Importancia Do Estudo Da HST Lingua Portuguesa
Importancia Do Estudo Da HST Lingua Portuguesa
Importancia Do Estudo Da HST Lingua Portuguesa
Rio de Janeiro
2012
Christiane Lima da Camara Monteiro
Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
CDU 806.90(07)
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação desde que citada a fonte.
__________________________ __________________
Assinatura Data
Christiane Lima da Camara Monteiro
Banca examinadora:
______________________________________________________
Prof. Dr. Helênio Fonseca de Oliveira (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
_______________________________________________________
Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques
Instituto de Letras da UERJ
_______________________________________________________
Prof. Dr. Agostinho Dias Carneiro
Instituto de Letras da UFRJ
Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA
A minha filha, pelo amor, pelo apoio e pela paciência de me ouvir por horas
intermináveis.
A toda a minha família, pelo apoio, pelo incentivo e pela torcida vibrante,
sincera e amorosa.
A Ana Paula Ferreira, amiga e colega, por seu apoio e incentivo quando o
caminho a seguir parecia além das minhas possibilidades.
Aos meus alunos, pela paciência, pelo carinho e por me motivarem a ser
uma professora cada vez melhor.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho tem como objetivo ressaltar a importância dos conteúdos da disciplina
História da Língua Portuguesa para a formação do graduando do curso de Letras. O ensino de
Língua Portuguesa se dá, por questões didáticas, de forma ‘recortada’, sendo cada um de seus
‘recortes’ (Morfologia, Fonética, Sintaxe etc.) trabalhado em semestres diferentes. A forma
fragmentada de estudar a língua parece induzir o graduando a uma visão também fragmentada
(e fragmentária) de seu objeto de estudo, prejudicando a formação do futuro
professor/pesquisador da língua. A análise dos fenômenos linguísticos sob a ótica da
diacronia – em que uma alteração fonética pode, por exemplo, resultar em alterações
morfológicas e sintáticas – possibilita a visão da língua em seu funcionamento como um todo,
com suas ‘partes’ interagindo e se interpenetrando. Essa visão mais ampla, segundo cremos,
poderá capacitar o aluno para conectar as informações de diferentes recortes, a fim de
alcançar conhecimentos novos e mais complexos. Procuramos evidenciar os benefícios da
abordagem diacrônica apresentando o conteúdo programático da disciplina História da Língua
Portuguesa e tecendo comentários que apontam a relevância de cada conteúdo para a
formação do graduando. Acrescentamos, algumas vezes, sugestões de atividades didáticas
com o intuito de granjear o interesse do aluno para a disciplina.
This work aims to highlight the Portuguese Language History discipline contents for
the graduating student in the course of Classical Languages and Literature. The Portuguese
Language teaching is done by didactic questions, in a ‘cut out’ form, being each of its clips
(Morphology, Phonetics, Syntax etc.) developed in different semesters. The fragmented form
of studying the language seems to induce who is being graduated to a fragmented vision too
(and fragmentary) of his study objective, jeopardizing the formation of the future language
teacher/researcher. The linguistic phenomena analysis under the diachronic optics – wherein a
fonetical change can, for example, result in morphological and syntactic modifications –
enables the language vision in its functioning as a whole, with its “parts” interacting and
interpenetrating. This wider vision, we believe, will capacitate the student to connect
information of different clips, in order to achieve new and complex knowledge. We pursued
to make evident the benefits of the diachronical approach by presenting the programmatic
contents of the Portuguese Language History discipline, making comments which point out
the relevance of each content for the formation of the graduating student. We added, many
times, didactic activities suggestions with the intent of conquering the student’s interest for
the discipline in question.
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
1 REFLEXÕES SOBRE DIACRONIA – CONCEITO E APLICABILIDADE NO
ESTUDO DE LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................12
1.1 A importância da visão da língua como um todo ....................................................15
2 O ADVENTO DO ESTUDO DA LÍNGUA COMO CIÊNCIA .............................23
2.1 A descoberta do sânscrito por eruditos europeus – o estabelecimento do método
histórico-comparativo ................................................................................................24
2.2 O Estudo da Língua como Ciência ...........................................................................26
3 OBJETOS DE ESTUDO DA HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA ...........31
3.1 Ementas/Conteúdo Programático das Universidades UERJ, UFRJ e UFF .........31
3.2 Mudanças Linguísticas ..............................................................................................32
3.3 História Externa da Língua Portuguesa ..................................................................36
3.3.1 História do latim ...........................................................................................................37
3.3.2 História da língua portuguesa .......................................................................................52
3.4 História Interna da Língua Portuguesa – Linguística Diacrônica/Gramática
Histórica ......................................................................................................................68
3.4.1 Fonética histórica .........................................................................................................68
3.4.2 Morfossintaxe histórica ................................................................................................85
3.4.3 Sintaxe histórica .........................................................................................................101
3.4.4 Formação do léxico da língua portuguesa ..................................................................101
3.4.5 Inovações Românicas .................................................................................................105
4 CONCLUSÃO ..........................................................................................................110
REFERÊNCIAS .......................................................................................................112
10
INTRODUÇÃO
Os estudos diacrônicos há muito vêm sofrendo certo desapreço por parte da maioria
dos professores, estudiosos e estudantes de Letras. Parece-nos que desde Saussure a
abordagem sincrônica dos estudos linguísticos reina soberana.
É certo que os estudos dos ‘estados da língua’, como os denominou o mestre suíço,
são imprescindíveis para a descrição do idioma. A abordagem diacrônica, no entanto, segundo
cremos, pode ser de grande proveito para a formação do graduando de Letras, pois possibilita
uma visão da língua em seu funcionamento como um todo, e não da forma fragmentada como
este parece concebê-la.
Nossa experiência acadêmica, ainda que recente, chamou-nos a atenção para o fato de
que a maioria dos graduandos de Letras, mesmo em períodos mais avançados, demonstra ter
um conhecimento e uma concepção fragmentários sobre a língua. Esse tipo de conhecimento
impossibilita a conexão de uma informação com outra, para se chegar a uma conclusão.
Por questões didáticas, para viabilizar seu estudo e ensino, a língua sofre, nos
currículos, inevitáveis ‘recortes’, sendo cada um deles tradicionalmente estudado em
semestres separados. Esse, certamente, é o único meio possível de estudar um objeto tão
complexo e multifacetado como a linguagem humana. Na formação do graduando, no entanto,
o ‘sistema linguístico’ como um todo deve ser vislumbrado, para que o aluno possa conectar
as informações de um recorte e de outro a fim de alcançar conhecimentos novos e mais
complexos.
No Capítulo I, faremos algumas reflexões sobre o conceito de diacronia e sobre a
aplicabilidade da abordagem diacrônica ao estudo de Língua Portuguesa, tendo como base
teórica o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure. Nosso foco será a
importância da visão da língua como um todo, na formação do graduando do curso de Letras,
e como a disciplina História da Língua Portuguesa pode proporcioná-la.
O advento do estudo científico da língua é o tema do Capítulo II, onde faremos um
breve retrospecto dos primeiros estudos histórico-comparativos, com base em Mattoso
Câmara Jr. – História da Linguística, incluindo considerações de Gladstone Chaves de Melo
– Iniciação à Filologia e à Linguística Portuguesa e de Mário Perini – Estudos de gramática
descritiva:valências verbais. A intenção é trazer de volta à memória o fato de que foi graças à
abordagem histórica da língua (diacrônica, portanto) que os estudos linguísticos puderam
alcançar o status de ciência.
11
Diante das considerações do próprio Saussure, grifadas acima por nós, entendemos
que o conhecimento do processo de evolução da língua portuguesa (abordagem diacrônica da
língua) pode dar ao graduando de Letras uma visão mais clara do funcionamento da língua
como um todo, e de todas as ‘forças’ que agem sobre ela. Esse conhecimento pode, talvez,
possibilitar ao aluno a conexão dos conteúdos adquiridos em cada disciplina do curso,
ampliando o seu entendimento sobre a língua.
Mas o que, na prática, é diacronia? Como sabemos que estamos diante de uma
abordagem diacrônica e não sincrônica? Quando poderemos considerar uma mudança
expressiva ou sem importância? Para que a mudança seja considerada relevante será preciso
que ela esteja legitimada pela gramática normativa? Saussure responde a algumas dessas
perguntas:
Na prática, um estado de língua não é um ponto, mas um espaço de tempo, mais ou menos
longo, durante o qual a soma de modificações ocorridas é mínima. Pode ser de 10 anos, uma
geração, um século e até mais. Uma língua mudará pouco durante um longo intervalo, para
sofrer, em seguida, transformações consideráveis em alguns anos. De duas línguas
13
coexistentes num mesmo período, uma pode evoluir muito e outra quase nada; neste último
caso, o estudo será necessariamente sincrônico, no outro, diacrônico. (2006, p. 117-118)
órgão morto e separado de seu antigo corpo), na verdade ela também é um sistema inteiro e
‘vivo’, quando apreciado ‘em funcionamento’1.
Se a dissecação de um órgão o pressupõe morto e separado do corpo do qual fazia
parte, a ‘dissecação’ de um dos ‘recortes’ gramaticais em que a língua é dividida também o
pressupõe, de certa forma, morto e estático, separado de seu ‘corpo’, que é a língua realizada
‘na boca’ do falante.
O estudo de uma língua, para ser viável, requer que o estudioso eleja um ponto em que
focar sua atenção. Seguindo o modelo aristotélico, a gramática tradicional costuma ‘dividir’ a
língua em Fonética, Morfologia e Sintaxe. Nos cursos de Letras, tais ‘partes’ do ‘sistema
língua’ são estudadas uma a uma em semestres diferentes, separadamente.
De acordo com nossas observações, em virtude desse sistema de ensino (o único
viável, ao que nos parece), falta ao graduando de Letras a visão da língua como um todo,
como um sistema complexo, cujas partes se relacionam, completam-se, interpenetram-se. Os
estudos diacrônicos contidos na disciplina História da Língua Portuguesa (HLP), a nosso ver,
podem dar a visão desse sistema complexo.
Segundo Saussure, a Linguística estática ou sincrônica aplica-se somente à língua
como sistema – que é, segundo ele, imutável – nunca à fala, ou seja, à execução das imagens
acústicas. Levando em consideração que os órgãos vocais, responsáveis por essa execução,
são exteriores à língua, conclui que a fonação (a fala) “em nada afeta o sistema em si”
(SAUSSURE, 2006, p. 26). Ele divide, então, a linguagem em duas partes: uma essencial – a
língua – e outra secundária – a fala. E é para a parte considerada essencial que ele voltará sua
atenção.
O relevo dado à sincronia, em detrimento da diacronia, pode dever-se ao fato de que, à
época de Saussure, todo estudo da língua era diacrônico. A sincronia se limitava a materiais
didáticos sem ambientação científica.
É conveniente ressaltar que os estudos sobre a língua, de modo geral, seguem as
tendências das outras ciências, ou ao menos sofrem sua influência. Nos séculos XVIII e XIX,
quando surgem os estudos comparatistas e históricos, as ciências naturais estavam em pleno
auge. Era de esperar que uma ciência nascente, caso da Linguística, aplicasse a seu objeto de
estudo métodos e postulados já consagrados. Essa atitude garantiria que a nova ciência fosse
considerada com seriedade.
1
Ao compararmos a língua com o corpo humano, estamos apenas fazendo uma metáfora, e não considerando a língua como
um organismo vivo, tampouco considerando o estudo da língua uma ciência natural – como o era nos primórdios dos estudos
linguísticos.
15
Cada língua tem sua lógica, sua dinâmica. Somente os estudos diacrônicos podem no-
las apontar com alguma precisão. Não estamos negando a importância de se observar a língua
em funcionamento ‘aqui e agora’. Se a diacronia é uma ‘soma de sincronias’, os estudos
sincrônicos são imprescindíveis para os estudos de História da Língua. Nosso propósito,
contudo, é, entre outros, apontar os benefícios dos estudos diacrônicos contidos na disciplina
HLP, para a formação do graduando em Letras.
A língua, como se sabe, é um sistema complexo. No entanto, para que seja possível
estudá-la mais a fundo, ela desde há muito vem sendo ‘recortada’ em várias partes, que são
estudadas separadamente. Camara Jr., fazendo referência a Saussure, define gramática como
“estudo de uma língua examinada como sistema de meios de expressão” (2007, p. 160). O
linguista brasileiro diz que a gramática, em seu sentido mais estrito, é o estudo da Morfologia
e da Sintaxe, mas que a esse se pode acrescentar o estudo dos traços fônicos e da grafia
correspondente a esses traços:
16
Trata, portanto, a gramática: a) dos fonemas e sua combinação; b) dos morfemas e sua
estruturação no vocábulo (sintagma lexical); c) dos sintagmas de vocábulos. Daí as suas três
partes gerais, respectivamente: a) Fonologia; b) Morfologia; c) Sintaxe. (2007, p. 160)
Nos cursos de graduação, embora os alunos recebam a noção teórica de que a língua
funciona como um todo coeso, na prática parecem concebê-la fragmentada, tal como a
estudam2. Tem-se o conhecimento teórico de que o falante comum faz uso da língua sem
estar consciente de suas escolhas ou seleções fonéticas/fonológicas, morfológicas e sintáticas,
no entanto, na prática, o aluno parece continuar ‘visualizando’ a língua como algo recortado, e
parece não perceber que (nem como) todos esses aspectos, estudados separadamente, se inter-
relacionam e funcionam simultaneamente. O próprio ensino da língua continua ‘acontecendo’
de forma a corroborar essa visão fragmentada de seu objeto de estudo.
A língua, como sistema, realiza-se inteira, em toda a sua complexidade, com todas as
suas partes funcionando simultaneamente, entrosando-se e influenciando-se mutuamente.
Entender ou conceber a língua como um ‘arquivo’ que abriga ‘pastas’ contendo
conhecimentos específicos denominados Fonética, Morfologia, Sintaxe etc. é desfigurá-la, é
inverter valores e noções.
Reconhecemos que, diante de um objeto de estudo complexo, tanto do ponto de vista
científico quanto do didático, o método mais eficiente a adotar é dividi-lo em partes e
pesquisar/estudar cada uma delas separadamente. Contudo, não devemos esquecer-nos de que
o graduando não é um ‘especialista’, e que, portanto, deve ter uma noção do ‘todo’ que é a
língua, antes de decidir em que ‘parte’ ou ‘recorte’ irá especializar-se.
Ainda usando a Medicina como ponto de referência, um graduando desse curso levará
seis anos aprendendo sobre o funcionamento geral do corpo humano e suas partes, de fatores
internos e externos que possam alterar-lhe o equilíbrio e o bom funcionamento. A sua
especialização só ocorrerá na pós-graduação – conhecida como Residência –, que tem a
duração de dois anos e durante a qual o aluno, tendo um contato mais aprofundado com
diversas áreas (cardiologia, pediatria, ortopedia etc.), escolherá qual caminho seguir. Somente
a partir de então, já conhecedor do sistema ‘corpo humano’, é que o médico poderá direcionar
seus estudos exclusivamente para a sua área de interesse.
