. Iniciamos com a abordagem do “espaço”
e prosseguimos com a ideia de apreensão máxima, que responde à realização do próprio
conceito de espaço; ou seja: iniciamos com o capítulo “o espaço” da obra Fenomenologia da
Percepção, discutindo-se a sua estrutura, e, em seguida, enfatizamos o mundo da experiência.
A perfeita realização da vivência é consolidada na terceira fase do pensamento de Merleau-
Ponty, na qual esse filósofo defende ideias próprias para dar conta do movimento de
reversibilidade entre o vidente e o visível. Apesar de o início da pesquisa contemplar a obra
de 1945, o objetivo é a preparação para o enfoque das ideias da última fase da filosofia de
Merleau-Ponty. Entre as obras Fenomenologia da Percepção e O visível e o invisível,
abordamos, como ponte, O olho e o espírito; ou seja: dos três ensaios que compõem esse
livro, apenas um pertence à fase intermediária, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”.
O capítulo se encerra com a discussão estética sobre o uso desse pensamento filosófico como
recurso para leitura do espaço literário; ou seja: uma forma de se defender essa filosofia no
universo teórico-literário, como se realiza nesta tese.
Sobre essa terceira parte do capítulo, cumpre apresentar uma pequena explicação:
antes dessa estada na França, tive conhecimento dessa leitura do espaço literário que se faz
por meio dos “conceitos” merleaupontyanos. Estava estudando Merleau-Ponty, quando, ao
participar do Silel – Simpósio Internacional de Letras e Linguística – de 2013, em Uberlândia
- MG, tendo me inscrito no grupo temático “Espaço e Literatura”, tomei conhecimento de
17
horizontalidade da lhanura e, por isso, gesticula mais firmemente com essa busca por
decifração do sentido da experiência. O céu recobre esses dois lugares, provocando na
personagem, que se movimenta em terra ou pelo rio, um sentimento de clausura. A
invariabilidade da paisagem provoca esse sentimento de melancolia, devido à mesmice das
coisas. Nesse capítulo, apresentamos exemplos de vários romances, como recurso para se
defender que o espaço saeriano é desvelado na experiência: é uma constante indagação do
mundo e dessa própria relação.
Concluímos esta tese com nossas “Considerações finais”, nas quais expomos
levantamento dos pontos relevantes da leitura fenomenológica do pensamento espacial
saeriano, suas considerações e possíveis caminhos abertos para futuro prosseguimento da
pesquisa. O que defendemos, em todos os capítulos desta tese, é que o espaço saeriano é
dinâmico, sendo a relação de cada personagem com o mundo entendida como uma abertura
singular de um espaço de interação plena. A estética saeriana busca dar conta dessa profusão
toda: no momento em que não consegue tocar os limítrofes do visto – com, principalmente, o
recurso da descrição minuciosa das coisas –, o metaficcional se expande. Essa dialética entre
mostrar as coisas – e, dada a sua inesgotabilidade, fixar-se em revelar a própria estrutura do
texto – revela-se como estética da obra saeriana. O primoroso trabalho de Saer com o espaço e
com a riqueza descritiva das coisas sustenta esse olhar mais centrado sobre a experiência no
mundo. A busca por manter essa relação se revela como uma volitiva do próprio Saer uma
maneira de intentar recobrir o todo e extrair dele o seu sentido.
20
CAPÍTULO 1
TEORIA E IMAGINAÇÃO EM SAER
[a] grandes rasgos, y si bien cabe matizar el criterio evolutivo que rige
semejante periodización, suelen distinguirse en la obra de Saer tres
momentos: la etapa de aprendizaje, que abarca dos novelas y tres libros de
relatos, desde En la zona de 1960 hasta Unidad de lugar de 1967; la etapa
experimental, que incluye tres novelas y un libro de relatos, desde Cicatrices
de 1969 hasta Nadie nada nunca de 1980, y la etapa llamada “madura”,
compuesta por siete novelas y un libro de relatos, desde El entenado de 1983
hasta La grande de 2005 (LOGIE, 2013, p. 30).
4
ALONSO (2011, p. 9) escreve sobre Saer (Serodino, Santa Fe, 1937 – Paris, 2005): “[n]acido en la pequeña
Serodino, de inmigrantes sirios (sus padres, a los que precisamente dedica El río sin orillas)”.
5
No livro de ensaios Juan José Saer: la construcción de una obra, organizado por Ilse Logie (2013), percebe-se a
defesa dessa periodização da obra saeriana. Logie, autor do texto da primeira citação acima, defende essa
estrutura de leitura e Arce (2013, p. 89) arrola críticos que defendem essa periodização, como: Gramuglio,
Dalmaroni, Manzi e Premat. No ensaio “Desplazamientos necesarios: los ensayos de Juan José Saer”, Nora
Catelli (2013, p. 254) também defende essa variação estética na obra de Saer.
6
No ensaio “El desafío de lo clásico”, Premat (2013) discute o retorno de Saer à estética dos primeiros romances
por intermédio, principalmente, de La grande (2005). Premat polemiza a recepção crítica do romance na
Argentina e a acusação de um “anacronismo estético”. Essa discussão é importante, nesta tese, e é desenvolvida
no capítulo: “O realismo em Saer: vanguardas e discussões estéticas em La grande e em Lo imborrable”.
7
PREMAT, 2013, p. 221-235.
21
Saer buscaba para su literatura el mismo ideal que Van Gogh: no se trata de
pintar cosas sino manchas, líneas, formas, y dejar que el espectador imagine,
cuando observa el cuadro, las cosas que éste, supuestamente, representa, o de
insinuar, a partir de unos pocos trazos, una silueta, un contorno, impreciso y
siempre ambiguo, como en el arte japonés de Shubun o Sesshu (SCAVINO,
2013, p. 55).
8
Essa questão é, também, desenvolvida no capítulo intitulado “O realismo em Saer: vanguardas e discussões
estéticas em La grande e em Lo imborrable”, no qual se faz a leitura do quinto capítulo de La grande e da
recepção crítica de La brisa en el trigo no romance Lo imborrable.
9
ARCE, 2013, p. 93.
10
Arce escreve: “[l]a tentativa de la novela de Robbe-Grillet es devolver a las cosas y al mundo su carácter de
meras cosas (su in-significancia) y restituir la distancia originaria entre esas cosas y el individuo. De ahí la
preponderancia de lo óptico aséptico que acerca la técnica a la narración cinematográfica: el narrador dice lo que
ve, sin proyectar al mundo ningún sentido antropomórfico, sea de la clase que fuere” (ARCE, 2013, p. 95).
11
ARCE, 2013, p. 92.
12
SCAVINO, 2013, p. 56.
22
É importante destacar essa discussão, porque, nesta tese, são de suma importância
tanto o vetor da subjetividade quanto o da objetividade. Seu foco centra-se nas engrenagens
do movimento entre sujeito e mundo, quando se busca o sentido da própria vivência. Resulta
daí a importância de trazermos, neste primeiro capítulo, os ensaios saerianos que defendem
essa estética da subjetividade. O objetivo é sublinharmos os procedimentos que Saer defende
como sua estética, tendo por escopo a confrontação, posterior, desses com o texto literário.
Assim, quando optamos pela leitura de textos ensaísticos como abertura desta tese, nosso
objetivo é pontuar como Saer delega importância à subjetividade como vetor da própria
ficção. O objetivo é nos aproximarmos do texto central desta análise, La grande, já com as
estruturas de análise da estética saeriana bem consolidadas. A importância de defendermos a
presença do sujeito no texto reside no fato de esta tese se focar na leitura do espaço
experienciado pela personagem. O objetivismo – de empréstimo do nouveau-roman –
defendido, por muitos, como estética saeriana, principalmente nos romances da chamada fase
“experimental”, é minado quando a personagem busca se integrar ao mundo ou se descobre
no encalço do sentido da experiência. Essa vertente humana, na obra de Saer, é desvelada por
meio do conceito de “antropologia especulativa”, defendido no seu pensamento teórico-
crítico. Essa presença do homem é chave de leitura para a defesa de uma relação
fenomenológica das personagens saerianas com o mundo: o objetivo desta tese é
desentranharmos o espaço saeriano e o envolvimento do homem com o mundo, tendo como
ferramenta o pensamento de Merleau-Ponty13; principalmente, em sua última fase, a
ontológica.
Recapitulando, Saer teoriza a sua ficção reiteradamente, seja em seu livro de
poesia, seja nos contos, seja nos romances e, mais incisivamente, nos livros de ensaios. A
questão está entre um teorizar no intuito de conceituar, como no emblemático “El concepto de
ficción”14, ou, na maioria das vezes, como forma de polemizar o próprio estatuto do texto que
está sendo redigido. No ato da escrita, a possibilidade de representação da realidade é
questionada, assim como a elaboração dos elementos ficcionais. Até mesmo no título do seu
13
TASSINARI, 2013, p. 183, escreve: “MAURICE MERLEAU-PONTY nasceu em Rochefort-sur-Mer em 14 de
março de 1908. Em Paris, estudou na Escola Normal Superior, onde travou contato com a filosofia de Husserl e
com o existencialismo, graduando-se em Filosofia em 1931. [...] Publicou seu primeiro livro, A estrutura do
comportamento, em 1942, mas só obteve o grau de doutor em 1945, com a tese Fenomenologia da percepção.
[...] Durante toda a década de 1950, Merleau-Ponty trabalhou numa “ontologia pré-reflexiva” ou “selvagem”,
destinada a rever e superar a fenomenologia. Em 1960, publicou Signos, volume que reúne ensaios seminais de
reflexão política, estética e filosófica, como “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e “O filósofo e sua
sombra”. Contudo, não concluiu as grandes obras que planejava, falecendo em 04 de maio de 1961, em Paris.
14
SAER, 1997, p. 9.
23
15
livro de poesia, El arte de narrar (2000) , Saer consegue revelar sua preocupação com os
mecanismos e os alcances da narrativa. A discussão teórica e crítica, mesmo quando se foca
em outras instâncias (sem a preocupação das separações entre ficção e verdade: considerado
como um falso problema, na percepção de Saer), o primeiro passo do escritor é redefinir esses
lugares. Como o núcleo desta tese, como já foi antecipado, é a investigação do espaço
ficcional saeriano, tendo como entrada o seu último romance, La grande (2005), então, antes
de aproximarmos dos romances, é essencial discutir o estatuto ficcional de Saer e a forma de
representação desse espaço.
Neste capítulo, acompanhamos o desenvolvimento das ideias teóricas de Saer, nos
seus livros de ensaios, centrando-nos nos ensaios que mais se detêm na teorização da ficção.
Os textos elencados foram: o livro El río sin orillas (1994)16, o ensaio “El concepto de
ficción” (1997) e o ensaio “La narración-objeto” (1999)17. Utilizando uma estratégia
diferente18 daquela que Saer usa para publicar seus ensaios e contos (publica sempre em
sentido inverso à data de escrita ou em sentido não cronológico), percorremos os textos na
ordem em que, aqui, são apresentados. Essa estrutura tem por objetivo revelar e discutir a
coerência crítica do pensamento de Saer.
A eleição dos textos segue interesse pessoal, que se justifica pelo volume de
questões relevantes para esta tese que neles são desenvolvidas. O foco é seguir o pensamento
saeriano em textos que se apresentam potencialmente teóricos, como “El concepto de ficción”
e “La narración-objeto”. Contudo, a discussão inicia-se com uma experimentação saeriana de
sua própria teoria, com a análise do livro El río sin orillas. O interessante é pensar como esses
textos se complementam e, principalmente, como El río sin orillas condensa e expande
questões teóricas desenvolvidas em textos posteriores. A singularidade desse livro está no
movimento entre teoria e ficção ou na própria experimentação daquilo que, teoricamente,
15
Há uma discussão proveitosa a respeito do título desse livro; Delgado aborda essa questão pontuando como Saer
muda o título do poema homônimo do livro, dando ênfase ao dilema do ato de narrar, ao mesmo tempo em que
destaca sua iterativa preocupação com os mecanismos poéticos: “[...] En este punto es interesante destacar, en el
proceso de definición del libro, como lo ha estudiado Martín Prieto, la corrección que realiza Saer, en el título de
un poema que en Cuadernos Hispanoamericanos se llamaba “Arte poética”. Se ve claramente en un
dactilograma, donde el poema está fechado en 1969 (ni en la revista ni en el libro aparece la fecha) y donde se
corrige el título “Arte poética” por el de “El arte de narrar”. (DELGADO, 2013, p. 241).
16
É interessante pontuar que Logie considera esse livro como pertencente ao gênero ensaio: “[...] [h]ay que
reservar un espacio aparte para el ensayo sobre el Río de la Plata El río sin orillas. Tratado imaginario (1991),
que Saer escribió por encargo de su editor a partir del éxito obtenido por Danubio de Claudio Magris.” (LOGIE,
2013, p. 27).
17
Os dois ensaios mencionados integram os livros homônimos: El concepto de Ficción (1997) e La Narración-
Objeto (1999), respectivamente.
18
Catelli discute essa proposta de disposição dos artigos de Saer: “En la “Explicación” de El concepto de ficción
Saer justificó el armado del volumen, que proclama el criterio cronológico para después no seguirlo, como serie
de “desplazamientos necesarios” para “hacer más evidentes las intenciones del conjunto y consolidar su
coherencia” (Saer, 1997, p. 8).” (CATELLI, 2013, p. 257).
24
ainda não tinha sido conceituado. Nesses textos elencados, procuraremos a formalização
teórica do conceito de ficção, bem como a representação conceitual do espaço ficcional. Esse
movimento entre teoria literária e conceito de espaço revela uma das vertentes teóricas19 do
debate sobre a categoria espacial: a investigação do espaço como representação. Então, a
noção de espaço aqui investigada está relacionada ao espaço como representação e, também,
como focalização (na experiência da personagem nos romances): ambos se conjugam na
tentativa de se descrever o esgotamento dos contornos espaciais por meio da experiência do
sujeito. Essa discussão sobre a representatividade do real se relaciona com um dos focos
centrais do debate de Saer: a relação entre ficção e verdade, que adentra toda a sua obra.
Neste capítulo, então, procuraremos descrever os pressupostos teóricos de Saer
em relação à representação do espaço narrativo. Quando ele discute seu conceito de ficção,
entendemos que suas ideias desvelam o seu posicionamento a respeito da urdidura do espaço
narrativo. Essa é uma das vertentes do estudo teórico-literário sobre o espaço que é foco desta
pesquisa: o espaço como representação. O gesto de Saer, em “El concepto de ficción” e “La
narración-objeto”, demonstra − como o escritor mesmo afirma na introdução dos livros
homônimos em que se encontram os ensaios − as concepções formais 20 que busca utilizar em
seus textos literários. A importância de percorrermos o seu conceito de ficção está no desejo
de compreender a forma de representação do espaço utilizada ou defendida pelo autor
argentino. Quando trazemos, para abertura desta discussão, o livro El río sin orillas – anterior
à escrita daqueles dois ensaios –, o projeto é compreendermos como Saer pensa e trama a
relação entre ficção e verdade, nesse livro que tem por foco uma “ficção não-voluntária”. Esse
conceito pode ser entendido como uma escrita que se apoia em fatos ocorridos, mas trabalha
com fontes diversas, como experiência autobiográfica, livros de História e de Geografia,
relatos de viagem e a própria literatura, todos no mesmo gesto de narrar sobre o Río de la
Plata.
Outra justificativa para análise de elementos de El río sin orillas na abertura deste
primeiro capítulo é que esse livro tem como personagem o espaço e discute a
interdependência entre o homem e o mundo. Assim, o objetivo da análise desse livro é
delinearmos o espaço ficcional e como os seus limites são indemarcáveis no universo da
teoria saeriana. Um livro que se propõe ater-se nos fatos, a descobrir o Río de la Plata, faz
19
No texto “Espaços literários e suas expansões”, o pesquisador brasileiro Luis Alberto Brandão enumera alguns
vieses de abordagem da categoria espaço literário: o espaço como focalização, a espacialidade da linguagem, o
espaço como representação e a estruturação espacial ou “a retirada da primazia de noções associadas à
temporalidade” (BRANDÃO, 2007, p. 209).
20
Catelli (2013, p. 251-258) defende, em “Desplazamientos necesarios: los ensayos de Juan José Saer”, que os
ensaios de Saer são um campo que o autor utiliza para defender a sua própria poética.
25
Defendemos, aqui, que El río sin orillas antecipa e condensa as ideias ficcionais
mais importantes de Saer, encenando-as no universo de uma ficção “não-voluntária”. Assim,
um texto que se proclama não ficcional por escolha – daí o seu potencial teórico – torna-se
ficção, pela variedade de materiais utilizados como fundo de pesquisa e, também, pelo modo
como o narrador os manuseia. A inserção do “narrador/autor” na narrativa, como voz
autobiográfica, também acirra a imprecisão do estatuto do texto. É como se houvesse um
distanciamento do pacto da imparcialidade no trabalho com as fontes, tendo os comentários
pessoais uma faceta de anedota. El río sin orillas apresenta, então, um gênero indefinido, em
que os pensamentos ficcionais de Saer se apresentam encenados no ato de representação. O
objetivo é pinçarmos os dois polos do conceito de ficção − imaginação e realidade –
disseminados nas partes que compõem o livro. Desvendarmos os materiais e como são
manuseados torna-se a maneira de descobrirmos o potencial ficcional e teórico dessa obra.
Na estrutura de El río sin orillas, percebemos divisão entre as pessoas do
discurso. Há uma não intitulada introdução, seguida de quatro partes que recebemos nomes
21
Percebe-se que El río sin orillas enuncia claramente a sua estrutura: “descompromissadamente”, ao leitor são
revelados os componentes da narrativa. Com a proposta de não se afastar dos fatos e, também, de não ignorar
fontes diversas, o texto encena o próprio fazer literário.
22
Conceituamos o modo de ser da ficção saeriana como fenomenologia, na valorização do retorno ao mundo: Saer
privilegia a vivência homem-mundo, como discutiremos, neste capítulo, por intermédio de El río sin orillas.
Como, aqui, uma das entradas teóricas é o estudo da Fenomenologia de Merleau-Ponty, relacionamos as
estratégias de Saer com o pensamento desse filósofo.
26
das quatro estações do ano: verano, otoño, invierno e primavera. Na introdução, a voz é de
Saer, que busca explanar o porquê de escrever o livro, sobre o que vai falar e como pretende
articular seu discurso. Esse metadiscurso ficcional não se restringe a essa parte; perpassa todo
o livro. Nos quatro capítulos, a pessoa que fala pode ser definida como o narrador 23, como o
próprio Saer antecipa na introdução. Nesses, percebemos que o teor biográfico inicial não é
dissipado pelo discurso narrativo. A proposta de manter distância entre as pessoas não é fácil;
Saer até pode ser considerado, como personagem, já que o próprio autor corrompe uma
divisão abrupta entre diferentes formas de discurso. Dessa forma, quando se inicia o capítulo
“Verano”, não percebemos diferença na voz que ouvíamos nas páginas anteriores. A proposta
de Saer explanada na introdução e executada no intróito de El río sin orillas é disseminada em
todos os capítulos. Na tentativa de amenizar a ambiguidade entre as pessoas24 e o relato, Saer
antecipa que El río sin orillas pertence a uma linhagem significativa da literatura argentina25.
El río sin orillas nasce de um projeto que pretende a “ausencia de una ficción
voluntaria”26, dentro dos limites do relato. É na introdução que Saer se posiciona a respeito do
estatuto daquilo que será narrado nos capítulos do livro, afirmando que se propõe a tarefa de
apenas registrar aquilo que ouviu ou pesquisou em fontes, em sua maioria, não reveladas no
texto. Saer inicia o livro problematizando o conteúdo fictício da narrativa: propõe-se a se fixar
naquilo que é aceito como verdade, ao mesmo tempo em que se nomeia narrador daquilo que
é relatado. A ausência da ficção premeditada é contraposta pelo estatuto do narrador,
“considerado instância típica do texto narrativo literário” 27
. Essa diluição do estatuto do
23
Em La grande − romance que, aqui, encabeça a discussão do espaço saeriano −, há um pequeno trecho em que a
personagem Tomatis discute o valor do relato testemunhal e esclarece a relação autoral com o texto produzido,
discutindo o valor de verdade ao qual pode aspirar o texto literário: “[…] [d]e todas maneras, es siempre el texto
lo que cuenta, nunca el autor, al menos si se trata de literatura, y más aún de literatura de ficción, sobre todo la
que pretende no serlo y se presenta a sí misma como un informe verídico.” (SAER, La grande, p. 294).
24
Os interlocutores do texto ficcional são assim definidos por Santos: o narrador “[...] não se confunde nem com a
voz autoral, que lhe antecede, nem com o personagem, que lhe sucede, uma vez que cada um desses sujeitos tem
atributos e funções particulares, ocupa lugar preciso na hierarquia de emissores e na estrutura da obra e realiza
ato de comunicação dirigido a receptor próprio” (SANTOS, 1989, p.1).
25
Posteriormente, Saer afirma que essa linhagem se caracteriza por um texto híbrido, sem preocupação com sua
classificação, em termos de gênero. Josefina Ludmer defende o conceito de literaturas pós-autônomas para um
tipo de escritura que não se preocupa com sua própria definição: “[e]ssas escrituras não admitem leituras
literárias; isto quer dizer que não se sabe ou não importa se são ou não são literatura. E tampouco se sabe ou não
importa se são realidade ou ficção. Instalam-se localmente em uma realidade cotidiana para “fabricar um
presente” e esse é precisamente seu sentido” (LUDMER, 2007, p.1).
26
SAER, 1994, p. 19.
27
SANTOS, 1989, p. 11.
27
28
SAER, 1994, p. 18.
29
Nos três textos aqui discutidos, o tema “non-fiction” é sempre abordado, por Saer, no afã de deflagrar os limites
desse conceito. Saer defende a impossibilidade do purismo factual ou que um texto que exclui deliberadamente o
falso, nem por isso, “[...] es de por sí garantía de veracidad” (SAER, 1997, p. 10).
28
Saer expõe às claras a filiação do texto e seu pertencimento ao próprio fazer literário. O
trabalho de escrita foi encomendado e executado segundo os seus padrões de escrita, cuja
primeira preocupação foi se aproximar do objeto, para “refrescar mis experiencias y
completar mi información”31. Vivendo, desde 1968, na França32, Saer fazia, rotineiramente,
viagens a Buenos Aires; nessa em questão, visava restabelecer seu envolvimento com o objeto
de escrita ou com a chamada personagem do livro.
Quando relata o seu projeto de escrita, alguns de seus amigos buscam ajudá-lo,
com informações geográficas e históricas sobre o rio. É a partir desse ponto que Saer adianta
uma das ideias centrais do livro: “[...] y me iba dando cuenta de que, como sucede con todo
objeto de este mundo y aun con el mundo como objeto, hay tantos ríos de la Plata como
discursos se profieren sobre él”33. Esse conflito entre o discurso e a experiência é um dos
elementos significativos da proposta de El río sin orillas: um emaranhado resultado da
relação entre “fatos” e plano discursivo. O narrador percebe que a infinidade de narrativas
projeta – cada uma delas − um determinado rio, ou que, com as diferentes formas de
representá-lo, criam-se objetos distintos. A partir dessa constatação, percebe a urgência de
estabelecer contato com o rio, de colher nele a sua própria perspectiva: uma espécie de
atualização dos afetos. Na primeira aproximação com o rio, depois do retorno, o narrador se
sente incomodado e procura, em várias posições, achegar-se ao rio: de táxi, contorna um
30
Alonso exalta El río sin orillas, apresentando-o nestes termos: “[...] aquel libro inicialmente por encargo que él
supo convertir en un texto clave, tocante para cualquiera que se proponga con honradez ser argentino”
(ALONSO, 2011, p. 11).
31
SAER, 1994, p. 22.
32
Sobre Saer, Logie afirma: “[...] [e]n 1962 ingresó como profesor en el Instituto de Cinematografía de la
Universidad del Litoral y en 1968, la obtención de una beca para estudiar el Nouveau Roman hizo que se
trasladara a Francia, país donde acabó siendo profesor titular de literatura (en la Université de Rennes) y donde
residió hasta su muerte el 11 de junio de 2005” (LOGIE, 2013, p. 13).
33
SAER, 1994, p. 24.
29
pouco os seus limites, procurando pontos de melhor observação, mas o rio se mantém
distante, imóvel e mudo:
34
Esse é um dos motes de discussão da saga saeriana: a relação entre as partes e o todo ou a validade de uma
solução para o conjunto das proposições. Em Las Nubes essa reciprocidade das ideias é assim defendida pela
personagem “[...] [l]o que es válido para un lugar es válido para el espacio entero, y ya sabemos que si el todo
contiene a la parte, la parte a su vez contiene al todo” (SAER, 2000, p. 7).
35
SAER, 1994, p. 33.
36
Ibidem, p. 30.
30
foi adiantado que a solução é o trabalho com as partes do todo. Quanto ao segundo empecilho,
ele próprio − o engodo quanto à forma verdadeira do objeto − se torna a peça de maior valor
na discussão dos campos da ficção e da realidade. A dissolução das certezas provoca o vai e
vem entre o relato e os fatos, e é por meio da suspensão da objetividade que Saer provoca os
seus leitores, com esse distinto discurso sobre o rio.
Concluído o exame dos escritos, Saer retorna ao rio, e essa segunda visita é
intermediada pela erudição, posto que Saer constatara que “[...] [a]trincherarse en lo empírico
no aumenta el conocimiento, sino la ignorancia”37. Quando se reaproxima do rio, Saer tem a
sensação de estar no interior do rio, com o diferencial de que “[...] [l]a superficie incolora de
la primera vez se había transformado en una sustancia pesada y llena de accidentes” 38. Aquilo
que, à primeira vista, parecera uma única coisa, transforma-se em um emaranhado de
possibilidades. A mudez do primeiro encontro ganha voz nessa multiforme apresentação do
rio. Essa transformação se dá pelos entrecruzamentos dos dados pesquisados com aquilo que
provinha de outras fontes, como a própria literatura. A interação com o rio é estendida, já que
o próprio rio ganha maiores dimensões, dada a profusão de perspectivas que são
vislumbradas. Saer é categórico, afirmando que o elemento imaginativo, também, está
presente ali. Essa perspectiva é aceitável, tendo em vista a heterogeneidade das fontes
visitadas e a abertura dada à construção dos sentidos, no momento da experiência. É a partir
dessa nova visão que Saer finaliza a introdução e prepara o leitor para a recepção dos
capítulos do livro. Essa discussão inicial serve para antecipar os procedimentos
metodológicos ou colocá-los como, também, objeto do discurso; ou melhor: essa introdução
não está alheia aos outros capítulos, mas deslinda uma discussão teórica que perpassa todo o
livro.
Elencamos vários motivos que justificam El río sin orillas como eixo desta
discussão, como: o espaço é considerado como a personagem principal – o próprio rio −, a
relação de espelhamento entre os limites do rio e os limites da ficção e, principalmente, a
discussão fenomenológica acerca da aproximação e do contato do narrador com o rio. Na
busca por pinçarmos uma “fenomenologia saeriana” é importante retomar alguns pontos que
já foram tocados nesta primeira parte da introdução. Quando o narrador afirma a
“impossibilidade de surpreender a coisa em si mesma”, a necessidade de se distanciar para
poder enxergar o rio, constatamos destaque sobre o fundamental requisito da fenomenologia:
a distância; como bem aponta Merleau-Ponty, “[p]articularmente, o objeto só é objeto se pode
37
Ibidem, p. 33.
38
SAER, 1994, p. 40.
31
distanciar-se e, no limite, desaparecer de meu campo visual. Sua presença é de tal tipo que ela
não ocorre sem uma ausência possível”39. É nessa instabilidade do olhar que, em
Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty discute e tematiza a relação entre sujeito e
objeto. Em El río sin orillas, o narrador procura preencher essa distância com a erudição ou
favorece a própria escrita, forma de, iterativamente, por em discussão o estatuto do texto
narrativo. É dessa maneira que a relação multíplice da personagem com o mundo é abordada
por meio do discurso. O narrador afirma, ainda, que pode não haver correspondência entre “os
objetos e os discursos que se proferem sobre ele”40. É como se fossem grifadas as nuances da
percepção, por intermédio de cada discurso, estes como um contraponto de resposta ao olhar
do sujeito: “[...] [c]ar les structures ne sont pas déjà toutes faites et elles n’existent pas sans
nous, mais elles sont ces «membrures du visible» qui sont toujours en devenir et qui par
conséquent requièrent sans cesse notre participation”41.
Seguidamente, o narrador põe em debate os enganos do olhar, afirmando que “a
forma verdadeira difere da aparência empírica”42. Esse gesto é significativo, porque firma a
relação de interdependência entre sujeito e objeto, na medida em que sublinha que esse
diálogo é permanente e constante. Esse ponto é de suma importância no pensamento de
Merleau-Ponty, na medida em que vislumbra conceitos de sua ontologia final. Outro ponto
que merece ser discutido é a afirmação de que “atrincheirarse no empírico no aumenta el
conocimiento sino la ignorancia”43. O narrador põe o realismo em discussão requisitando uma
posição mais branda em relação a outros vetores que possam participar do movimento da
percepção. Essa demanda relembra o próprio conceito de ficção, que tem como entrada a
relação entre o empírico e o imaginário. Saer tem, também, por objetivo por o texto ficcional
como exemplo da própria vivência, aproximando, em certa medida, esses dois ambientes. No
pensamento de Merleau-Ponty, prioriza-se, também, essa urgência na dinâmica que se
estabelece entre sujeito e objeto; esse filósofo requer, segundo Villela-Petit, uma relação de
proximidade e inteireza entre a vertente empirista e a filosofia reflexiva, como forma de unir o
homem na vivência: “[...] [d]e toute façon, c’était à partir d’une démarche de phénoménologie
39
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 132.
40
SAER, 1994, p. 24.
41
DASTUR, 2008, p. 127: “Pois as estruturas não estão totalmente prontas e elas não existem sem nós, mas elas
são estes « membros do visível » que estão sempre em devir e, por isso, requerem sem cessar a nossa
participação”(Tradução nossa).
42
SAER, 1994, p. 30.
43
Ibidem, p. 33.
32
réflexive n’ignorant pas l’événement du cogito44 qu’il entendait surmonter l’aporie dualiste et
réintroduire la corporéité vivant au coeu du sujet que se vit et se pense”45.
Essa posição fenomenológica de Saer em El río sin orillas se evidencia na relação
sujeito e objeto ou no desejo do seu narrador de decifrar o Río de la Plata. A busca por
circunscrever, pelo discurso, o objeto gera um apelo à erudição, com a justificativa de que o
empírico necessita de tradução. Outros temas da fenomenologia são abordados, como a
percepção da forma verdadeira dos objetos ou a relação entre figura e fundo. Nessa última,
desvela-se a multiforme projeção das coisas para o sujeito que percebe, quando o escritor
defende que os objetos são diversos, em correspondência com os discursos que sobre eles são
proferidos. Com esses argumentos fenomenológicos, justificamos, aqui, a entrada de El río
sin orillas como texto que encena o posicionamento de Saer em relação à fenomenologia ou à
experiência ativa. Quando Saer põe em questão a representação – ou o próprio texto narrativo
−, sua preocupação central é relativizar a distância entre os polos ficção e verdade,
defendendo a independência da Literatura desses extremos. Essa postura representa a
liberdade da literatura em discursar sobre a experiência do sujeito no mundo,
despreocupando-se com o seu valor de verdade.
44
Merleau-Ponty assim conceitua o cogito na Fenomenologia da Percepção: “[o] verdadeiro cogito não é o face a
face do pensamento com o pensamento deste pensamento: eles só se encontram através do mundo. A consciência
do mundo não está fundada na consciência de si, mas elas são rigorosamente contemporâneas: para mim existe
um mundo porque eu não me ignoro; sou não dissimulado a mim mesmo porque tenho um mundo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 400).
45
VILLELA-PETIT, 2008, p. 90: “[...] de toda maneira, é a partir de uma abordagem da fenomenologia reflexiva
não ignorando o acontecimento do cogito que ele percebia superar a aporia dualista e reintroduzir a corporeidade
vivente ao coração do sujeito que se vive e se pensa” (Tradução nossa).
46
“O realismo em Saer” é discutido no quarto capítulo desta tese, cujo objetivo é pensar, principalmente, sobre o
conceito de realismo defendido por Saer na execução de seu projeto descritivo e espacial.
33
foco sobre aquilo que ainda não foi tematizado. Scavino defende que, em Saer, o gesto de
nominação do mundo se revela no apuro da linguagem poética, desejando, intensamente,
apreender um sentido ainda não revelado: “[i]lustrar no significa aquí reflejar o representar
una supuesta realidad preexistente sino ofrecer o dar, ‘iluminar y nombrar’, según la
expresión de Juan José Saer, ‘sacar a la luz del día’ lo que antes del advenimiento de la
palabra poética ni siquiera tenía el estatuto de cosa”47. Nesse objetivo, Saer se apoia em um
ramo da Literatura − nomeada pelo narrador como uma “ficção não-voluntária” – para ter
mais liberdade de gerir as variadas perspectivas dos acontecimentos. “Verano” traz, em
primeiro plano, a descoberta do Río de la Plata: o rio é personagem do livro e vai sendo
revelado e sondado em uma discussão espacial que legitima a vivência.
“Verano” se inicia com um apelo à relativização da ciência, desnudando as suas
bases teóricas ou discursivas: “[...] [l]a arqueología – toda ciencia es arqueología – es, hasta
hoy día, inapelable”48. Na primeira frase do capítulo, o narrador se posiciona em relação ao
conteúdo da ciência: demonstra conhecer o hermetismo que norteia esse discurso. É como se
o narrador quisesse mostrar que está a par do conhecimento científico49, mas que não se fixará
apenas em suas descobertas. Essa postura fica clara quando, após erudição explanatória sobre
a região do Río de la Plata, o narrador se detém em comentários sobre a infestação de
mosquitos, que ali era costumeira. Primeiro, usa a expressão “hay quien afirma” – referindo-
se a um fato sem autor – e, depois, relata a menção dessa praga em relato de viagem de
Charles Darwin – em sua estada a algumas milhas da desembocadura do Plata −, no dia 06 de
dezembro de 1832. Essa solvência de diversas fontes discursivas é o caminho que Saer, na
introdução, defende como estética de El río sin orillas. Essa estrutura manifesta o seu próprio
conceito de ficção: jogo entre realidade e imaginação. É importante pontuarmos que esse livro
tem como personagem o rio, mas seu discurso ultrapassa esses limites: na introdução, Saer já
adiantara que o rio podia ser uma sinédoque de toda a Argentina, do Uruguai e de todas as
outras regiões banhadas por ele. No decorrer dos capítulos, o rio se projeta no solo argentino,
conduzindo o narrador a discursar, principalmente, por um de seus limites: a lhanura.
Essa busca do narrador por reativar a experiência propicia uma relação de
proximidade com as coisas. Duas são as questões principais que norteiam a discussão teórica
47
SCAVINO, 2013, p. 12.
48
SAER, 1994, p. 43.
49
É interessante frisar que, quando Merleau-Ponty depõe contra o realismo, uma das frentes de seu discurso é a
tarefa de mostrar como o discurso da Ciência é sustentado por uma fé perceptiva ou uma adesão incondicional a
determinada razão sentencial, como é perceptível nos manuscritos de O visível e o invisível: “[v]emos as coisas
mesmas, o mundo é aquilo que vemos – fórmulas desse gênero exprimem uma fé comum ao homem natural e ao
filósofo desde que abre os olhos, remetem para uma camada profunda de ‘opiniões’ mudas, implícitas em nossa
vida” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 15).
34
relembra episódios ocorridos com a Civilização Asteca e com o Império Inca. Os excessos
dos conquistadores e a contraforça dos índios são narrados por meio da menção de fatos
históricos, que são acercados ao espaço vivido pelo narrador. Essa aproximação entre dados
históricos e discurso autobiográfico é justificada, pelo narrador, nestes termos:
51
No capítulo seguinte, o narrador fornece dados mais pontuais sobre o forte: “[...] [e]se error ya había ocupado
los pensamientos de Darwin el 30 de septiembre de 1883, y me siento particularmente autorizado a comentarlos
ya que el sabio inglés, en su pretendida labor de espionaje, efectuó sus observaciones no lejos del que sería un
poco más de un siglo más tarde mi lugar natal (unas diez leguas al norte de Rosario, o sea enfrente de donde, no
sé si el lector recordará, Sebastián Gaboto fundó, en 1527, el primer fuerte español en todo el territorio de la
Argentina)” (SAER, 1994, p. 119).
52
Saer, no seu projeto de sempre discutir o conceito de ficção, traz os pilares da Literatura argentina como forma
de mostrar a indefinição dos lugares da ficção e da verdade. No caso de Sarmiento, o objetivo é mostrar como,
por meio de uma experiência indireta, se construiu, literariamente, a imagem dos pampas.
53
SAER, 1994, p. 61.
36
54
Ibidem, p. 68.
55
Ponce afirma que « [...] [d]ans la littérature du Río de la Plata, par exemple, vers la fin du XIX ème. siècle, deux
types de personnages se « disputent » la possession de la pampa : d’une part, le gaucho ; d’autre part, le
propriétaire des ‘estancias’ » (PONCE, 1985, p. 27). [Tradução nossa: “[...] Na literatura do Rio da Prata, por
exemplo, em torno do final do séc. XIX, dois tipos de personagens « disputam » o domínio dos pampas: de uma
parte, o gaúcho; de outra parte, o proprietário de ‘terras’”].
56
SAER, 1994, p. 97.
37
“... que a mi historia/ le faltaba lo mejor”57. Não há menção do autor da citação58; esse fato de
não mencionar a fonte revela algo da construção – como a despreocupação da gênese dos
textos ou com aquilo que seria ficção ou verdade – e sobre a expectativa de leitor que o texto
constrói.
57
Ibidem, p. 98.
58
Os versos são extraídos de outro texto fundador da literatura argentina: Martín Fierro, de José Hernández
(1834-1886), poeta argentino.
59
SAER, 1994, p. 103.
60
Ibidem, p. 104.
61
Ibidem, p. 107.
38
[p]arce que le sensible est rabattu sur le sens, celui-ci est en même temps
retenu dans le sensible : c’est parce qu’il est toujours déjà sens que le
sensible ne l’est jamais pleinement, c’est-à-dire demeure lui-même ; c’est en
étant toujours encore sensible que le sens préserve son identité. Ainsi
62
SAER, 1994, p. 119.
63
Ibidem, p. 118.
64
MERLEAU-PONTY (2012, p. 133) defende o ser carnal como um ser de profundidade e de interrelações.
39
65
Tradução nossa: “Porque o sensível está posto sobre o sentido, o sentido é, ao mesmo tempo, retido no sensível:
é devido ao fato do sensível já ser sentido que o sensível nunca o é completamente; ou seja: ele continua sendo
ele mesmo; e é justamente sendo sempre já sensível que o sentido preserva a sua identidade. Assim se evanesce a
oposição entre o sentido e o sensível, do invisível e do visível, que repousa sempre sobre a decisão de pensá-los
como sendo”.
66
Em Las nubes, tem-se um episódio memorável da dissolução do homem no espaço: “[...] [e]se horno inmenso
que atravesábamos durante el mes más frío del año, ese gran círculo amarillo por el que avanzábamos a duras
penas, encerrado bajo su cúpula azul que únicamente la mancha árida del sol transitaba durante el día, y que de
noche se ennegrecía y se llenaba de puntos luminosos, fue durante varios días el decorado único, tan idéntico a sí
mismo en cada una de sus partes intercambiables, que por momentos teníamos la ilusión de empastarnos en la
más completa inmovilidad” (SAER, 2000, p. 97).
67
SAER, 1994, p. 135.
40
68
Ibidem, p. 136.
69
Saer escreve o prefácio da edição francesa, de 1992, de La Pampa: Moeurs sud-américaines, de Alfred Ébelot,
que é uma reedição de La Pampa (Buenos Aires – Paris, 1890). Esse livro pode ser considerado um “texto
desinteressado”, um relato autobiográfico de Alfred Ébelot sobre os anos passados na Argentina do final do
século XIX. Ébelot é considerado como familiar, no universo literário argentino, segundo Saer. O apreço do
argentino pela narrativa de viagem mostra a ênfase dada à experiência do sujeito e ao acirramento das fronteiras
entre os gêneros literários. O próprio Ébelot afirma, no seu posfácio: « [...] [s]i j’ai recueilli ces pages volantes,
c’est que la rapide transformation de la République argentine leur donne un mélancolique intérêt et une sorte de
valeur historique. L’Indien n’existe déjà plus. Dans dix ans, la civilisation impitoyable aura poli à l’émeri les
anfractuosités et les lignes frustes de la figure accentuée du gaucho. Les simples notes d’un témoin oculaire y
gagneront quelque saveur » (ÉBELOT, 1992, p. 20). [Tradução nossa: “[...] Se eu reuni essas páginas soltas foi
porque a rápida transformação da República Argentina lhes concede um melancólico interesse e uma sorte de
valor histórico. O índio já não existe mais. Em dez anos, a civilização impiedosamente terá polido com um
esmeril as anfractuosidades e as linhas brutas da figura típica do gaucho. As simples notas de uma testemunha
ocular ganharão, aí, algum sabor”].
70
SAER, 1994, p. 151.
41
71
Ravetti (2011, p. 49) afirma que “[...] [a] obra de Saer ensaia uma forma dramática e oblíqua, na qual se insinua
a violência e as perdas irreparáveis durante os períodos históricos que se iniciam na década de 1960, com a
Europa do pós-guerra e as ditaduras da segunda metade do século XX na América Latina. A história funciona
como um feixe fortemente emocional e não como instituição de discurso e práxis tranquilizadora”.
42
y un proletariado con una fuerte conciencia política y un alto nivel de organización” 72,
consequência da onda imigratória massiva, advinda de várias partes do mundo. Essa
consciência política constituirá um dos importantes ingredientes que impulsionará alguns dos
atrozes conflitos da região. O narrador traz, como imagem simbólica da ditadura de Rosas
(1829-1852), o primeiro conto da literatura argentina: El matadero, de Esteban Echeverría73.
Segundo o narrador, a população rioplatense tem certa intimidade com o massacre, devido
aos repetitórios conflitos que assolaram o país, desde a sua independência, declarada em
1816. Essa consciência da barbárie integra a imaginação local e é perpetuada, na Literatura, já
na “primeira expressão literária original”: na literatura gauchesca.
O caráter de violência presente na literatura estabelece em relação direta com os
inúmeros conflitos que ocorreram na região74: “[...] [c]on frecuencia se ha observado el
carácter festivo de la violencia en el río de la Plata, y en su literatura”75. O narrador enumera
que, em quarenta e seis anos, houve seis golpes de estado no país. O Peronismo é apontado
como um dos responsáveis por uma das maiores catástrofes dos anos setenta.
Esse clima de inverno sobreveio de forma brutal sobre o país, com a manifestação
de verdadeiros serial killers. A propósito desse movimento, o narrador pontua: a vida imita a
arte. Aqui, a ênfase retorna à relação entre experiência e representação ou à própria discussão
dos limites do texto ficcional. As inúmeras mortes, os sequestros e as torturas obnublaram os
ares da região. Percebemos, então, que a questão latente, nesse capítulo, é a busca por
72
SAER, 1994, p. 167.
73
Echeverría (1999, p. 16) descreve a violência do homem sobre o animal como cortina de entrada para
demonstrar a reciprocidade que há quando se trata das torturas políticas: “[l]a sala de la casilla tenía en su centro
una grande y fornida mesa de la cual no salían los vasos de bebida y los naipes sino para dar lugar a las
ejecuciones y torturas de los sayones federales del matadero”.
74
Ébelot escreve, no final do século XIX, sobre essa relação dos argentinos com a violência: « [c]ertes, il y a
encore dans la République argentine des assassins de nature, des assassins, pourrait-on dire, spontanés, qui tuent
les gens pour plaisir. J’en ai connu ; j’en ai même eu sous mes ordres tout un peloton, qui me servait d’escorte »
(ÉBELOT, 1992, p. 74). [Tradução nossa: “Certamente, há, ainda, na República Argentina, assassinos de
natureza; assassinos, poderíamos dizer, espontâneos, que matam as pessoas por prazer. Eu os conheci; eu mesmo
tive sob minhas ordens todo um pelotão, que me servia de escolta”].
75
SAER, 1994, p. 175.
43
identidade, o que, de certa forma, sempre norteou discussões e conflitos da região rioplatense.
A própria constituição da sociedade – devido à grande onda imigratória – contribuiu para
distorções e sentimento de “desgarramiento”. A literatura se mostra como espaço para esse
processo de constituição da sociedade, como espaço de busca por identidade. A procura pela
identidade argentina, segundo o narrador, não foi articulada, peremptoriamente, mas
proporcionou ênfase ao problema ou sublinhou o enxergar a própria diversidade.
76
SAER, 1994, p. 207.
44
mujer que entraba en el río me iba mostrando, a medida que se internaba en el agua, el
espejismo tenue de lo individual”77. O sentimento de espelhamento se mostra como a
possibilidade de sentir além dos limites do contato tátil individual. Não se pode esquecer que
o episódio é trazido pelo narrador, para ilustrar a ideia defendida de que se experimenta pela
mediação da arte: no ato de escrita o ficcionista faz sentir e sente todo o movimento das coisas
e pessoas que narra. Sintetizando essa discussão, o narrador apresenta a função da literatura:
“[...] [c]rear un objeto que apunte a aquello que especialistas y legos tienen en común”78. Na
conclusão da discussão, o narrador finaliza com uma afirmativa cheia de entremez: “[...] [e]l
fin del arte no es representar lo Otro, sino lo Mismo” 79. Essa promoção de “o mesmo” ou de
um projeto especulativo daquele que o arregimenta se apresenta ao narrador como processo
singular da ficção. Essa indagação sobre a funcionalidade do literário serve, também, para que
o narrador referende tanto o imaginário sobre o Río de La Plata quanto as experiências
empíricas com esse objeto.
Abrimos parêntesis: segundo Barbaras, a passagem do pensamento
fenomenológico para o pensamento ontológico em Merleau-Ponty ocorre, principalmente,
quando o filósofo se depara com o problema da alteridade: “[...] [a]vec la description de
l’expérience d’autrui se manifeste, mieux qu’ailleurs, l’insuffisance de la perspective adoptée
dans cet ouvrage [Fenomenologia da Percepção] et, partant, la nécessité d’un passage à
l’ontologie”80 (colchetes nossos). Com o propósito de decifrar esse problema, Merleau-Ponty
percebe a necessidade de se ultrapassar a distância fenomenológica, para que se consiga
reconstruir a relação com o outro. Saer, por seu turno, expõe seu posicionamento afirmando
que a relação com o outro se realiza mediante uma inflação da própria subjetividade: a
personagem projeta em si mesmo aquilo que percebe no outro. Pode-se defender – em muitos
trechos de Saer – um idealismo perspicaz, quando se trata da relação com o mundo e com o
outro. É importante essa posição, por contribuir para coibir a defesa de um objetivismo
acerbado nas narrativas saerianas81. Por outro lado, é importante registrar que esse idealismo é
posto de lado quando a relação espacial se firma concretamente entre a personagem e o
mundo percebido.
77
SAER, 1994, p. 218.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
80
BARBARAS, 1991, p. 36: “Com a descrição da experiência do outro se manifesta, melhor do que em outro
lugar, a insuficiência da perspectiva adotada nessa obra (Fenomenologia da Percepção) e, portanto, a
necessidade de uma passagem à ontologia” (Tradução nossa).
81
Como o defendido quando do cotejo das obras de Saer com o nouveau-roman, tema discutido no início deste
capítulo.
45
82
SAER, 1994, p. 221.
46
contradictorios”83. Com essa citação, chegamos ao ensaio que encabeça a maioria das
discussões sobre a estratégia ficcional saeriana: “El concepto de ficción”, ensaio de 1989,
publicado em 1997, no livro homônimo.
A mediação do fato – em todos os tipos de relato − gera conflito quanto ao seu valor objetivo.
A própria confluência do acontecimento ao ambiente do relato já possibilita conceituá-lo
como uma construção; Saer sublinha esse fato, quando se posiciona em relação à questão da
interpretação. A subjetividade está presente no relato dito objetivo: o movimento de leitura e a
concatenação dos acontecimentos acentuam o papel do enunciador. Essa discussão era
promissora, na época de publicação do ensaio, e denuncia os paradigmas da ficção saeriana.
A importância do reiterado gesto saeriano, ao pôr em discussão os limites da
ficção, preocupando-se com uma teoria que possa decompor os elementos do objeto ficcional,
justifica-se não pelo fato de o autor querer delimitar os espaços do ficcional e da realidade; ao
contrário, Saer se interessa pela discussão no sentido de relativizar, em determinado grau, o
83
SAER, 1997, p. 10.
48
[...] [a]l dar un salto hacia lo inverificable, la ficción multiplica al infinito las
posibilidades de tratamiento. No vuelve la espalda a una supuesta realidad
objetiva: muy por el contrario, se sumerge en su turbulencia, desdeñando la
actitud ingenua que consiste en pretender saber de antemano cómo esa
realidad está hecha (SAER, 1997, p. 12).
