BELLINTANI. História Da Filosofia I - Introdução 7-31pp.

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Apresentação

A disciplina História da Filosofia I (FIL 5601) é a primeira de


uma série de quatro disciplinas, que correspondem respectivamente
às quatro épocas em que a história ocidental se subdivide: antiga,
medieval, moderna e contemporânea.
Enquanto a maior parte do currículo está disposta segundo o crité-
rio temático das grandes áreas do corpo filosófico (metafísica, estéti-
ca, epistemologia, lógica, política, ética...), essas disciplinas de histó-
ria seguem o critério cronológico, com o objetivo de complementar a
visão mais monográfica daquelas (exigida pela própria natureza do
estudo filosófico) com uma visão mais extensiva e horizontal (embo-
ra, obviamente, não exaustiva, mesmo nessa superfície), de modo a
que o aluno saiba identificar os principais filósofos de cada época, as
principais correntes e escolas, os principais temas, querelas e dispu-
tas, bem como dissertar minimamente sobre o essencial de cada um.
Essa série é naturalmente panorâmica e, embora extremamente útil
para fins didáticos, deve ser compensada noutra ocasião com uma
abordagem mais fina dos detalhes, até porque as épocas se interpe-
netram num movimento complexo, cheio de rupturas e atavismos, e
toda decisão de secioná-la aqui ou ali, de eleger esse “principal” ou
aquele “essencial” permanece filosoficamente questionável.
No caso da História da Filosofia I, que é, portanto, história da
filosofia antiga, trata-se do período em que a filosofia “nasce” com os
gregos, em solo propício ao questionamento, à perscrutação livre e ao
debate acerca da realidade, e enquanto perdura certo elemento espi-
ritual e material próprio ao mundo pagão grego, seja sob o império
alexandrino, seja sob o romano, não obstante toda a fase final desse
período seja marcada pelo declínio desse elemento em favor da visão
de realidade característica do próximo, a qual transforma a herança
moribunda e assim a conserva para a posteridade. A pretexto de
simples marcação cronológica, são tomadas duas datas para indicar
o início e o fim desse período, respectivamente:
1) a acmé (o auge da vida intelectual de um filósofo) de Tales de
Mileto, o mais antigo dos filósofos gregos, com a previsão de
um eclipse em 585 a.C., e
2) o fechamento da escola filosófica de Atenas pelo então impera-
dor romano, Justiniano, em 529 d.C.
Nesse período de mais de um milênio, muitos cortes seriam possí-
veis. Um, bastante enxuto para que caiba em um semestre letivo, é o
aqui proposto em cinco capítulos:
1) Pré-socráticos;
2) Os sofistas e Sócrates;
3) A metafísica clássica: Platão e Aristóteles;
4) As filosofias do helenismo: estoicismo, epicurismo e ceticismo;
5) O neoplatonismo.
O estudo da história da filosofia interessa sobremaneira ao (futuro)
professor de filosofia do ensino médio, pois fornece um fio condutor,
o mais tradicional de todos, o cronológico, para seus próprios cursos
nas escolas. Embora tradicional, costuma ser bem sucedido, se bem
ministrado. Ser bem ministrado não é outra coisa senão aproveitar
o ensejo propiciado pelo esquema cronológico de falar sobre determi-
nado filósofo numa aula específica e explicar com clareza suas idéias
principais. As idéias filosóficas nunca são ultrapassadas totalmente;
alguma coisa sempre resta atual. Por isso, a simples explicação do
conteúdo do tópico filosófico já é capaz de despertar o aluno para
o reconhecimento de sua atualidade. E uma efetiva experiência de
questões filosóficas costuma ser o mais eficaz em educação, quando
se trata de não menos tradicionais valores como ensinar responsa-
bilidade, autonomia, cidadania, senso crítico e transformador, pois
atua na raiz de toda transformação, já que ver o ser por outra pers-
pectiva, somente isso, é outro modo de ser.

Luís Felipe Bellintani Ribeiro


Introdução ◆ 9

Introdução
Normalmente, um curso de história, seja história disso ou daqui-
lo, de um povo ou de uma instituição, de um ritual ou de uma pala-
vra, é assunto de historiadores. Os historiadores conhecem os mé-
todos e os critérios dessa ciência, expressa pelo substantivo “forte”
do título: história. O substantivo “fraco”, dependente, por sua vez, do
adjunto adnominal ligado pela preposição “de”, o “isso” ou o “aqui-
lo”, designa o “objeto”, o assunto, que o sujeito historiador deve abor-
dar segundo os padrões científicos, e, portanto, rigorosos, da ciência
histórica. Tudo isso parece muito óbvio. E disso tudo o leigo ou o
Heródoto (484 - 425 a.C)
aprendiz espera apenas que o perito mostre a que veio: que “conte”
a história do objeto, que diga quando e onde ele surgiu, o que acon-
teceu primeiro, o que aconteceu depois, e assim na seqüência, e por
que razões as situações anteriores deram lugar às posteriores. Além
disso, quão mais grandioso é o objeto, mais grandiosa se espera que
seja a sua história, mais cheia de peripécias grandiosas.
Na verdade, o óbvio desse raciocínio encerra uma série de de-
cisões problemáticas. É preciso já ter assumido certa filosofia para
supor a investigação (e é isso que significa historía, na sua matriz
grega) como o debruçar-se de um sujeito sobre um objeto. Uma
investigação pode ser outras coisas. Então, como dizer que algo
como a história da filosofia começa desse ou daquele modo, nessa
ou naquela data, nesse ou naquele lugar, se a própria pergunta, fi-
losófica ela mesma, revela que a filosofia já começou e que, portan-
to, o investigador já chegou atrasado para o que seria uma abor-
10 ◆ História da Filosofia I

dagem exterior e, portanto, objetiva? Se toda história da filosofia


pressupõe uma filosofia da história, é preciso que, no caso da his-
tória da filosofia, o adjunto adnominal, a filosofia, reivindique uma
primazia sobre o substantivo em torno do qual orbita, a história.
A pergunta “quando nasce a filosofia?”, que todo historiador da
filosofia precisa ter respondido, exige que se responda a essa outra:
“o que é a filosofia?”. Mas a filosofia nasceu como exatamente o
exercício de perguntar “o que é isso ou aquilo?”, o que é a essên-
cia de cada coisa. A essência de cada coisa está em seu nascimento,
por que a essência é exatamente aquilo antes do que a coisa não
é e a partir do que a coisa já é. Por isso todo historiador da filo-
sofia já filosofou de alguma maneira, porque já assumiu, implícita
ou explicitamente, uma decisão ontológica, isto é, quanto ao ser da
coisa em questão. É preciso que a pergunta pela origem da filosofia
já pertença à história da filosofia, à história disso que é exatamente
questionamento da origem. A investigação filosófica da história da
filosofia, portanto, nunca será da mesma ordem daquela ciência que
consegue determinar o objeto e apartá-lo do sujeito, porque nunca
conseguirá evitar essa circularidade original: aquilo que se busca já
chegou antes como o próprio propiciador da busca. Ademais, a ne-
gatividade do não-ser implicado em todo vir-a-ser da origem impe-
de que a investigação seja puramente “positiva”, isto é, relativa aos
fatos, ao que se apresenta de modo inconteste, independentemente
das interpretações que admitem coisas que não são manifestas a to-
dos os seres sensatos, se é que existem fatos dessa natureza.
Outro problema é que a história da filosofia em questão seja
história da filosofia antiga. Nesse caso não apenas já se respondeu
à questão sobre o ser da filosofia como já se subdividiu o conteú-
do do que seria sua história. Em todo caso, se a etapa “antiga” de
uma história é sempre a primeira, então sobre a história antiga,
mais do que sobre a de outra etapa qualquer, pesa a necessidade de
determinar a essência de seu objeto, pois só ela tem atrás de si não
apenas outra etapa de um mesmo contínuo, já reconhecido como
tal e assegurado, mas o próprio outro, o próprio não-ser de antes
do nascimento, desde o qual é uma irrupção descontínua.
Pelo “antigo” se segue também que há um moderno, que pode
se distinguir de um contemporâneo propriamente dito, e que pode
Introdução ◆ 11