Mesmo seguindo uma especialidade médica, é imprescindível que o médico conheça o
funcionamento do todo para desempenhar sua função de forma eficiente. A título de exemplo,
exporemos, a seguir, dois casos reais, testemunhados por nós, que demonstram de forma clara
2
Na verdade, essa visão fragmentária vem sendo inculcada desde o Ensino Fundamental.
17
que o conhecimento, ainda que limitado, do corpo humano como um todo é imprescindível na
prática da medicina:
Caso um – uma paciente, sentindo desconforto no aparelho digestivo, consultou-se
com um gastroenterologista. Quando o médico perguntou se a paciente tinha mais
alguma queixa, ela respondeu que estava com a garganta inflamada, e que, portanto,
nisso ele não poderia ajudá-la. Para a surpresa da paciente, o gastroenterologista lhe
disse que sua inflamação na garganta deveria ter como causa o seu problema
digestivo, explicando que a paciente deveria estar tendo refluxo durante o sono, e que
os ácidos do estômago estariam causando a inflamação.
A paciente tomou o remédio recomendado pelo médico (para tratar o
estômago) e viu-se curada da inflamação na garganta, mesmo sem ter ido a um
otorrinolaringologista.
Caso dois – uma paciente se submeteu a uma histerectomia, devido a um mioma que,
segundo mostravam as ultrassonografias, media cerca de dez centímetros de diâmetro.
Aberto o abdômen da paciente, o ginecologista deparou-se com um útero saudável
(com um pequeno e inofensivo mioma). O volume apontado na ultrassonografia era,
na verdade, uma gaze (esquecida dentro da paciente em uma antiga cirurgia) que havia
aderido a uma parte do intestino da paciente, causando uma ‘bola’ de infecção. O
ginecologista viu-se diante de um impasse: não havia nenhum gastroenterologista
disponível no hospital, naquele momento; nem a sala de cirurgia nem a paciente
haviam sido preparadas para uma cirurgia no intestino; a situação gravíssima, no
entanto, não permitia esperas.
Usando seus conhecimentos gerais sobre o funcionamento do corpo humano, o
ginecologista cortou um pedaço do intestino da paciente, retirando a parte
infeccionada, e suturou-o. Após a cirurgia, no entanto, o médico orientou os parentes
da paciente a procurarem um gastroenterologista, para que ele a examinasse de forma
mais eficiente, alertando-os da possibilidade de uma segunda cirurgia com o devido
especialista.
A paciente, de fato, teve que se submeter a uma segunda cirurgia, de
emergência, feita por um especialista, cerca de um mês após a primeira. Os
conhecimentos e a experiência do ginecologista, no entanto, salvaram-lhe a vida.
Para demonstrarmos a importância da conjugação de conhecimentos de áreas diversas,
para uma melhor compreensão de um assunto específico por parte do aluno, trazemos, agora,
uma situação real de uma aula de Fonética de uma turma de graduação em Letras:
18
igreja
ecclesia iglesia
église
3
É preciso esclarecer que o termo rotacismo tem sido usado, atualmente, para designar a troca do /l/ pelo /r/, como em
franela (flanela), por exemplo. No entanto, nos livros especializados, esse termo não designa a mudança acima descrita.
Camara Jr. assim define rotacismo:
Mudança de /s/ entre vogais para /r/ dental. Foi uma lei fonética em latim arcaico. Por causa dela, uma série
de nomes da 3ª declinação, neutros, apresentam radical diferente no nominativo e acusativo, sem vogal
temática e sem desinência, em face dos outros casos com desinência começando por vogal, onde /s/ do radical
passou a /r/: corpus (lat. arc. corpos – corporis). Isto explica as diferenças de radical entre o nome
correspondente português e adjetivos derivados tirados do radical do genitivo: corpo – corporal, tempo –
temporal, lado – lateral. (2007, p. 264-265)
Por motivos didáticos, porém, o termo rotacismo será aqui adotado seguindo o uso atual, isto é, designando a troca de [l] por
[r].
19
4
Corrobora nossa opinião a afirmativa de Câmara Jr.: “[...] uma asserção global da história da linguística não se pode limitar
à linguística propriamente dita. E não nos podemos esquecer que esta nem sempre se apresenta no correr de sua história como
uma disciplina isolada e autônoma. Algumas escolas de linguística têm tentado agir assim, mas tem sido frequente o
debordamento da psicologia, biologia e, mais recentemente, da antropologia no estudo da linguagem”. (c1975, p. 21)
20
1) muitas das variedades não-padrão usadas pelas pessoas com baixo nível de
escolaridade têm explicações articulatórias e/ou históricas, seguindo tendências da
língua:
‘Imbigo’ por umbigo – (explicação histórica) – no Appendix Probi5 encontra-
se umbilicus non imbilicus (correção nº58), o que prova que a troca do u inicial
por i, nessa palavra, é bastante antiga;
‘Inguinorante’ por ignorante – (explicação articulatória) – por ser uma vogal
alta e palatal, o [i] pode se nasalizar com um movimento mínimo do véu
palatino (cf. SILVA, 2009, p. 71). O [g], consoante velar (articulada no véu
palatino, portanto), pode ter facilitado essa nasalização. Teríamos, assim, o
desenvolvimento de uma consoante nasal velar. Em ‘indentidade’ por
identidade também se desenvolve uma consoante nasal, após o [i], talvez pela
influência da outra nasal. Há, também, a possibilidade de, nessas duas palavras
ter havido analogia com o prefixo in-;
‘Enterter’ por entreter – (histórica) – o deslocamento de fonemas numa
palavra é fenômeno bastante comum na evolução do latim ao português
(semper > sempre, pauper > pobre, aqua > auga [arc.]), e continua presente
no português atual, principalmente envolvendo consoantes líquidas e
semivogais;
‘Xicra’ por xícara – (articulatória e histórica) – a queda da vogal postônica
não final, para evitar o proparoxítono, é fenômeno bastante recorrente na
formação da língua portuguesa (calĭdus > caldo, frigĭdus > frio, ocŭlu > oclu >
olho). Ainda hoje é fenômeno comum – *fosfro por fósforo, *plasco ou
*prasco6 por plástico etc.;
‘A sapatona’ por ‘a sapatão’ – (histórica – por analogia) – A identificação do
-a final com o gênero feminino já era fenômeno recorrente no latim vulgar,
como mostra o Appendix Probi – nurus non nura (correção nº 169) (> nora),
socrus non socra (correção nº 170) (> sogra).
2) um alto nível de escolarização dos falantes tende a refrear as mudanças naturais da
língua:
Preconceito linguístico – uma herança. Já na Antiguidade as elites haviam
percebido que a língua é uma marca de status social. Essa percepção motivou o
5
Lista com 227 palavras, anexa à gramática de Probo, aproximadamente do século III d.C.
6
Nesta palavra a consoante [t] também sofre síncope devido à impossibilidade, em português, da articulação do grupo
consonantal [stk].
21
a apreciação da língua em seu movimento diacrônico. Cada fotograma da película seria, por
sua vez, um recorte sincrônico (e estático) da língua, dissecado e analisado.
Com essa metáfora, pretende-se dizer que o estudo sincrônico age como uma
fotografia, que mostra um aspecto da língua, que retrata apenas uma pequena parte de seu
movimento (como o fotograma de uma película). Já a diacronia (o estudo diacrônico), sendo
uma ‘soma de sincronias’, funciona como a película, ‘enfileirando’ as observações sincrônicas
de forma a permitir uma visão do movimento da língua ao longo do tempo, uma visão do
dinamismo da língua e do resultado desse dinamismo. A diacronia permite, enfim, enxergar
de forma clara a língua como um todo, como o sistema que ela é.
Quando enfatizamos a importância da diacronia, não a estamos elegendo como o
melhor meio de se descrever uma língua, mas estamos, sim, convidando os professores a uma
reflexão sobre os benefícios que ela oferece ao graduando, em seu processo de aquisição de
conhecimentos diversos sobre a língua.
23
23
O que leva o homem a estudar a língua? Sendo ela uma herança sócio-cultural, os
falantes, de modo geral, usam-na como meio de expressão e de comunicação sem parecer dar-
se conta de todos os elementos que envolvem tal processo. Se o conhecimento sobre o
funcionamento da língua não é vital para a comunicação, por que, então, estudar uma língua?
Mattoso Câmara Jr. (CÂMARA, c1975, p. 15-21) enumera alguns fatos que têm
levado ao estudo da língua, desde a Antiguidade:
A invenção da escrita – a tentativa de reduzir os sons da língua à modalidade escrita
fez com que os homens percebessem a existência de formas linguísticas. Surge, assim,
uma nova atitude social em que as maneiras como falamos e o mecanismo da
linguagem tornam-se foco do pensamento humano. Desse modo, o estudo da
linguagem pode se desenvolver sob o impacto de fatores sociais e culturais.
A língua como marca de status social – quando as classes superiores percebem que a
língua é marca de status social, tentam preservar os seus traços linguísticos, em
oposição aos das classes inferiores. Esses traços (da fala das elites) são considerados
os corretos, havendo um movimento no sentido de transmiti-los às gerações seguintes.
O estudo da língua surge, então, para conservar inalterada a fala das classes
superiores, tida como ‘correta’, e é esse tipo de estudo que cria a gramática.
Contato com estrangeiros – o contato, hostil ou amistoso, entre duas comunidades de
línguas diferentes gera uma necessidade de mútua compreensão. O contraste entre as
línguas desperta a curiosidade, levando a comparações sistemáticas – daí o estudo de
línguas estrangeiras.
Necessidade de compreensão de textos antigos cuja língua já não existe ou está
em sua fase arcaica – nesse tipo de estudo há a comparação da língua (escrita) do
passado com a(s) língua(s) atual(is).
A língua como expressão do pensamento – o pensamento filosófico é expresso
através da linguagem, que precisa ser capaz de transmitir sua precisão e suas sutilezas.
A necessidade de tornar a linguagem um instrumento eficiente para o pensamento filosófico
e de disciplinar o pensamento através do disciplinamento da linguagem dá lugar a um tipo de
estudo, híbrido, filosófico e linguístico ao mesmo tempo, a que os gregos chamaram de
lógica. (CÂMARA JR., c1975, p. 18)
24
Até o final do século XVIII o estudo da linguagem, na Europa, seguiu o modelo usado
na Grécia Antiga, que se dava principalmente através da filosofia. No entanto, o rumo que
esses estudos tomaram desde o Renascimento levou à percepção da língua como fato
histórico, resultando, no século XIX, no advento do estudo da língua como ciência.
O Renascimento fez, por um lado, ressurgirem os estudos do latim clássico e também
do grego. Por outro lado, o foco sobre o homem e tudo o que lhe diz respeito fez surgir um
grande interesse pelas línguas faladas no mundo.
A partir do século XVI encontram-se, então, gramáticas das línguas vernáculas da
Europa. Com o estudo dessas línguas, o aspecto oral da linguagem fez com que a teoria
fonética começasse a se desenvolver.
Esta nova atitude, em relação à fonética, foi apoiada pelo estudo “biológico” da linguagem
que se desenvolveu no século XVII devido ao crescente interesse pelos órgãos da fala e a sua
maneira de produzir os sons da linguagem. [...] A gramática portuguesa, por Fernão de
Oliveira, no século XVI, é notável por suas asserções fonéticas. (CÂMARA JR., c1975, p. 34)
O estudo da etimologia, existente desde a Antiguidade, volta à cena, porém sob uma
visão histórica. A abordagem histórica, assim, começava a ser aplicada ao estudo da
linguagem. Procurava-se encontrar a origem das palavras de uma língua a partir de outra
língua, o hebraico – o qual acreditava-se, equivocadamente, ter sido a língua que deu origem
ao grego, ao latim e a outras línguas clássicas.
25
No final do século XVIII o jurista e filólogo britânico Sir William Jones, juiz da Corte
Suprema de Calcutá, observou as semelhanças que havia entre o sânscrito, o grego e o latim,
concluindo que tais semelhanças provavelmente se deviam a uma origem comum.
Esse será o ponto de partida para o estudo comparativo das línguas, desenvolvido a
partir do começo do século XIX, e que resultará no estudo, enfim científico, da linguagem.
Com a divulgação das observações de William Jones, os eruditos europeus voltam-se
para a cultura e as línguas da Índia:
Ao mesmo tempo, a filosofia e a religião hindu se difundiam na Europa, principalmente pela
ação dos eruditos ingleses. Uma e outra, tão diferentes da filosofia e da religião gregas, foram
um impacto sobre o pensamento europeu e contribuíram para fortalecer o Romantismo como
movimento de ideias que se opunham à influência e domínio da cultura greco-latina na
Europa Moderna.
Do mesmo modo, o método e as concepções da gramática do sânscrito, que se encontravam
em Pānini e seus seguidores, estimularam o espírito europeu no sentido de uma nova visão da
linguagem. O que os gregos e romanos tinham dito passou por um crivo crítico em face do
que sugeria a leitura da gramática sânscrita. (CÂMARA JR., c1975, p. 44)
No início do século XIX, o erudito alemão Friedrich von Schlegel publicou Sobre a
língua e a filosofia dos hindus7, livro que chamou a atenção dos estudiosos para o assunto, e
no qual ele aventava uma relação entre o sânscrito e, não só o grego e o latim, mas também
outras línguas europeias. Foi o primeiro a usar o termo gramática comparada, uma vez que
procurou fazer uma comparação sistemática dessas línguas. Schlegel, no entanto, como não
tinha conhecimento das mudanças fonéticas, comparou apenas palavras de sons idênticos que
apresentavam algumas divergências.
Segundo Câmara Jr., a história da linguística tem seu verdadeiro início com Rask e
Humboldt:
Partindo de uma abordagem filosófica da linguagem pela observação direta de muitas línguas
exóticas, o estudioso alemão Wilhelm von Humboldt [...] coloca-se no cerne dos fenômenos
linguísticos e tenta desemaranhar a natureza e o mecanismo da linguagem. Podemos dizer que
ele começou a lançar os fundamentos do que vimos chamando o estudo “descritivo” da
linguagem como um aspecto da linguística propriamente dita. (CÂMARA JR., c1975, p. 37)
morfológicos, ao contrário, dificilmente são ‘tomados por empréstimo’ a uma outra língua – o
que faz com que os dados obtidos por meio das comparações sejam mais consistentes. Não
obstante, também comparou palavras (mais concretas e essenciais) de línguas diferentes,
baseando-se em ‘leis’ fonéticas:
O trabalho de Rask, Investigação sobre a Origem do Antigo Nórdico ou Islandês, no
entanto, manteve-se inédito por muito tempo. Sendo assim, coube ao alemão Franz Bopp,
cujo trabalho é um pouco posterior ao de Rask, o título de fundador da Ciência Histórico-
Comparativa da Linguagem.
Em O Sistema de Conjugação do Sânscrito Comparado aos das Línguas Grega,
Latina, Persa e Germânica, Bopp aliou um estudo comparativo da linguagem ao
conhecimento sobre o sânscrito, estabelecendo a existência de uma grande família de línguas
que abrangia Europa e Ásia. Seu propósito era descobrir a origem das formas gramaticais.
