Texto 2 - Fórum01 - Analise - de - Discurso - Critica-1-55

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Viviane de Melo Resende

Viviane Ramalho

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editoracontexto
Análise de discurso crítica
Viviane de Melo Resende
Viviane Ramalho

Análise de discurso crítica

editoracontexto
Copyright© 2006 Viviane de Melo Resende e Viviane Ramalho
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Contexto (Editora PinskyLtda.)

Capa e diitgntmação
Gustavo S. Vilas Boas
Revisão
DanielaMarini Iwamoto
RuihM.KÍuska

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Cl P)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Resende, Viviane de Melo
Análise do discurso crítica / Viviane de Melo
Resende e Viviane Ramalho. — São Paulo : Contexto,
2006.

Bibliografia
ISBN 85-7244-333-9

1. Análise de textos 2. Análise do discurso


3- Ciências sociais — Pesquisa 4. Fairclough, Norman,
1941 -Críticae interpretação 5. Pesquisa
lingüística 6. Teoria crítica L Ramalho, Viviane.
II. Título.

06-2398 CDD-401.41
índices para catálogo sistemático:
1. Análise do discurso crítica : Linguagem c
comunicação 401.41

EDITORA CONTEXTO
Diretor editorial: Jaime Pinsky
Rua Acopiara, 199 - Alto da Lapa
05083-110-São Paulo-SP
PABX: (11) 3832 5838
[email protected]
www. editoraco n tex Io. com.br

2Q06

Proibida a reprodução total ou parcial.


Os infratores serão processados na forma da lei.
Sumário

Apresentação 7

Noções preliminares 11
Os paradigmas formal ista
e funcionalista na investigação lingüística '12
Linguagem e poder: influências sobre a ADC 14
A constituição da Análise de Discurso Crítica 20

Ciência Social Crítica e Análise de Discurso Crítica -. 25


Discurso como prática social 26
Discurso na modernidade tardia 30
Discurso como um momento de práticas sociais 35
Discurso e luta hegemônica 43
Discurso e ideologia 47
Lingüística Sistêmica Funcional e
Analise de Discurso Crítica 55
Lingüística Sistêmica Funcional
e a complexidade funcional da linguagem 56
Significado acionai c- gênero 01
Significado representacional e discurso 70
Significado identificacional e estilo 76

Exemplos cie práticas cie análise 91


A invasão estadunidense ao Iraque
no discurso da imprensa brasileira 92
O discurso sobre a infância nas ruas
na Literatura de Cordel 114

Considerações finais 145

Bibliografia 153
Apresentação

A Análise de Discurso Crítica (ADC) é uma abordagem


teórico-metodológica para o estudo da linguagem nas
sociedades contemporâneas que tem atraído cada vez mais
pesquisadores (as), não só da Lingüística Crítica mas também
das Ciências Sociais. Há, entretanto, uma carência notável de
obras introdutórias a respeito da ADC. Dada a complexidade
da abordagem - transdisciplinar e multidisciplinar -, muitos(as)
pesquisadores(as) sentem dificuldade quando iniciam suas
leituras em ADC.
Este livro busca suprir parcialmente essa defasagem,
apresentando uma revisão introdutória, mas não superficial,
8 Análise de discurso crítica

da obra de Norman Fairclough, maior expoente da ADC. Trata-


se, então, de uma introdução à Teoria Social do Discurso,
vertente da ADC desenvolvida por esse lingüista britânico. Nossa
revisão abrange, principalmente, três fases de sua produção:
(1) o modelo tridimensional para ADC, presente nas obras
Language and Power (1989) e Discourse and Social Change
(1992), (2) o enquadre de Chouliaraki e Fairclough proposto
em Discourse in Late Modernity: rethinking criticai discourse
analysis (1999), em que se recontextualizam abordagens da
Ciência Social Crítica (esc) na ADC, e (3) o enquadre para a
análise textual em pesquisas sociais, apresentado em Analysing
Discourse: textual analysis for social research (2003), baseado na
Lingüística Sistêmica Funcional (LSF) de Haílíday.
Além de discutir a teoria e o método em ADC, também
abordamos algumas categorias analíticas potencialmente férteis,
pois acreditamos que isso possa ajudar a ilumí nar eventuais análises
futuras. Procuramos ilustrar a discussão com figuras e quadros que
facilitem a consulta na hora do trabalho prático de análise.
Embora o livro seja uma revisão da obra de Norman
Fairclough, não nos restringimos apenas a esse autor. Uma vez
que a ADC operacionaliza conceitos oriundos tanto da
Lingüística quanto das Ciências Sociais, agregamos a este livro
reflexões de autores como Halliday, Bakhtin, Foucault, Van
Leeuwen, Rajagopalan, Thompson, Giddens, Castells, Harvey,
Hall, Gramsci, Bhaskar.
No capítulo "Noções preliminares", discutimos
conceitos básicos da teoria em ADC, como discurso e prática
social. Buscamos localizar a ADC entre os discursos teóricos
Apresentação

da lingüística contemporânea e apontamos alguns estudos


sobre discurso e poder que contribuíram para a constituição
da ADC.
No capítulo "Ciência Social Crítica e Análise de Discurso
Crítica", confrontamos os enquadres teórico-metodológicos
apresentados em Fairclough (2001a) e em Chouliaraki e
Fairclough (1999), sustentando nossa hipótese de que a
centralidade do discurso como foco dominante de análises deu
lugar à centralidade em práticas sociais, de forma que o discurso
passou a ser visto como um momento das práticas sociais,
interconectado a outros momentos igualmente importantes
para pesquisas em ADC.
Tendo em vista a discussão da recontextualização da
Ciência Social Crítica em ADC realizada no capítulo precedente,
em "Lingüística Sistêmica Funcional e Análise de Discurso
Crítica" nos dedicamos à discussão da operacionalização em
Fairclough (2003a) do postulado da Lingüística Sistêmica
Funcional. Queremos lembrar que as duas faces da análise de
discurso, social e lingüisticamente orientada, encontram-se
separadas apenas para fins didáticos — não podem ser separadas
no trabalho analítico, pois o objetivo da análise é justamente
mapear as conexões entre relações de poder e recursos
lingüísticos utilizados em textos. Focalizamos os principais tipos
de significados do discurso propostos em Fairclough (2003a) —
acionai, representacional e identificacional - e discutimos
algumas categorias analíticas da ADC segundo cada um dos tipos
de significado, apresentando alguns exemplos que possam
tornar mais claras as noções discutidas.
l O Análise de discurso crítica

No capítulo "Exemplos de práticas de análise",


apresentamos um breve recorte de nossos trabalhos de pesquisa
a fim de oferecer alguns exemplos de aplicação do arcabouço
teórico-metodológico da ADC em análises que se ocupam de
problemas sociais parcialmente discursivos.
Esperamos, acima de tudo, que este livro represente uma
contribuição para pesquisadores(as) de todas as áreas, os quais,
diretaou indiretamente, trabalham ou podem vir a trabalhar com
análises de textos, estes vistos como produções sociais histo-
ricamente situadas que dizem muito a respeito de nossas crenças,
práticas, ideologias, atividades, relações interpessoais e
identidades. Também queremos acreditar que este livro possa
viabilizar o diálogo entre a Lingüística e as Ciências Sociais a fim
de superar, por um lado, pesquisas em Ciências Sociais que não
contemplam análise de textos e, portanto, tendem a ignorar a
relevância da linguagem nas práticas sociais contemporâneas, e,
por outro, pesquisas em Lingüística que desconsideram teorias
sociais, ignorando que textos constituem produções sociais.
Noções preliminares

A Teoria Social do Discurso é uma abordagem de Análise


de Discurso Crítica (ADC), desenvolvida por Norman
Fairclough, que se baseia em uma percepção da linguagem
como parte irredutível da vida social dialeticamente
interconectada a outros elementos sociais (Fairclough, 2003a).
Trata-se de unia proposta que, com amplo escopo de aplicação,
constitui modelo teórico-metodológico aberto ao tratamento
de diversas práticas na vida social, capaz de mapear relações
entre os recursos lingüísticos utilizados por atores sociais e
grupos de atores sociais e aspectos da rede de práticas em que
12 Análise de discurso crítica

a interação discursiva se insere. Os conceitos centrais da disciplina


são os de discurso e prática social. Neste capítulo, discutiremos
esses e outros conceitos básicos da teoria, buscaremos localizar
a ADC entre os discursos teóricos da lingüística contemporânea
e também apontaremos alguns estudos que contribuíram para
a constituição da ADC e cujos enfoques voltam-se, de certa forma,
para a díade discurso e sociedade.