intercalar uma época média, entre a sua época e a dos antigos. Es-
ses termos são todos relativos, pois os antigos eram para si mesmos
contemporâneos e seus antigos eram os mais antigos dos antigos.
Também os medievais não eram para si medievais, mas contem-
porâneos. Daqui a mil anos, ou cem, ou dez mil, o contemporâneo
será outro, e a época atual será outro termo médio. Bem como a
origem antiga será interpretada de outra maneira, pois ela não é
um fato do passado do qual se sabe o ser objetivo, mas a medida
da memória que o contemporâneo tem, a cada vez, de si mesmo, e
que, portanto, muda com as vicissitudes dessa memória. Em todo
caso, o que importa é que, quando o contemporâneo reconhece
um antigo, acontece uma experiência histórica original, um reco-
nhecimento de continuidade e descontinuidade, de identidade e
diferença, pois os antigos são sempre antigos de algum moderno,
e os modernos são sempre modernos de algum antigo, e eles não
são, em si mesmos, nem antigos, nem modernos.
Antigo é não apenas o primitivo numa escala de desenvolvi-
mento, mas o primevo, o que acontece no princípio. Archaíos, em
grego, “arcaico”, é o que está no princípio (arché), em sua ambi-
valência, como início cronológico e como princípio ontológico. O
arcaico, como princípio ontológico, deve continuar vigorando no
ser contemporâneo, mesmo que, como início cronológico, já tenha
ficado de há muito para trás.
É um fato da memória contemporânea: os que principiaram a
filosofar, e, portanto, os antigos dessa história, foram os gregos,
embora seja um fato dessa mesma memória que qualquer preten-
são de reivindicar primazia para os gregos em algum domínio não
deva ser hipostasiada, isto é, considerada um fato só necessário, li-
vre do acaso e da contingência próprios da história. A necessidade
desse fato deve incluir tanto o que pode ser explicado, justificado,
quanto o que resta fato, mesmo quando nenhuma explicação pos-
sa mais ser alcançada. Em última instância, a razão para o advento
da filosofia não pode ser nada alheia à própria filosofia, embora ra-
zões de toda ordem, políticas, sociais, econômicas etc. concorram
para a efetividade do seu acontecimento. E, em todas as épocas da
filosofia, é preciso que aconteça seu momento arcaico para que a
filosofia aconteça.
12 ◆ História da Filosofia I

A localização privilegiada dos gregos na história da filosofia é


uma construção artificial, não se impõe por necessidade natural.
Não há nenhum caráter étnico nesse privilégio. Sequer ficou de-
cidido que fazer filosofia é um signo de qualquer superioridade.
Pode ser até o contrário, que a filosofia seja apenas um modo res-
trito de algo muito mais amplo, a ponto de incluir toda huma-
nidade: pensamento, cultura, seja lá o que for, e que esse modo
determinado de pensar tem suas possibilidades e suas limitações,
que não é em si nem um bem, nem um mal, e que, inclusive, se é
enfatizado seu lado execrável em detrimento de seu lado elogiável,
torna-se execrável, antes que elogiável.
Far-se-ia mais por outras culturas e outros pensamentos que
não os gregos nomeando isso que corresponde a sua cultura e seu
pensamento com os nomes respectivos de suas línguas. Mas phi-
losophía é um nome grego. É possível que ninguém nunca consiga
determinar em que consiste a unidade que esse vocábulo pretende
evocar. Mas os gregos pela primeira vez nomearam, com nomes
de sua língua comum, uma realização ímpar e inaudita, como se a
compreendessem bem. O vocábulo passou para o latim, e depois
para todas as línguas européias. A relação das línguas posteriores
para com ele é sempre de outra ordem, é como a relação do her-
deiro frente ao que lega. E que tende a ficar mais erudita e menos
imediata conforme o aumento do fardo da herança, que a essa al-
tura, diga-se de passagem, já está assaz pesado.
Ora, se mesmo em grego é difícil encontrar a unidade real pre-
tendida pelo nome philosophía, seria exagerado admitir a fortiori
uma unidade da Europa e do Ocidente, pelo fato de o nome ter
se mantido o mesmo nas línguas européias e de ter se mantido a
consciência de que sua abordagem começa pela consideração de
que ele é um nome grego. Mas, do mínimo de unidade que res-
ta, pelo fato da simples pretensão de unidade, é possível alinhavar
um mito, por cuja simplificação (tipificação) característica não se
deixa passar despercebida uma diferença digna de relevo. A esse
propósito, vale citar a seguinte passagem de Heródoto (História.
Tradução: Mário da Gama Kury, Brasília: UNB, 1985):
Introdução ◆ 13

(1) Os resultados das investigações de Herôdotos de Halicarnassos são


apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se
apague entre os homens com o passar do tempo, e para que os feitos
maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de
ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam. Os
doutos dizem que os fenícios foram a causa da desavença. Os fenícios,
segundo afirmam os persas, chegaram ao nosso mar vindos do chama-
do mar Erítraios e, estabelecendo-se no território que agora ocupam,
começaram imediatamente a empreender longas viagens. Entre outros
lugares até onde levaram mercadorias egípcias e assírias eles chegaram
a Argos; naquela época Argos se destacava em tudo na região atual-
mente chamada Hélade. Então os fenícios vieram até Argos e lá descar-
regaram suas mercadorias. No quinto ou sexto dia após a sua chegada,
quando sua carga já estava quase toda vendida, veio à orla marítima,
entre muitas outras mulheres, a própria filha do rei; de acordo com os
relatos tanto dos persas quanto dos helenos, seu nome era Io, a filha de
Ínacos. As mulheres ficaram nas proximidades da popa da nau, e en-
quanto elas barganhavam os produtos que lhes interessavam, os fení-
cios se animaram uns aos outros para a tentativa, e correram em sua
direção com o objetivo de agarrá-las. A maior parte das mulheres esca-
pou, mas Io e algumas outras foram alcançadas; os fenícios as arrastaram
para a nau e partiram no rumo do Egito. (2) E assim Io chegou ao Egito,
segundo dizem os persas (mas não os helenos), e esta, em sua opinião,
foi a primeira ofensa cometida. Depois disso, de acordo com sua versão,
alguns helenos, cujos nomes eles não sabem dizer, desembarcaram em
Tiro, na Fenícia, e raptaram Europe, a filha do rei (esses helenos deveriam
ser cretenses). Até esse ponto as ofensas se compensavam, mas depois
disso, dizem eles, os helenos foram culpados pela segunda ofensa. Eles
navegaram em uma nau longa até Aia, na Colquis, e o rio Fásis; depois
de concluir os negócios para os quais tinham vindo eles raptaram Me-
déia, a filha do rei. Quando o rei dos colquídios mandou um arauto para
pedir reparação pelo rapto e a restituição de sua filha, os helenos res-
ponderam que lhes tinha sido negada a reparação pelo rapto da argiva
Io, e, portanto, nada concederiam aos colquídios. (3) Então, dizem eles,
na segunda geração depois desses fatos, Alêxandros, filho de Príamos,
tendo ouvido essa história, teve a idéia de obter para si mesmo uma
esposa na Hélade mediante rapto, inteiramente convencido de que, da
mesma forma que os helenos não haviam oferecido reparação, ele tam-
bém não a ofereceria. Assim, ele raptou Helena. Os helenos resolveram
primeiro enviar mensageiros para pedir a restituição de Helena e uma
reparação pelo rapto; quando, porém, essa proposta foi feita, ouviram
14 ◆ História da Filosofia I

