Importancia Do Estudo Da HST Lingua Portuguesa

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Letras

Christiane Lima da Camara Monteiro

A importância do estudo de História da Língua Portuguesa no curso de


Letras

Rio de Janeiro
2012
Christiane Lima da Camara Monteiro

A importância do estudo de História da Língua Portuguesa no curso de Letras

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para a obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação
em Letras, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:
Língua Portuguesa.

Orientador: Prof. Dr. Helênio Fonseca de Oliveira

Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

M 775 Monteiro, Christiane Lima da Camara.


A importância do estudo de história da língua portuguesa no
curso de Letras / Christiane Lima da Camara Monteiro. – 2012.
114 f.

Orientador: Helênio Fonseca de Oliveira.


Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.

1. Língua portuguesa – Estudo e ensino – Teses. 2. Língua


portuguesa - Formação de professores - Teses. 3. Língua portuguesa -
História - Teses. 4. Linguística - Teses. I. Oliveira, Helênio Fonseca
de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras.
III. Título.

CDU 806.90(07)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação desde que citada a fonte.

__________________________ __________________
Assinatura Data
Christiane Lima da Camara Monteiro

A importância do estudo de História da Língua Portuguesa no curso de Letras

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para a obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação
em Letras, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:
Língua Portuguesa.

Aprovada em 23 de janeiro de 2012.

Banca examinadora:

______________________________________________________
Prof. Dr. Helênio Fonseca de Oliveira (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques
Instituto de Letras da UERJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. Agostinho Dias Carneiro
Instituto de Letras da UFRJ

Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA

A Maria Franca Zuccarello, professora e amiga, sem cujo persistente


incentivo eu não teria retornado à vida acadêmica, a fim de concluir minha
graduação. Graças à sua fé em mim pude chegar aqui.

A Nícia Verdini Clare, professora e incentivadora, pelo carinho, pelo apoio


e por me ter feito apaixonar pela História da Língua Portuguesa.

A minha filha, pelo amor, pelo apoio e pela paciência de me ouvir por horas
intermináveis.

A toda a minha família, pelo apoio, pelo incentivo e pela torcida vibrante,
sincera e amorosa.

A Ana Paula Ferreira, amiga e colega, por seu apoio e incentivo quando o
caminho a seguir parecia além das minhas possibilidades.

Aos amigos Simone Benfica, Márcia Coutinho, Guilherme Briggs, Luiz


Carlos Persy e Margarete Barbosa, pelo apoio e pela torcida sincera e
afetuosa.

Aos meus alunos, pela paciência, pelo carinho e por me motivarem a ser
uma professora cada vez melhor.
AGRADECIMENTOS

A Helênio Fonseca de Oliveira – orientador generoso, pela confiança em meu


potencial, pela orientação segura, clara e precisa, e pela paciência, nos momentos de dúvidas e
inseguranças durante o processo de elaboração deste trabalho.

Aos professores da Pós-Graduação – pelo incentivo, pelo apoio e pelos excelentes


cursos.
A língua muda sem cessar e não pode continuar funcionando senão não
mudando.
Charles Bally
RESUMO

CAMARA MONTEIRO, Christiane Lima da. A importância do estudo de história da língua


Portuguesa no curso de Letras. 2012. 114 f.
Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Instituto de Letras, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Este trabalho tem como objetivo ressaltar a importância dos conteúdos da disciplina
História da Língua Portuguesa para a formação do graduando do curso de Letras. O ensino de
Língua Portuguesa se dá, por questões didáticas, de forma ‘recortada’, sendo cada um de seus
‘recortes’ (Morfologia, Fonética, Sintaxe etc.) trabalhado em semestres diferentes. A forma
fragmentada de estudar a língua parece induzir o graduando a uma visão também fragmentada
(e fragmentária) de seu objeto de estudo, prejudicando a formação do futuro
professor/pesquisador da língua. A análise dos fenômenos linguísticos sob a ótica da
diacronia – em que uma alteração fonética pode, por exemplo, resultar em alterações
morfológicas e sintáticas – possibilita a visão da língua em seu funcionamento como um todo,
com suas ‘partes’ interagindo e se interpenetrando. Essa visão mais ampla, segundo cremos,
poderá capacitar o aluno para conectar as informações de diferentes recortes, a fim de
alcançar conhecimentos novos e mais complexos. Procuramos evidenciar os benefícios da
abordagem diacrônica apresentando o conteúdo programático da disciplina História da Língua
Portuguesa e tecendo comentários que apontam a relevância de cada conteúdo para a
formação do graduando. Acrescentamos, algumas vezes, sugestões de atividades didáticas
com o intuito de granjear o interesse do aluno para a disciplina.

Palavras-chave: História da língua portugPoruesa. Diacronia. História externa. História interna.


ABSTRACT

This work aims to highlight the Portuguese Language History discipline contents for
the graduating student in the course of Classical Languages and Literature. The Portuguese
Language teaching is done by didactic questions, in a ‘cut out’ form, being each of its clips
(Morphology, Phonetics, Syntax etc.) developed in different semesters. The fragmented form
of studying the language seems to induce who is being graduated to a fragmented vision too
(and fragmentary) of his study objective, jeopardizing the formation of the future language
teacher/researcher. The linguistic phenomena analysis under the diachronic optics – wherein a
fonetical change can, for example, result in morphological and syntactic modifications –
enables the language vision in its functioning as a whole, with its “parts” interacting and
interpenetrating. This wider vision, we believe, will capacitate the student to connect
information of different clips, in order to achieve new and complex knowledge. We pursued
to make evident the benefits of the diachronical approach by presenting the programmatic
contents of the Portuguese Language History discipline, making comments which point out
the relevance of each content for the formation of the graduating student. We added, many
times, didactic activities suggestions with the intent of conquering the student’s interest for
the discipline in question.

Keywords: Portuguese language history. Diachronic. External history. Internal history.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Ementa UERJ ....................................................................................................... 31


Quadro 2 – Ementa UFRJ ....................................................................................................... 32
Quadro 3 – Ementa UFF ......................................................................................................... 32
Figura 1 – Chico Bento - tira 195 ........................................................................................... 46
Quadro 4 – Postagem site Justin Bieber .................................................................................. 47
Quadro 5 – Postagem site Orkut, sobre o jogo ‘Café Mania’ ................................................. 47
Quadro 6 – ‘viado’ - Il Sabatini Coletti .................................................................................. 48
Quadro 7 – Pronomes oblíquos tônicos .................................................................................. 89
Quadro 8 – Pronomes oblíquos átonos ................................................................................... 90
Quadro 9 – Pronome ‘lhe’ ...................................................................................................... 90
Quadro 10 – Comparação entre acusativo plural e ablativo plural ......................................... 92
Quadro 11 – Radical de acusativo e de nominativo ................................................................ 93
Quadro 12 – Gênero em diferentes línguas ............................................................................. 94
Quadro 13 – Migração de classe de adjetivos ......................................................................... 98
Quadro 14 – Étimos diferentes .............................................................................................. 104
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
1 REFLEXÕES SOBRE DIACRONIA – CONCEITO E APLICABILIDADE NO
ESTUDO DE LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................12
1.1 A importância da visão da língua como um todo ....................................................15
2 O ADVENTO DO ESTUDO DA LÍNGUA COMO CIÊNCIA .............................23
2.1 A descoberta do sânscrito por eruditos europeus – o estabelecimento do método
histórico-comparativo ................................................................................................24
2.2 O Estudo da Língua como Ciência ...........................................................................26
3 OBJETOS DE ESTUDO DA HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA ...........31
3.1 Ementas/Conteúdo Programático das Universidades UERJ, UFRJ e UFF .........31
3.2 Mudanças Linguísticas ..............................................................................................32
3.3 História Externa da Língua Portuguesa ..................................................................36
3.3.1 História do latim ...........................................................................................................37
3.3.2 História da língua portuguesa .......................................................................................52
3.4 História Interna da Língua Portuguesa – Linguística Diacrônica/Gramática
Histórica ......................................................................................................................68
3.4.1 Fonética histórica .........................................................................................................68
3.4.2 Morfossintaxe histórica ................................................................................................85
3.4.3 Sintaxe histórica .........................................................................................................101
3.4.4 Formação do léxico da língua portuguesa ..................................................................101
3.4.5 Inovações Românicas .................................................................................................105
4 CONCLUSÃO ..........................................................................................................110
REFERÊNCIAS .......................................................................................................112
10

INTRODUÇÃO

Os estudos diacrônicos há muito vêm sofrendo certo desapreço por parte da maioria
dos professores, estudiosos e estudantes de Letras. Parece-nos que desde Saussure a
abordagem sincrônica dos estudos linguísticos reina soberana.
É certo que os estudos dos ‘estados da língua’, como os denominou o mestre suíço,
são imprescindíveis para a descrição do idioma. A abordagem diacrônica, no entanto, segundo
cremos, pode ser de grande proveito para a formação do graduando de Letras, pois possibilita
uma visão da língua em seu funcionamento como um todo, e não da forma fragmentada como
este parece concebê-la.
Nossa experiência acadêmica, ainda que recente, chamou-nos a atenção para o fato de
que a maioria dos graduandos de Letras, mesmo em períodos mais avançados, demonstra ter
um conhecimento e uma concepção fragmentários sobre a língua. Esse tipo de conhecimento
impossibilita a conexão de uma informação com outra, para se chegar a uma conclusão.
Por questões didáticas, para viabilizar seu estudo e ensino, a língua sofre, nos
currículos, inevitáveis ‘recortes’, sendo cada um deles tradicionalmente estudado em
semestres separados. Esse, certamente, é o único meio possível de estudar um objeto tão
complexo e multifacetado como a linguagem humana. Na formação do graduando, no entanto,
o ‘sistema linguístico’ como um todo deve ser vislumbrado, para que o aluno possa conectar
as informações de um recorte e de outro a fim de alcançar conhecimentos novos e mais
complexos.
No Capítulo I, faremos algumas reflexões sobre o conceito de diacronia e sobre a
aplicabilidade da abordagem diacrônica ao estudo de Língua Portuguesa, tendo como base
teórica o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure. Nosso foco será a
importância da visão da língua como um todo, na formação do graduando do curso de Letras,
e como a disciplina História da Língua Portuguesa pode proporcioná-la.
O advento do estudo científico da língua é o tema do Capítulo II, onde faremos um
breve retrospecto dos primeiros estudos histórico-comparativos, com base em Mattoso
Câmara Jr. – História da Linguística, incluindo considerações de Gladstone Chaves de Melo
– Iniciação à Filologia e à Linguística Portuguesa e de Mário Perini – Estudos de gramática
descritiva:valências verbais. A intenção é trazer de volta à memória o fato de que foi graças à
abordagem histórica da língua (diacrônica, portanto) que os estudos linguísticos puderam
alcançar o status de ciência.
11

No Capítulo III o foco está no objeto de estudo da disciplina História da Língua


Portuguesa, a partir do conteúdo programático de três importantes e conceituadas
universidades do Rio de Janeiro – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal Fluminense (UFF).
Como metodologia para a apresentação dos conteúdos, apresentaremos textos de nossa autoria
adotados como material didático em uma turma de História da Língua Portuguesa, na UERJ
(2011/1), e teceremos comentários acerca da relevância de cada conteúdo para a formação do
futuro professor/pesquisador da língua. Os textos elaborados para serem usados como
material didático tiveram como fontes autores diversos, tradicionais e atuais, como Ismael de
Lima Coutinho, Serafim da Silva Neto, Silvio Elia, Silveira Bueno, Ernesto Faria, Rodolfo
Ilari, Bruno Bassetto dentre outros, e aparecerão em fonte diferenciada (Arial tamanho 11).
O presente trabalho foi organizado com o intuito de ressaltar a relevância dos ‘saberes’
contidos na disciplina História da Língua Portuguesa e das possibilidades que ela abre ao
graduando, oferecendo uma visão panorâmica dos mecanismos da língua, ao longo dos
séculos.
12
12

1- REFLEXÕES SOBRE DIACRONIA – CONCEITO E APLICABILIDADE NO


ESTUDO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Os termos sincronia e diacronia foram criados pelo filósofo e linguista suíço


Ferdinand de Saussure, considerado o pai da Linguística moderna. Antes mesmo, porém, de o
linguista suíço criá-los, a diacronia já orientava, havia algum tempo, os estudos linguísticos.
Em verdade, a criação dos dois termos foi motivada pela dicotomia que Saussure
propunha. Os estudos linguísticos científicos, até então, tinham uma orientação unicamente
histórica – diacrônica, portanto. A proposta inovadora de Saussure, porém, era que se voltasse
a atenção para o que ele denominou ‘estado de língua’ – sincronia, portanto. A respeito dos
dois vieses de estudos linguísticos, define o mestre suíço:
A Linguística sincrônica se ocupará das relações lógicas e psicológicas que unem os termos
coexistentes e que formam sistemas, tais como são percebidos pela consciência coletiva.
A Linguística diacrônica estudará, ao contrário, as relações que unem termos sucessivos não
percebidos por uma mesma consciência coletiva e que se substituem uns aos outros sem
formar sistema entre si. (2006, p. 116)
E acrescenta:
À sincronia pertence tudo o que se chama “gramática geral”, pois é somente pelos estados de
língua que se estabelecem as diferentes relações que incumbem à gramática. [...]
De modo geral, é muito mais difícil fazer a Linguística estática [sincrônica] que a histórica
[diacrônica]. Os fatos de evolução são mais concretos; falam mais à imaginação; as
relações que neles se observam se estabelecem entre termos sucessivos que são
percebidos sem dificuldade; é cômodo e, com frequência, até divertido acompanhar uma
série de transformações (grifo nosso). Mas a Linguística que se ocupa de valores e relações
coexistentes, apresenta dificuldades bem maiores. (2006, p. 117)

Diante das considerações do próprio Saussure, grifadas acima por nós, entendemos
que o conhecimento do processo de evolução da língua portuguesa (abordagem diacrônica da
língua) pode dar ao graduando de Letras uma visão mais clara do funcionamento da língua
como um todo, e de todas as ‘forças’ que agem sobre ela. Esse conhecimento pode, talvez,
possibilitar ao aluno a conexão dos conteúdos adquiridos em cada disciplina do curso,
ampliando o seu entendimento sobre a língua.
Mas o que, na prática, é diacronia? Como sabemos que estamos diante de uma
abordagem diacrônica e não sincrônica? Quando poderemos considerar uma mudança
expressiva ou sem importância? Para que a mudança seja considerada relevante será preciso
que ela esteja legitimada pela gramática normativa? Saussure responde a algumas dessas
perguntas:
Na prática, um estado de língua não é um ponto, mas um espaço de tempo, mais ou menos
longo, durante o qual a soma de modificações ocorridas é mínima. Pode ser de 10 anos, uma
geração, um século e até mais. Uma língua mudará pouco durante um longo intervalo, para
sofrer, em seguida, transformações consideráveis em alguns anos. De duas línguas
13

coexistentes num mesmo período, uma pode evoluir muito e outra quase nada; neste último
caso, o estudo será necessariamente sincrônico, no outro, diacrônico. (2006, p. 117-118)

Podemos dizer, então, que um estado de língua é um espaço de tempo em que as


mudanças linguísticas não sejam em número expressivo. Mas o que se pode considerar
expressivo ou não? É ainda o mestre suíço quem procura esclarecer esse ponto:
Um estado absoluto se define pela ausência de transformações e como, apesar de tudo, a
língua se transforma, por pouco que seja, estudar um estado de língua vem a ser,
praticamente, desdenhar as transformações pouco importantes (grifo nosso) [...].
[...] a noção de estado de língua não pode ser senão aproximativa. Em Linguística
estática, como na maior parte das ciências, nenhuma demonstração é possível sem uma
simplificação convencional dos dados. (grifo nosso) (2006, p. 118)

Saussure reconhecia que era preciso ‘paralisar’ a língua e desconsiderar as mudanças


pouco importantes para que fosse possível estudá-la do ponto de vista sincrônico. O próprio
termo ‘Linguística estática’, criado por ele, já deixa subentendida uma paralisação da língua,
uma “simplificação convencional dos dados”.
Levando-se em conta as palavras do mestre, faremos uma comparação da Linguística
com outra ciência: a Medicina. Um cardiologista, por exemplo, pode estudar com preciosismo
o coração humano, descrever-lhe exaustivamente a anatomia, as doenças que o afetam, a
função de suas válvulas, pode medir o calibre de suas artérias e veias, descrever seu
funcionamento, observar as alterações desse funcionamento, etc. No entanto, tal estudo
minucioso muito pouca valia terá se o médico ignorar o fato de que o coração é apenas um
órgão (vital, é bem verdade) de um organismo ainda mais complexo: o corpo humano.
O coração, embora valioso, funciona em conjunto com diversos outros órgãos, mais ou
menos importantes do que ele, cada um com uma função específica, que pode ser minuciosa e
exaustivamente estudada e observada. Mas um órgão, por mais importante que seja, é apenas
um órgão e deve ser entendido e percebido como apenas um órgão, que nada é sem um corpo
que lhe dê ‘sentido e razão de ser’. Um órgão do corpo humano nada é por si mesmo, nenhum
papel encerra em si mesmo, mas somente em função do corpo do qual ele faz parte, do
sistema biológico ao qual se integra.
Diante dessas reflexões, é curioso que, no ensino de Língua Portuguesa – em qualquer
fase da vida escolar (mesmo no nível superior) – pouco se evidencie o fato de que a língua,
assim como o corpo humano, também é um sistema complexo e que, embora o seu estudo
requeira a dissecação de cada uma de suas partes, separadamente (e dissecação pressupõe um
14

órgão morto e separado de seu antigo corpo), na verdade ela também é um sistema inteiro e
‘vivo’, quando apreciado ‘em funcionamento’1.
Se a dissecação de um órgão o pressupõe morto e separado do corpo do qual fazia
parte, a ‘dissecação’ de um dos ‘recortes’ gramaticais em que a língua é dividida também o
pressupõe, de certa forma, morto e estático, separado de seu ‘corpo’, que é a língua realizada
‘na boca’ do falante.
O estudo de uma língua, para ser viável, requer que o estudioso eleja um ponto em que
focar sua atenção. Seguindo o modelo aristotélico, a gramática tradicional costuma ‘dividir’ a
língua em Fonética, Morfologia e Sintaxe. Nos cursos de Letras, tais ‘partes’ do ‘sistema
língua’ são estudadas uma a uma em semestres diferentes, separadamente.
De acordo com nossas observações, em virtude desse sistema de ensino (o único
viável, ao que nos parece), falta ao graduando de Letras a visão da língua como um todo,
como um sistema complexo, cujas partes se relacionam, completam-se, interpenetram-se. Os
estudos diacrônicos contidos na disciplina História da Língua Portuguesa (HLP), a nosso ver,
podem dar a visão desse sistema complexo.
Segundo Saussure, a Linguística estática ou sincrônica aplica-se somente à língua
como sistema – que é, segundo ele, imutável – nunca à fala, ou seja, à execução das imagens
acústicas. Levando em consideração que os órgãos vocais, responsáveis por essa execução,
são exteriores à língua, conclui que a fonação (a fala) “em nada afeta o sistema em si”
(SAUSSURE, 2006, p. 26). Ele divide, então, a linguagem em duas partes: uma essencial – a
língua – e outra secundária – a fala. E é para a parte considerada essencial que ele voltará sua
atenção.
O relevo dado à sincronia, em detrimento da diacronia, pode dever-se ao fato de que, à
época de Saussure, todo estudo da língua era diacrônico. A sincronia se limitava a materiais
didáticos sem ambientação científica.
É conveniente ressaltar que os estudos sobre a língua, de modo geral, seguem as
tendências das outras ciências, ou ao menos sofrem sua influência. Nos séculos XVIII e XIX,
quando surgem os estudos comparatistas e históricos, as ciências naturais estavam em pleno
auge. Era de esperar que uma ciência nascente, caso da Linguística, aplicasse a seu objeto de
estudo métodos e postulados já consagrados. Essa atitude garantiria que a nova ciência fosse
considerada com seriedade.

1
Ao compararmos a língua com o corpo humano, estamos apenas fazendo uma metáfora, e não considerando a língua como
um organismo vivo, tampouco considerando o estudo da língua uma ciência natural – como o era nos primórdios dos estudos
linguísticos.
15

Quando Saussure ministrou o seu Curso de Linguística Geral, na Universidade de


Genebra, entre os anos de 1907 e 1910, os estudos linguísticos, fundamentados no método
histórico-comparativo (diacrônico), já se haviam estabelecido havia cerca de um século.
Estando a Linguística já bem estabelecida como ciência, o mestre suíço – ele mesmo tendo
formação em Linguística Histórica – pôde, então, buscar outros caminhos para estudar a
língua.
Embora se proponha a cuidar somente da língua, Saussure afirma que língua e fala
estão estreitamente ligadas, e admite pedir “luzes ao estudo da fala” no decurso de suas
demonstrações:
Enfim, é a fala que faz evoluir a língua: são as impressões recebidas ao ouvir os outros que
modificam nossos hábitos linguísticos. Existe, pois, interdependência da língua e da fala;
aquela é ao mesmo tempo o instrumento e o produto desta. Tudo isso, porém, não impede que
sejam duas coisas absolutamente distintas. (2007, p. 27)

A insistência em se separar língua de fala, em se enfatizar que são “duas coisas


absolutamente distintas” se dá em relação aos objetos de estudo da Linguística, e diz respeito
aos linguistas, em sua tarefa de descrever a língua. Pelo que nos parece, o mesmo não deve
dizer respeito, ao menos de maneira irrestrita, aos estudantes do curso de Letras.

1.1- A importância da visão da língua como um todo

Cada língua tem sua lógica, sua dinâmica. Somente os estudos diacrônicos podem no-
las apontar com alguma precisão. Não estamos negando a importância de se observar a língua
em funcionamento ‘aqui e agora’. Se a diacronia é uma ‘soma de sincronias’, os estudos
sincrônicos são imprescindíveis para os estudos de História da Língua. Nosso propósito,
contudo, é, entre outros, apontar os benefícios dos estudos diacrônicos contidos na disciplina
HLP, para a formação do graduando em Letras.
A língua, como se sabe, é um sistema complexo. No entanto, para que seja possível
estudá-la mais a fundo, ela desde há muito vem sendo ‘recortada’ em várias partes, que são
estudadas separadamente. Camara Jr., fazendo referência a Saussure, define gramática como
“estudo de uma língua examinada como sistema de meios de expressão” (2007, p. 160). O
linguista brasileiro diz que a gramática, em seu sentido mais estrito, é o estudo da Morfologia
e da Sintaxe, mas que a esse se pode acrescentar o estudo dos traços fônicos e da grafia
correspondente a esses traços:
16

Trata, portanto, a gramática: a) dos fonemas e sua combinação; b) dos morfemas e sua
estruturação no vocábulo (sintagma lexical); c) dos sintagmas de vocábulos. Daí as suas três
partes gerais, respectivamente: a) Fonologia; b) Morfologia; c) Sintaxe. (2007, p. 160)

Nos cursos de graduação, embora os alunos recebam a noção teórica de que a língua
funciona como um todo coeso, na prática parecem concebê-la fragmentada, tal como a
estudam2. Tem-se o conhecimento teórico de que o falante comum faz uso da língua sem
estar consciente de suas escolhas ou seleções fonéticas/fonológicas, morfológicas e sintáticas,
no entanto, na prática, o aluno parece continuar ‘visualizando’ a língua como algo recortado, e
parece não perceber que (nem como) todos esses aspectos, estudados separadamente, se inter-
relacionam e funcionam simultaneamente. O próprio ensino da língua continua ‘acontecendo’
de forma a corroborar essa visão fragmentada de seu objeto de estudo.
A língua, como sistema, realiza-se inteira, em toda a sua complexidade, com todas as
suas partes funcionando simultaneamente, entrosando-se e influenciando-se mutuamente.
Entender ou conceber a língua como um ‘arquivo’ que abriga ‘pastas’ contendo
conhecimentos específicos denominados Fonética, Morfologia, Sintaxe etc. é desfigurá-la, é
inverter valores e noções.
Reconhecemos que, diante de um objeto de estudo complexo, tanto do ponto de vista
científico quanto do didático, o método mais eficiente a adotar é dividi-lo em partes e
pesquisar/estudar cada uma delas separadamente. Contudo, não devemos esquecer-nos de que
o graduando não é um ‘especialista’, e que, portanto, deve ter uma noção do ‘todo’ que é a
língua, antes de decidir em que ‘parte’ ou ‘recorte’ irá especializar-se.
Ainda usando a Medicina como ponto de referência, um graduando desse curso levará
seis anos aprendendo sobre o funcionamento geral do corpo humano e suas partes, de fatores
internos e externos que possam alterar-lhe o equilíbrio e o bom funcionamento. A sua
especialização só ocorrerá na pós-graduação – conhecida como Residência –, que tem a
duração de dois anos e durante a qual o aluno, tendo um contato mais aprofundado com
diversas áreas (cardiologia, pediatria, ortopedia etc.), escolherá qual caminho seguir. Somente
a partir de então, já conhecedor do sistema ‘corpo humano’, é que o médico poderá direcionar
seus estudos exclusivamente para a sua área de interesse.
Mesmo seguindo uma especialidade médica, é imprescindível que o médico conheça o
funcionamento do todo para desempenhar sua função de forma eficiente. A título de exemplo,
exporemos, a seguir, dois casos reais, testemunhados por nós, que demonstram de forma clara

2
Na verdade, essa visão fragmentária vem sendo inculcada desde o Ensino Fundamental.
17

que o conhecimento, ainda que limitado, do corpo humano como um todo é imprescindível na
prática da medicina:
 Caso um – uma paciente, sentindo desconforto no aparelho digestivo, consultou-se
com um gastroenterologista. Quando o médico perguntou se a paciente tinha mais
alguma queixa, ela respondeu que estava com a garganta inflamada, e que, portanto,
nisso ele não poderia ajudá-la. Para a surpresa da paciente, o gastroenterologista lhe
disse que sua inflamação na garganta deveria ter como causa o seu problema
digestivo, explicando que a paciente deveria estar tendo refluxo durante o sono, e que
os ácidos do estômago estariam causando a inflamação.
A paciente tomou o remédio recomendado pelo médico (para tratar o
estômago) e viu-se curada da inflamação na garganta, mesmo sem ter ido a um
otorrinolaringologista.
 Caso dois – uma paciente se submeteu a uma histerectomia, devido a um mioma que,
segundo mostravam as ultrassonografias, media cerca de dez centímetros de diâmetro.
Aberto o abdômen da paciente, o ginecologista deparou-se com um útero saudável
(com um pequeno e inofensivo mioma). O volume apontado na ultrassonografia era,
na verdade, uma gaze (esquecida dentro da paciente em uma antiga cirurgia) que havia
aderido a uma parte do intestino da paciente, causando uma ‘bola’ de infecção. O
ginecologista viu-se diante de um impasse: não havia nenhum gastroenterologista
disponível no hospital, naquele momento; nem a sala de cirurgia nem a paciente
haviam sido preparadas para uma cirurgia no intestino; a situação gravíssima, no
entanto, não permitia esperas.
Usando seus conhecimentos gerais sobre o funcionamento do corpo humano, o
ginecologista cortou um pedaço do intestino da paciente, retirando a parte
infeccionada, e suturou-o. Após a cirurgia, no entanto, o médico orientou os parentes
da paciente a procurarem um gastroenterologista, para que ele a examinasse de forma
mais eficiente, alertando-os da possibilidade de uma segunda cirurgia com o devido
especialista.
A paciente, de fato, teve que se submeter a uma segunda cirurgia, de
emergência, feita por um especialista, cerca de um mês após a primeira. Os
conhecimentos e a experiência do ginecologista, no entanto, salvaram-lhe a vida.
Para demonstrarmos a importância da conjugação de conhecimentos de áreas diversas,
para uma melhor compreensão de um assunto específico por parte do aluno, trazemos, agora,
uma situação real de uma aula de Fonética de uma turma de graduação em Letras:
18

 Uma professora, tratando da classificação das consoantes, abordou o rotacismo – troca


do [l] pelo [r]3 (como em ‘Framengo’ por Flamengo) –, fenômeno conhecido por
todos, considerado, preconceituosamente, resultado apenas da ignorância ou da baixo
nível de escolaridade do falante que faz tal troca. Embora seja verdade que o nível de
escolaridade esteja presente nessa questão, a professora julgou importante mostrar aos
alunos que não é somente esta a motivação da alteração fonética.
Chamou, então, a atenção para a proximidade das duas consoantes, quanto à
articulação, lembrando que em japonês (havia na sala diversos alunos que estudavam
essa língua) havia o fonema [r], mas não o [l] e que, em virtude da semelhança de
articulação das duas consoantes, os japoneses tinham dificuldade em distinguir os dois
fonemas, quando falavam em português.
Para demonstrar como essa troca é uma tendência na língua portuguesa, a
professora desenhou uma igreja no quadro e pediu que os alunos identificassem o
desenho. Dada a resposta, escreveu a palavra igreja no quadro e perguntou aos alunos
como era tal palavra em espanhol e em francês. Ela então escreveu as respostas no
quadro, comparando-as com a original latina:

igreja
ecclesia iglesia
église

Após a comparação, os alunos puderam constatar que o português, em relação


à palavra citada, foi a única língua em que ocorreu o rotacismo. A professora disse que
quem fala ‘Framengo’ ou ‘bicicreta’ não é ‘burro’ nem ignorante, é, sim,
‘conservador’, ‘seguidor das tradições de sua língua materna’. Embora as últimas
palavras tenham sido ditas em tom de brincadeira, foi ressaltado o fato de que no caso
da troca do [l] pelo [r] há fatores articulatórios e históricos envolvidos, além do nível
de escolaridade.

