Modelo de Propp

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Estruturas Narrativas: O Modelo Funcional de Propp

maro 17, 2013


(Este artigo o segundo de uma srie de trs sobre estruturas narrativas.
Aps o modelo funcional de Propp, veremos tambm o esquema quinrio.)

No vou mentir para vocs: o modelo funcional no algo prtico de se


entender. A questo que envolve tal modelo vai muito alm da simples
abstrao de uma estrutura narrativa em pontos-chave. Na verdade, o
modelo funcional chega a determinar que pontos-chave seriam esses. Para
entender o porqu, vou falar rapidamente sobre o formalismo.

mesmo necessrio?

Temo que sim. Lembra de quando eu falei que uma obra e seu autor so
frutos do meio? O mesmo acontece com a criao de certas escolas de
pensamento.

O formalismo na literatura visto que ele tambm est presente em outras


reas dentro de Humanidades procura reconhecer a evoluo de
acontecimentos dentro da narrativa de forma independente s influncias
externas. Assim como os qumicos veem a fotossntese como etapas de um
processo qumico (gs carbnico + gua (luz + clorofila) = glicose e
oxignio), tambm os formalistas acreditam que a fico (deve) envolve(r)
uma progresso perceptvel, como se fosse possvel entender a trama em
termos normativos.

Isso no seria algo difcil de obter? Digo, normatizar os acontecimentos da


obra?

Precisamos lembrar que a Potica de Aristteles no era apenas um livro


que analisava a estrutura das peas ele tambm ensinava como as peas
deveriam ser escritas. Manuais de roteiro tambm explicam como um
roteiro ideal deve ser escrito. Quando os formalistas surgiram, entre o final
do sculo XIX e o incio do sculo XX, a tendncia era procurar categorizar
uma outra demonstrao da influncia de Aristteles tudo que fosse
possvel, seja no nvel da Arte ou das Cincias Exatas.

A fim de categorizar o que chamamos hoje de sintagmas narrativos,


Vladimir Propp, crtico e fillogo russo, analisou diferentes contos
maravilhosos aqueles que possuem caractersticas fantsticas, como
contos de fadas para encontrar o que era comum a todos eles. Resultado:
encontrou 31 sintagmas narrativos.

31?!

Pois : 31. Seguindo a lgica de que tais sintagmas independem do meio a


maior preocupao dos formalistas era desvincular as reas de
especialidade do meio histrico-social, uma medida que visava eliminar a
possibilidade de contaminao do processo analtico -, tais contos teriam,
sempre, 31 sintagmas narrativos, divergentes apenas em suas formas
finais.

So estes os sintagmas:

1. Afastamento: uma personagem se desloca de um local familiar, seguro.

2. Interdio: existe algo que a personagem no deve fazer, um aviso, uma


intimao. No cumprir pode levar a uma pena ou castigo mas geralmente
leva ao problema apresentado na histria.

3. Transgresso: a personagem desobedece.

4. Interrogao: aparece uma antagonista, um agressor surge procurando


encontrar meios para atacar a personagem geralmente perguntando
prpria vtima.

5. Informao: a personagem informa o agressor sobre quem ela ,


entregando assim tambm os meios pelos quais a antagonista procurar
atac-la.

6. Engano: o agressor tenta enganar a vtima.

7. Cumplicidade: de forma inocente, a personagem se deixa engrupir pelo


agressor.

8. Dano/vilania: surge o problema, o cerne da narrativa.

9. Mediao: entra em cena o heroi para corrigir o dano.

10. Incio da ao contrrio: o heroi aceita ir contra o agressor.

11. Partida: o heroi sai de seu lar para cumprir sua misso.

12. Funo do doador: surge uma personagem actante, na forma de doador,


o qual ajudar o heroi de alguma maneira. Para isso, o heroi precisa passar
por uma prova.

13. Reao do heroi: o heroi supera a prova e ajudado pelo doador.

14. Recepo do objeto mgico: no precisa ser um objeto mgico, mas


tambm um conselho. o prmio da prova superada.

15. Deslocamento: o heroi se dirige para o local do conflito.

16. Luta: o heroi se atraca ao agressor.

17. Marca: durante a luta, o agressor deixa uma marca no heroi.

18. Vitria: o bem vence o mal.

19. Reparao: o dano corrigido.

20. Volta: o heroi retorna para casa.

E acabou?

Quem dera!

21. Perseguio: o heroi perseguido pelo agressor ou seu ajudante.

22. Socorro: o heroi se salva ou salvo por outrem.

23. Chegada incgnita: o heroi retorna sem se identificar.

24. Pretenses falsas: algum se faz passar pelo heroi.

25. Tarefa difcil: o heroi precisa cumprir uma prova que mostre que ele
realmente quem diz ser.

26. Tarefa cumprida: o heroi supera a prova.

27. Reconhecimento: o heroi identificado s vezes, graas marca


deixada pelo agressor.

28. Desmascaramento: o pretenso heroi desmascarado.

29. Transfigurao: o heroi encoberto por uma aura que o muda


fisicamente.

30. Punio: o agressor, seus ajudantes e/ou o pretenso heroi so punidos.

31. Casamento: o heroi se casa, geralmente com a personagem envolvida


no dano.

E onde ns vamos ver tudo isso, afinal?

Esse o problema: a fico contempornea no se guia por tais funes,


como Propp chama essas etapas. Digo mesmo que a fico da poca de
Propp ou anterior a ela mal poderia ser analisada com tal estrutura
narrativa. Para que isso acontecesse, precisaramos sempre de relatos
fantsticos, que encontramos ou em contos de fadas ou romances de
cavalaria que misturassem a Idade Mdia com drages, bruxas, etc.

