2021 - Corpo e Afeto (Livro)

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Wesley Henrique Alves da Rocha

Erika Aparecida de Oliveira


organizadores

Corpo e afeto
população negra em pauta

CORPO E AFETO
população negra em pauta
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

R119 Corpo e afeto: população negra em pauta [recurso eletrônico] /


1.ed. organização Wesley Henrique Alves da Rocha / Érika Aparecida de
Oliveira – 1.ed. – Curitiba, PR: Editora Bagai, 2021. 72p.
E-book

ISBN: 978-65-81368-71-5

1. Corpo. 2. Afeto. 3. Negritude. 4. Racismo. 5. Antirracismo.
I. Rocha, Wesley Henrique Alves da. II. Oliveira, Érika Aparecida de.

02-2021/29 CDD 305.896081


Índice para catálogo sistemático:
1. Brasil: Racismo: Sociologia 305.896081

https://doi.org/10.37008/978-65-81368-71-5.23.10.21
R

ISBN 978-65-81368-71-5

9 786581 368715 >

Este livro foi composto pela Editora Bagai.

www.editorabagai.com.br /editorabagai
/editorabagai [email protected]
Wesley Henrique Alves da Rocha
Érika Aparecida de Oliveira
organizadores

CORPO E AFETO
população negra em pauta
1.ª Edição - Copyright© 2021 dos autores
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Dr. Tomás Raúl Gómez Hernández – UCLV e CUM - CUBA
Dr. Willian Douglas Guilherme – UFT
Dr. Yoisell López Bestard- SEDUCRS
APRESENTAÇÃO

A construção do conhecimento pautou-se, por séculos, numa refe-


rencialidade eurocêntrica, branca, heteronormativa e colonial. Os estudos
decoloniais e a necessidade de uma descolonização do conhecimento
têm se mostrado cada vez mais necessários e urgentes. As tentativas de
silenciamento das pessoas negras evidenciam que as engrenagens do
racismo estrutural continuam empenhando-se em exterminar/apagar/
deslegitimar esses corpos. Assim, reunimos neste livro estudos que
abordam questões intrínsecas à população negra, tendo o corpo e o afeto
como eixos norteadores.
O estudo que abre este ciclo de reflexões é intitulado de Alienação e
separação: por uma leitura sobre os atravessamentos do racismo na constituição
subjetiva, de autoria de Flavia Gaze Bonfim. A pesquisadora, partindo
das noções lacanianas de alienação e separação, discute as especificida-
des que atravessam a constituição subjetiva da pessoa negra, tendo em
vista, que a marca do racismo ainda se coloca de forma tão presente e
cotidiana no Brasil.
Conseguinte, Núbia Kalumbí Jesus Oliveira e Michel Silva
Guimarães, em Tronco em pé, folhas no chão, frutos ao vento: Antígona,
Antônia e antirracismo em cena, nos apresentam uma análise da monta-
gem cênica do texto dramatúrgico Antônia (2015), de autoria de Daniel
Arcades, tendo como pontos de partida teóricos da negritude e do teatro.
O próximo capítulo, de autoria de Juliana Pereira Rodrigues
Nunes, Josimar Nunes Pereira de Freitas e Mariana Bonomo, intitula-se
Identidade etnicorracial entre crianças negras no contexto de comparação social.
Neste trabalho, as autoras apresentam uma reflexão sobre a identificação
psicossocial entre crianças negras e grupos brancos, pardos e pretos com
o intuito de compreender o impacto de práticas raciais discriminatórias
no desenvolvimento de uma identidade etnicorracial.
No capítulo seguinte, a pesquisadora Isabella Lameira Martins,
em Feminino negro na literatura brasileira: o imaginário social e a iden-
tidade cultural validadas do realismo à contemporaneidade nos apresenta
uma análise e discussão sobre o processo de constituição do “Feminino
Negro” validados socialmente e culturalmente pela literatura brasileira,
especificamente no marco temporal referenciado pelo período do Realismo
até a Contemporaneidade.
Douglas Santos Gois e Ana Luisa Alves Cordeiro, em Afetos e (re)
existências de corporeidades negras no ambiente educacional, apresentam as
reverberações do racismo na corporeidade negra a partir das experiências
no ambiente educacional.

Desejamos a todos e todas uma ótima leitura.

Wesley Henrique Alves da Rocha


Erika Aparecida de Oliveira
(Organizadores)
SUMÁRIO

ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO: POR UMA LEITURA


SOBRE OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO
NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA ..........................................8
Flavia Gaze Bonfim

TRONCO EM PÉ, FOLHAS NO CHÃO, FRUTOS


AO VENTO: ANTÍGONA, ANTÔNIA E
ANTIRRACISMO EM CENA....................................................20
Núbia Kalumbí Jesus Oliveira
Michel Silva Guimarães

IDENTIDADE ETNICORRACIAL ENTRE


CRIANÇAS NEGRAS NO CONTEXTO DE
COMPARAÇÃO SOCIAL ...........................................................34
Juliana Pereira Rodrigues Nunes
Josimar Nunes Pereira de Freitas
Mariana Bonomo

FEMININO NEGRO NA LITERATURA


BRASILEIRA: O IMAGINÁRIO SOCIAL E A
IDENTIDADE CULTURAL VALIDADAS DO
REALISMO À CONTEMPORANEIDADE......................47
Isabella Lameira Martins

