BELLINTANI. História Da Filosofia I - Introdução 7-31pp.
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Introdução
Normalmente, um curso de história, seja história disso ou daqui-
lo, de um povo ou de uma instituição, de um ritual ou de uma pala-
vra, é assunto de historiadores. Os historiadores conhecem os mé-
todos e os critérios dessa ciência, expressa pelo substantivo “forte”
do título: história. O substantivo “fraco”, dependente, por sua vez, do
adjunto adnominal ligado pela preposição “de”, o “isso” ou o “aqui-
lo”, designa o “objeto”, o assunto, que o sujeito historiador deve abor-
dar segundo os padrões científicos, e, portanto, rigorosos, da ciência
histórica. Tudo isso parece muito óbvio. E disso tudo o leigo ou o
Heródoto (484 - 425 a.C)
aprendiz espera apenas que o perito mostre a que veio: que “conte”
a história do objeto, que diga quando e onde ele surgiu, o que acon-
teceu primeiro, o que aconteceu depois, e assim na seqüência, e por
que razões as situações anteriores deram lugar às posteriores. Além
disso, quão mais grandioso é o objeto, mais grandiosa se espera que
seja a sua história, mais cheia de peripécias grandiosas.
Na verdade, o óbvio desse raciocínio encerra uma série de de-
cisões problemáticas. É preciso já ter assumido certa filosofia para
supor a investigação (e é isso que significa historía, na sua matriz
grega) como o debruçar-se de um sujeito sobre um objeto. Uma
investigação pode ser outras coisas. Então, como dizer que algo
como a história da filosofia começa desse ou daquele modo, nessa
ou naquela data, nesse ou naquele lugar, se a própria pergunta, fi-
losófica ela mesma, revela que a filosofia já começou e que, portan-
to, o investigador já chegou atrasado para o que seria uma abor-
10 ◆ História da Filosofia I
intercalar uma época média, entre a sua época e a dos antigos. Es-
ses termos são todos relativos, pois os antigos eram para si mesmos
contemporâneos e seus antigos eram os mais antigos dos antigos.
Também os medievais não eram para si medievais, mas contem-
porâneos. Daqui a mil anos, ou cem, ou dez mil, o contemporâneo
será outro, e a época atual será outro termo médio. Bem como a
origem antiga será interpretada de outra maneira, pois ela não é
um fato do passado do qual se sabe o ser objetivo, mas a medida
da memória que o contemporâneo tem, a cada vez, de si mesmo, e
que, portanto, muda com as vicissitudes dessa memória. Em todo
caso, o que importa é que, quando o contemporâneo reconhece
um antigo, acontece uma experiência histórica original, um reco-
nhecimento de continuidade e descontinuidade, de identidade e
diferença, pois os antigos são sempre antigos de algum moderno,
e os modernos são sempre modernos de algum antigo, e eles não
são, em si mesmos, nem antigos, nem modernos.
Antigo é não apenas o primitivo numa escala de desenvolvi-
mento, mas o primevo, o que acontece no princípio. Archaíos, em
grego, “arcaico”, é o que está no princípio (arché), em sua ambi-
valência, como início cronológico e como princípio ontológico. O
arcaico, como princípio ontológico, deve continuar vigorando no
ser contemporâneo, mesmo que, como início cronológico, já tenha
ficado de há muito para trás.
É um fato da memória contemporânea: os que principiaram a
filosofar, e, portanto, os antigos dessa história, foram os gregos,
embora seja um fato dessa mesma memória que qualquer preten-
são de reivindicar primazia para os gregos em algum domínio não
deva ser hipostasiada, isto é, considerada um fato só necessário, li-
vre do acaso e da contingência próprios da história. A necessidade
desse fato deve incluir tanto o que pode ser explicado, justificado,
quanto o que resta fato, mesmo quando nenhuma explicação pos-
sa mais ser alcançada. Em última instância, a razão para o advento
da filosofia não pode ser nada alheia à própria filosofia, embora ra-
zões de toda ordem, políticas, sociais, econômicas etc. concorram
para a efetividade do seu acontecimento. E, em todas as épocas da
filosofia, é preciso que aconteça seu momento arcaico para que a
filosofia aconteça.
12 ◆ História da Filosofia I
como resposta que Medéia tinha sido raptada, e lhes foi dito ainda que
eles, que agora pediam reparação a outros, não a tinham concedido
nem devolvido a mulher raptada, apesar das reclamações dos ofendidos.
(4) Até aí se tratava apenas de raptos de ambos os lados. Mas depois
disso, segundo os persas, os grandes culpados foram os helenos; com
efeito, eles invadiram a Ásia antes de os persas terem atacado a Euro-
pa. Raptar mulheres, diziam os persas, é uma injustiça dos homens, mas
querer obstinadamente vingar o rapto é insensatez; os homens pruden-
tes não dão importância alguma a mulheres raptadas, pois obviamente
elas nunca teriam sido raptadas se não quisessem. Os próprios asiáticos,
dizem os persas, não se preocupam de modo algum com o rapto de mu-
lheres, mas os helenos, por causa de uma mulher lacedemônia, tinham
organizado uma grande expedição, tinham vindo até a Ásia e haviam
destruído o poderio de Príamos. Depois disso eles passaram a conside-
rar o mundo helênico seu inimigo. De fato, os persas pretendem que a
Ásia inteira e todos os povos bárbaros seus habitantes lhes pertençam; a
Europa e o mundo helênico são para eles uma região à parte.