Em um estudo posterior, o estudioso alemão incluiu outras línguas à família que ele
denominou indo-europeia. Bopp pode, por isso, ser considerado o fundador da linguística
indo-europeia. Câmara Jr. afirma que o estudo comparativo das línguas indo-europeias “foi
decisivo para estabelecer como ciência real a abordagem histórica da linguagem” (c1975, p.
51).
Tornando à Linguística e à Filologia, cabe dizer que elas são ciências perfeitamente
caracterizadas, com seu objeto formal nitidamente estabelecido, com seus métodos próprios,
seguros e apurados, com suas conclusões definitivas.
O objeto da Linguística é o estudo da linguagem articulada ou a aplicação de seu método e de
suas conclusões a uma língua particular, a um dialeto ou uma família de línguas, enquanto a
Filologia se preocupa com a fixação do texto fidedigno, sua explicação e com comentários de
vária natureza que lhe atribuirão o sentido exato.
[...] Até algum tempo ainda se podia (ao menos no mundo da língua portuguesa) conceituar
Filologia como o estudo científico de um tipo de língua ou de família de línguas atestadas por
documentos escritos. Hoje tal conceito cabe ao que se chama Linguística Aplicada, embora
nos últimos tempos a perspectiva histórica ou diacrônica tenha merecido o completo desprezo
dos linguistas, que só têm querido trabalhar com a língua atual e, preferencialmente,
coloquial. (MELO, 1981, p. 4)
Buscando o conceito de ciência, para justificar que tal conceito se aplicaria tanto à
Linguística quanto à Filologia, continua o autor:
Na verdade que é uma ciência?
Considerando-se objetivamente, é “um conjunto de verdades certas e logicamente encadeadas
entre si, de modo que formem um sistema coerente.” (8) Do ponto de vista subjetivo, ciência
“é o conhecimento certo das coisas por suas causas ou por suas leis”. (9)
Ora, aplicando-se estes conceitos à Filologia e à Linguística Portuguesa, por exemplo, vemos
fácil que eles lhe cabem à justa, seja do ângulo do objeto, seja do prisma do sujeito. Sem
dúvida possuímos na nossa disciplina um conjunto de verdades solidamente estabelecidas, tais
como a origem românica da língua, as etapas do processo de evolução das vogais e
consoantes ao longo da história do idioma, o conceito e o como das transformações sintáticas.
Tais verdades se encadeiam e formam sistema, possibilitando-nos assim o conhecimento das
causas e gerando em nosso espírito um habitus, que nos leva a explicar fenômenos novos, ou
até então não estudados, por dedução dos princípios gerais ou pelo conhecimento do modo
intrínseco de operação da língua. (MELO, 1981, p. 5)
8
RÉGIS JOLIVET, Traité de Philosophie, I, 2ª ed., Emmanuel Vitte, Lyon-Paris, 1946, p. 158-159.
9
Id., ibid., I, p. 159.
28
Linguística está em um estágio ‘pré-científico’, Perini alega que isso não é motivo para
preocupações, pois que o problema estaria na complexidade e na dificuldade de acesso à
evidência dos fatos estudados e não na indolência ou incompetência dos linguistas: “Assim
como Bacon ou Aristóteles não precisavam envergonhar-se de sua física, nós, hoje em dia
podemos encarar o estado da linguística com tranquilidade” (2008, p. 34).
Se tantos anos após o desenvolvimento do método histórico-comparativo a Linguística
ainda carece de bases de dados cuidadosamente colhidos, sistematizados e descritos para
fundamentar as teorias, não se pode negar que a contribuição desse método foi efetiva.
Embora os linguistas da época tenham, algumas vezes, criado teorias precipitadas, sem
bases seguras, outras teorias há que se fundamentaram em bases cujo valor é indiscutível,
como, por exemplo, a origem vulgar das línguas românicas.
Pode-se dizer que o arcabouço de conhecimentos sobre língua e de metodologias para
estudá-la, proporcionado pelos estudos diacrônicos, foi o que tornou possível o surgimento do
estudo científico sincrônico da língua.
Daí podemos vislumbrar a importância que tem, para um graduando de Letras, a gama
de conhecimentos trazidos pelo estudo de HLP. É preciso dar aos estudos diacrônicos o seu
devido mérito.
Repetindo as palavras, já citadas, de Gladstone Chaves de Melo, chamamos a atenção
para o fato de que o habitus de que fala o autor, que “nos leva a explicar fenômenos novos, ou
até então não estudados, por dedução dos princípios gerais ou pelo conhecimento do modo
intrínseco de operação da língua”, nos foi dado pelo conhecimento do funcionamento da
língua através dos tempos – de cunho diacrônico, portanto.
Temos consciência de que não devemos depender da diacronia para descrever uma
língua, mas, certamente, é quase sempre pela diacronia que podemos explicar certos
fenômenos.
Tomando os plurais irregulares das palavras do português, cujo singular é em -ão, por
exemplo, podemos, do ponto de vista sincrônico, descrever que tais palavras apresentam, no
plural, três terminações possíveis – -ãos, -ães e -ões. Mas é somente pela análise sob o ponto
de vista diacrônico que podemos compreender o motivo e a origem de tais plurais irregulares.
Isso se explica pelo fato de que tais palavras, no singular, em determinada época,
tinham formas diferentes que, em consequência das alterações fonéticas da língua portuguesa,
convergiram para a mesma terminação: -ão. Os plurais, no entanto, não sujeitos às mesmas
alterações fonéticas, permaneceram diferentes uns dos outros.
29
Tínhamos, assim, na fase arcaica da língua portuguesa, as palavras mão – dissílabo (<
manu), pan (< pane) e leon (< leone), por exemplo. Por volta do século XV todas essas
terminações já haviam convergido em -ão – ditongo nasal típico de nossa língua, – resultando
tais palavras em mão (monossílabo), pão e leão.
O plural dessas palavras, no entanto, na passagem do latim vulgar para o português,
sofreu a síncope do [n] intervocálico, nasalizando a vogal precedente, e a ditongação do hiato
decorrente dessa síncope – fenômeno fonético também típico do português, entre as línguas
românicas –, resultando em mãos (< ma(n)os), pães (< pa(n)es) e leões (< leo(n)es).
10
O que podemos observar é que as terminações em -an, -on, -om, -õ das formas
singulares uniformizaram-se, a partir de certa época, em -ão. As palavras que entraram em
nossa língua, em fase posterior, não estiveram sujeitas a tal ‘lei’ fonética, mantendo a
terminação tônica [õ], grafada -om: maçom, batom, marrom, por exemplo, oriundas do
francês.
O conhecimento desse fato da história da nossa língua nos permite, “por dedução dos
princípios gerais ou pelo conhecimento do modo intrínseco de operação da língua”, explicar
porque, hoje em dia, encontramos as formas *marrão, *batão e até mesmo *bão (como vimos
no capítulo anterior, em 1.1).
Do ponto de vista sincrônico poderíamos apenas descrever esse fenômeno. Com os
conhecimentos da língua fornecidos por meio do estudo diacrônico do português, podemos
não só explicar o fenômeno como poderíamos até mesmo prevê-lo.
Por meio do conhecimento trazido pelo estudo da história de nossa língua podemos
deduzir porque bom, marrom e batom sofreram a ditongação, enquanto maçom não a sofreu.
O que acontece, nesse caso, é que as tendências ancestrais da língua costumam se manifestar,
na maioria das vezes, na fala de indivíduos com baixo nível de escolaridade. As três primeiras
palavras são, de fato, bastante populares, estando, assim, sujeitas a essas tendências. A palavra
maçom, por sua vez, não sendo muito popular, não foi afetada.
A palavra garçom, também oriunda do francês, sofreu a referida ditongação,
resultando em garção – que significava ‘moço’, ‘homem jovem’. A forma garção, no entanto,
que data do século XIII, é considerada arcaísmo (cf. HOUAISS, 2009. CD-ROM). A forma
atual, sem a ditongação, aparece em nossa língua a partir do século XX, com o significado de
“empregado encarregado de servir as pessoas em restaurantes, cafés, coquetéis, residências
etc.” (cf. HOUAISS, 2009. CD-ROM).
10
As terminações das formas verbais também sofreram as mesmas transformações. Nas formas verbais, no entanto, a
ortografia estabeleceu que tal ditongo, quando tônico, é grafado ‘aõ’, mas quando átono é grafado ‘am’ – comerão
[kome’rãw] e comeram [ko’merãw] (cf. HENRIQUES, 2007, p. 38)
30
Embora os estudos linguísticos descritivos estejam alcançando um nível cada vez mais
apurado, devemos sempre lembrar que o advento do estudo científico da linguagem só foi
possível graças ao longo percurso da abordagem histórica do seu objeto de estudo.
31
31
UERJ
1. Mudanças linguísticas / Conceitos de evolução linguística nos sécs. XIX
e XX
2. História externa da língua portuguesa
3. Introdução à fonologia histórica
3.1 Pronúncia do latim clássico
3.2 Formas divergentes e convergentes, populares e eruditas
3.3 Caso lexicogênico; redução das declinações e das conjugações
3.4 Regularidade versus imprevisibilidade
3.5 O "Appendix Probi "
4. Conceito de assimilação
5. Nomenclatura das alterações fonológicas (metaplasmos)
6. Evolução do vocalismo e do consonantismo na passagem do latim para o
português
6.1 Vocalismo
6.2 Consonantismo
7. Comentário de textos arcaicos e/ou clássicos: morfossintaxe diacrônica;
semântica diacrônica; história da ortografia
UFRJ
UNIDADE I Linguística histórica e História da língua
A mudança em tempo real
História interna e história externa
UNIDADE II - O conceito de latim vulgar
Fontes para o seu estudo
Periodização da história do português
UNIDADE III - Características linguísticas
Processos fonológicos mais recorrentes
Morfossintaxe e léxico
Analise de textos do século XIII ao XX.
Do sécu1o XVI aos nossos dias: a evolução da língua portuguesa no Brasil.
UFF
1- História externa do português: substratos, superstratos, romanço ibérico
2- O galego-português
3- Fases da língua portuguesa
4- O domínio da língua portuguesa
5- Alterações fonéticas: metaplasmos
6- O vocalismo português: vogais, semivogais, encontros vocálicos
7- O consonantismo português: consoantes, encontros consonantais
8- História do sistema ortográfico
Duas das universidades cujos conteúdos de HLP estamos observando – UERJ e UFRJ
– abordam a mudança linguística, antes de abordar diretamente a história de nossa língua.
33
________________________________
Mudanças Linguísticas
(ou impulso), criado por Edward Sapir. Segundo esse conceito, as mudanças
não aconteceriam ao acaso, mas teriam uma diretriz, um sentido. Eliminava-se,
assim, a ideia de plenitude, sendo a deriva um conceito neutro, sem juízos de
valor.
Segundo Câmara Jr, o antigo conceito de evolução pode ser aproveitado,
suprimindo-se a ideia de evolução para uma plenitude. Isso significa reconhecer
como verdade apenas os dois primeiros preceitos daquela doutrina, ou seja, que
as mudanças são paulatinas e graduais e que são encadeadas. Tal posição
também é adotada pelo norte-americano, Joseph Greenberg.
É ainda Câmara Jr. quem nos esclarece:
[...] entre a mudança linguística e o chamado “estado linguístico”, no âmbito
sincrônico, não há uma fronteira nítida, absoluta. A língua é sempre dinâmica;
não há língua estática. O dinamismo se reflete no campo sincrônico através
de flutuações, que são as variantes. [...] os fonemas [...] não se repetem de
maneira imutável na boca de todos os falantes, em todas as circunstâncias,
em todos os contextos frasais e nem mesmo para um dado falante em todas
as situações. [...] Quando é que teremos, então, a mudança linguística
propriamente dita? É justamente quando essas variações oferecem um
sentido, entram numa deriva, mediante a qual o que era é abandonado e se
passa a ter outra coisa. Dentro da flutuação há, pois, uma corrente evolutiva,
que vai marcando a história da língua. (1979, p. 69)
A noção de deriva (ou impulso), criada por Sapir, pode auxiliar o graduando a
compreender o funcionamento da língua, assim como conhecer os impulsos internos e
externos que causam suas transformações. Seguem alguns exemplos, no português
brasileiro atual:
Impulso cultural – A Era da Informática, por exemplo, favoreceu a entrada de
diversos termos e palavras do inglês em nosso idioma, em virtude de os sistemas
operacionais e softwares (e já aqui encontramos um empréstimo) terem sido criados
por falantes do inglês ou, talvez, por ser o inglês uma língua internacional.
Encontramos, assim, em português, tanto palavras ‘emprestadas’, como download e
site, quanto palavras aportuguesadas, como deletar e escanear.
Impulso estilístico – A redundância é um traço estilístico presente na ‘língua
do povo’. O largo uso de preposições, em latim vulgar, mesmo antes da redução dos
casos, comprova essa tendência. No português atual, no Brasil, ouvimos expressões
como “É só um só”, “Ela já foi já”, “Ele morreu de morte morrida” etc.
Ouvem-se, também, expressões como “Será se ela vai?” e “Ele chegou
pertinho da beira do lago”. No caso da primeira expressão, parece-nos que se está em
lugar de que para reforçar a idéia de dúvida ou incerteza (uma vez que a conjunção se
é usada em orações condicionais). Já na segunda, o advérbio acrescido do sufixo de
diminutivo -inho (contrariando a gramática normativa) tem valor intensificador,
equivalendo a ‘bem perto’.
Impulso motivado pelos pontos fracos – Frases como “Você quer que eu faço?”
indicam que o sentido do modo subjuntivo já não é tão claro para muitos falantes. Outra
36
mudança, bastante comum, acontece com os verbos VER e VIR. Quando conjugado no futuro
do subjuntivo, a vogal temática do verbo VER passa a i – ‘Se eu o vir, peço para lhe
telefonar’, igualando-se ao infinitivo do verbo VIR. Como o futuro do subjuntivo dos verbos
regulares coincide com o infinitivo flexionado (‘Se eu cantar’, ‘Se eu correr’, ‘Se eu partir’),
um grande número de falantes constrói o futuro do subjuntivo do verbo VIR (irregular) usando
a forma do infinitivo – ‘*Se eu ver ele, peço pra te telefonar’. Aqui há, também, um caso de
mudanças encadeadas.
Outra noção importante para o graduando é a de as mudanças linguísticas serem
graduais e encadeadas. Tal noção ajuda-o a compreender que (e como) a língua
funciona como um todo, com as suas partes se interpenetrando e interagindo. As
alterações fonéticas por que passaram alguns fonemas finais, na passagem do latim
clássico para o latim vulgar, por exemplo, geraram alterações em diversos níveis da
língua. A queda do -m final de palavra – tanto em nomes quanto em verbos – e a
passagem de -ŭ a [o] (mudanças fonéticas) alteraram as desinências11 do singular do
caso acusativo: -am, -ŭm, -em > -a, -o, -e (mudança morfológica). Em virtude dessa
alteração fonética, as desinências do acusativo singular igualaram-se às do ablativo
singular, causando confusão entre os dois casos. As desinências de caso, como se
sabe, indicavam a função sintática das palavras. As desinências do acusativo e do
ablativo terem se igualado gerou um ponto fraco na língua – desinências iguais para
funções sintáticas diferentes. Com o passar do tempo, o ablativo foi abandonado e
suas funções sintáticas foram incorporadas ao acusativo (mudança sintática).