3
É preciso esclarecer que o termo rotacismo tem sido usado, atualmente, para designar a troca do /l/ pelo /r/, como em
franela (flanela), por exemplo. No entanto, nos livros especializados, esse termo não designa a mudança acima descrita.
Camara Jr. assim define rotacismo:
Mudança de /s/ entre vogais para /r/ dental. Foi uma lei fonética em latim arcaico. Por causa dela, uma série
de nomes da 3ª declinação, neutros, apresentam radical diferente no nominativo e acusativo, sem vogal
temática e sem desinência, em face dos outros casos com desinência começando por vogal, onde /s/ do radical
passou a /r/: corpus (lat. arc. corpos – corporis). Isto explica as diferenças de radical entre o nome
correspondente português e adjetivos derivados tirados do radical do genitivo: corpo – corporal, tempo –
temporal, lado – lateral. (2007, p. 264-265)
Por motivos didáticos, porém, o termo rotacismo será aqui adotado seguindo o uso atual, isto é, designando a troca de [l] por
[r].
19

A professora abordou, em seguida, a pronuncia não-padrão ‘bão’ para o


adjetivo bom. Também essa pronúncia só ouvimos da boca de pessoas com baixo nível
de escolaridade. Como se estivesse brincando, perguntou o nome daquele animal
feroz, que ruge alto e tem juba, ao que a turma prontamente respondeu leão.
Perguntou, então, o nome daquela pequena fruta verde, de sabor azedo e rica em
vitamina C, ao que a turma respondeu limão. O nome do animal foi escrito no quadro
juntamente com a palavra limão, sendo ambas comparadas com as respectivas
originais latinas – leon(e) e limon(e). Com esses exemplos, demonstrou aos alunos
que, também aqui, as pessoas que falam ‘bão’ e ‘batão’ (por batom) não são pouco
inteligentes, apenas seguem uma tendência histórica da língua portuguesa, que é a
ditongação de [õ] em [ãw], em final de palavra.
Após essas explicações, em que entraram questões articulatórias e históricas,
uma aluna disse que sempre acreditou que o uso de tais variantes fosse somente um
fenômeno econômico-social, e que jamais cogitou que pudessem ter, também, uma
explicação fonética (no âmbito linguístico, portanto).
A professora, então, chamou a atenção da turma para dois fatos sobre muitas
das variedades não-padrão usadas pelas pessoas com baixo nível de escolaridade: 1)
elas têm explicações articulatórias e/ou históricas, seguindo tendências da língua; 2)
um alto nível de escolarização dos falantes tende a refrear as mudanças naturais da
língua.
A História da Língua demonstra que a língua é afetada por diversos fatores –
linguísticos e não linguísticos. Daí a importância, para o graduando do curso de Letras, de
estudar história externa e interna da língua, Psicolinguística, Sociolinguística, Sintaxe,
Morfologia, Fonética e Fonologia, Latim etc., enfim, as disciplinas que compõem o curso de
Letras, a fim de melhor compreender o funcionamento da língua4.
De pouco adiantará, no entanto, todo esse conhecimento, se o graduando não for capaz
de relacionar informações. Tal inabilidade ficou clara diante das colocações feitas pela aluna
acima citada que, mesmo estando no 5º período da graduação, nunca aventou a possibilidade
(óbvia, de certa forma) de a troca de [l] por [r] ter uma causa articulatória.
A partir dessas duas observações da professora, mencionadas acima, podemos
desdobrar várias outras, como, por exemplo:

4
Corrobora nossa opinião a afirmativa de Câmara Jr.: “[...] uma asserção global da história da linguística não se pode limitar
à linguística propriamente dita. E não nos podemos esquecer que esta nem sempre se apresenta no correr de sua história como
uma disciplina isolada e autônoma. Algumas escolas de linguística têm tentado agir assim, mas tem sido frequente o
debordamento da psicologia, biologia e, mais recentemente, da antropologia no estudo da linguagem”. (c1975, p. 21)
20

1) muitas das variedades não-padrão usadas pelas pessoas com baixo nível de
escolaridade têm explicações articulatórias e/ou históricas, seguindo tendências da
língua:
 ‘Imbigo’ por umbigo – (explicação histórica) – no Appendix Probi5 encontra-
se umbilicus non imbilicus (correção nº58), o que prova que a troca do u inicial
por i, nessa palavra, é bastante antiga;
 ‘Inguinorante’ por ignorante – (explicação articulatória) – por ser uma vogal
alta e palatal, o [i] pode se nasalizar com um movimento mínimo do véu
palatino (cf. SILVA, 2009, p. 71). O [g], consoante velar (articulada no véu
palatino, portanto), pode ter facilitado essa nasalização. Teríamos, assim, o
desenvolvimento de uma consoante nasal velar. Em ‘indentidade’ por
identidade também se desenvolve uma consoante nasal, após o [i], talvez pela
influência da outra nasal. Há, também, a possibilidade de, nessas duas palavras
ter havido analogia com o prefixo in-;
 ‘Enterter’ por entreter – (histórica) – o deslocamento de fonemas numa
palavra é fenômeno bastante comum na evolução do latim ao português
(semper > sempre, pauper > pobre, aqua > auga [arc.]), e continua presente
no português atual, principalmente envolvendo consoantes líquidas e
semivogais;
 ‘Xicra’ por xícara – (articulatória e histórica) – a queda da vogal postônica
não final, para evitar o proparoxítono, é fenômeno bastante recorrente na
formação da língua portuguesa (calĭdus > caldo, frigĭdus > frio, ocŭlu > oclu >
olho). Ainda hoje é fenômeno comum – *fosfro por fósforo, *plasco ou
*prasco6 por plástico etc.;
 ‘A sapatona’ por ‘a sapatão’ – (histórica – por analogia) – A identificação do
-a final com o gênero feminino já era fenômeno recorrente no latim vulgar,
como mostra o Appendix Probi – nurus non nura (correção nº 169) (> nora),
socrus non socra (correção nº 170) (> sogra).
2) um alto nível de escolarização dos falantes tende a refrear as mudanças naturais da
língua:
 Preconceito linguístico – uma herança. Já na Antiguidade as elites haviam
percebido que a língua é uma marca de status social. Essa percepção motivou o
5
Lista com 227 palavras, anexa à gramática de Probo, aproximadamente do século III d.C.
6
Nesta palavra a consoante [t] também sofre síncope devido à impossibilidade, em português, da articulação do grupo
consonantal [stk].
21

estudo da língua, com o propósito de preservar os traços linguísticos das elites,


para que fossem conservados pelas gerações seguintes, a fim de que essa
modalidade da língua não se deixasse afetar pela fala dos incultos, estrangeiros
etc. A palavra bárbaro, a princípio, era usada por gregos e romanos (e, depois,
por outros povos) para designar o que ou quem não fizesse parte de sua
civilização ou que não falasse a sua língua, era praticamente um sinônimo de
‘estrangeiro’. Não é sem razão, no entanto, que seu sentido passou a ter uma
contação pejorativa, designando “que ou quem é cruel, desumano, feroz”, ou
“que ou quem é incivil, rude, grosseiro” (HOUAISS, 2009. CD-ROM);
 Abertura de escolas – Para promover a disseminação da língua latina pelo
território conquistado, os romanos abriram várias escolas, para atender às
populações locais. No Brasil, a partir do governo de Getúlio Vargas, tornou-se
obrigatório o ensino de Língua Portuguesa nas escolas do Sul do país, para se
evitar que o alemão e o italiano, línguas maternas da maioria dos colonos,
sobrepujasse o português.
 Línguas românicas – dialetação do latim vulgar – A escola é uma das forças
centrípetas, que agem pela conservação da língua, refreando suas mudanças
naturais. Em virtude do rompimento da unidade política, após a queda do
Império Romano, e ao fechamento das escolas, por parte dos bárbaros
conquistadores, não tendo mais nada que contivesse as forças centrífugas, que
agem no sentido de ‘desunificação’ e ‘desuniformização’ da língua, os falares
regionais se distanciaram cada vez mais, tendo como consequência a formação
e o desenvolvimento das línguas românicas;
Reflexões desse tipo podem conduzir o aluno a tirar conclusões, a juntar uma
informação com outra, a perceber a relação entre aspectos (linguísticos e não linguísticos)
diferentes que afetam a língua. É preciso, então, que o professor, com exemplos como os
citados acima, mostre ao aluno que a conexão ou o cruzamento de informações é possível e
necessário para o bom entendimento do funcionamento da língua.
Concordamos com o argumento de que um gramático/linguista deve poder descrever
um estado de língua sem ter que recorrer à diacronia. A um estudante de Letras, no entanto,
em sua formação acadêmica, convém conhecer os fatos históricos que levaram ao atual estado
de língua. Só assim ele será capaz de compreender a dinâmica da língua.
Fazendo uso de mais uma metáfora, podemos dizer que observar a língua ‘em
movimento’ é como assistir a um filme. A estória narrada no filme é a História da língua, ou
22

a apreciação da língua em seu movimento diacrônico. Cada fotograma da película seria, por
sua vez, um recorte sincrônico (e estático) da língua, dissecado e analisado.
Com essa metáfora, pretende-se dizer que o estudo sincrônico age como uma
fotografia, que mostra um aspecto da língua, que retrata apenas uma pequena parte de seu
movimento (como o fotograma de uma película). Já a diacronia (o estudo diacrônico), sendo
uma ‘soma de sincronias’, funciona como a película, ‘enfileirando’ as observações sincrônicas
de forma a permitir uma visão do movimento da língua ao longo do tempo, uma visão do
dinamismo da língua e do resultado desse dinamismo. A diacronia permite, enfim, enxergar
de forma clara a língua como um todo, como o sistema que ela é.
Quando enfatizamos a importância da diacronia, não a estamos elegendo como o
melhor meio de se descrever uma língua, mas estamos, sim, convidando os professores a uma
reflexão sobre os benefícios que ela oferece ao graduando, em seu processo de aquisição de
conhecimentos diversos sobre a língua.
23
23

2- O ADVENTO DO ESTUDO DA LÍNGUA COMO CIÊNCIA

O que leva o homem a estudar a língua? Sendo ela uma herança sócio-cultural, os
falantes, de modo geral, usam-na como meio de expressão e de comunicação sem parecer dar-
se conta de todos os elementos que envolvem tal processo. Se o conhecimento sobre o
funcionamento da língua não é vital para a comunicação, por que, então, estudar uma língua?
Mattoso Câmara Jr. (CÂMARA, c1975, p. 15-21) enumera alguns fatos que têm
levado ao estudo da língua, desde a Antiguidade:
 A invenção da escrita – a tentativa de reduzir os sons da língua à modalidade escrita
fez com que os homens percebessem a existência de formas linguísticas. Surge, assim,
uma nova atitude social em que as maneiras como falamos e o mecanismo da
linguagem tornam-se foco do pensamento humano. Desse modo, o estudo da
linguagem pode se desenvolver sob o impacto de fatores sociais e culturais.
 A língua como marca de status social – quando as classes superiores percebem que a
língua é marca de status social, tentam preservar os seus traços linguísticos, em
oposição aos das classes inferiores. Esses traços (da fala das elites) são considerados
os corretos, havendo um movimento no sentido de transmiti-los às gerações seguintes.
O estudo da língua surge, então, para conservar inalterada a fala das classes
superiores, tida como ‘correta’, e é esse tipo de estudo que cria a gramática.
 Contato com estrangeiros – o contato, hostil ou amistoso, entre duas comunidades de
línguas diferentes gera uma necessidade de mútua compreensão. O contraste entre as
línguas desperta a curiosidade, levando a comparações sistemáticas – daí o estudo de
línguas estrangeiras.
 Necessidade de compreensão de textos antigos cuja língua já não existe ou está
em sua fase arcaica – nesse tipo de estudo há a comparação da língua (escrita) do
passado com a(s) língua(s) atual(is).
 A língua como expressão do pensamento – o pensamento filosófico é expresso
através da linguagem, que precisa ser capaz de transmitir sua precisão e suas sutilezas.
A necessidade de tornar a linguagem um instrumento eficiente para o pensamento filosófico
e de disciplinar o pensamento através do disciplinamento da linguagem dá lugar a um tipo de
estudo, híbrido, filosófico e linguístico ao mesmo tempo, a que os gregos chamaram de
lógica. (CÂMARA JR., c1975, p. 18)
24

 Aspecto biológico da linguagem – a dependência da linguagem, em relação aos


órgãos do aparelho fonador humano levou ao estudo da linguagem em seu aspecto
biológico.
 O conceito da sociedade humana como fenômeno histórico – o estudo histórico das
manifestações culturais da sociedade abrange, também, a linguagem, que passa a ser
objeto de um estudo histórico.
Será este último fato que desencadeará o estudo da língua como ciência, como
veremos mais adiante.

2.1- A descoberta do sânscrito por eruditos europeus – o estabelecimento do método


histórico-comparativo

Até o final do século XVIII o estudo da linguagem, na Europa, seguiu o modelo usado
na Grécia Antiga, que se dava principalmente através da filosofia. No entanto, o rumo que
esses estudos tomaram desde o Renascimento levou à percepção da língua como fato
histórico, resultando, no século XIX, no advento do estudo da língua como ciência.
O Renascimento fez, por um lado, ressurgirem os estudos do latim clássico e também
do grego. Por outro lado, o foco sobre o homem e tudo o que lhe diz respeito fez surgir um
grande interesse pelas línguas faladas no mundo.
A partir do século XVI encontram-se, então, gramáticas das línguas vernáculas da
Europa. Com o estudo dessas línguas, o aspecto oral da linguagem fez com que a teoria
fonética começasse a se desenvolver.
Esta nova atitude, em relação à fonética, foi apoiada pelo estudo “biológico” da linguagem
que se desenvolveu no século XVII devido ao crescente interesse pelos órgãos da fala e a sua
maneira de produzir os sons da linguagem. [...] A gramática portuguesa, por Fernão de
Oliveira, no século XVI, é notável por suas asserções fonéticas. (CÂMARA JR., c1975, p. 34)

O estudo da etimologia, existente desde a Antiguidade, volta à cena, porém sob uma
visão histórica. A abordagem histórica, assim, começava a ser aplicada ao estudo da
linguagem. Procurava-se encontrar a origem das palavras de uma língua a partir de outra
língua, o hebraico – o qual acreditava-se, equivocadamente, ter sido a língua que deu origem
ao grego, ao latim e a outras línguas clássicas.
25

No final do século XVIII o jurista e filólogo britânico Sir William Jones, juiz da Corte
Suprema de Calcutá, observou as semelhanças que havia entre o sânscrito, o grego e o latim,
concluindo que tais semelhanças provavelmente se deviam a uma origem comum.
Esse será o ponto de partida para o estudo comparativo das línguas, desenvolvido a
partir do começo do século XIX, e que resultará no estudo, enfim científico, da linguagem.
Com a divulgação das observações de William Jones, os eruditos europeus voltam-se
para a cultura e as línguas da Índia:
Ao mesmo tempo, a filosofia e a religião hindu se difundiam na Europa, principalmente pela
ação dos eruditos ingleses. Uma e outra, tão diferentes da filosofia e da religião gregas, foram
um impacto sobre o pensamento europeu e contribuíram para fortalecer o Romantismo como
movimento de ideias que se opunham à influência e domínio da cultura greco-latina na
Europa Moderna.
Do mesmo modo, o método e as concepções da gramática do sânscrito, que se encontravam
em Pānini e seus seguidores, estimularam o espírito europeu no sentido de uma nova visão da
linguagem. O que os gregos e romanos tinham dito passou por um crivo crítico em face do
que sugeria a leitura da gramática sânscrita. (CÂMARA JR., c1975, p. 44)

No início do século XIX, o erudito alemão Friedrich von Schlegel publicou Sobre a
língua e a filosofia dos hindus7, livro que chamou a atenção dos estudiosos para o assunto, e
no qual ele aventava uma relação entre o sânscrito e, não só o grego e o latim, mas também
outras línguas europeias. Foi o primeiro a usar o termo gramática comparada, uma vez que
procurou fazer uma comparação sistemática dessas línguas. Schlegel, no entanto, como não
tinha conhecimento das mudanças fonéticas, comparou apenas palavras de sons idênticos que
apresentavam algumas divergências.
Segundo Câmara Jr., a história da linguística tem seu verdadeiro início com Rask e
Humboldt:
Partindo de uma abordagem filosófica da linguagem pela observação direta de muitas línguas
exóticas, o estudioso alemão Wilhelm von Humboldt [...] coloca-se no cerne dos fenômenos
linguísticos e tenta desemaranhar a natureza e o mecanismo da linguagem. Podemos dizer que
ele começou a lançar os fundamentos do que vimos chamando o estudo “descritivo” da
linguagem como um aspecto da linguística propriamente dita. (CÂMARA JR., c1975, p. 37)

Humboldt distingue a forma ‘externa’ da língua – o corpo fonético dos vocábulos – da


forma ‘interna’ – “as ideias subjacentes àqueles grupos de sons, as distinções mentais
dominantes na língua” (CÂMARA JR., c1975, p. 40), conferindo maior importância à forma
interna. Já com Humboldt temos o que mais tarde viria a ser denominado “dupla articulação
da linguagem” – significante e significado
O dinamarquês Rasmus Rask foi, por sua vez, o primeiro a aplicar um método
científico à comparação histórica das línguas – as línguas nórdicas. Ele dá mais importância
às comparações gramaticais, em vez da mera comparação de palavras – como faziam seus
antecessores –, por poderem as palavras facilmente passar de um povo a outro. Os aspectos
7
Über die Spracher und Weisheit der Indier: Ein Beitrag zur Begründung der Altertumskunde, 1808
26

morfológicos, ao contrário, dificilmente são ‘tomados por empréstimo’ a uma outra língua – o
que faz com que os dados obtidos por meio das comparações sejam mais consistentes. Não
obstante, também comparou palavras (mais concretas e essenciais) de línguas diferentes,
baseando-se em ‘leis’ fonéticas:
O trabalho de Rask, Investigação sobre a Origem do Antigo Nórdico ou Islandês, no
entanto, manteve-se inédito por muito tempo. Sendo assim, coube ao alemão Franz Bopp,
cujo trabalho é um pouco posterior ao de Rask, o título de fundador da Ciência Histórico-
Comparativa da Linguagem.
Em O Sistema de Conjugação do Sânscrito Comparado aos das Línguas Grega,
Latina, Persa e Germânica, Bopp aliou um estudo comparativo da linguagem ao
conhecimento sobre o sânscrito, estabelecendo a existência de uma grande família de línguas
que abrangia Europa e Ásia. Seu propósito era descobrir a origem das formas gramaticais.
Em um estudo posterior, o estudioso alemão incluiu outras línguas à família que ele
denominou indo-europeia. Bopp pode, por isso, ser considerado o fundador da linguística
indo-europeia. Câmara Jr. afirma que o estudo comparativo das línguas indo-europeias “foi
decisivo para estabelecer como ciência real a abordagem histórica da linguagem” (c1975, p.
51).

2.2- O Estudo da Língua como Ciência

Ao longo dos séculos, o homem estudou a linguagem/língua, impelido por motivos


diversos. Nenhum desses motivos, no entanto, parecia ser capaz de elevar o estudo da língua à
categoria de ciência. Foi somente estudando-a do ponto de vista de sua história que tal
objetivo foi alcançado. Este fato não deveria ser esquecido – que devemos aos estudos
diacrônicos o surgimento da Linguística:
Quando na primeira parte do século XIX se teve a noção de que as línguas podiam ser objeto
de um estudo científico rigoroso, foi justamente quando despontou a ideia de que a língua está
sempre em mudança e tem, pois, uma história. A focalização dessa história é que ficou sendo
o objetivo, o escopo da linguística, ou seja, do estudo da língua como ciência. Assim, a língua
compreendida como fato histórico é contemporânea da própria ciência da linguagem [...].
(CÂMARA JR., 1979, p. 65)

Gladstone Chaves de Melo discorre sobre a questão de serem a Linguística e a


Filologia ciências ou não, e sobre a confusão que se fazia entre os limites de uma e outra,
muitas vezes tomadas como uma única ciência:
27

Tornando à Linguística e à Filologia, cabe dizer que elas são ciências perfeitamente
caracterizadas, com seu objeto formal nitidamente estabelecido, com seus métodos próprios,
seguros e apurados, com suas conclusões definitivas.
O objeto da Linguística é o estudo da linguagem articulada ou a aplicação de seu método e de
suas conclusões a uma língua particular, a um dialeto ou uma família de línguas, enquanto a
Filologia se preocupa com a fixação do texto fidedigno, sua explicação e com comentários de
vária natureza que lhe atribuirão o sentido exato.
[...] Até algum tempo ainda se podia (ao menos no mundo da língua portuguesa) conceituar
Filologia como o estudo científico de um tipo de língua ou de família de línguas atestadas por
documentos escritos. Hoje tal conceito cabe ao que se chama Linguística Aplicada, embora
nos últimos tempos a perspectiva histórica ou diacrônica tenha merecido o completo desprezo
dos linguistas, que só têm querido trabalhar com a língua atual e, preferencialmente,
coloquial. (MELO, 1981, p. 4)

Buscando o conceito de ciência, para justificar que tal conceito se aplicaria tanto à
Linguística quanto à Filologia, continua o autor:
Na verdade que é uma ciência?
Considerando-se objetivamente, é “um conjunto de verdades certas e logicamente encadeadas
entre si, de modo que formem um sistema coerente.” (8) Do ponto de vista subjetivo, ciência
“é o conhecimento certo das coisas por suas causas ou por suas leis”. (9)
Ora, aplicando-se estes conceitos à Filologia e à Linguística Portuguesa, por exemplo, vemos
fácil que eles lhe cabem à justa, seja do ângulo do objeto, seja do prisma do sujeito. Sem
dúvida possuímos na nossa disciplina um conjunto de verdades solidamente estabelecidas, tais
como a origem românica da língua, as etapas do processo de evolução das vogais e
consoantes ao longo da história do idioma, o conceito e o como das transformações sintáticas.
Tais verdades se encadeiam e formam sistema, possibilitando-nos assim o conhecimento das
causas e gerando em nosso espírito um habitus, que nos leva a explicar fenômenos novos, ou
até então não estudados, por dedução dos princípios gerais ou pelo conhecimento do modo
intrínseco de operação da língua. (MELO, 1981, p. 5)

Foram necessárias várias décadas de estudo histórico-comparativo das línguas para


que se acumulasse conhecimento suficiente para se desenvolver o estudo descritivo da língua,
no âmbito da ciência. Primeiro foi necessária uma visão ampla do funcionamento das línguas,
de seu percurso ao longo dos séculos ou milênios, para que os estudiosos pudessem
concentrar suas observações, com bases científicas, em um momento específico da língua (o
que Saussure chama “estado de língua”).
Com o propósito de trazer uma visão mais atualizada da situação em que se encontram
os estudos descritivos, hoje em dia, apresentamos a posição de Perini em Estudos de
Gramática Descritiva: as valências verbais:
A linguística se encontra atualmente em um estágio que pode ser chamado de “história
natural” – ou seja, estamos mais ou menos na situação da física antes de Newton, quando
ainda não havia um paradigma que norteasse a interpretação dos fatos observados. Assim
como os físicos daquela época, os linguistas de hoje têm como tarefa principal levantar dados,
sistematizá-los e encaixá-los, quando possível, em teorias parciais – em uma palavra, elaborar
descrições (nossa tarefa é mais próxima da tarefa de Tycho Brahe e de Lineu do que da de
Einstein e Darwin). A linguística atual é dominada pela ilusão de que é possível queimar
etapas e desenvolver teorias válidas sem um longo e laborioso trabalho prévio de
levantamento e sistematização de dados. (PERINI, 2008, p. 14-15)

Segundo o autor, os estudos linguísticos carecem de bases de dados cuidadosamente


colhidos, sistematizados e descritos para fundamentar as teorias. Ao considerar que a

8
RÉGIS JOLIVET, Traité de Philosophie, I, 2ª ed., Emmanuel Vitte, Lyon-Paris, 1946, p. 158-159.
9
Id., ibid., I, p. 159.
28

Linguística está em um estágio ‘pré-científico’, Perini alega que isso não é motivo para
preocupações, pois que o problema estaria na complexidade e na dificuldade de acesso à
evidência dos fatos estudados e não na indolência ou incompetência dos linguistas: “Assim
como Bacon ou Aristóteles não precisavam envergonhar-se de sua física, nós, hoje em dia
podemos encarar o estado da linguística com tranquilidade” (2008, p. 34).
Se tantos anos após o desenvolvimento do método histórico-comparativo a Linguística
ainda carece de bases de dados cuidadosamente colhidos, sistematizados e descritos para
fundamentar as teorias, não se pode negar que a contribuição desse método foi efetiva.
Embora os linguistas da época tenham, algumas vezes, criado teorias precipitadas, sem
bases seguras, outras teorias há que se fundamentaram em bases cujo valor é indiscutível,
como, por exemplo, a origem vulgar das línguas românicas.
Pode-se dizer que o arcabouço de conhecimentos sobre língua e de metodologias para
estudá-la, proporcionado pelos estudos diacrônicos, foi o que tornou possível o surgimento do
estudo científico sincrônico da língua.
Daí podemos vislumbrar a importância que tem, para um graduando de Letras, a gama
de conhecimentos trazidos pelo estudo de HLP. É preciso dar aos estudos diacrônicos o seu
devido mérito.
Repetindo as palavras, já citadas, de Gladstone Chaves de Melo, chamamos a atenção
para o fato de que o habitus de que fala o autor, que “nos leva a explicar fenômenos novos, ou
até então não estudados, por dedução dos princípios gerais ou pelo conhecimento do modo
intrínseco de operação da língua”, nos foi dado pelo conhecimento do funcionamento da
língua através dos tempos – de cunho diacrônico, portanto.
Temos consciência de que não devemos depender da diacronia para descrever uma
língua, mas, certamente, é quase sempre pela diacronia que podemos explicar certos
fenômenos.
Tomando os plurais irregulares das palavras do português, cujo singular é em -ão, por
exemplo, podemos, do ponto de vista sincrônico, descrever que tais palavras apresentam, no
plural, três terminações possíveis – -ãos, -ães e -ões. Mas é somente pela análise sob o ponto
de vista diacrônico que podemos compreender o motivo e a origem de tais plurais irregulares.
Isso se explica pelo fato de que tais palavras, no singular, em determinada época,
tinham formas diferentes que, em consequência das alterações fonéticas da língua portuguesa,
convergiram para a mesma terminação: -ão. Os plurais, no entanto, não sujeitos às mesmas
alterações fonéticas, permaneceram diferentes uns dos outros.
29

Tínhamos, assim, na fase arcaica da língua portuguesa, as palavras mão – dissílabo (<
manu), pan (< pane) e leon (< leone), por exemplo. Por volta do século XV todas essas
terminações já haviam convergido em -ão – ditongo nasal típico de nossa língua, – resultando
tais palavras em mão (monossílabo), pão e leão.
O plural dessas palavras, no entanto, na passagem do latim vulgar para o português,
sofreu a síncope do [n] intervocálico, nasalizando a vogal precedente, e a ditongação do hiato
decorrente dessa síncope – fenômeno fonético também típico do português, entre as línguas
românicas –, resultando em mãos (< ma(n)os), pães (< pa(n)es) e leões (< leo(n)es).
10
O que podemos observar é que as terminações em -an, -on, -om, -õ das formas
singulares uniformizaram-se, a partir de certa época, em -ão. As palavras que entraram em
nossa língua, em fase posterior, não estiveram sujeitas a tal ‘lei’ fonética, mantendo a
terminação tônica [õ], grafada -om: maçom, batom, marrom, por exemplo, oriundas do
francês.
O conhecimento desse fato da história da nossa língua nos permite, “por dedução dos
princípios gerais ou pelo conhecimento do modo intrínseco de operação da língua”, explicar
porque, hoje em dia, encontramos as formas *marrão, *batão e até mesmo *bão (como vimos
no capítulo anterior, em 1.1).
Do ponto de vista sincrônico poderíamos apenas descrever esse fenômeno. Com os
conhecimentos da língua fornecidos por meio do estudo diacrônico do português, podemos
não só explicar o fenômeno como poderíamos até mesmo prevê-lo.
Por meio do conhecimento trazido pelo estudo da história de nossa língua podemos
deduzir porque bom, marrom e batom sofreram a ditongação, enquanto maçom não a sofreu.
O que acontece, nesse caso, é que as tendências ancestrais da língua costumam se manifestar,
na maioria das vezes, na fala de indivíduos com baixo nível de escolaridade. As três primeiras
palavras são, de fato, bastante populares, estando, assim, sujeitas a essas tendências. A palavra
maçom, por sua vez, não sendo muito popular, não foi afetada.
A palavra garçom, também oriunda do francês, sofreu a referida ditongação,
resultando em garção – que significava ‘moço’, ‘homem jovem’. A forma garção, no entanto,
que data do século XIII, é considerada arcaísmo (cf. HOUAISS, 2009. CD-ROM). A forma
atual, sem a ditongação, aparece em nossa língua a partir do século XX, com o significado de
“empregado encarregado de servir as pessoas em restaurantes, cafés, coquetéis, residências
etc.” (cf. HOUAISS, 2009. CD-ROM).
10
As terminações das formas verbais também sofreram as mesmas transformações. Nas formas verbais, no entanto, a
ortografia estabeleceu que tal ditongo, quando tônico, é grafado ‘aõ’, mas quando átono é grafado ‘am’ – comerão
[kome’rãw] e comeram [ko’merãw] (cf. HENRIQUES, 2007, p. 38)
30

Segundo Câmara Jr., O Estudo Histórico da Linguagem e O Estudo Descritivo


constituem o âmago da linguística:
[...] Em ambos, tomamos a linguagem como um traço cultural da sociedade e tentamos chegar
à sua natureza, ou explicando sua origem e desenvolvimento através do tempo ou o seu papel
e meio de funcionamento real na sociedade. (CÂMARA JR., c1975, p. 19-20)

Embora os estudos linguísticos descritivos estejam alcançando um nível cada vez mais
apurado, devemos sempre lembrar que o advento do estudo científico da linguagem só foi
possível graças ao longo percurso da abordagem histórica do seu objeto de estudo.
31
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3- OBJETOS DE ESTUDO DA HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Neste capítulo, apresentaremos os tópicos abordados nas ementas/conteúdos


programáticos de três universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro, a saber,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e Universidade Federal Fluminense (UFF). Nessas três universidades o curso de
História da Língua Portuguesa (HLP) é ministrado na disciplina ‘Língua Portuguesa VI’.
Definidos, assim, os objetos de estudo do curso de HLP, destacaremos os temas
abordados nas referidas universidades, fazendo uma apreciação de seu conteúdo.