Os paradigmas formalista
e funcionalista na investigação lingüística
As diferenças entre as abordagens formalista e
funcionalista decorrem de duas visões distintas acerca da
linguagem: z formalista julga a linguagem um objeto autônomo,
enquanto a funcionalista a julga um objeto não suficiente em
si. Isso significa que, para os formalistas, as funções externas
da linguagem não influenciariam sua organização interna, e a
autonomia formal da gramática, nessa perspectiva, não prevê
interseções entre os módulos que a compõem (fonología,
morfologia, sintaxe e semântica), os quais também seriam
autônomos. A perspectiva funcionalista da linguagem, por sua
vez, repousa sobre duas proposições contrárias às da formalista:
a linguagem tem funções externas ao sistema, que são a parte
central dos estudos lingüístico-discursívos, e essas funções
externas são responsáveis pela organização interna do sistema
lingüístico (Schiffrin, 1994).
Tal divergência de prismas entre as abordagens implica
os construtos teóricos de duas gramáticas distintas. De um
lado, a gramática formalista trata da estrutura sistemática das
Noções preliminares lO

formas de uma língua; de outro lado, a gramática flmcionalista


analisa as relações entre as formas e as funções lingüísticas.
Daí ser esse último o modelo mais abrangente, sobretudo
porque, enquanto o paradigma formalista perde de vista as
funções da linguagem, o funcionalista analisa tais funções via
forma, investigando como a forma atua no significado e como
as funções influenciam a forma (Neves, 1997).
Dessas duas diferentes abordagens acerca da linguagem
emergem também duas diferentes definições de discurso. No
paradigma formalista, o discurso é definido como a unidade
acima da sentença; no funcionalismo, como alinguagem em uso.
A definição de discurso como nível de estrutura acima da sentença
contém, segundo Schiffrin (1994), um problema imediato: o
discurso não apresenta características semelhantes às da sentença.
Além disso, se sentenças não têm existência fora do discurso e se
são criadas no discurso, parece contraditório definir o discurso
como constituído daquilo que ele mesmo cria.
Para analistas de discurso, somente o conceito
funcionalista de discurso é aplicável, uma vez que o foco de
interesse não é apenas a interioridade dos sistemas lingüísticos,
mas, sobretudo, a investigação de como esses sistemas
funcionam na representação de eventos, na construção de
relações sociais, na estruturação, reafirmação e contestação de
hegemonias no discurso. Está claro, entretanto, que o
conhecimento acerca da gramática - uma gramática
funcionalista - é indispensável para que se compreenda como
estruturas lingüísticas são usadas como modo de ação sobre o
mundo e sobre as pessoas.
l4 Análise de discurso crítica

E preciso reconhecer, então, a necessidade de equilíbrio


entre forma e função nos estudos da linguagem. Isso porque é
temerário reduzir a linguagem a seu papel de ferramenta social,
bem como reduzi-la ao caráter formal, imanente do sistema
lingüístico, pois "língua não é forma nem função, e sim
atividade significante e constitutiva" (Marcuschi, 2005, p. 3).
A busca desse equilíbrio é uma das grandes contribuições da
Análise de Discurso Crítica, uma vez que se trata de uma
abordagem social e lingüisticamente orientada (Fairclough,
2001a). Nas próximas seções, abordaremos influências teóricas
que possibilitaram essa orientação social e lingüística da ADC.

Linguagem e poder: influências sobre a ADC


A ADC é, por princípio, uma abordagem transdisciplínar.
Isso significa que não somente aplica outras teorias como
também, por meio do rompimento de fronteiras
epistemológicas, operacionaliza e transforma tais teorias em
favor da abordagem sociodiscursiva. Assim sendo, a ADC provém
da operacionalização de diversos estudos, dentre os quais, com
base em Fairclough (2001a), destacamos os de Foucault (l 997,
2003)e de Bakhtin (1997,2002), cujas perspectivas vincularam
discurso e poder e exerceram forte influência sobre a ADC.
Bakhtin (1997, 2002) foi fundador da primeira teoria
semiótica de ideologia, da noção de "dialogismo" na linguagem
e precursor da crítica ao objetivismo abstrato de Saussure
(1981), Em seus ensaios filosóficos marxistas sobre a linguagem,
sustentou que a "verdadeira substância da língua" não repousa
na interioridade dos sistemas lingüísticos, mas no processo social
Noções preliminares l5

da interação zo&z/(Bakhtin, 2002, p. 123).1 Seguindo preceitos


do Materialismo Histórico, essa filosofia apresenta a enunciação
como realidade da linguagem e como estrutura socioideológica,
de sorte que prioriza não só a atividade da linguagem mas
também sua relação indissolúvel com seus usuários.
Bakhtin (2002) sustentou que as leis do objetivismo
abstrato, orientação do pensamento filosófico-lingüístico da
proposta saussuriana, incorrem no equívoco de separar a língua
de seu conteúdo ideológico por postularem que as únicas
articulações a que os signos lingüísticos se submetem ocorreriam,
estritamente, entre eles próprios no interior de um sistema
fechado. Com vistas à superação de tal equívoco, Bakhtin (2002,
p. 94) apresenta o meio social como o centro organizador da
atividade lingüística, refutando a identidade do signo como mero
sinal e desvencilhado do contexto histórico:

O elemento que torna a forma lingüística um


signo não é sua identidade como sinal, mas sua
mobilidade específica; da mesma forma que
aquilo que constitui a decodificação da forma
lingüística não é o reconhecimento do sinal, mas
a compreensão da palavra em seu sentido
particular, isto é, a apreensão da orientação que
é conferida à palavra por um contexto e uma
situação precisos, uma orientação no sentido da
evolução e não do imobilismo.

Na filosofia marxista da linguagem, o signo é visto como


um fragmento material da realidade, o qual a refrata,
representando-a e a constituindo de formas particulares de
lÓ Análise de discurso crítica

modo a instaurar, sustentar ou superar formas de dominação.2


Ao contrário da filosofia idealista e da psicologia, que localizam
a ideologia na consciência, o Marxismo a localiza no signo, dado
que a própria consciência só pode existir mediante sua
materialização em signos criados no processo de interação social:

Desde o começo, pesa urna maldição sobre o


"espírito", a de ser "maculado" pela matéria que
se apresenta aqui em forma de camadas de ar
agitadas, de sons, em resumo, em forma de
linguagem. A linguagem [...] é a consciência real,
prática, que existe também para os outros
homens, que existe, portanto, também primeiro
para mim mesmo e, exatamente como a cons-
ciência, a linguagem só aparece com a carência,
com a necessidade dos intercâmbios com
outros homens.
[...] A consciência é, portanto, de início, um pro-
duto social e o será enquanto existirem homens.
(Marx e Engels, 2002, pp. 24-5).

De maneira seminal, abordava-se a luta de interesses


sociais antagônicos no nível do signo. O potencial móvel e
evolutivo do signo, bem como o que faz dele um instrumento
de refração da realidade, foi apresentado como causa e efeito
de confrontos sociais. De acordo com a tradição marxista de
primazia da luta de classes, cada nova classe que toma o lugar
daquela que dominava antes dela é obrigada a dar aos seus
pensamentos a forma de universalidade e representá-los como
sendo os únicos razoáveis e universalmente válidos:3
Noções preliminares l7

A classe dominante tende a conferir ao signo


ideológico um caráter intangível e acima das
diferenças de classe, a fim de abafar ou ocultar a
luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a
fim de tornar o signo monovalente [...].
Nas condições habituais da vida social, esta
contradição oculta em todo signo ideológico não
se mostra à descoberta. (Bakhtin, 2002, p. 47).

Além da concepção da linguagem como modo de interação


e produção social, o enfoque díscursivo-interacionista de Bakhtin
apresenta conceitos que se tornariam, mais tarde, basilares para
a ADC> a exemplo de gêneros discursivos e de dialogismo.
Em Estética da criação verbal (Bakhtin, 1997), o autor
sustenta, de forma mais detida do que em Marxismo e filosofia
da linguagem, que a diversidade infinita de produções da
linguagem na interação social não constitui um todo caótico
porque cada esfera de utilização da língua, de acordo com suas
funções e condições específicas, elabora gêneros, ou seja, "tipos
de enunciados relativamente estáveis" do ponto de vista
temático, composicional e estilístico, que refletem a esfera social
em que são gerados (Bakhtin, 1997, p. 284).
A perspectiva interacional superou o reconhecimento,
até então defendido pela Lingüística, de dois parceiros da
comunicação: o locutor, ativo, e o ouvinte, passivo. Em
oposição a tal percepção estática da interação verbal, Bakhtin
apresenta uma visão dialógica e polifônica da linguagem,
segundo a qual mesmo os discursos aparentemente não-
dialógicos, como textos escritos, sempre são parte de uma cadeia
l 8 Análise de discurso crítica

dialógica, na qual respondem a discursos anteriores e antecipam


discursos posteriores de variadas formas. A interação é, antes,
uma operação polifônica que retoma vozes anteriores e antecipa
vozes posteriores da cadeia de interações verbais, e não uma
operação entre as vozes do locutor e do ouvinte: "cedo ou tarde,
o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará
um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do
ouvinte" (Bakhtin, 1997, pp. 290-1).
Essa noção de várias vozes, que se articulam e debatem na
interação, é crucial para a abordagem da linguagem como espaço
de luta hegemônica, uma vez que viabiliza a análise de contradições
sociais e lutas pelo poder que levam o sujeito a selecionar
determinadas estruturas lingüísticas ou determinadas vozes, por
exemplo, e articulá-las de determinadas maneiras num conjunto
de outras possibilidades. Conforme discutimos na seção anterior,
o conhecimento da gramática é indispensável para que o(a)
analista de discurso compreenda como estruturas lingüísticas são
usadas como modo de ação sobre o mundo e sobre as pessoas.
O princípio da linguagem como espaço de luta hegemônica
é desenvolvido nos trabalhos de Foucault. Fairclough (2001a,
pp. 64-88) vê em Foucault uma das grandes contribuições
para a formulação da Teoria Social do Discurso. Para a ADC,
importam, dentre as discussões foucaultianas, sobretudo, o
aspecto constitutivo do discurso, a interdependência das praticas
discursivas, a natureza discursiva do poder, a natureza política
do discurso e a natureza discursiva da mudança social.
Foucault (2003, p. 10) destaca a face constitutiva do
discurso. Concebe a linguagem como uma prática que constitui
Noções preliminares l9

o social, os objetos e os sujeitos sociais. Para o filósofo, analisar


discursos corresponde a especificar sodohistoricamente as
formações discursivas interdependentes, os sistemas de regras
que possibilitam a ocorrência de certos enunciados em
determinados tempos, lugares e instituições:

[...] toda tarefa crítica, pondo em questão as


instâncias de controle, deve analisar ao mesmo
tempo as regularidades discursivas através das
quais elas se formam; e toda descrição genealógica
deve levar em conta os limites que interferem
nas formações reais. (Foucault, 2003, p. 66).