O estudo da história de uma língua envolve não só as alterações por que tal língua
passou, mas todos os fatores – externos e internos, linguísticos e não linguísticos – que vieram
a influenciá-la.
Assim como ao cardiologista será insuficiente estudar o coração sem investigar os
fatores externos que o afetam (como a prática ou não de atividades físicas, a reação causada
11
Para deixar a escrita mais fluente, usaremos, no presente trabalho, o termo ‘desinência de caso’ para indicar as
‘terminações de casos’, embora nessas terminações haja, de modo geral, a vogal temática e a desinência de caso,
propriamente dita. Em relação ao acusativo, a desinência casual era a nasal -m (em grego, a desinência de acusativo também
era uma nasal, -n), a desinência do ablativo, por sua vez, era o alongamento da vogal (rosă – ‘a rosa’; rosā – ‘com a rosa’,
por exemplo). A quantidade das vogais, como se sabe, tinha caráter distintivo em latim clássico, mas não o tinha em latim
vulgar, daí a confusão entre as duas terminações, após a queda da nasal final.
37
O Conteúdo Programático das três universidades que fazem parte desta análise se
divide em história externa e história interna. Começaremos, então, pela história externa.
Destacaremos, de forma resumida, os principais fatos históricos do latim e do português e
teceremos comentários acerca da pertinência e da utilidade do conhecimento de tais fatos para
os graduandos de Letras.
Uma vez que a língua portuguesa, como se sabe, originou-se a partir da evolução do
latim falado na Península Ibérica – e visando a dar ao graduando o maior número de
informações possível, para que ele possa compreender o funcionamento da língua –, é
fundamental começarmos a história externa do português pela do latim.
________________________________
Latim é o nome da língua a princípio falada pelos habitantes da cidade de
Roma, situada no Lácio (Latium), região que fica no centro da Península Itálica.
E foi a partir de Roma que, ao longo de mais de um milênio, irradiaram-se a
língua e a cultura latinas.
Bruno Bassetto esclarece sobre as origens do latim:
Originariamente, o latim era apenas o dialeto de Roma, restrito à margem do
rio Tibre. Língua de camponeses e pastores, era rude, concreto e sem
refinamento de qualquer espécie. Pertence à família indo-européia e, dentro
dela, ao grupo Kentum. Juntamente com o osco dos samnitas, o sabélico, o
volsco, o umbro e o falisco, o latim forma o chamado itálico. (BASSETTO,
2001, p. 87)
38
Embora bastante simples, no seu início, a língua latina não foi criada pelos
primeiros romanos. Ela é, na verdade, uma das inúmeras evoluções de uma
antiga língua que originou grande parte dos idiomas modernos: o indo-europeu.
Considerado uma protolíngua, o indo-europeu é o nome que se dá a uma
língua originária do norte (provavelmente do Cáucaso), cujos falantes migraram,
em levas espaçadas no tempo, para a Europa e parte da Ásia.
Os indo-europeus não deixaram documentos escritos, mas sua existência
pode ser comprovada pelos vestígios que seu idioma deixou nas línguas
clássicas (como o latim, o grego e o sânscrito). As semelhanças entre tais línguas
vieram à tona no início do séc. XIX, quando Franz Bopp, linguista alemão,
apresentou “Sobre o sistema de conjugação da língua sânscrita, em confronto
com o das línguas grega, latina, persa e germânica”. Bopp concluiu que tais
semelhanças só podiam ser explicadas por uma origem comum. Outro estudioso
alemão, Jakob Grimm, estabeleceu uma relação genética entre as línguas e,
através de comparação entre as suas “filhas”, propôs reconstituir o indo-europeu.
Surgia, assim, o método histórico-comparativo.
Friedrich Diez, outro linguista alemão, percebeu que entre o latim e as línguas
românicas havia uma relação genética semelhante à do indo-europeu com as
línguas clássicas. Diez aplicou o método histórico-comparativo às línguas
neolatinas, e chegou a algumas teses, dentre as quais a de que estas se
originaram do latim chamado “vulgar”, e não do clássico, como se pensava antes.
Sempre através do método histórico-comparativo, notaram-se semelhanças
entre as línguas itálicas (cujas principais são o latim, o osco e o umbro) e as
línguas célticas (bretão, irlandês, galês, entre outras). Essas características
semelhantes (tal como voz passiva em -r, e constituição dos depoentes também
em -r) não são encontradas em outras línguas indo-européias. A esse grupo
lingüístico deu-se o nome de ítalo-céltico, que depois se dividiu, formando o
itálico e o celta.
Temos, então, grosso modo, a seguinte linha de evolução: (?) > indo-europeu
> ítalo-céltico > itálico > latim.
39
________________________________
________________________________
O latim, como já vimos, era, a princípio, a língua falada em Roma, e convivia
com diversas línguas “irmãs”, como o sabélico, o osco e o umbro, e também
com línguas não indo-européias, como o etrusco e o lígure.
40
Segundo a lenda, Roma foi fundada pelos gêmeos Rômulo e Remo, em 753
a. C., mas disso não há comprovação arqueológica. O que se pode afirmar é
que em meados do século VIII a maior parte das colinas do Lácio já era
habitada.
Os habitantes dessas colinas pertenciam a dois grupos étnicos aparentados:
uns praticavam o rito da inumação, outros o da incineração. Tais grupos não
eram autóctones, isto é, pertenciam a levas de invasores que ali se fixaram.
Por outro lado, os estudos arqueológicos mostraram [...] que Roma, a
princípio um aglomerado de aldeias humildes, só passou a ter uma estrutura
urbana com a presença dos Etruscos, muito mais civilizados que os Latinos.
(SOARES, 1999, p. 6)
palavras para designar instrumentos, técnicas, novos espécimes vegetais a serem plantados
etc.
Ainda que não haja registros, pode-se afirmar que a língua latina, na fase da
dominação etrusca do Lácio, alargou consideravelmente seu léxico. A enorme quantidade de
inovações levadas pelos etruscos forçou a língua latina a se adaptar às novas realidades. Dessa
forma, língua e sociedade caminharam juntas, uma servindo à outra. Essa noção também
ajudará o aluno a compreender a história da língua portuguesa.
_______________________________
Em 272 a. C. a Península Itálica já havia sido conquistada pelos romanos. Em
118 a. C., após diversas batalhas e as três lendárias Guerras Púnicas, Roma já
dominava toda a Europa mediterrânea e alguns pequenos territórios da África do
Norte e da Ásia Menor. Com a chamada “pax romana” consolidada em diversas
regiões, Roma continuou suas conquistas.
A história do latim está intrinsecamente ligada à do Império Romano.
Conforme esse se expandia e entrava em contato com outras culturas, ia também
o latim espalhando-se, adaptando-se às novas situações, enriquecendo-se.
Embora as conquistas do Império tenham sido resultantes de ações militares,
os romanos, quando conquistavam um território, impunham suas leis e seu
idioma como língua oficial, mas permitiam que os vencidos mantivessem suas
crenças e, ao menos entre si, continuassem a usar sua língua materna. Tal
atitude resultou em um período de bilinguismo, mas os idiomas de quase todos
os povos conquistados foram, aos poucos, cedendo lugar ao latim.
Ilari lista as línguas com que o latim se deparou, conforme o Império se
expandia:
As línguas com que o latim entrou em contacto por efeito das conquistas
pertenciam a diferentes famílias linguísticas e eram bastante diferentes entre
si.
Na Península Itálica, o latim encontrou o umbro e o osco, línguas próximas,
pertencentes como ele ao ramo itálico de indo-europeu; além delas,
encontrou línguas indo-européias do ramo ilírico, grego e celta, e línguas não
indo-européias, como o etrusco e o lígure.
Nas ilhas italianas, os romanos entraram em contacto com línguas que
representavam um antigo substrato mediterrâneo, além do grego (indo-
europeu) e do fenício (semita).
As línguas faladas pelos povos da Ibéria não eram indo-européias (ibero,
vascão), exceto na região próxima à França, onde dominava o celtibero.
Idiomas indo-europeus predominavam na França e na Panônia (domínios do
celta), e na Ilíria (domínio ilírico, antepassado do albanês atual); também
eram faladas línguas indo-européias na Trácia e na Macedônia; e o grego
não era só falado na Grécia, mas predominava em grande parte da Anatólia e
do Mediterrâneo oriental [...].
O latim não suplantou as línguas indígenas em todo o território do Império:
impôs-se como língua falada no Mediterrâneo ocidental e na Europa
42
O conhecimento das línguas (e dos povos) que habitaram as regiões onde, mais tarde,
formaram-se as nações europeias modernas ajudará o aluno a compreender a influência que as
línguas exercem umas sobre as outras. Também o envolvimento da língua pelas questões
políticas pode ficar mais claro com o exemplo do latim.
O fato de ser o latim a língua do conquistador, e de ser esse conquistador (na maioria
das vezes) ‘portador’ de uma civilização bem mais complexa do que a dos povos
conquistados, (lembremo-nos de que língua e sociedade andam juntas) pode explicar, ao
menos em parte, porque estes, em sua maioria, acabaram abandonando sua língua materna
(cada um a seu tempo) em favor do latim.
Também é importante observar que os povos cuja civilização era tão (ou mais)
complexa do que a dos romanos não adotaram nem a cultura nem a língua latina. Como
exemplo podemos citar os gregos, os egípcios (àquela época já helenizados) e os hebreus.
Esse conhecimento, aplicado ao mundo de hoje, pode ajudar a esclarecer por que, por
exemplo, os imigrantes latinos dos Estados Unidos conservam sua cultura e, em muitas
regiões, até mesmo sua língua. Também ajuda a esclarecer por que, no Brasil – ao menos no
Rio de Janeiro – encontramos imigrantes chineses e seus descendentes usando somente o
chinês, para se comunicarem entre si.
________________________________
Além da enorme variedade de idiomas falados em todo o Império, é preciso
lembrar que também havia variações do próprio latim.
Havia o chamado latim clássico (LC), praticamente apenas literário, que
floresceu entre os séculos I a. C. e I d. C., e que permaneceu estático, sendo
utilizado pelos grandes escritores (mesmo em épocas posteriores). Havia
também o chamado sermo urbanus, modalidade do latim falada pelos
intelectuais. Embora menos rígido que o LC, o sermo urbanus era cuidado. E,
paralelo a esses dois, havia ainda o sermo vulgaris, denominação genérica que
abrange todas as modalidades populares.
O latim era levado às colônias pelos soldados, mercadores e outros
populares. A superioridade da cultura romana, bem como as vantagens nas
negociações, entre outros fatores, acabaram por fazer com que muitos povos
43
Silva Neto diz que é a partir das ocasionais “quebras de gelo” da língua
escrita que devemos chegar ao LV, do qual vêm, de fato, as línguas românicas.
A essas “quebras de gelo” podemos chamar fontes do LV.
________________________________
A contraposição que se faz entre latim clássico e latim vulgar é bastante proveitosa
para o aluno de Letras, uma vez que evidencia que: a) a língua escrita é pautada na fala das
elites; b) a língua usada na literatura é, de modo geral, bastante diferente da língua falada; c)
não existe apenas uma modalidade de língua ‘vulgar’.
É claro que os alunos estão cientes de todos esses fatos, mas, pela nossa experiência
em sala de aula, eles demonstram dificuldade de perceber/identificar essas nuances na sua
própria língua. Talvez porque, como falantes do português, estejam habituados a ‘filtrar’ as
nuances e a entender as diversas modalidades do português como uma só língua.
Sendo assim, talvez o graduando não esteja atento ao fato de que o título da música
“Não Aprendi Dizer Adeus”, por exemplo, ou frases do tipo “O filme já foi assistido por mais
de 100.000 pessoas” refletem uma flutuação na regência de alguns verbos.
________________________________
45
Desde Diez que já se sabia que as línguas românicas não evoluíram a partir
do LC, e sim do LV. Diez chegou a essa conclusão observando, através do
método histórico-comparativo, as características comuns entre as línguas
românicas. O filólogo percebeu que essas não tinham tantas semelhanças com o
latim dos textos clássicos, mas sim com a modalidade conhecida como ‘latim
vulgar’.
________________________________
Anônimo
Quadro 5 – Postagem site Orkut, sobre o jogo ‘Café Mania’. Fonte: Perguntinha do Papa dos
Pudins
devia namora(r) eles formaria um lindo casau” e em “e almenta(r) limite de 14 pra uns 25
fogao”.
Termos do ‘português vulgar’ transmitidos por empréstimo a outras línguas – Apresentamos,
abaixo, um termo do ‘português vulgar’ transmitido à língua italiana:
________________________________
São muitas as diferenças entre o LV e o LC, citaremos, no entanto, as
principais, baseando-nos em Elementos de Filologia Românica, de Bruno
Bassetto, dando um ou dois exemplos de cada item.
Em relação ao LC, o LV é mais:
a) Simples em todos os níveis – como exemplo, citamos, no campo da
fonologia, a perda da quantidade vocálica e consequente redução das 10 vogais
clássicas a 7, 6 ou 5 (conforme a região da România); e, no campo da
morfologia, a redução das 5 declinações a apenas 3, migrando os nomes das
duas extintas para uma das três remanescentes.
12
O dicionário italiano informa que a etimologia da palavra é incerta, sugerindo a palavra ‘via1’ (o primeiro sentido para
‘via’, no dicionário em questão, equivale a ‘rua’) como étimo, por estar o ‘viado’ “frequentemente próximo à rua”. Houaiss
apresenta, na acepção nº 4 do verbete veado, o sentido figurado (do animal da família dos cervídeos) “homossexual
masculino”. O verbete viado, segundo Houaiss, traz somente a acepção “diz-se de ou tecido de lã, com riscas ou veios”. A. G.
Cunha, no verbete via, não apresenta ‘viado’ como cognato. No verbete veado, este autor não apresenta nenhum sentido
figurado.
49
sua função, ao contrário das vogais temáticas verbais, que ainda indicam a que conjugação o
verbo pertence, indicando que paradigma seguir, ao flexioná-lo.
O sistema verbal do português, no entanto, vem sofrendo uma simplificação
considerável, no registro informal. Das seis pessoas existentes, a P5 raramente figura, mesmo
no registro formal, tendo sido substituída pelo pronome de tratamento vocês. Como o
pronome tu, no Brasil, tem caído em desuso em boa parte de seu território, sendo substituído
pelo pronome de tratamento você, a P2 tem perdido espaço para a P3, que acompanha os
pronomes de tratamento. No registro informal do Brasil, a P4 vem caindo em desuso, devido à
substituição do pronome nós pela a expressão a gente, que também é acompanhada pela P3.
O sistema verbal do português informal brasileiro reduziu-se (ao menos em uma parte
do território nacional) à P1, P3 e P6: eu amo, você ama, ele ama, a gente ama, vocês amam,
eles amam.
A formação informal do nosso futuro (do presente e do pretérito) também apresenta
semelhanças com o futuro do latim vulgar, no sentido de ser analítico e expressivo. Em vez de
fazer uso das desinências do futuro, dá-se preferência à perífrase verbal, formada pelo verbo
IR + infinitivo. O uso de IR como auxiliar deve-se, provavelmente, ao valor semântico desse
verbo, que tem um sentido de deslocamento de um ponto a outro. Esse deslocamento, que diz
respeito a espaço, teria sido ampliado para deslocamento no tempo.