como resposta que Medéia tinha sido raptada, e lhes foi dito ainda que
eles, que agora pediam reparação a outros, não a tinham concedido
nem devolvido a mulher raptada, apesar das reclamações dos ofendidos.
(4) Até aí se tratava apenas de raptos de ambos os lados. Mas depois
disso, segundo os persas, os grandes culpados foram os helenos; com
efeito, eles invadiram a Ásia antes de os persas terem atacado a Euro-
pa. Raptar mulheres, diziam os persas, é uma injustiça dos homens, mas
querer obstinadamente vingar o rapto é insensatez; os homens pruden-
tes não dão importância alguma a mulheres raptadas, pois obviamente
elas nunca teriam sido raptadas se não quisessem. Os próprios asiáticos,
dizem os persas, não se preocupam de modo algum com o rapto de mu-
lheres, mas os helenos, por causa de uma mulher lacedemônia, tinham
organizado uma grande expedição, tinham vindo até a Ásia e haviam
destruído o poderio de Príamos. Depois disso eles passaram a conside-
rar o mundo helênico seu inimigo. De fato, os persas pretendem que a
Ásia inteira e todos os povos bárbaros seus habitantes lhes pertençam; a
Europa e o mundo helênico são para eles uma região à parte.

A guerra de Tróia, fato e mito inaugurais da consciência his-


tórica dos gregos, porque assunto do primeiro poema em língua Triumphant Achilles in
Achilleion. Afresco do fim do
grega, a Ilíada, de Homero, trata, segundo a versão relatada, mas século XIX
não endossada, por Heródoto, de uma
oposição de continentes, cheia de prece-
dentes, embora para as medidas hodiernas
mais pareça uma querela local, intestina, de
uma civilização que floresceu em torno do
Mediterrâneo. A consciência da diferença
entre grego e bárbaro, que está na base da
diferença entre Europa e Ásia, entre o leste
da aurora e o oeste do ocaso, encerra uma ambigüidade. De um
lado, parece expressão de mais um etnocentrismo ingênuo. Mas,
na verdade, pode ser também a relativização desse etnocentrismo,
pela consideração de si e do outro como exemplares autofundados
e parelhos de uma humanidade mais genérica. Vale aqui a afirma-
ção de Hannah Arendt: “a imparcialidade veio ao mundo com Ho-
mero”. E isso precisamente porque os dois exércitos confrontados ARENDT, H. Le concept
d’histoire in la crise de la culture.
recebem cotas idênticas de dignidade. Saber que a visão que se tem Tradução francesa: P. Lévy,
do mundo é só uma visão parcial é condição para que se coloque Paris: Gallimard, 1972, p. 70)
a pergunta: o que é o mundo em si mesmo? Doravante a perspec-
tiva parcial dessa tradição consistirá em buscar o em-si universal
Introdução ◆ 15

ou em recusar conscientemente sua busca. No rastro desse projeto,


surge a filosofia, não como um traço cultural, ao lado de outros
tantos, da tradição ocidental, mas como o traço por excelência que
lhe confere a ocidentalidade, um tipo específico de pensamento,
que compreende a totalidade do ser de um modo específico. O es-
clarecimento dessa especificidade, por enquanto apenas sugerida,
é, obviamente, o ponto mais importante de todo o debate. Isso será
feito mais adiante.
Se é questão de compreensão, a filosofia é um acontecimento
espiritual, e, como tal, não está atrelada a nenhum momento e a
nenhum lugar, mas à sua realização efetiva em qualquer tempo e
qualquer lugar. Por uma acepção abrangente de filosofia, o estado
de espírito que consiste em problematizar o ser daquilo que é, em
não simplesmente ser, mas dar-se conta desse ser, deve ser comum a
todas as épocas e lugares. Suas raízes devem remontar ao paleolítico
mais remoto, ao momento do domínio do fogo, ao momento em
que uma consciência do presente pela primeira vez projetou o futu-
ro e pôs mãos à obra em sua execução. Como fato puro, este perma-
nece no terreno do mito. Mas, do primeiro ato antropóide do último
pitecantropo completamente selvagem, até a assunção explícita da
tarefa de elaboração teórica do problema do ser, vai uma história.
O desenvolvimento encerrado nessa história não garante, por
si, que siga qualquer fio condutor previamente dado, nem que o
sentido possa ser avaliado como pendor do pior para o melhor
ou vice-versa, como progresso ou corrupção da origem. Se há um
nexo de necessidade ligando os acontecimentos, ele se dá de modo
imanente, e nunca se deixa calcular previamente. Cada aconte-
cimento acontece livre de amarras metafísicas. O nexo de neces-
sidade deve incluir a gratuidade do fortuito, quando o jazer do
fato se diz necessário por sua simples efetividade, pois nenhuma
contabilidade da graça e da desgraça contida em cada aconteci-
mento chegará a resultado que permita estimá-lo ou deplorá-lo, e,
conseqüentemente, derivá-lo de uma teleologia otimista ou pes-
simista. O avançar da história da filosofia parece seguir no senti-
do do abandono paulatino da ingenuidade das primeiras posições
em favor de uma autovigilância crescente. A história da filosofia
já constatou até que a pretensão de autovigilância contínua é de
16 ◆ História da Filosofia I

uma extrema ingenuidade. Importante é notar que toda época, por


mais esclarecida que seja, sempre se enraíza em um solo encober-
to a ela mesma. Quando os pressupostos velados de uma época
são revelados, o desencantamento produzido pelo distanciamento
leva ao irromper de outra época, fundada certamente no solo de
sua “ingenuidade” própria.
Colocar os gregos na origem da história da filosofia é, portan-
to, uma decisão “poética”, isto é, de quem propõe um mito, que
visa à produção de imagens exemplares, capazes de assinalar di-
ferenças separáveis, as quais, nas coisas, ocorrem mais ou menos
misturadas. Esse mito não precisa ser a exaltação do fundador
de um grande feito, como tampouco a execração da obra de um
malfeitor. Talvez se assemelhe mais a uma narrativa épica de um
enredo trágico, o enredo da passagem da atitude natural da cons-
ciência natural, que se expressa no solo de uma total aderência
dessa consciência ao seu conteúdo, com todas as suas conseqüên-
cias benfazejas: espontaneidade, boa consciência frente aos valores
da cultura, religiosidade autêntica, vigência da verdade, para ou-
tra atitude, nascida do solo de uma cisão, de uma perda, a perda
do imediato do sentido, atitude intermediada pela arte, artificial,
seguida pelo corolário de seus perigos: perda da espontaneidade,
desconfiança dos valores, desconfiança da religião, desconfiança
da verdade. Esse enredo certamente já foi encenado antes e depois
da Grécia. Cada indivíduo mesmo, que se dedica à filosofia, deve
encená-lo à sua vez. O termo philósophos, “amigo do saber”, para
os pitagóricos designa: o aprendiz que não sabe, que só no final
do aprendizado será sábio. Para Platão, a filosofia, na condição de
“amor à sabedoria”, tem a condição de todo o amor: não é aquilo
que ama: ama o belo e o bom precisamente porque não é bela nem
boa; se já fosse, não precisaria amar. A filosofia surge quando os
sábios de então: poetas, sacerdotes, adivinhos, reis, legisladores,
cedem espaço para os que se reconheciam não-sábios e assim jus-
tificavam que buscassem a sabedoria. A ignorância é o começo da
filosofia, a sabedoria e só o fim, alcançável e alcançado, ou não. A
esse propósito diz Aristóteles (Metafísica I, 2 982b 19-20):
“(...) foi para fugir da ignorância que eles (os homens)
filosofaram (...)”
Introdução ◆ 17