AFETOS E (RE)EXISTÊNCIAS DE
CORPOREIDADES NEGRAS NO AMBIENTE
EDUCACIONAL................................................................................58
Douglas Santos Gois
Ana Luisa Alves Cordeiro

SOBRE OS ORGANIZADORES.............................................70

ÍNDICE REMISSIVO.....................................................................71
ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO: POR UMA
LEITURA SOBRE OS ATRAVESSAMENTOS
DO RACISMO NA CONSTITUIÇÃO
SUBJETIVA

Flavia Gaze Bonfim1

Através das noções de “alienação” e “separação”, o psicanalista


Jacques Lacan fundamenta a constituição subjetiva por meio do discurso
do Outro. Mas de qual “Outro” estamos falando? Sendo altamente cri-
teriosa com a noção de Outro proposta no ensino lacaniano, sabemos
que ela não se restringe ao desejo materno e a lei paterna, mas também
comporta o tesouro dos significantes que advém da linguagem, da
cultura e da civilização. Aqui, se coloca, portanto, um impasse que
os psicanalistas brasileiros precisam atravessar: nossa cultura não é a
francesa, nem europeia, a qual Lacan tomou para articular seu ensino.
Isso, contudo, não implica em recusar que a psicanálise nos ofereça um
importante arcabouço teórico para pensar a constituição do sujeito,
seu desejo e seus modos de sofrimento. Mas para continuarmos nos
servindo de sua radicalidade e de seu rigor, será preciso um trabalho
urgente e fundamental de pensar as contribuições da psicanálise à luz
das particularidades sociais, culturais, econômicas e políticas do Brasil.
É digno de nota que importantes psicanalistas negras brasileiras
iniciaram essa trilha, contribuindo para o avanço da práxis psicanalítica,
entre as quais, posso citar: Neusa Santos Souza, Isildinha Nogueira e
Lélia Gonzalez. Contudo, essa trilha ainda continua sem ser percorrida
pela maioria dos analistas brancos brasileiros. Ao me incluir entre estes,
não é demais afirmar que estamos atrasados nessa discussão e temos uma
responsabilidade ética de nos aproximarmos destas leituras e de tantas
outras que nos ajudem a pensar o racismo denegado no Brasil, visto que sem
um aprofundamento nesta questão não estaremos à altura de uma clínica
realizada em solo brasileiro. Uma clínica capaz de realmente oferecer uma
1 
Doutora em Psicologia (UFF). Psicanalista. CV: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576

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Corpo e Afeto

“escuta” para os sujeitos que nos procuram, especialmente para aqueles que
vem sendo historicamente silenciados, como é o caso das pessoas negras.
Posto isso, a proposta deste trabalho é discutir as especificidades
que atravessam a constituição subjetiva da pessoa negra, tendo em vista,
que a marca do racismo ainda se coloca de forma tão presente e cotidiana
no Brasil. Sendo assim, partirei das noções de alienação e separação no
ensino lacaniano, para em seguida pensar o racismo como uma marca
cultural no Brasil e suas possíveis consequências sobre os negros.

ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO NO ENSINO


LACANIANO

Proveniente do latim alienare, a palavra alienação quer dizer


“tornar alguém alheio a alguém”; “tornar estrangeiro”, sendo elevada
ao estatuto de conceito em diferentes campos de saber. De acordo com
Ricardo Nepomiachi (2014), Lacan se serve desse termo no início do
seu ensino para articular a alienação presente na formação do Eu, na
medida em que sua constituição advém de uma exterioridade, do seu
reconhecimento no olhar do Outro, que lhe oferece uma gestalt – con-
ferindo-lhe uma unidade imaginária. Posteriormente, no seu segundo
ensino, quando começa a trabalhar o conceito de Real, Lacan aborda
essa noção para tratar não propriamente a formação do Eu, mas a cons-
tituição do sujeito. (NEPOMIACHI, 2014)
Se o Eu refere-se a noção de unidade, próprio ao campo da cons-
ciência, o conceito de sujeito busca demarcar a divisão subjetiva entre a
consciência e o inconsciente, entre o saber e não saber a respeito de si
próprio, fruto dos efeitos alienantes da intervenção do significante. Será,
portanto, no Seminário, o livro 11- Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise (1998 [1964]), que Lacan se dedicará a pensar como o
sujeito se constitui, indicando que ele emerge no campo do Outro, imerso
na linguagem e como efeito de duas operações: alienação e separação.
Dizem respeito, contudo, a duas operações disjuntas, mas articuladas
que abordam a relação do sujeito com o Outro. Convém enfatizar que
não se tratam de etapas, fases, remetendo a uma visão desenvolvimen-