Saer, após esse trecho, decompõe a ficção em dois elementos: “el carácter doble de la ficción,
que mezcla, de un modo inevitable, lo empírico y lo imaginario”84. Quando a ficção põe em
discussão a verdade − o empírico −, o objetivo é promover a si mesma ou estruturar os seus
próprios elementos. A verdade se revela como um conceito problemático, para Saer um lugar
incierto, porque seus limites não são plenamente definíveis. A ficção, por outro lado, é o
espaço da experimentação, ambiente em que se pode jogar com as fissuras do real. A
dificuldade de se conceituar a ficção está na complexidade dos elementos que a compõem ou
no próprio manuseio subjetivo do elemento empírico.
Saer busca redimensionar o conceito de ficção não como espaço exclusivo de
subjetividade e nem mesmo como reduto do falso. A ficção se mostra como espaço de
perspectivação do real ou como forma de “submergir-se na turbulência da realidade
objetiva”85, como o próprio Saer defende no ensaio. É no ambiente ficcional que se procura
superar as diferenças entre o objetivo e o subjetivo ou, também, entre o real e a ficção. O
projeto ficcional se encontra no gesto de que se recorre “[...] a lo falso, lo hace para aumentar
su credibilidad”86. Saer continua, mas “[…] la ficción no solicita ser creída en tanto que
verdad, sino en tanto que ficción”87. Esse é um dos pontos centrais da discussão saeriana ou
aquele que tem maior importância para este trabalho: a questão das instâncias ou dos espaços.
Saer se posiciona afirmando que a ficção não almeja ser recebida como verdade,
apesar de se forjar com os elementos do mundo objetivo. O seu autodesnudamento88 implica
se mostrar como ficção, ao mesmo tempo em que se assume como um espaço de
84
SAER, 1997, p. 12.
85
Ibidem, p. 9.
86
Ibidem.
87
Ibidem.
88
ISER, 2002, p. 955.
49
interdependência com o mundo real. Esse movimento de autorrevelação se mostra como gesto
de apropriação do espaço ficcional ou de liberdade para o “manuseio” do real. Na
impossibilidade de atingir a coisa em si mesma, de recobrir o objeto em sua integralidade, a
ficção se apresenta como o espaço em que se podem reformular as filigranas do real. A ficção
− liberta das cadeias do real ou da imposição a uma verdade – torna-se mais propícia a atingir
esse lugar, na perspectiva conceitual saeriana. Essa contradição é explicada pela capacidade
da ficção de se construir as muitas facetas do real, por meio dos recortes narrativos, na
multiforme representação mediática das coisas pela Arte.
A liberdade de criação é, para Scavino (2004), um ato de nomear, de trazer as
coisas à existência. Pensando a metafísica do texto ficcional, Scavino percebe essa
perspectiva teórica em Saer: “la cuestión del ser y la del nombrar son, para Saer,
equivalentes”89, e:
[p]oco importa entonces que alguien escriba en prosa o en verso, o que sus
textos no formen parte de lo que los suplementos de cultura y las academias
consideran poesía o literatura: el lenguaje poético es un acto cosmogónico y,
en este aspecto, un retorno a esa dimensión de la palabra olvidada por el uso
comunicativo, o funcional, de la sociedad cotidiana. Nombrar originaria o
poéticamente significa extraer una cosa del fondo indiferenciado y caótico
de la materia visible, de manera semejante a como el Golem surgió de una
masa informe cuando el rabino praguense encontró el nombre apropiado
para llamarlo (SCAVINO, 2004, p. 9).
Esse posicionamento é revelado quando Saer defende a relatividade entre diferentes tipos de
textos; a partir dessa discussão, a relação do sujeito com o mundo é posta em debate. A
vivência é equiparada com a experiência artisticamente representada na literatura ou nos
textos ditos verídicos. Assim, como afirma Scavino, em Saer, “pensar a linguagem poética é
pensar a origem da própria objetividade”90. É nesse ínterim que a discussão filosófica adentra
tanto os ensaios teóricos e críticos de Saer quanto seus romances.
O gesto poético de nomear as coisas está em consonância com o processo de
vivência: o nomear é o advento da própria coisa, a palavra traz o ser à existência. A essa
interação profunda com o mundo, Scavino denomina “dimensión poética u ontológica de la
palabra”91. Essa conceituação é interessante, porque responde concretamente às demandas
desta tese, já que identifica em Saer a postura ontológica da relação do sujeito com o mundo.
89
SCAVINO, 2004, p. 11.
90
Ibidem, p. 12.
91
Ibidem.
50
92
Barbaras defende o prosseguimento do pensamento de Merleau-Ponty, na passagem da fenomenologia para a
ontologia: « [...] [a]ussi l’ontologie de Merleau-Ponty ne doit-elle pas être opposée à l’entreprise
phénoménologique : elle en est au contraire l’accomplissement, et il s’agit seulement de reprendre la tâche que
Husserl s’était proposée là où il l’avait abandonnée, c’est-à-dire de penser jusqu’au bout ce « monde de la vie »
auquel une phénoménologie conséquente est nécessairement reconduite » (BARBARAS, 1991, p. 99). [Tradução
nossa: “[...] Também a ontologia de Merleau-Ponty não deve estar oposta ao trabalho fenomenológico: ela é, ao
contrário, o seu cumprimento, e se trata somente de retomar os trabalhos que Husserl, anteriormente, se tinha
proposto, a partir do ponto onde ele havia abandonado; isto é: pensar, até seus limites, esse « mundo da vida » ao
qual uma fenomenologia consequente é necessariamente reconduzida”].
93
SAER, 1997, p. 13.
51
No mencionado ensaio, Saer toma como exemplo daquilo que lhe interessa na
relação entre realidade e ficção a obra de Borges, que “[...] no reivindica ni lo falso ni lo
verdadero como opuestos que se excluyen, sino como conceptos problemáticos que encarnan
la principal razón de ser de la ficción”94. Prestigioso, para Saer, é o ato de pôr em questão a
representatividade, nos limites do próprio romance; discute-se a capacidade de apreensão do
mundo ou a relação com o real, com a totalidade. Essa demanda da ficção – a leitura do
mundo ou a própria receptividade das coisas pelo relato − torna-se uma iterativa preocupação
com os mecanismos da representatividade, um dos temas recorrentes do romance: a questão
da apreensão do mundo é posta a descoberto. Esse eixo metaficcional de discussão
proporciona que a dinâmica entre sujeito e mundo seja tocada ou que as instâncias do mundo
real se mostrem na problemática da percepção. Quando, nos romances, se discute a
representatividade, Saer se aproxima do dilema da apreensão do mundo; essa questão é
acentuada em El río sin orillas, na medida em que é reproduzida como personagem da própria
obra: a problemática de representação do rio se transmuta no dilema do próprio discurso
ficcional. O espaço apresenta-se, ademais, como invólucro e substância que contém as ações e
os personagens, um agente que modula a relação das personagens no mundo.
No final do ensaio, Saer conceitua a ficção como uma “antropologia
especulativa”: “[...] [a] causa de aspecto principalísimo del relato ficticio, y a causa también
de sus intenciones, de su resolución práctica, de la posición singular de su autor entre los
imperativos de un saber objetivo y las turbulencias de la subjetividad”95. A questão do
“aspecto principalísimo del relato ficticio” se relaciona, talvez, com a discussão anterior ou
com a posição do texto em relação à representatividade do mundo. Quando se fala das
intenções do texto – essa questão é intermediária ao problema da representatividade – o foco
se volta para o sujeito e ao conceito final formulado por Saer, que pontua que a ficção, “[...]
aunque se afirmen como ficciones, quieren sin embargo ser tomadas al pie de la letra” 96. Essa
assertiva é um paradoxo, mas resulta da conclusão de que a ficção adquire um papel
importante na problemática do mundo ou enfileira-se a outros tipos de discurso no projeto de
pensar o próprio mundo. O terceiro ponto do conceito se relaciona com o pensamento anterior
– se entendido como aspecto prático aquilo que é integrado ao mundo – e, dada a
interpretação dúbia da noção de “resolución”, pode ser, também, uma investida no projeto
formal do texto. A questão da subjetividade encerra as causas elencadas por Saer no afã de
94
Ibidem, p. 15.
95
SAER, 1997, p. 16.
96
Ibidem.
52
97
SAER, 1999, p.17.
98
Ibidem.
53
99
Ibidem.
54
que lhe interessa é a forma de transmissão dos acontecimentos e não se eles, de fato,
ocorreram: pensamento que ele anuncia em seus ensaios, como prerrogativa de discussão. É
esse aspecto de construção e de estruturação dos elementos − que compõem o relato − que
cativa Saer, sendo defendido como uma das perspectivas da noção de objeto. Da mesma
forma que outros objetos se formam a partir da reunião de elementos, a narrativa, segundo
Saer apresenta-se como um construto de dois elementos: “[...] una serie de representaciones
estilizadas por los signos arbitrarios del lenguaje y cierto número de marcos convencionales
que suministra el género elegido”100. O primeiro elemento acentua o gesto representacional da
linguagem; o segundo, por seu turno, releva o posicionamento do escrevente em relação à sua
produção. Nesse último, a pergunta que se procura responder é qual a função do texto escrito,
enquanto no primeiro elemento, se acentua a própria produção ou como transformar o sentir –
a vivência − em sentido ou em signos.
A partir disso, Saer apresenta uma das teses do ensaio: a diferença entre discurso e
relato. Segundo ele, o discurso se compõe de uma “serie de universales” e, por outro lado, o
relato se mostra como um processo de “figuraciones particulares”. Observamos, aqui, que o
aspecto subjetivo do conceito ficcional se apresenta, também, no bojo da concepção de relato;
ou seja: sendo o relato o campo do ficcional, a presença da subjetividade é uma certeza. É
como se fosse impossível falar de ficção sem atingir esta nuança da representação: a presença
do homem. No ensaio “El concepto de ficción”, analisado anteriormente, a subjetividade foi
apresentada como o próprio conceito de ficção ou como movimento humano de exploração do
mundo. Por seu turno, aqui, em “La narración-objeto”, o aspecto de construção assinala o viés
da subjetividade, no ato de concatenar, no processo de modulação dos dois elementos da
narrativa. Parece que, diferente do discurso, em que os elementos são mais rígidos, o relato se
descobre por essa estreita dependência de uma significação subjetiva. Enquanto o discurso se
molda dentro de padrões objetivos, o relato apresenta em seu bojo o aspecto individual,
subjetivo.
Na conclusão da diferenciação entre relato e discurso, Saer aceita a ideia de que os
próprios universais possam ser considerados como objetos. Assim, enxergamos, também,
nesse bloco, a dependência do sujeito no sentido de condicionar o discurso. Segundo ele, essa
concepção dos universais favorece sua tese da narração-objeto e, ainda mais, intensifica a
indeterminação entre realidade e ficção, porque intensifica a relação entre esses dois núcleos;
ou seja: na medida em que é indiferenciado o grau de participação do sujeito no texto, releva-
100
SAER, 1999, p. 18.
55
101
Ibidem.
102
Percebe-se que Saer teoriza na busca por balizar aquilo que formaliza como conceito de sua ficção.
103
SAER, 1999, p. 19.
56
104
Ibidem, p. 20.
105
SAER, 1999, p. 22.
106
RAVETTI, 2011, p. 62.
57
[c]obran la misma autonomía que los demás objetos del mundo y algunas de
ellas, las más grandes, las más pacientes, las más arrojadas, no se limitan a
reflejar ese mundo: lo contienen y, más aún, lo crean, instalándolo allí
donde, aparte de la postulación autoritaria de un supuesto universo dotado de
tal o cual sentido inequívoco, no había en realidad nada (SAER, 1999, p.
29).
107
Saer promove a singularidade da ficção mediante a defesa da presença do enigma no relato: essa condição em
que não se pode medir o grau de subjetividade do texto.
108
Barbaras, em nota número trinta e três de pé de página, citada entre parênteses, explica a singularidade do
conceito de objeto em Merleau-Ponty; ou melhor: pontua que esse filósofo trabalha com uma nomenclatura mais
arrojada; em lugar de objeto, encontra-se o termo coisa: “Il va donc de soi que, pour Merleau-Ponty, « chose »
ne désigne pas ce que l’on entend habituellement par ce terme, à savoir une réalité délimitée, déterminée,
reposant en elle-même, bref un objet. [...] Il appelle chose la réalité phénoménale telle qu’elle se donne
originairement et, précisément, le but de son analyse est de montrer qu’elle ne se donne jamais sous forme de
choses achevées, circonscrites, pleinement déterminées” (BARBARAS, 1991, p. 223). Essa desenvoltura do
conceito de coisa atualiza a sua relação com as outras coisas e com o homem, em um sistema de
interdependência: essa questão é discutida no capítulo 2, dedicado ao estudo de Merleau-Ponty. [Tradução nossa:
“É então que, para Merleau-Ponty, « coisa » não designa o que entendemos habitualmente por esse termo, a
saber, uma realidade delimitada, determinada, repousando nela mesma, resumindo: um objeto. [...] O filósofo
nomeia de coisa a realidade fenomenal tal que ela se apresenta originalmente e, precisamente, o objetivo de sua
análise é mostrar que ela nunca se manifesta na forma de uma coisa terminada, circunscrita, plenamente
determinada”].
58
[...] [n]o es desde luego obligatorio que un autor de ficciones escriba textos
críticos que, a menudo, a pesar de su tono objetivo, no reflejan más que sus
hábitos, e incluso sus prejuicios disfrazados de conceptos. Pero nada ha sido
dado de una vez y para siempre, sobre todo en literatura, lo que puede
permitir – ha ocurrido más de una vez – que esos hábitos y esos prejuicios
transformen, para su autor al menos cuando los pasa en limpio, las premisas
del arte (SAER, 1999, p.11).
A relação de Saer com a crítica literária ultrapassa os limites de seus ensaios. Como
afirmamos inicialmente, os romances e mesmo o seu livro de poesia condensam uma
discussão reiterada do seu envolvimento com a ficção. É como se Saer se provocasse no
59
109
Conceito de Premat (2002, p. 16) a respeito do gesto meta-ficcional de Saer em sua obra.
60
110
PREMAT, 2002, p.14.
61
antecipa as questões teóricas mais importantes da obra de Saer discutidas, potencialmente, nos
ensaios. Essa constatação desvela como o autor articula as nuances do conceito de ficção
dentro do universo do texto literário, ao mesmo tempo em que demonstra a peculiaridade
dessa obra que encena o próprio fazer literário. Esse ato é descoberto quando se articulam
fontes diversas para a confecção do texto, acrescida da participação meticulosa do narrador-
autor. Questões relevantes – como a nuance de subjetividade no interior do texto, a promoção
da relação entre sujeito e objeto e as formas de representação dessa relação – efetivam o
movimento do conceito de ficção. Todas essas facetas do conceito se movimentam, também,
no interior do discurso filosófico presente em La grande. Dessa forma, o conceito de ficção de
Saer está atrelado às estruturas de seu pensamento filosófico.
É nesse movimento do pensamento que percebemos a relação entre teoria literária
e filosofia ou como Saer, dialeticamente, aproxima esses dois campos de conhecimento. Esse
gesto serve para relativizar as distâncias, ao mesmo tempo em que legitima uma discussão
aprofundada de termos literários. O teor filosófico é encontrado, principalmente, no último
ensaio aqui discutido, “La narración-objeto”, que expõe a relação entre sujeito e objeto por
meio da linguagem ou da concepção textual de relato e discurso. Preocupando-se com o relato
da vivência, Saer toma por foco a percepção do mundo e as múltiplas formas de representação
dessa experiência. El río sin orillas prioriza a encenação da vivência, o processo de encontro
do homem com o rio. Há um jogo entre a experiência direta e o emaranhado de relatos que
narraram o Río de la Plata. Saer reclama o direito de equiparação entre os escritos sobre o rio,
sejam eles, históricos, geográficos ou literários. Quando focamos no conceito de ficção – seja
em El río sin orillas ou nos dois ensaios teóricos −, temos que o cerne da questão é a
liberdade que o texto literário propicia para a discussão do próprio mundo.
Esse processo de imersão no mundo e de uma descritiva experiência com as
coisas é que procuramos ler por intermédio da fenomenologia e, principalmente, da fase
ontológica de Merleau-Ponty. Buscamos, por meio de textos desse filósofo, conceituar os
gestos das personagens na relação com os outros e com o mundo ou na densidade da vivência.
Depois de repassada a teoria ficcional saeriana, o próximo passo é discutirmos sobre o espaço
teórico-literário e filosófico. O próximo capítulo trata, então, dessa investida na conceituação
do espaço literário: como representação e como focalização. No primeiro caso, o capítulo que
aqui se encerra é o lócus maior de discussão, em termos da perspectiva saeriana, a respeito do
ato de representação. Mesmo assim, essa perspectiva é também abordada no próximo
capítulo, articulando, em discussão, contribuições de outros pensadores da teoria literária.
Quando se volta para o espaço como focalização, percebemos o benefício de se trazer para o
62
CAPÍTULO 2
“O sensível, o visível deve ser para mim a ocasião de dizer o que é o nada -
O nada não é nada mais (nada menos) que o invisível”.
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 232.
111
No texto “Espaços literários e suas expansões”, o pesquisador brasileiro Luis Alberto Brandão enumera alguns
vieses de abordagem da categoria espaço literário: o espaço como focalização, a espacialidade da linguagem, o
espaço como representação e a estruturação espacial ou “a retirada da primazia de noções associadas à
temporalidade” (BRANDÃO 2007, p. 209).
112
Quando tratamos, aqui, de representação, cumpre precisar o sentido atribuído a esse termo; Brandão (2013)
assim o define: “[...] [n]esse tipo de abordagem, com frequência nem se chega a indagar o que é espaço, pois ele
é dado como categoria existente no universo extratextual. Isso ocorre sobretudo nas tendências naturalizantes, as
quais atribuem ao espaço características físicas, concretas” (p. 59). O espaço como representação interessa, nesta
tese, como gesto de encenação do mundo, como possibilidade de reativar o contato das personagens com o
mundo. É, também, nesse sentido que Merleau-Ponty se interessa pela Arte: como potenciadora da relação do
corpo com o mundo.
113
MOTA, 2011, p. 72.
64
unir o a priori kantiano com ao posteriori ou com as sensações. Fuão (2004) articula essa
relação nestes termos: “Merleau-Ponty nos fez ver que o corpo é a nossa principal referência
espacial e que o espaço deve ser compreendido não só a partir dele, mas também como uma
extensão do próprio corpo”.
Por meio desses contrapontos conceituais, o escopo teórico desta pesquisa se
esclarece, percorremos a categoria espacial aqui em seus dois, já mencionados, vieses
teóricos: o da representatividade e o da focalização. Na análise, subsequente, da obra de Saer
priorizamos os romances em que o espaço da natureza é inventariado pela personagem em
constante busca por sentido. Neles, enfocamos a voz que tenta percorrer os limites do espaço
por meio de apurada descrição das coisas e do movimento. Quando se passar para a Filosofia,
o enfoque espacial, aqui, pode ser designado pelo tema, fenomenológico, de apreensão
máxima. Além desse aspecto da filosofia de Merleau-Ponty, os dois braços teóricos – já
mencionados – são percorridos na discussão literária do espaço, no escopo de pensarmos o
gesto saeriano de recobrir por meio do olhar da personagem, as filigranas do espaço. A
última fase de Merleau-Ponty, tendo como eixo central O visível e o invisível, apresenta-se
como uma forma de leitura do pertencimento do corpo ao espaço 114. Essa imersão na filosofia
de Merleau-Ponty tem por objetivo descrever os gestos das personagens saerianas no encalço
de se confluírem com o mundo, em suposta busca pelo sentido da experiência. O ato de se
recorrer à filosofia de Merleau-Ponty justifica-se pelo fato de nela percebermos uma descrição
proveitosa da relação do corpo com o mundo, o que defendemos, aqui, contribuir para a
discussão teórica literária do espaço ficcional, principalmente em se tratando do eixo da
focalização. Introduzimos, primeiramente, a teoria literária do espaço ficcional, nos âmbitos
da representação e da focalização. Identificamos esses dois vieses da teoria literária espacial
na relação do homem com o mundo ou na insistência de uma interação plena. A ontologia
final de Merleau-Ponty mostra-se como uma chave de leitura da discussão saeriana da
possibilidade de comunhão entre a personagem e o mundo. A investigação do espaço pelas
personagens passa a ser um movimento interrogativo que deixa o mundo revelar-se na
interação com o corpo. A relação entre filosofia e literatura também é trabalhada por Merleau-
114
BARBARAS (1991, p. 238) afirma que “[l]a réflexion de Merleau-Ponty sur l’espace est tout entière centrée
sur une méditation de la profondeur : en elle peut se lire de manière privilégiée une expérience primordiale de la
spatialité. En effet, alors que les autres dimensions sont déployées devant le sujet et semblent appartenir aux
choses mêmes, la profondeur est comptée à partir du sujet, exprime sa perspective sur le monde, correspond au
déploiement même de l’exteriorité”. [Tradução nossa: “A reflexão de Merleau-Ponty sobre o espaço é totalmente
centrada sobre uma meditação da profundidade: nela, pode-se ler, de maneira privilegiada, uma experiência
primordial da espacialidade. Com efeito – já que as outras dimensões são dispostas diante do sujeito e parecem
pertencer às coisas mesmas –, a profundidade é manifesta a partir do sujeito, exprime sua perspectiva sobre o
mundo, corresponde ao desdobramento da exterioridade mesma”].
65
Ponty, quando discute o invisível: a literatura se apresenta como fonte indireta de apreensão
desse tipo de conhecimento.
Buscamos, no primeiro capítulo, conjugar a discussão teórica de Saer – sobre a
possibilidade de representação do mundo − com o fascínio do autor em construir uma imagem
espacial, passível de descrição por uma escrita que privilegia o trabalho com as nuances de
envolvimento das personagens com o mundo. Aqui, percorremos os teóricos, como os já
mencionados no início deste capítulo, no escopo de delinear o espaço nos seus vieses de
representação e de focalização. A relação de Saer com o mundo − principalmente nos
romances que têm como espaço a lhanura, o deserto e o rio − é priorizada, posteriormente, nas
nossas análises teóricas dos romances. A preferência é justificada porque, nesses romances,
percebemos, de forma mais latente, a investida da personagem em direção ao mundo. A
discussão teórica-literária, aqui, é prosseguida por uma pesquisa filosófica baseada na
fenomenologia de Merleau-Ponty. A resistência dessa fenomenologia é testada na última fase
de sua filosofia e o interessante é percorrer os questionamentos desse filósofo acerca de seus
primeiros conceitos: a aplicabilidade e a resistência deles na tentativa de suplantar o
binarismo sujeito e objeto. Essa discussão é de suma importância, porque é uma forma de
decifrarmos o gesto saeriano de fazer colidir o homem com o mundo, em suas apuradas
descrições espaciais. Merleau-Ponty, ciente de que precisa dar um passo maior do que dera
em a Fenomenologia da Percepção, projeta a sua ontologia115. O objetivo é aprofundar-se na
relação do corpo com o mundo, buscando descrever os elementos que constituiriam esse
universo do ver. É na consolidação da experiência, no gesto de busca e aprofundamento da
relação entre o corpo e as coisas, que esse filósofo se fixa.
Posteriormente, analisamos a aplicabilidade dessa filosofia no âmbito das Artes,
sendo, aqui, seguido o eixo da Literatura. Nessa parte do capítulo, demonstramos como esse
pensamento pode ser trazido para potencializar a análise da percepção e da experiência na
obra de arte. Desvinculado de um pensamento exclusivamente estruturalista, o espaço é
pensado na sua realização, na vivência das personagens. É nesse gesto de trazer à discussão a
potencialidade da filosofia de Merleau-Ponty − principalmente nos últimos “conceitos”, para
115
Rosati assim define esse último pensamento de Merleau-Ponty: « [...] [l]a thèse de Merleau-Ponty est que la
chair du monde finit par coïncider avec la chair du corps. La chair du monde est en effet cet empiétement des
choses les unes sur les autres, une promiscuité engendrée par le chiasme entre visible et invisible. C’est la
superposition des choses dans la profondeur, le croisement du devant et du derrière » (ROSATI, 2009, p. 40).
[Tradução nossa: “A tese de Merleau-Ponty é a de que a carne do mundo acaba por coincidir com a carne do
corpo. A carne do mundo é, de fato, esse avanço das coisas umas sobre as outras, em uma promiscuidade gerada
pelo quiasma entre o visível e o invisível. É a superposição das coisas na profundidade, o cruzamento daquilo
que se mostra e daquilo que se esconde”].
66
a leitura da experiência das personagens − que esperamos legitimar esse giro filosófico. Nesse
sentido, este capítulo é dividido em três partes: a primeira apresenta uma entrada na teoria do
espaço literário, nos ramos da representação e da focalização; a segunda parte compreende a
filosofia de Merleau-Ponty, a discussão sobre a apreensão máxima e a experiência no mundo;
a terceira parte apresenta a passagem do pensamento de Merleau-Ponty para a leitura do
espaço literário, uma forma de aplicabilidade teórica da filosofia, por meio do conceito de
“paisagem” de Collot. A ênfase no olhar, tão nítida no pensamento desse filósofo é, assim,
aproximada das teorias espaciais que pensam a focalização e a experiência no mundo.
Quando tratarmos do espaço como representação, o foco incidirá, também, sobre
o pensamento de Saer sobre a representatividade do mundo. O estudo nesse ramo do espaço
literário se justifica por Saer se preocupar, exaustivamente, com a representação da
experiência – em descrever esse contato da personagem com o mundo – e, subsequentemente,
discutir a possibilidade de representar essa experiência. A questão da representatividade é,
então, central em Saer, tanto no gesto lancinante de apreensão do todo como no seu
autotematismo. Em Saer, vemos essa meta de perseguir o sentido da experiência; tanto é
assim, que Premat (2002) percebe esse gesto como um dos temas centrais da saga saeriana. A
experiência é exaurida em seu potencial máximo, para que se percebam os mecanismos de
envolvimento do sujeito com os outros e com o mundo.
116
BRANDÃO, 2013, p. 3.
67
face para a ideia de espaço, na medida em que relativiza seu aspecto apriorístico, quando
reclama apenas a sua contiguidade com o homem. Aqui, os vieses literários dessa expressão
se fixarão nos espaços de representação e de focalização.
O espaço literário como representação117 se apresenta no afã de se recobrir o
universo narrado, em manifestar seus limites e contornos. O movimento do ficcionista está no
encalço de revelar o cenário da ação, porque, nessa abordagem, o espaço “[...] é dado como
categoria existente no universo extratextual”118. Busca-se a projeção do mundo narrativo na
descrição da cena, na sua conformação com o mundo extratextual. A discussão acerca da
possibilidade de se recobrir os contornos do espaço ou da capacidade de o texto representar o
mundo manifesta-se, também, por meio de uma teorização sobre o próprio conceito de ficção.
Essa nuança teórica se desvela nos questionamentos de adequação do texto ao universo que se
quer representar. O projeto do ficcionista de surpreender o mundo por meio das descrições
minuciosas do espaço se conjuga com a própria discussão acerca da possibilidade de
representação desse mundo. O projeto de escrita de Saer revela-se nesse iterativo gesto de
percorrer os limites do narrado e no esforço para discutir esse processo de representação.
A representação do mundo é tema literário por excelência e, quando pensamos em
representação, pensamos, imediatamente, na noção espacial. O espaço da representação é a
discussão do próprio universo da ficção ou em que medida se pode trazer para a linguagem
aquilo que se encontra no mundo. Barthes assim provoca o tema: “[...] [q]ue não haja
paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa
recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina incessante, a
literatura”119. Barthes defende essa ideia, afirmando “[...] que não se pode fazer coincidir uma
ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem)”120. É o desejo de
reaver, no texto, o plano do sensível – “a posse das coisas” – que motiva a busca pela
decifração dessa relação entre a linguagem e as coisas. A linguagem é uma forma imperfeita
de sintetizar essa ordem do pluridimensional, mas, por outro lado, a linguagem ganha valores
pluridimensionais, porque, também, fala pelo silêncio ou apresenta nuanças múltiplas de
sentido. Essa é uma das teses defendidas por Merleau-Ponty, destrinchada na segunda parte
deste capítulo. Resumindo: não há coincidência entre o real e a linguagem e esses ruídos é que
117
OTTE (2007, p. 238) sublinha a tautologia desse termo: “[...] [o] “espaço da representação”, de certa maneira, é
um pleonasmo, pois pensar nos termos da representação é trabalhar com o paradigma espacial, onde as palavras
se sobrepõem às coisas numa relação de correspondência ou analogia, isto é, numa relação que pertence ao
âmbito estático do espaço”.
118
BRANDÃO, 2013, p. 59.
119
BARTHES, 2007, p. 22.
120
Ibidem.
68
Compreendemos que o que Iser expõe como a realidade do texto ficcional é potencialmente
sentimental e emocional ou revela a relação do homem com o mundo. O espaço literário é,
então, esse lugar em que se confere abertura aos sentidos para inventariarem as nuanças do
mundo percebido. O espaço como representação é, também, um espaço humano e, por isso, é
difícil trabalhar o conceito de representação sem se recorrer ao outro espaço aqui abordado, o
da focalização. Antes de debruçarmos sobre este último, é preciso que recorramos a conceitos
de espaço literário elaborados por outros teóricos.
Bakhtin defende o conceito de “cronotopo” como a “[...] interligação fundamental
das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura”122; ou, como
exposto inicialmente, defende a existência de um nó entre tempo e espaço: eles não se
separam, mas são a própria possibilidade de realização da experiência. O espaço, segundo
Bakhtin, está interligado, ao tempo de forma que:
121
ISER, 2002, p. 958.
122
BAKHTIN, 1988, p. 211.
69
Percebemos que o espaço, segundo Bakhtin, não pode ser destrinchado sem ênfase no seu
duplo, no tempo. Aqui, o foco é o trabalho com o espaço da experiência; ou seja: posto está o
relevo no cronotopo, já que a progressão do espaço revela o veio temporal. Não podemos,
porém, transgredir a singularidade desses dois a priori; cada um desempenha e formaliza a
experiência de uma forma. Aqui, então, o tempo surge apenas como formatador da própria
experiência, como doador de sentido do vivido. O foco é o espaço ou como, na experiência, se
provoca aquilo que é possível ver e sentir e, também, como se procura ultrapassar os limites
para se alcançar algo que se esconde nas bordas do visível. O gesto está, então, posto na
visibilidade, mais que no projeto de conduzi-la à revelação de um sentido. É o jogo entre o
mostrar e o velar que interessa, potencialmente, a este trabalho.
Bakhtin afirma que tomou de empréstimo o conceito de cronotopo do pensamento
científico e a remissão aos conceitos kantianos é bem identificável. Esse filósofo defende
espaço e tempo como os a priori da experiência, nestes termos:
123
KANT, 2012, p. 72.
70
priori do fenômeno, como representação pura “alheia” aos fenômenos. Para se ter acesso,
então, a essa “forma”, Kant defende uma “intuição pura” ou uma “forma pura da
sensibilidade”124. O tempo e o espaço se mostram como “duas formas puras da intuição
sensível”125. Focando-se, aqui, o espaço, tem-se que Kant defende que “[p]or meio do sentido
externo (uma propriedade de nossa mente) nós nos representamos os objetos como fora de
nós, e todos eles no espaço”126. Percebemos, nessa última citação, a ênfase kantiana no sujeito
e, por conseguinte, a defesa do tempo – sendo ele a forma interna do fenômeno – como o
fundamento de todas as outras intuições. Essa observação é importante, porque, neste
trabalho, procuramos mostrar como o pensamento merleaupontyano busca relativizar essa
ênfase no sujeito da experiência ou busca redefinir o espaço como uma projeção do próprio
corpo ou como sua extensão.
O espaço da representação está, então, nessa investida para trazer para a
linguagem a pluridimensionalidade do real. É preciso acompanharmos esses ecos que se
produzem na representação do mundo, perseguindo uma conceituação de espaço que
privilegia a abordagem fenomenológica, por exemplo, ou a própria experiência: porque, se
percebemos o mundo como um ativo que sempre se modifica, podemos, então, afirmar que o
real não existe como categoria objetiva. Essa visão é explorada pela fenomenologia e,
tomando-se como exemplo o pensamento de Merleau-Ponty, temos a defesa do conceito de
corpo como elemento que integra a bipartição sujeito-objeto. Segundo Lyotard, a
fenomenologia “[h]a sido ante todo, y continúa siéndolo, una meditación sobre el
conocimiento, un conocimiento del conocimiento; y su célebre ‘poner entre paréntesis’
consiste en primer lugar en dejar atrás una cultura, una historia, en retomar todo saber
remontándose a un no saber radical”127. A fenomenologia interessa na medida em que pensa
radicalmente esse momento da experiência. Essa prevalência da vivência é uma forma de unir
os espaços, aqui, estudados – da representação e da focalização – ou de privilegiar essa
relação da focalização com o mundo vivido.
O espaço como focalização é a segunda categoria do espaço literário discutida
aqui. Nessa categoria, o foco se volta para a visão, para o gesto narrativo ou para o
movimento do olhar, porque:
124
Ibidem.
125
KANT, 2012, p. 73.
126
Ibidem.
127
LYOTARD, 1989, p. 10.
71
Esse movimento do narrador se manifesta no esforço para recobrir o espaço vivido, sendo a
ênfase depositada na experiência do sujeito, na sua capacidade de vivenciar o mundo
representado. A focalização engloba os sentidos do observador − as cores, os sons, os cheiros,
os gostos e os contornos – por meio da experiência daquele que narra. As sensações que o
espaço produz naquele que o vivencia é representado, a partir do seu interior, por meio da
representação dessa vivência.
Quando falamos em focalização, retomamos o problema do narrador ou sob qual
perspectiva o texto se revela ao leitor. O espaço da focalização é o estudo do próprio ver ou
dessa experiência refletida no texto: a ênfase está no movimento do olhar ou de revelação do
mundo. Esse espaço, então, é desvelado por um duplo movimento do vidente em direção ao
mundo, uma forma de sublinhar um desses dois polos. A focalização condiz, então, com o
sujeito que vê e com o movimento de revelação do mundo. A ênfase nesse giro entre sujeito e
mundo reflete o momento da experiência, um espaço que privilegia um ponto de vista
específico ou a participação efetiva do vidente. Didi-Huberman reflete essa ideia, nestes
termos: “[o] que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável
porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso
assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em
dois”128. Riquíssima é essa discussão, porque antecipa uma das grandes ideias
merleaupontyanas: a do vidente-visível, explorada na sua última filosofia.
A questão do ver é central em Merleau-Ponty e, em Saer, é enfatizada na
percepção da personagem ou na prioridade concedida à explanação do mundo. O rigor
descritivo saeriano descobre essa ênfase nos sentidos; principalmente, no ver. A remissão de
Didi-Huberman a Merleau-Ponty é posteriormente desvelada neste trecho:
[j]oyce não fazia aqui senão pôr antecipadamente o dedo no que constituirá
no fundo o testamento de toda fenomenologia da percepção. “Precisamos
nos habituar”, escreve Merleau-Ponty, “a pensar que todo visível é talhado
no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há
invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas
128
DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29.
72
também entre o tangível e o visível que está incrustado nele”. Como se o ato
de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido
diante de nós, obstáculo talvez perfurado, feito de vazios (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p. 31).
Blanchot exemplifica bem algo que é defendido por Merleau-Ponty: a percepção como uma
relação com o silêncio do mundo. Retira-se a prevalência dos polos sujeito e objeto e se
instaura a ênfase no movimento de aberturas perspectivas, como forma de se implementar um
lugar em que o receptor se sinta coparticipante desse momento da experiência. A Arte tem,
então, o poder de multiplicar os fios perceptivos e de sustentar essa relação potencial com
aquilo que ainda não foi revelado, com o próprio silêncio do mundo.
129
Merleau-Ponty, segundo Kelly (2004), gira em torno de três mundos: o “Para-si” – da consciência: imanente e
subjetivo −, o “Em-si” – do objeto ideal, transcendente, mas perseguido pela ciência −, e o “Mundo
fenomenológico” – da primazia do fenômeno, considerado como imanente e transcendente. Na verdade,
Merleau-Ponty questiona, a todo tempo, a existência do “Em-si”, a possibilidade do realismo é atacada,
potencialmente, seja na Fenomenologia da Percepção e, muito mais acirradamente, em O visível e o invisível. O
Para-si não recebe a mesma investida, mas, também, é preterido – há recorridas tentativas para se suplantar o
idealismo – em função do mundo fenomenológico.
74
construído pelo texto. Aproximamos, então, o intenso processo descritivo do espaço ficcional
saeriano com a filosofia de Merleau-Ponty, no aspecto da “apreensão máxima”. O objetivo é
compreender as relações das personagens com o espaço por meio das estruturas fenomenais
descritas por Merleau-Ponty. Justificamos a eleição desse pensamento filosófico pelo seu
diferencial em entranhar-se na própria experiência, como bem declara Barbaras: “[...] la
philosophie de Merleau-Ponty vaut avant tout par sa puissance d’interrogation, par cette
exigence incessante et par principe inaccomplie de faire retour à la expérience en son état
brut, à rebours des idéalisations qui y sont sédimentées”130. Percebemos esse gesto de
estruturação da experiência na relação das personagens saerianas com o mundo, na busca por
sentirem-se parte do todo. Saer discute o dilema do homem, buscando o sentido131 da
experiência e a possibilidade de confluir-se com o mundo. Exemplo disso é o seu obstinado
manuseio da imagem do horizonte, em seus romances. Essa relação com algo que sempre
escapa ao esforço de descrição torna-se um dos focos do seu projeto de relação aprofundada
com o espaço narrado.
Nesta segunda parte do capítulo, percorremos, portanto, a discussão do espaço na
obra de 1945, Fenomenologia da Percepção, buscando descrever a relação do sujeito com o
mundo132. Assim, o foco em Merleau-Ponty se inicia no capítulo sobre o espaço, no qual esse
filósofo defende uma nova postura em relação à cisão kantiana de sensação e mundo. Dessa
forma, o trabalho envolve os capítulos: “o espaço”, “o sentir” e “a temporalidade”, temas que
se oferecem, no início do capítulo sobre o espaço, como uma chave para o entendimento da
relação do sujeito com o mundo. Nesse processo inicial de discussão do livro de 1945, além
da leitura de fontes primárias, lançamos mão, principalmente, de textos de dois pensadores de
sua filosofia: Seeing things em Merleau-Ponty, de Sean Kelly (2004), e Merleau-Ponty’s
Ontology, de M.C. Dillon (1998). Entendemos, aqui, portanto, que o pensamento filosófico de
Merleau-Ponty é uma ferramenta de leitura da obsessão do narrador saeriano por apreender o
fenômeno por completo. O objetivo, aqui, e, em toda esta tese, é teorizar sobre essa postura
130
BARBARAS, 1991, p. 11: “[...] a filosofia de Merleau-Ponty é importante, antes de tudo, por seu poder de
interrogação, por essa exigência incessante e, por princípio, interminável de fazer retorno à experiência no seu
estado bruto, em contramão das idealizações que nela são sedimentadas” (Tradução nossa).
131
Essa palavra, sentido, é dilatada na obra de Merleau-Ponty, já que se trata não apenas da relação linguística
entre a coisa e a significação, mas da relação entre os sentidos da percepção.
132
Esse dualismo é combatido, na Fenomenologia da percepção, por intermédio do conceito de corpo: “[...] [c]’est
pourquoi le corps ne peut être finalement décrit qu’à travers l’exclusion symétrique des deux termes de
l’opposition: il n’est pas sujet, il n’est pas objet, mais la médiation du sujet et de l’objet” (BARBARAS, 1991, p.
26). [Tradução nossa: “[...] É devido ao fato de o corpo não poder ser completamente descrito senão por meio da
exclusão simétrica de dois termos de oposição: ele não é sujeito, ele não é objeto, mas a mediação do sujeito e do
objeto”].
75
133
A sequencialidade do pensamento de Merleau-Ponty é defendida por Barbaras, que chega a afirmar que « [i]l
nous semble que c’est à la lumière du Visible et Invisible que les travaux antérieurs acquièrent cohérence et
consistence, de telle sorte que nous ne pouvons les lire autrement qu’à travers la reprise à laquelle ils donnent
finalment lieu » (BARBARAS, 1991, p.12). Nesta tese, seguimos essa linha de pensamento, já que o nosso
objetivo é seguir o percurso do pensamento fenomenológico de Merleau-Ponty, mesmo no interior da sua última
ontologia; ou melhor: aceitamos a ideia de Barbaras de que a fenomenologia somente se realiza completamente
no último pensamento de Merleau-Ponty. [Tradução nossa da citação anterior: “Parece-nos que é à luz de O
visível e o invisível que os trabalhos anteriores adquirem coerência e consistência, de tal sorte que nós podemos
lê-los por meio dessa retomada a qual eles proporcionam”].
134
A fase intermediária de Merleau-Ponty caracteriza-se por reunir questionamentos sobre a linguagem, e a
importância desse período (1945-1953) é pontuada por Barbaras desta forma: “[...] [l]a philosophie de
l’expression suscite au contraire une démarche régressive qui, partant de la culture et du langage, interroge leur
sol originaire : c’est donc à partir du phénomène de l’expression qu’il faut rendre compte du corps et du monde,
comme ce qui nourrit son mouvement de transcendance” (BARBARAS, 1991, p. 80). [Tradução nossa: “[...] A
filosofia da expressão suscita, ao contrário, uma abordagem regressiva que, partindo da cultura e da linguagem,
interroga sua base originária: é a partir do fenômeno da expressão que se deve tomar consciência do corpo e do
mundo, como aquilo que nutre seu movimento de transcendência”].
76
135
Barbaras (1991, p. 28) sintetiza a postura de Merleau-Ponty, no capítulo “O espaço”, da obra de 1945,
Fenomenologia da percepção: “[...] [i]l s’agit, contre la pensée objective, de mettre à jour un espace
anthropologique, existentiel, antérieur à l’espace objectif, et dont ce dernier n’est qu’une détermination”.
[Tradução nossa: “[...] Trata-se, ao contrário do pensamento objetivo, de trazer à luz um espaço antropológico,
existencial, anterior ao espaço objetivo, e do qual esse último é somente uma determinação”].
136
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 327.
137
KANT, 2012, p. 74.
138
Ibidem.
139
Essa experiência de Stratton tinha por objetivo mostrar que o sujeito vai se adaptando aos níveis espaciais: o
sujeito era induzido a ver de cabeça para baixo e, no decorrer dos dias, ele se articulava de forma a conceber essa
inversão como sendo a forma correta de ver.
77
Merleau-Ponty busca encontrar em que ponto houve a ruptura entre esses dois espaços; seu
objetivo é superar a cisão efetuada no sujeito pelo empirismo e pela teoria reflexiva.
Depois de analisadas as possíveis subversões da noção de aparência − nas
experiências analisadas pelo filósofo −, Merleau-Ponty investiga a relação do corpo com o
mundo por meio do conceito de nível espacial e aceita que a disposição do mundo se baliza
por meio dos “pontos de ancoragem” ou que percebemos as coisas em relação a outras coisas.
O nível espacial é esse conhecimento que o “sujeito” passa a adquirir mediante o contato com
o mundo ou pela aderência que se firma entre corpo e o espaço. As investidas do sujeito põem
em movimento o nível espacial ou o conhecimento de mundo progride em conformidade com
os novos pontos de ancoragem conhecidos; esses manifestos em razão da percepção de novos
ângulos espaciais. A percepção acontece graças ao ajustamento entre o plano visual e a
disposição das coisas. É na sucessão dos níveis perceptivos que o corpo se ajusta ao melhor
ângulo de visão do mundo.
A importância desse início de discussão é central para o pensamento
fenomenológico, porque Merleau-Ponty se preocupa em descrever a relação do corpo com o
mundo. O posicionamento é o foco, primevo, do filósofo: a questão é descobrir como se
constroem os ajustes nessa relação e em que medida pode-se suplantar o dualismo kantiano
por intermédio da visualização de uma terceira espacialidade. Nesse escopo, o passo principal
é desvirtuar os inícios – seja ele concebido como partindo do sujeito como do mundo − e se
aprofundar no conceito de origem. A terceira espacialidade se caracteriza por se apresentar
como o lugar anterior ao pensamento dualista, aquém da divisão entre forma e conteúdo. Esse
conceito já desvela as nuanças da ontologia, dentro do pensamento fenomenológico de
Merleau-Ponty. Na esteira de revelar o diferencial do espaço visado, o filósofo prossegue
demonstrando os riscos em se apoiar no dualismo sujeito e objeto, por meio da pesquisa do
primeiro nível espacial.
Merleau-Ponty se detém na discussão sobre o que vem a ser o primeiro nível
espacial ou aquele primeiro plano que possibilita uma sucessão de ajustes perceptivos em
conformidade com novos pontos de ancoragem descobertos. A questão primordial é definir de
onde parte a constituição desse “nível que sempre se precede a si mesmo”: seria o sujeito ou o
mundo que o possibilitaria esse nível. Primeiramente, o filósofo afirma que o nível espacial
não se confunde com a orientação do corpo próprio ou que a posição do corpo não seria o
eixo que definiria como o mundo é percebido, já que o próprio campo visual pode impor o
como ser visto. Por outro lado, o corpo desempenha papel fundamental como campo
78
fenomenal: “meu corpo está ali onde tem algo a fazer”140. Dessa forma, o nível espacial “é
uma certa posse do mundo por meu corpo, um certo poder de meu corpo sobre o mundo”141.
É a partir da ação do corpo ou de sua presença no mundo que se pode conceber que haja uma
sucessão de ajustes de planos visuais. O corpo fenomenal se constitui como a junção do corpo
efetivo e do corpo virtual, sendo esse último entendido como o corpo que é exigido no plano
fenomenal. É nesse envolvimento que se firma um novo nível espacial; ou seja: o espaço
“nasce” nesse ajustamento entre corpo e mundo ou quando o corpo se sente pertencente ao, e
ativo no, mundo.
Retomando a questão inicial − a tentativa de se definir o primeiro nível espacial −,
temos que Merleau-Ponty afirma ser “essencial ao espaço estar sempre já constituído”142.
Barbaras perseguindo, já na obra Fenomenologia da Percepção, o viés da ontologia − afirma,
também, que “[i]l y a donc une spatialité antérieure à la perception objective” 143. A
anterioridade do espaço possibilita expor o fato de o corpo não ter poder sobre o mundo, em
todas as posições. É no ajustamento do corpo em relação à posição das coisas que se extrai
um sentido perceptivo; ou melhor: tem-se que o próprio olhar é condicionado por um sentido
pré-estabelecido. Quando o filósofo trabalha a noção de “sentido”, fica claro o fato de que a
forma como se vai ver uma determinada coisa − como um rosto (exemplo extraído do próprio
texto de Merleau-Ponty), com a boca na posição de baixo e os olhos na posição de cima –
depende de como “aprendemos” a vê-lo. A partir disso, discute-se a concepção do vocábulo
“sentido” que, segundo esse filósofo, pressupõe o entendimento de duas conotações: sentido
como posição e como significação de determinada coisa. Quando Merleau-Ponty contradiz a
ideia de que a posição do corpo seja totalmente responsável pela maneira como se percebe o
mundo, depois de externada essa dupla forma da palavra sentido, conseguimos compreender o
que ele queria problematizar: o sentido como posição está na apresentação visual das coisas –
na direção do movimento –, já o sentido como significação se manifesta como conhecimento
“antipredicativo” do mundo. Ele afirma que vemos as coisas em determinas posições – como
um rosto – de acordo com um poder que temos sobre elas por meio de um saber, de uma
orientação que possibilita a identificação de cada uma delas, porque:
140
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 336.
141
Ibidem, p. 337.
142
Ibidem, p. 339.
143
BARBARAS, 1991, p. 28: “Há, portanto, uma espacialidade anterior à percepção objetiva” (Tradução nossa).
79
144
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 342.
145
Barbaras afirma sobre a profundidade em Merleau-Ponty: “[...] [l]’expérience de la profondeur révèle l’espace
comme une réalité qui ne « s’étend » pas, qui demeure cachée dans la chose même, ou plutôt se confond avec la
chose même en tant qu’elle est dissimulée, invisible, étante”(BARBARAS, 1991, p. 243). [Tradução nossa: “[...]
A experiência da profundidade revela o espaço como uma realidade que não « se estende », que permanece
escondida na própria coisa; ou melhor: se confunde com a própria coisa dissimulada, invisível e existente”].
80
[...] [s]a priorité ne signifie donc pas un privilège qui lui serait accordé, au
sein de l’espace objectif, vis-à-vis de la hauteur et de la larguer car, dans cet
espace, toutes les dimensions sont équivalentes: la profondeur est d’un autre
ordre que la distance effective, elle se situe en-deçà de l’espace métrique et
révèle, en cela, un sens neuf de la dimension (BARBARAS, 1991, p. 241)147.
146
Ibidem, p. 245: “[...] as coisas não ocupam um lugar – é necessário dizer um espaço –, elas estão além de todo
lugar idêntico. Elas são o lugar, seu próprio lugar; elas estão mais espacializadas do que situadas no espaço"
(Tradução nossa).
147
“[...] Sua prioridade não significa, então, um privilégio que lhe seria destinado, no cerne do espaço objetivo, no
que condiz à altura e à largura, porque, nesse espaço, todas as dimensões são equivalentes: a profundidade é de
outra ordem em relação à distância efetiva; ela se situa além do espaço métrico e revela, nisso, um novo sentido
da dimensão” (Tradução nossa).