O mesmo Aristóteles, embora apresente o grego Tales como pri-


meiro filósofo, fala do princípio da filosofia como um passo de
uma história que a rigor é dada a “todos os homens” (A Meta-
física de Aristóteles começa precisamente com a frase “todos os
homens, por natureza, desejam saber”). O mesmo Aristóteles, ao
caracterizar a contemplação, a theoría própria do estágio mais alto
do saber, o da epistéme e, mais ainda, o da próte epistéme, da “ciên-
cia” e da “ciência primeira”, se refere ao Egito como o lugar em que
Tela de Rembrant, 1653: primeiro uma casta de sacerdotes pôde se dedicar à investigação
Aristóteles e o Busto de Homero. da verdade livre dos aborrecimentos da vida prática, ao encargo de
Metropolitan Museum of Arts -
Nova Iorque. outros homens (Metafísica, I, 1 981b 20-25):
Daí que, constituídas todas essas artes, foram descobertas ciências das
que não são nem relativas ao prazer nem às necessidades, e primeiro
nos lugares em que primeiro os homens dispuseram de tempo livre. Por
isso as artes matemáticas foram constituídas no Egito, pois lá uma casta
de sacerdotes desfrutava de tempo livre.

O mesmo Aristóteles, quando discute os temas filosóficos com


seus predecessores desde Tales, também considera as opiniões dos
poetas mais antigos, admitindo que as palavras poéticas são dota-
das de significado filosófico. O mesmo Aristóteles, quando fala do
princípio da filosofia, ressalta as identidades, mais do que as dife-
renças, entre essa forma de saber nascente e aquela que, em tese,
lhe antecedeu, a do mito (Metafísica, I, 2 982b 12-19):
Porque se espantaram e admiraram, os homens, tanto agora quanto nos
primórdios, principiaram a filosofar; no princípio admirando as mais pró-
ximas das coisas estranhas, em seguida, prosseguindo pouco a pouco, e
se vendo em aporias quanto a coisas maiores, como as fases da lua, do
sol e dos astros e quanto à gênese do todo. Quem está em aporia e ad-
mira, julga ignorar (por isso também o amigo dos mitos é, de certa ma-
neira, amigo do saber, pois o mito é composto a partir de admirações).

Que as raízes da filosofia grega estejam entre os bárbaros, que


as raízes da razão se infiltrem pelo terreno do “irracional”, mito,
poesia, religião, o que for, isso é normal. Pode-se dizer que todo
acontecimento ímpar começou muito antes de sua irrupção efeti-
va. O limite para esse “antes” é, no final das contas, claro, o princí-
pio dos tempos. O que importa é saber se, a cada vez, é o traço de
continuidade ou o de ruptura que se quer enfatizar.
18 ◆ História da Filosofia I

Enfatize-se o fato comum de a filosofia e o mito nascerem de


um mesmo estado de espírito, um mesmo páthos, a saber, o que os
gregos diziam com a palavra thaûma/thaumázein, e que se traduz
para o português por “espanto”, “admiração”/“espantar-se”, “admi-
rar”. Aquilo com que o espanto se espanta, aquilo que a admiração
admira, é o fato de as coisas serem como são, vale dizer, assim e
não de outro modo, ou o fato de as coisas simplesmente serem, e
não antes não serem. A filosofia é a elaboração discursiva desse
estado de espírito, e a prova de que o mito se move também no seu
âmbito é que, como relato do vir-a-ser, do nascimento, de alguma
coisa, se coloca numa posição entre o ser e o não-ser da coisa.
Vem de Platão também a autoridade da posição que vê a filo-
sofia como uma atividade, diga-se, “patética”, pelo étimo grego,
“apaixonada”, pelo étimo latino (Diálogos. Teeteto,155 d 2-5):
Mais do que de qualquer outro, é do filósofo que é própria essa dispo-
sição de espírito: o espantar-se e admirar (thaumázein). Não há outro
princípio da filosofia senão esse. Não foi mau genealogista o que disse
que Íris nasceu de Taumante.

Eis o “acontecimento espiritual” acima referido. Por um lado, ele


pertence a todas as épocas e todos os lugares e nenhuma época e
nenhum lugar o tem previamente garantido, porque precisa acon-
tecer sempre “individualmente”, por outro lado, ele pertence a uma
história bem determinada, com data e local de nascimento bem
determinados, porque o “individual” de uma época é expressão de
uma compreensão coletiva tácita, dada, em última instância, pela
unidade da língua, matriz de todo pensamento. Dessa compreensão
pode-se tirar algum elemento épico. Essa história, por seu turno,
tanto é uma continuidade que dissolve qualquer eventual diferença
entre oriental e ocidental, europeu e não-europeu, grego e bárbaro,
quanto uma descontinuidade, que ressalta essa diferença.
O elemento de continuidade está no fato de as diferentes civili-
zações que floresceram às margens do Mediterrâneo, tecnicamente
localizadas em continentes diferentes, sul Europa, norte da África,
Oriente Próximo, terem compartilhado desde o início de um mes-
mo mundo histórico, ligado precisamente pelo mar, tornando-se
completamente artificial qualquer repartição nesse domínio. A his-
tória da Grécia, e da hegemonia grega, é parte da história da civili-
Introdução ◆ 19

zação mediterrânea, à qual pertencem também


períodos de outras hegemonias. O mais antigo
dessa história aponta para uma região a leste do
Mediterrâneo, um feixe que, do delta do Nilo,
pelo rio Jordão, chega à Mesopotâmia (nome
grego que significa “entre rios”), entre o Eufrates
e o Tigre, conhecida como a região do crescente
fértil, onde primeiro surgiu a escrita (Suméria,
depois Egito); e a escrita, sabe-se, é o critério
Maler der Grabkammer des
para separar a pré-história da história. É de se
Sennudem - Detalhe de esperar que as conquistas daqueles que primeiro ingressaram no
pintura mural no túmulo do
funcionário Sennedjem (XIX
neolítico e depois no calcolítico, logo seduzam aqueles em estágios
dinastia), c. 1200 a.C. anteriores, aos quais estão ligados pelo comércio de mercadorias,
pelas trocas espirituais, pelas trocas de todas as ordens. Uns povos
conquistam umas coisas, depois outros povos conquistam outras a
partir do que herdaram do povo anterior. A rede de trocas caracte-
rística da época inviabiliza qualquer tentativa de repartir esse mun-
do pelo viés étnico. Se há uma diferença digna de consideração, é a
patenteada por um mito arcaico dessa tradição: após o dilúvio, os
filhos de Noé se dispersaram pelo mundo; Sem estabeleceu-se no
Oriente Médio e a ele se atribui o tronco lingüístico semita, Cam
foi para o norte da África e é tido como patrono do tronco camita,
Jafé seguiu na direção da Europa e a ele está ligado o tronco indo-
europeu. Por um lado, cada “tronco” corresponde a uma experi-
ência histórica irredutível às correspondentes aos outros troncos.
Por outro lado, a irreconstituível língua de Noé, hipótese em estado
bruto, aponta para a unidade de uma mesma origem.
Os descendentes de Jafé se dispersaram por outro feixe, da Índia
à Europa. Quando, na banda ocidental dessa faixa, as primeiras
tribos que falavam uma língua ancestral do grego começaram a
chegar à Península Balcânica, por volta de 2.200 a.C. (e, vale lem-
brar, o escrito grego remanescente mais antigo é precisamente a
Ilíada de Homero, de cerca de 800/750 a.C.), os povos da região do
crescente fértil já se constituíam em reinos opulentos. Já haviam
inventado a escrita, registrado as observações dos céus, condensa-
do as lições das experiências dispersas nos métodos sistemáticos
das artes e dos ofícios. Quando, então, começou a Grécia histórica,
no século oitavo, os “orientais” já eram impérios senis. O que di-
20 ◆ História da Filosofia I