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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

tista que a criança alcançaria, mas diz de uma lógica onde se insere a
constituição do sujeito.
Para falar de cada uma delas, Lacan se serve da teoria dos conjuntos:
reunião e interseção. Ao articular a dimensão da alienação, Lacan (1998
[1964]) propõe dois conjuntos: o do ser (sujeito) e o do Outro (sentido).
O que está em jogo é uma escolha forçada entre o ser e o sentido. O
sentido remete ao Outro da linguagem na qual o sujeito se constitui.
Se o sujeito escolhe “ser”, ou seja, escolhe não se alienar no campo do
Outro, ele não se constitui. Mas, se escolhe o “sentido”, se aceita alienar
seu desejo no desejo do Outro, ele pode advir como sujeito. Quando
falamos aqui de “escolha”, não se trata de uma escolha deliberada; diz
respeito a algo da ordem inconsciente, mas ainda sim constitutiva, no
qual o sujeito se faz responsável também por ela.
Ao escolher o sentido, entretanto, há a perda do ser, pois o sujeito
advém em outro lugar e não de si mesmo. Por isso, em psicanálise, não
lidamos com o ser, nem falamos em essência no ser humano. Assujeitar-se
ao Outro implica necessariamente na perda de si mesmo. Nesse sentido,
o sujeito ($) surge em sua falta-a-ser como efeito do significante. Por
outro lado, ao se assujeitar ao Outro, a criança se torna um sujeito da
linguagem. Precisamente, Lacan (1998 [1964]) nos oferece o seguinte
esquema como chave de leitura para a alienação:

O ser O O sujeito
(o sujeito) não sujeito (o outro)

Fonte: LACAN, Jacques. Seminário, o livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 200.

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Corpo e Afeto

A alienação implica na lógica da reunião, na qual está em jogo


uma escolha que tem por consequência: nem um; nem outro. Para meta-
forizar o que se passa na alienação, Lacan (1998 [1964]) diz se tratar de
uma escolha imposta tal como a de um assaltante: “A bolsa ou a vida!
Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a
bolsa, isto é, a vida decepada.” (1998 [1964], p. 201) Ou seja: escolhen-
do-se a bolsa (o ser / ser por ele mesmo), a vida é perdida e o sujeito fica
impossibilitado de se constituir, caindo no não-senso. Por outro lado,
escolhendo a vida (o sentido), este só subsiste decepado e algo é perdido.
Dizer que o sentido só existe decepado, partido, é apontar que o humano
se constitui dividido, marcado pelo Outro, tendo um saber e um não
saber sobre si mesmo, sendo isto a dimensão do inconsciente no sujeito.
A alienação, portanto, vem demarcar que nenhum falante existe
sem a relação com o Outro e que ele inicialmente se situa como objeto
do desejo desse Outro. Todavia, a constituição subjetiva não se reduz
a uma total alienação, visto que requer também uma “separação”. Esta
salienta a tentativa do falante de se “separar”, sair do lugar de objeto e
assim, realmente assumir a condição de sujeito desejante, logo, faltoso.
Na separação, o Outro não é o mesmo que o Outro da alienação. Ele
aparece barrado, também faltoso, de modo que não é capaz de nomear
completamente o ser do sujeito. Nesse sentido, conforme indica Lacan
(1998 [1964]), na separação está em jogo o recobrimento de duas faltas:
a do sujeito e a do Outro.
Dizendo de maneira distinta, o encontro com a falta do Outro,
com o desejo do Outro, abre ao sujeito a possibilidade de se identificar
com esta falta e ocupar, inicialmente, o lugar do objeto da falta do Outro.
É a maneira como o sujeito tenta inicialmente se situar diante do desejo
enigmático do Outro. Sobre isso, Lacan comenta: “Nos intervalos do
discurso do Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é
radicalmente destacável – ele me diz isso, mais o que é que ele quer?” (1998
[1964], p. 203) Nisto, o sujeito constata que essa relação é marcada por
um desencontro, ou seja, o Outro deseja além dele, o Outro é barrado,
dando sinais de sua incompletude e falibilidade. A criança não é capaz
de tamponar o desejo do Outro. Isso permite ao sujeito, sair do lugar
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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

de objeto e escolher pelo desejo, situando-se como sexuado, através de


identificações que lhe marcam.
Nos termos lacanianos, a separação diz de uma operação de
interseção. Por outro lado, Lacan considera que na interseção entre o
sujeito e o Outro, não há nada, o lugar está vazio – lugar este que será
ocupado pelo objeto a, objeto causa de desejo. Isto é: diante da operação
que se expressa na separação, o que temos é uma divisão (do sujeito e do
Outro), que tem como resto o objeto a. Sobre o objeto a, Lacan é preciso:
“Na medida em que ele é a sobra, por assim dizer, da operação subjetiva,
reconhecemos estruturalmente neste resto, por analogia de cálculo, o
objeto perdido.” (2005 [1962-63], p. 179) O objeto a releva, assim, ser
o último indício de uma unidade hipotética entre o sujeito e o Outro,
de uma satisfação mítica, sendo por meio de uma relação com ele que o
sujeito constrói sua fantasia, $◊a (Sujeito dividido em relação ao objeto
a). Trata-se, contudo, de uma fantasia de completude, apontando para
o lugar que ele supõe estar em relação ao desejo do Outro.
Ao final desse processo, podemos dizer que o sujeito não se encon-
tra nem completamente alienado, nem completamente separado, mas
amplamente afetado pelos efeitos do discurso – sendo condição de sua
possibilidade de constituição.

