O Emparedado

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O EMPAREDADO - Cruz e Souza ln: Obras. Sã o Paulo, Ediçõ es Cultura, 1943.

"( .... ) Eu nã o pertenço à velha á rvore genealó gica das intelectualidades medidas, dos produtos
anêmicos dos meios lutulentos, espécies exó ticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas de
algum maravilhoso e babilô nico jardim de lendas... Num impulso sonâ mbulo para fora do círculo
sistemá tico das Fó rmulas preestabelecidas, deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos
intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via Lá ctea...
E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos
torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na contemplatividade mental de
certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo da Imaginaçã o ou do fundo
mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite - talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e
das harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:
"Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em Abstraçõ es, em Formas, em
Espiritualidade, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses
dos arianos, depurado por todas as civilizaçõ es, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu
ser num verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos - direito, perfeito, das perfeiçõ es oficiais dos
meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei! Em galeras, dentre opulências, ou
tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a
iriada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormecido
e sonhado, sob o ritmo claro dos Astros, junto à s priscas margens venerandas do Mar Vermelho!
Artista! Pode lá isso ser se tu és d'Á frica, tó rrida e bá rbara, devorada insaciavelmente pelo
deserto, tumultuada de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizaçõ es despó ticas,
torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angú stia! A Á frica arrebatada nos ciclones
torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no
caos feroz, hó rrido, das profundas selvas brutas, a sua formidá vel dilaceraçã o humana! A Á frica
laocoô ntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como
a alma espiritualizada e tantá lica da Rú ssia, gerada no Degredo e na Neve - pó lo branco e pó lo negro de
Deus!
- Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua regiã o desolada, lá do
fundo exó tico dessa Á frica sugestiva, gemente, Criaçã o dolorosa e sanguinolenta de Satã s rebelados,
dessa flagelada Á frica grotesca e triste, melancó lica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente
fulminada pelo banzo mortal; dessa Á frica dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo
do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldiçõ es eternas!
A Africa virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e
secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos
tremendos de algum e novo majestoso Dante negro! Dessa Á frica que parece gerada para os divinos
cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as largas e fantá sticas Inspiraçõ es convulsas de
Doré - inspiraçõ es inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas,bebidas nos Infernos e nos Céus
profundos do Sentimento humano. Dessa Á frica cheia de solidõ es maravilhosas, de virgindades
animais instintivas, de curiosos fenô menos de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero,
gigantescamente medonha, absurdamente ululante - pesadelo de sombras macabras - visã o
valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra e formando, com as
seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra, de lá grimas e sangue,
toda em torno da Terra...
Nã o! Nã o! Nã o! Nã o transporá s os pó rticos milená rios da vasta edificaçã o do mundo, porque
atrá s de ti e adiante de ti nã o sei quantas geraçõ es foram acumulando, pedra sobre pedra, pedra sobre
pedra, que para aí está s agora o verdadeiro emparedado de uma raça. Se caminhares para a direita
baterá s e esbarrará s, ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurá vel de Egoísmos e
Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a
primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede,
feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares,
enfim, para trá s, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo ~ horrível - parede
de Imbecilidade e Ignorâ ncia, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...
E, mais pedras, mais pedras se sobreporã o à s pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras...
Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizaçõ es e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as
estranhas paredes hã o de subir longas, negras, terríficas! Hã o de subir, subir, subir, mudas, silenciosas,
até as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu
Sonho..."

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