________________________________
As características acima são comuns ao LV de toda a România. Enquanto
perdurou a unidade do Império Romano, houve também certa unidade
linguística, mantida, até certo ponto, pelas escolas, instituições públicas, pela
manutenção de colônias civis e militares, fácil deslocamento e comunicação
entre as províncias/colônias e Roma, etc.
Com o fim do Império, no entanto, todas essas ‘forças centrípetas’, que
mantinham a relativa unidade linguística, cessaram. Em virtude da invasão de
bárbaros de línguas diversas, que se espalharam por toda a România, e também
ao isolamento de cada novo reino, cada sermo regional seguiu seu curso, ora
sendo suplantado por um sermo (ou dialeto) mais importante, ora se firmando
cada vez mais, até se elevar ao status de língua oficial de nações que, mais
tarde, viriam a se formar.
Embora, após as invasões bárbaras, o latim tenha se tornado a língua dos
vencidos, os bárbaros acabaram adotando-o em várias regiões. É o caso da
Europa Ocidental e da Romênia (antiga Dácia). Esta última, no entanto, acabou
51
sofrendo grande influência das línguas eslavas, levada por outros invasores,
como o francês sofreu influência germânica.
Apesar dos percalços por que passou, o latim não viu o seu fim com a queda
do Império. Se esse se diversificou em dialetos regionais, a Igreja Católica
Romana, única instituição romana a sobreviver à queda do Império, continuou
mantendo o latim como língua oficial. O latim eclesiástico, embora permeado de
vulgarismos, manteve certa fidelidade ao antigo latim culto e é, até hoje, embora
com algumas modificações, a língua oficial do Vaticano.
Com o advento das grandes navegações, o latim, na forma das línguas
neolatinas (português, espanhol e francês), foi transportado para o novo mundo
e é falado em praticamente todos os países das Américas. Da mesma forma foi
reintroduzido na África e na Ásia, embora em regiões diversas das da época do
Império.
À época da Renascença, o latim enriqueceu o léxico de suas “filhas” através
dos poetas e escritores, que buscavam nas línguas clássicas o refinamento
necessário para expressar suas ideias.
E, ainda hoje, recorre-se ao latim (e também ao grego) para nomear achados
científicos ou invenções tecnológicas.
Como podemos ver, o legado da civilização romana e de sua língua está vivo
até hoje, espalhado pelos “quatro cantos do mundo”.
________________________________
Uma vez que a língua portuguesa é considerada uma evolução do latim, julgamos
conveniente começar sua história a partir da romanização da Península Ibérica.
________________________________
Como vimos no item anterior, após a queda do Império, as forças centrípetas,
que mantinham uma relativa unidade linguística e cultural, desapareceram. A
única força unificadora remanescente era a Igreja. Essa força, segundo
Gladstone Chaves de Melo, desde o Império conclamava os homens “a uma
união superior de fé, justiça e caridade” (MELO, 1981, p. 70). Embora fosse uma
força centralizadora de poder e ditasse regras morais para os reinos nascentes, a
Igreja adotou um latim que, se bem mais simples que o literário, era, porém, mais
culto e refinado que o sermo plebeius. Sem encontrar mais nenhuma força
coercitiva, a dialetação do latim vulgar da România correu livre, então, tornando
os falares regionais cada vez mais distante uns dos outros.
Conforme já foi visto, há que se levar em consideração, na investigação da
evolução de uma língua, as influências que esta sofreu ao longo de sua história.
Alguns fenômenos linguísticos são panromânicos, isto é, ocorreram no LV de
toda a România (como a redução do número das declinações, do número dos
casos e do número das conjugações verbais, o uso frequente de diminutivos,
etc.). Podemos citar como exemplo a palavra latina auris, de cujo diminutivo –
auricula – evoluíram as palavras românicas: orelha (port.), orecchio (ital.), oreille
(fr.), oreja (esp.).
Os filólogos são unânimes quanto aos motivos da dialetação da România. É
sabido que variados fatores levaram a essa diversidade de falares. Um deles é,
sem dúvida, o fato de que os povos nativos das regiões conquistadas, embora
adotando o latim, emprestavam a este os hábitos de sua língua materna. Isso
dava ao latim matizes diferentes, conforme a região a que era transplantado.
A época em que se deu a colonização da região é também um importante
fator de diferenciação dos falares. Roma se expandiu ao longo de mais de um
milênio. Embora se considere o latim vulgar somente a partir do século III a.C., é
certo que, ao longo dos séculos, a língua (ao menos a falada) não se manteve
estática e uniforme.
53
Assim, o latim levado à Gália Cisalpina, por exemplo, colonizada em 228 a.C,
certamente não foi o mesmo levado à Gália Lugudunense, colonizada em 52
a.C., quase duzentos anos mais tarde. Esse enorme espaço entre as duas
colonizações é, seguramente, um dos motivos da separação linguística existente
entre o norte e o sul da França de hoje.
________________________________
________________________________
Quando os romanos, após a segunda Guerra Púnica, chegaram à Península,
encontraram vários povos ocupando aquele território. Por questões tanto
geográficas quanto de rivalidade entre tais povos, os dominadores dividiram a
Península Ibérica em Hispania Citerior (mais tarde Terraconense, Cartaginense
e Galécia) e Hispania Ulterior (depois Bética e Lusitânia).
Com exceção dos celtas, os outros povos que habitavam a Hispania pré-
romana não eram de origem indo-européia. Dentre eles, os principais são os
bascos, os lusitanos1 e os iberos. Estes últimos se miscigenaram com os celtas,
dando origem ao povo celtibero.
Silveira Bueno, em seus Estudos de filologia portuguesa, afirma que foi
grande a influência celta na fonética do português. Citando o linguísta francês
Albert Dauzat, que atribui aos celtas algumas características fonéticas peculiares
54
Tomar conhecimento dos povos que habitaram a Península antes dos romanos
auxiliará o graduando a compreender a questão dos substratos.
Quando um povo conquistador domina um território, sempre encontra povos
indígenas. O que acontece, então, via de regra, é que a língua e a cultura do colonizador se
impõem ao povo colonizado. Antes, porém, da assimilação total ocorrer, há um período mais
ou menos longo de transição, em que as duas culturas e línguas convivem lado a lado. É em
consequência do bilinguismo desse período de transição que advém o substrato.
A palavra manteiga, por exemplo, é atribuída a um substrato pré-romano da Península
Ibérica, uma vez que só aparece nas línguas dessa região – manteiga (port.) e manteca (esp.),
mas burro (it.) e beurre (fr.), originadas de um étimo distinto (butyrum). Já a palavra carro,
substrato gaulês, é panromânica – carro (port., esp., cat. e it.), char (fr.) e car (rom. e prov.)13.
________________________________
Outro fator que contribuiu para o distanciamento dos falares vulgares da
România foram as invasões bárbaras. Esse fato teve importantes
consequências, como o fechamento das escolas e o desaparecimento das elites
culturais. Desmantelado o poder unificador das escolas, cada língua vulgar
seguiu livremente sua deriva. O latim, já dialetado, conheceu invasores bárbaros
de tribos diferentes, recebendo influência de seus idiomas.
As invasões bárbaras não se deram todas ao mesmo tempo, nem por um só
povo. Dos povos que invadiram a Península Ibérica, os principais são:
A) Vândalos e Alanos– Detiveram-se alguns anos na Gália e na Ibéria, onde
fundaram um reino – Vandalucia – que deu nome à região onde se situava, a
atual Andaluzia. Retiraram-se, depois, para o norte da África.
B) Suevos – Fundaram um reino na região noroeste da Hispania, ocupando
o equivalente ao território da Galícia e ao norte de Portugal.
C) Visigodos – Já estavam sediados no sul da França, como federados
romanos antes da queda do Império. Em 507 os francos os expulsaram para a
Ibéria, onde fundaram um reino cristão, lá permanecendo até serem
conquistados pelos árabes, em 711.
D) Árabes – Tendo conquistado territórios no norte da África no séc. VII,
invadiram a Península Ibérica em 711, tomando-a quase toda. Ocuparam
também a Sicília.
Com exceção dos árabes e dos alanos, os povos que invadiram a Hispania
eram de origem germânica, cristianizados e que rapidamente adotaram a língua
13
Cf. Le Nouveau Petit Robert.
56
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57
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A luta conta o Islã, as Cruzadas, não se dirigiam somente à Terra Santa.
Cavaleiros (predominantemente franceses) eram enviados à Hispania para
livrá-la do domínio muçulmano. Dessa forma, D. Henrique de Borgonha, nobre
francês, recebeu de D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, a mão de sua filha
ilegítima, D. Tareja, e o Condado Portucalense.
Paul Teyssier diz que a invasão muçulmana e a Reconquista determinaram,
em parte, a formação das três línguas da Península – o galego-português, o
castelhano e o catalão, todas elas línguas do norte levadas ao sul pela
Reconquista.
Com a tomada de Foro, em 1249, estava definido o território de Portugal. A
língua de cultura que ali floresceu foi o galego-português e, depois, o provençal,
que invadiu (como língua de cultura) toda a Península. Sobre a influência do
provençal, diz Silveira Bueno:
Em todas estas expedições guerreiro-religiosas predominavam os francos e
boa parte deles se deixou ficar em Portugal cujos portos eram os mais
importantes no momento. Mais tarde vamos ter príncipes portugueses que
serão educados em cortes francesas como D. Fernando III e outros como D.
Dinis que cresce em meios literários onde predomina a arte e a língua
provençal. Nada portanto de admirar que o provençal tenha tido tanta
influência na formação linguística e sobretudo artística de Portugal até as
vésperas da época clássica do século XVI quando Camões fazia eco a Gil
Vicente, compondo ao gosto antigo, em medida velha, como sempre fizeram
os grandes trovadores do século XII para depois. (1967, p. 44)
________________________________
________________________________
Em relação à língua portuguesa, formas vernáculas são encontradas em
documentos escritos em latim bárbaro já no século IX (do que se pode
depreender que o galego-português já era falado nessa época), porém é
somente no século XII que aparecem textos escritos totalmente em galego-
português.
A luta de Portugal contra os castelhanos, que queriam reincorporá-lo ao seu
território, e contra os mouros acabou criando nos lusitanos um sentimento
patriota, que os fazia firmarem sua identidade nacional distanciando-se da língua
dos inimigos, e apegando-se às características arcaizantes do dialeto de sua
pátria.
Ismael de Lima Coutinho diz que a primeira forma literária cultivada foi a
poesia, inspirada pelos cantores provençais. No século XV várias obras latinas,
francesas e espanholas foram traduzidas para a língua vulgar de Portugal, que a
essa altura, já estava bastante distanciada do galego.
Com o Renascimento, no século XVI, chega a era de ouro da literatura (e da
língua) portuguesa. A língua é enriquecida com vários empréstimos feitos ao
latim, surge a gramática, organizando e disciplinando a língua e surgem grandes
nomes da literatura lusitana de todos os tempos, como João de Barros, Sá de
Miranda, Gil Vicente e o maior gênio da literatura portuguesa – Luís de Camões.
________________________________
Assim aconteceu com a língua portuguesa. Já distanciada das línguas do reino vizinho,
o português serviu de bandeira identitária para a afirmação do reino nascente, congregando
todo o povo. O uso de uma língua diferente foi, certamente, um instrumento político na
afirmação do Reino de Portugal como ‘nação’ (embora, à época, tal termo ainda não existisse)
independente e não submissa ao Reino de Leão e Castela.
As considerações que tecemos acima são reflexões básicas para o estudo de
Dialectologia, disciplina que faz parte do currículo de Letras.
Também é importante ressaltar a importância dos grandes escritores para o
estabelecimento/estruturação de uma língua. Lembrar os elementos da gramática
estabelecidos por Varrão – natura, analogia, consuetudo e auctoritas14 –, torna mais fácil,
para o graduando, a compreensão da importância de Luis de Camões para o estabelecimento
da língua portuguesa padrão.
Não é sem razão que Coutinho (2005, p. 57) divide a época histórica da língua
portuguesa em duas fases: a arcaica (século XII ao XVI) e a moderna (século XVI em diante).
A fase moderna é justamente a que tem início a partir de Camões e de outros grandes
escritores.
________________________________
Romanço
Romanço (ou romance), grosso modo, é o termo que designa a língua
intermediária entre o latim e as línguas românicas. Quando se refere à ‘língua
vulgar’ de determinada região, vem acompanhado do adjetivo referente a esta
(galo-romance, ítalo-romance, ibero-romance etc.).
Durante séculos o latim foi a única língua escrita na Europa Ocidental. Como
a maioria da população era analfabeta, e o saber estava praticamente encerrado
nos mosteiros, a dialetação do latim foi se intensificando, sem que os falantes se
apercebessem de tal fato.
Antes de as línguas nacionais se firmarem, houve a lenta (mas constante)
passagem do latim para as ‘línguas vulgares’ (os romanços). O pequeno
renascimento trazido por Carlos Magno (séc. IX) fez com que as confusões entre
latim e ‘vulgar’ diminuíssem, uma vez que, com o estudo mais aprofundado do
latim, as diferenças entre este e a língua falada ficaram mais evidentes.
14
Em De Sermone Latino, o gramático Varrão estabelece os fundamentos da latinidade “como sendo natura, analogia,
consuetudo e auctoritas, isto é, a natureza da linguagem, as regularidades da gramática (como evitar exceções), o uso firmado
e a autoridade de personalidades importantes, principalmente os grandes escritores” (CÂMARA JR., c1975, p. 28). As
gramáticas normativas atuais, ao menos a maioria delas, ainda são estruturadas segundo esses fundamentos.
61
________________________________
O Português
Julgamos conveniente transcrever as considerações de Edwin Williams sobre
o fato de ser o galego-português uma língua diferente da do resto da Península:
À pergunta frequentemente formulada – ‘por que se desenvolveu uma língua
autônoma na extremidade ocidental da Península Ibérica?’ – a resposta
parece ser:
a) porque houve insulamento geográfico por altos planaltos e terras ermas;
b) porque houve menor influência germânica no período crítico da formação;
c) porque adveio a independência política em meados do século XII sob a
chefia extraordinária de um sábio e intrépido estadista;
d) porque houve o triunfo final, a despeito da oposição política e literária, do
espírito dos críticos daquele século XVI, que acreditavam que sua língua era
digna de preservação como idioma autônomo, e
e) porque houve uma segura e crescente influência do francês.
Nota: A influência céltica tem sido alvitrada como causa do desenvolvimento
do português como língua autônoma. (1975, p. 31)
62
15
O termo romanço"aplica-se, de preferência "para designar a fase final do latim vulgar imperial, depois do século III d.C.,
quando já contrasta com o latim clássico em virtude de profundas inovações[...] e se diferencia de região para região na
România (v.), como fase preliminar das línguas românicas; daí, fala-se em romanço ibérico e, mas particularmente, romanço
português, que se situa entre os séc. V e o séc. IX". (CÂMARA JR., 2007, p. 262)
63
________________________________
A Grafia/Ortografia da Língua Portuguesa
Durante grande parte da Idade Média o latim foi a única língua escrita na
Europa Ocidental. O fato de ser a língua oficial da Igreja certamente contribuiu
para fazer do latim a língua de cultura de todo o Ocidente. A língua usada pelo
povo, porém, já se distanciara havia muito tempo, não só da língua escrita, mas
também daquelas faladas em outras regiões da antiga România.