DESCOLONIZANDO O CAMPO DO OUTRO

Por vezes, há uma tendência a pensar o Outro reduzido as figuras


parentais. Contudo, no ensino lacaniano, o Outro não é propriamente
uma pessoa, ainda que a constituição do sujeito dependa de um desejo
particularizado, “implicando a relação com um desejo que não seja anô-
nimo.” (LACAN, 2003 [1969], p. 369). Mesmo que o Outro fosse igualado
a mãe e/ou o pai, seria preciso levar em conta que os pais se inscrevem
em um dado contexto sócio cultural e são marcados pelo o que ocorre
em sua época – o que repercute naquilo que transmitirá ou não à criança.
Para Lacan, o Outro comporta de maneira mais ampla a ideia de
tesouro dos significantes, um campo da linguagem, um corpo social, uma
rede, no qual o sujeito é mais pensado do que efetivamente se pensa. É

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Corpo e Afeto

por meio dele que estruturam as determinações simbólicas da história


do sujeito, no qual se inclui o desejo do Outro, a lei, a ordem cultural,
a história e os traços fundamentais da civilização.
Se o Outro traz também a marca da cultura e dos efeitos do laço
social, faz-se necessário pensar de forma mais abrangente de que “campo
do Outro” estamos falando quando levamos em conta as particularidades
dos sujeitos que nascem no Brasil. Essa localização não é irrelevante.
Promover essa interrogação é fundamental para não continuarmos
tomando o sujeito pautado no universal eurocêntrico – o que nos leva
também a nos aproximarmos da produção de subjetividade que engendra
a constituição subjetiva dos brasileiros.
Primeiro ponto a considerar é que o brasileiro é um povo tecido a partir
de um tenso encontro entre três povos: indígenas, portugueses e africanos.
Ao mesmo tempo, não somos europeus, nem africanos, nem indígenas.
Aquele considerado no Brasil como “branco” não é branco aos olhos dos
europeus e o “negro” não é africano para os africanos. Por outro lado, forjar
uma identidade fruto dessa mistura de três povos também não é capaz de
nomear o que seria mais particular da nossa cultura. Pelo contrário, se há
algo mais característico, seria o fato de que – nós, brasileiros – tendemos a
reinterpretar essas influências e diferenças, com uma forma paradoxal de
lidar com a diversidade cultural, que ora é desprezada, ora é exaltada.
Procurando localizar o povo brasileiro, Lélia Gonzalez nos lembra
que a construção do nosso território não é fruto somente da influência
européia, mas de uma construção mais plural. Precisamente, ela aponta
que somos uma “América Africana cuja latinidade, por inexistente,
teve trocado o t pelo d para, aí sim, ter seu nome assumido com todas
as letras: Améfrica ladina” (2019 [1992-93], p. 341). Isso a leva a situar
que todos os brasileiros são ladino-amefricanos e não somente os negros.
Todos nós somos atravessados e influenciados por uma dinâmica cul-
tural africana, mas construída a partir de uma experiência particular
dos afrodescendentes na América. Por outro lado, por denegarmos tal
condição de amefricanidade, o racismo à brasileira se volta justamente
contra aqueles que a testemunham: os negros.

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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

Sobre essa dinâmica cultural, uma outra consideração pertinente


seria pensar nossa própria língua. Seguindo ainda Gonzalez (2019 [1992-
93]), aqui se fala o “pretoguês”. Este diz respeito a marca da africanização no
português, que inclui o caráter tonal e rítmico das línguas africanas. Seria
o pretoguês nossa língua materna, com traços de lalíngua? Apoiando-se
em Gonzalez, Marcus André Vieira afirma que sim. Em seus termos:
O pretoguês é o português que se deixa atravessar pelo
que de sua história foi, mais que rechaçado, estraça-
lhado. Suas marcas, porém, estão no ar, na argamassa
do que nos constitui. Somos filhotes da cultura, feita
não apenas do que se vê e sente, mas também do que se
pressente na ponta da língua, desses restos linguageiros
que Lacan chamou lalíngua. (2021, s/p).

Resumindo, nossa cultura, nossa língua, nossa arte, nossa organi-


zação religiosa, na qual podemos localizar aspectos do campo do Outro
é fortemente influenciado pelos traços do povo africano. Ao mesmo
tempo, essa influência é recusada, silenciada, como uma verdade que
precisa ser ocultada e invisibilizada. Se ela é ocultada, isso tem relação
com o racismo estrutural e com um discurso dominante que busca pro-
mover a manutenção de toda uma desigualdade social que retoma nossa
longa tradição escravocrata. Esse discurso dominante teve inclusive a
força de promover o mito da democracia racial, contribuindo para que
o racismo permanecesse denegado, constituindo-se “como a sintomática
que caracteriza a neurose cultural brasileira.” (GONZALEZ, 2019 [1984],
p. 238, grifo da autora). Ou seja, nossas formações do inconsciente são
atravessadas pelo modo como o racismo em sua face denegada compa-
rece em nosso país, pois, como afirma Marie-Hélène Brousse (2003), o
inconsciente tem relação com o laço social.