zer, ademais, da seguinte tentativa de datação: a filosofia começa


no século sexto, dois séculos após Homero, com Tales? Em que
transformação deve consistir a filosofia, frente ao saber milenar
acumulado no seio da civilização mediterrânea, para que se diga
que não surgiu antes? Os gregos, certamente, não descobriram
ou inventaram a astronomia, a matemática, e a maior parte dos
conhecimentos positivos relativos aos diversos domínios da vida
prática. Muito antes que os gregos, os outros povos orientais ela-
boraram também visões da totalidade, discursos sobre a origem
do mundo. A filosofia, se é algo realmente ímpar para se dizer que
começa tão tardiamente, deve consistir numa nova postura diante
dos mesmos “conteúdos” e não um “conteúdo” novo.
Parece que, para abordar a passagem em que consiste o nascimen-
to da filosofia, melhor que o viés “geográfico”, expresso na distinção
oriente-ocidente, é aquele que propõe outra distinção, não menos
problemática, mas de outros problemas peculiares, a distinção entre
mito e razão. Nesse caso, pode-se admitir de quebra a hipótese de
que os gregos foram os responsáveis pela passagem da primeira para
a segunda ou pode-se abrir mão dessa hipótese, importa é pensá-la
enquanto tal. Talvez melhor seja dizer que, de um modo geral, os
diferentes povos têm, nos primórdios de suas histórias, textos sa-
grados, religiosos, míticos, inclusive os gregos, e só posteriormen-
te é que desenvolvem outro discurso, prosaico, sobre a realidade.
Também a Índia e a China conheceram uma espécie de “história da
filosofia”, de um discurso que já se pretendia diferente do mítico, e
que se ramificava, pela polêmica aberta, em correntes de todos os
tipos. Mas isso não aconteceu antes da “revolução jônica” (Confúcio
e Lao-Tsé eram contemporâneos aos pré-socráticos).
Na verdade, deve-se pensar primeiro na diferença entre duas
palavras gregas (note-se como esse discurso é desde o início euro-
cêntrico), mýthos e lógos, pois, ainda que traduzir a primeira por
“mito” pareça óbvio, a tradução da segunda por “razão”, é bem
sabido, implica uma série de decisões nada óbvias. Curioso é que a
primeira abordagem dessas duas palavras constate uma identidade
e não uma diferença. Tanto uma quanto a outra significam “pala-
vra”. Isso já mostra em que terreno deve ser pensado o nascimento
da filosofia: o da linguagem. Trata-se de uma diferença de tipo de
palavra. O que se pode dizer sobre isso?
Introdução ◆ 21

A palavra do mýthos é, antes de mais nada, eminentemente oral.


Toda tradição escrita sobre ela já lhe é alheia. A própria mito-lo-
gia, na condição de registro da tradição oral, já é a preparação da
morte do mito pelo lógos. A escrita permite que se separe o con-
teúdo do discurso do seu proferimento efetivo. Aliás, aqui está a
chave da distinção entre os dois tipos de palavra: separação. Isso
porque, a rigor, a palavra mítica não pode ser separada não ape-
nas da circunstância efetiva de seu ecoar, de sua “cerimônia”, de
seu “ritual”, mas também do canto que a embala, já que a palavra
mítica é cantada, bem como da dança, dos pés e do ritmo que em-
balam os que a cantam, pois também dançada é a palavra mítica.
A palavra mítica é concreta, não admite separações, suas “partes”
con-crescem, não se justapõem, sobretudo a separação fatal entre a
palavra significante e a coisa real significada.
O advento paulatino do lógos coincide com um processo de pau-
latina separação, isto é, abstração. Separa-se a dança do canto, e, no
canto, a letra da música, e, na música, a melodia do ritmo. Sepa-
ra-se, na letra, seu significado e sua disposição formal em versos.
Separa-se o dito do dizer, pela escrita, e separa-se o que se diz ou se
escreve da realidade sobre a qual se diz ou se escreve, pela consci-
ência dessa separação. Assim, a palavra do lógos seria abstrata.
No entanto, é preciso ser mais cauteloso, pois a etimologia de ló-
gos, antes de remeter para a experiência do discurso, remete para a
experiência da reunião. E reunião é, aparentemente, o contrário de
separação. Sim, mas de que reunião e de que separação se trata? Ora,
para reunir o trigo em um silo, há de separá-lo antes do joio. E para
reunir os indivíduos de uma espécie, há de separar as espécies umas
das outras. E é exatamente isso o que a palavra faz: designa uma clas-
se universal de coisas, reúne em seu escaninho os exemplares parti-
culares apropriados, e separa a classe como tal das demais classes.
A palavra do lógos reúne e separa no sentido de garantir a iden-
tidade consigo mesma de cada entidade e a sua diferença frente às
demais, e por isso se encaminha para o princípio de não-contradi-
ção, segundo o qual o mesmo não pode subsistir e não subsistir no
mesmo ao mesmo tempo quanto ao mesmo aspecto. Já a palavra do
mýthos distingue as personagens de sua história para reuni-las no fio
da trama: se todos vêm uns dos outros, então todos já estão uns nos
22 ◆ História da Filosofia I

