Rinha de Galos - Maria Fernanda Ampuero
Rinha de Galos - Maria Fernanda Ampuero
Rinha de Galos - Maria Fernanda Ampuero
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Leilão
Monstros
Griselda
Nam
Crias
Persianas
Cristo
Paixão
Luto
Ali
Coro
Cloro
Outra
Tudo que apodrece forma uma família.
FABIÁN CASAS
Sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?
CLARICE LISPECTOR
LEILÃO
Narcisa sempre dizia deve-se ter mais medo dos vivos que dos mortos,
mas não acreditávamos nela porque, em todos os filmes de terror, quem
metia medo eram os mortos, os zumbis, os possuídos. Mercedes morria de
medo dos demônios e eu, dos vampiros. Falávamos disso o tempo todo. De
possessões satânicas e de homens com presas que se alimentam do sangue
das meninas. Papai e mamãe nos compravam bonecas e livros de contos de
fada e nós recriávamos O exorcista com as bonecas e imaginávamos que o
príncipe encantado era na realidade um vampiro que despertava Branca de
Neve para convertê-la em morta-viva. Durante o dia tudo bem, éramos
corajosas, mas à noite pedíamos a Narcisa que subisse para nos
acompanhar. Papai não gostava que Narcisa — ele a chamava a doméstica
— dormisse no nosso quarto, mas era inevitável: dizíamos que, se ela não
viesse, nós é que desceríamos para dormir no quarto da doméstica. Isso, por
exemplo, lhe dava medo. Mais que o demônio e os vampiros. E então
Narcisa, que tinha uns catorze anos, fingindo que protestava, que não queria
dormir conosco, dizia isto, que se deve ter mais medo dos vivos que dos
mortos. E achávamos uma estupidez, pois como você pode ter mais medo,
por exemplo, de Narcisa do que de Reagan, a menina de O exorcista; ou do
seu Pepe, o jardineiro, do que de Salem ou de Demian, o filho do diabo; ou
do papai do que do Lobisomem? Absurdo.
Papai e mamãe nunca estavam em casa, papai trabalhava e mamãe jogava
cartas, por isso Mercedes e eu podíamos ir todas as tardes, depois do
colégio, alugar os filmes de terror da videolocadora. O atendente não nos
dizia nada. Claro que sabíamos que na capa estava escrito para maiores de
dezesseis ou dezoito, mas o menino não nos dizia nada. Tinha a cara cheia
de espinhas e era muito gordo, estava sempre com um ventilador apontando
para o meio das pernas. A única vez que falou conosco foi quando
alugamos O iluminado. Olhou para a capa, depois para nós e disse:
— Neste filme há umas meninas iguaizinhas a vocês. As duas estão
mortas, quem as matou foi o pai delas.
Mercedes agarrou minha mão. E assim ficamos, de mãos dadas, com o
uniforme idêntico, olhando para ele, até que nos entregou o filme.
Mercedes era muito medrosa. Branquinha, franzina. Mamãe dizia que eu
comia tudo o que vinha pelo cordão umbilical, porque ela nasceu
minúscula: uma minhoquinha, e eu, ao contrário, parecia um touro. Usavam
esta palavra: touro. E o touro tinha que cuidar da minhoca, o que se podia
fazer? Às vezes, eu gostaria de ser a minhoca, mas isso era impossível. Eu
era o touro, e Mercedes, a minhoca. Com certeza, Mercedes teria gostado de
ser o touro uma vez ou outra, e não andar sempre atrás de mim, à minha
sombra, esperar que eu falasse e simplesmente concordar.
— Eu também.
Nunca eu. Sempre eu também.
Mercedes nunca quis ver filmes de terror, mas insisti porque uma garota
do colégio disse que eu não ia conseguir ver todos os filmes que ela havia
visto com o irmão mais velho porque eu não tinha irmão mais velho, eu
tinha Mercedes, famosa porque era cagona, e eu não suportei aquilo e
naquela tarde arrastei Mercedes até a videolocadora e alugamos toda a série
de A hora do pesadelo, e, nessa noite e nas seguintes, tivemos que pedir a
Narcisa que subisse para dormir conosco, porque Freddy se enfia nos seus
sonhos e te mata no sonho e ninguém percebe, porque parece que você teve
um infarto ou se afogou com sua saliva, uma coisa normal, e então ninguém
nunca percebe que um monstro com dedos de facas afiadas é que te matou.
Ter certos irmãos é uma bênção. Ter certos irmãos é uma condenação: foi
isso que aprendemos nos filmes. E que sempre há um irmão que salva o
outro.
Mercedes começou a ter pesadelos. Narcisa e eu fazíamos tudo que era
possível para silenciá-la, para que papai e mamãe não percebessem. Eles me
castigariam: os filmes de terror, tudo é culpa do touro. Pobre minhoquinha,
pobre Mercedita, que calvário ser irmã de semelhante animal, de uma
menina tão pouco menina, tão indomável. Por que você não é mais parecida
com a Mercedita, tão boazinha, tão quietinha, tão dócil?
Os pesadelos de Mercedes eram piores que qualquer um dos filmes que
víamos. Tinham a ver com o colégio, com as freiras, as freiras possuídas
pelo diabo, dançando peladas, tocando-se lá embaixo, aparecendo no seu
espelho enquanto você escovava os dentes ou quando tomava banho. As
freiras como Freddy, metidas nos seus sonhos. E nós nunca tínhamos
alugado um filme sobre aquilo.
— E o que mais, Mercedes? — eu lhe perguntava, mas ela já não dizia
nada, só gritava.
Os gritos de Mercedes perfuravam a pele. Pareciam uivos, arranhões,
mordidas, coisas animais. Quando ela abria os olhos, ainda continuava lá,
aonde quer que fosse lá, e Narcisa e eu a abraçávamos para que voltasse,
mas às vezes ela demorava muito para voltar e eu pensava que mais uma
vez, como quando estávamos na barriga da mamãe, eu estava lhe roubando
algo. Mercedes começou a emagrecer. Éramos iguais, mas cada vez menos
iguais, pois eu era cada vez mais touro, e ela, cada vez mais minhoca: com
olheiras, encurvada, ossuda.
Eu nunca tive muito apreço pelas freiras do colégio nem elas por mim.
Quer dizer, nós nos detestávamos. Elas tinham um radar para as almas
díscolas, usavam essa frase, e eu era isso, mas não me importava, díscola
parecia com disco e com Coca-Cola, e eu adorava as duas coisas. Eu odiava
sua hipocrisia. Eram más e se fingiam de santas. Elas me mandavam apagar
todas as lousas do colégio, limpar a capela, ajudar a madre superiora a fazer
sua beneficência, que nada mais era que repartir o que os outros, os nossos
pais, doavam aos pobres, ou seja, intermediar para ficar com uma boa fatia,
comer peixe do bom e dormir em edredom de plumas. E eu recebia castigo
atrás de castigo porque perguntava qual o motivo de darem arroz aos pobres
enquanto elas comiam corvina, e dizia que Nosso Senhor não gostaria disso
porque ele fez os peixes para todos. Mercedes apertava meu braço e se
punha a chorar. Mercedes se ajoelhava e rezava por mim com os olhos
completamente fechados. Parecia um anjinho. Enquanto ela rezava a Ave-
Maria, eu tinha vontade de fazer com que tudo se paralisasse por completo,
porque eu achava que a prece da minha irmã era a única coisa que valia a
pena no maldito mundo inteiro. As freiras diziam aos meus pais que minha
irmã era perfeita para fazer parte da congregação, e eu a imaginava
enclausurada naquela vida, como uma prisão de roupa horrível e grilhão de
crucifixo enorme: não podia suportar aquilo.
Naquelas férias, nossa menstruação desceu. Primeiro para Mercedes,
depois para mim. Foi Narcisa quem nos explicou como devíamos usar o
absorvente porque mamãe não estava em casa, e ela riu quando começamos
a andar como duas patas. Também nos disse, com todas as letras, que aquele
sangue significava que, com a ajuda de um homem, já podíamos fazer
bebês. Isso era absurdo. Ontem não podíamos fazer uma coisa tão insana
como criar uma criança, e hoje podíamos. É mentira, dissemos a ela. E ela
nos agarrou as duas pelos braços. As mãos de Narcisa eram muito fortes,
grandes, masculinas. As unhas, longas e pontiagudas, eram capazes de abrir
garrafas de refrigerante sem necessidade de abridor. Narcisa era pequena
em tamanho e idade, apenas dois anos a mais que nós, mas parece que já
tinha vivido umas quatrocentas vidas a mais. Estava nos machucando
quando disse que agora sim que tínhamos que nos preocupar mais com os
vivos que com os mortos, que agora sim tínhamos que ter mais medo dos
vivos que dos mortos.
— Agora vocês são mulheres — disse. — A vida não é mais uma
brincadeira.
Mercedes começou a chorar. Não queria ser mulher. Eu também não, mas
preferia ser mulher do que ser touro.
Uma noite, Mercedes teve um dos seus pesadelos. Já não eram freiras,
mas homens, homens sem rosto que brincavam com seu sangue menstrual e
o esfregavam pelo corpo e então surgiam por todos os lados bebês
monstruosos, pequeninos como ratos, que a comiam aos bocados. Não
havia maneira de tranquilizá-la. Fomos procurar Narcisa, mas a porta do
quartinho estava fechada por dentro. Escutamos ruídos. Depois silêncio.
Depois outra vez ruídos. Ficamos sentadas na cozinha, no escuro,
esperando-a. Quando por fim a porta se abriu, nos lançamos sobre ela,
necessitávamos tanto do seu abraço, suas mãos sempre com cheiro de
cebola e coentro, sua frase apaziguadora de que era preciso ter mais medo
dos vivos que dos mortos. A alguns centímetros do seu corpo, percebemos
que não era ela. Paramos aterrorizadas, mudas, imóveis. O que havia
entrado pela porta do quartinho não era Narcisa. Nosso coração pulava
como uma bomba. Havia algo distante e próprio nessa silhueta que fez com
que fôssemos tomadas por uma sensação física de nojo e horror.
Demorei para reagir, não consegui tapar a boca de Mercedes. Ela gritou.
Papai deu uma bofetada em cada uma de nós e subiu calmamente as
escadas.
Nem Narcisa nem suas coisas amanheceram em casa.
GRISELDA
Quando a febre do meu irmãozinho começou a subir é que tudo isso teve
início.
Deixei de ir à escola tantos dias que comecei a achar que nunca tinha ido,
que desde que nasci tudo que eu fizera fora cuidar do meu irmão. Eu ficava
em casa enquanto ela ia trabalhar e lhe dava as colheradas do xarope cor-de-
rosa de hora em hora e do xarope transparente de quatro em quatro.
Ela tinha me dado um relógio de números grandes de presente de
aniversário.
O bebê era levinho, levinho. Era como carregar papel de presente
amassado nos braços. Não ria. Quase nunca abria os olhos.
Certa noite, um dos amigos da minha mãe fez um buraco na porta do
banheiro, cansado de ouvi-lo chorar.
— Faça o bebê ficar quieto — ele dizia à minha mãe. — Faça essa
criatura de merda se calar. Faça esse monstro ficar quieto, ele saiu assim
porque você é uma puta, mate essa coisa.
Repetia esses palavrões e dava golpes na porta.
Era melhor que batesse na porta do banheiro e não no meu irmãozinho. E
não nela. Mas ele batia um pouco nela também.
Não voltamos a ver esse amigo da minha mãe e se tornou mais difícil
comprar o xarope cor-de-rosa e o xarope transparente, e ela fazia com que
durasse mais misturando-lhe um pouco de água fervida.
Ela apertava as mãos enquanto esperava para tirar o termômetro do meu
irmãozinho. Elas ficavam lívidas depois. E ela fazia um barulhinho depois
de sacudi-lo no ar e olhá-lo debaixo de uma lâmpada. Um barulhinho com a
língua e os dentes. Quando ela não fazia isso, significava que meu
irmãozinho estava num dia bom.
