Almada Cena Do Odio

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ALMADA NEGREIROS -CENA DO DIO 1915 POETA SENSACIONISTA E NARCISO DO EGYPTO

Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis, Divinizo-Me Meretriz, ex-lbris do Pecado, e odeio tudo o que no Me por Me rirem o Eu! Satanizo-Me Tara na Vara de Moiss! O castigo das serpentes -Me riso nos dentes, Inferno a arder o Meu Cantar! Sou Vermlho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes dos cosscos! Sou Pan-Demnio-Trifauce enfermio de Gula! Sou Gnio de Zaratrusta em Taas de Mar-Alta! Sou Raiva de Medusa e Danao do Sol! Ladram-Me a Vida por viv-La e s Me deram Uma! Ho-de lati-La por sina! Agora quero viv-La! Hei-de Poeta cant-La em Gala sonora e dina Hei-de Glria desanuvi-La! Hei-de Guindaste i-La Esfinge da Vala pedestre onde Me querem rir! Hei-de trovo-clarim lev-La Luz s Almas-Noites do Jardim das Lgrimas! Hei-de bombo ruf-La pompa de Pompeia nos Funerais de Mim! Hei-de Alfange-Mahoma cantar Sodoma na Voz de Nero! Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre, hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido... Hei-d' tila, hei-de Nero, hei-de Eu, cantar Atila, cantar Nero, cantar Eu! Sou Narciso do Meu dio! O Meu dio Lanterna de Digenes, cegueira de Digenes, cegueira da Lanterna! (O Meu dio tem tronos d' Herodes, histerismos de Clepatra, perverses de Catarina!) O Meu dio Dilvio Universal sem Arcas de No, s Dilvio Universal! e mais Universal ainda: Sempre a crescer, sempre a subir... at apagar o Sol! Sou trono de Abandono, mal-fadado, nas iras dos Brbaros meus Avs. Oio ainda da Berlinda d'Eu ser sina gemidos vencidos de fracos, rudos famintos de saque, ais distantes de Maldio eterna em Voz antiga! Sou runas rasas, inocentes como as asas de rapinas afogadas. Sou relquias de mrtires impotentes sequestradas em antros do Vcio. Sou clausura de Santa professa, Me exilada do Mal, Hstia d'Angstia no Claustro, freira demente e donzela, virtude sozinha da cela em penitncia do sexo!

Sou rasto espezinhado d'Invasores que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o. Sou a Raiva atvica dos Tvoras, o sangue bastardo de Nero, o dio do ltimo instante do Condenado inocente! A podenga do Limbo mordeu raivosa as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo... Ah! que eu sinto, claramente, que nasci de uma praga de cimes! Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Brgias a penar! Tu, que te dizes Homem! Tu, que te alfaiatas em modas e fazes cartazes dos fatos que vestes p'ra que se no vejam as ndoas de baixo! Tu, qu'inventaste as Cincias e as Filosofias, as Polticas, as Artes e as Leis, e outros quebra-cabeas de sala e outros dramas de grande espectculo Tu, que aperfeioas sabiamente a arte de matar. Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperana e o Caminho Martimo da ndia e as duas Grandes Amricas, e que levaste a chatice a estas Terras e que trouxeste de l mais gente p'raqui e qu'inda por cima cantaste estes Feitos... Tu, qu'inventaste a chatice e o balo, e que farto de te chateares no cho te foste chatear no ar, e qu'inda foste inventar submarinos p'ra te chateares tambm por debaixo d'gua, Tu, que tens a mania das Invenes e das Descobertas e que nunca descobriste que eras bruto, e que nunca inventaste a maneira de o no seres Tu consegues ser cada vez mais besta e a este progresso chamas Civilizao! Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos, vai inchando a tua ambio-toiro 't que a barriga te rebente r. Serei Vitria um dia -Hegemonia de Mim! e tu nem derrota, nem morto, nem nada. O Sculo-dos-Sculos vir um dia e a burguesia ser escravatura se for capaz de sair de Cavalgadura! Hei-de, entretanto, gastar a garganta a insultar-te, besta! Hei-de morder-te a ponta do rabo e por-te as mos no cho, no seu lugar! Ahi! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos! Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade! Ahi! Espelho-aleijo do Sentimento, macaco-intruja do Alma-realejo! Ahi! macrelle da Ignorncia! Silenceur do Gnio-Tempestade! Spleen da Indigesto! Ahi! meia-tigela, travo das Ascenses! Ahi! povo judeu dos Cristos mais que Cristo! burguesia! ideal com i pequeno ideal ricc dos Mendes e Possidonios

