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REFLETINDO

A
PSICANÁLISE
Ano 02

ORGANIZADORES:

Geraldo Jorge Barbosa de Moura


Ana Cláudia Zuanella
Sandra Paraiso Sampaio
José Fernando de Santana Barros

Recife, 2020
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Sistema Integrado de Bibliotecas da UFRPE
Biblioteca Central, Recife-PE, Brasil

R332 Refletindo a psicanálise: ano 02 / Geraldo Jorge Barbosa de


Moura ... [et al.]. – 1. ed. - Recife: EDUFRPE, 2020.
277 p.

Vários autores.
Inclui referências.

1. Psicanálise 2. Freud, Sigmund, 1856-1939 3. Inconsciente


4. Energia psíquica (Psicanálise) 5. Libido I. Moura, Geraldo Jorge
Barbosa de

CDD 150.1952

ISBN: 978-65-86547-18-4
SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RECIFE-SPRPE
Biênio 2019/2020
Diretoria:
Presidente: Alirio Torres Dantas Júnior
Secretária: Maria de Fátima B. C. Batista
Tesoureira: Magda Sousa Passos
Diretor Cientifico: José Fernando de Santana
Diretora do Instituto: Maria Arleide da Silva

Comissão de Ensino: Ligia Maria Gomes da Silva Rodrigues


Solange Cavalcanti Furtado
Magda Sousa Passos
Maria Tereza Guimarães Lima

Conselho Consultivo: Carolina Cavalcanti Henriques


Austregésilo Castro
Ana Cláudia Zuanella

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO


Quadriênio 2016/2019
Reitoria:
Profa. Dra. Maria Jose de Sena
Vice-Reitor:
Prof. Dr. Marcelo Brito Carneiro Leão

Pró-Reitoria de Administração – PROAD:


Pró-reitor: Mozart Alexandre Melo de Oliveira
Pró-Reitoria de Extensão – PRAE:
Pró-reitora: Profa. Dra. Ana Virgínia Marinho
Pró-Reitoria de Gestão Estudantil e Inclusão – PROGESTI:
Pró-reitor: Prof. Dr. Severino Mendes de Azevedo Júnior
Pró-Reitoria de Ensino de Graduação – PREG:
Pró-reitora: Profa. Dra. Maria do Socorro de Lima Oliveira
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – PRPPG:
Pró-reitora: Profa. Dra. Maria Madalena Pessoa Guerra
Pró-Reitoria de Planejamento Institucional – PROPLAN:
Pró-reitora: Carolina Guimarães Raposo
REVISORES

Dra. Aline André Rodrigues Wageck-SPPA


Dra. Betânia Cristina Guilherme-UFRPE
Dr. Carlos Henrique Ferraz-FAFIRE
Dra. Edilene Freire de Queiroz-UNICAP
Dra. Érika Maria Asevedo Costa-UNICAP
Dr. Geraldo Jorge Barbosa de Moura-UFRPE/SPRPE
Dr. Ivo de Andrade Lima-UFPE
Dra. Mabel Cristina Cavalcanti-SPRPE
Dra. Maria Haydée Augusto Brito-CUFB/SPFOR
Dra. Marisa Amorim Sampaio Cunha-UNICAP
Dr. Moacir Santos Tinoco-UCSAL
Dra. Paula Cristina Monteiro de Barros-UNICAP
Dra. Renata Arouca de Oliveira Morais-SPBSb
Dra. Renata Baltar da Silva-HC/UFPE
Dr. Renata Lira dos Santos Aléssio-UFPE
Dra. Silvana Maria de Barros Santos-UFAL/SPRPE
Dra. Silvia Gomes Laurentino
Dra. Tereza Cristina Cavalcanti de Albuquerque-UFAL
Dra. Terezinha Petrucia da Nóbrega-UFRN
Dedicatória
(In Memorian)

Antônio Carlos Soares Escobar

À Escobar,
Um livro é o resultado final de ideias que fecundaram gerando frutos
com o sabor de um destino representational.
Essa é a tarefa proposta enquanto psicanalistas. Uma vez que significar
e/ ou ressignificar é transformação à serviço do que é construtivo.
A sobrevivência psíquica de uma Sociedade Psicanalítica se faz por e
através de conhecimento e produções científicas.
Sinto uma enorme satisfação e gratidão ao pincelar algumas poucas
palavras em homenagem a Antônio Carlos Soares Escobar.
Seus frutos plantados estão sedimentados. E muitos deles encontram-se
nesse segundo volume do livro através de seus analisandos e supervisionandos
sejam na organização, revisão e correção, ou na escrita dos capítulos.
E assim Escobar nos presenteia em fertilidade a psicanálise.
Assim era e continua sendo Escobar.
Sandra Paraiso Sampaio
PREFÁCIO

Agradeço o gentil convite recebido da comissão editorial


do livro “Refletindo a Psicanálise”, através da nossa amiga Ana
Cláudia Zuanella, para escrever algumas linhas sobre o valor da
escrita.
Fico feliz em constatar esse movimento que a comissão
científica vem realizando. Sabemos que, através da escrita e da
publicação do pensamento psicanalítico contribuímos para o
desenvolvimento e conhecimento da Psicanálise.
A escrita psicanalítica tem como um dos propósitos,
fomentar nossos pares a escreverem e apresentarem suas
experiências analíticas, pesquisas e considerações teóricas de
acordo com a ética e o respeito devido, de forma a ir se
constituindo um pensamento científico que nos represente,
respeitando o sigilo profissional e a natureza do objeto psicanalítico.
Freud, durante os anos de 1887 a 1904, nos apontou o
caminho, quando começou a pensar a psicanálise e a escrever
cartas ao seu amigo Fliess, registrando o nascimento da psicanálise.
E nesse caminho, diversos autores fizeram escolas e enunciaram a
evolução do pensamento psicanalítico.
Que possamos seguir o que nosso mestre nos ensinou,
escrevendo nossos registros, manuscritos, permitindo que se
apresentem nossas inquietações, conhecimentos, sentimentos e
descobertas, colocando em palavras, nossas revelações. E assim,
através da linguagem, promover a materialização do pensamento.
É importante ressaltar que, além de expressarmos nossas
vivências e conhecimentos psicanalíticos, interagimos com a
cultura, com diversas áreas do conhecimento humano, procurando
apresentar uma escrita que seja dinâmica e viva.
Nossa responsabilidade com a escrita cientifica, é um
meio através do qual nos apresentamos como psicanalistas, ao
transmitir com critério nossa prática e sua aplicabilidade, revelando
aspectos inerentes ao comportamento humano, abrangendo o
campo social, cultural e político.
Desejo uma excelente leitura a todos!
Maria Tereza Guimarães Lima
Psicóloga, Psicanalista, Membro Titular da SPRPE
Editora Chefe do Periódico “Psicanálise em Revista” da SPRPE
APRESENTAÇÃO

Green (1988) nos diz que a “metapsicologia só serve para


pensar. E sempre retroativamente, não da poltrona analítica,
mas naquela na qual o analista senta frente a uma folha branca
que estimula ou inibe seu intelecto”. Inicio esta apresentação
com as palavras de um autor que muito admiro para dizer o que
penso da escrita analítica e deste livro, por consequência.
É a escrita das ideias e teorias que mantém em atividade
nosso pensamento psicanalítico, uma vez que, através desse
caminho, criamos, recriamos, colocamos à prova, submetemos
a avalições e críticas o que estamos refletindo. A escrita nos faz
Refletir e Reflete o que estamos elaborando, daí o nome que
escolhemos para esta série de livros.
A clínica faz a psicanálise viva e a teoria faz a psicanálise
perpetuada. Sem a escrita não haveria o terceiro eixo que
define a Psicanálise e esta perderia sua identidade. Construir um
livro é uma forma de concretizar esse ato tão necessário à
manutenção do nosso ofício, daí a imensa alegria em ver um
projeto conjunto como esse sendo concluído.
Este livro, que é o resultado da parceria da Universidade
Federal Rural de Pernambuco e da Sociedade Psicanalítica de
Recife, somente aconteceu devido à quinze autores que, ao fim
do dia, sentaram em frente a uma folha em branco e se viram
estimulados em seus intelectos para produzir o que leremos a
seguir. A esses bravos escritores, nosso grande e entusiasmado
agradecimento!
Iniciamos de maneira brilhante com o capítulo de um
consagrado escritor e pensador da atualidade, Inácio A. Paim
Filho, intitulado “Complacência somática – uma estranha
condição entre o corpo biológico e o corpo pulsional”. Nele o
autor trata da relação do corpo biológico e o corpo pulsional,
utilizando como ponto de discussão o conceito freudiano de
complacência somática. Desenvolve este conceito em três
situações, no corpo do histérico, do hipocondríaco e do
psicossomático.
Passamos a seguir para outro grande autor, Alírio Dantas
Júnior, com sua ótima contribuição “Sobre a violência: ensaio
sobre narcisismo e desobjetalização”, em que discorre a respeito
da violência de um ponto de vista metapsicológico, tendo
como base a concepção freudiana do narcisismo e a pulsão de
morte com a tendência à desobjetalização.
O terceiro capítulo tem como título “Nem a santa nem a
meretriz”, de autoria de Ana Cláudia Zuanella, onde a autora é
levada a hipotetizar sobre o porquê das queixas femininas na
esfera do amor. Na busca por possíveis respostas, utiliza a
psicanálise freudiana para entender como o Inconsciente pode
influenciar a forma como a mulher é vista culturalmente e isso
repercutiria nas suas escolhas amorosas.
No quarto capítulo temos a valiosa participação de
Maria Arleide da Silva sobre “O estranho e a clínica
psicanalítica”, em que a autora, tendo como referencial teórico
o artigo “O inquietante” de Freud, realiza uma reflexão sobre o
estranho na clínica psicanalítica, onde este se apresenta através
da compulsão à repetição. Aborda também o recalque
posterior, em que a pulsão se faz representar por ideias estranhas
e desconhecidas, presentes nas neuroses de transferência as
quais se estruturam em torno do complexo de castração. Numa
tentativa de ilustrar esse acontecer psíquico toma como
exemplo o sonho.
No quinto capítulo, Austregésilo Castro nos brinda com
um delicioso texto “Arqueólogos e montanhistas”, em que utiliza
os mitos tebanos como inspiração para a ontologia humana. O
autor utiliza uma vinheta clínica para falar de perturbações que
se referem ao corpo, à ação e aos sentimentos, mostrando a
evolução do paciente e como a dupla analista/analisando
trabalham como arqueólogos e montanhistas.
Geraldo Jorge Barbosa de Moura e Roberta Míriam
Barbosa de Moura são os autores do bem articulado sexto
capítulo intitulado “Narcisismo(s)”, em que apresentam um
histórico sobre a construção do conceito do narcisismo em
Freud, enfatizando seu papel na constituição do sujeito.
O sétimo capítulo de autoria de Sílvia Farrapeira Cabral
traz o importante tema de “Uma análise sobre melancolia e
suicídio”, no qual a autora trata dos processos que levam ao
transtorno depressivo grave, abordando a associação entre o
luto e a melancolia, a predisposição ao adoecimento, as
recidivas periódicas, a tendência a se transformar em mania e
por fim, o ato suicida.
No oitavo capítulo, a autora Maria Josivalda Pereira de
Castro traz um ótimo texto cujo título é “Amor e ódio na
constituição do sujeito humano” em que, utilizando Freud, Klein
e Winnicott, discorre sobre como os sentimentos de amor e ódio
se manifestam na primeira relação do bebê com o seu objeto
primeiro de desejo e como esses sentimentos vão contribuir para
a formação do narcisismo primário e constituir o sujeito humano
e sua individualidade.
“O enquadre psicanalítico como possibilidade de
espaço e tempo transgressor ao imperialismo do agir
contemporâneo” é o título do interessante nono capítulo escrito
por Renato Campos Pordeus em que o autor faz uma reflexão
acerca do enquadre para que este possa desenvolver seu
potencial de mudança revolucionária no sujeito
contemporâneo, trazendo Adorno enquanto interlocutor.
No décimo capítulo, de autoria de Denise Alencar, temos
um belo ensaio que interroga “Análise terminável e
interminável?” em que a autora partindo do texto freudiano e
se utilizando de autores pós-freudianos escreve sobre a relação
do tempo com a análise, tendo como disparadores as questões:
Como o tempo se constitui no psiquismo? A análise tem um
término?
Bianca Rizzo Barbosa Lima é a autora do nosso décimo
primeiro capítulo, intitulado “Algumas considerações sobre o
estudo das neuroses com ênfase na dissolução do complexo de
édipo” no qual ela traz uma bem articulada apresentação das
neuroses em Freud desde quando ele abandonou a teoria do
trauma e passou a valorizar a fantasia e a repressão; trazendo
também uma diferenciação em relação às psicoses.
No décimo segundo capítulo, “Sublimação como
afastamento do sofrimento e concretização do possível”, temos
a contribuição de Kalina Gerciane Oliveira Alpes, onde a autora
utiliza a teoria freudiana para desenvolver o tema da
sublimação enfocando especialmente as artes. Como
ilustração apresenta a música Tigresa de Caetano Veloso.
Para encerrar, fechando com chave de ouro, temos dois
ótimos autores, Philippe José de Fontes Oliveira e Maria de
Fátima Vilar de Melo escrevendo o décimo terceiro capítulo,
“Discurso de ódio e redes sociais virtuais: um olhar através da
psicanálise”, em que utilizam os conceitos de pulsão escópica e
invocante em Freud e Lacan para tentar responder porque
pessoas aparentemente comuns, ao entrar em uma rede social
virtual, passavam a disseminar ódio sem o menor pudor.
Este livro foi feito para você, leitor, desfrute-o!

Ana Cláudia Zuanella


Organizadora do livro Refletindo a Psicanálise
Membro efetivo e didata da SPRPE
SUMÁRIO

I
COMPLACÊNCIA SOMÁTICA – UMA ESTRANHA CONDIÇÃO

10
ENTRE O CORPO BIOLÓGICO E O CORPO PULSIONAL
Ignácio A. Paim Filho

II
SOBRE A VIOLÊNCIA: ENSAIO SOBRE NARCISISMO E

42
DESOBJETALIZAÇÃO
Alírio Dantas júnior

III
NEM A SANTA NEM A MERETRIZ

56
Ana Cláudia Zuanella

IV
O ESTRANHO E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

91
Maria Arleide da Silva

V
ARQUEÓLOGOS

103
Austregésilo Castro

VI
NARCISISMO(S)
115

Geraldo Jorge B. de Moura & Roberta Míriam B. de Moura


VII
UMA ANÁLISE SOBRE MELANCOLIA E SUICÍDO

129
Sílvia Farrapeira Cabral

VIII
AMOR E ÓDIO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO HUMANO

144
Maria Josivalda Pereira de Castro

XI
O ENQUADRE PSICANALÍTICO COMO POSSIBILIDADE DE

167
ESPAÇO E TEMPO TRANSGRESSOR AO IMPERIALISMO DO
AGIR CONTEMPORÂNEO
Renato Campos Pordeus

X
ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL?

190
Denise Maria Nunes Alencar Patriota

XI
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DAS

206
NEUROSES COM ÊNFASE NA DISSOLUÇÃO DO COMPLEXO
DE ÉDIPO
Bianca Rizzo Barbosa Lima Marques

XII
A SUBLIMAÇÃO COMO AFASTAMENTO DO SOFRIMENTO E 217
CONCRETIZAÇÃO DO POSSÍVEL
Kalina Gerciane Oliveira Alpes

XIII
DISCURSO DE ÓDIO E REDES SOCIAIS VIRTUAIS: UM OLHAR
237

ATRAVÉS DA PSICANÁLISE
Philippe José de F. Oliveira & Maria de Fátima Vilar de Melo
Refletindo a Psicanálise-2020 10

CAPÍTULO I
Refletindo a Psicanálise-2020 11

COMPLACÊNCIA SOMÁTICA – UMA ESTRANHA


CONDIÇÃO ENTRE O CORPO BIOLÓGICO E O
CORPO PULSIONAL

Ignácio A. Paim Filho


Psicanalista, membro pleno do CEPdePA, membro titular com função didática
da SBPdePA. Autor dos livros: Novos tempos, velhas recomendações (Paim
Filho e Leite) Metapsicologia - um olhar a luz da pulsão de morte; Sobre o
filicídio - uma introdução (Paim Filho e Borges) e Inconfidências
Metapsicologicas – Das Unheimliche

Resumo
Esse texto versa sobre as intrigantes relações – concomitante
dependente – entre o corpo biológico (território dos instintos) e o
corpo pulsional (território da pulsão de morte e de Eros), tomando por
interlocutor o conceito freudiano de complacência somática. Este que
tem seu nascimento estreitamente vinculado com a histeria. No
decorrer das suas ideias o autor busca fundamentar a importância de
um alargamento do referido conceito, expandindo sua vigência a todas
as estruturas psíquicas. Para isso vai trabalhar sua presença no corpo
histérico, no corpo hipocondríaco e no corpo psicossomático.
Paralelamente a essa proposição, busca construir uma ponte entre a
concepção freudiana de neurose atual – “angustia sem conteúdo” –,
com a pulsão de morte – pura intensidade, ambas tendo o corpo como
escoador privilegiado, quando da impossibilidade de um tramite
psíquico mais elaborado.
Palavras-chave: complacência somática; neurose atual; pulsão de
morte; corpo pulsional.

“Pois um sintoma de uma neurose ‘atual’


é frequentemente o núcleo e o primeiro
estádio de um sintoma psiconeurótico”
(Freud, 1917, p. 455).
Refletindo a Psicanálise-2020 12

No final do século XIX, Freud estava envolvido com seus


questionamentos sobre a etiologia das neuroses, em suas
estreitas relações com o corpo e com a psique, rascunhando
diferenças e semelhanças. Nesse sentido, a partir de 1894,
encontramos em sua correspondência com Fliess, rascunhos
que começam a delinear a distinção entre duas ordens
psicopatológicas: as neuroses atuais e as neuroses de defesas.
No Rascunho E temos uma amostra desse pensar inaugural:
“Assim, um certo papel é desempenhado nisso pela tensão
física e pelo impedimento de descarga na direção psíquica”
(Freud a Fliess, 1894, p. 82). Esse rascunho apresentará
desdobramentos no texto Sobre os fundamentos para destacar
da neurastenia uma síndrome específica denominada “Neurose
de angústia” (Freud, 1895 [1894]). Neste encontramos uma
sistematização das ideias anteriormente delineadas, agora em
forma de artigo a ser publicado, no qual a neurose de angústia
é explicitamente reconhecida como tensão somática sem
trâmite psíquico: “[...] o mecanismo da neurose de angústia deve
ser buscado numa deflexão da excitação somática da esfera
psíquica e no consequente emprego anormal da excitação”
(Freud, 1895 [1894], p.106).
Entretanto, será em 1898, no trabalho A sexualidade na
etiologia das neuroses, que essas entidades clínicas irão ser
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claramente diferenciadas e terão delimitados seus territórios:


“Assim, em todos os casos de neuroses há uma etiologia sexual;
mas na neurastenia é uma etiologia de tipo contemporâneo,
enquanto nas psiconeuroses os fatores são de natureza infantil”
(Freud, 1898, p. 240). Em relação a esse fator infantil agrega: “[...]
pertencem, não ao momento atual, mas a uma época passada,
que é, por assim dizer, pré-histórica – à época da primeira
infância; e eis por que o paciente nada sabe dela. Ele os
esqueceu – embora apenas em determinado sentido” (Freud,
1898, p. 240). Temos nessa frase o prenúncio que virá a ser
trabalhado, em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade.
Antes de avançarmos se faz necessário discriminar como
compreendemos as neuroses atuais. Em primeiro lugar
destacar que o atual refere-se que a origem, ou ainda, o fator
desencadeante do sintoma deve ser buscado num
acontecimento sexual contemporâneo. Nesse sentido, Freud vai
caracterizar três tipos de neuroses atuais. Num primeiro
momento a neurastenia – apaziguamento da tensão sexual
somática de forma inadequada, por exemplo, a masturbação
excessiva, isso produziria fadiga, desânimo [...] e neurose de
angústia – tensão sexual somática que invade o psiquismo de
forma intensa, não passível de elaboração, que induz a uma
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angústia generalizada, que se manifesta de forma dramática no


corpo, revelando a invasão de um pulsional excedente sobre o
biológico: taquicardia, falta de ar, sensação iminente de morte,
dor no peito, enfim o desamparo originário comunicando sua
intensidade - Das Ding (Freud, 1950 [1895]) - com sua
precariedade. Dentro desse escopo, em resenha a um livro de
Löwenfeld (1904), refere-se à angústia “sem conteúdo” (Freud,
p. 372). Mantendo essa visão, em 1912, levanta a hipótese da
hipocondria como uma terceira neurose atual e aventa a
possibilidade desta estar vinculada a uma gênese tóxica.
Ressalta o não estar implicado em sua origem a algo histórico
ou simbólico: “[...] não podem ser compreendidas como
substitutos da satisfação sexual ou como conciliações entre
impulsos instintuais opostos” (Freud, 1912, p. 314).
Finalmente, em 1914, Freud confirma a hipocondria como
uma terceira neurose atual – vinculada ao prazer do órgão,
pulsão parcial com um trabalho psíquico muito incipiente,
aquém de um corpo representacional simbólico, porém mais
além do corpo somático, ou ainda, o corpo das afecções
psicossomáticas.
Por esse percurso, em 1917, retoma a temática das
neuroses atuais reafirmando a ausência de significado psíquico,
libido livre, e vinculada de forma estreita com o corpo somático:
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“Mas os sintomas [...]. Não só manifestam predominantemente


no corpo, como também constituem, eles próprios, processos
inteiramente somáticos [...]” (Freud, 1917, p. 451). Nesse trajeto
faz uma intrigante aproximação com as doenças autoimunes, ou
ainda, com intoxicação internas e externas. Destaco o exemplo,
usado por ele, da doença de Graves. Essa concebida como uma
intoxicação interna, falha no processo metabólico do corpo, que
em decorrência do não reconhecer das substâncias produzidas
como pertencente ao próprio corpo, o ataca, produzindo lesão.
A partir dessa constatação, Freud faz uma analogia na qual,
falhas no metabolismo da libido – ‘metabolismo sexual’ (Freud,
1917, p. 453) – na fonte, no corpo, impedem o seu uso adequado
pelo soma e/ou pelo psíquico: lesão tóxica direta (Freud, 1917, p.
453). Importante notarmos a ideia de algo tóxico, já assinalado
em 1912. Será num futuro próximo (1920) a pulsão de morte, não
metabolizada, algo tóxico? Se assim o for, esse seria um
caminho para fundamentar as suas implicações na letalidade
“tóxica” do corpo pulsional que transborda sobre o biológico?
Entretanto, estranhamente, apesar de frisar com ênfase o
lugar das neuroses atuais no soma, sem vínculo psíquico, no
decorrer dessa Conferencia de 1917, a XXIV, nos surpreende com
a afirmação que está na epígrafe – neurose atual primeiro
estágio de um sintoma psiconeurótico e complementa: “Uma
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relação dessa espécie pode ser observada como muita nitidez


entre a neurastenia e a neurose de transferência, conhecida
como ‘histeria de conversão', entre a neurose de angústia e
histeria de angústia [...] entre a hipocondria [...] e a parafrenia”
(Freud, 1917, p. 455). Importante lembrar que, em 1894, já
encontramos uma breve ligação entre a neurose histérica e a
neurose de angústia: “[...] a neurose de angústia é, realmente o
equivalente somático da histeria (Freud, 1894, p. 111). Possível
ponto de encontro entre o corpo biológico e o corpo pulsional?
Em 1925, no seu Estudo autobiográfico assinala, outra vez,
a importância das neuroses atuais: “Se hoje lanço um olhar
retrospectivo aos meus primeiros achados, eles me
surpreendem como sendo delineamentos toscos daquilo que é
provavelmente um assunto mais complicado. Mas no todo ainda
me parecem válidos” (Freud, 1925, p, 39). Por essas trilhas
ressalta a questão somática e a ideia de intoxicação. Contudo
comenta que infelizmente não pode desenvolver essa temática
com maior profundidade. Desafio que nos legou? Acredito que
sim.
De maneira sintética esse seria o quadro da neurose atual
proposto por Freud. Sendo assim, que leitura podemos fazer
dessa entidade clínica – caracterizada por uma ausência de
história – à luz da teoria pulsional, em especial, a pulsão de
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morte com suas implicações nos traumas precoces? Ainda,


seria a angústia um bom sinalizador para diferenciar e/ou
delinear os caminhos pelos quais vai se estabelecendo a
arquitetura do corpo somático e do corpo pulsional? Parece-me
que temos aqui rabiscados, os germes originários do conceito
de pulsão de morte, a pulsão por excelência, concebido por
Freud a partir de 1920. Nesse sentido, ocupar-me-ei,
especificamente da neurose de angústia, pois vejo nela a
representante maior da força do desligado da pulsão. Essa
tomada de posição também está balizada pela ideia de que a
angústia é a forma mais fidedigna de apresentação da
intensidade (Drang) pulsional.
Diante dessa proposição lancemos um olhar pontual para
as concepções construídas, pelo pensar freudiano, para
fundamentar uma teoria da angústia. Lembrando que as
compreendemos como complementares, uma vez que Freud
nunca abriu mão da ideia de neurose de angústia. A primeira
teoria da angústia (1894/1898): libido somática – tensão física
sexual – que assalta o psíquico, sem ligação com as inscrições
psíquicas, impossibilidade de elaboração; segunda (1909/1915),
neuroses históricas, o recalque produz angústia – desligando a
representação do afeto – entretanto estamos na esfera do
passível de elaboração psíquica; terceira (1926), faz uma
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correção em relação à segunda: é a angústia de castração que


põe em marcha os mecanismos de contenção da demanda
pulsional, por exemplo, o recalque.
Neste texto de 1926, Freud postula também a existência de
uma angústia pulsional desgarrada, que remete ao desamparo
nomeando-a de angústia automática. Tal percepção anuncia a
inexistência de uma mediação psíquica, de um registro
simbólico que comunica a ausência das leis do recalque. Essa
angústia automática se apresenta na clínica de forma similar à
neurose de angústia. Entretanto, agora não se trata de libido
desgarrada, mas sim de pulsão de destruição precariamente
domesticada pela libido. Desta forma, amplia o complexo de
castração e sua relação com a teoria da angústia: separação do
corpo da mãe, desmame, perda das fezes e descoberta da
diferença anatômica entre os sexos. Momento de equiparar o
temor da castração ao medo da morte: “Estou inclinado,
portanto, a aderir ao ponto de vista de que o medo da morte deve
ser considerado como análogo ao medo da castração [...]”
(Freud, 1926, p. 153).
Retomando a especificidade, do atual na neurose de
angústia, façamos alguns assinalamentos sobre os clássicos
textos de 1894 e 1898 que versam sobre – “A alienação entre as
esferas psíquica e somática” (Freud, 1894, p. 108) – o intuito de
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conectá-lo com a teoria pulsional de 1920, e seus resultados na


construção da anatomia psíquica. Nesse texto Freud tece de
forma explícita como a compreende, em sua intrínseca relação
com o corpo, aquém de qualquer ideia de conflito. Portanto
ausência de história. Em primeiro lugar é importante sublinhar,
como já dito: essa neurose não tem seu nascimento vinculado
com a ideia de uma representação incompatível, sofrendo a
ação do recalque. A rica sintomatologia presente nessa neurose
é a personificação substituta da descarga que deveria ocorrer
como resultante de uma excitação sexual normal: descarga
motora no ato sexual. De maneira sintética podemos afirmar
que sua maior especificidade é a de um excesso não passível de
transformação psíquica: quantidade sem qualidade –
perturbação da economia psíquica e impossibilidade simbólica.
Esse postulado nos evoca, mais uma vez, as proposições
freudianas sobre o caldeirão pulsional: a força demoníaca da
pulsão de morte – pura intensidade. Este pensar ganha
consistência na medida em que compreendemos a ruptura que
vai ocorrer no pensamento de Freud com a invenção do corpo
pulsional. Esse que mantém com o corpo biológico uma relação
concomitante dependente, mas não está subordinado a ele. O
corpo pulsional remete às múltiplas formas pelas quais vai
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advir a sua apreensão e, ao mesmo tempo, ao seu inapreensível


como um todo. Fonte de abastecimento da vida psíquica.

CORPO BIOLÓGICO – CORPO PULSIONAL: VICISSITUDES


“Aliás, na medida em que adoecimentos
que produzem dor são capazes de
fornecer ao sujeito novos
conhecimentos a respeito dos seus
órgãos internos, poderíamos até pensar
que talvez esse seja o modo de como se
forma a concepção que temos do nosso
próprio corpo” (Freud, 1923, p. 38).

A questão do corpo ocupa um lugar enigmático no arsenal


metapsicológico freudiano, ou melhor, um lugar sinistro.
Sinistro que nos convoca a ampliar seus horizontes teóricos.
Como sabemos, Freud trabalhou desde os primórdios de sua
ciência na concepção e estruturação do corpo representacional.
Temos isso já posto, ou seja, seu descentramento do corpo
biológico, em 1893: “Eu pelo contrário, afirmo que a lesão nas
paralisias histéricas deve ser completamente independente da
anatomia do sistema nervoso, pois suas paralisias e em outras
manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não
existisse, ou como se não tivesse conhecimento dela” (Freud,
1893, p. 212). Será no corpo constituído entre o encontro da
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pulsão e do objeto que vai inscrever-se o corpo


representacional e erógeno – desenhando outra anatomia – a
psíquica: a anatomia construída pelos intrigantes caminhos da
psicossexualidade: do anseio ao desejo.
Entretanto, partimos do pressuposto que esse corpo,
criado por Freud, é resultante de um longo e laborioso trabalho
psíquico. Pois tal corpo não é dado, é construído, enlaçado pela
psique, por intermédio dos objetos primordiais. Esses que dão
a conhecer a cria humana – atravessados, também, pelo seu
corpo – o que virá a ser chamado, o corpo psíquico. Corpo que
é tão estranho para o sujeito, quanto a realidade externa.
Diante dessa compreensão despontam, pelo menos, duas
questões: qual a relação entre o corpo biológico e o pulsional?
Quais os destinos desses corpos? Para equacionarmos essas
indagações propomos a seguinte linha de trabalho: tomemos
como ponto de partida a existência de um corpo, puro soma,
sem atributos, com potencialidade de vir a ser um corpo
biológico e pulsional.
Assim sendo, esses corpos não têm relação de
anterioridade, mas sim dois modos de ser, a partir de uma
matriz fundante: o soma com seu indeterminismo. O corpo
biológico vai seguir o caminho marcado pela genética em sua
Refletindo a Psicanálise-2020 22

correlação com os instintos: dentro do escopo que remete à


máxima freudiana: anatomia é destino (Freud, 1912a, p. 172).
O corpo pulsional – fonte da pulsão – é pura força
inespecífica, que provém do interior do corpo e alcança a psique,
como uma medida de exigência de trabalho imposto ao psíquico
em consequência de sua relação com o corpo (Freud, 1915, p.
148). Força que pulsa de forma anárquica, visando à descarga,
até que se dê o encontro com os objetos primordiais, ou melhor,
com as figuras parentais. A esses cabe a tarefa de criar para o
nutrício outras possibilidades para retardar esse processo: o
acontecer da ação específica (Freud, 1950 [1895], p. 370), como
também da nova ação psíquica (Freud, 1914, p. 99) entremeadas
pelos destinos pulsionais. Na medida em que vai ocorrendo a
captura da demanda pulsional inscrevem-se marcas, com
diferentes potencialidades para se fazer narrável. Vivências que
criam sentidos para o corpo pulsional: as impressões, os traços
e as representações.
Para dar corpo metapsicológico a esse pensar é
importante termos em mente a afirmação freudiana de 1923:
Assim, o Eu é sobretudo um Eu corporal (Freud, 1923, p. 38).
Essa expressão vai merecer na tradução inglesa (1927) uma
nota de rodapé, autorizada por Freud: “Isto é, em última
instância, Eu deriva de sensações corporais, basicamente
Refletindo a Psicanálise-2020 23

daquelas que afloram da superfície do corpo. Ele pode ser


considerado, então, como uma projeção mental da superfície do
corpo [...]” (Freud, 1923/1927, p. 83). Notemos nessa formulação
a importância do corpo na constituição do Eu, esse que é
considerado por Freud fonte da pulsão e de sensações.
Sensações, sobretudo táteis, oriundas do tocar-se e do ser
tocado – a memória oriunda da superfície da pele – o
investimento libidinal parental adquirindo força, inscrevendo
marcas psíquicas entre inscrições, transcrições e
retranscrições. Diante dessa proposição, evoco o Batem numa
criança (Freud, 1919), indo além das questões sobre a gênese da
perversão, penso nos contornos que essa erogenização - o
bater - entre o tanático (a mão que bate de forma sádica -
linguagem incestuosa) e o estrutural (a mão que acaricia -
linguagem da ternura) propicia para o vir a saber sobre o corpo.
O masoquismo ganhando forma, do “não erógeno” (Paim Filho e
Terra Machado, 2018) ao erógeno: o corpo a corpo do bebê com
as figuras parentais, sendo um meio pelo qual o pulsional ganha
registro.
Corroborando essa proposição, em 1923, agrega que, além
do tato, a dor cumpre um papel relevante na estruturação do Eu.
A dor corporal aguçando os sentidos, fazendo-se apresentar ao
psíquico. Nesse sentido sua percepção determina destinos,
Refletindo a Psicanálise-2020 24

poderíamos até pensar que talvez seja o modo de como se


forma a concepção que temos do nosso próprio corpo.
Essa configuração, em torno do corpo pulsional, guiado
pela pensar freudiano, com seus contornos imprecisos, permite
pensar e especular a existência de três corpos, de acordo com
o grau de complexidade envolvida na estruturação do anímico:
corpo psicossomático, corpo hipocondríaco e o corpo histérico.
Presentes em todas as estruturas psíquicas, sendo variável a
intensidade de sua presença.
Entretanto, antes de prosseguirmos por essa rota, vamos
resgatar o conceito de complacência somática. Tal meta se faz
necessária, pois pretendo utilizar tal conceito com indicador da
relação sinistra entre o corpo e a psique.

COMPLACÊNCIA SOMÁTICA – ROMPENDO AS FRONTEIRAS DO


HEIMLICHE

“Até onde posso ver, todo o sintoma


histérico requer a participação de ambos
os lados. Não pode ocorrer sem a
presença de uma certa complacência
somática fornecida por algum processo
normal ou patológico no interior de um
órgão ou com ele relacionado” (Freud,
1905 [1901], p. 45).
Refletindo a Psicanálise-2020 25

Freud aborda a complacência somática no estudo da


histeria, no caso Dora (1905 [1901]) – trâmite do salto do psíquico
para o somático. Nessa ocasião trabalha a ideia da conversão
histérica e a sua consequente escolha do órgão, como
determinada por um excesso de investimento libidinal: fixação
– representacional em um órgão – que quando do adoecer
encontra nessa parte do corpo, apreendida psiquicamente, uma
disposição para receber o que transborda do psíquico: estamos
no terreno do simbólico – “Os processos psíquicos em todas as
psiconeuroses são os mesmos durante um extenso percurso,
até que entre em cena a “complacência somática” que
proporciona aos processos psíquicos inconscientes uma saída
corporal” (Freud, 1905 [1901], p. 46). A solução possível?
A complacência somática pode ser pensada a partir da
noção de que cada corpo, em sua constituição, se faz agente de
zonas vulneráveis, através das quais pode se dar expressão ao
sofrimento psíquico. A disposição dessa zona cria uma via
facilitada para a manifestação simbólica do conflito
inconsciente. Somente a simbólica? Em breve retornaremos a
essa indagação. Em 1905 no clássico Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade afirma que todo o corpo poderá vir a ser
uma zona erógena, sublinha que a criança, habitada por uma
sexualidade perversa polimorfa, busca a satisfação de seu
Refletindo a Psicanálise-2020 26

prazer em várias partes de seu corpo, e que estas satisfações


estão ligadas às suas relações com seus primeiros objetos de
investimento. Esses que através de sua libido inauguram as
zonas erógenas da criança, do estrutural ao psicopatológico.
Pelo viés do desmedido temos: “É verdade que o excesso de
ternura por parte dos pais torna-se perniciosa, na medida em
que acelera a maturidade sexual [...]” (Freud, 1905, p. 210).
Em 1910, no trabalho Perturbação psicogênica da visão,
vamos nos reencontrar com a temática da complacência. Nesse
vai usar a expressão ‘submissão somática’ (Freud, 1910, p. 203),
no sentido da escolha do órgão na histeria – uma perturbação
funcional: “[...] órgão que sejam levados a uma exacerbação de
seu papel erógeno [...]”. Freud deixa em aberto a causa desse
excesso, mas o vincula a uma possível disposição para o
adoecer. Seguindo este pensar em 1912, no texto Contribuições
a um debate sobre a masturbação, agrega a ideia de que as
neuroses atuais criam as condições para a ‘submissão
somática’ das psiconeuroses, antecipando as proposições de
1914 e 1917, em relação a sua interdependência: “[...] elas
fornecem o material excitativo, que é então psiquicamente
selecionado e recebe um ‘revestimento psíquico’[...] o núcleo do
sintoma psiconeurótico – o grão de areia no centro da pérola –
Refletindo a Psicanálise-2020 27

é formado de uma manifestação sexual somática” (Freud, 1912,


p. 313).
Porém, se olharmos para 1905 e lançarmos um olhar
longitudinal para o futuro, 1914, temos dados suficientes para
sustentar que essa disposição está diretamente relacionada
com o excesso no corpo pulsional – excesso de ternura
(investimento libidinal parental) – que ascende à psique e
retorna ao corpo no sintoma.
No texto de 1914, À guisa de uma introdução ao narcisismo,
Freud considera o erógeno como uma potencialidade de todos
os órgãos, e que cada parte do corpo pode ter essa
erogeneidade aumentada ou reduzida, de acordo com as
peculiaridades com que se fez psíquica. Ele destaca: “[...] em
paralelo, a cada uma dessas alterações da erogeneidade nos
órgãos, poderia então estar ocorrendo uma alteração do
investimento da libido” (Freud, p.105).
Seguindo esse trajeto teórico, em 1924, o texto sobre o
masoquismo primário cria novos aportes para estabelecer a
relação do corpo com alma. A libido passa a ter a tarefa
explícita de domesticar a força demoníaca da pulsão de morte.
Essa como agente de ligação irá instrumentalizar a rota que
seguirão as facilitações, até sua chegada ao corpo,
determinando a escolha do órgão. A temática da dor, proposta
Refletindo a Psicanálise-2020 28

em Batem numa criança (Freud, 1919), adquire maior aporte


metapsicológico em sua função da captura do corpo, com suas
múltiplas complacências somáticas. O masoquismo, em seus
encontros e desencontros com o narcisismo, estará para
sempre implicado no estabelecimento da maior ou menor
capacidade da percepção que temos do nosso corpo biológico e
pulsional: a dor marcando destinos do e no corpo.
Avançando no pensamento freudiano – rompendo as
fronteiras do heimliche - propomos a complacência somática
como decorrente do encontro do investimento do corpo
pulsional com o corpo biológico – carregando consigo um
excesso de investimento – o traumático no corpo, inscrito na
psique – que irá determinar a forma com a qual o sujeito vai
conviver com seu corpo: somático/psíquico – o retorno do
psíquico ao somático. Estando essa complacência presente nas
relações entre esses corpos.
Sendo assim, esse órgão investido pelo predomínio da
libido ou da pulsão de destruição, irá determinar diferentes
formas da sua apreensão psíquica, transitando entre as
diferentes inscrições psíquicas. Nesse sentido trabalharemos
os destinos do corpo pulsional, quando apreendido
psiquicamente, em suas três concepções: psicossomático,
hipocondríaco e histérico. Estes que também requerem a
Refletindo a Psicanálise-2020 29

participação de ambos os lados, para o aparecimento dos seus


sintomas corporais.
Antes de avançar em minhas teorizações, esclareço que
ao utilizar as expressões – psicossomático – hipocondríaco –
histérico – o faço movido pela ideia de encontrar nessas
denominações estímulos que propiciem, através de um possível
viés psicopatológico, elementos para refletir o estrutural. A
expressão psicossomático tem a pretensão de ser uma forma
ampla de pensar o irrepresentável; o hipocondríaco o
representacional não simbólico e o histérico o representacional
simbólico.