Em alguns finais de semana, ela me mandava ficar com meus avós.
Vovô Fernando me levava primeiro ao cemitério para visitar sua mãe
morta, Rosita. Depois íamos a La Palma tomar Coca-Cola com sorvete de
baunilha. Uma menina com seu avô. De vestido. Sem irmãos. Filha única.
Mimada. Tudo isso acabava muito rápido e logo já era segunda-feira.
Uma tarde, enquanto eu assistia ao desenho do Pica-Pau, meu
irmãozinho começou a chorar. Não fui ver. Era a hora do xarope cor-de-
rosa. Não fui dar. Queria ver o Pica-Pau. Inteiro. Por uma vez vê-lo inteiro,
sem olhar para o relógio de números grandes, sem medir o xarope na
colherinha de plástico branco, sem lutar para que ele engolisse e sujar
minha roupa e ficar fedendo, como sempre, a remédio. Queria cheirar a
menina que assiste ao Pica-Pau e mais nada. Eu ria até nas partes que não
eram engraçadas. Muito alto, muito alto, como o Pica-Pau, para encobrir o
choro do meu irmãozinho.
Depois de um tempo, o desenho acabou e começou Os Flintstones.
Também assisti inteirinho.
Quando fui ver, meu irmãozinho tinha deixado de gritar. Toquei nele. Foi
como encostar os dedos numa vela quente.
Chamei a vizinha, e a vizinha chamou minha mãe.
— Você deu o xarope cor-de-rosa pra ele?
Fiz que sim com a cabeça.
O médico lhe mandou um xarope verde e supositórios.
Mamãe me ensinou a colocar os supositórios. Eu não queria. Meu
irmãozinho gritava como aquele cachorro marrom que foi atropelado por
um táxi na frente de casa e ficou ali estirado, com as tripas para fora, mas
vivo. Ele gritava igualzinho, igualzinho.
Cor-de-rosa, transparente, verde e supositório.
No dia seguinte, deixamos meu irmão com meus avós e fomos ao Cristo
do Consuelo, que era o bairro negro, o bairro proibido. Minha mãe e eu
éramos, ali, como as bolinhas de sorvete de baunilha flutuando na Coca-
Cola.
Uma senhora negra, muito gorda, com um turbante vermelho na cabeça,
disse à minha mãe que tivesse fé.
— Tenha fé, dona. Esse Cristo é milagroso.
Depois lhe pediu dinheiro, algumas moedas. Por que ela não pedia ao
Cristo? Se era tão milagroso, devia estar cheio de moedas, não como nós
que, às vezes, andávamos a pé porque não tínhamos dinheiro para o ônibus.
A senhora negra do turbante vermelho vendeu à minha mãe um
menininho de brinquedo para ser pendurado nas vestes de cor púrpura do
Cristo. Quando entramos na igreja, havia tantos bonequinhos iguais a ele! E
coraçõezinhos e perninhas e bracinhos e cabecinhas e outras partes que não
reconheci. E fotos e cartas e bilhetes e desenhos. Uma das cartas dizia “me
ajude, senhor, tenho só nove anos e câncer”.
— Mamãe? — perguntei. — Como Cristo vai saber qual desses é meu
irmãozinho?
— Porque Ele é muito inteligente.
O cheiro lá dentro era estranho. Cheirava a coisa velha, a pó, a como
quando eu não lavo o cabelo há muitos dias, a abafado, a quando a luz vai
embora.
Antes de sairmos, mamãe pegou uma lata de molho de tomate Los Andes
e a encheu com água de uma torneira.
— Água benta — disse. — Água do Cristinho, água santa.
Ela me deu um gole, mas não tinha gosto de santa, e sim de molho de
tomate e um pouco de ferrugem e pensei que uma água de molho de tomate,
como a que colocamos no arroz branco no final do mês, quando está
acabando, não podia ser milagrosa. Tinha que ter gosto de doce de leite, de
hambúrguer duplo. Não um gosto de pobre. Com aquela porcaria na boca,
senti vontade de gritar para todo mundo que eles estavam equivocados, que
aqui não havia mais milagre além da senhora do turbante vermelho
recebendo moedas por vender pedacinhos de corpo e corpinhos inteiros para
pregar no manto de um Cristo que tem gosto de molho de tomate insosso.
Ali ficou meu irmãozinho, ou seja, um bonequinho tão deformado quanto
ele, rodeado de centenas de outros bonequinhos igualmente horrorosos e
cabeças e braços e pernas e corações, como se houvesse acontecido uma
explosão.
— Ele tem que ficar aí — minha mãe ficou furiosa.
E eu chorei durante todo o caminho para casa porque me dei conta de que
ela também não sabia o que estava fazendo.
Em casa, mamãe deu um pouco daquela água ao meu irmãozinho e
jogou-a na cabeça dele. Ele abriu os olhos e mostrou sua boca, seus dentes.
Finalmente. Ele nos sorria.
Assim, com aquele sorriso, nós o colocamos na semana seguinte numa
caixa branca, pequenina, que o bairro fez uma vaquinha para comprar.
Voltei à escola. Outra vez à quarta série, onde sou enorme e não tenho
amigos.
Quando me perguntam se tenho irmãs ou irmãos, penso no menininho
que está pendurado no manto do Cristo do Consuelo e digo que não.
Eles não iam entender.
PAIXÃO
Encolhida no chão, você parece uma trouxa que algum mendigo largou
aí, sem temer que o roubassem porque não há nada de valor nesse saco sujo.
É você. O pó que se levanta das sandálias da multidão — a multidão que
corre para ver o espetáculo — cobre-a por completo. Sua boca está cheia de
areia e uma pedra pontiaguda é cravada em seu esterno. Alguém a pisoteia.
Você continua imóvel. Um cachorro faminto, selvagem, vem cheirá-la. Você
continua imóvel. Você pensa em veneno, em raízes amargas assassinas, nas
presas afiadas das serpentes do deserto que tantas vezes você segurou,
pensa em acabar com tudo rápido.
Você sabe, a única coisa que sabe, é que não poderá viver sem ele. O que
não sabe, e nunca saberá, é se ele a amou. Isso é algo que só sabe quem foi
amado algum dia. Você não é uma dessas pessoas. Sua mãe foi embora
deixando-a catarrenta, magra e nua. Um animalzinho molhado na porta da
casa de seus avós.
Ela foi embora procurar homens, diziam eles, dizia a gente da aldeia
cobrindo o canto da boca. Usavam para falar dela essa palavra que depois,
não muito mais tarde, foi sua, coube em você como um vestido justo,
contagiou-a como uma doença.
Você não sabe, também, que sua mãe queria que você se salvasse dela,
disso que você herdou e que se parece tanto com uma graça quanto com
uma maldição.
A primeira profecia que você cumpriu foi a de “você é igual à sua mãe”.
Batiam em você para que não fosse igual à sua mãe enquanto gritavam você
é igual à sua mãe. Certa noite, por volta dos seus doze, treze anos, você se
atrasou na volta de sua ocupação favorita: recolher raízes, ervas e flores
para depois, em casa, fervê-las, amassá-las, misturá-las e ver o que
acontecia. Você voltou correndo com o alforje cheio, levantando poeira com
suas sandálias, sujando a barra da saia e as pessoas, ao verem-na passar toda
suada, ofegando, balançavam a cabeça como dizendo “pobrezinha”, como
dizendo “outra como a mãe”.
Ela, sua avó, ele, seu avô, lhe bateram tanto que você perdeu para sempre
a audição do ouvido direito e agora manca de uma das pernas. Com uma
vara de loureiro — aquela vara de loureiro — rasgaram suas costas, as
nádegas, o peito diminuto, até deixar tiras de pele penduradas, como uma
laranja meio descascada.
Gritavam, gritavam, e açoitavam, açoitavam. À luz do fogo, suas sombras
pareciam gigantes furiosos. Você fechou os olhos. Você se enrodilhou no
chão, apertou a pedra cinza que sua mãe atara ao seu pescoço e disse para si
mesma “que eles me matem, ou então vão ver”.
Mas eles não te mataram.
Você despertou de madrugada quase se afogando com seu próprio sangue.
Você cuspiu, vomitou e, com uma dor agonizante, conseguiu se erguer.
Devagar, muito devagar, cobriu com um de seus emplastros cada ferida e as
envolveu com panos. Você foi até seu alforje, procurou um recipiente e ali,
no escuro, misturou com o almofariz várias ervas e raízes, acrescentou
algumas gotas de um líquido que brilhou — amarelo — à luz da lua. Seus
olhos, também amarelos, se iluminaram como os de um gato.
Isso ninguém viu.
Você pôs o recipiente com a mistura no fogo, sussurrou algumas palavras
— que soaram como um cântico, uma reza, um feitiço —, cobriu com a
palma da mão sua pedra cinza, pegou suas coisas e foi embora dali.
Quando encontraram seus avós, eles estavam secos, desidratados,
esticados como as cobras ocas que às vezes aparecem nas veredas.
Diziam, aqueles que os encontraram, que estavam marrons e que tinham
os olhos saltados das órbitas e as mandíbulas inumanamente abertas.
Diziam, aqueles que os encontraram, que pareciam ter morrido de terror.
Seu paradeiro se perdeu durante muitos anos. Mais uma menina perdida
num mundo de meninas perdidas. Alguns diziam que você havia se unido
aos nômades e percorria as aldeias dançando e mostrando os peitos por
algumas moedas. Outros asseguravam que você tinha matado uns homens
que queriam roubar o pingente — a pedra — de sua mãe. Outros ainda
estavam convencidos de que você havia morrido leprosa, destroçada e
sozinha. Que alguém que conhecia alguém que conhecia alguém a tinha
visto agonizante num leprosário, trancada numa masmorra com outros
assassinos, dançando sem roupa diante de homens excitados.
Na verdade, ninguém se importava com sua vida e a única coisa que
queriam saber era que diabos você tinha feito com seus avós para que
amanhecessem secos como galhos.
Começaram a chamá-la também de outra coisa, como sua mãe, e a
usavam, usavam seu nome, para assustar as crianças.
Um dia lhe disseram que ali, naquela terra maldita que você tinha jurado
não voltar a pôr os pés, havia um homem especial e que você devia
conhecê-lo. Você nunca poderá dizer claramente por quê, mas desfez o
caminho percorrido durante tantos anos. Você andou por quilômetros e
quilômetros, despedaçou suas sandálias e chegou certa manhã, descalça, o
cabelo emaranhado, a pele queimada.
Ele parecia estar esperando por você. Pediu uma tina de água limpa e se
ajoelhou para lavar, com uma delicadeza quase feminina, seus pés sujos e
cheios de chagas. Você nunca poderá dizer claramente por quê, talvez
porque esse tenha sido o único ato de ternura que já lhe haviam dedicado —
a você, criatura das surras, filha da brutalidade, princesa das noites que
terminam com as mulheres sangrando —, mas naquele instante você tomou
a decisão de oferecer sua vida a ele, de fazer o que ele quisesse, o que fosse,
de ser barro nas mãos dele, ser sua, sua escrava.
Ele perguntou seu nome e o repetiu com uma doçura que fez com que
você chorasse as primeiras lágrimas, suas lágrimas, menina, que se
tornariam lenda. Então ele estendeu a mão e secou-lhe as lágrimas e disse
— sim, você não está inventando, ele disse — que a amava.
Disse: eu te amo.
Já não havia como voltar atrás. A órfã, a humilhada, a maltratada, a
aleijada, a meio surda, a puta, a assassina, a leprosa já não existiam —
nunca mais existiriam.
Era você diante dele.
E você diante dele era uma mulher extraordinária. A melhor das
mulheres.