81
apresenta, percebemos uma implicação espacial e temporal. O tempo é trazido a debate pelo
filósofo no momento em que discute a possibilidade de sintetizar uma experiência: Merleau-
Ponty afirma que somente na esfera temporal se pode falar de uma conformação do campo
visual. Nesse campo, as relações não se estabelecem de maneira mecânica, porque o tempo é
compreendido como uma reorganização, no presente, de um passado e de um futuro que com
ele estabelecem relações. Merleau-Ponty defende que a dimensão temporal permite que se
compreenda a dimensão espacial ou que o mundo é constituído não apenas por coisas, mas,
também, pelo aspecto de transição; ou, nas palavras do filósofo que “as coisas se definem
primeiramente por seu “comportamento” e não por propriedades estáticas”148. Essa presença
intrínseca do tempo no interior do fenômeno caracteriza a relação entre fundo e movente ou
promove o próprio movimento.
É o olhar que desempenha a função de destacar as coisas por sobre um fundo.
Merleau-Ponty passa da análise da distância das coisas em relação ao observador para o
exame do movimento ou de seu aspecto fenomenal. Nesse vínculo com o móbil149, esse
filósofo estabelece a análise da transição, do aspecto temporal do fenômeno. Desvinculando-
se da análise empirista e reflexiva, que defendia o cálculo da profundidade, Merleau-Ponty
prioriza o trabalho com “o comportamento”, com o seu aspecto temporal, decompondo os
elementos do movimento por meio do ato do olhar, e, dessa forma, enfatiza a experiência
fenomenal. O movimento se apresenta quando se focaliza determinado ponto de visão.
Merleau-Ponty estende o poder dos olhos para além dos limites da visão, quando defende que
o horizonte não é cerceado por aquilo que é visto: “[...] aquilo que vemos é sempre, sob certos
aspectos, não visto: é preciso que existam lados escondidos das coisas e coisas ‘atrás de
nós’”150. O olhar seleciona os pontos de ancoragem que sustentam determinada focalização,
ou o nível em que determinado objeto será melhor apreciado. São esses referenciais que
possibilitam o movimento, conforme anteriormente discutido: a busca por encontrar o
primeiro nível da visão, enfatiza a própria condição da espacialidade.
O fundo do movimento se manifesta, nos pontos de ancoragem, como sendo os
níveis que possibilitam a própria percepção. A relação do sujeito com esses níveis espaciais
pode levar a uma defesa do racionalismo ou do empirismo: na ênfase no sujeito ou na
manifestação das coisas. Revela-se, nessa discussão, a importância do pensamento kantiano
que defende o apriorismo do espaço, que, mormente, é sinalizado como uma condição do
148
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 370.
149
Merleau-Ponty afirma “[o] móbil, ou antes, como dissemos, o movente, não é idêntico sob as fases do
movimento, ele é idêntico nelas” (Ibidem, p. 368).
150
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 372.
82
A partir dessa citação, Sean Kelly sublinha um dos problemas da relação do sujeito com o
mundo, levantado, primeiramente, por Husserl154: as coisas são vistas bidimensionalmente,
mas são experimentadas tridimensionalmente. Para Sean Kelly, esse é o jogo da percepção: as
características percebidas pelos sentidos são articuladas com um “indeterminado”. Segundo
ele, esse “indeterminado” é definido de várias maneiras pelos filósofos: em Husserl, por
exemplo, ele se apresenta como uma forma ausente; já na concepção de Merleau-Ponty, ele é
descrito como uma presença positiva na experiência, como a profundidade.
151
Ibidem, p. 399.
152
Ibidem, p. 341.
153
Ibidem, p. 342.
154
Edmund Husserl (08/04/1859 – 27/04/1938), filósofo alemão fundador da Fenomenologia: “[...] A partir do
texto A ideia da fenomenologia (composto por cinco palestras ministradas em 1907), Husserl desenvolve a
fenomenologia transcendental, que visa esclarecer de que maneira a possibilidade de conhecer eventos e objetos
mundanos se funda nas estruturas da consciência” (FERRAZ, 2009, p. 52).
83
155
SEAN KELLY, 2004, p. 3: “É apenas em meio ao processo que seremos hábeis para distinguir entre o vigor
(ou o puro-sangue) da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty e os relatos mais ‘cognitivistas’ da
experiência pessoal encontrados no trabalho de filósofos como Edmundo Husserl e C. I. Lewis” (Tradução
nossa).
156
Ibidem, p. 20: “A relação entre identidade espacial de um objeto de minha experiência e seu plano espacial é o
ponto alto nos relatos de Merleau-Ponty da visão das coisas. Infelizmente, é justamente nesse ponto que
Merleau-Ponty falha. Vejamos como, de forma mais precisa” (Tradução nossa).
157
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 420.
158
Tradução nossa: “Cada aspecto de cor em dada iluminação, contextual, faz, necessariamente, uma referência
implícita a uma cor real, mais, completamente, apresentada; a cor seria melhor revelada se a iluminação
contextual fosse desviada em direção à norma. É com essa cor real aludida implicitamente em toda experiência
que, constantemente, observo o objeto “ser”. Mas a mesma não é experimentada em si como uma sombra
determinada, mas, ao contrário, como plano de fundo para a experiência particular que vivencio agora. É como
84
Depois disso, Sean Kelly cita Merleau-Ponty: “[...] [a] cor real permanece sob as aparências
assim como o fundo continua sob a figura, quer dizer, não a título de qualidade vista ou
pensada, mas em uma presença não-sensorial”159. É a partir desse diálogo com o texto de
Merleau-Ponty que Sean Kelly propõe que o indeterminado se apresenta como normatividade
daquilo que é observado, sublinhando que o auge desse pensamento está no fato de Merleau-
Ponty afirmar que a cor real (ou a apresentação do real) é pano de fundo para cada
apresentação contextual desse real. Isso ultrapassa a ideia de que a cor real possa ser revelada
em um contexto de melhor iluminação.
Merleau-Ponty defende ser o indeterminado como uma presença ou como norma
para a própria percepção. A primeira afirmação é claramente articulada no texto desse
filósofo, segundo Sean Kelly – porque a identidade do objeto é garantida pelo horizonte de
pontos de vista –, mas a segunda afirmação suplanta essa ideia e Sean Kelly defende que ele
não chega a articulá-la claramente:
[h]e [Merleau-Ponty] does make the important claim, as we saw above, that
the identity of the object is guaranteed by the horizon of the points of view
on it. But he never seems to state further that this horizon is the norm from
which every perspective is felt to deviate. Indeed, there is no talk of a
“tension that deviates round a norm” anywhere in the vicinity of this
discussion. Worse yet, in some of his less formal work he carelessly posits
just the Husserlian view that he opposes – the view that the real thing is the
sum of the points of view on it, rather than the norm defined by the sum
(SEAN KELLY, 2004, p. 22)160.
O ponto de vista de todos os lugares torna-se pano de fundo para a percepção. Nessa
concepção, a coisa permanece aderente a um fundo – que modula sua própria apresentação – e
nunca é atingida: não há a possibilidade do conhecimento total do objeto. Dessa forma, o
contato com a coisa se dá mediante essa relação de normatividade com o fundo.
se ela fosse, em outras palavras, o contexto normal que a revela presente, indistintamente, em toda experiência
particular”.
159
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 410.
160
Tradução nossa: “Ele fez a importante afirmação, como vimos acima, de que a identidade do objeto é
assegurada pelo horizonte de pontos de vista sobre ele. Mas, parece que ele nunca vai adiante com esta
afirmação, ao ponto de dizer que tal horizonte é a norma pela qual toda experiência é percebida como desvio. De
fato, não há o discurso de “uma tensão que desvia em torno da norma” em lugar algum que circuncide esta
discussão. O pior, até aí, é que, em alguns de seus trabalhos menos formais, ele se descuida e postula exatamente
o mesmo que a visão husserliana, a mesma a que ele se opõe – a visão de que a coisa real é sua soma de pontos
de vista, em vez de a norma definida pela soma”.
85
[a]quele que sente e o sensível não estão um diante do outro como dois
termos exteriores, e a sensação não é uma invasão do sensível naquele que
sente. É meu olhar que subtende a cor, é o movimento de minha mão que
subtende a forma do objeto, ou antes meu olhar acopla-se à cor, minha mão
acopla-se ao duro e ao mole, e nessa troca entre o sujeito da sensação e o
sensível não se pode dizer que um aja e que o outro padeça, que um dê
sentido ao outro. Sem a exploração de meu olhar ou de minha mão, e antes
que meu corpo se sincronize a ele, o sensível é apenas uma solicitação vaga
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 288).
Esse vínculo entre o que sente e o sensível delineia a forma como o filósofo apresenta a sua
concepção de um sentido como “um pensamento sujeito a um certo campo”161. Essa definição
é construída no exame do sentido da visão, mas abarca os outros sentidos, como o tato, que,
nas análises de Merleau-Ponty, equipara-se à visão. Duas coisas, pelo menos, aqui, destacam-
se: primeiro a espacialização dos sentidos, visando vincular sujeito e objeto; segundo, os
recortes espaciais se manifestam no contato com o mundo. Esse segundo tópico adentra,
acentuadamente, nossa discussão – ou o tema da apreensão máxima − já que, quando o
filósofo propõe que o acesso ao mundo se dá em campos, entendemos que aquilo que é
percebido é apenas uma parcela do mundo.
Merleau-Ponty ressalta a posição de Kant de que o a priori “não é cognoscível
antes da experiência”162; contudo, o primeiro percebe um distanciamento entre o espaço e o
sujeito em Kant, quando este defende a exteriorização do espaço em relação ao sujeito. O
objetivo de Merleau-Ponty é construir o lugar do fenômeno como um espaço em que não haja
contradição entre o a priori e o empírico. O problema se instaura quando se defende que os
vários sentidos projetam espaços específicos na manifestação do fenômeno. A espacialidade
dos sentidos produz campos próprios para cada um deles, o que faz com que sua diversidade
161
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 292.
162
Ibidem, p. 297.
86
163
Ibidem, p. 321.
164
FERRAZ, 2009, p. 30.
87
projeto de comunhão integral com o mundo, um “idealismo” que faria ruir o projeto inicial de
se reunir espaço e sujeito ou espaço e tempo. Merleau-Ponty, de certa forma, admite,
posteriormente, esse pendor ao sujeito e busca resolver essas questões na sua última filosofia:
reside aí a importância central desse último pensamento, percorrido, posteriormente, nesta
tese, tendo sob foco O visível e o invisível (2012).
O estudo meticuloso do sentir prossegue em trabalhos posteriores de Merleau-
Ponty, nos quais a centralidade é a busca por um sentido originário, em investida contra a
concepção dos sentidos como manifestação a posteriori no espaço já constituído. Seu objetivo
é retomar o sentido por meio das sensações; ou seja: reunir essas duas concepções da palavra
sentir: como posse do mundo e como relação com uma ideia. A segunda concepção se
descobre, mais nitidamente, na passagem da fenomenologia para a ontologia, no delinear da
própria relação com o sentido da experiência: “[...] [c]e sens inscrit dans le sensible n’est pas
fait d’idées claires et distinctes; il s’agit plutôt d’une signification globale et implicite,
inhérente et adhérente à la physionomie des choses”165. Merleau-Ponty procura unir essas
concepções ou o próprio homem, por entender que o sentido como significado das coisas não
se encontra em uma consciência particular, mas na própria relação com o mundo.
Na última fase de Merleau-Ponty, percebemos um desenvolvimento mais
contundente da relação do senciente com o mundo: “[...] [a]u niveau du sentir, le sentent et le
monde constituent encore une sphère close, au sein de laquelle aucun écart, aucune distance
ne peuvent s’insérer”166. O fenômeno é, também, marcado pela sinestesia, entendida, de forma
mais ampla, por meio do conceito de reversibilidade, como bem afirma Barbaras: “[...] toute
sensation, vision ou toucher, s’accorde avec toutes les autres par cette possibilité de réversion.
Tel est le sens de la chair : une unité qui ne se réalise que comme possibilité de passage,
équivalence sans principe entre des sentir singuliers”167. Assim, Merleau-Ponty progride ao
desvendar as sensações − superando a definição kantiana de posteriori –, demostrando como a
relação com o mundo se estabelece por meio do entrelaçamento entre os sentidos e o mundo:
o sentir se manifesta na intersubjetividade e como manifestação de uma relação interna com o
mundo.
165
COLLOT, 2011, p. 24: “[...] Esse sentido inscrito no sensível não é feito de ideias claras e distintas; trata-se
mais de uma significação global e implícita, inerente e aderente à fisionomia das coisas” (Tradução nossa).
166
BARBARAS, 1991, p. 277: “[...] Ao nível do sentir, o sentiente e o mundo constituem ainda uma esfera
fechada, ao interior da qual nenhuma separação, nenhuma distancia pode ser inserida” (Tradução nossa).
167
Ibidem, p. 283: “[...] toda sensação, visão ou tocar se acorda com todas as outras por essa possibilidade de
reversão. Tal é o sentido da carne: uma unidade que se realiza somente como possibilidade de passagem,
equivalência sem princípio entre os sentires singulares” (Tradução nossa).
88
[n]ós não dizemos que o tempo é para alguém: isso seria estendê-lo ou
imobilizá-lo novamente. Dizemos que o tempo é alguém, quer dizer, que as
dimensões temporais, enquanto se recobrem perpetuamente, se confirmam
umas às outras, nunca fazem senão explicitar aquilo que estava implicado
em cada uma, exprimem todas uma só dissolução ou um só ímpeto que é a
própria subjetividade. É preciso compreender o tempo como sujeito e o
sujeito como tempo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 566).
A confluência entre passado, presente e futuro dinamiza uma temporalidade, que é aquela
vivida pelo sujeito. Na atualização dessas instâncias ou na exploração de um ponto de
observação, o sujeito se descobre como pertencente a uma totalidade temporal. Merleau-Ponty
168
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549.
89
retorna à concepção do vocábulo “sentido”, afirmando ser o tempo e o sentido uma única e
mesma coisa, ou que aquilo que ordena o espetáculo do vivido é o tempo. Dessa forma, ele
pretende dinamizar a relação entre o sujeito e o tempo, porque entende que esses dois termos
se confundem, quando ele projeta o tempo como o sentido da própria vida:
[...] [l]a temporalité n’est pas au dehors de la subjectivité. Elle lui est
immanente. Le sujet ne « tombe » pas dans le temps. Il est temps, comme
l’avait déjà reconnu aussi Hegel. Ainsi, le soi d’un sujet incarné est de part
en part temporel. Et la réflexion elle-même ne saurait le soustraire au temps
(VILLELA-PETIT, 2008, p. 95)169.
169
“[...] A temporalidade não está fora da subjetividade. Ela lhe é imanente. O sujeito não « cai » no tempo. Ele é
tempo, como já havia reconhecido, também, Hegel. Assim, o em si de um sujeito encarnado é, de parte em parte,
temporal. E a reflexão, nem mesmo saberia subtraí-lo do tempo” (Tradução nossa).
170
BARBARAS, 1991, p. 260: “[...] O tempo é « matriz simbólica », « sistema que contempla tudo », Dimensão
universal, isto é: carne” (Tradução nossa).
171
Merleau-Ponty, Signos, p. 352 (“Sobre Claudel”, março de 1955): “[s]e o gênio e aquele cujas palavras têm
mais sentido do que ele mesmo lhes podia dar, aquele que, ao descrever os relevos de seu universo privado,
desperta nos homens mais diferentes dele uma espécie de rememoração daquilo que está dizendo, como o
trabalho dos nossos olhos desenvolve ingenuamente a nossa frente um espetáculo que é também o mundo dos
outros, Claudel foi às vezes um gênio. Saber se o foi com tanta frequência quanto Shakespeare ou Dostoievski,
dois de seus mestres, ou se, ao contrário, o ronronar claudeliano, como dizia Adrienne Monnier, uma certa
maneira de organizar a def1agração das palavras, não vem amiúde substituir o verbo de Claudel, e uma outra
questão, e que não tem muita importância”.
172
« C’est en 1907 que Claudel publie son « Art poétique », qui est en fait un ensemble de trois traités. Le premier
traité, "Connaissance du temps", avait paru en Chine en 1904. Il est daté de Kouliang, 12 août 1903. Le
deuxième, "Traité de la connaissance du monde et de soi-même", est daté de Foutchéou, 1904. Le troisième
enfin, "Développement de l' église", avait été écrit en France, d'avril à juillet 1900. Les trois traités s'inscrivent
entre la première et la seconde partie de la première des "Cinq grandes Odes", "Les muses". Ce fut une période
particulièrement tragique et déchirée dans l'existence de Paul Claudel, d'où est sorti le "Partage de midi" »
(http://artsrtlettres.ning.com/profiles/blogs/lart-poetique-selon-claudel-ou). [Tradução nossa: “É em 1907 que
Claudel publica sua « Arte poética », que se compõe de três tratados. O primeiro tratado, intitulado
‘Conhecimento do tempo’, foi publicado na China, em 1904. Ele é datado de Kouliang, 12 de agosto 1903. O
segundo, intitulado ‘Tratado do conhecimento do mundo e de si mesmo’, é datado de Foutchéou, 1904. O
terceiro, por fim, intitulado ‘Desenvolvimento da Igreja’, foi escrito na França, de abril a julho de 1900. Esses
três tratados se inscrevem entre a primeira e a segunda parte da primeira das ‘Cinco grandes Odes’, ‘As musas’.
90
Esse foi um período particularmente trágico e difícil na vida de Paul Claudel, de onde saiu a ‘Partilha do meio-
dia’”].
173
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549.
174
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 563.
175
Ibidem, p. 339.
91
Como afirma Sean Kelly, é a relação com o indeterminado que se mostra como o ponto alto
em Merleau-Ponty, que enfrenta esse problema buscando caracterizar esse lugar e entender
sua relação com o processo de percepção. No capítulo sobre o espaço da Fenomenologia da
Percepção, o indeterminado aparece como o “nível espacial” ou aquilo que permite que o
objeto seja percebido de determinada forma. O trabalho com essa “forma” de apresentação
leva à discussão das concepções da palavra “sentido” ou daquilo que emoldura a percepção
das coisas: assim, o sentido ganha status de espaço. Os sentidos perceptivos são claramente
designados como espaços que se conformam na planificação de um único espaço, o da
experiência. A leitura que Sean Kelly faz da relação figura e fundo − sendo o último termo
176
Ibidem, p. 357.
177
DILLON, 1998, p. 85: “O princípio fundamental da ontologia de Merleau-Ponty é a tese da primazia ontológica
dos fenômenos" (Tradução nossa).
92
180
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 18.
181
Ibidem, p.19.
94
Nesse esforço para apreender o mundo, buscamos uma linguagem do ver que
possa mostrar as coisas, ao invés de significá-las. Processamos essa discussão lançando mão
dos ensaios de O olho e o espírito182, como estratégia para elucidação daquilo que se quer
frisar em O visível e o invisível: a potencialidade do ver como procedimento de junção com o
mundo. O objetivo é tão somente pinçarmos, nesses três ensaios, como se aprimora o
pensamento de Merleau-Ponty em relação à apreensão do mundo, como forma de
compreensão da estrutura “visível e invisível”, defendida na obra homônima. Assim, temos
por foco, aqui, a compreensão da relação ontológica entre o visível e o invisível, defendida
por meio da reversibilidade da experiência. É relevante frisarmos a importância dos ensaios
de O olho e o espírito para o tema do capítulo: a apreensão máxima. O foco central desses
ensaios é a pintura183, visando estabelecer um entendimento de mundo que substitua a
linguagem da tradução pela linguagem da visão. Essa questão encabeça uma preocupação
iterativa da filosofia de Merleau-Ponty, que é distanciar-se da linguagem como tradução da
experiência, priorizando a palavra que mostra e, também, aquela que se emudece, que se
esconde nas abas do visível: ambas contribuem para a inserção do corpo no mundo. No início
de O visível e o invisível, ele afirma que “[...] a filosofia não é um léxico, não se interessa
pelas “significações das palavras”, não procura substituto verbal para o mundo que vemos,
não o transforma em coisa dita [...] são as próprias coisas, do fundo de seu silêncio, que deseja
conduzir à expressão”184; nas palavras de Barbaras:
182
São três os ensaios que compõem O olho e o espírito, título, também, de um dos ensaios do livro, esse
considerado o último escrito que o filósofo concluiu em vida. Os ensaios se focam no potencial da Arte como
linguagem do ver, como gesto filosófico de indagação do mundo.
183
Rosati assim conceitua a pintura, segundo as indagações de Merleau-Ponty, como “[...] un art qui se présente
comme une structure en même temps très médiate et complètement muette” (2009, p. 54). [Tradução nossa: “[...]
uma arte que se apresenta como uma estrutura ao mesmo tempo muito mediata e completamente muda”].
184
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 16.
95
[i]l s’agit, en second lieu, de L’oeil et l’esprit qui recoupe, d’un autre point
de vue, Le visible et l’invisible tout entier. L’étude de la peinture permet de
dégager une voie d’accès au terrain préthéorétique que Husserl ne fit
qu’indiquer, et tient donc lieu d’une véritable réduction phénoménologique,
débarrassée de ses implications idéalistes, c’est-à-dire permettant de
restaurer le sol perceptif originaire. Là s’élaborent la plupart des concepts à
l’oeuvre dans l’ontologie du visible (BARBARAS, 1991, p. 176)186.
185
Tradução nossa: “[...] Merleau-Ponty afirma, alhures, que não há distinção a operar entre o trabalho da pintura e
o trabalho da linguagem. Aquele cumpre o que a palavra efetua de seu lado; ela não molda um espelho do
visível, outro mundo, imaginário: ela mostra o mundo segundo dimensões que, no nível da percepção, apareciam
somente em filigrana”.
186
Tradução nossa: “Trata-se, em segundo lugar, de O olho e o espírito, que retoma, de outro ponto de vista, O
visível e o invisível, completamente. O estudo da pintura permite desvencilhar um caminho de acesso ao terreno
pré-teórico que Husserl somente indicou e representa, portanto, uma verdadeira redução fenomenológica, livre
de suas implicações idealistas; isto é: permitindo restaurar as bases perceptivas originárias. Aí se elaboram a
maior parte dos conceitos que compreendem a ontologia do visível”.
96
Essa ontologia do visível que se persegue é a fórmula para que não se caia no dilema entre o
fato e a essência. Põe-se em evidência uma pré-teoria que se realiza nos mecanismos do
próprio visível ou na sua imbricação com as coisas. Em Merleau-Ponty, nunca se abandona o
mundo; a busca pelo terreno perceptivo originário se faz sempre nessa relação. A ontologia de
Merleau-Ponty, então, é desenvolvida com continuado recurso de análise da relação do visível
e do invisível.
A união dessas duas últimas obras de Merleau-Ponty – quando se pensa no ensaio
que intitula O olho e o espírito e na obra póstuma − é estratégia para que consigamos
visualizar esse pensamento do ver ou a estrutura que consolida a sua filosofia da visão. A
expressão “pensamento de ver” é interessante no sentido de que o filósofo busca unir, na
carne, o movimento do ver e do pensar; ou melhor: a própria visão se apresenta como o
entremesclar-se do sensível no mundo. Merleau-Ponty afasta-se da ilusão realista da visão e
defende não a pré-constituição das coisas como que estando à espera do olhar; ao contrário,
enfatiza a proeminência da “visão em ato”, da promoção do ver como estrutura de relação
primordial com o mundo. O ato de visão sintetiza o envolvimento do corpo no mundo ou a
promoção do próprio conceito de carne. Esse conceito será retomado, posteriormente, quando
do desenvolvimento da relação do visível e do invisível. O importante, agora, é mostrarmos
como essas duas obras favorecem o desvendamento do pensamento final de Merleau-Ponty: o
pensamento de ver.
Retomando O visível e o invisível, temos que a busca de Merleau-Ponty está
centrada na leitura de um espaço não-segmentado ou na tentativa de rever o seu desvincular
do corpo. A interioridade do tempo e a exterioridade do espaço – formando os a priori
kantianos – são emendadas, quando Merleau-Ponty se propõe a fazer outra leitura do espaço,
afirmando que “[...] Santo Agostinho dizia do tempo, que este é perfeitamente familiar a cada
um, mas que nenhum de nós o pode explicar aos outros. O mesmo é preciso que se diga do
mundo”187. Esse gesto merleaupontyano se detém no espaço, na interrogação filosófica a
respeito do visível, daquilo que faz, também, parte da interioridade do movimento homem e
mundo. Nessa investigação, o espaço é questionado, já que a sua exterioridade ou
anterioridade não condiz com um posicionamento franco com o homem. Merleau-Ponty busca
descortinar qualquer “véu” que possa obnubilar a percepção, e o seu escopo é atingir uma
interação plena com o mundo. O dilema se instaura nesta questão, registrada em nota de pé de
página: “[...] [t]oda tentativa para reconstituir a ilusão da “coisa mesma” é, na realidade, uma
187
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 16.
97
tentativa para regressar ao meu imperialismo e ao valor da MINHA coisa. Essa tentativa não
nos faz, pois, sair do solipsismo: é uma nova prova dele”188. No encalço de reconstituir o
processo de experiência, percebemos um grande risco de se instaurar o idealismo; o filósofo
busca trilhar caminhos que o levem a ultrapassar esse lugar ou a se deslocar do dualismo
sujeito e objeto. Observamos, nesse gesto, o balanço de um projeto executado e o lance de
vista sobre algo que ainda deveria ser proposto.
A questão de Merleau-Ponty, em O visível e o invisível, está nesse movimento de
deflagrar a parcialidade ou incompletude da Fenomenologia defendida na obra de 1945, ao
mesmo tempo em que se propõe outra visão para o processo. Nessa passagem para uma fase
ontológica, observamos a fuga dos engodos do visível, em tentativa de se alcançar o
invisível189, o que a ciência chama de verdadeiro ou objetivo:
[o] verdadeiro é o objetivo, o que logrei determinar pela medida ou, mais
geralmente, pelas operações autorizadas pelas variáveis ou entidades por
mim definidas a propósito de uma ordem de fatos. Tais determinações nada
devem a nosso contacto com as coisas: exprimem um esforço de
aproximação que não teria sentido algum em relação à vivência, já que esta
deve ser tomada tal qual, não podendo ser considerada “em si mesma”
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 25).
Esse desenvolvimento da ideia de invisível é contemplado nos termos daquilo que a Ciência
utiliza para escapar das impropriedades de uma visão solipsista de mundo. A Ciência trabalha
com conceitos ou com ideias expressas em termos de razão objetiva. Esse fechamento das
ideias em conceitos possibilita que se alavanque um processo desenvolvimentista de mundo.
Merleau-Ponty também se posiciona contra o idealismo, buscando caminhos que
redirecionem o seu pensamento. Um desses é o aproveitamento da ideia de “fé perceptiva” 190,
por meio da defesa de que a Ciência utiliza essa expressão para um propósito esterilizante. Ele
afirma, no título da parte anteriormente citada, que “[a] ciência supõe a fé perceptiva e não a
esclarece”, e esse ingresso na discussão possibilita que visualizemos o seu posicionamento em
relação a esse conceito. Percebemos que Merleau-Ponty retoma a relação de fundo e figura
para descrever esse espaço do invisível, que seria tecido pelas proposições ou operações
188
Ibidem, p. 22.
189
FERRAZ (2009, p. 285) afirma que “[...] Merleau-Ponty concebe a noção de invisibilidade como uma
armadura geral de sentido que transcende os eventos e coisas particulares e que seria responsável pela
organização destes”.
190
O duplo sentido da expressão “fé perceptiva” é exposto, por Ferraz (2009, p. 215), nestes termos: “[...] [o]
mundo é aquilo que aparece, mas também é dado por meio do corpo e limitado ao domínio exploratório deste
último”.
98
191
Ver Anexos, p. 292-294.
192
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 154.
193
Esse trecho se conjuga, com muita naturalidade, com a discussão do primeiro capítulo desta tese, no qual
abordamos as prerrogativas de uma escrita “literária” descritas em El río sin orillas, de Saer.
99
natureza inumana sobre o qual o homem se instala”194. Uma forma de fazer ver as coisas sem
se estar em suspensão sobre elas: ver as coisas como que em seu interior ou no plano da
própria vivência. Essa postura do pintor, segundo o filósofo, se volta “[...] para a ideia ou o
projeto de um Logos infinito”195. O mais interesse do ensaio está na conjunção do pensamento
fenomenológico com a posição ontológica: ao mesmo tempo em que se defende o retorno às
coisas, requer-se, também, o enxergar do fundo no qual a relação com o mundo se manifesta,
nomeado, acima, como Logos196 infinito.
No início de O visível e o invisível, o interesse de Merleau-Ponty pelo espaço foi
adiantado quando recorreu ao pensamento de Santo Agostinho sobre o tempo: “ninguém o
pode explicar aos outros. O mesmo é preciso que se diga do mundo” 197. O filósofo se esmera
no projeto de compreensão da relação do visível com o invisível, posicionando-se na esteira
de descrever a fé perceptiva ou essa nova visão da própria percepção do mundo: “[...]
‘objetivo’ e ‘subjetivo’ são reconhecidos como duas ordens construídas apressadamente no
interior de uma experiência total cujo contexto seria preciso restaurar com total clareza” 198.
Nessa relação interna entre sujeito e objeto, requisita-se o exame ontológico, para o
estabelecimento de um novo entendimento da vinculação do corpo com o mundo. O primeiro
passo é a urgência de se redefinir a própria noção de corpo, para que se visualize uma nova
relação com as coisas ou o “vínculo vivo com a natureza”. A “fé perceptiva” permite o
abandono do idealismo, por intermédio do fortalecimento da ideia de que há algo
indeterminado que possibilita a percepção; então, não mais se permite o oscilar entre essas
ideias, ora “minha visão está na própria coisa ora que minha visão é minha ou está ‘mim’”199
ao contrário:
194
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 135.
195
Ibidem, p. 140.
196
Essa relação da experiência com a linguagem ou a substituição da noção de cogito tácito pela de estrutura da
linguagem é, posteriormente, discutida. Essa mudança de termos é defendida por Rosati (ROSATI, 2009, p. 52).
197
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 16.
198
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 30.
199
Ibidem, p. 38.
100
200
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 48.
101
No final dessa citação, ele toca em outra questão central do desenvolvimento da discussão de
O visível e o invisível: a objeção da ideia sartreana201 de contraposição entre o ser e o nada.
Merleau-Ponty percebe, nesse pensamento, a restauração do dualismo, porque se desvela o
ajustamento de opostos absolutos; ele substitui a negação pela interrogação, defendendo a
percepção “como esse pensamento interrogativo que deixa ser o mundo percebido em vez de
pô-lo”202.
Desvinculando-se do pré-ordenamento das coisas – da filosofia reflexiva e, até,
pode-se dizer, da filosofia da negação, quando pensada como dois opostos –, Merleau-Ponty
se propõe discutir a linguagem como postura de investigação filosófica. Antes de retomarmos
O visível e o invisível, trazemos o ensaio, já citado, aqui, “A linguagem indireta e as vozes do
silêncio”, texto da fase de transição de Merleau-Ponty – publicado, originalmente, em 1952 −
que media – na ordem dos conceitos − a passagem para a fase ontológica. A proposta do
filósofo é aproximar conceitos linguísticos203 da apreensão da linguagem pela criança da
operação do pintor, ambos considerados como gestos de decifração da relação do sujeito com
o mundo. Discutindo, inicialmente, conceitos linguísticos de Saussure, Merleau-Ponty se foca
na relação dos signos com os sentidos ou como as partes se relacionam com o todo da língua.
Essa primeira questão é retomada em toda a obra do filósofo: o desejo de delinear os
mecanismos de envolvimento do homem com o todo do mundo; ou melhor: com aquilo que
lhe possibilita a experiência. O filósofo apoia-se na relação dinâmica do signo com o sentido,
defendendo que “[...] o que aprendemos em Saussure foi que os signos um a um nada
significam, que cada um deles expressa menos um sentido do que marca um desvio de sentido
entre si mesmo e os outros”204.
A língua é um jogo em ao qual as crianças lançam-se como que no interior de algo
já em movimento; essa concepção é cara ao filósofo, porque ativa o conceito de conhecimento
antipredicativo, pressuposto e núcleo de sua filosofia. Esse núcleo é consolidado nos termos
de figura e fundo ou na busca de compreensão das partes no interior de um todo. Merleau-
Ponty assim se posiciona quanto ao conceito de linguagem: “[...] [e] essa espécie de círculo
201
FERRAZ (2009, p. 230) afirma que “[...] Merleau-Ponty julga que Sartre não chega realmente a conceber um
campo de relações efetivas entre sujeitos, mas que apenas propõe uma difícil convivência entre vários mundos
privados”.
202
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 102.
203
FERRAZ (2009, p. 98) afirma que “[...] [a]nte a impossibilidade de um acesso direto ao ser, Merleau-Ponty, em
sua investigação ontológica madura, tenta aplicar o potencial indireto da linguagem para explicitar a camada
ontológica da qual o próprio sujeito surgiria. Dessa maneira, as longas reflexões sobre o tema da linguagem não
só ampliam o escopo das análises fenomenológicas iniciais, mas também instituem a orientação metodológica
pela qual a investigação ontológica futura deve se cumprir: expressão indireta, por meio de capacidades
expressivas linguísticas, do ser silencioso que funda tal expressividade”.
204
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 59.
102
que faz com que a língua se preceda naqueles que a aprendem, ensine-se a si mesma e sugira a
própria decifração talvez seja o prodígio que define a linguagem” 205. O ingresso nesse sistema
de coexistência faz com que o aprendizado seja uma antecipação do todo pelo acesso a uma
das partes, sendo essa defendida pelo filósofo também como o próprio todo. Merleau-Ponty
percebe que a língua atrai a si a criança; o aprendizado se consolida na experimentação do
atrito entre os signos e na revelação do sentido. O jogo é mantido graças à volatilidade da
“gênese do sentido”; os signos se juntam e se repelem e “não cessa em parte alguma para dar
lugar ao sentido puro, nunca é limitada senão pela própria linguagem”206:
[...] [s]e o signo só quer dizer algo na medida em que se destaca dos outros
signos, seu sentido está totalmente envolvido na linguagem, a palavra
intervém sempre sobre um fundo de palavra, nunca é senão uma dobra no
imenso tecido da fala (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 63).
205
Ibidem.
206
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 64.
207
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 65.
208
É importante não fiar o sentido da Arte com o gesto da produção ou dependente desse gesto enunciativo; Rosati
recupera essa idéia desta forma: “[...] [u]ne réflexivité qui ne dérive pas de la réflexion de quelqu’un: « c’est
l’Être muet lui-même qui vient manifester son propre sens » ; mais il le manisfeste dans le langage silencieux de
103
outro tipo de material, constituindo uma forma de linguagem, visando, também, aproximar-se
das coisas. O movimento entre o borrão e o traço manifesta, além de um estilo próprio do
artista, o gesto de um dizer. Esses materiais são distintos dos que, corriqueiramente, o sujeito
utiliza na comunicação; dessa forma, a leitura da obra exige uma imersão nas formas. Por
outro lado, esse distanciamento das formas de expressão – do cotidiano − pode facilitar a
imersão nos sentidos, porque é mais propício o encontro da relação primeira ou ingênua entre
forma e sentido. Merleau-Ponty defende essa ideia afirmando que o escritor tem como
obstáculo o trabalho com materiais que são trivialmente articulados no dia-a-dia. A
complexidade desse trabalho está no esquecimento de que a relação entre palavra e sentido é
articulada e, mais que isso, de que há um vazio entre signo e sentido ou que se diz, também,
pelo silêncio:
la peinture, qui présuppose un repliement qui ne dérive pas d’un artiste en tant que conscience constituante, mais
du mouvement médiat de l’Être lui-même (ROSATI, 2009, p.54). [Tradução nossa: “[...] Uma reflexividade que
não deriva da reflexão de alguém: « é o próprio Ser mudo que vem manifestar seu próprio sentido »; mas ele o
manifesta na linguagem silenciosa da pintura, que pressupõe uma dobragem que não deriva de um artista tido
como consciência constituinte, mas do movimento mediato do próprio Ser”].
209
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 85.
104
preferência pela pintura moderna, nas análises merleaupontyanas, nestes termos: “[...] [l]a
peinture incarne chez Merleau-Ponty le « monde primordial » et silencieux: ce dont on fait
expérience dans la peinture – et surtout dans la peinture moderne – est quelque chose de plus
réel que le réel, c’est le dévoilement du monde primordial”210. Posteriormente, Rosati busca
elucidar esses dois últimos termos: « [...] [m]onde primordial, Être muet et expression
artistique viennent coïncider, en s’entrecroisant dans un seul noeud »211. A questão do
indeterminado retorna nesses termos; ou melhor: a relação entre visível e invisível é
destacada, centraliza-se nesse próprio movimento.
Percebemos, nessa discussão, a importância da pintura como espaço em que se
promove o diálogo com uma totalidade. A evidência do todo se faz pela presença de uma
variedade do singular, de pontos de observação do mundo. A arte moderna tem como
diferencial expor mais do que aquilo que é visto – ultrapassa-se a representação –; nela,
evidencia-se a participação do vidente no espetáculo do mundo. Essa valorização do estatuto
da arte − em Merleau-Ponty − possibilita estabelecer um diálogo mais franco com o mundo e,
além disso, perpetua os dilemas que atravessam a própria vida. A temporalidade 212, em “A
linguagem indireta e as vozes do silêncio”, se apresenta como o sentido da percepção, porque
é por meio dela que é possível pinçar e estabelecer uma relação com o universal. O sentido
está na obra e, também, em conformidade com a totalidade do mundo. A “historicidade da
vida” – expressão cunhada, nesse ensaio, pelo filósofo – está nesse movimento de interseção
com temporalidades passadas e, é precursora de uma nova versão de mundo. Cada obra
apresenta essa discussão intrínseca, capaz, segundo esse filósofo, de ativar a compreensão
viva daquilo que se quis relatar, no gesto de interrogar as coisas. A temporalidade é defendida
como uma interação plena com a tradição, uma consolidação da leitura integral do mundo.
No final desse ensaio, Merleau-Ponty fundamenta a ideia da existência de uma
“linguagem indireta” e, também, de uma voz na pintura, chamada de “voz do silêncio”. O
desenvolvimento dessa tese relembra a discussão da Fenomenologia da Percepção: a ideia de
que é o fundo da figura que possibilita a percepção da própria figura. São de suma
importância, aqui, essas duas ideias: a de uma linguagem que fundamenta o giro em busca de
sentido e a de que a pintura coloreia a uma voz sedimentada no silêncio. Anteriormente, já
210
ROSATI, 2009, p. 54: “[...] [a] pintura encarna em Merleau-Ponty o « mundo primordial » e silencioso; o que
faz a experiência na pintura – e, sobretudo, na pintura moderna – é algo mais real do que o real: é a revelação do
mundo primordial” (Tradução nossa).
211
Ibidem: “Mundo primordial, Ser mudo e expressão artística vêm se coincidir, entrecruzando-se dentro de um só
entroncamento” (Tradução nossa).
212
FERRAZ (2009, p. 41) defende que “[...] [o] apelo à temporalidade pretende esclarecer que não é a totalidade
dos atributos constituintes das coisas a marca da sua realidade, mas sim a parcialidade pela qual eles se
manifestam”.
105
213
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 17.
106
[...] [v]isível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está
preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê
e se move, ele mantém as coisas em círculo a seu redor, elas são um anexo
ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem
parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo.
Essas inversões, essas antinomias são maneiras diversas de dizer que a visão
é tomada ou se faz do meio das coisas, lá onde persiste, como a água-mãe no
cristal, a indivisão do senciente e do sentido (MERLEAU-PONTY, 2013, p.
20).
214
Ibidem, p. 18.
215
Ibidem, p. 19.
216
Essa ideia é desenvolvida, em O visível e o invisível, quando Merleau-Ponty afirma que “[...] essa carne que se
vê e se toca não é toda a carne, nem essa corporeidade maciça, todo o corpo. A reversibilidade que define a carne
existe em outros campos, é mesmo incomparavelmente mais ágil, e capaz de estabelecer entre os corpos relações
que desta vez, além de alargarem, irão definitivamente ultrapassar o campo do visível” (2012, p. 140). A carne é,
então, detentora da própria relação ou engloba os termos dela: mais adiante, esse termo será destrinchado.
107
217
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 22.
218
Ibidem, p. 24.
108
219
Ibidem, p. 33.
220
Rosati propõe um paralelo interessante entre “consciência constituinte” e reflexão nestes termos: « [...] Pour
trouver une médiateté qui n’implique pas nécessairement une conscience constituante il faut renoncer au concept
de réflexion ; ainsi la médiateté est-elle confiée à la structure du langage » (ROSATI, 2009, p. 52). Essa relação
com a linguagem será discutida, posteriormente, neste capítulo. [Tradução nossa: “[...] Para encontrar uma
mediação que não implique necessariamente uma consciência constituinte, é necessário renunciar ao conceito de
reflexão; assim, a mediação é confiada à estrutura da linguagem”].
221
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 45.
222
Ibidem, p. 50.
223
Ibidem, p. 54.
109
filósofo, “[...] que o próprio do visível é ter um forro de invisível em sentido estrito, que ele
torna presente como certa ausência”224. É nessa relação do parcial com uma totalidade, no
movimento de leitura das formas e cores, que se descobrem esses ramos do invisível. O texto
finaliza registrando essa relutância das coisas de se mostrarem, e essa dissidência sinaliza a
manutenção de um diálogo iterativo do corpo com o mundo. O invisível é sinalizado nesses
meandros entre as coisas; ou seja: faz-se ver por intermédio daquilo que se mostra, como
parcela do visível. Focando-se nessa relação entre aquilo que se vê e aquilo que se oculta,
temos a obra póstuma de Merleau-Ponty: O visível e o invisível.
Merleau-Ponty reúne o ser e o objeto em um organismo híbrido: o ser-objeto e o
ser-sujeito. Deslocando-se das antinomias, defende um retorno à ontologia, para que esses
conceitos sejam revistos em uma abordagem sem uso dos sinais de oposição. A relação entre
o corpo e o mundo deixa de se realizar no plano de uma materialidade para se propagar no
movimento vidente-visível, como um diálogo constante com o indeterminado. Buscando
esclarecer esse envolvimento, Merleau-Ponty traz novamente a filosofia reflexionante,
afirmando que sua negativa de que seja possível a relação exterior entre o mundo e o homem
é verdadeira. É nesse clima de reenvios múltiplos entre o ser pensante e o ser pensado que se
constrói uma estrutura de conhecimento. Essa ideia é articulada nestes termos: em meio a uma
ligação pré-lógica, o mundo passa a ser um desconhecido que reclama uma investigação, uma
entrega do corpo. Esse encontro possibilita a indefinição em separado dos dois vetores,
porque se abandona a pré-reflexão daquilo que seja o mundo e do que seja o homem. Esse
paralelo entre reflexão e irrefletido é, posteriormente, substituído225 pelo entrelaçamento entre
linguagem e silêncio: a contraposição dos dois primeiros termos é posta de lado pela relação
carnal entre os dois últimos termos.
O pensamento final de Merleau-Ponty reclama um entrelaçamento genuíno com o
mundo, por intermédio do conceito desenvolvido em “O olho e o espírito”: de carne 226. A
relação plena com as coisas se manifesta na razão de uma interdependência:
224
Ibidem, p. 53.
225
Rosati, assim, trabalha essa ideia: « [d]e cette manière toute la problématique relative au rapport entre réflexion
et irréfléchi est reportée à l’entrelacement du langage et du silence, deux termes qui semblent aussi plus faciles à
gérer, puisqu’ils ne s’opposent pas forcément comme dans le cas de la contradiction absolue entre réflexion et
irréfléchi » (ROSATI, 2009, p. 52). [Tradução nossa: “Desta maneira, toda problemática relativa à relação entre
reflexão e irrefletido é direcionada ao entrelaçamento da linguagem e do silêncio, dois termos que parecem,
também, mais fáceis de gerir, já que eles não se opõem completamente, como no caso da contradição absoluta
entre reflexão e irreflexão”].
226
FERRAZ (2009, p. 252) assim define esse termo: “[...] [e]ssa comunidade sensível entre o mundo e os corpos,
responsável tanto por justificar os conteúdos percebidos quanto a possibilidade de relações intersubjetivas, é
exprimida por Merleau-Ponty pela noção de carne”.
110
227
Em Saer, percebemos a defesa de uma relação consubstancial do homem com o mundo; em La Ocasión, o
protagonista Bianco afirma que “[...] [l]a materia es el corolario del espíritu; lo que creemos percibir no hacemos
más que representárnoslo; nos representamos lo rugoso, y nos representamos las yemas de los dedos con las que
creemos tocar lo rugoso” (SAER, 2003, p.75).
228
BARBARAS, 1991, p. 175: “[...] [n]ão é certo, em nosso entendimento, que esse capítulo faria parte do
trabalho definitivo: C. Lefort sublinha, aliás, que ele não é mencionado no último projeto do plano do livro que
temos à disposição, datado de novembro de 1960” (Tradução nossa).
111
229
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 136.
230
BARBARAS, 1991, p. 182: “O ser-tocante e o ser-tocado, ao nível da mão (do tocar), não são exteriores um ao
outro – isso seria restaurar a positividade de uma consciência e, portanto, sua face a face com o objeto puro: eles
são o inverso um do outro” (Tradução nossa).
231
BARBARAS, 1991, p. 249: “[...] a experiência originária do espaço deve ser caracterizada pela
irreversibilidade: a profundidade designa o polo de uma orientação que é de alguma forma tanto existencial
quanto espacial, que vai de um aqui em direção a um lá longe, sem inversão possível” (Tradução nossa).
112
reversibilidade ou a própria relação entre o tocar e o ser tocado. Não se pode esquecer que a
reversibilidade nunca é completamente realizada, já que “[...] l’accomplissement de la
réflexivité correspondrait à une scission du corps propre: si une coïncidence effective, une
pure subjectivité, pouvait advenir en lui, ce sujet n’aurait pas de corps, ce corps ne serait pas
le sein, il émigrerait du côté du monde objectif” 232. A filosofia final de Merleau-Ponty pode
ser condensada no conceito de motricidade − próximo tema nesta discussão sobre as
derradeiras ideias do filósofo francês − como movimento que salvaguarda a relação plena do
corpo com o mundo. O processo de reversibilidade se manifesta, então, como que incompleto,
porque a fusão acarretaria a objetividade. Merleau- Ponty afirma que “[a] verdade é que a
experiência de uma coincidência só pode ser, como diz Bergson frequentemente,
“coincidência parcial””233. O filósofo, então, apresenta a coincidência por intermédio da
metáfora do recobrimento, em que os elementos se apresentam como que sempre distintos.
Nesse esforço para definir o quiasma, o filósofo recorre à ontologia da visão como
forma de apresentar a relação entre o visível e o vidente como que encarnada. Essa ideia de
carne, então, retoma o movimento de reversibilidade, como esse ir e vir entre dois termos que
não se unificam: « [...] la vision ne se distingue pas du monde, le monde ne s’en distingue pas
non plus; l’incarnation, qui fonde l’identité de la vision au monde, signifie tout autant
l’identité du monde à la chair »234. Então, a identificação é atingida por intermédio da noção
de carne; ou seja: nesse termo, entremesclam-se a dualidade sujeito e objeto. Merleau-Ponty
privilegia o sentido da visão como forma de encenar esse movimento: aquele que vê participa
do mundo que percebe, está no “mesmo nível do percebido”235. A ontologia do visível está na
proposta de se perseguir as bases de entrelaçamento daquilo que se propaga no visível.
Buscando definir o termo “quiasma”, Barbaras estabelece uma relação com o conceito
esquecimento, que é apresentado como um lugar não-preenchido:
[...] [a]ussi, peut-être est-ce en ayant recours au concept d’oubli que l’on
rejoindrait au plus près ce que Merleau-Ponty tente de nommer à travers la
notion de chiasme. L’oubli peut être caractérisé par une double dimension.
Par opposition à l’ignorance, il ne doit pas être conçu comme la négation ou
l’absence, mais comme un certain mode de présence de ce dont il est l’oubli.
232
BARBARAS, 1991, p. 182: “[...] o cumprimento da reflexividade corresponderia a uma cisão do corpo próprio:
se uma coincidência efetiva, uma pura subjetividade, pudesse advir nele, esse sujeito não teria corpo, esse corpo
não seria o seio, ele emigraria do lado do mundo objetivo” (Tradução nossa).
233
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 120.
234
BARBARAS, 1991, p. 186: “[...] a visão não se distingue do mundo, o mundo, também, não se distingue; a
encarnação, que funda a identidade da visão no mundo, significa tanto quanto a identidade do mundo na carne”
(Tradução nossa).
235
BARBARAS, 1991, p. 187.
113
En tant qu’apparenté à ce qui en lui n’est encore que voilé, incarné, le monde
est bien un lieu d’oubli (BARBARAS, 1991, p. 189)236.
Barbaras contrasta a rememoração ao esquecimento, defendendo que, nos dois termos, a falta
de alguma coisa não é ignorada, mas, no esquecimento ela é apenas latência. Assim, é
impossível que essa falta seja preenchida, porque se desconhece o teor dessa ausência. Esse
espaço vazio está relacionado com um sentido perdido, sendo, então, responsável pelo
movimento no interior do Ser, pelo próprio quiasma.