APONTAMENTOS CLÍNICOS SOBRE A


CONSTRUÇÃO SUBJETIVA DOS NEGROS NO
BRASIL: EFEITOS DO CAMPO DO OUTRO

A psicanalista Isildinha Nogueira (1999) afirma que a sociedade


estabelece sobre os corpos seus sentidos e valores – o que a leva formular

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Corpo e Afeto

qual o lugar do corpo negro a partir dessa definição. Ou seja, por um


passado histórico de duradoura escravização, o corpo negro é desu-
manizado e impregnado pelo sentido de “peça”, “mercadoria”, “coisa”,
que se presentifica na memória social e atualiza o preconceito racial.
(NOGUEIRA, 1999) Além disso, ao negro, é relegado as mais variadas
representação depreciativas, sendo seu corpo e seus traços fenotípicos
(pele, cabelo, nariz e boca) o alvo de uma hierarquização estética em
relação aos brancos, sempre acrescida da inferioridade a nível intelectual
e moral. Jôse Sales (2019) pontua, nesse sentido, que essa desvalorização
promove uma série de dificuldades no campo da corporeidade, chegando
a uma relação persecutória com o corpo, de controle e observação, com
o intuito de se moldar ao branco.
Com Lacan (2003 [1972a]), podemos dizer que, se o corpo negro
é alçado a esse lugar, isso tem relação com o racismo de discurso. Mais
ainda, ele afirma que todo suporte do discurso é o corpo (LACAN, 2012
[1972b]) – o que nos leva a entender que é pelo discurso que as pessoas
negras têm seus corpos aprisionados, petrificados em posições sociais
e lugares simbólicos, com o objetivo de conservá-los na condição de
subalternizados. Não obstante, considera Lacan, o discurso é aparelho
de gozo e, ao tocar o corpo, produz modos de gozo e modos de viver
a pulsão – sendo este ponto uma via para pensar as consequências psí-
quicas do racismo sobre a construção subjetiva dos negros, juntamente
com todo sofrimento que ele acomete.
Sobre o impacto dos discursos racistas para a população negra,
o psiquiatra martinicano Franz Fanon (2008 [1952]) em seu livro Pele
negra, máscaras brancas considera que eles promovem uma “alienação
psíquica do negro”, na medida em que a pessoa negra é forçada a usar
a língua do colonizador, seus costumes, mimetizando seu opressor e
buscando alcançar o branqueamento da raça. Deivison Faustino (2018)
situa que o problema levantado por Fanon reside no fato da cultura euro-
peia ser ideologicamente igualada a expressão universal de civilização,
humanidade e educação, de modo que o colonizado é forçado a negar
sua condição sócio histórica para se vincular ao universo do colonizador
e, com isso, ser reconhecido como humano.
15
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

Vale considerar que apesar de Lacan e Fanon usarem o termo


“alienação”, há uma distinção quanto ao uso que os autores fazem do
mesmo. Para Lacan, a alienação é constitutiva de todo sujeito, no qual
ele também inclui a separação; enquanto que o objetivo de Fanon é
descrever um modo particular de alienação subjetiva que acontece com
as pessoas negras submetidas ao processo de colonização. Isso, porém,
não faz essas construções necessariamente excludentes. Pelo contrário,
com Fanon, somos justamente levados a refletir que, se a alienação
é constitutiva para Lacan, o fato de o sujeito estar inserido em uma
sociedade colonial e racista levanta outros problemas que precisamos
considerar de modo a não alimentarmos o branco europeu como sinô-
nimo de universal – proposta empreendida por esse trabalho. Ter um
corpo negro comporta diferenças, não por uma questão biológica, mas
porque este é banhado por discursos racistas.
Precisamente, Fanon (2008 [1952]) chama a atenção para uma série
de questões subjetivas da pessoa negra ao viver em uma sociedade colonial.
Por exemplo, ele aponta como a dialética hegeliana não é capaz de ser
verificada nesses casos. O negro chega ao mundo desejando reconhecer-se
como sujeito, mas o que lhe é revelado é a sua objetificação, seu não-lugar
nesta condição. Se o branco é o universal, o negro é alçado a um lugar de
exceção ao humanismo branco europeu. Diante disso, para ser reconhecido
como humano, a pessoa negra passa a desejar ser branco, negando sua
negritude ao usar uma “máscara branca”. Contudo, isso é inoperante, pois
jamais alcança tal reconhecimento. (FANON, 2008 [1952])
O negro permanece, assim, sem conseguir se inserir no mundo dos
brancos e com dificuldades de assimilar sua negritude. Daniele Menezes
at al (2020) pondera que a cultura ensina o negro a se embranquecer e
se domesticar, seja tratando-o como incivilizado, violento e ameaçador,
seja promovendo a ideia de quanto menos ele se apresentar negro, mais
ele pode desfrutar do mundo dos brancos. Segundo Faustino (2018),
na perspectiva de Fanon, o colonizado não se submete a essa condição
somente porque é subjetivamente alienado, mas porque essa alienação é
tão poderosa que não há outra possibilidade de ser humano que não seja
sendo branco. Sales (2019) comenta ainda que ir em direção à brancura
16
Corpo e Afeto