E se um cachorro, que é um ser de pouco entendimento, segue fielmente a
quem lhe acaricia a cabeça e o lombo, como você não ia segui-lo até mesmo
ao inferno? Como não faria até o impossível para fazê-lo feliz, para ajudá-lo
a cumprir suas promessas? Assim, como um cachorro agradecido, você se
sentava aos pés dele e ficava observando-o, escutando-o enlevada, louca de
amor, como se da boca dele saíssem uvas, mel, jasmim, pássaros.
Às vezes, enquanto ele contava suas doces histórias de pescadores e
pastores, você apertava a pedra cinza de seu peito e apareciam mais vinte,
trinta, quarenta pessoas a escutá-lo como você: com devoção infantil, como
se ele fosse um mago, como se de sua boca saíssem pássaros e mel.
Você sabia que isso o fazia feliz.
E então, muita gente começou a segui-lo. Ele mudou. As histórias se
tornaram receitas; os relatos, ordens. Ele começou a falar de coisas que
você não entendia, que na verdade ninguém entendia, coisas mágicas,
santas, talvez sacrilégios. Para você, nada disso importava.
Os outros já não deixavam que você o tocasse — com exceção da túnica,
das sandálias —, e ele já não visitava sua tenda com tanta frequência, com
tanta urgência. Restava a lembrança de seu cheiro de homem do deserto que
não saía de suas narinas, de seu corpo, de seu vestido. Um cheiro que nunca
desapareceu, que até o último instante de sua vida a fazia tremer. Ele era
seu, agora um enviado dos céus, dizia, mas seu. E você era dele. Por isso
você apertou a pedra em seu pescoço quando ficaram sem vinho naquelas
bodas e você fez aparecer peixe e pão onde não havia nada mais que pedras
e areia — porque em sua solidão, você aprendeu que a água, as pedras, a
areia lhe obedeciam.
Por isso você também aplicou, sem que ninguém a visse, sem que
ninguém quisesse vê-la, seu unguento nos olhos brancos do mendigo, que
os abriu e disse “milagre”, e você se escondeu no sepulcro daquele homem
para inflar seus pulmões mortos com o sopro da vida — na ocasião você
invocou forças que não devia, a morte é a morte, mas é muito tarde para se
arrepender — e conseguiu que o cadáver se levantasse, que andasse e que
ele se preenchesse — mais, cada dia mais — de glória.
Mas isto você não ia permitir. Que ele morresse. Não: que se deixasse
matar. Isso você não ia permitir. Você tentou impedir, falou-lhe do
unguento, das pedras que se tornaram alimento, do vinho que era água, dos
olhos brancos, vazios, daquele mendigo, do cadáver que andou, da pedra
que você carrega no pescoço, das forças que você invocou, infinitamente
mais poderosas que você e ele. Mas ele não acreditou em você. Ele a pôs de
lado com violência — ele, com violência —, e você caiu, e ali do chão,
você olhou para ele e viu deus. Esse homem era seu deus. E ele disse que
você era mentirosa, disse que você era impostora, disse que você era louca,
e ele falou:
— Afaste-se das minhas vistas, mulher.
Se um cachorro permanece na porta daquele que lhe dá migalhas de pão e
mostra as presas, disposto a despedaçar qualquer um para protegê-lo, como
você não ia defendê-lo até mesmo de si mesmo, de sua própria convicção?
Por isso, no dia em que o levaram e lhe fizeram todos aqueles horrores,
você apertou a pedra e o céu se carregou até se converter numa massa de
lava cinzenta, e seu pranto — ai, seu pranto — fez com que as pessoas há
milhares de quilômetros começassem a chorar, fazendo amor, lavrando a
terra, lavando a roupa num rio, em sonhos.
Quando a cabeça dele pendeu sobre o peito, inerte, você se enrodilhou
toda e as pessoas pisotearam-na e um cachorro selvagem a farejou e você
pensou em venenos e quis morrer ali mesmo, mas então você começou a
chorar. E seu pranto, mulher de lágrima viva, fez uma poça na qual você
molhou seu vestido como se fosse um sudário, e nua, sem que ninguém a
visse, sem que ninguém quisesse vê-la, você se enfiou no sepulcro no qual,
horas depois, o depositariam: esquelético, ensanguentado, mortíssimo.
Com suas costas pregadas na pedra fria, seu corpo pálido, de moribunda,
você o viu se levantar e sorriu para ele. Usava no pescoço a pedra cinza, ou
seja, usava sua força, seu sangue, sua seiva. A luz que entrou no sepulcro
quando ele mexeu a pedra lhe permitiu vê-lo pela última vez: belo, divino,
sobrenaturalmente amado.
Ele olhou para você, você está quase certa de que ele olhou para você, e
com seu último alento — você estava morrendo — você disse algo a ele,
você o chamou, estendeu a mão. A palavra amor pendia no teto como uma
estalactite. Mas ele continuou andando ao encontro de seus fanáticos que
gritavam, que se jogavam na areia de joelhos, que cobriam o rosto com as
mãos.
E não voltou os olhos para trás.
LUTO
Pela primeira vez na vida, Marta se sentou à cabeceira da mesa e fez com
que sua irmã, limpa, vestida com linho branco e ungida com óleos
perfumados, se sentasse à sua direita. Trouxe mais vinho antes que a bilha
anterior acabasse e, sem dizer as preces, devorou o frango, as coxas gordas
do frango com sua casca crocante, caramelada, saborosa, que nunca, jamais,
tinham sido para ela. Olhou para Maria, que parecia uma bárbara
destroçando com os dentes o peito, as coxas, o traseiro, e teve um ataque de
riso. O riso do vinho e da liberdade. O riso que se desata só de se sentar à
cabeceira da mesa e de comer a gordura dourada do frango e de ver a bela
Maria: a boca e as mãos sujas, e com essas mesmas mãos gordurosas pegar
a taça para beber uma grande golada de vinho com a boca cheia. Vinho.
Dupla de libertinas. Teve vontade de dizer a Maria, olhe pra nós, olhe pra
nós, nem parecemos nós mesmas, tão cheias de gozo, hoje que deveríamos
guardar luto, hoje que a casa deveria estar coberta de panos pretos. Ficamos
sozinhas, minha irmã, mais que sozinhas: sem um homem em casa, e
deveríamos estar tremendo como filhotes de cadela morta.
Mas não disse nada. Sorriu-lhe. E Maria lhe devolveu o sorriso com os
dentes cobertos de pedacinhos de carne escura. Elas se saciaram e
continuaram comendo apenas para ver o que acontecia, e já com a barriga
cheia saíram para o pátio abraçadas pelos quadris. A noite estava estrelada.
Os animais dormiam, os escravos também. O mundo inteiro dormia um
sono áspero, intoxicado. Havia comida, havia água, havia terra, havia teto.
Marta quase pôde sentir na atmosfera o cheiro do mar das férias, quando os
pais ainda eram vivos, quando ele não era ele, e sim mais um deles: três
crianças correndo pela praia e voltando a cada instante, olhe mamãe uma
concha, olhe papai um caranguejo. Tempos bons, sim, o ar tinha um aroma
de dias bons quando o pai não voltava azedo e batia em qualquer um que
atravessasse seu caminho com uma vara de couro fininha que abria a pele
em silêncio, como se não fosse nada, até que o sangue saía como uma
surpresa vermelha e a dor aguilhoava. Começava pela mãe, continuava no
irmão e seguia para Marta, que dava um jeito de esconder Maria da varinha.
Esse pai os convertia em outras pessoas, em outra família. Talvez nem
sequer fosse possível usar esta palavra sagrada: família. Nos dias do pai
hediondo, alcoolizado, eles se enfiavam embaixo da cama e a mãe gritava e,
às vezes, ele trocava a vara pelo chicote e esse, sim, avisava a dor que vinha
vindo, com um tchas, tchas, tchas no ar.
Marta abraçou mais sua irmã Maria, agora de frente para ela, agora
olhando para sua cara de menininha envelhecida, no entanto tão bela, com
aqueles olhos raros, verdes, tão perturbadores. Enxugou suas lágrimas com
os lábios e disse que a amava, e disse também que a perdoasse. Maria sabia
do que ela estava falando. Então, cheia de vinho e de frango e da noite
libérrima, Maria tirou o vestido, fechou os olhos e abriu os braços para que
sua irmã a visse inteira, nua, como se estivesse na cruz. Para que visse o que
as pessoas são capazes de fazer quando ninguém as detém. Para que
entendesse, nos talhos da pele, que a crueldade sempre triunfa diante do
desamparo. Alguém havia escrito com um objeto pontiagudo a palavra puta
em sua barriga; alguém havia pisoteado sua mão direita até convertê-la num
penduricalho; alguém havia mordido seus mamilos até quase arrancá-los,
deixando-os pendentes por um pedacinho de pele de seus peitos redondos;
alguém lhe enfiara arreios no ânus deixando-lhe uma hemorragia perene;
alguém produzira nela um aborto a pontapés; alguém, ninguém, fizera nada
durante os dias em que ela ficou inconsciente e os ratos, com seus dentinhos
esforçados, começaram a comer suas bochechas, seu nariz; alguém,
certamente seu irmão, deixara suas costas estriadas de tantas chicotadas.
Tchas, tchas, tchas.
E infecções, chagas, podridão, sangue, fraturas, anemia, doenças
venéreas, pústulas, dor.
Marta se ajoelhou diante de sua irmã. Levantou seus braços abertos para
ela e sussurrou-lhe dez, trinta, cem vezes, nunca mais, nunca mais, nunca
mais. E se arrependeu de estar viçosa, de estar imaculada, de estar viva. E
chorou, e cuspiu no chão, e amaldiçoou o irmão. Amaldiçoou a sepultura do
irmão e seu maldito nome, e seu maldito caralho, e seu maldito corpo que já
devia estar começando a apodrecer. E abraçada aos joelhos fracos, cheios de
crostas, de sua irmã, disse:
— Não tenho outro deus além de você, Maria.
Então a porta se fechou de um golpe e as duas deram um grito. Caralho, o
vento. Maria se vestiu e entraram na casa, de repente inóspita e gelada
como uma cova. Ao aproximar a vela da mesa, perceberam que aquela
espécie de casca sobre os restos do frango eram dezenas de grandes baratas
castanho-escuras que começaram a correr pela mesa fazendo um barulho
estalado de folhas secas. As duas gritaram como se tivessem visto uma
aparição. Marta disse que para isso, e só para isso, é que se necessita de um
homem em casa, e Maria, que tinha subido numa cadeira e puxado as saias
até a cintura, começou a rir como uma possessa e a responder que não, que
preferia as baratas, todas as baratas do mundo, do que ter um homem em
casa. Então pulou com os dois pés descalços no chão e caiu, com precisão,
um pé em cima de cada uma, sobre duas baratas que se abriram como uma
caixinha e soltaram um sumo esbranquiçado. Marta dizia que se calasse,
que iam escutá-las, mas também ria de que uma bobeira como essa as
tivesse feito gritar assim e de que sua irmã estava sem calcinha no meio da
sala e de que não precisavam de um homem, muito menos daquele homem,
e, enquanto isso, não parava de mexer as pernas e sacudir o vestido caso
algum bicho pensasse em subir em cima dela, e parecia que estava
dançando, e se alguém as tivesse visto: uma nua da cintura para baixo, puro
riso, matando baratas, e a outra dançando como uma qualquer, nunca
pensaria que há apenas quatro dias, quatro, um irmão, o único irmão dessas
duas mulheres, tinha morrido.
Mas era isso.
Ele estava doente há tempos, diziam que era algum mal que tinha trazido
do deserto. Que trouxera de alguma mulher do deserto, pensava Maria, mas
jamais comentou com sua irmã nem com ninguém. Ela já havia visto coisas
assim: homens saudáveis com o pé na cova em questão de meses, com as
vergonhas pretas, queimadas como a palha do arroz, e delirando sobre o
demônio ou o sabor dulcíssimo das tâmaras de alguma terra que não existe.