Essa incapacidade de estabelecer os limites entre a falta e a presença estrutura
uma relação de trocas múltiplas em que o que realmente importa é o movimento. O quiasma é
também nomeado, no texto de Merleau-Ponty, de entrelaçamento: defende-se o recobrimento
das coisas e do corpo que “olha” ou que sente. Essa ideia traz o conceito de carne, na medida
em que as coisas se mostram como que pertencentes ao próprio ato de olhar; ou melhor:
coexistentes em um mesmo elemento, porque:
O quiasma é essa relação em que as coisas se entregam ao olhar como que pertencentes ao
próprio ato de ver. Esse entrelaçamento só é possível porque o mundo e as coisas se mostram
como que constituídas pelo mesmo “estofo”. O conceito de quiasma assegura que a ontologia
de Merleau-Ponty não caia em um monismo: a noção de esquecimento ou de sentido
irrecuperável – como um todo – assegura o movimento entre as coisas e os corpos.
Pensar que toda a relação se perfaz pela incompletude, pelo movimento de trocas
múltiplas entre as coisas e os corpos, adiantam-nos os conceitos-chave deste capítulo, o de
visível e o de invisível. O processo do olhar – priorizado na análise da relação corpo e mundo
em Merleau-Ponty – se realiza em comunhão com o mundo: o ver se manifesta como o
descobrimento incessante de um sentido sempre mais distante. O filósofo chega a afirmar que
236
Tradução nossa: “[...] Também, talvez seja tendo como recurso o conceito de esquecimento, que se pode
aproximar mais do que Merleau-Ponty tenta nomear por meio da noção de quiasma. O esquecimento pode ser
caracterizado por uma dupla dimensão. Por oposição a ignorância, ele não deve ser concebido como negação ou
falta, mas como certo modo de presença do que é o esquecimento, enquanto que, aparentado ao que nele é ainda
somente escondido, encarnado, o mundo é bem um lugar de esquecimento”.
114
a distância é responsável pelas mudanças de percepção das coisas e que a passagem entre uma
certeza e outra não desautoriza aquilo que, antes, era tido como verdade: todas as nuanças do
ver são autorizadas. Essa incompletude da percepção é assegurada pela relação entre o visível
e o invisível. Segundo Barbaras:
237
Tradução nossa: “O recurso às noções de visível e de invisível visa definir o ser do mundo superando a
oposição do fato e do sentido, mostrar que o próprio do sentido é se dissimular sob a forma do visível, que o
próprio do visível é, correlativamente, de ser um modo de apresentação do sentido. O sentido é invisível, e o
sensível é esta negação, esta invisibilidade do sentido”.
238
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 128.
239
Ibidem, p. 133.
115
240
Tradução nossa: “A conveniência ontológica da visão e do visível significa que o mundo a transcende de toda
sua opacidade, que a visão não pode atravessar a textura ontológica da qual ela é feita, e é essa transcendência
mesmo que é condição da visibilidade”.
241
Tradução nossa: “[...] É este ultrapassar incessante do mundo sobre a percepção que Merleau-Ponty
desenvolve, em O visível e o invisível, com a noção de carne – é « a transcendência do mundo como
transcendência » que se busca pensar. Esse ultrapassar, ou, ainda, este caráter irreduzível do invisível
pertencendo ao visível mesmo, é isso que se deve compreender como transcendência”.
116
[c]haque terme n’est lui-même qu’en passant dans son autre, ou plutôt, il n’y a pas deux
termes mais un lieu où ils sont destinés l’un à l’autre »242.
É nesse esquema de entrelaçamento que falar em carne, “c’est penser la présence
comme horizon”243. Retomamos, então, o conceito de horizonte como esse mundo em
abertura, como a manifestação da própria transcendência. Zielinski (2008) define a
transcendência como a carne – como podemos deduzir da sua citação acima – e defende que
ela se manifesta na experiência da reversibilidade. Esse ajustamento entre o tocante e o tocado
possibilita que se manifeste um espaço de intervalo em que a coincidência é sempre adiada.
Da mesma forma, podemos falar do visível e do invisível como prolongamentos de posições
que nunca se anulam e, assim, “[...] comprendre l’invisibilité comme « puissance » du
visible”244. Esse jogo é mantido pelo quiasma245, pela relação sem limites entre o corpo e o
mundo, em que o sentido está no interior, como que pertencente às coisas e ao corpo:
Percebemos, aí, como Barbaras explicita o quiasma como força que consolida a
própria existência das coisas. É um posicionamento que prioriza a experiência, que consolida
a relação do corpo com o espaço como propiciadora da própria materialidade do mundo. As
coisas se apresentam nesse intervalo com o mundo, porque “[...] universalité et indiviadualité
naissent ensemble” e, complementando essa ideia, “[...] il n’y a de totalité que distribuée en
242
BARBARAS, 1991, p. 192: “[...] Cada termo é somente ele mesmo passando dentro de seu outro; ou melhor:
não há dois termos, mas um lugar onde eles são destinados um ao outro” (Tradução nossa).
243
Ibidem, p. 202: “é pensar a presença como horizonte” (Tradução nossa).
244
Ibidem, p. 195: “[...] compreender a invisibilidade como « potência » do visível” (Tradução nossa).
245
Barbaras conceitua o quiasma nestes termos: « [a]insi, il faut caractériser comme chiasme la relation de la
chose au monde: la chose est chose du monde, elle est tout entière en lui, mais le monde est tout entier en elle.
Elle fait paraître le monde, en elle le monde lui-même s’exhibe, de sorte qu’elle se fait monde, n’est rien d’autre
que lui ; mais c’est à la condition que celui-ci ne soit pas un abîme d’en soi, qu’il reflue tout entier en chaque
chose, qu’à son tour il ne soit rien d’autre qu’elle » (BARBARAS, 1991, p. 219). [Tradução nossa: “Assim, é
necessário caracterizar como quiasma a relação da coisa no mundo: a coisa é coisa do mundo, ela está totalmente
nele, mas o mundo está totalmente nela. Ela faz aparecer o mundo, nela o próprio mundo se exibe, de sorte que
ela se faz mundo, não é nada mais do que ele; mas é na condição de que isso não seja um abismo de si que ele
reflua totalmente em cada coisa, que, por sua vez, ele não seja nada menos do que a própria coisa”].
246
Tradução nossa: “Uma coisa perfeitamente completa, essencialmente individualizada, cessaria de ser coisa, se
dissolveria na universalidade do conceito: não há, portanto, unidade da coisa, como unidade fechada, confundida
com uma forma, tendo lugar de princípio e distinguida do indivíduo do qual ela assegura a individualidade”.
117
ses parties”247. Nessa ordem, o visível adquire uma posição menos localizada, em que seus
limites se manifestam como que esparsos, dependentes da relação do interno com o externo
ou do próprio invisível. É nesse momento da experiência que não se divisam as posições do
corpo e do mundo, mas se promove abertura ao horizonte do mundo. Essa dificuldade de
representar o mundo é apontada por Merleau-Ponty como um sinal da pluralidade de sentidos
que lhe é inerente248. É nessa encruzilhada de sentidos que o conceito de carne é manifesto
como o eixo entre o corpo e as variantes de sentidos que são reveladas na relação com o
mundo; ou seja: o corpo se inscreve no mundo como forma de cristalização do universal, de
materialização do próprio mundo: a possibilidade do universal se dá no corpo:
[b]ref, c’est finalement parce que le corps est plus « monde » que les choses
qu’il est plus « soi » que le monde. Il donne à voir les choses devant lui
parce qu’il vient de derrière le spectacle, de sorte que la perception est bien
phénoménalisation du monde, aux deux sens génitif. Comprise jusqu’au
bout, la chair apparaît comme l’unité déhiscente du Fait et de l’Unversel.
Parce que le monde est fait de cette chair, de ces dimensions, de ces axes
dont mon corps est le pivot, il est un monde incarné, c’est-à-dire
transcendant (BARBARAS, 1991, p. 233)249.
247
Ibidem, p. 218: “[...] universalidade e individualidade nascem juntos” e complementando a ideia “[...] não há
totalidade a menos que distribuída em suas partes” (Tradução nossa).
248
Barbaras assim desenvolve esse tema: « [...] [r]econnaître qu’une présentation exhaustive et frontale du monde
est impossible, c’est comprendre que la pluralité des sens leur est consubstantielle. Tout comme chaque sens
n’est que comme la différence des sensibles qui sont de son ressort, la sensibilité même n’advient que comme
différence entre les sens » (BARBARAS, 1991, p. 230). [Tradução nossa: “[...] [r]econhecer que uma
apresentação exaustiva e frontal do mundo é impossível é compreender que a pluralidade dos sentidos lhes é
consubstancial. Assim como cada sentido é somente algo como a diferença dos sensíveis que são de sua alçada, a
sensibilidade advém somente como diferença entre os sentidos”].
249
Tradução nossa: “Resumindo, é finalmente porque o corpo é mais « mundo » do que as coisas que ele é mais
« si » do que o mundo. O corpo deixa a ver as coisas diante dele porque ele vem detrás do espetáculo, de maneira
que a percepção é exatamente fenomenalização do mundo, nos dois sentidos genitivos. Compreendida até ao
final, a carne aparece como unidade deiscente do Fato e do Universal. Porque o mundo é feito dessa carne,
dessas dimensões, desses eixos dos quais meu corpo é o pivô, ele é um mundo encarnado; isto é: transcendente”.
118
separadamente. É por meio dessa entrada que passamos, agora, ao exame do invisível e o que
perceberemos é a dificuldade de se desvincular esses dois lugares:
250
Tradução nossa: “O propósito de Merleau-Ponty é de pôr em evidência uma articulação originária e,
finalmente, uma quase-identidade do visível e do invisível. O invisível não é o outro de um visível concebido
como um ser positivo, mas isso que, a fim de preservar sua distância, o seu poder significante, se faz visível; o
visível, por sua vez, não é, portanto, a negação do invisível, mas o elemento de sua manifestação e, nisso, um
modo primitivo da idealidade”.
251
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 187.
252
Ibidem, p. 186.
253
Ibidem, p. 187.
119
chair est universelle, elle ne doit pas être réduit à la chair strictement corporelle »254. Assim,
os limites dos termos são afrouxados e a posição do invisível é acercada e condicionada pela
do visível. Os laços entre os conceitos se revelam na disposição dos termos em coincidir com
a própria nuança que no outro lhe é própria, assim, o visível encontra uma visibilidade no
invisível a partir do dizível255. Esse tema do dizível é caro ao filósofo, porque é uma forma de
sublinhar esse eixo que sustenta o próprio conceito de carne ou essa relação entre o visível e o
invisível: a linguagem256. Em termos do próprio Merleau-Ponty, é possível percebermos o
visível como a “superfície de uma profundidade”, como “qualidade prenhe de uma textura”
257
; ou seja: com essa pregnância do invisível que é sua própria condição de visibilidade.
Quando focamos no invisível, outro elemento que emerge é a própria nervura que
o liga ao visível: o quiasma. Ambos os conceitos se reúnem formando a carne, identificada
mais claramente, segundo Merleau-Ponty, em O visível e o invisível, na apresentação do
“outro”, – de um terceiro – esta entendida como uma “présentation d’un imprésentable”258.
Então, Merleau-Ponty visualiza, mais claramente, na relação com o outro, a manifestação do
conceito carne. Como observamos, anteriormente, é complicado sintetizar a
intersubjetividade, porque ela se manifesta na interdependência entre os corpos. Barbaras já
defendera a carne como a “décision de penser la visibilité comme être”259 ou como a
conjunção do visível com o invisível. Seguindo-se esse pensamento, percebemos que a carne
é a visibilidade de uma relação que não se equaliza. Quando se traz a relação com o outro
como forma de identificação da carne, sublinha-se, novamente, sua nuança de
intersubjetividade, já que « [...] autrui est un être qui ne se présente que comme absente, ne se
donne que comme son propre retrait, et, dans cette mesure, ce n’est pas à une conscience qu’il
se donne »260. Então, a experiência do outro é apontada como « [...] celle d’un regard, qui n’a
254
BARBARAS, 1991, p. 274: “[...] se é verdade que a carne é universal, ela não deve ser reduzida à carne
estritamente corporal” (Tradução nossa).
255
BARBARAS (1991, p. 275) desenvolve essa questão: « [...] [l]e champ du visible ne peut donc être
rigoureusement circonscrit: dès lors que le visible atteste un invisible, il ne saurait être définitivement fixé
comme le seul mode de donation de l’intelligible, il glisse au-delà de lui-même comme pur visible et s’articule à
une autre « visibilité » de l’invisible, qui est dicibilité ». [Tradução nossa: “[...] O campo do visível não pode,
portanto, ser rigorosamente circunscrito: a partir do momento em que o visível atesta um invisível, ele não
saberia ser definitivamente fixado como o único modo de doação do inteligível, ele desliza para além de si
mesmo como puro visível e se articula a outra « visibilidade » do invisível, que é o dizível”].
256
Essa discussão é desenvolvida, posteriormente, quando se discute a motricidade como base do pensamento
ontológico de Merleau-Ponty.
257
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 133.
258
Ibidem, p. 132: “apresentação de um inapresentável” (Tradução nossa).
259
BARBARAS, 1991, p. 198: “[...] decisão de pensar a visibilidade como ser” (Tradução nossa).
260
Ibidem, p. 58: “[...] o outro é um ser que se apresenta somente como ausência, que se dá somente como sua
própria retirada, e, nessa medida, não é a uma consciência que se entrega” (Tradução nossa).
120
de sens que comme épreuve de l’être-regardé »261. Barbaras, ainda, identifica a possibilidade
da experiência do outro como uma negação interna ou como “[...] mon expérience d’une
négation”262.
Essa confluência do outro no eu faz com que possamos admitir que ele também
seja sujeito da experiência. Retomando o início do raciocínio, a visibilidade da carne – a
membrura entre o visível e o invisível − se mostra, mais acentuadamente, nesse ato de relevar
a experiência do outro. Quando se visualiza essa experiência como a negativa interna de
minha própria experiência, então, percebemos o grau de interligação entre elas ou sua
dependência com relação à nossa própria experiência. Assim, a experiência do outro fere a
própria carne do sujeito, lembrando-o de seu pertencimento ao mundo, ou torna visível a
própria noção de carne, de inter-relação. É, então, dessa forma, que podemos pensar a
intersubjetividade como a realização da carne no corpo que sente:
261
Ibidem, p. 153: “[...] aquela de um olhar, que somente tem sentido como prova do ser-olhado” (Tradução
nossa).
262
Ibidem: “[...] minha experiência de uma negação” (Tradução nossa).
263
Tradução nossa: “A passagem à intersubjetividade constitui, bem no cerne do sensível, um primeiro passo em
direção ao invisível; ou melhor: essa experiência dá lugar à articulação entre o plano do visível e o do invisível.
De fato, o outro se constitui no mesmo nível da experiência muda, como uma extensão da relação carnal; isto é:
exatamente como dimensão do próprio Ser sensível”.
121
[o] quiasma em lugar do Para Outro: isso quer dizer que não há apenas
rivalidade eu-outrem, mas co-funcionamento. Funcionamos como um único
corpo.
O quiasma não é somente troca eu-outro (as mensagens que recebe, é a mim
que chegam, as mensagens que recebo é a ele que chegam), é também troca
de mim e do mundo, do corpo fenomenal e do corpo “objetivo”, do que
percebe e do percebido: o que começa como coisa termina como consciência
da coisa, o que começa como “estado de consciência” termina como coisa
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 200).
Por outro lado, Merleau-Ponty defende que a inacessibilidade do visível – já que como
totalidade, ele sempre escapa ao olhar − pode ser reunida, no termo carne, como realização
mais pujante do visível no invisível, e vice-versa. A carne é a possibilidade de tratamento da
experiência em sua integralidade, como acercamento das filigranas do visível no plano do
invisível. O quiasma, por sua vez, é a realização da carne, as dobradiças que permitem pensar
a experiência do outro, como que pertencente à experiência do eu: é a própria nuance de
profundidade da intersubjetividade.
Essa relação entre o quiasma e a profundidade pode ser atestada nessas mesmas
notas de trabalho de Merleau-Ponty, quando esse filósofo defende a profundidade como essa
aderência das coisas às coisas, por intermédio do olhar. Da mesma forma que o quiasma
possibilita pensar a totalidade ou confere visibilidade à carne, a profundidade é o espaço em
que as coisas se apresentam em simultaneidade:
Assim, a profundidade confere carne às coisas ou põe em evidência a relação do visível com o
invisível. Constatamos, na citação anterior, que o filósofo aproxima o conceito de carne dos
obstáculos que se apresentam à percepção, defendendo que esses obstáculos são a própria
condição de sua existência. É o retorno à ideia recorrente de Merleau-Ponty de que o invisível
se apresenta como condição de possibilidade do visível e de que apenas assim a visibilidade
se concretiza no conceito de carne ou nesse entrelaçamento.
122
“[o] invisível é
264
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 220.
265
Ibidem, p.227.
123
1) o que não é atualmente visível, mas poderia sê-lo (os aspectos ocultos ou
inatuais da coisa, − coisas ocultadas, situadas alhures – “Aqui” e
“alhures”)
2) aquilo que, relativo ao visível, não poderia, contudo, ser visto como
coisa (os existenciais do visível, suas dimensões, sua membrura não-
figurativa)
3) aquilo que só existe tatilmente ou cinestesicamente etc.
4) os λέϰτα, o Cogito
Estas 4 “camadas”, eu não as reúno logicamente sob a categoria do in-visível
–
Isso é impossível, primeiramente, pela simples razão de que não sendo o
visível um positivo objetivo, o invisível não pode ser uma negação no sentido
lógico –
Trata-se de uma negação-referência (zero de ...) ou afastamento.
Essa negação-referência é comum a todos os invisíveis porque o visível foi
definido como dimensionalidade do Ser, isto é, como universal, e, portanto,
tudo o que dele não faz parte está necessariamente nele envolvido, e não é
senão modalidade da mesma transcendência” (MERLEAU-PONTY, 2012,
p. 232).
266
SAINT-AUBERT, 2008, p. 21: “[...] sobre a complexidade passiva-ativa da carne, a começar nas relações
íntimas da percepção e da motricidade” (Tradução nossa).
267
Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty se declara contra o pensamento do negativo, defendendo a ideia de
que, nesse pensamento, os opostos sempre se mantêm como que afastados, repelindo-se mutuamente.
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 72).
268
Ferraz afirma que “[a] ontologia madura de Merleau-Ponty não é fenomenológica, no sentido em que ela não se
limita a analisar o que se manifesta à consciência” (FERRAZ, 2009, p. 208).
124
269
BARBARAS, 2008, p. 204: “[...] O movimento do sujeito no seio do mundo é bem a revelação do mundo pelo
sujeito: o devir-mundo da carne é bem devir-carne do mundo” (Tradução nossa).
270
BARBARAS, 1991, p. 283: “Merleau-Ponty caracteriza a corporeidade carnal por sua aptidão à
reversibilidade” (Tradução nossa).
271
Merleau-Ponty, assim, defende a não-coincidência:“[...] [é] tempo de sublinhar que se trata de uma
reversibilidade sempre iminente e nunca realizada de fato. Minha mão esquerda está sempre em vias de tocar a
direita no ato de tocar as coisas, mas nunca chego à coincidência; eclipsa-se no momento de produzir-se”
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 143).
125
Ao mesmo tempo em que a distância separa as coisas dos corpos, ela provoca a relação entre
as partes ou o próprio movimento. Merleau-Ponty defende que estamos como que afastados
do visível e, também, imersos nele, pela profundidade. Esse avesso da coisa provoca a sua
abertura ou convida o vidente a participar da carne do visível. O filósofo frisa – na citação
anterior – essa característica dúbia da profundidade, como condição de visibilidade da coisa e,
também, de corporeidade para com o vidente. A importância da motricidade é, então, revelada
nesse movimento, que mantém o espaço de provocação entre as coisas: sinal de que o último
pensamento de Merleau-Ponty permanece fenomenológico. Esse filósofo acentua, nos
seguintes termos, essa característica da reversibilidade ou a manutenção da distância:
272
BARBARAS, 1991, p. 303: “[...] da carne tem por consequência fazer aparecer a coisa e o outro como
momentos abstratos de uma presença mais profunda, de um tecido originário de visibilidade aceitando em seu
seio vários modos de cristalização [...] As coisas « me falam das outras »” (Tradução nossa).
273
Ibidem, p. 307: “O desejo como obra da carne” (Tradução nossa).
126
l’un ni l’autre n’est lui-même, et c’est plutôt dans et par le désir qu’ils le deviennent, c’est-à-
dire se font un seul »274.
O desejo desempenha, então, o papel da própria motricidade ou provoca o
entrelaçamento entre os corpos. Esse aspecto acentua a reversibilidade e, assim, o desejo se
revela na própria carne, nessa relação do eu com o outro: “[...] le désir est déjà parole adressé
à l’autre, mais silencieusement”275. Essa realidade carnal do desejo é mantida por não se
realizar completamente. As partes do todo permanecem unidas por esse desejo de união, mas,
por meio da reversibilidade carnal, garante-se o movimento constante ou o não-cumprimento
pleno do desejo. Barbaras, no texto “Motricité et phénoménalité chez le dernier Merleau-
Ponty”, defende que « [...] la partie rédigée du Visible et l’invisible est animée par l’exigence
de ressaisir le sens d’être du monde par-delà l’opposition abstraite de l’essence et du fait »276.
A motricidade é, então, identificada nessa relação do visível com sua transcendência. É
necessário precisarmos esse conceito, contextualizando-o dentro dessa discussão sobre a
carne, conforme a concepção merleaupontyana. Zielinski, no texto “La notion de
« transcendance » dans Le visible et l’invisible: de l’indetermination au désir”, situa bem a
abrangência da transcendência :
274
Ibidem, p. 310: “[...] Ainda é necessário compreender que o desejo, dimensão de membros intersubjetivos,
precede a presença de mim e de outro: enquanto houver desejo, nem um nem outro é ele mesmo, e é
propriamente dentro e pelo desejo que eles se tornam; isto é: se fazem um só” (Tradução nossa).
275
BARBARAS, 1991, p. 312: “[...] o desejo já é palavra endereçada ao outro, mas silenciosamente” (Tradução
nossa).
276
BARBARAS, 2008, p. 192: “[...] a parte redigida de O visível e o invisível é animada pela exigência de se
retomar o sentido do ser do mundo, ultrapassando-se a oposição abstrata da essência e do fato” (Tradução nossa).
277
Tradução nossa: “Sobre qual transcendência se questiona? Trata-se de uma transcendência explicitando a
profundidade da carne, as relações do visível e do invisível; não é o caso de uma transcendência « que
ultrapasse » o mundo: nós estamos sempre sobre o plano da imanência como experiência do mundo”.
278
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 175.
127
279
Ibidem, p. 189.
280
Zielinski assim relaciona esses conceitos em Merleau-Ponty: “[...] [l]a première thématisation de la
transcendance du monde (ou de la chair) apparaît dans l’expérience de la réversibilité du sensible « toujours
imminente, jamais réalisée en fait » (que ce soit le hiatus du toucher, ou la part d’invisibilité du voyant à lui-
même ) » (ZIELINSKI, 2008, p. 228). [Tradução nossa: “[...] A primeira tematização da transcendência do
mundo (ou da carne) aparece na experiência da reversibilidade do sensível « sempre iminente, jamais realizada
de fato » (que essa seja o hiato do toque, ou a parte de invisibilidade do vidente nele mesmo)”].
281
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 204.
128
Essa transcendência pode ser definida de várias maneiras, e Zielinski recorre a três
termos: l’écart, l’excès et la négativité282. No primeiro, identificamos a reversibilidade da
carne, mencionada no parágrafo anterior, ou a impossibilidade de se coincidirem as coisas, a
“non possession d’objet”283. O segundo termo se revela em acordo com o primeiro: « [...]
[s]’il y a écart entre le sensible et le senti, c’est parce que le sensible dépasse, déborde le senti.
Le monde est toujours en excès sur la perception »284. Esse excesso é um dos conceitos que
representa mais concretamente a transcendência; o mundo ultrapassa o sentir e, dessa forma,
há sempre algo que escapa ao olhar. Zielinski combate o erro de se confundir excesso com a
ideia de infinito:
[...] [a]u sens de Merleau-Ponty, il n’est pas un infini en idée, mais infini de
perception. Il n’est pas question d’une idée d’infini qui s’imposerait à moi,
mais de l’expérience de ce qui, à partir de ma chair, ne se réduit pas à elle.
La chair du monde est en excès su ma chair (ZIELINSKI, 2008, p. 233)285.
O corpo, então, encontra o infinito no mundo como aquilo que supera sua própria percepção;
ou melhor: que se esconde nas entrelinhas daquilo que é percebido. Esse excesso é percebido
como latência, como uma abertura para além daquilo que se define no visível.
Finalizando essa tripartição do conceito de transcendência, tem-se a négativité,
palavra que carrega uma referência direta à filosofia de Sartre. O distanciamento entre os dois
filósofos deve ser o primeiro passo para a compreensão dessa acepção como transcendência
em Merleau-Ponty: “[...] [c]ette négativité n’est pas celle du néant sartrien: elle ne se
détermine pas en opposition à l’Être. Le néant est dans l’Être, comme l’invisible appartient au
visible »286. Cumpre sublinharmos a distinção do campo da negatividade em Merleau-Ponty,
já que o filósofo trabalha, também, com esse termo. Anteriormente, tinha-se nomeado a
transcendência como excesso e esse excesso como latência; agora, por meio da negatividade,
classifica-se essa latência como que integrada ao interior do próprio mundo. Resumindo: os
três termos estão em movimento e se complementam na motricidade dessa acepção de
transcendência. L’écart − como essa evasão das coisas à posse − se realiza devido a l’excès do
próprio mundo: o mundo ultrapassa a percepção. O terceiro termo se apresenta como uma
282
ZIELINSKI, 2008, p. 229: “[...] o desvio, o excesso e a negatividade” (Tradução nossa).
283
Ibidem: “[...] não possessão do objeto” (Tradução nossa).
284
Ibidem, p. 231: “[...] Se há desvio entre o sensível e o sentido, é porque o sensível ultrapassa, excede o sentido.
O mundo está sempre em excesso sobre a percepção” (Tradução nossa).
285
Tradução nossa: “[...] No sentido de Merleau-Ponty, ele não é um infinito em ideia, mas infinito de percepção.
Não é caso de uma ideia de infinito que se imporia a mim, mas da experiência do que, a partir de minha carne,
não se reduz a ela. A carne do mundo está em excesso sobre minha carne”.
286
ZIELINSKI, 2008, p. 234: “[...] Esta negatividade não é aquela do nada sartriano: ela não se determina em
oposição ao Ser. O nada está no Ser, como o invisível pertence ao visível” (Tradução nossa).
129
definição desse excesso: négativité, aquilo que está no mundo, mas que se encontra como
ausente.
A transcendência facilita, então, a compreensão da motricidade − conceito que
desvela o pensamento final de Merleau-Ponty –, mas é preciso identificarmos esse
movimento. No texto de Zielinski, a transcendência aparece como um lance capital sobre a
dualidade sujeito e objeto, porque esse conceito representa a relação de desejo que põe esses
termos em movimento, reunindo-os como carne. O desejo é o combustível da relação, já que
« [...] [c]ette transcendance de l’indétermination caractérise profondément l’expérience du
monde chez Merleau-Ponty – et l’expérience du sujet comme non-coïncidence avec soi-
même. À l’excès du monde répond ce mouvement du sujet vers l’extérieur – désir »287. A
própria motricidade é garantida pelo desejo do sentiente de tocar as coisas, um desejo que é
intermediado pela transcendência do mundo. Como apresentamos anteriormente, a
negatividade no interior do mundo se desvenda como impossibilidade de a “nossa carne”
esgotar a carne do mundo. Essa transcendência é posta em debate, também, por Dastur, que
defende a ideia de um “pensée du dedans”; ou seja: “une pensée de l’être dans le monde du
sujet”288, nestes termos:
287
Ibidem, p. 248: “[...] Esta transcendência da indeterminação caracteriza profundamente a experiência do mundo
em Merleau-Ponty – e a experiência do sujeito como não coincidência consigo mesmo. Ao excesso do mundo
responde esse movimento do sujeito em direção ao exterior – desejo” (Tradução nossa).
288
DASTUR, 2008, p. 126: “pensamento de dentro”; ou seja: “um pensamento do ser dentro do mundo do sujeito”
(Tradução nossa).
289
Tradução nossa: “[...] o enigma da transcendência, desse movimento pelo qual a consciência sai dela mesma
para ir em direção ao seu outro, por um pensamento que atribui a si a tarefa acompanhar « a deflagração do ser »,
não se trata de construir a união do Por-Si e do Em-Si, nem de pôr um ser frontal diante de nós, mas unicamente
de descrever a estrutura ou a articulação pela qual o Ser se desdobra, infatigavelmente, no fora e no dentro,
visível e invisível”.
130
290
VILLELA-PETIT, 2008, p. 104: “clivagem reflexiva” (Tradução nossa).
291
Tradução nossa: “[...] Visando sublinhar esse deslocamento, trazendo plenamente o reconhecer a receptividade
que engloba todo ato de visão, seu envolvimento pelo visível, o filósofo empregará, doravante, a expressão « fé
perceptiva », em lugar de « percepção ». A modificação terminológica se revela necessária no momento em que
falar ainda de perceber (o verbo no ativo) apresenta o risco de conservar a ilusão de um sujeito que se percebe
tendo controle de sua visão, o que é apenas uma verdade parcial”.
292
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 197.
131
[c]omo a estrutura sensível não pode ser compreendida a não ser através da
sua relação com o corpo, com a carne, − a estrutura invisível não pode ser
compreendida sem a relação com o logos, a palavra – O sentido invisível é a
nervura da palavra – O mundo da percepção caminha coincidindo com o do
movimento (que também é visto) e inversamente o movimento tem [olhos?]
Do mesmo modo, o mundo das ideias invade a linguagem (pensamos a
linguagem) que por sua vez invade as ideias (pensamos porque falamos,
porque escrevemos) – (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 206).
[...] [d]ès lors que la parole ne peut être comprise comme le signe indifférent
d’une pensée déjà possédée mais se révèle être au contraire le vecteur d’une
téléologie infinie, l’être du monde dans lequel elle s’enracine ne saurait
s’épuiser dans une présence intuitive : il apparaît plutôt comme une
293
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 59.
294
Merleau-Ponty, nas últimas notas de O visível e o invisível, esforça-se para redefinir em qual âmbito ele pensa o
Logos: “[...] não tomamos o Logos e a verdade no sentido do Verbo (a 3ª Parte não é nem lógica, nem teleologia
da consciência, mas estudo da linguagem que possui o homem)” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 245).
132
295
Tradução nossa: “[...] Partindo do pressuposto de que a palavra não pode ser compreendida como o signo
indiferente de um pensamento já possuído, mas se revela ser, ao contrário, o vetor de uma teleologia infinita, o
ser do mundo no qual ela se enraíza não saberia se esgotar em uma presença intuitiva: ela aparece mais como
uma profundidade excedente toda posta em presença, profundidade da qual a infinitude está à medida da
teleologia expressiva”.
296
Tradução nossa: “De fato, a linguagem tem uma estrutura conceitual ambígua: ela pode ser compreendida como
palavra – e, nesse caso, a oposição ao silêncio é incontornável –, mas também, de maneira mais ampla, como
expressão estruturada; no segundo caso, se pode claramente identificar um conjunto de interseção da linguagem
e do silêncio, completo por todas as expressões que não fazem parte do discurso no sentido estrito. A ideia de
Merleau-Ponty parece ser esta: nisso é testemunha o seu recurso frequente à Pintura como « expressão muda »”.
133
[c]ertes, n’est pas encore acquise ici la réversibilité entre silence et parole
qui sera thématisée lorsque Merleau-Ponty adoptera explicitement la
perspective de l’ontologie, mais les bases de cette orientation semblent dès
maintenant jetées lorsque Merleau-Ponty constate que la perception et le
langage partagent le même pouvoir de différenciation et que, par conséquent,
tout deux expriment de façon indirecte (CARBONE, 2008, p. 422)298.
297
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 249.
298
Tradução nossa: “Certamente, não é ainda adquirida, aqui, a reversibilidade entre o silêncio e a palavra, que
será temática quando Merleau-Ponty adotar, explicitamente, a perspectiva da ontologia, mas as bases dessa
orientação já parecem lançadas quando Merleau-Ponty constata que a percepção e a linguagem compartilham o
mesmo poder de diferenciação e que, por consequência, todas as duas exprimem de maneira indireta”.
299
Dastur sintetiza, nos seguintes termos, o seu conceito: « [...] [l]a pensée de Merleau-Ponty, surtout dans sa
dernière période, est une pensée de la structure vivant pour laquelle l’intériorité ne renvoie plus à un sujet clos
sur lui-même, mais devient la dimension d’un être qui en perdant sa positivité en vient à se confondre avec le
mouvement même de l’experience » (DASTUR, 2008, p. 127). [Tradução nossa: “[...] O pensamento de
Merleau-Ponty, sobretudo no seu último período, é um pensamento da estrutura viva pela qual a interioridade
não remete mais a um sujeito fechado sobre si-mesmo, mas se torna a dimensão de um ser que perdendo sua
positividade vem a se confundir com o próprio movimento da experiência”].
300
Rosati, assim, articula esse conceito: « [...] L’ontologie doit donc devenir intra-ontologie, une pensée intérieure,
non pas dans le sens d’une pensée qui se fait dans un sujet, mais d’une pensée de la non-extériorité, une pensée
de l’Être qui se fait dans l’Être en tant que coïncidence à lui-même » (ROSATI, 2009, p. 41). [Tradução nossa:
“[...] A ontologia deve, portanto, tornar-se intra-ontologia, um pensamento interior, não no sentido de um
pensamento que se faz em um sujeito, mas de um pensamento da não-exterioridade, um pensamento do Ser que
se faz dentro do Ser, como coincidência consigo-mesmo”].
134
301
ROSATI, 2009, p. 50: “[...] Merleau-Ponty está, aqui, engajado na tentativa de definir o originário como tal: o
problema no qual ele se encontra é o problema do início” (Tradução nossa).
302
Tradução nossa: “Nesta constatação, pode-se identificar um abandono do « cogito tácito » que Merleau-Ponty
já havia contestado abertamente. Se há um mundo do silêncio, ele é indissociável do mundo da linguagem; o
silêncio é entrelaçado com a palavra e não pode ser pensado separadamente: não deve, portanto, buscar o
silêncio, isso seria um empreendimento impossível, mas o silêncio de nossa linguagem; « a passividade da
atividade »”.
303
O problema do irrefletido é abordado por Rosati nestes termos: “[...] On pourrait synthétiser le problème ainsi:
s’il est vrai que la philosophie est par définition réflexion, médiation, et que penser un immédiat irréfléchi
impliquerait aller vers la fin de la philosophie, il est tout de même vrai que l’expérience pure, celle qui dérive de
l’existence perçue, ne peut pas se réduire à une existence idéale » (ROSATI, 2009, p. 22). [Tradução nossa: “[...]
Poderíamos sintetizar o problema assim: se é verdade que a filosofia é por definição reflexão, mediação, e que
pensar um imediato irrefletido implicaria ir em direção ao fim da filosofia, é, portanto, verdade que a experiência
pura, aquela que deriva da existência percebida, não pode ser reduzida a uma existência ideal”].
304
ROSATI 2009, p. 25: “[...] Se é, de fato, verdadeiro que não há reflexão sem um irrefletido que não seja o
objeto, é, por conseguinte, também verdade que somente se pode pensar o irrefletido de maneira refletida”
(Tradução nossa).
135
Collot trabalha esse espaço ativo, fenomenológico, com a insígnia de paysage, enfatizando
que a consciência do espaço se efetua na própria experiência, na relação de entrecruzamento
do vidente com o mundo. A paisagem é, então, manifesta pelos sentidos do vidente e essa
marca é resguardada, quando se pensa nas descrições literárias do espaço, como, também, em
outras artes, como a pintura.
Essa marca subjetiva do termo “paisagem” é identificada por Collot: « [...] [i]l
n’est pas indifférent que le paysage apparaisse en Europe à la Renaissance, qui voit
l’affirmation de l’individu; en peinture, son essor coïncide avec celui du portrait et avec le
307
Tradução nossa: “[...] A paisagem se distingue, assim, da superfície, objetiva, geométrica ou geográfica. É um
espaço percebido e/ou concebido; portanto, irredutivelmente subjetivo. O horizonte, que é constitutivo da
paisagem, se revela a dupla dimensão: é uma linha imaginária (não se encontra registrado em nenhum mapa),
cujo traçado depende ao mesmo tempo de fatores objetivos (o relevo, as construções eventuais), e do ponto de
vista de um sujeito”.
137
308
COLLOT, 2005, p. 13: “[...] Não é indiferente o fato de a paisagem aparecer na Europa na Renascença,
momento em que se vê a afirmação do indivíduo; em pintura, seu progresso coincide com o da fotografia e com
o desenvolvimento da perspectiva” (Tradução nossa).
309
Collot afirma que: « [...] [l]e mot paysage n’apparaît pas moins de quatre-vingt-cinq fois dans la
Phénoménologie de la perception, et cette référence au paysage n’est jamais dans ce texte un simple ornement.
Même quand paysage y semble employé dans une acception métaphorique, cette méthaphore joue le rôle d’un
véritable support pour la pensée elle-même, dont elle illustre certains des enjeux fondamentaux » (COLLOT,
2011, p. 23). [Tradução nossa: “[...] A palavra paisagem aparece nada menos que oitenta e cinco vezes na
Fenomenologia da percepção, e essa referência à paisagem não é um simples ornamento do texto. Mesmo
quando paisagem parece ser empregada na acepção metafórica, essa metáfora desempenha o papel de um
verdadeiro suporte para o próprio pensamento, do qual ela ilustra certas questões fundamentais”].
310
BARBARAS, 1991, p. 239: “[...] isso é dizer que o objeto é dado à distância, sem que essa distância seja dada”
(Tradução nossa).
311
Collot retira esse trecho da Fenomenologia da Percepção e a referência é dada na versão que se utiliza nesta
tese: MERLEAU-PONTY, 2006, p. 53.
312
Tradução nossa: “Embora anterior à reflexão, essa relação “antipredicativa” no mundo é « o meio e como a
pátria de nossos pensamentos » à diferença do cogito reflexivo, que se subtrai do mundo por melhor coincidir
com ele-mesmo, o cogito pré-reflexivo não se separa do contexto onde ele emerge: é o que O visível e o invisível
nomeia de um « pensamento de horizonte »”.
313
COLLOT, 2011, p.18: “[...] um modo de pensar intuitivo, pré-reflexivo” (Tradução nossa).
138
história dos movimentos artísticos e literários. Collot faz um levantamento desse processo e
demonstra a resistência do conceito aos reiterativos alardes contra a subjetividade e o
realismo. Na verdade, Collot se preocupa em depurar o conceito, em demonstrar que sua força
se encontra na relação de envolvimento entre o ponto de vista e o mundo: « [...] [d]ans le
paysage semblent s’être investies toutes les composantes subjectives d’une co-naissance au
monde que la conaissance moderne de l’univers ne pouvait plus prendre en charge »314. É esse
copertencimento dos dois vetores que interessa a Collot e que possibilita manter diálogo com
a última filosofia de Merleau-Ponty.
A importância do conceito paisagem − para este estudo do espaço literário − é que
ele condensa as nuanças da própria vivência, instaura o verdadeiro encontro com o mundo. Na
análise da obra de Saer sublinharemos a confluência entre voz e visão, o intrincado que se
produz na experiência do mundo. Collot afirma que a palavra “paisagem” surge em francês
« [...] qu’à l’aube de Temps modernes, peu après l’adjectif moderne lui-même, dont l’usage se
répand vers la fin du XVe siècle »315. O teórico argumenta que desde suas origens a palavra já
designava mais que um recorte topográfico: ela sempre veiculou o aspecto do ponto de vista.
Essa nuança é produtiva para o pensamento do espaço literário, já que desvenda o
envolvimento que se realiza na experiência. Collot, então, persegue a resistência do conceito
às mudanças históricas do pensamento estético, identificando que a crise da paisagem se deve
à crise da representação e a do sujeito. Enquanto a paisagem « [...] dans la littérature
romantiques s’oppose à cette modernisation, et relève d’une tout autre attitude, qui privilégie
l’émotion, la contemplation et le sentiment de la nature » 316
no modernismo e modernidade
« [...] la tendance dominante de ces mouvements a été, on le sait, la contestation et la
destruction de la vieille mimesis »317. É por isso que o filósofo se esmera em pôr a toda prova
o conceito de “pensée-paysage” ou de mostrar como ele resiste às próprias mudanças da
concepção de paisagem, já que não coloca em ênfase um polo da experiência, mas sublinha a
relação sem limites que se firma entre o vidente e o visível. Exemplo disso é quando Collot
discute a abstração na arte: « [...] [j]e rappellerai d’abord que c’est en travaillant sur le
314
COLLOT, 2005, p. 14: “[...] Na paisagem parece ter-se investido todos os componentes subjetivos de um co-
nascimento no mundo que o conhecimento moderno do universo não poderia mais suportar” (Tradução nossa).
315
COLLOT, 2011, p. 57: “[...] que à aurora dos Tempos modernos, pouco após o adjetivo moderno ser
empregado, que o uso se expande em torno do fim do séc. XV” (Tradução nossa).
316
COLLOT, 2011, p. 60: “[...] na literatura romântica, se opõe a essa modernização, e se sublinha outra atitude,
que privilegia a emoção, a contemplação e o sentimento da natureza” (Tradução nossa).
317
Ibidem, p. 62: “[...] a tendência dominante desses movimentos foi, se sabe, a contestação e a destruição da
velha mimese” (Tradução nossa).
139
paysage que de grands précurseurs comme Turner, Mondrian ou Kandinsky ont inventé
l’abstraction »318. Sobre isso, o teórico ainda afirma:
318
Ibidem, p. 63: “[...] Eu recordarei, de início, que é trabalhando com a paisagem que grandes precursores – como
Turner, Mondrian ou Kandinsky – inventaram a abstração” (Tradução nossa).
319
Tradução nossa: “[...] Libertando-se das obrigações e das desilusões de uma mimese pretensiosamente objetiva,
a arte moderna liberou, por exemplo, a expressão dos componentes subjetivos da paisagem. Se este não é mais
figurado, ele pode se encontrar transfigurado ou refigurado segundo o ponto de vista de um sujeito criador, e/ou
configurado segundo uma organização que não tem mais nada de « realista », mas se mostra mais abertamente
lírica ou estética”.
320
COLLOT, 2011, p. 25: “Esta atividade sintética é um dos aspectos da estrutura do horizonte que a
fenomenologia revelou ao coração da experiência sensível e que faz com que uma coisa nunca seja percebida se
não for por sua relação com outras no interior de um campo, de um horizonte externo” (Tradução nossa).
321
Collot cita Merleau-Ponty: « “Je suis un champ, je suis une expérience” , écrit Merleau-Ponty dans le chapitre
de la Phénoménologie de la perception consacré au cogito, et il ira, dans les notes du Visible et l’Invisible,
jusqu’à “rejeter la notion de sujet, ou à définir le sujet comme champ”; il s’y propose de “décrire” “la pensée, le
sujet” comme situation spatiale, avec sa « localité » » (COLLOT, 2011, p. 35). [Tradução nossa: “‘Eu sou um
campo, eu sou uma experiência’, escreve Merleau-Ponty no capítulo da Fenomenologia da Percepção
consagrado ao cogito, e ele irá, nas notas do O visível e o invisível, até “rejeitar a noção de sujeito, ou a definir o
sujeito como campo”; ele se propõe aí a “descrever” “o pensamento, o sujeito” como situação espacial, com sua
« localização »”].
140
scène mouvant, animée d’un jeu d’ombres et de lumières »322. O teórico, assim, se apropria de
conceitos merleaupontyanos para a defesa de sua ideia de paisagem, como experiência no
mundo.
Ainda, sobre os termos – sujeito e objeto –, Collot retoma outro conceito de
Merleau-Ponty, o de chiasme. Como afirmamos anteriormente, todas as investidas contra o
conceito de paisagem na arte se deram devido à repulsa ao subjetivismo e/ou ao realismo.
Esse teórico, por seu turno, defende que esse conceito está na dependência desses vetores; ou
melhor: que resulta da própria relação dos termos. É nesse esquema que Collot se serve do
conceito de quiasma: « [l]e chiasme souligne ici l’échange entre objet et sujet qui caractérise
une pensée non réflexive et non discursive qui se constitue à même l’expérience sensible »323.
O quiasma sublinha, então, o movimento da experiência no qual se releva « [...] une
coappartenance du sujet et de l’objet, un enveloppement mutuel qui est plus profond que leur
distinction et qui en fonde la possibilité »324. É apenas por intermédio desse conceito –
chiasme – que se pode entender os termos sujeito e objeto como elementos da realização da
paisagem. Collot defende essa atualização por meio do espacement du sujet; ou seja:
revertendo o preconceito do sujeito, esse teórico ilustra o quiasma como esse movimento em
que o próprio sujeito se espacializa como abertura ao mundo.
É desse nó que o outro termo do conceito de Collot é extraído: « [...] [l]’espace est
une dimension essentielle de cette ouverture, dont une des modalités n’est autre que la
pensée »325. O pensamento é defendido, aqui, não como uma adição da subjetividade, mas
como ato pré-reflexivo que emerge na percepção. Buscando exemplificar essa ideia, esse
teórico cita Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção: “[...] [o] pensamento não é nada
de "interior", ele não existe fora do mundo”326; e, nas notas de O visível e o invisível: “[é]
preciso habituarmo-nos a compreender que o « pensamento » (cogitatio) não é contato
invisível de si consigo, vive fora dessa intimidade consigo, perante nós, não em nós, sempre
excêntrico”327. Com essas duas citações, Collot sublinha essa reciprocidade do pensamento e
do mundo no momento da experiência, seguindo as prerrogativas da fenomenologia que
322
Ibidem, p. 25: “[...] uma cena movente, animada de um jogo de sombras e de luz” (Tradução nossa).
323
Ibidem, p. 32: “O quiasma sublinha, aqui, a troca entre objeto e sujeito que caracteriza um pensamento não
reflexivo e não discursivo que se constitui mesmo a experiência sensível” (Tradução nossa).
324
BARBARAS, 2008, p. 193: “[...] um copertencimento do sujeito e do objeto, um envolvimento mutual que é
mais profundo que sua distinção (entre eles) e que nela funda a possibilidade” (Tradução nossa).
325
COLLOT, 2011, p. 34: “[...] O espaço é uma dimensão essencial dessa abertura, da qual uma das modalidades
não é outra coisa senão o pensamento” (Tradução nossa).
326
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 249.
327
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 214.
141
[l]e corps est le trait d’union entre l’espace et l’esprit, et c’est grâce à cette
médiation que les choses elles-mêmes nous apparaissent « en chair et en os »
(Leibhaftig). C’est de cette distinction entre Körper et Leib que Merleau-
Ponty est parti pour élaborer une conception de la chair qui unit étroitement
le corps, l’esprit et le monde. L’expérience de la perception révèle que le
corps est à la fois voyant et visible, touchant et touché, sujet et objet ; il nous
ouvre à un monde dont il fait lui-même partie (COLLOT, 2011, p. 42)330.
Collot, então, trabalha essa “filosofia da encarnação” com o escopo de descrever o próprio
conceito de paisagem, demonstrando seu aspecto de entrelace entre o vidente e o mundo.
Essa relação de copertencimento que designa a própria chair é, então, sintetizada,
por Collot, no seu conceito de pensée-paysage. Esse seu gesto sublinha a abolição dos limites
ou a relevância do horizonte como « [...] le seuil qui le fait passer de la vue à la vision »331. É
interessante, então, salientarmos que esse conceito não toma a arte como representação; ao
contrário, sublinha o gesto de pôr em evidência a experiência em sua complexidade ou a
conjunção vidente-visível. Abrimos parênteses: quando fazemos, aqui, a leitura da obra de
328
COLLOT, 2011, p. 35: “ser ao mundo” (Tradução nossa).
329
Ibidem, p. 37: “[...] Melhor do que a noção de lugar, a de paisagem me parece reunir essas duas direções da
espacialidade humana, que é, sempre, ao mesmo tempo, aqui e lá. O horizonte delimita a paisagem, mas esse
limite é móvel, aberto ao chamado do alhures” (Tradução nossa).
330
Tradução nossa: “O corpo é a ponte de união entre o espaço e o espírito, e é graças a essa mediação que as
próprias coisas nos aparecem « em carne e osso » (Leibhaftig). É dessa distinção entre Körper e Leib que
Merleau-Ponty partiu para elaborar uma concepção da carne que une estreitamente o corpo, o espírito e o mundo.
A experiência da percepção revela que o corpo é, por sua vez, vidente e visível, tocante e tocado, sujeito e
objeto; ele nos abre a um mundo do qual ele mesmo faz parte”.
331
COLLOT, 2011, p. 98: “[...] o limiar que o faz passar do visto à visão” (Tradução nossa).