Para os egípcios, Héfaistos era filho do Nilo, e com ele começou a filoso-
fia, sendo os sacerdotes e profetas seus principais expoentes. Héfaistos
teria vivido 48.863 anos antes de Alexandre, o Macedônio; (2) Nesse in-
tervalo ocorreram 373 eclipses do sol e 832 eclipses da lua.
Quanto aos Magos, sua atividade teve início com Zoroastros, o Persa,
5.000 anos antes da queda de Tróia, de conformidade com o platônico
Hermôdoros em sua obra Da Matemática; entretanto o lídio Xantos cal-
cula o decurso de 6.000 anos entre a época de Zoroastros e a expedição
de Xerxes, e após Zoroastros ele enumera uma longa sucessão de Ma-
gos, cujos nomes seriam Ostanas, Astrâmpsicos, Gobrias e Pasatas, até a
conquista da Pérsia por Alexandre, o Grande.
(3) Esses autores ignoram que os feitos atribuídos aos bárbaros perten-
cem aos helenos, com os quais não somente a filosofia, mas a própria
raça humana começou – por exemplo, os atenienses reivindicam para
a sua cidade a condição de pátria de Musaios, e os tebanos fazem o
mesmo em relação a Linos. Dizia-se que Musaios, filho de Êumolpos, foi
o primeiro a compor uma Teogonia e uma Esfera, e sustentou que todas
as coisas procediam da unidade e revertiam a ela. Musaios teria morrido
Falero é um bairro de Atenas. em Fáleron, e seu epitáfio era o seguinte:
26 ◆ História da Filosofia I
(4) Dizia-se que Linos era filho de Hermes e da Musa Urania e que teria
composto um poema sobre a cosmogonia, o curso do sol e da lua e a
gênese dos animais e das plantas; o início desse poema é o seguinte:
Anaxagoras aproveitou essa idéia quando disse que todas as coisas eram
originariamente indistintas, até que veio o Espírito e as organizou. Linos
morreu em Êuboia, atingido por uma flecha de Apolo, e seu epitáfio é
o seguinte:
“Este chão recebeu o tebano Lino morto, filho da Musa Urania belamen-
te coroada.”
Esse milênio de história, por sua vez, deve ser também subdi-
vidido para efeitos didáticos e com as mesmas ressalvas. O seu
primeiro período é o chamado pré-socrático, que vai de Tales a
Demócrito, que, aliás, era mais jovem que Sócrates, mas pensava
como os de antes. Para os filósofos desse período, trata-se acima
de tudo de falar sobre a phýsis, traduzida, na medida do possí-
vel, por “natureza”: a obra-prima de cada um deles se intitula Perì
Phýseos, “Acerca da Natureza”. O segundo período, obviamente,
como o próprio nome do anterior indica, deve começar com Só-
crates. Sócrates, no entanto, deve ser pensado como figura possível
somente no bojo do movimento sofístico, o qual, por sua vez, é
uma reação ao pensamento pré-socrático, que ora o nega, ora o
radicaliza até as conseqüências mais paradoxais. Os sofistas inau-
guram um período “antropológico”, por oposição ao “físico” an-
terior, um período em que pesava exatamente a diferença entre
phýsis e nómos, “natureza” e “lei (convenção)”, a irredutibilidade
da segunda – que é o que importa em se tratando de fazer política
– à primeira, de quem os primeiros filósofos esperavam que ema-
nassem as leis. Sócrates consiste numa guinada descontínua sobre
o fio de continuidade da sofística, assim como a filosofia platônica
o é em relação a Sócrates, e a aristotélica, frente a Platão, pois a so-
fística continuou para além de Sócrates, e o socratismo, para além
de Platão (há várias outras escolas socráticas, contemporâneas da
Academia, ditas, em função da preferência por Platão e Aristó-
teles, socráticas-menores, germes de todas as escolas do período
helenístico imediatamente posterior a Aristóteles), e o platonismo
continuou para além de Aristóteles (a Academia continua existin-
do paralelamente ao Liceu de Aristóteles por séculos, e determi-
nou boa parte do pensamento antigo em sua fase final).
Pode-se então reunir os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles
num único período, que a rigor deve ser subdivido em quatro para
resguardar todas as diferenças, como os pré-socráticos também se
subdividem em os do século sexto e os do quinto, e os da Jônia e
os da Itália. Um terceiro período, que compreende toda a filosofia
após Aristóteles até o final da Antigüidade, é o helenístico. Hele-
nismo também é um termo que fala por si: o “-ismo” do heleno, que
só pode ocorrer num momento maduro e senil da civilização gre-
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