3.1- Ementas/Conteúdo Programático das Universidades UERJ, UFRJ e UFF

UERJ
1. Mudanças linguísticas / Conceitos de evolução linguística nos sécs. XIX
e XX
2. História externa da língua portuguesa
3. Introdução à fonologia histórica
3.1 Pronúncia do latim clássico
3.2 Formas divergentes e convergentes, populares e eruditas
3.3 Caso lexicogênico; redução das declinações e das conjugações
3.4 Regularidade versus imprevisibilidade
3.5 O "Appendix Probi "
4. Conceito de assimilação
5. Nomenclatura das alterações fonológicas (metaplasmos)
6. Evolução do vocalismo e do consonantismo na passagem do latim para o
português
6.1 Vocalismo
6.2 Consonantismo
7. Comentário de textos arcaicos e/ou clássicos: morfossintaxe diacrônica;
semântica diacrônica; história da ortografia

Quadro 1 – Ementa UERJ. Fonte: UERJ


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UFRJ
UNIDADE I Linguística histórica e História da língua
A mudança em tempo real
História interna e história externa
UNIDADE II - O conceito de latim vulgar
Fontes para o seu estudo
Periodização da história do português
UNIDADE III - Características linguísticas
Processos fonológicos mais recorrentes
Morfossintaxe e léxico
Analise de textos do século XIII ao XX.
Do sécu1o XVI aos nossos dias: a evolução da língua portuguesa no Brasil.

Quadro 2 – Ementa UFRJ. Fonte: UFRJ

UFF
1- História externa do português: substratos, superstratos, romanço ibérico
2- O galego-português
3- Fases da língua portuguesa
4- O domínio da língua portuguesa
5- Alterações fonéticas: metaplasmos
6- O vocalismo português: vogais, semivogais, encontros vocálicos
7- O consonantismo português: consoantes, encontros consonantais
8- História do sistema ortográfico

Quadro 3 – Ementa UFF. Fonte: UFF

3.2- Mudanças Linguísticas

Duas das universidades cujos conteúdos de HLP estamos observando – UERJ e UFRJ
– abordam a mudança linguística, antes de abordar diretamente a história de nossa língua.
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Nada, no mundo, é estático, tudo está em constante movimento. A História só existe


por causa das transformações por que o mundo, as civilizações, a sociedade passam. A
História da Língua (ou das Línguas) só existe porque, em algum momento, o homem
percebeu que a língua também se transforma ao longo do tempo.
É bastante oportuno introduzir o curso de HLP com algumas informações sobre as
mudanças linguísticas.
Todos os textos que aparecem em fonte diferente (Arial tamanho 11), neste capítulo,
são de nossa autoria e foram elaborados para uso como material didático em nossa turma de
HLP, na UERJ, no primeiro semestre do ano de 2011. Após cada conteúdo do material
didático, serão feitos comentários acerca de sua importância para a formação do graduando de
Letras.

________________________________
Mudanças Linguísticas

Até a primeira metade do século XIX, os estudos sobre as línguas não se


davam em um âmbito propriamente linguístico, mas no de ciências afins, como a
filosofia, a psicologia e a lógica. Tal cenário se alterou somente com os estudos
comparativos, que se dedicavam à investigação da evolução das línguas. Em
relação à mudança linguística, diz Mattoso Camara Jr.:
Quando na primeira parte do século XIX se teve a noção de que as línguas
podiam ser objeto de um estudo científico rigoroso, foi justamente quando
despontou a ideia de que a língua está sempre em mudança e tem, pois, uma
história. A focalização dessa história é que ficou sendo o objetivo, o escopo
da linguística, ou seja, do estudo da língua como ciência. Assim, a língua
compreendida como fato histórico é contemporânea da própria ciência da
linguagem [...]. (1979, p. 65)

Devido à influência das ideias trazidas pelas ciências naturais, os estudos


diacrônicos da língua aplicaram a esta o conceito de ‘evolução’. Nesse conceito
estavam incluídas três características: a) as mudanças são paulatinas e
graduais; b) são encadeadas; c) dão-se em uma marcha para a plenitude.
Essa terceira característica gerou polêmicas e controvérsias. A plenitude era
vista como um estágio final, o ápice da evolução. Quanto a esse ápice, dividiam-
se os linguistas em dois grupos: a) a maioria, como Grimm (da escola alemã),
julgava que o ápice estaria nas línguas clássicas indo-europeias, altamente
flexionais; b) outros, como o dinamarquês Jespersen, julgavam-no alcançado
pelas línguas cujo flexionalismo fora simplificado, a exemplo do inglês moderno.
O conceito de evolução, no entanto, foi combatido a partir do final do século
XIX. Os norte-americanos adotaram uma nova orientação – o conceito de deriva
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(ou impulso), criado por Edward Sapir. Segundo esse conceito, as mudanças
não aconteceriam ao acaso, mas teriam uma diretriz, um sentido. Eliminava-se,
assim, a ideia de plenitude, sendo a deriva um conceito neutro, sem juízos de
valor.
Segundo Câmara Jr, o antigo conceito de evolução pode ser aproveitado,
suprimindo-se a ideia de evolução para uma plenitude. Isso significa reconhecer
como verdade apenas os dois primeiros preceitos daquela doutrina, ou seja, que
as mudanças são paulatinas e graduais e que são encadeadas. Tal posição
também é adotada pelo norte-americano, Joseph Greenberg.
É ainda Câmara Jr. quem nos esclarece:
[...] entre a mudança linguística e o chamado “estado linguístico”, no âmbito
sincrônico, não há uma fronteira nítida, absoluta. A língua é sempre dinâmica;
não há língua estática. O dinamismo se reflete no campo sincrônico através
de flutuações, que são as variantes. [...] os fonemas [...] não se repetem de
maneira imutável na boca de todos os falantes, em todas as circunstâncias,
em todos os contextos frasais e nem mesmo para um dado falante em todas
as situações. [...] Quando é que teremos, então, a mudança linguística
propriamente dita? É justamente quando essas variações oferecem um
sentido, entram numa deriva, mediante a qual o que era é abandonado e se
passa a ter outra coisa. Dentro da flutuação há, pois, uma corrente evolutiva,
que vai marcando a história da língua. (1979, p. 69)

Mas o que provoca ou motiva a mudança linguística? Em relação aos


impulsos que a determinam, Câmara Jr. aponta os seguintes como principais:
A) Impulso cultural – A transformação da cultura de um povo afeta a sua
língua, embora não de forma sincronizada.
A língua deve atender às necessidades dos seus falantes. Se esses têm
uma vida simples, que segue uma rotina monótona, sua língua atenderá às suas
necessidades simples e concretas, ao passo que os falantes que têm uma
intensa e rica vida cultural, necessitarão de uma língua que satisfaça às suas
necessidades mais complexas.
B) Impulso estilístico – O impulso estilístico é o que se vale da emoção e da
expressividade para provocar uma mudança. Exemplo disso é o futuro
românico, que se valeu de uma locução para indicar obrigatoriedade. Então a
forma cantabo, por exemplo, do futuro clássico, foi substituída pela locução
cantare habeo (‘tenho que cantar’).
C) Impulso motivado pelos pontos fracos – Segundo Câmara Jr., é este o
impulso mais forte, e está no próprio cerne da estrutura da língua. Ele explica
que a língua:
[...] é um sistema, uma estrutura em que os elementos estão ligados entre si
por associações e contrastes, mas não é um sistema nem completo nem
fechado; está, como dizia Saussure, em equilíbrio instável, com uma série de
pontos fracos, e esses pontos fracos são sempre suscetíveis de sofrer
modificação. Ora, qualquer modificação aí vai enfraquecer outros pontos em
que, a não ser por isso, a posição era forte, de sorte que cada pequena
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modificação importa numa remodelação de reajustamento, e nessa marcha


constante, em que os pontos fracos cedem e a sua modificação cria novos
pontos fracos no sistema, é que se tem a razão essencial desse contínuo
evoluir, dessa contínua marcha ou deriva, que é a história de uma língua.
(1979, p. 71)

Essa marcha contínua vai transformando a língua em todos os seus planos:


fônico, formal, sintático e semântico. Todos esses planos podem ser tomados
como fatos históricos.
________________________________

O conhecimento sobre a HLP traz, atrelados a si, outros conhecimentos. Um deles é o


fato de que foi no âmbito histórico dos estudos da linguagem que nasceu a Linguística.
Citamos, ainda:

 A noção de deriva (ou impulso), criada por Sapir, pode auxiliar o graduando a
compreender o funcionamento da língua, assim como conhecer os impulsos internos e
externos que causam suas transformações. Seguem alguns exemplos, no português
brasileiro atual:
Impulso cultural – A Era da Informática, por exemplo, favoreceu a entrada de
diversos termos e palavras do inglês em nosso idioma, em virtude de os sistemas
operacionais e softwares (e já aqui encontramos um empréstimo) terem sido criados
por falantes do inglês ou, talvez, por ser o inglês uma língua internacional.
Encontramos, assim, em português, tanto palavras ‘emprestadas’, como download e
site, quanto palavras aportuguesadas, como deletar e escanear.
Impulso estilístico – A redundância é um traço estilístico presente na ‘língua
do povo’. O largo uso de preposições, em latim vulgar, mesmo antes da redução dos
casos, comprova essa tendência. No português atual, no Brasil, ouvimos expressões
como “É só um só”, “Ela já foi já”, “Ele morreu de morte morrida” etc.
Ouvem-se, também, expressões como “Será se ela vai?” e “Ele chegou
pertinho da beira do lago”. No caso da primeira expressão, parece-nos que se está em
lugar de que para reforçar a idéia de dúvida ou incerteza (uma vez que a conjunção se
é usada em orações condicionais). Já na segunda, o advérbio acrescido do sufixo de
diminutivo -inho (contrariando a gramática normativa) tem valor intensificador,
equivalendo a ‘bem perto’.
Impulso motivado pelos pontos fracos – Frases como “Você quer que eu faço?”
indicam que o sentido do modo subjuntivo já não é tão claro para muitos falantes. Outra
36

mudança, bastante comum, acontece com os verbos VER e VIR. Quando conjugado no futuro
do subjuntivo, a vogal temática do verbo VER passa a i – ‘Se eu o vir, peço para lhe
telefonar’, igualando-se ao infinitivo do verbo VIR. Como o futuro do subjuntivo dos verbos
regulares coincide com o infinitivo flexionado (‘Se eu cantar’, ‘Se eu correr’, ‘Se eu partir’),
um grande número de falantes constrói o futuro do subjuntivo do verbo VIR (irregular) usando
a forma do infinitivo – ‘*Se eu ver ele, peço pra te telefonar’. Aqui há, também, um caso de
mudanças encadeadas.
 Outra noção importante para o graduando é a de as mudanças linguísticas serem
graduais e encadeadas. Tal noção ajuda-o a compreender que (e como) a língua
funciona como um todo, com as suas partes se interpenetrando e interagindo. As
alterações fonéticas por que passaram alguns fonemas finais, na passagem do latim
clássico para o latim vulgar, por exemplo, geraram alterações em diversos níveis da
língua. A queda do -m final de palavra – tanto em nomes quanto em verbos – e a
passagem de -ŭ a [o] (mudanças fonéticas) alteraram as desinências11 do singular do
caso acusativo: -am, -ŭm, -em > -a, -o, -e (mudança morfológica). Em virtude dessa
alteração fonética, as desinências do acusativo singular igualaram-se às do ablativo
singular, causando confusão entre os dois casos. As desinências de caso, como se
sabe, indicavam a função sintática das palavras. As desinências do acusativo e do
ablativo terem se igualado gerou um ponto fraco na língua – desinências iguais para
funções sintáticas diferentes. Com o passar do tempo, o ablativo foi abandonado e
suas funções sintáticas foram incorporadas ao acusativo (mudança sintática).

3.3- História Externa da Língua Portuguesa

O estudo da história de uma língua envolve não só as alterações por que tal língua
passou, mas todos os fatores – externos e internos, linguísticos e não linguísticos – que vieram
a influenciá-la.
Assim como ao cardiologista será insuficiente estudar o coração sem investigar os
fatores externos que o afetam (como a prática ou não de atividades físicas, a reação causada
11
Para deixar a escrita mais fluente, usaremos, no presente trabalho, o termo ‘desinência de caso’ para indicar as
‘terminações de casos’, embora nessas terminações haja, de modo geral, a vogal temática e a desinência de caso,
propriamente dita. Em relação ao acusativo, a desinência casual era a nasal -m (em grego, a desinência de acusativo também
era uma nasal, -n), a desinência do ablativo, por sua vez, era o alongamento da vogal (rosă – ‘a rosa’; rosā – ‘com a rosa’,
por exemplo). A quantidade das vogais, como se sabe, tinha caráter distintivo em latim clássico, mas não o tinha em latim
vulgar, daí a confusão entre as duas terminações, após a queda da nasal final.
37

pela ingestão de certos alimentos, a reação a determinados sentimentos etc.), também ao


linguista será insuficiente apenas observar as transformações da língua ao longo do tempo,
sem investigar os fatores externos que influenciaram a sua transformação.
É por esse motivo que a história de qualquer língua se divide em história externa e
história interna. Como salienta Gladstone Chaves de Melo, é importante distinguir esses dois
tipos de história. Diz ele:
A primeira [história externa] é a história dos acontecimentos políticos, sociais e culturais que
tiveram repercussão ou consequências linguísticas, é a história cultural de um povo (ou de
povos que se sucederam numa região), mas a história cultural elaborada com acento tônico na
língua. A segunda [história interna] é a descrição do processamento das divergências, é o
estabelecimento da evolução fonética, morfológica, sintática e semântica. (MELO, 1981, p.
69)

O Conteúdo Programático das três universidades que fazem parte desta análise se
divide em história externa e história interna. Começaremos, então, pela história externa.
Destacaremos, de forma resumida, os principais fatos históricos do latim e do português e
teceremos comentários acerca da pertinência e da utilidade do conhecimento de tais fatos para
os graduandos de Letras.
Uma vez que a língua portuguesa, como se sabe, originou-se a partir da evolução do
latim falado na Península Ibérica – e visando a dar ao graduando o maior número de
informações possível, para que ele possa compreender o funcionamento da língua –, é
fundamental começarmos a história externa do português pela do latim.

3.3.1- História do latim

________________________________
Latim é o nome da língua a princípio falada pelos habitantes da cidade de
Roma, situada no Lácio (Latium), região que fica no centro da Península Itálica.
E foi a partir de Roma que, ao longo de mais de um milênio, irradiaram-se a
língua e a cultura latinas.
Bruno Bassetto esclarece sobre as origens do latim:
Originariamente, o latim era apenas o dialeto de Roma, restrito à margem do
rio Tibre. Língua de camponeses e pastores, era rude, concreto e sem
refinamento de qualquer espécie. Pertence à família indo-européia e, dentro
dela, ao grupo Kentum. Juntamente com o osco dos samnitas, o sabélico, o
volsco, o umbro e o falisco, o latim forma o chamado itálico. (BASSETTO,
2001, p. 87)
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O documento mais antigo escrito em língua latina é a fíbula de Preneste, uma


fivela de ouro, em que há a inscrição (da direita para a esquerda):

(MANIOS MED FHE FHAKED NUMASIOI)

Em latim clássico: MANIUS ME FECIT NUMERIO – “Mânio me fez para Numério”.

Embora bastante simples, no seu início, a língua latina não foi criada pelos
primeiros romanos. Ela é, na verdade, uma das inúmeras evoluções de uma
antiga língua que originou grande parte dos idiomas modernos: o indo-europeu.
Considerado uma protolíngua, o indo-europeu é o nome que se dá a uma
língua originária do norte (provavelmente do Cáucaso), cujos falantes migraram,
em levas espaçadas no tempo, para a Europa e parte da Ásia.
Os indo-europeus não deixaram documentos escritos, mas sua existência
pode ser comprovada pelos vestígios que seu idioma deixou nas línguas
clássicas (como o latim, o grego e o sânscrito). As semelhanças entre tais línguas
vieram à tona no início do séc. XIX, quando Franz Bopp, linguista alemão,
apresentou “Sobre o sistema de conjugação da língua sânscrita, em confronto
com o das línguas grega, latina, persa e germânica”. Bopp concluiu que tais
semelhanças só podiam ser explicadas por uma origem comum. Outro estudioso
alemão, Jakob Grimm, estabeleceu uma relação genética entre as línguas e,
através de comparação entre as suas “filhas”, propôs reconstituir o indo-europeu.
Surgia, assim, o método histórico-comparativo.
Friedrich Diez, outro linguista alemão, percebeu que entre o latim e as línguas
românicas havia uma relação genética semelhante à do indo-europeu com as
línguas clássicas. Diez aplicou o método histórico-comparativo às línguas
neolatinas, e chegou a algumas teses, dentre as quais a de que estas se
originaram do latim chamado “vulgar”, e não do clássico, como se pensava antes.
Sempre através do método histórico-comparativo, notaram-se semelhanças
entre as línguas itálicas (cujas principais são o latim, o osco e o umbro) e as
línguas célticas (bretão, irlandês, galês, entre outras). Essas características
semelhantes (tal como voz passiva em -r, e constituição dos depoentes também
em -r) não são encontradas em outras línguas indo-européias. A esse grupo
lingüístico deu-se o nome de ítalo-céltico, que depois se dividiu, formando o
itálico e o celta.
Temos, então, grosso modo, a seguinte linha de evolução: (?) > indo-europeu
> ítalo-céltico > itálico > latim.
39

________________________________

É importante que o graduando tome conhecimento da existência do indo-europeu e dos


estudos comparatistas, uma vez que, como vimos, esse foi o berço da Linguística. A
genealogia do latim (e, consequentemente, do português) é conhecimento imprescindível ao
estudante de Letras.
O conhecimento do método comparativo, assim como das famílias linguísticas, pode
instigar o graduando a investigar as semelhanças e diferenças entre o português e a língua
estrangeira que ele estudar. Essa comparação poderá possibilitar a descoberta ou a percepção
de fatos interessantes, que serão úteis não só para o estudo da língua estrangeira, mas também
para o estudo de Filologia Românica, disciplina constante do currículo de Letras.
Outra noção importante é a de que o latim nasceu como uma língua simples e concreta
(no sentido de ‘pouco subjetiva’). Essa noção poderá facilitar a compreensão do processo de
formação de palavras e da formação do léxico de uma língua.
Roma foi, sem dúvida alguma, um modelo de cultura e civilização irradiado para todo
o Ocidente antigo, por mais de cinco séculos. Nomes como César, Augusto e Trajano fazem-
nos lembrar da glória de Roma, do grande império, com sua força, sua civilização e sua língua
irresistíveis.
Quando pensamos na língua latina, vêm-nos à mente os discursos de Cícero, as obras
de Virgílio, Ovídio e tantos outros mestres da palavra.
A grandeza do Império Romano é, no entanto, tão impressionante, que nos faz
esquecer que ninguém nasce grande e forte. A língua latina dos grandes autores clássicos dá-
nos a impressão de já ter nascido pronta. Sabemos que ela é a ‘mãe’ das línguas românicas e,
por isso, talvez não nos ocorra que essa ‘origem grandiosa’ também teve um começo, também
passou por um processo de séculos a fio, até transformar-se na língua de Cícero e de César.
Para se transformar numa língua capaz de expressar a complexidade da civilização
romana, o latim teve que, dentre outros processos, ampliar seu léxico, criando novas palavras,
valendo-se de processos que utilizamos ainda hoje.

________________________________
O latim, como já vimos, era, a princípio, a língua falada em Roma, e convivia
com diversas línguas “irmãs”, como o sabélico, o osco e o umbro, e também
com línguas não indo-européias, como o etrusco e o lígure.
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Segundo a lenda, Roma foi fundada pelos gêmeos Rômulo e Remo, em 753
a. C., mas disso não há comprovação arqueológica. O que se pode afirmar é
que em meados do século VIII a maior parte das colinas do Lácio já era
habitada.
Os habitantes dessas colinas pertenciam a dois grupos étnicos aparentados:
uns praticavam o rito da inumação, outros o da incineração. Tais grupos não
eram autóctones, isto é, pertenciam a levas de invasores que ali se fixaram.
Por outro lado, os estudos arqueológicos mostraram [...] que Roma, a
princípio um aglomerado de aldeias humildes, só passou a ter uma estrutura
urbana com a presença dos Etruscos, muito mais civilizados que os Latinos.
(SOARES, 1999, p. 6)

Através de lutas e alianças, os latinos consolidaram o seu poder no Lácio,


mas no século VI a. C. os etruscos dominaram Roma e estenderam seu domínio
até Cápua, ao sul. Por volta de 509 a.C., porém, os latinos reconquistaram
Roma, depondo Tarquínio, o soberbo (terceiro e último dos reis etruscos de
Roma), e instaurando a República.
Embora de origem humilde, os latinos souberam absorver as culturas
superiores à sua e, após o domínio etrusco, Roma manteve-se uma grande
cidade, onde se desenvolveram obras de engenharia que impressionam até
hoje, como os aquedutos, os sistemas de esgoto e os banhos públicos.
________________________________

Outra noção fundamental para o graduando de Letras é a de que a língua é, de modo


geral, um reflexo da sociedade que faz uso dela. O conhecimento da história do latim pode
facilitar a compreensão de como língua e sociedade caminham juntas.
Sabe-se que Roma foi fundada por volta do século VIII a.C. e que, nessa época, não
passava de uma aldeia de pastores. A língua falada por seus habitantes era bastante concreta,
como o são as línguas de comunidades pequenas, em estágio inicial de desenvolvimento. A
tecnologia, as construções, as relações sociais etc. eram bastante básicas e, portanto, não
requeriam muita ‘sofisticação’ para expressá-las.
Com a chegada dos etruscos ao Lácio, em meados do século VII a.C., pequena aldeia
conheceu a civilização. Os etruscos construíram aquedutos e esgotos, movimentaram os
portos, promovendo o florescimento da indústria, da agricultura e do comércio.
A obra civilizadora levada a Roma pelos etruscos transformou a pequena aldeia em
uma grande cidade. Essa transformação teve, obviamente, consequências linguísticas, pois as
novas realidades precisavam ser expressadas. Uma única inovação já era suficiente para a
criação de inúmeras palavras. Um incremento na agricultura, por exemplo, suscitaria novas
41

palavras para designar instrumentos, técnicas, novos espécimes vegetais a serem plantados
etc.
Ainda que não haja registros, pode-se afirmar que a língua latina, na fase da
dominação etrusca do Lácio, alargou consideravelmente seu léxico. A enorme quantidade de
inovações levadas pelos etruscos forçou a língua latina a se adaptar às novas realidades. Dessa
forma, língua e sociedade caminharam juntas, uma servindo à outra. Essa noção também
ajudará o aluno a compreender a história da língua portuguesa.

_______________________________
Em 272 a. C. a Península Itálica já havia sido conquistada pelos romanos. Em
118 a. C., após diversas batalhas e as três lendárias Guerras Púnicas, Roma já
dominava toda a Europa mediterrânea e alguns pequenos territórios da África do
Norte e da Ásia Menor. Com a chamada “pax romana” consolidada em diversas
regiões, Roma continuou suas conquistas.
A história do latim está intrinsecamente ligada à do Império Romano.
Conforme esse se expandia e entrava em contato com outras culturas, ia também
o latim espalhando-se, adaptando-se às novas situações, enriquecendo-se.
Embora as conquistas do Império tenham sido resultantes de ações militares,
os romanos, quando conquistavam um território, impunham suas leis e seu
idioma como língua oficial, mas permitiam que os vencidos mantivessem suas
crenças e, ao menos entre si, continuassem a usar sua língua materna. Tal
atitude resultou em um período de bilinguismo, mas os idiomas de quase todos
os povos conquistados foram, aos poucos, cedendo lugar ao latim.
Ilari lista as línguas com que o latim se deparou, conforme o Império se
expandia:
As línguas com que o latim entrou em contacto por efeito das conquistas
pertenciam a diferentes famílias linguísticas e eram bastante diferentes entre
si.
Na Península Itálica, o latim encontrou o umbro e o osco, línguas próximas,
pertencentes como ele ao ramo itálico de indo-europeu; além delas,
encontrou línguas indo-européias do ramo ilírico, grego e celta, e línguas não
indo-européias, como o etrusco e o lígure.
Nas ilhas italianas, os romanos entraram em contacto com línguas que
representavam um antigo substrato mediterrâneo, além do grego (indo-
europeu) e do fenício (semita).
As línguas faladas pelos povos da Ibéria não eram indo-européias (ibero,
vascão), exceto na região próxima à França, onde dominava o celtibero.
Idiomas indo-europeus predominavam na França e na Panônia (domínios do
celta), e na Ilíria (domínio ilírico, antepassado do albanês atual); também
eram faladas línguas indo-européias na Trácia e na Macedônia; e o grego
não era só falado na Grécia, mas predominava em grande parte da Anatólia e
do Mediterrâneo oriental [...].
O latim não suplantou as línguas indígenas em todo o território do Império:
impôs-se como língua falada no Mediterrâneo ocidental e na Europa
42

continental, mas esteve sempre em situação de inferioridade na Grécia, na


Anatólia e no Mediterrâneo oriental. (ILARI, 2007, p. 48)
________________________________

O conhecimento das línguas (e dos povos) que habitaram as regiões onde, mais tarde,
formaram-se as nações europeias modernas ajudará o aluno a compreender a influência que as
línguas exercem umas sobre as outras. Também o envolvimento da língua pelas questões
políticas pode ficar mais claro com o exemplo do latim.
O fato de ser o latim a língua do conquistador, e de ser esse conquistador (na maioria
das vezes) ‘portador’ de uma civilização bem mais complexa do que a dos povos
conquistados, (lembremo-nos de que língua e sociedade andam juntas) pode explicar, ao
menos em parte, porque estes, em sua maioria, acabaram abandonando sua língua materna
(cada um a seu tempo) em favor do latim.
Também é importante observar que os povos cuja civilização era tão (ou mais)
complexa do que a dos romanos não adotaram nem a cultura nem a língua latina. Como
exemplo podemos citar os gregos, os egípcios (àquela época já helenizados) e os hebreus.
Esse conhecimento, aplicado ao mundo de hoje, pode ajudar a esclarecer por que, por
exemplo, os imigrantes latinos dos Estados Unidos conservam sua cultura e, em muitas
regiões, até mesmo sua língua. Também ajuda a esclarecer por que, no Brasil – ao menos no
Rio de Janeiro – encontramos imigrantes chineses e seus descendentes usando somente o
chinês, para se comunicarem entre si.