142
Saer, o objetivo central é frisarmos como esse romancista articula, por meio de suas
personagens − do ponto de vista –, a relação com o mundo. Percebemos, mais que um apuro
descritivo, as paisagens saerianas deixam à vista o potencial de presença da própria
percepção. Ultrapassando o próprio gesto do ver, as personagens são tomadas pelo espaço que
contemplam e se confluem nele. Esse é o primeiro movimento; posteriormente, é na
linguagem que ocorre o resgate da voz que narra: a impossibilidade de se atingir o todo
reenvia o narrador à tarefa de sondar o seu próprio ato narrativo. Assim, quando se traz esse
conceito de paisagem, o objetivo é descrever esse espaço realizado no plano da experiência.
Retomando: Collot ainda defende essa função da arte na busca por sondar o horizonte;
[...] [l]’art n’est qu’une réponse au défi de cet infigurable qui est au coeur de
toutes les figures du monde et de l’homme. Et qui fait qu’elles appellent non
pas l’image, mais la peinture ; non l’imitation qui les fige, mais le geste, qui
les défigure et les refigure pour les rendre à leur perpétuelle genèse
(COLLOT, 2011, p. 134)332.
Nos romances de Saer, é essa relação de envolvimento entre aquele que narra e o
ponto de vista que faz com que se construa esse esquema em que o texto seja uma tentativa de
encenação do movimento homem-mundo. Um ato de nominação, afirma Scavino: “[...]
[o]frecer algo a la constatación, en esto reside la dimensión poética de la palabra”333 e, por seu
turno, Collot, na citação acima, designa a arte como o desejo de se alcançar a gênese do
próprio movimento vidente-visível. Na verdade, o círculo não se fecha, porque o gesto
artístico se apraz na encenação de um princípio que sempre retorna sobre si mesmo, já que o
ponto de vista se encontra no interior desse mundo-movente: « [...] [c]elui-ci ne se trouve plus
dès lors devant le paysage, mais dedans; il n’est plus un sujet placé en face d’un objet, il est
impliqué dans le même espace que celui de l’oeuvre, qui ne lui donne plus à voir une
représentation, mais à vivre une présence »334. Essa realização da experiência contribui para a
desestabilização de um ponto de vista único, prioriza-se o multiperspectivismo e o movimento
sinestésico: o olhar é assessorado pelos outros sentidos humanos, na tarefa de se sondar o
mundo.
332
Tradução nossa: “[…] A arte é justamente uma resposta ao desafio desse irrepresentável que está no coração de
todas as representações do mundo e do homem. E que fazem que elas chamem não a imagem, mas a pintura; não
a imitação que as congelam, mas o gesto, que as desfigura e que as refigura para torná-las sua perpétua gênese”.
333
SCAVINO, 2004, p. 11.
334
COLLOT, 2011, p. 180: “[...] Isso não se encontra mais desde então diante da paisagem, mas dentro; ele não é
mais um sujeito colocado em face de um objeto, ele é implicado dentro do mesmo espaço que o da obra, que não
lhe dá mais a ver uma representação, mas a viver uma presença” (Tradução nossa).
143
335
Ibidem, p. 193: “[...] ver, é sempre « ver as coisas em relação », escreve Arnheim; e segundo Husserl, uma
coisa nunca é percebida independentemente de seu contexto, que constitui seu horizonte” (Tradução nossa).
336
Ibidem, p. 229: “[...] O que está aqui é evocado, é uma experiência da ordem da sensação mais que da
percepção” (Tradução nossa).
337
Ibidem, p. 273: “[...] A paisagem está sempre ligada ao ponto de vista de um sujeito, e essa solidariedade se
inscreve dentro de seu horizonte, que se confunde com o campo visual daquele que o olha” (Tradução nossa).
338
COLLOT, 2005, p. 14: “A experiência paisagística não é, portanto, unicamente visual, e mesmo o panorama
comporta uma parte de invisibilidade cujo horizonte marca o limite” (Tradução nossa).
144
[...][s]i la terre nous parle, et semble nous faire “signe”, c’est qu’elle se
présente à nos yeux selon une « disposition » analogue à celle d’une phrase.
Dans le paysage, les choses se rassemblent selon un jeux complexe de
rapports qui fait sens ; et il appartient au poète de « relever cette topographie
ontologique du visible » (COLLOT, 2014, p. 108)343.
339
Ibidem, p. 441: “[...] de trocas onde se encontram e se confrontam diferentes pontos de vista” (Tradução nossa).
340
COLLOT, 2014, p. 16: “[...] Pôde-se defender que a pós-modernidade se caracterizava por uma inversão da
hierarquia entre espaço e tempo” (Tradução nossa).
341
Ibidem, p. 24: “[...] Se, hoje, os geógrafos se interessam tanto pela literatura, é porque esta investe cada vez
mais, como nós vamos ver, não somente em uma temática geográfica, mas em uma forma espacializada”
(Tradução nossa).
342
COLLOT, 2014, p. 88: “[...] O texto não remete diretamente ao real, mas a « uma experiência do real »”
(Tradução nossa).
343
Tradução nossa: “[...] Se a terra nos fala, e parece nos fazer « sinal », é porque ela se apresenta a nossos olhos
segundo uma « disposição » análoga a de uma frase. Na paisagem, as coisas se juntam segundo um jogo
complexo de relações que faz sentido; e ao poeta cabe a tarefa de « revelar esta topografia ontológica do
visível »”.
145
Assim, o jogo se perfaz no movimento de leitura do mundo e a arte se apresenta como uma
força de decifração dessa experiência. É interessante perceber como Collot retoma a ontologia
da carne de Merleau-Ponty para defender essa relação entre vidente-visível ou o próprio
conceito de paisagem.
Uma segunda questão que pode ser levantada a partir dessa última citação de
Colllot é como as coisas adquirem uma estrutura de coesão entre si. A linguagem, então,
apresenta-se como espelho da própria experiência, como forma de leitura do mundo. A
própria aderência das coisas se consolida como a linguagem: « [...] l’exigence de penser
l’expérience en continuité avec la parole et donc par-delà toute référence à une positivité,
factuelle ou idéelle, conduit Merleau-Ponty à la comprendre comme praxis plutôt que comme
théorie »344. É nesse movimento que a percepção se descobre como reciprocidade entre
vidente e visível, substrato para o pensamento defendido por Barbaras: a motricidade como
chave para entendimento do último pensamento de Merleau-Ponty. A linguagem se apresenta
como decifração dos sentidos encobertos, como capacidade de reordenação das coisas entre o
visível e o indeterminado.
Retomando: temos que essa passagem pelo conceito de paisagem de Collot é uma
mostra de como a filosofia de Merleau-Ponty − principalmente o último pensamento − serve
de leitura para o espaço literário; ou melhor: como pode ser enriquecedor pensarmos o espaço
literário por esse prisma, visualizando, mais do que a sua estrutura, o seu modo de
funcionamento. A experiência adquire relevo: pensa-se sobre como se estabelece a relação
entre o vidente e o mundo ou como o ponto de vista posiciona-se face às coisas e aos outros.
Na primeira parte deste capítulo, defendemos que o espaço literário é, aqui, pensado por meio
do ponto de vista e, também, por seu aspecto de representação do mundo. O primeiro é
potencialmente relevante, porque sublinha a própria relação vidente-visível. O segundo é
pensado como uma forma de se sublinhar o aspecto singular das descrições saerianas ou como
o romancista repudia, de certa maneira, o realismo literário, quando esse é entendido como
sinônimo de identificação. Em outros termos: o realismo, em Saer, é uma forma de se discutir
o aspecto representacional das suas descrições espaciais. A discussão do realismo é, também,
central no pensamento de Merleau-Ponty, segundo atesta, por exemplo, o trecho abaixo:
344
BARBARAS, 2008, p. 197: “[...] a exigência de pensar a experiência em continuidade com a palavra e,
portanto, ultrapassando toda referência a uma positividade, fatual ou ideal, conduz Merleau-Ponty a
compreendê-la como práxis mais que como teoria” (Tradução nossa).
146
[...] [l]e seul reproche que j’aurais à faire à l’auteur, ce n’est pas d’être allé
trop loin, mais plutôt de n’avoir pas été assez radical. Les descriptions
phénoménologiques qu’il nous propose maintiennent en effet le vocabulaire
de l’idéalisme. Elles sont en cela ordonées aux descriptions husserliennes
(BARBARAS, 1991, p. 34)346.
Merleau-Ponty tenta resolver essa questão no seu último pensamento: quando o vidente e o
visível são entrelaçados por meio do quiasma, no conceito de carne, como ele defende em O
visível e o invisível:
[a] única maneira de assegurar meu acesso às próprias coisas seria purificar
inteiramente a minha noção de subjetividade: não há nem mesmo
“subjetividade” ou “Ego”, a consciência não tem “habitante”, é mister que eu
a liberte inteiramente das apercepções segundas que fazem dela o avesso de
um corpo, a propriedade de um “psiquismo”, e que a descubra como o
“nada”, o vazio”, capaz da plenitude do mundo, ou melhor, que dela
necessita para carregar sua inanidade (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 59).
345
Tradução nossa: “[...] Reunindo, sob o título de realismo, a posição científica, e empirista em geral, o filósofo
francês acusa essa atitude de ingenuidade: o erro cometido pelo realismo é grosseiro de tal forma que essa
atitude não pode nem mesmo ser considerada como propriamente filosófica”.
346
Tradução nossa: “[...] A única reprovação que eu faria ao autor, não é de ter ido longe demais, mas, sim, de não
ter sido radical o bastante. As descrições fenomenológicas que ele nos propõe mantêm, de fato, o vocabulário do
idealismo. Elas são, por isso, relacionadas às descrições husserlianas”.
147
por meio dessa ideia que o espaço deixa de ser um lugar para ser um campo intricado em que
se releva a vivência do homem, a paisagem. A importância dessa mudança de perspectiva é
central para esta tese, porque o espaço ganha dinamismo na análise. Quando do trabalho com
os romances saerianos, frisaremos esse aspecto da experiência das personagens, como desejo
de coincidência com as coisas. O mundo deixa de ser analisado em separado das personagens
e passa a ser concebido por intermédio delas, como prolongamento de seus próprios sentidos.
Nessa análise nos fixamos nesse movimento do corpo no mundo, nas movimentações entre
vidente e visível. Por seu lado, o conceito de paisagem de Collot serve para comprovar a
produtividade do pensamento de Merleau-Ponty como ferramenta para leitura das
experiências das personagens. Contudo, mesmo Collot negando – no desenvolvimento do seu
conceito de “pensée-paysage” –, é perceptível a positividade do sujeito347, tanto em um termo
do conceito como no outro. A relevância do uso de seu pensamento, aqui, ancora-se no fato de
demonstrar a produtividade das ideias merleaupontyanas para a leitura do espaço literário. Na
verdade, a utilização da filosofia merleaupontyana é um retorno aos próprios parâmetros do
pensamento desse filósofo, já que a arte − principalmente a pintura e a literatura − serve de
exemplo para comprovar suas ideias filosóficas. É como se fizéssemos o mesmo caminho em
sentido inverso: demonstrando como sua filosofia pode dinamizar a compreensão da relação
das personagens com o mundo.
347
Nesta tese, sublinhamos como Merleau-Ponty consegue ativar a relação vidente-visível ou como ele ultrapassa
o binarismo sujeito e objeto. Contudo, apesar de todo esse empenho de Merleau-Ponty em se desvincular de uma
positividade do sujeito – principalmente por meio dessas suas últimas ideias –, uma crítica filosófica defende que
ele não conseguiu concretizar completamente esse feito. Rosati (2009) compartilha essa ideia nestes termos:
« [e]n premier lieu, donc, je crois pouvoir affirmer que le langage et la terminologie utilisés par notre philosophe
dans Le visible et l’invisible sont encore trop liés à la phénomenologie pour arriver à abandonner complètement
le concept de sujet. Le premier pas, le commencement de la philosophie est toujours présenté comme le moment
où un sujet commence à penser, un commencement qui – quoique Merleau-Ponty essaie de le nier – se révèle
semblable à l’autoréflexion de la conscience constituante. Merleau-Ponty ne paraît pas entrevoir d’autres façons
de ‘commencer’ à faire philosophie » (ROSATI, 2009, p. 57). [Tradução nossa: “Em primeiro lugar, portanto,
creio poder afirmar que a linguagem e a terminologia utilizadas por nosso filósofo em O visível e o invisível
estão ainda muito relacionadas à fenomenologia para conseguir abandonar completamente o conceito de sujeito.
O primeiro passo, o início da filosofia é sempre apresentado como o momento em que um sujeito começa a
pensar, um começo que – embora Merleau-Ponty tente negá-lo – se revela semelhante à autorreflexão da
consciência constituinte. Merleau-Ponty não parece entrever outras maneiras de ‘começar’ a fazer filosofia”].
148
CAPÍTULO 3
O ESPAÇO EM LA GRANDE DE JUAN JOSÉ SAER
348
Ravetti (2011, p. 55) afirma que “[...] [é] evidente que Saer não é um historiador, nem um filósofo, nem
pretende ocupar esse espaço, apesar de ter escrito em primeira pessoa relatos cujo ponto de vista narrativo é,
precisamente, o de um filósofo ou o de um historiador. Como um narrador, em sentido amplo do termo, atuou na
literatura, explicitamente, entregue ao seu exercício balbuciante e indagatório, entre o lance de dados e a mais
premente necessidade”.
149
349
Frisamos, com esse termo, a participação da personagem e do narrador nesse tipo de narração em terceira
pessoa, utilizada, rotineiramente, por Saer.
350
Perdigón defende que essa preferência pelo narrador de terceira pessoa é uma estratégia de abertura para a
disseminação das concepções saerianas acerca da narrativa no interior do romance: “[t]ambién por esta razón,
sus descripciones no son una enumeración de detalles sino más bien bloques de sensaciones y de ideas, siempre
amarradas a la perspectiva “subjetiva” de su narrador, que es en últimas la perspectiva de la poética de Saer”
(PERDIGÓN, 2011, p. 111).
351
MOTA, 2011, p. 36.
352
Essa perspectiva se apresenta como uma das chaves de leitura do aspecto melancólico da obra de Juan José
Saer, defendida, por Julio Premat, em La dicha de Saturno (2002). Premat analisa a obra de Saer sublinhando o
aspecto melancólico e a preocupação desse autor com seu trabalho de escrita.
150
353
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 201.
151
354
No posfácio de La grande há uma advertência ao leitor sobre o último capítulo do romance: “[...] [d]el último
capítulo, Saer escribió en el cuaderno el título y la primera frase. Se sabe que lo había pensado como una coda,
no muy extensa (no más de veinte páginas), y que había decidido terminar la novela con la frase Moro vende. El
lector puede inferir a partir de esa frase el posible final de la novela (quizás Gutiérrez ha decidido vender la
casa), pero no existen indicaciones ni apuntes que permitan asegurar cuál habría sido ese final” (SAER, 2005, p.
376).
355
Ibidem, p. 375.
356
Pode-se visualizar nesse gesto saeriano aquilo que Merleau-Ponty defende como “reversibilidade”, o
movimento no interior da carne: “[...] Abertura pela carne: os dois lados da folha de meu corpo e os dois lados
da folha do mundo visível... É entre esse avesso e esse direito intercalados que há visibilidade. Meu corpo
modelo das coisas e as coisas modelo do meu corpo: o corpo ligado por todas suas partes ao mundo, contra ele
[...] o mundo, a carne não como fato ou soma de fatos, mas como lugar de uma inscrição de verdade”
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 128).
152
Nula projetava construir uma ontologia que retratasse a inconstância das coisas; então, mais
uma vez, acentua-se a questão da motricidade do mundo. Esse movimento é visualizado,
principalmente na temporalidade, como um impedimento de que as coisas sejam
concretamente possuídas. A nomenclatura saeriana “ontología del devenir” retrata a fuga das
coisas do processo de descrição, ao mesmo tempo em que sinaliza o gesto diferencial de Saer,
em La grande, quando apresenta a possibilidade de se deslindar o movimento das coisas ou a
própria ação do tempo.
Essa “ontología del devenir” − que a personagem Nula projeta em todo o decorrer
da narrativa − põe a descoberto o seu desejo de desvendar como se estabelece a relação entre
sujeito e mundo. É interessante sublinhar esse fato, porque Merleau-Ponty defende que a base
153
de sua filosofia está na reversibilidade e defende essa questão como uma verdade última, um
posicionamento que acentua a relação ininterrupta entre as coisas e os corpos. Assim, «[...]
Merleau-Ponty insiste sur cet aspect: l’inachèvement de la perception n’est pas tant un échec
pour la perception que l’occasion pour elle d’aller toujours plus loin dans la découverte d’un
objet inépuisable»357. Essa questão é central na percepção do mundo pelas personagens
saerianas e, no caso de Nula, o foco se centra em acompanhar esse movimento do inacabável.
Do mesmo modo que o filósofo põe em primeiro plano a motricidade na relação com o
mundo, em Saer o projeto das personagens que veem é pôr a descoberto esse movimento das
coisas. Esse indeterminado, perseguido pelo olhar das personagens, é classificado, por
Zielinski, como uma abertura à transcendência: «[...] [c]e qui fait de l’expérience de la
perception par Abschattungen une expérience de transcendance, c’est que l’objet n’est jamais
saisissable en plénitude»358.
Na análise de La grande – que empreendemos neste capítulo e no posterior
deambular sobre outros romances de Saer −, o foco se centra no espaço ou na experiência das
personagens. O grau de envolvimento delas com as coisas e com os outros, narrado por meio
de recalcitrante negação da apreensão total, faz dos relatos de Saer um exemplo dessa
transcendência do mundo. Essa é a peça de maior valor, quando se foca no espaço de Saer,
essa encenação da experiência sempre incompleta e, ao mesmo tempo, sempre desejada. Esse
enigma do mundo, nos termos de Zielinski, é visível, em Saer, principalmente na relação da
personagem com o horizonte: « [...] [u]ne même interprétation guide la notion d’horizon.
L’énigme du monde comme horizon se tient dans cet entre-deux de l’inactualité et de la
présence »359. Saer prioriza, em muitos romances, uma fixação no horizonte do mundo, como
uma parte que sempre escapa à percepção. Essa é uma das insígnias da transcendência do
mundo, como, ainda, afirma Zielinski: “[l]’horizon rend la perception intrinsèquement
inachevée, et le monde inépuisable. Le monde est inconstituable, à la fois du fait de son
essence même, et du côté du sujet : sujet et objet ne s’opposent pas, mais participent du même
horizon (ce que Merleau-Ponty nomine «chair»)”360.
357
ZIELINSKI, 2008, p. 222: “[...] Merleau-Ponty insiste sobre esse aspecto: o inacabamento da percepção não é
tanto um fracasso para a percepção, mas a ocasião para ela ir sempre mais longe, na descoberta de um objeto
inesgotável” (Tradução nossa).
358
Ibidem, p. 222: “[...] [o] que faz da experiência da percepção por Abschattungen uma experiência de
transcendência é o fato de o objeto não ser jamais apreensível em plenitude” (Tradução nossa).
359
Ibidem, p. 223: “[...] [u]ma mesma interpretação guia a noção de horizonte. O enigma do mundo como
horizonte se mantém nesse entremeio da inatualidade e da presença” (Tradução nossa).
360
Ibidem, p. 226: “[o] horizonte torna a percepção intrinsecamente inacabada e o mundo inesgotável. O mundo
não é acabado, simultaneamente pelo fato de sua própria essência e pela do sujeito: sujeito e objeto não se
opõem, mas participam do mesmo horizonte (o que Merleau-Ponty nomeia de ‘carne’)” (Tradução nossa).
154
361
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 224.
155
olhar o todo, sublinha-se essa nuance do indeterminado como força motriz que,
reiteradamente, põe a descoberto sempre algo novo.
Retomando La grande, percebemos que é nessa fugidia presença do mundo que as
personagens saerianas se encontram no espaço da ação. A experiência do sujeito é quase
negada, nesse gesto de reversibilidade com as coisas, devido ao processo do devir e à própria
incapacidade de se recobrir, completamente, a experiência. Nesse romance, quando as
personagens se centram no espaço – quando descrevem sua relação com o mundo −, a
tentativa de inventariá-lo pela visão esbarra no seu próprio movimento de transformação:
aquilo que, antes, era visto, torna-se algo novo, diante do seu observador. Essa força do
indeterminado não se aloja exclusivamente no tempo, mas, também, na própria multiplicidade
de apresentação do mundo. A partir dessa constatação, pensamos a riqueza de se relacionar o
conceito de “carne” de Merleau-Ponty – o pensamento da reversibilidade – do que, aqui,
frisamos encontrar-se em Saer: a pluralidade e a minúcia da percepção das personagens. Esse
pensamento do indeterminado pode desvendar, em grande medida, essa perspectiva múltipla
do espaço saeriano.
Em La grande, há um enfrentamento mais pungente desse gesto fugidio do
mundo, por meio das vozes – de diferentes personagens − que ecoam no texto. A perspectiva
múltipla possibilita que haja uma discussão, entre as personagens – por meio daquilo que é
permitido saber delas –, dos conceitos de tempo e de espaço ou como o reflexo do tempo
incide sobre a percepção do mundo. Resumindo: basicamente percebemos duas concepções
que se complementam nesse romance: aquela que enfatiza o mundo ou que as coisas não são
plenamente atingidas − concepção presente, também, em romances anteriores – e um segundo
posicionamento, quando se defende que é o sujeito quem capta as perspectivas do mundo ou
que as coisas não são as mesmas para observadores distintos. A primeira reflete uma ênfase
no mundo; a segunda, por sua vez, acentua a experiência particular do sujeito. Esse último
romance de Saer destaca a intersubjetividade, ao expor as posições de várias personagens
sobre um mesmo acontecimento por meio do intrometimento do narrador heterodiegético
nessas perspectivas. É interessante visualizarmos − nesse modo de narrar − como uma posição
está como que contaminada pela presença “do outro”.
Essas duas perspectivas, presentes em La grande, acerca da relação do sujeito
com o mundo, são asseveradas no jogo de perspectivas entre as personagens, pontuado
anteriormente. Nula, por exemplo, é um inquisidor da aparência das coisas; defende a
transitoriedade do mundo: “somos pastos del devenir y que todo está em movimiento y en
156
cambio constante”362. Como afirmamos anteriormente, essa personagem tem por objetivo
escrever uma “ontología del devenir” ou descrever a fugacidade do mundo, dado o
escoamento temporal que incide sobre o espaço. A tese de Nula é contrastada, principalmente,
pela postura de Gutiérrez, personagem que retorna da Europa depois de três décadas.
Gutiérrez despreza o intervalo de tempo que passou distante de sua pátria e busca se reintegrar
a ela, com a intenção de vivenciar o mundo que já escoara no tempo. Sob a perspectiva dessa
personagem, observamos que as coisas não são descritas em seu conjunto, ou melhor,
Gutiérrez sublinha a singularidade do mundo, como evidencia, por exemplo, este excerto:
362
SAER, 2005, p. 67.
363
A última filosofia de Merleau-Ponty foca-se na junção entre sujeito e mundo; na verdade, é possível perceber,
mesmo na obra de 1945, Fenomenologia da Percepção, a postura de Merleau-Ponty na tentativa de unir esses
dois universos. Essa perspectiva de continuidade do pensamento merleaupontyano é defendida por M.C. Dillon
(1998).
364
Laurent afirma sobre lhanura: “[...] [l]a zona sería entonces el ‘recuerdo de recuerdo de lectura’ en el que cada
lector va proyectando vivencias personales eminentemente subjetivas. Así, a la pregunta ¿cómo se llama la
157
lugar fecundo para o embate do homem com o mundo. É no olhar sobre a lhanura que as
personagens descobrem o horizonte, como um ponto que sempre escapa à observação.
É fecundo esse tema do horizonte para a filosofia de Merleau-Ponty, porque
suscita o pensamento da reversibilidade ou do vidente e do visível. Esse é um dos pontos em
que a sua filosofia se mostra fecunda para a leitura do espaço saeriano como maneira de
mostrar em que termos se firma a relação das personagens com o mundo. O objetivo, aqui, é
ultrapassarmos uma descrição objetiva do espaço, ao contrário, esmeramos em pôr em
destaque a experiência. A estratégia é mostrarmos como o gesto do vidente está como que
imerso no visível, como se torna difícil separá-los nesses lances do olhar. A transcendência do
ver é descrita por Saer: a nitidez das coisas é borrada pelo recuo constante do mundo. É
interessante pontuarmos como as investidas das personagens se apresentam em múltiplas
formas, na aproximação ao mundo. Esses variados caminhos sinalizam aquilo que Merleau-
Ponty afirma sobre a Arte, como um lugar em que se descobre uma relação múltipla com o
“sentido bruto” do mundo. Em Saer, é patente a constante intromissão das personagens no afã
de atravessar as barreiras que se escondem no além-horizonte.
La grande, então, apresenta as duas personagens principais do romance já no seu
primeiro parágrafo. Nula e Gutiérrez aparecem cruzando a vegetação do campo, que é
margeado pelo rio. A aproximação dos dois espaços mais visitados na obra saeriana (a lhanura
e o rio), já sedimenta esse romance, em um projeto de escrita espacial. A inserção das
personagens no espaço e o próprio desconhecimento delas quanto à aproximação com o rio
projetam a presença do narrador. A performance do narrador denuncia a forma de
apresentação do espaço no narrado. O seu sobrevoo inicial por sobre as personagens, já
imersas no espaço, é uma recorrente formalização do romance saeriano. O “afastamento” do
narrador se processa no momento em que a focalização se instaura sobre a personagem.
Retomando a questão da focalização e do espaço, percebemos, no último romance de Saer,
distribuição da focalização entre os vários personagens, mas, quanto à realização do espaço, o
posicionamento de Nula e de Gutiérrez − ou a perspectiva projetada por eles − é mais
significativo para a análise. Partimos, então, para a análise da deambulação, dessas duas
personagens, no espaço ficcional. É por meio do cotejo entre esses dois olhares que
conseguimos nos movimentar no interior da poética espacial saeriana de La grande.
‘ciudad’?, más de un lector podría contestar ‘Santa Fe’ pero en ningún momento el nombre de la ciudad de Santa
Fe aparece en la ficción saeriana. El único lugar donde aparece es en el prólogo ‘Dos palabras’ que abre En la
zona, es decir en un espacio liminal que da paso a la ficción pero que se queda fuera de la ficción. Y nunca
volverá a aparecer” (LAURENT, 2013, p. 208).
158
A personagem que mais detém o foco é Nula e é por meio dela que percorremos a
primeira posição em relação ao problema espacial. Não podemos renunciar ao fato de o
narrador se manter sempre presente no relato, já que se trata de uma narrativa em terceira
pessoa, mas seu movimento está em possibilitar que a personagem 365 também se revele
ativamente na experiência. Retomando, Nula carrega uma nuança filosófica em seu discurso:
deixou o curso de Medicina para estudar Filosofia, com a justificativa de preferência por
coisas abstratas. Em Saer, muitas das personagens circulam nos meandros de seu mundo
ficcional, movem-se por obras que têm intervalos significativos de tempo entre suas
publicações. A repercussão do sujeito na obra é conceituada, pelos críticos de Saer, como um
projeto coerente de escrita; Premat afirma que: “[...] doy por conocidas las características más
anecdóticas del conjunto, las recurrencias argumentales y espaciales, la reaparición de
personajes, las particularidades a la vez referenciales e imaginarias de la Zona” 366. A
coerência do conjunto se apresenta como uma das dificuldades para se atravessar o sentido do
todo. Esse embaraço é devido à extensa obra publicada por Saer (doze romances, quatro livros
de ensaios, quatro livros de contos e um de poesia); por outro lado, a confirmação da
coerência do conjunto permite que se estabeleça uma leitura relacional por meio da entrada –
por uma das partes − em uma de suas obras ficcionais. É dessa forma, que pretendemos nos
movimentar no trabalho de leitura do espaço saeriano: deslocando-nos a partir de La grande,
o nosso escopo é confirmar os pontos que caracterizam o espaço saeriano desenhado nos
romances. Nesse sentido, o primeiro passo é contrastarmos as duas perspectivas conflitantes
em La grande – em relação à experiência −, representadas por meio das performances das
personagens Nula e Gutiérrez.
365
MOTA escreve que: “[...] [a] performance do narrador é que corrobora esse efeito, já que o narrador
heterodiegético se eclipsa, gradativamente, com o movimento do texto. Esse narrador, que, teoricamente, se
aloca externamente à personagem, abandona esse perfil e permite que apenas a personagem central dirija o foco
da narrativa. Assim, o leitor é tomado pela perspectiva dessa personagem: vê apenas o que ela vê, ouve apenas
que ela ouve.” (MOTA, 2011, p. 61).
366
PREMAT, 2002, p.18.
159
Londres, da Inglaterra do século XIX, famosa por ser a da residência de Sherlock Holmes,
célebre personagem de Sir Arthur, que reaparece no conto de Saer para solucionar o crime do
poema367 de Tomatis. Antes da chegada de Tomatis, Nula se encontrava na estação rodoviária
de Buenos Aires, esperando a chuva passar, para que pudesse se deslocar até o seu carro, após
deixar o gerente de vendas de Amigos del Vino – empresa na qual trabalha − no ônibus. Com
as informações que são dadas no início do conto, percebemos que essa personagem é a mesma
do último romance de Saer. É nesse intervalo de tempo – de espera para que a chuva cesse −
que o narrador apresenta Nula e o caracteriza de forma peremptória.
Ultrapassando a descrição fisionômica e a narração dos acontecimentos vividos
pela personagem, o narrador interpreta, nesse conto, a postura de Nula em relação ao mundo.
Abrimos, aqui, parêntese: essa circularidade das personagens pode ser analisada, também
tomando-se como exemplo a personagem Nula, como uma experimentação funcional368 das
personagens que podem, ulteriormente, ser deslocadas para os romances. Retomando o cotejo
desses dois ambientes ficcionais, percebemos que, no universo temporal da ficção, há um
intervalo de mais ou menos um ano entre o conto e o romance. Nula está beirando os seus
vinte e oito anos − no conto − e surge, nas primeiras páginas de La grande, com vinte e nove
anos:
[e]n su vida, las cosas siempre ocurren demasiado temprano, y cuando las
posee, al tiempo se da cuenta de que ya no las desea, o más incluso: que
siempre ha perseguido la posesión de cosas que, en el fondo, no deseaba.
Interpretada de esa manera, su corta vida —recién está por cumplir
veintiocho años—, es una mezcla de responsabilidad y de fuga, igualmente
agobiantes y secretas, que le da la impresión de vivir en varios mundos
simultáneamente, y a la cual se adapta bien el corretaje de vino, que le
permite ganarse la vida y a la vez gozar de muchas horas de tiempo libre, de
soledad y de vagabundeo. A los diecinueve años empezó a estudiar
medicina; a los veintitrés, se pasó a la filosofía, y al cumplir los veintiséis,
como ya se había casado y tenía un hijo de un año y el segundo estaba en
camino, se vió obligado a trabajar, y un seminario de iniciación a la enología
en el mismo hotel Iguazú al que, si paraba la lluvia, no iba a quedarle más
remedio que volver, lo lanzó al comercio del vino (SAER, 2000, p. 67).
367
A personagem Tomatis, assim, lança os pressupostos formais de seu relato: “[…] sería un largo poema
narrativo en verso libre, con algunos pasajes rítmicos y ciertos finales de estrofa en versos regulares, alejandrinos
probablemente, y rimas consonantes. De esa manera ocuparía en la historia de la literatura un lugar junto a Edipo
rey, ya que Sófocles y yo seríamos los únicos dos autores que hubiésemos tratado en verso un enigma policial”
(SAER, 2000, p. 70).
368
Claesson afirma que: “[…] [e]n palabras de Gramuglio, ‘los cuentos’ funcionarían como el laboratorio,
anticipado o retrospectivo, donde se precisan las transformaciones temáticas y formales que las novelas realizan
con plenitud” (CLAESSON, 2013, p. 109).
160
caso, o eversor da percepção é, também, o devir; o mundo se encontra sempre em fuga, dada a
transitoriedade do seu movimento e a transcendência da sua relação com o vidente. O
empecilho perceptivo, então, é confirmado nos dois vetores: no sujeito e no mundo.
[p]ara Nula, que muchas veces por día se sorprende a sí mismo observando
ejemplos que alguna vez le servirán para sus Notas, la isla de enfrente,
formación aluvional, es una buena prueba del cambio continuo de las cosas:
el mismo movimiento constante que la formó la va erosionando, haciéndola
cambiar de tamaño, de forma, de lugar, y el ir y venir de la materia y de los
mundos que hace y deshace, no es más, según él, que el fluir sin dirección ni
objetivo, ni explicación conocida, del tiempo invisible que, silencioso, los
atraviesa (SAER, 2005, p. 13).
[…] [e]l tiempo presente hace que el espacio vaya surgiendo a partir de lo
que el narrador ve: en el relato decimonónico, aquello que se describía en el
pretérito presuponía la anterioridad del objeto. Es bien conocido el ejemplo
de Flaubert: la descripción del sombrero de Charles Bovary presupone la
anterioridad por decir así ontológica del objeto (ARCE, 2013, p. 94).
A importância dessa discussão está no fato de, com ela, se resgatar, para o
vidente, o ato de manifestação do mundo, um gesto potencialmente fenomenológico. É na
vivência que o mundo eclode por meio da percepção, como coisa que é permeada pelos
sentidos, atravessada pelo desejo de posse. Há outros trechos desse romance nos quais se
ressalta essa prevalência da focalização sobre a voz do narrador.
As descrições pormenorizadas, em Saer, apresentam essa tentativa de colidir o
vidente com as coisas, no projeto de esgotar o mundo. Na anterior citação de La grande,
apesar de Nula perceber a ação do devir ou o movimento do mundo, sua conclusão posterior é
de que as coisas se apresentam em uma mesmice repetitiva. Essa conclusão é, também,
extraída daquele trecho, anteriormente, citado, em que Nula defende que as ondas do rio se
apresentam sempre idênticas. Nula propõe a ontologia do percurso do tempo, mas é vítima do
engodo de seus próprios sentidos, quando se depara com o mundo em movimento: uma
163
mudança que retraz sempre o mesmo. Essa desproporção da experiência é explicada pela
afirmação de Saer − no conto “Recepción en Baker Street” de Cuentos Completos (2000) de
que Nula persegue as coisas, mas não consegue cessar o desejo, porque a experiência se
apresenta como que incompleta. É como se o desejo não se extinguisse na experiência; ou
melhor: é como se, em certa medida, o objeto escapasse ao enclausuramento dos sentidos. Em
Saer, segundo Premat, representa-se a “dramatização do sentido” e, para esse pesquisador,
“esa negación de sentido que lleva, en muchos casos, hasta una disociación de la forma”369 do
próprio romance, é realizada por meio do recurso do autotematismo 370. Por outro lado, a
linguagem do mundo estaria nas próprias coisas, como que imiscuída no horizonte do mundo.
Decifrar esse sentido torna-se um iterativo processo de nominação, em Saer, uma encenação
da própria transcendência das coisas, e é em decorrência desse evanescente mundo que a
discussão textual – metaficcional – emerge, na exploração fenomenológica, como recurso de
preenchimento dessa ausência.
Esse projeto de nominação é investigado por Scavino, que percebe o gesto na
postura de Saer de inquirir o mundo pela descrição pormenorizada: “[...] [n]ombrar significa
hacer aparecer algo para que, en adelante, podamos referirnos a eso, convertirlo en el sujeto
de varias proposiciones o contar eventualmente su historia”371. Essa postura se coaduna
perfeitamente com o pensamento de Merleau-Ponty, com a defesa de uma linguagem bárbara
– ou muda – compreendida somente na relação do visível com o invisível. Esse encobrimento
das coisas revela a complexidade do movimento entre vidente e visível, conceituado, pelo
filósofo, de quiasma. A característica dessa motricidade é a impossibilidade de coincidência
entre as partes, sendo essa a própria razão do movimento. Scavino se interessa por esse gesto
exaustivo de Saer para nominar as coisas, para descrever o envolvimento com o mundo. Essa
nominação não é castradora, porque a linguagem poética impossibilita cercear o diálogo e a
experiência com o mundo: “[...] [s]ólo que el propio acto de nominación, la propia
constitución poética de la cosa a la cual va a referirse un saber, no va a cesar de sustraerse a
este mismo saber”372. A linguagem poética preserva a experiência vertical com o mundo ou
mantém esse diálogo aberto.
369
PREMAT, 2002, p. 131.
370
Segundo Julio Premat “[...] las ficciones saerianas se caracterizan por un exuberante autotematismo, es decir
que no sólo exponen sus modalidades de construcción, sino que acumulan imágenes de la propia creación,
integran una distancia interrogativa frente a lo dicho, introducen personajes de escritores, citas y una amplia serie
de mecanismos intertextuales y autorreferenciales que son, todos, una ficcionalización del acto de escritura y una
estrategia que convierte cualquier elemento del relato en símbolo reflexivo de su propia génesis o existencia”
(PREMAT, 2002, p. 16).
371
SCAVINO, 2004, p. 2004.
372
Ibidem, p. 11.
164
[…] separados uno del otro por sus propios pensamientos, el tiempo parece
haberse estirado mucho, dando la impresión de transcurrir en el plano, no
únicamente horizontal que el instinto le atribuye, sino también vertical, hacia
un fondo improbable, sugiriendo que incluso el presente, a pesar de su
fugacidad legendaria, y aun en su borde inestable y delgadísimo, puede
resultar infinito (SAER, 2005, p. 20).
representa, de forma mais patente, a relação com o presente, em abertura constante para o
envolvimento com as coisas. Essa desestruturação da diacronia possibilita que a experiência
seja sentida de forma aguda: é como se tratasse de estabelecer um envolvimento mais intenso
com o mundo. Essa postura é aclarada pelo narrador, anteriormente ao trecho citado, quando
afirma que: “[...] con cierta ironía se dice que después de todo hasta de aquello que nos es
familiar sabemos poco, por la simple razón de que nos hemos resignado a olvidarnos de su
parte misteriosa”374. Essa parte misteriosa375 é perseguida pelas personagens saerianas e
exemplificada, no texto, pelo apreço do narrador por descrições pormenorizadas das
experiências das personagens.
Essa “representação literária” da experiência no mundo – no sentido de
demonstrar a relação vidente-visível – torna-se um movimento sem termos, em que as
próprias palavras selecionadas buscam revelar a verticalidade da vivência das personagens. A
parte “misteriosa” é que move a relação da personagem com o mundo, ou que funciona como
um mecanismo de motricidade, conforme discutimos no capítulo sobre a filosofia de Merleau-
Ponty. O trecho citado, anteriormente, esclarece como o espaço saeriano é concebido para o
mister de descrever além daquilo que se apresenta ao olhar cotidiano. No projeto de perpassar
o visível, o olhar encontra sempre algo além daquilo que se apresentava no imediatismo.
Nessa profusão de coisas, a personagem se empenha em confluir o mundo, estabelecendo,
como nova forma de leitura, a centralidade na parte misteriosa. A ênfase nos contornos,
naquilo que escapa aos limites do visível, recolhe o olhar da personagem. O horizonte, então,
é um desses pontos que fascinam a experiência da personagem: um lugar em que a
horizontalidade é atravessada por linhas transversais que encetam uma profundidade sem
limites. Essa profundidade impossibilita a representatividade positiva do mundo ou impede
que se possam demarcar barreiras entre o vidente e as coisas:
374
Ibidem, p. 13.
375
Merleau-Ponty defende a relação de figura e fundo como a própria possibilidade de apreensão das coisas. Essa
é uma das chaves de leitura da sua fenomenologia e, posteriormente, da suaontologia. Essa questão é explanada
no capítulo anterior, na discussão da última filosofia de Merleau-Ponty, base para essa leitura do espaço
saeriano.
166
376
SAER, 2005, p. 29.
377
Ibidem, p. 51.
167
1957, com trinta e oito anos. La India, a mãe de Nula − apesar desse apelido, tinha
ascendência calabresa − tinha, também, outro filho, o Chade; ela era proprietária de um
pequeno negócio de venda de livros que, depois, se transferiu para dentro da universidade.
Nesse pertencimento a vários espaços − como filho de imigrantes árabes − Nula
recorda o seu primeiro contato com a lhanura. Essa aproximação com o campo é descrita por
meio dos sentidos da percepção: Nula descreve o seu envolvimento com o espaço percorrendo
o tato, o olfato, o paladar, a audição e a visão, respectivamente. A visão se revela sinestésica,
devido ao seu caráter de antecipação dos outros sentidos. A visão adianta a presença do
mundo e, desse modo, os outros sentidos são ativados para, da mesma forma, decifrar, de
antemão, o seu contato com as coisas que se mostram. É nesse ato de antecipação que se
revela o fenômeno da sinestesia, no recobrimento das coisas pelas várias camadas do sentir.
Trazemos, aqui, um pequeno trecho para exemplificar essa assertiva de como a visão retoma
os outros sentidos, as outras sensações:
378
Nula percebe o tempo “em plano vertical” (SAER, 2005, p. 20), quando prioriza a sua relação com o presente:
o sentido de transitoriedade é encoberto pela experiência.
379
SAER, 2005, p. 96.
168
380
SAER, 2005, p. 107.
169
fugaz que sea, para revelárnoslo”381. É como se o corriqueiro dependesse desse olhar
“virgem”382, para ser desvendado. O ato de ver está posto sobre a base de um pré-
conhecimento, mas a complexidade dessa ideia está no fato de que esse conhecimento se
baliza na relação com a própria investigação383. A percepção pode gerar uma desproporção
entre o percebido e as coisas, o que se conforma com aquilo que afirmamos sobre o engano
sensorial. Essa questão é recorrentemente discutida na obra saeriana, por meio do frisson pela
imagem do horizonte: “[...] Nula piensa: «El horizonte, paradigma de lo exterior, resulta en
realidad de una imposibilidad humana; y las paralelas se juntan no en el infinito, sino en
nuestra imaginación. Buena parte del mundo existe porque yo existo”384. Há, em La grande, a
discussão da experiência por meio desse refletir sobre a parcela de subjetividade presente na
relação com o mundo; parece que Saer, por meio de Nula, afasta-se do realismo e defende
uma positividade do sujeito na percepção.
381
SAER, 2005, p. 117.
382
Esse olhar pode ser entendido como o gesto de desautomatizar a percepção, de ver as coisas como que sendo
vistas pela primeira vez, como diria Saer em El río sin orillas.
383
Merleau-Ponty afirma que “[...] [n]ão se trata de pôr a fé perceptiva no lugar da reflexão mas, ao contrário, de
abarcar a situação total que comporta reenvio de uma a outra. O que se obtém não é um mundo maciço e opaco
ou um universo do pensamento adequado; é uma reflexão que retorna sobre a espessura do mundo para iluminá-
lo, mas que em seguida lhe devolve somente a sua própria luz.” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 44).
384
SAER, 2005, p. 154.
385
Ibidem, p. 272.
170
coisas faz com que a personagem queira “[...] refutar la contradicción entre el ser y el devenir,
así nomás, siendo”386.
Nessa entrada e imersão no mundo, Nula percebe outro caminho do desengano: o
“ópio do mero ser” faz com que se perca a própria consciência do viver “hundiéndose en un
magma animal”387. É como se o escopo de inteiração com o mundo requeresse, por outro
lado, a manutenção da reflexão, visando compreender o próprio caminho em direção à
imersão. O abandono da reflexão a respeito do devir − da discussão filosófica − acarreta a
promoção de um monismo animal. É nessa encruzilhada que Nula percebe uma positividade
do sujeito, porque é necessário o estabelecimento da reflexão ou essa condição de
subjetividade. Essa ideia se ajusta com a defendida por Merleau-Ponty: a impossibilidade de
uma reversibilidade completa na experiência. Na sua última fase filosófica, Merleau-Ponty
abandona a contradição reflexão e irrefletido, visando afastar-se dos dualismos. Essa
contradição é substituída pela relação entre linguagem388 e silêncio, ideia que preserva
concretamente os conceitos de visível e de invisível, o movimento do quiasma. Retomando a
perspectiva de Nula, o capítulo intitulado “Viernes” termina com uma projeção imagética
dessa personagem e de Virginia − mulher que conhece em uma promoção de venda de vinhos
− no espelho: a infinidade de imagens, uma dentro da outra, projeta a ideia de Nula da
singularidade das muitas partes. Na tentativa de aderência das partes a uma totalidade, a
impossibilidade cria essa imagem temporal da infinitude.
386
SAER, 2005, p. 256.
387
Ibidem, p. 257.
388
Rosati assim desenvolve essa ideia: « [o]n est désormais devant un problème terminologique fondamental: il est
nécessaire de faire une distinction entre l’emploi du mot ‘langage’ et celui du mot ‘réflexion’. Il faut remarquer
que Merleau-Ponty tend toujours à parler de langage pour caractériser la médiateté typique de l’être. La raison de
telle terminologie s’avère évidente si l’on considère les autocritiques du philosophe à propos de l’idée de cogito
tacite : parler de cogito tacite est impossible justement parce que cette notion renvoie à l’idée d’une concience
constituante » (ROSATI, 2009, p. 52). [Tradução nossa: “Estamos, doravante, diante de um problema
terminológico fundamental: é necessário fazer uma distinção entre o emprego da palavra ‘linguagem’ e o da
palavra ‘reflexão’. É necessário sublinhar que Merleau-Ponty tende, sempre, a falar de linguagem para
caracterizar a mediação típica do ser. A razão dessa terminologia se mostra evidente, se considerarmos as
autocríticas desse filósofo a respeito da ideia de cogito tácito: falar de cogito tácito é impossível justamente
porque essa noção remete à ideia de uma consciência constituinte”].
171
[m]ientras lo iba siguiendo por la calle, tuve una impresión rarísima que
nunca había tenido antes y que, no quiero mentirle, me intranquilizó
bastante. Me parecía que caminábamos por la misma calle, en el mismo
espacio, pero en tiempos diferentes. Se me ocurrió que si me acercaba a él
para saludarlo, a pesar de haber pasado conmigo toda la mañana no me
reconocería, o peor, ni siquiera me vería, porque estábamos moviéndonos en
dimensiones temporales diferentes, como en las series de ciencia-ficción
(SAER, 2005, p. 18).
O anacronismo entre o tempo diacrônico e o tempo realmente experienciado faz com que haja
ruído entre dois mundos ou entre duas temporalidades. Esse saudosismo de Gutiérrez é uma
das chaves de leitura da relação da personagem com o espaço.
Gutiérrez viveu entre a Itália e a Suíça, escrevendo, sob pseudônimo, roteiros de
cinema. Anteriormente, quando ainda estava em seu país, a personagem ingressou na
Faculdade de Direito e tinha como amigos: Escalante, Marcos Rosemberg e César Rey. Os
quatro tornaram-se inseparáveis: “[…] formaron una especie de vanguardia político-literaria
que duró poco porque, aparte de la juventud y de la amistad, no tenían nada en común, ni las
389
SAER, 2005, p. 7.
390
Ibidem, p. 11.
172
ideas políticas ni las literarias”391. Devido aos parcos recursos financeiros de que dispõe,
Gutiérrez começa a trabalhar em qualquer tipo de função, até que consegue que um professor
de Direito Romano, que o apreciava, abra-lhe as portas do seu escritório. Esse professor era
Calcagno, que tinha como sócio Mario Brando, poeta e líder do movimento precisionista392.
Pequenos são esses flashes que o narrador concede à perspectiva de Gutiérrez, no início de La
grande, depois, em alguns momentos, os relances se tornarão uma franca abertura à voz da
personagem; percebemos, então, o seu olhar sobre Nula. Gutiérrez analisa esse vendedor de
vinhos e “lo considera con indulgencia, casi con lástima”393, percebendo que Nula tem
confiança exacerbada em si mesmo, resultado de sua jovialidade. Gutiérrez se compara ao seu
companheiro, analisando e sendo escrutado, por ele, em seus movimentos.
Em direção à casa de Escalante, Gutiérrez e Nula percorrem um trecho a pé, pela
lhanura, e percebem as diferenças sociais. Segundo Gutiérrez, o problema do mundo são os
ricos; o seu discurso gira em torno dessa sua ideia central. Apesar do impetuoso discurso,
Nula o culpa por ter deixado o país na época da ditadura. É como se Nula procurasse um
culpado para a morte do pai: “[...] [a] él lo mataron en el gran Buenos Aires”394. O reencontro
entre Gutiérrez e Escalante é assistido como um retorno no tempo; Nula afirma que se sentia
como se estivesse pisando o chão do passado. Esse foco sobre Nula é importante, porque
analisa, externamente, a interação de Gutiérrez com o seu tempo fraturado, devido aos anos
vividos no exterior. A incompatibilidade de Nula com a dimensão temporal em que Gutiérrez
se encontrava limita a possibilidade de se estabelecer vínculo entre eles. O narrador projeta o
olhar de uma personagem sobre a outra ativando, também, sua suposta análise independente.
É um efeito que redemocratiza a focalização, ao mesmo em que produz um efeito de real, na
medida em que ausenta o narrador do texto, daquilo que as personagens discursam e pensam.
Na última parte do primeiro capítulo de La grande, o narrador direciona o foco a
Gutiérrez: já em casa, depois da deambulação com Nula e do regresso com os peixes que
Escalante lhe dera, Gutiérrez fixa-se em uma fotografia de Leonor Calcagno. A foto retratava
o verão de 1958; Gutiérrez, então, estava com vinte e quatro anos. A mulher de Calcagno,
professor de Gutiérrez, era vinte anos mais nova do que o marido. Foi em um final de semana
391
Ibidem, p. 19.