para ser reconhecido como humano trata-se, portanto, de uma tática


para escapar da violência do racismo.
Neusa Santos Souza (1983), por sua vez, no seu livro Tornar-se
negro considera que a pessoa negra acaba sendo forçada a construir de
um “Ideal de Eu branco”. Se isso ocorre, é devido ao fato do sujeito
receber muito precocemente mensagens negativas sobre ser negro – o
que pode acarretar uma série de dificuldades para tomar o corpo e a pele
negra como objeto de investimento amoroso e, consequentemente, para
a formação do seu narcisismo. O que remete a negritude, notadamente
em seu corpo, ganha contornos pejorativos e o sujeito como um todo
tende a ser engolido por essa engrenagem. A brancura torna-se, assim, o
modelo a ser alcançado, o próprio ideal do negro, mas não sem o preço
de perceber-se sempre não podendo atingi-lo. Como consequência,
Souza (1983) observa casos de autodesvalorização, conformismo, ati-
tudes fóbicas, submissão, intimidação e decepção consigo próprio por
não responderem ao ideal de brancura não importando os êxitos que o
sujeito possa ter alcançado.
Convém ressaltar, conforme pondera Freud, que o sujeito nunca
está a altura de seu ideal, nunca consegue atingi-lo, seja ele branco
ou negro. A situação torna-se altamente complexa quando esse ideal
é muito distante e a instância do supereu, em sua face tirânica e sem
limites, impõe ao sujeito alcançá-lo e por isso ser impossível, castigá-
-lo pela via do sentimento de culpa. (SOUZA, 1983) Por outro lado,
sobre os efeitos do ideal de brancura, Sales argumenta: “Não se trata
aqui de uma insatisfação neurótica, onde o ideal fica no horizonte,
mas de uma acentuada defasagem entre o que é e o que se almeja.”
(2019, p. 110)
É, nesse sentido, que Souza pensa as consequências psíquicas do
racismo sobre os negros para além de todas as tramas singulares de sua
história de origem. Tem algo do corpo social que incide sobre o corpo
próprio, com repercussões subjetivas, no campo do desejo, no circuito
pulsional que pode levar a pessoa negra a se identificar e assimilar os
discursos racistas fruto de um Outro cruel, levando-a ao pior.

17
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O esforço empreendido por essa discussão foi apresentar os con-


ceitos de alienação e separação proposto por Lacan a partir de uma
perspectiva crítica a respeito do campo do Outro. Pensar a constituição
dos sujeitos brasileiros é levar em conta nosso contexto sociocultural, no
qual a forma paradoxal de reinterpretação das influências e diferenças
dos três povos que nos compõem não podem ser desprezadas, sendo o
racismo um ponto marcante de nossa história. Isso, portanto, nos permite
compreender que nascer negro no Brasil traz dificuldades distintas na
medida em que se é bombardeado por discursos racistas – o que pode
implicar em estar mais submetido e alienado aos seus efeitos devasta-
dores na medida em que promovem o ideal de brancura e sofrimentos
em torno de uma decepção em relação a si próprio, como foi possível
extrair do pensamento de Fanon e Neusa Souza.
Por outro lado, se há essa alienação constitutiva, pois só se advém
como sujeito dessa forma, há também a possibilidade de separação.
Alienação e separação são operações lógicas articuláveis na psicanálise
– o que permite concluir que os significantes, os discursos, nos quais
o sujeito encontra-se capturado não são capazes de recobrir todo o seu
ser, abrindo espaço e possibilidade de separação dos seus sentidos mor-
tificadores e devastadores.
Separar-se desses discursos – especialmente quando ele tem um
tom racista que captura o corpo – inclui um árduo trabalho, mas sempre
singular: seja pela análise pessoal, pela arte, pela escrita, pela política,
entre outros, de modo que cada sujeito precisará inventar sua maneira.
Isso não exclui, contudo, que a sociedade se coloque também responsável
por esse trabalho, pois promover a dissolução dos discursos e práticas
racistas é atacar o cerne do problema e sanar as modalidades de sofri-
mento que ele acarreta para as pessoas negras no Brasil.

REFERÊNCIAS
BROUSSE, Marie- Hélène. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de
Psicanálise, 2003.

18
Corpo e Afeto

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LACAN, Jacques. O Seminário, livro 19 – ...ou pior. (1972b) Rio de Janeiro: Jorge
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Gisele & VIDAL, Paulo. Das impossibilidades do racismo etnosemântico à
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Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1809-52672020000300010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Acesso em: 03 de julho de 2021.

NEPOMIACHI, Ricardo. Alienação. In: Scilicet: A ordem simbólica no século XXI. –


Associação Mundial de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011, p. 31-33.

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São Paulo, n. 135, 1999, p. 40-45. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/
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SALES, Jôse. Racismo no Brasil: um olhar psicanalítico. Rio de Janeiro: Autografia, 2019.

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- Blog da Escola Brasileira de Psicanálise. 2021. Disponível em https://ebp.org.br/rj/blog/
index.php/2021/04/28/a-madame-saiu/ Acesso em: 01 de maio de 2021.

19
TRONCO EM PÉ, FOLHAS NO CHÃO,
FRUTOS AO VENTO: ANTÍGONA,
ANTÔNIA E ANTIRRACISMO EM CENA

Núbia Kalumbí Jesus Oliveira 2


Michel Silva Guimarães3

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, opera-se uma análise, a partir de teóricos da negri-


tude e do teatro, da montagem cênica do texto dramatúrgico Antônia
(2015), de autoria de Daniel Arcades, realizada por Núbia Kalumbí, no
ano de 2020, no âmbito da Licenciatura em Teatro da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB – Campus VII). A peça dialogiza Antígona, de
Sófocles, na qual é livremente inspirada. Ambas as peças foram retomadas
por Kalumbí para construção e execução do processo de montagem cênica.
Antônia (2015) intertextualiza o mito de Antígona, constante-
mente explorado pela recepção clássica da obra de Sófocles. A heroína
grega, protótipo para muitas personagens ao longo da história, serve
como mote para construção da heroína soteropolitana. Seu drama-
turgo, Daniel Arcades, é escritor, ator e diretor. Graduado em Letras
pela Universidade do Estado da Bahia e Mestre em Crítica Cultural
pela mesma universidade. Arcades integra o Grupo NATA – Núcleo
Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas.
Embora possua uma intensa produção e seja um dos nomes de maior
relevância no cenário nacional, na atualidade, Ferraz (2019, p. 22) aponta
para o fato de que o dramaturgo “ainda espera viabilizar em livro uma das
mais de 30 peças que já escreveu, muitas premiadas na cena de Salvador,