Maria estava certa de que seu irmão tinha morrido de pecado, mas quem
acreditaria nela? Era ela quem carregava esse peso, não seu irmão; sim,
claro, seu irmão perfeito: puro como as águas do céu. Maria tinha boa
memória. Lembrava-se do dia que seu irmão a expulsou da casa principal e
a mandou dormir depois dos escravos e das baias, num estábulo escuro e
destelhado. Sua irmã puta não merecia dormir em linho nem em seda
bordada como Marta, a irmã boa, a irmã mística. A puta merecia dormir
entre os ratos e sobre esteiras de palha fétidas. A puta, aliada do maligno,
tocava-se entre as pernas e gemia. Nisto consiste ser puta: em gostar do
gozo. Uma vez a viu. Entrou no quarto e encontrou Maria com a mão entre
as pernas. Nesta casa não entra nenhuma puta, disse. Isso foi tudo. Naquela
noite, prendeu-lhe num cocho e sob o céu estrelado partiu sua cara a
pontapés. Quando Marta saiu para pedir piedade, ele levantou a mão e disse
que, se ela desse mais um passo, ele a mataria. Vou fazer a mesma coisa
com você, disse-lhe, mas também vou te matar. Quem defende uma puta
também é uma puta, gritou. E então Marta ficou ajoelhada sobre o chão
empoeirado do pátio vendo seu irmão golpear sua irmãzinha até quase
destroçá-la.
Agora estavam as duas sozinhas. Marta tinha ido dormir no quarto do
irmão e o seu, melhor, tinha ficado para Maria. Agora era o tempo de mimá-
la, de adorá-la, de glorificá-la. Lá naquele estábulo a tinham violado — ela,
que era virgem — todos os escravos, inclusive aqueles que até uma semana
antes a chamavam de menina Maria. Por lá desfilavam os homens, jovens e
velhos. Ali, sobre ela, nascia e morria a sexualidade da aldeia. Ali, ele a
havia maltratado e penetrado pelo ânus e pela vagina e torturado, ele que se
dizia puro, que se dizia homem de deus, que era amigo querido daquele, o
mais santo dos santos, aquele que quando vinha à casa deixava tudo em
alvoroço e do qual Maria lavava os pés empoeirados e calosos com
perfumes exóticos, divinos, únicos.
Marta sabia disso porque mais de uma noite o seguira e o observara com
os olhos paralisados de terror. E depois, quando os fechava, voltava a vê-los
outra vez e outra vez e outra vez. Irmão sobre irmã. Maria como um corpo
morto, os olhos fechados, movendo-se com a inércia do impulso, como um
cadáver pálido — uma mosca sempre percorrendo sua boca, seus olhos, as
fossas nasais — ainda manchado de sangue, e ele, ele olhando para todos os
lados como um delinquente, caminhando sob o luar de volta para a casa
principal, com o pau manchado com aquele mesmo sangue. Será que Maria
estava com as regras? Ou será que estava tão devastada por dentro que já
não havia carne, e sim hemorragia? Nem o céu nem a terra voltariam a ser
iguais. Irmão sobre irmã, como nas profundezas das trevas.
Isso aconteceu muitas, muitas, muitas noites.
O catre onde sua irmã jazia — quase morta, mal viva — era um muladar
de excrementos onde os bichos se proliferavam e que, para alguns homens,
embora de graça, embora fácil, já era muito repulsivo. Um corpo putrefato,
desagradável, pestilento. Maria, a doce e formosíssima Maria, a dos olhos
como gemas de montanhas distantes, filha do mar e do deserto, era agora
asquerosa para o mais seboso dos forasteiros. Às vezes, alguém muito
necessitado lhe jogava um balde de água por cima do corpo e assim,
molhada, tomava o cuidado de não tocá-la demasiado enquanto a penetrava
rápido, com violência, como se fosse uma cabra.
Marta não podia cuidar de sua irmã. As paredes tinham olhos e bocas e
línguas parecidas com as das serpentes. Na mesma hora contariam a ele, e
ele faria o mesmo: colocaria as duas, uma ao lado da outra, no mesmo catre,
no mesmo inferno. Ela podia dar uma moeda a alguma serva para que
levasse um balde d’água e uma esponja e lavasse o corpo machucado, roxo
e sanguinolento de sua irmã, mas fazer isso não era seguro. Era preciso ter
fé. Fé na serva. Fé no escravo que lhe levaria um pouco de peixe, leite e
pão. Fé no sentinela que impediria, também por moedas, que todos os
homens do povoado continuassem a usando. Ao menos durante aqueles dias
do mês. Ao menos durante os dias santos. Ao menos hoje. Fé no menino
que levaria um bilhete que dissesse aguente, nós duas vamos embora daqui.
Mas nada além de fé, o mais doentio dos sentimentos. A fé não serviu, por
exemplo, quando o amigo do irmão, o mais santo dos santos, os visitou e
perguntou por Maria e seus olhos de pedra preciosa e recebeu desculpas, e
ele voltou a perguntar por Maria e seus olhos de um verde de outro mundo e
o irmão não pode fazer nada além de levá-lo ao estábulo imundo onde a
mantinha estirada, meio desnuda e manchada de todo excremento, aberta,
numa posição mais infame que a de um animal esquartejado e aquele
homem, o mais santo dos santos, começou a chorar e a gritar e a perguntar e
a agitar o irmão como dizendo ninguém poderá perdoá-lo pelo que você fez
aqui, solte-a agora mesmo, estúpido sádico maldito louco. Mas o irmão não
disse nada além de ela é pecadora, senhor, ela é a mais pecadora das
mulheres. Eu a vi. Goza do pecado carnal, senhor. Ninguém me disse. Tive
o desprazer de presenciá-lo, senhor, é repugnante. E se eu soltá-la, então as
outras irão acreditar que isso pode ser feito sem consequências, que podem
fazer assim.
E então o homem, ao qual Maria tinha lavado os pés com seu próprio
cabelo, se pôs de joelhos, rezou por ela durante um tempo, alguns minutos,
e entrou na casa para jantar e beber com os rapazes. Quando estava indo
embora, disse ao irmão, depois de abraçá-lo: você deveria soltá-la. A voz
soava chorosa, talvez embriagada. E o irmão, mexendo muito a cabeça,
olhando para baixo, disse que sim, senhor, será feita sua vontade. Marta
saiu a seu encontro, pôs-se de joelhos: por favor. É a casa do seu irmão, o
santo respondeu a Marta, eu não posso me impor a ele, o respeito a um
homem é demonstrado respeitando sua casa, mas já lhe disse que ele deve
soltá-la e vou rezar para que assim se faça. Você deve ter fé, disse a Marta,
fé, Marta, fé, antes de desaparecer no deserto.
Para Marta, essa palavra já tinha gosto de merda na língua.
E Maria continuou no estábulo.
Quando o irmão ficou doente, Marta — à qual todos elogiavam por sua
entrega, sua disponibilidade, suas habilidades, seus cozidos, sua ternura,
suas infusões — se empenhou em cuidar dele. Ela o alimentava, limpava,
medicava e inclusive aplicava unguento branco em suas partes íntimas em
carne viva. Tudo aquilo que um observador pudesse confundir com carinho
era realizado com um ódio profundo. Aos olhos alheios, Marta era pura
delicadeza, mas quando estavam sozinhos, ela o alimentava com caldos
frios, gelatinosos, sempre com um pouco de estrume fresco, areia ou
minhocas que pegava no quintal e que enfiava, tomando cuidado para não
ser vista, numa caixinha. No momento da limpeza que fazia no corpo do
irmão, que havia se convertido numa chaga púrpura, sanguinolenta e cheia
de pus, começava sendo terna, com água morna, azeite de coco e esponja do
mar e de repente, sem aviso, sem mudanças na respiração, se tornava feroz.
Marta trocava a esponja do mar por palha de aço e esfregava os braços para
cima e para baixo como se lixa a madeira. Finalizava seu polimento com
álcool. Era imaginativa, podia verter cera quente nas feridas ou então
cânfora, urtiga, limão. Depois saía do quarto e ficava sentada numa cadeira
ao lado da porta, com as mãos cruzadas sobre o regaço, piedosas, e os olhos
muito fechados, enquanto lá dentro seu irmão se contorcia de dor e fazia
ruídos espantosos, surdos, porque já não podia gritar: a doença havia
arrebatado sua língua e no lugar dela tinha deixado uma espécie de
carúncula rosa que se movia dentro da boca desdentada com um quê de
monstruoso e lascivo.
Qualquer um que tivesse visto Marta acreditaria que orava pela melhora
de seu irmão enfermo, mas ela estava rezando para que ele morresse
lentamente, com a maior dor possível.
Um dia o homem morreu. Não foi fácil nem foi rápido, os estertores
horrorosos duraram horas. Estava com sede e ninguém lhe deu de beber.
Marta fechou as portas e as janelas e, como se fosse um espetáculo, sentou-
se para vê-lo morrer. Deixou-o agonizar em solidão, apesar de o irmão
estender sua mão esquelética para ela, talvez pedindo companhia, contato.
Que pusesse uma mão viva, como se fosse cobrir um passarinho, sobre sua
mão quase morta, que enxugasse seu suor e que vertesse sobre sua testa ao
menos um par de lágrimas, dois diamantes pequenos, para que ele as
entregasse a seja lá o que for que estivesse do outro lado da morte. Os
agonizantes gemem, agitam-se, choram: temem que tudo o que se disse
sobre o céu e o inferno seja mentira. Ou que seja verdade.
Quando o homem, por fim, ficou imóvel, a boca escancarada e os olhos
muito abertos, como se lhe tivessem contado algo engraçadíssimo, Marta se
levantou muito devagar, abriu a porta, percorreu os cômodos, saiu para o
pátio e com toda a teatralidade do mundo se jogou ao chão e gritou e gritou
e gritou até que vieram todos os vizinhos. Ela tapava o rosto com as mãos,
não havia pranto. Estava iluminada como um astro. Maria escutou o grito e
seu coração paralisou. Depois fechou os olhos, infestados de ramelas, e
voltou a abri-los muito devagarinho, como um recém-nascido. E, como um
recém-nascido, começou a gritar chamando sua irmã.
Ao fim de quatro dias, quatro, apareceu no povoado o amigo, o homem
santo, e então Marta teve que fingir, dizer não, não, não, e chorar seu pranto
sem lágrimas pelo irmão morto. Se você estivesse aqui, disse a ele porque
não lhe ocorreu outra coisa. Se você estivesse aqui. Mas sabia que essas
palavras eram tão ridículas quanto pêsames, quanto uma oração. O que foi,
foi. O que é, é. Então o amigo, o homem santo, pediu que o levassem ao
sepulcro e ali o deixaram, de joelhos, chamando ao morto como se chama
alguém do umbral de sua casa, como se do outro lado da pedra tivesse
restado ainda alguma vida para escutar.
Marta deu de ombros diante de semelhante insensatez e voltou à sua casa,
à festa de sua irmã livre, à vida.
Naquela noite, enquanto Marta e Maria comiam cordeiro, uma batida na
porta as sobressaltou. Deve ser o vento. O vento nessa época, tão terrível.
Continuaram comendo até que Marta e Maria, ao escutar o ranger da porta,
levantaram a cabeça e viram que ela cedia à pressão de uma mão. Ela se
abria.
Primeiro entraram as moscas e depois o irmão morto, rodeado de um
cheiro nauseabundo. Abria e fechava a boca, como se estivesse as
chamando pelo nome, mas nenhum som, apenas vermes, saía de sua boca
desdentada.