Com a afirmação dos reinos nascidos durante a Reconquista, as atenções se
voltam para a língua vulgar (como era chamada a língua falada pelo povo,
incluindo-se, nesse, a elite), já diferenciada do latim. Essas línguas começaram a
16
Embora seja de origem espanhola, o espanhol não faz mais uso da cedilha. O português e o francês, no entanto continuam
fazendo uso dela.
64
Período fonético
O período fonético coincide com a fase arcaica, tendo início com os
primeiros documentos escritos em português – século XII –, terminando no
século XVI, com o surgimento dos primeiros tratados de ortografia.
Durante esse período, a grafia procurava reproduzir a língua falada.
Havia, no entanto, alguns obstáculos. As letras do alfabeto representam os
sons elementares da fala. Sabemos que o alfabeto adotado por todo o
Ocidente Europeu para grafar as línguas nascentes foi o latino. Esse
alfabeto se prestava bem para notar o latim clássico, pois representava, ao
que parece, todos os seus fonemas, mas as línguas românicas possuíam
fonemas que não existiam no LC, como as consoantes palatais e as
constritivas sonoras.
Como, então, notar tais sons, fazendo-se uso de um alfabeto que não
possuía símbolos para representá-los? Esse pequeno empecilho não parece
ter causado grandes constrangimentos, pois os textos demonstram que
várias soluções foram encontradas e amplamente usadas. É prova disso a
variedade de grafias de uma mesma palavra, muitas vezes em um mesmo
texto.
Período pseudo-etimológico
No século XVI, a volta aos ideais clássicos, trazidos pelo
Renascimento, deu à nossa ortografia uma nova feição. O critério
preponderantemente fonético, utilizado durante todo o período arcaico, foi
substituído pelo etimológico.
Letras foram introduzidas nas palavras, não por seu valor fonético,
mas pelo etimológico. Surgiram, então, grafias como somno, damno,
prompto etc.
Nessa época aparecem os primeiros tratados de ortografia: Regras de
Escrever a Ortografia da Língua Portuguesa (1574), de Pêro Magalhães de
65
A reforma portuguesa foi feita sem consulta aos linguistas brasileiros, o que
causou uma disparidade entre as grafias, embaraçando, assim, o intercâmbio
literário entre os dois países. Visando à correção dessa falha, a Academia das
Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras (ABL) firmaram um Acordo
gráfico, tornado obrigatório, pelo Governo Brasileiro, em todo o território
nacional.
Em 1943, os dois países tentam um novo entendimento, de onde resultou o
Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, redigido pela Academia
Brasileira de Letras.
Este Vocabulário serviu de referência até aos nossos dias, e impunha como
regras o seguinte:
Emprego do H:
O H não tem valor fonético na língua portuguesa, como já não o tinha
no Latim. Só se emprega como inicial quando a etimologia o exige:
hoje,
haver,
hélice; etc.
vinho, etc.
Emprego do CH:
O dígrafo CH, inexistente em Latim, é o resultado da evolução fonética dos
grupos consonantais latinos PL, CL e FL:
pluvia > chuva;
masclu > macho;
afflare > achar; etc.
Emprego do X:
O X português corresponde:
a) ao X latino:
coxu > coxo;
laxare > deixar;
examen > exame;
exaguare > enxaguar; etc.
Distinção entre S e Z:
__ Escreve-se com S:
a) Quando a letra S portuguesa corresponde a um S latino:
mensa > mesa;
rosa > rosa; etc.
__ Escreve-se com Z:
a) Nos casos em que o Z resulta da evolução dos grupos TI, CI e CE
latinos:
ratione > razão;
vicinu > vizinho;
feroce > feroz; etc.
67
Emprego de SS:
__O S surdo português, em posição medial, geralmente
provém:
a) de um SS latino: ossu > osso; assistire > assistir; etc.
b) de uma assimilação: ipse > esse; persona > pessoa; dixi (dicsi) >
disse; etc.
Emprego do Ç:
O Ç provém da evolução de CE, CI, TE e TI latinos seguidos de vogal: lancea
> lança; minacia > ameaça; matea > maça; pretiu > preço.
Distinção entre G e J:
a) O G português representa geralmente o G latino: gelu > gelo;
agitare > agitar; etc.
b) o J provém:
da consonantização do I semiconsoante latino: iactu > jeito;
iam> já; maiestate > majestade; etc.;
da palatalização do S + I / E, ou do grupo DI / DE+ Vogal:
basiu > beijo; caseu > queijo; hodie > hoje; video > vejo; etc.
Em 1971 um novo acordo foi firmado, aproximando mais a ortografia dos dois
países.
As divergências, porém, continuaram, impedindo a unificação intercontinental
da língua portuguesa e afetando seu prestígio no cenário mundial
Com vistas a uma unificação definitiva entre as duas grafias (lusitana e
brasileira), um novo acordo foi elaborado em 1990, que é o mesmo que,
atualmente, tem gerado algumas confusões.
Em 2008 adota-se uma versão adaptada do Acordo de 1990.
________________________________
A história interna de uma língua diz respeito às alterações internas por que ela passou
ao longo do tempo. Por alterações internas entende-se toda e qualquer mudança que se dê no
âmbito intralinguístico. Desse modo, trata a Gramática Histórica das alterações fonéticas,
morfológicas, sintáticas e semânticas sofridas por uma língua no decorrer de sua história.
Passaremos em revista, neste capítulo, ainda que de forma resumida, os tópicos da
Gramática Histórica de nossa língua, e teceremos comentários acerca da relevância de cada
conteúdo para a formação do graduando de Letras.
________________________________
69
O alfabeto latino
No período clássico (sécs. I a.C. e I d.C.) o alfabeto latino compunha-se de
vinte e três letras:
A B C D E F G H I K L M N O P Q R S T V X Y Z
Não havia, no latim clássico, consoantes palatais – [p] […] [Z] [M] – nem as
constritivas sonoras – [v] [z]. As palatalizações, segundo Teyssier, surgiram no
latim vulgar, na época imperial.
________________________________
Tendo, então, como base, a pronúncia do latim clássico, podemos passar ao estudo da
Fonética Histórica da Língua Portuguesa. Uma boa base de Fonética Articulatória e Fonologia
é instrumento indispensável para o estudo de Fonética Histórica, sem o que o aluno terá
grandes dificuldades na análise dos fenômenos observados.
________________________________
Os Processos Linguísticos – Do Latim ao Português
Como vimos, toda língua sofre transformações ao longo do tempo. Assim
também foi com o português. É função da gramática histórica observar tais
mudanças e como e quando elas ocorrem. Veremos, a seguir, a formação da
língua portuguesa do ponto de vista da Fonética, da Morfologia, da
Morfossintaxe e do Léxico.
Vocalismo
Em LC havia vogais breves e longas, tendo a quantidade destas valor
distintivo (casă – ‘a casa’ [nominativo], casā – ‘pela casa’, ‘por causa da casa’
etc. [ablativo]). O traço de quantidade, porém, começa a trazer confusão a partir
do século I, no LV, que culminou no desaparecimento da quantidade, primeiro
das vogais átonas, e, posteriormente, das tônicas (cf. COUTINHO, 2005, p. 101).
As vogais breves, em LC, tinham o timbre aberto, quer fossem átonas ou
tônicas, e as longas, timbre fechado. Em LV, no entanto, as vogais ĕ e ŏ tinham
o timbre fechado, quando átonas (cf. COUTINHO, 2005, p. 101-102).
O vocalismo do português é, dentre as línguas românicas, o mais fiel ao
latim. As observações do vocalismo do (LV), para as vogais tônicas, valem,
portanto, para o português:
Vogais Tônicas
LC LV
ā a
ă a
ē [e]
71
ě [E]
ī i
i
ĭ
ĭ > ē > e ([e])
ō [o]
ŏ [O]
ū u
ŭ u
ŭ > ō > o ([o])
Vogais pré-tônicas:
Das vogais átonas, as pré-tônicas da sílaba inicial foram as mais estáveis. A
queda dessa vogal, no entanto, pode ocorrer nas seguintes situações:
Iniciais não apoiadas – epigru > prego, episcopu > bispo, Olissipona >
Lisboa
Em sílaba não inicial, adjacentes à tônica – bonitate > bondade,
*verecunnia (por verecundia) > vergonha
I e V consoantes:
Grandgent diz que “o i e o u seguidos de uma vogal e começando sílaba
eram pronunciados, segundo parece, como consoantes desde os tempos
primitivos” (Apud COUTINHO, 2005, p. 107) – iuvene > jovem, ieiunare > jejuar,
uos > vos, uacare > vagar.
OBS: Em latim não havia as letras j e v. Essas letras, conhecidas como letras
ramistas, somente no Renascimento passam a ter seu uso uniformizado para
representar o [Z] e o [v], respectivamente.
________________________________
________________________________
Ditongação
Sabe-se que havia poucos ditongos em latim, sendo alguns bastante raros.
Em português, no entanto, os ditongos são abundantes. Alguns são evolução de
ditongos latinos, mas a maioria só apareceu na fase da formação do romanço.
Ditongos portugueses
Diversas foram as causas da formação do grande número de ditongos em
português:
Queda de fonema medial – vanitate > vaidade; vadi(t) > vai;
73
Hiatos
A língua portuguesa, desde seus primórdios, tende a evitar os hiatos. Tal
tendência também se verificava no LV (pariete > parete; battuo > batto; quattuor
> quattor). Os hiatos podem ser desfeitos:
Pela crase de vogais originariamente iguais – teer (< tenere) > ter;
leer (< legere) > ler; seer (< sedere) > ser; ou que se tornaram
uguais por assimilação – palŭmba > paomba > poomba > pomba;
magĭster > maestre > meestre > mestre;
Pela ditongação proveniente de um -i- epentético antes da átona final
– cea (< cena) > ceia; tea (< tela) > teia.
Pelo desenvolvimento do som palatal de transição -nh- – mĩa > minha; vĩo (<
vinu) > vinho.
________________________________
Queda de fonema medial – *eis por eles, *quainahora por quase na hora,
*Prõnóstãuínu? por Para onde nós estamos indo?17
Vocalização de consoante – papel [pa’pEw], boldo [‘bowdu], *muié por mulher, *véia
por velha, *baubante por barbante, *gaufo por garfo.
Transposição de fonema – *tauba por tábua, *réuga por régua, *largato por lagarto.
Epêntese de uma vogal para desfazer um hiato – coro[w]a por coroa;
Fechamento do timbre da vogal o, passando a u – [kwe]lho por coelho, [kwa]lho por
coalho.
________________________________
Consonantismo
Os grupos consonantais têm comportamento diferente do das consoantes
simples, portanto devemos estudá-los separadamente.
Consoantes Simples
As consoantes iniciais, salvo algumas exceções, mantiveram-se, na
passagem do latim para o português.
Em português arcaico, [k] e [g], antes de e e de i, eram pronunciados como
as africadas [ts] e [dZ], respectivamente. Em português moderno, o [ts] passou a
[s] (assibilação). O [dZ] passou a [Z]:
ceo [’tsEo] > céu [’sEw]; gente [’dZëte] > gente [’Zëte]
OBS: Segundo Teyssier (2001, p. 11), gi e ge a princípio palatalizam-se
em [y]. Em posição intervocálica, o yod derivado de gi sofreu síncope
(frigidu > frio) ou se palatalizou (spongia [’spõZa] > esponja). O ge
palatalizou-se (agente [g] > agente [dZ] > agente [Z].
As consoantes [p], [t], [k] (grafada c ou q), [s] (grafada c ou s) e [f], em
posição intervocálica, de modo geral sonorizaram-se em suas homorgânicas:
lupu > lobo, sapere > saber; vita > vida, rota > roda; acutu > agudo,
aqua > água; acetu > azedo, facere > fazer, casa [’kasa] > casa [’kaza];
aurifice > ourives, profectu > proveito.
OBS: Quando a consoante era geminada, a sonorização não ocorria –
bucca > boca; affectu > afeto, ossu > osso.
O i consoante consonantiza-se na fricativa [dZ] e depois passa a [Z]:
iuliu > julho, iustu > justo, proiectare > projetar, iam > já
17
Os dois últimos exemplos foram retirados de Dicionário Mineiro, disponível em:
http://piadas.terra.com.br/0,1909,p3003,00.html. Acesso em: 09/12/2011.
75
Esse tipo de raciocínio, em princípio muito óbvio para o professor, poderá levar o
graduando a compreender os mecanismos da língua (e a interpenetração e simultaneidade de
suas ‘partes’ em um único ‘evento’ linguístico18) e a olhar para ela como um objeto de estudo
científico. Desenvolvido esse tipo de raciocínio e olhar científico em relação à língua, o
graduando será capaz de tirar suas próprias conclusões e fazer novas descobertas, colaborando
ativamente para o desenvolvimento da ciência da linguagem.
A título de curiosidade (científica, obviamente), ilustraremos com exemplos de outras
línguas a tendência à confusão de um fonema do artigo com o fonema inicial do substantivo, a
tal ponto que uma nova forma surge dessa aglutinação.
O dicionário francês Le Petit Robert apresenta a forma familiar zoreille, palavra
crioula, derivada de oreille (orelha), que significa ‘metrô’. A partir dessa informação,
podemos, apoiados em nossos conhecimentos linguísticos, supor que o [z] acrescentado à
palavra oreille vem do artigo plural les, cujo -s, em posição intervocálica, sonorizou-se em [z]
– Les oreilles > *le zoreille > la zoreille. O artigo la (fem.) é usado em vez de le (masc.)
porque a palavra original – oreille – é feminina.
O outro exemplo vem do italiano. O dicionário italiano Il Sabatini Coletti apresenta a
forma pecchia (abelha), considerada antiga, derivada de apĭcula. A forma italiana mais usada
é ape (que veio do grau normal do substantivo latino – ape(m), ao contrário de outras línguas
românicas, cujo étimo é apĭcula, diminutivo de ape(m)).
Com base em nossos conhecimentos linguísticos podemos, também aqui, supor o
motivo de a vogal inicial de apĭcula ter sofrido aférese na passagem a pecchia. A palavra
pecchia é feminina. Há, em italiano, dois artigos definidos femininos – la, usado antes de
palavras começadas por consoante, e l’, usado antes de palavras começadas por vogal: la
fontana (a fonte), l’anima (a alma).
No caso de pecchia, a palavra original deve ter sido apecchia, mantendo o [a] inicial
do étimo latino. Ao ligar-se ao artigo, contudo, formando um vocábulo fonológico –
l’apecchia [la’pekkya] – os falantes devem ter passado a entender que o [a] de apecchia fazia
parte do artigo la, daí a palavra ter passado a la pecchia.