O CORPO ENCENA
No entanto, uma série de fatores tende a
fazer com que as relações entre os
pensamentos inconscientes e os
processos somáticos de que estes
dispõem como meio de expressão sejam
menos arbitrários e se aproximem de
algumas combinações típicas (Freud,
1905, p. 217).

Corpo Histérico…
Os processos psíquicos em todas as
psiconeuroses são os mesmos durante
um extenso percurso, até que entre em
Refletindo a Psicanálise-2020 30

cena a “complacência somática” que


proporciona aos processos psíquicos
inconscientes uma saída corporal
(Freud, 1905 [1901], p. 46).

O mais conhecido de todos nós, como sua marcada


presença nas neuroses históricas. Podemos chamá-lo de corpo
representacional, simbólico, ou ainda, erógeno. Como já dito,
sua estruturação é decorrente da lógica do recalque – memória
com uma potencialidade virtual de ser lembrada – dialética do
recordar, repetir e elaborar. Proibição de viver mais livremente
o seu desejo. O sintoma, enquanto retorno do recalcado,
converte no corpo contando uma história – heimliche se fazendo
unheimliche. História dos desejos edípicos recalcados:
fornecendo prazer e punição. Fazendo valer a máxima
freudiana: os sintomas são a atividade sexual dos doentes
(Freud, 1905, p. 153). O masoquismo que me aciona a refletir
nessa conjunção é aquele que possui maior entrelaçamento
entre a libido e pulsão de destruição – trabalho mais integrado
entre o narcisismo primário o masoquismo primário –
predomínio da lógica do princípio do prazer/desprazer.
Neste palco erótico a complacência somática, decorrente
da inscrição representacional em coisa, em palavras e a da
demanda do corpo pulsional – território do desejo – vai retornar
Refletindo a Psicanálise-2020 31

ao corpo estabelecendo ligações entre esse e o biológico. Diante


dessa configuração, o órgão eleito vai apresentar pelo viés
pulsional, a realização do desejo e pelo viés biológico, uma
alteração funcional sem lesão: a tosse de Dora (1905). Contudo,
nesse jogo cênico temos a famosa “bela indiferença” em relação
aos limites impostos pelo sintoma no corpo. Este, encenando
uma narrativa rica em detalhes, presença de um palco com
muitos holofotes. Contexto que referenda a analogia freudiana
da histeria como uma caricatura de uma obra de arte (1913).

Corpo Hipocondríaco...
Não devo deixar de observar, nesse
ponto, que não considero fidedigna
nenhuma teoria da paranóia, a menos
que também abranja os sintomas
hipocondríacos [...] (Freud, 1911, p. 79).

Em Introdução ao narcisismo (1914), Freud questiona em


que consistiriam as hipocondrias. Nesse texto considera ainda
válida sua ideia inicial datada em 1894-1895, sobre as neuroses
atuais, e nesse momento, refere ser a hipocondria uma terceira
neurose atual. No texto de 1914, amplia essa ideia ao dizer que
uma pequena parcela de hipocondria pode fazer parte da
Refletindo a Psicanálise-2020 32

constituição de outras neuroses – a presença de investimentos


em graus variáveis no corpo.
Para Freud, na hipocondria, assim como na doença
orgânica, há uma alteração na distribuição libidinal, “[...] o
hipocondríaco recolhe o interesse e a libido – esta última de
modo especialmente nítido – dos objetos do mundo exterior e
os concentra sobre o órgão do qual está se ocupando”
(1914/2004, p. 104). Dado significativo para corroborar nossa
hipótese da vigência de uma complacência somática também
nessa manifestação clínica. No entanto, as diferenças são
significativas visto que nas doenças orgânicas as alterações
são constatadas, já na hipocondria não. Freud fala sobre a
existência de uma atividade oriunda de uma parte do corpo e a
nomeia de erogeneidade, uma atividade investida erogênea e
libidinalmente que envia estímulos “sexualmente excitantes” à
vida psíquica – prazer do órgão. Tal atividade é uma capacidade
de todos os órgãos do corpo, e poderá se dirigir a um ou
diferentes órgãos, dando-nos notícias de um investimento
erógeno naquele órgão específico. Esse investimento poderá
ocorrer em maior ou menor grau na parte corporal eleita e
paralelamente a esse movimento haver uma “alteração do
investimento da libido no Eu”. Sua tese considera que as
alterações da erogeneidade dos órgãos levariam a uma
Refletindo a Psicanálise-2020 33

alteração libidinal do Eu, essas seriam as fontes implícitas na


hipocondria para Freud. E, para nós, como fatores
imprescindíveis na escolha do órgão – da representação coisa
ao corpo – presença de um masoquismo primário erógeno, que
permite um grau intermediário de transformação, que
determina alteração funcional, porém com maior grau de
implicação em seu sintoma – a não indiferença. Uma cena com
alguma encenação narrativa, o discurso em busca de alguns
holofotes. Nesse sentido, a analogia freudiana se faz com o
pensar filosófico, tomado como uma caricatura (1913).
Decorrente desse pensar, compreendemos o corpo
hipocondríaco como um estado intermediário entre o corpo da
psicossomática e o corpo da histeria. Sabemos que este corpo
da hipocondria está calcado em representações-coisa
(inscrição - transcrição - corpo fragmentado, “coisificado”)
desligadas das representações-palavra. Portanto, predomínio
de uma falha simbólica – cisão do recalque mais frágil,
proeminência da foraclusão para o corpo. Freud afirma que a
“[...] hipocondria está para a psicose assim como a neurastenia
e a neurose de angústia estão para as neuroses históricas [...]”
(Freud, 1914, p. 105). Sendo assim, a relação que o psicótico tem
com seu corpo carrega fortes tonalidades hipocondríacas.
Portanto, de tal modo, a “solução hipocondríaca” pode ser uma
Refletindo a Psicanálise-2020 34

tentativa de conter o transbordar no delírio e na alucinação


propriamente dita. Nesse sentido recordemos que a primeira
crise do Dr. Schreber (1884/1885 - 1911) foi descrita como uma
crise grave de hipocondria. O sistema delirante e alucinatório
mais exuberante surge a partir da segunda crise em 1893.

Corpo Psicossomático...
Permita-me mostrar que a noção do
Inconsciente, não exige nenhuma
extensão para cobrir as suas
experiências com doenças orgânicas. [...]
o Inconsciente exerce em processos
somáticos uma influência de força
plástica muito maior que a exercida pelo
ato consciente. [...]. (Freud a Groddeck.
19/06/1917, p. 369).

Pensar nesse corpo constitui-se num convite para nos


direcionarmos para as origens. O arcaico pede para ser
revisitado. Aceitar esse convite é sair do terreno do
inconsciente recalcado, com suas problemáticas sobre o desejo
e as representações que lhe dão sustentação – vicissitudes do
masoquismo primário e erógeno. Significa ousar penetrar no
inconsciente não recalcado, território aquém do desejo, sem
representações, terras áridas – habitadas por impressões e
traços – masoquismo primário “não erógeno”. Tempo de
Refletindo a Psicanálise-2020 35

ressignificar o autoerotismo à luz das novas complexidades


psicopatológicas: permita-me mostrar que a noção de
inconsciente, não exige nenhuma extensão para cobrir suas
experiências com as doenças orgânicas.
Este irrepresentável não tem uma história com
potencialidade por si só, de produzir narrabilidade – memória
sem lembrança – repetição do mesmo. Aqui temos o encontro
das neuroses atuais com a psicossomática: um pulsional não
domesticado, que se expande no corpo: com lesão/sem lesão.
Registros traumáticos pela intensidade e pela precariedade de
investimento libidinal, porém não significa ausência absoluta de
qualidade. Visando estruturar argumentos para essa
proposição – precária presença de qualidade, mas não
ausências – recorro à carta 52, de dezembro de 1896. Nela Freud
nos brinda com os indicadores de percepção – atributos
esparsos do encontro com o objeto – os primeiros registros
nunca serão conscientes, estão associados aos fueros (Freud,
1896 p. 209). Esses estão impedidos de transformações, não
sofrem rearranjos e ou novas combinações de tempo em tempo,
estão petrificados pela força do traumático – anacronismo.
Adotando esse cenário psíquico das origens como
interlocutor, especulo uma possível metapsicologia para o
corpo psicossomático. Compreendo que o investimento
Refletindo a Psicanálise-2020 36

destrutivo, feito no corpo do bebê pelos objetos primordiais, que


irá se constituir no masoquismo primário “não erógeno”, ou
melhor, narcotizante a nível psíquico (Paim Filho e Terra
Machado, 2018), será a forma de inscrição dessas vivências
traumáticas, que ficam impedidas de ganhar tradução. Sendo
assim, quando do reativar dessas marcas inscritas e não
transcritas, impossibilitadas de seguir a via progressiva no
aparelho psíquico, a pulsão de destruição, precariamente
domada pela libido, salta do anímico ao somático, lesando o
órgão eleito. Nosso olhar busca sustentar a ideia que o
psiquismo é que elege o órgão que irá adoecer, a partir das
intensidades e qualidades pelas quais ganhou inscrição no Eu-
realidade-originária: retorno ao corpo, de forma não
metabolizada.
Aqui apresentamos a ruptura com a visão restritiva da
complacência somática, como associada exclusivamente ao
corpo simbólico da histeria. Na manifestação psicossomática,
estamos diante de uma escolha do órgão determinada pelo
traumático no investimento do corpo do bebê: uma compulsão à
repetição, do que entorna de um psiquismo em que predomina
a vigência do masoquismo narcotizante, em detrimento da força
protetora do narcisismo primário e erógeno – o não familiar
prevalecendo em relação ao familiar. Portanto sentir
Refletindo a Psicanálise-2020 37

estranhamentos, diante do adoecer do corpo, não pertence à


configuração psicossomática – uma real indiferença – uma cena
não encenada. Numa alusão às analogias caricaturais
freudianas, ouso propor a ideia de uma instalação, enquanto
tentativa de traduzir o intraduzível, pela criação.
Esse não conhecido terá provavelmente ressonâncias no
inconsciente do analista – impressões e traços no analisando
com potencialidades de evocar construções de representações
no analista – as estranhas condições de figurabilidade.

Finalizando...
“Não há dúvida de que o Inconsciente é o
mediador certo entre o físico e o mental,
talvez o “elo que falta” e há muito
procurado” (Freud a Groddeck, p. 370,
05/06/1917).

Corpos, pulsões, objetos e suas inter-relações com e na


metapsicologia foram tomadas como elemento de estudo,
visando fazer trabalhar suas especificidades. Tal tarefa foi
balizada pela expectativa, de rastrear e fazer conexões no
pensar freudiano entre as neuroses atuais e pulsão de morte
com suas repercussões no corpo. Esse propósito teve na
complacência somática – estranha condição – seu elo
Refletindo a Psicanálise-2020 38

estrutural, ampliando sua a concepção mais além do corpo


histérico. A escolha do órgão, não é arbitrária, se fazendo
acontecer a partir de inscrições psíquicas, que transitam pelas
impressões, traços e representações: cada estrutura anímica
estabelece uma relação peculiar, de dupla direção, entre o soma
e a psique, tendo o inconsciente como mediador. Todo esse
contexto tem a pretensão de acerar nossa sensorialidade,
curiosidade e estranhamento sobre os corpos que nos habitam
e sobre os corpos que habitamos. Convite para lançar um olhar
sobre a complexidade que permeia a interação visceral entre o
corpo biológico, território dos instintos, e o corpo pulsional,
território do caldeirão das pulsões: pulsão de morte versus
Eros.

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Imago. (trabalho original publicado em 1923).
Freud, S. 2007. O problema econômico do masoquismo. In S, Freud,
Obras psicológicas de Sigmund Freud. (L. A. Hanns. Trad., vol. 3.
pp. 105-124). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado
em 1924).
Freud, S. 1969. Um estudo autobiográfico, In S. Freud, Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão,
Refletindo a Psicanálise-2020 41

Trad., vol. 20, pp. 17-92). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1925).
Freud, S. 1969. Inibições, sintomas e ansiedade. In S. Freud, Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. (J.
Salomão, Trad., vol. 20, pp. 107-200). Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1926 [1925]).
Freud, S. 1982. Carta a Groddeck 05/06/1917. In Sigmund Freud
Correspondência de Amor e outras cartas (1873-1939). (S. Agenor,
Trad.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado
em 1935).
Paim Filho, I. A.; Terra Machado, A. P. 2018. Masoquismo destino das
pulsões – origem do sujeito, In apresentado como pré-relatório
no XVIII Congresso FEPAL. Lima.
Refletindo a Psicanálise-2020 42

CAPÍTULO II
Refletindo a Psicanálise-2020 43

SOBRE A VIOLÊNCIA: ENSAIO SOBRE


NARCISISMO E DESOBJETALIZAÇÃO

Alírio Dantas Júnior1


Membro Efetivo e Didata da SPRPE, agraciado com o Prêmio Nise da
1

Silveira.

RESUMO
O autor busca refletir sobre o tema da violência, a partir de uma
perspectiva metapsicológica. Tomando por base a concepção
freudiana do narcisismo, tenta relacionar os fenômenos relativos ao
aumento da violência com processos da dinâmica psíquica
decorrentes dos investimentos destrutivos, com ênfase nas
economias da pulsão de morte e dos investimentos narcísicos.
Finalmente o autor correlaciona estes processos com a tendência à
desobjetalização.
Palavras-chave: Metapsicologia da violência; tendências à ligação e ao
desligamento; pulsões de vida e de morte; psicologia das massas; ideal
do ego; idealizações.

Por sua natureza universal, e por seu vasto alcance, o


tema da violência se oferece a uma abordagem menos
específica e mais globalizante do que aquela a que me proponho
tentar. Não faço nenhuma objeção a uma perspectiva
multidisciplinar, muito pelo contrário, eu considero estas trocas
de experiência não apenas úteis, mas inevitáveis. Confesso,
todavia, que me agrada particularmente quando, nestes
encontros, posso buscar uma reflexão mais específica a partir
do nosso próprio campo de trabalho.
Refletindo a Psicanálise-2020 44

A violência é um assunto tão universal quanto


inquietante. Por certo não é um tema restrito à nossa época,
visto que percorre todo o curso da história. Todavia, assim como
ocorreu em outros períodos, é uma questão que afeta nosso
tempo de maneira particularmente aguda, ameaçadora e
descontrolada. Suas formas, as da violência do homem pelo
homem, são virtualmente inesgotáveis. De um modo ou outro, a
violência toca a todos nós. Se a uns ela atinge pelo caráter
cotidiano da fome, da miséria e da marginalidade urbana; a
outros, vemos atingidos pelo racismo, pelo terror ou pela
guerra. Poupados, por instantes, do holocausto nuclear, vemos
explodir em seu lugar, a violência cruenta dos conflitos étnicos.
Tivemos mesmo uma guerra "globalizada", com bombas
inteligentes, e sabor de vídeo clip. Não são tempos de utopia!

A agressividade - este viés psicológico da violência - não


teve um lugar específico na teoria psicanalítica, senão
tardiamente. Por um longo período Freud tratou do ódio e da
agressividade como componentes da libido: “A atividade é
suprida pelo instinto comum de domínio, que chamamos
sadismo quando o encontramos a serviço da função sexual...”
(Freud, 1913; pg. 405). Considerou, contudo, muito precocemente,
a sua relevância clínica e teórica. Esta agressividade respondia
Refletindo a Psicanálise-2020 45

então, pelo componente ativo da pulsão sexual (Freud, 1915). E o


ódio, era o duplo constituinte do amor. A principal oposição
situava-se no contraponto entre as finalidades ativa e a passiva
da pulsão. O que parece ser específico a esta antítese, é a
consistência de uma matriz energética - a pulsão sexual - que
não é apenas privilegiada, mas é única. Dela deriva-se tanto o
investimento sexual, quanto a agressividade.

Esta concepção do sadismo como componente da


sexualidade implicava uma dinâmica metapsicológica das
pulsões derivada das vicissitudes da libido. Implicando uma
noção de masoquismo como um retorno em direção ao próprio
eu, dos impulsos sádicos. Em todo caso, a agressividade é,
então, suprida pela pulsão sexual. Desta maneira, a
agressividade corresponderia a um componente sádico da
pulsão sexual, que se torna exagerado e usurpa a posição de
liderança, tornando-se independente (Freud, 1905; pg. 159 e 160).

Foi somente a partir da formulação do conceito de


narcisismo, e suas implicações à metapsicologia, que Freud
pôde opor o ódio e a agressão, ao destino da satisfação libidinal.
Uma vez que o problema econômico do narcisismo vai
introduzir uma outra maneira de entendimento da
agressividade, enquanto manifestação de uma satisfação da
Refletindo a Psicanálise-2020 46

onipotência narcísica, numa clara oposição aos laços libidinais


com o objeto (Freud, 1914). Este seria o momento disruptivo da
sexualidade, onde o ego, privado de seu laço com o objeto, se vê
incapaz de assegurar sua ligação com a excitação. Ora, o
narcisismo introduz então, uma tendência ao desligamento, à
desobjetalização. A oposição libido narcísica/libido de objeto se
põe em relação a uma oposição entre uma tendência à ligação
e uma tendência ao desligamento. A matriz energética libidinal
permanece, entretanto, na fonte determinante da vida mental; e
por causa, é dela que deriva a energia para a agressão.

É então, que a primeira violência que se inscreve no


sujeito é a violência determinada pela existência de um objeto.
Como Freud o assinalou, a aparição do objeto faz o ódio atingir
seu desenvolvimento (Freud, 1915). Esta violência não se
restringe à frustração imposta pelo reconhecimento deste
objeto, mas se estende mais além, através da pressão exercida,
no sujeito, pela força explosiva das pulsões. A corrente de
excitações que o invade pode ser reconhecida, em seu sentido
metapsicológico, como destrutiva. Mais tarde, Freud dirá que a
descarga agressiva conduz a uma satisfação narcísica (Freud,
1929), denunciando os vínculos estreitos entre a pulsão de
morte e o narcisismo. Talvez seja esta razão, dentre outras, que
Refletindo a Psicanálise-2020 47

conduzirá a uma teorização da manifestação do investimento


narcísico como uma expressão da pulsão de morte, da agressão
destrutiva contra o objeto, que será dominante dentro da
tradição kleiniana.

Gostaria de assinalar que nesta construção, a oposição


libido/agressividade estará expressa em relação à oposição de
duas tendências, a saber, a ligação e o desligamento (Freud,
1938). As duas classes de pulsões – de vida e de morte – não
são simétricas, desde que a pulsão de morte não tem expressão
direta, senão através de sua fusão com a pulsão sexual, de uma
co-excitação sexual, tal como o exposto por Freud, no conceito
do masoquismo erógeno primário (Freud, 1924). A irrupção de
uma manifestação puramente destrutiva denuncia a falência de
Eros, no sentido de um fracasso no destino sexual - ou de
ligação - da pulsão. A clivagem, que permite esta irrupção pura
da destrutividade, só é possível quando a representação do
objeto não se tornar acessível à corrente de excitação que o
toma por destino. O desequilíbrio agora imposto à alma, será
respondido pela negação da alteridade, pelo retorno ao
narcisismo, pela destruição do objeto.

Eu penso ser inquestionável que Freud ressaltou a


presença do impulso destrutivo como expressão psíquica de
Refletindo a Psicanálise-2020 48

uma fonte pulsional distinta da sexual (Freud, 1929), que ele


atribuiu a este impulso um caráter primário e inato, relacionado
à ambivalência e à angústia (Freud, 1932). E finalmente que ele
atribuiu a este impulso, destinos intrapsíquicos, capazes de
voltarem-se contra o próprio eu - como fica claro no conceito
do ‘masoquismo moral’ - ou ainda de voltarem-se contra o
mundo exterior, caso em que a denomina “pulsão de agressão”,
cujo objetivo é a destruição do objeto (Laplanche e Pontalis,
1992). Sua existência independente, para Freud, parece ser, com
efeito, inegável; assim como sua significação nos destinos da
alma: “... mas não posso mais entender como foi que pudemos
ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da
destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido
lugar em nossa interpretação da vida” (Freud, 1929; pg. 142).

Entretanto será difícil a Freud conceber uma forma de


expressão desta pulsão que seja independente da co-excitação
sexual, desde que a pulsão de morte não parece expressar-se
desvinculada da sexualidade. Como ele destaca: “O desejo de
destruição, quando dirigido para dentro, de fato foge
grandemente à nossa percepção, a menos que esteja revestido
de erotismo” (Freud, 1929; pg. 142). O que parece estar em
questão, para Freud, não é a existência de uma outra fonte
Refletindo a Psicanálise-2020 49

pulsional, nem mesmo de sua independência da pulsão sexual;


disto ele se mostra claramente convencido, em que pese as
resistências que despertou. Nem mesmo se pode ignorar que
Freud atribuiu a este impulso um papel na metapsicologia. O que
parece estar em questão é a inscrição teórica de uma pulsão de
morte, independente, que existe, que opera, mas que se subtrai
à percepção quando não é colorida pelo erotismo.

Tal como concebida por Freud, a pulsão de morte estava


voltada, inicialmente, contra o próprio eu. A destruição é a
autodestruição. A agressão se volta contra o mundo exterior,
apenas num segundo tempo. E o faz como resultado de seu
“destino” metapsicológico, a saber, o de ser expelida para fora;
uma vez que a pulsão de morte não pode ser objeto do recalque.
A isto vai se opor M. Klein, designando um impulso destrutivo
que se dirige primariamente contra o objeto, e que apenas num
segundo tempo, posterior à internalização deste objeto, se volta
contra o eu.

Devo, agora, me referir a uma outra tradição, a kleiniana,


que introduz uma outra perspectiva ao problema. Nesta
tradição, a pulsão de morte é expressa, sobretudo, através da
destrutividade, sendo não apenas primária, mas anterior e
predominante sobre a alma, do que o seriam as tendências das
Refletindo a Psicanálise-2020 50

pulsões sexuais. Neste caso, a pulsão de morte tem uma


expressão psíquica própria: a angústia de aniquilamento, a
inveja e a voracidade. E sua manifestação destrutiva e mortífera
não traduz um fracasso na co-excitação sexual, mas antes
traduz um investimento primitivo, primário em si mesmo, da
pulsão de morte sobre o sujeito, ou sobre o objeto. Mais além,
de acordo com esta tradição, o fracasso na co-excitação sexual
será sempre determinado pelo investimento da pulsão de morte
na esfera da sexualidade (Klein, 1948).

Dentro desta tradição há uma prevalência da


destrutividade primária e da pulsão de morte na determinação
do curso dos acontecimentos psíquicos. A angústia e suas
defesas, normais e patológicas, serão compreendidas como
uma consequência direta da pressão exercida por estas
pulsões, sobre o psiquismo, conforme expresso por Klein:
“Assim, em minha concepção, o perigo resultante do trabalho
interno da pulsão de morte é a primeira causa de ansiedade”
(Klein, 1948; pg. 50). Desde que, contrariamente a Freud, Klein
designa o medo da morte como a principal causa da ansiedade.

A experiência clínica permite ao psicanalista manter-se


em contacto com a presença da violência que existe dentro de
toda pessoa. E que se manifesta de forma cotidiana por meio
Refletindo a Psicanálise-2020 51

das formações do Inconsciente. A civilização do homem conta


com a sua presença, e busca encontrar modos de ordenar suas
manifestações, de determinar os caminhos aceitáveis – e que
são peculiares a cada cultura específica – por onde esta
violência pode expressar-se e extravasar-se. Quando ela se
mostra descontrolada, as instituições precisam ser
questionadas. Eu creio que este é o nosso caso; e esta é uma
das questões mais desafiadoras de nossa contemporaneidade.

Eu não acredito que a psicanálise ofereça um


instrumento acurado para a compreensão abrangente das
chagas sociais, dos caminhos da história, ou das contradições
da cultura. Explicá-los então, nem pensar! Entretanto, a
compreensão profunda da alma humana pode oferecer uma
perspectiva muito interessante sobre os nossos caminhos e
nossas crises. Freud nunca se mostrou muito otimista quanto à
nossa capacidade de construir civilizações capazes de domar a
força dos impulsos primitivos. Confrontado com o idealismo de
jovens militantes, não hesitou em mostrar sua pouca fé num
futuro luminoso de justiça e harmonia, mostrando-se,
entretanto de pleno acordo quanto ao caminho para alcançá-lo:
este seria um caminho de violência e sofrimento (Major, 1984).
Em sua célebre correspondência com Einstein, Freud (1932)
Refletindo a Psicanálise-2020 52

deixou claro sua descrença em que a justiça pudesse derrotar


a violência. Para ele, a violência seria um instrumento da justiça.
Nesta correspondência, segundo minha interpretação, ele
sugere que a única força capaz de se opor à violência, seriam
as pulsões de vida, aquelas derivadas das fontes sexuais, que
respondem pela tendência a construir ligações e vínculos com
outras pessoas.

De fato, a violência parece estar fortemente apoiada na


negação da alteridade, na desconsideração do papel do outro,
do outro semelhante, enquanto fonte de prazer. O
reconhecimento do outro passa por sua apreensão como objeto
de prazer, potencial e viável. O respeito à sua alteridade parece
provir predominantemente de duas fontes: de um lado,
percebido como um objeto importante para o destino de nossos
impulsos, ele precisa ser considerado, respeitado e querido;
porque torna-se um elo indispensável de nossas funções
objetalizantes, de nossa tendência a construir ligações e
vínculos capazes de assegurar o desenvolvimento emocional.
De um outro lado, o temor da castração articula nossa
submissão à lei – simbólica e jurídica – atraindo os
investimentos narcísicos a aliarem-se a esta submissão.
Refletindo a Psicanálise-2020 53

Respeitar o outro, em última instância, é cuidar de preservar


nossos interesses intrapsíquicos.

Todavia, a fragilidade da estrutura narcísica primária


pode impedir que se preserve o equilíbrio entre os
investimentos narcísicos e os investimentos objetais. Nestes
casos, quando o objeto coloca em risco a integridade narcísica
do Ego, o outro se torna fonte de desprazer e a ele destinam-se
impulsos destrutivos. A destruição do outro se torna a bizarra
fonte de um gozo que antes seria vivida por meio de um vínculo
objetal.

Nada parece mais ilustrativo de nossos tempos


violentos. Vivemos imersos em uma “cultura do narcisismo”,
como descreveu Christofer Lasch (1983). As sociedades
contemporâneas cultuam o narcisismo como instrumento
privilegiado de satisfação, como foi brilhantemente enfatizado
por Jurandir Freire Costa (1984). Me parece que aquilo que hoje
se busca globalizar não é o progresso e o bem estar, que se
funda no reconhecimento deste outro; antes, o que se globaliza
é um bizarro retrocesso ao barbarismo. Defende-se a exclusiva
sobrevivência dos mais “capazes”, de quem atualiza-se, de
quem produz mais, melhor e com menos custo; e legitima-se a
exclusão violenta de todos os outros. O mercado é muito
Refletindo a Psicanálise-2020 54

produtivo, mas é cego; ele produz indistintamente riqueza e


miséria, sendo incapaz de enxergar qualquer diferença.

A exclusão social parece ser “a mãe de todas as


violências”, na medida em que destrói, dentro das pessoas, toda
esperança de crescimento, e aniquila qualquer ilusão de
felicidade. O outro excluído e violentado, é desrespeitado em
sua singularidade. Sua linguagem incorpora a violência como
meio de vida. Quando os caminhos para os investimentos
construtivos são bloqueados, a destrutividade encontra meios
de prosperar. Mantidos os valores desta cultura, não há como
ver saída para a violência. Ela veio para ficar, e tende a
desenvolver-se.

Não acredito que a psicanálise tenha meios de enfrentar


esta questão. Contudo, eu creio que lhe é reservado um papel
extremamente importante, neste contexto. A experiência
psicanalítica alimenta-se de um espaço subjetivo marcado pela
intimidade, onde a presença do outro é cheia de significado. É
uma experiência interpessoal e intersubjetiva, uma ética e uma
estética, onde a singularidade do sujeito é preciosa. A
preservação deste espaço de intimidade representa alguma
esperança em nossas tendências de construir vínculos, ao invés
de destruí-los.
Refletindo a Psicanálise-2020 55

REFERÊNCIAS
Costa, J. F. 1984. “violência e psicanálise”, Graal.
Freud, S. 1913. “A disposição à neurose obsessiva”. In Obras Psic.
Compl., vol XII, Imago Editora.
Freud, S. 1905. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In Obras
Psicol. Comp., vol VII, Imago Editora.
Freud, S. 1914. “Sobre o narcisismo: uma introdução”. In Obras Psic.
Compl., vol XIV, Imago Editora.
Freud, S. 1915. “A repressão”. In Obras Psicológicas Completas, vol XIV,
Imago Editora.
Freud, S. 1925. “O problema econômico do masoquismo”. In Obras
Psicol. Compl. Vol. XIX, Imago Editora.
Freud, S. 1930[1929]. “O mal-estar na civilização”. In Obras Psic. Compl.,
vol XXI, Imago Editora.
Freud, S. 1933[1932]. “Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise”. In Obras Psicológicas Completas, vol XXII, Imago
Editora.
Freud, S. 1933[1932]. “Por que a guerra?”, in Obras Psic. Compl., vol XXII,
Imago Editora.
Freud, S. 1940[1938]. “Esboço de psicanálise”. In Obras Psicol. Complet.,
vol XXIII, Imago Editora.
Laplanche, J.; Pontalis, J. B. 1992. “Vocabulário da Psicanálise”, Editora
Martins Fontes.
Klein, M. 1948. “Sobre a teoria da ansiedade e da culpa”. In Inveja e
Gratidão e outros trabalhos, Imago Editora.
Major, R. 1984. Comunicação verbal feita em conferência em Recife,
1984.
Refletindo a Psicanálise-2020 56

CAPÍTULO III
Refletindo a Psicanálise-2020 57

NEM A SANTA NEM A MERETRIZ

Ana Cláudia Zuanella1

Mestre em Psicologia Clínica na área de pesquisa de Psicopatologia


1

Fundamental e Psicanálise pela Universidade Católica de Pernambuco,


Psicanalista, Membro Titular e Didata da SPRPE.

RESUMO
A autora é levada a se questionar sobre um aspecto no universo
feminino em virtude da recorrência do tema em seus trinta anos de
escuta clínica: as queixas amorosas e o invariável relato de sofrimento
na esfera do amor, levantando a indagação do que faz as mulheres
viverem o amor de forma tão diversa dos homens. Sabe-se que
culturalmente, no ocidente, meninos e meninas são criados de formas
distintas e isto pode influenciar na maneira como as relações
amorosas serão expectadas. Entretanto, acreditando que a cultura é
fruto do nosso mundo subjetivo ao mesmo tempo que ela o
retroalimenta, a autora busca na dinâmica inconsciente possíveis
hipóteses para o papel culturalmente atribuído às mulheres e sua
eventual influência na experiência amorosa. É utilizada a psicanálise
freudiana para entender o lugar do feminino no imaginário do sujeito,
especialmente no tocante à castração e à ferida narcísica daí advinda.
Palavras-chave: amor; castração; narcisismo; inveja; feminino.

Desde sempre a psicanálise foi feita e refeita em cima de


questões levantadas pela clínica. Iniciou com a escuta das
mulheres histéricas e a partir do descobrimento do
Inconsciente pode dar sentido a outras tantas queixas.

Isto também se passou na minha escuta clínica nesses


últimos trinta anos, particularmente referente a um traço
repetitivo no mundo feminino que começou a me causar
Refletindo a Psicanálise-2020 58

inquietação. Refiro-me ao constante relato de sofrimento


amoroso por parte das mulheres. Suas queixas me soavam
parecidas e invariáveis no tempo e no espaço. O tema
permanecia o mesmo e fazia pensar que às mulheres ou a uma
parcela significativa delas cabia valorizar a vida amorosa - de
casal - mais que os homens, se dedicar mais que os homens e,
sofrer mais que os homens.

Não falo aqui da paixão, sentimento sofrido por natureza,


e que já pesquisei alhures (Zuanella, 2016, 2017, 2018, 2019), falo
agora de uma possível forma de enxergar o amor que se faz
diferente para homens e mulheres, a qual deixa as mulheres
mais propensas ao sofrimento e frustrações.

Dizer que as mulheres têm uma forma particular de


viver o amor, privilegiando-o, pode parecer sexista e
anacrônico, ainda mais num tempo de tantas lutas, justas, por
equanimidade. A psicanálise nunca foi conformista e não é
agora, e muito menos nós, que pretendemos trilhar esse
indesejável caminho. Não se trata de relegar o lugar de
sofredora à mulher ou qualquer visão preconceituosa, ao
contrário, a questão é perceber que muitas mulheres estão
fixadas neste lugar e nos propor a pensar em alguns porquês
para ajudar que elas saiam de tal posição.
Refletindo a Psicanálise-2020 59

O lugar especial do amor na vida da mulher já havia sido


observado por Freud, como vemos em suas cartas a Martha
(apud NUNES, 2000) onde escrevia que para elas o amor de um
homem seria suficiente para relativizar os efeitos das
desigualdades a que eram submetidas. Para ele, uma mulher
feliz no amor não teria porque se sentir socialmente oprimida.
“É como se o amor fosse mais fundamental para o sexo feminino
do que qualquer outra aspiração” (Nunes, 2000, p.135).

Para endossar a ideia que este é um fenômeno que


prevalece no feminino, sem leituras preconceituosas ou
antiquadas, trago as ideias de Lipovetsky (2007) um pensador
bastante ligado ao relato da atualidade. No seu livro que trata
da revolução do feminino, o filósofo discorre como a busca pelo
amor sempre foi um norte na vida da mulher, sendo
praticamente seu ideal incansavelmente almejado. Ele afirma
que nas mulheres a necessidade de amar é mais constante,
mais dependente, mais devoradora do que no homem. E sem
nenhuma dúvida, as mulheres conservam um laço privilegiado
com o amor, amam o amor, manifestam um interesse muito
mais marcado que os homens pelos discursos, os sonhos, e os
segredos relativos ao coração.
Refletindo a Psicanálise-2020 60

Segundo Lipovetsky (2007), mesmo com as


transformações dos anos 60 e todas contestações advindas, as
mulheres jamais renunciaram aos sonhos de amor. Muitos
consideravam que as diferenciações feitas entre os sexos, em
nossas sociedades, seriam ligadas a fenômenos arcaicos e
ultrapassados, e a partir do instante que a igualdade
democrática fosse sendo implementada, haveria a similaridade
dos gêneros. Hoje constata-se que a assimetria sexual persiste
nos papéis afetivos e a desigualdade amorosa entre homens e
mulheres continua. Para ele, “a assimetria homem-mulher em
relação ao amor tem mais possiblidade de perdurar do que se
desfazer.” (Lipovetsky, 2007, p.50).

Quando essa assimetria mantém a perpetuação do


desencontro de investimentos que geram uma sucessão de
sofrimentos no mundo feminino, ela precisa ser revista e
compreendida com o intuito de ser questionada e modificada.

Sem dúvida há um grande apelo cultural, e aqui me refiro


à cultura ocidental, para que as diferenças entre as aspirações
de ambos os sexos perpetuem. Porém não creio que apontar a
cultura como única causadora desse desequilíbrio dê conta de
todo panorama. A cultura é fruto do que temos no nosso mundo
subjetivo ao mesmo tempo que ela o retroalimenta. Portanto,
Refletindo a Psicanálise-2020 61

vejamos paralelamente como cultura e psiquismo podem ter-


se influenciado mutuamente.

Para isso farei uma exposição de leituras que me


chamaram a atenção sobre o tema do feminino em dois
momentos da História, iniciando com a de Regina Navarro Lins
(2005) sobre o início da Humanidade para depois trazer um
momento histórico específico, a Inquisição e, então, apresentar
algumas hipóteses pessoais calcadas na psicanálise.

Lins (2005) apresenta um interessante retrospecto dos


primeiros anos do homem na terra que nos leva a conjecturar
sobre os primórdios dos papeis femininos e masculinos. Bem
no início, a respeito da Idade da Pedra, no período Paleolítico
(que vai de 500 mil a dez mil a.C.), quando se fez a descoberta
do primeiro esqueleto do Homo sapiens, o Cro-Magnon (35 mil
anos atrás), algumas hipóteses foram levantadas. Destaco
aquelas relevantes para este capítulo: 1 - havia uma parceria
entre homens e mulheres visando a sobrevivência e 2 - se
desconhecia o vínculo entre procriação e sexo. Os homens não
imaginavam que tivessem qualquer participação na procriação
e a fertilidade era uma característica exclusivamente feminina,
sem haver cunho sexual ou erótico. Nesse período havia o culto
à deusa-mãe e da figura feminina, a qual se intensificou pelos
Refletindo a Psicanálise-2020 62

próximos milhares de anos. A mulher tinha um papel de


extrema importância e era cultuado, endeusado.

Em 6.500 a.C., no Período Neolítico, estabeleceu-se a


agricultura. A fecundidade da mulher era associada à
fecundidade do arado e tal associação fez com que seu papel
ganhasse uma preponderância ainda maior. A mulher era a
figura central dessa sociedade. Os homens continuavam
ignorando sua participação na procriação e imaginavam que a
fecundação se dava nas águas, nas pedras, no coração da mãe-
terra.

Tempos depois, em decorrência da domesticação dos


animais, através da sua observação, a participação do macho na
fecundação da fêmea foi descoberta e o homem percebeu seu
papel imprescindível no mistério da fertilidade.

Sobrevém uma fase de guerras. Com as tribos invasoras


guerreiras, os homens adquirem novo status – não só pelo
poder da copulação, mas também pela importância na luta.

As colônias agrícolas em expansão demandavam mais


força de trabalho, mais braços para produzir, quanto mais
filhos, melhor. Ao invés das mulheres voltarem ao lugar de
culto, uma vez desprovidas da sua situação única de
Refletindo a Psicanálise-2020 63

responsáveis pela fertilidade, elas passaram a ser vistas como


mero receptáculos para o sêmen e começaram a ser trocadas
como objetos entre tribos ou simplesmente roubadas. O sexo
feminino, representado pela mulher ou pela Deusa foi perdendo
seu poder. O culto da fecundidade da Terra-Mãe foi substituído
pelo do herói-guerreiro.

Com a necessidade da força dos homens para arar a


terra e uma equivalência desse ato com a penetração e
fecundação, o órgão masculino rapidamente ganha importância
sobre o feminino.

A procriação depende dos dois sexos, surge a noção de


casal e de paternidade. Para garantir a fidelidade, e com isso a
origem da prole, a mulher passa a ser propriedade do homem.
Puni-la severamente ou mesmo matá-la é considerado o
exercício de um direito.

Vale lembrar que estamos nos reportando a escritos


referentes à pré-história, ao período Neolítico, quando dos
homens poderíamos dizer que eram, no mínimo, bárbaros. Com
horror, lembramos que em muitas sociedades a infidelidade
ainda é considerada crime passível de morte das formas mais
cruéis possíveis. Constatamos que até pouco tempo, adultério -
Refletindo a Psicanálise-2020 64

feminino, obviamente – era crime no Brasil e que hoje em dia se


fala e se age em nome de lavar a honra com sangue. Doze mil
anos não foram suficientes para mudar esse aspecto. Fica a
pergunta do que se tem tanto medo na liberdade da mulher.

A partir da noção de paternidade o phallus passou a ser


adorado. Desta época se encontraram várias imagens de pênis
eretos. Não se sabe quando isso começou, é provável que tenha
sido de forma concomitante em vários lugares. O homem já não
quis ser mais coadjuvante junto à mulher na fecundação e o
patriarcado foi se fortalecendo sustentado no pilar da
imponência da figura masculina.

Na religião, o homem surge não apenas enquanto


criador da prole, mas também da mulher. Assim está posto para
a religião judaico-cristã: Eva é moldada a partir da costela de
Adão. A religião judaica é a religião dos patriarcas, sua história
começa com Abraão por volta de 1800 a.C. e mais tarde tem em
Moisés o grande profeta que leva os judeus para a Terra
Prometida libertando-os da escravidão no Egito.