ALI
A dona Ali era excêntrica, excêntrica até na generosidade. Quer dizer, ela
não nos dava comida passada ou roupa velha. Ela nos dava coisa boa. O
mesmo que ela comia ou vestia. Bom, sua roupa ficava enorme em nós, mas
ela mandava reformar antes de nos dar. E quando ela viajava, nos trazia
roupas novas, bolsas, maquiagem, lembrancinhas, como se nós fôssemos
parentes dela e não empregadas. A dona Ali era assim. Ela pedia comida e
perguntava o que nós queríamos porque, como ela dizia, a gente podia não
gostar de algo, podia ficar doente, né? Nós nunca tínhamos pensado nisso.
As patroas mandavam qualquer coisa pra nós, e a gente comia sem
pestanejar. Ou, por exemplo, quando íamos ao supermercado, ela nos dava
sua carteira. Assim, nas nossas mãos, a carteira. Ou seja, era excêntrica,
mas uma excentricidade boa. Ah, dona Ali, a senhora é muito boa, dizíamos
a ela. As outras empregadas nos contavam que as patroas lhes davam frutas
já passadas, a carne meio suspeita, os abacates pretos, que serviam apenas
pro cabelo, ou o sapato com o salto quebrado, as calças com o meio das
pernas descosturado, os cremes que já haviam passado da validade. Isso,
porcarias. Ainda assim: obrigada, patroa, sim, muito bonito, muito bom,
patroa. E também inspecionavam as carteiras e as bolsas na hora de ir
embora e às vezes até debaixo da saia pra ver se elas tinham enfiado alguma
comida na calcinha. E lhes diziam, se vocês não fossem tão ladras, não
teríamos que nos passar por policiais, fazendo todas essas coisas. Diziam
tudo isso apalpando-lhes lá embaixo ou passando a mão pelas pernas por
cima das calças ou fazendo-as esvaziar a bolsa no chão.
As outras empregadas diziam com inveja: então a gordinha é bem legal,
né? As gordas são as melhores. Quem me dera achar uma gorda. Essas
magrelas são muito miseráveis. E são ruins. E só pensam em emagrecer,
tomam esses remédios. Marlene, onde estão meus remédios? Já vou levar,
patroa. O que será que essas pílulas têm? Porque essa dona anda bem louca,
com os olhos saltados, parece uma coruja. Ai, a minha, às vezes, quando vai
ter um compromisso, passa dias de dieta, comendo queijo branco com água,
e se você diz bom dia, patroa, ela quer arrancar seus olhos, e se não diz,
também. A minha vomita: pede uma pizza tamanho família, chocolate,
batata frita, se tranca, come tudinho e depois ouço ela vomitando sem parar.
A pobre Karina, a faxineira, é quem tem que limpar tudo aquilo e não
recebe nem um obrigada nem nada. Não, pois você não vê que elas nos
pagam? O básico, mas nos pagam. Pois os avós delas não pagavam as
empregadas, eram, como se diz, seus donos. Eles as traziam do campo, as
próprias mães as entregavam, e lhes davam casa e comida e obrigada,
patrão, papai do céu que o abençoe e lhe dê muitos anos de vida. Sonia
trabalhou com uma que era uma bêbada e tomava pílulas e dormia o dia
inteiro e quando levantava, ficava furiosa e dava uns sopapos na Sonia, que
se interpunha entre ela e as crianças. Quando a mandou embora, como essa
Sonia chorava, porque, ai, ela adorava as crianças, diz que as criaturinhas
choravam, não vá embora, Sonita, não deixe a gente aqui sozinha, Sonita. E
o bebê berrava como se a mãe estivesse o abandonando, uma lástima,
porque a Sonia era realmente a mãe desse menininho. Sim, isso aconteceu
aqui do lado, no condomínio aqui do lado, o do lago. O homem tinha um
cargo bem importante no governo, acho que era prefeito, uma coisa assim.
E depois com as amigas: tudo perfeito, tudo divino, tudo um sonho. Essas
risadinhas, né? Cobrindo a boca. A cara que elas fazem, falsas de tudo, com
as porcarias que se injetam que ficam como espantadas, mais parecem de
plástico essas mulheres, os olhos arregalados, os lábios como de sapo.
Ficam inchadas, horrorosas, como se estivessem drogadas, mas pagam uma
nota por isso. Nas festas, contratam garçons com luvas brancas. Deve ser
pra que não toquem com as mãos escuras a louça branca, e põem umas
toalhas nas mesas que custam mais do que nós ganhamos num ano. E
entopem as mesas com aquele peixe cru rosado. E espalham flores por toda
a casa. E tomam banho de perfume. Deve ser pra disfarçar o cheiro de
vômito. O cheiro de pijama e lençóis sujos, cagados, menstruados,
peidados, de quando não se levantam por vários dias. Ninguém as vê assim,
quando a gente tem que ir, devagarinho: patroa? É o seu marido no telefone,
quer saber se a senhora já levantou. Diga-lhe que sim, que eu estou no
banho. Não quero que me incomodem, Mireya, vá com o motorista pegar as
crianças e dê o almoço pra elas e pelo amor de deus, que não entrem aqui,
ouviu? E as crianças já nem perguntam pela mãe. No começo, sim, mas
depois já vão pra cozinha sozinhas. E contam as coisas pra você, o futebol,
as provas, os amigos e amigas, do que gostam e o que detestam. As coisas
que lhes passam pela cabeça e pelo coração e você também lhes conta e, no
fim, são como seus filhos. Elas vão crescendo na cozinha, comendo com
você, até que se tornam grandes e começam a achar estranho gostar tanto de
você, embora no fundo saibam que a mãe delas foi você, e elas olham pra
você um dia e não sabem se começam a chorar e correr pros seus braços
como quando eram pequenas e caíam ou a cumprimentam com a cabeça
porque já são mocinhos e mocinhas da sociedade que sabem que não se
cumprimenta os empregados com beijos e abraços.
A gordinha era uma boa mãe, então?
Sim. A dona Ali era uma mãe excelente até um pouco antes do fim. Então
deu a louca nela e já não era mais, não era. Não conseguia ficar perto do
Mati, nem tocava nele. Nós não podíamos acreditar, uma criatura assim,
como um menino deus, com aqueles cachinhos dourados e a carinha
redonda, um anjinho, correndo pra abraçá-la, e ela com uma voz já
esquisita, muito estridente, como quando você pisa num rato, nos chamava
aos gritos. Como se estivesse correndo perigo de ser morta. Pela criaturinha.
Seu bebezinho. A Alicia já era maior e aquela menina sempre foi bem
inteligente, rápida, muito esperta. Com aqueles olhos azuis que abarcavam
tudo. Que fantásticos os olhos daquela menina, era como se olhassem por
dentro de você inteirinha. Parecia que tinha visto na mãe uma coisa feia
porque soube na hora. De primeira. Então já não entrava no quarto onde ela
estava. Deixou de pensar que tinha mãe: já se via como uma menina órfã,
brincando sozinha e se encarregando do irmãozinho, dava vontade de
morrer de pena quando a gente olhava pra ela, tão séria, vestindo-o ou
dizendo-lhe que deixasse de chorar por besteiras, que crescesse. E o patrão,
bom, o patrão fazia o que podia com sua gordinha louca, saía pra trabalhar
como todos os patrões do condomínio, todos às oito em ponto, todos com
um carro 4 x 4, todos com camisa e calça passadas por nós. E aquela cara de
tristeza que doía a alma. Ele também já se sentia viúvo, com seus filhinhos
de mãe louca. A dona Ali, desde que começaram os ataques, a loucura,
dormia no quarto de hóspedes e nos pedia que levássemos sua comida na
cama. Mal via o patrão. Quando se topavam na casa, ela lhe perguntava que
foi? e ele tentava abraçá-la, mas ela não deixava, dava seu gritinho de rato
pisoteado e voltava pro quarto de hóspedes e ele ficava do lado de fora,
parado sem fazer nada, por um bom tempo, às vezes com a mão na porta.
Nós tínhamos pena dele. Nós tínhamos pena de todos, na verdade. A dona
Ali cheirava mal, pobrezinha. O Mati não dormia bem à noite. A Alicita
quase não falava e o patrão não sabemos, trabalhava até tarde e nos dizia
obrigado, obrigado. Quando vinha a mãe da dona Ali, a dona Teresa, aí sim
era terrível. Ela a obrigava a tomar banho, a cortar as unhas, a se depilar, a
lavar toda a sua roupa, a arejar o quarto. O condomínio inteiro ouvia os
gritos. Vinha o motorista da dona Teresa pra ajudar a levantar a dona Ali e a
presença daquele homem a enlouquecia como se ele fosse o próprio diabo.
Todos nós terminávamos arranhados e mordidos e chorando porque a dona
Ali, quando via o homem, ficava transtornada, se tornava um touro
aterrorizado, cem quilos de banha enfurecida. Praticamente era preciso
amarrá-la pra levá-la ao banheiro. Quando o motorista ia embora, a dona
Ali parecia ficar um pouco mais tranquila, e se nós percebíamos isso, não
entendemos como a mãe, a dona Teresa, não entendia, e trazia sempre o
homem com ela. Nós tínhamos proibido o motorista e o jardineiro e o
limpador das janelas e o menino que trazia as compras do supermercado e o
professor de natação da Alicia e qualquer outro trabalhador que entrasse na
casa quando a dona Ali estivesse acordada porque já tínhamos visto como
ela ficava quando via homens. Dona Ali, o que é? O que é? O que
aconteceu com a senhora?, perguntamos das primeiras vezes, quando
começaram os ataques e ela, às vezes, não sabia do que estávamos falando
e, às vezes, dizia tranquem, tranquem a porta, não durmam com a porta
aberta, tranquem minha filha, fechem bem, que ninguém tenha a chave da
minha filha, tranquem a Alicia, e se punha a fechar cem vezes a fechadura
da porta do seu quarto. Mas a mãe não. Que deus nos perdoe, mas essa
mulher parecia cega, estúpida. Nem sequer falava com a dona Ali. Só vinha
pelo negócio da perna e só perguntava pela perna, mas qualquer tapado teria
percebido que o menor problema da dona Ali era o joelho, o jeito besta que
ela caiu na piscina e os frascos e frascos de remédio pra dor que começaram
a dar a ela, alguns receitados pelo médico e outros não. Nós, na cozinha,
falávamos de procurar outros médicos, doutores de cabeça, dos loucos, mas
quem ia escutar as empregadas? A patroa já não era a mesma pessoa, a cada
dia ficava mais diferente. Só nós parecíamos ver isso. Não era a perna, por
que continuavam falando da perna? Por que se concentravam na perna, na
perna, na perna? A perna estava melhorando, mas ela, quem era? Ela
costumava pôr seus filhos na cama e ver filmes e comer pizza ou desenhar
ou brincar com massinha ou inventar peças de teatro ou levar todos nós pra
comer hambúrguer ou de fazer um dia de fantasia. Ela costumava cuidar das
suas plantas, comer cereal colorido no café da manhã como seus filhos e
olhar o Mati dormir e depois dizer, vocês acreditam que eu consegui fazer
algo tão precioso? Ela não era essa mulher que fugia do marido e dos filhos,
monstruosamente gorda, que cheirava mal e que abria e fechava a porta
quarenta vezes por dia. Não, essa não era nossa dona Ali. Um dia veio o pai
dela, o seu Ricardo, sem avisar. Abrimos a porta, ele perguntou pela filha e
nós dissemos que estava no quarto de hóspedes. Fomos pra cozinha fazer
um café pra ele quando escutamos a batida violenta na porta principal.
Corremos pro quarto da patroa e lá estava ela: os olhos como dois pratos,
uma mão agarrada ao lençol embaixo do pescoço e na outra uma tesourinha
de cortar unha. Apontava pra porta. Seu braço tremia de cima a baixo. Dona
Ali? Ela começou a gritar. Vá embora, vá embora, vá embora. Quem? Seu
pai? Já foi embora, minha linda. Vá embora. Tranquem a porta, por favor,
que ele não volte a entrar. Tranquem tudo, passem a chave, que não se
aproxime das meninas, que não se aproxime da Ali, que eu vejo muito bem,
eu vejo muito bem e eu ouço muito bem e eu sei muito bem. Sabe o quê,
dona Ali? Vê o quê? Começou a gritar que lhe doía. Dói o quê, querida?