Julgamos ser sempre proveitoso ensinar ao aluno os caminhos e meandros do
raciocínio linguístico. Assim como o corpo de um ginasta deve ser educado a ‘preparar’
determinados movimentos e posições, necessários para os exercícios físicos, também o
graduando de Letras deve ter seu raciocínio treinado a saber o que buscar e a perceber os
detalhes aparentemente mais simples, quando analisar ou estudar uma língua.
18
Fenômenos fonéticos, morfológicos, sintáticos (fonética sintática) e lexicais (a derivação de ‘zoiudo’, a partir de ‘zoio’).
77
________________________________
Grupos consonantais
As consoantes geminadas, com exceção de ss e rr simplificam-se –
affectu > afeto; bucca > boca, mas carru > carro, ossu > osso.
cl, fl e pl – passam a [p], grafado ch – clave > chave; flamma > chama;
pluvia > chuva.
– passam a cr, fr, pr – clavu > cravo; flaccu > fraco; placere > prazer.
bl, cl, fl, gl e pl mediais – precedidos por consoante – passaram a
[p], grafado ch –inflare > inchar; implere > encher;
– precedidos por vogal – passaram a br, cr, fr, gr e pr – obligare >
obrigar; concludere > concruir (arc.); affligere > afrigir (arc.); reg(u)la >
regra; implicare > empregar.
ct, lt, pt, bs, lc, lp, gn e gm mediais, precedidos de vogal – de modo
geral, a primeira consoante sofreu vocalização – biscoctu > biscoito;
doctu > douto; altariu > outeiro; *ascultare > escuitar (arc. ); praeceptu
> preceito; baptizare > bautizar (arc.); absentia > ausência; calce >
couce; *talparia > toupeira; regnu > reino Agnes > Einês > Inês,
phlegma > fleuma.
OBS: pt > t – scriptu > escrito, nepta > neta; bs > s – *abscondere >
asconder (arc.); substantia > sustância; gn > [M] – pugnu > punho;
cognatu > cunhado.
Consoante + semivogal
________________________________
Metaplasmos
19
Note-se que tanto perspectiva quanto perspicaz são palavras pouco populares, indicando que o fenômeno fonético que
ocorre com elas se dá entre falantes com alto nível de escolaridade.
80
Sibilação (ou assibilação) – passagem da velar [k], a um som sibilante ([s], [z]).
Também pode sofrer sibilação um grupo formado por dental + i, em posição
intervocálica.
Ex.: *capitia > cabeça, mollitia > moleza, cĭtu [‘kitu]> cedo, audio > ouço.
Palatalização (ou palatização) – a) passagem de [dy] ou [ty] a [Z] – ex.: hodie >
hoje; b) Passagem de [ny] a [M] ou de [ly] a […] – ex.: vinea [‘vinya] > vinha,
palea [‘palya] > palha; c) passagem dos grupos cl, pl, fl a [p] (som de ch) –
ex.: clave > chave, pluvia > chuva, flamma > chama; d) passagem do i
consoante a [Z] – ex.: iuri > juri.
Dissimilação – diferenciação de dois sons idênticos ou semelhantes, quer
contíguos, quer à distância, presentes na mesma palavra.
Ex.: memorare > nembrar (arc.) > lembrar.
Haplologia – perda de uma sílaba inteira, desde que, na mesma palavra ou na
palavra seguinte exista outra igual ou parecida.
Ex.: bondade + oso > bondadoso > bondoso.
Sonorização – passagem de uma consoante surda a sua homorgânica sonora.
Ex.: acutu > agudo.
Abrandamento – passagem de [b] a [v].
Ex.: populu > poboo (arc.) > povo.
Vocalização – transformação de uma consoante em vogal.
Ex.: pectu > peito, lectu > leito.
Ditongação – transformação de vogal simples em ditongo.
Ex.: plenu > cheo > cheio.
Hiperbibasmo – deslocamento do acento tônico.
Ex.: muliĕre (proparoxítono) > mulher.
Metátese – transposição de um som dentro da mesma sílaba.
Ex.: semper (lat.) > sempre.
Hipértese – transposição de um som de uma sílaba para outra.
Ex.: parabola > palavra.
Rotacismo – passagem de [l] a [r].
Ex.: placere > prazer.
Um Verdadeiro Mineiro
Sapassado, era sessetembro,
taveu na cuzinha tomando uma pincumel
e cuzinhando um kidicarne cumastumate
82
Dicionário Mineiro
Lidileite - litro de leite
Mastumate - massa de tomate
Dendapia - dentro da pia
Kidicarne - kilo de carne
Tradaporta - atrás da porta
Badacama - debaixo da cama
Pincumel - pinga com mel
Iscodidente - escova de dente
Nossinhora - Nossa Senhora
Pondiôns - ponto de ônibus
Denduforno - dentro do forno
Secopassado21 - essa nem eu sei!!
Doidimais - doido demais
Tidiguerra - tiro de guerra
Ansdionti - antes de ontem
Sessetembro - sete de setembro
20
Disponível em: http://www.orapois.com.br/humor/piadas/piadas-de-mineiros/um-verdadeiro-
mineiro_id4495_p0_mc0.html. Acesso em: 09/12/2011.
21
Acho que ‘significa’ século passado.
83
E o melhor de todos:
Prõnóstãuínu?
- para onde nós estamos indo?
Para acabar...
Cêssa se esse onspas na savas?
- você sabe se este ônibus passa na Savassi?22
Além de fornecer material para o estudo dos metaplasmos, o texto acima também traz,
oportunamente, a questão da variedade diatópica da língua – fator importante na dialetação do
latim e na formação das línguas românicas – introduzindo, assim, um tema que será abordado
tanto nos estudos de Dialectologia quanto nos de Filologia Românica.
Depois de trabalhar com textos desse tipo, o aluno não estranhará tanto um texto em
português arcaico. Após decifrar o divertido em ‘mineirês’ ele terá maior boa vontade para
decifrar português arcaico, bem como alguma prática em compreender um texto que não
segue a ortografia a que está acostumado.
Uma pequena fábula, como a que apresentamos abaixo, por ser uma história curta e de
vocabulário simples e bastante concreto, poderá servir de começo para o trabalho com os
metaplasmos na fase da língua em que ela se encontra:
22
Disponível em: http://piadas.terra.com.br/0,1909,p3003,00.html. Acesso em: 09/12/2011.
84
Século XIV
O rato, a rã e o minhoto
[C]comta-sse que hũu rrato, amdando sseu caminho para emderençar
sseus neguoçios, ueo arriba de hũa augua, a qual ell nom podia passar. E
estamdo assy cuydoso arriba da augua, veo a ell hũa rrãa e disse-lhe:
– Sse te prouuer, eu te ajudarey a passar esta augua.
E o rrato rrespomdeo que lhe prazia e que lho agradeçia muyto. E a rrãa
fazia esto pera emganar o rrato, e disse-lhe:
– Amiguo, legemos hũa linha no pee teu e meu e ssube (1) em cyma de
mym.
E o rrato feze-o assy. E, depois que forom no meo da augua, a rrãa disse
ao rrato:
– Dom velhaco, aqui morreredes maa morte.
E a rrãa tiraua (2) pera fundo, pera afoguá-lo de so (3) a augua, e ho
rrato tiraua pera çima. E, estando em esta batalha , vios hũu minhoto (4) que
andaua voamdo pello aar e tomou-os com as hunhas e comeos ambos.
Em aquesta hestoria este doutor rreprehemde os homëes, os quaes com
boas palauras e doçes de querer fazer proll (5) e homra a sseu proximo, (e)
emganosamente lhes fazem maas obras, porque ali dizem com as limguoas e
all (6) teem nos sseus corações.
E esto sse demostra per a rrãa, a quall dizia que queria passar o rrato e
tijnha no sseu coraçom preposito de ho afoguar e matar, como dicto he em
cima.
________________________________
Redução das declinações
Ao contrário das vogais temáticas verbais, as nominais do português não têm mais
função, uma vez que os nomes não se flexionam mais em casos;
O conhecimento do sistema de declinações ajuda a compreender certas peculiaridades
da língua, como:
A associação da terminação -a com o gênero feminino e da terminação -o para o
masculino é tendência existente desde o latim clássico (cf., por exemplo, os adjetivos
de 1ª classe). Essa associação se deu por dois motivos: a) a primeira declinação, cuja
vogal temática era -a, era composta, basicamente, de nomes femininos (os nomes
masculinos pertencentes a essa declinação eram quase todos de origem grega, como
poeta, planeta, nauta). A segunda declinação, por sua vez era composta basicamente
87
de nomes masculinos e neutros. Os nomes femininos (em -us, como fagus = faia)
designavam cidades, países, ilhas, árvores e palavras de origem grega, como methodus
e papyrus (cf. COELHO & RIBEIRO, 2007, p. 24). Após o desaparecimento do
gênero neutro, no LV (como veremos a seguir), a segunda declinação, cuja vogal
temática era -o (com alomorfe -u), passou a abrigar, praticamente, somente nomes
masculinos24; b) Os adjetivos latinos femininos de primeira classe declinavam-se pelo
paradigma da primeira declinação e os masculinos, pelo da segunda. Esse fato
reforçou a associação do feminino a -a final e do masculino a -o final. Ela está tão
presente em nosso inconsciente, que, mesmo hoje em dia, ouvimos, vez ou outra, as
palavras guaraná e telefonema, por exemplo, do gênero masculino, precedidas de
artigo feminino – ‘a guaraná’ e ‘a telefonema’.
A associação do gênero feminino (e da terminação -a) com o sexo feminino também é
ancestral. As palavras nurus e socrus, como vimos, passaram à primeira declinação
porque tanto a nora quanto a sogra são mulheres. A palavra ‘senhor’, tão frequente
nas Cantigas de Amor, era comum de dois gêneros, mas acabou tendo um -a acrescido
ao seu final para designar especificamente as mulheres. Ainda hoje encontramos
adaptações desse tipo em palavras como ‘chefe’ e ‘presidente’, que se aplicam aos
dois gêneros, mas passaram a ter formas para o feminino – ‘chefa’ e ‘presidenta’ –,
uma vez que, atualmente, há mulheres que também ocupam tais cargos.
A tendência simplificadora do LV afetou, igualmente, a categoria dos casos. Em LC
havia desinências casuais, que indicavam o caso (função sintática) das palavras. Havia seis
casos no LC, que, no entanto, foram reduzidos a praticamente um no LV – o acusativo –,
considerado o caso lexicogênico, pois foi a partir dele que evoluiu a maioria das palavras da
língua portuguesa (e da maioria das línguas românicas). Vejamos como se deu essa redução:
________________________________
Redução dos casos
24
Seus poucos nomes femininos ou migraram para a primeira declinação (fagus > faia), ou passaram para o gênero masculino
(a maioria) – ulmus > olmo, Ægyptus > Egito, papyrus > papiro –, ou , ainda, permaneceram femininos com a terminação
-o(s), porém, ao menos em português, não são acompanhadas de artigo. Os adjetivos que acompanham esses nomes
flexionam-se no feminino, tendo ‘implícita’ a palavra cidade ou ilha – ‘A famosa [cidade] Corinto’, ‘A bela [ilha] Delos’.
88
Sg. Pl. Sg. Pl. Sg. Pl. Sg. Pl. Sg. Pl.
N a ae us um i a Ø s es a us us ua es es
V a ae e um i a Ø s es a us us ua es es
Ac am as um os a em es a um us ua em es
nominal), já o caso genitivo (G), era o caso do nome dependente de outro nome
(cf. ILARI, 2007, p. 89).
________________________________
25
Dativo – exceto para ĭlle, ĭlla, nōs e uōs.
90
“Mi, forma arcaica átona, deu a atual me, o que explica a função de objeto
indireto que pode desempenhar esta variação pronominal” (COUTINHO,
2005, p. 253). O mesmo aconteceu na 2ª pessoa do singular:
Me (acus.) > me Te (acus.) > te
As formas da coluna 3 eram compostas a partir do pronome unido à
preposição cum. Com o tempo, e com a sonorização do c [k] intervocálico,
perdeu-se a noção de que a preposição já estava presente na palavra,
aparecendo as formas pleonásticas atuais (coluna 4).
Por analogia a me e te, que exercem função tanto de acusativo quanto de
dativo, também nos e vos, originalmente acusativo, passaram a desempenhar
função de objeto indireto.
Latim
Português
(acus.)
me me
te te
se se
ĭllu > elo > lo (arc.) > o
ĭlla > ela > la (arc.) > a
nos nos
vos vos
se se
ĭllos > elos > los (arc.) > os
ĭllas > elas > las (arc.) > as
ĭlli > *eli > li (arc.) > lhe (sem variação de gênero)
O plural se fez por analogia, acrescentando-
se -s à forma singular lhe → lhes
________________________________
O LV, como vimos, tendia a ser analítico, o que resultou no largo uso de
preposições, para reforçar a ideia que se queria transmitir (redundância).
Apenas dois casos latinos podiam ser regidos por preposição: o acusativo e o
ablativo.
Já em Plauto aparecem estruturas como ad + acusativo, substituindo o
dativo, bem como estruturas do tipo de + ablativo, substituindo o genitivo (cf.
GRANDGENT, 1952, p. 81-83):
ad me magna nuntiavit (por mihi magna nuntiavit)
Curator de sacra via (por curator scrae viae)
A preferência por esse tipo de construção resultou no desaparecimento
gradativo dos casos dativo e genitivo.
As mudanças sofridas pelo LC, em seu processo de ‘vulgarização’, não se
deram, no entanto, somente no âmbito da Morfologia. Diversas mudanças
fonéticas também ocorreram. Duas dessas mudanças acarretaram uma
mudança de ordem morfológica.
O -m final era a marca do caso acusativo singular. A queda desse -m (que
não atingiu apenas os nomes), juntamente com a passagem do ŭ átono – como
o da desinência do acusativo masculino da segunda declinação – a [o] (salvo em
raros dialetos – cf. MAURER, 1959, p. 90)26 fizeram com que todas as
desinências de acusativo singular se igualassem às desinências do ablativo
singular.
Segundo Grandgent (1952, p. 85), o desaparecimento do ablativo plural,
substituído pelo plural do acusativo e a total coincidência entre acusativo e
ablativo, no singular, estavam generalizados provavelmente antes da queda do
Império. O autor também afirma que essa fusão foi favorecida pelo fato de
certas preposições poderem ser usadas com os dois casos. Diz, ainda:
Findo o período do latim vulgar, restavam, provavelmente, no uso
verdadeiramente popular (salvo nos pronomes e em certo número de frases
feitas), somente três casos, na Dácia, e, no resto do Império, apenas dois:
um nominativo e um acusativo-ablativo. (GRANDGENT, 1952, p. 88)
________
Nota: Al finalizar el período del latín vulgar quedaban probablemente en el uso verdaderamente popular (salvo
en los pronombres y en cierto número de frases hechas) en Dacia sólo tres casos, y en el resto del Imperio
unicamente dos: un nominativo y un acusativo-ablativo.
________________________________
26
Maurer (1959, p. 85-98) propõe outro processo para a redução dos casos. Julgamos, no entanto, desnecessário apresentar
também a sua proposta no texto usado como material didático para o nível da graduação.