cofre d'indigentes Cuja personalidade a moral de todos! geral da mediocridade! claque ignbil do Vulgar, protagonista do normal! Catitismo das lindezas d'estalo! Ahi! lucro do fcil, cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos! Ai! dique-impecilho do Canal da Luz! coito d'impotentes a corar ao sol no riacho da Estupidez! Ahi! Zero-barmetro da Convico! bitola dos chega, dos basta, dos no quero mais! Ahi! Plebesmo Aristocratizado no preo do panam! erudio de cala de xadrez! competncia de relgio d'oiro e correntes com suores do Brasil, e berloques de cornos de bfalo! E eu vivo aqui desterrado e Job da Vida-gmea d'Eu ser feliz! E eu vivo aqui sepultado vivo na Verdade de nunca ser Eu! Sou apenas o Mendigo de Mim-Prprio, rfo da Virgem do meu sentir. E como queres que eu faa fortuna se Deus, por escrnio, me deu Inteligncia, e no tenho sequer, irms bonitas nem uma me que se venda para mim? (Pesam quilos no Meu querer as salas de espera de Mim. Tu chegas sempre primeiro... Eu volto sempre amanh... Agora vou esperar que morras. Mas tu s tantos que no morres... Vou deixar d'esp'rar que morras - Vou deixar d'esp'rar por mim!) Ah! que eu sinto, claramente, que nasci de uma praga de cimes! Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a alma dos Brgias a penar! E tu, tambm, vieille-roche, castelo medieval fechado por dentro das tuas runas! Fiel epitfio das crnicas aduladoras! E tu tambm sangue azul antigo que j nasceste co'a biografia feita! pajem loiro das cortesias-avozinhas! pergaminho amarelo-mmia das grandes galas brancas das paradas e das Vitrias dos torneios-lotarias com donzelasglrias! g resto de cetros, fumo de cinzas! lavas frias do Vulco pirotcnico com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas! estilhacos herldicos de Vitrais despegados lentamente sobre o tanque do silncio!
Cedro secular debruado no muro da Quinta sobre a estrada

E vs, Gnios da Expresso, e vs tambm, Gnios sem Voz! alm-infinito sem regressos, sem nostalgias, Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de VsMesmos! Profetas clandestinos do Naufrgio de Vossos Destinos! E vs tambm, tericos-irmos-gmeos do meu sentir internacional! escravos da Independncia! Vs que no tendes prmios por se ter passado a vez de os ganhardes, e famintos e covardes entreteis a fome em revoltas do Mau-Gnio no bomia da bomba e da plvora! E tu tambm, Beleza Canalha Co'a sensibilidade manchada de vinho! lrio bravo da Floresta-Ardida meia-porta da tua Misria! Fado da M-Sina com ilustraes a giz e letra da Maldio! fera vadia das vielas aaimada na Lei! xale e leno a resguardar a tsica! franzinas do fanico co'a sfilis ao colo por essas esquinas! nu d'aluguer na meia-luz dos cortinados corridos! oratrio da meretriz a mendigar gorjetas p'r sua Senhora da Boa-Sorte! gentes tatuadas do calo! carro vendado da Penitenciria! E tu tambm, Humilde, Simples! enjaulados na vossa ignorncia! p descalo a calejar o crebro! msculos da sade de ter fechada a casa de pensar! alguidar de aorda fria na ceia-fadiga da dor-candeia! esteiras duras pra dormir e fazer filhos! carretas da Voz do Operrio com gente de preto a p e filarmnica atrs! campas rasas, engrinaldadas, com chapes de ferro e bales de vidro! bota rota de mendigo abandonada no p do caminho! metamorfose-selvagem das feras da cidade! gerao de bons ladres crucificados na Estupidez! sanfona-saloia do fandango dos campinos! pampilho das Lezrias inundadas de Cidade! trouxa d'aba larga da minha lavadeira, rodopio azul da saia azul de Loures! E vs varinas que sabeis a sal as Naus da Fencia ainda no voltaram?! E vs tambm, moas da Provncia que trazeis o verde dos campos no vermelho das faces pintadas! E tu tambm, mau gosto co'a saia de baixo a ver-se

a estorvar o caminho da Mala-posta! E vs tambm, Gentes de Pensamento, Personalidades, Homens! Artistas de todas as partes, cristos sem ptria, Cristos vencidos por serem s Um!