outros, por isso se encaminha mais para a experiência do que em


latim se diz coincidentia oppositorum, coincidência dos opostos.
A palavra do mýthos é eficaz, isto é, seu soar é suficiente para que
os acontecimentos que narra tenham existência garantida. Sua au-
toridade advém de sua antigüidade, do fato de que, nos primórdios,
foi assim que se fez, e nos primórdios estão sempre as divindades,
daí se dizer que sua autoridade é sempre de cunho religioso, daí ser
encargo de homens divinos: sacerdotes, poetas, reis. Para o homem
da época do mito, o mito é a pura expressão da verdade, não é me-
táfora, não é alegoria. Não se o questiona, porque já se faz a expe-
riência de sua verdade. Quando a ambiência do sagrado começa a
se subtrair, começa-se também a pôr em questão o significado do
mito, e o mito começa a morrer em favor dessa crítica nascente.
A palavra do lógos, por seu turno, não traz consigo a chave de
sua verdade. Precisa conquistá-la, precisa convencer, e, para isso,
precisa argumentar de modo convincente. Por isso é prerrogati-
va do plebeu bom orador mais do que de um rei que não saiba
justificar-se ou de um poeta que só saiba recitar os mesmos versos
segundo um método previamente dado. Por não estar encerrada
no contexto do ritual de seu proferimento, circula pelas praças pú-
blicas, seculariza-se. Palavra categórica, seu lugar é a ágora, seu
papel é, na ágora, diante dos olhos de todos, de dedo em riste, Na palavra “categoria” está a
palavra “ágora”.
dizer na cara de cada coisa aquilo que ela é. A verdade passa a ser
a meta, e não o ponto de partida. Por si, o discurso não é ainda
verdadeiro nem falso, e, por isso, pode ser verdadeiro ou falso.
Mas o traço mais importante da palavra mítica, que a liga de modo
decisivo à palavra da filosofia, é ser narração não de uma história
qualquer, mas de uma história de origem, pela qual se conta como
uma coisa, de seu não-ser anterior, passa a ser, o que revela que o ser
das coisas “incomoda” e reclama uma “fundamentação”. Vale, a essa
altura, registrar a tentativa de definição de mito de Mircea Eliade,
especialista no assunto, em Mito e Realidade (1986, p.11):
Seria difícil encontrar uma definição do mito que fosse aceita por todos
os eruditos e, ao mesmo tempo, acessível aos não-especialistas. Por ou-
tro lado, será realmente possível encontrar uma única definição capaz
de cobrir todos os tipos e todas as funções dos mitos, em todas as so-
Introdução ◆ 23

ciedades arcaicas e tradicionais? O mito é uma realidade cultural extre-


mamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de
perspectivas múltiplas e complementares.

A definição que para mim, pessoalmente, me parece a menos imperfei-


ta, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada;
ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo
fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja
uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma
espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sem-
pre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo
foi produzido ou comçou a ser. O mito fala apenas do que realmente
ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos
são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fi-
zeram no tempo prestigioso do “primórdios”. Os mitos revelam, portan-
to, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente
a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as
diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “so-
brenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fun-
damenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das
intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um
ser mortal, sexuado e cultural.

Teremos ocasião de ampliar e completar essas poucas indicações pre-


liminares, mas é importante frisar, desde já, um fato que nos parece
essencial: o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma
“história verdadeira”, porque sempre se refere a realidades. O mito
cosmogônico é “verdadeiro” porque a existência do Mundo está aí para
prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente “verdadeiro” porque
é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante.

A relação que há entre “contar a história da origem” e “definir a


essência” (afinal, se nas peripécias da origem de um ser está outro
ser, por exemplo, belicoso, ou amoroso, isso significa que aquele
ser é determinado de alguma maneira por guerra, ou amor, então
a origem mítica, apesar de permanecer atrelada à temporalidade,
supera o cronológico e aponta para a essência que é o tempo todo
enquanto o ser é, e não apenas em seu início), sobretudo quando
é a origem da totalidade o que está em questão, é o que faz com
que se veja muitas vezes a filosofia começar no mito, e o mito se
24 ◆ História da Filosofia I

prolongar pela história da filosofia adentro. A Teogonia de Hesío-


do, por exemplo, ao apresentar a genealogia dos deuses, ao dizer
quais nasceram primeiro e quais nasceram de quais na seqüência,
não deixa de apresentar uma hierarquia ontológica das potências
reais mais arquetípicas. Um enredo que começa com Caos, que
tem nele, na Terra, no Tártaro, que é o abismo último do Hades, e
Amor sua tétrade fundamental, e depois nas relações entre Dia e
Noite, entre Terra e Céu, já encerra uma “filosofia”. Por outro lado,
os primeiros filósofos, depois, continuam falando da origem do
mundo, do kósmos, isto é, da ordem, a partir, portanto, da desor-
dem; continuam falando da oposição entre um princípio amoroso
de união e constituição e um princípio de discórdia e dissolução;
e continuam a usar os nomes da mitologia para dizer isso. Muitos
dos primeiros filósofos escrevem em versos. Platão, dois séculos de-
pois de Tales, se vale freqüentemente de mitos para expressar seus
tópicos filosóficos. Platão, aliás, viveu no Egito durante um tempo
e sempre manteve uma atitude de reverência frente à sabedoria
dos “bárbaros”. Durante o Helenismo, período posterior a Platão
e Aristóteles, no rastro do império alexandrino, todo voltado ao
mundo civilizado de então, para leste, para o
oriente, o que se vê é um novo processo de as-
similação mútua entre uma hipotética cultura
dos gregos, e depois dos romanos, e uma hi-
potética cultura do seu “oriental”, em toda sua
multiplicidade. Zenão de Cício, fundador do
estoicismo, era de ascendência fenícia. Pirro, o
primeiro cético, teria participado da expedição
de Anaxarco e convivido com ginosofistas na
Índia e com magos na Pérsia. A matriz do he-
donismo epicurista fora gestada em Cirene, na
África. No médio helenismo, as cidades a Leste, Alexandre Magno e
Rodes, Pérgamo, Alexandria, ascendem em detrimento de Atenas. seu cavalo Bucéfalo na
E no helenismo tardio dá-se a maior das assimilações, o “ociden- Batalha de Issus Mosaico.
Encontrado em Pompeia, na
te” torna-se paulatinamente cristão, isto é, o mundo pagão, que Itália, hoje está no Museu
define a antigüidade, torna-se paulatinamente inseparável de uma Arqueológico Nacional, em
Nápoles.
tradição oriental, a hebraica. A doravante tradição greco-romana-
hebraico-cristã afirmará sua hegemonia no período que, por causa
disso, será distinto e designado de medieval.
Introdução ◆ 25

No século II depois de Cristo, o doxógrafo Diógenes Laércio dei-


xou uma pequena compilação de opiniões acerca do nascimento
da filosofia. Seu testemunho não vale, do ponto de vista científico,
como verdade primária, pois se aproxima mais de um relato míti-
co em tom científico, com estimativas fantasiosas, do que de uma
descrição de fatos. Vale, entretanto, para ver, a cada vez que se diz
que a filosofia começa aqui e não ali, o que se considera, a cada vez,
filosofar. Sua posição, embora etnocêntrica em favor dos gregos,
se baseia na apresentação de Linos e Museu, bem “antes” de Tales,
como iniciadores da filosofia, e dá como prova o fato de “filosofia”
ser uma palavra grega (DIÓGENES LAÉRTIOS, 1988, I 1-4.):
(1) Segundo alguns autores o estudo da filosofia começou entre os bár-
baros. Esses autores sustentam que os persas tiveram seus Magos, os ba-
bilônios ou assírios seus Caldeus, e os indianos seus Ginosofistas; além
disso, entre os celtas e gálatas encontram-se os chamados Druidas ou
Veneráveis, de acordo com o testemunho de Aristóteles em sua obra O
Mágico e de Sotíon no livro XXIII de sua obra Sucessões dos Filósofos. As
mesmas autoridades dizem que Mocos era fenício, Zâmolxis era trácio
e Atlas era líbio.

Para os egípcios, Héfaistos era filho do Nilo, e com ele começou a filoso-
fia, sendo os sacerdotes e profetas seus principais expoentes. Héfaistos
teria vivido 48.863 anos antes de Alexandre, o Macedônio; (2) Nesse in-
tervalo ocorreram 373 eclipses do sol e 832 eclipses da lua.