Onde? A tesoura sempre apontando pra porta. E então fez aquilo, foi muito
rápido: pegou a tesoura e se cortou do couro cabeludo até o queixo. Nunca
tínhamos visto tanto sangue. A carinha da nossa patroa aberta como carne
fatiada em bifes. Vinicio, o motorista, escutou os gritos. Nós a enfiamos no
carro e a levamos à clínica. No caminho, telefonamos pro patrão. Ai,
coitado do patrão. Esperamos as notícias em casa, com as crianças. A
Alicita não perguntou nada sobre a mãe. Nem uma palavra. Dissemos a ela
que tinha acontecido um acidente e ela nem olhou pra nós. A dona Ali
voltou pior. As ataduras na cara lhe pareciam insuportáveis, queria se ver,
tentava tirá-las a todo instante, então puseram ataduras também nas mãos e
guardaram os espelhos. Escutamos das amigas da mãe que os médicos
diziam que ainda não era bom que se visse, que primeiro deveria fazer um
tratamento, cirurgias plásticas, porque a ferida estava muito feia, muito
roxa, que a pele tinha formado um queloide e além disso a cicatriz lhe
atravessava toda a cara, da testa ao pescoço, e que era um milagre que ela
não tivesse perdido um olho. Escutamos também o lance do acidente. De
que foi sem querer. De que estava meio adormecida, que sempre foi
sonâmbula, desde pequena. Sonâmbula. Pra gente, ninguém perguntou o
que tinha acontecido, porque se alguém tivesse feito isso, teríamos dito que
a patroa pegou a tesoura e se cravou na pele e a arrastou pra baixo como se
quisesse apagar o rosto e que estava boa e em sã consciência, acordada, e
que seu pai tinha acabado de entrar no quarto e que ela estava aterrorizada
com aquele senhor e que pedia que afastássemos as meninas daquele senhor
e o que ela queria mesmo era cravar a tesoura naquele senhor. Mas todos
disseram sonâmbula e a opinião das empregadas não importa, portanto nos
empenhamos em dar comida de canudinho pra dona Ali e a arrumar seu
travesseiro e a procurar que ficasse cômoda e tranquila, a cuidar das
crianças e do patrão, que era como uma alminha penada, a regar as plantas
da dona Ali, a dar carinho pra Alicita, cada dia com o coração mais
ressecado, a atender o telefone e dizer sim, senhorita, bem, não, agora está
dormindo, sim, dona Teresa, hoje está melhor, sim, já almoçou, um purê de
cenoura, sim, patrão, não se preocupe, nós estamos aqui, não há de quê, até
logo, sim, senhorita, eu digo a ela. Quando vinha a mãe, a dona Teresa, a
patroa se virava para a parede e ficava assim, às vezes, a tarde inteira. A
mãe trazia as amigas pra não se aborrecer, embora fosse evidente que a
patroa não gostava que as pessoas viessem: enfiava a cabeça embaixo do
lençol e ficava assim, como amortalhada. Nós não parávamos de fazer café,
servir copos d’água, refrigerantes diet, de oferecer bolachas e encomendar
sobremesas no café do shopping. As amigas da dona Teresa, é capaz que
acreditassem que faziam bem visitando dona Ali e tagarelando e fofocando
sobre todo mundo, mas nós, às vezes, entrávamos e a víamos, imóvel,
infeliz, como um animal enjaulado ou, às vezes, com manchas de lágrimas
na parte do rosto que não estava coberta pelas ataduras. Quando todas
aquelas mulheres iam embora, que alívio, era preciso arejar a casa inteira de
laquê e perfume. Nós éramos como girinos tentando respirar, abrindo e
fechando a boca. A casa, por fim, se esvaziava de um líquido denso, como
se fosse, por assim dizer, um aquário com peixes raros: unhas pintadas e
cabelo de cabeleireiro e acessórios dourados. Iam embora. Voltávamos a ser
como antes. A dona Ali saía de baixo do lençol e nos pedia alguma
sobremesa que havia sobrado. Nós ríamos e comíamos doces e parecia que
recuperávamos nossa dona Ali até que ela nos pegava pela mão e nos dizia,
morta de medo: você conferiu a fechadura da porta? E a do quarto da
Alicita? E nós lhe dizíamos que sim, que claro, e acariciávamos seu cabelo
seboso, e ela nos dizia que cuidássemos dela e dormia até que vinha o
primeiro pesadelo. Nos pesadelos, queriam tirar a roupa dela. Nos
pesadelos, alguém a obrigava a fazer coisas que ela não queria. Nos
pesadelos, ela punha travas em todas as portas. Nos pesadelos, havia sempre
um adulto com um molho de chaves. Então, um dia, o patrão levou as
crianças pra casa da mãe dele porque aconteceu aquele lance da dona Ali
com a Alicita. A verdade é que nós continuamos acreditando que ela não ia
fazer nada de mau, que queria ajudar sua filha, ensiná-la, mas o patrão
chegou e viu na mesma hora ali no banheiro a dona Ali com a filhinha
pelada e com aquela coisa plástica que era como um pinto de homem adulto
e o patrão ficou doido, gritou com ela e bateu nela, disse-lhe louca de
merda, o que você está fazendo, louca de merda, gorda louca, estúpida, suja,
vou te meter num manicômio, e ela só chorava. Isso são as empregadas da
casa ao lado que disseram que ouviram porque nós não estávamos, era
domingo. Assim, o patrão levou as crianças de pijama, de noite, à casa da
sua mãe. Aí sim foi que a dona Ali não se recuperou mais. A mãe veio pra
ficar e a patroa parou até de falar. Quando estávamos sozinhas, às vezes ela
abria os olhos e perguntava pela Alicita. Nós dizíamos que estava bem e ela
nos pedia pra vê-la. Então começava a chorar e a mãe nos mandava dar o
comprimido pra ela. Um médico amigo da mãe tinha receitado uns
comprimidos que a deixavam babando e com os olhos vazios. Nós
acreditávamos que era melhor que chorasse porque parecia que a dona Ali
tinha muito o que chorar, uma vida inteira, mas a mãe lhe dava as pílulas
como se fossem bala. De hora em hora. Nós tínhamos pena de vê-la assim,
tão parecida com um monstro. A ferida que lhe atravessava o rosto como
um verme arroxeado, a gordura tremenda, a baba, os olhos perdidos, os
roupões brancos que a mãe tinha trazido dos Estados Unidos e que, disse,
era pra que a vejam sempre limpa. Os dias foram passando. E os meses.
Chegou o Natal. Sim. Aí foi pior, no Natal. A dona Ali estava um pouco
melhor, se levantou, foi até a cozinha, comeu cereais de café da manhã e
nos disse que queria comprar presentes, então pensamos que queria
recuperar seus filhos, seu marido. Ficamos muito contentes e a deixamos
sozinha um momentinho pra nos trocar e ir ao shopping. Quando voltamos,
ela tinha se enfiado no banheiro e se trancado à chave. Escutamos a água
cair por muito, muito tempo. Dona Ali? Batemos na porta. Patroa? Fomos
pegar as chaves e, ao voltar, ali estava ela, enrolada numa toalha, com o
cabelo ensopado, longo e liso, grudado nas costas. Sorriu pra nós. Que foi?
O shopping estava uma loucura: cantigas de Natal, gritos de crianças e
centenas de pessoas. Ficamos preocupadas, a dona Ali não saía de casa há
meses, mas salvo uma pequena claudicação e a gordura imensa, ninguém
teria dito que acontecia algo estranho com aquela mulher, que ela viveu o
que viveu. É assim, né? As pessoas veem os outros e não sabem o que se
passa por trás das portas da sua casa. Então ela olhou pra nós e nos disse
que tinha de comprar uns presentes importantes pra umas pessoas
importantes e que essas pessoas não podiam ver esses presentes, então
tínhamos que nos separar por um momento. Tudo parecia estar indo bem.
Ela piscou o olho, sorriu, estava com sua carteira, roupa esportiva, tênis
vermelhos. Parecia uma mulher normal, a mesma dona Ali de sempre, que
ia ao quinto andar comprar pra nós sabe-se lá o quê. Nós a vimos subir de
elevador e estava tocando música natalina e parecia realmente que toda a
loucura havia terminando, que ela ia ser mãe dos seus filhos e mulher do
seu marido e que aquele era o milagre do menino Jesus porque nós
tínhamos rezado tanto e dizem que Deus escuta mais os pobres porque ama
mais os pobres, então pra alguma coisa tinha que servir a merda de ser
pobre, pra recuperar a dona Ali, pra que seus pesadelos se acabem, e os de
todas nós. Nós a vimos aparecer no balcão do café do quinto andar e então
soubemos, soubemos na mesma hora, há algo que lhe diz, não há como
explicar, que vai acontecer algo horrível. Vários gritos ao mesmo tempo, o
barulho de um corpo que se destroça, como se você atirasse um saco de
vidro, pedra e carne crua, um lado do crânio da dona Ali triturado, como se
tivesse derretido, mais gritos, um grito que sai de dentro de você, um grito
que é como uma facada, o grito do coração e dos pulmões e do estômago e
a dona Ali ali, como uma boneca grandalhona com as pernas
desconjuntadas, uma posição inumana, como se fosse cheia de lã em vez de
ossos. Nós ficamos ali, paradas, com a mão na boca, até que vieram os
médicos, a polícia, o patrão, a dona Teresa, o seu Ricardo e alguém
começou a nos sacudir pra nos levar pra casa e atender a todas as pessoas
que logo começaram a chegar loucas pra saber por quê, como, e a dona
Teresa, com um lencinho na mão, dizia acidente, terrível acidente, chão
molhado, ela estava mancando, você sabe, o joelho, mas insistiu em sair
porque era uma mãe maravilhosa, claro, claro, diziam as amigas, e queria
comprar presentes pros filhos. Que horror, sim, um acidente, pobrezinha da
minha gorda, diziam as amigas. Mas, quando a dona Teresa estava saindo
do quarto, alguém lia ao telefone a notícia da Suicida do shopping e as
outras escutavam, as mãos cheias de anéis cobrindo a boca e os olhos
abertos sem piscar. Outra dona disse baixinho que certa vez escutou que
acontecia algo estranho nessa casa, que o irmão com a irmã, que o pai com
a filha. As outras a mandaram bruscamente ficar calada: não repita essas
coisas estúpidas. No enterro, uma moça que trabalha no cemitério entregava
rosas brancas pra que as pessoas próximas da dona Ali as depositassem
sobre o caixão. Quando passou perto de nós, nos pulou e deu rosas a umas
donas muito elegantes com óculos escuros enormes às quais nunca
havíamos visto. No dia seguinte ao enterro, o seu Ricardo, o pai da dona
Ali, nos deu cem dólares, os dias do mês trabalhados, disse, e antes de
irmos embora, a dona Teresa nos revistou as carteiras e as bolsas pra ver se
não estávamos roubando algo. Ali onde não nos revistou levávamos o anel
de casamento da patroa, seu relógio tão bonito e um colar de pérolas que ela
nunca usou. Não nos disse adeus nem obrigada. Atrás dela, a Alicita nos
olhava com aqueles olhos azuis tão imensos, tão inteligentes, tão
assustados. Os mesmos olhos, iguaizinhos, aos da sua mãe.