À Eva, a primeira figura feminina da Bíblia cabe o


estigma de ter sido responsável pela expulsão do Paraíso. À
mulher é cabível a origem do pecado e ela continua a trazer
Refletindo a Psicanálise-2020 65

essa marca em si. Alguns relatos ouvidos ao longo dos anos no


consultório me fazem lembrar que esse papel feminino se
encontra ainda muito presente na fantasmática masculina. Mais
de uma vez ouvi pacientes mulheres contando que seus
parceiros a rechaçavam sexualmente na Semana Santa,
algumas vezes sem explicar o motivo, para que assim elas o
procurassem, e dessa forma eles pudessem resistir mais
bravamente à tentação sexual nesse período santo para a
igreja. A elas ficava a incumbência velada de ocuparem o lugar
daquela que leva ao “pecado”, a eles, o repúdio do “mal”.
Recordo, ainda, do relato de uma paciente, cujo namorado disse
que tinha que se afastar sexualmente dela para evitar um
desfortúnio, a perda de um parente doente, reforçando o quanto
dessa ideia da sexualidade da mulher como fonte castigo
encontra-se presente na vida psíquica hoje em dia.

Enquanto resultado da desobediência de Eva, a ela coube


ser submissa ao homem e parir com dor, sua sexualidade ficou
condicionada à submissão e sofrimento.

A Bíblia pode, e deve, ser vista como uma alegoria, um


mito, mas nem por isso perde a força as ideias ali contidas.
Recordamos as palavras de Rougemont (1988) ao dizer que um
mito não tem um autor, ele traduz as regras de conduta de um
Refletindo a Psicanálise-2020 66

grupo social ou religioso, cuja particularidade está no poder que


exerce em nós, à nossa revelia. O poder que essas palavras
traduzem até hoje são inegáveis.

Por outro lado, de forma enfática, com autores muito


bem definidos, um tipo de manual aparece em 1486. Nele o nome
de Eva é trazido para justificar o lugar impuro de todas a
mulheres. Cito: “Eva seduziu Adão. E como o pecado de Eva não
havia levado a morte a nosso corpo, a menos que o pecado
passasse depois para Adão, o qual foi tentado por Eva, e não
pelo demônio, então ela é mais amarga que a morte” (Kramer e
Sprenger, 2007, p.57)

Talvez para alguns já tenha dado a perceber que me


refiro a Malleus Maleficarum, o Martelo das Bruxas, um manual
escrito por dois monges dominicanos: Heinrich Kramer e
Jacobus Sprenger com a finalidade de caça às bruxas, no
sentido literal, que vigeu por trezentos anos na trágica época da
Inquisição.

Ali encontra-se um verdadeiro tratado do que se


pensava da figura feminina, ou talvez, do que nunca se deixou
de pensar. Para ser mais crível optei por citar ipsis literis alguns
Refletindo a Psicanálise-2020 67

trechos extraídos do dito manual, para que quem nunca o leu


tenha uma noção do que ali se encontra.

Há uma seção explicando porque a bruxaria ocorre,


antes de tudo, em mulheres.

“Todas as malignidades são poucas em comparação com


a de uma mulher” (Kramer e Sprenger, 2007, p.53). Então citam
São Mateus XIX: “Que outra coisa é uma mulher, senão um
inimigo da amizade, um castigo inevitável, um mal necessário,
uma tentação natural, uma calamidade desejável, um perigo
doméstico, um deleitável detrimento, um mal da natureza
pintado com alegres cores!” (apud Kramer e Sprenger, 2007,
p.53).

Recorrendo a Cícero (apud KRAMER E SPRENGER, 2007,


p.53) enunciam: “Os muitos apetites dos homens levam-no a um
pecado, mas o único apetite das mulheres as conduz a todos os
pecados.” Já de Sêneca (apud KRAMER E SPRENGER, 2007,
p.54) extraem: “Quando uma mulher pensa sozinha, pensa o
mal”.

Da pena dos autores sai o seguinte:


Refletindo a Psicanálise-2020 68

A mulher é mais carnal do que o homem,


o que se evidencia pelas suas muitas
abominações carnais. E convém
observar que houve falha na formação
da primeira mulher, por ter sido ela
criada a partir de uma costela recurva,
ou seja, uma costela do peito, cuja
curvatura é, por assim dizer, contrário à
retidão do homem. E como, em virtude
dessa falha, a mulher é animal
imperfeito, sempre decepciona e mente
(Kramer e Sprenger, p. 116, tradução da
Editora Rosa dos Tempos, Rio de
Janeiro, 1995).
Femina provém de Fé e Menos,
considerando que é muito débil para
manter e conservar a fé”. (...) E na
verdade, pelo seu primeiro defeito de
inteligência, são mais propensas a
abjurar da fé, assim, como no segundo
defeito de afetos e paixões exageradas,
procuram, matutam e infligem diversas
vinganças, seja por bruxaria ou outros
meios. Pelo qual não é assombroso que
existam tantas bruxas neste sexo
(Kramer e Sprenger, 2007, p.58,59).

Voltando a voz de terceiros, usam Catão de Utica para


chegar à conclusão de que: “Se o mundo pudesse liberta-se das
Refletindo a Psicanálise-2020 69

mulheres, não careceríamos de Deus em nossas relações”


(Kramer e Sprenger, 2007, p.60).

Paro um instante para lembrar que isso seria um


exemplo de mera excentricidade, de um vislumbre
possivelmente exagerado de um fragmento de um pensamento
de uma época, se não fosse por alguns terríveis detalhes: este
livro perdurou por trezentos anos, sem ser questionado, ele foi
o guia dos Inquisidores e, pior, muito pior, em nome dele e da
ideia que levou a sua confecção, pessoas foram efetivamente
torturadas e mortas por serem simplesmente mulheres e
amedrontarem enormemente os homens que não sabiam como
agir diante do feminino.

Sintam o medo que transpassa nesta elogiosa descrição


da mulher: “Consideremos outra de suas propriedades, sua voz.
Pois como é embusteira por natureza, assim também sua fala
fere enquanto nos deleita. Pela qual sua voz é como o canto das
sereias, que com suas doces melodias atraem os viajantes e os
matam.” (Kramer e Sprenger, 2007, p.62).

A sedução feminina era o maior de seus pecados e a


eclosão do desejo responsabilidade única das filhas de Eva.
Penso aqui nas regras atuais de vestimenta do Oriente Médio,
Refletindo a Psicanálise-2020 70

que obriga às mulheres se cobrirem inteiras, em nome de uma


proteção às mesmas. É obrigatório especialmente o uso do véu,
uma vez que os cabelos são vistos como grande objeto de
sedução. A sensação de quem não está vestida à caráter é de
extremo desconforto, sendo recriminada por homens e
mulheres. As próprias mulheres oprimem quem não se adequa
ao estabelecido. Fica a pergunta: é uma proteção à mulher
contra quem? Quem são esses que têm seus instintos tão
indomados que precisam ter os objetos de desejo totalmente
cobertos para não partirem para a ação? As mulheres têm que
se esconder porque um homem não consegue vê-las sem
atacá-las. Essa é a questão. A cada qual caberia dar conta do
seu desejo, me parece, e não projetar a voracidade no outro
para então matá-lo, como fizeram nas fogueiras da Inquisição.
Como fazem hoje em dia.

“Todas as bruxarias provêm do apetite carnal que nas


mulheres é insaciável” (Kramer e Sprenger, 2007, p.63),
finalmente assumem os inquisidores. Aí está a característica
que as mulheres possuem e que atemorizava esses homens,
elas desejam. Algumas, àquela época, desavisadamente,
assumiam esse desejo. Feiticeiras, enfeitiçavam os homens.
Refletindo a Psicanálise-2020 71

“Daí que entre as mulheres ambiciosas, resultam mais


profundamente infectadas aquelas com temperamento
ardoroso para satisfazer seus repugnantes apetites; e essas
são as adúlteras, as fornicadoras e as concubinas do Grande” [o
diabo] (Kramer e Sprenger, p.64, 2007).

Estas mulheres satisfazem seus sujos


apetites, não só por si mesmas, mas
inclusive através dos poderosos da vez,
sejam eles de qualquer classe ou
condição, e por todo tipo de bruxarias
provocam a morte da alma devido à
excessiva ânsia do amor carnal, de tal
maneira, que nenhuma vergonha ou
persuasão poderia dissuadi-la de tais
atos (Kramer e Sprenger, 2007, p.65).

Imaginem o medo que eles sentem dessa mulher


poderosa, que assume seu desejo, que se satisfaz por si mesma
ou escolhe qualquer um de qualquer classe ou condição, ela não
se deixa enquadrar, se limitar no exercício da sua sexualidade.
Enquanto o homem tem uma grande limitação, a limitação física.
Se ao homem cabe o pênis, ele só é phallus enquanto houver
investimento do desejo de outro que vê ali seu poder de
realização, só se é o phallus das estátuas, adorado, mitificado,
eternizado, enquanto pênis ereto. A ereção é um limitador à
Refletindo a Psicanálise-2020 72

copulação que o sexo feminino não experimenta em sua


constituição biológica.

Haverá sempre um fantasma perseguindo o homem, ‘se


eu não conseguir satisfazê-la, outro irá?’ Desde que a mulher
se mostra desejosa, esse implacável perseguidor à
masculinidade se torna ainda mais assustador. É necessário
aniquilá-lo.

A essa altura não caberia espanto saber que às bruxas,


segundo seu manual de reconhecimento, caça e abate, é
atribuída a propriedade de causar impotência masculina. Mas
ainda espanta. Às mulheres é creditado o poder de “eliminar o
membro” [masculino] (Kramer e Sprenger, 2007, p.66).

Não escapando ao determinismo psíquico que conduz as


cadeias associativas da mente, a escrita dos autores não
consegue contornar o dinamismo do Inconsciente. Após expor
toda luxúria que exala da mulher, após um rol de descrições de
malfeitos que essa mulher esquiva pode engendrar, surge, ao
final do capítulo, como se fosse um adendo a toda
promiscuidade trazida pela volúpia irrefreada dessa fêmea, o
motivo do medo e, do consequente castigo, imposto às mulheres
por tamanha ousadia em desejar. Elas podem levar à impotência
Refletindo a Psicanálise-2020 73

masculina. O funcionamento do pênis está sujeito ao capricho


da fêmea. Em outras palavras, de certa forma também, a mulher
pode castrar o homem. Se, por um lado, ela faz o pênis virar
falo, ela pode fazer também do falo um simples pênis, e, em
alguns casos, desse, um nada.

Cito:

Quanto à castração real “afirma-se a fortioti [com


muito mais razão] que podem o fazer; pois como
os demônios podem fazer coisas maiores que
essa (...) também [as bruxas] podem, em verdade
e em realidade, eliminar os membros dos
homens.” (Kramer e Sprenger, p.68, 2007, os
colchetes são nossos).

E mais: “a impotência causada pela bruxaria pode ser


temporária ou permanente, se for temporária, pode ser curada
antes de decorridos três anos de sua coabitação” (Kramer e
Sprenger, 2007, p.66).

Bem sabemos que, literalmente falando, não vivemos


mais esse tipo de caça às bruxas, a Inquisição ficou para trás,
mas no sentido psíquico, que marcas esse caminhar deixa
impresso no nosso aparelho mental? E o que qual seu sentido
latente? Da Era Neolítica, quando as mulheres passaram a ser
Refletindo a Psicanálise-2020 74

trocadas como objeto, para a confecção da Bíblia passaram uns


10 mil anos e, mesmo decorrida essa enormidade de tempo, lá
estava a imagem de Eva pecadora. Da estória de Eva para Idade
Média coloque-se mil anos e a situação se repete com requintes
de crueldade. O que ela pode nos fazer pensar?

Desde os primórdios dos tempos, da Era Neolítica, temos


notícia, mesmo que não tenha sido de forma universal, da
apropriação do corpo da mulher como um bem comum que pode
ser usado sem seu consentimento.

A procriação era um bem valioso, uma vez que fornecia


força de trabalho e luta, e quando foi descoberto seu mistério,
ao invés de ser algo compartilhado, passou a ser fonte de
subjugo, pelo menos em algumas tribos, prevalecendo o
domínio do masculino sobre o feminino. Enquanto a geração da
vida era prerrogativa feminina, ela era livre e celebrada por
esse feito, porém, quando o homem associou seu papel à
concepção, a tendência foi ele se apropriar da reprodução e
assumir o controle sobre mulher, apontando uma repetição que
chegaria aos dias de hoje.

Com o relato da diminuição das imagens de fertilidade


das estátuas femininas, diante do maior surgimento de estátuas
Refletindo a Psicanálise-2020 75

fálicas, inferimos a necessidade de fazer prevalecer o


masculino, justamente naquilo que lhe é mais “sagrado”, seu
órgão sexual. Desde esta época podemos pensar num
movimento de investimento libidinal no phallus, onde ele
precisa ser reassegurado e adorado, para isso colocando em
detrimento os atributos ligados à feminilidade. A angústia de
castração faz com que, de variadas formas, ao longo dos
tempos, o phallus seja cada vez mais visto e valorizado,
assegurando-se do seu lugar imaginário. Quando não tão
obviamente em estátuas, em situações de abuso de poder
masculino, de opressão, de feminicídio.

Desvalorizar a mulher não deixa de ser uma forma de


enaltecer o homem. Fazer da mulher um ser frágil não deixa de
ser uma maneira de garantir que ela precisa de um ser forte a
quem necessita recorrer. Um pênis é só um pênis se não houver
quem lhe dê todo seu valor e poder, tornando-o um phallus.

A estória de Eva representa a posição desfavorecida em


que foi sendo constantemente colocada a mulher. A primeira
mulher do mundo1, segundo a visão mítica cristã, comete um
erro com consequências universais. Ela leva Adão a trair Deus
e por isso deve se resignar ao sofrimento, irá parir com dor.
Aquele ato que no início da Humanidade cabia a ela ser
Refletindo a Psicanálise-2020 76

endeusada por tamanha preciosidade, a partir de então, pela


escrita dos homens, será realizado como lembrança de uma
punição. O que era dádiva terá sempre um leve amargor de
castigo. Parir com dor. O dom de gerar será, para as mulheres,
fonte de sofrimento.

A psicanálise não gosta muito de falar, com razão, em


concretudes, uma vez que trabalhamos com o mundo subjetivo.
Por isso quando falamos em homem e mulher deve ser
entendido como sendo habitado por um masculino e um
feminino, onde o feminino não quer dizer necessariamente
pertencente à mulher nem o masculino, ao homem. No entanto,
existe uma dinâmica geral constitutiva diferente para ambos os
sexos. Quando Freud escreve sobre algumas consequências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925/2019), ele
nos incentiva a pensar na anatomia com sua concretude. A
forma dos dois sexos se constituírem psiquicamente é diferente
em virtude de distinções físicas, especialmente como se
posicionam referente à castração em relação ao Édipo.

A situação da mulher em relação à castração é


paradoxal e esse nos parece ser o ponto nevrálgico que a coloca
em posições tão sujeitas ao ataque ao longo da sua existência.
Refletindo a Psicanálise-2020 77

A mulher é castrada. Em termos de pênis, a mulher é


castrada. Diz a teoria freudiana (1925/2019) que a castração é
percebida quando o menino vê a menina nua e reconhece que
nela falta aquilo que ele tem e teme perder. Ela também se
reconhece assim, faltosa. Mesmo que se discuta,
pertinentemente, que a castração vai muito além do que ter um
órgão genital e que esta afeta homens e mulheres
indistintamente, não há como negar que sua introdução se dá
pela percepção de uma falta anatômica nas meninas.

Então, começam os paradoxos. Exatamente por essa


distinção anatômica, por causa da castração, por não ter pênis
e ser dotada de uma vagina (e todo aparelho genital e
reprodutor feminino) à mulher é permitido gestar. Isso deveria
lhe conferir grande poder e não lhe provocar inveja.

Aqui abro um pequeno parêntesis para lembrar que


alguns autores, dentre os quais destaco Melanie Klein,
abordaram o tema da inveja do corpo da mulher sob outra
perspectiva, no entanto, as teorias a respeito desse assunto não
predominaram e a questão da percepção da castração se dando
em torno da ausência do pênis é prevalente.
Refletindo a Psicanálise-2020 78

O poder feminino da fertilidade e gestação foi celebrado


no início dos tempos, e ao que a narrativa da História indica, os
atos de hostilidade vieram do outro lado da moeda, daquele que
não viu seu membro potente ser reconhecido e valorizado. Mas
o fato de poder dar à luz uma criança parece pequeno diante do
fato da mulher não possuir um pênis. O mundo gira ao redor do
phallus que, não à toa, foi representado pelo pênis ereto.

A potencialidade feminina de gestar cria uma das


situações mais fundamentais para a vida física e mental do ser
humano. Pelo fato de ter uma relação una por nove meses com
seu bebê se promove a condição sine qua non para o estado de
completude experimentado por todos os seres humanos que é
fundante da sua existência psíquica. Esse período de fusão com
a mãe e os primeiros momentos de vida darão a ilusão de
completude que serve de substrato para o narcisismo primário
quando o Eu houver minimamente se amalgamado, o qual será
constitutivo do sujeito.

No entanto, se a mulher pode criar o idílico estado de


bem aventurança com seu bebê, ela também é a responsável
pelo seu término. Ela não proporciona apenas, mas acaba
também com ele. Podemos inferir que a saída do útero materno
Refletindo a Psicanálise-2020 79

e depois do estado narcísico primário pode ser uma fonte


poderosa de acusação dirigida ao feminino. Assim como Eva
tirou a Humanidade do Paraíso, tal como no Gênesis, cada mãe
tira seu bebê do paraíso na terra que é esse momento mítico,
onde dois são um e todos os desejos e necessidades são
realizados e satisfeitos sem precisar de intermediações, posto
que não se conhece a falta. Tal acusação nos parece incrustrada
no inconsciente através dos tempos e no tempo de cada um de
nós.

Outro aspecto exclusivo do feminino é o amamentar. Ao


amamentar, cria-se um laço fundamental com o bebê, o qual
novamente terá contrapartidas significativas no
desenvolvimento anímico do sujeito. Podemos pensar que, salvo
exceções, em virtude de tal ato, é à figura feminina, na imensa
maioria dos casos, que é dirigido todo ódio quando faz nascer o
objeto (Freud, 1915/1974). Conjecturamos que o objeto surge do
ódio - a uma mulher. A não realização dos desejos alucinados
do bebê que o levam ao impacto da realidade, expulsando-o do
mundo do prazer completo, vem de um seio que não chega na
hora certa, de uma necessidade não satisfeita, de uma mãe que
não chega para amamentar, aconchegar, trocar, e, assim,
frustra e castra, apresentando e introduzindo o mundo real ao
Refletindo a Psicanálise-2020 80

sujeito. Introdução necessária, porém, extremamente


frustrante. A mãe será percebida, o objeto será reconhecido
com todo ódio aí envolvido. Após a saída do período mítico do
útero materno, é novamente a figura da mulher que fica
associada à perda do prazer absoluto.

À mulher cabem papéis de extrema envergadura que não


fugiram aos olhos da teoria psicanalítica freudiana, mas, mesmo
assim, foi preciso manter sua condição de invejosa e faltante.
Pensamos se não há uma inversão de lugares nessa questão,
uma projeção da inveja, atribuindo ao feminino uma dor que não
lhe pertence exclusivamente, mas que pode ser atenuada se for
inserida nas mulheres. Uma dor que pertence a todos nós, sem
distinção anatômica, pois pertence ao mundo interno, onde não
existem órgãos, mas instâncias e conflitos psíquicos. No
entanto, se for colocada numa categoria de gênero, pode ser
mais controlada ilusoriamente.

É bem sabido que Freud enfatizou que tanto homens


como mulheres poderiam sentir angústia de castração e que
esta pertence ao humano independente do gênero. No entanto,
ele efetivamente cunhou uma expressão que voga até hoje:
“inveja do pênis” que é muito utilizada para falar do status
Refletindo a Psicanálise-2020 81

incompleto e invejoso das mulheres, apenas das mulheres.


Penso que, neste sentido, aparte toda extremamente bem
sustentada teoria que ele criou, ele representava um
pensamento marcado pela cultura e que, de certa forma, a
reforçou. Um pensamento que tende a fazer a mulher invejosa
e perigosa.

Ao que parece o perigo que a mulher oferece é de ordem


mais inconsciente e que um dos caminhos para o acessar está
sim na sua castração, mas de uma forma diferente do que nos
foi dado a pensar. E enfatizo que é graças a mesma psicanálise
freudiana que posso pensar as questões que levanto aqui. O fato
dele ter tido, a meu ver, uma visão equivocada a respeito da
inveja feminina não invalida toda obra consistente que nos legou
e, inclusive, permite levantar dúvidas sobre ela.

Vamos percebendo que a mulher carrega diferenças


anatômicas que a marcam demasiadamente pela castração,
mas não necessariamente porque, stricto sensu, a faz inferior,
mas porque traz outros tipos de consequências para o seu
desenvolvimento. A castração anatômica traz uma carga de ódio
para si e esse ódio leva com que a convençam de que ela é
inferior. O feminino delata não apenas a castração fálica, mas
Refletindo a Psicanálise-2020 82

acaba por intermediar outras formas de castração que vão


sendo internalizadas ao longo do processo de constituição
psíquica do ser humano e que possivelmente respondem, em
grande medida, pelo lugar que a mulher ocupa no Inconsciente
com reflexos na forma como é vista e tratada pela cultura.

Cultura esta, ressalto, que é constituída por pessoas de


ambos os sexos. Acontece de vermos também mulheres
reforçando ideias de controle sobre o feminino, até mesmo
envolvendo punição, como citei a respeito do Oriente Médio.
Afinal, como disse acima, relembrando Freud, angústia de
castração não é prerrogativa de gênero.

A mulher, por ser veículo de castração, quando expulsa


do ventre materno, quando não satisfaz todas necessidades
primárias na amamentação e afins, quando evidencia as
diferenças anatômicas, precisa ser rechaçada, como se rechaça
a falta em si. Ela representa a causa da angústia que todos
querem extirpar. Sendo a angústia incontrolável, pois é
incontornável a incompletude, tenta-se controlar aquilo que a
denuncia, o feminino.

A castração feminina não faz a mulher inferior, como


muitos podem fazem crer, a faz assustadora.
Refletindo a Psicanálise-2020 83

Uma das formas de atacar o medo da castração é atacar


a mulher, a qual o espelha, a culpabilizando. Isso nos parece
claro ao ler o Malleus Maleficarum, onde há um temor explícito
por esse objeto tão poderosamente assustador que é a
bruxa/mulher.

Às mulheres parece caber várias culpas, que a História


foi traduzindo em castigos tais como submissão, penitência,
desvalia, ignorância e tantos outros, conforme a justificativa de
seu tempo. Pensamos que esta representação externa da
cultura de cada época traz a marca de uma inscrição psíquica
mediada por uma fenda narcísica que se repete em cada
geração.

Ao longo da História a visão a respeito da mulher foi se


repetindo como a de um ser deficitário, que para estudar ou
votar, por exemplo, teve que lutar para provar que tinha direitos
iguais aos homens. Essa imagem, naturalmente, foi sendo
introjetada pelas meninas/mulheres, criando uma identificação
com o estatuto de inferioridade, o qual reforçou e teve seu
reforço na cultura. “A mulher também funciona como lugar de
seus sintomas tanto como sintoma da Kultur” (Assoun, 1994, pg.
205).
Refletindo a Psicanálise-2020 84

A psicanálise, em Freud (1923/2019, 1925/2019, 1931/2019,


1933/2019), parece ter dado voz a esse sentimento de menos
valia ao teorizar sobre a castração e seus desdobramentos no
psiquismo da menina e do menino, afirmando que elas se veem
mutiladas e somente terão uma saída saudável à situação
quando tiverem um filho; e eles as veem inferiores, exceto suas
mães a quem atribuem um pênis (Freud, 1923/2019).
Infelizmente, ao captar o adoecimento que o peso da
feminilidade traz consigo, Freud reforça a ideia de que ser
mulher é um estigma.

Esse estigma, literalmente, esta marca que se traz no


corpo, e que acarreta tanto rancor, pode ser atenuada, se
estiverem ao lado de um homem. Como escreveu Freud a
Martha, o amor de um homem será o suficiente para relativizar
os efeitos da desigualdade a que a mulher está submetida. A
busca irremediável por esse amor tem parecido mais uma
necessidade de reconhecimento e sobrevivência do que uma
possiblidade dentre outras de satisfação e parece trazer às
mulheres mais sofrimento do que prazer.

A mulher não pode ser deixada só, ela não se basta,


parece ser o recado passado, convencendo as mulheres de que
Refletindo a Psicanálise-2020 85

elas são frágeis e precisam ser eternamente cuidadas. Mais


além da fragilidade expressa pela voz social, vinda tanto de
homens quanto de mulheres, vemos uma ideia subjacente que
traduz um perigo imanado por parte da feminilidade que faz com
que seja necessário mantê-la sob observação, quando não,
coerção.

Freud (1925/2019), sem perceber, acaba sendo porta-voz


das fantasias da Humanidade, quando atribui às mulheres um
super-eu mais frouxamente constituído, uma vez que ela não
teme a castração, posto que já é perceptivamente castrada. Isso
o leva a afirmar que “o nível do que é eticamente normal vem a
ser outro para a mulher” (p.289). Adiante acrescenta:

Traços de caráter que sempre foram


criticados na mulher – que ela mostra
menos senso de justiça que o homem,
menor inclinação a submeter-se às
grandes exigências da vida, que é mais
frequentemente guiada por sentimentos
afetuosos e hostis ao tomar decisões –
encontrariam fundamento suficiente na
distinta formação do Super-eu que
acabamos de inferir (Freud, 1925/2019,
pg. 289).
Refletindo a Psicanálise-2020 86

Possivelmente em virtude da ameaça que trazem


consigo fizeram as mulheres crer que seu destino era estar
com um homem para lhes trazer algum respeito. E,
infelizmente, toda sorte de intimidações e injustiças ao longo da
História reforçaram essa ideia, criando um “sintoma cultural”.
Lipovetsky (2007) relembra que foi a destinação das mulheres
aos papéis passivos e domésticos que contribuiu para enlaçar a
ideia de amor e identidade feminina, por outro lado recorda
também que foi a adesão ao código de amor paixão dos
cavaleiros medievais que permitiu às mulheres ganhar uma
imagem social mais elevada.

A meu ver, amar ocupa tanto as mentes femininas


porque o amor traz uma aura de expiação ao pecado –
forçadamente imputado - que as acompanha e se apresenta
também como uma via de autovalorização. Ter um homem ao
seu lado não deixa de representar, por essas marcas no
Inconsciente reforçadas pela cultura, uma forma de ter um
lugar social. Seria uma espécie de absolvição juntamente com
um tipo de controle. Um paradoxo, bem sei.

Mas ser mulher é viver um paradoxo, disse


anteriormente. Temida porque não consegue ser apreendida.
Refletindo a Psicanálise-2020 87

Ela espelha a castração ao mesmo tempo que assusta por se


mostrar sexualmente inteira; ela é tida como frágil, mas é capaz
das mais duras batalhas para ter seu lugar no mundo; ela
deveria invejar o pênis, mas parece mais causar inveja por atos
que só ela pode realizar. Ela é castrada, mas não sucumbe. Ela
é plena, mas é faltosa. Esse ser complexo precisa ser
controlado, para isso é necessário insistir na ideia de que ele é
quase um incapaz e precisa ser acompanhado de perto.

A questão é que colocaram nesse paradoxo o amar


mesmo que faça sofrer, como se fosse justo e garantido que à
mulher caiba tal tarefa “honrosa”. Acontece que não há porque
este ser o destino feminino. Mesmo que Freud tenha decidido
dar o nome de “feminino” a um dos três masoquismos por ele
descrito, ainda que alegando que feminino seja só uma forma de
dizer, mas não queira dizer “da mulher”. Masoquismo não é o
destino da mulher.

O destino da mulher não é amar incondicionalmente,


independente do que lhe façam, porque ela é mãe, não é sofrer
no paraíso porque ela é mãe. Só para citar duas frases que
crescemos ouvindo. Ser mulher não é sofrer.
Refletindo a Psicanálise-2020 88

O destino da mulher não é ser santa, nem meretriz. A


mulher não precisa ser enquadrada como forma de a
delimitarem em espaços predefinidos. A mulher precisa saber
que pode tentar ser o que quiser e cada qual descobrirá seu
jeito, tentando não trazer repetido de forma mortífera milhares
de anos de uma história da qual ela parece ser coadjuvante sem
querer, uma história que ela precisa conhecer e entender seus
motivos e desdobramentos para não repetir destrutivamente
para si mesma. Porque tampouco ser vítima é o seu lugar.

Como disse, estas são especulações, exercício de


pensamento a partir de observações clínicas, as quais não
gostaria de atribuir exclusivamente ao social, à cultura, sem
esquecer que ela é fruto do nosso inconsciente. Esse foi um
possível caminho para pensar no inconsciente que sustenta
essa estrutura em nossa cultura há tantos anos.

Nota:
1
Para muitos, há o mito de Lilith, a primeira mulher de Adão, portanto, anterior
a Eva, que não aceitou “se deitar sob ele na hora do sexo”, ou seja, rebelou-se
contra a superioridade de Adão, por isso, foi expulsa do Paraíso e do Gênesis,
sendo associada como figura demoníaca.
Refletindo a Psicanálise-2020 89

REFERÊNCIAS
Assoun, P. L. 1994. Freud y la mujer. Buenos Aires: Ediciones Nueva
Visión.
Freud, S. 1915. Pulsões e seus destinos. In: Edição standard brasileira
das obras completas. Rio de Janeiro: Imago, v.14.
Freud, S. 1923. A organização genital infantil. In: Obras completas,
volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925).
Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
Freud, S. 2019. Algumas consequências psíquicas da diferença
anatômica entre os sexos. [1925]. In: Obras completas, volume 16:
O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. 2019. Sobre a sexualidade feminina [1931]. In: Obras
completas, volume 18: O mal-estar na civilização, novas
conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-
1936). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras.
Freud, S. 2019. Novas conferências introdutórias à psicanálise – A
feminilidade [1933]. In: Obras completas, volume 18: O mal-estar
na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e
outros textos (1930-1936). Tradução Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras.
Kramer, H. E; Sprenger, J. 2007. Malleus Maleficarum (O Martelo das
Bruxas) Tradução Alex H. S. site: marymad.awarspace.com.
Lins, R. N. 2005. A cama na varanda. São Paulo: Best Seller.
Lipovetsky, G. 2007. A terceira mulher – permanência e revolução do
feminino. São Paulo: Cia das Letras.
Nunes, S. 2000. A. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
Rougemont, D. 1988. O amor e o ocidente. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara.
Zuanella, A. C. 2016. Os caminhos da paixão amorosa e alguns dos seus
destinos patológicos. Dissertação de Mestrado. Biblioteca da
Universidade Católica de Pernambuco.
Refletindo a Psicanálise-2020 90

Zuanella, A. C. 2017. O medo da intimidade e o reconhecimento da


alteridade. In: Calibán Revista Latino-Americana de Psicanálise,
v. 15, p. 31-42-42.
Zuanella, A. C. 2018. A paixão e as instâncias ideais. In: MULTIVERSO -
Órgão Oficial do NPA, v. 01, p. 28-35.
Zuanella, A. C. 2019. O páthos da paixão e o sofrimento da melancolia.
In: Geraldo Jorge Barbosa de Moura; Ana Cláudia Zuanella;
Fernando Santana; Sandra Sampaio. (Org.). Refletindo a
Psicanálise. 01ed. Recife: Editora Universitária da UFRPE, v. 01, p.
23-37.
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CAPÍTULO IV
Refletindo a Psicanálise-2020 92

O ESTRANHO E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

Maria Arleide da Silva


Membro Titular e Analista Didata da Sociedade Psicanalítica do Recife -
SPRPE.

RESUMO
Tendo como referencial teórico principal o artigo “O inquietante” de
Sigmund Freud, realizou-se uma reflexão sobre o estranho na clínica
psicanalítica, onde este se apresenta através da compulsão à
repetição, mostrando-se inicialmente como irrepresentável e
desconhecido. O complexo de castração é referido, conforme a
compreensão freudiana de ser ele um ponto central em torno do qual
se estruturam as neuroses de transferência, fundante dos recalques
posteriores e a partir dos quais a pulsão se fará representar por ideias
estranhas e desconhecidas. Numa tentativa de ilustrar a compreensão
desse acontecer psíquico, tomou-se como exemplo os sonhos, por
serem produções inconscientes que se apresentam quase sempre por
imagem, produtos de representações psíquicas com origem no
funcionamento mental mais primitivo – processo primário, deslocadas
do seu objeto/ideia recalcada e condensado, disfarçadas, por isso,
também, muitas vezes inquietantes, como nos sonhos de angústia.
Palavras-chave: Inquietante; Neurose de Transferência; Complexo de
Castração; Psicanálise; Compulsão à repetição

O estranho, quando se revela, traz à luz aquilo que há de


mais antigo e familiar, que foi apresentado numa “roupagem”
moderna e aparentemente estranha, sinistra, inquietante, uma
forma de subversão inconsciente, ou como queiram traduzi-la,
sua compreensão enriquece e desobstrui o processo
psicanalítico, revela mais conhecimento à clínica psicanalítica.
Refletindo a Psicanálise-2020 93

De qual estranho estamos falando? O estranho “se


caracteriza pelo caráter ou aspecto excêntrico; insólito,
esquisito, extraordinário”. Ou ainda, “Que não se conhece ou
reconhece; que produz a sensação desconfortável de
estranheza” e “Que é misterioso, enigmático ou que desperta
suspeitas” (Michaelis, Dicionário online). Nesta acepção “o que
não se reconhece”, parece muito adequado ao sentido do
estranho na psicanálise. Está claro que só é possível re-
conhecer algo já conhecido, que surge como um des-conhecido,
e por isso, embora familiar, é misterioso, estranho, ou
inquietante, conforme foi traduzido do alemão pela Companhia
das letras (Souza, 2010).

Em seu artigo sobre o Estranho, após uma longa


sequência de exposição dos seus vários significados e em
diversos idiomas, Freud diz: “Portanto, heimlich é uma palavra
que desenvolve o seu significado na direção da ambiguidade, até
afinal coincidir com o seu oposto, Umheimlich é, de algum modo,
uma espécie de heimlich.” (FREUD, 1919, p. 340)

Vê-se, então, que estamos falando de algo


aparentemente desconhecido, mas que uma vez compreendido,
reconhecido, como é possível acontecer no processo analítico,
revela-se como familiar, fala da intimidade de ideias e afetos
Refletindo a Psicanálise-2020 94

que sofreram o processo de recalque, quando então passaram


a ser os “mais secretos desejos”.

Antes de me deter na clínica, considero importante


destacar que o estranho na literatura diz respeito a coisas da
ordem da estética, que em princípio pode até nos assombrar.
Entretanto, mesmo uma leitura que suscite algo de muito
estranho ao leitor em um dado momento, ele consegue se
desligar do assombro, desinvestir a atenção e via de
consequência, a sensação de estranheza cessará, visto que
sabe tratar-se de uma criação literária. Esse assombro da
literatura, não nos inquieta como o inquietante, que é de fato
uma repetição de representações do inconsciente, o
assombroso que domina quando o psiquismo se expressa na
repetição compulsiva, sob a égide da pulsão de morte.

O inquietante (Freud, 2010), o assombroso, o estranho, é


sim aquele que um dia possibilitou quietude, que proporcionou
talvez algum amparo, o que surgiu como desejo infantil e por
discrepante, inaceitável à convivência dentro do psiquismo,
devido a proibição do incesto, sucumbiu ao recalque. Deste
modo, ficou esquecido à consciência, ao ego consciente, à sua
comunicação com o mundo externo, mas sempre promovendo
ruídos internamente. Muitas vezes, muito mais que ruídos,
Refletindo a Psicanálise-2020 95

causam grande angústia, com a qual se pode fazer analogia com


a dimensão de um som que seria insuportável aos ouvidos,
angústia que faz surgir os sintomas. O que antes teve que se
fazer ausente, ser escamoteado da consciência, refiro-me aqui,
como escreveu Freud, ao tema central e transversal, as
estruturas neuróticas, o complexo de castração.

E qual é a relação do complexo de castração com o


estranho e as subversões do inconsciente? É importante
destacar que a universalização do Complexo de Édipo e a
consolidação teórico-clínica deste complexo e do complexo de
Castração, que aconteceu com o Caso do Pequeno Hans, levou
Freud a definitivamente colocar o temor da castração como um
tema central na Psicanálise e à compreensão das neuroses, as
quais posteriormente chamou de neuroses de transferência e
também para compreensão da clínica das psicoses, indica as
falhas relativas ao declínio do investimento edípico. Tendo por
alicerce a universalização do Édipo, Freud põe ênfase no artigo
O Estranho, ao que considerou um grande temor infantil, medo
de cegar, muito presente entre as fantasias das crianças (Freud,
1919).

Sendo, como é o investimento amoroso nas figuras do


pai ou mãe, ao que Freud chamou de Complexo de Édipo (Freud,
Refletindo a Psicanálise-2020 96

1924), de longe, o mais importante investimento pulsional do ser


humano, considero importante dedicar ênfase ao complexo de
Édipo e sua relação com o Complexo de Castração. Pode-se
identificar na chamada fase fálica, um investimento narcísico de
extrema importância. Considerando que nesta etapa da
evolução libidinal da criança, as pulsões parciais se organizam
em torno do pênis como objeto privilegiado, representante do
phallus, que tem uma importância inestimável e um alto valor
narcísico, ao que se soma a ausência de investimento na
distinção anatômica entre os sexos, delimitada nesse período
em fálico e não-fálico/castrado. (Laplanche, 2009).

Segundo Laplanche, “este investimento fálico-narcísico


compreende o phallus como elemento essencial, fazendo
desaparecer a distinção entre corpo e pênis. Ora um, ora outro,
é sujeito ou atributo. O corpo se faz apêndice do pênis”.
(Laplanche, 2009). É deste complexo “declinado”, que sucumbe
ao recalque, que nos é tão íntimo, que surgirá noutros
momentos o tema desta escrita, o estranho, o inquietante
assombroso e sinistro.

O antes muito familiar, cuja representação ideacional é


retirada do Ego, faz depois o seu retorno, como o Inquietante,
aparentemente desconhecido, provocando angústias. Como um
Refletindo a Psicanálise-2020 97

primeiro exemplo de lugar onde pode-se identificar o estranho,


pode-se pensar nos sonhos. Escolhi os sonhos porque todas as
pessoas sonham, embora algumas nunca lembrem seus
sonhos. “Os guardiães do sono”, que são produzidos de maneira
extremamente primitiva no aparelho mental, as imagens, que
são via de regra a forma mais frequente de sonhar, é uma
produção inconsciente, utiliza os mecanismos de deformação e
condensação para tentar obter satisfação.