e a falta d'educao! oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos) a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita! tdio do domingo com botas novas e msica n'Avenida! santa Virgindade a garantir a falta de lindeza! bilhete postal ilustrado com aparies de beijos ao lado! E vs gentes que tendes patres, autmatos do dono a funcionar barato! criadas novas chegadas de fora p'ra todo o servio! costureiras mirradas, emaranhadas na vossa dor! reles caixeiros, pederastas do balco, a quem o patro exige modos lisonjeiros e maneiras agradveis prs fregueses! Arsenal fadista de ganga azul e coco socialista! sadas pr-do-sol das Fbricas d'Agonia! E vs tambm, toda a gente, que todos tendes patres! E vs tambm, nojentos da Poltica que explorais eleitos o Patriotismo! Macrots da Ptria que vos pariu ingnuos e vos amortalha infames! E vs tambm, pindricos jornalistas que fazeis ccegas e outras coisas opinio pblica! E tu tambm roberto fardado: Futrica-te espantalho engalonado, apoia-te das patas de barro, Larga a espada de matar e pe o penacho no rabo! Ralha-te mercenrio, asceta da Crueldade! Espuma-te no chumbo da tua Valentia! Agoniza-te Rilhafoles armado! Desuniversidadiza-te da doutorana da chacina, da ciencia da matana! Groom fardado da Negra, pria da Velha! Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera! Despe-te da farda, desenfia-te da Impostura, e pe-te nu, ao lu que ficas desempregado! Acouraa-te de senso, vomita de vez o morticnio, enche o pote de raciocnio, aprende a ler coraes, que h muito mais que fazer do que fazer revolues! Runa com tuas prprias peas-colossos as tuas prprias peas colossais, que de 42 a 1 meio-caminho andado! Rebusca no seres selvagem no teu cofre do extermnio o teu calibre mximo! Pe de parte a guilhotina, d frias ao garrote! No ds lngua aos teus canhes, nem ecos s pistolas,

nem vozes s espingardas! So coisas fora de moda! Pe-te a fazer uma bomba que seja uma bomba tamanha que tenha dez raios da Terra. Pe-lhe dentro a Europa inteira, os dois plos e as Amricas, a Palestina, a Grcia, o mapa e, por favor, Portugal! Acaba de vez com este planeta, faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim! (H tanta coisa que fazer, Meu Deus! e esta gente distrada em guerras!) Eu creio na transmigrao das almas por isto de Eu viver aqui em Portugal. Mas eu no me lembro o mal que fiz durante o Meu avatar de burgus. Oh! Se eu soubesse que o Inferno no era como os padres mo diziam: uma fornalha de nunca se morrer... mas sim um Jardim da Europa beira-mar plantado... Eu teria tido certamente mais juzo, teria sido at o mrtir So Sebastio! E inda h quem faa propaganda disto: a ptria onde Cames morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Cames! Se ao menos isto tudo se passasse numa Terra de mulheres bonitas! Mas as mulheres portuguesas so a minha impotncia! E tu, meu rotundo e panudo-sanguessugo, meu desacreditado burgus apinocado da rua dos bacalhoeiros do meu dio co'a Felicidade em casa a servir aos dias! Tu tens em teu favor a glria fcil igual de outros tantos teus pedaos que andam desajuntados neste Mundo, desde a inveno do mau cheiro, a estorvar o asseio geral. Quanto mais penso em ti, mais tenho F e creio que Deus perdeu de vista o Ado de barro e com pena fez outro de bosta de boi por lhe faltar o barro e a inspirao! E enquanto este Ado dormia os ratos roeram-lhe os miolos, e das caganitas nasceu a Eva burguesa! Tu arreganhas os dentes quando te falam d'Orpheu e pes-te a rir, como os pretos, sem saber porqu. E chamas-me doido a Mim que sei e sinto o que Eu escrevi! Tu que dizes que no percebes; rir-te-has de no perceberes? Olha Hugo! Olha Zola, Cervantes e Cames, e outros que no so nada por te cantarem a ti! Olha Nietzche! Wilde! Olha Rimbaub e Dowson! Cesrio, Antero e outros tantos mundos! Beethoven, Wagner e outros tantos gnios que no fizeram nada,