No existem exemplos recentes, ento?

Podemos pensar, at certo ponto, em O Hobbit, de J.R.R. Tolkien:

1. Bilbo se afasta do Condado convite de Gandalf.

2. Ningum se afasta do Condado algo estranho um hobbit sair para se


aventurar pelo mundo.

3. Mesmo assim, Bilbo sai pelo mundo digo, a Terra Mdia.

4. Bilbo capturado por trolls, mas

5. Gandalf joga informao aps informao para cima dos trolls, libertando
Bilbo e os demais anes.

6. Surge o verdadeiro agressor: Gollum, que trava uma conversa com Bilbo.

7. Bilbo acaba entregando detalhes importantes sobre si para Gollum que


sero retomados em O Senhor dos Aneis.

8. Bilbo carrega consigo o Um Anel.

9. Os anes e Gandalf esto no seu caminho, mas ficariam perdidos sem


Bilbo

10. Bilbo encontra o caminho.

11. Bilbo os reencontra.

12. Os anes so capturados. quando Bilbo

13. usa o Um Anel para salv-los. uma prova de herosmo.

14. Reconhecimento, ora!

15. Eles continuam a jornada.

16. Bilbo se encontra com Smaug, o drago que guarda o tesouro que os
anes desejam.

17. Bilbo recebe uma marca metafrica se torna ladro para descobrir a
fraqueza de Smaug.

18. Graas a Bilbo e sua descoberta, Bard, o arqueiro, mata Smaug.

19. Bilbo esconde a Arkenstone de Thorin para tenta forar um acordo de


Paz uma Reparao que envolve o objeto de desejo de Thorin.

20. O acordo no vai pra frente e Thorin expulsa Bilbo at

21. Surge um exrcito de goblins.

22. Thorin e Bilbo lutam juntos.

23. Num nvel metafrico, Bilbo, de hobbit calmo, se revelar um heroi.

24. No h algo do tipo aqui.

25. Bilbo luta durante a batalha e recebe ajuda.

26. Batalha vencida mas Thorin morre

27. mas antes perdoa Bilbo.

28. No h algo do tipo aqui.

29. Bilbo reconhecido pelos demais por seu herosmo. No aspecto fsico,
ele bem poderia pegar uma boa parte do tesouro que conquistou.

30. No h algo do tipo aqui.

31. Bilbo volta para casa com o tesouro e o Um Anel.

Srio que esse o exemplo mais recente que voc arranjou?

Infelizmente, sim. E isso se deve principalmente porque Tolkien era um


estudioso de narrativas folclricas, tendo ele mesmo usado partes de contos
fantsticos para criar personagens e situaes que encontramos em suas
obras.

Mas uma coisa eu no entendo: por que as partes 24, 28 e 30 no


aparecem?

O enredo de O Hobbit gira em torno de um hobbit comum que procura


encontrar seu lugar na Terra-Mdia. Curiosamente, ele tanto vtima quanto
heroi quanto vilo afastar-se, ajudar os anes e pegar o Um Anel revelam
uma personagem mais complexa que o ideal proppiano. uma tendncia do
sculo XX que as histrias tratem de mergulhar nas dimenses psicolgicas
mesmo quando no o fazem conscientemente -, o que impede uma viso
to restrita dessas narrativas, como Propp parece sugerir. H mesmo
subverses e interpretaes metafricas que invertem a posio entre

agressor, vtima e heroi. (Compare as funes com o esquema proppiano do


romance para verificar onde elas se encontram).

Mas ento, por que estudamos Propp na faculdade? Qual a relevncia dele?

Justamente o fato de que ele prope uma evoluo do esquema de trs


atos. No post anterior, disse que o clmax apenas um efeito de tenso
[] [mas] a passagem para o terceiro ato ocorrer independente dessa
tenso. Ora, se o final ocorre independente disso, de nada adianta ento a
participao ativa das personagens na narrativa ou assim pensamos.

Os eventos nas histrias no podem ser vistos de forma isolada da


participao das personagens. O que Propp reafirma a importncia de tais
eventos, identificados nas funes, representarem a parte ativa do
envolvimento da personagem (conscientemente ou no) em um dado
momento que parta do incio da transgresso at o final feliz esperado.
Mesmo ao querer isolar a narrativa dos fatores scio-histricos, Propp
acabou esquecendo que as personagens so, tambm, frutos de tais
fatores, uma vez que representam a percepo do autor sobre o meio
nesse caso, pessoas e humores. Da que as mudanas histricas e sociais
acabam influenciando os autores, indo alm da viso de categorias prontas
e fechadas.

Para contos de fadas onde o carter (thos) de cada personagem


delineado de forma determinista (Cinderela, por exemplo), a soluo de
Propp funciona bem e at mesmo quando vista em tramas fantsticas,
uma e outra coisa podem ser aproveitadas. Repare que h vrias funes
que podemos ver em textos como a Odisseia em particular nas funes

11, 17, 20, 23, 25, 27 e 29 ou em filmes como Conquista Sangrenta


(Flesh+Blood, 1986, de Paul Verhoeven) ou a trilogia Guerra nas Estrelas
h funes equivalentes a trechos da Jornada do Heroi, de Joseph Campbell,
que foi o modelo usado por George Lucas para a criao da srie.

No prximo post, veremos como os estruturalistas criaram o esquema


quinrio o mais utilizado da atualidade observando justamente as
funes de Propp.

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