Quanto aos Magos, sua atividade teve início com Zoroastros, o Persa,
5.000 anos antes da queda de Tróia, de conformidade com o platônico
Hermôdoros em sua obra Da Matemática; entretanto o lídio Xantos cal-
cula o decurso de 6.000 anos entre a época de Zoroastros e a expedição
de Xerxes, e após Zoroastros ele enumera uma longa sucessão de Ma-
gos, cujos nomes seriam Ostanas, Astrâmpsicos, Gobrias e Pasatas, até a
conquista da Pérsia por Alexandre, o Grande.

(3) Esses autores ignoram que os feitos atribuídos aos bárbaros perten-
cem aos helenos, com os quais não somente a filosofia, mas a própria
raça humana começou – por exemplo, os atenienses reivindicam para
a sua cidade a condição de pátria de Musaios, e os tebanos fazem o
mesmo em relação a Linos. Dizia-se que Musaios, filho de Êumolpos, foi
o primeiro a compor uma Teogonia e uma Esfera, e sustentou que todas
as coisas procediam da unidade e revertiam a ela. Musaios teria morrido
Falero é um bairro de Atenas. em Fáleron, e seu epitáfio era o seguinte:
26 ◆ História da Filosofia I

“Aqui no chão de Fáleron jaz o cadáver de Musaios, filho querido de


Êumolpos.”

Os Eumôlpidas de Atenas tiraram o seu nome do pai de Musaios.

(4) Dizia-se que Linos era filho de Hermes e da Musa Urania e que teria
composto um poema sobre a cosmogonia, o curso do sol e da lua e a
gênese dos animais e das plantas; o início desse poema é o seguinte:

“Houve um tempo em que todas as coisas cresciam juntas.”

Anaxagoras aproveitou essa idéia quando disse que todas as coisas eram
originariamente indistintas, até que veio o Espírito e as organizou. Linos
morreu em Êuboia, atingido por uma flecha de Apolo, e seu epitáfio é
o seguinte:

“Este chão recebeu o tebano Lino morto, filho da Musa Urania belamen-
te coroada.”

Assim começou a filosofia com os helenos, e seu próprio nome nada


tem a ver com a maneira bárbara de expressar-se.

Apesar de essa mixórdia étnica, em que se constitui a categoria


“gregos”, sequer poder ser dita autóctone para poder pretender
ser precursora da humanidade, o etnocentrismo não está nesse
equívoco. Está em que, mesmo para expressar o que seria o ou-
tro, o não-grego, com os quais, pela autoridade de certas versões,
a filosofia também poderia ter começado, usa-se palavras gregas
e não das línguas dos outros: ”mago/magia”, “ginosofistas (sábios
nus)”, “Hefesto”... E o mais curioso: se alguém quisesse proceder
então a uma pesquisa objetiva, criteriosa, rigorosa, “científica”
dos orientais, munindo-se de todas as ferramentas, inclusive o co-
nhecimento teórico das línguas implicadas, aí então é que estaria
sendo maximamente ocidental e eurocêntrico, pela afirmação do
ideal de objetividade, que, em si, não deixa de ser uma “crença
subjetiva”, precisamente a crença do Ocidente.

O importante do relato de Diógenes Laércio é o seguinte: alguém


que compôs uma Teogonia e uma Esfera já pode ser considerado
filósofo. Compor uma Teogonia, como Hesíodo fez de fato por vol-
ta de 700 a.C., significa organizar uma hierarquia das principais
Introdução ◆ 27

potências do ser pelo viés temporal, sugerindo uma rede múltipla


ligada pelo nexo causal – já que um ente gerar outro ente equivale
a ser sua causa – a partir da unidade. Compor uma Esfera, por sua
vez, significa organizar o universo espacialmente, dispondo num
todo harmônico as diferentes esferas particulares: das estrelas fi-
xas, de cada planeta, a esfera da terra parada ao centro/fundo. Em
ambos os casos, o ponto principal é a unidade, a origem como
organização de multiplicidade em totalidade harmônica. Por isso
também já pode ser considerado filósofo aquele que diz “houve
um tempo em que todas as coisas cresciam juntas”, ainda que seu
enunciado permaneça na forma clássica do mito: “era uma vez...”.
E, como os sacerdotes, os magos, os druídas, os ginosofistas, de
algum modo, se relacionam com a origem, a unidade, a totalidade
e a ordem dessa totalidade, também se diz que a filosofia começou
com eles. As descrições resumidas que Diógenes apresenta desses
sábios orientais, ainda que muitas vezes permitam classificá-los
como religiosos antes que filósofos, trazem já traços marcantes dos
filósofos que se seguirão na Grécia: o ascetismo, a crença na imor-
talidade da alma e na metempsicose, o dualismo, o animismo... Po-
de-se até estabelecer um paralelo entre os tipos representados pelos
primeiros filósofos gregos e aqueles encarnados pelas principais
tradições orientais. Pitágoras, ao postular, aquém da oposição entre
a mônada ímpar e a díade par, uma mônada que é ímpar e par ao
mesmo tempo, perfila-se como sábio chinês. Parmênides, ao afir-
mar a unidade absoluta e negar o movimento, o vir-a-ser e a multi-
plicidade, comporta-se como um indiano que renuncia à aparência
do “véu de Maia” dos fenômenos sensíveis e dizíveis, em favor de
uma experiência da unidade inefável. Heráclito, ao conceber o ser
como devir, e este como combate de forças opostas, parece seguir o
dualismo dos persas. A doutrina dos quatro elementos materiais e
dos dois princípios eficientes, o de união e geração e o de repulsa e
morte, liga Empédocles aos egípcios. Anaxágoras, ao conceber que
uma única coisa estava separada da mistura original, o Intelecto, e
que ela é causa da ordem que sobreveio, se aproxima dos judeus.
Os primeiros filósofos gregos, os primeiros ocidentais do Orien-
te, permanecem, para o olhar dos pósteros, os orientais do Oci-
dente. A “razão” que propugnam, vale dizer, o lógos, não é ainda
28 ◆ História da Filosofia I

como o lógos que começa com Sócrates, Platão e Aristóteles – por


isso os primeiros filósofos são chamados de pré-socráticos, de pré-
platônicos, de pré-aristotélicos –, este sim pensável a partir da raiz
da tradução latina de lógos, ratio, que significa primeiramente
“conta”, “cálculo”, aquilo que se faz na ação de contar, de retirar os
palitos de fósforo da caixa e enfileirá-los um a um sobre a mesa. A
“razão” dos primeiros filósofos, chamados na própria antigüidade
de “físicos” ou “fisiólogos”, porque pretendiam falar, antes de tudo,
da phýsis, da natureza, aponta mais para a coincidentia oppositorum
do mito, que para o princípio de não-contradição da filosofia so-
crático-platônico-aristotélica. Isso porque sua preocupação maior
é com a origem comum de todas as coisas, instância em que todas
são a mesma coisa, e não com o princípio que separa e distingue
cada coisa das demais. É claro que a instância da ordem, da diferen-
ça, é tão fundamental para os pré-socráticos quanto à outra, mas a
essência inexorável, à qual, ocorra o que ocorrer, todas as coisas de-
verão fatalmente retornar é a sua fonte, que não é uma coisa ao lado
de outras coisas, não é um indivíduo ao lado de outros indivíduos.
Mas a história prossegue, e, enquanto se estiver sob a vigência
do princípio espiritual desse mundo pagão, em que a filosofia é
uma necessidade, se diz estar na Antigüidade. É claro que o mundo
cristão que emergirá na seqüência, causa e efeito do declínio do
mundo pagão, terá sua filosofia própria e será mesmo o guardião
da tradição que ajudou a matar. Mas isso mais porque o germe do
cristianismo frutificou em solo helenístico e se viu na obrigação de
prestar contas desde o início à razão. Enfim, para efeitos puramente
didáticos, escolhe-se duas datas emblemáticas daquilo que na ver-
dade são processos muito lentos, cujas raízes começam muito antes
e cujas conseqüências se estendem até muito depois, para balizar
a história da filosofia antiga, para determiná-la como um período
com começo e fim. Essas datas são: o ano de 585 a.C., quando ocor-
reu um eclipse previsto por Tales de Mileto, o primeiro filósofo, e o
ano de 529 d.C., quando, após um longo período de expansão pau-
latina do cristianismo e outras seitas orientais e do correlato declí-
nio da civilização helenística, sustentada àquela altura pelo império
romano, o ensino da filosofia pagã, que ainda ocorria em Atenas, é
proibido pelo próprio imperador (da parte oriental), Justiniano.
Introdução ◆ 29