392
No capítulo “O realismo em Saer: vanguardas e discussões estéticas em La grande e em Lo imborrable”,
discutiremos o movimento precisionista; essa abertura se justifica pela ênfase que esse movimento recebe em La
grande, como tema literário em que as personagens concorrem com posições diversas. O objetivo dessa
discussão é estabelecer um cotejo com a estética de Lo imborable ou com o realismo que nesse romance é
discutido. Em La grande, as personagens Gabriela Barco e Soldi investigam o movimento literário encabeçado
por Mario Brando – o precisionismo −, trazendo à tona a conturbada interlocução entre estéticas literárias.
393
SAER, 2005, p. 21.
394
Ibidem, p. 28.
173
395
SAER, 2005, p. 160.
174
olhar das outras personagens, mas se justifica, defendendo que se fixa na singularidade da
experiência:
O interessante é que essa fala é atribuída a Gutiérrez, mas a focalização está sobre
Nula. O narrador396 a apresenta, primeiramente, como pensamento de Gutiérrez, mas, em
seguida, como leitura de Nula do olhar de Gutiérrez. Contextualizando o episódio, esse
pensamento de dois homens é construído quando Nula encontra Gutiérrez jantando com
Leonor; a diferença de idade entre os dois – ela era bem mais velha do que ele – gera, em
Nula, certo desconforto em relação à motivação que unia esse casal anacrônico. Arce defende,
como proposta de entendimento de alguns narradores saerianos, a posição de Barthes, que
distingue o narrador como « […] una voz que no se puede localizar, que de repente se
sostiene en un fading y pierde su origen »397. É essa perda de origem que impossibilita a
missão de uma definição peremptória da voz que se ouve no texto. Devido a isso, pensamos
que ouvimos uma personagem e, logo em seguida, a voz ser requerida por outra ou resgatada
pelo narrador. O termo fading é encontrado em Fragmentos de um discurso amoroso (1977),
de Barthes, como bem explica Hoppenot (2007):
Em nossa dissertação de mestrado sobre o narrador saeriano, defendemos que “[e]sses recursos, que favorecem
396
a transparência do narrador no texto, são utilizados amplamente no romance de Saer. Ao mesmo tempo em que
se prega essa mediatização direta do discurso, todavia, o texto narrativo mostra a inoperância desses mesmos
recursos quanto à apreensão da realidade. É como se Saer conjugasse essas duas faces do estudo sobre o narrador
(concepção mimética e experimentalismo artístico) ou mostrasse, concretamente, a ineficácia da primeira em
benefício do trabalho artístico com as engrenagens do discurso” (MOTA, 2011, p. 29).
397 ARCE, 2013, p. 100.
175
[e]l mundo que celebra ahora, con una exaltación discreta y casi constante,
no es para nada el de su juventud, sino uno que fue encontrando a lo largo de
sus transformaciones sucesivas, y el otro en el que él se ha convertido lo ve
ahora por primera vez. No volvió al punto de partida, sino a un lugar distinto
176
grande, y esa evidencia destructora le retira toda acepción conocida al verbo vivir”398. Esse
deslumbramento quanto à imensidão é, por outro lado, mediado pelo horizonte, pela linha
visível entre a terra e o céu. A relação do todo com as partes, discutida iterativamente nos
romances de Saer, é novamente tocada nas meditações perceptivas de Tomatis.
A relação pessoal com o mundo é cindida pela constatação de um possível mundo
além do “vivido”, entranhado na linha do horizonte. Essa afirmação parece postular o
pensamento realista de um mundo anterior a qualquer experiência399. Após o trecho
anteriormente citado, Tomatis percebe o horizonte e vê um homem montado em um cavalo: o
distanciar do ginete provoca a ilusão de que ele possa ultrapassar os limites do mundo visível
em direção, talvez, ao outro mundo, nomeado como o mundo dos mortos. Tomatis, por meio
dessa visão, defende uma ideia contrária ao realismo; quando se aproxima de seu destino, ele
afirma que:
398
SAER, 2005, p. 322.
399
Merleau-Ponty (2012) afirma que “[...] não temos uma consciência constituinte das coisas como acredita o
idealismo ou uma pré-ordenação das coisas à consciência como acredita o realismo, eles são indiscerníveis no
que aqui nos interessa” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 43).
400
Esse pensamento está em acordo com a discussão da temporalidade na Fenomenologia da Percepção (2006),
que é alvo da crítica por revelar um teor idealista, mas o germe ontológico é perceptível nesse pensamento,
nessas ideias da primeira fase de Merleau-Ponty: “[...] [o] que é verdadeiro é apenas que nossa existência aberta
e pessoal repousa sobre uma primeira base de existência adquirida e imóvel. Mas não poderia ser de outra
maneira se somos temporalidade, já que a dialética do adquirido e do porvir é constitutiva do tempo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 578).
178
encobrimento que caracteriza a própria vivência. Saer projeta esse espaço rico em
perspectivas como uma forma de frisar como a experiência revela caminhos múltiplos de
relação com o mundo. É nesse momento que se evidencia a singularidade do contato com o
espaço, os planos distintos de aproximação são enfatizados. Por outro lado, a positividade do
sujeito pode ser visualizada na perspectiva de Tomatis: a riqueza da relação está em
dependência da própria vivência. É por meio do gesto merleaupontyano de reversibilidade que
se consegue ultrapassar essa força da subjetividade. Perceber a experiência como um conjunto
de forças em que não há um ponto de partida, mas em que se processam as trocas múltiplas, é
a solução para o abandono do realismo e do subjetivismo. Segundo Rosati, nem o próprio
Merleau-Ponty consegue sair dessa claustrofóbica relação sujeito-objeto. O primeiro pontua
que, mesmo na última ontologia, ainda é possível identificar esse dualismo e que é somente
nos limites do pensamento de Merleau-Ponty que se visualiza uma posição satisfatória contra,
principalmente, a positividade do sujeito; como, por exemplo, na noção de passividade, na
qual o corpo se apresenta purificado do conceito de sujeito:
mundo por meio desses olhares. É nesse momento que a filosofia de Merleau-Ponty pode
servir de instrumento de leitura para essa projeção do mundo. A independência concedida a
esses pontos de visão em Saer ou – complexando essa assertiva – a própria dependência entre
essas perspectivas e a gestão da visão do narrador provocam entrecruzamento de horizontes.
O pensamento de Merleau-Ponty é produtivo para a análise do espaço de Saer,
principalmente, porque a sua última filosofia se apoia no ato de ver.
A complexidade dos conceitos de visível e de invisível retraz a importância do ver
para a última filosofia de Merleau-Ponty. É por meio da gestão desses dois conceitos ou da
imbricação entre eles que se consegue enxergar a defendida reversibilidade ou o conceito de
carne. Esse filósofo desenvolve essas ideias, nestes termos;
[d]e sorte que o vidente, estando preso no que vê, continua a ver-se a si
mesmo: há um narcisismo fundamental de toda visão; daí por que, também
ele sofre, por parte das coisas, a visão por ele exercida sobre elas; daí, como
disseram muitos pintores, o sentir-me olhado pelas coisas, daí, minha
atividade ser identicamente passividade – o que constitui o sentido segundo
e mais profundo do narcisismo: não ver de fora, como os outros veem, o
contorno de um corpo habitado, mas sobretudo ser visto por ele, existir nele,
emigrar para ele, ser seduzido, captado, alienado pelo fantasma, de sorte que
vidente e visível se mutuem reciprocamente, e não mais se saiba quem vê e
quem é visto. É a essa Visibilidade, a essa generalidade do Sensível em si, a
esse anonimato inato do Eu-mesmo que há pouco chamávamos carne, e
sabemos que não há nome na filosofia tradicional para designá-lo
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 135).
[e]l viento calmo del sudeste es únicamente perceptible en el agua. Tal vez
Nula y Gutiérrez lo sienten también en la piel de la cara, pero, habituados ya
180
A perspectiva que, a princípio, parece difusa entre Nula, Gutiérrez e o narrador, termina por
ser depositada no primeiro. É essa promoção dos sentidos das personagens que contribui para
a relação vidente-visível – entendida como a exploração de todos os sentidos no jogo de
copertencimento entre as partes, porque « [...] o espetáculo visível pertence ao tocar nem mais
nem menos do que as “qualidades tácteis” »402 – descrita, anteriormente pelo filósofo.
No capítulo “Domingo: El colibrí”, o foco é direcionado a Gutiérrez, que reflete
sobre a primeira noite que esteve com Leonor e que foi exatamente nesse dia que sua vida
começou, e terminou quando teve de abandonar a cidade e, posteriormente, o país: “[...] te
dan setenta años para que vivas unas horas, unos minutos, y después no hay nada más que
hacer con el resto; es tiempo gastado en vano”403. Gutiérrez sente que tem uma dívida para
com Leonor, por ela lhe ter proporcionado esses momentos de extremo prazer ou tê-lo feito,
simplesmente, viver. Domingo é, também, o dia do assado na casa de Gutiérrez e, por isso, o
foco narrativo se volta para essa personagem, que aguarda os convivas. O primeiro a chegar é
o aviso da desistência de Escalante, que se diz não afeito às nostalgias. Os convivas chegam;
primeiro Clara e Marcos Rosemberg, seguidos de Tomatis e Violeta, Soldi, Gabriela e José
Carlos, Nula e Diana, o casal Riera e Leonor Calcagno. A preocupação inicial é com uma
possível chuva, que poderia dispersar os comensais; nessa discussão a respeito dos
prognósticos meteorológicos404, a questão se centra no grau do aleatório presente neles.
Ao longo de todo o romance, personagens − de menor ou maior grau de presença
− se manifestam em relação à experiência. No assado, essa postura se acentua, beneficiada
402
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 131.
403
SAER, 2005, p. 327.
404
No romance Cicatrices (1969), esse tema é discutido abertamente por meio da personagem Ángel, que inventa,
segundo conselho de Tomatis, as previsões climáticas para o jornal no qual ambos trabalham. Esse jogo com o
devir se torna algo cômico, quando os leitores começam a se conduzir segundo as previsões, e não de acordo
com o clima.
181
pela reunião das personagens: há quase a tentativa de inventariar o movimento entre sujeito e
mundo, de descrever em que medida ocorre uma interação ou se apenas se pode falar em uma
eterna bipartição. Os pareceres se focam no grau de envolvimento do homem com o mundo.
A opinião frequentemente apresentada é de que, no processo de envolvimento com as coisas,
sempre há uma parte do todo que não é atingida na experiência. É como se o objetivo fosse a
experiência total ou a completa reversibilidade, mas, no processo, surge o horizonte ou o
recuo do próprio mundo. É na expectativa de articular um pensamento que responda ao
movimento entre sujeito e mundo que as personagens se manifestam. Em alguns momentos,
parece haver a defesa da incapacidade do homem para conduzir – ou compreender − essa
relação ou que eles, “[...] [a]unque están parados, plácidos, bajo los árboles, con una copa de
vino fresco en la mano, se sienten atrapados en el torbellino del mundo que hace y deshace los
acontecimientos, parte de los cuales ellos, por costumbre, llaman, con exceso de confianza,
sus vidas”405. É com o intuito de traduzir o processo de experiência que as personagens se
posicionam ora pela comunhão integral, ora pelo distanciamento sempre obstinado do mundo.
Percebemos, então, uma discussão que acompanha a saga saeriana no que diz
respeito à relação do homem com o mundo: somos regidos pelo caos ou pelo deslocamento
monótono, contínuo e harmonioso. Na verdade, há graus entre essas duas posições e as
personagens saerianas, vez por outra, manifestam-se ora por uma posição ora por outra.
Quando se levanta a questão da veracidade das previsões climáticas, o cerne da questão é
perceber em qual dos dois eixos essa “narrativa” se encontra: até que ponto é possível prever
o devir; esse é o dilema. Essa discussão metafísica acompanha o problema do espaço, porque
o que se busca é consolidar a experiência da personagem. Aceitando-se o caos completo, a
possibilidade de relação com o mundo é sentida de um modo, como quase uma fuga das
coisas à experiência. Por outro lado, o mundo, como um movimento contínuo e harmonioso,
pode gerar uma positividade das coisas. É no entorno desse problema da experiência que as
personagens se interpelam, refletindo sobre a distância que as separa do mundo. Por outro
lado, é essa mesma distância que promove a relação com o mundo, porque a identificação dos
dois vetores – personagem e mundo – cessaria o movimento.
O dilema da temporalidade emerge, nessa “irresolução” da experiência, devido à
necessidade de uma distância – de uma saída – e do recorte temporal. A definição da
fotografia serve como pretexto para o entendimento da complexidade do acontecer: “[...] ese
cuadrado de papel brilloso, después de haberla vivido unos minutos antes con la confusión de
405
SAER, 2005, p. 333.
182
sus sentidos inadecuados, en las redes complejas del transcurrir, una parcela infinitesimal y
plana de tiempo disecado”406. Esse posicionamento das personagens se apresenta em um dizer
sem enunciador definido e revestido pela voz do narrador. A personagem que tira as fotos
busca reconstruir a totalidade do acontecer por meio de um grande número de posições
registradas. É como se a própria definição anteriormente dada pelo narrador fosse contrariada
pelos gestos das personagens. O tempo dissecado pelo registro mutila, também, a experiência:
é nesse conflito do viver e do saber-se vivendo que as personagens se posicionam quanto ao
seu envolvimento com o mundo. Ao mesmo tempo em que elas acreditam que pertencem ao
torvelinho do mundo, o recorte temporal as exclui desse movimento. Nessa discussão é
interessante a posição de Collot: « [...] [a] en croire le photographe, ce procédé vise moins à
représenter de façon exhaustive et objective le paysage, qu’à en suggérer la présence
enveloppante, dans laquelle nous sommes immergés sans en avoir nécessairement
conscience »407. Esse teórico, então, sublinha que o recorte pode representar não o desejo de
confluir o todo, mas a própria parcialidade da experiência. Nesse esquema, o foco se projeta
nos acontecimentos em confronto com a complexidade do todo. Collot, em esforço para
defender o conceito de paisagem como relação integral com o mundo, frisa esse componente
no gesto de fotografar: a fotografia seria uma prova da nossa imersão do mundo e, o gesto do
fotógrafo, a capacidade de sublinhar o horizonte do mundo, a sua totalidade.
Na tentativa de abarcar o todo, o recurso da foto é preterido e outra personagem
conduz o registro do assado por meio de filmagem. Gutiérrez percorre a mesa com a
filmadora, recolhendo não apenas as imagens, mas também o próprio movimento ou a
passagem de tempo. No momento em que Gutiérrez aparece com a filmadora, Tomatis, que,
depois de Violeta, se incumbiu de registrar as fotos, se sente acuado pelo movimento do
anfitrião. Os dois se encontram – cada um com seu aparelho nas mãos – e Tomatis se retrai e
guarda a câmara. Depois do ocorrido, há mais uma tentativa da personagem de tirar uma foto
de Gutiérrez, mas, no momento em que ele consegue focalizá-lo, já não havia mais filme.
Essa disputa entre Tomatis e Gutiérrez perfaz o dilema entre tipos de registros ou a
capacidade deles, de inscrever o encadeamento da vida. Esse aspecto é frisado, por Collot,
nestes termos: « [...] [d]e telles scènes donnent à voir cette union du corps humain avec la
chair du monde qui est au coeur de l’expression contemporaine du paysage, et elles lui
406
SAER, 2005, p. 344.
407
COLLOT, 2011, p. 141: “[...] [a] crer no fotógrafo, esse processo visa menos representar de maneira exaustiva
e objetiva a paisagem do que sugerir a presença envolvente, na qual estamos imersos sem termos,
necessariamente, consciência disso” (Tradução nossa).
183
donnent sens, en réactivant les résonances symboliques des rituels d’immersion »408. O
primeiro gesto vem de Violeta, que busca montar o retrato do vivido com múltiplas fotos; em
seguida, Gutiérrez busca recobrir não somente o espaço, mas, também, o tempo, por meio da
gravação.
Soldi pensa o seguinte a respeito da atitude de Gutiérrez: “[...] [n]os guardará a
todos embalsamados en sus cintas de video, en su cuarto de trabajo, que él llama la sala de
máquinas, así como tuvo embalsamada en su memoria durante más de treinta años su
juventud y todo lo que su juventud contenía”409. Soldi desestabiliza o gesto de Gutiérrez ou
mostra a ineficácia da tentativa de se recobrir a totalidade do acontecer. É como se ele
revelasse a precariedade do registro ou que o próprio gesto é um recorte. Nesse dilema entre
registros, Diana, mulher de Nula, também se empenha na tarefa saudosista de gravar “o
assado”; a Arte por ela utilizada é a Pintura410. Sentada, ela desenha os quatorze convidados
de Gutiérrez e o próprio anfitrião, apartado dos outros e caracterizado com uma cor
específica: “[...] eran catorce manchitas de colores puestas en un esquema oval, más una, la
número quince, en la que predominaba el anaranjado, un poco separada de las otras; las
manchas, que eran abstractas, podían sugerir, a pesar de eso, una vaga reminiscencia
humana”411. A pintura de Diana tinha conotação expressionista, com o objetivo de representar
a sua recepção da cena do almoço. O objetivo não era o registro das partes do todo, como
forma de montagem da totalidade, e nem mesmo a reunião do movimento tempo-espaço, mas
o gesto de definir personalidades. Ela queria registrar as personagens do assado no plano de
uma interação com o mundo. O objetivo de Diana suplantava a mera reunião de posições; ela
se fixava na aura dos presentes ou naquilo que os unia aos outros e ao mundo.
O romance se constitui por meio desse multiperspectivismo, com a divisão da
focalização narrativa, sem, contudo, o narrador entregar completamente as rédeas da história.
Uma das funções dessa pluralidade de vozes e perspectivas é a tentativa de se
408
COLLOT, 2011, p. 145: “[...] [t]ais cenas dão a ver essa união do corpo humano com a carne do mundo, que
representa o cerne da expressão contemporânea de paisagem, e elas lhe dão sentido, reativando as ressonâncias
simbólicas dos rituais de imersão” (Tradução nossa).
409
SAER, 2005, p. 345.
410
Em O olho e o espírito (2013), Merleau-Ponty se apropria do gesto do pintor para narrar a experiência.
Fixando-se em Cézanne, no terceiro e último ensaio do livro, esse filósofo afirma que a pintura dele tinha como
alvo “[...] buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão
imediata” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 130). O primeiro ensaio – com o mesmo título do livro – apresenta
uma contraposição entre a pintura – “Os cavalos”, de Géricault – e a fotografia: “[...] Por que o cavalo
fotografado no instante em que não toca o chão, em pleno movimento portanto, com as pernas quase dobradas
embaixo dele, dá a impressão de saltar no lugar? E por que, em contrapartida, os cavalos de Géricault correm
sobre a tela, mas numa postura que cavalo algum a galope jamais assumiu?” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 50).
Os três ensaios de O olho e o espírito foram abordados, no segundo capítulo desta tese, como entrada para a
discussão de O visível e o invisível (2012).
411
SAER, 2005, p. 354.
184
[…] cuando el portón de listones blancos se abre para dejar pasar a Gutiérrez
que, después de cerrarlo, se dirige a ellos corriendo pero en cámara lenta,
señalando con el dedo, hacia arriba y hacia atrás, como si algo viniese
persiguiéndolo. Sus invitados lo miran divertidos, pero con cierta sorpresa,
porque no esperaban de él esos movimientos paródicos que parecen
disminuir su misterio y rebajarlo a la banalidad del resto de los mortales.
Únicamente Nula y Tomatis intuyen, de un modo vago todavía, que también
eso es una reconstitución, la puesta en escena de algo perdido y que ni
siquiera intenta recuperar sino que monta, por puro juego íntimo, en el
tablado de su imaginación desencantada (SAER, 2005, p. 369).
romance. É uma mostra de que mudanças significativas seriam descritas no capítulo final, que
não foi escrito por Saer. Esses ciclos acompanham os desfechos das histórias de Saer,
ingrediente que contribui para o ressurgimento das personagens em outras obras, porque
anunciam prosseguimento de suas histórias.
O potencial de La grande é a insistência que suas personagens demonstram em
relação à discussão da experiência. Ao mesmo tempo em que o narrador projeta lampejos de
luz nos caminhos delineados na relação vidente-visível – uma focalização do interior da
experiência –, as personagens ou o narrador sempre retomam a discussão sobre o grau de
envolvimento do homem com o mundo. O teor filosófico das discussões de La grande
manifesta-se, principalmente, nas posições, muitas vezes, contraditórias de Nula em relação
ao movimento, ao devir. O tempo, como esse movimento da experiência é, por isso, o
ingrediente que possibilita a própria reversibilidade entre os corpos e as coisas. A
dependência do tempo está no seu teor de movimento: a discussão da concretude da
experiência se revela, também, na outra face do tempo, no seu ingrediente de recorte, de
doador de sentido para a própria vivência.
412
Rosati afirma que « [u]ne grande partie de la philosophie du XXe siècle, à partir de Heidegger jusqu’à Sartre,
Levinas ou Merleau-Ponty – pour n’en citer que quelques-uns – peut être caractérisée comme ‘philosophie de la
situation’, la situation étant une notion qui, comme on l’a vu, renverse les structures qui réglaient le rapport entre
le sujet et le monde dans la pensée moderne : le moi qui, déraciné de tout espace, connaissait un monde spatial,
devient un moi immergé dans cet espace même, et qui ne peut que vivre le monde » (ROSATI, 2009, p. 150).
[Tradução nossa: [u]ma grande parte da Filosofia do séc. XX, a partir de Heidegger até Sartre, Levinas ou
Merleau-Ponty – citando apenas alguns – pode ser caracterizada como ‘filosofia da situação’, sendo a situação
187
experiência singular com o mundo. Esse mesmo pensamento é articulado por Tomatis quando
enxerga seu campo de visibilidade e pensa na possibilidade de existência de outros mundos,
no além-horizonte. Essa personagem defende, continuamente, que só existe o mundo que o
sujeito experiencia ou que é nesse espaço que se efetua o copertencimento entre o homem e o
mundo. Com Gutiérrez, temos a defesa da singularidade do acontecer: a personagem se
empenha em sentir potencialmente a sua relação com as coisas. Esse frisar no mundo não
impossibilita a experiência; ao contrário, põe em relevo o gesto da personagem de singularizar
a própria vivência.
O narrador do romance reiteradamente resgata o foco para si mesmo, gesto que, às
vezes, dificulta sentir o grau de envolvimento da personagem com o mundo. Como La grande
apresenta um narrador de terceira pessoa, sua presença é, então, sentida rotineiramente, o que
impede a expressão completa da personagem sobre o momento que vive. Esse recurso,
chamado “objetivismo”, pela crítica saeriana, não impede que consigamos perceber a
presença das personagens ou que nós, leitores, possamos enxergar o mundo por meio delas:
[e]sta cuestión del ver, que en Saer se abre de modo general al percibir, pone
también en cuestión la idea de saber narrativo y, por lo tanto, sitúa la
problemática del narrador lejos de la cuestión del conocimiento y más cerca
del problema del punto de vista. Resulta extraño que en general la crítica
saeriana no vea esta relación o acentúe el problema perceptivo, de prosapia
“objetivista”, sin llegar al fondo del desmantelamiento que el narrador
saeriano hace de la instancia narradora antropomorfa (ARCE, 2013, p. 100).
Essa questão é bem pontuada por Arce: compreender esse narrador difuso torna-se
prerrequisito para que se consiga entender a relação personagem-mundo. O narrador se move
entre temporalidades, demonstrando poder de controle sobre o mundo das personagens.
Entretanto, o poder de sedução da experiência narrada faz com que o narrador se exima e
deixe que a personagem veja por si mesma. Esses relances da personagem são exemplos
promissores para que se sublinhe um conceito mais ativo de espaço, como o de Merleau-
Ponty, no qual a experiência seja posta em primeiro plano.
Principalmente por meio de Nula, o narrador discute a possibilidade de se sentir a
experiência. Dois são, então, os movimentos de exploração da vivência: por meio da
descrição da experiência da personagem e por intermédio da discussão da possibilidade de se
sentir plenamente o mundo. No primeiro movimento, temos que grande parte das descrições
uma noção que, como vimos, inverte as estruturas que ajustam a relação entre o sujeito e o mundo no
pensamento moderno: o eu que, desenraizado de todo espaço, conhecia um mundo espacial, torna-se um eu
imerso nesse mesmo espaço, e que somente pode viver o mundo].
188
[u]ne telle abolition de l’écart entre le sujet et le paysage est liée à la remise
en cause du point de vue fixe et unique qui régissait la perspective linéaire.
[...] Immergé dans le paysage et invité à le parcourir, le visiteur en a une
perception globale, mobile et défocalisée : au lieu de se concentrer sur une
zone centrale, son attention s’étend aux marges du champ visuel, qui
incluent même l’espace qui se trouve derrière son dos. Cette perception
élargie mobilise aussi d’autres sens que la vue : l’ouïe, l’odorat, le toucher,
notamment, concourent à cette approche polysensorielle qui favorise
l’immersion du sujet dans le paysage (COLLOT, 2011, p. 181) 413.
413
Tradução nossa: Tal abolição da distância entre o sujeito e a paisagem está ligada a discusão sobre o ponto de
vista fixo e único que regia a perspectiva linear. [...] Imerso na paisagem e convidado a percorrê-la, o visitante
tem uma percepção global, móvel e desfocalizada: no lugar de se concentrar sobre uma zona central, sua atenção
se estende às margens do campo visual, que inclui até o espaço que se encontra atrás de si. Essa percepção
alargada mobiliza, também, os outros sentidos, além da visão: a audição, o olfato, o tato, principalmente,
concorrem para essa aproximação polissensorial que favorece a imersão do sujeito na paisagem.
414
ARCE, 2013, p. 101.
189
[e]l cielo, la tierra, el aire y la vegetación son grises, no con el tinte acerado
que el frío les da en mayo o en junio, sino con la porosidad tibia y verdosa
de las primeras lluvias de otoño que no bastan, en la zona, para abolir el
verano insistente y desmedido: los dos hombres, que caminan, ni lentos ni
rápidos, a poca distancia uno detrás del otro, llevan todavía ropa liviana
(SAER, 2005, p. 5).
415
SAER, 2005, p. 6.
190
saerianas: com apuro descritivo, o visível se torna sensível ao toque. Essa mistura de
sensações no plano perceptivo favorece abertura maior à apreciação do espaço. As relações
são aproximadas − esse é o efeito central das descrições de Saer −, percebemos como as
personagens comungam com esse espaço da experiência.
Essa indefinição do ponto de vista contribui para a abertura de uma janela em que
nós, leitores, podemos, também, nos posicionar, imiscuindo-nos no interior dos múltiplos
pontos de foco. Esse efeito é construído quando as coisas são animadas e dispostas para
contato do leitor pelos olhares das personagens. O trunfo de Saer está no encobrimento –
muitas vezes – do ponto de vista, no intuito de sublinhar apenas o contato com o mundo, a
própria vivência:
A insistência do narrador de sempre se fazer presente embaça o ponto de visão: as faces das
coisas são desveladas pelas personagens e postas em dúvida pelo narrador. Descrições
pormenorizadas são ativadas nesse esquema de narrar e, em seguida, desdizer. É interessante
a confluência dos sentidos ativados no momento de se sentir esse mundo narrado. É como se
o narrador tentasse abarcar o espaço preenchendo seus vazios por meio de todos os sentidos.
Saer é pródigo em ativar o espaço pelos vários sentires do homem: o resultado é a
vivacidade do mundo narrado. O leitor caminha adjunto às personagens e consegue participar
desse espaço, adentrar as sendas abertas pelos sentidos narrados. É como Merleau-Ponty
defende: a Arte projeta caminhos da percepção, revela dizeres do mundo. Aquilo que, muitas
vezes, é automatizado pela experiência cotidiana ganha roupagem diferente, proporcionando
acentos sobre pontos jamais vislumbrados. Essa promoção da experiência manifesta-se nesse
esquema de narrar o mundo, as nuanças da experiência são expostas e se reproduz a
vivacidade da percepção;
Esse é um dos exemplos de trechos em que La grande prioriza esse olhar lançado como que
pela primeira vez sobre o espaço. A automatização é abandonada, privilegiando-se a real
postura frente à paisagem. Todos os sentidos ganham movimento e, dessa forma, as cores e,
principalmente, as formas ganham vivacidade. Os outros sentidos, também, são perpassados
pelo movimento da percepção.
Essa recordação é de Tomatis; porém, a presença do narrador é atuante, age nos
entremeios da ação da personagem. É como se a recordação fosse extraída do interior da
personagem, para ser sentida pelo olhar e segundo a perspectiva do leitor. O próprio narrador
afirma que: “[...] [f]lamante, el mundo acababa de surgir de su pozo hondo de nada y flotaba
en un cauce de la luz que lo envolvía con su túnica ondulante y aterciopelada: Tomatis,
recostado contra el borde de la canoa que iba a la deriva, lenta, estaba ahí contemplándolo”416.
Esse pequeno trecho dá sequência ao anterior e mostra como as coisas se dinamizam diante do
olhar: o gesto exploratório de Tomatis revela aquilo que escapa ao contato mediato. Essa
personagem rememora um passeio em companhia de seu amigo Barco; a exuberância do
espaço é revelada pelos sentidos. A busca por uma experiência pura, por viver uma relação
bruta, com as coisas é um dos objetivos exploratórios da personagem:
Tomatis pensó que se había quedado dormido, pero más tarde, cuando les
volvieron las ganas de hablar, Barco le dijo que, intrigado por el silencio
súbito que se había instalado en esa parte del río, había tratado de oír algo
que explicara ese silencio, o de escuchar todos los rumores imperceptibles,
del agua o de las islas que habitualmente los ruidos corrientes impiden
escuchar (SAER, 2005, p. 298).
Esses resgates interpretativos da experiência – pelo narrador – não impedem que vejamos as
coisas surgirem como que diante de nós, leitores. A busca por recobrir esse mundo ultrapassa
a relação direta com o mundo: a relação entre o visível e aquilo que se mostra em suas bordas
416
SAER, 2005, p. 297.
192
417
ZIELINSKI, 2008, p. 227: “[...] [a] noção de horizonte permite pensar o mundo como abertura, e aparece como
« o modelo de toda a transcendência » – é efetivamente sobre esse modelo que Merleau-Ponty apresenta a
transcendência do outro, da carne” (Tradução nossa).
418
Retomando o conceito de carne, tem-se esta definição de Rosati: “ [...] le visible est la visibilité de l’invisible,
tout comme l’invisible est la visibilité même du visible. Un terme ne se donne pas sans l’autre. Pour expliquer
cet entrelacement, Merleau-Ponty emploie une expression qui me semble bien décrire cette structure : « la
présence de l’absence ». Merleau-Ponty désigne avec cette expression la complexité de la chair en tant que
visibilité et invisibilité de la visibilité” (ROSATI, 2009, p. 31). [Tradução nossa: “[...] o visível é a visibilidade
do invisível, da mesma forma que o invisível é a visibilidade do visível. Um termo não se mostra sem o outro.
Para explicar esse entrelaçamento, Merleau-Ponty emprega uma expressão que acreditamos descrever bem essa
estrutura: « a presença da ausência ». Merleau-Ponty designa com essa expressão a complexidade da carne como
visibilidade e invisibilidade da visibilidade”].
194
experiência. Pensar o espaço de Saer requer muito mais que uma pontual descrição do lugar
no qual a personagem se movimenta, requer-nos o exame dessa imbricação entre os corpos.
As vozes de Saer revelam a conturbada relação com o visível em radical confluência de
sentires. A riqueza de pensarmos o espaço de Saer por intermédio da filosofia de Merleau-
Ponty está na possibilidade de expandir os limites da cena, de visualizar, nos próprios corpos
das personagens a aderência ao espaço e aos sentires das outras personagens. Esse filósofo
utiliza a Arte para exemplificar a experiência, para mostrar como se processa o movimento
vidente-visível: a corporificação das coisas com os corpos. O conceito de Arte – para
Merleau-Ponty – é, então, central para o entendimento dessa relação: “[...] [a] arte não é
construção, artifício, relação industriosa a um espaço e a um mundo de fora. [...] [e], uma vez
ali, ele desperta na visão ordinária das forças adormecidas um segredo de preexistência” 419.
Essa carne do mundo é, então, o conceito que, além de corroer os dualismos, possibilita que
se instaure um novo nível de relação entre os corpos.
A experiência se apresenta como singular, na medida em que engloba os sentidos
das coisas e dos corpos, provocando uma relação recíproca de correspondência com o mundo.
Essa ideia é sintetizada na definição merleaupontyana da experiência do ver: “[...] [a] visão
não é um certo modo do pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de estar
ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do ser, ao término da qual somente me
fecho sobre mim”420. Saer trabalha com a experiência do ver; suas personagens percebem o
mundo e se mesclam com essa visão: é relatado o momento em que a subjetividade daquele
que vê é esquecida, por se privilegiar a singularidade da experiência, da relação vidente-
visível: “[...] [h]acia el oeste, para el lado de la ciudad, el cielo sin nubes es una sola mancha,
de un rojo vivo, como de lava en fusión, y del otro lado, hacia el este, viene subiendo la
noche”421. É essa apurada descrição da vivência que singulariza o espaço de Saer, como uma
fusão dos sentidos, como uma tentativa de pôr em cena a experiência da personagem, de
decompor a sua relação com o mundo, de sublinhar os meandros da experiência.
419
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 45.
420
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 51.
421
SAER, 2005, p. 170.
195
O próprio silêncio é permeado pelos outros sentidos, de forma que uma voz sempre ressoa,
como que tornando significativo aquilo que não é imediatamente revelado: é significativa essa
busca de Saer por expressar do interior, a experiência da personagem no mundo.
196
CAPÍTULO 4
422
Premat, assim, sintetiza o gesto de Tomatis: “[...] [d]esde afuera (desde los “márgenes” como lo indica el
título), Tomatis se interroga sobre el itinerario personal de Gutiérrez, evoca recuerdos de juventud, observa las
transformaciones sensibles de lo real y piensa en la ciudad como en un conjunto. Vista desde afuera por un
personaje que siempre estuvo adentro, la zona cobra así una especie de plenitud y totalidad, que seguramente hay
que poner en relación con uno de los cimientos del proyecto de La grande, que es una gran construcción
panorámica en donde se refleja y prolonga toda la obra precedente” (PREMAT, 2013, p. 222).
197
423
Também denominado realismo cubista, foi um tipo de modernismo americano dos anos 1920. Nele, há
composição cubista e a estética das máquinas dos futuristas, como vemos neste trecho: “[m]ovimiento surgido
hacia 1915 que se desarrolla en la pintura estadounidense a lo largo de la década de 1920, en el que los temas
urbanos y, sobre todo, industriales se representan con una técnica muy suave y muy precisa creando forma
claras, severamente definidas, a veces casi cubistas. El tema por excelencia de los precisionistas es la
arquitectura representada con precisión casi fotográfica, de donde viene el nombre del movimiento, con una
técnica lisa e impecable. No constituían un grupo formal, pero a veces exponían juntos. Demuth, O´Keeffe y
Sheeler figuran entre sus más destacados miembros también denominados “cubistas-realistas», «inmaculados» y
«esterilistas». En la pintura precisionista la luz suele ser brillantemente clara y frecuentemente se eligen las
formas por su interés geométrico. Está excluida la presencia humana y no hay observación social, tratando con
una clásica perfección temas considerados antiestéticos, como los silos de granos, los rascacielos de Nueva York
o los puentes de los barcos. El precisionismo influye tanto por su imaginería como por su técnica en el realismo
mágico y el arte pop norteamericanos.” (http://weblogs.clarin.com/revistaenie-
elmisteriodelaspalabras/2008/04/03/precisionismo/).
424
Gabriela Barco aparece, também, em um conto de Cuentos completos (2000, p. 93) intitulado “Cosas soñadas”;
Tomatis assim apresenta a filha de seu amigo: “[…] a pesar de su diploma de letras, obtenido en uno de los
establecimientos de la Ivy League, Gabriela, la hija mayor de Barco (la menor se ha aficionado a las disecciones
en la facultad de medicina), "padece una fuerte vocación literaria".”.
425
Gutiérrez assim caracteriza esse movimento: “[...] [e]ra un grupo heterogéneo de juristas ilustres y de
empleados públicos, de liberales y de adictos a la misa de once, de mecenas ignorantes y de profesores
secundarios, de peronistas, de conservadores y de radicales, de pobres y de ricos, capitaneados por un
personaje ambicioso y sin escrúpulos, de una duplicidad visceral, y que hubiese merecido nuestro odio si sus
ambiciones no hubiesen sido tan mezquinas y transparentes: obtener algún ministerio en el gobierno provincial,
un puesto subalterno en alguna embajada y aparecer de tanto en tanto en los diarios nacionales” (SAER, 2005,
p. 146).
426
SAER, 2005, p. 275.
427
A carta que Tomatis lê caracteriza esses movimentos de maneira bem irônica e controversa: “[e]n privado, los
regionalistas trataban a los neoclásicos de beatos y de chupacirios y a los precisionistas de futuristas
trasnochados y de fascistas; los neoclásicos decían que los regionalistas, a fuerza de asados criollos, estaban
devorando poco a poco el tema de su literatura y que los precisionistas, con su absurdo cientificismo, eran los
mucamos del Colegio de Médicos; y los precisionistas, que no se limitaban a la calumnia ocasional sino que
lanzaban, en forma secreta, verdaderas campañas de desprestigio, les atribuían a varios miembros del comité
198
«[e]s muy sencillo, afirmaba Brando: se trata de hablar con precisión. Eso
simplifica mucho las cosas. Fíjese en la etimología de la palabra Precisión,
del latín praecisus, 'recortado, abreviado'. Que cada palabra que utilice el
poeta precisionista corresponda a un hecho verificado o verificable. De ese
modo, todo malentendido desaparece del intercambio social de conceptos y
sentimientos» (SAER, 2005, p. 278).
de redacción de Espiga intereses en la Curia, amalgamaban adrede misticismo y mariconería, y decían del
principal escritor del grupo regionalista que su interés por las cosas del campo se explicaba por el hecho de que
era un verdadero caballo” (SAER, 2005, p. 276).
428
SAER, 2005, p. 277.
199
429
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 39.
430
SAER, 2005, p. 278.
431
Ibidem, p. 282.
200
Brando, mentor da escola poética. Nesse processo, Brando se casa com a filha do General
Ponce e essa relação com os militares revela-se importante para a sua carreira política e
literária. Depois da ruptura de Brando com Tardi − seu braço direito no movimento −, o
General Ponce o indica para um cargo de agregado cultural em Roma e Brando parte, com sua
mulher, para a Itália. Os outros precisionistas se dispersam e somente após algumas
temporadas em Roma (1947 a 1951) Brando retorna e busca reunir o séquito do movimento,
para novas publicações. O precisionismo se caracteriza, então, por essa dependência de Mario
Brando: a sua vocação poética e o seu apreço às convenções sociais o levou a conceber esse
movimento, que se caracteriza pela mundanidade, segundo o narrador da carta. Esse caráter
de mundanidade é explicado pelo narrador quando da valorização do imediatismo do mundo,
por meio da defesa de uma linguagem que coincida com as coisas e, também, pela valorização
que Mario Brando dispensava sempre ao ter, ostentando seus bens e conquistas sociais.
O ideal do movimento pode ser sintetizado, então, no criticado “absurdo
científico” – expressão usada pelo narrador –, quando do projeto de depurar a linguagem dos
desvios de significação: a linguagem deveria ser o reflexo da realidade. O precisionismo se
revela como uma técnica conceitual de relação com as coisas que pretende criar uma
linguagem pragmática. A crítica identifica nessa linguagem virtual o barbarismo e Mario
Brando se justifica afirmando que a linguagem poética de sua época se assemelhava ao Latim
do tempo de Dante: uma língua morta. A crítica aponta uma grande incoerência nos princípios
do movimento, porque, ao mesmo tempo, em que se defende a mundanidade, busca-se uma
poesia cientificista e, por tabela, seus “seletos” membros não se afastavam do círculo da elite
iletrada burguesa. Mario Brando era considerado um oportunista, devido a essa dúbia
personalidade: mantinha relação com os militares e com o governo vigente, na mesma medida
em que se associava com intelectuais e poetas. Talvez a discrepância dos ideais precisionistas
− apontada pelos críticos do movimento − explique a dificuldade de aqui elencarmos as
características desse movimento de Mario Brando.
Focando-se no conceito de realismo, defendido pelo movimento precisionista, o
mais excêntrico está no projeto de se criar uma linguagem capaz de amoldar o mundo, ou que
“cada palabra corresponda a un hecho verificado o verificable” – trecho citado anteriormente. Essa
relação direta entre linguagem e mundo corrói a própria ideia de linguagem poética, como vemos
em Todorov: “[...] [o] próprio do discurso literário é ir além da linguagem (senão ele não teria
razão de ser)”432. O pensamento dos precisionistas reduz seu próprio campo de atuação,
432
TODOROV, 1970, p. 165.
201
porque os poemas buscam coibir os ruídos entre linguagem e mundo. O movimento de Mario
Brando, então, pode ser compreendido como uma discussão saeriana dos termos do realismo e
dos limites que essa ideia pode impor à própria experiência. É recorrente, nos romances de
Saer, esse recurso de mostrar – quase de modo jocoso ou em seus termos mais radicais – um
conceito que desfigura aquilo que ele defende como o espaço da ficção.
Saer, dessa forma, defende seus pressupostos ficcionais, demonstrando o valor da
experiência e como a imaginação – entendida como a liberdade concedida aos sentidos do
homem – promove uma relação plena entre o sujeito e o mundo. É a defesa de como os
vazios entre a percepção e o mundo gesticulam a multiplicidade expressiva, financiando a
riqueza da relação com as coisas. O pragmatismo do precisionismo é interessante, aqui, por
mostrar – de maneira inversa – como a nossa eterna cisão com as coisas mantém a própria
percepção, impedindo a fusão do vidente com o visível ou a reclusão do mundo. Essa ideia
retoma o pensamento central desta tese: a importância de pensarmos o espaço como esse lugar
do fenômeno que – seguindo o desenvolvimento da filosofia de Merleau-Ponty – ultrapassa os
limites daquilo que se mostra à consciência. A experiência é estendida – por meio desses
vazios – como forma de se explorar esse momento em que o vidente e o visível se mostram
pertencentes um ao outro.
É aquilo que foi discutido no capítulo “Teoria e Filosofia”, o conceito de quiasma
de Merleau-Ponty responde a essa demanda da pesquisa sobre a experiência:
[...] [l]e chiasme n’est rien d’autre que la tentative de penser l’Être de façon
originale, à savoir, de façon que cette notion n’implique plus l’opposition
entre le sujet et objet qui caractérisait une grande partie des ontologies
précédentes. Dans le chiasme l’Être devient sauvage : il n’est donc plus
‘devant’ un observateur mais, grâce à cette « massive adhésion à l’Être qui
est la chair », il devient une unité avec l’observateur même (ROSATI, 2009,
p. 47)433.
Percebemos como é promissora essa elaboração teórica desse filósofo para se pensar a relação
que se firma entre o vidente e o visível. A experiência provoca essa concomitância entre o
corpo e o corpo do mundo, fazendo com que se perceba uma adesão, mas nunca uma
completa reversibilidade; ou seja: é o pôr em evidência esse momento em que os termos se
433
Tradução nossa: “[...] [o] quiasma não é outra coisa senão a tentativa de pensar o Ser de maneira original, a
saber, de maneira que essa noção não implique mais a oposição entre o sujeito e o objeto que caracterizava uma
grande parte das ontologias precedentes. No quiasma, o Ser torna-se selvagem: ele não está mais, portanto,
‘diante’ de um observador, mas, graças a essa « massiva adesão ao Ser que é a carne », ele se torna uma unidade
com o próprio observador”.
202
deslocam entre em si por intermédio das aberturas perspectivas e sensoriais que se encontram
neles.
Tomatis, ao terminar de ler o texto, pensa nas propostas estéticas defendidas pelo
precisionismo: “[…] [c]ada palabra, por simple y directa que sea, ya es una ficción: ¿qué
esperar entonces del resumen de un supuesto testigo de su tiempo que escribió varios años
después de haber ocurrido los acontecimientos que narra, a la mayoría de los cuales jamás
asistió”434. O conceito de ficção de Tomatis é radical e se volta contra o valor de verdade
concedido ao texto testemunhal que Gabriela Barco apresenta como anônimo. Essa mesma
tese serve de base para deslegitimar o movimento precisionista, porque problematiza a relação
da linguagem com o mundo. O cerne dos ideais precisionistas está na promoção de uma
linguagem capaz de depurar o real; por outro lado, Tomatis identifica um espaço ficcional
entre a língua e aquilo que por ela é representado. A incoerência do movimento, segundo
Tomatis, está no fato de que, com a mesma insistência com que se reclama uma renovação da
linguagem poética, Brando, também, “[...] pasaba todo el tiempo calumniando al verso libre y
asegurando que el metro y la rima tradicionales debían ser el instrumento principal de la
escuela precisionista porque, como la música, constituían una síntesis de la armonía y de las
matemáticas.”435. Além dessa incoerência nos fundamentos ideológicos, Tomatis é advertido,
por um amigo, de que Mario Brando delatava seus inimigos aos militares, com os quais
mantinha relações familiares.
No retorno de Mario Brando de Roma − alguns meses após a morte de seu pai −, o
primeiro ato de Mario foi queimar os exemplares de novelas veristas de Atilio Brando. A
relação pragmática de Mario Brando com o mundo não lhe permitia aceitar esse relato que se
afirma em estreita relação com o dito real. O objetivo de sua poética era a criação de algo
artificial, uma linguagem de caráter de aproximação científica com o real, reduzindo as coisas
a conceitos. As desarmonias entre a estética do pai e a do filho é atestada pela aproximação de
Atilio Brando dos regionalistas, uma estética voltada para a “cor local”. Essa incongruência
entre o pensamento dos Brando recorda outra dissidência estética entre pai e filho, presente
em Lo imborrable (1993), que discutiremos, posteriormente, neste capítulo. Permanecendo,
ainda, em La Grande, temos que essa discussão da estética do precisionismo – com a leitura,
por Tomatis, da carta do informante de Gabriela – ocupa menos da metade do capítulo
“Sábado: Márgenes”. O restante desse capítulo apresenta o posicionamento de Tomatis em
434
SAER, 2005, p. 294.
435
Ibidem, p. 150.
203
A impossibilidade de se afirmar o que “foi real” ou o que verdadeiramente foi vivido faz com
que Tomatis repense os paradigmas da experiência. É interessante que a própria noção de
passado – como na expressão “aquilo que foi real” – faz ruir, em determinada medida, a
certeza desse contato com as coisas. Por outro lado, temos que Saer dá preferência ao narrador
de terceira pessoa, como forma de sempre polemizar a experiência das personagens. Essa
preferência contribui para que a própria relação com o presente seja preterida em benefício
das recordações das personagens. Essa questão radicaliza a relação homem-mundo: é como se
apenas fosse possível uma experiência mais completa quando não se está mais sob o “calor”
do momento.
Essa última ideia que lançamos no parágrafo anterior parece contraditória, mas
pode ser compreendida nos seguintes termos: a preferência de Saer pelo uso da terceira pessoa
funciona de maneira peculiar. É por meio desse narrador que as recordações ganham mais
força e espaço no texto ou que se pode expor, de forma potencialmente ativa, esse vivido. É
como se, somente assim, nesse divagar sobre o vivido, fosse possível sentir – mais
concretamente – esse tocar nas coisas, destrinchando-lhes as minúcias. O passado tem, então,
um peso diferente, funciona como uma abertura para o ir e o vir sobre o mesmo
acontecimento. Por outro lado, o presente é quase nulo; é perceptível apenas quando a
personagem se perde na contemplação do horizonte do mundo. Nesses casos, é requisitado
outro tipo de presente: um tempo vertical – um aprofundamento na experiência –, no qual a
passagem de tempo seja melindrada pela vivência. O narrador de terceira pessoa, então,
oferece maior liberdade para que a narrativa possa transitar entre temporalidades e tipos de
focalização, beneficiando a análise minuciosa de toda a situação ou o repassar sobre o vivido.
204
Esse é o grande conflito de La Grande: vencer o escoamento temporal ou dar maior vazão à
revelação da experiência em um posicionamento mais próximo com o mundo.
É importante frisarmos que as recordações de Tomatis – advindas da
contemplação da lhanura – não encerram a discussão do precisionismo. Observamos, ao
contrário, tratar-se de um prosseguimento das questões levantadas no relato “anônimo” do
movimento poético de Mario Brando. É como se, por meio das questões levantadas sobre a
experiência de Tomatis – ou aquilo que ele defende como vivência –, fossem desmanteladas
as ideias defendidas pelo precisionismo, principalmente em relação à representação do
mundo. Tomatis recorda tempos de juventude nos quais a experiência fora marcada por uma
linguagem já perdida no passar do tempo: “[...] [e]se momento, lo piensa ahora Tomatis con
palabras de adulto pero entonces era una experiencia sin nombre, cuando la diversidad de la
apariencia en la que el mundo se descomponía era reabsorbida por el flujo”436. Outras
questões emergem desse trecho: o presente tem uma força que ultrapassa o desejo de tradução
e o tempo funciona como aquilo que possibiliza o próprio movimento entre o corpo e o corpo
do mundo. A relação vidente-visível é corroborada pelo fluxo, por essa força que prende e
estende o próprio contato entre os corpos. O ato de percorrer a diversidade – por meio do
sempre movimento – é o gesto que impede uma coincidência completa entre o vidente e o
visível.