E de qual estranho a clínica psicanalítica nos fala? A


Clínica nos fala de sonhos, muitas vezes carregados de muita
angústia, uns que se repetem com alguma frequência, outros
que são esquecidos, outros ainda que o paciente acha que não
conseguirá falar. Todos muito distintos, singulares, mas trazem
algo em comum, o retorno do recalcado, por isso a angústia, o
medo, a inquietação, a estranheza. Como segundo exemplo,
pode-se lembrar os sintomas, igualmente aos sonhos, também
são uma tentativa de satisfação disfarçada, do desejo proibido
que outrora foi recalcado. Se a satisfação através dos sintomas
causa muito desprazer, a pulsão, sempre com o objetivo final de
obter satisfação, permanece constante e o desequilíbrio na
economia psíquica se amplia.
Refletindo a Psicanálise-2020 98

A guisa de concluir, vamos passar a pensar na neurose


de transferência, que se instala no processo analítico. Ela
recupera, produz uma nova edição da neurose infantil, trata-se
de representações de ideias e afetos muito antigos, conhecidos,
mas re-editados de maneira deslocada do seu objeto,
condensada, que se apresentam como se fossem opostos ao
que querem representar, porque são inconscientes, parecem
novos, desconhecidas, estranhas. A relação paciente–analista,
quando estabelecida a neurose de transferência, que é ao
mesmo tempo uma grande aliada ao processo, também é fonte
de maior incremento do que Freud nomeou de resistência ao
tratamento. E, é como produto desta, que surge a compulsão à
repetição, ou seja, a expressão da pulsão de morte. Como disse
Freud:

As manifestações de uma compulsão à


repetição (que descrevemos como
ocorrendo nas primeiras atividades da
vida mental infantil, bem como entre os
eventos do tratamento psicanalítico)
apresentam em alto grau um caráter
instintual (pulsional) e, quando atuam
em oposição ao princípio do prazer, dão
a aparência de alguma força demoníaca
em ação (Freud, 1920, p. 52).
Refletindo a Psicanálise-2020 99

O estranho na clínica psicanalítica é sobretudo essa


compulsão à repetição, essa “força demoníaca da pulsão de
morte” a qual, nós analistas precisamos “responder”, ou seja,
compreender de maneira que nossa resposta crie no psiquismo
do analisando a possibilidade de um caminho para a recordação,
como um passo inicial à elaboração. Ogden (2011), leva-nos a
refletir que precisamos de nós mesmos, ocupando a nossa
função analítica, precisamos do analisando e tudo que ele nos
fala e faz na sessão, e às vezes fora dela, desde que nos relate,
a necessária construção do “terceiro analítico” intersubjetivo
inconsciente:

“... um terceiro sujeito inconsciente que


contribui fortemente para estruturar a
relação analítica.... A tarefa do analista
consiste em criar as condições nas quais
é possível efetuar a experiência do
terceiro analítico intersubjetivo
inconsciente (sempre composto de
várias camadas e facetas, e
continuamente em movimento),
associá-la a palavras, e, finalmente,
falar dela com o analisando.” (Ogdem,
2011- Trabalhar na Fronteira do sonho. p.
161; In Psicanálise Contemporânea).
Refletindo a Psicanálise-2020 100

Aberto o caminho à elaboração, é certo que a pulsão de


morte entrará a serviço da pulsão de vida, e com a elaboração
compreender-se-á, finalmente, que o estranho nada mais é do
que aquele mais conhecido, íntimo e pessoal, que vive em cada
um, camuflado, e quando se apresenta causa horror.

Para concluir, quero dizer que inicialmente pensei em


trazer um exemplo clínico. Entretanto, por melhor que eu
conseguisse fazer a minha transcrição, ela estaria, ainda assim
distante da realidade de uma sessão analítica que eu vivi dentro
de um setting, numa relação singular, como acontece em cada
sessão e com cada um dos nossos analisandos. Acabei
concluindo que, se a apresentação de uma sessão analítica pode
ser de muita utilidade, e é, para levarmos a experiência e
compreensão a vários temas do Método Psicanalítico, ele, o
caso clínico, ou uma vinheta que pudesse apresentar, não
conseguiria transmitir a experiência afetiva de viver uma
relação analítica, numa relação onde o analisando repetirá seus
maiores sofrimentos, seus afetos de natureza positiva e
negativa, a quem “invadirá” com identificações projetivas, por
isso deixo-lhes apenas a recomendação de oportunamente
tentarem lembrar um sonho, daqueles que apenas a lembrança
Refletindo a Psicanálise-2020 101

já produz angústia, lugar afetivo onde pode se ter uma breve


experiência de viver o estranho inquietante e assombroso.

Entender clínica e afetivamente o estranho é uma certa


forma de arte, não do analista, mas uma arte que é resultado do
processo analítico, só pela elaboração do analisando é possível
de fato reconhecer o familiar no estranho. “Traduzir uma parte
na outra parte, que é uma questão de vida e morte, será arte?”

REFERÊNCIAS

Freud, S. 1980. O “Estranho”, Rio de Janeiro, RJ, Edição Standard


Brasileira (E.S.B.), vol XVII, Imago. (Trabalho original
publicado em 1919).
Freud, S. 2010. O Inquietante, São Paulo,SP, Sigmund Freud
Obras Completas, Companhia das Letras. (Trabalho original
publicado em 1919).
Freud, S. 1980. Além do Princípio do Prazer, Rio de Janeiro, RJ,
Edição Standard Brasileira (E.S.B.), vol XVIII, Imago, 1980.
(Trabalho original publicado em 1920).
Freud, S. 980. A Dissolução do Complexo de Édipo, Rio de
Janeiro, RJ, Edição Standard Brasileira (E.S.B.), vol XIX,
Imago. (Trabalho original publicado em 1924).
Laplanche, J. 2009. Castration et Symbolisations, Paris, PUF. 2ª
Édition.
Refletindo a Psicanálise-2020 102

Ogdem, T. 2003. Trabalhar na Fronteira do Sonho, In: Psicanálise


Contemporânea, Org. André Green, Revista Francesa de
Psicanálise, Imago, 2003. (Trabalho original publicado em
2001).
Refletindo a Psicanálise-2020 103

CAPÍTULO V
Refletindo a Psicanálise-2020 104

ARQUEÓLOGOS E MONTANHISTAS

Austregésilo Castro1
Membro Efetivo e Didata da SPRPE.
1

RESUMO
A questão dos mitos Tebanos é inspiração para a Ontologia humana.
Intencionalmente, o autor fala de vinhetas de caso clínico que têm uma
configuração complexa e estrutura “pesada”. A contemporaneidade
evidencia características de perturbações que se referem ao corpo, à
ação e aos sentimentos. Fala da evolução do paciente em foco e diz
que a dupla analista/analisando trabalha com características de
arqueólogos e montanhistas.
Palavras-chave: Velocidade, Narcisismo, Destrutividade.

Como os extremos se tocam, apesar de nosso trabalho


ser de paleontólogos, é frequente a circunstância de
montanhistas.

Contudo, nesse reino tebano, dificilmente Tirésias nos


forneceria os esclarecimentos. E tal qual fizera a Édipo, nos
remeterá à Esfinge e esta mais uma vez e como sempre
sentenciará o seu enigma na entrada do oráculo de Delfos:
“Conhece-te a ti mesmo”. Ainda mais porque não haveria apenas
um ego envolvido no significado do enigma, porém uma dupla
interagindo, o analista e o analisando, numa dinâmica contínua.
Refletindo a Psicanálise-2020 105

Me ocorre uma vinheta clínica de paciente trabalhando


analiticamente comigo há alguns anos, que chamarei de
Roberto (52 anos), profissional do direito. Inicialmente ele
queixa-se de tristeza e diz não poder deixar nada incompleto
que fica pensando, se torturando. Sintomas obsessivos segundo
o pai da psicanálise, são substituições das ideias reprimidas que
retornam num segundo momento como compulsão. Roberto
adota uma atitude frequentemente de negatividade. Ante a
agressividade que manifestava, eu analista tinha sentimento de
desconforto. Dava-me a impressão que Roberto usava atitudes
onipotentes, sendo frequentes suas manifestações agressivas
com as pessoas com quem mantinha relacionamento, mas
sobretudo, agia por impulso e rapidamente.

A velocidade é uma das características mais marcantes


da nossa era pós-moderna. Ela é fruto das questões não
elaboradas, o que Freud qualificaria como resultado do
processo primário do funcionamento mental.

As emoções são descarregadas seja pelo corpo


(sintomas psicossomáticos), seja na análise, produzindo
identificações projetivas maciças, ou no meio ambiente
(aumento da destrutividade). Pela ausência dos sustentáculos
socioculturais e incapacidade simbólica, o corpo se transforma
Refletindo a Psicanálise-2020 106

num local de último reduto de sobrevivência. Por isso as


academias de ginástica viraram os templos atuais, em que se
cultuam as performances e a perfeição ditadas pela mídia. No
plano político e social, é fácil vermos com perplexidade as
sinalizações da destrutividade na sociedade contemporânea
pós-moderna.

Somos chamados à reflexão sobre essa velocidade, ao


contemplarmos nosso lado primitivo e selvagem, ao mesmo
tempo detentor de uma sabedoria natural presente, por
exemplo, nos nossos índios. Um famoso antropólogo israelense
estava visitando uma tribo de índios brasileiros. Ao chegar,
notou que havia um clima de festa na aldeia. Curioso, perguntou
ao chefe de que se tratava, recebendo como resposta que uma
jovem índia da tribo comunicara a ocorrência da sua primeira
menstruação e a festa era porque a aldeia ganhara uma mulher.
Após algum tempo, ao retirar-se, o sertanista escutou choros
altos e um clima de tristeza entre os índios. Mais uma vez
consultou o chefe, para saber do que se tratava, obtendo como
resposta que toda a tribo estava triste, porque ao ganharem
uma mulher, perderam uma criança. Este episódio, esclarece
que o ser humano (o primitivo dentro de nós) tem um tempo
natural para viver as suas perdas.
Refletindo a Psicanálise-2020 107

Desde a época de Freud para cá, os sintomas obsessivos


tiveram destaque nas patologias neuróticas por ele estudas
junto com as histerias e as fobias. É assustador vermos como
uma parcela da população japonesa vive praticamente trancada
dentro de seus quartos, os chamados hikikomori, usando e
abusando da internet, o que se convencionou chamar bolhas
que dão a sensação de proteger o indivíduo contra o diferente,
mas aumenta o seu sentimento de solidão. Para Freud, a
questão narcísica parece estar no centro das ocorrências. O
narcisismo é uma relação objetal. Uma busca de amor. No
narcisismo, o indivíduo investe a sua libido em si próprio, mais
do que no objeto, o ego se torna o objeto. Como fica tão bem
elucidado pela lenda grega de Narciso.

Na contemporaneidade, em virtude da dificuldade de


simbolização, temos o predomínio das patologias que dizem
respeito à ação, ao corpo e ao incremento dos sentimentos.

No plano social, há as explosões de violência, como por


exemplo, os atentados terroristas, o incremento dos
preconceitos sociais, as chamadas patologias de
personalidades digitalizadas, os suicídios programados pela
internet. O uso das fantasias parece ser turbinado por um
“milagre” da nossa era chamado INTERNET, que pode ser usada
Refletindo a Psicanálise-2020 108

tanto para o bem quanto para o mal. Esta possibilita que as


identificações não se façam mais pelos modelos da identificação
paterna, mas pelo que Dra. Silvana Rea, da Sociedade
Psicanalítica de São Paulo descreveu pelo entrecruzamento de
imagens e informações, que ao se entrecruzarem, mudam de
direção. Penso ser enriquecedor para nós, entendermos essas
ocorrências além da luz trazida por Freud, que falava da
erotização mágica e paroxística dos líderes. Penso ser
enriquecedora a compreensão do psicanalista Jacques Lacan.
Este, enfatizava que indivíduos com dificuldade de simbolização,
efetuam dois movimentos ou defesas, uma denegação (que
seria a negação da castração e afirmação dela), e uma outra
defesa; mais regredida e psicótica que ele chamou de
foraclusão. Existe a recusa do conteúdo e pela incapacidade do
indivíduo de simbolizar, esses conteúdos retornam ao mundo
real por um viés alucinatório. Isso se faz por intermédio de
líderes também fragmentados, que são os “partidos” políticos.
Esses líderes patológicos, dão aos indivíduos uma constituição
de pertencimento, a “tribos”, incluindo-os nas tarefas de
destrutividade em que se constituem os atentados e as atitudes
racistas.
Refletindo a Psicanálise-2020 109

O totalitarismo sequestra a alma das vítimas. Estamos


condenados a viver somente com os iguais? Quanto menos
suportam viver com as diferenças, mais as pessoas ampliam o
narcisismo das pequenas diferenças. Byung-Chul Han diz que
vivemos tempos de furiosa individualidade.

Há alguns meses Roberto, o paciente supracitado tivera


um sonho que me pareceu bastante esclarecedor: sonhou estar
numa fila e atrás dele algo como uma pessoa ou um cão, xingava
e agredia a todos com visível impaciência, por sua vez na fila. O
paciente vendo-o como um cachorro, oferecia uma reação aos
movimentos da tal pessoa-animal, de tal modo que pegou o jeito
e quanto maior o movimento ameaçador do cachorro, mais o
paciente executava um movimento oposto. Dessa maneira,
estabelecendo uma certa mecânica como que rítmica de
oposição, que se mostrava cada vez mais eficiente para conter
aquele animal. Uma outra pessoa atrás falou pedindo calma e
argumentou que, como de outras ocasiões, forneceria ao animal
uma gratificação alimentar e com isso o animal se mostrava
dócil. O paciente mudou de atitude, vivendo a situação com uma
humanidade até então ausente. Na análise o paciente fez uma
associação com uma certa indiferença como vinha tratando
parentes e associou a culpa e a ansiedade que ele estava
Refletindo a Psicanálise-2020 110

vivendo tinha como causa sua própria destrutividade projetada


nos objetos externos; familiares e etc.

Para ele, nenhum argumento mais do que essa


compreensão dinâmica seria capaz de mostrar-lhe que a
destrutividade não estava fora, mas em seu próprio interior.

No transcurso da análise de Roberto, percebi várias


vezes que ele parecia desvalorizar o que eu dizia. Apesar de sua
“fortaleza” em continuar indo “religiosamente” às sessões. Eu
tinha a impressão de que em muita coisa, ele não concordava
comigo. Não falava e não associava livremente, tendo um
discurso “objetivo”, ou narrativo de providências no real. Nesses
momentos, eu me sentia desestimulado e com a sensação de
“malhar em ferro frio”.

O que parecia salvar a continuidade da análise, era sua


sinceridade e disponibilidade de voltar a expressar o que sentia,
revelando o que não estava bem. Nos períodos em que as coisas
não estão claras, nem se vê luz no fundo do túnel, não existe
leveza.

Passado algum tempo, o paciente parecia estar mais


implicado no próprio tratamento. A sua ênfase não eram apenas
os sintomas.
Refletindo a Psicanálise-2020 111

Ele tivera um pai com bipolaridade e rituais obsessivos


aprisionastes, daí a importância para Roberto de lidar com
livres associações e os próprios impulsos sem o malho
superegoico. Ao voltar-se mais para um viés cultural (estudos),
Roberto expressa um enorme prazer que tem experimentado
com essas atividades. Cita também um aumento da capacidade
de escutar os outros, mesmo que discorde deles. Refere que
com isso fica surpreso e aprende mais.

Mais recentemente, Roberto revela um sonho


significativo. Diz que um conhecido conversava amistosamente
com ele, e dizia ter tido um revés na vida que lhe servira de
estímulo. E que esse estímulo servia também para Roberto
(aspectos fracassados do próprio Roberto).

Em outro trecho do sonho, o cachorro dele pulava da


varanda de um andar alto por ver um outro cachorro lá em
baixo. Roberto via seu cão morto e saia anunciando
desesperado. Ao acordar, associa esse sonho a estar
convivendo mais com suas perdas. Diz ser um aspecto dessas
perdas que lhe permite tirar vários ensinamentos (as perdas de
que falava eram a perda da juventude). Para chegar a esse
momento, não houve um salto, porém uma relação que foi se
dando ao longo de vários anos. Devido à complexidade
Refletindo a Psicanálise-2020 112

estrutural da patologia, vai pedir experiências corretivas


frequentes e constantes e implica num tratamento demorado e
com constantes recaídas.

Algum tempo depois, o paciente disse que tivera um


sonho muito emocionado com a vida e uma conhecida que
falecera. Comentou, ser a vida uma passagem emocionante.

Penso que são sonhos que revelam o que chamamos de


posição depressiva e atitudes de reparação. Que é aquela em
que o indivíduo se sente mais inteiro e acha que sua auto-
estima melhorou.

Os impulsos reparadores ocasionam um maior avanço


na integração. O desejo e capacidade de restauração do objeto.
O ego mantém o amor e as relações através dos conflitos e
dificuldades, bem como são a base para as atividades criativas.

Ao mesmo tempo sentindo-se contido em sua


destrutividade pelo analista, passa a desenvolver o que Bion
chamou “um aparelho para pensar pensamentos”.

À medida que o paciente vai elaborando seu mundo


instintivo, poderá ir lidando melhor com as compulsões que o
prendem e com isso expandir-se.
Refletindo a Psicanálise-2020 113

Se tanto o conhecimento, amor e ódio, podem se


apresentar com sinal negativo, podem também fazê-lo com o
sinal ou orientação positiva. Somente com as perguntas, como
se faz na análise, podemos ir além. Devemos tanto quanto
possível, escolher metas elevadas, como por exemplo, tem
referido Roberto e sua satisfação com novos conhecimentos
produzidos pelos estudos e ampliação de novos contatos
sociais.

Por isso a importância da psicanalise. Conhecedor do


seu lado destrutivo, o indivíduo vai poder lidar melhor com a sua
criatividade e expandir o seu potencial, afim de encontrar o seu
lugar na existência, correspondendo ao velho ideal dos gregos,
de qual a finalidade da vida, e nós justificarmos o porquê saímos
de casa a cada dia. Não são apenas repetições na tentativa de
controle traumático, mas ampliação de capacidade simbólica a
partir dos afetos.

Dessa fonte está tudo o que chamamos de mais baixo


(pulsões) e em que queremos nos tornar (mais elevado). Dessa
maneira, os extremos se tocam. Mas sobretudo a partir desse
contato com as pulsões destrutivas e amorosas, alçar os voos
sublimatórios rumo ao que é elevado.
Refletindo a Psicanálise-2020 114

Mesmo tendo ocasionalmente decifrado o Enigma da


Esfinge, baseado em seus próprios sofrimentos (lutos), Édipo
terá que retornar ao enigma outras vezes e outras mais e assim
sucessivamente para poder ampliar suas redes afetivas que
serão sublimações em sua difícil caminhada a dois.

O reino tebano não é o conhecimento de um enigma. Ele


vai e volta, na perda e recuperação de cada momento, na
dinâmica de um fluir, constituindo-se. Passagem do sentimento
para as representações simbólicas.

Penso, portanto, que o avançar na psicanalise se


consegue com características de arqueólogos e montanhistas.

REFERÊNCIAS
FREUD, S. 1974. “O mal-estar na civilização”. in Obras Psic. Compl., vol.
XXI, Imago Ed. (Trabalho original publicado em 1930[1929]).
Freud, S. 1974. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Freud, S. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed.
Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV, p. 85-119.
(Trabalho original publicado em 1914).
Refletindo a Psicanálise-2020 115

CAPÍTULO VI
Refletindo a Psicanálise-2020 116

NARCISISMO(S)

Geraldo Jorge Barbosa de Moura1


Roberta Míriam Barbosa de Moura2
1
Psicanalista do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica do Recife-
SPRPE. Doutorado e Pós-doutorado em Comportamento. Docente e
Pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco-UFRPE.
2
Graduada em Fisioterapeuta e Especialista em Fisioterapia
Cardiorrespiratória em UTI. Intensivista do Real Hospital Português.
Intensivista do Hospital São Marcos.

RESUMO
Diferente de outras temáticas psicanalíticas, a teoria que sustenta o
tema narcisismo ainda é fruto de muitas discordâncias por parte dos
principais nomes da psicanálise mundial. Aqui será apresentado um
breve histórico sobre a construção desse conceito, baseado
prioritariamente nas ideias de Freud, ou seja, na lógica primária de
que o narcisismo consiste em uma das principais fases do
desenvolvimento egóico, localizado justamente entre o autoerotismo
e as relações objetais. Sucintamente, podemos considerar que
embora o narcisismo saudável não seja amor, enquanto afeto ou
sentimento, é uma condição indispensável para amar, daí a sua
essencial importância na vida humana e na estruturação de um
aparelho mental saudável.
Palavras-chave: Autoerotismo; Relações objetais; Pulsão; Libido.

Uso o termo Narcisismo(s), com a indicação de


pluralidade, pois embora Freud tenha delimitado muito bem
este termo ao término da sua obra, muitas são as
conceitualizações e entendimentos sobre o famigerado
Narcisismo, os quais serão paulatinamente apresentados e
Refletindo a Psicanálise-2020 117

discutidos neste trabalho, com destaque para as ideias


freudianas.

O vocábulo Narcisismo faz alusão ao mito grego


“Narciso” ou “O Auto admirador”. O mito tem como protagonista
o personagem Narciso que viveu no território dos Téspias,
sendo filho do Deus Cefiso e da ninfa Liríope. Conta o mito que
no dia do seu nascimento, o adivinho mais renomado do reino,
Tirésias, conjurou que Narciso teria vida longa e repleta de
muita fartura e alegria, desde que jamais contemplasse a
própria imagem bela.

Este mito tornou-se conhecido por tratar-se do


autoapaixonamento de Narciso, homem que se destacava por
ser esteticamente perfeito e admirado fisicamente por todos
que o conheciam, embora fosse arrogante e grosseiro. Na
estória, Narciso se encanta por si mesmo após se deparar com
sua própria imagem refletida na lâmina d’água de um lago, conta
o mito que sua imagem o hipnotiza e o leva a ser tragado e
devorado pelas águas do lago (Kury, 2008). O mito de Narciso,
originalmente, traz à tona o culto doentio à nossa própria
imagem, que corresponde a um entendimento muito simplista
no que se refere a sua significância nos limites epistemológicos
da psicanálise.
Refletindo a Psicanálise-2020 118

Podemos iniciar na perspectiva psicanalítica,


entendendo que o narcisismo é uma fase do desenvolvimento
humano, enquadrado por Freud entre o autoerotismo e as
relações objetais. Partindo do princípio que na fase do
autoerotismo direcionamos nossos instintos e toda a nossa
libido para nós mesmos, como explicitado inicialmente por
Freud em sua carta direcionada a Fliess de 1899, enquanto que
nas relações objetais ocorre o direcionamento da libido para
algo não interno, externo a nós, o que chamamos de objeto foco
do nosso desejo/libido, podemos entender também que o
narcisismo pode ser alternativamente a direção e o sentido da
nossa pulsão libidinal, interferindo na estruturação do nosso
psiquismo, sobretudo na estruturação do Ego que por sua vez é
alimentado pela nossa energia libidinal.

Vale destacar que o estudo da obra de Freud precisa ser


entendido como teoria, método e técnica clínica em constante
desenvolvimento, ou seja, fazendo uso mais uma vez da
pluralização, estamos falando de vários “Freud(s)” que nos
apresenta(m) suas ideias em diferentes momentos e níveis
distintos de sistematização da psicanálise, seja como ciência ou
método/técnica. Desta forma, o próprio Freud ora nos apresenta
a fase de autoerotismo e do narcisismo como similares e ora
Refletindo a Psicanálise-2020 119

como fases distintas; sendo esta última ideia o norte final de


pensamento de Freud e, consequentemente, o guia ideológico
desse trabalho.

Outra questão inicial que merece destaque sobre o


autoerotismo é o fato de Freud ter comunicado em 1919 que é
impossível o sujeito manter relação consigo mesmo sem
nenhum tipo de relação com um objeto, o que não faz jus à
etimologia do prefixo “auto”, nem as delimitações teóricas
atribuídas a Freud para o autoerotismo no final do século XVIII.
Ou seja, os escritos originais de Freud apresentam nuances
sobre a definição dessas fases, mas, independentemente
dessas distinções (autoerotismo versus narcisismo), o
narcisismo é indubitavelmente uma fase do desenvolvimento
psíquico do indivíduo, sendo de fundamental importância para a
estruturação do aparelho mental.

Vale destacar que o termo “Narcisismo”, não foi usado


primariamente por Freud, mas sim por um psicólogo e médico
britânico contemporâneo de Freud chamado de Henry Havelock
Ellis que viveu na Inglaterra entre os anos de 1859 e 1939. Dentre
suas contribuições, destacamos as primeiras noções sobre o
narcisismo, posteriormente retomado, aprofundado e
sistematizado por Freud.
Refletindo a Psicanálise-2020 120

Freud também nos apresenta o narcisismo como um dos


destinos da pulsão. Esta ideia baseia-se, entre outros textos, em
sua interpretação clínica inicial sobre a homossexualidade.
Segundo Freud (1910), podemos iniciar pensando que o
homossexual passa a direcionar sua pulsão/libido para um
objeto igual a ele. Esse entendimento faz alusão ao conceito de
identificação que pode ser considerada como “igualar-se”, ou
seja, identificar-se com um objeto correspondendo a igualdade
entre o desejante e o desejado (Freud, 1970). A partir dos
primeiros conceitos sobre identificação (1914), começa-se a
especular a identificação do filho com a mãe e da filha com o
pai, o que permitiu Freud hipotetizar a possível gênese da
homossexualidade de Leonardo da Vince (Freud, 1970), uma vez
que ao mesmo tempo que ele se identifica com a mãe ele
escolhe um objeto igual a si como destino da sua libido (Freud,
1970; 1972; 1974).

Uma outra relação da identificação com o narcisismo é a


construção do Ideal do Eu. Com o aporte do entendimento do
Ideal do Eu, nos identificamos com o que gostaríamos de ser, ou
com o que o outro ou até mesmo a mídia gostaria que eu me
tornar-se. Desta forma, como o próprio termo faz alusão, o Ideal
Refletindo a Psicanálise-2020 121

do Eu busca uma condição “ideal” aos nossos olhos e aos olhos


dos outros para a nossa auto representação.

Feitas essas organizações de ideias e conceitos, Freud


nos apresenta o conceito de narcisismo primário, que é quando
o indivíduo só se relaciona consigo mesmo, direcionando sua
pulsão libidinal para si. Não confundir com autoerotismo, pois
embora descrevam o mesmo fenômeno, um corresponde a uma
forma de relação com o objeto (autoerotismo) e o outro é uma
fase de desenvolvimento do aparelho mental (narcisismo
primário).

Numa outra perspectiva, como consequência inerente ao


surgimento das relações objetais, se estabelece a angústia
frente a possibilidade de frustração por perda do objeto. Essa
angústia nos fará mais ou menos mal, a depender do quanto
nosso narcisismo primário for forte o suficiente para fazer a
nossa energia libidinal nos alimentar. Desta forma, podemos
considerar a estruturação de um bom narcisismo primário
como uma condição sine qua non para amar, embora ele não
seja o amor com sentido de afeto ou sentimento. Pois, sem um
narcisismo primário suficientemente forte, que contenha
alternativamente o sofrimento aparentemente insuportável
decorrente das relações objetais, não aguentaríamos
Refletindo a Psicanálise-2020 122

estabelecer relações com objetos, ou seja, não seríamos


capazes de amar.

Ainda podemos destacar que o narcisismo primário


cumpre duas funções básicas e benéficas para a estruturação
da saúde mental do indivíduo. A primeira é que ele mantém os
fragmentos do ego unidos e com isso faculta ao indivíduo uma
identidade própria, favorecendo assim a continua expansão do
ego, pois fornece a energia necessária para os processos de
identificação no que se refere a relação com outras pessoas,
sobretudo a partir do complexo de Édipo, que nos permite
desenvolver uma relação com o Ideal do Ego, sempre buscando
adquirir uma característica positiva que identificamos nos
outros.

A segunda função estruturante que o narcisismo


primário apresenta é a de criar vínculos, lembrando que sem
vínculos simplesmente não há gozo, uma vez que o gozo requer
uma identidade ou especificidade do objeto para obtermos
prazer. Se não construímos uma relação específica com o
objeto, nós não estamos nos relacionando com ele, mas sim
fazendo uso dele para realizar um projeto egoísta e cindido do
sentimento, o que não é saudável socialmente, pois não
vivenciaremos relações objetais afetuosas e duradouras. Desta
Refletindo a Psicanálise-2020 123

forma, a análise também deve buscar fortalecer o narcisismo


primário a fim de criar uma personalidade que maximize as
relações objetais, ou seja, uma pessoa mais propícia a criar
vínculos impregnados de afeto.

Não podemos deixar de evidenciar uma das mais


expressivas contribuições de Green no que se refere a
sistematização da função estruturante do narcisismo (Green,
1988): Com função estruturante temos o “Narcisismo Primário
ou de Vida”, pois nos vincula ao objeto e, por consequência, tem
uma função “objetalizante”, maximizando as possibilidades de
estabelecermos continuamente relações objetais saudáveis e
sobrevivermos as suas impostas interrupções ou as angústias
inerentes as relações.

Já sobre o narcisismo secundário, como o próprio nome


indica, é um mecanismo acionado a posteriori a relações
objetais comprometidas ou não correspondidas, ou seja,
corresponde ao desvio e redirecionamento da pulsão libidinal
do objeto de interesse (a priori) para si próprio (a posteriori-
autoamor), geralmente pela rejeição ou perda do objeto pelo
desejante.
Refletindo a Psicanálise-2020 124

Fazendo mais uma vez uso das contribuições de Green


(1988), a função patológica do narcisismo está associada ao
“Narcisismo Secundário ou de Morte”, uma vez que não permite
um investimento no vínculo e sim investe no desvinculamento
objetal, ou seja, destrói e desvincula o objeto de mim, para que
a energia libidinal que seria investida no objeto permaneça
comigo, apresentando uma função “desobjetalizante” e de
isolamento frente as relações objetais (economia do vazio).

Com destaque para o fato de que a ausência não destrói


o vínculo, assim como a presença não constrói o vínculo.
Segundo Green (1988), o que constrói a relação objetal é a
economia e a natureza vinculante (“objetalizante”) ou
desvinculante (“desobjetalizante”).

Por fim, também podemos inferir que o narcisismo


patológico é ter medo do outro, é cindir com o outro, é tentar
proteger-se do outro, é bastar-se afetivamente de forma
isolada no que se refere às relações afetivas com objetos.

Com base no exposto, caminhamos sobre o


entendimento do narcisismo, seguindo prioritariamente as
ideias de Freud. Porém, podemos nos perguntar: após mais de
Refletindo a Psicanálise-2020 125

100 anos, como os teóricos pós-freudianos entendem essa


importante fase do desenvolvimento psíquico humano?

Atualmente, podemos considerar o assunto narcisismo


como um dos temas mais estudados e extrapoláveis da
metapsicologia freudiana e, por consequência, muitas são as
vertentes e os desencontros teóricos sobre essa temática
(Klein, 1926; 1929; 1933; 1940; 1946; Winnicott, 1958; 1964; 1965;
1977; Bion, 1962; 1978; Green, 1988; Rosenfeld, 1988). Contudo,
vale ressaltar que esse fato aumenta a preocupação dos
leitores e estudiosos pela busca de autores e textos que
retratem estes mecanismos psíquicos de forma precisa.

Outros brilhantes autores contribuíram para o


fortalecimento do estado da arte do Narcisismo, um dos
conceitos mais importantes da psicanálise, porém, pelo limite
de páginas imposto e não pela ausência de outras contribuições,
sugerimos aos interessados em se aprofundar nesse tema que
faça um estudo comparativo sobre as diferentes abordagens
dessa temática.

Por fim, o que não se pode perder de vista é o mosaico


de entendimentos teóricos que se encontram na literatura
técnica psicanalítica, seja freudiana ou das escolas americana,
Refletindo a Psicanálise-2020 126

inglesa e francesa sobre o conceito de narcisismo. O que nos


exige muito cuidado com o uso do termo, nos obrigando a deixar
claro qual escola teórica estamos nos baseando.

REFERÊNCIAS
Bion, W. R. 1962. O aprender com a experiência. (J. Salomão e P. D.
Corrrêa, trads.). Rio de Janeiro: Zahar.
Bion, W. R. 1978. Supervisão A47, realizada na SBPSP, transcrita e
traduzida por José Américo Junqueira de Mattos.
Freud, S. 1969. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de
um caso de paranóia. In: Freud, S. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, v. XII, p. 15-105. (Trabalho Original publicado em
1911).
Freud, S. 1970. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In:
Freud, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, v.
XI, p. 53-59. (Trabalho original publicado em 1910).
Freud, S. 1972. Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Freud,
S. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas.1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, v.
VII, p. 123-133. (Trabalho original publicado em 1905).
Freud, S. 1974. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Freud, S. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed.
Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV, p. 85-119.
(Trabalho original publicado em 1914).
Green, A. 1988. Narcisismo de Vida, Narcisismo de Morte. Rio de
Janeiro: Imago.
Henriques, R. P. 2008. Uma análise de narrativa do " caso Schreber" à
luz do novo historicismo: negociações freudianas. Ágora:
Estudos em Teoria Psicanalítica. vol.11 no.1 Rio de Janeiro.
Klein, M. 1996. Os princípios psicológicos da análise de crianças
pequenas. In. Klein, Melanie. Amor, culpa e reparação e outros
trabalhos (1921-1945). Tradução André Cardoso. Rio de Janeiro:
Imago Editora. (Trabalho original publicado em 1926).
Refletindo a Psicanálise-2020 127

Klein, M. 1996. Personificação no brincar das crianças. In. Klein,


Melanie. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945).
Tradução André Cardoso. Rio de Janeiro: Imago Editora.
(Trabalho original publicado em 1929).
Klein, M. 1996. O desenvolvimento inicial da consciência na criança. In.
Klein, Melanie. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos
(1921-1945). Tradução André Cardoso. Rio de Janeiro: Imago
Editora. (Trabalho original publicado em 1933)
Klein, M. 1996. Luto e suas relações com os estados maníaco-
depressivos. In. Klein, Melanie. Amor, culpa e reparação e
outros trabalhos (1921-1945). Tradução André Cardoso. Rio de
Janeiro: Imago Editora. (Trabalho original publicado em 1940).
Klein, M. 1991. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In. Klein.
Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Trad.
Elias Mallet Rocha Barros e colaboradores. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1991. (Trabalho original publicado em 1946).
Kury, M. G. 2008. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de
Janeiro, Editora Zahar.
Laplanche, J. 1998. Vocabulário da psicanálise. Trad. de Pedro Tamen.
3ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes.
Rosenfeld, A. H. 1988. Narcisismo destrutivo e a pulsão de morte. In H.
Rosenfeld, Impasse e interpretação: fatores terapêuticos no
tratamento psicanalítico de pacientes neuróticos, psicóticos e
fronteiriços (pp. 139-166). Rio de Janeiro: Imago.
Wieczorek, R. T. 2016. Da academia para o divã: reflexões sobre o
narcisismo. Aletheia. v.49, n.2, p.20-29.
Winnicott, D. W. 2000. Da pediatria à psicanálise. Trad. de Davy Litman
Bogomoletz. Rio de Janeiro, Imago, 2000. W6 - Collected Papers:
Through Paediatrics to Psycho-Analysis. London, Tavistock.
(Tradução original publicada em 1958).
Winnicott, D. W. 1985. A criança e seu mundo. Trad. de Álvaro Cabral.
Rio de Janeiro, Zahar Editores. W7 - The Child, the Family, and
the Outside World. Harmondsworth, Penguin Books. (Tradução
original publicada em 1964).
Winnicott, D. W. 1983. A família e o desenvolvimento individual. Trad. de
Marcelo Brandão Cipola. São Paulo, Martins Fontes. W8 – The
Refletindo a Psicanálise-2020 128

Family and Individual Development. London, Tavistock


Publications. (Tradução original publicada em 1965).
Winnicott, D. W. 1979. The Piggle: o relato do tratamento psicanalítico
de uma menina. Trad. de Else Pires Vieira e Rosa de Lima
Martins. Rio de Janeiro, Imago, 1979. W12 - The Piggle. An
Account of the Psycho-Analytic Treatment of a Little Girl. Ed.
I.Ramzy. London, Hogarth. (Tradução original publicada em
1977).
Refletindo a Psicanálise-2020 129

CAPÍTULO VII
Refletindo a Psicanálise-2020 130

UMA ANÁLISE SOBRE MELANCOLIA E SUICÍDO

Sílvia Farrapeira Cabral1


Psicanalista em Formação pelo Instituto de Psicanálise da Sociedade
1

Psicanalítica do Recife/Pernambuco-SPRPE.

RESUMO
Neste texto a autora tenta expor os processos que levam ao
transtorno depressivo grave, melancolia, suas características, seus
sintomas, através de uma visão científica e terapêutica. Abordará
sobre a associação entre o luto e a melancolia, a predisposição ao
adoecimento, as recidivas periódicas, a tendência a se transformar em
mania e por fim, o ato suicida. Cometer suicídio requer um misto de
depressão e impulsividade. A dor pode ser intolerável, mas a
perspectiva de tomar uma providência deliberada como o suicídio é
esmagadora. Para concluir fará uma análise sobre um caso de
melancolia com tendência suicida.
Palavras-chaves: Neurose; Depressão; Luto; Melancolia; Suicídio.

INTRODUÇÃO

Quando Freud quis resgatar para o campo da psicanálise


o entendimento das chamadas “psicose maníaco-depressivas”,
utilizou o termo “melancolia” para diferenciar a psicanálise da
psiquiatria do século XIX e início do Século XX. As duas afecções,
mania e melancolia, lutam com o mesmo “complexo”, ao qual o
Eu provavelmente sucumbe na melancolia, enquanto na mania
ele o põe de lado. Com isso Freud rompeu com a longa tradição
ocidental para a qual o melancólico era entendido como um
Refletindo a Psicanálise-2020 131

sujeito que ocupava uma posição excepcional, ou excêntrica, um


gênio no laço social, segundo a tese de Aristóteles (Problema
XXX, 1) que relaciona melancolia e gênio criador. Freud, centrou
nas ligações mais íntimas e precoces da vida familiar as
hipóteses sobre as origens narcísicas dos distúrbios
melancólicos.

No texto de 1917, Freud realiza uma profunda


comparação entre o estado de ter perdido alguém, o luto e o
estado depressivo, a melancolia. A depressão não é igual ao
luto, embora lutos mal elaborados possam resultar em sérios
episódios depressivos. No início dos processos de luto o sujeito
resiste a se desligar do objeto perdido. O enlutado passa por
momentos de relativo alívio em relação à dor da perda, para em
seguida, convertendo-se em luto patológico, apegar-se ainda
com mais intensidade à lembrança daquele que morreu ou
partiu. Freud (1917), em “Luto e Melancolia”, enfatiza a
resistência da libido em desligar-se da representação de um
objeto de satisfação. A melancolia teria uma predisposição
patológica caracterizada por um abatimento doloroso, falta de
interesse pelo mundo, perda da capacidade de amar, uma
diminuição da autoestima, um enorme empobrecimento do Eu,
gerando recriminações e ofensas à própria pessoa como um ato
Refletindo a Psicanálise-2020 132

de punição. O trabalho realizado pelo luto exige a retirada da


libido de suas conexões com o objeto de forma consciente. Essa
retirada ocorre aos poucos num processo de desligamento das
lembranças e expectativas mantidas na psique. No luto o mundo
se torna pobre e vazio. Após a consumação do trabalho do luto,
o Eu torna-se livre para novas escolhas de objetos. Na
melancolia a perda do objeto se caracteriza pela sua subtração
à consciência, a perda do objeto se confunde com a perda do
ideal do próprio Eu, o sujeito sabe quem, mas não o que perdeu
nesse alguém. Com o Eu empobrecido, o doente descreve-se
como indigno, incapaz e desprezível. O quadro desse delírio
moral surge associado a insônia, recusa de alimentação e uma
desvalorização à vida. A perda pode ser de um bem, de um
encontro, de um amor ou de algo que não tínhamos, mas que
desejávamos e agora sabemos que será impossível obter.

No quadro clínico, percebe-se que as autoacusações do


melancólico geralmente não se adequam a própria pessoa, mas
sim a outra, que o doente ama ou amou. São recriminações a
um objeto amoroso que se voltaram para o próprio Eu, por esse
motivo não envergonham nem se escondem ao dizê-las, ao
mesmo tempo agem sempre como que ofendidos e injustiçados,
característica psíquica da revolta que leva ao estado
Refletindo a Psicanálise-2020 133

melancólico, através de uma identificação do Eu com o objeto


abandonado. Na melancolia freudiana a falta de objeto não se
inscreve ao longo do atravessamento do complexo de Édipo, e
sim muito antes, na etapa primordial da constituição do sujeito
dominada pela oralidade, pela ambivalência e pela identificação
da criança com a mãe.

“A sombra do objeto caiu sobre o Eu, e a


partir de então este pôde ser julgado por
uma instância especial como um objeto,
o objeto abandonado. O conflito entre o
Eu e a pessoa amada, numa cisão entre
a crítica do Eu e o Eu modificado pela
identificação”. (FREUD (1917[1915], p.181).