Esse milênio de história, por sua vez, deve ser também subdi-
vidido para efeitos didáticos e com as mesmas ressalvas. O seu
primeiro período é o chamado pré-socrático, que vai de Tales a
Demócrito, que, aliás, era mais jovem que Sócrates, mas pensava
como os de antes. Para os filósofos desse período, trata-se acima
de tudo de falar sobre a phýsis, traduzida, na medida do possí-
vel, por “natureza”: a obra-prima de cada um deles se intitula Perì
Phýseos, “Acerca da Natureza”. O segundo período, obviamente,
como o próprio nome do anterior indica, deve começar com Só-
crates. Sócrates, no entanto, deve ser pensado como figura possível
somente no bojo do movimento sofístico, o qual, por sua vez, é
uma reação ao pensamento pré-socrático, que ora o nega, ora o
radicaliza até as conseqüências mais paradoxais. Os sofistas inau-
guram um período “antropológico”, por oposição ao “físico” an-
terior, um período em que pesava exatamente a diferença entre
phýsis e nómos, “natureza” e “lei (convenção)”, a irredutibilidade
da segunda – que é o que importa em se tratando de fazer política
– à primeira, de quem os primeiros filósofos esperavam que ema-
nassem as leis. Sócrates consiste numa guinada descontínua sobre
o fio de continuidade da sofística, assim como a filosofia platônica
o é em relação a Sócrates, e a aristotélica, frente a Platão, pois a so-
fística continuou para além de Sócrates, e o socratismo, para além
de Platão (há várias outras escolas socráticas, contemporâneas da
Academia, ditas, em função da preferência por Platão e Aristó-
teles, socráticas-menores, germes de todas as escolas do período
helenístico imediatamente posterior a Aristóteles), e o platonismo
continuou para além de Aristóteles (a Academia continua existin-
do paralelamente ao Liceu de Aristóteles por séculos, e determi-
nou boa parte do pensamento antigo em sua fase final).
Pode-se então reunir os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles
num único período, que a rigor deve ser subdivido em quatro para
resguardar todas as diferenças, como os pré-socráticos também se
subdividem em os do século sexto e os do quinto, e os da Jônia e
os da Itália. Um terceiro período, que compreende toda a filosofia
após Aristóteles até o final da Antigüidade, é o helenístico. Hele-
nismo também é um termo que fala por si: o “-ismo” do heleno, que
só pode ocorrer num momento maduro e senil da civilização gre-
30 ◆ História da Filosofia I

ga. No rastro do império de Alexandre, “Grécia” se torna o nome


de uma vasta região do então mundo civilizado. Esses tempos são
bem diferentes daqueles da cidade-estado clássica, e lhes corres-
pondem as filosofias próprias. O helenismo deve ser subdividido
imediatamente em período alexandrino e período romano, este
a partir da conquista romana das regiões do império alexandrino,
que foi paulatina (Corinto cai em 146, o Egito em 59 a.C.).
O primeiro helenismo, ainda criado em Atenas, é herdeiro das
escolas socráticas menores, que corriam paralelamente a Platão e
Aristóteles, estes, presumivelmente pela nomenclatura, “socráticos
maiores”. Zenão de Cício, fundador do estoicismo, fora discípulo
do cínico Crates, e é dos cínicos a tese mestra da ética estóica: a vir-
tude é o sumo bem que garante a felicidade; Epicuro liga-se à escola
cirenaica pela ética hedonista; o cético Pirro, aos megáricos, suas
antíteses e refutações. Mas não só o socratismo de estóicos, epicu-
ristas e céticos era diferente do socratismo de Platão e Aristóteles.
Suas físicas, em oposição àquelas que viriam a se chamar “metafí-
sicas”, eram tributárias dos velhos pré-socráticos: Epicuro abraça o
atomismo de Demócrito via Nausífanes; os estóicos reinterpretam
o fogo e o lógos de Heráclito; os céticos, que não têm física, levam às
últimas conseqüências as aporias da dialética desde os eleatas.
As cinco escolas, ou melhor, “tradições” (os céticos não formam
uma “escola”) de então: a acadêmica e a peripatética, fundadas por
Platão e Aristóteles ainda no período clássico, mais a epicurista, a
estóica e a cética, fundadas no helenismo (porque marcos dele), e
que a rigor durarão até o final da Antigüidade devidamente meta-
morfoseados, e para além delas até os dias de hoje – tanto que se está
falando delas agora – conhecerão um período médio, marcado pela
ascensão de outros centros a Leste em detrimento de Atenas: Ro-
des, Pérgamo, Alexandria. Muitos dos principais representantes das
cinco tradições floresceram em algumas dessas cidades. Finalmente,
todas conhecerão um período romano e a filosofia falará latim atra-
vés de representantes de alguma dessas tradições ou da fusão delas.
Com a crise do império romano e a ascensão do cristianismo e
outras seitas orientais, as posições materialistas do primeiro hele-
nismo cedem lugar a uma preocupação com as questões abertas
pelo espírito religioso da época. Mesmo os filósofos não-cristãos
Introdução ◆ 31

são de um paganismo religioso ou místico. É compreensível que


se visse agora de novo no platonismo, e não nas filosofias que se
afirmaram ao exatamente se opor a ele, a chave para uma sempre
desejada explicação racional para os dogmas revelados então esti-
mados. Afinal, em Platão se encontra a separação de corpo e alma,
a idéia de que o mundo é produto da providência divina, de que o
fundamento supremo é o bem, o princípio de não-contradição...
Aristóteles, pelas mesmas razões, poderia cumprir esse papel, mas,
nos movimentos pendulares da história, prevalecerá sobre Platão
só na fase medieval da história da filosofia cristã. Por isso, no final
da antigüidade, a distinção entre os filósofos se dava pelo caráter,
cristão ou pagão, grego ou latino, de seu (neo)platonismo. E, se a
Escolástica medieval levantou seu Aristóteles contra o Platão da
Patrística antiga, o Renascimento também sacará seu Platão mate-
mático contra o Aristóteles cristianizado dos anteriores. E as outras
tradições pagãs retornarão à liça, no bojo da secularização moder-
na, e a memória dessa tradição grega-européia-ocidental conser-
va-se e transforma-se, melhor, conserva-se nessa transformação.
Assim, seria um bom esquema de curso de história da filosofia
antiga o seguinte: 1. a filosofia pré-socrática; 2. os sofistas e Sócra-
tes; 3. a metafísica clássica (“socráticos maiores”: Platão e Aristóte-
les); 4. as filosofias do helenismo (estoicismo, epicurismo, ceticis-
mo); 5. o neoplatonismo.

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