Da idéia de regulação social sobre "o que pode e deve ser


dito a partir de uma posição dada em uma conjuntura
determinada" (Maingueneau, 1997, p. 22), que traz à tona
tanto relações interdiscursivas quanto relações entre o discursivo
e o não-discursivo, origina-se o conceito fundamental para a
ADC de ordem de discurso', a totalidade de práticas discursivas
dentro de uma instituição ou sociedade e o relacionamento
entre elas (Fairclough, 1989, p. 29).
Em Vigiar e punir (1997), Foucault discute o conjunto
das práticas discursivas disciplinadoras de escolas, prisões e
hospitais. O autor defende que essas instituições utilizam
técnicas de natureza discursiva, as quais dispensam o uso da
força, para "adestrar" e "fabricar" indivíduos ajustados às
necessidades do poder. Ao sugerir que o poder, nas sociedades
modernas, é exercido por meio de práticas discursivas
institucionalizadas, Foucault (1997) contribui, por um lado,
20 Análise de discurso crítica

para o estabelecimento do vínculo entre discurso e poder e,


por outro, para a noção de que mudanças em práticas
discursivas, a exemplo do aprimoramento das técnicas de
vigilância, são um indicativo de mudança social.
Muito embora reconheça os trabalhos de Foucault como
grandes contribuições para a ADC, Fairclough (2001a) destaca
duas lacunas de que a ADC precisaria se ocupar trans-
disciplinarmente: primeiro, a visão determinista do aspecto
constitutivo do discurso, que vê a ação humana unilateralmente
constrangida pela estrutura da sociedade disciplinar, e, segundo,
a falta de análise empírica de textos.
Para atender aos propósitos da Teoria Social do Discurso,
cujo foco repousa na variabilidade e mudança bem como naluta
social travada no discurso, Fairclough (2001a; 2003a) e
Chouliarakí e Fairclough (1999) operacionalizam a teoria
foucaultiana, entre várias outras (veja o capítulo "Ciência Social
Crítica e Análise de Discurso Crítica"), a fim de aprimorarem a
concepção de linguagem como parte irredutível da vida social.

A constituição da Analise de Discurso Crítica


O termo "Análise de Discurso Crítica" foi cunhado pelo
lingüista britânico Norman Fairclough, da Universidade de
Lancaster, em um artigo publicado em 1985 no periódico/0«mz/
ofPragmatics. Em termos de filiação disciplinar, pode-se afirmar
que a ADC confere continuidade aos estudos convencionalmente
referidos como Lingüística Crítica, desenvolvidos na década de
1970, na Universidade de East Anglia, ampliando em escopo e
em produtividade os estudos a que se filia (Magalhães, 2005). É
Noções preliminares 21

importante salientar, então, que a Análise de Discurso Crítica e


a Análise de Discurso Francesa historicamente pertencem a ramos
distintos do estudo da linguagem.
A ADC se consolidou como disciplina no início da década
de 1990, quando se reuniram, em um simpósio realizado em
janeiro de 1991, em Amsterdã, Teun van Dijk, Norman
Fairclough, Gunter Kress, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak
(Wodak, 2003, p. 21). A despeito de existirem diferentes
abordagens de análises críticas da linguagem, o expoente da
ADC é reconhecido em Norman Fairclough, a ponto de se ter
convencionado chamar sua proposta teórico-metodológica, a
Teoria Social do Discurso, de ADC — convenção que mantemos
aqui, mas com o cuidado de ressaltar que ps estudos em ADC
não se limitam ao trabalho de Fairclough.
Segundo Izabel Magalhães, da Universidade de Brasília —
primeira pesquisadora brasileira a desenvolver trabalho tendo
como referencial teórico-metodológico a ADC —, as principais
contribuições de Fairclough para os estudos críticos da linguagem
foram "a criação de um método para o estudo do discurso e seu
esforço extraordinário para explicar por que cientistas sociais e
estudiosos da mídia precisam dos(as) lingüistas" (Magalhães,
2005, p. 3). Podemos acrescentar a essa lista a relevância que o
trabalho de Fairclough assumiu na consolidação do papel do(a)
lingüista crítico(a) na crítica social contemporânea.
A abordagem faircloughiana de ADC começou a se
constituir como uma ciência crítica sobre a linguagem já em
1989, com o livro La.ngua.ge and Power. Em poucas palavras,
pode-se afirmar que sua obra, desde o início, visava a contribuir
22 Análise de discurso crítica

tanto para a conscientização sobre os efeitos sociais de textos


como para mudanças sociais que superassem relações
assimétricas de poder, parcialmente sustentadas pelo discurso:

A ideologia é mais efetiva quando sua ação é


menos visível. Se alguém se torna consciente de
que um determinado aspecto do senso comum
sustenta desigualdades de poder em detrimento
de si próprio, aquele aspecto deixa de ser senso
comum e pode perder a potencialidade de
sustentar desigualdades de poder, isto é, de
funcionar ideologicamente. (1989, p. 85).4

Essa idéia encontra inspiração na visão de Bakhtin,


discutida neste capítulo na seção "Linguagem e poder:
influências sobre a ADC", de que "nas condições habituais da
vida social, esta contradição oculta [a luta pelo poder] em todo
signo ideológico não se mostra à descoberta" (Bakhtin, 2002,
p. 47, grifo nosso), podendo se tornar senso comum e servir à
instauração, sustentação ou transformação de relações
assimétricas de poder. Então, a desconstrução ideológica de
textos que integram práticas sociais pode intervir de algum
modo na sociedade, a fim de desvelar relações de dominação.
Fairclough (2001a, p. 28) explica que a abordagem "crítica"
implica, por um lado, mostrar conexões e causas que estão
ocultas e, por outto, intervir socialmente para produzir
mudanças que favoreçam àqueles(as) que possam se enconttat
em situação de desvantagem.
Assim sendo, Fairclough (2001a, p. 89) propõe a
operacionalização de teorias sociais na análise de discurso
Noções preliminares 23

lingüisticamente orientada, a fim de compor um quadro


teórico-metodológico adequado à perspectiva crítica de
linguagem como prática social. Para alcançar tal objetivo, a
ADC assenta-se, primeiro, em uma visão científica de crítica
social, segundo, no campo da pesquisa social crítica sobre a
modernidade tardia e, terceiro, na teoria e na análise
lingüística e semiótica.
A visão científica de crítica social justifica-se pelo fato
de a ADC ser motivada pelo objetivo de prover base científica
para um questionamento crítico da vida social em termos
políticos e morais, ou seja, em termos de justiça social e de
poder (Fairclough, 2003a, p. 15).
O enquadramento no campo da pesquisa social crítica
sobre a modernidade tardia é resultado do amplo escopo de
aplicação da ADC em pesquisas que, diretamente ou não,
contemplam investigações sobre discurso em práticas sociais
da modernidade tardia, período em que a linguagem ocupa o
centro do modo de produção do capitalismo.5
A teoria e a análise lingüística e semiótica, por sua vez,
auxiliam a prática interpretativa e explanatória tanto a respeito
de constrangimentos sociais sobre o texto como de efeitos sociais
desencadeados por sentidos de textos.
A reflexão sobre relações dialéticas entre discurso e
sociedade é localizada no contexto da modernidade tardia ou
do novo capitalismo. Em Discourse in Late Modernity,,
Chouliaraki e Fairclough operacional izam conceitos de teorias
sociais críticas sobre práticas sociais características dessa fase
da modernidade, com vistas ao fortalecimento da ADC como
24 Análise de discurso crítica