Segundo Freud (1917[1915]), pode ter havido uma forte


fixação no objeto amoroso, uma oposição entre libido do Eu e
libido do objeto, quanto mais se emprega uma , mais empobrece
a outra, ou contrariando essa afirmação, uma pequena
resistência do investimento libidinal considerando uma
regressão narcísica, ou seja, o investimento para a escolha do
objeto se deu em função de uma identificação narcísica assim,
aparecendo alguma dificuldade, esse investimento regride ao
narcisismo, substituindo o investimento amoroso, o objeto foi
eliminado mas demonstrou ser mais poderoso que o próprio Eu.
Refletindo a Psicanálise-2020 134

A idealização é um processo que envolve o objeto, o qual é


aumentado e psiquicamente elevado, havendo uma
superestimação sexual do objeto, “aquilo que possui o mérito
que falta ao Eu para torna-lo ideal é amado”, (Freud, 1917[1915]).
Os investimentos excessivos enviados ao objeto que
empobrecem o Eu, torna-o incapaz de cumprir seu ideal do Eu.
É necessário haver um distanciamento do narcisismo primário
através do deslocamento da libido para um ideal do Eu vindo de
fora, ajudando o Eu a se desenvolver adquirindo experiência e
satisfação, cumprindo o seu ideal.

O estado do sono também significa uma retração


narcísica das posições da libido para a própria pessoa, mais
precisamente para o desejo de dormir. Em ambos os casos
vemos exemplos de mudanças na distribuição da libido graças
à mudança do Eu.

Considerando uma predisposição para a neurose


obsessiva, a perda do objeto amoroso desencadeia também
uma ambivalência nas relações. Funciona como uma batalha
entre o amor e o ódio, o primeiro luta para desligar a libido do
objeto e o outro para manter a libido contra o ataque. Todos
esses conflitos da ambivalência permanecem no inconsciente.
Refletindo a Psicanálise-2020 135

“Se o amor ao objeto - a que não se pode


renunciar, quando se tem de renunciar
ao objeto mesmo - refugia-se na
identificação narcísica, o ódio atua em
relação a esse objeto substitutivo,
insultando-o, rebaixando-o, fazendo-o
sofrer e obtendo uma satisfação sádica
desse sofrimento” Freud (1917[1915],
p.184).

Na neurose obsessiva, no luto e na melancolia há


diferenças na atitude do Eu que são significativas. Na neurose
obsessiva o sentimento de culpa é bastante forte, o Eu do
paciente indigna-se com a imputação de culpa e ousa reclamar
e rejeitar esses sentimentos, os impulsos permanecem fora do
Eu. Na melancolia o Eu se reconhece culpado e submete-se ao
castigo, uma parte do investimento amoroso regrediu à
identificação, ou seja, o objeto foi acolhido no Eu por
identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito de
ambivalência, foi remetida de volta ao estágio do sadismo. No
embate entre o amor e ódio, o ódio avança e desliga o objeto,
enquanto que, “refugiando-se no Eu, o amor escapa à extinção”
(Freud, 1917 [1915]/1969, p.262). É assim que, após o abandono do
objeto e a consequente identificação narcísica, o conflito passa
a ser representado para a consciência como uma tensão entre
Refletindo a Psicanálise-2020 136

o Eu e o agente crítico, o qual será designado, em 1923, por


supereu. A manifestação do supereu acarreta o sentimento de
culpa tanto na melancolia quanto na neurose obsessiva.

O sadismo que se dirige ao Eu é conteúdo do supereu,


criando uma “cultura pura de instinto de morte e, de fato, ela
com bastante frequência obtém êxito em impulsionar o Eu à
morte, se aquele não afasta o seu tirano a tempo, através da
mudança para a mania” (Freud, 1923/1969, p.66). As ideias
suicidas provindas do neurótico vêm do impulso homicida em
relação a outros. A análise da melancolia nos mostra que o
sujeito pode se matar apenas quando o retorno do investimento
objetal contra si mesmo é capaz de manter a mesma hostilidade
para si, a qual pertencia antes ao objeto. Lambotte (2000, p. 72)
afirma que “o melancólico se esmera matar o que o estorva na
ignorância em que ele se encontra da natureza de seu
adversário”. É ao conceber o retorno do sadismo ao Eu que
Freud sustenta a identificação ao objeto contra a qual atenta o
Eu em sua ignorância que o torna vítima e algoz
concomitantemente.

A análise da melancolia mostra agora


que o Eu só pode se matar se, devido ao
retorno da catexia objetal, puder tratar a
si mesmo como objeto – se for capaz de
Refletindo a Psicanálise-2020 137

dirigir contra si mesmo a hostilidade


relacionada a um objeto, e que
representa a reação original do Eu para
com objetos do mundo externo (Freud,
1917[1915], p.257).

Freud situa a melancolia próxima da esquizofrenia como


uma neurose narcísica em oposição às neuroses de
transferência (histeria, fobia e neurose obsessiva). A
identificação narcísica tem o eixo essencial para a consideração
do suicídio na melancolia.

Há uma fragilidade do campo imaginário que leva os


psicóticos a contentar-se com as palavras no lugar das coisas.
Sua angústia é terrível, surgem delírios, alucinações, o
sofrimento é tão intenso que o suicídio passa a ser fuga, às
vezes a única visível, uma solução permanente para um
problema temporário.

CASO JOANA

No caso relatado pelo psicanalista e escritor, Cassorla


(2018), podemos analisar um quadro de melancolia com
tendência suicida.
Refletindo a Psicanálise-2020 138

Um dia, sem que houvesse planejado, Joana engravida.


O namorado quis casar-se, mas ela terminou o relacionamento
e mudou de cidade para ele não mais encontrá-la. Tentou
abortar com chás e remédios, mas não teve coragem de
procurar uma parteira, médico ou alguém que de fato soubesse
fazer um aborto. Passou toda gestação sofrendo, chorando.
Pensava e sonhava com a criança, mas muitas vezes desejava
que não nascesse, que estivesse morta. Cibele, nasceu fraca, de
um parto complicado e não conseguia pegar no peito. Joana quis
dar a criança, mas pouco antes de dar a criança, arrependeu-
se. Cibele por sua vez, chorava muito e não deixava Joana
descansar depois de um dia inteiro de trabalho, fazendo-a
pensar que deveria ter dado a filha. Em certos momentos Joana
perdia a cabeça quando Cibele não parava de chorar e batia na
filha. Depois mais calma se arrependia, vivendo sempre em
conflito, desesperada. Uma noite, Cibele já com 4 meses, estava
febril e não parava de chorar. Joana, cansada desesperou-se e
deu-lhe uma surra. A criança se acalmou e dormiu. Na manhã
seguinte, Joana a encontrou abatida, mas mesmo assim foi
trabalhar. À tarde, Cibele estava ainda pior, e Joana, assustada,
levou-a a um hospital. Lá foi diagnosticada com uma infecção
complicada, com septicemia, e morreu depois de algumas
horas.
Refletindo a Psicanálise-2020 139

Joana entrou num processo melancólico, parou de


comer e dormir. Sentia-se má, “uma bruxa”, e foi definhando aos
poucos, pedia a morte e pensava em se matar. A falta de comida
levou Joana a contrair uma tuberculose. Foi levada à força ao
médico e ficou internada. Não queria ajuda e tentou se jogar da
janela (Cassorla, 2018).

COSIDERAÇÕES SOBRE O CASO

“A mãe que não confere ao recém-nascido um lugar


entre os representantes de seu desejo vai ser percebida, do
ponto de vista da criança, como um ser sem falta, a mãe que não
se satisfaz com ela se apresenta como onipotente” (Kehl, 2015,
p. 200).

No caso de Joana, ao mesmo tempo que ela teve desejos


de matar a filha, também queria que ela vivesse. A ambivalência
entre os desejos de ter um filho e não ter eram intensos,
causando-lhe conflitos e muito sofrimento. A mulher que
escolhe não ser mãe é acusada de egoísmo, de fracasso e a
sensação de estar fracassando naquilo que o mundo mais
espera de uma “mãe”, um amor universal, é imperdoável, um
pecado.
Refletindo a Psicanálise-2020 140

A culpa decorrente do sentimento de responsabilidade


pela morte de alguém pode levar a necessidade de autopunição.
Essa experiência pode ser muito intensa, ameaçadora,
impedindo que o enlutado siga sua vida por se sentir “mau”, com
ódio e com muita culpa. Quando a culpa inconsciente pela morte
de alguém predomina, o processo de luto torna-se patológico e
a ideia de suicídio pode surgir como uma maneira de se livrar
desses sentimentos, de matar essa culpa dentro de si. Dentre
as primeiras referências de Freud ao suicídio, em “Sobre a
psicopatologia da vida cotidiana” (1901/1969), ele reserva um
capítulo para descrever os “equívocos na ação” (Freud,
1901/1969, p. 167). Freud enumera algumas situações em que
atos apontam para que ações inconscientes escapem sob
equívocos e erros. São pequenos acidentes ou o uso inadequado
de objetos e, também, quedas, escorregões, passos em falso e
ferimentos autoinfligidos, aos quais, Freud afirma “nunca se
pode excluir o suicídio como possível desfecho do conflito
psíquico” (1901/1969, p. 181). Esses ferimentos autoinfligidos
surgem como uma tendência à autodestruição que supera as
forças que se lhe opõem. Diante da pulsão de vida subjugada,
Freud questiona se a renúncia à autopreservação teria como
base motivos do próprio Eu.
Refletindo a Psicanálise-2020 141

“De um lado, a renúncia do Eu à vida poderia ser


provocada por uma decepção da libido devido a causas
externas; de outro lado, a renúncia poderia provir de causas
internas, de motivos próprios do Eu” (Freud, 1910/1961, p. 209)

Muitos conflitos que levam ao suicídio são decorrentes de


situações primitivas ocorridas ainda na infância que não
dependem só de traumas vividos, mas também da sensibilidade
de cada indivíduo em lidar com a vida, com seus conflitos
internos e na maioria das vezes, inconscientes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para o melancólico, a perspectiva de ter os minutos, as


horas, os dias à sua disposição, à espera que ele decida o que
fazer deles, é angustiante.

A tristeza, os desânimos, as simples manifestações da


dor de viver parecem intoleráveis em uma sociedade que aposta
na euforia como valor agregado a todos os pequenos bens em
oferta no mercado. A tristeza é vista como uma deformidade,
um defeito moral e assim vem a obrigação de ser “feliz”. Aos
que sofreram o abalo de uma morte, de uma doença, de um
acidente grave, a medicalização da tristeza ou do luto rouba ao
Refletindo a Psicanálise-2020 142

sujeito o tempo necessário para superar o abalo e construir


novas referências, outras normas de vida, mais compatíveis
com a perda ou com a eventual incapacitação.

“A depressão é um sintoma social porque desfaz, lenta e


silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e
ordena a vida social desta primeira década do século XXI” (Kehl,
2015, p. 22).

Segundo a Organização Mundial de saúde (OMS, 2017),


cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano, sendo
a segunda principal causa de morte entre pessoas com idade
entre 15 e 29 anos.

REFERÊNCIAS
Freud, S. 2017. Obras Completas Volume 12; Introdução ao
Narcisismo (1914-1916); Tradução: Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. 2017. Obras Completas Volume 12; Luto e Melancolia
(1914-1916); Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras.
Freud, S. 1969. Obras Completas Volume XIV; Luto e Melancolia
(1914-1916); Rio de Janeiro: Imago.
Lambotte, M. 2000. Estética da melancolia. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud.
Kehl, M. R. 2015. O Tempo e o Cão. São Paulo: Boitempo.
Laplance, J. 1985. Vida e morte em psicanálise. Porto Alegre
Refletindo a Psicanálise-2020 143

Cassorla, R. M. S. 2018. Suicídio. Editora Edgard Blucher Ltda.


Refletindo a Psicanálise-2020 144

CAPÍTULO VIII
Refletindo a Psicanálise-2020 145

AMOR E ÓDIO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO


HUMANO

Maria Josivalda Pereira de Castro¹


¹Psicanalista em Formação pela Sociedade Psicanalítica do Recife-SPRPE

RESUMO
Este trabalho visa entender como os sentimentos de amor e ódio se
manifestam na primeira relação do bebê com o seu primeiro objeto de
desejo, para compreender como esses sentimentos vão contribuir
para a formação do narcisismo primário, e com isso, constituir o
sujeito humano e sua individualidade. Para isso, foi feita uma análise
bibliográfica de Freud (1909; 1914; 1920), Klein (1991; 1996) e Winnicott
(1975; 1983; 1999; 2000; 2005), buscando observar como esses autores
trazem contribuições distintas e complementares sobre a relação da
mãe com o bebê na primeira infância e da relação deste com o objeto
primário, o seio. Assim, entendemos que o amor e o ódio são
sentimentos complementares que precisam coexistir durante essa
primeira infância para que a criança possa se desenvolver como
pessoa humana.
Palavras-chave: Relação mãe bebê; Amor; Ódio; Psicanálise; Objeto;
Narcisismo primário.

Para conhecer, e compreender, o homem na sua


constituição de sujeito humano e a sua interação no mundo é
importante retornar à relação primeira do bebê com a sua
mãe/cuidador, o seu primeiro objeto de desejo. Esta é edificada
por dois sentimentos complementares -o amor e o ódio-, e é o
conflito entre esses o responsável pela constituição da
personalidade e individualidade de cada sujeito. Assim, para
entender melhor essa relação nós iremos explorar o conceito
Refletindo a Psicanálise-2020 146

de objeto em Freud (1909; 1914; 1920), Klein (1991; 1996), assim


como Winnicott (1975; 1983; 1999; 2000; 2005) e observaremos
como o surgimento do narcisismo primário se dá a partir dessa
relação da mãe com o bebê, uma vez que a estruturação da
personalidade e o surgimento do ser social dependem
intrinsecamente dessa relação entre o lactante e mãe/cuidador.

Ademais é fundamental compreender a interação do


bebê com o ambiente, pois este é um fator basal na relação
entre ele com a mãe/cuidador no que se refere ao surgimento
da dependência do bebê para com a mãe. Isso ocorre pelo fato
de que ao nascer, o bebê se depara com uma realidade até então
desconhecida, e por não possuir maturidade neurológica,
psíquica e emocional para lidar com esta, ele depende do
empréstimo do ego da mãe/cuidador, por um tempo, para que
consiga lidar e adaptar-se a essa nova realidade. Portanto, é a
partir desse empréstimo que se consolida a dependência direta
desse bebê com a mãe/cuidador.

É neste período de consolidação de dependência e


interação psíquica e emocional que os dois sentimentos basais,
amor e ódio, se intensificam. Isso ocorre porque nessa relação,
de empréstimo de ego da mãe/cuidador para o bebê, a
compreensão das faltas e das angústias, as quais aquele ser
Refletindo a Psicanálise-2020 147

emocionalmente prematuro passa, recai sobre a experiência e


percepção de seu cuidador. Dessa forma, para o bebê a
sensação de ter suas faltas saciadas pela mãe/cuidador, o leva
ao prazer, ao passo que a falta do cuidado necessário para
atender as suas necessidades também gera angústia e
desconforto, acarretando no surgimento das sensações de
terror.

Adiante, a ambivalência desses sentimentos, amor e


ódio, fará parte da estruturação do ego nos seus aspectos
negativos e positivos. Em seu aspecto negativo, o ódio levará a
sentimentos destruidores de morte e aniquilação, ao passo que
em seu aspecto positivo também poderá ser vital, estruturador
e construtivo, e neste sentido o denominamos de amor.
Portanto, os dois sentimentos, apesar de ambivalentes, se
completam, pois, como defende Michèle Benhaim (2007, p. 13):
“O ódio é o que poderia estruturar o amor materno como um
amor que autoriza a criança viver.”. Sendo assim, para
compreender melhor a relação desses sentimentos, é
importante entender o conceito de objeto para a psicanálise,
afim de alcançar uma maior clareza do que seria a ideia de
objeto primário na relação mãe/bebê.
Refletindo a Psicanálise-2020 148

O objeto para a psicanálise tem correlação com a pulsão,


assim como defendia Freud (apud LAPLANCHE; PONTALIS,
2008), que distinguia objeto de objetivo -sendo o objeto o que
atrai, e o objetivo a própria meta-. Assim, a relação do objeto
com as pulsões perpassa intrinsecamente pelo
desenvolvimento dos sentimentos de amor e ódio, ressaltando,
portanto, como esses são oriundos da relação mãe/cuidador e
bebê. A partir das sensações de prazer e não prazer serão
desencadeadas as pulsões, uma vez que, são os únicos
sentimentos de conhecimento e vivência do bebê até então.
Portanto, essas pulsões terão ligação direta com o objeto, em
uma relação dinâmica de ação/omissão e consequências
emocionais e afetivas.

O objeto, portanto, não é determinado aleatoriamente e


com formato único, mas sim, e principalmente, pela história
infantil de cada sujeito e, por conseguinte, submetido às
variações e peculiaridades que cada bebê estabelece com sua
mãe/cuidador. Então, o que define objeto para cada sujeito são
as satisfações e insatisfações vividas por ele na primeira
infância. Logo, não é qualquer objeto que satisfaz a sua pulsão,
pois este é escolhido a partir dessas vivências nos primórdios
da infância, de modo que, o objeto tem a finalidade de aliviar a
Refletindo a Psicanálise-2020 149

tensão da libido, a qual -como será explicado mais adiante-, é


reprimida. Assim, é fundamental entender o objeto, pois é a
relação do bebê com o objeto que definirá sua conexão com o
mundo. Segundo Laplanche e Pontalis (2008, p. 321) a ideia de
objeto é encarada sob três aspectos:

A) enquanto correlativo da pulsão, ele é


aquilo em que e por que esta procura
atingir a sua meta, isto é, um certo tipo
de satisfação. Pode tratar-se de uma
pessoa ou de um objeto parcial, de um
objeto real ou de um objeto fantasístico.
B) Enquanto correlativo do amor (ou
ódio), trata-se então da relação da
pessoa total, ou da instância do ego, com
um objeto visado também como a
totalidade (pessoa, entidade, ideal, etc.)
(o adjetivo correspondente seria
“objetal”). C) No sentido tradicional da
filosofia e da psicologia do
conhecimento, enquanto correlativo do
sujeito que percebe e conhece, é aquilo
que oferece com características fixas e
permanentes, reconhecíveis de direito
pela universalidade dos sujeitos,
independentemente dos desejos e das
opiniões dos indivíduos (o adjetivo
correspondente seria “objetivo”).
Essa ideia de relação do bebê com o objeto é ampliada e
reforçada por Melanie Klein (apud SEGAL, 1975), quando ela
Refletindo a Psicanálise-2020 150

afirma que o objeto é primordial para a estruturação do sujeito,


de modo que, no início do nascimento o bebê estabelece uma
relação com a realidade através do objeto. Assim, o objeto
conecta — através das percepções do bebê ― o sentido do
mundo, e, portanto, auxilia a sua futura compreensão. A
princípio, o sujeito estabelece uma relação parcial com o objeto,
no caso, o seio da mãe; para ele não há um todo (objeto) e sim
partes, que são sentidas através dos cuidados, ou seja, cada
momento vivenciado é sentido como algo singular, único, e não
como uma parte que se integra a um todo. Dessa forma, cada
parte é vivida como extensão de si mesmo, e não como uma
parte heterônoma que integra algo para além de si. Para Klein
(apud SEGAL, 1975) há também uma divisão do objeto: entre o
ideal e o persecutório, e esta divisão é a base para a paranoia,
pois, segundo a psicanalista, quanto mais extrema for essa
divisão — entre ideal e persecutório ― mais primitiva será a
relação do sujeito com o objeto. Sendo o ideal o objeto bom,
aquele que o satisfaz, e o persecutório aquele que o causa
desconforto.

A relação estabelecida entre o indivíduo, no início da sua


vida, e o objeto parcial, o seio, é o que o encaminhará a se
constituir como sujeito humano. Esses momentos vividos por
Refletindo a Psicanálise-2020 151

ele com o objeto primário de desejo, o levarão a duas posições:


a esquizoparanóide; e a depressiva. Ademais, Klein (1996)
denomina como posições as fases que são vividas pelo bebê no
início da vida, e essas fases são as vivências que contribuirão
para a coluna estruturante na formação do sujeito, na qual se
dá as duas posições que são constituídas de ansiedades — a
esquizoparanóide e a depressiva.

A posição esquizoparanóide ocorre na primeira metade


do início da vida do bebê, considerada fase oral, e nesta fase a
criança ainda não estabelece uma relação autônoma com o
mundo, nem com o outro na sua totalidade. Pois, a relação com
o objeto ocorre, ainda, de maneira parcial, ou seja, o bebê ainda
não consegue associar a ideia de que o seio que sacia sua
angústia, denominada de fome, faz parte de um corpo que não é
o seu. Essa parte, que o aquece e acolhe, e, portanto, sacia suas
necessidades, também é a parte que muitas vezes falta, isto é,
também é a parte que não atende as suas necessidades
imediatamente ou completamente, e consequentemente, essa
falta gera angústia e desconforto, prevalecendo assim, no
entendimento e compreensão do bebê, a ideia de existência
dessas partes e não de um corpo uno na sua totalidade. Essa
relação com a parte e não com o todo gera a ansiedade
Refletindo a Psicanálise-2020 152

paranoide, própria desta fase. A posição depressiva é o


momento em que o bebê integra o objeto parcial, ou seja, ele
entende que a parte tão odiada que causa o terror/desamparo e
desprazer é a mesma parte que atende as suas necessidades
causando o prazer. Dessa forma, ao fazer a integração do
objeto, ele imagina/acredita que o danificou, pelo sentimento de
ódio sentido na posição esquizoparanóide, gerando culpa e
ansiedade. Assim, as duas posições, esquizaparanóide e
depressivas, constituídas de amor e ódio geram ansiedade
(KLEIN, 1996).

Além disso, vale ressaltar que, na fase esquizoparanóide


o bebê se desenvolve também através de dois mecanismos: a
projeção e a introjeção, que tem início na relação que ele
estabelece com o objeto parcial, no caso o seio; estes
mecanismos dão origem a toda sensação de bom e de mau.
Desse modo, esse objeto parcial é sentido como mau ― não pela
frustração causada pela sua ausência ―, mas por causa da
projeção de ódio que o bebê faz sobre o objeto, isso é sentido
de forma muito agressiva pelo ego do bebê, ainda tão
fragilizado. Esse objeto é sentido como muito perigoso e
ameaçador, pois sua força é muito intensa, a ponto de fazer o
bebê sucumbir. Essa sensação de terror é sentida tanto externa
Refletindo a Psicanálise-2020 153

como internamente, causando grandes ansiedades no bebê, o


qual pode reagir, desenvolvendo uma estrutura psicótica que
pode vir a se manifestar na sua fase adulta. Então, é por esse
viés de pensamento que Klein (1996) esclarece a psicose, ou
seja, esse mecanismo de defesa é considerado, por ela, o mais
primitivo, negando a realidade, e sendo denominada de
escotomização. É essa negação que o psicótico faz para se
defender de algo tão mau e intenso que poderia destruí-lo,
causando grandes restrições no mecanismo de introjeção e
projeção, levando-o à negação da realidade externa. Portanto,
os primeiros mecanismos de defesa são: divisão, projeção e
introjeção. Klein afirma (1996, p. 304):

[...] a criança os considera [os objetos


“maus”] realmente perigosos –
perseguidores que irão devorá-la,
esvaziar o interior do seu corpo, cortá-
la em pedaços, envenená-la – em suma,
promover sua destruição de todas as
maneiras que o sadismo pode inventar.
Essas imagos, que são uma imagem
distorcida de forma fantástica dos
objetos reais em que estão baseadas, se
instalam não só no mundo externo, mas
também dentro do ego, através do
processo de incorporação. Assim,
crianças muito pequenas passam por
situações de ansiedade (e reagem a elas
Refletindo a Psicanálise-2020 154

com mecanismos de defesa), cujo


conteúdo pode ser comparado ao das
psicoses nos adultos. Um dos métodos
mais remotos de defesa contra o medo
de perseguidores, quer estes sejam
considerados externos ou sejam
internalizados, é a escotomização, ou
seja, a negação da realidade psíquica;
isso pode causar considerável restrição
dos mecanismos de introjeção e
projeção, além da negação da realidade
externa. Esse processo forma a base
das psicoses mais graves.

Por ordem do instinto de vida, o ego se divide projetando


todo mau — instinto de morte ― para fora, enquanto que o
instinto de vida é subdividido, e parte é projetada para fora, a
fim de reconstruir/reparar o objeto ideal, o objeto bom, e só
assim introjetá-lo e mantê-lo protegido de qualquer ameaça de
aniquilamento. Porque quando o bebê subdivide o objeto bom
ele projeta para fora a parte que ele acredita ter danificado com
todo o seu ódio, então ele repara o objeto e o introjeta
acreditando protegê-lo. Todo esse processo usado nos
mecanismos de defesa geram no bebê grandes ansiedades, as
quais Klein (1996) comparou a das psicoses nos adultos, desta
forma, o psicótico fica fixado na posição esquizoparanóide, não
conseguindo ir à posição depressiva, porque seu ego —ainda
Refletindo a Psicanálise-2020 155

muito fragilizado ― não consegue dar conta dessa intensa


sensação de terror, que é perceber a realidade desse objeto, ou
seja, a integração do mesmo, de modo que ele fica com a ideia
do objeto fragmentado/parcial.

Portanto, para Klein (apud SEGAL, 1975) a posição


depressiva é a fase do desenvolvimento na qual o bebê
reconhece a totalidade do objeto, pois ele percebe sua mãe
como um todo e não fragmentada, bem como ele amplia sua
relação e interação com o mundo, começando a reconhecer
outras pessoas em seu ambiente, no caso a figura paterna.
Quando o bebê percebe sua mãe como um objeto total, e não
parcial, ele passa a se relacionar com mais frequência não
apenas com uma parte, o seio, a mão, a face, os olhos, mas, cada
vez mais com uma pessoa total. Sendo que, às vezes essa
pessoa pode ser boa, na perspectiva do bebê, e às vezes pode
ser uma pessoa má, presente e ausente, que pode ser amada e
odiada. Com isso, ele passa a entender seus sentimentos maus,
bem como os bons, os quais se originam da mesma fonte, no
caso a mãe. Com relação a essa fase do processo Hanna Segal
(1975, p. 81-82) diz: “Com essa alteração na percepção do objeto,
há uma mudança fundamental no ego, porque, assim como a
mãe se torna um objeto total, o ego do bebê se torna um ego
Refletindo a Psicanálise-2020 156

total, e é cada vez menos dividido (split) em seus componentes


bons e maus.”

Podemos então afirmar que é nesta fase que o bebê já


tem certa maturidade neurológica possibilitando-o lembrar-se
da sua mãe, bem como ser exposto a novos sentimentos, como
o sentimento de culpa, por acreditar ter danificado o objeto bom.
Portanto, podemos distinguir as posições da seguinte forma: na
posição esquizoparanóide a ansiedade é persecutória; o afeto é
o ódio; e o objeto é dividido; já na posição depressiva a
ansiedade é a culpa; o afeto é o amor; e o objeto é integrado.

Quando falamos da relação primária com o objeto de


desejo, somos levados ao encontro do narcisismo primário, que
se estrutura nessa relação. Freud apresenta esse termo —
narcisismo primário ― em 1910 para explicar a escolha
homossexual, pois ele dizia que o homossexual escolhe a si
mesmo como objeto de desejo/amor. A respeito disso, Freud
defende: “A libido afastada do mundo externo é dirigida para o
ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser denominada
de narcisismo” (1914-1916 [1974], p. 91).

Isso ocorre porque o sujeito investe toda sua libido em


si mesmo, a desinvestindo do objeto. Laplanche e Pontalis
Refletindo a Psicanálise-2020 157

(2008, p. 287) definem o narcisismo, de acordo com Freud,


como:
[...] a existência de fase da evolução
sexual intermediaria entre o auto-
erotismo e o amor de objeto. “O sujeito
começa por tomar a si mesmo, ao seu
próprio corpo, como objeto de amor” (2),
o que permite uma primeira unificação
das pulsões sexuais. [...] Com efeito, a
psicose (“neurose narcísica”) põe em
evidencia a possibilidade que a libido
tem de reinvestir o ego desinvestindo do
objeto.

Freud (1914-1916 [1974]) ao se aprofundar mais nessa


investigação sobre o deslocamento da libido, percebeu que essa
estrutura narcísica se estendia a outras estruturas como as
neuroses, psicoses e hipocondrias, pois em todas elas sempre
há um deslocamento da libido do objeto para o ego. Portanto,
precisamos entender do que se trata a libido, bem como a
pulsão.

A libido e a pulsão são duas energias distintas, porém


sua fonte de origem é a mesma, o ego, ou seja, elas se originam
da relação que o bebê estabelece com seu objeto primário. A
libido é destinada ao prazer, por se originar da relação de
Refletindo a Psicanálise-2020 158

cuidados mãe/cuidador e bebê, e a pulsão da autopreservação,


no entanto, as duas somam-se formando a pulsão de vida. Desta
forma, se afirma que todos nós somos herdeiros do narcisismo
primário, pelo fato de que, é neste momento de estruturação
que surge o ser humano com todas as suas vivências de amor
e ódio com seu primeiro objeto de desejo e de amor.

Quando falamos sobre a relação primária do sujeito com


seu primeiro objeto de desejo, vamos encontrar em Freud (1920
[1976]) -no texto Além do princípio do Prazer- a gênese dessa
ideia, pois ele afirma que somos regidos pelo prazer
inconsciente. Ele defende também que é nesse primeiro
momento, vivido pelo bebê com sua mãe/cuidador, que o
lactante é só percepção. As sensações, causadas pelos
cuidados, levam o bebê a ir constituindo o prazer e o desprazer.
A intensidade com que isso ocorre Freud denominou de estética,
se referindo a essa relação psicofísica, em que as duas forças
— percepções físicas e sensações provocadas — se ligam para
a formação do prazer e do desprazer, e isso nos leva a buscar
o equilíbrio entre essas duas forças. No entanto, há sempre
certa instabilidade entre tais forças causando uma diferença
estética de tais sensações. Assim, a estética é a definição que
as percepções causam no corpo através das sensações, ou seja,
Refletindo a Psicanálise-2020 159

as percepções causam sensações com maior ou menor


intensidade, definindo no sujeito o que é o prazeroso ou o
desprazeroso.

Porém, o princípio do prazer não é predominante,


embora seja um movimento primário do funcionamento do
aparelho mental, como a autopreservação do organismo. Ele é
ineficaz diante a realidade do mundo externo, de modo que,
sobre a influência dos instintos de autopreservação do ego, ele
é substituído pelo princípio da realidade. O princípio da
realidade, portanto, não abandona o princípio do prazer, ele só
adia sua busca momentaneamente, abrindo mão das várias
formas de obtê-lo. Dessa forma, se desenvolve a tolerância pelo
desprazer, tornando mais suportável a falta, a ausência, as
quais geram ansiedade, que neste caso, seria a precaução do
desconforto causado pelo desprazer (Freud, 1920 [1976]).

Freud (1909 [1976]) apresenta a elaboração dessa


ansiedade na manifestação do desprazer no brincar da criança,
pois quando a criança brinca, ela projeta nessa ação toda uma
carga de energia que advém da ansiedade, precedida pela
anunciação do desprazer, ou seja, a criança lida com o
desprazer, de forma concreta, através do brincar. Este
desprazer é causado pelo afastamento do seu objeto de desejo,
Refletindo a Psicanálise-2020 160

no caso, sua mãe/seio/cuidador. Assim, a criança reinventa uma


forma de lidar com as duas sensações -prazer e desprazer-
bem como, com o afeto que tais sensações causam - amor e
ódio- que ela transforma numa força criadora. Podemos ilustrar
esta ideia a partir de uma observação feita por Freud (1909
[1976]) do seu netinho brincando com um carretel. Neste jogo a
criança arremessava o brinquedo de sua cama, o objeto saia do
seu campo de visão e era acompanhado por um lamento, depois
o mesmo era puxado pelo cordão, voltando para seu alcance
visual, e isto era acompanhado por um balbucio de satisfação.
Neste caso, Freud quis apresentar que a criança busca, no
brincar, reinventar ações que representam suas angústias
diante de tais momentos vividos, sentidos com tanto terror e
que provocam afetos negativos como o ódio. Freud (1920 [1976],
p. 28-29): “[...] quando a criança passa da passividade da
experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência
desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e,
dessa maneira, vingar-se num substituto.”

Podemos, então, observar crianças muito pequenas


inventando, com ações concretas, formas de lidar com a falta
do objeto de prazer, pois, muitas vezes quando sente a falta do
seio, recorrem a uma parte do seu corpo, sugando a mão ou o
Refletindo a Psicanálise-2020 161

dedo, o que aplaca, desta forma, a ansiedade e afasta,


ilusoriamente, por um curto período tempo, a angústia sentida.
Portanto, vamos ver a criança lidando com suas angústias,
causadas por essa primeira marca que é a falta do objeto vivida
na primeira infância, no brincar, bem como, ao longo da sua vida
com as artes, os trabalhos, as invenções científicas, etc.

Diante disso, observamos o amor se manifestando como


força criativa para aplacar a destrutividade do ódio. Ademais,
adentraremos nas ideias que Winnicott (1975) traz sobre esse
primeiro momento da relação mãe/bebê. Sobre isso, ele
defende que o surgimento do sujeito humano decorre da relação
com o outro, ou seja, da primeira relação que o bebê estabelece
com sua mãe/cuidador nos primórdios da vida. Ele diz que, no
início dessa relação há uma fusão da díade mãe/bebê,
ocorrendo, assim, uma indiferenciação necessária para o início
do processo de desenvolvimento psíquico, emocional e físico, e
dessa forma, surgir o sujeito humano.

Porém nesta fusão é imprescindível que ocorra a falha


materna, ou seja, a mãe/cuidador errar, causando uma angústia
no bebê, que é sentida por ele como uma aniquilação, e ameaça
a continuidade do seu ser. Esse momento de amalgamação gera
dependência absoluta a caminho de uma indiferenciação, que
Refletindo a Psicanálise-2020 162

para Winnicott (1975) corresponderia ao narcisismo primário, se


tudo isso ocorrer dentro do esperado durante o processo de
desenvolvimento do sujeito.

Quando Winnicott (2005) fala sobre essa falha materna,


ele traz a ideia de uma mãe suficientemente boa, que no caso,
seria a capacidade da mãe de se adaptar às necessidades do
bebê. No início dessa relação, a mãe empresta seu ego porque,
nesse primeiro momento, o bebê é só percepção, portanto, na
medida em que a mãe/cuidador vai agindo e interagindo com
ele, ou seja, interpretando suas ações e reações - diante das
provocações da realidade - ela aplaca as angústias dele com
seus cuidados. Nesses momentos, o bebê entende que essa
“coisa” que aplaca tais desconfortos é uma extensão sua, é sua
criação. Essa dinâmica entre a díade mãe/bebê denominamos
de amor, pois quando a mãe oferece o seio ao bebê para saciar
a fome deste, ela não está só o alimentando, mas também
contribuindo ou possibilitando que ele invente/crie algo que está
ali para ser descoberto. Dessa forma, o bebê cria uma ilusão de
que descobriu/criou algo a partir de uma necessidade dele, e
esses são os primeiros impulsos do amor criativo. Com isso,
Winnicott (2005) reconhece a importância da ilusão de
onipotência que o bebê tem, nesse primeiro momento de sua
Refletindo a Psicanálise-2020 163

existência, que se repetirá, posteriormente, ao longo do seu


desenvolvimento. Com relação a isso, Winnicott (apud NETO, p.
17) defende: “Não existe uma coisa como um bebê...se você me
mostrou um bebê, você certamente me mostra alguém cuidando
do bebê” - na revista Winnicott os sentidos da realidade (Viver
Mente e Cérebro/ Coleção Memória da Psicanálise).

Com isso, concluímos que o estruturar-se como ser


humano, embora seja aparentemente algo simples, vai além dos
cuidados físicos, pois os dois sentimentos - amor e ódio - que
emergem da relação dual mãe e bebê, criam algo muito mais
complexo na constituição de cada sujeito humano, resultado, a
princípio, da fusão entre mãe e filho. Porque é nesse encontro
fusional ímpar que o mundo é concebido pelo bebê através da
concepção de mundo que a sua mãe tem internalizado, de modo
que, esse mundo pode ser criado, recriado, inventado e
reinventado a partir do prazer e do desprazer sentidos ao longo
desse processo inicial do existir e se constituir como ser
humano. Porém, esse encontro é plausível de desencontros que
em seu excesso ou escassez acarretará ao novo ser patologias
de diversas naturezas, bem como, distúrbios de personalidade.
Mas, se tudo ocorrer dentro do necessário e esperado, surgirá
um sujeito sociável capaz de lidar com as adversidades que a
Refletindo a Psicanálise-2020 164

vida lhe apresentar, sem ser necessários cuidados clínicos,


sendo assim, capaz de viver em sociedade sem perder seus
impulsos individuais ou pessoais. Winnicott (1999, p. 10):

A vida de um indivíduo saudável é


caracterizada por medos, sentimentos
conflitivos, dúvidas, frustrações, tanto
quanto por características positivas. O
principal é que o homem ou a mulher
sintam que estão vivendo sua própria
vida, assumindo responsabilidade pela
ação ou pela inatividade, e sejam
capazes de assumir os aplausos pelo
sucesso ou as censuras pelas falhas.
Em outras palavras, pode-se dizer que o
indivíduo emergiu da dependência para a
independência, ou autonomia.

REFERÊNCIAS
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Expressões Utilizadas por Donald W. Winnicott. Trad.: SILVA,
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Refletindo a Psicanálise-2020 165

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Refletindo a Psicanálise-2020 166

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São Paulo: Martins Fontes.
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Fontes, 1999.
Refletindo a Psicanálise-2020 167

CAPÍTULO IX
Refletindo a Psicanálise-2020 168

O ENQUADRE PSICANALÍTICO COMO


POSSIBILIDADE DE ESPAÇO E TEMPO
TRANSGRESSOR AO IMPERIALISMO DO AGIR
CONTEMPORÂNEO

Renato Campos Pordeus1

Psicanalista do Instituto de Psicanálise da SPRPE e professor de


1

psicologia da Faculdade de Integração do Sertão.

RESUMO
O artigo busca fazer uma reflexão crítica sobre a importância do
enquadre psicanalítico para que o processo psicanalítico possa
desenvolver seu potencial de mudança revolucionária no sujeito
contemporâneo. A partir de Freud o autor faz a leitura de que o
princípio de prazer pode ser relacionado ao desenvolvimento da
ciência positivista e sua busca idealizada de uma tecnologia capaz de
tornar o ser humano sem frustração e imortal, ou seja, a realização
da fantasia do bebê de não ter desprazer, apenas gozo. Esse método
de fazer ciência influencia diretamente a cultura, a civilização e em
consequência a política, Adorno vai nos fornecer a interpretação de
que o nazismo tem como fundamento a lógica da ciência positivista, e
podemos interpretar que representa o apogeu do principio do prazer,
do narcisismo em uma nação. A psicanálise tem como objetivo
fornecer ao sujeito as ferramentas que o permita elaborar o seu
narcisismo, suas fantasias de onipotência e assim poder trabalhar o
princípio de realidade de forma criativa, tornando possível ao sujeito
modificar-se e modificar sua realidade. O enquadre psicanalítico serve
ao processo psicanalítico para que o sujeito possa transgredir a
cultura contemporânea da impulsividade da ação, e assim possa ter
seu próprio tempo e espaço.
Palavras-chave: Psicanálise; Enquadre psicanalítico; Ciência
positivista; Princípio de prazer.
Refletindo a Psicanálise-2020 169

INTRODUÇÃO

Com este artigo procuro analisar a importância do


enquadre psicanalítico para a sobrevivência da psicanálise na
contemporaneidade. No século XXI, — com os avanços
tecnológicos das mídias, o ritmo das exigências do mercado de
trabalho, a velocidade do mercado financeiro, — podemos
perceber a demanda para o aumento da velocidade no agir
humano. A financeirização do capitalismo leva ao extremo o
narcisismo nas relações estruturais econômicas, pois o
dinheiro por si só gera dinheiro, não há mais a necessidade nem
mesmo da relação de dominância entre seres humanos para
que o capital se reproduza, são relações virtuais, anônimas,
matemáticas que geram mais capital. O que em consequência
dificulta a percepção do limite entre as pessoas, pois o mundo
virtual muitas vezes se realiza no mundo material de forma
cruel.