________________________________
Além da enorme variedade de idiomas falados em todo o Império, é preciso
lembrar que também havia variações do próprio latim.
Havia o chamado latim clássico (LC), praticamente apenas literário, que
floresceu entre os séculos I a. C. e I d. C., e que permaneceu estático, sendo
utilizado pelos grandes escritores (mesmo em épocas posteriores). Havia
também o chamado sermo urbanus, modalidade do latim falada pelos
intelectuais. Embora menos rígido que o LC, o sermo urbanus era cuidado. E,
paralelo a esses dois, havia ainda o sermo vulgaris, denominação genérica que
abrange todas as modalidades populares.
O latim era levado às colônias pelos soldados, mercadores e outros
populares. A superioridade da cultura romana, bem como as vantagens nas
negociações, entre outros fatores, acabaram por fazer com que muitos povos
43

abandonassem, ainda que paulatinamente, sua cultura e sua língua em favor


das de seus conquistadores.
As famílias mais abastadas ou frequentavam as escolas implantadas pelos
romanos, ou mandavam seus filhos estudarem em Roma. A população que, no
entanto, não tinha acesso à escola, aprendia um latim mais descuidado, o sermo
vulgaris, transmitido oralmente.
________________________________

É importante que o aluno de Letras tome conhecimento de que praticamente qualquer


língua, em qualquer época, está sujeita a variedades diafásicas, diatópicas e diastráticas, e que
com o latim não foi diferente. O conceito de latim vulgar (LV) está diretamente ligado a essas
variedades. Uma vez que, desde Diez, sabemos que as línguas românicas se originaram a
partir do LV, é fundamental que o graduando conheça o conceito deste, bem como o de latim
clássico.
________________________________
Muito já se discorreu acerca do que (ou de qual) teria sido o latim vulgar.
Noções muitas vezes parciais ou equivocadas surgiram por parte de diversos
estudiosos. Não é pertinente, no entanto, fazer aqui um apanhado de tais ideias
que, afinal, nem são mais levadas em conta.
O que é, então, latim vulgar (LV)? A que conclusão se chegou após anos de
embates, estudos e investigações? O conceito atualmente mais aceito e mais
livre de preconceitos é o que considera o LV a soma das camadas linguísticas
diastráticas e diatópicas da România do século III a. C. ao século V d. C.
De acordo com a afirmação acima, podemos dizer que hoje se entende que o
LV era múltiplo, não uniforme. Era a língua viva, em funcionamento,
essencialmente falada (embora haja registros escritos dessa língua vulgar), era o
latim real, de fato.
Reconhece-se que a classe sócio-cultural dos falantes afetava sensivelmente
a língua (variações diastráticas). Temos, assim, o sermo urbanus (falado pelas
pessoas cultas), e o sermo plebeius ou vulgaris (genérico, da população não-
culta). O sermo plebeius, no entanto, se ramifica conforme a classe social: sermo
rusticus (dos camponeses), sermo castrensis (dos soldados), sermo peregrinus
(falado pelos estrangeiros em geral, aprendido de ouvido e bastante alterado),
sermo nauticus (dos marinheiros), sermo familiaris (falado pela sociedade culta,
em família ou com os escravos, em situações triviais).
44

Conforme a região onde era falado, o LV se subdividia em (variações


diatópicas) sermo italicus (na Itália), sermo gallicus (na Gália), sermo
hispaniensis (na Hispania), etc.
O latim clássico (ou literário) surgiu a partir da língua falada pela elite cultural
de Roma, em situações formais, enriquecida pelo contato com a cultura (e com a
língua) grega, burilada, adornada e refinada. Não é, no entanto, a língua natural
e espontânea. Esta era a língua usada no dia-a-dia (até mesmo pela elite
cultural, em situações de informalidade).
Sobre essas duas faces da mesma moeda (e já aqui faço uma metáfora),
Serafim da Silva Neto cita, em História do Latim Vulgar, uma interessante
metáfora de Franz Skutsch, filólogo nascido na Silésia:
A língua culta, literária, é artistificação dessa matéria-prima [a língua falada].
O seu aparecimento compara-se à justaposição de uma camada de gelo na
superfície dos rios. Ela recebe deles a substância e, afinal de contas, nada
mais é senão a própria água. Longe está, porém, de ser o caudal.
À primeira vista julgar-se-á que já não existe a corrente e que a água
estagnou.
Pura ilusão! – sob o bloco de gelo a nascente continua a fluir, seguindo as
ondulações do terreno...
E, logo que o gelo se quebra, lá torna a água a marulhar e a espadanar.
A camada de gelo é a língua escrita. O frio que a produz e quisera estacionar
a corrente é o esforço dos artistas e dos gramáticos. (SKUTSCH apud NETO,
2004, p. 16)

Silva Neto diz que é a partir das ocasionais “quebras de gelo” da língua
escrita que devemos chegar ao LV, do qual vêm, de fato, as línguas românicas.
A essas “quebras de gelo” podemos chamar fontes do LV.
________________________________

A contraposição que se faz entre latim clássico e latim vulgar é bastante proveitosa
para o aluno de Letras, uma vez que evidencia que: a) a língua escrita é pautada na fala das
elites; b) a língua usada na literatura é, de modo geral, bastante diferente da língua falada; c)
não existe apenas uma modalidade de língua ‘vulgar’.
É claro que os alunos estão cientes de todos esses fatos, mas, pela nossa experiência
em sala de aula, eles demonstram dificuldade de perceber/identificar essas nuances na sua
própria língua. Talvez porque, como falantes do português, estejam habituados a ‘filtrar’ as
nuances e a entender as diversas modalidades do português como uma só língua.
Sendo assim, talvez o graduando não esteja atento ao fato de que o título da música
“Não Aprendi Dizer Adeus”, por exemplo, ou frases do tipo “O filme já foi assistido por mais
de 100.000 pessoas” refletem uma flutuação na regência de alguns verbos.

________________________________
45

Sendo, por excelência, uma língua falada, e sistematicamente ignorada pelos


gramáticos e escritores, poucas são as fontes para o estudo do latim vulgar.
Segundo a organização de Rodolfo Ilari, em Linguística Românica, são elas:
a) Textos que opõem intencionalmente duas formas de latim – são os textos
de autores conceituados, como Cícero, Tertuliano, Varrão e Catulo, em que
aparecem observações esparsas sobre os erros e os hábitos verbais dos
indoutos de seu tempo.
Dentre esses textos, o mais profícuo é o Appendix Probi, uma lista de
mais de duzentos erros (e suas correções) escrito pelo gramático Probo, que
teria vivido no século III. A lista tem bastantes elementos que apontam algumas
tendências do LV, confirmadas pela observação das línguas românicas.
b) Obras em que o latim vulgar penetra parcialmente – são os registros
produzidos por autores com pouca erudição, como a Peregrinatio ad Loca
Sancta, da monja Ætheria (também conhecido como Peregrinatio Ætheriæ), e o
tratado de veterinária Mulomedicina Chironis.
Comédias, como o Satyricon, de Petrônio, homem culto e refinado,
também são exemplos deste tipo de fonte. Nessa peça há exemplos da fala
vulgar na boca do personagem Trimalquião, um novo-rico que quer parecer (sem
sucesso) uma pessoa refinada.
Temos ainda renomados autores cristãos, como Santo Agostinho, que
intencionalmente inserem em seus textos elementos da língua vulgar, para
torná-los acessíveis ao povo.
c) Inscrições – são escritos produzidos por pessoas de variadas classes
sociais, em que não há, de modo geral, preocupação com a gramática. Há vários
tipos de inscrições, como as tabellæ defixionum, que são tabuinhas execratórias
em que os romanos costumavam escrever às divindades, rogando pragas para
seus desafetos.
Também são exemplos de inscrição os graffiti de Pompéia, preservados
pela camada de cinzas que cobriu a cidade, após uma erupção do Vesúvio (79
d. C.). Os graffiti oferecem vasto material de vulgarismos.
Ilari também cita as inscrições cristãs, na maioria das vezes tumulares.
d) Termos latinos vulgares transmitidos por empréstimo às línguas não-
românicas vizinhas: gótico, alto-alemão, dialetos berberes da África, grego,
albanês, entre outras.
Ilari pondera sobre o uso dessas fontes:
O uso indiscriminado dessas fontes poderia levar a uma reconstrução
fragmentária e contraditória. Daí a necessidade de criticar as observações
que essas fontes sugerem à luz do método histórico-comparativo: encaradas
46

como o latim vulgar que não morreu, mas simplesmente se modificou no


tempo e no espaço, as línguas românicas são, em suma, a fonte mais ampla
de que dispomos acerca do latim vulgar. (2007, p. 70)

Desde Diez que já se sabia que as línguas românicas não evoluíram a partir
do LC, e sim do LV. Diez chegou a essa conclusão observando, através do
método histórico-comparativo, as características comuns entre as línguas
românicas. O filólogo percebeu que essas não tinham tantas semelhanças com o
latim dos textos clássicos, mas sim com a modalidade conhecida como ‘latim
vulgar’.
________________________________

As fontes do LV são de suma importância para o estudo da romanística.


Um estudo, ainda que superficial, de algumas dessas fontes pode ajudar o aluno a
compreender certos processos por que a língua passou e, mesmo hoje, ainda passa. Uma
estratégia didática que pode gerar interesse é mostrar aos estudantes alguns exemplos de
‘português vulgar’, e depois solicitar que eles procurem outros exemplos e observem as
características que encontraram naquela modalidade da língua.
Selecionamos, a seguir, algumas fontes do ‘português vulgar’, para demonstrarmos
que a observação de suas peculiaridades sob uma perspectiva histórica pode ser bastante
proveitosa.
Obras em que o ‘português vulgar’ penetra parcialmente – como exemplo, podemos
mostrar aos alunos uma tirinha do Chico Bento. O professor pode trabalhar as características
da fala do interior.

Figura 1 – Chico Bento - tira 195. Fonte:


http://www.monica.com.br/comics/tirinhas/tira195.htm

Observando a fala do personagem Zé Lelé, notamos duas peculiaridades em


comparação à modalidade padrão de nossa língua:
a) Rotacismo na palavra ‘prantando’, em vez de ‘plantando’;
47

b) Queda da penúltima vogal da palavra ‘árv(o)re’, transformando-a em um


paroxítono.
Após fazermos essas observações, podemos mostrar aos alunos palavras do Appendix
Probi que demonstrem que os fenômenos observados na tirinha, que ocorrem no português de
hoje, também ocorriam no latim vulgar (ou vice-versa):
a) Rotacismo – correção nº 77. flagellum non fragellum.
b) Queda da penúltima vogal breve, evitando o proparoxítono – Correções nº 3
speculum non speclum (> espelho) e nº 201 viridis non virdis (> verde).
Com relação à tirinha, ainda podemos observar que, embora as formas di e isperança
também estejam escritas contrariando a ortografia, de modo a marcar a pronúncia do menino
do interior, na verdade elas ilustram a pronúncia padrão para a maioria dos brasileiros.
Diante dessas observações, podemos supor que nem todas as diferenças em relação ao
latim clássico encontradas nas fontes do latim vulgar eram exclusivas das classes menos
letradas.
Inscrições – como exemplo de inscrições, no dia de hoje, podemos utilizar postagens
de comentários, na Internet. Assim como nas tabellæ defixionum, nessas postagens também não
há muita preocupação com a gramática:

jessyca em 30/10/2011 às 19:06

eles dois devia namora eles formaris um lindo casau.

Quadro 4 – Postagem site Justin Bieber. Fonte: Justin Bieber fãs.

Anônimo

MUITO BOM AS NOVIDADES SO PODERIA ALMENTA FOGAO


OU POR PRA VENDA OS DE 40% PQ NEM SEMPRE DA PRA
COMPRA NO PRASO DO RELOGIO :( E ALMENTA LIMITE DE 14
PRA UNS 25 FOGAO :) . VLW

Quadro 5 – Postagem site Orkut, sobre o jogo ‘Café Mania’. Fonte: Perguntinha do Papa dos
Pudins

A reprodução da fala na escrita, nos dois casos, aponta para o desaparecimento da


desinência de infinitivo, para simplificação da flexão de plural, deixada quase sempre a cargo
do primeiro elemento da oração, além da vocalização de [l] em final de sílaba: “eles dois
48

devia namora(r) eles formaria um lindo casau” e em “e almenta(r) limite de 14 pra uns 25
fogao”.
Termos do ‘português vulgar’ transmitidos por empréstimo a outras línguas – Apresentamos,
abaixo, um termo do ‘português vulgar’ transmitido à língua italiana:

Quadro 6 – ‘viado” – Fonte: Il Sabatini Coletti dizionario della lingua italiana.

O termo, encontrado por acaso em um dicionário italiano, aparece como um


estrangeirismo oriundo do português do Brasil12, com o sentido de “Travesti ou transexual,
proveniente do Brasil ou de outro país sul-americano, que se prostitui”. Note-se que a palavra
italiana segue a pronúncia original – viado, e não a ortografia – veado, indicando que a
palavra foi transmitida oralmente.
Acreditamos que o tipo de atividade que apresentamos acima, além de despertar o
interesse do graduando, pode ajudá-lo a compreender melhor o funcionamento da língua e
também o caráter cíclico de alguns fenômenos linguísticos.

________________________________
São muitas as diferenças entre o LV e o LC, citaremos, no entanto, as
principais, baseando-nos em Elementos de Filologia Românica, de Bruno
Bassetto, dando um ou dois exemplos de cada item.
Em relação ao LC, o LV é mais:
a) Simples em todos os níveis – como exemplo, citamos, no campo da
fonologia, a perda da quantidade vocálica e consequente redução das 10 vogais
clássicas a 7, 6 ou 5 (conforme a região da România); e, no campo da
morfologia, a redução das 5 declinações a apenas 3, migrando os nomes das
duas extintas para uma das três remanescentes.

12
O dicionário italiano informa que a etimologia da palavra é incerta, sugerindo a palavra ‘via1’ (o primeiro sentido para
‘via’, no dicionário em questão, equivale a ‘rua’) como étimo, por estar o ‘viado’ “frequentemente próximo à rua”. Houaiss
apresenta, na acepção nº 4 do verbete veado, o sentido figurado (do animal da família dos cervídeos) “homossexual
masculino”. O verbete viado, segundo Houaiss, traz somente a acepção “diz-se de ou tecido de lã, com riscas ou veios”. A. G.
Cunha, no verbete via, não apresenta ‘viado’ como cognato. No verbete veado, este autor não apresenta nenhum sentido
figurado.
49

b) Analítico – um exemplo bem vivo desta característica é a gradativa


redução dos casos. Língua flexional, o LC era extremamente sintético. O LV, por
sua vez, se caracterizava pela ênfase e, muitas vezes, pela redundância. Isso
levou à gradativa redução dos seis casos do LC a apenas um – o acusativo, de
onde provém a maioria das palavras das línguas românicas (e, por isso,
chamado de caso lexicogênico). Essa redução implicou o largo uso de
preposições e uma ordem mais rígida dos termos da oração, para que o sentido
ficasse claro.
c) Concreto – o caráter concreto do LV é consequência do modo de vida de
seus falantes, voltado principalmente para as coisas materiais. Bassetto
esclarece:
Assim, termos abstratos, denotativos de qualidades e de atividades
intelectuais ou de generalizações, que pressupõem trabalho de abstração,
são praticamente desconhecidos, ao passo que os nomes das coisas
concretas são muito numerosos. A busca dessa concretude se faz sentir no
modo claro, analítico e objetivo de expressar os pensamentos através do uso
de artigos, pronomes pessoais, possessivos etc. (2001, p. 95)

d) Expressivo – o autor considera que o caráter eminentemente falado do LV


conferiu a ele espontaneidade, ênfase e afetividade. Como exemplo, citamos o
uso de diminutivos, largamente utilizados, e dos quais veio um grande número
de palavras para todas as línguas românicas: auricula (< auris) > oricla > orelha
(port.), orecchio (ital.); vetulus (< vetus) > veclus > velho (port.), vecchio (ital.)
e) Permeável a elementos estrangeiros – o grego foi, sem dúvida, a língua
que mais contribuiu para o enriquecimento do latim. Dele vieram palavras como
petra (que substituiu lapis) – pedra (port.), piedra (esp.), pietra (ital.), pierre (fr.).
As palavras bos – boi (port.), buey (esp.), bue (ital.), bW uf (fr.) e lupus – lobo
(port. e esp.), lupo (ital.), loup (fr.) são exemplos de empréstimos itálicos
(bastante antigos). Já carrus – carro (port., esp. e ital.), char (fr.) e camisia –
camisa (port. e esp.), camicia (ital.), chemise (fr.) são exemplos de empréstimos
ao celta (gaulês).
________________________________

O conhecimento das características do latim vulgar é importante para que o graduando


compreenda mais facilmente a passagem do latim para o português. É interessante, também,
apontar que a simplificação da língua é algo que acontece paulatina, mas constantemente.
À época do latim vulgar, o complexo sistema de declinações nominais foi bastante
reduzido. As vogais temáticas nominais, que antes tinham a função de indicar a qual
declinação a palavra seguia e, portanto, qual o paradigma a ser usado na sua flexão, perderam
50

sua função, ao contrário das vogais temáticas verbais, que ainda indicam a que conjugação o
verbo pertence, indicando que paradigma seguir, ao flexioná-lo.
O sistema verbal do português, no entanto, vem sofrendo uma simplificação
considerável, no registro informal. Das seis pessoas existentes, a P5 raramente figura, mesmo
no registro formal, tendo sido substituída pelo pronome de tratamento vocês. Como o
pronome tu, no Brasil, tem caído em desuso em boa parte de seu território, sendo substituído
pelo pronome de tratamento você, a P2 tem perdido espaço para a P3, que acompanha os
pronomes de tratamento. No registro informal do Brasil, a P4 vem caindo em desuso, devido à
substituição do pronome nós pela a expressão a gente, que também é acompanhada pela P3.
O sistema verbal do português informal brasileiro reduziu-se (ao menos em uma parte
do território nacional) à P1, P3 e P6: eu amo, você ama, ele ama, a gente ama, vocês amam,
eles amam.
A formação informal do nosso futuro (do presente e do pretérito) também apresenta
semelhanças com o futuro do latim vulgar, no sentido de ser analítico e expressivo. Em vez de
fazer uso das desinências do futuro, dá-se preferência à perífrase verbal, formada pelo verbo
IR + infinitivo. O uso de IR como auxiliar deve-se, provavelmente, ao valor semântico desse
verbo, que tem um sentido de deslocamento de um ponto a outro. Esse deslocamento, que diz
respeito a espaço, teria sido ampliado para deslocamento no tempo.

________________________________
As características acima são comuns ao LV de toda a România. Enquanto
perdurou a unidade do Império Romano, houve também certa unidade
linguística, mantida, até certo ponto, pelas escolas, instituições públicas, pela
manutenção de colônias civis e militares, fácil deslocamento e comunicação
entre as províncias/colônias e Roma, etc.
Com o fim do Império, no entanto, todas essas ‘forças centrípetas’, que
mantinham a relativa unidade linguística, cessaram. Em virtude da invasão de
bárbaros de línguas diversas, que se espalharam por toda a România, e também
ao isolamento de cada novo reino, cada sermo regional seguiu seu curso, ora
sendo suplantado por um sermo (ou dialeto) mais importante, ora se firmando
cada vez mais, até se elevar ao status de língua oficial de nações que, mais
tarde, viriam a se formar.
Embora, após as invasões bárbaras, o latim tenha se tornado a língua dos
vencidos, os bárbaros acabaram adotando-o em várias regiões. É o caso da
Europa Ocidental e da Romênia (antiga Dácia). Esta última, no entanto, acabou
51

sofrendo grande influência das línguas eslavas, levada por outros invasores,
como o francês sofreu influência germânica.
Apesar dos percalços por que passou, o latim não viu o seu fim com a queda
do Império. Se esse se diversificou em dialetos regionais, a Igreja Católica
Romana, única instituição romana a sobreviver à queda do Império, continuou
mantendo o latim como língua oficial. O latim eclesiástico, embora permeado de
vulgarismos, manteve certa fidelidade ao antigo latim culto e é, até hoje, embora
com algumas modificações, a língua oficial do Vaticano.
Com o advento das grandes navegações, o latim, na forma das línguas
neolatinas (português, espanhol e francês), foi transportado para o novo mundo
e é falado em praticamente todos os países das Américas. Da mesma forma foi
reintroduzido na África e na Ásia, embora em regiões diversas das da época do
Império.
À época da Renascença, o latim enriqueceu o léxico de suas “filhas” através
dos poetas e escritores, que buscavam nas línguas clássicas o refinamento
necessário para expressar suas ideias.
E, ainda hoje, recorre-se ao latim (e também ao grego) para nomear achados
científicos ou invenções tecnológicas.
Como podemos ver, o legado da civilização romana e de sua língua está vivo
até hoje, espalhado pelos “quatro cantos do mundo”.
________________________________

É importante que o graduando de Letras tenha noção de como o latim se dialetou,


transformando-se nas línguas românicas – dentre elas, o português. Além de dar ao aluno uma
firme base para o estudo de Filologia Românica, o conhecimento dos processos que levaram à
dialetação do latim ilustrará a influência dos fatores externos (extralinguísticos) nas mudanças
linguísticas, seja no plano fônico, morfológico, sintático, semântico ou lexical.
Pode-se dizer que, basicamente, o que causou o distanciamento de todos os sermones
do antigo Império foram os fatores externos, como os povos pré-romanos que habitavam cada
região, o tipo e a época da romanização, o(s) povo(s) invasor(es) etc.
Apesar de ser um fator de grande relevância, a história externa quase não é levada em
conta no estudo da língua, no âmbito da sincronia. O mesmo não acontece com a Literatura,
que é sempre estudada com base no ambiente sócio-cultural e político que a envolve.
Considerando a história externa uma grande auxiliar na compreensão dos mecanismos
da língua, falaremos dela, com relação à língua portuguesa, a seguir.
52

3.3.2- História da língua portuguesa

Uma vez que a língua portuguesa é considerada uma evolução do latim, julgamos
conveniente começar sua história a partir da romanização da Península Ibérica.

________________________________
Como vimos no item anterior, após a queda do Império, as forças centrípetas,
que mantinham uma relativa unidade linguística e cultural, desapareceram. A
única força unificadora remanescente era a Igreja. Essa força, segundo
Gladstone Chaves de Melo, desde o Império conclamava os homens “a uma
união superior de fé, justiça e caridade” (MELO, 1981, p. 70). Embora fosse uma
força centralizadora de poder e ditasse regras morais para os reinos nascentes, a
Igreja adotou um latim que, se bem mais simples que o literário, era, porém, mais
culto e refinado que o sermo plebeius. Sem encontrar mais nenhuma força
coercitiva, a dialetação do latim vulgar da România correu livre, então, tornando
os falares regionais cada vez mais distante uns dos outros.
Conforme já foi visto, há que se levar em consideração, na investigação da
evolução de uma língua, as influências que esta sofreu ao longo de sua história.
Alguns fenômenos linguísticos são panromânicos, isto é, ocorreram no LV de
toda a România (como a redução do número das declinações, do número dos
casos e do número das conjugações verbais, o uso frequente de diminutivos,
etc.). Podemos citar como exemplo a palavra latina auris, de cujo diminutivo –
auricula – evoluíram as palavras românicas: orelha (port.), orecchio (ital.), oreille
(fr.), oreja (esp.).
Os filólogos são unânimes quanto aos motivos da dialetação da România. É
sabido que variados fatores levaram a essa diversidade de falares. Um deles é,
sem dúvida, o fato de que os povos nativos das regiões conquistadas, embora
adotando o latim, emprestavam a este os hábitos de sua língua materna. Isso
dava ao latim matizes diferentes, conforme a região a que era transplantado.
A época em que se deu a colonização da região é também um importante
fator de diferenciação dos falares. Roma se expandiu ao longo de mais de um
milênio. Embora se considere o latim vulgar somente a partir do século III a.C., é
certo que, ao longo dos séculos, a língua (ao menos a falada) não se manteve
estática e uniforme.
53

Assim, o latim levado à Gália Cisalpina, por exemplo, colonizada em 228 a.C,
certamente não foi o mesmo levado à Gália Lugudunense, colonizada em 52
a.C., quase duzentos anos mais tarde. Esse enorme espaço entre as duas
colonizações é, seguramente, um dos motivos da separação linguística existente
entre o norte e o sul da França de hoje.
________________________________

Conhecer detalhadamente os motivos da dialetação do latim, como já dissemos, dará


ao graduando uma boa noção dos mecanismos da língua, bem como dará base para o estudo
de Filologia Românica.
Um ponto importante, porém não contemplado nos programas de História da Língua
Portuguesa das três instituições analisadas, é a influência da Igreja Romana sobre os reinos
que se formaram após a queda do Império e, consequentemente, sobre suas línguas. Além de
ajudar a manter o latim como língua de cultura, na Europa, foi ela quem preservou o alfabeto
latino entre os povos que seguiam a sua doutrina. Os povos que seguiam a Igreja Ortodoxa,
fortemente enraizada no Império Bizantino – helenizado –, adotaram o alfabeto cirílico,
criado parcialmente com base no alfabeto grego.
Também foi graças à influência da Igreja Romana que, veremos mais adiante, formou-
se o Reino de Portugal, no movimento cristão que expulsou os mouros da Península Ibérica.
No momento, no entanto, veremos a importância do conhecimento da história da
romanização da Península.

________________________________
Quando os romanos, após a segunda Guerra Púnica, chegaram à Península,
encontraram vários povos ocupando aquele território. Por questões tanto
geográficas quanto de rivalidade entre tais povos, os dominadores dividiram a
Península Ibérica em Hispania Citerior (mais tarde Terraconense, Cartaginense
e Galécia) e Hispania Ulterior (depois Bética e Lusitânia).
Com exceção dos celtas, os outros povos que habitavam a Hispania pré-
romana não eram de origem indo-européia. Dentre eles, os principais são os
bascos, os lusitanos1 e os iberos. Estes últimos se miscigenaram com os celtas,
dando origem ao povo celtibero.
Silveira Bueno, em seus Estudos de filologia portuguesa, afirma que foi
grande a influência celta na fonética do português. Citando o linguísta francês
Albert Dauzat, que atribui aos celtas algumas características fonéticas peculiares
54

do francês, diz que essas características também existem no português.


Segundo ele, foi profunda e perdurável a influência celta na Gália e na Lusitânia:
O fundo celta dos portugueses é, na nossa insignificante opinião, a causa
principal de seu dialetismo tão diferente do resto da península, sobretudo,
pelo anasalamento das vogais, pela sonorização das consoantes surdas, pela
queda das consoantes intervocálicas, pela formação numerosa dos ditongos,
fenômenos que mais aproximam o português do francês do que o restante
linguístico da Espanha atual. [...] Mais tarde, quando os franceses vieram
para a formação do reino com Henrique de Borgonha, esta influência não fará
mais do que robustecer-se e firmar-se definitivamente. (BUENO, 1967, p. 39)

Gladstone Chaves de Melo diz, em relação aos falares da Península, que “o


latim da periferia veio a ser mais conservador que o do centro, donde se infere a
existência de uma dialetação intra-peninsular, que já pode ser a primeira
explicação para a discrepância luso-castelhana” (MELO, 1981, p. 69). Ele ainda
diz que foi a partir de Augusto que se deu a romanização efetiva da Ibéria,
depois de vencida a resistência lusitana, chefiada por Viriato. Com exceção da
região dos bascos, o latim foi adotado como língua-comum de toda a Península.
A colonização da Ibéria se deu em duas direções: primeiro a Hispania Citerior
e, quase um século depois, a Hispania Ulterior. Não só o tempo as separa, mas
também o tipo de colonização que se deu em cada lugar. A colonização da
primeira teve caráter militarista e vulgar (após a segunda guerra púnica),
enquanto a presença romana na segunda, colonizada pela aristocracia e
administrada pelo Senado, teve várias escolas, que proporcionaram uma
romanização de veia mais culta. Ilari afirma que essas circunstâncias são tidas
como motivo do caráter arcaico dos dialetos atuais da Hispania Ulterior.
Argumentando sobre as causas das diferenças entre o português e o
castelhano, Silveira Bueno diz que os lusitanos e galegos viveram juntos, na
região entre os rios Douro e Minho, “resultado étnico de iberos primitivos e de
celtas e mais tarde grandemente influenciados pelos suevos que na Galícia
estabeleceram sua monarquia [...]” (BUENO, 1967, p. 39). Diz ele, ainda:
Neste fato geográfico, a separação do território nas montanhas; neste outro
histórico – a tardia romanização dos lusitanos e naquele outro da sua mescla
racial, temos alguns dos mais importantes fatores da formação especial do
seu dialeto e mais tarde do seu idioma. O latim penetrado na Lusitânia
provinha do oeste da Itália, da região dos Abruzos e dos genoveses; vários
fatos fonéticos ainda atuais no português já traziam a sua origem da Itália.
Menéndes Pidal [...] dá-nos alguns desses fenômenos, tais como a:
palatalização de CL, FL, PL – Clave = Chave; Flamma = Chama; Pluvia =
Chuva. Isto significa que a dialetação do latim já havia começado na própria
Itália, na época em que os romanos conseguiram entrar em contacto com os
lusitanos. (1967, p. 39)
______
1
Há quem considere os lusitanos como indo-europeus.
________________________________
55

Tomar conhecimento dos povos que habitaram a Península antes dos romanos
auxiliará o graduando a compreender a questão dos substratos.
Quando um povo conquistador domina um território, sempre encontra povos
indígenas. O que acontece, então, via de regra, é que a língua e a cultura do colonizador se
impõem ao povo colonizado. Antes, porém, da assimilação total ocorrer, há um período mais
ou menos longo de transição, em que as duas culturas e línguas convivem lado a lado. É em
consequência do bilinguismo desse período de transição que advém o substrato.
A palavra manteiga, por exemplo, é atribuída a um substrato pré-romano da Península
Ibérica, uma vez que só aparece nas línguas dessa região – manteiga (port.) e manteca (esp.),
mas burro (it.) e beurre (fr.), originadas de um étimo distinto (butyrum). Já a palavra carro,
substrato gaulês, é panromânica – carro (port., esp., cat. e it.), char (fr.) e car (rom. e prov.)13.