que deixaram este mundo tal qual! Olha os grandes o que so estragados por ti! O teu mximo ser besta e ter bigodes. A questo estar instalado. Se te livras de burgus e sobes a talento, a gnio, a seres algum, o Bem que tu fizeres um dcimo de seres fera! E de que serve o livro e a cincia se a experincia da vida que faz compreender a cincia e o livro? Antes no ter cincias! Antes no ter livros! Antes no ter Vida! Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes, quando te vejo apalermado p'las esquinas a dizeres piadas s meninas, e a gostares das mulheres que no prestam e a fazer-lhes a corte e a apalpar-lhes o rabo, esse to cantado belo cu que creio ser melhor o teu ideal que a prpria mulher do cu grande! E casaste-te com Ela, porque o teu ideal veio pegado a Ela, e agora brocha limpas a calva em pinga coca de cunhas p'r Cunha examinador do teu dcimo nono filho dezanove vezes parvo! ( o caso mais exemplar de Constncia e fidelidade a tua histria sexual co'a Felisberta, desde o teu primognito tanso 't ao dcimo nono idiota.) 'T no matrimnio te maldigo, infame cobridor! Espcie de verme das lamas dos pntanos que de tanto se encharcar em gozos o seu corpo se atrofiou e o sexo elefantizado foi todo o seu corpo! Em toda a parte tu s o admirador e em toda a parte a tua ignorncia tem a cumplicidade da incompetncia dos que te falam 't dos lugares sagrados. Sim! Eu sei que tu s juiz e qu'inda ontem prometeste a tua amante, despedindo-a num beijo de impotente, a condenao dos rus que tivesses se Ela faltasse matine da Boa-Hora! Pulha! E s tu que do plpito d'essa barriga d'gua da Curia ds a ensinana de trote aos teus dezanove filhos?! Cocheiros, contai: dezanove!!! Zute! bruto-parvo-nada que Me roubaste tudo: 't Me roubaste a Vida e no Me deixaste nada! nem Me deixaste a Morte! Zute! poeira-pingo-micrbio que gemes pequenssimos gemidos gigantes grvido de uma dor profeta colossal. Zute! elefante-berloque parasita do no presta!

Zute! bugiganga-celulide-bagatela! Zute, besta! Zute, bcoro!! Zute, merda!!! Em toda a parte o teu papel admirar, mas (caso inf'liz) nunca acertas numa admirao feliz. Ls os jornais e admiras tudo do princpio ao fim e se por desgraa vem um dia sem jornais, tens de ficar em casa nos chinelos porque nesse dia, felizmente, no tens opinio pra levares rua. Mas nos outros dias l ests a discutir. que a Natureza compensadora: quem no tem dinheiro p'ra ir ao Coliseu deve ter c fora razes p'ra se rir. S te oio dizer dos outros a inveja de seres como eles. Nem ao menos, pobre fadista, a veleidade de seres mais bruto? At os teus desejos so avaros como as tuas unhas sujas e ratadas. meu gordo pelintro, gua-morna suja, broa do outro v'rao! Os homens so na proporo dos seus desejos e por isso que eu tenho a Concepo do Infinito... No te cora ser grande o teu av e tu apenas o seu neto, e tu apenas o seu esperma? No te di Ado mais que tu? No te envergonha o teres antes de ti outros muito maiores que tu? Jamais eu quereria vir a ser um dia o que o maior de todos j o tivesse sido eu quero sempre muito mais e mais ainda muito pr'alm-demais-Infinito... Tu no sabes, meu bruto, que ns vivemos to pouco que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo? Em toda a parte o bicho se propaga, em toda a parte o nada tem estalagem. O meu suplcio no somente de seres meu patrcio ou o de ver-te meu semelhante, tu, mesmo estrangeiro, s besta bastante. Foi assim que te encontrei na Rssia como vegetas aqui e por toda a parte, e em todos os ofcios e em todas as idades. L suportei-te muito! L falavas russo e eu s sabia o francs. Mas na Frana, em Paris - a grande capital, apesar de fortificada, foi assolada por esta espcie animal. E andam p'los cafs como as pessoas e vestem-se na moda como elas, e de tal maneira domsticos que at vo s mulheres e at vo aos domsticos. Felizmente que na minha ptria, a minha verdadeira me, a minha santa Irlanda, apenas vivi uns anos d'Infncia, apenas me acodem longinquamente as festas ensuoradas do priest da minha aldeia,