Não há um tempo maior para o pensar, para a


introspecção, para conhecer a si próprio e como consequência
conhecer o Outro. Assim como há uma dificuldade em definir o
espaço no relacionar-se com o Outro, dificuldade em separar o
que é do Um e o que é do Outro — também há a dificuldade de
Refletindo a Psicanálise-2020 170

desenvolvimento afetivo individual, como lidar com a frustração


inerente ao ser humano, agir ou não agir?, o dilema de Hamlet
na atualidade pode ser visto não mais como uma questão
existencial, mas sim corpórea (Green, 1998, p. 38).

O artigo não tem como objetivo fazer juízos de valores


morais para com o tempo presente, e nem pretende fazer uma
apologia ao passado, mas sim responder — como o enquadre
psicanalítico pode contribuir para o desenvolver da psique?, ou
seja, desenvolver a capacidade de integração do Eu, para que
torne-se um ser capaz de lidar com a frustração de forma
construtiva, que desenvolva a capacidade afetiva de relacionar-
se consigo mesmo e com o Outro criativamente.

Utilizaremos Freud (2004a) com seu texto


“Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico”
como fundamento para entendermos a formação do aparelho
psíquico e assim podermos relacionar o Princípio de prazer, —
regra base do funcionamento da nossa psique, — com a lógica
positivista da razão instrumental que Adorno (1988) desenvolve
em “Educação para Auschwitz" e que Chomsky em “O lucro ou
as pessoas” (2002) nos ensina que predomina na cultura do
início do século XXI.
Refletindo a Psicanálise-2020 171

Para finalizar nosso artigo tentaremos demonstrar que


o método psicanalítico como uma práxis, conceito de Marx
(2007) em “Teses sobre Feuerbach”, de uma prática
indissociável da teoria, e que tem o potencial de fornecer ao
sujeito analisando a possibilidade de desenvolver seu aparelho
de pensar (BION, 1988) e assim superar a lógica predominante
da cultura do agir contemporâneo.

CIÊNCIA POSITIVISTA COMO NEGAÇÃO DO PRINCÍPIO


DE REALIDADE

Creio ser possível afirmar que a lógica da ciência


positivista serve de base para as culturas e as ciências
contemporâneas tanto no ocidente quanto no oriente, e
consequentemente norteia a percepção do tempo e do espaço
vivenciados na atualidade. A psicanálise, tanto em sua teoria
quanto na sua clínica, propicia uma diferente forma de se
perceber e de se vivenciar o tempo e o espaço (BION, 1988, p.
46). O manejo da transferência dentro do enquadre analítico
possibilita o desenvolvimento da “…capacidade de tolerar
frustração, portanto, possibilita que o psiquismo desenvolva o
pensamento como um meio através do qual a frustração que for
tolerada se tornará mais tolerável” (Bion, 1988, p. 103). Uma
Refletindo a Psicanálise-2020 172

antítese à tese da velocidade do consumismo, da lógica do


mercado financeiro e do mercado de trabalho. Enquanto a
psicanálise busca no afeto e no pensar o desenvolvimento e a
tolerância à frustração, a ciência positivista busca no agir, na
atuação, a eliminação da possibilidade de frustração.

Freud (2004a) nos propicia, ao explicar os dois


princípios que regem o nosso funcionamento psíquico, um
vértice para que possamos nos guiar tanto na leitura do espaço
e do tempo na cultura atual, quanto na psicanálise.

No princípio da vida, para que ocorra o


desenvolvimento da mente, precisamos conseguir estabelecer
o funcionamento do princípio de prazer — nossa psique tornar-
se capaz de reduzir a tensão interna através da fantasia, há uma
busca psíquica de se lidar com o desprazer das tensões
internas —, e com o passar do tempo o princípio de realidade
vai se fazendo necessário, sobrepondo-se ao princípio de
prazer. Com o exemplo do recém-nascido, tentaremos ilustrar
como se dá a entrada no princípio de prazer e como o princípio
de realidade vai se fazer presente. Precisamos ressaltar que o
princípio de realidade é a continuação do princípio de prazer, o
princípio de prazer nunca deixa de ser o funcionamento base da
Refletindo a Psicanálise-2020 173

nossa psique, o princípio de realidade é um princípio que precisa


ser construído permanentemente em nossas vidas, e o princípio
de prazer serve de pano de fundo para que o princípio de
realidade seja flexível e o Eu possa desenvolver novos signos
para lidar com a dureza da realidade (Freud, 2004a, p. 67).

Apesar de existir vida enquanto o feto está na barriga


da mãe, esse ser não tem a experiência de estar sozinho no
mundo, de sentir-se desamparado. Após o parto e a separação
do recém-nascido da mãe, o bebê percebe-se em um ambiente
diferente e inóspito, em que estímulos externos e internos lhe
perturbam de maneira vital. Para lidar com esses novos
estímulos o bebê precisa do acolhimento de uma adulto — que
pode ser a mãe ao seguir a tradição judaica-cristã, da mãe como
a cuidadora principal dos filhos, porém a contemporaneidade
nos apresenta com diversas formas de família, tanto dentro do
espectro LGBTQ+, quanto de pai solteiro, avô solteiro, etc.
Adulto este que alimentará o bebê e o acolherá, Freud utiliza o
exemplo da necessidade de nutrição para explicar o percurso
do instinto até o desejo, da necessidade de se alimentar até o
desejo de cessação do desprazer (Freud, 2004b, p. 68).
Refletindo a Psicanálise-2020 174

O bebê sente fome e sofre com a perspectiva de


aniquilação, pois um recém-nascido ainda não teve a
experiência de estar sozinho no mundo e ter de lidar com o
desamparo. Não há uma noção de tempo, pois não existe a
expectativa de que o sofrimento pode passar, assim como não
há uma noção de espaço, pois o bebê não tem ainda condições
de perceber a separação com a mãe. A possibilidade de
aniquilação da vida do bebê é algo real, pois se não há alguém
para cuidar do bebê, ele irá sofrer até a sua morte. Então ele
agoniza, esperneia, chora, utiliza-se das possíveis ferramentas
que um bebê tem na tentativa de cessar o sofrimento. A ação
(espernear, gritar, chorar) é a única ferramenta para esse ser
frágil (Freud, 2004a, p. 69). Podemos perceber esse movimento
primitivo nas especulações financeiras que ao sinal de perda ou
queda em ações de empresas, os especuladores esperneiam,
choram, chutam, agem retirando seu capital de empresas que
estão a passar por crises (frustração momentânea), levando-as
à morte, levando inclusive à destruição de economias estatais,
por não haver tolerância com a frustração, com a perda, perder
é insuportável, não importa que minha ação venha a quebrar
uma nação e consequentemente gerar morte de diversos seres
humanos (Chomsky, 2002, p. 56).
Refletindo a Psicanálise-2020 175

Quando um ser humano adulto acolhe o bebê, há a


sensação de que o sofrimento se encerra, então surge a
sensação de gozo, de alivio, pois o bebê sente que o sofrimento
não existe mais. O bebê cria a fantasia de que o sofrimento é
externo a ele, e que o prazer está nele. Já o sentimento de
sofrimento, pode a qualquer momento atacá-lo, roubando-lhe a
plenitude. Podemos perceber que já existe uma noção de
espaço (interno e externo) e tempo (antes e depois), uma noção
primitiva de bom e mau. O que gera conforto, segurança, prazer
é o próprio bebê, o que causa sofrimento, dor, está fora dele,
tem de ser destruído (Freud, 2004a, p. 67)

Aniquilar para não ser aniquilado, tal qual as pessoas


retiram seu capital de um país, pois seu dinheiro é bom e deve
ser preservado, o país que passa por uma crise é mau e deve
ser destruído (Chomsky, 2002, p. 57).

Na dicotomia entre a fantasia de que o gozo pleno é o


seu ser pleno, a existência plena, e a fantasia de que o
aniquilamento advém de um ataque externo, o bebê apenas tem
a percepção do tempo do imediato, não há tolerância para a
espera quando se está sendo aniquilado. O imediatismo é uma
condição de vida e morte (Freud, 2004a, p. 66)
Refletindo a Psicanálise-2020 176

Quando o bebê sentir-se de novo nessa posição de


sofrimento, ele vai tentar reproduzir o cenário do gozo, a
alucinação é a primeira tentativa de representação da cena em
que o bebê está mamando e satisfeito, dessa representação
nasce o desejo pelo estado de nirvana — porém a realidade da
fome não pode ser combatida com alucinações e desejos, como
o estimulo da fome não cessa com a alucinação, o desespero
retorna ao bebê que age (chora, esperneia) até ser acolhido
novamente. A capacidade de alucinar é o que permite ao bebê
entrar no princípio de prazer. Alucinar, fantasiar, sonhar, são
funções primárias do funcionamento mental, e são condições
sine qua non para o surgimento e a sobrevivência da psique
(espaço e tempo) durante toda a vida do ser humano (Bion, 2004,
p. 102)

Quando o bebê começa a se dar conta de que a


realidade exterior é de suma importância, que a fantasia não
tem o poder de lhe cessar o sofrimento, os órgãos sensoriais
passam a ter maior importância, e o agir torna-se direcionado
à alterar o ambiente, o agir torna-se intencional, — comunicar
o sofrimento a quem lhe ajudou. Assim o bebê começa a
perceber que há a necessidade de postergar o seu agir, o
processo de pensar, que vem do alucinar, torna o sofrimento da
Refletindo a Psicanálise-2020 177

espera suportável, pois já existe a experiência da necessidade


de um ser externo, e também a experiência que esse ser irá
realizar o seu desejo de cessar seu sofrimento (Freud, 2004a,
p. 67)

O tempo e o espaço tornam-se algo tolerável, e o outro


passa a ser percebido como objeto de desejo. Porém,

a incapacidade de tolerar frustração faz


com que a balança se incline no sentido
da fuga à frustração… O que deveria ser
um pensamento… tornar-se um objeto
mau, indistinguível de uma coisa-em-si,
e que se presta apenas à evacuação… Na
medida em que se percebem o espaço e
o tempo como idênticos a um objeto
mau… não se tem mais a “realização” que
deveria unir-se à preconcepção e assim
completar as condições necessárias à
formação de uma concepção (Bion, 1988,
p. 104).

A queixa da dificuldade de se relacionar com o outro é


bastante comum nos tempos atuais, a dificuldade em tolerar a
diferença é patente aos relacionamento contemporâneos, o
outro muitas vezes é tido como um objeto mau, pois a
capacidade de tolerar a frustração é do Um, o Outro é o objeto
Refletindo a Psicanálise-2020 178

de desejo que se esvai junto com a idealização que se faz do


outro, como um objeto de fetiche, como nos ensina Green (1998,
p. 36) ao reler Freud em “Leonardo” — “passa a imagem de si
como objeto de amor à flor da ressureição omitindo o momento
narcisista por excelência, aquele da fusão do objeto e de sua
imagem no elemento líquido, fascinante, mortífero e regressivo
até o pré-nascimento."

NAZISMO, NARCISISMO — O APOGEU DA LÓGICA


INSTRUMENTAL

Podemos encontrar nas ciências humanas diversos


estudos sobre como a sociedade contemporânea torna-se cada
vez mais impedida de pensar, de fazer suas escolhas com senso
de responsabilidade, de poder desejar e se frustrar. Tal qual o
principio de prazer, a ação é imperativa para a cultura atual,
estamos sempre buscando meios de não pensar sobre nossos
sentimentos, nossa civilização está baseada numa cultura do
ideal, do perfeito, do importante versus o ignorado. O outro, não
nos servindo, passa a não existir, não tem importância.

Utilizaremos a interpretação do texto “Educação após


Auszhwits”, de Theodor Adorno (1995), como base para o
entendimento do funcionamento do capitalismo e sobre a
Refletindo a Psicanálise-2020 179

evolução do capitalismo industrial. Adorno faz uma análise


crítica sobre o método positivista predominante na ciência,
método esse que serve tanto para o desenvolvimento
tecnológico da sociedade quanto para a sua destruição. A
energia atômica é um exemplo claro das duas faces do
desenvolvimento da técnica, do método positivista. Como
explicar as riquezas do mundo estarem divididas em 200
trilhões de dólares para 9% da população e 40 trilhões de
dólares para 91%? A ciência planeja criar uma comunidade de
seres humanos em Marte, enquanto milhões de pessoas
passam fome na Africa. São duas faces da mesma moeda, a
ciência encontra-se completamente descolada da realidade
social. Como acontece com o récem-nascido, a cultura humana
se abstém de sua responsabilidade para com o ser humano.

Para Adorno (1995, p. 29) um exemplo real, do auge do


capitalismo e do método positivista, é a sociedade nazista, onde
uma nação extremamente culta, e dominante, de uma
racionalidade invejável, é capaz de sair de uma crise
avassaladora pós primeira guerra mundial e retornar a ser uma
grande potência mundial em poucos anos — e ao mesmo tempo
é capaz de torturar e exterminar milhares de pessoas em tempo
recorde. Os campos de concentração funcionavam com uma
Refletindo a Psicanálise-2020 180

efetividade invejável à qualquer industria da época. Parece-nos


um grande contraste, porém Um é consequência do Outro, o
modus operandi nazista é o de destruir o Outro para poder
crescer .

Não há senso de responsabilidade para com o Outro


(com os diferentes, os de outras raças e os opositores do seu
ideal), apenas há a ética do financeiro pelo financeiro, toda
nação está voltada para o desenvolvimento tecnológico, para a
expansão econômica e para o desenvolvimento da nação alemã.
A Alemanha é superior, tem a vocação para ser dona de todas
as riquezas do mundo, e qualquer pedra no caminho, qualquer
frustração, deve ser destruída, qualquer raça, nação, povo e
cultura que se coloque no caminho do desenvolvimento alemão,
deve ser exterminado ou utilizado como combustível para o
desenvolver dessa maquina. O Estado funciona perfeitamente, a
laranja mecânica! Tal qual o bebê, a cultura nazista acredita que
a plenitude é sua nação, e o que está fora dessa nação é o ruim,
o Outro apenas deseja-lhe retirar o sentimento de gozo pleno e
por isso precisa ser destruído ou submetido às suas vontades
(os trabalhos nos campos de concentração) (ADORNO, 1995, p.
32).
Refletindo a Psicanálise-2020 181

Há o predomínio do funcionamento primário na


concepção política do nazismo. Alucinar que é um ser superior,
fantasiar que pode conquistar o mundo, e agir para obter o
estado de nirvana, o delírio paranóico de que os outros querem
lhe retirar suas riquezas. Não há a percepção do Outro como
necessário, não levam em consideração que os Outros são
fundamentais para a sua existência. Não há a percepção de que
a Alemanha só pode se desenvolver — além dos seus méritos
internos — por causa das riquezas e trabalhos de outras
nações.

Freud vivenciou o surgimento do nazismo e o seu


apogeu, deu-se conta de que a ciência não era capaz de eliminar
o sofrimento humano, pelo contrário, ao mesmo tempo que a
ciência é capaz de criar coisas maravilhosas, é capaz de
destruições terroríficas. A civilização e seus regulamentos

Visam não apenas a efetuar uma certa


distribuição da riqueza, mas também a
manter essas distribuições; na verdade,
têm de proteger contra os impulsos
hostis dos homens tudo o que contribui
para a conquista da natureza e a
produção de riqueza. As criações
humanas são facilmente destruídas, e a
ciência e a tecnologia, que as
Refletindo a Psicanálise-2020 182

construíram, também podem ser


utilizadas para a sua aniquilação (Freud,
2006, p. 16).

O PAPEL TRANSGRESSOR DA PSICANÁLISE

Desde sua fundação, Freud percebia a psicanálise,


como transgressora da cultura contemporânea, por não fugir da
realidade das pessoas com intuito de criar um ideal, ao
contrário, trazer à tona todos os fantasmas do ser humano, seus
desejos libidinosos e de morte (FREUD, 2006). A psicanálise
confronta as fantasias das pessoas com a realidade em que
vivem. Assim o pensar psicanalítico tem a vocação de ir em
choque com as ideologias predominantes, pois não busca o belo,
o perfeito, mas sim o aprofundamento, o amadurecimento. Não
exclui o mau, nem faz apologia ao bom.

Finalmente podemos pensar sobre a prática


psicanalítica e seu papel nos dias atuais. É comum escutarmos
em alguns meios acadêmicos e profissionais que lidam com a
psicologia — que a psicanálise é muito conservadora, pois não
se adapta aos tempos modernos. De como a psicanálise se
preocupa muito pouco em demonstrar sua efetividade a partir
de pesquisas estatísticas que seguem métodos rigorosos da
Refletindo a Psicanálise-2020 183

ciência positivista e por isso estaria ultrapassada. Que a


psicanálise não resolve nada, pois a pessoa investe bastante no
tratamento e continua a sofrer, como se fosse possível a vida
sem sofrimento, mas essa ideia é vendida pela ciência
positivista. É como se houvesse a tentativa de se entender a
língua portuguesa com a gramática da língua alemã. O método
psicanalítico de conhecimento é singular, a sua importância não
deve ser medida pela régua da ciência positivista, a técnica
psicanalítica está intrinsicamente ligada à sua teoria, afinal a
teoria surgiu a partir da prática de Freud como psicoterapeuta.
Em “A ideologia alemã” (2007) nas suas Teses sobre Feubarch,
Marx nos ajuda a pensar sobre a condição si ne qua non da
prática (técnica) para a teoria, de uma práxis com base na
realidade clínica.

A consciência [bewusstsein] não pode


jamais ser outra coisa do que o ser
consciente [bewusste Sein], e o ser dos
homens é o seu processo de vida real.
Se, em toda ideologia, os homens e suas
relações aparecem de cabeça para baixo
como numa câmara escura, este
fenômeno resulta do seu processo
histórico de vida, da mesma forma como
Refletindo a Psicanálise-2020 184

a inversão dos objetos na retina resulta


de seu processo de vida imediatamente
físico. […] Não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que
determina a consciência. […] Esse modo
de considerar as coisas não é isento de
pressupostos. Ele parte de
pressupostos reais e não os abandona
em nenhum instante (Marx, 2007, p. 94).

E a psicanálise como um trabalho criativo, que busca


uma revolução fundamentada na realidade da clínica, não
permite a alteração da técnica sem uma fundamentação teórica.

Freud desenvolveu a técnica psicanalítica a partir de


sua experiência clínica, e o enquadre analítico é a parte objetiva
da clínica, é a parte invariável, é a partir do contrato que se
define o enquadre, o espaço e o tempo são definidos em comum
acordo entre o analista e o analisando (Etchegoyen, 2008, p.
294). O enquadre serve ao processo psicanalítico ao possibilitar
que o psicanalista possa manter-se dentro do principio de
realidade, e ao mesmo tempo em atenção flutuante, o que lhe
propicia a possibilidade de surgimento do seu inconsciente em
relação com a transferência do analisando, como instrumento
Refletindo a Psicanálise-2020 185

de trabalho, material para o analista interpretar para si e se


julgar pertinente, interpretar para o analisando (Racker, 1982).

O enquadre fornece a segurança de que o analisando


pode fantasiar, desejar, falar seus segredos mais íntimos,
confessar sua transferência, acessar seu inconsciente, pois
sente-se seguro de que o analista não confundirá a relação
psicanalítica com uma relação entre iguais. Também fornece
segurança para que o analista possa exercer sua atenção
flutuante, sem o risco de perde-se em seus pensamentos e
fantasias, pois o tempo e o espaço da dupla está delimitado
(Etchegoyen, 2008). Agredir o enquadre com o fim de se adaptar
ao tempo externo, ou a alguma ideologia, é transgredir o espaço
e o tempo do analisando, é ferir o analisando por conveniências
pessoais ou culturais.

A técnica psicanalítica tem como objetivo propiciar o


melhor tratamento possível a quem lhe procura, tanto ao
psicanalista quanto ao analisando, com base na fundamentação
clínica que gera a teoria psicanalítica.

[…] não cabe definirmos até que ponto nossa


formulação nos aproxima ou filia a algum
sistema filosófico já historicamente
Refletindo a Psicanálise-2020 186

estabelecido, pois chegamos a essas


hipóteses especulativas sobre o prazer e o
desprazer por outro caminho: ao tentarmos
fazer uma descrição e prestar contas do fatos
cotidianamente observáveis em nosso campo
(Freud, 2006, p. 135).

A psicanálise não forma pessoas adaptadas à lógica


corrente, e sim fornece a possibilidade da pessoa formar-se
autêntica, que faz suas escolhas e se implica nelas. Assim como
a pessoa analisada não segue a vida sem responsabilidade, a
técnica psicanalítica não deve se submeter a uma lógica
externa, não deve procurar na corrente dominante o seu
caminho, a psicanálise faz o seu próprio caminho, dentro de
suas possibilidades e da sua responsabilidade.

CONCLUSÃO

A psicanálise e sua técnica estão sempre se


desenvolvendo, porém se desenvolvem dentro de sua história,
do seu método, do seu espaço e do seu tempo, assumindo a
responsabilidade de que toda mudança tem consequências, e
tem como ética mudar por uma escolha interna, e não com o fim
de surfar na onda do agora.
Refletindo a Psicanálise-2020 187

A psicanálise sempre busca a mudança, mas uma


mudança que una a experiência prática histórica com o rigor
teórico. Não podemos “criar algo novo”, que já foi testado por
analistas na história da psicanálise e que já sabemos o
resultado, essa ato é a definição de compulsão à repetição
(Freud, 2006). Melanie Klein (1991), Bion (1988), Racker (1982)
entre outros psicanalistas desenvolveram e desenvolvem a
técnica psicanalítica, sempre com base em um forte rigor
teórico sobre o aprendizado dado na prática, a fundamentação
teórica do conceito de identificação projetiva realizado por Klein
(1991) foi uma revolução na técnica psicanalítica — a psicanálise
se desenvolve, sem perder a sua práxis.

Ferenczi (2014), em sua obra “Countra-indications to


the ‘active’ psychoanalytical technique” torna-se cada vez mais
importante para a psicanálise atual, pois Ferenczi arriscou-se
a transgredir e aprendeu com a experiência, e suas
transgressões estão documentadas, assim como o resultado
delas, é uma contribuição à técnica e à ética psicanalítica
inestimável, ao levar o aprendizado a partir da experiência, caso
o psicanalista não confie nos ensinamentos de Freud, que
diferentemente de Ferenczi, não precisou errar para aprender
a fundamental importância do enquadre analítico.
Refletindo a Psicanálise-2020 188

Termino meu artigo com a pergunta — O que será da


psicanálise se procurar se adaptar à lógica do mercado
financeiro atual? A mesma lógica da ciência positivista, da razão
instrumental e do nazismo. Não há necessidade de resposta
para essa pergunta retórica, porém pretendo continuar esse
artigo em outro momento com o estudo sobre o
desenvolvimento da técnica psicanalítica tanto no próprio Freud
quanto nos psicanalistas que o sucederam, mudanças que
ocorreram devido a necessidade de atender analisandos com
outras psicopatologias além da própria neurose.

REFERÊNCIAS

Adorno, T. 1995. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro. Paz e Terra,


1995.
Bion, W. R. 1988. Estudos Psicanalíticos Revisados. Rio de Janeiro.
Imago.
Chomsky, N. 2002. O lucro ou as pessoas. Rio de Janeiro. Bertrand
Brasil.
Etchegoyen, R. H. 2008. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto
Alegre. Artmed.
Ferenczi, S. 2014. Further Contributions to the theory and technique of
psychoanalysis. London. Ford Press.
Freud, S. 2001. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro. Imago.
Freud, S. 2004a. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Volume 1.
Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico. Rio
de Janeiro. Imago.
Freud, S. 2004b. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Volume 1.
À Guisa de Introdução ao Narcisismo. Rio de Janeiro. Imago.
Refletindo a Psicanálise-2020 189

Freud, S. 2006. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente Volume 2.


Além do principio do prazer. Rio de Janeiro. Imago.
Green, A. 1998. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de
Janeiro. Imago.
Horkheimer, M. 2000. Eclipse da Razão. São Paulo. Centauro.
Klein, M. 1991. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de
Janeiro: Imago.
Marx, K. 2007. A ideologia alemã. São Paulo. Imago.
Racker, H. 1982. Estudos sobre técnica psicanalítica. Porto Alegre.
Artmed.
Refletindo a Psicanálise-2020 190

CAPÍTULO X
Refletindo a Psicanálise-2020 191

ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL?

Denise Maria Nunes Alencar Patriota1


Psicóloga Clínica. Psicanalista em formação pelo Instituto de Psicanálise da
1

Sociedade Psicanalítica do Recife – SPRPE.

RESUMO
Como o tempo se constitui no psiquismo? A análise tem um término?
O tempo de duração de uma análise sempre foi um ponto criticado não
só por outras correntes, mas até por analistas. Longe de exaurir o
debate sobre o assunto, a autora parte de tais inquietações, passeia
pelo texto freudiano Análise terminável e interminável (1937) e por
alguns pós-freudianos para escrever esse breve ensaio sobre a
relação do tempo com a análise.
Palavras-chave: psicanálise; fim de análise; inconsciente;
tempo.

O ano era 1937, 01 ano antes de eclodir a Segunda Grande


Guerra. O mundo ainda tentava se recuperar do estrago deixado
para trás, enquanto Hitler assumia o poder em 1933. Freud, já
doente e cansado, embora extremamente lúcido e sensível,
escreve um dos últimos textos “estritamente psicanalíticos”
(Freud, 1937/1996a, p. 225 ) de sua vida: Análise terminável e
interminável, texto que, segundo Jones, “como um todo, dá a
impressão de pessimismo quanto à eficácia terapêutica da
psicanálise” (Freud, 1937/1996a, p.225). Talvez o contexto da vida
pessoal de Freud tivesse levado Jones a ler o texto com essa
lente, pois Freud estava doente, de luto por alguns amigos
Refletindo a Psicanálise-2020 192

queridos terem falecido na guerra e, como se não bastasse, viu


sua obra sendo queimada publicamente no mesmo ano em que
o líder do nazismo assumiu o poder.

No entanto, o que Jones viu como pessimismo, pode ser


visto como honestidade e relevância, pois expõe o leitor aos
limites da psicanálise e aos fatores limitantes da mesma: força
“constitucional” dos instintos, influência dos traumas e
alterações do Eu causadas pelos mecanismos de defesa que
o Eu tem que usar contra o desprazer (Freud, 1937/2018).

Enquanto os analistas da época ainda estavam


interessados em como se dava a cura na psicanálise, essa
questão já não tomava os pensamentos de Freud. O criador da
psicanálise estava instigado em conhecer mais profundamente
os fatores limitantes para um processo psicanalítico, haja vista
os mesmos poderem torná-lo um processo com tempo
indeterminado.

A crítica quanto ao tempo de duração do processo


analítico, considerado longo comparado a outras abordagens,
sempre existiu desde a época de Freud e hoje não é diferente.
Atualmente, várias técnicas têm surgido não para ajudar o ser
humano a alcançar um entendimento profundo de si, útil para
Refletindo a Psicanálise-2020 193

uma vida mais feliz, mas para ajudá-lo a ser eficiente, criando a
ilusão causa-efeito entre eficiência e felicidade.

A terapêutica de Freud caminhava justamente no sentido


contrário a esse pensamento. Não que a psicanálise seja contra
a eficiência, no entanto um dos seus objetivos é “fortalecer o Eu,
ampliar seu campo de proteção e aumentar sua organização, de
maneira a que possa apropriar-se de novas partes do id. Onde
era o id, ficará o Eu”. (Freud, 1937/1996, p. 227). Tornar-se um
ser humano mais integrado e eficiente dentro das limitações de
cada um vem à rebote como um efeito do processo analítico.

Freud levou tanto em consideração as críticas (inclusive


dos seus seguidores) quanto ao tempo prolongado que uma
análise exige, que tentou reduzir o tempo do processo analítico
em algumas situações. Após alguns anos do tratamento de “um
homem estragado pela opulência, que chegara a Viena em
estado de completo desamparo” (Freud, 1937/1996, p. 232), o
conhecido Homem dos Lobos, o analista percebeu que o
progresso havia se interrompido e o tratamento corria o perigo
de fracassar. O que ele fez? Informou que o ano seguinte seria
seu último ano de tratamento, independente do avanço que
fizesse nesse tempo.
Refletindo a Psicanálise-2020 194

Freud reconheceu que sua decisão não foi acertada.


Apesar de o paciente ter apresentado melhoras, os sintomas
retornaram. Esse “artifício de ameaça” (Freud, 1937/1996, p. 233)
só é eficaz quando o tempo para cada paciente é realmente o
tempo que o mesmo precisa, argumentou Freud.

Como saber o tempo que cada paciente precisa? Freud


não tem a resposta, pelo contrário, afirma que não há como
garantir a realização dessa tarefa e que a avaliação do tempo
necessário para o paciente fica a critério de cada
psicanalista. O que se garante é que:

“parte do material se torne acessível sob


a pressão da ameaça, outra parte será
retida e, assim, ficará sepultada, por
assim dizer, e perdida para nossos
esforços terapêuticos, pois, uma vez que
o analista tenha fixado o limite de tempo,
não pode ampliá-lo; de outro modo, o
paciente perderia toda a sua fé nele.”
(Freud, 1937/1996, p. 233).

Freud só se deu conta a posteriori de algo que, até agora,


não pode ser mensurado, lentificado nem tão pouco acelerado:
o tempo psíquico. Definitivamente, não se trata do tempo
cronológico, como bem nos lembra Rocha (2008). O ponto não é
Refletindo a Psicanálise-2020 195

a metafísica do tempo, mas como ele se introduz no psiquismo


de cada um. No texto de 1915/1996 (p. 38), ainda na primeira
tópica, Freud chegou a dizer que “a relação com o tempo é algo
estreitamente vinculado ao trabalho do sistema Cs.”

Embora Gondar (1995) nos diga que Freud se inclinou


muito pouco (ou quase nada) sobre as questões ligadas à
consciência, ele mesmo suspeita de que “esse método
descontínuo de funcionamento do sistema Pcpt-Cs jaz no fundo
da origem do conceito de tempo” (Freud, 1925/1996, p. 259). É
como se a origem do tempo no psiquismo fosse uma dança em
que a atemporalidade do Ics segue o compasso da
descontinuidade de estímulos que o sistema Pcpt-Cs recebe
enquanto catexizados por impulsos periódicos internos. Os
estímulos apreendidos tornam-se traços mnêmicos
permanentemente gravados no Inconsciente, por isso o tempo
dessa instância psíquica é atemporal em relação ao tempo do
Consciente.

O inconsciente é o foco central sobre o qual Freud debruça


suas energias. A prova é que se diz que um dos objetivos da
análise é conseguido tornando aquilo que era inconsciente em
consciente, a fim de que o sujeito assenhore-se de si, e,
lembrando que uma das características do inconsciente é ser
Refletindo a Psicanálise-2020 196

atemporal (Freud, 1915/1996), podemos pensar como Paim (2016,


p. 116):

“Ora, sabe-se que “(...) a temporalidade


freudiana é uma atemporalidade? Sim e
não. A noção de atemporalidade ganha
sentido se tiver como parâmetro o
processo secundário
(ontem/hoje/amanhã), um sincronismo
ditado pelo tempo da razão; porém, se
lançarmos um olhar através do
processo primário, a lógica da
atemporalidade não se sustenta, pois o
inconsciente não apenas contém os
registros do tempo como também é
constituído pelo tempo, vindo albergar o
tempo histórico, a memória”.

Concordando com Paim, Gondar (1995, p. 31) fala de uma


atemporalidade relativa: “o inconsciente seria atemporal com
relação a alguma(s) modalidade(s) de tempo, mas não com
relação a todas”; segundo a autora, essa modalidade
corresponde à modalidade de tempo que a consciência põe em
jogo. Conforme Freud, o espaço e o tempo são formas
necessárias de nossos atos psíquicos, mas não existe nada no
Id que corresponda à ideia de tempo, “Desejos que nunca foram
além do Id, impressões que pela repressão afundaram no Id são
Refletindo a Psicanálise-2020 197

virtualmente imortais , comportam-se, após décadas, como se


tivessem acabado de surgir” (Freud, 1937/2010, p. 216).

Dito isso, podemos pensar que o tempo histórico também


não é linear e a memória não necessariamente é constituída de
fatos vividos. Nem tudo o que está no Id foi experimentado.
Então, como o tempo se inscreve no aparelho psíquico? Apesar
de o tema da temporalidade psíquica estar presente em toda
sua obra, Freud não dedicou nenhum texto específico sobre o
assunto. No entanto, Paim (2016), freudiano contemporâneo,
ilumina a questão quando ensina que é a relação Id -
recalcamento que dá forma ao espaço e ao tempo no psiquismo.
Ele acredita que há um universo que não só antecede o
recalcamento, mas é responsável por sua efetivação. É nesse
universo que os destinos pulsionais:

“transformação no contrário e retorno


sobre si mesmo vão tecer a trama pela
qual o inconsciente nunca foi consciente
(inconsciente não recalcado) vinculado
ao Eu-realidade-originária, vai
transformar as inscrições primordiais -
impressões (imp) em traços e
representações coisa (Rc). Seguindo
este pensar, podemos reafirmar que tais
destinos pulsionais primordiais (pré-
recalque) são os responsáveis pela
fundação do aparelho psíquico. O que
Refletindo a Psicanálise-2020 198

até então era um espaço potencial,


virtual, uma disposição de vir a ser,
começa a tornar-se um real espaço
psíquico, marcado por uma
temporalidade, que evidentemente
ganha significação à posteriori” (Paim,
2016, pp 61 e 62).

Sempre há esperança de transformação num a posteriori,


implicando sempre na criação de um novo sentido fomentando
um ciclo interminável cuja ressignificação do inscrito no
pretérito se dá com novas transcrições no presente porque “o
inconsciente não se atualiza sem ao mesmo tempo recriar o
sentido do passado, irreversível porque novo de cada vez”
(Gondar, 1995, p. 67), pode-se dizer que delimitar tempo para a
duração de análise foi ineficaz porque o maior objeto de
trabalho de uma análise, o inconsciente além de funcionar com
uma temporalidade relativa e não linear, está sempre se
atualizando, criando novos derivados passíveis de serem
analisados.

Se não há uma estimativa de tempo de duração, a análise


tem um término? Freud diz claramente: “Seja qual for a posição
teórica ante esse problema, a finalização de uma análise é uma
questão prática” (Freud, 1937/2018, p. 321). Do ponto de vista da
Refletindo a Psicanálise-2020 199

prática clínica, a resposta é simples: uma análise termina


quando analista e analisando param de se encontrar para a
sessão porque o paciente está bem - “não está mais sofrendo
de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e
inibições” (Freud, 1937/1996, p. 215).

No entanto, Freud dá um sentido mais ambicioso ao


término de uma análise. Ele queria saber se é possível o
analista exercer a função analítica de tal modo que não se
espere mais mudança alguma no paciente, caso a análise
continue. Assim, todos os recalques teriam sido solucionados e
todas as lacunas na lembrança do paciente teriam sido
preenchidas.

É aí onde entram os fatores limitantes para o sucesso da


psicanálise! Jones (Jones in Freud, 1937/1996) chama atenção
para o fato de Freud ter destacado que duas causas para o
impedimento da análise, alterações do Eu e constituição da
força dos instintos, são inversamente proporcionais e estão
ligadas a fatores físicos e biológicos - puberdade e menopausa,
por exemplo. Andrade (2017, p.42 e p. 29) lembra que “há sempre
um elemento constitucional em jogo nos processos
psicopatológicos” e que Freud “nunca colocou em dúvida sua
confiança em que a fonte da mente era biológica”.
Refletindo a Psicanálise-2020 200

No tocante às alterações do Eu, a percepção é a sua


função principal porque é através dela que o Eu vai se dar conta
do mundo externo e do mundo interno e fazer a ligação entre os
dois mundos. Também é a partir da percepção que se
desenvolvem todas as funções egóicas. Ao iniciar uma análise,
o Eu fica sujeito a expandir, a aumentar sua percepção e até a
forma como discerne seu entorno. Esta sujeição é
acompanhada pelo receio da mudança, do novo.

Ora, é função do Eu evitar os afetos de desprazer. Para


isso, utiliza mecanismos de defesa que exigem dele uma
quantidade grande de dispêndio de energia. Quanto mais
energia dispendida para defesa do ego, menos energia é gasta
em sua expansão, dificultando, assim, o processo analítico,
como resume Andrade (2017, p. 23):

“Nessa tarefa, procura inibir o


mecanismo de percepção desses afetos,
pois que a percepção liberaria
desprazer, usando nesse propósito a
atenção como defesa contra a
percepção. Destarte, duas funções
fundamentais do Eu - atenção e
percepção - são desviadas para a
inibição dos afetos. Se a quantidade de
afetos desagradáveis for de grande
magnitude, o pensamento e a reflexão se
tornam tarefas extraordinariamente
Refletindo a Psicanálise-2020 201

árduas para o Eu, o qual se encontra


desprovido de seus mecanismos
fundamentais (atenção e percepção),
que estão voltados para funções
defensivas.”
Ligada às alterações do Eu, está a força constitutiva dos
instintos. Na verdade, Freud reconsiderou o termo
constitucional e passou a falar sobre “força instintual de então”
(Freud, 1937/ 2018, p. 286) por considerar que o fortalecimento
dos instintos dado ao longo da vida tem os mesmos efeitos que
sua força constitucional. A puberdade, novos traumas,
frustrações impostas, por exemplo, podem fortalecer os
instintos que já estavam amansados, mas que agora procurarão
mais fortemente novas formas de satisfação, causando
conflitos com o Eu. Como novas repressões não se efetuam, o
Eu recorre aos serviços das repressões primevas a fim de
dominar os instintos.

Então, o que faz uma análise?

“... faz com que o Eu amadurecido e


reforçado empreenda uma revisão
dessas antigas repressões. Algumas
são demolidas; outras reconhecidas,
mas construídas de novo, com material
mais sólido” (Freud, 1937/2018, p. 290).
Refletindo a Psicanálise-2020 202

No entanto, partes do velho mecanismo de defesa


permanecem intocáveis, o que torna incompleta a sua
transformação. O resultado final de uma análise depende das
forças das instâncias em conflito.

Logo, quanto mais intensa for a força de um instinto,


mais o Eu precisará gastar energia para negociar com ela a sua
satisfação. Sabendo que a força instintual é constante e que, por
ser gerada no interior do organismo, é impossível fugir dela, “os
mecanismos de defesa estão condenados a falsear a percepção
interna e nos possibilitar apenas um conhecimento defeituoso e
deformado” (Freud, 1937/2018, p. 303, 304) Quanto aos perigos
externos, os mecanismos de defesa que se tornam regulares
retornam, na terapia analítica, como resistência e o desenlace
da terapia analítica vai depender da força dessas resistências.

Dito dessa maneira, o fim de uma análise parece muito


simples, mas, na realidade, como bem falou Freud, é uma das
tarefas impossíveis ao lado de governar e educar (segundo o
próprio Freud, 1937/1996). Dentre outros fatores que dificultam
bastante o processo analítico, está o fato de que “em cada
recuperação temos que lutar contra a inércia do paciente, que
está disposto a se contentar com uma resolução imperfeita.”
(Freud, 1937/2018, p. 296)
Refletindo a Psicanálise-2020 203

Uma coisa é certa: mesmo que, na prática, a análise


chegue ao fim, é possível que os sintomas voltem ou surjam
outros sintomas, como nos dois casos clínicos de curta duração
citados no texto, em que a análise parecia ter chegado ao fim,
pois os objetivos (Eu fortalecido e mais organizado) haviam sido
aparentemente atingidos, mas anos depois do suposto fim de
análise, os pacientes caíram doentes novamente de uma
maneira ou de outra. Se isso acontecer, a possibilidade de
iniciar uma nova fase de análise deve ser considerada.

Afora provocar questionamentos sobre a temporalidade


psíquica e as barreiras para o sucesso de uma análise, Análise
terminável e interminável deixa clara a maturidade de Freud ao
passar a mensagem de que, se a psicanálise quiser manter a
credibilidade como prática clínica, os psicanalistas devem:
reconhecer os limites terapêuticos da mesma e afastarem-se
da ilusão de cura espetaculares e definitivas e assumindo uma
postura que remete ao que o próprio Freud falou dois anos
depois:

“É verdade que nem sempre


conseguimos ganhar, mas, pelo menos,
podemos geralmente identificar porque
foi que não vencemos. (...) Aqui, porém,
estamos interessados na terapia apenas
na medida em que ela funciona através
Refletindo a Psicanálise-2020 204

de meios psicológicos e, por enquanto,


não possuímos outra. (...) De momento,
porém, nada temos de melhor à nossa
disposição do que a técnica da
psicanálise. E, por essa razão, apesar de
suas limitações não deve ser
menosprezada” (Freud, 1940 [1938]/1996,
p.196).