________________________________
Outro fator que contribuiu para o distanciamento dos falares vulgares da
România foram as invasões bárbaras. Esse fato teve importantes
consequências, como o fechamento das escolas e o desaparecimento das elites
culturais. Desmantelado o poder unificador das escolas, cada língua vulgar
seguiu livremente sua deriva. O latim, já dialetado, conheceu invasores bárbaros
de tribos diferentes, recebendo influência de seus idiomas.
As invasões bárbaras não se deram todas ao mesmo tempo, nem por um só
povo. Dos povos que invadiram a Península Ibérica, os principais são:
A) Vândalos e Alanos– Detiveram-se alguns anos na Gália e na Ibéria, onde
fundaram um reino – Vandalucia – que deu nome à região onde se situava, a
atual Andaluzia. Retiraram-se, depois, para o norte da África.
B) Suevos – Fundaram um reino na região noroeste da Hispania, ocupando
o equivalente ao território da Galícia e ao norte de Portugal.
C) Visigodos – Já estavam sediados no sul da França, como federados
romanos antes da queda do Império. Em 507 os francos os expulsaram para a
Ibéria, onde fundaram um reino cristão, lá permanecendo até serem
conquistados pelos árabes, em 711.
D) Árabes – Tendo conquistado territórios no norte da África no séc. VII,
invadiram a Península Ibérica em 711, tomando-a quase toda. Ocuparam
também a Sicília.
Com exceção dos árabes e dos alanos, os povos que invadiram a Hispania
eram de origem germânica, cristianizados e que rapidamente adotaram a língua

13
Cf. Le Nouveau Petit Robert.
56

e, em parte, a cultura latinas. A adoção da língua latina não se deu, no entanto,


sem a adaptação desta aos hábitos linguísticos de seus novos falantes.
Esses fatores, somados a certo isolamento linguístico-cultural de cada reino,
propiciaram o distanciamento cada vez maior dos falares regionais e a
consequente transformação desses em línguas nacionais.
Em relação às invasões bárbaras, são os autores bem sucintos. Ao que
parece, durante os quase trezentos anos em que estiveram na Hispania, os
invasores germânicos fizeram muito pouco pela cultura e pela língua do território
conquistado. Paul Teyssier diz que eles “tiveram um papel particularmente
negativo. [...] Se o latim escrito se manteve como a única língua de cultura, o
latim falado evolui rapidamente e diversifica-se” (TEYSSIER, 2001, p. 5).
Gladstone Chaves de Melo dá alguma importância aos suevos,
argumentando que o fato de terem eles habitado a região onde mais tarde
constituiu-se o galego-português é algo que não se deve ignorar.
Afora o comentário acima, o que se atribui aos bárbaros que se instalaram na
Península é simplesmente o legado de algumas palavras referentes aos seus
usos e costumes, que designam nomes de armas, vestimentas, de pessoas etc.
________________________________

Sabemos que a língua de um povo conquistado pode influenciar a do povo


conquistador – é o que chamamos de substrato. Ma há também outros tipos de ‘fenômenos’
linguísticos decorrentes da relação entre povos, como o superstrato (ou superestrato) e o
adstrato.
Superstrato é o “nome que se dá à língua de um povo conquistador, quando ele a
abandona para adotar a língua do povo vencido. O superstrato persiste no léxico da língua
adotada, que se enriquece com termos referentes a traços específicos da cultura do povo
conquistador.” (CÂMARA JR., 2007, p. 286). As línguas germânicas dos povos que
invadiram a Península Ibérica (todo o Império, na verdade) são um exemplo de superstrato.
A influência germânica no latim teve dois momentos: a) antes do fim do Império,
quando os germanos habitavam o território romano, como federados; b) após a queda do
Império, quando os germanos fundaram reinos bárbaros na antiga România, abandonando sua
língua em favor do latim.

________________________________
57

Mais expressivo, no entanto, foi o legado árabe, não só à península Ibérica,


mas a toda a civilização européia. Como legado mais patente, tem-se a adoção
dos algarismos arábicos (muito mais simples que os romanos) e o conceito do
zero.
A civilização árabe era muito superior à dos povos peninsulares, esclarece
Ismael da Silva Coutinho, em sua Gramática Histórica. Ciências como a
Medicina, a Filosofia, a Astronomia, a História, entre outras, eram bastante
difundidas entre eles. Também as artes floresceram durante domínio árabe,
assim como a agricultura, o comércio e a indústria.
Por motivos provavelmente religiosos, os povos da Península (cristãos) não
se assimilaram aos árabes (muçulmanos) como se assimilaram aos romanos. É
certo que houve os “moçárabes”, cristãos que adotaram a cultura e a língua
árabes, mas que também continuavam usando o seu romance (certamente muito
mais impregnado de elementos árabes que os outros romances peninsulares).
Eles chegaram a escrever esse romance em caracteres árabes, escritos esses
chamados ‘aljamia’ (“língua estrangeira”). Mas se houve influência, não houve
suplantação de uma língua pela outra, e sim um período de bilinguismo. O árabe
usado pelos moçárabes era tão impregnado de elementos do seu romance, que
Silveira Bueno diz que, na verdade, foi o romance que influenciou o árabe, e não
o contrário.
Os árabes deixaram um enorme legado ao léxico das línguas ibéricas, é
certo, mas o movimento da Reconquista teve consequências mais profundas nas
línguas dos territórios reconquistados.
O norte da Península jamais se submeteu ao jugo muçulmano, e foi daí, com
a ajuda de cruzados franceses, que pouco a pouco foi-se reconquistando as
terras aos mouros.
________________________________

Tanto no substrato quanto no superstrato há a suplantação de uma língua por outra. O


mesmo não ocorre com o adstrato – palavra que designa toda língua que convive com outra,
no mesmo território, influenciando-a como fonte de empréstimos. Exemplo de adstrato é o
árabe, em relação ao romanço ibérico.
O árabe que chegou à Península Ibérica tinha uma peculiaridade. Ele foi levado pelos
berberes, que eram povos do norte da África que falavam uma língua da família das camito-
semíticas (aparentada com o árabe). Eles foram conquistados pelos muçulmanos e acabaram
58

se convertendo ao islamismo e adotando a língua de seus conquistadores. O árabe que os


berberes falavam, no entanto, tinha ‘sotaque’. Disso resulta que, ao falarem, aglutinavam
artigo e substantivo, dando a impressão, para quem ouvia, de se tratar de uma única palavra.
Temos, assim, as palavras açúcar (port.) e azúcar (esp.) (< as- sukkar) e algodão (port.) e
algodón (esp.) (< al-qutun), por exemplo (cf. HOUAISS).
Os berberes também invadiram a Sicília, no século IX, mas como havia lá uma forte
liderança árabe, tais palavras entraram na língua italiana sem a aglutinação do artigo –
zucchero (< zukkar) e cotone (< qutun). (cf. Il Sabatini Coletti). Do italiano, elas passaram
para o francês – sucre e coton –, donde, por sua vez, passaram ao inglês – sugar e cotton.

________________________________
A luta conta o Islã, as Cruzadas, não se dirigiam somente à Terra Santa.
Cavaleiros (predominantemente franceses) eram enviados à Hispania para
livrá-la do domínio muçulmano. Dessa forma, D. Henrique de Borgonha, nobre
francês, recebeu de D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, a mão de sua filha
ilegítima, D. Tareja, e o Condado Portucalense.
Paul Teyssier diz que a invasão muçulmana e a Reconquista determinaram,
em parte, a formação das três línguas da Península – o galego-português, o
castelhano e o catalão, todas elas línguas do norte levadas ao sul pela
Reconquista.
Com a tomada de Foro, em 1249, estava definido o território de Portugal. A
língua de cultura que ali floresceu foi o galego-português e, depois, o provençal,
que invadiu (como língua de cultura) toda a Península. Sobre a influência do
provençal, diz Silveira Bueno:
Em todas estas expedições guerreiro-religiosas predominavam os francos e
boa parte deles se deixou ficar em Portugal cujos portos eram os mais
importantes no momento. Mais tarde vamos ter príncipes portugueses que
serão educados em cortes francesas como D. Fernando III e outros como D.
Dinis que cresce em meios literários onde predomina a arte e a língua
provençal. Nada portanto de admirar que o provençal tenha tido tanta
influência na formação linguística e sobretudo artística de Portugal até as
vésperas da época clássica do século XVI quando Camões fazia eco a Gil
Vicente, compondo ao gosto antigo, em medida velha, como sempre fizeram
os grandes trovadores do século XII para depois. (1967, p. 44)
________________________________

A primeira dinastia de Portugal, a de Borgonha, é de origem francesa. Não é de se


estranhar, portanto, a influência que o francês e o provençal exerceram sobre a língua
portuguesa.
59

Um bom exemplo dessa influência é o uso de grafias francesas e provençais para


representar fonemas que não existiam no latim e que, portanto, não tinham nenhum símbolo
do alfabeto latino que equivalesse a eles. Assim, a africada [tp] (que depois passou a [p]) é
grafada ch , de origem francesa, e as palatais […] e [M] são grafadas, respectivamente, lh e nh,
de origem provençal.
Segundo Williams (1975, p. 31), uma das razões para o português ser uma língua
distinta do espanhol é a influência que aquele recebeu do francês.

________________________________
Em relação à língua portuguesa, formas vernáculas são encontradas em
documentos escritos em latim bárbaro já no século IX (do que se pode
depreender que o galego-português já era falado nessa época), porém é
somente no século XII que aparecem textos escritos totalmente em galego-
português.
A luta de Portugal contra os castelhanos, que queriam reincorporá-lo ao seu
território, e contra os mouros acabou criando nos lusitanos um sentimento
patriota, que os fazia firmarem sua identidade nacional distanciando-se da língua
dos inimigos, e apegando-se às características arcaizantes do dialeto de sua
pátria.
Ismael de Lima Coutinho diz que a primeira forma literária cultivada foi a
poesia, inspirada pelos cantores provençais. No século XV várias obras latinas,
francesas e espanholas foram traduzidas para a língua vulgar de Portugal, que a
essa altura, já estava bastante distanciada do galego.
Com o Renascimento, no século XVI, chega a era de ouro da literatura (e da
língua) portuguesa. A língua é enriquecida com vários empréstimos feitos ao
latim, surge a gramática, organizando e disciplinando a língua e surgem grandes
nomes da literatura lusitana de todos os tempos, como João de Barros, Sá de
Miranda, Gil Vicente e o maior gênio da literatura portuguesa – Luís de Camões.
________________________________

De certo modo, podemos dizer que a formação de uma língua é um processo


espontâneo, atrelado, basicamente, a questões de ordem sócio-cultural. A afirmação de uma
língua, no entanto, como língua oficial de uma nação, está envolvida em questões não só
sócio-culturais, mas também políticas.
60

Assim aconteceu com a língua portuguesa. Já distanciada das línguas do reino vizinho,
o português serviu de bandeira identitária para a afirmação do reino nascente, congregando
todo o povo. O uso de uma língua diferente foi, certamente, um instrumento político na
afirmação do Reino de Portugal como ‘nação’ (embora, à época, tal termo ainda não existisse)
independente e não submissa ao Reino de Leão e Castela.
As considerações que tecemos acima são reflexões básicas para o estudo de
Dialectologia, disciplina que faz parte do currículo de Letras.
Também é importante ressaltar a importância dos grandes escritores para o
estabelecimento/estruturação de uma língua. Lembrar os elementos da gramática
estabelecidos por Varrão – natura, analogia, consuetudo e auctoritas14 –, torna mais fácil,
para o graduando, a compreensão da importância de Luis de Camões para o estabelecimento
da língua portuguesa padrão.
Não é sem razão que Coutinho (2005, p. 57) divide a época histórica da língua
portuguesa em duas fases: a arcaica (século XII ao XVI) e a moderna (século XVI em diante).
A fase moderna é justamente a que tem início a partir de Camões e de outros grandes
escritores.

________________________________
Romanço
Romanço (ou romance), grosso modo, é o termo que designa a língua
intermediária entre o latim e as línguas românicas. Quando se refere à ‘língua
vulgar’ de determinada região, vem acompanhado do adjetivo referente a esta
(galo-romance, ítalo-romance, ibero-romance etc.).
Durante séculos o latim foi a única língua escrita na Europa Ocidental. Como
a maioria da população era analfabeta, e o saber estava praticamente encerrado
nos mosteiros, a dialetação do latim foi se intensificando, sem que os falantes se
apercebessem de tal fato.
Antes de as línguas nacionais se firmarem, houve a lenta (mas constante)
passagem do latim para as ‘línguas vulgares’ (os romanços). O pequeno
renascimento trazido por Carlos Magno (séc. IX) fez com que as confusões entre
latim e ‘vulgar’ diminuíssem, uma vez que, com o estudo mais aprofundado do
latim, as diferenças entre este e a língua falada ficaram mais evidentes.

14
Em De Sermone Latino, o gramático Varrão estabelece os fundamentos da latinidade “como sendo natura, analogia,
consuetudo e auctoritas, isto é, a natureza da linguagem, as regularidades da gramática (como evitar exceções), o uso firmado
e a autoridade de personalidades importantes, principalmente os grandes escritores” (CÂMARA JR., c1975, p. 28). As
gramáticas normativas atuais, ao menos a maioria delas, ainda são estruturadas segundo esses fundamentos.
61

Fontes dos romanços:


Antes dos textos, os primeiros ‘testemunhos’ da existência dos romances
são:
 Latim bárbaro – língua (somente escrita) usada por notários e tabeliães,
em que se infiltrava vez ou outra um elemento da língua vulgar.
 Glosas – anotações entre as linhas ou na margem de um texto para
explicar o sentido de uma palavra fora de uso, ou esclarecer uma
passagem obscura. Consistiam, muitas vezes, em traduções de um
trecho inteiro (daí a palavra ‘glossário’).
Glosas de Reichenau (séc. VIII) – provenientes, aparentemente, da
França setentrional, essas glosas dividem-se em duas partes: a primeira
(possivelmente mais antiga) traz a explicação de algumas palavras da
Vulgata; a segunda (mais recente, talvez) forma um pequeno dicionário
em que palavras e expressões do latim clássico são traduzidas para a
língua vulgar (o ‘vulgar’ francês, no caso):
in ore: in bucca / uulnera: plaga / caseum: formaticum /
canere: cantare / iecore: ficato / pulcra: bella / res: causa
________________________________

O conceito de romanço, bem como o conhecimento de suas fontes, são noções


fundamentais para o graduando de Letras. Além de fazerem parte dos conhecimentos gerais
que o estudioso deve ter da língua, a noção de romanço e de suas fontes também será de
grande utilidade no estudo de Dialectologia e de Filologia Românica.

________________________________
O Português
Julgamos conveniente transcrever as considerações de Edwin Williams sobre
o fato de ser o galego-português uma língua diferente da do resto da Península:
À pergunta frequentemente formulada – ‘por que se desenvolveu uma língua
autônoma na extremidade ocidental da Península Ibérica?’ – a resposta
parece ser:
a) porque houve insulamento geográfico por altos planaltos e terras ermas;
b) porque houve menor influência germânica no período crítico da formação;
c) porque adveio a independência política em meados do século XII sob a
chefia extraordinária de um sábio e intrépido estadista;
d) porque houve o triunfo final, a despeito da oposição política e literária, do
espírito dos críticos daquele século XVI, que acreditavam que sua língua era
digna de preservação como idioma autônomo, e
e) porque houve uma segura e crescente influência do francês.
Nota: A influência céltica tem sido alvitrada como causa do desenvolvimento
do português como língua autônoma. (1975, p. 31)
62

Fases da Língua Portuguesa


A história da língua portuguesa divide-se em três épocas:
 pré-histórica – que começa com as origens da língua e se estende até
o século IX (surgimento dos primeiros documentos latino-portugueses);
 proto-histórica – que vai do século IX ao XII (palavras portuguesas
encontradas em textos escritos em latim bárbaro);
 histórica – que tem início no século XII (aparecimento de textos
escritos totalmente em português).
A época histórica divide-se, por sua vez, em duas fases:
 arcaica (século XII ao XVI)
 moderna (século XVI em diante).
________________________________

As considerações de Williams sobre as questões externas que resultaram na


diferenciação do português em relação às outras línguas da Península Ibérica ajudarão o
graduando a compreender os processos de formação de uma língua-tronco (o latim), desde o
começo simples e concreto, até o estágio de ‘refinamento’ e complexidade, capaz de ser
veículo de grandes obras literárias.
Acompanhando os fatores históricos que culminaram na queda do Império Romano, o
aluno compreenderá como se dá a dialetação da língua (em virtude do desaparecimento das
forças centrípetas), passando esta por um processo intermediário (os romanços15), até que, por
fim, os dialetos, já muito distanciados uns dos outros, firmam-se como línguas distintas.
Tal conhecimento, além de ser bastante útil como base para as disciplinas
Dialectologia e Filologia Românica, facilitará a compreensão de que, por exemplo:
 A língua está em constante transformação (mesmo agora, no decurso de nossa vida).
 Muitas transformações são cíclicas, fazendo parte das tendências típicas de uma
determinada língua (como o rotacismo, em português).
A visão da língua portuguesa numa linha do tempo (sua divisão em ‘fases’) propiciará
ao graduando algumas noções, como:
 O aparecimento de textos de uma determinada língua indica que, se ela passou a ser
grafada, é porque já existia havia algum tempo.

15
O termo romanço"aplica-se, de preferência "para designar a fase final do latim vulgar imperial, depois do século III d.C.,
quando já contrasta com o latim clássico em virtude de profundas inovações[...] e se diferencia de região para região na
România (v.), como fase preliminar das línguas românicas; daí, fala-se em romanço ibérico e, mas particularmente, romanço
português, que se situa entre os séc. V e o séc. IX". (CÂMARA JR., 2007, p. 262)
63

 Os grandes escritores são tomados como exemplo, quando surgem as gramáticas


normativas de uma língua.
 Sem documentos escritos, o estudo de uma língua do passado, que não tenha
‘descendentes’ é quase sempre inviável.
 A escrita – os documentos escritos, na verdade – é o que permite o estudo histórico
das línguas (e das culturas que elas expressam).
O estudo da história de uma língua só é possível através de textos. É necessário,
portanto, conhecer a sua ortografia ao longo do tempo. Não se pode falar de ortografia, no
entanto, sem falar da língua que ela pretende notar.
O português, como qualquer língua natural, nasceu apenas falado. Fazendo uso do
alfabeto latino, mas tendo fonemas que o latim não possuía, a língua portuguesa precisou
recorrer a símbolos que não existiam naquele alfabeto (como o j), além de se valer de
dígrafos, emprestados, como vimos, do francês (ch) e do provençal (lh e nh). Também adotou
a cedilha dos espanhóis, usado sob a letra c (ç)16.
Um grande aliado, nos estudos literários, é o conhecimento da ortografia em suas
diversas fases. Será de grande valia, para o graduando, conhecer ou ter noções da ortografia
do período fonético, quando estudar as Cantigas de Amor e de Amigo, em Literatura
Portuguesa. No caso de uma iniciação científica, por exemplo, ter noções da ortografia no
período etimológico será, certamente, um instrumento valioso no estudo de documentos do
nosso período imperial, ou no estudo filológico de autores como Machado de Assis, José de
Alencar e Castro Alves, por exemplo.

________________________________
A Grafia/Ortografia da Língua Portuguesa

Durante grande parte da Idade Média o latim foi a única língua escrita na
Europa Ocidental. O fato de ser a língua oficial da Igreja certamente contribuiu
para fazer do latim a língua de cultura de todo o Ocidente. A língua usada pelo
povo, porém, já se distanciara havia muito tempo, não só da língua escrita, mas
também daquelas faladas em outras regiões da antiga România.
Com a afirmação dos reinos nascidos durante a Reconquista, as atenções se
voltam para a língua vulgar (como era chamada a língua falada pelo povo,
incluindo-se, nesse, a elite), já diferenciada do latim. Essas línguas começaram a

16
Embora seja de origem espanhola, o espanhol não faz mais uso da cedilha. O português e o francês, no entanto continuam
fazendo uso dela.
64

ser valorizadas e, de certa forma, usadas como ‘bandeiras’ das identidades


nacionais.
O território português passou a existir, politicamente falando, no final do
século XI, tornando-se reino em meados do século seguinte. Em fins do século
XII e princípios do século XIII surgem os primeiros documentos escritos em
língua portuguesa – e assim começa a história de sua ortografia.
Os estudiosos dividem a história da ortografia de nossa língua em três
períodos: o fonético, o pseudo-etimológico e o simplificado:

 Período fonético
O período fonético coincide com a fase arcaica, tendo início com os
primeiros documentos escritos em português – século XII –, terminando no
século XVI, com o surgimento dos primeiros tratados de ortografia.
Durante esse período, a grafia procurava reproduzir a língua falada.
Havia, no entanto, alguns obstáculos. As letras do alfabeto representam os
sons elementares da fala. Sabemos que o alfabeto adotado por todo o
Ocidente Europeu para grafar as línguas nascentes foi o latino. Esse
alfabeto se prestava bem para notar o latim clássico, pois representava, ao
que parece, todos os seus fonemas, mas as línguas românicas possuíam
fonemas que não existiam no LC, como as consoantes palatais e as
constritivas sonoras.
Como, então, notar tais sons, fazendo-se uso de um alfabeto que não
possuía símbolos para representá-los? Esse pequeno empecilho não parece
ter causado grandes constrangimentos, pois os textos demonstram que
várias soluções foram encontradas e amplamente usadas. É prova disso a
variedade de grafias de uma mesma palavra, muitas vezes em um mesmo
texto.
 Período pseudo-etimológico
No século XVI, a volta aos ideais clássicos, trazidos pelo
Renascimento, deu à nossa ortografia uma nova feição. O critério
preponderantemente fonético, utilizado durante todo o período arcaico, foi
substituído pelo etimológico.
Letras foram introduzidas nas palavras, não por seu valor fonético,
mas pelo etimológico. Surgiram, então, grafias como somno, damno,
prompto etc.
Nessa época aparecem os primeiros tratados de ortografia: Regras de
Escrever a Ortografia da Língua Portuguesa (1574), de Pêro Magalhães de
65

Gândavo, e Ortografia da Língua Portuguesa (1576), de Duarte Nunes do


Leão. Nos séculos XVII e XVIII, continuam a ser escritos tratados de
ortografia.
 Período simplificado
Com a proclamação da República em Portugal (outubro de 1910),
uma reforma ortográfica foi requisitada a um grupo de renomados linguistas
lusitanos, dentre os quais Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Carolina
Michaëlis, José Joaquim Nunes, Adolfo Coelho, e Epifânio Dias.
Essa reforma foi tornada obrigatória para Portugal e seus domínios,
em 1911, e teve como guia os princípios estabelecidos por Gonçalves
Viana:
1. Proscrição absoluta e incondicional de todos os símbolos de etimologia
grega, th, ph, ch (=k), rh e y.
2. Redução das consoantes dobradas a singelas, com exceção de rr e ss
mediais, que têm valores peculiares.
3. Eliminação das consoantes nulas, quando não influam na pronúncia da
vogal que as preceda.
4. Regularização da acentuação gráfica (Viana apud COUTINHO, 2005, p.
78)

A reforma portuguesa foi feita sem consulta aos linguistas brasileiros, o que
causou uma disparidade entre as grafias, embaraçando, assim, o intercâmbio
literário entre os dois países. Visando à correção dessa falha, a Academia das
Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras (ABL) firmaram um Acordo
gráfico, tornado obrigatório, pelo Governo Brasileiro, em todo o território
nacional.
Em 1943, os dois países tentam um novo entendimento, de onde resultou o
Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, redigido pela Academia
Brasileira de Letras.
Este Vocabulário serviu de referência até aos nossos dias, e impunha como
regras o seguinte:

 Emprego do H:
O H não tem valor fonético na língua portuguesa, como já não o tinha
no Latim. Só se emprega como inicial quando a etimologia o exige:
hoje,
haver,
hélice; etc.

Como medial, só se emprega nos dígrafos CH, LH e NH:


mancha,
malha,
66

vinho, etc.

 Emprego do CH:
O dígrafo CH, inexistente em Latim, é o resultado da evolução fonética dos
grupos consonantais latinos PL, CL e FL:
pluvia > chuva;
masclu > macho;
afflare > achar; etc.

 Emprego do X:
O X português corresponde:
a) ao X latino:
coxu > coxo;
laxare > deixar;
examen > exame;
exaguare > enxaguar; etc.

b) à palatalização do S em grupos como SSI ou SCE:


passione > paixão;
russeu; > roxo;
pisce > peixe;
miscere > mexer; etc.

 Distinção entre S e Z:
__ Escreve-se com S:
a) Quando a letra S portuguesa corresponde a um S latino:
mensa > mesa;
rosa > rosa; etc.

b) nos sufixos -ESA e -ISA, quando referidos a títulos nobiliárquicos


e a profissões:
princesa;
poetisa etc.

__ Escreve-se com Z:
a) Nos casos em que o Z resulta da evolução dos grupos TI, CI e CE
latinos:
ratione > razão;
vicinu > vizinho;
feroce > feroz; etc.
67

b) Nos substantivos abstratos derivados de adjetivos qualificativos:


beleza, pobreza, robustez, altivez, etc.
c) No sufixo -IZAR: organizar, civilizar, e seus derivados:
organização, civilização; etc.

 Emprego de SS:
__O S surdo português, em posição medial, geralmente
provém:
a) de um SS latino: ossu > osso; assistire > assistir; etc.
b) de uma assimilação: ipse > esse; persona > pessoa; dixi (dicsi) >
disse; etc.

 Emprego do Ç:
O Ç provém da evolução de CE, CI, TE e TI latinos seguidos de vogal: lancea
> lança; minacia > ameaça; matea > maça; pretiu > preço.

 Distinção entre G e J:
a) O G português representa geralmente o G latino: gelu > gelo;
agitare > agitar; etc.

b) o J provém:
 da consonantização do I semiconsoante latino: iactu > jeito;
iam> já; maiestate > majestade; etc.;
 da palatalização do S + I / E, ou do grupo DI / DE+ Vogal:
basiu > beijo; caseu > queijo; hodie > hoje; video > vejo; etc.

Em 1971 um novo acordo foi firmado, aproximando mais a ortografia dos dois
países.
As divergências, porém, continuaram, impedindo a unificação intercontinental
da língua portuguesa e afetando seu prestígio no cenário mundial
Com vistas a uma unificação definitiva entre as duas grafias (lusitana e
brasileira), um novo acordo foi elaborado em 1990, que é o mesmo que,
atualmente, tem gerado algumas confusões.
Em 2008 adota-se uma versão adaptada do Acordo de 1990.
________________________________

O conhecimento das regras impostas pelo Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua


Portuguesa, de 1943, ajudará o graduando a compreender a ‘razão de ser’ de algumas regras de nossa
ortografia – razão de cunho etimológico (no âmbito da diacronia, portanto).
68

Terminamos, aqui, nossos comentários sobre a história externa da língua portuguesa e


a importância que ela tem para a formação do graduando de Letras. Comentaremos, a seguir,
a relevância dos tópicos de história interna da língua portuguesa para a formação do estudioso
da língua.

3.4- História Interna da Língua Portuguesa – Linguística Diacrônica/Gramática


Histórica

A história interna de uma língua diz respeito às alterações internas por que ela passou
ao longo do tempo. Por alterações internas entende-se toda e qualquer mudança que se dê no
âmbito intralinguístico. Desse modo, trata a Gramática Histórica das alterações fonéticas,
morfológicas, sintáticas e semânticas sofridas por uma língua no decorrer de sua história.
Passaremos em revista, neste capítulo, ainda que de forma resumida, os tópicos da
Gramática Histórica de nossa língua, e teceremos comentários acerca da relevância de cada
conteúdo para a formação do graduando de Letras.