CORO
Há um tempo para falar e outro para fazer. Faz muito tempo que essas
mulheres renunciaram ao segundo. A fofoca passeia como um fantasma por
cada uma de suas moradas interiores. Os tapetes estão fora de moda,
portanto no chão de porcelanato se refletem os relógios, os enfeites das
bolsas, as manicures francesas, os dentes que, de tanto se mostrar, parecem
ameaçadores. Beijos, elogios, beijos, elogios. Uma olhada de cima a baixo
para quem engordou, envelheceu, escolheu mal a roupa: costuma ser a
mesma pessoa. A casa nova de María del Pilar, Pili, é tudo o que se espera
dela: enorme, climatizada, monocromática, cara. Talvez maior, mas igual à
das outras. Ainda assim, faz-se o percurso, uma balbúrdia de bajulação,
pelos quartos que cheiram a coisa artificial, novinha em folha. A roupa de
cama de percal branco com uma listrinha cinza, comprada toda nos Estados
Unidos, o walking closet de revista de decoração, o encanto de que o
banheiro, gigantesco, tenha dois espelhos, duas pias, duas privadas, duas
banheiras.
— E você já a benzeu?
María del Pilar, Pili, não acha graça nenhuma na pergunta: ela pensa que
agora é o momento de efervescer em elogios, é o seu momento, então se
volta para Verónica e lhe diz muito lentamente que não, que ainda não, e o
sorriso fica plastificado em sua boca, como se lhe tivessem desenhado um
sorriso por cima da cara fechada. Verónica diz que uma casa sem bênção é
como um bebê sem batismo, que é mais vulnerável ao mau-olhado. Ela se
dá conta de que a olham com desprezo e volta atrás: eu não acredito nessas
coisas, vocês sabem, mas é isso o que dizem por aí. Pronuncia as palavras
com um falso sotaque vulgar que faz o “isso” soar como “isho” e o
“dizem”, “dichem”. Todos riem, fazem piada, imitam Verónica imitando o
sotaque vulgar: então, de acordo com Verónica, você tem que pôr um
saquinho de babosa preso com fita vermelha sobre a porta. E uma ferradura.
Sim, e um espelho chinês ao lado para que os espíritos maus sejam
refletidos. E queime pau santo para fazer defumação — defumachão. E
varra tudo para fora. E elefantes. E velas brancas. E cuspa aguardente. E
ponha um buda com uma pequena fonte de água. E um altar com velas na
entrada. E acenda incensos — inchenchos. E amarre uma fita vermelha com
uma pedra no pulso, que Verónica vai dar uma olhada, você não vê que ela
é meio bruxa? É bruxa e meia.
Verônica também ri. As coisas não mudaram desde o colégio: a que é
mais morena, de origem estrangeira ou mais duvidosa, filha de pais
divorciados, que tem de dividir o quarto com a irmã; a que é
definitivamente distinta, tem de ganhar o direito a uma cadeira. Tem algo de
bufão, de capanga, de carniceiro. É fundamental que as faça rir com as
coisas do populacho e que nesse populacho esteja incluída ela mesma: que
seja um pouco menos aristocrática, que esteja disposta a fazer favores,
inclusive uma ou outra tarefa doméstica quando não há empregadas
suficientes e que, importantíssimo, esquarteje em primeiro lugar a vítima
escolhida. Sim, que seja ela que diga o nome e o sobrenome, como, onde e
com quem. Ou seja, molhar a cara e as mãos no líquido sanguinolento e
deixar sem pele e eviscerado o animal, o conhecido, a amiga que não está
presente, para que as outras espetem com garfos, o mindinho em riste, a boa
fofoca crua.
Essa ansiedade tão disfarçada de desdém é um pouco teatral, mas elas não
percebem. Falam, desatam goelas que limpam com guardanapos de linho, a
respeito daquela que foi infiel, de uma criança fora do casamento, de um
gay no armário, da que ostenta uma cirurgia plástica, de um marido falido,
daquela que engordou demais, e não param até que a pessoa fica exangue,
vazia, pura carcaça, no chão de porcelanato. Então lançam-na à pilha de
cadáveres que há em todas essas salas climatizadas. E passam à pessoa
seguinte. Isso se chama cafezinho, inauguração da casa, aniversário, dia de
piscina, velório. Isso se chama reunião.
Elas não se veem a si mesmas, mas se pudessem, se realmente existisse a
possibilidade de desdobramento e pudessem se ver, sentadas nesses sofás
tão brancos, cercadas de tanto luxo, devorando a mulher que cumprimentam
tão carinhosamente no supermercado, o melhor amigo do marido, o
coleguinha do colégio dos filhos que não se comporta como um
homenzinho, cortariam a própria língua (teriam de fazê-lo) e depois a
colocariam para secar como o cacau e a pendurariam no pescoço: um
pingente, uma lembrança da própria podridão. Mas as coisas continuam
iguais. As pessoas não são capazes de ver a si mesmas e esse é o princípio
de todos os horrores.
Verónica sempre foi aceita com ressalvas no grupo, a que usava mangas
compridas para esconder os braços muito peludos, mais morenos, a que nas
férias ia para a casa dos avós e não a um internato a dez mil quilômetros de
distância para aprender francês, a que às vezes repetia o vestido e todas a
viam nas fotos com o mesmo traje em duas ou três festas e não diziam nada,
mas sabiam que alguém que repete a roupa tem uma função no grupo:
esforçar-se para diverti-las. Agora, a noite está complicada porque desde o
suicídio da gordinha no shopping já se passaram alguns meses e não há
novidades, falou-se até na extenuação física da gravidez da ex-colega de
colégio e da paternidade da cria e de que faz anos que eram amantes e de
que pobre esposa, mas também que tapada, se todo mundo sabia… assim,
depois de uma recapitulação geral, todas começam a ficar nervosas e a olhar
para o teto porque não falar dos demais significa ter de falar de si mesmas, e
depois de mostrar toda a casa, até o jardim e a área da piscina, de elogiar a
pele, o cabelo, as sandálias, os colares lindos feitos por uma sobrinha, as
tortinhas de salmão defumado, não resta muito a dizer do que é permitido
dizer.
Alguém tem de quebrar o silêncio, aquele silêncio que dura talvez um par
de segundos, mas que engasga como um oceano enfiado à força na
garganta. Algo de que não se deveria falar — e todas escondem algo —
poderia escapar. Além do mais, o silêncio não é bom porque dá margem
para pensar que estar juntas, uma tarde de amigas, consiste em trinchar e
esquartejar outras pessoas, em empalá-la diante de seus olhos para observar
suas imundícies e que o próprio gesto, o de procurar a vítima seguinte, está
se repetindo atrás de dezenas de portas gigantescas, duplas, de imbuia ou
metalizadas. São exatamente iguais. Há outras mulheres com seu nome na
boca.
Natividad Corozo, Coro, como a batizou sabe-se lá que patroa há quem
sabe quanto tempo porque não gostava do nome Natividad e porque,
caralho, ela é minha, posso dar o nome que eu quiser, entra na sala com a
discrição de uma lagartixa, incompatível para uma mulher de seu porte, de
sua estrutura. Uma incongruência da natureza só explicável por anos e anos
de trabalho doméstico que vão, como os sapatos que atrofiavam e acabavam
com os pés das meninas chinesas, criando deformidades tão estranhas a
ponto de fazer com que uma mulher tão mulher como Natividad Corozo se
torne invisível. Ela se aproxima de María del Pilar e lhe diz algo no ouvido.
Pili dá uma bufada de impaciência e lhe pede que traga sua carteira. Depois
se desculpa com as amigas: que meu marido não lhe deixou dinheiro, claro,
saiu tão rápido, ele, pensando em outra coisa, ele, e Coro já tem que ir
embora e não sei quê. Desculpem, meninas, coisa de empregadas. Coro
volta. Uma efígie africana vestida com um uniforme branco, de pano
grosseiro e mal cortado, que toda hora abre no peito e que parece arrebentar
nos quadris e nas nádegas, enquanto na cintura faz pregas por todos os
lados. A única coisa que nenhuma patroa conseguiu lhe tirar em mais de
trinta anos de serviço doméstico é o turbante vermelho da cabeça. A ameaça
é emitida mascarada por um “é para o seu bem”: ai, patroa, é que meu
cabelo cai e, às vezes, quando estou cozinhando, se não estou com o
turbante, esses meus cabelos tão escuros vão parar na panela. É claro que o
cabelo de Coro não cai.
María del Pilar não tem trocado e todas procuram nas carteiras para trocar
suas notas. Mas no fim ninguém tem, todas têm as mesmas notas, graúdas, e
isso lhes parece engraçadíssimo, de uma hilaridade tremenda, e Coro vai
para casa, para passar o único final de semana livre do mês, com a metade
do salário, e tudo bem e obrigada, patroa.
Quando Coro sai, todas falam dela, se não é estranho ter uma mulher tão,
como dizer, preta trabalhando em casa, se ela não cheira diferente porque
eles têm um cheiro diferente e que simpática com seu turbante que parece a
Tia Jemima, a negrinha da marca de xarope para panquecas, e que moderna
a María del Pilar deixando a empregada usar acessórios, mas que lhe cai
bem, é exótico, e quanto você paga a ela e que barbaridade, eu pago mais
pra minha, ah, tá vendo minha cara de boba, não é possível, e agora dizem
que a gente tem que registrá-las e pagar férias, seguro-desemprego, tudo
isso e eu, não é que diga que não porque são seres humanos, mas como,
então, como a gente paga? É muita coisa. Sim. Muito. Daqui a pouco vão
exigir que a gente faça massagem nos pés delas. E pausa pro café. Não, não
é possível. O quê?? Vamos trabalhar pra pagar a empregada? Não é justo, se
a pessoa tem empregada é porque precisa dela e eu trato a minha muito
bem, dou roupa pra ela, roupa pros filhos, comida, quarto, seus produtos de
higiene, ou seja, tudo, e pra mim quem dá isso? Ninguém. Pra mim
ninguém dá nada de graça e eu, pelo contrário, dou, dou e dou. Sim, é
verdade, além disso a gente tem uma pra cada coisa, não é que deixamos
todo o trabalho só pra uma, a gente é humana, eu tenho uma que vem passar
roupa e outra que cuida das crianças. Essas mulheres estão é muito
mimadas, olhe pra sua, até seu lindo uniforme você é que dá, mas como ela
é tão gorda acaba com todos.
A luz automática do pátio se acende enquanto alguém conta outra vez a
história de que não sei quem encontrou uma de suas empregadas fazendo a
sesta e lhe jogou um copo d’água na cara e a menina nem acordou de todo,
virou para o outro lado e pediu cinco minutos mais. Que encheção, a luz
automática é tão sensível, acende por qualquer coisa, e como nessa terra há
tanto bicho, tanto animal, dispara a todo instante, não se pode nem dormir.
Todas nós temos esse problema que é terrível. A luz se apaga e de repente
acende de novo. Acontece sete vezes, vamos ter que sair pra ver. Saem
todas morrendo de rir por causa dos coquetéis e da aventura: sair ao jardim
para ver o que está fazendo a luz automática disparar. María del Pilar agarra
a peneira da piscina e a empunha como uma lança. Tudo é engraçadíssimo:
as sandálias de plataforma, o conjunto de linho claro, a mão com os anéis, a
peneira como arma. Alguém tira fotos. Com movimentos abruptos, um rabo
estranho, que termina em ponta, se esconde na grama. É um rato. É uma
cobra. É uma iguana. Rato. Iguana. Cobra. María del Pilar, disposta a
degolar com a peneira qualquer ser vivo, mexe nas plantas para que o bicho
saia, mas sem sucesso. Que chato. De repente, algo se mexe. Caçadoras,
vamos. Uma fila de mulheres que, vistas muito lá de cima, pareceriam uma
procissão de formigas ruivas. A coisa se enfiou no quarto da empregada.
Elas entram.