92
Esses dados dão ensejo à demonstração de como se chega, por meio do método
comparativo, a uma conclusão científica. Para exemplificarmos tal possibilidade, citaremos
uma situação real, ocorrida em uma turma de HLP:
Ao ouvir a explicação da professora, de que após a coincidência das desinências do
acusativo com as do ablativo, o caso ablativo acabou desaparecendo, uma aluna, intrigada,
perguntou como é que se poderia afirmar que foi o caso ablativo que desapareceu, e não o
acusativo, se as desinências de ambos eram iguais.
Após refletir um pouco, a professora – que, por ser novata, ainda não havia pensado a
esse respeito – disse que se pode afirmar que o caso que permaneceu foi acusativo,
observando-se a desinência de plural usada pelas línguas da România Ocidental: -s.
As desinências de acusativo plural eram -as, -os, -es. As do ablativo plural eram -is,
-ibus. Uma simples comparação dos plurais de palavras do português, do espanhol e do
francês27 é suficiente para deixar claro que o caso que permaneceu foi o acusativo:
Quadro 10 – Comparação entre acusativo plural e ablativo plural. Fonte: Elaborado pela
autora.
A observação do quadro acima deixa claro o fato de que as vogais das desinências de
plural do acusativo eram as mesmas do singular. Como já observamos anteriormente, a
terminação -a já estava ‘cristalizada’ como indicadora do gênero feminino, bem como o -o
final indicava o gênero masculino. Talvez esse tenha sido um dos motivos de o acusativo ter
suplantado o ablativo. Some-se a isso a economia da desinência de plural do acusativo ser
sempre -s.
27
O italiano não serve como exemplo, pois, uma vez que, devido a uma tendência fonética, todos os [s] finais sofreram
apócope, as desinências de plural dessa língua são oriundas do caso nominativo.
28
Em francês, foi tendência fonética a queda de toda vogal final, com exceção de -a, que passou a -e.
93
A categoria de casos só fez sentido enquanto houve oposição entre pelo menos dois
casos. Como restou apenas um, essa categoria deixou de existir em quase todas as línguas
românicas.29
________________________________
Redução dos gêneros
É importante para o graduando de Letras saber que a distribuição das palavras entre os
gêneros, no próprio latim já era aleatória. Ao gênero neutro deveriam pertencer, em princípio,
29
O romeno ainda conserva o dativo, tanto em sua função primitiva quanto como genitivo, na primeira declinação e em
adjetivos femininos (cf. GRANGENT, 1952, p. 83)
94
as palavras que nomeassem seres inanimados, mas não era isso o que acontecia. Esse fato
aliado à coincidência das desinências de masculino e de neutro, no acusativo, como dito
acima, acabaram fazendo com que o gênero neutro desaparecesse ainda na fase do latim
vulgar.
A distribuição de palavras entre gêneros gramaticais é uma herança muito antiga, cujo
sentido se perdeu no decorrer dos séculos30. Talvez ninguém saiba explicar, com exatidão, por
que as palavras são dividas, gramaticalmente, entre masculinas e femininas (e também
neutras, em determinadas línguas). Parece muito provável que tenha havido uma forte
analogia do ‘ser’ nomeado com um dos sexos ou, no caso das palavras neutras, com nenhum
deles. Se realmente existiu, essa analogia sempre foi muito relativa, variando de cultura para
cultura.
Uma evidência da relatividade de uma possível analogia com os sexos é o fato de
palavras de línguas diferentes, usadas para nomear o mesmo ‘ser’, terem gêneros diferentes,
como mostram os exemplos a seguir:
30
Sobre o conceito de gênero, indicamos AZEREDO, 2008, p. 158-162.
31
Em alemão os substantivos são escritos sempre com inicial maiúscula.
95
A comparação do português com outras línguas, embora não conste dos programas de
História da Língua, é sempre oportuna, pois, além de aguçar a curiosidade científica do aluno,
já o prepara para a disciplina Filologia Românica, na qual ele confrontará formas de diferentes
línguas românicas, e conhecerá um pouco da história das línguas ‘irmãs’ do português.
O graduando também poderá aplicar os conhecimentos aprendidos em HLP à língua
estrangeira que ele estudar, o que certamente gerará bons frutos. Em italiano, por exemplo, há
alguns plurais irregulares, que são resquícios do plural do gênero neutro – il braccio (<
bracchium – braço), mas le braccia (< bracchia); l’uovo (< ovum – ovo), mas le uova (<
ova); il labbro (< labrum – por labium, [br] típico da pronúncia toscana [cf. Il Sabattini
coletti] – lábio), mas le labbra (< labra). Em italiano, essas palavras, no singular, pertencem
ao gênero masculino. Quando flexionadas no plural, no entanto, seguem a desinência original
do neutro e passam ao gênero feminino (muito provavelmente devido à analogia com o -a
final).
________________________________
Reorganização das classes dos adjetivos
32
O par bom / boa (< bono / bona, em LV) é, em português, uma caso específico da 1ª classe. Por questões fonéticas,
desinência de gênero sofreu crase e nasalização: bonus > bono > bõo > bom.
97
desta vez saberiam responder à pergunta ‘De que classe(s) vieram os adjetivos
portugueses bom e capaz?’.
Após uns poucos segundos, alguns alunos mais perceptivos responderam
corretamente: “O adjetivo bom veio da primeira classe, porque é biforme, em
português. Já capaz veio da segunda, pois é uniforme”.
É esse tipo de raciocínio que julgamos imprescindível desenvolver nos alunos.
Aparentemente, eles simplesmente memorizam informações, mas não parecem conseguir
conectá-las de modo a chegar, sozinhos, a uma conclusão, por mais lógica que seja. Tal
capacidade de raciocínio linguístico é fundamental tanto para o futuro professor quanto para o
futuro pesquisador.
Se os alunos não demonstrarem ter essa habilidade, caberá ao professor ensinar e
mostrar (e demonstrar) a eles o caminho a ser seguido para serem capazes de desvendar os
mecanismos da língua.
Após trabalhar as classes de adjetivos em latim, o professor pode abordar os adjetivos
do português. Pode-se dizer, por exemplo, que em português também há duas classes de
adjetivos:
1ª classe – flexionam-se em gênero, com a terminação -o para o masculino e -a para o
feminino, sendo oriundos da 1ª classe latina:
muro alto / mesa alta
homem fraco / mulher fraca
2ª classe – não se flexionam em gênero e, de modo geral, têm tema em -e (quando
oriundos da 3ª declinação latina), que pode não aparecer no singular, em virtude de
uma lei fonética, mas que é recuperado no plural. Há, ainda, os que não são de origem
latina, sem tema em -e:
homem / mulher contente – homens / mulheres contentes
leão / leoa feroz – leões / leoas ferozes
menino / menina jururu – meninos / meninas jururus
O Appendix Probi atesta uma tendência do LV em passar adjetivos da 2ª classe para a
1ª, como mostram as correções nº 42 pauper mulier non paupera mulier e nº 56 tristis non
tristus. O português não seguiu essa tendência. Em outras línguas românicas, no entanto,
encontramos exemplo(s) dessa migração, como mostra o quadro abaixo:
98
Masculino Feminino
Espanhol contento contenta
Francês content contente33
Italiano contento contenta
povero (pobre) povera
alegro alegra
O professor pode perguntar aos alunos se eles conhecem, na língua que estudam (caso
seja românica) algum exemplo de adjetivo biforme que seja uniforme em português. É sempre
produtivo estimular o aluno a usar seus conhecimentos. Participando ativamente da aula ele
estará treinando conectar informações recebidas em disciplinas diferentes, o que, como vimos
dizendo, é o que se espera de um bom professor/pesquisador.
________________________________
Redução das conjugações verbais
33
Relembramos que, em francês, todas as vogais finais sofreram apócope, exceto o -a, que passou a -e.
99
infinitivo era quase igual à da segunda, diferindo apenas quanto à sílaba tônica.
Por esses motivos, os verbos dessa conjugação acabaram sendo incorporados
às outras.
Ex.: producĕre > produzir facĕre > fazer
Temos, então, em português, apenas três conjugações, como mostra o
quadro abaixo:
________________________________
________________________________
Analogia
As alterações que ocorrem nas palavras são, em sua maioria, por razões
fonéticas. Às vezes, essa razão fonética é tão constante que quase funciona
como ‘lei’, seguida por praticamente todas as palavras que apresentam uma
mesma determinada condição (como a sonorização das consoantes surdas
intervocálicas).
100
Mas há mudanças que ocorrem não por razões fonéticas e sim analógicas.
Sobre a analogia, diz Coutinho:
A analogia é o princípio pelo qual a linguagem tende a uniformizar-se,
reduzindo as formas irregulares e menos frequentes a outras regulares e
frequentes. [...]
Nas transformações de uma língua, exerce a analogia uma papel
verdadeiramente importante. [...] desviando as palavras do império das leis
fonéticas, ocasiona mudanças em sua estrutura, extremando formas que pela
origem deviam achar-se juntas. [...]
Os casos de analogia podem ser considerados verdadeiras criações. A forma
analógica não motiva logo o desaparecimento da originária. Vive uma a par
da outra durante algum tempo, e nem sempre é a analógica que consegue
triunfar. (2005, p. 150-151)
O fenômeno da analogia também pode ocorrer na sintaxe, embora seja menos comum
(ou menos estudado, talvez). Por exemplo, como os verbos transitivos diretos são em maior
número que os indiretos, alguns transitivos indiretossão empregados, por analogia, como
diretos. Ex.: Assisti o filme. (Provavelmente por analogia a ver, que é transitivo direto)
101
verdade, formam uma gigantesca lista de palavras, cujo conhecimento, desvinculado dos
aspectos históricos, não terá muita valia.
Os pontos mais interessantes e mais produtivos na abordagem da formação do léxico,
sob a ótica histórica são: a) o aparecimento de formas divergentes e convergentes e; b) as
escolhas lexicais específicas do português, muitas vezes diferentes das de outras línguas
românicas.
Feitas as devidas considerações sobre o tema, passemos aos conteúdos sugeridos:
________________________________
Formas Divergentes
Corrente Popular
Ao serem pronunciadas pelo povo, seguindo as tendências fonéticas da
língua, as palavras acabaram dando origem a formas diferentes. Segundo
Coutinho, essas palavras foram veiculadas oralmente e constituem a camada
mais antiga do nosso léxico (cf. COUTINHO, 2005, p. 199). Eis alguns exemplos:
plumbu deu origem a chumbo e a prumo;
articulu originou artigo e artelho;
corona gerou coroa e coronha.
Corrente Erudita
A chegada do Renascimento – e a consequente tentativa de aproximar a
nossa língua do latim – resultou na introdução de vários vocábulos latinos.
Coutinho chama a atenção para o fato de que essas palavras são introduzidas
na língua por intermédio da vista (não de forma oral, como as de cunho popular).
Esses vocábulos – chamados de formas reconstituídas – passaram a conviver,
com as outras formas, já modificadas pelas tendências fonéticas da língua:
Formas divergentes
Étimo Via Erudita Via Popular
duplu duplo dobro
103
Corrente Estrangeira
Nossa língua, ao longo do tempo, recebeu influência de diversas línguas. A
influência no vocabulário é a mais comum. Em virtude das Cruzadas, no tempo
da Reconquista e da ‘invasão’ dos trovadores provençais, o léxico da língua
portuguesa foi enriquecido com inúmeras palavras de origem francesa, cuja
evolução, a partir do latim, seguiu as tendências fonéticas específicas do
francês. Embora nossa língua tenha tomado por empréstimo um grande número
de palavras de diversas línguas, citaremos exemplos somente do francês.
Temos, assim:
Corrente estrangeira
Latim Português Francês Português
(via popular ou (via francês)
erudita)
domina dona dame dama
caput cabo chef chefe
officina oficina usine usina
caveola gaiola jeole (ant.) jaula
generale geral général general
Formas Convergentes
Contrariamente ao que aconteceu às formas divergentes, as convergentes são o
resultado de palavras de étimos diferentes que, em virtude de alterações fonéticas,
convergiram, por coincidência para uma única forma:
Formas convergentes
Étimos Português
sanu (adj.)
sanctu (adj.) são
sunt (verbo)
vanu (adj.) vão
104
vadunt (verbo)
filu (subst.)
fio
fido (verbo)
rivu (subst.)
rio
rideo (verbo)
quomodo (adv.)
como
comedo (verbo)
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A partir do quadro acima podemos ver que muitas vezes as escolhas lexicais da
Península Ibérica divergiram daquelas das outras regiões do antigo império. Um quadro
comparativo como esse poderá despertar o interesse do graduando para a questão do léxico.
Uma vez que na turma há alunos que estudam línguas diversas, eles poderão colaborar
ativamente para o enriquecimento da aula.
Pronomes pessoais
ĭlle
ěgo tū nōs uōs ___
ĭlla
LC
ele /el eles / eis
Português eu tu (arc.) nós vós (arc.)
ela elas
106
OBS: Eo (por ěgo) aparece em textos latinos do séc. VI. O ě tornou-se fechado por
influência do u.
Em ĭlla > ela, o ĭ, que deveria resultar em [e] (como no masculino), teve seu
timbre aberto por influência do a final. O mesmo fenômeno acontecerá em várias
formas femininas (como porco / porca, torto / torta).
nōs > nós – ō tornou-se aberto por analogia a nosso;
uōs > vós – ō tornou-se aberto por analogia a vosso;.
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________________________________
Os Artigos
Os artigos definidos derivam do acusativo de ĭlle, ĭlla – o plural desses, assim como
o dos pronomes, formou-se por analogia, acrescentando-se a desinência de plural (-s)
à forma singular. Já os indefinidos derivam do acusativo do numeral unus, una.
Os artigos definidos se formaram tal qual os pronomes oblíquos átonos
derivados do acusativo – o, a, os, as.
É comum, em português arcaico (e também no galego atual) o artigo unir-se
à palavra anterior – todolos (todos los), ambolos (ambos los)
Os artigos indefinidos, derivados do numeral unus, uns, tiveram a seguinte
evolução:
Os artigos
Latim Português
________________________________
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Futuro Românico
Futuro do Presente
O futuro latino não passou às línguas românicas, uma vez que o latim vulgar
se valeu de uma perífrase verbal, formada a partir do verbo principal no infinitivo,
com o verbo habēre no presente do indicativo como auxiliar. Com o tempo, o
verbo auxiliar, posposto ao verbo, ligou-se ao verbo principal, formando uma
108
única palavra. As profundas contrações sofridas pelo verbo habēre (ver quadro
abaixo) se justificam por seu emprego tanto proclítico quanto enclítico.
Futuro do pretérito
O imperfeito do subjuntivo latino, além de ser empregado como tal, também o
era com o sentido de futuro do pretérito. Em português, esse tempo é formado a
partir do infinitivo combinado com o verbo haver no pretérito imperfeito do
indicativo. Assim, temos – amar + ia (< havia) → amaria; amar + ias (< havias) →
amarias etc.
Também nesse tempo foi a forma contrata de haver a utilizada para a sua
composição.
havia amaria
havias amarias
havia amaria
havíamos amaríamos
havíeis amaríeis
haviam amariam
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4- CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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2008.
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Lucerna, 2005.
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seminários e mosteiros. Niterói: Edição do Autor, 2007.
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Nicolau Salum; trad. de Antônio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. 27. ed. São
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