2 
Multiartista, pesquisadora do corpo negro e seus atravessamentos e discente do 5º
semestre do curso de licenciatura em teatro. Núbia Kalumbí é uma travesti preta. O
nome com o qual será citada no capítulo, retrata o nome social da discente (UNEB/
Campus VII). CV: http://lattes.cnpq.br/5371898383334566
3 
Doutor em Literatura e Cultura (UFBA). Professor de dramaturgia no Curso de Licen-
ciatura em Teatro (UNEB/ Campus VII). CV: http://lattes.cnpq.br/8395332976995051

20
Corpo e Afeto

como Medeia negra, Oxum, Erê e Exu, a boca do universo”. A falta da publi-
cação de uma Antologia da dramaturgia de Arcades é tanto sintoma da
pouca atenção que o mercado editorial dá a textos dramatúrgicos, quanto
do constante apagamento de obras dedicadas à cosmovisão negra do mundo.
No texto da peça, conseguido com um de seus atores4, a heroína tem
como mesmo objetivo enterrar seu irmão, Patrício, cujo corpo é ocultado
durante uma intervenção policial. A fábula é retirada de um caso real,
noticiado pela imprensa como a “chacina do Cabula”. A cena escolhida para
montagem de Kalumbí é um recorte metonímico de uma das principais
características do texto grego: o embate ideológico, via diálogo, entre Antí-
gona e Ismene. O texto de Arcades também foca nesse conflito, havendo,
agora, um embate ideológico e afetivo entre as irmãs Antônia e Esmera, duas
mulheres negras em lados opostos com relação aos processos de colonização.
A montagem da obra foi realizada na disciplina Metodologias da
Encenação, no 4º semestre do curso de licenciatura em teatro, na Universidade
do Estado da Bahia (Campus VII). A encenação foi a público em março de
2020, como resultado, na disciplina, de um trabalho de quatro meses. Nesse
período, foram promovidos encontros para debates teóricos sobre as peças
Antígona, de Sófocles, e Antônia, de Daniel Arcades, preparação corporal
e emocional das atrizes e ensaios para construção da cena completa. Para
análise dos textos e do processo, utiliza-se referenciais negros, como O que
é racismo estrutural (ALMEIDA, 2019), Necropolítica (MBEMBE, 2018) e
Vivendo de amor (hooks, 2010), suportes para discutir o contexto histórico,
a estética apresentada na montagem e a poética de Arcades.
Este capítulo divide-se em três momentos, como num processo de
crescimento e expansão de uma árvore: no primeiro momento, pensa-se
a raiz histórica do debate proposto em Antônia, e sua relação dialógica
com Antígona; no segundo, com a árvore de pé, reflete-se o processo
estético de construir e diluir texto em cena; por último, mapeia-se os
frutos que essa árvore deixou no processo de ensino e aprendizagem das
profissionais envolvidas, a partir de entrevista com as atrizes.
4 
O texto da peça foi disponibilizado por Filipe Dias, intérprete de Creonte em
Antônia. Filipe Dias, hoje, atua como professor de Metodologias da Encenação no
curso de Licenciatura em teatro (UNEB/Campus VII).

21
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

ENTRE A TERRA E AS RAÍZES: APAGAMENTO


PASSADO E GENOCÍDIO PRESENTE

A Lei 11.645/2008 sancionou, nas escolas públicas do país, o


ensino das histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas, com foco,
sobretudo, na contribuição desses povos para formação do Brasil. A
mesma Lei regimenta, ainda, que esse ensino deve ser ministrado no
âmbito de todo currículo escolar, contudo, priorizado “em especial nas
áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”. Neste
viés, é sine qua non que na Universidade do Estado da Bahia, naquele
que é seu primeiro curso na área de Artes, em quarenta anos, o curso de
Licenciatura em Teatro, fomente-se pesquisas sobre as dramaturgias e
as cenas negras contemporâneas para construção do que, hoje, tornou-se
um grande projeto nacional: uma educação antirracista.
Para intelectual brasileira Lélia Gonzalez, é objetivo do campo
dos estudos afro-diaspóricos garantir à população afro-brasileira “tor-
nar-se negra”, isto é, sair do estado de alienação e confusão no qual está
emparedada – como simbolizou, em sua poesia, Cruz e Souza – para
um estado no qual se tenha os mecanismos necessários para promoção
de mudanças sociais e políticas de equidade. Tais mecanismos, a partir
da fabulação e do lúdico, podem ser dados pela arte, pelo teatro e pela
literatura dramática. Desde Brecht, reconhece-se a potência estética e
política do teatro para disseminação de conteúdos revolucionários e, pari
passu, de uma educação formal no campo das artes.
Nesse viés, as peças de Daniel Arcades formam, expandindo-se
da cidade de Alagoinhas – BA para todo o país, um quilombo da pala-
vra. Juntas, elas dão conta de temáticas caras e contemporâneas para
população negra. Em Antônia (2015), tematiza-se o racismo estrutural
capitaneado pelo Estado e a luta das mulheres negras.
Segundo Florentina Souza (2000) e Leda Maria Martins (2007),
o quilombo da palavra, tanto no passado recente quanto na contempo-
raneidade, é o próprio gesto da escrita de autores e autoras que garan-
tiram, apesar de todas as interdições e adversidades, a manutenção da
permanência do elemento negro e de sua cultura no imaginário nacional.
22
Corpo e Afeto