Finalmente, podemos pensar que a psicanálise é uma


ciência e uma arte que brinca com o jogo dos tempos. O tempo
do inconsciente é um tempo longo e não reconhece a cronologia
das coisas. O tempo de uma análise é igualmente longo por,
simultaneamente, acompanhar o ritmo desritmado do
inconsciente e o tempo cronológico através da análise do Eu e
das suas relações de objeto. Freud reconhece a limitação da
psicanálise, mas adverte a que não seja desprezada, pois,
apesar de termos outras formas de tratamento, é a psicanálise
que trabalha o Eu inconsciente com um método próprio a partir
de uma teoria científica do aparelho psíquico ao longo do
desenvolvimento.

REFERÊNCIAS
Andrade, V. M. 2007. Freud e a psicanálise afetiva do século XXI: análise
terminável e interminável, 80 anos depois. Curitiba: Appis.
Freud, S. 1996a. Análise terminável e Interminável In S. Freud, Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Refletindo a Psicanálise-2020 205

Freud (J. Salomão, Trad, V. XXIII, pp. 224 a 270). Rio de Janeiro:
Imago. (Trabalho original publicado em 1937).
Freud, S. 1996. Uma nota sobre o bloco mágico. In S. Freud, Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud (J. Salomão, Trad, V. XIX pp. 253 a 259). Rio de Janeiro:
Imago. (Trabalho original publicado em 1925).
Freud, S. 1996b. Conferência 31: dissecção da personalidade psíquica.
[Novas Conferências Introdutórias sobre psicanálise]. In S. Freud,
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. (Trabalho original publicado em 1916-1917).
Freud, S. 2018a. Análise terminável e Interminável In S. Freud, Obras
completas, volume 19: Moisés e o Monoteísmo, Compêndio de
Psicanálise e outros textos (1937-1939) (Paulo César de Souza,
Trad, pp. 274 a 326). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
(Trabalho original publicado em 1937).
Gondar, J. 1995. Os tempos de Freud. Rio de Janeiro: Livraria e Editora
RevinteR.
Paim Filho, I. A. 2016. Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de
morte. Porto Alegre: Movimento.
Rocha, Z. 2018. A Experiência Psicanalítica: desafios e vicissitudes,
hoje e amanhã. Ágora: Rio de Janeiro, v. 11, n. 01.
Refletindo a Psicanálise-2020 206

CAPÍTULO XI
Refletindo a Psicanálise-2020 207

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO


DAS NEUROSES COM ÊNFASE NA DISSOLUÇÃO
DO COMPLEXO DE ÉDIPO

Bianca Rizzo Barbosa Lima1


Psicanalista em formação pelo Instituto de Psicanálise da Sociedade
1

Psicanalítica do Recife - SPRPE

RESUMO
A autora aborda o tema das neuroses, desde descobertas
fundamentais feitas por Freud, quando abandonou a teoria do trauma
e passou a valorizar a importância das fantasias e da repressão na
formação dos sintomas. Serão desenvolvidos temas importantes,
como a descoberta do complexo de Édipo, que ocupará um papel
central nas neuroses e terá como herdeiro, a formação do Superego.
O aparecimento da angústia de castração e o surgimento das
identificações subsequentes do menino e da menina, sendo enfatizada
a dissolução do complexo de Édipo. Será abordada, ainda, a
importância do investimento libidinal narcísico, bem como a
importância das pulsões de vida e de morte na neurose e como esta
passará a ser observada a partir da segunda tópica freudiana. Serão
feitas algumas comparações entre as neuroses e as psicoses,
sobretudo no que diz respeito à relação com a realidade e ao tipo de
angústia que se observa em cada uma delas. Será discutida também,
a defesa apresentada pelo sintoma, o qual representa uma forma de
retorno do recalcamento e que constitui, na neurose, a atividade
sexual do paciente.
Palavras-chave: neurose; repressão; complexo de Édipo; castração;
sintoma.

No ano de 1897, Freud fez grandes descobertas a


respeito das neuroses, que foram: a renúncia da teoria
traumática na origem das neuroses (21 de setembro, carta 69),
Refletindo a Psicanálise-2020 208

a descoberta do complexo de Édipo (15 de outubro, carta 71) e o


reconhecimento gradual da sexualidade infantil como um fator
normal e universal (carta 75). Na carta 69, quando abandonou a
teoria do trauma, Freud escreveu para Fliess a famosa frase:
“Não acredito mais na minha neurótica”, e reconheceu que o que
vinha considerando uma sedução da criança por um adulto,
constituía, de fato, a manifestação dos desejos incestuosos das
crianças em relação aos pais. As experiências fantasiosas
passaram, então, a ser consideradas de forma determinante
(Freud, 1898/ 1996).

Foi a partir do reconhecimento das fantasias histéricas,


que ficou evidente o enredo da neurose e sua correlação com a
vida do paciente. Em 1905, na obra Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, Freud ratificou que os sintomas histéricos não
necessariamente derivavam diretamente de recordações
reprimidas de vivências sexuais da infância. Em meio aos
sintomas e às impressões infantis se misturavam as fantasias
do paciente (lembranças imaginárias), normalmente
concebidas na puberdade, que se desenvolviam a partir e em
cima das recordações infantis, por um lado, e se transformavam
diretamente nos sintomas, por outro lado. O sujeito neurótico
transportava da infância, certa repressão sexual que se
Refletindo a Psicanálise-2020 209

evidenciava mediante às imposições da vida real, e as análises


de pacientes histéricos constatavam que eles adoeciam como
consequência do conflito entre a libido e a repressão sexual e
os seus sintomas tinham o valor de compromisso entre essas
duas tendências, constituindo os sintomas a atividade sexual
dos pacientes. A neurose, portanto, estava relacionada a uma
repressão excessiva das tendências libidinais (Freud,
1906/2017).

Laplanche e Pontalis conceituam o termo neurose como


“uma afecção psicogênica em que os sintomas são a expressão
simbólica de um conflito psíquico que tem raízes na história
infantil do sujeito e constitui compromissos entre o desejo e a
defesa” (Laplanche e Pontalis, 1970, p. 377).

Na obra Introdução ao narcisismo de 1914, Freud


determina que há uma libido do ego e uma libido do objeto, e
quando uma aumenta, a outra diminui, pois há um balanço entre
esses dois investimentos. Na neurose, o investimento libidinal
narcísico pode ser observado pelo fato de que qualquer parte
do corpo pode assumir a característica de uma zona erógena e
se comportar como um substituto de um órgão sexual. Portanto,
os sintomas neuróticos ocasionam um superinvestimento da
Refletindo a Psicanálise-2020 210

libido no ego, consequentemente, diminuindo a quantidade de


libido para o investimento objetal (Freud, 1914/ 2010).

O ano de 1920 assinala uma guinada determinante na


forma como Freud vê o funcionamento psíquico. Até aquele
momento, o modelo usado era o do princípio do prazer-
desprazer, assim como se observa na neurose. Nesta, o
paciente sofre com os seus sintomas e, em busca de afastar-se
do desprazer, requisita ao psicanalista que o ajude a se livrar
desta sensação para reencontrar o prazer de viver. Na obra
Além do princípio do prazer, Freud apresenta uma nova
hipótese que vai mais distante, e defende que o funcionamento
psíquico é regido por um conflito fundamental entre uma pulsão
de vida e uma pulsão de morte. Para Freud, a pulsão de morte
se origina da necessidade biológica que todo organismo tem de
voltar ao seu estado inicial, inorgânico. Em 1923, Freud vai
defender que quando há o predomínio da pulsão de morte, o
componente destrutivo da vida psíquica se estabelece, como no
sadismo e no masoquismo mas, quando há o predomínio da
pulsão de vida, o componente destrutivo é atenuado e a
agressividade se posiciona a favor da vida e do Ego. Freud, deu
bastante importância aos afetos de amor e de ódio, à
ambivalência, às relações de objeto, aos processos de
Refletindo a Psicanálise-2020 211

identificação, bem como ao sentimento de culpa inconsciente, à


angústia e ao afeto de luto (Quinodoz, 2007).

A partir da segunda tópica freudiana, 1923, pôde-se


observar que na neurose

“o Ego se torna parcialmente


inconsciente, a erotização de um
Superego sádico faz dele um comparsa
inoportuno e as forças neuróticas não
são mais somente o produto secundário
do recalcamento, mas estão
simplesmente em contato direto com o
Id, em sua onipotência desordenada”
(Bergeret 2006/2007, p.137).

A neurose é constituída por inteiro no princípio do


recalcamento histérico, o qual refere-se principalmente à
sexualidade. Essa concepção histérica, na verdade, utiliza o
pano de fundo edipiano e o desejo incestuoso, sendo este o
protótipo da neurose típica. O conflito sexual da neurose se
localiza, no nível genital do Édipo, ainda que os recursos de
defesa conduzam às vias de regressões pré-genitais (anais e
até mesmo orais). No menino, o conflito se origina da rivalidade
edipiana com o pai, do projeto de conquista da mãe. Esse plano
é abandonado devido aos sentimentos ternos que o menino tem
Refletindo a Psicanálise-2020 212

pelo pai e também pelo medo de uma medida de retaliação


(castração). A proibição do pai é interiorizada. Sendo assim, o
Superego é o herdeiro do complexo de Édipo. A identificação
com o pai, faz com que o garoto, no futuro, queira ter a sua
própria mulher. O conflito entre o Superego e as pulsões
sexuais é, portanto, a principal trama sobre a qual se constitui
a neurose. O recalcamento, que é sua primeira consequência,
abre espaço para o surgimento do sintoma (Bergeret,
2006/2007).

“O complexo de Édipo desapareceria devido ao seu


fracasso, em consequência de sua impossibilidade interna”
(Freud, 1924/2011, p. 204).

Em alguma ocasião, o menino com orgulho de ter um


pênis, observa a região genital de uma menina e se depara com
a falta do pênis nela. Dessa forma, a perda do próprio pênis se
torna uma possibilidade e a ameaça de castração tem efeito
posterior. Se a satisfação amorosa no campo do complexo de
Édipo tiver como preço o pênis, vai existir um conflito entre o
interesse narcísico nesse órgão e o investimento libidinal dos
objetos parentais. Normalmente, vence a primeira dessas
forças e o Eu da criança se desliga do complexo de Édipo. Os
Refletindo a Psicanálise-2020 213

investimentos objetais são abandonados e trocados pela


identificação (Freud, 1924/2011).

“A autoridade do pai, ou dos pais,


introjetada no Eu, forma ali o âmago do
Supereu, que toma ao pai a severidade,
perpetua a sua proibição do incesto e
assim garante o Eu contra o retorno do
investimento libidinal de objeto. O
complexo de Édipo sucumbe à ameaça
de castração” (Freud, 1924/2011, p. 208,
209).

Para a menina, a castração é um fato consumado, ao


passo que o menino tem medo dessa possibilidade de perda.
(Freud, 1924/2011). A menina entra no complexo de Édipo a partir
do complexo de castração, da inveja do pênis, quando é expulsa
da ligação com a mãe (Nasio, 2007). Se, de fato, o Eu não atingiu
muito mais que uma repressão do complexo, este continua de
forma inconsciente no Id, e posteriormente manifesta a sua
ação patogênica (Freud, 1924/2011).

Na neurose, portanto, a angústia é de castração, e as


defesas se voltam para reduzir essa angústia, seja facilitando a
regressão em relação à libido, seja promovendo saídas
regressivas. Por outro lado, nas organizações psicóticas, a
Refletindo a Psicanálise-2020 214

parte principal do conflito se dá com a realidade e a angústia é


de fragmentação (Bergeret, 2006/2007). Nas neuroses, os
mecanismos de defesa utilizados pelo Ego não são tão
primitivos como os das psicoses (Zimerman, 1999/2008). O
indivíduo não está doente porque tem defesas, mas porque as
defesas usadas geralmente se apresentam ou ineficientes, ou
rígidas demais, ou mal adaptadas às realidades internas ou
externas, ou exclusiva e excessivamente de um mesmo tipo,
mas o funcionamento mental fica travado em sua versatilidade,
seu equilíbrio, sua adaptação (Bergeret, 2006/2007).

O sintoma é também uma forma de retorno do recalcado.


Ele aponta, somente, que houve um fracasso do recalcamento.
Os sintomas observados na neurose são bastante imprecisos.
Via de regra, observa-se um mal-estar em que se misturam
avidez e frustração. Nota-se o caráter insaciável da demanda
de uma avidez de modo que nenhuma compensação é capaz de
resolver. Essa procura insaciável pode se apresentar de formas
bastante variadas. A defesa produzida pelo sintoma vai na
direção da luta contra a angústia específica, que na neurose
seria evitar a castração, na psicose evitar a fragmentação e no
estado limítrofe evitar a perda do objeto (Bergeret, 2006/2007).
A neurose seria decorrente de um conflito entre o Eu e o Id, ao
Refletindo a Psicanálise-2020 215

passo que na psicose a perturbação ocorreria entre o Eu e o


mundo exterior. Uma das características que diferenciam a
neurose e a psicose é que na primeira o Eu, em sua dependência
da realidade, reprime uma parte do Id (da vida instintual), ao
passo que na psicose o próprio Eu, a serviço do Id, se afasta de
uma porção da realidade. Na neurose, então, haveria uma
influência preponderante da realidade e na psicose a influência
seria do Id. Na psicose, a perda da realidade já estaria presente
desde o início enquanto que na neurose a realidade seria evitada
(Freud, 1924, 2011).

“A neurose não nega a realidade, apenas não quer saber


dela; a psicose nega e busca substituí-la” (Freud, 1924/2011, p.
218).

Na neurose, geralmente há a tendência a evitar a porção


da realidade de que se trata e proteger-se do embate com ela.
Observam-se também tentativas de substituir a realidade não
desejada por outra que seja mais compatível com os desejos, o
que é possível pela existência de um mundo da fantasia, de onde
a neurose retira o material para as suas novas composições de
desejo, o que ocorre, comumente pela via da regressão a um
passado real mais aceitável. Na psicose, o novo mundo externo
Refletindo a Psicanálise-2020 216

fantástico objetiva se colocar no lugar da realidade externa, ao


passo que na neurose, o mundo da fantasia se apóia em uma
parte da realidade (Freud, 1924/2011).

REFERÊNCIAS

Bergeret, J. 2006. Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre:


Artmed.
Freud, S. 1996. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899). Rio de
janeiro: Imago.
Freud, S. 2017. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise
fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos
(1901-1905). São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. 2010. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e
outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. 2011. O Eu e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925).
São Paulo: Companhia das letras.
Laplanche, J.; Pontalis, J. B. 1970. Vocabulário da psicanálise. São
Paulo: Martins Fontes.
Nasio, J. D. 2007. Édipo. O complexo do qual nenhuma criança escapa.
Rio de janeiro: Zahar.
Quinodoz, J. M. 2007. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud.
Porto Alegre: Artmed.
Zimerman, D. E. 1999. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e
clínica – uma abordagem didática. Porto alegre: Artmed.
Refletindo a Psicanálise-2020 217

CAPÍTULO XII
Refletindo a Psicanálise-2020 218

A SUBLIMAÇÃO COMO AFASTAMENTO DO SOFRIMENTO E


CONCRETIZAÇÃO DO POSSÍVEL

Kalina Gerciane Oliveira Alpes


Psicanalista em Formação pelo Instituto de Psicanálise da Sociedade
1

Psicanalítica do Recife/Pernambuco-SPRPE.

RESUMO
A autora pretende discorrer sobre a sublimação como
afastamento do sofrimento do indivíduo através da
concretização do elemento possível. Para tanto, utiliza os
fundamentos teóricos freudianos que tratam da produção
artística como elemento de um possível processo sublimatório
frente ao sofrimento humano e, como exemplo deste processo
sublimatório através da arte, traz-se uma estrofe da canção
Tigresa de Caetano Veloso. Nestes termos, na interação da
Teoria de Freud e a produção musical em questão, busca-se
ressaltar os aspectos psicanalíticos envolvidos no contexto de
uma canção enquanto atividade que promove processos de
sublimação e, portanto, fonte de satisfação, os quais denotam
um papel significativo na vida civilizada.
Palavras-chave: Instinto; Libido; Repressão; Desejo; Arte.

INTRODUÇÃO

Por não conhecer regras e limites nossa pulsão sexual


busca a realização do prazer, persegue a satisfação através da
sua descarga. No entanto, parte deste material é censurado por
se constituir como incompatível, em suas metas, com a
consciência e, se expostos, causariam sofrimento. Ocorre que,
Refletindo a Psicanálise-2020 219

o afeto, desvinculado de sua representação inconciliável com a


consciência, passa ao consciente e pré-consciente sem se
vincular a um objeto específico, o que passa a causar angústia
e a busca de uma nova representação que possa substituir a
representação recalcada.

Diante desta questão, vislumbra-se a solução através da


extraordinária plasticidade dos impulsos sexuais em que a
libido, privada de sua descarga, tenta buscar outros caminhos
para sua satisfação, de modo a substituir um objeto por outro
mais facilmente alcançável e aceitável. Neste momento, tem-se
a sublimação como um dos processos psíquicos que protege o
indivíduo contra o adoecimento em consequência dessas
privações. Através da sublimação o indivíduo busca e encontra
um sucedâneo ao desejo frustrado, lançando o instinto a outra
meta, distante da satisfação sexual. Havendo, do ponto de vista
econômico, uma compensação.

Neste processo de compensação, através da


sublimação, há na realização artística uma satisfação, uma
fonte de obtenção de prazer que segue gozando da liberdade
frente à pressão exterior, pois, traz em seu bojo, a aceitação
social. Diante de tais exigências sociais e culturais, é através da
renúncia às pulsões que se torna possível o processo
Refletindo a Psicanálise-2020 220

civilizatório, devendo, a permissão para uma satisfação


pulsional, obedecer às suas leis de interdição num processo de
censura.

Constituindo um aspecto particularmente evidente do


desenvolvimento cultural, a sublimação da pulsão torna
possível às atividades psíquicas superiores, científicas,
artísticas ou ideológicas o desempenho de um papel ativo na
vida civilizada. Através da sublimação, o sujeito afasta o
sofrimento do deslocamento da libido realizado pela psique,
dando-lhe flexibilidade. Nestes termos, pode-se dizer que a
composição musical relaciona-se com esse processo
sublimatório, o qual promove o afastamento do sofrimento
através da canalização da energia pulsional, dando à libido a
flexibilização na concretização do possível. Havendo, pois, um
substituir o objeto libidinal que se vincula a outro objeto num
processo de substituição ao que lhe falta, deslocando a sua
meta para um objeto possível. Uma negociação entre a instância
psíquica repressora e as representações reprimidas.

Nas produções musicais, como elemento cultural que é,


encontramos os ensinamentos esclarecedores de Freud acerca
do ser humano enquanto ser dotado de energia que o move. Em
Caetano, “As garras da felina me marcaram o coração. Mas as
Refletindo a Psicanálise-2020 221

besteiras de menina que ela disse, não. E eu corri prá o violão


num lamento. E a manhã nasceu azul. Como é bom poder tocar
um instrumento”, percebe-se uma descarga de energia
prazerosa/pulsional, uma demonstração de um estado de
humor altamente gratificante, uma sensação de plenitude,
apesar de uma referência substitutiva de algo que não foi
possível. Portanto, enquanto atividade que promove processos
de sublimação, evidencia-se o papel significativo da música na
vida civilizada.

O INSTINTO E SUA BUSCA À SATISFAÇÃO

Segundo Freud, a meta final de um instinto é sempre a


satisfação, a qual é obtida através do seu objeto de desejo.
Objeto que pode ser mudado de acordo com as vicissitudes que
o instinto sofre ao longo da vida, proporcionando um novo
caminho rumo à satisfação” (Freud, 2010 (1914-1916), pag. 58).
Acerca desses instintos, ele faz uma diferenciação em dois
grupos, “os instintos do Eu, ou de autoconservação, e os
instintos sexuais e, alude a estes a esfera da pura relação de
prazer do Eu com o objeto.
Refletindo a Psicanálise-2020 222

... a palavra ‘amar’ se avizinha cada vez


mais à esfera da pura relação de prazer
do Eu com o objeto, e finalmente se fixa
nos objetos sexuais em sentido estrito, e
nos objetos que satisfazem as
necessidades dos instintos sexuais
sublimados (Freud, 2010 (1914-1916), pag.
77).

Na busca desta satisfação e por poderem trocar


facilmente seus objetos, dentro de processos de defesa,
repressão e sublimação, os instintos sexuais são capazes de
realizações que se acham bem afastadas das suas realizações
originais, proporcionando um novo rumo à satisfação (Freud,
2010 (1914-1916), p. 63, 64).

Em Além do princípio do prazer, Freud refere-se aos


instintos levando em conta não apenas o fator topofráfico e
dinâmico, mas também o fator econômico, o qual faz alusão ao
empenho do aparelho psíquico em conservar a sua quantidade
o mais baixa possível, ou ao menos constante. O curso dos
processos psíquicos é regulado automaticamente pelo princípio
do prazer; sendo ele “sempre incitado por uma tensão
desprazerosa e toma uma direção tal que o seu resultado final
coincide com um abaixamento dessa tensão, ou seja, com uma
Refletindo a Psicanálise-2020 223

evitação do desprazer ou geração do prazer” (Freud, 2010 (1917-


1920), p. 162, 164).

A REPRESSÃO E A CONCRETIZAÇÃO DO POSSÍVEL NA


FORMAÇÃO SUBSTITUTIVA

Laplanche e Pontalis, definem a repressão, em sentido


amplo, como sendo uma “operação psíquica que tende a fazer
desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou
inoportuno: ideia, afeto etc” (2016, pag. 457). “Em sentido amplo”,
pois, dentre as diversas nuances que permeiam seu conceito,
Freud ressaltou na repressão o processo psíquico que ele
considera demonstrado pela inegável existência da resistência.

Um processo psíquico em que:

“as mesmas forças que naquele


momento se opunham, na qualidade de
resistência, a que o material esquecido
se tornasse consciente, deviam ter
provocado esse esquecimento e
empurrado as vivências patogênicas em
questão para fora da consciência”
(Freud, 2013 (1909-1910), pag. 241).
Refletindo a Psicanálise-2020 224

Material cujo conteúdo é resultado de afetos


desenvolvidos em situações patogênicas nas quais haviam
aflorado desejos incompatíveis com as exigências éticas e
estéticas da personalidade causando um conflito interno. “Esse
desprazer foi evitado pela repressão, que, dessa maneira,
revelou-se como um dos dispositivos de proteção da
personalidade psíquica” (Freud, 2013 (1909-1910), p. 242).

O desejo reprimido, embora colocado para fora do


consciente, continua a existir no inconsciente e busca enviar à
consciência uma formação substitutiva, a qual agora deformada
e irreconhecível, se ligará os mesmos sentimentos de
desprazer dos quais o indivíduo acreditava ter estado livre
mediante a repressão. Neste momento, Freud argumenta
existirem, porém, soluções mais apropriadas e que levam o
conflito e a neurose a bom termo:

Ou a personalidade do doente é
convencida de que rechaçou
injustamente o desejo patogênico e
induzida a aceita-lo total ou
parcialmente, ou esse desejo é dirigido
para uma meta mais elevada e, portanto,
irrepreensível (o que é chamado de
sublimação), ou se admite sua rejeição
como sendo justa, mas se substitui o
mecanismo automático (e, portanto,
Refletindo a Psicanálise-2020 225

insuficiente) da repressão por um juízo


de condenação, com o auxílio das mais
elevadas funções intelectuais do ser
humano; alcança-se o domínio
consciente do desejo (Freud, 2013 (1909-
1910), p. 246, 247).
Tem-se, pois, que um destino possível para um impulso
instintual é, ao encontrar resistências, chegar ao estado da
repressão, tendo em vista que, a satisfação do instinto geraria
prazer num lugar e desprazer em outro, sendo este desprazer
maior que o prazer da satisfação. Neste processo psíquico, o
primeiro estágio da repressão é aquele em que é negado à
representação psíquica do instinto, o acesso ao consciente. Com
isso se produz uma fixação e, como consequência, o instinto
permanece ligado a essa representação (Freud, 2010 (1914-1916),
p. 85, 86). No entanto, o conteúdo reprimido permanece
exercendo uma contínua pressão na direção do consciente, a
qual tem de ser compensada por uma, também contínua,
contrapressão (Freud, 2010 (1914-1916), p. 90). Ou seja, o objetivo
do recalque é levar os desejos para o inconsciente, porém, o
inconsciente, movido pelo princípio do prazer, insiste que os
desejos sejam realizados.

Portanto, a depender do grau de energia psíquica (libido,


interesse) investida no impulso instintual (ideia ou grupo de
Refletindo a Psicanálise-2020 226

ideias), este poderá ser capacitado de, por vias indiretas,


penetrar na consciência (Freud, 2010, (1914-1916), p. 90). A partir
desse impulso instintual, uma outra coisa o representa, o
montante afetivo. O qual corresponde ao instinto, na medida em
que ele se desligou da ideia e acha expressão em processos que
são percebidos como afetos. Em suma, o destino do fator
quantitativo do representante instintual, ou “é inteiramente
suprimido, de modo que dele, nada se encontra, ou aparece
como um afeto, qualitativamente nuançado de alguma forma, ou
é transformado em angústia” (Freud, 2010 (1914-1916), p. 91, 92).

No seu intento mais claro, o propósito da repressão era


tão somente evitar o desprazer. No entanto, atenta-se que o
destino do montante afetivo do representante é bem mais
importante que o da ideia; desta forma, conclui Freud que, “se
uma repressão não consegue impedir o surgimento de
sensações de desprazer ou de angústia, então podemos dizer
que ela fracassou, ainda que tenha alcançado sua meta na parte
ideativa” (Freud, 2010, (1914-1916), p. 93).

Portanto, pode-se dizer que na sua essência o “processo


de repressão não consiste em eliminar, anular a ideia que
representa o instinto, mas em impedir que ela se torne
consciente” e, inconscientemente a ideia que representa o
Refletindo a Psicanálise-2020 227

instinto pode produzir efeitos, inclusive aqueles que afinal


atingem a consciência (FREUD, 2010 (1914-1916), p. 100).
Frequentemente o impulso instintual tem que esperar até achar
uma ideia substitutiva no sistema Cs, uma nova representação
que possibilite o desenvolvimento do afeto (Freud, 2010 (1914-
1916), p. 118).

A SUBLIMAÇÃO COMO CANALIZAÇÃO DA ENERGIA E


AFASTAMENTO DO SOFRIMENTO

A relação do ser humano e sua produção de cultura


está relacionada ao deslocamento de montantes de energia de
metas originalmente sexual para outra, não mais sexual, mas
àquela aparentada psiquicamente. Esse poder chama-se
capacidade de sublimação, a qual varia conforme o indivíduo.
Oscilando, também, o montante do instinto sexual que se
presta à sublimação, havendo um quantum que necessita de
satisfação sexual direta (Freud, 2015 (1906-1909), p. 368, 369).
Portanto, vê-se que dominar um impulso pela sublimação,
desviando forças instintuais da meta sexual para metas
culturais mais elevadas, é conseguido apenas por uma minoria
e só temporariamente (Freud, 2015 (1906-1909), p. 375, 376).
Refletindo a Psicanálise-2020 228

Neste processo de sublimação, a energia dos impulsos


infantis cujo desenvolvimento foi perturbado pela sua
extirpação, podem ser conduzidos à sua adequada aplicação,
continuando aproveitável ao dar-se aos impulsos uma meta
culturalmente mais elevada (Freud, 2013 (1909-1910), p. 284).
Neste processo o instinto se lança a outra meta, distante da
satisfação sexual e, a sublimação representa a solução para
cumprir esta exigência sem ocasionar a repressão (Freud, 2010
(1914-1916), p. 41).

Como dito, diante de sua extraordinária plasticidade de


substituir um objeto por outro que seja mais facilmente
alcançável, os impulsos sexuais ao serem privados de
satisfação encontram outros caminhos que não o adoecimento.
A sublimação é um desses caminhos que protege contra o
adoecimento e tem especial importância cultural. Levando-se
em consideração, no entanto, que

O montante de libido insatisfeita que os


seres humanos podem medianamente
suportar é limitado. A plasticidade ou
livre mobilidade da libido não é
plenamente conservada em todas as
pessoas, e a sublimação só consegue
dar conta de determinada fração da
libido, aparte o fato de muitas pessoas
serem contempladas com uma
Refletindo a Psicanálise-2020 229

capacidade apenas reduzida de


sublimação (Freud, 2014 (1916-1917), p.
458, 459).
Dessas limitações, a mobilidade da libido se destaca em
importância por colocar a satisfação do indivíduo dependente da
obtenção de um número bastante reduzido de metas e objetos,
pois,

um desenvolvimento incompleto da
libido deixa para trás numerosas e,
eventualmente, variadas fixações
libidinais em fases anteriores da
organização e da busca objetal, em sua
maioria incapazes de real satisfação, e
os senhores reconhecerão na fixação
libidinal o segundo fator poderoso a
causar o adoecimento, juntamente com
a frustração... a fixação libidinal
representa o fator interno
predisponente, e a frustração, o fator
acidental, externo, na etiologia das
neuroses (Freud, 2014 (1916-1917), p. 459,
460).

Num conflito psíquico uma parte da personalidade do


indivíduo busca a satisfação de determinados desejos, enquanto
a outra os rechaça; e, para que ocorra um efeito patogênico
deste conflito, concorrem dois fatores: “a frustração exterior
Refletindo a Psicanálise-2020 230

retira uma possibilidade de satisfação; a interior deseja excluir


outra possibilidade” (Freud, 2014 (1916-1917), p. 464, 465). O
resultado desse conflito interfere na mobilidade e disposição da
libido em busca de um sucedâneo ao desejo frustrado.

O Eu humano, educado a seguir o princípio da realidade,


porém, possuidor de dificuldade em renunciar ao prazer,
necessita de alguma espécie de compensação. Por isso,
reservou para si uma satisfação na realização da fantasia.
Neste processo de satisfação através da sublimação, o artista
encontra o caminho de volta da fantasia para a realidade na sua
arte (Freud, 2014 (1916-1917), p. 494, 499).

Importante neste processo de obtenção de satisfação


através da sublimação é, também, a sua análise do ponto de
vista econômico. Perquirindo-se “qual o montante de libido não
empregada uma pessoa é capaz de conservar em suspensão, e
de que fração de sua libido ela é capaz de desviar do sexual para
as metas de sublimação” (Freud, 2014 (1916-1917), p. 497).
Ajustamento este, o qual leva em consideração que o desejo
dos homens é a felicidade, cujo alcance é obtido através da
obtenção de prazer ou a evitação do desprazer, dentro,
portanto, de um processo de economia libidinal (Freud, 2010
(1930-1936), p. 29, 40).
Refletindo a Psicanálise-2020 231

O que resta, pois, deste desequilíbrio econômico da


energia libidinal é o sofrimento nas suas diversas formas de
se revelar. Sofrer este que ameaça a partir de três lados: do
próprio corpo; do mundo externo; e, das relações com os
outros seres humanos.

Freud pontua acerca do sofrimento que nos ameaça


através do mundo externo, salientando que, “do mesmo modo
que a satisfação de instintos é felicidade, torna-se causa de
muito sofrer se o mundo exterior nos deixa à míngua,
recusando-se a nos saciar as carências”, deste modo,
utilizando-se de uma defesa contra o sofrer, nosso aparelho
psíquico age sobre os impulsos instintuais, buscando dominar
as fontes internas das necessidades (Freud, 2010 (1930-1936),
p. 34). Age, portanto, liquidando os instintos, governando os
instintos ou, deslocando a libido. No deslocamento da libido,
sua tarefa consiste “em deslocar de tal forma as metas dos
instintos, que eles não podem ser atingidos pela frustração a
partir do mundo externo”, neste momento, surge a sublimação
dos instintos como possível solução. Possível, pois, não é de
aplicação geral, nem garante uma completa proteção contra o
sofrimento (Freud, 2010 (1930-1936), p. 35, 36). Ou seja, nem
tudo pode ser sublimado, nem todos conseguem sublimar.
Refletindo a Psicanálise-2020 232

No entanto, é necessário admitir que a “sublimação do


instinto é um traço bastante saliente da evolução cultural, ela
torna possível que atividades psíquicas mais elevadas,
científicas, artísticas, ideológicas tenham papel tão
significativo na vida civilizada” (Freud, 2010 (1930-1936), p. 60).
Alertando-se, porém, que a sublimação enquanto processo
que pressupõe a não satisfação de instintos, necessita estar
sendo capaz de realizar as devidas compensações do ponto de
vista econômico, sob pena de gerar graves distúrbios.

A CANÇÃO: TIGRESA – CAETANO VELOSO

Tigresa (Caetano Veloso):

As garras da felina me marcaram o


coração
Mas as besteiras de menina que ela
disse, não
E eu corri pro violão, num lamento, e a
manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um
instrumento.

Leonardo Davino, professor de Literatura Brasileira,


mestre em Literatura Brasileira, doutor em Literatura
Refletindo a Psicanálise-2020 233

Comparada, pesquisador de canção popular, analisa com


gabarito a Tigresa de Caetano.

Diz Davino:

Caetano, certa vez, afirmou: "As minhas


letras são todas autobiográficas. Até as
que não são, são"... É no processo de
compor que o cancionista entra em
contato com estágios profundos de si ...A
tigresa canta a vida para o sujeito. Assim
como a canção canta o cancionista.
O cancionista, arrebatado pela criatura
que lhe surge, durante o exercício
artístico e intelectual, não encontra mais
palavras (na tentativa de chegar ao real
indizível) e corre para o violão, num
lamento (refúgio de si). Talvez um som
consiga significar esta mulher que
surge. A manhã nasce azul: a
composição está terminada. A felina
(que destroçou o sujeito, ao sair dele e
ser, também, ele) pode viver: é o canto
do sujeito que lhe dá vida, ou seria o
contrário?

Em Notas sobre a Poética da Falta de Caetano Veloso,


Juan Müller Fernandez e Elizabeth Gonzaga de Lima, completa:
Refletindo a Psicanálise-2020 234

O poeta canta o instante – o momento


em que a memória o arrebata e ele sente
o peso da falta, ... O canto, portanto, para
Caetano é o recurso de salvação e de
escape do momento de ausência.

Como Compreende Freud, “um desenvolvimento


incompleto da libido deixa para trás numerosas e,
eventualmente, variadas fixações libidinais em fases anteriores
da organização e da busca objetal, em sua maioria incapazes de
real satisfação”. E, juntamente com a frustração, há na fixação
libidinal o segundo fator poderoso a causar o adoecimento.
Sendo a fixação libidinal representante do fator interno
predisponente, e a frustração, o fator acidental, representante
externo, na etiologia das neuroses (Freud, 2014 (1916-1917), p.
459, 460).

Numa fixação libidinal, “As garras da felina me


marcaram o coração” e;

Numa frustação, “Mas as besteiras de menina que ela


disse, não”;

Predispõe-se ao adoecimento.
Refletindo a Psicanálise-2020 235

Uma libido insatisfeita rechaçada pela realidade,


necessita buscar outros caminhos para a satisfação, “E eu corri
pro violão, num lamento”.

Uma satisfação na realização da fantasia, “e a manhã


nasceu azul”.

Num processo de sublimação, encontra-se o caminho de


volta da fantasia para a realidade, “Como é bom poder tocar um
instrumento”.

Uma estrofe destrinchada em aspectos psicanalíticos,


num devaneio acerca de uma percepção de similaridade entre a
teoria de Freud e a arte de Caetano.

Uma estrofe analiticamente considerada, mas,


evidentemente e, antes de tudo, uma canção como produto de
sublimação através da arte. Um retorno da fantasia do artista à
realidade.

REFERÊNCIAS
Fernandez, J. M.; Lima, E. G. 2015. Notas sobre a Poética da Falta de
Caetano Veloso.
Freud, S. 2015. O delírio e os sonhos na Gradiva, análise da fobia de um
garoto de cinco anos e outros textos. Tradução: Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das letras. (Trabalho original
publicado em 1906-1909).
Refletindo a Psicanálise-2020 236

Freud, S. 2013. Observações sobre um caso de neurose obsessiva (“O


homem dos ratos”), uma recordação de infância de Leonardo Da
Vinci e outros textos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras. (Trabalho original publicado em 1909-1910).
Freud, S. 2010. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e
outros textos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras. (Trabalho original publicado em 1914-1916).
Freud, S. 2014. Conferências introdutórias à psicanálise. Tradução:
Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das letras. (Trabalho
original publicado em 1916-1917).
Freud, S. 2010. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”),
além do princípio do prazer e outros textos. Tradução: Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das letras. (Trabalho
original publicado em 1917-1920).
Freud, S. 2011. O Eu e o Id, “autobiografia” e outros textos. Tradução:
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras.
(Trabalho original publicado em 1923-1925).
Freud, S. 2010. O mal-estar na civilização, novas conferências
introdutórias e outros textos. Tradução: Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das letras. (Trabalho original publicado em
1930-1936).
Laplanche, J. 2016. Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis.
Tradução: Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes.
Refletindo a Psicanálise-2020 237

CAPÍTULO XIII
Refletindo a Psicanálise-2020 238

DISCURSO DE ÓDIO E REDES SOCIAIS VIRTUAIS:


UM OLHAR ATRAVÉS DA PSICANÁLISE

Philippe José de Fontes Oliveira1


Maria de Fátima Vilar de Melo2
Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP – Recife – PE.
1

Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP – Recife – PE.


2

RESUMO
As redes sociais virtuais são uma ferramenta que se tornaram parte
indispensável do dia a dia das pessoas. Com o acesso à internet cada
vez mais popularizado, essa ferramenta assumiu lugar de destaque,
constituindo, talvez, uma nova revolução nas comunicações. Este
caráter ubíquo, porém, não vem sem ônus. Os discursos de ódio e
ataques aos usuários têm se tornado frequentes nesses ambientes,
transformando-os em espaços não tão salutares. Diante deste
cenário, uma questão nos saltou aos olhos, por que é que pessoas
aparentemente comuns, ao entrar em uma rede social virtual
passavam a disseminar ódio sem o menor pudor, atacando seus
semelhantes, imagens e reputações? Seria o fato de não se depararem
com o outro fisicamente? Em outras palavras, seria a ausência de
corporeidade a causa motriz desse fenômeno? Neste trabalho, nos
propusemos a investigar esses fatos e recorremos à literatura
psicanalítica como fonte principal de explicações para esse
comportamento nefasto nas redes sociais virtuais. Partimos dos
conceitos de pulsão invocante e pulsão escópica, indo buscar em
Freud e Lacan, majoritariamente, fundamentos que nos ajudassem a
compreender esses eventos. Ao final, trouxemos à luz da discussão
qual a implicação do psicólogo nesse processo e como poderíamos
ajudar nesse contexto de estranhamento dos sujeitos.
Palavras-chave: Redes Sociais; Ódio; Internet; Psicanálise; Pulsão
Invocante
Refletindo a Psicanálise-2020 239

INTRODUÇÃO

A observação cotidiana nos leva a pensar que as redes


sociais virtuais (RSV) são ambientes sadios, através dos quais
podemos entrar em contato com amigos, familiares,
desconhecidos com interesses e assuntos comuns. Através
desses espaços, discussões e debates podem surgir e
contribuir para a reflexão e avanço do pensamento social em
sentido lato.

Os incentivos à inclusão digital e a facilidade de acesso,


que faz com que estejamos conectados quase o tempo inteiro,
mostram que o ambiente virtual está tendo lugar de destaque
na vida das pessoas independente de faixa etária ou extrato
social.

Em paralelo a isso, também estamos observando,


através de relatos na mídia tradicional e digital, o aumento dos
discursos de ódio através do racismo, homofobia e toda sorte
de preconceito nos ambientes virtuais, de modo que é cada vez
mais necessário problematizar e refletir sobre a utilização das
redes sociais como uma das medidas de mitigação e prevenção
dessas situações.
Refletindo a Psicanálise-2020 240

Em casos mais graves, a ocorrência dessas discussões


on-line, ao invés de debates produtivos que levem a uma
conscientização maior dos envolvidos pode degringolar para
uma espécie de bullying virtual que pode levar a pessoa alvo até
mesmo ao suicídio.