apenas ressuscitam sumidamente as asfixias da tsica-mater, apenas soam como revoltas as pistolas do suicdio de meu pai, apenas sinto infantilmente no leito de uma morta o gelo de umas unhas verdes, um frio que no do Norte, um beijo grande como a vida de um tsico a morrer. Deus! Tu que m'os levaste que sabias o dio que eu lhes teria se no tivessem ficado por ali! Mas antes, mil vezes antes, aturar os burgueses da My Ireland que estes desta Terra que parece a ptria deles! Horror! Os burgueses de Portugal tm de pior que os outros o serem portugueses! A Terra vive desde que um dia deixou de ser bola do ar p'ra ser solar de burgueses. Houve homens de talento, gnios e imperadores. Precisaram-se de ditadores, que foram sempre os maiores. Cansou-se o mundo a estudar e os sbios morreram velhos fartos de procurar remdios, e nunca acharam o remdio de parar. E inda eu hoje vivo no sculo XX a ver desfilar burgueses trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano, e a saber que um dia so vinte e quatro horas de chatice e cada hora sessenta minutos de tdio e cada minuto sessenta segundos de spleen! Ora bolas para os sbios e pensadores! Ora bolas para todas as pocas e todas as idades! Bolas prs homens de todos os tempos, e pr intrujice da Civilizao e da Cultura! Eu invejo-te a ti, coisa que no tens olhos de ver! Eu queria como tu sentir a beleza de um almoo pontual e a f'licidade de um jantar cedinho co'as bestas da famlia. Eu queria gostar das revistas e das coisas que no prestam p porque so muitas mais que as boas e enche-se o tempo mais! Eu queria, como tu, sentir o bem-estar que te d a bestialidade! Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher, e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente! Eu queria, como tu, no saber que os outros no valem nada p'ra os poder admirar como tu! Eu queria que a vida fosse to divinal como tu a supes, como tu a vives! Eu invejo-te, pedao de cortia a boiar tona d'gua, merc dos ventos,

sem nunca saber que fundo que o Mar! Olha para ti! Se te no vs, concentra-te, procura-te! Encontrars primeiro o alfinete que espetaste na dobra do casaco, e depois no percas o stio, porque ests decerto ao p do alfinete. Espeta-te nele para no te perderes de novo, e agora observa-te! No te escarneas! Acomoda-te em sentido! No te odeies ainda qu'inda agora comeaste! Enioa-te no teu nojo, mastodonte! Indigesta-te na palha dessa tua civilizao! Desbesunta te dessa vermncia! Destapa a tua decncia, o teu imoral pudor! Albarda te em senso! Estriba-te em Ser! Limpa-te do cancro amarelo e podre! Do lazareto de seres burro! Desatrela-te do crebro-carroa! Desata o n-cego da vista! Desilustra-te, descultiva-te, despole-te, que mais vale ser animal que besta! Deixa antes crescer os cornos que outros adornos da Civilizao! Queria-te antes antropfago porque comias os teus talvez o mundo fosse Mundo e no a retrete que ! Ahi! excremento do Mal, avergonha-te no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio: Ele fala como tu e diz coisas que tu dizes e se no sabe mais por tua culpa, meu mandrio! E tu, se no fossem os teus pais, davas guinchos, meu saguim! - Tu s o papagaio de teus pais! Mas h mais, muito mais que a tua ignorncia-miopia te cega. Empresto-te a minha Inteligncia. V agora e no desmaies ainda! Ento eu no tinha razo? P'ra que me chamavas doido quando eu m'enjoava de ti? Ah! J tens medo?! Porque te rias da vida e ias ensuorar as vrilhas nos fauteuils das revistas co'as pernas fogo de vistas das coristas de petrleo? Porque davas palmas aos compres e actorecos pelintras e fantoches antes do palco, no palco e depois do palco? Ora dize-Me com franqueza: Era por eles terem piada? Ento era por a no terem Ah! Era p'ra tu teres piada, meu bruto?! Porque mandaste de castigo os teus filhos p'r's Belas-Artes quando ficaram mal na instruo primria? Porque que dizes a toda a gente que o teu filho idiota estuda p'ra poeta? Porque te casaste com a tua mulher se dormes mais vezes co'a tua criada?