3.4.1- Fonética histórica

O estudo de história interna da língua portuguesa norteia-se, principalmente, pelas


mudanças fonéticas ocorridas do latim clássico para o latim vulgar e deste para o português.
Isso acontece por ter sido a Fonética Histórica o ponto mais estudado desde o começo dos
estudos diacrônicos, seguido da Morfologia/Morfossintaxe Histórica.
No estudo da Fonética Histórica torna-se imprescindível o estudo da pronúncia do
latim, para que seja possível acompanhar a evolução dos sons da língua matriz para as que
dela se originaram. Embora as línguas românicas derivem da modalidade ‘vulgar’ do latim, o
LV, como vimos, é múltiplo, variando diastrática, diafásica, diatópica e diacronicamente. O
mais conveniente, então, é partir da pronúncia do latim clássico, mais facilmente
reconstituível e menos sujeita a variações.

________________________________
69

O alfabeto latino
No período clássico (sécs. I a.C. e I d.C.) o alfabeto latino compunha-se de
vinte e três letras:

A B C D E F G H I K L M N O P Q R S T V X Y Z

As duas últimas foram acrescentadas ao final do alfabeto por influência do


helenismo, e eram utilizadas, em princípio, para grafar apenas palavras de
origem grega. Como informa Faria, os nomes dessas letras eram: “a, be, ce
(quê), de, e, ef, ge (guê), ha (pronuncie-se o h aspirado), i, ka, el, em, en, o, pe,
qu, er, es, te, u, ix, upsilon (ou Hy, ou i graeca), zeta” (FARIA, 1970, p. 52)
A letra K, porém, caiu em desuso quase total, sendo substituída pelo C. Era
usada raramente, figurando apenas em palavras estrangeiras ou em
abreviaturas. A letra I representava o i vogal e o i consoante, assim como o V
representava tanto o u vogal quanto o u consoante – o i e o u consoantes são
resquícios das antigas soantes do indo-europeu, que eram fonemas instáveis,
que soavam ora como vogal, ora como consoante. (Cf. FARIA, 1970, p. 13)
O Y e o Z representavam sons da língua grega que o latim não possuía: o Y
representava um som intermediário entre o i e o u (como o u do francês) e o Z,
segundo Faria, representava a constritiva sonora [z], mas há também a hipótese
de que representasse a africada [dz] (tal como é pronunciada, hoje, em italiano).
O X era uma letra dúplice, representando dois sons, a saber, [ks]. O C e o G
representavam, respectivamente, o [k] e o [g], não importando a vogal que se
seguisse a eles. O R soava sempre como em praça, ou seja, era alveolar. O S
era sempre surdo, mesmo em posição intervocálica. O Q era sempre
pronunciado seguido de V [kw], não importando a vogal seguinte: QVE – [kwe],
QVI – [kwi].
Não havia, no alfabeto latino, nem o J nem o U, como também não havia
letras minúsculas. O j e o v (minúsculo, representando o fonema [v]) são
chamados letras ramistas, pois foi o humanista francês Pierre de la Ramée
quem, em sua gramática editada em 1559, uniformizou o uso dessas letras,
instituindo o u e o i para representarem as vogais [u] e [i], e o v e o j para
representarem as consoantes [v] e [Z], respectivamente.
As vogais latinas eram: A E I O V ([u]), que podiam ser longas ou breves.
No latim vulgar esse traço distintivo de quantidade foi desaparecendo, enquanto
o timbre (aberto ou fechado) foi ganhando importância.
70

Não havia, no latim clássico, consoantes palatais – [p] […] [Z] [M] – nem as
constritivas sonoras – [v] [z]. As palatalizações, segundo Teyssier, surgiram no
latim vulgar, na época imperial.
________________________________

Tendo, então, como base, a pronúncia do latim clássico, podemos passar ao estudo da
Fonética Histórica da Língua Portuguesa. Uma boa base de Fonética Articulatória e Fonologia
é instrumento indispensável para o estudo de Fonética Histórica, sem o que o aluno terá
grandes dificuldades na análise dos fenômenos observados.

________________________________
Os Processos Linguísticos – Do Latim ao Português
Como vimos, toda língua sofre transformações ao longo do tempo. Assim
também foi com o português. É função da gramática histórica observar tais
mudanças e como e quando elas ocorrem. Veremos, a seguir, a formação da
língua portuguesa do ponto de vista da Fonética, da Morfologia, da
Morfossintaxe e do Léxico.

Vocalismo
Em LC havia vogais breves e longas, tendo a quantidade destas valor
distintivo (casă – ‘a casa’ [nominativo], casā – ‘pela casa’, ‘por causa da casa’
etc. [ablativo]). O traço de quantidade, porém, começa a trazer confusão a partir
do século I, no LV, que culminou no desaparecimento da quantidade, primeiro
das vogais átonas, e, posteriormente, das tônicas (cf. COUTINHO, 2005, p. 101).
As vogais breves, em LC, tinham o timbre aberto, quer fossem átonas ou
tônicas, e as longas, timbre fechado. Em LV, no entanto, as vogais ĕ e ŏ tinham
o timbre fechado, quando átonas (cf. COUTINHO, 2005, p. 101-102).
O vocalismo do português é, dentre as línguas românicas, o mais fiel ao
latim. As observações do vocalismo do (LV), para as vogais tônicas, valem,
portanto, para o português:

Vogais Tônicas
LC LV
ā a
ă a
ē [e]
71

ě [E]
ī i
i
ĭ
ĭ > ē > e ([e])
ō [o]
ŏ [O]
ū u
ŭ u
ŭ > ō > o ([o])

Vogais pré-tônicas:
Das vogais átonas, as pré-tônicas da sílaba inicial foram as mais estáveis. A
queda dessa vogal, no entanto, pode ocorrer nas seguintes situações:
 Iniciais não apoiadas – epigru > prego, episcopu > bispo, Olissipona >
Lisboa
 Em sílaba não inicial, adjacentes à tônica – bonitate > bondade,
*verecunnia (por verecundia) > vergonha

Vogais pós-tônicas finais:


 i e u passam , respectivamente, a e e o – dixi > disse, fructu > fruto,
metu > medo
 e sofre apócope depois de r, l, s, z e n, quando essas consoantes
podem se juntar com as vogais da sílaba anterior – amore > amor,
crudele > cruel, mense > mês, vorace > voraz, pane > pan (arc.)

Vogais pós-tônicas não finais:


 Com exceção de a, em palavras proparoxítonas (vogais breves),
frequentemente sofrem síncope (queda) – calĭdu > caldo, littěra > letra,
lepŏre > lebre, mas calămu > cálamo. Essa tendência se manifesta
desde o latim imperial e visa a evitar a proparoxítona.

OBS: A queda da penúltima vogal breve terá como efeito o surgimento


de vários encontros consonantais, que terão destinos diferentes,
conforme veremos mais adiante
OBS 2: A vogal ĕ, em hiato, passou à semivogal i – vinea [’vinya];
palea [’palya].
72

I e V consoantes:
Grandgent diz que “o i e o u seguidos de uma vogal e começando sílaba
eram pronunciados, segundo parece, como consoantes desde os tempos
primitivos” (Apud COUTINHO, 2005, p. 107) – iuvene > jovem, ieiunare > jejuar,
uos > vos, uacare > vagar.

OBS: Em latim não havia as letras j e v. Essas letras, conhecidas como letras
ramistas, somente no Renascimento passam a ter seu uso uniformizado para
representar o [Z] e o [v], respectivamente.
________________________________

O estudo de Fonética Histórica pode tornar-se bastante interessante para o aluno, se


este for incentivado a observar no português atual os fenômenos que ocorreram no latim
vulgar e no português arcaico. A percepção do caráter cíclico desses fenômenos é uma boa
aliada contra o preconceito linguístico, além de abrir os olhos do aluno para o amplo
horizonte das mudanças linguísticas. Os fenômenos fonéticos são os mais facilmente
detectáveis e passíveis de estudo e análise, para um iniciante.
Vejamos que mudanças se repetem, ainda hoje, em nossa língua:
 Vogais pretônicas: É comum ouvirmos formas em que a vogal inicial não apoiada
sofre aférese – *panhá por apanhar, *rancá por arrancar, *difício por edifício,
*bidiente por obediente, *brigado por obrigado, *exprimentar ou *expermentar por
experimentar.
 Vogais pós-tônicas não finais: Ainda hoje é fenômeno bastante comum a queda dessas
vogais, na linguagem coloquial - *fosfro por fósforo, *xicra por xícara, *plasco por
plástico, *bobra ou *abobra por abóbora.

________________________________
Ditongação
Sabe-se que havia poucos ditongos em latim, sendo alguns bastante raros.
Em português, no entanto, os ditongos são abundantes. Alguns são evolução de
ditongos latinos, mas a maioria só apareceu na fase da formação do romanço.

Ditongos portugueses
Diversas foram as causas da formação do grande número de ditongos em
português:
 Queda de fonema medial – vanitate > vaidade; vadi(t) > vai;
73

 Vocalização de algumas consoantes em determinados grupos


consonantais – alt(e)ru > outro; lectu > leito; calce > *cauce > coice;
 Transposição de fonema – librariu > *livrairo > livreiro, denariu > *dĩairo
> dinheiro. OBS: Quando a transposição do i é antiga, o ditongo ai
passa a ei, quando é mais recente o ditongo se mantém – rabie (LC) >
rabia (LV) > ravia > raiva
 Epêntese de uma vogal para desfazer um hiato – creo (< credo) > creio;
tea (< tela) > teia.
 Fechamento do timbre das vogais e e o, passando, respectivamente, a i
e u – malo > mao > mau; velo > veo > véu; amatis > amades
(arc.) > amaes > amais
O ditongo nasal -ão, tão típico do português, representa as formas do
português arcaico -am, -ã, -õ, correspondentes às terminações latinas -anu, -
ane, -one, -udine, -ant, -unt:
paganu > pagão multitudine > multidão
pane > pão solitudine > solidão
cane > cão dant > dão
oratione > oração sunt > são

Hiatos
A língua portuguesa, desde seus primórdios, tende a evitar os hiatos. Tal
tendência também se verificava no LV (pariete > parete; battuo > batto; quattuor
> quattor). Os hiatos podem ser desfeitos:
 Pela crase de vogais originariamente iguais – teer (< tenere) > ter;
leer (< legere) > ler; seer (< sedere) > ser; ou que se tornaram
uguais por assimilação – palŭmba > paomba > poomba > pomba;
magĭster > maestre > meestre > mestre;
 Pela ditongação proveniente de um -i- epentético antes da átona final
– cea (< cena) > ceia; tea (< tela) > teia.
Pelo desenvolvimento do som palatal de transição -nh- – mĩa > minha; vĩo (<
vinu) > vinho.
________________________________

Sempre com o intuito de despertar o interesse pelos mecanismos da língua, a


comparação dos fenômenos históricos com os atuais poderá render bons frutos. Vejamos o
fenômeno da ditongação no português atual, no registro coloquial distenso:
74

 Queda de fonema medial – *eis por eles, *quainahora por quase na hora,
*Prõnóstãuínu? por Para onde nós estamos indo?17
 Vocalização de consoante – papel [pa’pEw], boldo [‘bowdu], *muié por mulher, *véia
por velha, *baubante por barbante, *gaufo por garfo.
 Transposição de fonema – *tauba por tábua, *réuga por régua, *largato por lagarto.
 Epêntese de uma vogal para desfazer um hiato – coro[w]a por coroa;
 Fechamento do timbre da vogal o, passando a u – [kwe]lho por coelho, [kwa]lho por
coalho.

________________________________
Consonantismo
Os grupos consonantais têm comportamento diferente do das consoantes
simples, portanto devemos estudá-los separadamente.

Consoantes Simples
As consoantes iniciais, salvo algumas exceções, mantiveram-se, na
passagem do latim para o português.
Em português arcaico, [k] e [g], antes de e e de i, eram pronunciados como
as africadas [ts] e [dZ], respectivamente. Em português moderno, o [ts] passou a
[s] (assibilação). O [dZ] passou a [Z]:

ceo [’tsEo] > céu [’sEw]; gente [’dZëte] > gente [’Zëte]
OBS: Segundo Teyssier (2001, p. 11), gi e ge a princípio palatalizam-se
em [y]. Em posição intervocálica, o yod derivado de gi sofreu síncope
(frigidu > frio) ou se palatalizou (spongia [’spõZa] > esponja). O ge
palatalizou-se (agente [g] > agente [dZ] > agente [Z].
As consoantes [p], [t], [k] (grafada c ou q), [s] (grafada c ou s) e [f], em
posição intervocálica, de modo geral sonorizaram-se em suas homorgânicas:
lupu > lobo, sapere > saber; vita > vida, rota > roda; acutu > agudo,
aqua > água; acetu > azedo, facere > fazer, casa [’kasa] > casa [’kaza];
aurifice > ourives, profectu > proveito.
OBS: Quando a consoante era geminada, a sonorização não ocorria –
bucca > boca; affectu > afeto, ossu > osso.
O i consoante consonantiza-se na fricativa [dZ] e depois passa a [Z]:
iuliu > julho, iustu > justo, proiectare > projetar, iam > já

17
Os dois últimos exemplos foram retirados de Dicionário Mineiro, disponível em:
http://piadas.terra.com.br/0,1909,p3003,00.html. Acesso em: 09/12/2011.
75

O u consoante consonantiza-se em [v] – uua > uva; uiuere > viver.


Consoantes sonoras, em posição intervocálica, tendem a sofrer síncope.
Embora esse fenômeno seja comum a toda a România Ocidental, apenas em
português a síncope de d, l e n intervocálicos foi regra geral:
regale > real; leger > leer > ler; fidele > fiel; lana > lãa > lã; nudo >
nu; filo > fio.
OBS: O n intervocálico, antes de sofrer síncope, anasalava a vogal
precedente. Essa nasalidade, no entanto, podia desaparecer, como é o
caso de luna > lù a > lua.
As consoantes geminadas eram, em LC, alongadas. No LV da România
Ocidental2, pelo menos, esse alongamento desapareceu. Quando
geminadas, porém, l e n mas não caíram – annu > ano; valle > vale,
apenas se simplificaram.
______
2- O italiano conservou, de modo geral, as consoantes longas. A quantidade das consoantes é, nesta
língua, traço distintivo – ano (ânus), anno (ano).
________________________________

Alguns fenômenos fonéticos só são perceptíveis na cadeia da fala. Às vezes, na escrita


de pessoas com baixo nível de escolaridade ou de crianças no período de alfabetização,
encontramos exemplos de fenômenos que ocorrem no português atual. Isso acontece porque
essas pessoas, não familiarizadas com as regras de gramática ou de ortografia, reproduzem, na
escrita, a cadência da fala, juntando graficamente os vocábulos fonológicos, por exemplo.
A forma *(o) zoio ilustra bem alguns fenômenos linguísticos. Investigando essa
palavra, podemos chegar a algumas conclusões em relação à nossa língua:
 A aglutinação do artigo com o substantivo, na cadeia da fala – *osolhos;
 A sonorização do -s desinência de plural em posição intervocálica (quando o
substantivo inicia por vogal) – ‘os cabelos’ [uska’belus], mas ‘os olhos’ [u’zO…us].
 A tendência simplificadora de marcar o plural apenas no primeiro elemento da frase
(de modo geral, o artigo). Podemos afirmar que no caso da palavra observada o
substantivo está no singular devido ao timbre fechado da vogal tônica.
 Às vezes pode acontecer a perda da noção de que o -s [z] faz parte do artigo, e a sua
incorporação ao substantivo, considerado, então, no singular, daí ‘o zoio’, em lugar de
‘o olho’. O adjetivo ‘zoiudo’ comprova a forma *zoio como substantivo, pois é dele
derivado.
76

Esse tipo de raciocínio, em princípio muito óbvio para o professor, poderá levar o
graduando a compreender os mecanismos da língua (e a interpenetração e simultaneidade de
suas ‘partes’ em um único ‘evento’ linguístico18) e a olhar para ela como um objeto de estudo
científico. Desenvolvido esse tipo de raciocínio e olhar científico em relação à língua, o
graduando será capaz de tirar suas próprias conclusões e fazer novas descobertas, colaborando
ativamente para o desenvolvimento da ciência da linguagem.
A título de curiosidade (científica, obviamente), ilustraremos com exemplos de outras
línguas a tendência à confusão de um fonema do artigo com o fonema inicial do substantivo, a
tal ponto que uma nova forma surge dessa aglutinação.
O dicionário francês Le Petit Robert apresenta a forma familiar zoreille, palavra
crioula, derivada de oreille (orelha), que significa ‘metrô’. A partir dessa informação,
podemos, apoiados em nossos conhecimentos linguísticos, supor que o [z] acrescentado à
palavra oreille vem do artigo plural les, cujo -s, em posição intervocálica, sonorizou-se em [z]
– Les oreilles > *le zoreille > la zoreille. O artigo la (fem.) é usado em vez de le (masc.)
porque a palavra original – oreille – é feminina.
O outro exemplo vem do italiano. O dicionário italiano Il Sabatini Coletti apresenta a
forma pecchia (abelha), considerada antiga, derivada de apĭcula. A forma italiana mais usada
é ape (que veio do grau normal do substantivo latino – ape(m), ao contrário de outras línguas
românicas, cujo étimo é apĭcula, diminutivo de ape(m)).
Com base em nossos conhecimentos linguísticos podemos, também aqui, supor o
motivo de a vogal inicial de apĭcula ter sofrido aférese na passagem a pecchia. A palavra
pecchia é feminina. Há, em italiano, dois artigos definidos femininos – la, usado antes de
palavras começadas por consoante, e l’, usado antes de palavras começadas por vogal: la
fontana (a fonte), l’anima (a alma).
No caso de pecchia, a palavra original deve ter sido apecchia, mantendo o [a] inicial
do étimo latino. Ao ligar-se ao artigo, contudo, formando um vocábulo fonológico –
l’apecchia [la’pekkya] – os falantes devem ter passado a entender que o [a] de apecchia fazia
parte do artigo la, daí a palavra ter passado a la pecchia.
Julgamos ser sempre proveitoso ensinar ao aluno os caminhos e meandros do
raciocínio linguístico. Assim como o corpo de um ginasta deve ser educado a ‘preparar’
determinados movimentos e posições, necessários para os exercícios físicos, também o
graduando de Letras deve ter seu raciocínio treinado a saber o que buscar e a perceber os
detalhes aparentemente mais simples, quando analisar ou estudar uma língua.
18
Fenômenos fonéticos, morfológicos, sintáticos (fonética sintática) e lexicais (a derivação de ‘zoiudo’, a partir de ‘zoio’).
77

O graduando deve ser incentivado ao tipo de raciocínio especificamente linguístico e a


criar um ‘banco de dados’ mental, para acessá-lo sempre que estudar/analisar a língua,
conectando uma informação à outra, para que se torne capaz de chegar a conclusões originais.

________________________________
Grupos consonantais
 As consoantes geminadas, com exceção de ss e rr simplificam-se –
affectu > afeto; bucca > boca, mas carru > carro, ossu > osso.
 cl, fl e pl – passam a [p], grafado ch – clave > chave; flamma > chama;
pluvia > chuva.
– passam a cr, fr, pr – clavu > cravo; flaccu > fraco; placere > prazer.
 bl, cl, fl, gl e pl mediais – precedidos por consoante – passaram a
[p], grafado ch –inflare > inchar; implere > encher;
– precedidos por vogal – passaram a br, cr, fr, gr e pr – obligare >
obrigar; concludere > concruir (arc.); affligere > afrigir (arc.); reg(u)la >
regra; implicare > empregar.
 ct, lt, pt, bs, lc, lp, gn e gm mediais, precedidos de vogal – de modo
geral, a primeira consoante sofreu vocalização – biscoctu > biscoito;
doctu > douto; altariu > outeiro; *ascultare > escuitar (arc. ); praeceptu
> preceito; baptizare > bautizar (arc.); absentia > ausência; calce >
couce; *talparia > toupeira; regnu > reino Agnes > Einês > Inês,
phlegma > fleuma.
OBS: pt > t – scriptu > escrito, nepta > neta; bs > s – *abscondere >
asconder (arc.); substantia > sustância; gn > [M] – pugnu > punho;
cognatu > cunhado.

Consoante + semivogal

Consoante + i – nessa formação a consoante pode sofrer palatalização,


assibilação, ou pode se manter inalterada:
a) Palataliza-se, passando às vezes a semivogal para a sílaba anterior, com cuja
vogal forma ditongo, ou fundindo-se com a consoante num só som:
 -si- > -ij- – basiu > beijo; caseu > queijo; ecclesia > igreija (arc.) (>
igreja)
 -ssi- > -ix- – *basseu > baixo, passione > paixão
 -sti- > -ch- – bestia > bicha; Sebastianu > Sevachão (arc.)
 -di- precedido de vogal > -j- – hodie > hoje; insidiare > ensejar
78

 cai o d em palavras semicultas – mediu > meio; fastidiu > fastio


 precedido de consoante ou ditongo > -ç- – ardeo > arço (arc.);
audio > ouço; perdeo > perço (arc.)
 -ni- > -nh- – aranea > aranha; ciconia > cegonha
 -lli- -li- > -lh- – alliu > alho; alieno > alheio; palea > palha
 -gi- > -j- – fugio > fujo;
b) Assibila-se, fundindo-se com a semivogal num único som:
 -ci- precedido de vogal > -z- – *cinicia > cinza; iudiciu > juízo
 em palavras de introdução posterior ou semicultas, ou precedido
de consoante, -ci- passou a [s], grafado c ou ç – facie > face;
lancea > lança.
 -ti- > -z- – avaritia > avareza; iustitia > justeza; tistitia > tristeza
 em palavras de introdução posterior ou semicultas, ou precedido
de consoante, -ti- passou a ç – *capitia > cabeça; iustitia >
justiça; gratia > graça
 precedido de consoante, -ti- passou a [s], grafado c ou ç –fortia
> força; tertiariu > terceiro; mattiana > maçã.
C) conserva-se inalterada, passando a semivogal à sílaba anterior, com cuja
vogal forma ditongo:
 -bi-, -vi- > -iv- – rubeo > ruivo; *noviu > noivo.
 -ri- > -ir- – coriu > coiro; solitariu > solteiro

Consoante + u – nessa formação a semivogal pode ser atraída para a vogal


tônica anterior, formando com ela um ditongo, ou pode desaparecer,absorvida
pela vogal seguinte – capui > coube; aqua > auga (arc.); duodece > dodece >
doze
OBS: Em algumas palavras, o u foi restabelecido devido à influência literária –
quantidade por cantidade (arc.); quando por cando (arc.).
________________________________

Também em português atual notamos alguns fenômenos fonéticos atingindo


consoantes simples ou grupos consonantais, como:
 Passagem de s a [h], em final de sílaba – *mermo por mesmo, *partilha por pastilha;
79

 Passagem de rs, antes de consoante, a r ou a s – *supertição por superstição,


*pespectiva por perspectiva, *pespicaz por perspicaz;19
 Africação de [t] e [d] antes de [i], grafado i ou e, em alguns falares regionais, como o
do Rio de Janeiro – tia [‘tpia], teatro [tpi’atru], dia [‘dZia], saudade [ saw’dadZi]
 Passagem de [ny] a [M] – Antônio(a) > Tonho(a);
 Passagem de [l] a [r] – *Framengo por Flamengo, *brusa por blusa; *Cráudio por
Cláudio.
 Síncope de [r] em encontro consonantal, quando há, na mesma palavra outro encontro
consonantal com [r] – *pogresso por progresso, *própio por próprio, *pobrema por
*probrema (por problema) etc.
Aprender a história da língua portuguesa, além de desenvolver no graduando o
raciocínio linguístico, poderá, também, despertar um maior interesse pela língua estrangeira
que ele estudar, comparando-a com o português e fazendo descobertas interessantes.

________________________________
Metaplasmos

Metaplasmos são as alterações fonéticas que as palavras sofrem ao longo


de sua evolução.

Assimilação – transformação completa ou parcial de um som em outro


semelhante. A assimilação pode se dar entre sons contíguos ou separados.
Ex.: lacte > laite > leite – assimilação parcial do [a] pelo [i].
Crase – fusão de sons vocálicos contíguos idênticos (mesmo com diferença de
timbre).
Ex.: legere > leer (arc.) > ler, cŏlŭbra > coobra [‘kOobra] > cobra [O]
Monotongação – redução de um ditongo a apenas uma vogal.
Ex.: caelu > ceo (arc.) > céu .
Metafonia – influência assimiladora exercida por uma vogal final sobre a vogal
tônica.
Ex.: senhor [o], mas senhora [O].
Nasalização (ou nasalação) – transformação de uma vogal oral em nasal, por
influência de uma consoante nasal próxima a ela.
Ex.: mihi > mi > mim.

19
Note-se que tanto perspectiva quanto perspicaz são palavras pouco populares, indicando que o fenômeno fonético que
ocorre com elas se dá entre falantes com alto nível de escolaridade.
80

Sibilação (ou assibilação) – passagem da velar [k], a um som sibilante ([s], [z]).
Também pode sofrer sibilação um grupo formado por dental + i, em posição
intervocálica.
Ex.: *capitia > cabeça, mollitia > moleza, cĭtu [‘kitu]> cedo, audio > ouço.
Palatalização (ou palatização) – a) passagem de [dy] ou [ty] a [Z] – ex.: hodie >
hoje; b) Passagem de [ny] a [M] ou de [ly] a […] – ex.: vinea [‘vinya] > vinha,
palea [‘palya] > palha; c) passagem dos grupos cl, pl, fl a [p] (som de ch) –
ex.: clave > chave, pluvia > chuva, flamma > chama; d) passagem do i
consoante a [Z] – ex.: iuri > juri.
Dissimilação – diferenciação de dois sons idênticos ou semelhantes, quer
contíguos, quer à distância, presentes na mesma palavra.
Ex.: memorare > nembrar (arc.) > lembrar.
Haplologia – perda de uma sílaba inteira, desde que, na mesma palavra ou na
palavra seguinte exista outra igual ou parecida.
Ex.: bondade + oso > bondadoso > bondoso.
Sonorização – passagem de uma consoante surda a sua homorgânica sonora.
Ex.: acutu > agudo.
Abrandamento – passagem de [b] a [v].
Ex.: populu > poboo (arc.) > povo.
Vocalização – transformação de uma consoante em vogal.
Ex.: pectu > peito, lectu > leito.
Ditongação – transformação de vogal simples em ditongo.
Ex.: plenu > cheo > cheio.
Hiperbibasmo – deslocamento do acento tônico.
Ex.: muliĕre (proparoxítono) > mulher.
Metátese – transposição de um som dentro da mesma sílaba.
Ex.: semper (lat.) > sempre.
Hipértese – transposição de um som de uma sílaba para outra.
Ex.: parabola > palavra.
Rotacismo – passagem de [l] a [r].
Ex.: placere > prazer.

Metaplasmos por adição:


Prótese – adição de um fonema no começo da palavra.
Ex.: speculu > espelho.
Epêntese – inserção de um som no meio da palavra.
Ex.: umĕru > *omro > ombro.
81

Paragoge – adição de um som no final da palavra.


Ex.: ante > antes (por analogia a depois).

Metaplasmos por supressão:


Aférese – supressão de um som no começo da palavra.
Ex.: episcopu > bispo.
Síncope - supressão de um som ou de uma sílaba inteira no meio da palavra.
Ex.: auricula > oricla > orelha.
Apócope - supressão de um som no final da palavra.
Ex.: mare > mar.
________________________________

O estudo dos metaplasmos constitui parte importante do programa de História da


Língua Portuguesa. De modo geral, no entanto, não figura entre os temas preferidos do
graduando.
O problema talvez esteja na abordagem do assunto. Se encarados como uma enorme
lista de nomes e fenômenos a serem memorizados, de fato não conseguirão cativar o aluno.
Se, no entanto, forem tratados como um dos mecanismos de atualização e enriquecimento da
língua, aí sim, poderão conquistar a simpatia do aluno (e, por que não dizer, do próprio
professor).
A estrutura fonética é a mais superficial de uma língua. As mudanças que ocorrem
nela são, portanto, as mais visíveis, facilitando sua demonstração, por parte do professor, e
sua percepção, por parte do aluno. Partir das alterações fonéticas e das tendências, de modo
geral cíclicas, da língua portuguesa, comparando as alterações do passado com as que
encontramos hoje em dia, é atividade proveitosa e, como diz o próprio Saussure, até mesmo
“divertida” (cf. 2006, p. 117).
Uma estratégia motivadora pode ser, por exemplo, trabalhar os metaplasmos
encontrados em historinhas do Chico Bento (cf. 3.3.1), comparando-os com os que ocorreram
na passagem do latim para o português, ou na passagem do português arcaico para o atual, ou,
ainda, comparar o passado com os dias de hoje, por meio de textos como este que se segue:

Um Verdadeiro Mineiro
Sapassado, era sessetembro,
taveu na cuzinha tomando uma pincumel
e cuzinhando um kidicarne cumastumate
82

pra fazê macarronada cum galinhassada.