A utilização da internet possui um risco intrínseco, de


acordo com Ponte e Vieira (2007), após revisarem 235 trabalhos
perceberam haver diversos estudos cujo objetivo era a análise
dos riscos aos quais os jovens estavam expostos, dentre eles:
cyberbullying, pedofilia, exposição a conteúdo de natureza
sexual e ofensivo.

Situações como as citadas anteriormente, levam-nos a


preocupações diversas relativas à utilização da internet e das
redes sociais, nos pondo a questionar de que forma as redes
sociais estão influenciando nocivamente as pessoas. Como e
por que seres humanos que em sua vida cotidiana são
relativamente pacatos, tornam-se agressivos e destilam ódio
gratuitamente? De forma mais específica: a ausência do contato
físico, do olhar e da voz como modalizadores dos discursos
estaria atuando como um catalisador do ódio entre as pessoas?
Refletindo a Psicanálise-2020 241

Esse artigo tem por objetivo refletir como a


corporeidade ou a falta dela contribuiria para a amplificação do
fenômeno da disseminação do discurso de ódio e
consequentemente a fragilização dos vínculos humanos na
nossa sociedade.

Pensamos que a execução deste trabalho nos instigará


a pensar o papel do psicólogo frente aos desafios impostos
pelas novas formas de relacionamento que tem se desenvolvido
por via das redes sociais virtuais (RSV), pois na forma como tem
acontecido, é possível enxergar um ataque à marcha
civilizatória, o laço social que nos ata parece estar sendo
desfeito (ou afrouxado) e com isso o respeito à diferença tem se
esvaído, apaga-se a alteridade. Mais grave torna-se tal contexto
quando percebemos que, cada vez mais, o discurso de ódio
extrapola as redes virtuais e torna-se concreto no mundo físico.
Problematizar continuamente, portanto, tais interações, pode
levar os sujeitos a refletir suas respectivas implicações na
construção de um ambiente virtual mais saudável e por
conseguinte, extrapolar isso para o mundo presencial, visto que
ambos se afetam reciprocamente.

Uma pergunta que nos orienta é: a ausência de um corpo


físico nessas interações influencia a apreensão de uma
Refletindo a Psicanálise-2020 242

realidade diversa da concreta e na compreensão do outro como


semelhante, enfraquecendo os vínculos e aumentando a
agressividade? E, partindo dessa indagação, intencionamos
também pensar como a carência da voz e do olhar como
mediadores da linguagem também atua nesse processo.

Apoiado nas indagações anteriores julgamos que


“escutar” o que se passa nas redes sociais virtuais (RSV) é de
fundamental importância para obter um entendimento mais
amplo que permita a mediação do sofrimento dos seres sociais
nesse contexto. Atualmente é quase impossível encontrar
alguém que não faça parte de ao menos uma rede social, logo,
entendemos que todos estamos sendo afetados por esse
fenômeno e por isso devemos olhar para ele.

Para a consecução deste trabalho faremos uma revisão


de literatura, majoritariamente, de fundo psicanalítico,
discorrendo sobre a questão do ódio e dos processos que o
explicam. Foram observados de forma concomitante
fragmentos de “falas” na forma de posts públicos das redes
sociais Facebook e ou twitter de forma aleatória, inspirando-
nos pelo que colocaram Fragoso, Recuero e Amaral (2011, p. 76-
82) no que diz respeito à intencionalidade, intensidade e máxima
heterogeneização e nos respaldando nas premissas da Análise
Refletindo a Psicanálise-2020 243

das Redes Sociais (ARS), que segundo as mesmas autoras (2011,


p. 44):

[...] ao estudar estruturas decorrentes


das ações e interações entre atores
sociais é possível compreender
elementos a respeito desses grupos e,
igualmente, generalizações a seu
respeito.

DO EXISTIR CONCRETO AO VIRTUAL

De acordo com artigo publicado no site do IEEE –


Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos – uma
associação sem fins lucrativos de fomento ao avanço da
tecnologia pelo bem da sociedade, internacionalmente
respeitada, não é possível precisar o surgimento da internet.
Existem estudiosos que situam no momento do lançamento da
ARPANET, outros afirmam que suas origens estariam nos
primórdios das tecnologias das comunicações (KLEINROCK,
2010).

A ARPANET foi o resultado de algumas pesquisas


realizadas no âmbito das redes de comunicações digitais pela
agência ARPA – Advanced Research Projects Agency, que era
Refletindo a Psicanálise-2020 244

ligada ao departamento de defesa norte americano. Inicialmente


ela conectava algumas universidades e o pentágono.

Após expansão das pesquisas, investimentos e


melhorias do modelo inicial, foi possível enviar a primeira
mensagem de um computador a outro por meio de uma rede de
computadores conectada virtualmente. Esta mensagem foi a
palavra “login” que só foi enviada corretamente após uma
segunda tentativa, na primeira, o computador destino recebeu
apenas os caracteres “l” e “o” e o sistema falhou, então,
tecnicamente, a primeira mensagem transitada por uma rede
virtual de computadores foi a palavra “lo” (Kleinrock, ibid).

Partindo dessa “sílaba” transmitida, a internet continuou


se desenvolvendo chegando ao cenário que temos atualmente.
A comunicação através de redes de computadores
interconectados evoluiu e permitiu que um novo ambiente,
semelhante ao mundo físico, porém, com uma nova dinâmica
possibilitando uma miríade de interações entre as pessoas.

O ambiente virtual, no qual esse novo modelo de


relações sociais se desenvolve é dado como um lugar
inexistente, algo que, não obstante esteja sempre nos
permeando, não se configura concretamente.
Refletindo a Psicanálise-2020 245

Em sua obra: “O que é o virtual”, Pierre Lévy (1996, p.21)


nos diz o seguinte:

Quando uma pessoa, uma coletividade,


um ato, uma informação se virtualizam,
eles se tornam “não-presentes”, se
desterritorializam. Uma espécie de
desengate os separa do espaço físico ou
geográfico ordinário e da temporalidade
do relógio e do calendário.

Nos dias presentes, percebemos um movimento de


virtualização cada vez maior, lojas saem das ruas e passam a
ser “web stores”, comerciais agora são pensados em como se
tornarem “virais” na internet, destarte não é estranho ver esse
fenômeno acontecer também com as redes sociais. Se antes
para encontrarmos nossos amigos, discutir algum assunto,
tínhamos que sair na rua e encontrá-los fisicamente, ou, no
máximo, falar através do telefone (que pressupunha uma
‘conexão’ em tempo real e com suas regras de etiqueta: não
ligar depois de um certo horário, por exemplo) atualmente basta
ingressar em alguma rede social, que todos estarão à
disposição a qualquer hora do dia ou da noite.
Refletindo a Psicanálise-2020 246

Ao virtualizarmos as nossas relações sociais levamos


para esse “universo digital” a complexidade inerente a elas,
acrescentando o fato de perdermos as fronteiras e as
referências, segundo Lévy (1996, p.30-31): gerando um
“hipercorpo”, um corpo coletivizado, que graças a interconexão
do mundo, agora é passível de receber, por exemplo, um sangue
raro que esteja disponível em outro país e, em função dessa
coletivização, a noção do privado se esvai.

Uma outra característica dessa virtualização é a


espetacularização da vida. Guy Debord (1997) em “A sociedade
do espetáculo” já tecia críticas a esta tendência, porém, àquela
época, o fazia em relação ao capitalismo e ao consumismo,
afirmando que espetacularizar a vida era uma das formas de
propagação do desejo consumista. Não sabia Debord, que esse
fenômeno seria intensificado em um sem número de vezes pelo
advento da internet e das redes sociais. Vemos um
esvaziamento de relações, uma tendência a exibir uma vida
idealizada, reduzida a imagens mas que causa inveja naqueles
que observam (e interagem também) e causa uma cobiça sobre
algo que não se sabe ao certo se se confirma no concreto.

Onde o mundo real se converte em


simples imagens, estas simples
imagens tornam-se seres reais e
Refletindo a Psicanálise-2020 247

motivações eficientes típicas de um


comportamento hipnótico (Debord, 1967,
p.19)

Entendemos, a partir de Debord, que esse


comportamento hipnótico gera uma propensão ao
comportamento de massa e tal comportamento embora gere
uma coesão dos grupos que cada vez mais passam a se
identificar com massa faz com que o diferente seja indesejado
e excluído pela massa. Nesse contexto, acaba-se chegando a
uma confusão, enquanto a massa permanece coesa e
identificada entre si, ao ver um “semelhante”, a alteridade, não
o enxerga como tal, olha-se em uma espécie de espelho mas
não identifica aquilo que vê e desperta a agressividade.

O ESPELHO, O OLHAR, A VOZ E A AGRESSIVIDADE

Coutinho Jorge, em seu livro Fundamentos da


psicanálise de Freud a Lacan coloca:

O estádio do espelho é, para Lacan, o


momento inaugural de constituição do
eu, no qual o infans, aquele que ainda
não fala, prefigura uma totalidade
corporal por meio da percepção da
Refletindo a Psicanálise-2020 248

própria imagem no espelho, percepção é


acompanhada do assentimento do outro
que a reconhece como verdadeira
(Jorge, 2005, p. 45).

Dessa afirmação, podemos entender que para Lacan, a


passagem pelo o estádio do espelho é um momento fundante do
sujeito, imprescindível para o desenvolvimento de um eu
independente, não mais em simbiose com a figura materna.

Também depreendemos do excerto anterior a


importância da imagem para o sujeito, o que é reforçado, ainda
no livro de Jorge, pela frase: “o Eu é, assim, descrito por Lacan
como essencialmente imaginário...” (2005, p. 46).

Em Freud, buscamos as primeiras formulações acerca


da importância da visão. De acordo com Jorge (2005), Freud faz
a distinção entre instinto (Instinkt) e pulsão (trieb) como tendo
início a partir do momento em que os estímulos sexuais deixam
de ser olfativos e passam a ser visuais, o indivíduo do sexo
masculino deixa de ser instigado pelos odores liberados pelo
indivíduo do sexo feminino durante o período menstrual, uma
ação instintual com fins reprodutivos e passa a ser incitado por
aquilo que percebe através da visão e não mais está atrelado a
Refletindo a Psicanálise-2020 249

periodicidade orgânica mas sim a uma influência pulsional.


Freud associou essa redução da importância do olfato para os
processos eróticos com a aquisição da postura ereta, que
afastou o nariz dos órgãos sexuais e consequentemente teria
dado início ao recalque, chamou isso de recalque orgânico
(Jorge, ibid.).

Na mesma obra, Jorge, coloca um esquema para facilitar


o entendimento lógico desse desdobramento: “advento da
postura bípede do homem → atrofia do sentido do olfato →
recalque orgânico do prazer no cheiro → recalque da
sexualidade em geral”.

Além da postulação quanto a origem do recalque


orgânico, a redução do olfato

[...] dá assim, lugar a visão enquanto


elemento primordial de atração sexual.
Se por um lado o olfato desempenhava
seu papel num funcionamento instintivo
cujo automatismo visava o
desencadeamento da cópula com fins
reprodutivos, a visão, passando para o
primeiro plano das trocas entre
indivíduos, torna a atividade sexual não
mais regida por ciclos periódicos e sim,
espraiada por toda a existência do
sujeito (Jorge, 2005. p. 39-40).
Refletindo a Psicanálise-2020 250

Voltando a Lacan, em um artigo de 2016 publicado na


revista Reverso, Furtado afirma que há um grande espaço na
teoria psicanalítica lacaniana para a importância do olhar,
passando pelo estádio do espelho (que já falamos antes),
acrescenta:

Paralelamente, ao processo de
identificação especular, Lacan aponta a
importância de outra dimensão, também
parte fundamental da constituição e
igualmente especular: a agressividade.
A agressividade em relação ao seu
outro, em relação ao seu semelhante,
com o qual e no qual se enxerga como
igual, como melhor ou pior e
provavelmente como concorrente. Afeto
que acompanhará para sempre o adulto,
como muito bem se sabe (Furtado, 2016,
p.92)

No artigo para a revista Psicologia Clínica do Rio de


Janeiro, Ilka Ferrari, além de tentar diferenciar agressividade
de violência, no contexto psicanalítico, afirma:

Na psicanálise, a violência é vista


sempre em um referencial que mostra
que o encontro com a linguagem não é
Refletindo a Psicanálise-2020 251

sem consequências para o humano.


Compreender a violência por meio desse
ensino supõe adentrar-se na
constituição do laço social, considerar
os discursos que imperam em dado
contexto histórico e não perder de vista
as formas como os sujeitos são capazes
de responder aos mesmos, já que a
pulsão está presente também em
momentos pacíficos (Ferrari, 2006, p. 51).

E diz ainda:

Existe a agressividade, mas ela pode ser


sublimada, pode ser recalcada, não
precisa ser atuada, pois o humano conta
com o recurso da palavra, da mediação
simbólica (Ferrari, 2006, p. 51 - 52).

Portanto, a agressividade é uma forma indesejada de


interação humana, que deve ser impedida quando o interdito
falha. A função da interdição caberia à linguagem que apesar de
possuir seu caráter violento, como nos disse Ferrari, inerente
ao laço social, ainda seria a melhor forma de evitarmos a
passagem ao ato.
Refletindo a Psicanálise-2020 252

Diante das referências acima e demais que podemos


encontrar na literatura psicanalítica, depreendemos e
destacamos: os sujeitos possuem uma “dependência fundante”
do olhar e da imagem capturada pelo olhar. Através de Freud
encontraremos respaldo para afirmação anterior em suas
teorizações acerca das questões narcísicas, estabelecimentos
de vínculos entre a mãe e o bebê, etc. Caso busquemos abrigo
na teoria Lacaniana vimos igual respaldo em seus conceitos do
Estádio do espelho e esquize da relação simbiótica, que são
operadas tanto através do olhar do próprio sujeito como do
olhar do outro e do Outro para esse sujeito

A agressividade também figurará seu papel de


importância na fundação do Eu e estará presente desde os
primeiros momentos, ou seja, está em nós desde sempre e
sofre influência direta daquilo que “olhamos” e por quem somos
olhados.

As RSV são um ambiente que apesar de permitir uma


interação complexa entre os atores, tende a apresentar modos
diferentes de interação e intersubjetividade nos registros
imaginários dos sujeitos, modos esses que não estão isentos de
consequências, dentre elas o enfraquecimento de uma série de
Refletindo a Psicanálise-2020 253

componentes presentes nas relações e que auxiliam na


mediação dessas como o olhar e a voz.

Nas seções a seguir discorreremos sobre dois tipos de


pulsão cujo objeto atuará diretamente nesse fenômeno: a
pulsão escópica, que tem por objeto o olhar e a pulsão invocante
que tem a voz como seu par. A claudicância desses objetos no
ambiente virtual tende a conduzir os sujeitos a uma forma de
atuação cujo gozo parece se dar pelo ódio.

Finalizamos esta seção com uma citação a Miller feita


por Ferrari no artigo já mencionado:

[...]uma civilização é um sistema de


distribuição do gozo a partir de
semblantes, um modo de gozo, uma
distribuição sistematizada dos meios e
maneiras de gozar (apud FERRARI,
2006).

PULSÃO ESCÓPICA E INVOCANTE: INTER-RELAÇÕES COM O


ÓDIO NAS REDES SOCIAIS VIRTUAIS
Ao pensar o espaço virtual, de forma quase imediata
somos remetidos a algo que não é tangível, não possui
concretude. De forma análoga, quando falamos de pulsão
escópica e invocante, embora presentes na vida dos sujeitos
Refletindo a Psicanálise-2020 254

permanentemente, seus objetos (a voz e o olhar) são


igualmente intangíveis. As RSV apresentam em certa medida
um caráter de intangibilidade em suas relações, de forma mais
específica: não se baseiam na presença física.

Freud em O mal-estar na cultura (1930/2010), afirmou: “A


escrita é a voz do ausente”, então, cabe indagar, nas redes
sociais virtuais há voz? É possível dizer que sim, contudo, não
no seu registro imaginário e corporal, não encontramos timbre,
intensidade, tom, etc. Assim, nas linhas que seguem iremos
explorar de que forma essa voz “incompleta” atrelada a um
olhar, igualmente “incompleto”, influencia as relações e os
vínculos nesse ambiente de “não-presença”

“... E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre


a face do abismo... e disse: “Haja luz; e houve luz” (BÍBLIA,
Genesis, 1, 2-3). Partimos desse trecho mítico da cultura
ocidental acerca da criação do mundo, para ressaltar a
importância da voz para os sujeitos.

Através desse trecho, somos convocados a pensar que


mesmo ao projetar um cenário onde nada existia senão um
“criador primordial” foi necessário um ato de fala (sustentado
pela voz) para que algo pudesse advir: “fiat lux”.
Refletindo a Psicanálise-2020 255

Por meio deste preâmbulo é que damos início a escrita


sobre a pulsão invocante e seu objeto: a voz.

A despeito de o trabalho terapêutico no setting ter como


um de seus insumos mais importantes, a voz, esta foi pouco
abordada pelos psicanalistas. Jean-Michel Vivès (2015, p. 83)
em um artigo sobre o tema, lista diversos escritos importantes
da psicanálise que sequer dedicam algumas linhas a questão da
pulsão invocante: Dictionnaire de la psychanalyse (2001),
L’apport Freudien (1993), entre outros, foram alguns exemplos
citados.

Foi no seminário sobre o desejo (Seminário 6) que Lacan


a identificou e a isolou como forma de ressaltar a sua
importância para o sujeito (VIVES, 2009, p. 330). Esse autor vai,
então, propor uma nova pulsão parcial, a pulsão invocante que
tem a voz como objeto. Essa pulsão será acrescida às pulsões
parciais propostas por Freud (oral, anal e fálica), cuja
implicação no advir do sujeito é reconhecida.

De acordo com Vivès, a pulsão invocante constituirá uma


espécie de ciclo em que o infans por meio de três operações:
ser chamado, se fazer chamar e chamar, assumirá uma nova
posição, a de sujeito desejante.
Refletindo a Psicanálise-2020 256

Nessas operações o infans estará sendo invocado pelo


Outro e é por esse que receberá então uma voz, contudo, essa
voz em sendo a resposta dada pelo grande Outro a invocação
feita pelo infans, precisará ser esquecida para que surja a voz
própria do sujeito (Vives, 2009).

É importante compreendermos que o conceito de voz


que se referia Lacan, e que tem em Vivès um de seus
continuadores, não necessariamente se trata da voz: conjunto
de sons produzidos pela vibração das cordas vocais, mas sim
uma voz enquanto objeto a, a voz do sujeito que deseja, do
sujeito barrado de Lacan (S), que possibilita o ato de fala
fazendo do inconsciente o lugar da enunciação. O circuito da
pulsão invocante entraria, portanto, como mais um elemento no
processo de clivagem do sujeito que o fará dissociar-se da
relação com o Outro evitando, então, a foraclusão.

Para que esse processo de dissociação se dê, é


necessário que haja um ponto surdo, proposto Vives como o
momento em que o indivíduo irá se fechar à voz do Outro,
esquecendo-a, sem, todavia, esquecer do momento de
decaimento (o que o faz não-foracluído), por não esquecer do
“momento”, a voz do Outro ganha contornos de objeto a,
inscrevendo o sujeito na condição desejante.
Refletindo a Psicanálise-2020 257

Em tempo dessa surdez estruturante são perdidos


também as características da voz do Outro: timbre, tom,
melodia, frequência, etc. Tais elementos são componentes que
alienam os pretensos sujeitos ao significado, mantendo-os por
hora na não-significação do Real, pois quando atentos a tais
componentes, a enunciação é prejudicada visto que o foco do
infans poderá flutuar de um para o outro mantendo-o em um
estado de gozo da escuta (Vives, 2015 p. 89).

Esse gozo da escuta não é algo que apenas aprisiona o


infans, mas, também, aqueles já na condição de “falantes”. A
título de exemplo podemos citar casos em que se escuta uma
música e inicialmente apenas atenta-se à melodia enquanto a
letra (e o sentido da composição) fica em segundo plano, sendo
necessário que desloquemos o foco para “ouvir/escutar” o que
diz o intérprete.

Contudo, a voz também terá um efeito mediador, por


meio da emissão de sons em uma conversa, podemos perceber
se aquele que fala conosco está irritado, calmo, se nos ataca, se
demonstra interesse, etc.

Nas redes sociais virtuais, essa “voz” existe de forma


bastante diferente, visto que seu aspecto imaginário está
Refletindo a Psicanálise-2020 258

deveras modificado. O que vemos é apenas texto, um texto que


muitas vezes nos remete a vociferação, que não conta com a
dimensão imaginária para que se demande algum tipo de
simpatia ou mesmo empatia.

Enquanto a voz (do Outro), na pulsão invocante, tem


efeito estruturador quando é emudecida pelo sujeito (VIVES,
2009), nas redes sociais cremos acontecer o inverso. O fato de
não se ter acesso à voz no seu registro imaginário, corporal,
nas redes sociais, poderia contribuir para um não
reconhecimento do semelhante e da alteridade. Todo e qualquer
discurso no ambiente virtual, na ausência de uma voz, está
suscetível (e é até mesmo um convite) para o gozo do ódio.

Esse ódio seria um dos discursos da voz desse Outro


virtual. Ao passo que na economia da pulsão invocante a voz do
Outro responde ao sujeito possibilitando um advir, no mundo
virtual ela parece ordenar: Odeie! Seria um novo imperativo
superegóico?

Mas o ódio nas redes sociais pode ser relacionado


também a outro conceito Lacaniano o da pulsão escópica, cujo
teve início de forma discreta em Freud, mas evoluiu a partir dos
avanços de Lacan.
Refletindo a Psicanálise-2020 259

Freud tece ideias que apontam para a pulsão escópica,


sem nomeá-la ou conceituá-la, no entanto. Seria uma pulsão
parcial que reside no prazer do olhar e ser olhado, tendo início
na infância e permanecendo até a vida adulta; a criança tem
prazer em exibir seus genitais e é curiosa nos genitais alheios.
Quando adultos o prazer pode surgir, por exemplo, em observar
uma obra de arte (Silva, 2019).

O conceito de pulsão escópica permitiu à


psicanálise restabelecer uma função de
atividade para o olho não mais como
fonte da visão, mas como fonte de libido.
Onde os antigos têm o conceito de raio
visual e o fogo do olhar, a psicanálise
descobre a libido de ver e o objeto olhar
como manifestação da vida sexual. Lá
onde estava a visão, Freud descobre a
pulsão (Quinet, 2002, p.10).

No momento em que fala do estádio do espelho, Lacan


traz de alguma forma a questão do olhar implícita, ver-se diante
de um espelho e reconhecer-se, pressupõe olhar e contemplar.
Mas, além do olhar do sujeito que ali está surgindo, há também
o olhar do Outro (na figura da mãe), afirmando aquele sujeito
como um ser clivado do grande Outro – não-foracluído (Silva,
2019).
Refletindo a Psicanálise-2020 260

Lacan, no seminário XI, Os quatro conceitos


fundamentais da psicanálise, faz referência a obra de Merleau-
Ponty, O visível e o invisível. A partir dessa referência, discorre
sobre a pulsão invocante e a pulsão escópica (Furtado, 2016;
RAVAnello; Dunker; Beividas, 2017). Esse autor também teoriza
sobre o olhar como objeto perdido, causa de desejo ou “objeto
a” e Quinet (2002, p.49, apud Silva, 2019, p. 8) nos ajudará a
avançar na nossa compreensão quando diz que há um quê de
gozo no olhar:

o gozo escópico é o gozo dos


espetáculos e também o gozo do horror,
pois o olhar não pode se ver a não ser ao
preço da cegueira ou do
desaparecimento do sujeito, o que indica
que toda pulsão é também pulsão de
morte.

Considerando todo o exposto, pensamos ser de extrema


importância trazer luz novamente a um outro fator constitutivo
(igualmente especular), também mencionado por Jacques
Lacan, a agressividade. Agressividade que embora geralmente
dirigida a um outro será esse outro a projeção do Eu, que o
enxergará como melhor ou pior, mas sempre um concorrente.
Quinet (2012, p. 16) irá dizer também: “Eu, como consciência, lido,
Refletindo a Psicanálise-2020 261

rivalizo, desejo e brigo com os outros meus semelhantes


desconhecendo o Outro do inconsciente, que me determina
como sujeito”. É o duplo, aquele a quem vemos como igual e isso
nos causa estranhamento pela impossibilidade de
reconhecermos essa “igualdade”, e resultando na
agressividade; só nos resta então a palavra como mediadora, a
forma possível de evitar a descarga direta da pulsão. Ao nos
depararmos com o ódio nas redes sociais reforçamos a nossa
crença no declínio do nome-do-pai, o declínio da autoridade
imposta pelo Outro ideal, autoridade que impede (ou atenua) o
mais-de-gozar (Albuquerque, 2006). A palavra, a língua, que
habita o simbólico, perde seu papel de mediadora, de terceiro
entre a criança e sua imagem, de substituta do ato (agressivo)
deixando os sujeitos suscetíveis ao gozo mortífero, no
desamparo do Real.

Nas redes sociais, a forma imediata de interação é por


via da imagem. O sujeito ao acessar o facebook, por exemplo,
tem como primeiro contato com o outro, uma foto, um avatar,
além disso, a espetacularização a que estamos expostos
atualmente torna, geralmente, a vida do outro mais
interessante, mais feliz, de maior sucesso, etc. Então, aquele
Refletindo a Psicanálise-2020 262

“ideal de eu”, com quem rivalizarei e brigarei, aparecerá na sua


forma mais agalmática.

Além das característica que já mencionamos antes


acerca das redes sociais virtuais, também faz parte de suas
idiossincrasias, a velocidade, a rapidez com que estabelecemos
contato com alguém, que, no entanto, pode ser a mesma com
que cortamos esse vínculo, e, por isso, podemos considerá-la,
também, um fenômeno líquido, em referência ao termo cunhado
pelo sociólogo Zygmunt Bauman.

APENAS ÓDIO

Para falar do ódio recorremos inicialmente ao


psicanalista Mauro Mendes Dias (2012) que situa este afeto, o
ódio, desde os primeiros dias do bebê, momento em que ele
ainda está indiferenciado de sua mãe.

Esse autor nos diz que o ódio está atrelado a ideia do


desprazer consequência da frustração, presente desde o
momento da constituição do psiquismo, antes do advento do
sujeito. Essa frustração deriva da condição de um Outro
castrado (não possuidor do falo) e impedido de atender a todas
as demandas do infans (p. 29).
Refletindo a Psicanálise-2020 263

Contudo, embora seja um afeto indesejado, ele é


importante na constituição, pois um bebê que não experienciar
o ódio ao grande Outro, poderá se tornar um sujeito possuidor
de um narcisismo exacerbado, pois poderá viver no campo do
imperativo, ou seja, exigirá ter todas as suas demandas
atendidas.

Esse ódio primitivo se atualizará por via do mecanismo


transferencial, se em condição de análise, deverá ser manejado
pelo analista. Já na rede social virtual ao sujeito que odeia, pode
restar apenas o desejo de destruição do outro, porém
impossibilitado de atingir esse desejo (dada ausência de
corporeidade, por exemplo) será mais uma vez castrado e
reiniciará o ciclo, de viver e alimentar o ódio encontrado na
“vociferação” escrita, a única maneira de se aproximar desse
desejo.

Embora o ódio seja algo que é sentido, “ele vem de fora


do sujeito, ele vem pelo Outro, o que significa que desprazer e o
exterior se confundem [...]” (Dias, 2012, p. 32), e nesse exterior
está o outro.

Fleig, ao prefaciar o livro do psicanalista belga, Jean-


Pierre Lebrun, “O futuro do ódio, credita a Hegel a constatação
Refletindo a Psicanálise-2020 264

de que “o encontro com o outro é sempre violento e perturbador,


seja no cotidiano, seja na aproximação em culturas diversas”
(Lebrun, 2008, p. 7).

Fleig coloca também, que para Lacan o ódio será sempre


primeiramente o ódio contra o simbólico (LEBRUN, 2008, p.7).
Vale ressaltar que Lacan afirma uma relação de dependência
direta entre os registros Real, simbólico e imaginário.

A linguagem atravessa o sujeito desde sempre e parece


que desde sempre o ódio também, embora esteja em um estado
de latência, aguardando para emergir, é fato que ele está lá.
Nesse sentido, Lebrun diz:

Como seria bom para nós, se o ódio não


nos habitasse, se não estivesse em nós,
se ele não nos tivesse construído. O que
acontece é que ele nos concerne, sim,
eventualmente, na medida em que
podemos ser objeto ou vitima dele; que
deveríamos reconhecer que ele existe,
sim e, infelizmente, que nós não
podemos impedi-lo de existir (Lebrun,
2008, p.13).

Prosseguindo a partir desse referencial teórico, somos


levados aos aspectos mais específicos da linguagem,
Refletindo a Psicanálise-2020 265

especialmente, a fala. Nos diz Lebrun que falar é dizer de algo


que não está lá, é referir-se a algo que não está presente e essa
falta nos restringe, nos obriga a sentir a perda que nos
acompanhará por toda vida. Para esse autor, é esse
constrangimento que nos leva a sentir ódio.

O verbete “ódio” no dicionário de psicologia da


Associação Americana de Psicologia (APA) aparece com a
seguinte descrição: “emoção hostil que combina sentimentos de
aversão, raiva e o desejo de retaliar danos reais ou imaginários”
(2010). Quando olhamos nas redes sociais e enquadramos
muitas das manifestações através de posts como
manifestações de ódio é possível encontrar indícios desses
danos, infligidos pelos sujeitos que são, eles também, o destino
do sentimento. É como se o interlocutor de onde partem as
demonstrações de ódio concentrasse naquele alvo a ideia de
constrangimento por algo (que não se sabe exatamente o que
seria) e por isso esse alvo mereceria, em certa medida, receber
a hostilidade.

Lebrun, então, nos ajuda a desenrolar esse novelo e


aponta um possível destinatário originário desse ódio, ele não é
corpóreo, não é físico e assim como nas redes sociais, onde
cada usuário é apenas uma faceta de pessoa, representada por
Refletindo a Psicanálise-2020 266

uma espécie de avatar, ele não está lá para o contestarmos, “o


ódio é sempre ódio do Outro em si” (Lebrun, 2008 p. 26).
Para nós, esse Outro, cunhado por Lacan e retomado por
Lebrun, da mesma forma que nos permeia e nos atravessa na
vida real, também o faz no mundo virtual. Contudo, talvez
estejamos observando o enfraquecimento do grande Outro no
virtual, há um esquecimento da lei, do interdito; interdição que
nos impede o gozo do ódio. Enquanto o Outro (lei) permanece,
por mais que o odiemos, somos impedidos de gozar desse ódio.
Uma vez enfraquecido o Outro, o ódio torna-se presente e
recebe como destino aquilo que está mais próximo e
despersonificado, não obstante existirem avatares nas redes
sociais virtuais, que uma das funções é manter o vínculo
simbólico com o mundo concreto, o fato de eles não estarem
corporificados parece automaticamente fazer com que essas
pessoas virem alvos.

No coração do sujeito, em seu lugar


mais íntimo, encontram-se, portanto, as
palavras do Outro, que são
primeiramente, para ele, estrangeiras,
que vêm de outro lugar, mas no coração
desse coração, no meio do Outro, um
buraco, uma falta sobre a qual,
paradoxalmente, o sujeito deverá se
Refletindo a Psicanálise-2020 267

sustentar para declinar sua própria


singularidade (Lebrun, 2008, p. 28).

Ao odiar o Outro através da imagem do outro, então,


estou, na verdade, odiando o Outro em mim. A questão é que na
rede social parece termos encontrado uma das maneiras de
gozar desse ódio, enxergando nos demais sujeitos (avatares)
um objeto a partir do qual iremos gozar e a fala (palavras
fonadas) ao invés de mediar, atuar como uma espécie de pelego,
assume o caráter de arma e uma vez que não há existência
física imediata posso usá-la para ir às vias de fato, ao gozo.

O ódio, retomando Dias (2012, p. 34), é classificado como


uma paixão, e o faz pois assim será possível classificá-lo como
uma forma de gozo, isso porque: “tal como o gozo incestuoso, o
sujeito não quer saber de experimentar a divisão, ou seja,
significante que pela sua presença simbólica tem função de
barra-lo”.

Então, podemos pensar que o ódio enquanto paixão,


cega, impede a relação simbólica do sujeito barrado. Se cego,
sou incapaz de reconhecer o outro enquanto semelhante, logo,
posso tentar destrui-lo, ainda que de forma simbólica por meio
Refletindo a Psicanálise-2020 268

do virtual, por isso, agrido, no desejo (falho) de lograr sucesso,


gozando a cada investida repetida (Dias, 2012, p. 34).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As redes sociais virtuais têm possibilitado os sujeitos a


encurtarem as distâncias e tornarem próximo o distante, o seu
potencial benéfico não é passível de negação, entretanto, pelo
que pôde ser encontrado durante a realização desse trabalho, a
potência “criativa” das RSV é diretamente proporcional a sua
força destrutiva e o discurso de ódio é uma das ferramentas que
se têm à mão para pôr em movimento essa força de destruição.

O ódio é um afeto que precede o amor na dinâmica de


constituição do sujeito (Flanzer, 2006). Ele precede o amor, pois
está antes, até mesmo, do advir do sujeito (Dias, 2018). E a
literatura nos mostrou que, o ódio tem papel fundamental na
inscrição do sujeito na condição desejante (Dias, 2018; Flanzer,
2006), mas quando nos deixamos levar pelo ódio enquanto algo
do campo das paixões o resultado tende a ser desastroso (Dias
2018, Freud, 2019).

Fomos pautados de sobremaneira pela literatura


psicanalítica que possibilitou buscarmos através de conceitos
Refletindo a Psicanálise-2020 269

da pulsão invocante e da pulsão escópica respaldo para


compreender a questão da presença como inibidora do discurso
de ódio à medida que nos permite deixar ver como elementos
corpóreos, ou a própria corporeidade como um todo atuam
nessa presença, influenciando na forma como os sujeitos se
percebem nas RSV e como isso afetaria suas relações e modos
de agir.

Nesse percurso, vimos que tanto o olhar, quanto a voz,


objetos dessas pulsões, atuam como moduladores das
interações e, nas redes sociais, essa modulação encontra-se
por vezes ausentes, fazendo com os que os sujeitos atuem uns
contra outros sem considerar a diferença radical que existe
entre o eu e o outro.

Através do confronto da literatura pesquisada e dos


posts observados, foi nossa intenção problematizar como essas
interações têm se dado e, fazendo uma interpretação dos
discursos à luz da teoria, refletir que a não-presença tem
afetado fortemente as relações no ambiente virtual; posto de
outra forma, a presença, nos termos da elaboração feita por
Rinaldi (2017), com base em Lacan e Heidegger, é fundamental.
Refletindo a Psicanálise-2020 270

Para Rinaldi (2017), a presença difere da noção de


proximidade, pois a segunda carece do corpo, condição sine qua
non para caracterização da primeira, visto que é a presença que
irá moderar a dinâmica da proximidade e do afastamento,
possibilitando o que Lacan (apud RINALDI, 2017) chamou de
“distancia íntima”, dispositivo que rege o jogo entre o desejo e o
gozo que está no fundamento dos acordo sociais.

Atualmente, não é uma tarefa de grande dificuldade


encontrarmos postagens nas redes sociais que agridam
alguém, essas agressões têm acontecido de forma gratuita e,
em decorrência, comentários mais banais. Os posts,
observamos, indicam que sim, não estar presente modifica a
forma como interagimos e compreendemos o outro. Enquanto
que em uma conversa cara a cara podemos observar como o
nosso interlocutor reage, se ele gosta do que eu digo, se está
incomodado e a partir daí dar início a novos discursos a fim de
equilibrar os efeitos afetivos do que está sendo dito, nas RSV as
“falas” podem ser colocadas sem o menor critério ou
preocupação, e não haverá, quase sempre, um “feedback”, é
uma fala“ sem filtro”, que atravessa os limites dos acordos
realizados para garantir a manutenção da ordem humana, da
civilização.
Refletindo a Psicanálise-2020 271

As consequências dessa forma de se relacionar com o


outro são as mais diversas, mas em resumo, podemos dizer que
temos sujeitos cada vez mais adoecidos, em sofrimento,
desnorteados muitas vezes por serem vítimas de verdadeiros
linchamentos virtuais, apenas por terem se posicionado dessa
ou daquela maneira ou terem postado algo que incitou a massa.

Assim como a internet possibilitou que anônimos


tivessem a possibilidade de se tornarem visíveis ao mundo, ela
trouxe consigo também a possibilidade desses mesmos se
tornarem alvos e serem elevados à categoria de celebridades
rapidamente, com o ônus e o bônus que isso traz a reboque.

A internet não criou os idiotas, mas o


ataque anônimo nas redes, sem o custo
do ataque pessoal, deu ao ódio do
covarde uma energia muito grande. Deu-
lhe a proteção da distância física e do
anonimato (Karnal, 2017, 85).

Parafraseando Karnal diríamos: a internet não criou o


ódio, mas possibilitou a sua dispersão, fez com o que cidadãos
aparentemente pacatos, dessem vazão a afetos que antes
impedidos ou interditados, se, para Lacan, a palavra é que
permite a simbolização e a consequente não passagem ao ato,
nas RSV a palavra, carente do corpo, é o ato.
Refletindo a Psicanálise-2020 272

Vítimas ou agressores, são pessoas que sofrem e muitas


vezes a resposta que encontram é permanecer no ódio, se
inicialmente vítimas, defendem-se atacando outros e
reinvestindo nesse círculo; se o inverso, perdem ainda mais
qualquer capacidade crítica ou reflexiva e se mantém
espalhando o discurso de ódio.

Então, como lidar com um fenômeno de massa, que


atinge potencialmente a todos? Como a práxis psicológica
possibilita intervir nesse contexto, extremamente dinâmico,
produzindo alguma mudança?

Na nossa compreensão, é necessário, acima de tudo,


problematizar o mal-estar contemporâneo, rediscutir
continuamente a nossa forma de estar no mundo e como somos
afetados por nossos semelhantes. Entender que, apesar de as
RSV serem um fenômeno de ordem global, possuem caráter
poliédrico e na mesma medida em que são benéficas também
podem ser prejudiciais. Contudo, não tivemos a pretensão de
apresentar receitas para superar esse momento, mas sim
trazer à baila que pensar a respeito é imprescindível, refletir
sobre como estamos nos distanciando dos nossos semelhantes
e como isso pode estar aumentando de forma significativa a
ocorrência dos discursos de ódio.
Refletindo a Psicanálise-2020 273

A tecnologia é hoje algo indispensável à vida humana,


contudo, precisamos ter parcimônia ao utilizá-la. Se não é mais
possível nos distanciarmos dos smartphones, smartwatches,
wearables e outros gadgets, é importante ter em vista que o
encontro com o outro se dá na presença e não na proximidade.

Chegamos ao final com a percepção de que a questão do


discurso de ódio nas redes sociais virtuais é um fenômeno que
pela sua atualidade, impacto nas vidas dos sujeitos e
propagação carece de mais estudos que aprofundem a relação
entre o discurso de ódio, ausência da presença física e pulsões.
Sendo inclusive muito bem-vindos estudos em outros campos
do saber cujas descobertas venham contribuir para a
apreensão de outras dimensões implicadas nessa conjuntura.

Pensamos, todavia, que uma afirmativa é possível:


precisamos escutar o humano. Precisamos desviar o olhar das
telas e olhar para o outro, escutar o outro. Além disso, se faz
necessário continuar a “escutar” o fenômeno tecnológico
enquanto acontecimento social e subjetivo, novas investigações
sobre as implicações da presença física ou sobre a ausência
dela diante da virtualização do mundo concreto são
possibilidades de pesquisas a serem empreendidas em novos
trabalhos.
Refletindo a Psicanálise-2020 274

Este trabalho não visou um fechamento de questão, mas,


pelo contrário, abrir novas discussões acerca das relações
humanas em um mundo cada vez mais impregnado pelas novas
tecnologias.

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“Os capítulos aqui publicados são de inteira responsabilidade


de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem,
necessariamente, o ponto de vista da SPRPE/FEBRAPSI/IPA,
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