Tomatis encontra dificuldade para narrar essas recordações – ou esse pretérito
contato com as coisas –; há perda dos códigos que expressavam essa experiência. Nesse ato
de retomar o passado percebemos a sua relação com o presente: essa viagem se relaciona com
as outras idas e vindas, nas quais a personagem deslocava-se por essa mesma região.
Percebemos a defesa de que é esse contato entre temporalidades que possibilita a narração do
vivido: o passado se solidifica nessa relação com o presente. Tomatis, então, se posiciona a
respeito do presente: “[…] [e]l presente era una ilusión mágica en la que todo lo que cuesta
esfuerzo, desencanto o dolor, había sido neutralizado: las leyes de la física, las pulsiones
incontrolables, los recuerdos corrosivos, el tiempo que pasa, lo exterior indiferente e incluso
adverso a los deseos”437. O presente é definido como um momento-limite no qual tudo é
neutralizado em benefício de “uma ilusão mágica”. Percebemos, então, como o presente é
caracterizado como um quase retirar-se do mundo. Essa impossibilidade de narrá-lo pode
justificar a proeminência, em Saer, das narrações em terceira pessoa: a voz se encontra como
436
SAER, 2005, p. 297.
437
Ibidem, p. 297.
205
que distanciada do momento da ação, o que contribui para o iterativo repassar sobre as
minúcias do vivido:
[…] la cifra íntima del mundo empírico, cada uno de cuyos fragmentos, por
alejados y diferentes del presente que puedan parecer — la estrella más
lejana por ejemplo — tendrá exactamente el mismo valor que éste en el que
están ahora y que, si se pudiese desentrañar el sentido de ese presente en
apariencia irrelevante, el resto del universo — tiempo, espacio, materia
inerte o viva — ya no tendría más secretos (SAER, 2005, p. 23).
A relação entre as temporalidades é ressaltada, também, nessa defesa do tempo presente como
nó de sentido daquilo que se encontra anterior e ulterior ao acontecimento. Essa positividade
206
438
Percebemos, no trecho seguinte, como Saer invade a perspectiva de Tomatis e como se processa a discussão
dessa personagem sobre o precisionismo: “[p]ara Tomatis – el personaje con conocimientos literarios que
fácilmente se pueden identificar con Saer, y a la vez parodiarlo, como cuando se ríe de sus anhelos de ser
Flaubert –, la vanguardia de Brando era una mezcla de la revista“Ciencia popular” y del diccionario de la rima.
El ingreso del tema del Precisionismo es hecho verosímil a través de dos personajes que están estudiándolo y que
consultan a Gutiérrez, y como en el medio en que se mueven son todos más o menos letrados (con excepción de
dos mujeres, que son madre e hija), pueden hablar libremente del asunto sin resultar pedantes.”(La Capital.
Rosario, 04.12.2005) (http://weblogs.clarin.com/revistaenie-elmisteriodelaspalabras/2008/04/03/precisionismo/).
439
Em Glosa, o procedimento narrativo de início do romance e grande parte da estrutura e do que se deduz dessa
estrutura é bem platônica: é exatamente como Platão relata o banquete. Duas personagens, obcecadas por uma
reunião à que faltaram, discutem, em caminhada, sobre a possibilidade de se reconstruir o passado e a fidelidade
da língua ao acontecimento.
209
440
Dalmaroni escreve que “[...] [a]ntes de morir en un accidente automovilístico, el deleznable Walter Bueno de
Lo imborrable (1993) ha acariciado el mayor éxito mercantil con su novela best-seller “La brisa en el trigo”, una
grotesca parodia de La maestra normal de Manuel Gálvez (pero que Bueno ha copiado, pueril y literal, de su
propia vida); el mamarracho, cuya prosa torpe y adocenada quiere conmover – pretende Bueno – al “hombre
común”, le abre las puertas de la televisión y lo sienta en la mesa del general Negri, otro exterminador
sanguinario” (DALMARONI, “Lo real sin identidades”, 2008, p. 6).
210
441
SAER, 1993, p. 9.
442
Ibidem, p. 7.
211
decisivamente para essa tarefa, com uma descrição dos ideais de Walter Bueno, contrapondo-
os aos de Bueno pai. Em se tratando do artigo que publica contra La brisa en el trigo, poucos
são os pontos expostos em Lo imborrable e é com base nas anotações críticas de Alfonso que
Tomatis expõe mais claramente sua crítica ao livro de Walter Bueno. A seguir, mostramos
como Tomatis desenvolve essa crítica.
Retornemos, então, à divergência apontada por Tomatis entre os ideais e a práxis
de Walter Bueno. Aquilo que o autor de La brisa en el trigo defendia conceitualmente não foi
seguido no desenvolvimento estrutural do livro. Há certa dificuldade em se averiguar a
veracidade dessa crítica, porque as análises de Tomatis se centram, quase que exclusivamente,
nos juízos críticos que os outros personagens elaboraram sobre esse livro. Pouco é revelado a
respeito do pensamento estético de Walter Bueno – a não ser sua filiação à perspectiva de
Bueno pai – e um pouco mais daquilo que ele realiza por intermédio de La brisa en el trigo. A
fala de Tomatis – citada anteriormente – reflete mais a urgência do discurso metaficcional ou
a defesa desse argumento no interior do livro. É como se Saer desvelasse a estrutura de seus
romances, defendendo que a teoria sustenta a prática da escrita ou que a primeira invade a
própria trama, fazendo-se elemento da história contada. Tomatis, então, defende o próprio
conceito de romance e, concomitantemente, alavanca uma crítica pujante contra La brisa en el
trigo: a incapacidade de se sustentar como romance. Comprova-se essa falta de rigor formal
quando Tomatis classifica o livro de Walter Bueno de insignificante.
Como em La Grande, há, em Lo imborrable, uma discordância estética entre pai e
filho, mas, por outro lado, observam-se pontos de contatos entre os pensamentos dos Bueno e
dos Brando, principalmente em se tratando do realismo. Dalmaroni assim sintetiza o conluio
estético entre La Grande e Lo imborrable:
es resulta tan difícil, ¿qué necesidad hay de deformarla?”443. Percebemos que o realismo
estético de Bueno pai é uma ingênua ideia de mimesis, com a defesa da relação direta que se
estabelece entre o mundo e sua representação. Na verdade, nos Bueno, a própria ideia de
mimesis é solapada pela busca de coincidência.
A perspectiva estética de Bueno, pai, era de identificação; a obra deveria
conformar-se à realidade; pensamento que defendia a consubstanciação entre representado e
representação. A obra estaria completa quando houvesse correspondência direta entre os dois
vetores. A perfeição não era medida pela mera sujeição à realidade, mas pelo apuro da obra,
por meio de uma interlocução de espelhamento em que vigorasse o ideal do artista. Segundo
Tomatis, a perspectiva estética de Bueno pai explicava, hereditariamente, as deformidades
representativas do livro de Walter Bueno. A mediocridade estética apresentada em La brisa
en el trigo se filia ao mesmo engano de Bueno pai em relação ao realismo, como podemos
observar na citação seguinte, em que se discute a estética desse último:
[l]os pintores de la ciudad contaban de él que una vez pintó su propio jardín,
en el que había canteros, bancos y un sauce y que después de haber
estudiado el cuadro durante algunas semanas, porque había algo que no
terminaba de convencerlo, decidió cambiar el color de uno de los bancos –
de verde, como estaba pintado en el jardín y como él lo había reproducido en
el cuadro, lo transformó en ocre, pero como había algo que no lo convencía
del todo todavía cuando comparaba el cuadro con el jardín, un domingo a la
mañana salió con un tarro de pintura al jardín y pintó el banco de ocre.
Según los pintores – fuente, a decir verdad, de lo más sospechosa – si los
bancos pintados de ocre no le disgustaban, el cuadro no le parecía terminado
todavía, y después de estudiarlo con minucia, de sopesar día y noche cada
uno de sus detalles, llegó a la conclusión de que el sauce, que aparecía en el
centro del cuadro, ocupaba demasiado lugar, aplastando el resto y creando
una simetría artificial entre las dos mitades de la tela, de modo que después
de muchas cavilaciones decidió que había que borrar el árbol y dejar en su
lugar cielo abierto y un horizonte de vegetación en el fondo; se puso manos a
la obra y por fin, según los pintores, se sintió realmente satisfecho, así que al
día siguiente se despertó con la convicción íntima de que el cuadro estaba
terminado, y sin la menor vacilación salió al jardín y arrancó el árbol
(SAER, 1993, p. 11).
443
SAER, 1993, p. 11.
213
es ese pueblo. Y si el pueblo es ése, no debería haber trigo – dice Alfonso”444. A mesma
“simetria artificial” que Bueno pai buscava reproduzir é requisitada por Alfonso, quando
desaprova o título do livro. É o que Dalmaroni pontua no texto “Cinco razones sobre Saer”
(2011): a relação direta entre as duas concepções estéticas. Bueno pai deforma o real, para
sustentar a correspondência, ao mesmo tempo em que Alfonso requer que o título de La brisa
en el trigo fosse mudado, caso se confirmasse a referência a uma cidade que não produzisse
trigo. As anotações de Alfonso, no livro entregue a Tomatis, também confirmam o vínculo
entre essas perspectivas estéticas:
[...] [e]n repetidas ocasiones, el autor se toma sin el menor tapujo toda clase
de libertades en lo relativo al clima, la fauna, la flora y las costumbres de la
zona, que evidencian un desconocimiento flagrante de los mismos. ¿Dónde
va a parar el pretendido realismo tan mentado por la crítica académica u
oficial? Tal vez en la procacidad a la moda que so pretexto de sensualismo,
linda con la pornografía. Hay que hacer notar también que la heroína, se
anda paseando con hilo de coser en el bolsillo, para poder enhebrar en el
mes de diciembre, flores de paraíso que brotan de los eucaliptus… (SAER,
1993, p. 59).
[...] Walter Bueno pretendía escribir para el hombre común, pero sus lugares
comunes se dirigían a lo más común que tiene el hombre común, en tanto
que lo que él llamaba por televisión los intelectualoides de provincia […]
444
SAER, 1993, p. 9.
445
SAER, 1993, p. 9.
446
Ibidem, p. 9.
214
[p]aso las yemas de los dedos por la superficie lisa de la imagen impresa en
el papel satinado del prospecto, y después, con el sentimiento de estar
realizando un acto vagamente clandestino, me inclino un poco hacia adelante
y, estirando el brazo, hago deslizar las yemas por la madera barnizada de la
cama, y aunque la sensación difiere de la que me ha dejado la fotografía no
es, a pesar de su evidente rugosidad, más convincente que la primera, en lo
relativo a un supuesto aumento de realidad que debiera darse por probado.
Una tercera cama, modelo inquebrantable de las dos e inaccesible a los
sentidos, me viene a la memoria, pero la variedad sin medida de sus
múltiples copias con su procesión efímera de madera, hierro, telas, piedra,
plumas, lana, tierra fría, apareciendo en mi mente con simultaneidad
vertiginosa, barre en un instante la superstición del modelo único y la
arrumba en el desván de lo irrazonable (SAER, 1993, p. 93).
reduzir as coisas a conceitos fechados. Não há, então, como cessar o movimento da
experiência ou coibir as transformações de paradigma das ideias e da percepção do mundo;
tudo se mostra em função da própria relação vidente-visível.
Essa postura de Tomatis em relação ao esquema – representação, mundo e
conceito – relembra o pensamento de Merleau-Ponty sobre a experiência, sua concepção de
percepção. O ativo vidente-visível no filósofo retrata a posição da personagem de Saer, a
defesa de que não é possível congelar o movimento da experiência. Merleau-Ponty mostra
como a experiência é ativa, tanto no vidente como no visível, ou que não há polarização entre
esses dois campos, mas intercâmbios múltiplos de funções. Essa associação entre o ideal de
representação de Tomatis e a filosofia de Merleau-Ponty comprova a produtividade desse
pensamento para essa leitura do espaço de Saer. É a comprovação do movimento incessante
ou da positividade da experiência que, iterativamente, se constrói e ativa uma nova percepção
das coisas. O visível não é dado como coisa terminada, mas está na interdependência com o
invisível, ou com aquilo que ainda não foi revelado. Essa proeminência da experiência é que
inviabiliza a defesa do realismo esquemático ou reducionista, da pré-constituição do mundo
ou da crença na existência de um modelo único a ser aplicado. A manifestação das coisas
projeta, então, um mundo em movimento, não cerceado por conceitos.
Lo imborrable finaliza sem revelar, peremptoriamente, a decisão de Tomatis a
respeito do cargo na Bizancio Libros. Na noite anterior à reunião com a cúpula da empresa,
essa personagem é sacudida pela indecisão e pelo horror de se aliar a esses ideais realistas.
Tomatis analisa os papéis da Bizancio Libros e, em seguida, copia um soneto com o título The
Black Hole. Esse poema representa o sentimento de apreensão que lhe acomete: é como se um
buraco negro se aproximasse da personagem. Depois de se deitar e no antevir do sono,
Tomatis sente como se Bueno pai estivesse, naquele momento, esculpindo-lhe uma estátua.
Um dos ofícios do pai de Walter Bueno era esculpir em bronze e em mármore: pelas praças,
encontravam-se suas obras em bronze e, nos cemitérios, seus trabalhos em mármore. Nesse
transe, Tomatis busca atrair a atenção de Bueno pai ou se esquivar da obra que estava sendo
esculpida. Alheio ao discurso de Tomatis, Bueno pai prosseguia seu trabalho, até o momento
em que Tomatis é abstraído para outro lugar: imobilizado em uma cama, ele sente a
aproximação do verdugo. A luz da manhã o devolve ao espaço de sua cama, despertando-o de
toda essa apreensão.
Tomatis se dirige ao Salón Capri, ambiente do hotel onde acontecia o evento da
Bizancio Libros. No encontro com Alfonso e Vilma − a cúpula da empresa −, Tomatis
compara o evento com uma festa de casamento, devido à pompa dispensada à sua
217
organização. Alfonso questiona quem seria o noivo, Tomatis não responde, mas percebe
Vilma como a noiva. Tomatis se esquivou da bebida alcoólica, nos encontros anteriores, por
estar em processo de recuperação da dependência. No final do romance, a última fala é a de
Tomatis, que recusa água e pede uma “bebida mais forte”. O romance deixa em suspensão a
decisão de Tomatis, mas sinaliza, nesse gesto, uma mudança de rumo. Esse ingresso de
Tomatis na sociedade pode significar a concretização dos prelúdios dos sonhos da noite
anterior ou uma postura de revanchismo contra todo o sistema que, segundo ele, transformava
as pessoas em répteis, incapazes de voar:
ativo do corpo, um registro da própria experiência. É, então, promissor atestar como Saer
projeta a escrita como esse movimento do corpo em direção ao mundo, como um
desdobramento da própria percepção. O ato de escrever à mão promove envolvimento mais
enfático, segundo o escritor, entre o corpo do artista e aquilo que é dito e experienciado. É a
possibilidade de tocar e expandir a própria relação do artista com as coisas: uma projeção da
experiência no mundo. Saer afirma, ao final, que há uma comunhão maior entre a experiência
do escritor e a do leitor, pelo ato de escrever à mão. É como se criasse, por meio desse gesto,
uma extensão mais física entre os sentidos do corpo do artista em direção aos dos leitores. A
escrita deixa de ser vista como um produto para se tornar uma via para acesso aos corpos,
como gesto de expressão do mundo, como abertura ao visitado e tocado pelos corpos.
A fala de Saer – na citação anterior – contribui para a leitura que fazemos, nesta
tese, do espaço saeriano; justifica a entrada, nela, do pensamento filosófico de Merleau-Ponty.
Esse filósofo – discutido no segundo capítulo – articula uma filosofia do corpo, da carne. Esse
pensamento elucida, em grande medida, aquilo que é proferido por Saer; lança luz sobre a
relação da personagem com o mundo, por meio de conceitos que explanam, principalmente, a
experiência, a relação vidente-visível. Merleau-Ponty valida esse paralelo quando requisita a
Arte – principalmente, a Pintura – como meio de acesso à experiência, como forma de revelar
os caminhos do olhar. Na verdade, esses caminhos refletem a multiplicidade da percepção,
dos sentidos de acesso ao mundo. É o que Saer afirma: a escrita como esse braço estendido,
tocando no leitor, como a propagação desses caminhos do sentir, de ação do vidente-visível,
nos âmbitos ficcional e humano.
447
O realismo execrado por Saer é aquele defendido pelos Brando e pelos Bueno: como o espelhamento do mundo
na sua representação.
219
representação total e em espelhamento. Saer se debate contra essa postura, buscando outro
tipo de relação com o mundo. Em La grande, há o prosseguimento dessa discussão: enfatiza-
se a interação do homem com o mundo, por intermédio do conflito entre a posição ideológica
das personagens Nula e Gutiérrez. O narrador denuncia a estreiteza de uma postura idealista e,
também, da realista, buscando ultrapassar esses limites, por meio da democratização da
focalização. A postura de Saer, na elaboração de seu espaço ficcional, é uma busca pela
interação plena do homem com os outros e com o mundo.
Retomando: o projeto deste capítulo é redefinirmos o pensamento realista saeriano
por intermédio da discussão ficcional que é articulada em La grande e em Lo imborrable. A
estratégia é, então, tomarmos os romances como entrada da discussão, focando-nos no projeto
metaficcional de Saer. Nessa última parte deste capítulo, concentramos esforços na tarefa de
discutir como esse projeto saeriano desarticula um “realismo simplista”. Logie assim sintetiza
o manejo ficcional de Saer;
Esse “cuidadoso trabalho formal” é a característica que foi pinçada, anteriormente, por
Tomatis, ou que foi requerida por ele do livro de Walter Bueno. A ausência desse rigor formal
ou de um entrelaçamento entre a trama e a estrutura define La brisa en el trigo como um gesto
de insignificância artística. Saer sublinha, justamente, em seus romances, esse pendor para a
problemática da estrutura, como elemento da própria trama.
Essa abertura para a perspectiva metaficcional desponta no próprio gesto de apuro
descritivo, na incapacidade de circundar o todo. A ênfase descritiva de Saer parece alavancar
o esforço de expressar, em todos os seus contornos, a experiência, de definir, objetivamente, o
mundo. Trata-se de um engano, já que a complexidade da experiência e sua volatilidade
impossibilitam o realismo de identificação, a descrição das minúcias do espaço. Na verdade,
esse projeto de esmiuçar o espaço – como se estivesse congelado – é sempre tolhido pela
presença do homem no processo; ou seja: a engrenagem da experiência – relação vidente-
visível − contribui para o não esgotamento do mundo. É a comprovação de que a relação se
estabelece no intercâmbio entre as partes, na doação entre os termos:
220
Esse é o esquema que Saer448 apura em seus romances: o rigor estético contribui
para que a relação minuciosa com a descrição do espaço não penda para o realismo de
identificação. É, mesmo, uma investida contra esse pensamento, porque a relação vidente-
visível se descobre como inesgotável: o contato é mantido pela incapacidade de uma das
partes se exaurir na experiência. Esse ajuste é mantido, então, pela copiosa manifestação das
coisas e o pendor estético significa o resgate da narração para o ambiente do próprio texto.
Não podendo cessar a variabilidade de manifestação das coisas, o texto se estende sobre si
mesmo, como forma de legibilidade. O mencionado El limonero real (1974) encontra-se em
um período em que Saer fez notar, mais nitidamente, a sua posição estética, faz parte da sua
etapa dita “experimental”. Esse romance estabelece uma relação peculiar com o mundo − com
descrições minuciosas da experiência das personagens −, ao mesmo tempo em que apresenta
uma estrutura sofisticada da problemática temporal. Essa etapa reúne romances – Cicatrices
(1969), El limonero real (1974) e Nadie nada nunca (1980) – que fizeram expandir o dilema
da própria narração, que se debruçaram, de forma mais nítida, sobre o problema da
narratividade. Logie (2013) problematiza esse período frisando apenas esse teor
metaficcional: “[...] [a] partir de Cicatrices, parece insostenible una identificación de Saer con
el realismo, porque los procedimientos de construcción del relato pasan a ocupar el primer
plano”449.
Estabelecendo um paralelo entre aquilo que discutimos nas duas abordagens
estéticas de Lo imborrable e de La grande, temos que Saer dramatiza o problema estrutural.
Ambos os romances fazem parte da “etapa madura”, apresentam, com mais finura, o
problema estético. É observável a abertura para a discussão literária no interior da própria
trama, uma forma de reafirmação estética do texto. Ao mesmo tempo em que Saer rejeita um
tipo de realismo, sua obra se encontra de costas para as chamadas poéticas antirrealistas,
448
“[...] [s]u literatura, autónoma y extraterritorial, se circunscribe a una tradición anterior a la actual, y, alternativa
a los escritores del boom y del posboom, que pone el énfasis en lo regional o “zonal”, aunque con una matriz
universal” (CUIÑAS, 2013, p. 40).
449
LOGIE, 2013, p. 30.
221
450
“Cuando hablamos de literatura latinoamericana es casi imposible no pensar en el llamado Boom
Latinoamericano, ese fenómeno literario y editorial surgido entre los años 1960 y 1970 en América Latina. En
ese periodo, el trabajo de un grupo de cuentistas relativamente jóvenes fue ampliamente distribuido por todo el
mundo. Los autores más representativos del Boom son Gabriel García Márquez, de Colombia, Mario Vargas
Llosa, de Perú, Julio Cortázar, de Argentina, y Carlos Fuentes, de México. Pero el fenómeno del Boom incluye
una lista mucho más larga de escritores latinoamericanos. Estos escritores desafiaron los convencionalismos
establecidos en la literatura latinoamericana a través de obras experimentales de marcado carácter político, cuya
influencia ha marcado generaciones de escritores hasta nuestros días.”
(In: http://www.iberlibro.com/libros/literatura-latinoamericana-boom.shtml).
451
ARCE, 2013, p. 97.
222
452
PREMAT, 2013, p. 230.
453
Sarlo nomeia e singulariza esse ir e vir das personagens saerianas, da seguinte forma: “[...] [p]or esa relación
delicada y resistente con el tiempo, los personajes de Saer forman una sociedad novelística que trasmigra de un
texto a otro y reaparece cuando se la cree a punto de extinguirse, formando una comunidad rara en la literatura
posterior a 1930. El saber del tiempo produce personajes y no sólo historias, personajes sostenidos por la
categoría impalpable de la duración” (SARLO, 2013, p. 158).
223
454
PREMAT, 2013, p. 221.
224
Premat releva que a leitura que Tomatis faz do movimento de Gutiérrez – no próprio capítulo
no qual polemiza o precisionismo (ou seja, no interior da própria discussão literária: gesto que
não pode ser lido fortuitamente) –, sublinha a impossibilidade do retorno. Premat percebe o
giro estético, mas sublinha que não há possibilidade de identificação com a estética de
juventude. La Grande representa uma reconsideração de todo o movimento de Saer; o retorno
é encarado como uma nova roupagem dada a aquilo que tinha sido os vislumbres de sua
grande obra.
A estética de La grande é desvencilhada, por Premat, por meio das palavras de
Tomatis, quando da tentativa de elucidar o gesto de Gutiérrez: uma forma de alcançar “la
simplicidad suprema”. O interessante é que − apesar da abertura dada à profusão das intrigas
− o jogo ficcional de La grande, continua germinando, conjuntamente e por intermédio dessa
valorização das peripécias. Premat desvela essa estrutura: da mesma forma que se observa a
valorização da intriga, o aspecto estrutural é posto a descoberto, principalmente, nessa leitura
do retorno de Gutiérrez. O metaficcional permanece como ingrediente do texto, encenado por
meio das peripécias de Gutiérrez, no seu gesto de retorno. Saer progride a sua estética,
deslindando, na própria trama, a estrutura do romance. A percepção desse jogo – entre forma
e conteúdo – exige uma iniciação na estética de Saer e, talvez, sua personificação – no gesto
de Gutiérrez – facilite a própria visualização desse movimento saeriano de, iterativamente,
discutir a feitura de sua obra. O jogo estético de La grande é, então, performatizado na trama:
o retorno à estética de juventude acaba por ser contrariado, na mesma medida em que
Gutiérrez é impossibilitado de alcançar o tempo já ido.
A análise de Premat prossegue enfatizando esse movimento entre forma e
conteúdo; uma análise estrutural do último romance mediada pelo criticismo de Tomatis. Para
esse crítico, a questão está no movimento entre experimentação e tradição. Como ele afirma,
La grande é tida como uma “[...] apuesta ‘clásica’”455. A crítica, então, percebe que Saer
retoma alguns pontos da estética de juventude e suaviza o jogo estrutural de seus romances
anteriores. Nesse duplo gesto, pode-se compreender o mal-estar em razão do esfriamento da
experimentação estética. Saer, que sempre se manteve sisudo em relação ao mercado, é
acusado, por alguns críticos, de ceder a suas leis nos dois dispositivos contrapostos em La
grande: na prioridade concedida à intriga e na perda de “radicalidade e originalidade
estética”.
455
PREMAT, 2013, p. 226.
225
Essa “aposta clássica”, que Premat discute em seu artigo, é deslindada como recuo
ao estratagema das primeiras obras, no esfriamento do aspecto inovador, aprimorado,
principalmente, na etapa experimental. O próprio desprezo ao precisionismo – movimento
literário apresentado no romance como vanguarda – é uma forma de por em discussão os
chamados experimentos literários: “[...] [l]a vanguardia se ha vuelto superchería e historia, o
sea que se trata de una tradición paralela, pero inoperante. En particular el precisionismo es
una retaguardia disfrazada de vanguardia”456. Essa discussão de ceder ou não ao mercado não
pode ser inconsequente – levantada pela crítica em razão das mudanças estéticas percebidas,
principalmente, em La grande –, já que o próprio Saer discute essa questão, em seus
romances. Em Lo imborrable, por exemplo – outro romance que direciona a discussão deste
capítulo –, fica evidente como a proposta da Bizancio Libros instiga Tomatis ao círculo do
mercado de livros. Esse romance não esclarece qual a posição da personagem em relação à
proposta, mas discute abertamente o problema do livro como mercadoria. Premat dirige um
olhar diferenciado à questão e à posição de Saer, principalmente, em La grande;
[...] [e]l clasicismo revisitado sólo es concebible para aquel que sin
concesiones al mercado y al medio literario ya ha logrado un lugar
reconocido. Sólo en ese momento es concebible adoptar una “negligencia
casi triunfal”, términos que podrían describir la relación de La grande con el
género novelístico (PREMAT, 2013, p. 227).
[o] sea que, desde sus inicios, la praxis de Saer está atravesada por una
tensión, que es a la vez el imperativo formalista e innovador, el rechazo de la
456
Ibidem, p. 231.
457
Cuiñas contraria essa posição nos seguintes termos: “[...] Saer rechazó todo impacto popular y comercial y se
mantuvo retirado de los medios, sordo a los bemoles de la oferta y la demanda, de la literatura light y el best-
seller [...] [n]unca estuvo de acuerdo con la prioridad que se ha dado en los últimos años al “valor de cambio” de
la obra literaria sobre el “valor de uso” , equiparando arte con entretenimiento: su literatura le ha dado la espalda
a cualquier tipo de posición hegemónica y evasiva […] de apostar por una escritura especular de “calidad
estética” y “complejidad conceptual y literaria” que necesita de un lector competente, muy activo y entregado, ya
que uno de los “valores sólidos” de su narrativa es la invitación continua a la relectura y la reflexión” (CUIÑAS,
2013, p. 44).
226
aunque tengan puntos en común, podrían ser novelas de dos primos”458. O rigor estético,
então, permanece; é a defesa de um projeto de escrita desenvolvido ao longo de anos. No
interior dos romances, percebemos, também, essas duas opções sendo confrontadas: por um
lado, o dilema entre a dificuldade de narrar e, por outro, o triunfo do relato. É um esquema
que restaura a própria narratividade dos textos ditos mais experimentais, como, por exemplo,
El limonero real. É uma estrutura que acompanha a saga saeriana, sendo que observamos
concessão de prioridade a uma determinada opção, dependendo do romance.
Retomando La grande, observamos o privilégio concedido à profusão das intrigas.
Essa abertura à potencialidade do relato não implica descuido com o trabalho estrutural. O
penúltimo capítulo, escrito por Saer, sublinha esse fato; nele, Tomatis põe a descoberto a
estratégia do romance. Visando discutir o retorno de Gutiérrez, a análise estrutural é
encenada; Saer, possivelmente, antecipa a própria recepção do romance. É cara ao tema desta
tese essa abertura para a narração, para a profusão da intriga, porque é nesse espaço que a
relação da personagem com o mundo se revela:
[...] [l]a crítica ha percibido en las últimas obras de Saer, y sobretodo en los
cuentos de Lugar (2000) y en su novela póstuma La grande (2005), que
puede considerarse su testamento literario, un cambio en cuanto a las
opciones estéticas del autor. La modificación no afectaría tanto a la temática,
sino al espacio de la ficción, que se abre y se universaliza, y al escepticismo
expresivo tan característico del proyecto de Saer, que en La grande se ve
desplazado por una capacidad afirmativa de construir intrigas y de recuperar
recuerdos (LOGIE, 2013, p. 35).
458
CUIÑAS, 2013, p. 45.
228
foi classificada de insignificante, devido ao fato de não coadunar os elementos estruturais com
a intriga. É nesse movimento metaficcional que o “realismo simplista” é ferido. La grande
põe a descoberto o seu gesto estético, quando a intriga central – o retorno de Gutiérrez –
revela os mecanismos formais do texto.
Resumindo: a estética de Saer é voltada ao realismo, no sentido de ser contrária ao
antirrealismo ou de se opor, principalmente, ao boom e ao posboom-latinoamericano459. Esse
esquema acentua primoroso manuseio do espaço, que a crítica aproximou da estética
objetivista do Nouveau-Roman, devido à fixação do olhar pela descrição pormenorizada das
coisas: “[...] la descripción obsesiva significa la destrucción de la confianza en la notación
realista, en la descripción que carga de significados precisos a los objetos”460. Nessas
considerações, percebemos o lugar de estranhamento do chamado “realismo saeriano” ou de
sua relação com o mundo vivido. Ao mesmo tempo em que se busca a aproximação com o
mundo, a obseção descritiva ultrapassa os limites das coisas, esvanecendo-as. Esse inventariar
o espaço representa a busca por sentidos, tão presente na estética saeriana: “[...] [l]a gran
paradoja en la obra de Saer en general es que la narración es una respuesta a la búsqueda de
sentido, pero esa misma búsqueda también revela la falta de sentido en la narración y, por
ende, en la vida”461. O projeto estético saeriano gira em torno dessa descrição pormenorizada
do mundo e, na impossibilidade de se percorrer os seus contornos, emerge-se a discussão
metaficcional. Atendo-nos ao primeiro gesto, temos que essa relação com o espaço aparenta
ser bem realista, mas o segundo gesto aprimora o próprio conceito de realismo em Saer. O
trabalho descritivo é primorosamente executado por intermédio da ênfase na relação da
personagem no mundo da experiência:
[c]omo afirma Edward Casey (1996), uno de los investigadores que más ha
examinado el lugar desde una perspectiva filosófica, es imposible conocer o
sentir un lugar sin estar allí. Por lo tanto, el conocimiento sobre el lugar no
459
“La narrativa hispanoamericana más reciente (de 1975 en adelante), tras haber experimentado innovaciones
vertiginosas en las décadas del sesenta y setenta que le merecieron el nombre de “nueva” ha sido designada, a su
vez, con calificativos como "novísima", "posmoderna” o del "post-boom". Ninguno de los conceptos es preciso y
hay quien dice que todos son malogrados, pero el término "post-boom" ha sido el más usado y el más criticado,
tal vez, porque "tiene la desdicha de ser correlativo de otro movimiento, de hace un cuarto de siglo, que todavía
se discute y cuyo nombre no fue ni muy acertado ni aceptado: el boom" (Giardinelli, 182). La mayoría de los
escritores involucrados en el debate taxonómico optan por autodefinirse como "novísimos" Para ellos, la
asociación con el "post-boom" significaría algo inaceptable - primero, la adopción de un término extranjero que
tiene un matiz peyorativo debido a sus connotaciones comerciales y, segundo, un tácito reconocimiento del
carácter meramente epigónico de su propia obra. La línea divisoria entre la nueva y novísima narrativa suele
ubicarse a mediados de los años setenta: la nueva narrativa es interpretada como producto de la década optimista
de expectativas revolucionarias, mientras la novísima escritura queda estrechamente vinculada a la época de
desilusión con los proyectos de democratización” (http://www.ux1.eiu.edu/~cfcca/novisimanarrativa1.html).
460
LOGIE, 2013, p. 20.
461
CLAESSON, 2013, p. 113.
229
[...] [p]ara ver cómo Saer entiende los mecanismos de la ficción, es necesario
tener en cuenta la conexión que hace entre percepción y recuerdo. Como ya
se ha dicho, percepción y recuerdo son dos modos, en presente y pasado, de
captar la realidad en su estado bruto, sin la conceptualización de la lógica y
la memoria (CLAESSON, 2013, p. 119).
O realismo de Saer – que pode ser entendido como essa relação peculiar com a
realidade − ultrapassa os limites das coisas e do tempo. Das coisas quando a busca por sentido
sobressai como forma de manutenção do nó que une vidente e visível. Os limites temporais
são transpostos quando a percepção e a recordação renunciam ao movimento do tempo
diacrônico. Na verdade, há intercambiamento entre esses dois tempos: a resistência do
presente provoca essa fuga ao passado ou, na esteira de decifração do mundo bruto, emerge
uma recordação. Essa dialética é interessante porque, ao mesmo tempo em que se provoca o
mundo em busca por sentido bruto, mais intrincada se apresenta a relação do corpo com o
corpo do mundo. É preciso, então, deslindar esse movimento de busca por sentido em Saer ou
responder, com mais precisão, a essa investida. Na verdade, essa busca representa a própria
prega que mantém o contato da personagem com o mundo, desvendando um tempo
descompassado por uma narrativa que privilegia a circularidade e os intercambiamentos. O
sentido se apresenta como que mudo nesse processo, mas a investida em atingi-lo mantém a
própria relação entre os corpos. Como está expresso na citação anterior, a relação entre a
percepção e a recordação suplanta uma lógica conceitual ou a crença em um sentido único e
fechado:
230
Nesse mesmo livro, La dicha de saturno (2002), Premat já tinha pontuado que
uma das diretrizes da narrativa saeriana é essa busca por sentido. Um movimento que
funciona fora da lógica de verdade, mas no afã de se ordenarem as suas variantes. É a
gesticulação do próprio conceito de ficção de Saer, como esse espaço de abertura para versões
múltiplas do real. A autorrefencialidade se revela tema do romance, na medida em que o
conceito de ficção se mostra como pano de fundo da própria trama. O sentido funciona como
as amarras da própria relação perceptiva, uma forma de manter a reflexividade da personagem
com o mundo. Outra exigência por sentido está no âmbito da recepção: a circularidade da
obra saeriana ou a negativa de diacronia reclama a concatenação dos textos como forma de
legibilidade da saga saeriana. Retornando: a importância da busca por sentidos, pelas
personagens, está na manutenção da própria relação vidente e visível. As investidas em busca
por sentidos refratam na pluralidade do vivido e, por seu turno, essa busca é que mantém a
própria relação com o mundo. A tradução não se efetua devido à constante distância que se
interpõe na relação, favorecida pela variabilidade daquilo que se mira; ou seja: perde-se a
referência da coisa em benefício desse sentido bruto que se encontra sempre distanciado.
O espaço realista de Saer apresenta-se nos dois eixos: na percepção e na
recordação. Ressaltamos que o seu realismo é entendido nessa relação com o mundo vivido,
na experiência das personagens. A percepção é o giro sobre o presente, a valorização daquilo
que se mostra na vivência. A impossibilidade de se atingir o sentido, que sempre se retrai,
reclama um tempo vertical – segundo Nula, em La grande –, aquele momento em que o
espaço se sobressai sobre o tempo; a linearidade é preterida em favor da simultaneidade.
Quando esse presente se torna mudo, a narração refrata e o passado emerge por meio de
imagens: “[...] la memoria es, pues, la instancia que ordena, interpreta y en cierto sentido
ficcionaliza secuencias del pasado, mientras que los recuerdos son instantes o imágenes
muchas veces sin un sentido aparente, y por lo tanto más fieles a la realidad”462. As
462
CLAESSON, 2013, p. 119.
231
recordações apresentam essa dinâmica de relação com o presente, permitem que se estabeleça
diálogo com a percepção do mundo: “[...] [e]l recuerdo es como una imagen que se proyecta
sobre nuestro cuerpo, según la voluntad externa del proyector; por eso es tan sugerente
buscarse a sí mismo en esa proyección fragmentada y sin conceptualizar”463.
As recordações são abundantes em Saer, sobressaem-se sobre o próprio volume
das percepções, devido ao privilégio concedido ao narrador distanciado. É interessante como
Claesson (2013) defende – na citação anterior – a recordação como detentora de uma
dinâmica com a própria percepção e que independe do gesto de rememoração. Essas imagens
se solidarizam na relação da personagem com o mundo; a própria experiência provoca esse
diálogo com as recordações. As recordações, então, advêm da própria percepção, como
pertencentes ao mesmo espaço, manifestam-se como imagens que complementam a relação
com o mundo. Resulta disso a dificuldade de se estabelecer os limites temporais e espaciais da
narrativa saeriana, porque tudo se coaduna na busca por sentido bruto. A narrativa saeriana
apresenta esse ir e vir sobre o tempo – entre percepção e recordação –, por meio das múltiplas
progressões imagéticas do espaço. Não sendo possível a relação direta com o sentido, a
dialética é a promoção da experiência, da relação com o mundo, como sintetiza Sarlo: “[...] lo
que creo que Saer sostiene con su literatura: que vale la pena intentar la búsqueda, sólo si no
se conoce del todo el objeto buscado ni el mapa del territorio a recorrer. La ficción avanza
contra lo desconocido, como si avanzara contra el viento”464.
Sarlo desenvolve um resumo da estética saeriana – na citação anterior –, da sua
concepção de ficção, como espaço de diálogo ou de exposição das variantes da percepção.
Saer valoriza a busca pelo sentido bruto, obliterado no interior da própria coisa ou entre elas.
O espaço saeriano se descobre nesse iterativo ato de percorrer a distância entre as coisas ou
essa carne do mundo. Uma distância que sempre se estende, revelando a multiplicidade de
facetas daquilo que se pensava ser uma coisa inteiriça e acabada ou isolada do vidente. Essa é
a estrutura que revela o espaço saeriano: a interdependência entre personagem e mundo, seja
na percepção ou na recordação:
463
Ibidem, p. 120.
464
SARLO, 2013, p. 153.
232
465
PERKOWSKA, 2013, p. 179.
466
PREMAT, 2013, p. 222.
467
DELGADO, 2013, p. 239.
233
Essa afirmação de Premat assegura a tese que esse crítico desenvolve no seu artigo: por
intermédio da análise de Tomatis sobre o retorno de Gutiérrez, interpreta-se a estética de La
grande como uma nova roupagem dada à estética de juventude. É sondado, então, nesse
romance, um espaço de maior valorização da trama, da relação das personagens com o
mundo. O último romance de Saer privilegia o espaço da experiência, reafirmando a
importância que esse escritor sempre depositou nesse estratagema homem-mundo.
Visualizamos, então, em La grande, a ênfase depositada na relação da personagem com o
mundo, seja no plano perceptivo ou na recordação.
Resumindo, defendemos que o realismo saeriano acompanha o desejo de
apreender a experiência da personagem, de confluir a relação do vidente com o visível; ou
seja: o objetivo não se encontra no projeto de apenas descrever as coisas, mas em acompanhar
a sua revelação pelos olhos do observador. O espaço saeriano revela-se na vivência da
personagem, na relação de duplo sentido entre o corpo e o mundo. Os dois romances que
encabeçam a discussão deste capítulo comprovam essa questão. O precisionismo, em La
grande, é uma mostra de como o defendido pragmatismo da linguagem petrifica a
experiência, por meio da defesa de um mundo objetivo, que deve ser alcançado por uma
linguagem direta. Da mesma forma que o livro de Walter Bueno, La brisa en el trigo,
desconcerta a experiência por não conseguir ultrapassar os limites do senso comum ou por
não se ater às particularidades do mundo vivido. Tomatis analisa esse livro e defende o olhar
sobre os segredos do homem, a fixação nas singularidades da experiência:
CAPÍTULO 5
468
Premat acentua essa relação da lhanura com o rio: “[l]a tierra pastosa y el agua omnipresente no son los únicos
espacios naturales: la pampa (y más generalmente el “campo”) aparece como la frontera del río; si los personajes
se alejan de la costa, más allá, comienza un espacio vacío, indefinido, que se interroga repetidamente sin obtener
de él ninguna respuesta” (PREMAT, 2002, p. 175).
236
próprio horizonte do mundo. A importância das “nuvens” está em propiciar um dos aspectos
interessantes da experiência das personagens: a monotonia. Esse sentimento nasce quando a
personagem se sente enclausurada pelo firmamento, devido à aparência de imobilidade das
coisas. Esse esgotamento dos sentidos é provocado muito em função da ausência de
movimento ou da busca pelo sentido bruto das coisas. A experiência se aprofunda e sua
verticalidade cria a falsa impressão de que o tempo estacionou, devido à profusão da
experiência espacial. É interessante esse terceiro espaço, porque há um romance que Saer
intitula Las nubes (2000), sendo, então, promissor pensarmos a sua importância no projeto
espacial saeriano. É inquestionável a relação das personagens com a lhanura e com o rio,
sendo o primeiro o espaço definidor das narrativas saerianas e, o rio, o seu prosseguimento ou
a sua extensão rumo ao horizonte.
O projeto espacial saeriano é conduzido no encalço de perpassar a experiência por
inteiro, em plenitude, no sentido de se atingir um sentido que se encontra velado no horizonte
do mundo, como aponta, por exemplo, este trecho:
[...] el drama del hombre saeriano es, ante todo, un drama material (un
“drama de símbolos” diría Bachelard): es la consecuencia de una relación
sufriente con un universo carente de sentido en un plano general y con la
materia, disfórica, indiferenciada, como manifestación nimia pero aguda de
esa relación (PREMAT, 2002, p. 165).
Os sentidos da personagem recobrem as coisas até o limite da própria visão, tendo essa a
função de antecipar a relação dos outros sentidos com o mundo. O esforço de esgotar aquilo
que é percebido se estende para todos os cantos, sejam eles o céu, a lhanura ou o horizonte.
Percebemos, em alguns casos, o engavetamento da experiência – entre céu e terra – ou o
sentimento de monotonia; em outros momentos, a confirmação de que não existem limites
para a experiência ou uma linguagem capaz de traduzir a infinidade de prospecções do real.
Esse é o grande dilema de a obra saeriana percorrer essa relação com o inesgotável ou mostrar
a infinidade de caminhos que se estendem entre a personagem e o mundo. Essa questão retraz
os pressupostos ficcionais de Saer ou demonstram como a experiência não se reduz a um
traçado objetivo, ou que se deve considerar a pluralidade de caminhos dos sentires. O esforço
para examinar as coisas no intuito de lhes extrair seu sentido velado, para decifrar o mundo, é
tolhido pela inesgotabilidade de perspectivas que se revelam na experiência. Fixemos, então,
em perpassar esse universo espacial saeriano por meio de seus contornos; ou seja: da lhanura,
do rio e das nuvens.
237
469
COLLOT, 2005, p. 72: “[…] O horizonte, a perspectiva não se permite somente ver: ela deixa adivinhar o que
ela esconde à vista. Ora, isso é uma qualidade essencial do olhar artistico, que deve ‘ver de início o que se faz
(tem) a ver, mas, também, adivinhar aquilo que se esconde’” (Tradução nossa).
470
CLAESSON, 2013, p. 113.
471
PREMAT, 2002, p. 229.
238
como primeiro exemplo da relação das personagens com a lhanura, a narração de Luis de
Fiore, sua perspectiva dos acontecimentos que antecederam o assassinato de sua mulher:
[s]e pone a la par mía y caminamos juntos durante un trecho. Por momentos
nos hundimos en el pastizal hasta las rodillas, y a veces chapoteamos entre
los charcos. La luz decae cada vez más rápidamente. Ahora vemos con
claridad únicamente a nuestro alrededor, a unos pocos metros a la redonda.
El resto está envuelto en una penumbra azulada. Los eucaliptus son una
franja negra (SAER, 2003, p. 147).
Fiore conta sua saída com a família para caçar patos, momentos do funesto dia em
que matou a mulher e, posteriormente, no dia do interrogatório, se suicida. É interessante
como o olhar dessa personagem busca recobrir a experiência pessoal, bem como a relação da
sua companheira com o mundo; é uma prova do jogo narrativo de Saer ou de como ele
transmuta as características do narrador homodiegético e heterodiegético. No caso de
Cicatrices, os quatro narradores narram em primeira pessoa, mas percebemos saídas dessa
perspectiva para a apreensão daquilo que acontece com as outras personagens. Essa tentativa
de apreensão do todo é sutil e pode passar despercebida, em razão da focalização interna. É
um modo de fazer com que a narração espacial englobe as miudezas que escapam à relação
direta do sentiente e, mais, que seja consentida com naturalidade pelo leitor. A estrutura é
perceptível quando Fiore narra, como se estivesse ausente, a sua deambulação pela zona de
Colastiné Norte: os sentidos perpassam as coisas, juntando-se a aquilo que é narrado, como
vemos abaixo:
[l]a llovizna cae sobre los árboles mutilados, negros, que están sobre el patio
liso. La luz del patio los ilumina débilmente. Deslumbran, sin embargo. La
corteza atravesada de hendiduras se llena de agua, y también algunas
porciones del patio liso emiten de golpe algunos reflejos. Deslumbran.
Cierro los ojos durante un momento, apretándolos fuertemente. Cuando los
abro, los muñones mojados y el patio liso están todavía ahí (SAER, 2003, p.
153).
Esses últimos instantes da vida de Fiore exemplificam como o olhar dessa personagem
acompanha a revelação das coisas. É a mostra de como o espaço está condicionado à
experiência, como os sentidos da personagem lançam luz por sobre aquilo que por eles é
explorado. Esse movimento sinestésico contribui para que o leitor se sinta como que integrado
a esse espaço e explore, em suas miudezas, a relação homem-mundo.
239
472
Premat utiliza esse conceito para explanar a estrutura de El limonero real: “[...] excluye el avance tradicional de
la ficción (el de la cronología), y dramatiza, con los zigzags que la diégesis contiene, la posibilidad de narrar
(PREMAT, 2002, p. 221).
473
Gérard Genette (1995) classifica o recurso das analepses como “[...] toda a ulterior evocação de um
acontecimento anterior ao ponto da história em que está” (GENETTE, 1995, p. 38).
474
MOTA, 2013, p. 1.
240
espejismos de agua”475. A relação espacial ultrapassa aquilo que se apresenta aos olhos, no
imediatismo; a circularidade temporal é refletida nessa antecipação do devir. A personagem
narra, em focalização interna, a mesmice do mundo, sublinhando minúcias de sua
transformação; com neste trecho:
476
Collot assim visualiza a relação vidente-visível de Merleau-Ponty: « [l]e sens d’un paysage comme celui d’une
phrase musicale ou d’un tableau, est inséparable de son rythme et de sa courbe mélodique, des valeurs et des
couleurs qui le composent : il s’agit de ce que Merleau-Ponty apelle une «idéalité d’horizon » d’« une idée qui
n’est pas le contraire du sensible, qui en est la doublure et la profondeur »” (COLLOT, 2005, p. 339). [Tradução
nossa: “O sentido de uma paisagem, como o de uma frase musical ou de um quadro, é inseparável de seu ritmo e
de sua curva melódica, dos valores e das cores que o compõem: trata-se daquilo que Merleau-Ponty chama de
uma “idealidade de horizonte”, de “uma ideia que não é o contrário do sensível, que é seu revestimento e sua
profundidade””].
242
cama y el ronroneo continuo se irá cortando cada vez por más largo tiempo y
con menor intermitencia hasta desaparecer (SAER, 2002, p. 47).
477
SAER, 2002, p. 45.
478
ARCE, 2013, p. 91.
479
SAER, 2002, p. 113.
243
narrativo, aparenta a estratégia narrativa dos dois romances. Como sintetiza Premat: “[...]
[a]unque en menor grado, la estructura narrativa de Nadie nada nunca reúne la dispersión de
Cicatrices y los retornos de lo mismo de El limonero real”480. O coro de Nadie nada nunca é
quase uma retomada do próprio título do romance: “[...] [n]o hay, al principio, nada. Nada”481.
Algumas vezes, o coro é estendido, e esse nada se refere ao rio: “[n]o hay, al principio, nada.