A primeira coisa que sentem é o cheiro. Ali cheira a moedas muito gastas,
a mofo, a curtume de couros velhos, um tanto acres, guardados úmidos num
armário dos trópicos. O quarto é o armário. Não há janelas e ele é do
tamanho de um ônibus. A privada fica tão perto da cama, separada por uma
cortina plástica de corações, que alguém cagando e alguém dormindo
poderiam estar de mãos dadas. Um calendário com uma foto de pintinhos
na parede esquerda e na da direita um espelho sem moldura, no teto uma
lâmpada sem lustre. Elas não achavam que o tour chegasse até aqui, mas a
excitação as infantiliza, e, sem dizer nada, decidem ser o que não costumam
ser: outras. Abrem gavetas, põem a roupa de Coro, de Natividad Corozo,
por cima das suas, uma delas enfia um travesseiro dentro da calça e dança
mexendo suas novas nádegas, outra pega uma camiseta vermelha e a ajeita
como turbante na cabeça, tiram fotos imitando Coro. Esta esfrega os lábios,
a dali finge que varre, a outra limpa o espelho, a das nádegas postiças imita
uma negra, ou o que ela acredita que é imitar uma negra, exigindo o salário
completo com as mãos nos quadris porque no final de semana vai sair para
se acabar de dançar e comer. Que engraçado tudo isso.
Dentre as coisas que elas mexem, cai no chão um inseto peludo, grande,
parecido com uma tarântula. Saem todas gritando, empurrando-se, garotas
bêbadas correndo assustadas e também sorridentes. Jogam os vestidos de
Coro, de Natividad Corozo, no chão, na piscina, e também, por que não,
jogam Verónica que permaneceu do lado de fora do quarto, de braços
cruzados, por não querer participar daquilo ou para vigiar a entrada. Os
risos se transformam em uivos primitivos. Verónica sai à superfície para
tomar ar e uma delas volta a afundar sua cabeça. Não é afogá-la, é só
divertimento. A luz automática, com seu piloto de luzinhas vermelhas,
como dois olhos, acende e apaga sem parar. As palmeiras projetam sombras
que se movem: monstros nadando na piscina. No clube, uma melodia soa
distante, há uma festa e é hora dos ritmos tropicais. Tudo parece fazer parte
dos excessos. No fundo da piscina, Verónica vê o mesmo rabo de antes, o
rabo preto pontudo, se enfiar pelo filtro. Cada vez que tenta sair à tona para
tomar ar, alguém afunda sua cabeça.
María del Pilar, com a peneira, volta a entrar no quarto da empregada e
começa a massacrar selvagemente o bicho que está no chão. A lâmpada, na
qual deu um golpe, balança da direita para a esquerda e da esquerda para a
direita. Talvez já estivesse, mas com certeza depois de trinta pauladas está
morto. Enquanto mata o animal, pensa que é a primeira vez que faz isso,
matar, que sempre era seu pai que se encarregava de coisas assim, ou sua
empregada, ou seu marido. Mas o pai está morto, a empregada foi para casa
e o marido está sabe-se lá onde e sabe-se lá com quem. Mas, seja como for,
não necessita de nada para matar, apenas de uma enorme vontade de fazê-
lo. Cenas do marido sentado, de pernas abertas, com uma mulher chupando
seu pau, o som, o barulho desesperado da felação, se mesclam com o cheiro
de pó, cera quente e cítrico podre, com a visão dos pintinhos do calendário,
com seu próprio rosto, vermelho, selvagem, desfigurado pela ira, no espelho
sem moldura.
Lá fora as amigas brincam. Verónica tenta nadar, mas a encurralam, são
muitas, em todos os cantos da piscina. Vamos, é sua, cuidado, não a deixe
escapar. A luz automática, muito potente, como de interrogatório, vai e
volta, vai e volta, fazendo um ruído metálico, e entre isso e o barulho mal se
escuta o gemido de Verónica que parece dizer chega, amigas, é sério.
María del Pilar destruiu a lâmpada com a paulada da peneira, e usa o
celular para iluminar a aranha morta. Dá um grito justo no momento em que
alguma delas volta a enfiar a cabeça de Verónica na água. Todas correm e
encontram María del Pilar horrorizada, olhando para uma coisa que tem nas
mãos: é uma boneca feita com cabelo loiro, seu cabelo loiro, atada com fitas
vermelhas nas quais está escrito seu nome. Elas a obrigam a jogá-la na
privada e dar a descarga. Elas a abraçam, consolam-na, dizem bruxaria,
mentira, não acredite nisso, você parece uma tonta, tudo isso é história de
empregadas. E María del Pilar está aos prantos porque olhou para sua
boneca e sua boneca lhe devolveu o olhar.
Que besteira, Pili.
Saem todas. Vão voltar para dentro da casa, vão tomar outro coquetel e
vão rir disso tudo.
A luz é ativada como uma guilhotina. Na superfície da água, com as
pernas e os braços abertos, o corpo de Verónica flutua à deriva.
CLORO
Como é dia 15, a fila se estende até chegar quase ao setor dos legumes.
Você anda um pouco procurando alguma fila mais vazia, mas muitas
pessoas buscam o mesmo e não há nada a fazer: você tem de esperar.
Há tanta gente no supermercado que as revistas para folhear acabaram, e
só lhe resta olhar para o teto, olhar para as unhas, olhar para o que os outros
estão comprando, dizer a si mesma: “Para um país que está na merda, bem
que há muita gente que pode comprar três variedades de sucrilhos”. E no
fim, morta de tédio e de vontade de matar a louca que comprou toneladas de
papel higiênico, olha seu próprio carrinho, para ver se esqueceu de pegar
alguma coisa. É um exercício ridículo porque é claro que falta alguma
coisa, que pena: você sai dali e perde o lugar. Nunca foi capaz de fazer isto
que os outros fazem: parar a fila porque esqueceu alguma coisa, leite ou
amaciante.
A primeira coisa que você vê são as sardinhas. Latinhas vermelhas
estampadas com pescados azul-prateados que parecem muito alegres, mas
com certeza não estão. “Estou levando o bastante?”, você se pergunta. Ele
gosta de comer sardinhas com mandioca e cebola pelo menos uma vez por
semana. “O que ele vê nas sardinhas?”, diz você ao mesmo tempo que dá
pequenos passos, olha para todos os lados e abre devagarinho um pacote de
batatas fritas. Essa subversão, comer coisas no supermercado antes de pagá-
las, é uma das únicas que você se permite.
É a única que você se permite.
“O que ele vê nas malditas sardinhas?”, pensa você. “São prateadas como
papel-alumínio e têm pequenos espinhos que raspam a garganta. Têm gosto
de barro salgado.”
As crianças também não suportam, mas ele adora, ele as exige, e você
sempre leva quatro latas por mês, embora ele seja o único que vá comê-las,
embora nesse dia você tenha de cozinhar uma coisa diferente para os outros
membros da família.
Ao lado das sardinhas assomam as alcachofras, como granadas de mão.
“Por que ele gosta dessas infâmias? São caríssimas, complicadas de comer e
não têm nem sabor.” Para ele, você tem de fazê-las no vapor e servi-las
acompanhadas de um molho de queijo, tabasco e mostarda e, depois que ele
termina de mordiscar as pontinhas das folhas — “como um afrescalhado”,
você pensa —, você tem que retirar o prato, eliminar a parte peluda —
“buceta de gringa, eca” — e levar para ele outra vez à mesa o coração
picadinho cheio de molho.
Ele come os corações com a mão.
Você fica olhando para as cervejas. Ele é capaz de bater nas crianças se,
ao chegar do trabalho, não encontrar uma lata junto ao copo congelado.
Tudo do jeito dele. Por mais que você tente, não consegue fazer com que as
crianças percam a obsessão que têm por esse copo filho da puta: são
fascinadas pela água dentro dele e os peixinhos coloridos flutuando nesse
espaço. Um dia ele encontrou Junior agitando-o para que os peixes se
mexessem enquanto ele bebia. Ele deu tamanho tapa no menino que o suco
de laranja voou pela casa inteira. Que aquilo não era brinquedo. Que era o
seu copo de cerveja e que da próxima vez que o visse com ele, ia queimar
seus dedos com fósforos.
— Assim — pegou um papel e o aproximou da chama de um isqueiro —,
é assim que eu vou queimar sua mão se você pegar meu copo de novo.
O copo, é preciso lavá-lo e voltar a guardá-lo no congelador até que ele
abre a porta às cinco e quarenta e cinco. Aquela hora, e não antes. Aquela
hora, e não depois. Deve-se tirá-lo, abrir a cerveja e servi-la inclinando o
copo e a lata, de maneira que não forme muita espuma. Nem muito pouca.
É capaz que ele a chame de cretina, retardada, maldita se não fizer as coisas
direito.
— Cretina, estragou minha cerveja. Eu sei que você faz isso de propósito,
porque a única coisa que você gosta de fazer é foder minha vida.
Também há os seus iogurtes. São iogurtes de baunilha com geleia de
frutas no fundo. Ele os pega e enfia no congelador de sua geladeira. Todas
as noites ele come um deles enquanto vê televisão deitado em sua poltrona
reclinável. Ele os conta, os iogurtes, ele os conta, e então quando as
crianças, que são gulosas, comem algum potinho, você tem de lhe dizer que
foi você e aguentar a ladainha até que ele se canse, sem levantar os olhos,
porque ai de você se levantar os olhos.
— Você está me desafiando, é? Está me desafiando, sua merda?
Às vezes ele manda você ir ao mercado, seja a hora que for. Mesmo que
esteja chovendo. É o seu castigo: você pegou o que não é seu. Pior: você
pegou o que é dele.
Você continua olhando o carrinho. Não pegou a caixa de cereais que as
crianças pediram e fica com dó. Se a levasse, o dinheiro não ia dar para a
carne, ele gosta do bife fino, sem uma pelezinha, sem uma gordura. O bife
fino é caro e ele não solta um centavo a mais durante o mês inteiro. Você
pegou três pacotinhos de cereais nacionais, um para cada um, e uma marca
de absorventes das piores, dos ásperos, desses que se desmancham rápido e
as calcinhas ficam cheias de bolinhas de algodão.
Mas você pegou as tripas e o amendoim para fazer guata para ele, o
Coffee-Mate que ele leva para o escritório, os Kleenex de seu carro, sua
revista Estadio, as favas fritas para ver o jogo de futebol, o maracujá para
fazer seu suco. Maracujá: essa coisa pegajosa que você não entende como
alguém pode gostar.
Você voltou a comprar o xampu que está na oferta, um daqueles que é
como tomar banho com detergente. O que é bom para o seu cabelo é o
outro, aquele que você nunca compra.
Enquanto você está nesse devaneio, a fila anda: a mulher que está à sua
frente retira as últimas coisas do carrinho. Ela está levando o xampu para
cabelos tingidos que você todos os meses jura que vai comprar. Não pegou
sardinhas. Não pegou alcachofras.
Ela olha para você, sorri e põe na esteira a barrinha, essa pequena
fronteira metálica que separará as compras dela das suas. O xampu dela do
seu. As escolhas dela das suas.
Alguém vem e devolve um carrinho vazio. Você o põe ao lado do seu,
que está cheio. Começa a passar para esse outro carrinho as sardinhas, as
cervejas, as tripas, as favas, as alcachofras filhas da puta, os iogurtes de
merda, o maldito Coffee-Mate, o maracujá melequento e a revista Estadio
com todos os putos jogadores do Barcelona e do Emelec, cada um pior que
o outro.
— A senhora não vai levar isso? — pergunta a caixa apontando para o
segundo carrinho.
Você olha para ela.
— Senhora, e essas coisas, não vai levar? — insiste a caixa, apontando
com o queixo para o carrinho onde brilham as latas de sardinha.
Você nega com a cabeça.
A menina chama um rapaz para que devolva tudo às prateleiras. Você
olha para ele com o rabo do olho. Ele olha para você. Você lhe diz, com o
queixo, que vá. E, sorrindo, diz uma frase para si mesma que ninguém mais
consegue escutar.
Damas da lua
Alharthi, Jokha
9786556810072
240 páginas