base científica para investigações da vida social que almejam


contribuir para a superação de relações de dominação. No
próximo capítulo, nos dedicamos à reco n textual ização de
conceitos da Ciência Social Crítica na ADC.
Notas
1
Eagieton (1997, p. 172) reconhece no autor de Marxismo e.filosofiada linguagem (2002} o pai da
análise do discurso, "ciência que acompanha o jogo social do poder no âmbito da própria linguagem".
2
Noção que pode ser claramente encontrada na concepção da ADC de discurso como representação:
"A representação é uma questão claramente discursiva e é possível distinguir diferentes discursos,
que podem representar a mesma área do mundo de diferentes perspectivas ou posições." (Fairclough,
2003a, p. 25).
!
O conceito de ideologia adotado pela ADC: "Ideologias são construções de praticas a partir de
perspectivas particulares que suprimem contradições, antagonismos, dilemas em direção a seus
interesses e projetos de dominação." (Chouliaraki e Fairclough, 1999, p. 26).
4
Todas as traduções de originais citados neste livro são de nossa autoria.
"' Harvey (1992, pp. 135-87} explica que a crise do capitalismo em i 973-75 exigiu que seus seguidores
reestruturassem o modo de produção: a rigidez do fordismo e sua linha de montagem foram
substituídas pelo novo modelo de produção baseado na flexibilidade e em redes, propiciadas pela
dissolução de fronteiras espaço-tem p orais. A produção de bens de consumo materiais e duráveis foi
substituída pela produção Ac serviços—pessoais, comerciais, educacionais e de saúde, como também
de diversão, de espetáculos, eventos, conhecimento, comunicação etc, — ,que, ao contrário de geladeiras
ou carros, cem vida útil menor e aceleram o consumo e o lucro do investimento. Fairclough (2003b,
p. 188) explica que o discurso tem uma considerável importância nessa reestruturação do capitalismo
e em sua reorganização em nova escala, uma vez que a economia baseada em informação e conhecimento
implica uma economia baseada no discurso: o conhecimento é produzido, circula e é consumido
em forma de discursos.
Ciência Social Crítica e
Análise de Discurso Crítica

Neste capítulo discutimos desdobramentos da ADC que


resultaram no aprimoramento do enfoque de discurso como
parte de práticas sociais. Primeiramente, apresentando o
enquadre teórico-metodoiógico de Fairclough (2001a),
discutimos a concepção de discurso como modo de ação
historicamente situado. Essa concepção implica considerar que,
por um lado, estruturas organizam a produção discursiva nas
sociedades e que, por outro, cada enunciado novo é uma ação
individual sobre tais estruturas, que pode tanto contribuir para
26 Análise de discurso crítico

a continuidade quanto para a transformação de formas


recorrentes de ação.
Em seguida, no início da abordagem de novas perspectivas
desenvolvidas no enquadre teórico-metodológico de
Choulíaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2003a),
procuramos apresentar características da modernidade tardia,
uma vez que, seguindo aspectos de teorias sociais, os autores
localizam a discussão sobre discurso nessa fase de
desenvolvimento da modernidade.
Na terceira parte, discutimos a visão crítica explanatória de
discurso como um elemento da vida social interconectado
dialeticamente a outros elementos e suas implicações teórico-
metodológicas; nas duas últimas seções, levantamos questões
sobre discurso, ideologia e lutas hegemônicas. Não só apresentamos
alguns modos pelos quais representações particulares de aspectos
do mundo podem favorecer projetos de dominação, mas também
contemplamos aspectos do conceito gramisciano de hegemonia,
os quais apontam para a possibilidade de subverter, via discurso,
relações de poder assimétricas.

Discurso como prático social


Entender o uso da linguagem como prática social implica
compreendê-lo como um modo de ação historicamente situado,
que tanto é constituído socialmente como também é
constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas
de conhecimento e crença. Nisso consiste a dialética entre
discurso e sociedade: o discurso é moldado pela estrutura social,
Ciência social crítica 27

mas é também constitutivo da estrutura social. Não há,


portanto, uma relação externa entre linguagem e sociedade,
mas uma relação interna e dialética (Fairclough, 1989):

Ao usar o termo "discurso", proponho considerar o


uso da linguagem como forma de práticasocial e não
como atividade puramente individual ou reflexo de
variáveis institucionais. Isso tem várias implicações.
Primeiro, implica ser o discurso um modo de ação,
uma forma em que as pessoas podem agir sobre o
mundo e especialmente sobre os outros, como
também um modo de representação. [...] Segundo,
implica uma relação dialética entre o discurso e a
estrutura social, existindo mais geralmente tal
relação entre a prática social e a estrutura social: a
última é tanto uma condição como um efeito da
primeira. (Fairclough, 2001a, p. 91).

Para construir esse conceito de discurso com vistas à


exterioridade lingüística, mas sem petderanecessáriaorientação
para o sistema lingüístico e a dialética entre linguagem e
sociedade, Fairclough refuta, naturalmente, o conceito
saussutiano deparole, que vê a fala como atividade individual e
que, portanto, jamais se prestaria a umaTeoria Socialdo Discurso.
O autot refuta igualmente a concepção socio-lingüística que,
embora descreva o uso da linguagem como sendo moldado
socialmente, prevê variação unilateral da língua segundo fatores
sociais, descartando a contribuição do discurso para a
constituição, a reprodução e a mudança de estruturas sociais.
Nesse sentido, a inovação da ADC para a análise de discurso é um
28 Análise de discurso crítica

foco também nas mudanças discursiva e social, e não apenas nos


mecanismos de reprodução (Magalhães, 2001).
Assim, Fairclough define discurso como forma de prática
social, modo de ação sobre o mundo e a sociedade, um elemento
da vida social interconectado a outros elementos. Mas o termo
"discurso" apresenta uma ambigüidade: também pode ser usado
em um sentido mais concreto, como um substantivo contável,
em referência a "discursos particulares" - como, por exemplo,
o discurso religioso, o discurso midiático, o discurso neoliberal.
ATeoria Social do Discurso trabalha com um modelo que
considera três dimensões passíveis de serem analisadas
(Fairclough, 2001 a), ainda que essas três dimensões possam estar
dispersas na análise (Chouliaraki e Fairclough, 1999). Kprática
socialé descrita como uma dimensão do evento discursivo, assim
como o texto. Essas duas dimensões são mediadas pàa. prática
discursiva, que focaliza os processos sociocognitrvos de produção,
distribuição e consumo do texto, processos sociais relacionados
a ambientes econômicos, políticos e institucionais particulares.
A natureza da prática discursiva é variável entre os diferentes tipos
de discurso, de acordo com fatores sociais envolvidos. O modelo
(Fairclough, 2001 a, p. 101) é representado pela Figura l, aseguir:

TEXTO

PRATICA DISCURSIVA

PRÁTICA SOCIAL
Figura l - Concepção tridimensional do discurso em Fairclough.
Ciência social crítica 29

O que Fairclough (2001a) propõe em Discurso e


mudança social c um modelo tridimensional de Análise de
Discurso, que compreende a análise da prática discursiva, do
texto e da prática social. A separação dessas três dimensões,
no modelo proposto por Fairclough em 1989 e aprimorado
em 1992 (tradução de 2001a), é analítica: serve ao propósito
específico de organização da análise. As categorias analíticas
propostas em Discurso e mudança social para cada uma das
dimensões da Análise de Discurso podem ser agrupadas
conforme propõe o Quadro l:

TEXTO PRATICA DISCURSIVA PRATICA SOCIAL

vocabulário
gramática
coesão
estrutura textual

IntertextuaHdüdc

Quadro l - Categorias analíticas propostas no modelo tridimensional,

Em um enquadre mais recentemente apresentado,


Chouliaraki e Fairclough (1999) mantêm as três dimensões
do discurso, contudo de maneira mais pulverizada na análise e
com um fortalecimento da análise da prática social, que passou
a ser mais privilegiada nesse modelo posterior. Observa-se que
houve, entre os modelos, um movimento do discurso para a
prática social, ou seja, a centralidade do discurso como foco
dominante da análise passou a ser questionada, e o discurso
passou a ser visto como um momento das práticas sociais.
30 Análise de discurso crítica

As implicações desse movimento dês centralizado r nas


análises empíricas são importantes, especialmente no que
concerne ao foco na dialética e ao caráter emancipatório da
prática teórica em ADC (Resende e Ramalho, 2004).
Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 143) explicam que, embora
um foco central na linguagem e no semiótico seja uma
inclinação normal em lingüística, essa seria uma centralização
problemática para uma teoria que visa a ser dialética, daí a
importância de se enquadrar a Análise de Discurso na análise
de práticas sociais concebidas em sua articulação.
Antes de passarmos à discussão do enquadre de
Chouliaraki e Fairclough (1999) para a análise de discurso,
entretanto, precisamos retomar algumas reflexões
recontextualizadas da Ciência Social Crítica, fundamentais para
a compreensão do modelo.