Porque bateste no teu filho quando a mestra te contou as indecncias na aula? No te lembras das que tu fizeste com a prpria mestra de moral? Ou queres tu ser decente, tu, que tens dezanove filhos?! Porque choraste tanto quando te desonraram a filha? Porque lhe quiseste matar o amante? No achas isto natural? No achas isto interessante? Porque no choraste tambm pelo amante?... Deixa! Deixa! Eu no te quero morto com medo de tiprprio! p Eu quero-te vivo, muito vivo, a sofrer! No te despetes do alfinete! Eu abro a janela pra no cheirar mal! Galopa a tua bestialidade na memria que eu fao dos teus coices, cavalga o teu insecticismo na tua sela de D. Duarte! Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peo-te de joelhos. Encabresta-te de Humanidade e eu passo-te uma zoologia para as mos p'ra te inscreveres na diviso dos Mamferos. Mas anda primeiro ao Jardim Zoolgico! Vem ver os chimpanzs! Acorpanzila-te neles se te ousas! Sagra-te de cu-azul a ver se eles te querem! L porque aprendeste a andar de mos no ar no quer dizer que sejas mais chimpanz que eles! Larga a cidade masturbadora, febril, rabo decepado de lagartixa, labirinto cego de toupeiras, raa de ignbeis mopes, tsicos, tarados, anmicos, cancerosos e arseniados! Larga a cidade! Larga a infmia das ruas e dos boulevards esse vaivm cnico de bandidos mudos esse mexer esponjoso de carne viva Esse ser-lesma nojento e macabro Esse S ziguezague de chicote auto-fustigante Esse ar expirado e espiritista... Esse Inferno de Dante por cantar Esse rudo de sol prostitudo, impotente e velho Esse silncio pneumnico de lua enxovalhada sem vir a lavadeira! Larga a cidade e foge! Larga a cidade! Vence as lutas da famlia na vitria de a deixar. Larga a casa, foge dela, larga tudo! Nem te prendas com lgrimas, que lgrimas so cadeias! Larga a casa e vers - vai-se-te o Pesadelo! A famlia lastro, deita-a fora e vais ao cu! Mas larga tudo primeiro, ouviste? Larga tudo! Os outros, os sentimentos, os instintos, e larga-te a ti tambm, a ti principalmente! Larga tudo e vai para o campo e larga o campo tambm, larga tudo! Pe-te a nascer outra vez!

No queiras ter pai nem me, no queiras ter outros nem Inteligncia! A Inteligncia o meu cancro eu sinto-A na cabea com falta de ar! A Inteligncia a febre da Humanidade e ningum a sabe regular! E j h Inteligncia a mais pode parar por aqui! Depois pe-te a viver sem cabea, v s o que os olhos virem, cheira os cheiros da Terra come o que a Terra der, bebe dos rios e dos mares, - pe-te na Natureza! Ouve a Terra, escuta-A. A Natureza vontade s sabe rir e cantar! Depois, pe-te a coca dos que nascem e no os deixes nascer. Vai depois pla noite nas sombras e rouba a toda a gente a Inteligncia e raspa-lhos a cabea por dentro co'as tuas unhas e cacos de garrafa, bem raspado, sem deixar nada, e vai depois depressa muito depressa sem que o sol te veja deitar tudo no mar onde haja tubares! Larga tudo e a ti tambm! Mas tu nem vives nem deixas viver os mais, Crpula do Egosmo, cartola d'espanta-pardais! Mas hs-de pagar-Me a febre-rodopio novelo emaranhado da minha dor! Mas hs-de pagar-Me a febre-calafrio abismo-descida de Eu no querer descer! Hs-de pagar-Me o Absinto e a Morfina Hei-de ser cigana da tua sina Hei-de ser a bruxa do teu remorso Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha em guas fortes de Goya e no cavalo de Tria e nos poemas de Poe! Hei-de feiticeira a galope na vassoura largar-te os meus lagartos e a Peonha! Hei-de Vara Magica encantar-te Arte de Ganir Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra! Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco e depois na carne-viva deitar fel, e depois na carne-viva semear vidros, semear gumes, lumes, e tiros. Hei-de gozar em ti as poses diablicas dos teatrais venenos trgicos do persa Zoroastro! Hei-de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques, e desfraldar-te nas canelas mirradas o negro pendo dos piratas! Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos! Hei-de bia do Destino ser em brasa e tua nufrago das gals sem horizontes verdes! E mais do que isto ainda, muito mais: Hei-de ser a mulher que tu gostes, hei-de ser Ela sem te dar ateno!

Ah! que eu sinto claramente que nasci de uma praga de cimes. Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Brgias a penar!... de Jos Almada Negreiros poeta sensacionista e Narciso do Egipto. Publicado in Contempornea n 7

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