Quascaí de susto quanduvi um barui
vinde denduforno parecenum tidiguerra.
A receita mandopô midipipoca
denda galinha prassá.
O forno isquentô, o mistorô
e o fiofó da galinhispludiu!
Nossinhora! Fiquei branco quinein um lidileite.
Foi um trem doidimais! Quascaí dendapia!
Fiquei sensabê doncovim, oncotô, proncovô.
Ópcevê quilocura!
Grazadeus ninguem semaxucô!20

Ou ainda como este ‘Dicionário Mineiro’:

Dicionário Mineiro
Lidileite - litro de leite
Mastumate - massa de tomate
Dendapia - dentro da pia
Kidicarne - kilo de carne
Tradaporta - atrás da porta
Badacama - debaixo da cama
Pincumel - pinga com mel
Iscodidente - escova de dente
Nossinhora - Nossa Senhora
Pondiôns - ponto de ônibus
Denduforno - dentro do forno
Secopassado21 - essa nem eu sei!!
Doidimais - doido demais
Tidiguerra - tiro de guerra
Ansdionti - antes de ontem
Sessetembro - sete de setembro

20
Disponível em: http://www.orapois.com.br/humor/piadas/piadas-de-mineiros/um-verdadeiro-
mineiro_id4495_p0_mc0.html. Acesso em: 09/12/2011.
21
Acho que ‘significa’ século passado.
83

Sapassado - sábado passado


Óiuchêro! - olha o cheiro!
Pradaliberdade - Praça da Liberdade
Videperfume - vidro de perfume
Óiprocevê! - olha pra você ver!
Tissodaí - tira isso daí
Rugoiáis - Rua Goiás
Onquié? - onde que é?
Casopô - caixa de isopor
Quainahora - quase na hora
Istrudia - outro dia

E o melhor de todos:
Prõnóstãuínu?
- para onde nós estamos indo?

Para acabar...
Cêssa se esse onspas na savas?
- você sabe se este ônibus passa na Savassi?22

Além de fornecer material para o estudo dos metaplasmos, o texto acima também traz,
oportunamente, a questão da variedade diatópica da língua – fator importante na dialetação do
latim e na formação das línguas românicas – introduzindo, assim, um tema que será abordado
tanto nos estudos de Dialectologia quanto nos de Filologia Românica.
Depois de trabalhar com textos desse tipo, o aluno não estranhará tanto um texto em
português arcaico. Após decifrar o divertido em ‘mineirês’ ele terá maior boa vontade para
decifrar português arcaico, bem como alguma prática em compreender um texto que não
segue a ortografia a que está acostumado.
Uma pequena fábula, como a que apresentamos abaixo, por ser uma história curta e de
vocabulário simples e bastante concreto, poderá servir de começo para o trabalho com os
metaplasmos na fase da língua em que ela se encontra:

22
Disponível em: http://piadas.terra.com.br/0,1909,p3003,00.html. Acesso em: 09/12/2011.
84

Século XIV
O rato, a rã e o minhoto
[C]comta-sse que hũu rrato, amdando sseu caminho para emderençar
sseus neguoçios, ueo arriba de hũa augua, a qual ell nom podia passar. E
estamdo assy cuydoso arriba da augua, veo a ell hũa rrãa e disse-lhe:
– Sse te prouuer, eu te ajudarey a passar esta augua.
E o rrato rrespomdeo que lhe prazia e que lho agradeçia muyto. E a rrãa
fazia esto pera emganar o rrato, e disse-lhe:
– Amiguo, legemos hũa linha no pee teu e meu e ssube (1) em cyma de
mym.
E o rrato feze-o assy. E, depois que forom no meo da augua, a rrãa disse
ao rrato:
– Dom velhaco, aqui morreredes maa morte.
E a rrãa tiraua (2) pera fundo, pera afoguá-lo de so (3) a augua, e ho
rrato tiraua pera çima. E, estando em esta batalha , vios hũu minhoto (4) que
andaua voamdo pello aar e tomou-os com as hunhas e comeos ambos.
Em aquesta hestoria este doutor rreprehemde os homëes, os quaes com
boas palauras e doçes de querer fazer proll (5) e homra a sseu proximo, (e)
emganosamente lhes fazem maas obras, porque ali dizem com as limguoas e
all (6) teem nos sseus corações.
E esto sse demostra per a rrãa, a quall dizia que queria passar o rrato e
tijnha no sseu coraçom preposito de ho afoguar e matar, como dicto he em
cima.

(1) ssube: sobe, imperativo do verbo arcaico sobir.


(2) tiraua: puxava.
(3) de so: sob, debaixo.
(4) minhoto: ave de rapina, também chamada milhano ou milhafre.
(5) fazer proll: fazer proveito.
(6) all: outra coisa, al (do latim alid, por aliud).

(NUNES, 1943, p. 50-51)

A primeira atividade proposta, após a leitura do texto, pode ser a de ‘tradução’ da


fábula. Depois, pode-se pedir que cada aluno selecione, por exemplo, dez palavras que eles
tenham reconhecido e as compare com as formas atuais. O professor, por sua vez,
previamente preparado, deverá confrontar o étimo latino com as palavras arcaicas e modernas
selecionadas pelos alunos, analisando as mudanças fonéticas ocorridas, baseando-se na
ortografia das palavras observadas.
85

O estudo dos metaplasmos conduzido dessa forma poderá despertar o interesse do


aluno, além de conduzi-lo pelos caminhos do raciocínio investigativo, fundamental para o
estudioso da língua. Também o auxiliará a perceber a dinamicidade da língua e os
mecanismos que a movimentam.

3.4.2- Morfossintaxe histórica

As principais diferenças entre o latim e o português, do ponto de vista morfossintático,


são aquelas ocorridas no latim vulgar – redução das declinações, dos casos, das conjugações
verbais; desaparecimento do gênero neutro e reorganização das classes dos adjetivos.
O latim vulgar (LV), como já foi dito, era mais simples que o latim clássico (LC). Já
vimos que ‘pontos fracos’ levam a mudanças. A coincidência de diversas terminações que
indicavam a declinação e o caso dos substantivos causava confusões já desde o latim clássico
(no LC em menor escala do que em LV), gerando, assim, um ponto fraco na língua. Disso
resultou a redução das declinações, como veremos a seguir:

________________________________
Redução das declinações

As cinco declinações nominais do LC reduziram-se a apenas três no LV. Elas


funcionavam de forma semelhante às conjugações verbais, isto é, indicavam
qual paradigma seguir ao se flexionar a palavra. Por exemplo, se queremos
conjugar o verbo cantar, no imperfeito do indicativo, devemos acrescentar ao
tema verbal a desinência modo-temporal -va (rad. + VT + -va + DNP)– ‘Nós
cantávamos’. Se, no entanto, quisermos conjugar o verbo correr, nesse mesmo
tempo, o paradigma será outro, pois a desinência modo-temporal -ia (e não -va)
deve ser acrescentada ao radical do verbo, sem a vogal temática (rad. + -ia +
DNP) – ‘Nós corríamos’.
Assim também funcionavam as declinações. Se quiséssemos flexionar a
palavra domĭna, da primeira declinação, no genitivo plural, deveríamos
acrescentar a desinência23 -arum ao radical – domĭnarum. Se, no entanto, a
palavra a ser declinada fosse da terceira conjugação, deveríamos acrescentar a
desinência -um ao radical – puerum.
23
Lembramos que, no intuito de deixar o texto mais fluente, estamos adotando o termo desinência em lugar de terminação,
que seria mais apropriado. (ver nota nº11)
86

A declinações que desapareceram foram a quarta e a quinta, pois poucos


nomes se flexionavam segundo os seus paradigmas. A quarta declinação, além
de ser ‘pobre’, tinha desinências de singular coincidentes, nos principais casos
(nominativo e acusativo), com as da segunda declinação, que era muito mais
‘rica’ que ela. O resultado disso foi a migração das palavras da quarta
declinação, em sua maioria, para a segunda. As exceções foram algumas
palavras femininas, que, por analogia, migraram para a primeira declinação,
composta basicamente de nomes femininos, como mostram as palavras socrus
> socra, nurus, nura3.
A quinta declinação, mais ‘pobre’ ainda que a quarta, tinha muitos nomes
femininos, alguns dos quais também se flexionavam pela primeira declinação –
materies (5ª decl.), materia (1ª decl.). Além disso, suas desinências coincidiam,
nos principais casos, com as da terceira declinação. As poucas palavras que
seguiam a quinta declinação migraram, então, para a primeira e para a terceira.
Restaram, assim, as três primeiras declinações:
 A primeira, composta primordialmente por nomes femininos, com
acusativo em -a (sg.) e -as (pl.);
 A segunda, composta de nomes masculinos e neutros, com acusativo em
-o (sg.) e -os (pl.) (os nomes femininos desta declinação, em sua maioria,
passaram para o gênero masculino);
 A terceira, composta de nomes dos três gêneros, com acusativo em -e
(sg.) e -es (pl.).
______
3
- A passagem de -us a -a, nesses casos não se caracteriza como uma alteração fonética, mas como uma adaptação
de ordem morfológica.
________________________________

Ao contrário das vogais temáticas verbais, as nominais do português não têm mais
função, uma vez que os nomes não se flexionam mais em casos;
O conhecimento do sistema de declinações ajuda a compreender certas peculiaridades
da língua, como:
 A associação da terminação -a com o gênero feminino e da terminação -o para o
masculino é tendência existente desde o latim clássico (cf., por exemplo, os adjetivos
de 1ª classe). Essa associação se deu por dois motivos: a) a primeira declinação, cuja
vogal temática era -a, era composta, basicamente, de nomes femininos (os nomes
masculinos pertencentes a essa declinação eram quase todos de origem grega, como
poeta, planeta, nauta). A segunda declinação, por sua vez era composta basicamente
87

de nomes masculinos e neutros. Os nomes femininos (em -us, como fagus = faia)
designavam cidades, países, ilhas, árvores e palavras de origem grega, como methodus
e papyrus (cf. COELHO & RIBEIRO, 2007, p. 24). Após o desaparecimento do
gênero neutro, no LV (como veremos a seguir), a segunda declinação, cuja vogal
temática era -o (com alomorfe -u), passou a abrigar, praticamente, somente nomes
masculinos24; b) Os adjetivos latinos femininos de primeira classe declinavam-se pelo
paradigma da primeira declinação e os masculinos, pelo da segunda. Esse fato
reforçou a associação do feminino a -a final e do masculino a -o final. Ela está tão
presente em nosso inconsciente, que, mesmo hoje em dia, ouvimos, vez ou outra, as
palavras guaraná e telefonema, por exemplo, do gênero masculino, precedidas de
artigo feminino – ‘a guaraná’ e ‘a telefonema’.
 A associação do gênero feminino (e da terminação -a) com o sexo feminino também é
ancestral. As palavras nurus e socrus, como vimos, passaram à primeira declinação
porque tanto a nora quanto a sogra são mulheres. A palavra ‘senhor’, tão frequente
nas Cantigas de Amor, era comum de dois gêneros, mas acabou tendo um -a acrescido
ao seu final para designar especificamente as mulheres. Ainda hoje encontramos
adaptações desse tipo em palavras como ‘chefe’ e ‘presidente’, que se aplicam aos
dois gêneros, mas passaram a ter formas para o feminino – ‘chefa’ e ‘presidenta’ –,
uma vez que, atualmente, há mulheres que também ocupam tais cargos.
A tendência simplificadora do LV afetou, igualmente, a categoria dos casos. Em LC
havia desinências casuais, que indicavam o caso (função sintática) das palavras. Havia seis
casos no LC, que, no entanto, foram reduzidos a praticamente um no LV – o acusativo –,
considerado o caso lexicogênico, pois foi a partir dele que evoluiu a maioria das palavras da
língua portuguesa (e da maioria das línguas românicas). Vejamos como se deu essa redução:

________________________________
Redução dos casos

O sistema de flexão nominal do latim era bem mais complexo do que o do


português. Além de gênero e número, os nomes também se flexionavam em
caso, que indicava a função sintática da palavra, não importando a posição
desta na frase. Em português há, basicamente (fazemos aqui abstração das

24
Seus poucos nomes femininos ou migraram para a primeira declinação (fagus > faia), ou passaram para o gênero masculino
(a maioria) – ulmus > olmo, Ægyptus > Egito, papyrus > papiro –, ou , ainda, permaneceram femininos com a terminação
-o(s), porém, ao menos em português, não são acompanhadas de artigo. Os adjetivos que acompanham esses nomes
flexionam-se no feminino, tendo ‘implícita’ a palavra cidade ou ilha – ‘A famosa [cidade] Corinto’, ‘A bela [ilha] Delos’.
88

divergências entre os estudiosos do assunto), duas desinências de gênero (-a


para o feminino e -o para o masculino) e uma de número (-s). Em latim, o único
gênero que tinha desinências próprias, ao menos em relação aos substantivos,
era o neutro, mas somente nos casos nominativo, vocativo e acusativo (neste
último somente no plural). As desinências de número, gênero e caso, no entanto,
variavam de acordo com a declinação a que a palavra pertencia. A declinação
indicava o paradigma a ser usado ao se flexionar a palavra (papel semelhante
ao da vogal temática, em relação à conjugação verbal, em português).
Assim, para se flexionar a palavra rosa, -ae – pertencente à primeira
declinação – no acusativo, por exemplo, a desinência a ser usada era -am:
rosam. Para se flexionar a palavra caballus, -i – pertencente à segunda
declinação –, a desinência a ser usada era -um: caballum.
Vejamos, abaixo, o quadro das desinências nominais de cada um dos seis
casos, conforme as cinco declinações do LC:

As cinco declinações latinas


1ª 2ª 3ª 4ª 5ª

Sg. Pl. Sg. Pl. Sg. Pl. Sg. Pl. Sg. Pl.

N a ae us um i a Ø s es a us us ua es es

V a ae e um i a Ø s es a us us ua es es

Ac am as um os a em es a um us ua em es

G ae arum i orum is um us uum ei erum

D ae is o is i ibus ui ibus ei ebus

Ab a is o is e ibus u ibus e ebus

Uma rápida análise do quadro acima deixa evidente que as desinências do


caso vocativo (V), com apenas uma exceção, eram idênticas às do nominativo
(N), caso que indicava a função sintática de sujeito (e também de predicativo do
sujeito). Em virtude da tendência simplificadora do latim vulgar (LV), o caso
vocativo, acabou desaparecendo, ficando as desinências do nominativo
encarregadas de indicar, também, a função de vocativo.
A função sintática primordial do acusativo (Ac) era a de objeto direto ( além
de algumas funções adverbiais), e a do ablativo (Ab), a de adjunto adverbial. O
caso dativo (D) indicava a função de objeto indireto (e também de complemento
89

nominal), já o caso genitivo (G), era o caso do nome dependente de outro nome
(cf. ILARI, 2007, p. 89).
________________________________

A compreensão do sistema de casos e declinações é conhecimento indispensável para


o estudo das línguas clássicas, e mesmo de línguas modernas, como o alemão – ensinado nas
universidades cujos conteúdos programáticos estamos comentando – que também tem flexão
de casos (nominativo, acusativo, dativo e genitivo), e também o russo e o grego moderno.
O estranhamento que a mobilidade das palavras na frase, por contarem elas com
desinências que indiquem sua função sintática, possa causar no aluno, na verdade poderá ser
salutar, instigando-o a ampliar suas ideias em relação ao funcionamento da linguagem
humana.
Mostrar a origem dos pronomes oblíquos do português pode ser uma boa estratégia
para trabalhar a ideia de caso, uma vez que estes são as únicas palavras de nossa língua que
guardam resquícios dos casos latinos:

Latim25 Português Latim Português


(abl.)
mī (por mihī) mim / mi (arc.) mecum comigo
tī (por tibī) ti tecum contigo
sī (por sibī) si secum consigo
ĭlle ele com ele
ĭlla ela com ela
nōs nós noscum conosco
uōs vós voscum convosco
sī (por sibī) si secum consigo
eles / eis (arc.) com eles
elas com elas

Quadro 7 – Pronomes oblíquos tônicos. Fonte: COUTINHO, 2005, p. 253-256.

OBS: Mi > mim – a nasalização ocorreu por influência da nasal inicial.

25
Dativo – exceto para ĭlle, ĭlla, nōs e uōs.
90

 “Mi, forma arcaica átona, deu a atual me, o que explica a função de objeto
indireto que pode desempenhar esta variação pronominal” (COUTINHO,
2005, p. 253). O mesmo aconteceu na 2ª pessoa do singular:
Me (acus.) > me Te (acus.) > te
 As formas da coluna 3 eram compostas a partir do pronome unido à
preposição cum. Com o tempo, e com a sonorização do c [k] intervocálico,
perdeu-se a noção de que a preposição já estava presente na palavra,
aparecendo as formas pleonásticas atuais (coluna 4).
 Por analogia a me e te, que exercem função tanto de acusativo quanto de
dativo, também nos e vos, originalmente acusativo, passaram a desempenhar
função de objeto indireto.

Latim
Português
(acus.)
me me
te te
se se
ĭllu > elo > lo (arc.) > o
ĭlla > ela > la (arc.) > a
nos nos
vos vos
se se
ĭllos > elos > los (arc.) > os
ĭllas > elas > las (arc.) > as

Quadro 8 – Pronomes oblíquos átonos. Fonte: COUTINHO, 2005, p. 253-256.

Latim (dat.) Português

ĭlli > *eli > li (arc.) > lhe (sem variação de gênero)
O plural se fez por analogia, acrescentando-
se -s à forma singular lhe → lhes

Quadro 9 – Pronome ‘lhe’. Fonte: COUTINHO, 2005, p. 255.


91

Estando a noção de caso mais clara no entendimento do graduando, pode-se passar ao


processo de redução dos seis casos a apenas um:

________________________________
O LV, como vimos, tendia a ser analítico, o que resultou no largo uso de
preposições, para reforçar a ideia que se queria transmitir (redundância).
Apenas dois casos latinos podiam ser regidos por preposição: o acusativo e o
ablativo.
Já em Plauto aparecem estruturas como ad + acusativo, substituindo o
dativo, bem como estruturas do tipo de + ablativo, substituindo o genitivo (cf.
GRANDGENT, 1952, p. 81-83):
ad me magna nuntiavit (por mihi magna nuntiavit)
Curator de sacra via (por curator scrae viae)
A preferência por esse tipo de construção resultou no desaparecimento
gradativo dos casos dativo e genitivo.
As mudanças sofridas pelo LC, em seu processo de ‘vulgarização’, não se
deram, no entanto, somente no âmbito da Morfologia. Diversas mudanças
fonéticas também ocorreram. Duas dessas mudanças acarretaram uma
mudança de ordem morfológica.
O -m final era a marca do caso acusativo singular. A queda desse -m (que
não atingiu apenas os nomes), juntamente com a passagem do ŭ átono – como
o da desinência do acusativo masculino da segunda declinação – a [o] (salvo em
raros dialetos – cf. MAURER, 1959, p. 90)26 fizeram com que todas as
desinências de acusativo singular se igualassem às desinências do ablativo
singular.
Segundo Grandgent (1952, p. 85), o desaparecimento do ablativo plural,
substituído pelo plural do acusativo e a total coincidência entre acusativo e
ablativo, no singular, estavam generalizados provavelmente antes da queda do
Império. O autor também afirma que essa fusão foi favorecida pelo fato de
certas preposições poderem ser usadas com os dois casos. Diz, ainda:
Findo o período do latim vulgar, restavam, provavelmente, no uso
verdadeiramente popular (salvo nos pronomes e em certo número de frases
feitas), somente três casos, na Dácia, e, no resto do Império, apenas dois:
um nominativo e um acusativo-ablativo. (GRANDGENT, 1952, p. 88)
________
Nota: Al finalizar el período del latín vulgar quedaban probablemente en el uso verdaderamente popular (salvo
en los pronombres y en cierto número de frases hechas) en Dacia sólo tres casos, y en el resto del Imperio
unicamente dos: un nominativo y un acusativo-ablativo.
________________________________

26
Maurer (1959, p. 85-98) propõe outro processo para a redução dos casos. Julgamos, no entanto, desnecessário apresentar
também a sua proposta no texto usado como material didático para o nível da graduação.
92

Esses dados dão ensejo à demonstração de como se chega, por meio do método
comparativo, a uma conclusão científica. Para exemplificarmos tal possibilidade, citaremos
uma situação real, ocorrida em uma turma de HLP:
Ao ouvir a explicação da professora, de que após a coincidência das desinências do
acusativo com as do ablativo, o caso ablativo acabou desaparecendo, uma aluna, intrigada,
perguntou como é que se poderia afirmar que foi o caso ablativo que desapareceu, e não o
acusativo, se as desinências de ambos eram iguais.
Após refletir um pouco, a professora – que, por ser novata, ainda não havia pensado a
esse respeito – disse que se pode afirmar que o caso que permaneceu foi acusativo,
observando-se a desinência de plural usada pelas línguas da România Ocidental: -s.
As desinências de acusativo plural eram -as, -os, -es. As do ablativo plural eram -is,
-ibus. Uma simples comparação dos plurais de palavras do português, do espanhol e do
francês27 é suficiente para deixar claro que o caso que permaneceu foi o acusativo:

Português Espanhol Francês Latim Vulgar


Ac Ab
rosa rosa rose28 rosa rosa
Singular gato gato chat catto catto
dente diente dent dente dente
rosas rosas roses rosas rosis
Plural gatos gatos chats cattos cattis
dentes dientes dents dentes dentibus

Quadro 10 – Comparação entre acusativo plural e ablativo plural. Fonte: Elaborado pela
autora.

A observação do quadro acima deixa claro o fato de que as vogais das desinências de
plural do acusativo eram as mesmas do singular. Como já observamos anteriormente, a
terminação -a já estava ‘cristalizada’ como indicadora do gênero feminino, bem como o -o
final indicava o gênero masculino. Talvez esse tenha sido um dos motivos de o acusativo ter
suplantado o ablativo. Some-se a isso a economia da desinência de plural do acusativo ser
sempre -s.
27
O italiano não serve como exemplo, pois, uma vez que, devido a uma tendência fonética, todos os [s] finais sofreram
apócope, as desinências de plural dessa língua são oriundas do caso nominativo.
28
Em francês, foi tendência fonética a queda de toda vogal final, com exceção de -a, que passou a -e.
93

Com o desaparecimento do ablativo, restaram apenas os casos nominativo e acusativo.


Para confirmarmos a permanência somente do acusativo e o desaparecimento do nominativo
(na maioria das línguas românicas), podemos usar também os plurais como termo de
comparação, para palavras oriundas das duas primeiras declinações. Para as oriundas da
terceira, cujo plural do nominativo é idêntico ao do acusativo, podemos comparar o radical da
palavra na língua românica com o radical (do singular) do nominativo e o do acusativo:

Português Espanhol Italiano Francês Latim Vulgar


Ac Nom
morte muerte morte mort morte mors
noite noche notte nuit nocte nox
Singular
parte parte parte part parte pars
flor flor fiore fleur flore flos

Quadro 11 – Radical de acusativo e de nominativo. Fonte: Elaborado pela autora.

A categoria de casos só fez sentido enquanto houve oposição entre pelo menos dois
casos. Como restou apenas um, essa categoria deixou de existir em quase todas as línguas
românicas.29

________________________________
Redução dos gêneros

Havia, em LC, três gêneros – masculino, feminino e neutro – dos quais


apenas os dois primeiros permaneceram no LV. Devido à coincidência das
desinências, no acusativo singular, o neutro era muitas vezes confundido com o
masculino, e acabou desaparecendo. O neutro plural, que terminava em a, foi
confundido com o feminino singular (porém com ideia de ‘coletivo’), criando
duplas de palavras como lignum (sing.) > lenho / ligna (pl.) > lenha, bracchium >
braço / bracchia > braça.
________________________________

É importante para o graduando de Letras saber que a distribuição das palavras entre os
gêneros, no próprio latim já era aleatória. Ao gênero neutro deveriam pertencer, em princípio,

29
O romeno ainda conserva o dativo, tanto em sua função primitiva quanto como genitivo, na primeira declinação e em
adjetivos femininos (cf. GRANGENT, 1952, p. 83)
94

as palavras que nomeassem seres inanimados, mas não era isso o que acontecia. Esse fato
aliado à coincidência das desinências de masculino e de neutro, no acusativo, como dito
acima, acabaram fazendo com que o gênero neutro desaparecesse ainda na fase do latim
vulgar.
A distribuição de palavras entre gêneros gramaticais é uma herança muito antiga, cujo
sentido se perdeu no decorrer dos séculos30. Talvez ninguém saiba explicar, com exatidão, por
que as palavras são dividas, gramaticalmente, entre masculinas e femininas (e também
neutras, em determinadas línguas). Parece muito provável que tenha havido uma forte
analogia do ‘ser’ nomeado com um dos sexos ou, no caso das palavras neutras, com nenhum
deles. Se realmente existiu, essa analogia sempre foi muito relativa, variando de cultura para
cultura.
Uma evidência da relatividade de uma possível analogia com os sexos é o fato de
palavras de línguas diferentes, usadas para nomear o mesmo ‘ser’, terem gêneros diferentes,
como mostram os exemplos a seguir:

Português Masculino Feminino Neutro


flor (fem.) fiore (italiano) fleur (francês) anthos, ous (grego)
flor (espanhol)
Blume31 (alemão)
flos, floris (latim)
casa (fem.) maison (fr.) Haus (al.)
casa (lat., it. e esp.)
oikía, as (gr.)
mar (masc.) mare (it.) mer (fr.) mare, is (lat.)
mar (esp.) mar (esp.) Meer (al.)
See (al.)
thálassa, es (gr.)
leite (masc.) latte (it.) leche (esp.) lac, lactis (lat.)
lait (fr.) Milch (al.) gála, gálaktos (gr.)
livro (masc.) libro (it. e esp.) biblos, ou (gr.) Buch (al.)
livre (fr.) biblíon, ou (gr.)
liber, -bri (lat.)

30
Sobre o conceito de gênero, indicamos AZEREDO, 2008, p. 158-162.
31
Em alemão os substantivos são escritos sempre com inicial maiúscula.
95

árvore (fem.) albero (it.) arbor, is (lat.) déndron, ou (gr.)


arbol (esp.)
arbre (fr.)
Baum (al.)

Quadro 12 – Gênero em diferentes línguas. Fonte: Elaborado pela autora.

A comparação do português com outras línguas, embora não conste dos programas de
História da Língua, é sempre oportuna, pois, além de aguçar a curiosidade científica do aluno,
já o prepara para a disciplina Filologia Românica, na qual ele confrontará formas de diferentes
línguas românicas, e conhecerá um pouco da história das línguas ‘irmãs’ do português.
O graduando também poderá aplicar os conhecimentos aprendidos em HLP à língua
estrangeira que ele estudar, o que certamente gerará bons frutos. Em italiano, por exemplo, há
alguns plurais irregulares, que são resquícios do plural do gênero neutro – il braccio (<
bracchium – braço), mas le braccia (< bracchia); l’uovo (< ovum – ovo), mas le uova (<
ova); il labbro (< labrum – por labium, [br] típico da pronúncia toscana [cf. Il Sabattini
coletti] – lábio), mas le labbra (< labra). Em italiano, essas palavras, no singular, pertencem
ao gênero masculino. Quando flexionadas no plural, no entanto, seguem a desinência original
do neutro e passam ao gênero feminino (muito provavelmente devido à analogia com o -a
final).