Discurso na modernidade tardia


Reflexões em ADC sobre características da modernidade
tardia são alimentadas por teorizações giddeanas. Segundo
Giddens (1991, 2002), modernidade tardia é a presente fase
de desenvolvimento das instituições modernas, marcada pela
radicalização dos traços básicos da modernidade:' separação
de tempo e espaço, mecanismos de desencaixe e reflexividade
institucional. Em vários aspectos, as instituições modernas
apresentam certas descontinuidades em relação a culturas e
modos de vida pré-modernos em decorrência de seu
dinamismo, do grau de intetferência nos hábitos e costumes
tradicionais2 e de seu impacto global (Giddens, 2002, p. 22).
Ciência social crítica 31

A reflexividade institucional, característica da


modernidade tardia (ou modernização reflexiva, conforme
Giddens; Beck; Lash, 1997), é conceituada por Giddens (2002,
p. 25) como "a terceira maior influência sobre o dinamismo
das instituições modernas", ao lado da separação espaço-tempo
e dos mecanismos de desencaixe e deles derivada. A separação
de tempo e espaço é "a condição para a articulação das relações
sociais ao longo de amplos intervalos de espaço-tempo,
incluindo sistemas globais", no sentido de que as sociedades
modernas dependem de modos de interação em que as pessoas
estão separadas temporal e espacialmente (Giddens, 2002,
p. 26). A separação espaço-tempo é crucial para o desen-
volvimento de mecanismos de desencaixe, pois este refere-se
ao "deslocamento das relações sociais de contextos locais de
interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas
de tempo-espaço" (Giddens, 1991, p. 29).
A reflexividade da vida social moderna, por sua vez, refere-
se à revisão intensa, por parte dos atores sociais, da maioria
dos aspectos da atividade social, à luz de novos conhecimentos
gerados pelos sistemas especialistas. Devido à relação entre esses
conhecimentos e o monitoramento reflexivo da ação,
Chouliaraki e Fairclough (1999) sugerem que a reflexividade
inerente à ação humana foi "externalizada" na modernidade,
ou seja, as informações de que os atores sociais se valem para a
reflexividade vêm "de fora".
Uma boa parte desse conhecimento é veiculada na
mídia, e uma das características da mídia, segundo Thompson
(1998), é a disponibilidade das formas simbólicas no tempo e
32 Análise de discurso crítica

no espaço. Isso significa também que as formas simbólicas


veiculadas na mídia são desencaixadas de seus contextos
originais e recontextualizadas em diversos outros contextos,
para aí serem decodificadas por uma pluralidade de atores
sociais que têm acesso a esses bens simbólicos. Thompson
(1998, p. 45) esclarece também que "ao interpretar as formas
simbólicas, os indivíduos as incorporam na própria com-
preensão que têm de si mesmos e dos outros, as usam como
veículos para reflexão e auto-reílexão".
Embora a difusão dos produtos da mídia seja
globalizada na modernidade, a apropriação desses materiais
simbólicos é localizada, ou seja, ocorre em contextos
específicos e por indivíduos especificamente localizados em
contextos sociohistóricos. Nesse sentido, Thompson (1998,
p. 158) chama atenção para as tensões e conflitos provenientes
da apropriação localizada dos produtos da mídia na
construção reflexiva de identidades: "com o desenvolvimento
da mídia, indivíduos têm acesso a novos tipos de materiais
simbólicos que podem ser incorporados reflexivamente no
projeto de autoformaçao".
E com base no conceito de reflexividade que Giddens vê
as identidades como uma construção reflexiva, em que as
pessoas operam escolhas de estilos de vida, ao contrário das
sociedades tradicionais, em que as possibilidades de escolha
são pré-determinadas pela tradição. O problema imediato da
teoria de Giddens é que ele se concentra nos aspectos "positivos"
da nova ordem. Nesse sentido, Giddens privilegia as
"oportunidades" geradas pela globalização, ainda que essas
Ciência social crítica 33

oportunidades sejam para uma minoria, em detrimento de


uma maioria para quem apenas restam os "riscos".3
Está claro que a reflexividade é indiscutível em certos
domínios da experiência e para determinadas parcelas da
população mundial, mas será possível afirmar que pessoas
como, por exemplo, os chamados "moradores de rua", que
precisam diariamente se preocupar com a própria sobrevivência,
podem ocupar-se da escolha auto-reflexiva de estilos de vida?
Que estilos de vida têm disponíveis para escolha pessoas que
vivem à margem dos "bens" produzidos pela modernidade?
Sem dúvida, para esses atores, a modernidade adquire contornos
distintos (Resende, 2005a). Sobre a contradição acerca do
conceito de reflexividade, Lash (1997, p. 146) pontua:

Por que, poderíamos perguntar, encontramos a


reflexividade em alguns locais e não em outros? Por
que em alguns setores econômicos e não em
outros? Há certamente um aumento maciço no
número de produtores reflexivos de sofhvares, na
produção de computadores e de semicondutores,
nos serviços empresariais, na construção de
máquinas. Mas, e quanto à criação pós-fordista de
milhões de subempregos, de empregos fabris de
nível inferior; e quanto à criação sistemática de
grandes exércitos de desempregados, especial-
mente entre os jovens do sexo masculino? E quanto
a todas essas posições do novo mercado de mão-
de-obra, que foi rebaixado a uma posição inferior
àquela da classe trabalhadora clássica (fordísta)?
Há, de fato, ao lado dos "vencedores da refle-
34 Análise de discurso critica

xividade", batalhões inteiros de "perdedores da


reflexividade" das sociedades atuais de classes cada
vez mais polarizadas, embora com informação e
consciência de classe cada vez menores? Além
disso, fora da escala da produção imediata, como
é possível uma mãe solteira, que vive em um gueto
urbano, ser "reflexiva"?

Desse modo, o conceito de reflexividade refere-se à


possibilidade de os sujeitos construírem ativamente suas auto-
identidades, em construções reflexivas de sua atividade na vida
social. Por outro lado, identidades sociais são construídas por
meio de classificações mantidas pelo discurso. E, assim como
são construídas discursivamente, identidades também podem
ser contestadas no discurso.
A orientação para a possibilidade de mudança social,
ausente em Foucault, encontra apoio na epistemologia do
Realismo Crítico, cujo expoente é reconhecido no filósofo
contemporâneo Bhaskat (1989) e em conceitos como dualidade
da estrutura (Giddens, 1989), prática social (inspirado na
filosofia marxista dá práxis), internalização (Harvey, 1996),
articulação (Laclau e Mouffe, 2004) e hegemonia (Gramsci,
1988, 1995).
O Realismo Crítico considera a vida (social e natural)
um sistema aberto, constituído por várias dimensões — física,
química, biológica, psicológica, econômica, social, semiótica —,
que têm suas próprias estruturas distintivas, seus mecanismos
particulares e poder gerativo (Chouliaraki e Fairclough, 1999).
Na produção da vida, social ou natural, a operação de qualquer
Ciência social crítica 35

mecanismo é mediada pelos outros, de tal forma que nunca se


excluem ou se reduzem um ao outro. De acordo com Bhaskar
(1989, p. 12), a realidade é estratificada, logo, a atividade
científica deve estar comprometida em revelar esses níveis mais
profundos, suas entidades, estruturas e mecanismos (visíveis
ou invisíveis) que existem e operam no mundo. Com base
nesse preceito epistemológico, a ADC considera a organização
da vida social em torno de práticas, ações habituais da sociedade
institucionalizada, traduzidas em ações materiais, em modos
habituais de ação historicamente situados.
O conceito de práticas sociais é trazido do materialismo
histórico-geográfico de Harvey (1996). Para esse autor, o discurso
é um momento de práticas sociais dentre outros — relações
sociais, poder, práticas materiais, crenças/valores/desejos e
instituições/rituais - que, assim como os demais momentos,
internaliza os outros sem ser redutível a nenhum deles.
Práticas são, então, "maneiras habituais, em tempos e
espaços particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos -
materiais ou simbólicos - para agirem juntas no mundo"
(Chouliaraki e Fairclough, 1999, p. 21). As práticas, assim
compreendidas, são constituídas na vida social, nos domínios
da economia, dapolítica e da cultura, incluindo a vida cotidiana.

Discurso como um momento


de práticas sociais
No enquadre de ADC de Chouliaraki e Fairclough (1999),
o objetivo é refletir sobre a mudança social contemporânea,
30 Analise de discurso crítica

sobre mudanças globais de larga escala e sobre a possibilidade


de práticas emancipatórias em estruturas cristalizadas na vida
social. De acordo com esse enquadre, toda análise em ADC parte
da percepção de umproblema que, em geral, baseia-se em relações
de poder, na distribuição assimétrica de recursos materiais e
simbólicos em práticas sociais, na naturalização de discursos
particulares como sendo universais, dado o caráter crítico da
teoria. O segundo passo sugerido dentro desse método é a
identificação de obstáculos para que o problema seja. superado, ou
seja, identificação de elementos da prática social que sustentam
o problema verificado e que constituem obstáculo para mudança
estrutural. Há três tipos de análise que atuam juntos nesta
etapa: (1) a análise da conjuntura, da configuração de práticas
das quais o discurso em análise é parte, das práticas sociais
associadas ao problema ou das quais ele decorre, (2) a análise da
prática particular, com ênfase para os momentos da prática em
foco no discurso, para as relações entre o discurso e os outros
momentos, e (3) a análise do discurso, orientada para a estrutura
(relação da instância discursiva analisada com ordens de discurso
e sua recorrência a gêneros, vozes e discursos de ordens de discurso
articuladas) e para a interação (análise lingüística de recursos
utilizados no texto e sua relação com a prática social).
O terceiro passo é a função do problema na prática, O
foco nessa etapa da análise é verificar se há uma função
particular para o aspecto problemático do discurso, ou seja,
para além da descrição dos conflitos de poder em que a instância
discursiva se envolve, deve-se também avaliar sua função nas
práticas discursiva e social, A etapa seguinte são os possíveis
Ciência social crítica 37

modos de ultrapassar os obstáculos, cujo objetivo é explorar as


possibilidades de mudança e superação dos problemas
identificados, por meio das contradições das conjunturas. Por
fim, toda pesquisa em ADC; deve conter uma reflexão sobre a
análise, ísto é, toda pesquisa crítica deve ser reflexiva. O
enquadre (Chouliaraki e Fairclough, 1999, p. 60) é representado
pelo quadro abaixo:

ETAPAS DO ENQUADRE PARA ADC DE CHOULIARAKI E FAI1ÍCLOUGH (1999)

l ) Um problema (aiividadc, re fie x i v idade)

(LI) análise da conjuntura

(i) práticas relevantes

4 ] Possíveis maneiras de superar os obstáculos

Quadro 2 - O enquadre para ADC de Chouliaraki e Fairclough.