Nada. El río liso, dorado, sin una sola arruga, y detrás, baja, polvorienta, en pleno sol, su
barranca cayendo suave, medio comida por el agua, la isla”482. A lhanura é, também, espaço
do romance, a personagem se emerge nessas paisagens de vasta extensão e quase nenhum
acidente: “[...] [l]a contemplación de la llanura es comparable con los estados de
extrañamiento en donde el desdoblamiento de los gestos, la conciencia exacerbada de los
sentidos, apuntan a una especie de locura, de ruptura con la observación” 483. Temos, então, no
trecho a seguir, um exemplo dessa relação com a lhanura em Nadie nada nunca:
[e]l desplazamiento es tan uniforme que el coche negro parece inmóvil sobre
una cinta sin fin que estuviese corriendo en sentido contrario. En las dos
llanuras que se extienden a los costados del camino los pajonales resecos,
grisáceos, de altura regular, acentúan, a causa de su monotonía, la impresión
de inmovilidad (SAER, 2000, p. 81).
480
PREMAT, 2002, p. 232.
481
SAER, 2000, p. 5.
482
Ibidem.
483
PREMAT, 2002, p. 178.
244
descritivo também denigre a imagem; é uma fórmula que Saer utiliza para pôr a descoberto a
impossibilidade de se revelar todos os lados das coisas. O tempo promove o movimento de
transformação das coisas, contribuindo para que não haja o congelamento da experiência em
uma mesma imagem.
Os supostos dons de Bianco – descritos na citação anterior – é que dão o tom para
a história de La ocasión, já que: “[...] [o] conflito que ordenará o romance [...] será a dúvida a
respeito da possível traição de Gina (mulher que conhece nos pampas argentinos, com quem
se casa) com o amigo de Bianco, Garay López (médico argentino e pertencente a uma família
de latifundiários)”484. Bianco interpela-se a respeito dessa dúvida e lança mão de seus
supostos poderes para decifrar o que, de fato aconteceu, entre sua mulher e seu amigo. É em
meio a muitas dúvidas que a relação com o espaço, principalmente com a lhanura, é
sublinhada:
484
MOTA, 2011, p. 29.
245
menos”485. Essa personagem é Sergio Escalante, advogado, que, vez por outra, se projeta
como escritor. Essa irrealidade das coisas fascina Saer e sua escrita está no encalço do
evanescente mundo, como vemos neste trecho de La ocasión:
[...] – es todavía más terrible que en Buenos Aires, dice Garay López, más
terrible que todo lo que usted pueda imaginar, en esos días de enero uno se
siente más abandonado, más perdido, más irreal; si en los días templados ya
la vida parece irrazonable y vacía, en los meses de verano la condición de los
hombres y de las cosas se fragiliza y todo tiende, ligeramente febril y
exhausto, a la aniquilación (SAER, 2003, p. 78).
485
SAER, 2003, p. 57.
486
SAER, 2003, p. 205.
487
“En el así llamado “ciclo de las novelas históricas” de Saer, se suelen agrupar las novelas El entenado (2002),
La ocasión (1988) y Las nubes (2000); tres textos que evocan momentos fundacionales en la historia argentina,
como el descubrimiento y la conquista, la Revolución de Mayo, la inmigración europea y el comienzo del
alambrado en la década de 1870” (LOGIE, 2013, p. 34).
488
MOTA, 2012, p. 87.
246
[...] [e]sa monotonía adormece. Las cosas que, fuera del avanzar del jinete,
pueden ocurrir a menudo por ser propias del lugar, terminan adaptándose a
esa ilusión de repetición, y si la primera vez que suceden atraen la mirada y
aun la curiosidad del viajero, al cabo de cierto tiempo ya se han vuelto más
que familiares y flotan, fantasmáticas, más allá de la experiencia, y, por
momentos, incluso más allá del conocer (SAER, 2000, p. 79).
489
A caravana conduzia alguns enfermos, os chamados loucos, e uma das discussões de Las nubes é que « [...]
Saer deja entrever que la idea de la “normalidad” no es más que un epifenómeno del delirio, y cuestiona una vez
más la frágil consistencia de lo que llamamos “lo real” » (LOGIE, 2013, p. 25).
247
490
COLLOT, 2005, p. 441: “[...] [p]orque a paisagem não é um lugar comum, mas um lugar de trocas onde se
encontram e se confrontam diferentes pontos de vista” (Tradução nossa).
248
o visível. Esses lugares vazios, pouco povoados, dão margem para que a proposta de relação
se emancipe sobre a própria descrição dos elementos da experiência. O próximo espaço que
exploramos é o rio, esse lugar que está contíguo à lhanura e que, muitas vezes, se oferece
como espelho do deserto. É outro espaço quase vazio de elementos e sinuosidades, mas que,
justamente por isso, retém o espectador estreitamente a si. A relação ultrapassa a exploração
dos elementos e se perfaz pelo afã de alcançar um sentido que se esconde além das coisas.
Esse trecho é da introdução de El río sin orillas, ambiente em que Saer defende as
prerrogativas do livro que escreve. Essa falta de movimento do rio condiciona o autor a
procurar imagens que expressem a sua experiência. O rio se apresenta imóvel, regular,
desprovido de sinuosidades aparentes; essa visão provoca o narrador a ultrapassar os limites
do visível, a alcançar aquilo que o horizonte esconde. Mais uma vez, a regularidade é o
combustível que aguça o vidente e que sustenta a investigação do sentido bruto das coisas.
Retomamos, agora, El limonero real, porque esse romance desenha imagens
riquíssimas do rio. A experiência de Wenceslao, quando criança, navegando com seu pai,
retrata um encontro de descobertas e receios entre o menino e o rio. A escuridão e a névoa,
249
[l]a canoa se ha deslizado el último tramo sin necesidad de los remos, uno de
los cuales yace en el fondo de madera. La canoa toca la costa. La niebla
rodea todo, compacta, húmeda y blanca, y ellos dos y la canoa son lo único
que se ve. No se ve ni el agua, como si la canoa y sus dos ocupantes,
sentados uno frente al otro, constituyesen el único centro móvil y corpóreo
flotando indeciso en la nada (SAER, 2002, p.14).
Essa imagem do movimento da canoa em meio à névoa denota a quase ausência do rio, como
“um nada” que se estende abaixo das personagens: “[...] y mira con ansiedad la cara de su
padre para encontrar en ella la explicación de esa niebla blanca que ha borrado lo que ellos
conocían hasta media hora antes como "el río" y "la isla", pero el padre no ve la mirada de
Wenceslao”491. Como defendemos anteriormente, é essa ausência de visibilidade que provoca
e estende essa relação de maior proximidade com o sentido bruto ou com aquilo que se
estende além das coisas.
Essa recordação de infância apresenta-se como uma dobra do próprio presente; ela
prossegue a descrição dos movimentos de Wenceslao na chamada ilha onde vive. Discutimos
a centralidade das recordações na narrativa saeriana no capítulo anterior, mas é interessante
frisar este gesto saeriano: diferentemente da rememoração, que advém de um querer retomar o
passado, a recordação invade a narrativa de primeiro nível. Não há ruptura na trama, mas um
prosseguimento, devido ao manejo primoroso da descrição espacial. A diferença temporal é
sentida posteriormente, porque as analepses saerianas costuram-se perfeitamente à narrativa
primeira.
Em outro episódio de travessia do rio, percebemos que esse mesmo deslizar-se
sobre uma superfície que quase não apresenta saliência, contribui para a sensação de
monotonia que acompanha a viagem. Esse sentimento é equivalente a aquele experimentado
ao se embrenhar pela lhanura, como vemos abaixo:
491
SAER, 2002, p.14.
250
A sincronia dos movimentos ou a ausência deles favorece que os sentidos se enganem e que
se “veja” tudo como uma única e mesma coisa. É aquilo que discutimos anteriormente: esses
espaços da monotonia conduzem o olhar para o sentido bruto das coisas, no projeto de
decifração do pertencimento ao mundo.
O interior do rio apresenta essa regularidade; por outro lado, as suas margens
desvelam singularidades no encontro das águas com a praia; como vemos neste trecho:
[e]n la orilla el río tenía algo de vida. La rama del sauce bajo el cual
permanecía la canoa verde del tío Layo tocaba la superficie del agua y
producía unas arrugas fugaces en la superficie. La sombra del sauce
oscurecía el agua; y al chocar contra el costado de la canoa verde del tío La-
yo la corriente imperceptible se podía percibir en las ondas crespas,
delgadas, que se formaban contra la canoa y se iban alejando de ella como
repetidas y haciéndose cada vez más lisas a medida que se alejaban (SAER,
2002, p. 21).
É interessante relembrar que Saer intitula um de seus livros – citado no início desta seção – de
El río sin orillas, uma forma de destacar a regularidade das coisas ou a falta de limites, de
fronteiras. Nesse livro, o cerne da questão é a relação entre discursos, uma estratégia para
polemizar os limites entre os gêneros ou a proximidade entre os chamados textos ficcionais e
não-ficcionais. Na última citação acima – de El limonero real – a importância é alocada na
pluralidade de coisas que se apresentam no espaço de fronteira. É como se a vida estivesse
restrita a esse local; a variedade de coisas diminui, na medida em que se avança para o interior
do rio.
O rio, como esse espaço da experiência, encadeia sensações múltiplas, tornando-
se, muitas vezes, invisível, regular, e fazendo com que as recordações possam preencher o
espaço da narrativa. Outras vezes, essa invisibilidade do rio acentua as coisas que margeiam
esse espaço: “[...] [s]e queda largo rato indeciso en el hueco de la puerta mirando el sendero
de arena que baja hacia el río invisible. La lluvia endurece la arena, la vuelve férrea y
251
[e]l sol subirá y subirá hasta el mediodía para caer vertical buscando el
centro de las cosas, borrando durante una fracción de segundo las sombras, y
después empezará a declinar no sin antes llevar por el aire la imagen turbia y
ondulante de ríos y esteros y creando en el camino de asfalto que lleva a la
ciudad espejismos de agua (SAER, 2002, p. 32).
O rio como interposto ao encontro com o horizonte pode ser exemplificado, também, por
meio do romance Cicatrices: [...] [d]espués entro en la costanera nueva, y a mi derecha se
expande el río gris, fundiéndose, más ancho, con el cielo, en el horizonte. Cielo y río parecen
la misma superficie, sin ninguna transición”494.
492
SAER, 2002, p. 27.
493
MOTA, 2011, p. 35.
494
SAER, 2003, p. 117.
252
495
BARTHES, 1984, p. 131.
254
percebemos como esse romance privilegia a condução da trama e a riqueza dos detalhes
daquilo que é narrado como proposta da própria história.
Em Cicatrices, o rio margeia o espaço da história, sem se mostrar; as personagens
sentem a sua presença e continuam a sua marcha pela cidade ou pelo campo. Ángel – o
primeiro narrador – dita um encontro quase mudo com o rio; aquilo que é visto não é descrito,
há apenas o gesto de aproximação da personagem: “[…] [c]uando dejaba el diario me daba
unas vueltas por el centro o me iba a ver el río, y si no tenía plata para comer algo volvía a
casa alrededor de las diez y media — hora en que seguro mi madre ya no estaba”496. Sergio
Escalante – o segundo narrador – vê um pouco além, percebe as sinuosidades que o rio
apresenta: “[…] [h]acia el otro lado estaban el puerto, con sus dos diques, paralelos uno al
otro, y más allá el río y todos los riachos que lo entrecruzaban, formando islas bajas en el
medio. La llovizna borraba el horizonte”497. Essa estratégia descritiva é intensificada na
narração do juiz Ernesto López Caray, quando o rio margeia suas andanças pela cidade: “[...]
veo por momentos la refulgencia argéntea del río, en cuya superficie el resplandor gris
pareciera alisar las asperezas que producen la brisa levísima y la llovizna”498. Quando da
aparição do último narrador, o rio apenas margeia o seu percurso: “[...] [a]vanzamos en
dirección contraria al río, hacia la izquierda de los eucaliptus. Ella y la nena vienen detrás.
Puedo sentir el chasquido de sus zapatos contra los pastos”499.
É interessante percebermos como o rio se faz presente na relação espacial das
personagens; mesmo quando não é tocado pelo ver; as outras sensações se incubem de tateá-
lo. Um romance como Cicatrices, no qual a trama se constrói, prioritariamente, no ambiente
da cidade, o rio também pertencente a esse espaço, adentra a história. As personagens
narradoras, embrenhadas num frenético esquema temporal, vez por outra escapam e percebem
o espaço que as rodeia. Nesse gesto de Saer, percebemos a singularidade da imagem do rio
para a saga saeriana: um lugar em que é possível evadir-se do movimento frenético temporal e
compreender, mais pausadamente, a relação do vidente com o visível. É no encalço de revelar
o sentido das coisas que a personagem se fixa no horizonte do mundo. O objetivo é descrever
essa relação, expor os fios de contato que prendem o vidente no visível; como Barbaras
defende:
496
SAER, 2003, p. 10.
497
Ibidem, p. 80.
498
Ibidem, p. 117.
499
SAER, 2003, p. 142.
255
[...] [l]’absence d’extériorité entre la vision et le monde doit donc être saisie
selon toutes ses implications : puisque la vision ne se distingue pas du
monde, le monde ne s’en distingue pas non plus ; l’incarnation, qui fonde
l’identité de la vision au monde, signifie tout autant l’identité du monde à la
chair (BARBARAS, 1991, p. 186)500.
[l]a tierra sin relieves a ras del agua, sin una sola roca, penetrando en el gran
río marrón que prolongaba el mar, la costa desierta, el caserío insignificante,
y, en los puentes inferiores, los inmigrantes arracimados entre bultos
harapientos contemplando como hechizados el borde de lo desconocido,
tratando de adivinar lo que podía haber detrás, con la esperanza de encontrar
todo lo que él, Bianco, yéndolos a buscar a los campos de Piamonte, de
Sicilia o de Calabria, les había prometido, hasta convencerlos de embarcarse,
en una promiscuidad indecible, en tercera clase e incluso en las bodegas,
mientras él viajaba en el puente superior, en un camarote especialmente
preparado, contiguo al del capitán (SAER, 2003, p. 27).
A história, então, se abre e se fecha com as águas: o rio recebe a leva de imigrantes e a chuva
é a consolidação dos projetos, marca o início da integração do imigrante com a nova terra.
O rio está, também, presente em La pesquisa; mais precisamente, na narrativa de
Pichón Garay, aquele que se autonomeia o narrador da história principal: o assassinato das
anciãs em Paris. O rio aparece quando essa personagem se dirige para inspecionar o
manuscrito encontrado nos papéis do defunto Washington Noriega. A passagem pela casa de
sua família, em uma lancha, é o momento de recordação do irmão desaparecido. As águas do
rio são o lugar de procura pelo sentido das coisas, como vemos neste trecho:
500
Tradução nossa: “[...] [a] falta de exterioridade entre a visão e o mundo deve, então, ser compreendida segundo
todas suas implicações: já que a visão não se distingue do mundo, da mesma forma o mundo não se distingue
dela; a encarnação, que funda a identidade da visão no mundo, significa, também, a identidade do mundo na
carne”.
256
[a]penas si ha estado menos caluroso en el medio del río que en las orillas,
pero el desplazamiento de la lancha y la sombra del toldo a rayas gruesas
verdes y blancas, les han permitido aprovechar un vientito fresco. El agua, a
causa del sol que ha estado subiendo, ha cabrilleado en las orillas y todo
alrededor de la lancha que, al internarse en los riachos más estrechos, y al
formar la estela que se desplegaba en ángulos cada vez más abiertos y en
ondas sucesivas, ha ido sacudiendo las plantas acumuladas en las orillas,
helechitos acuáticos, juncos, camalotes y totoras, que forman una transición
inestable y enmarañada, líquida y sólida a la vez, entre la tierra firme y el
agua. Como la distancia entre la ciudad y Rincón Norte no es demasiado
grande, han navegado despacio y dando rodeos por islas y riachos, para no
llegar antes de la hora fijada – las dos y media – con la hija de Washington.
No han podido ver, en todo el cielo, hasta el horizonte visible, ni una sola
nube, ninguna otra presencia aparte del sol árido, centelleante, rodeado de
astillas y manchas en fusión, como si hubiese estado chorreando materia
ígnea a lo largo de su desplazamiento (SAER, 1997, p. 34).
A exuberância na descrição do rio se estende até ao horizonte; as águas são margeadas pelas
árvores que sombreiam a passagem da lancha. O rio é, então, desbravado pela personagem, de
forma que seus limites são descobertos, bem como as sinuosidades de seus braços. Esse
momento de reflexão, que é propiciado pela imagem regular do rio, de encontro com as
particularidades das coisas, encadeia uma profusão de recordações. As minuciosas descrições
retrazem o passado da personagem: Pichón percorre os fios do presente que o conduzem ao
encontro com os anos vividos nas proximidades desse mesmo rio.
É interessante um símile desenvolvido pelo enigmático narrador de La pesquisa,
quando tenta compreender a longevidade das anciãs de Paris. O rio é trazido como forma de
explicação da força inexplicável que preservava a vida das mulheres francesas; como vemos
neste trecho:
O rio é, então, trazido como uma imagem, e o seu sentido sobrepassa à sua acepção de
espaço; ele se descobre como engrenagem entre as coisas, algo que escapa a um olhar rasteiro.
É lindíssimo esse desenho matemático do rio como uma força perpendicular que mantém o
plano em direção ao horizonte, sustentada por uma verticalidade insondável.
257
[...] sabemos que, sendo a visão palpação pelo olhar, é preciso que também
ela se inscreva na ordem do ser que nos desvela, é preciso que aquele que
olha não seja, ele próprio, estranho ao mundo que olha. Uma vez que vejo, é
preciso (como tão bem indica o duplo sentido da palavra) que a visão seja
redobrada por uma visão complementar ou por outra visão: eu mesmo visto
de fora, tal como se outro me visse, instalado no meio do visível, no ato de
considerá-lo de certo lugar (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 131).
copertencimento entre aquele que busca o sentido bruto das coisas e o próprio mundo que o
integra.
O rio é, então, esse lugar em que o horizonte se torna nítido – mais próximo –, se
estende em direção à personagem por esse caminho de águas. É no horizonte que a
personagem busca o sentido encoberto das coisas e, em contrapartida, se percebe como
integrada ao espaço:
Encerramos esta seção com essa explanação sobre o tema do rio, com essa
belíssima imagem saeriana de El río sin orillas, livro que tem por objetivo decifrar esse
espaço. Percebemos como a personagem se sente integrada ao rio e, a partir disso, enceta ver
e sentir sua textura e cor. O processo de percepção das personagens, nesse encontro com o rio,
revela-se, então, como um pensamento espacial bem articulado por Saer. O sentido é, então,
mitigado pela força dessa estrutura, porque “[...] é próprio do visível, dizíamos, ser a
superfície de uma profundidade inesgotável”501.
501
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 139.
259
[d]e nítidos que podían presentarse a la luz del día, bien perfilados y
constantes en el aire transparente, sus contornos se volvían inestables y
porosos, agitados por un hormigueo blancuzco que parecía poner en
evidencia la fuerza irresistible que inducía a la materia a dispersarse para irse
a mezclar, reducida a su más mínima expresión, con ese flujo impalpable y
grisáceo en el que se confundían la tierra y el cielo (SAER, 2000, p. 34).
502
SAER, 2000, p. 7.
260
anuncia o título desta parte – o céu ou o contraste da horizontalidade da lhanura e do rio. Uma
das propriedades das nuvens é o encobrimento das coisas; por isso, a névoa é tratada como
uma de suas progressões. Retomando a citação anterior, Saer enfatiza, também, descrições
minuciosas do céu, como as progressões da luminosidade do sol nas nuvens. O céu aparece,
então, como esse paralelismo da lhanura e do rio e como forma de maior progressão da
imagem do horizonte.
Prosseguindo a teoria de que o título do romance é posto em função das nuvens
que trazem as chuvas, as que antecedem a travessia do deserto e as que possibilitam que as
personagens alcancem as “Tres Acácias” – o hospital ou a casa de saúde –, temos a descrição
da formação das primeiras chuvas nestes termos:
[p]or fin, una tarde, las nubes empezaron a llegar. Como era temprano
todavía, las primeras eran grandes y muy blancas, con los bordes festoneados
en ondas, y cuando pasaban demasiado bajas, su propia sombra las oscurecía
en la cara inferior, visible desde la tierra. Teníamos la esperanza de verlas
ennegrecerse y, partiendo desde el horizonte en una masa gris pizarra
interminable, cubrir al poco rato el cielo entero y derramarse en lluvia. Pero
durante dos días, deshilachadas y mudas, desfilaban en el cielo, viniendo
como creo haberlo dicho desde el sudeste, y desaparecían detrás de nosotros,
en algún punto a nuestras espaldas de un horizonte ya recorrido (SAER,
2000, p. 99).
261
Nessa belíssima imagem, percebemos a chegada das nuvens que cobrem o céu,
esperança de chuva para alívio do calor intenso que se propagava no deserto. A relação das
nuvens com o rio é lembrada pela palavra “onda”, o paralelismo entre o céu e o rio é uma
forma de combater o calor que se exala; podemos dizer que se exala até do texto, tendo em
vista essas minuciosas descrições do doutor Real. As nuvens, porém, apresentam-se mudas,
caladas, porque recobrem o comboio e, em seguida, se escondem, sem se transformarem em
chuva. É somente após o incêndio que elas retornam, esfriando o caminho para o
prosseguimento da travessia da lhanura.
As nuvens que recobrem o céu produzem outro sentimento nas personagens: a
perda de referência de movimento ou a monotonia: “[…] cuando desvié la mirada del caballo
y la posé en el agua celeste, en los pastos grisáceos, viendo la cápsula azul que se cerraba
apoyándose en la línea del horizonte, con nosotros adentro, me di cuenta de que, en ese
mundo nuevo que estaba naciendo ante mis ojos”503. A personagem sente-se presa entre o céu
e a lhanura; o excesso do nada faz com que a personagem perca suas referências de sentido. A
monotonia a invade, quando se perde a certeza de que, efetivamente, se movimenta, como
neste trecho:
503
SAER, 2000, p.82.
262
bíblica. Essa travessia do deserto pode se referir ao “êxodo”504 do povo hebreu pelo deserto,
em busca de Canãa, a terra prometida. Uma nuvem acompanhou essa travessia bíblica – de
dia, como nuvem comum, e, de noite, com aparência de fogo. De determinada forma, o céu é
sempre parâmetro para a travessia do comboio do doutor Real; as nuvens acompanham sua
marcha pelo deserto. Saer é muito ácido em relação aos textos bíblicos, e os utiliza, quase
sempre, com o intuito de desconstrução da ideia do miraculoso. É possível que o título do
romance tenha essa referência, mas com um ingrediente profano, porque utiliza, abertamente,
como referência à travessia, os versos de Virgílio, como vemos neste trecho:
[c]ada una de las vicisitudes de nuestro viaje está relacionada para mí con
algún verso de Virgilio, y aún hasta el día de hoy las sensaciones ásperas de
la travesía y la música delicada y sabia de los versos se penetran mutuamente
en mi memoria y se confunden en un sabor único, que pertenece de un modo
exclusivo a mi propio ser, y que desaparecerá del mundo conmigo cuando yo
desaparezca. Más de una vez me vi a mí mismo atravesando la llanura como
Eneas el mar adverso y desconocido, y una emoción honda me asaltaba al
vislumbrar para mí, en medio del desierto, un destino semejante al de
Palinuro, el piloto que, dejándose sorprender por el sueño, cae al mar y se
pierde para morir abandonado y desnudo en una arena ignorada. Más de
una vez vi, con más nitidez que las cosas espesas y compactas que me
rodeaban, el montoncito anticipado de mis huesos blancos espejear al sol en
algún rincón remoto de la llanura (SAER, 2000, p. 58).
504
Êxodo, segundo livro da Bíblia.
505
SAER, 2000, p. 59.
263
A própria narração encontra como entrave essa névoa, esse encobrimento daquilo que poderia
ser descrito, narrado. A paisagem é, então, maculada e consumida por essa nuvem que se
interpõe ante as coisas. Comprovando esse obstáculo, vemos que Wenceslao sente que a
imagem de seu pai é “mordida” pela névoa, impedindo que ele consiga distinguir
perfeitamente os seus contornos.
O encobrimento das coisas pela névoa é, também, recurso que Saer utiliza para
escapar da exaustão descritiva. Não podendo reter as coisas − nem por meio de apurada
descrição −, a solução é, então, fixar-se naquilo que as encobre ou na impossibilidade de
atravessá-las. Essa é uma das maneiras de, também, ativar a discussão sobre o lugar da ficção,
como já discutimos nesta tese. Por outro lado, a névoa se manifesta, também, como recurso
que estabiliza a própria cena; é como se o movimento fosse congelado – ou se esquecéssemos
dele – e, assim, o foco pudesse interrogar as próprias coisas. A percepção é, então,
complementada pela recordação, como forma de retrazer aquilo que é ocultado pela névoa; o
tempo funciona, então, como modelador do acontecimento. Presente e passado se estruturam
no encalço de remontagem da cena. Exemplo disso é o esforço de Wenceslao para ultrapassar
a névoa pelas rememorações de suas travessias daquele mesmo lugar que conhecia como a
ilha, como vemos neste trecho sobre o seu retorno aos tempos de infância:
bastante rápido como para estar siempre debajo e impedirles caer en el vacío
(SAER, 2002, p. 15).
El limonero real apresenta essa tática de recuos da história, como afirma Premat: “[...]
excluye el avance tradicional de la ficción (el de la cronología), y dramatiza, con los zigzags
que la diégesis contiene, la posibilidad de narrar”506 e, podemos afirmar, sublinha, por meio
de contornos firmes, os limites das coisas.
Podemos sentir a experiência da personagem, porque a narração acompanha o seu
movimento corporal. O olhar da personagem recobre, potencialmente, as coisas, e o tatear do
corpo no mundo desperta-lhe outras sensações. É como se fosse descamando a experiência
por camadas, como se o olhar fosse tentando expandir outras formas de se sentir o mundo.
Saer privilegia o ver, a possibilidade de se recobrir o mundo, enfatizando a aparição das
coisas, como se, antes, tudo estivesse velado ou retido em algum lugar oculto. O olhar é o
grande iluminador das coisas; ele propicia vida ao mundo, que se descobre a partir da
experiência, como discutimos, anteriormente, à luz do pensamento de Merleau-Ponty:
[l]a niebla envuelve la fronda de los árboles, una fronda de plata, mechada
de flores blancas y negras, los árboles que nadie ha plantado nunca y cuyos
troncos negros, resquebrajados, llenos de marcas rugosas, de cortes y de
506
PREMAT, 2002, p. 229.
265
Saer problematiza essa relação com o visível por meio do encobrimento das coisas
pela névoa: aquilo que se encontra velado é redesenhado pela inspeção da personagem. O
copertencimento entre as coisas é sublinhado quando parece que o limite não está bem traçado
ou que há imbricação de uma coisa na outra. A experiência, em Saer, é esse esforço de ver
completamente e, por conseguinte, a certeza de um onipresente distanciamento das coisas. A
aparição das nuvens – nas paisagens saerianas – é, na maioria das vezes, o contraponto do rio
ou da lhanura, como neste trecho de Nadie nada nunca, em que o rio é a referência:
[a] causa de la tormenta, que ennegrece la mañana, el río está como acerado
y tan tranquilo, que la estela que ha venido dejando la canoa verde
permanece, inmutable, en su lugar, mostrando la trayectoria de la canoa.
Puede decirse que no sopla la menor brisa: los árboles, un poco más verdes,
un poco más inmóviles, que medio sumergen la casa, parecen también más
densos y más espesos en el aire ennegrecido. En el cielo bajo nubes gris
humo se acumulan formando cadenas interminables de reborde grueso, como
puntillas de acero (SAER, 2000, p. 35).
[...] [y] por encima de todo, el ciego negro, de un negro reconcentrado, bajo,
al que el resplandor de las luces, elevándose un poco por encima de la
ciudad, no alcanza a iluminar. No se ve, desde luego, una sola estrella, y la
capa de nubes que oculta al firmamento es demasiado oscura y pareja como
para que algún reborde un poco más espeso sobresalga de la negrura
introduciendo en ella algún accidente. Nada (SAER, 1993, p. 18).
266
O céu noturno está, também, bem presente nas descrições saerianas: o céu manifesta a sua
negrura e as nuvens dão forma e contornam essa profusão do nada. Na citação anterior, é
nítida essa função das nuvens como capa do firmamento, contorno daquilo que se apresenta
uma e mesma coisa; são desenhos que deslizam sob o firmamento e frisam a sua existência,
delineando um vazio acima do vidente.
Essa função das nuvens é desvelada quando de sua ausência total no céu; a
personagem sente como que enlevada pela imensidão do nada. A sensação é de completo
abandono, de solidão em meio a uma coisa regular, que duplica o paralelismo do mar ou da
lhanura; como vemos, também, em El entenado:
[a] los pocos días de zarpar, nos internamos en un mar tórrido. Ahí fue
donde empecé a percibir ese cielo ilimitado que nunca más se borraría de mi
vida. El mar lo duplicaba. Las naves, una detrás de otra a distancia regular,
parecían atravesar, lentas, el vacío de una inmensa esfera azulada que de
noche se volvía negra, acribillada en la altura de puntos luminosos. No se
veía un pez, un pájaro, una nube. Todo el mundo conocido reposaba sobre
nuestros recuerdos. Nosotros éramos sus únicos garantes en ese medio liso y
uniforme, de color azul (SAER, 2002, p. 3).
É interessante como essa regularidade faz com que se perda a referência de mundo – como no
trecho anterior –, parece que as únicas coisas que existem são o barco e seus ocupantes. Os
próprios pensamentos da personagem se debatem, em busca de ancoradouro: as recordações
se apresentam como único lastro do mundo vivido; tudo se limitava à regularidade infinita do
mar e do firmamento. É um vazio que se estende em todas as direções e que contamina a
personagem, renegando-a a um sentimento de abandono frente à monotonia espacial.
O céu desempenha essa função de contorno da paisagem e de encaixotamento da
experiência. A partir disso, percebemos, novamente, a monotonia espacial, provocando
sentimento de vazio, de solidão, também, nesse romance:
[p]arecía no ver ni mar ni cielo, sino algo dentro de sí, como un recuerdo
inacabable y lento; o tal vez el vacío del horizonte se instalaba en su interior
y lo dejaba ahí, durante un buen rato, sin parpadear, petrificado sobre el
puente. A mí me trataba con bondad distraída, como si uno de los dos
estuviese ausente (SAER, 2002, p. 3).
[...] [e]l entenado puede leerse como gran metáfora del desvanecimiento del
recuerdo y de la imposibilidad de la representación. Lo que se narra allí es
un cuestionamiento de los medios de conocimiento de la realidad empírica
que se manifiesta entre otras cosas en la disolución de la percepción, una
percepción que aparece negando a su sujeto la posibilidad de acceder a la
experiencia vivida entre los indígenas Colastiné y de aprehender su sentido
como totalidad (LOGIE, 2013, p. 11).
O nosso interesse nesse veio descritivo é destacar que o espaço se apresenta bem
marcado, principalmente, na monotonia da viagem e, também, no encontro com a exuberância
das terras costeadas; como evidencia este trecho:
[d]e esas costas vacías me quedó sobre todo la abundancia de cielo. Más de
una vez me sentí diminuto bajo ese azul dilatado: en la playa amarilla,
éramos como hormigas en el centro de un desierto. Y si ahora que soy un
viejo paso mis días en las ciudades, es porque en ellas la vida es horizontal,
porque las ciudades disimulan el cielo. Allá, de noche, en cambio, dormía-
mos, a la intemperie, casi aplastados por las estrellas. Estaban como al
alcance de la mano y eran grandes, innumerables, sin mucha negrura entre
una y otra, casi chisporroteantes, como si el cielo hubiese sido la pared
acribillada de un volcán en actividad que dejase entrever por sus orificios la
incandescencia interna (SAER, 2002, p. 2).
507
COLLOT, 2011, p. 202: “[...] [a] literatura é, à sua maneira, uma fenomenologia; ela tenta inventar uma
linguagem apta a formular o logos implicado no fenômeno” (Tradução nossa).
270
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando a crítica saeriana, constatamos que seus ensaios – discutidos nesta tese
– defendem a ficção como esse lugar da experiência, de abertura para relações com o mundo.
Apesar de Saer defender a ficção como esse lugar em que o homem pode especular sobre sua
relação com as coisas, a crítica saeriana defende sua afiliação ao objetivismo do nouveau-
roman. Essa aproximação pode estagnar a participação da personagem ou coibir as relações
do vidente e do visível. Seu criterioso gesto descritivo evidencia os olhares atentos das
personagens que buscam acompanhar os movimentos das coisas. A resposta à qual chegamos,
nesta tese, com amparo no conceito de ficção de Saer, é a de que a confirmação desse gesto
estético não pode reduzir a experiência a uma objetivação do mundo, reduzindo a participação
das personagens. Tendo esta tese por objetivo central mostrar a produtividade da relação
vidente-visível em Saer, discutimos como o relevo concedido ao objetivismo estagna a
participação das personagens. Acreditamos que a própria discussão crítica de Saer – em El río
sin orillas e nos dois ensaios mencionados aqui – já legitima ativar a ideia de potencial
relação entre personagem e mundo.
A possibilidade de leitura do espaço saeriano à luz da filosofia de Merleau-Ponty
nasce da prioridade concedida ao ver. Analisando-se eventos nos romances – a relação das
personagens com o mundo –, percebemos como Saer releva esse mistério da percepção.
Enfatiza-se o tocar as coisas pelo olhar, reunir os sentidos como estratégia para decifração do
mundo. Essa estrutura é intermediada pelo narrador de terceira pessoa e esse é um dos pontos
nos quais a crítica se apoia para a defesa do “objetivismo narrativo”. Nesta tese, discutida essa
questão, defendemos que o narrador de Saer é complexo, supera a classificação baseada
apenas na estrutura verbal do texto. Nos romances, ouvem-se as personagens, mesmo quando
a narração se estrutura em terceira pessoa. Essa discussão foi acompanhada por um giro pelo
tema da nossa dissertação de mestrado intitulada A voz poética dos protagonistas: a
(re)construção do real em La ocasión, de Juan José Saer, e em Dom Casmurro, de Machado
de Assis. Nela, estudamos como a estrutura narrativa desconstrói as ideias fechadas de
narrador heterodiegético e homodiegético, respectivamente. Focando na estrutura
narratológica dos romances saerianos, averiguamos a ênfase no narrador de terceira pessoa, ao
mesmo tempo em que se percebe abertura para atuação das personagens. Os recursos
estruturais – como o discurso indireto livre e, principalmente, a focalização interna –
contribuem para que ouçamos a personagem sem nos lembrarmos de que o texto é
intermediado pelo narrador de terceira pessoa. Podemos ver que essa estrutura se repete na
maioria dos romances, estratégia narrativa para que Saer retome sua relação espaço-temporal.
273
508
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 207.
275
fundo que fundamenta a percepção da figura. A transferência dessa relação para a linguagem
é explorada na última filosofia de Merleau-Ponty, mas escapa ao escopo deste estudo, porque
nos detemos na exploração de “conceitos” que legitimam pensar na experiência de reversão
entre o vidente e o mundo. Focamos no tema da “apreensão máxima”, objetivando a descrição
de ideias que fundamentam essa relação, como as de: “visível e invisível”, “vidente-visível”,
“quiasma” e “carne”. Da Ontologia, priorizamos, nesta tese, a relação de reversibilidade que
fundamenta a percepção. Percebemos, principalmente, nas notas de trabalho de O visível e o
invisível, como esse filósofo descreve e acompanha essa relação do visível com o invisível;
nessa parte, a linguagem é o parâmetro utilizado para esclarecer essa interface: a dependência
desses elementos é descrita mais claramente por intermédio da relação entre a palavra e o
“sentido” que a sustenta. Defendemos que a linguagem é o exemplo que articula e desvela a
relação do visível e do invisível ou a interdependência entre esses termos. A filosofia final de
Merleau-Ponty encontra-se melhor reunida no ensaio “O olho e o espírito” e na obra póstuma
O visível e o invisível. O caráter inconcluso desse livro – devido à morte prematura do filósofo
– suscita muitas dúvidas; principalmente no que tange aos limites desses “conceitos”, razão
pela qual o investigador deve, então, ordenar e estabelecer o seu próprio universo
investigativo. Ciente disso, elegemos como tema “a apreensão máxima”, com o objetivo de
descrever a experiência das personagens saerianas.
Os conceitos de quiasma, de carne e de visível-invisível contribuem, aqui, para
decifração da apreensão máxima ou para entendimento da percepção, da experiência. Na
verdade, a decifração é sempre incompleta, porque a relação estabelecida baseia-se na ideia de
transcendência, movimento interno ao próprio jogo. Todos esses conceitos estruturam a
revelação de copertencimento dos corpos. O desejo de apreender por completo o espaço da
experiência denuncia essa relação de corporeidade entre o vidente e o visível. Quando se
inicia a pesquisa do espaço, pela teoria literária, com abordagem do espaço como
representação e como focalização, visamos promover a reunião dos sujeitos da experiência,
em outros termos, pensar o espaço como elemento de integração entre o vidente e o visível. O
espaço como representação sublinha o desejo de se encenar o próprio mundo, enquanto, como
focalização, instaura-se a visão da personagem. Em esforço para se unir essas perspectivas,
recorremos ao pensamento de Merleau-Ponty, na sua vertente mais radical, na sua última
filosofia. O objetivo, então, foi ler as experiências espaciais das personagens saerianas,
destrinchando os desdobramentos dessa relação com o mundo; intentando acompanhar como
as personagens se projetam no mundo por intermédio da fixação naquilo que as ultrapassa, no
276
próprio horizonte. É, então, nas belíssimas imagens saerianas do horizonte que se descobre o
intricado vidente-visível, a comunhão plena da personagem com o mundo.
O espaço de Saer é, então, a própria realização da experiência, com suas mais
intrincadas nuanças. A ênfase descritiva direcionada à vivência das personagens conflui em
uma narrativa altamente espacial, que busca percorrer o mundo por meio das sensações.
Prioriza-se o ver e, além disso, serve-se dele como ferramenta que antecipa os outros sentires:
a partir daquilo que se vê, as outras sensações se juntam e tentam, também, tatear as coisas.
Saer dinamiza o seu espaço por meio de um ir e vir, entre percepção e recordação. Esse
intrincado entre descrição e narração revela a estrutura de seus romances. A percepção das
personagens é desvelada em descrição minuciosa do mundo: quando as minúcias do espaço
esgotam o próprio dizer, as recordações são acionadas como elemento de complementação do
acontecer. É o desejo de busca por sentido que sempre se esvaem que condiciona esse
intercâmbio entre presente e passado. Quando o espaço resiste a esse movimento, a estética do
autotematismo se revela: passa-se do descritivo ao metaficcional. A linguagem busca encobrir
as coisas e, então, revolve-se sobre si mesma. Essa é a estética saeriana, um giro espaço-
temporal até os limites do dizer; ou seja: quando se esgota a possibilidade de se contar, fala-
se, então, sobre a própria ficção.
Nesta tese, abordamos a preocupação ficcional de Saer, principalmente, no
capítulo sobre El río sin orillas, intitulado “Teoria e imaginação em Saer”. O gesto do autor
argentino é, inicialmente, pontuar os limites da ficção. A inesgotabilidade do tema se
manifesta quando se projeta uma interseção entre os lugares do “real” e da ficção. Na verdade,
Saer se interessa por demonstrar a inadequação do conceito de real desvinculado da vivência
ou da relação com o homem509. Daí resulta o conceito de ficção como uma “antropologia
especulativa”; a prioridade é dada à própria experiência. Saer, então, prescreve o seu espaço
como um mundo em relação com as personagens. Constatamos como a filosofia de Merleau-
Ponty atende à demanda de leitura dessa estrutura, da realização da experiência saeriana,
contribuindo para a compreensão da percepção das personagens, na fixação pelo horizonte do
mundo e, principalmente, nesse intrincado entre o mundo das coisas e o das ideias, das
palavras.
509
Sobre a experiência é interessante o que Richir absorve do último pensamento de Merleau-Ponty: « [...] leçon
plus profonde que nous laisse la dernière pensée de Merleau-Ponty: impossible de philosopher autrement qu’au
singulier [...] le singulier est notre seul mode d’accès à l’universel » (RICHIR, 2008, p.189). [Tradução
nossa: “[...] lição mais profunda que nos deixa o último pensamento de Merleau-Ponty: impossível filosofar se
não for no singular [...] o singular é nosso único modo de acesso ao universal”].
277
[l]a nature, mais aussi la vie, ne pourront donc plus être pensée à partir de
particules spatiales ou temporelles ponctuelles, puisque de telles particules
ne la précèdent en rien, mais sont seulement abstraites : telle est la
conclusion qu’impose la pensée des « faits bruts », des brute facts, de
l’existence, qui me présentent le temps en son épaisseur essentielle
(ROBERT, 2008, p. 381)511.
510
Barbaras descreve assim os limites da fenomenologia: « [...] La vérité de la phénoménologie, en tant que
tentative de porter l’expérience muette encore à l’expression pure de son propre sens, consiste en ceci qu’elle
dévoile une part de non-philosophie, un ordre qui résiste à la conscience constituante ; la vérité de la
phénoménologie réside au lieu même de sa limite, dans ce qui motive et arrête à la fois son entreprise de
compréhension : « la tâche dernière de la phénoménologie comme philosophie de la conscience est de
comprendre son rapport avec la non-phénoménologie » (BARBARAS, 1991, p. 99). [Tradução nossa: “[...] A
verdade da fenomenologia, como tentativa de levar a experiência muda ainda à expressão pura de seu próprio
sentido, consiste em que ela revele uma parte de não-filosofia, uma ordem que resiste à consciência constituinte;
a verdade da fenomenologia reside no lugar mesmo de seu limite, naquilo que motiva e retém ao mesmo tempo
seu intento de compreensão: “a tarefa última da fenomenologia como filosofia da consciência é de compreender
sua relação com a não-fenomenologia”].
511
Tradução nossa: A natureza e, também, a vida não mais poderão, portanto, ser pensadas a partir de partículas
espaciais ou temporais pontuais, já que tais partículas não a precedem em nada, mas são somente abstratas: tal é
a conclusão que impõe o pensamento dos “fatos brutos”, dos brute facts, da existência, que me apresentam o
tempo em sua espessura essencial.
278
Esse conceito de nature ultrapassa a separação entre homem e mundo, porque, segundo
estudiosos da obra de Merleau-Ponty, esse termo busca dar conta do próprio conceito de
être512. É um aglomerado do homem com o mundo, uma relação de interdependência entre a
carne do mundo e a “nossa carne”.
Concluímos que foi produtiva a discussão das últimas ideias de Merleau-Ponty no
intuito de se elucidar a relação ontológica do homem com o mundo e sua aplicação para
leitura do espaço de Saer, como uma forma de descrição e compreensão da experiência das
personagens. O mais interessante é a possibilidade de se pensar, integralmente, a manifestação
do espaço saeriano, visando ler esse constante ir e vir na esteira de busca por sentidos. O
singular, em Saer, é a forma como apresenta o acontecimento ou acompanha o fenômeno de
encontro do vidente com o visível. O escritor provoca a possibilidade de se esgotar e delimitar
o espaço ou a própria experiência. É, mesmo, uma dialética da relação com o mundo e, em
contrapartida, uma medição de força com a própria linguagem. As perguntas que Saer tenta
responder são estas: a) é possível dizer o que se experiencia? e b) a linguagem consegue
acompanhar essa revelação das coisas ou ela retém o próprio sentido bruto que se esconde nas
coisas? Nessa segunda questão, sublinha-se a inversão de princípios: tudo, então, partiria da
linguagem. Esse problema com a linguagem deve ser discutido, porque é, também, a
linguagem que possibilita o encadeamento das coisas.
Antes de abordar a questão da linguagem, sublinhamos outra que é discutida na
tese: onde está o momento em Saer? Esse problema decorre do fato de esse escritor argentino
priorizar uma relação com o passado, com um acontecimento já encerrado. Pode-se afirmar
que, em Saer, a experiência é sempre sentida com mais intensidade quando se podem refazer
os caminhos dos sentidos. Merleau-Ponty, por seu turno, fixa-se no acontecimento, no
fenômeno e na relação estabelecida entre vidente e visível. Em Saer, o ponto central é quase a
negação do presente, porque, nele, os sentidos da personagem não conseguem percorrer o
espaço, não conseguem acompanhar o movimento do mundo. O escritor complementa o
sentido das coisas com o onipresente recurso das recordações, em exercício de revanchismo
512
Saint-Aubert discute esse intrincado entre nature e culture em Merleau-Ponty: « [i]ndissociable de ses enjeux
anthropologiques, la philosophie du dernier Merleau-Ponty prête peu à peu à la chair un visage ontologique,
notamment à travers une réflexion sur le concept de nature. La difficulté est grande de discerner les lignes de
différenciation entre nature et culture, entre la chair du monde et notre chair, tant celles-ci échangent leurs
structures dans une co-institution et une expression mutuelle » (SAINT-AUBERT, 2008, p. 252). [Tradução
nossa: “Indissociável de suas questões antropológicas, a filosofia do último Merleau-Ponty empresta, pouco a
pouco, à carne um aspecto ontológico, principalmente por meio de uma reflexão sobre o conceito de natureza. A
dificuldade é grande em discernir as linhas de diferenciação entre natureza e cultura, entre a carne do mundo e
nossa carne, se considerarmos o quanto essas entrecruzam suas estruturas em uma coinstituição e uma expressão
mútua”].
279
acompanhar a sua manifestação ao vidente. É essa profusão das coisas que alavanca defender
o evento, em Saer, como movimento constante entre temporalidades.
Observamos aquilo que Merleau-Ponty defende como contribuição da arte para o
pensamento filosófico na relação das personagens saerianas com o mundo. A experiência
ultrapassa uma única direção ou a exploração de um só veio de sentido e a sinestesia é uma
das ferramentas para se mostrar os vários lados das coisas ou como a relação vidente-visível é
plural. É nessa profusão das coisas que o mundo é revelado; desvinculando-se de um único
sentido, percorre-se a experiência de tal forma que a sua inesgotabilidade projeta recuos para
outras temporalidades. Sublinhamos, então, neste trabalho, a estética saeriana, na análise de
seus romances, como forma de visualizar o espaço como lugar da experiência. A descrição
não é, então, uma forma de redimensionar a largura e o comprimento das coisas, mas de
destacar a sua profundidade. Focamos nesse espaço de intersecção entre o vidente e o visível,
nesse lugar em que as coisas se refazem pela mediação do “olhar”. A distância é que provoca
e mantém a própria experiência, porque a imprecisão exige recorrente exame das coisas. A
experiência é, então, definida por esse processo de ilusão e desilusão com relação a aquilo que
é visualizado.
A importância do capítulo intitulado “O realismo em Saer: vanguardas e
discussões estéticas em La grande e em Lo imborrable” está, também, em retomar questões
sobre o pensamento ficcional, sobre o espaço da representação. Saer defende – por intermédio
da perspectiva teórica da personagem Tomatis – a ficção como uma experimentação do
próprio mundo. O realismo de identificação é desestruturado mediante a construção de um
pensamento da ficção como ativo, como lugar de exposição das variantes da experiência. Essa
ideia condiz perfeitamente com o que Merleau-Ponty defende sobre a percepção, a
necessidade de retorno ao mundo. A discussão vanguardista em La grande – ou do
precisionismo – foi uma maneira de retomar a perspectiva teórica de Saer discutida no
romance. Da mesma forma, Lo imborrable apresenta as personagens debatendo o metatexto
La brisa en el trigo. Saer concede voz crítica a suas personagens como recurso para relevar os
atributos de sua ficção. A importância desse capítulo está na continuidade da discussão do
espaço como representação ou dos estratagemas de seu pensamento ficcional.
O último capítulo desta tese recobre os espaços “do vazio” nos quais se relevam
mais amplamente as experiências das personagens. A lhanura, o rio e o céu se projetam como
lugares em que a personagem perscruta o horizonte, o sentido da experiência. É neles que se
percebe o intricado homem-mundo ou como Saer revela como a experiência ultrapassa a
busca por sentido ou a reversibilidade completa. Percebemos na primazia concedida a esses
281
daquilo que mantém a reversibilidade. Por seu lado, Saer defende, no seu ir e vir entre
descrição e narração, que, talvez, as respostas estejam na própria relação com a linguagem,
nessa busca por nominação do mundo. Esta tese não se fixou no problema da linguagem, mas
esse é um tema que se mostra promissor para a compreensão da própria percepção e dessa
relação com o sentido ainda não articulado.
Contudo, defendemos que esta tese contribui para uma leitura mais dinâmica do
espaço literário por intermédio de vasta bibliografia filosófica pesquisada. O trabalho com a
última filosofia de Merleau-Ponty suscita questões diversas, mas possibilita a discussão de
seus potenciais “conceitos”. Essas ideias merleaupontyanas foram apresentadas e discutidas
com base em textos de reconhecidos pesquisadores e filósofos como Barbaras (1991) e
(2008), Zielinski (2008), Villela-Petit (2008) e Dastur (2008). O material elencado possibilita
não somente acesso à leitura que fazemos nesta tese – do espaço de Saer –, mas ainda
possibilita desvelar essas ideias finais de Merleau-Ponty. Esta tese contribui, então, em duas
frentes: na ativação de um tipo de leitura do espaço e na discussão de ideias da ontologia final
de Merleau-Ponty.
283
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ANEXOS:
Peint en 1885-1887.
92 X 73 cm
293
Musée du Louvre
66 X 80 cm
294
PLANCHE 15
Musée du Louvre
45 X 57 cm