________________________________
Reorganização das classes dos adjetivos

Em LC havia duas classes de adjetivos. Os adjetivos de primeira classe eram


triformes (havia uma desinência diferente para cada gênero), já os da segunda
classe podiam ser uniformes, biformes ou triformes. O desaparecimento do
gênero neutro acarretou alguns rearranjos, principalmente na segunda classe.
A primeira classe, que era triforme, continha adjetivos femininos, que se
flexionavam seguindo o paradigma da primeira declinação, e adjetivos
masculinos e neutros, que se flexionavam seguindo o paradigma da segunda
declinação: altus (masc.), alta (fem.) e altum (neutro). Com o desaparecimento
do gênero neutro a primeira classe passou a ser biforme, cada gênero seguindo
o paradigma da respectiva declinação.
Na segunda classe de adjetivos a situação foi um pouco mais complexa. Os
adjetivos triformes apresentavam uma forma para cada gênero – alacer (masc.),
96

alacris (fem.) e alacre (neutro). Os biformes apresentavam uma forma para o


masculino e feminino e outra para o neutro – brevis (masc. e fem.), breve
(neutro). Os uniformes, como o nome antecipa, apresentavam uma única forma
para os três gêneros – felix (masc., fem. e neutro). Os biformes eram
predominantes, sendo os outros atípicos.
Todos os adjetivos de segunda classe, não importando o gênero, seguiam o
paradigma da terceira declinação. Com o desaparecimento do gênero neutro e
com a redução dos casos a apenas um, os adjetivos de segunda classe, que
seguiam o paradigma somente da terceira declinação, passaram todos a
uniformes, terminando em -e ou em consoante (após a queda do -e final, depois
de l, n, r e z). Assim, temos ‘alegre’ < alacre(m), ‘breve’ < breve(m) e ‘feliz’ <
felice(m).
________________________________

As duas classes latinas de adjetivos explicam os tipos de adjetivos que temos em


português. Exporemos, a seguir, uma situação real, ocorrida em uma aula de HLP:
 Uma professora, após explicar o processo de reorganização das classes dos
adjetivos latinos, perguntou aos alunos de que classe(s) vieram os adjetivos
portugueses bom32 e capaz. Os alunos imediatamente ficaram agitados,
alegando que não era possível, para eles, adivinharem a classe originária dos
adjetivos solicitados, pois ninguém ali sabia latim.
A professora, então, explicou que não era necessário um profundo
conhecimento de latim para responder à pergunta. O necessário, na verdade,
era simplesmente a capacidade de raciocinar linguisticamente.
Vendo a inquietação dos alunos, decidiu, então, conduzir o raciocínio
deles para a resolução da questão proposta. Primeiro perguntou como ficaria o
adjetivo bom, colocado após as palavras homem e mulher, ao que os alunos
responderam ‘Homem bom’, ‘Mulher boa’. Depois repetiu a pergunta em
relação ao adjetivo capaz, ao que os alunos responderam ‘Homem capaz’,
‘Mulher capaz’.
Depois de escrever no quadro as respostas dos alunos, a professora pediu
a eles que observassem o comportamento dos dois adjetivos, e perguntou se

32
O par bom / boa (< bono / bona, em LV) é, em português, uma caso específico da 1ª classe. Por questões fonéticas,
desinência de gênero sofreu crase e nasalização: bonus > bono > bõo > bom.
97

desta vez saberiam responder à pergunta ‘De que classe(s) vieram os adjetivos
portugueses bom e capaz?’.
Após uns poucos segundos, alguns alunos mais perceptivos responderam
corretamente: “O adjetivo bom veio da primeira classe, porque é biforme, em
português. Já capaz veio da segunda, pois é uniforme”.
É esse tipo de raciocínio que julgamos imprescindível desenvolver nos alunos.
Aparentemente, eles simplesmente memorizam informações, mas não parecem conseguir
conectá-las de modo a chegar, sozinhos, a uma conclusão, por mais lógica que seja. Tal
capacidade de raciocínio linguístico é fundamental tanto para o futuro professor quanto para o
futuro pesquisador.
Se os alunos não demonstrarem ter essa habilidade, caberá ao professor ensinar e
mostrar (e demonstrar) a eles o caminho a ser seguido para serem capazes de desvendar os
mecanismos da língua.
Após trabalhar as classes de adjetivos em latim, o professor pode abordar os adjetivos
do português. Pode-se dizer, por exemplo, que em português também há duas classes de
adjetivos:
 1ª classe – flexionam-se em gênero, com a terminação -o para o masculino e -a para o
feminino, sendo oriundos da 1ª classe latina:
muro alto / mesa alta
homem fraco / mulher fraca
 2ª classe – não se flexionam em gênero e, de modo geral, têm tema em -e (quando
oriundos da 3ª declinação latina), que pode não aparecer no singular, em virtude de
uma lei fonética, mas que é recuperado no plural. Há, ainda, os que não são de origem
latina, sem tema em -e:
homem / mulher contente – homens / mulheres contentes
leão / leoa feroz – leões / leoas ferozes
menino / menina jururu – meninos / meninas jururus
O Appendix Probi atesta uma tendência do LV em passar adjetivos da 2ª classe para a
1ª, como mostram as correções nº 42 pauper mulier non paupera mulier e nº 56 tristis non
tristus. O português não seguiu essa tendência. Em outras línguas românicas, no entanto,
encontramos exemplo(s) dessa migração, como mostra o quadro abaixo:
98

Masculino Feminino
Espanhol contento contenta
Francês content contente33
Italiano contento contenta
povero (pobre) povera
alegro alegra

Quadro 13 – Migração de classe de adjetivos. Fonte: Elaborado pela autora.

O professor pode perguntar aos alunos se eles conhecem, na língua que estudam (caso
seja românica) algum exemplo de adjetivo biforme que seja uniforme em português. É sempre
produtivo estimular o aluno a usar seus conhecimentos. Participando ativamente da aula ele
estará treinando conectar informações recebidas em disciplinas diferentes, o que, como vimos
dizendo, é o que se espera de um bom professor/pesquisador.

________________________________
Redução das conjugações verbais

A flexão é, de certo ponto de vista, uma forma sintética de passar


informações. O latim era uma língua bastante sintética, característica esta
proporcionada por seu alto grau de flexionismo. A flexão nominal, além de
informar o gênero e o número, como vimos, também informava o caso da
palavra. A flexão verbal latina indicava não só o tempo e o modo, mas também a
voz.
A flexão dos casos não passou às línguas românicas, nem a voz passiva
sintética. Mas o sistema verbal de tais línguas ainda é bastante complexo,
fornecendo diversas informações por meio das desinências.
Os verbos portugueses agrupam-se em três conjugações distintas. A vogal
temática indica a que conjugação o verbo pertence e, portanto, qual o paradigma
a ser usado em sua flexão.
Em latim havia quatro conjugações: a primeira, terminando em -āre; a
segunda, em -ēre; a terceira, em -ĕre e a quarta, em -īre. A terceira conjugação
latina era a única com tema em consoante e a única cujo infinitivo tinha
acentuação proparoxítona. Seu paradigma era muito próximo ao da quarta
conjugação (no infectum) e ao da segunda (no perfectum). Sua desinência de

33
Relembramos que, em francês, todas as vogais finais sofreram apócope, exceto o -a, que passou a -e.
99

infinitivo era quase igual à da segunda, diferindo apenas quanto à sílaba tônica.
Por esses motivos, os verbos dessa conjugação acabaram sendo incorporados
às outras.
Ex.: producĕre > produzir facĕre > fazer
Temos, então, em português, apenas três conjugações, como mostra o
quadro abaixo:

As três conjugações verbais


Conjugação Português
1ª -ar
2ª -er
3ª -ir

________________________________

O sistema de flexão verbal, tanto do latim quanto do português, é bastante complexo.


Não é possível abordar esse tema de forma aprofundada durante apenas um semestre, uma vez
que há outros aspectos importantes da história interna da língua que também merecem
destaque e apresentam um grau mais baixo de complexidade. Pode-se, no entanto, solicitar
trabalhos em grupo, que tratem da passagem de cada tempo verbal do latim ao português,
abordando os aspectos fonético, morfológico e semântico.
A redução das conjugações, porém, deve ser abordada, pois é questão simples, mais
visível e superficial.
Um ponto que não se deve deixar de observar é que, em producĕre > produzir, por
exemplo, a passagem do -ĕ a -i não é um fenômeno fonético, mas um fato morfológico – adequação
ao paradigma da conjugação ao qual o verbo passou a pertencer. Esse é um processo similar ao que
aconteceu de nurus a nura, cuja passagem de -us a -a também é de ordem morfológica, e não
fonética.

________________________________
Analogia

As alterações que ocorrem nas palavras são, em sua maioria, por razões
fonéticas. Às vezes, essa razão fonética é tão constante que quase funciona
como ‘lei’, seguida por praticamente todas as palavras que apresentam uma
mesma determinada condição (como a sonorização das consoantes surdas
intervocálicas).
100

Mas há mudanças que ocorrem não por razões fonéticas e sim analógicas.
Sobre a analogia, diz Coutinho:
A analogia é o princípio pelo qual a linguagem tende a uniformizar-se,
reduzindo as formas irregulares e menos frequentes a outras regulares e
frequentes. [...]
Nas transformações de uma língua, exerce a analogia uma papel
verdadeiramente importante. [...] desviando as palavras do império das leis
fonéticas, ocasiona mudanças em sua estrutura, extremando formas que pela
origem deviam achar-se juntas. [...]
Os casos de analogia podem ser considerados verdadeiras criações. A forma
analógica não motiva logo o desaparecimento da originária. Vive uma a par
da outra durante algum tempo, e nem sempre é a analógica que consegue
triunfar. (2005, p. 150-151)

Mas a analogia não se limita às alterações no nível da fonética, também está


presente na morfologia e na sintaxe. Coutinho diz que de modo geral, “a
analogia é a base de toda a morfologia” (2005, p. 156).
Consideradas erradas, a princípio, as formas analógicas podem vir a ser
tomadas como corretas, sobrepujando as formas originais. Por exemplo, o verbo
impedir era regular (impido, impida), mas, por analogia a pedir, passou a ser
conjugado como este (impeço, impeça). Outro exemplo é a palavra estrela (<
stella), cujo -r- surgiu por analogia a astro.
Um outro caso de analogia na morfologia é o dos verbos anômalos velle,
posse e esse, que, seguindo o modelo dos verbos regulares, passaram a
volere, potere e essere, respectivamente. A associação do -a final com o
feminino, como vimos, também é analógica, uma vez que a 1ª declinação latina,
que tinha o a como vogal temática, era composta quase que exclusivamente de
nomes femininos.
________________________________

O fenômeno da analogia também pode ocorrer na sintaxe, embora seja menos comum
(ou menos estudado, talvez). Por exemplo, como os verbos transitivos diretos são em maior
número que os indiretos, alguns transitivos indiretossão empregados, por analogia, como
diretos. Ex.: Assisti o filme. (Provavelmente por analogia a ver, que é transitivo direto)
101

3.4.3- Sintaxe Histórica

Do ponto de vista sintático (ou morfossintático), o português mantém as mesmas


características do latim vulgar, como o largo uso de preposições e uma ordem mais fixa das
palavras na frase.
O estudo da Sintaxe Histórica, no curso de História da Língua Portuguesa da
graduação, não me parece muito favorável. Os fenômenos fonéticos (abrangendo, também, a
ortografia), morfológicos e morfossintáticos, além da formação do léxico do português
ocupam toda a carga horária do curso.
Além disso, há uma tradição nos estudos históricos do português que tem enfatizado a
fonologia e a morfologia, sobretudo a primeira, sendo mais fácil encontrar material didático
de fonologia diacrônica, e mesmo de morfologia histórica, que de sintaxe diacrônica. É
natural que se privilegiem os temas mais frequentemente abordados na bibliografia sobre o
assunto.
No curso de latim – obrigatório para quem estuda línguas românicas – o graduando,
ainda que de forma não tão aprofundada, toma conhecimento da sintaxe latina (LC). A sintaxe
do LV e a do latim cristão podem ser abordadas, então, na especialização, tanto em Língua
Latina quanto em Língua Portuguesa.

3.4.4- Formação do léxico da língua portuguesa

A formação do léxico de uma língua é sempre um assunto extenso. A neologia é um


dos processos de enriquecimento do léxico. O verbo enriquecer, por exemplo, derivado do
adjetivo rico, data do século XIII (cf. HOUAISS), e é formado por en- (prefixo) + -ri[k]-
(radical) + -ecer (sufixo formador de verbos incoativos). Como, no entanto, os processos de
formação de palavras já fazem parte do programa do curso de Morfologia, o professor de HLP
pode abordar esse tema de forma rápida e pouco aprofundada.
A questão do enriquecimento do léxico da língua portuguesa por meio dos diversos
empréstimos a diferentes línguas estrangeiras ou nativas das antigas colônias portuguesas
pode ser abordada juntamente com a história externa da língua. Esses empréstimos, na
102

verdade, formam uma gigantesca lista de palavras, cujo conhecimento, desvinculado dos
aspectos históricos, não terá muita valia.
Os pontos mais interessantes e mais produtivos na abordagem da formação do léxico,
sob a ótica histórica são: a) o aparecimento de formas divergentes e convergentes e; b) as
escolhas lexicais específicas do português, muitas vezes diferentes das de outras línguas
românicas.
Feitas as devidas considerações sobre o tema, passemos aos conteúdos sugeridos:

________________________________
Formas Divergentes

Quando duas ou mais palavras diferentes provêm do mesmo étimo latino,


denominam-se formas divergentes. De modo geral, quando há formas
divergentes, uma chegou a nós por via erudita e outra, por via popular (seguindo
as tendências fonéticas da língua). Temos, assim, as palavras ‘chão’ e ‘plano’,
derivadas ambas da palavra latina planu, vindo a primeira por via popular, e a
segunda, por via erudita.

Corrente Popular
Ao serem pronunciadas pelo povo, seguindo as tendências fonéticas da
língua, as palavras acabaram dando origem a formas diferentes. Segundo
Coutinho, essas palavras foram veiculadas oralmente e constituem a camada
mais antiga do nosso léxico (cf. COUTINHO, 2005, p. 199). Eis alguns exemplos:
plumbu deu origem a chumbo e a prumo;
articulu originou artigo e artelho;
corona gerou coroa e coronha.

Corrente Erudita
A chegada do Renascimento – e a consequente tentativa de aproximar a
nossa língua do latim – resultou na introdução de vários vocábulos latinos.
Coutinho chama a atenção para o fato de que essas palavras são introduzidas
na língua por intermédio da vista (não de forma oral, como as de cunho popular).
Esses vocábulos – chamados de formas reconstituídas – passaram a conviver,
com as outras formas, já modificadas pelas tendências fonéticas da língua:

Formas divergentes
Étimo Via Erudita Via Popular
duplu duplo dobro
103

plenu pleno cheio


solitariu solitário solteiro
cathedra cátedra cadeira
flamma flama chama
materia matéria madeira
parabola parábola palavra

Corrente Estrangeira
Nossa língua, ao longo do tempo, recebeu influência de diversas línguas. A
influência no vocabulário é a mais comum. Em virtude das Cruzadas, no tempo
da Reconquista e da ‘invasão’ dos trovadores provençais, o léxico da língua
portuguesa foi enriquecido com inúmeras palavras de origem francesa, cuja
evolução, a partir do latim, seguiu as tendências fonéticas específicas do
francês. Embora nossa língua tenha tomado por empréstimo um grande número
de palavras de diversas línguas, citaremos exemplos somente do francês.
Temos, assim:

Corrente estrangeira
Latim Português Francês Português
(via popular ou (via francês)
erudita)
domina dona dame dama
caput cabo chef chefe
officina oficina usine usina
caveola gaiola jeole (ant.) jaula
generale geral général general

Formas Convergentes
Contrariamente ao que aconteceu às formas divergentes, as convergentes são o
resultado de palavras de étimos diferentes que, em virtude de alterações fonéticas,
convergiram, por coincidência para uma única forma:

Formas convergentes
Étimos Português
sanu (adj.)
sanctu (adj.) são
sunt (verbo)
vanu (adj.) vão
104

vadunt (verbo)
filu (subst.)
fio
fido (verbo)
rivu (subst.)
rio
rideo (verbo)
quomodo (adv.)
como
comedo (verbo)

________________________________

Reconhecer formas divergentes e convergentes do português desperta, de modo geral,


o interesse do aluno. É oportuno observar que, embora boa parte das palavras que usamos no
dia-a-dia seja de origem popular, quase sempre as palavras derivadas recuperam o radical
latino, inalterado foneticamente.
Temos, assim, agudo (< acutu), mas acutíssimo; pobre (< pauper), mas paupérrimo;
igreja (< ecclesia), mas eclesiástico; água (< aqua), mas aquático; pessoa (< persona), mas
personalidade; vogal (< vocale), mas vocálico; boca (< bucca), mas bucal; mão (< manu),
mas manipular.
Outra questão interessante são as escolhas lexicais de cada língua, na formação do seu
léxico. Vejamos o quadro abaixo:

Português e Espanhol Francês e Italiano


querer < quaerĕre – procurar, buscar. vouloir/volere < volere (LV < velle LC) –
querer.
queijo/queso < caseu – queijo. fromage/formaggio < formaticu (LV –
relativo à forma ou fôrma do queijo).
perguntar/preguntar < percontare – demander/domandare < demandare –
perguntar, inquirir, indagar. confiar, entregar.
mais/más < magis – mais. plus/più < plus – em maior quantidade,
mais.
cabeça/cabeza < capitia (LV < caput tête/testa < testa – vaso.
LC) – cabeça.
dinheiro/dinero < denariu – moeda argent/argento < argentu – prata (um dos
romana, dinheiro metais com que se cunhavam moedas).
Quadro 14 – Étimos diferentes. Fonte: Elaborado pela autora.
105

A partir do quadro acima podemos ver que muitas vezes as escolhas lexicais da
Península Ibérica divergiram daquelas das outras regiões do antigo império. Um quadro
comparativo como esse poderá despertar o interesse do graduando para a questão do léxico.
Uma vez que na turma há alunos que estudam línguas diversas, eles poderão colaborar
ativamente para o enriquecimento da aula.

3.4.5- Inovações Românicas

Embora o LV tivesse uma tendência simplificadora, também tendia à redundância e à


especificação, por meio de palavras de apoio. Essas características levaram a diversas
inovações.
Uma delas foi a criação dos artigos e dos pronomes pessoais de 3ª pessoa, inexistentes
no LC.
Tanto os pronomes pessoais quanto os artigos definidos originaram-se a partir dos
pronomes demonstrativos latinos ĭlle, ĭlla, mas cada língua românica os tratou segundo suas
tendências fonéticas.
________________________________
Formação dos pronomes pessoais portugueses
Os pronomes pessoais são as únicas palavras que guardam resquícios dos casos
latinos – caso reto (nominativo, vocativo → sujeito, vocativo); caso oblíquo
(acusativo →objeto direto; dativo → objeto indireto).
Veja, abaixo, como se formaram os pronomes portugueses:

Pronomes pessoais

ĭlle
ěgo tū nōs uōs ___
ĭlla

LC
ele /el eles / eis
Português eu tu (arc.) nós vós (arc.)
ela elas
106

OBS: Eo (por ěgo) aparece em textos latinos do séc. VI. O ě tornou-se fechado por
influência do u.
 Em ĭlla > ela, o ĭ, que deveria resultar em [e] (como no masculino), teve seu
timbre aberto por influência do a final. O mesmo fenômeno acontecerá em várias
formas femininas (como porco / porca, torto / torta).
 nōs > nós – ō tornou-se aberto por analogia a nosso;
 uōs > vós – ō tornou-se aberto por analogia a vosso;.
________________________________

É interessante chamar a atenção do aluno para o fato de que a forma do plural da P1 e


da P2 não tem relação com a forma do singular. As formas do plural da P3, no entanto, que
não havia no latim, formaram-se por analogia, acrescentando-se -s às formas singulares.

________________________________
Os Artigos
Os artigos definidos derivam do acusativo de ĭlle, ĭlla – o plural desses, assim como
o dos pronomes, formou-se por analogia, acrescentando-se a desinência de plural (-s)
à forma singular. Já os indefinidos derivam do acusativo do numeral unus, una.
Os artigos definidos se formaram tal qual os pronomes oblíquos átonos
derivados do acusativo – o, a, os, as.
É comum, em português arcaico (e também no galego atual) o artigo unir-se
à palavra anterior – todolos (todos los), ambolos (ambos los)
Os artigos indefinidos, derivados do numeral unus, uns, tiveram a seguinte
evolução:

Os artigos
Latim Português

unu > ùu / hùu > um


Singular
una > ùa > uma

unos > ùos > ùus / hùus > uns


Plural
unas > ùas > umas

________________________________

O fato de os artigos definidos terem-se originado a partir de um pronome


demonstrativo confere-lhes características de pronomes. Vejamos o que diz Azeredo acerca
107

dos procedimentos de referenciação dos sintagmas nominais, a partir de um texto do jornal O


Globo:
‘O pitbull Neném nunca ferira ninguém até ontem, quando atacou seus donos, em
Jacarepaguá. Eles chamaram os bombeiros, mas os vizinhos decidiram linchar o cachorro a
golpes de barra de ferro.’ [O Globo, 30/05/2006]
[...]
Quanto aos pronomes, há os que realizam uma referência independentemente do texto, como
ninguém, que é um quantificador absoluto negativo, equivalente a ‘nenhuma pessoa’; e os que
dependem de alguma informação já disponível, como a forma eles, que tem função
estritamente remissiva, pois apenas recupera uma referenciação já construída no texto: seus
donos.
O artigo definido é um típico recurso de vinculação da informação nova a alguma informação
já disponível para o interlocutor (função equivalente a de eles), seja na sua memória (os
bombeiros), seja em um ponto anterior do texto (o cachorro). Assim, em os bombeiros, o
artigo caracteriza bombeiros como uma instituição socialmente conhecida (disponível na
memória de longo prazo); em os vizinhos, o artigo institui uma relação de posse entre o termo
vizinhos e o termo donos do pitbull; em o cachorro, o artigo indica que cachorro reativa uma
informação já dada no texto e disponível na memória de curto prazo: a menção do pitbull.
(AZEREDO, 2008, p. 239-240)

Como podemos ver, a propriedade de referenciação que os artigos definidos (e


também os pronomes pessoais de terceira pessoa) carregam consigo refletem a carga
semântica e sintática dos pronomes demonstrativos que os originou.
O mesmo não se pode dizer dos artigos indefinidos, que introduzem no texto algo que
ainda não foi referenciado.
Bechara é bastante categórico na diferenciação ente artigos definidos e indefinidos:
Artigo – chamam-se artigo definido ou simplesmente artigo o, a, os, as que se antepõem a
substantivos, com reduzido valor semântico demonstrativo e com função precípua de adjunto
desses substantivos.
A tradição gramatical tem aproximado este verdadeiro artigo de um, uns, uma, umas,
chamados artigos indefinidos, que se assemelham a o, a, os, as pela mera circunstância de
também funcionarem como adjunto de substantivo, mas que do autêntico artigo diferem pela
origem, tonicidade, comportamento no discurso, valor semântico e papéis gramaticais.
(BECHARA, 2005, p. 153)

Vemos, assim, que essa aparentemente desimportante classe de palavras não é


totalmente destituída de carga semântica e que, além disso, cumpre um papel importante na
construção do sentido do texto, participando ‘ativamente’ do processo de referenciação.
Outra inovação românica foi o tempo verbal futuro. Vejamos:

________________________________
Futuro Românico

Futuro do Presente
O futuro latino não passou às línguas românicas, uma vez que o latim vulgar
se valeu de uma perífrase verbal, formada a partir do verbo principal no infinitivo,
com o verbo habēre no presente do indicativo como auxiliar. Com o tempo, o
verbo auxiliar, posposto ao verbo, ligou-se ao verbo principal, formando uma
108

única palavra. As profundas contrações sofridas pelo verbo habēre (ver quadro
abaixo) se justificam por seu emprego tanto proclítico quanto enclítico.

Habere > haver


Habēre Haver
habeo hei
habes hás
habet há
habemus havemos
habetis haveis
habent hão

Na P4 e na P5 o verbo haver não apresenta a forma contrata, mas a julgar


pelas terminações dessas pessoas no futuro, a forma enclítica devia ser
contrata.

Formação do futuro do presente


Futuro (LC) Futuro (LV) Futuro do Presente
amabo amare habeo amarei
amabis amare habes amarás
amabit amare habet amará
amabimus amare habemus amaremos
amabitis amare habetis amareis
amabunt amare habent amarão

Futuro do pretérito
O imperfeito do subjuntivo latino, além de ser empregado como tal, também o
era com o sentido de futuro do pretérito. Em português, esse tempo é formado a
partir do infinitivo combinado com o verbo haver no pretérito imperfeito do
indicativo. Assim, temos – amar + ia (< havia) → amaria; amar + ias (< havias) →
amarias etc.
Também nesse tempo foi a forma contrata de haver a utilizada para a sua
composição.

Formação do futuro do pretérito


Haver (imperfeito) Futuro do Pretérito
109

havia amaria
havias amarias
havia amaria
havíamos amaríamos
havíeis amaríeis
haviam amariam

________________________________

A formação do futuro pode ser trabalhada de diversas maneiras, visando à


compreensão dos mecanismos linguísticos e também à questão da relação entre língua e
estilo.
Ao falar da perífrase verbal que formou o futuro românico, é válido compará-la à atual
formação do futuro de nossa língua, na linguagem coloquial.
Uma boa estratégia pode ser, também, a comparação da formação do futuro do
português com a das outras línguas românicas. Essa será uma forma de estimular o graduando
não só em relação à história da língua portuguesa, mas também da língua estrangeira que ele
estudar.
A comparação é um método de estudo bastante proveitoso. Não devemos esquecer-nos
de que foi a partir da prática desse método que o estudo da linguagem ganhou o status de
ciência. Embora a comparação entre as línguas românicas faça parte do programa de Filologia
Românica, o professor de História da Língua pode abordar o assunto de forma menos
sistemática.
A ideia de abordar a evolução do português comparando-o com as línguas que os
alunos estudam pode render, ainda, uma participação mais ativa do graduando. Esse tipo de
abordagem traz à tona questões como ‘língua e estilo’, ‘dialetação’, ‘língua estrangeira’ e
‘mecanismos linguísticos – morfológicos, sintáticos, fonéticos e semânticos’, dando ensejo a
um trabalho com a língua como um todo – prática que vimos insistindo em apontar como a
mais proveitosa na formação do graduando de Letras.
110

4- CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho buscamos ressaltar a importância dos conteúdos da disciplina


História da Língua Portuguesa para a formação do graduando de Letras. Nossa experiência
acadêmica apontou para a dificuldade ou impossibilidade (por parte da maioria dos alunos)
em tirar conclusões, às vezes bastante óbvias, a partir de certas informações dadas em aula.
Acreditamos que tal dificuldade se dê pela concepção fragmentária que o graduando
tem da língua, acostumado que está com o seu estudo e análise a partir dos tradicionais
‘recortes’ da gramática. Diante dessa situação, apresentamos a disciplina História da Língua
Portuguesa como ‘possibilitadora’ da visão da língua em seu funcionamento como um todo,
o que, segundo cremos, favorecerá a conexão de informações de ‘recortes’ diferentes,
permitindo que o aluno alcance ‘raciocínios’ mais abrangentes.
No primeiro capítulo trouxemos novamente à lembrança o conceito de diacronia, com
o intuito de enfatizar a visão da língua como um todo como instrumento fundamental de
trabalho do futuro professor/pesquisador da língua.
Ao compararmos a formação do graduando de Letras com a formação de um
graduando de Medicina pretendemos evidenciar que o objeto de estudo de ambos é um
sistema complexo, cujo estudo só é viável por meio de sua fragmentação. A formação e a
capacitação de ambos os graduandos, no entanto, só será possível se eles perceberem e
conceberem seus respectivos objetos de estudo como um todo cujas partes interagem e se
influenciam mutuamente. No caso do graduando de Letras, a abordagem diacrônica da
disciplina HLP poderá lhe oferecer tal visão mais abrangente da língua.
No segundo capítulo fizemos um breve resumo do início dos estudos histórico-
comparativos, lembrando que foi graças a esse método (o histórico-comparativo) que os
estudos da língua conquistaram o status de ciência.
Antes do surgimento dos estudos comparativos, a língua/linguagem era estudada a
partir de focos ‘não linguísticos’, propriamente ditos, isto é, no âmbito da Filosofia ou da
Filologia, por exemplo. Foi o estudo histórico da língua que permitiu que ela fosse estudada e
descrita no âmbito da própria língua, fazendo uso de um método próprio – o comparativo.
A língua passou a ser descrita não mais de forma especulativa, mas com base
científica, no sentido de que as conclusões a que se chegavam poderiam ser comprovadas pela
aplicação do seu método próprio.
111

O terceiro capítulo teve como objetivo apontar os diversos tópicos do conteúdo


programático de HLP e a sua relevância para a formação do graduando de Letras. Por meio de
comentários, procuramos apontar em que o conhecimento de cada tópico poderia ser útil ao
aluno. Também oferecemos algumas sugestões de atividades didáticas, visando a conquistar o
interesse do aluno para a disciplina, que, de modo geral, não está entre as suas preferidas.
Outro aspecto que procuramos ressaltar foi a permeabilidade dos conteúdos de HLP,
que servem como ponto de contato com praticamente todas as outras disciplinas do curso de
Letras.
Levantamos, aqui, a questão da visão fragmentária que o graduando tem da língua,
motivada, provavelmente, por seu estudo fragmentado. Aventamos, também, a ideia de que tal
visão fragmentária impossibilita ou dificulta a conexão de informações de ‘recortes’
diferentes, limitando e reduzindo o aproveitamento do aluno e comprometendo a sua
formação profissional. Tal hipótese, no entanto, não foi averiguada a fundo, por não fazer
parte dos objetivos principais deste trabalho. Julgamos, porém, que tal tema pode ser do
interesse de outros pesquisadores, e, consequentemente, vir a ser devidamente desenvolvido.
112

REFERÊNCIAS

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