Esse enquadre para a ADC é mais complexo que a


abordagem anterior e tem acarretado uma ampliação do caráter
emancipatório da disciplina. Primeiro, porque possibilita maior
abertura nas análises; segundo, porque incita, mais que o
modelo tridimensional, o interesse na análise de práticas
problemáticas decorrentes de relações exploratórias; e, terceiro,
38 Análise de discurso crítica

porque capta a articulação entre discurso e outros elementos


sociais na formação de práticas sociais.
Segundo a operacionalização da ADC do Realismo Crítico,
os momentos constituintes de uma prática social são discurso
(ou semiose), atividade material, relações sociais (relações de
poder e luta hegemônica pelo estabelecimento, manutenção e
transformação dessas relações) e fenômeno mental (crenças,
valores e desejos — ideologia). Sobre os momentos de uma
prática particular e a articulação entre eles, Chouliaraki e
Fairclough (1999, p. 21) pontuam:

Uma prática particular traz consigo diferentes


elementos da vida - tipos particulares de
atividade, ligadas de maneiras particulares a
condições materiais, temporais e espaciais
específicas; pessoas particulares com experiências,
conhecimentos e disposições particulares em
relações sociais particulares; fontes semióticas
particulares e maneiras de uso da linguagem
particulares; e assim por diante. Uma vez que
esses diversos elementos da vida são trazidos
juntos em uma prática específica, nós podemos
chamá-los "momentos da prática" e ver cada
momento como "internalizando" os outros sem
ser redutível a eles.

Nessa perspectiva, o discurso é visto como um momento


da prática social ao lado de outros momentos igualmente
importantes — e que, portanto, também devem ser privi-
legiados na análise, pois o discurso é tanto um elemento da
Ciência social crítica 39

prática social que constitui outros elementos sociais como


também é influenciado por eles, em uma relação dialética de
articulação e internalização. Por isso, através da análise de
amostras discursivas historicamente situadas, pode-se perceber
a internalização de outros momentos da prática no discurso,
ou seja, a interiorização de momentos como, por exemplo,
relações sociais e ideologias no discurso. A proposta pode ser
resumida na Figura 2.

Atividade Material

Discurso , „ ,,. ,., . , v Relações


e Semiose ^ PraÜCa S°Clal * Sociais

Fenômeno Mental
Figura 2 - Momentos da prática social.4

De acordo com essa abordagem, uma prática particular


envolve configurações de diferentes elementos da vida social
chamados de momentos da prática. Os momentos de uma
prática são articulados, ou seja, estabelecem relações mais ou
menos permanentes como momentos da prática, podendo ser
transformados quando há recombinação entre os elementos.
O conceito de articulação pode ser estendido para cada um
dos momentos de uma prática, pois também eles são formados
de elementos em relação de articulação interna. Por exemplo,
o momento discursivo de uma prática é formado pela
articulação de elementos como gêneros, discursos e estilos (ver
capítulo "Lingüística Sistêmica Funcional e Análise de Discurso
40 Análise de discurso crítica

Crítica"). A Figura 3 a seguir ilustra a articulação interna de


cada momento da prática social.

Figura 3 - Articulação na estrutura interna


de cada momento da prática social.6

Assim, o momento discursivo de uma prática particular


é o resultado da articulação de recursos simbólicos/discursivos
(como gêneros, discursos, estilos), articulados com relativa
permanência como momentos do Momento do discurso.
Esses recursos são transformados no processo de articulação -
e, desse modo, a articulação é fonte de criatividade discursiva.
A mudança discursiva se dá pela reconfiguração ou pela
mutação dos elementos que atuam na articulação, pela
"redefinição de limites entre os elementos" (Fairclough,
2001a, p. 97). A luta articulatória assim definida é uma faceta
discursiva da luta hegemônica.
A ação social é vista como constrangida pelas
permanências relativas de práticas sociais — sustenta-as ou as
transforma, dependendo das circunstâncias sociais e da
articulação entre práticas e momentos de práticas. A
articulação entre os momentos da prática assegura que a
hegemonia é um estado de relativa permanência de
articulações dos elementos sociais.
Ciência social crítica 41

Aspectos da Teoria da Estruturação de Giddens (1989)


prestam-se à discussão sobre o papel de agentes sociais, e seus
discursos, na manutenção e transformação da sociedade.
Segundo essa teoria, a constituição da sociedade se dá de
maneira bidirecional, ou seja, há uma dualidade da estrutura
social que a torna o meio e o resultado de práticas sociais. Ações
localizadas são responsáveis pela produção e reprodução ou
transformação da organização social. Por isso, mantém-se a
possibilidade tanto de intervir em maneiras cristalizadas de
ação e interação quanto de reproduzi-las.
O caráter relativo das permanências no que se refere a
práticas sociais pode ser entendido no contraste entre
conjunturas, estruturas e eventos. Conjunturas são "conjuntos
relativamente estáveis de pessoas, materiais, tecnologias e práticas -
em seu aspecto de permanência relativa - em torno de projetos
sociais específicos"; estruturas são "condições históricas da vida
social que podem ser modificadas por ela, mas lentamente" e
eventos são "acontecimentos imediatos individuais ou ocasiões
da vida social" (Chouliaraki e Fairclough, 1999, p. 22).
Segundo a autora e o autor, a vantagem de se focalizar as
práticas sociais é a possibilidade de se perceber não apenas o efeito
de eventos individuais, mas de séries de eventos conjunturalmente
relacionados na sustentação e na transformação de estruturas,
uma vez que a prática social é entendida como um ponto de
conexão entre estruturas e eventos. Estruturas sociais são
entidades abstratas que definem um potencial, um conjunto de
possibilidades para a realização de eventos. Mas a relação entre o
que é estruturalmente possível e o que acontece de fato não é
simples, pois os eventos não são efeitos diretos de estruturas: a
42 Análise de discurso crítica

relação entre eles é mediada por "entidades organizacionais


intermediárias", as práticas sociais (Fairclough, 2003a, p. 23).
Assim, pode-se dizer que estruturas, práticas e eventos estão em
um continuum de abstração/concretude.
O enquadre analítico de Chouliaraki e Fairclough,
baseado na crítica explanatória de Bhaskar (1989), parte da
percepção de um problema e da análise de sua conjuntura, o
que evidencia a importância da abordagem das práticas nesse
enquadramento paraADC. Em análises amplas que consideram
conjunturas e estruturas observa-se a constituição de redes de
práticas interligadas. Em outras palavras, se o jogo de
articulação entre os momentos de práticas sociais pode ser
minimizado para se aplicar à articulação interna de cada
momento de uma prática, também pode ser ampliado para se
aplicar à articulação externa, aquela que se estabelece entre
práticas na formação de redes de práticas relativamente
permanentes. Práticas são articuladas para constituir redes das
quais se tornam momentos, como ilustra a Figura 4, a seguir.

Figura 4 - Articulação entre práticas formando rede de práticas.4


Ciência social crítica 43

A abordagem de redes é importante em ADC por dois


motivos: as práticas assim compreendidas são determinadas umas
pelas outras e cada uma pode articular outras gerando diversos
efeitos sociais. As redes são sustentadas por relações sociais de
poder, estando as articulações entre práticas ligadas a lutas
hegemônicas. Desse modo, permanências de articulações são
compreendidas como efeito de poder sobre redes de práticas,
enquanto tensões pela transformação dessas articulações são vistas
como lutas hegemônicas. Dado o caráter inerentemente aberto
das práticas sociais, toda hegemonia é um equilíbrio instável, e a
ADC, no seu papel de teoria crítica, trabalha nas brechas ou
aberturas existentes em toda relação de dominação.

Discurso e luta hegemônica


Ao retomar o conceito de Gramsci, Fairclough (1997,
2001a) caracteriza "hegemonia" como domínio exercido pelo
poder de um grupo sobre os demais, baseado mais no consenso
que no uso da força. A dominação, entretanto, sempre está
em equilíbrio instável, daí a noção de luta hegemônica como
foco de luta sobre pontos de instabilidade em relações
hegemônicas. Na concepção de Gramsci (1988,1995), o poder
de uma das classes em aliança com outras forças sociais sobre a
sociedade como um todo nunca é atingido senão parcial e
temporariamente na luta hegemônica. O conceito de luta
hegemônica, assim compreendido, está em harmonia com a
dialética do discurso (Fairclough, 2001a).
Fairclough (1997) define duas relações que se estabelecem
entre discurso e hegemonia. Em primeiro lugar, a hegemonia e
44 Análise de discurso crítica

a luta hegemônica assumem a forma da prática discursiva em


interações verbais a partir da dialética entre discurso e sociedade -
hegemonias são produzidas, reproduzidas, contestadas e
transformadas no discurso. Em segundo lugar, o próprio discurso
apresenta-se como uma esfera da hegemonia, sendo que a
hegemonia de um grupo é dependente, em parte, de sua
capacidade de gerar práticas discursivas e ordens de discurso que
a sustentem. Nas palavras de Fairclough (1997, p. 80):

O conceito de hegemonia implica o desen-


volvimento - em vários domínios da sociedade
civil (como o trabalho, a educação, as atividades
de lazer) — de práticas que naturalizam relações e
ideologias específicas e que são, na sua maioria,
práticas discursivas. A um conjunto específico
de convenções discursivas [...] estão, impli-
citamente, associadas determinadas ideologias —
crenças e conhecimentos específicos, posições
específicas para cada tipo de sujeito social que
participa nessa prática e relações específicas entre
categorias de participantes.

Uma vez que a hegemonia é vista em termos da


permanência relativa de articulações entre elementos sociais,
existe uma possibilidade intrínseca de desarticulação e
rearticulação desses elementos. Essa possibilidade relaciona-se
à agência humana. Para Chouliarakí e Fairclough (1999), a
ação representa um artifício potencial para a superação de
relações assimétricas, desde que esse elemento ativo seja
subsidiado por uma reflexividade crítica.
Ciência social crítica 45

Reflexividade é um outro conceito caro para a ADC, pois


reflexivídade sugere que toda prática tem um elemento
discursivo, não apenas porque envolve, em grau variado, o uso
da linguagem mas também porque construções discursivas
sobre práticas são também parte dessas práticas.
Segundo Giddens (1991, 2002), a experiência mediada
tornou a vida cotidiana mais influenciada pela informação e
conhecimento e, nesse cenário, a construção de auto-
identidades passou a se sujeitar de forma ampliada a revisões
da reflexividade institucional: "Os indivíduos em cenários pré-
modernos, em princípio e na prática, poderiam ignorar os
pronunciamentos de sacerdotes, sábios e feiticeiros,
prosseguindo com as rotinas da atividade cotidiana. Mas este
não é o caso no mundo moderno, no que toca ao conhecimento
perito" (Giddens, 1991, p. 88, grifo nosso).7
Dessa forma, práticas podem depender dessas
autoconstruções reflexivas, cada vez mais influenciadas por
informações circundantes, para sustentar relações de dominação.
Os sentidos a serviço da dominação podem estar presentes nas
formas simbólicas próprias da atividade social particular ou
podem se fazer presentes nas autoconstruções reflexivas, caso a
ideologia seja internalizada e naturalizada pelas pessoas. No
entanto, a busca pela auto-identidade, que deve ser criada e
sustentada rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo,
também pode sinalizar possibilidade de mudança social.
São os indivíduos, inseridos em práticas discursivas e
sociais, que corroboram para a manutenção ou transformação
de estruturas sociais — uma visão dialética da relação entre
40 Análise de discurso crítica

estrutura e ação. No evento discursivo, normas são modificadas,


questionadas ou confirmadas - em ações transformadoras ou
reprodutivas. Textos como elementos de eventos sociais têm
efeitos causais - acarretam mudanças em nosso conhecimento,
em nossas crenças, atitudes, valores e assim por diante
(Fairclough, 2003a). Essas mudanças não estão, contudo, em
uma relação unilateral, visto que a dialética estrutura/ação
também atua, em sua faceta discursiva, na relação texto/agente
(Chouliaraki e Fairclough, 1999). Agentes sociais são
socialmente constrangidos, mas suas ações não são totalmente
determinadas: agentes também têm seus próprios "poderes
causais" que não são redutíveis aos poderes causais de estruturas
e práticas sociais (Fairclough, 2003a). Isso significa que, embora
haja constrangimentos sociais definidos pelos poderes causais
de estruturas e práticas sociais, os agentes sociais são dotados
de relativa liberdade para estabelecer relações inovadoras na
(inter)ação, exercendo sua criatividade e modificando práticas
estabelecidas. Desse modo, a importância do discurso na vida
social transita entre a regulação e a transformação.
De um ponto de vista discursivo, a luta hegemônica pode
ser vista como disputa pela sustentação de um stafus universal
para determinadas representações particulares do mundo
material, mental e social (Fairclough, 2003a). Uma vez que o
poder depende da conquista do consenso e não apenas de
recursos para o uso da força, a ideologia tem importância na
sustentação de relações de poder. Segundo Eagleton (1997,
pp. 105-6), há distintas maneiras de se instaurar e manter a
hegemonia. A ideologia é uma maneira de assegurar o
Ciência social crítica 47

consentimento por rneio de lutas de poder levadas a cabo no


nível do momento discursivo de práticas sociais.
O conceito de hegemonia, então, enfatiza a importância
da ideologia no estabelecimento e na manutenção da dominação,
pois, se hegemonias são relações de dominação baseadas mais
no consenso que na coerção, a naturalização de práticas e relações
sociais é fundamental para a permanência de articulações
baseadas no poder (Chouliaraki e Fairclough, 1999). Para
Fairclough (1997), as convenções do discurso podem encerrar
ideologias naturalizadas, que as transformam num mecanismo
eficaz de preservação de hegemonias. Uma vez que as ideologias
têm existência material nas práticas discursivas, a investigação
dessas práticas é também a investigação de formas materiais de
ideologia (Fairclough, 2001a).

Discurso e ideologia
A ADC cuida tanto do funcionamento do discurso na
transformação criativa de ideologias quanto do funcio-
namento que assegura sua reprodução. Com vistas para essa
dupla orientação, Fairclough (2001a, p. 117) assim define
as ideologias:

As ideologias são significações/construções da


realidade (o mundo físico, as relações sociais, as
identidades sociais) que são construídas em
várias dimensões das formas/sentidos das
práticas discursivas e que contribuem para a
produção, a reprodução ou a transformação das
relações de dominação.
48 Anólise de discurso crítica

Nesse sentido, determinados discursos podem ser vistos


como ideológicos. Um discurso particular (e, aqui, "discursos"
refere-se ao conceito mais concreto) pode incluir presunções
acerca do que existe, do que é possível, necessário, desejável.
Tais presunções podem ser ideológicas, posicionadas,
conectadas a relações de dominação. E relações de poder,
segundo Fairclough (1989, 2003a), são mais eficientemente
sustentadas por significados tomados como tácitos, pois a busca
pela hegemonia é a busca pela universalização de perspectivas
particulares, O julgamento de quanto uma representação é
ideológica só pode ser feito por meio da análise do efeito causai
dessa representação em áreas particulares da vida social, ou
seja, por meio da análise de como as legitimações decorrentes
dessa representação contribuem na sustentação ou na
transformação de relações de dominação. Daí a importância
de a análise de discurso ser simultaneamente orientada
lingüística e socialmente. O foco na dialética leva Fairclough
(1995, p. 71) a argumentar que:

A ideologia investe a linguagem de várias


maneiras em vários níveis, e nós não temos de
escolher entre diferentes "localizações" possíveis
da ideologia, todas são parcialmente justificáveis
e nenhuma inteiramente satisfatória. A questão
chave é se a ideologia é uma propriedade das
estruturas ou uma propriedade dos eventos, e a
resposta é "ambas". E o problema-chave é
encontrar uma abordagem satisfatória da
dialética entre estruturas e eventos.
Ciência social crítica 49

Ele explica que algumas abordagens localizam a ideologia


apenas na estrutura, com a virtude de captar que eventos são
constrangidos por normas e convenções sociais. A desvantagem
é que a esse tipo de abordagem escapa a possibilidade criativa
dos eventos, que são vistos apenas como realizações do
potencial definido pelas estruturas. A conseqüência é que a
capacidade de ação dos sujeitos não é percebida. Talvez o
melhor exemplo de modelo de análise de ideologia centrado
na estrutura seja o trabalho de Althusser (1985). Por outro
lado, a focalizaçao da ideologia centrada apenas nos eventos
discursivos, embora apresente a vantagem de representar a
ideologia como um processo que transcorre no interior dos
eventos, iluminando a possibilidade de mudança social,
também apresenta a desvantagem de sobrevalorização da
liberdade de ação. A solução é não perder de vista a dialética
entre estrutura e ação: a liberdade dos sujeitos, embora não
possa ser apagada, é relativa.
Já o conceito de ideologia da ADC provém de estudos de
Thompson (1995). Na teoria social crítica de Thompson
(1995), o conceito é inerentemente negativo. Ao contrário das
concepções neutras, que tentam caracterizar fenômenos
ideológicos sem implicar que esses fenômenos sejam,
necessariamente, enganadores e ilusórios ou ligados com os
interesses de algum grupo em particular, a concepção crítica
postula que a ideologia é, por natureza, hegemônica, no sentido
de que ela necessariamente serve para estabelecer e sustentar
relações de dominação e, por isso, serve para reproduzir a ordem
social que favorece indivíduos e grupos dominantes.
50 Análise de discurso crítica

Formas simbólicas8 são ideológicas somente quando


servem para estabelecer e sustentar relações sistematicamente
assimétricas de poder. Os modos gerais de operação da ideologia
elencados por Thompson (1995, pp. 81-9) são cinco, a saber:
legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação.
Por meio da legitimação, relações de dominação podem
ser estabelecidas ou mantidas, sendo representadas como
legítimas, ou seja, a legitimação estabelece e sustenta relações
de dominação pelo fato de serem apresentadas como justas e
dignas de apoio. Afirmações de legitimação podem basear-se
em três estratégias de construção simbólica: a racionalização,
a universalização e a narrativização. Na racionalização, a
estratégia de legitimação baseia-se em fundamentos racionais,
na legalidade de regras dadas a priori\ na universalização,
representações parciais são legitimadas por meio de sua
apresentação como servindo a interesses gerais; na
narrativização, a legitimação se constrói por meio da recorrência
a histórias que buscam no passado a legitimação do presente.
A dissimulação, modo de operação da ideologia que
estabelece e sustenta relações de dominação por meio de sua
negação ou ofuscação, pode ser realizada por construções
simbólicas como deslocamento, eufemização e tropo. No
primeiro caso, há uma recontextualização de termos,
geralmente referentes a um campo e que são usados com
referência a outro, deslocando conotações positivas ou
negativas. Na eufemização, ações, instituições ou relações sociais
são representadas de modo que desperte uma valorização
positiva, ofuscando pontos de instabilidade. O tropo refere-se
Ciência social critica 51

ao uso figurativo da linguagem, que pode servir a interesses de


apagamento de relações conflituosas.
A unificação é o modus opemndi da ideologia pelo qual
relações de dominação podem ser estabelecidas ou sustentadas
pela construção simbólica da unidade. Há duas estratégias de
construção simbólica relacionadas à unificação: a padronização —
adoção de um referencial padrão partilhado — e a simbolização —
construção de símbolos de identificação coletiva.
Na fragmentação, relações de dominação podem ser
sustentadas por meio da segmentação de indivíduos e grupos
que, se unidos, poderiam constituir obstáculo à manutenção
do poder. Uma das estratégias de construção simbólica da
fragmentação é a diferenciação, em que se enfatizam
características que desunem e impedem a constituição de um
grupo coeso, com objetivo de desestabilizar a luta
hegemônica. Outra estratégia é o expurgo do outro, em que
se objetiva representar simbolicamente o grupo que possa
constituir obstáculo ao poder hegemônico como um inimigo
que deve ser combatido.
Por fim, há o modo de operação da ideologia denominado
reificação, por meio do qual uma situação transitória é
representada como permanente, ocultando seu caráter socio-
histórico. Há quatro estratégias de construção simbólica da
reificação: naturalização, eternalização, nominalização e
passivação. Por meio da naturalização, uma criação social é
tratada como se fosse natural, independente da ação humana.
A eternalização é a estratégia por meio da qual fenômenos
históricos são retratados como permanentes. A nominalização
52 Análise de discurso crítica

e a passivação possibilitam o apagamento de atores e ações,


representando processos corno entidades.
O arcabouço de Thompson para análise de construções
simbólicas ideológicas pode ser resumido no quadro (1995,
pp. 81-9) a seguir:

MODOS GERAIS DE OPERAÇÃO DA ESTRATÉGIAS TÍIMCAS DE CONSTRUÇÃO


IDEOLOGIA SIMBÓLICA
RACIONALIZAÇÃO (uma cadeia de raciocínio
procura justificar urn coniunio de relações)
I.EGÍT1MAÇÃO 01NIVE8SAÍ4ZAÇÃO (interessas específicos ião
Relações de dominação são fljp-eseaíadas como apresentados como interesses gerais)
legítimas NARRATIVIXAÇÃO (exigâncias <ie legitimação
inseridas em histórias do passado que legitimam o
presente)
DESLQCAMKNTO (deslocamento contcMuaf de
DISSIMU AÇÃO lermos e expressões)
Relações de domínaçSt são ocultadas, negada1; ou EUFEMi/AÇÃO (valorarão positivü ík'
ôfescureeidas instituições, ações ou relações]
TROPO (siriédixjue, metonímía, metáfora)
PADRONIZAÇÃO i um referenciai padrão
UNIFICAÇÃO prupuxto cuiiio íumiamento parlilhíido)
Construção simbólica de identidade coletiva SÍMBOLIZAÇÁODA UNIDADK (construção de
HÍmholos de unidade e identificação coletiva)
DI!''h,RENCtAÇAO {ênfase em uaracit-ríMicas que
FRAGMENTAÇÃO desunem e impedem a constituição c!e íiesafio
Segmentação cie indivíduos o grupou que possam efetivo)
i'c pi c scntí r ameaça ao grupo dominante I-XPÜRGO DO OUTRO (consírueão simbólica de
um inimigo)
NATURALIZAÇÃO (criação social e hiMóriea
tratitda como aoonteciineuts naluraí)
RI-iriCAÇÀO
ETERNA) .I/AÇÃO ífenômenos socíohisitóricos
apresentados como permanentes)
NOMINAL1ZAÇÃO/ PASSIVAÇAO

Quadro 3 - Modos de operação da ideologia.

A importância dessa abordagem para a pesquisa em Análise


de Discurso é a constituição de um arcabouço para análise de
construções simbólicas ideológicas no discurso. Em outras
palavras, a abordagem de ideologia de Thompson, aliada ao
Ciência social crítica 53

arcabouço da ADC, fornece ferramentas para se analisar,


iingüisticamente, construções discursivas revestidas de ideologia.
Fairclough (2003a) explica que ideologias são, em
princípio, representações', mas podem ser legitimadas em
maneiras de ação social e inculcadas nas identidades de agentes
sociais. Tal compreensão da ideologia baseia-se na formulação
de gêneros, discursos e estilos como as três principais maneiras
através das quais o discurso figura em práticas sociais
(Fairclough, 2003a), de acordo com a recente proposta de
Fairclough (baseada no funcionalismo de Halliday) de se
abordar o discurso em termos de três principais tipos de
significado: o significado represenracional, ligado a discursos;
o significado acionai, ligado a gêneros; e o significado
identifícacional, ligado a estilos. No próximo capítulo,
discutiremos esses três tipos de significado e a relação dialética
que se estabelece entre eles.
Notas
1
"Modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a
partir do século XVll e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência"
{Giddens, 1991, p. 11).
2
Segundo Giddens (l 991-p- 107), tradição diz respeito às maneiras petas quais crenças e práticas são
organizadas, especialmente em relação ao tempo. A tradição contribui de maneira básica para a
segurança ontológica na medida em que mantém a confiança na continuidade do passado, presente
e futuro e vincula esta confiança a práticas sociais rotimzadas.
3
Giddens (1991, p. 38) explica que a noção de risco originou-se no período moderno em decorrência
da compreensão de que resultados inesperados podem ser conseqüência de nossas próprias atividades
ou escolhas, ao invés de se tratar de significados ocultos da natureza.
4
Não consta em Chouliaraki e Fairclough (1999). A Figura ilustra os momentos da prática social,
conforme discutidos no original, procurando captar a articulação entre eles e a importância da
relação que aí se estabelece para o produto da prárica. A articulação entre os momentos de uma
prática social é um equilíbrio insrávci, ou seja, está sujeita à desarticulação c rcaniculação. Esses
quatro momentos podem ser desdobrados em mais momentos: em AnafysingDiscoune, por exemplo,
54 Análise de discurso crítica

Fairclough (2003a, p. 25) sugere cinco momentos, a saber, ação e interação, relações sociais, pessoas
(com crenças, valores, atitudes, histórias), mundo material, discurso.
Não consta em Chouliaralu e Hairclough, 1999.
Não consta em Chouliaralti e Fairclough, 1999.
Muito embora trabalhos de Giddens representem uma grande contribuição para a ADC, alguns
aspectos da teoria giddeana foram criticados por Choulíaraki c Fairclough (l 999), Castclls {l 999)
eLash (1997), dentre outros autores, pelo fato de não contemplarem o universo soda! excluído das
redes de informação. Chouliaraki e Fairclough (1999, pp. 126-7) ponderam que Giddens (1991)
apresenta explicações generalizadas sobre a construção reflexiva do "eu" na modernidade tardia e
privilegia urna posição social particular (branco, macho, de classe média), em vez de considerar que
existem pessoas posicionadas muito diferemerneme, de acordo com classe, gênero, raça, idade ou
geração, e, portanto, com diferentes possibilidades de acesso a tal construção reflexiva. Castells
(1999, p. 27), que discorda do caráter global do "planejamento reflexivo da auto-identidade", postula
que, exceto para uma elite, o planejamento reflexivo da vida torna-se: impossível. Nesse cenário, a
busca pelo significado da vida e pela auto-identidade ocorre no âmbito da reconstrução de identidades
defensivas em torno de princípios comunais, como o fundamentalismo religioso. Lash (1997,
pp. 146-7) aponta que essa falha origina-se na preocupação de Giddens com a ação social cm
detrimento da estrutura.
Formas simbólicas abarcam "um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos
por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos" (Thompson, 1995, p. 79).

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