A composição poética desses homens e mulheres (re)inscreveram seus


corpos na cena artística e na cultura nacional, em uma luta incansável
contra um fenômeno que se torna problema de pesquisa sempre que se
trabalha com a Literatura Negra: o apagamento.
Logo, o apontamento de Ferraz (2019, p. 22), em relação ao fato de
Arcades ainda não ter sido publicado, acende um alerta para o contínuo
apagamento de potentes produções de artistas negros e negras. A retomada
da poética de Arcades para nossas produções críticas e artísticas insere-se
em nossa busca constante pelo tornar-se negro e pelo arvorar-se antirracista.
Toda árvore grande e composta por milhares de galhos, frutos e
raízes, um dia foi semente lançada na terra. Logo, não é novo afirmar que
o processo de construção deste país tem, como uma de suas principais
e mais fortes raízes, a escravidão dos diversos povos africanos raptados
para essa diáspora.
Esse processo histórico, para exploração em nome da conquista
por terras, poder e supremacia, já é um velho conhecido dos livros de
história. Entretanto com suas narrativas romantizadas e pouco leais ao
processo de opressão e violação, pelo qual se deu a construção do con-
ceito de raça no país, aliena-se a herança que esse processo deixa para a
atualidade. Contra essa alienação, chama-nos atenção Silvio Almeida:
“por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal
sorte que se trata de um conceito relacional e histórico. Assim, a história
da raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das
sociedades contemporâneas” (2019, p. 25).
Nesse processo de disputa por poder, conflito e contingência,
estrutura-se a construção da sociedade brasileira contemporânea. Ainda
hierarquizada e composta por uma realidade bastante opressora aos
povos negros e indígenas, sua construção baseia-se na imposição de
um determinado modo de ser no mundo, forjado a partir da negação de
outros modos, pelo meio da violência, dentre outras táticas de dominação.
Exemplo disso é a caracterização do evangelismo de Esmera, em
Antônia, que retoma o mito cristão da maldição de Cam, a partir do qual
os negros teriam sido amaldiçoados a servir aos brancos: “ESMERA

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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

– Aceita os preceitos de deus, fomos amaldiçoados lá em Noé. Aceita,


irmã, aceita, que você ainda pode ter salvação” (ARCADES, 2015, p. 05).
O processo histórico da escravidão deixa, como herança para o
Brasil pós-abolição, uma política de morte aos negros que se mantém
em diferentes meios. Ao falar em estrutura, é importante pensar, justa-
mente, como esse enorme massacre histórico vai delimitando os modos
como a sociedade se divide e se organiza durante as décadas posteriores.
O racismo instaura-se mesmo no seio familiar, como aponta Almeida:
“o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do
modo ‘normal’ com que se constituem relações políticas, econômicas,
jurídicas e até familiares (2019, p. 50), o que explica a verossimilhança
da construção da personagem Esmera.
O racismo alimenta a construção da sociedade brasileira con-
temporânea, normalizando violências e proporcionando processos de
desumanização e subalternização de pessoas negras no país. Esse projeto
genocida é escancarado e se evidencia em dados no Atlas da Violência
de 2020, no qual costa que, nos últimos dez anos, a taxa de mortalidade
de negros cresce em 11,5%, enquanto os dados entre não negros faz o
caminho inverso, tendo queda de 12,9%.
Os dados dessa pesquisa descortinam a descartabilidade e a ausên-
cia de comoção da sociedade em relação aos corpos negros. Pensar
criticamente e trazer ao debate essas mortes é também trabalho da arte:
não se pode banalizar ou normalizar uma dívida histórica não paga, que
se reflete numa omissão e alimentação de uma sociedade regida pelo
poder da necropolítica.
Para o filósofo camaronês Achille Mbembe (2018, p. 128), a
desumanização e dominação de povos estrangeiros pelos europeus,
com base em critérios racistas, tem suas raízes, localizadas pela filósofa
Hanna Arendt, “na experiência demolidora da alteridade”, a autora
alemã sugere, ainda, sua relação “com a política da morte”. A ausência
de alteridade, retomada por Mbembe, manifesta-se com bastante força
nas vivências das favelas e periferias. Esses territórios servem de cená-
rios para a efetuação dessas mortes pretas em larga escala, como são

24
Corpo e Afeto

exemplos as chamadas chacinas, caso da Chacina do Cabula, retomada


como fábula para dramaturgia de Antônia (2015).
A Chacina do Cabula ocorreu em 6 de fevereiro de 2015. Ela
resultou de uma ação de nove Policiais Militares que, durante a noite,
chegaram na Villa Moisés armando, como consta na denúncia, uma
emboscada para doze jovens5 moradores do local. Arrastados para um
terreno baldio, foram executados sumariamente pelos agentes policiais.
Os jovens assassinados por esta ação tinham entre 16 e 27 anos. É
importante salientar que ações como essa, ceifadoras da vida de jovens
negros, têm uma raiz profunda em toda essa construção racista, genocida
e estrutural impregnada no solo dessa árvore. Pensar essa obra, cujo
plano central é a denúncia a essa chacina, reclama que acentuemos sua
profundidade histórica. Para Santos e Martins (2018, p. 01), a Chacina
do Cabula, assim com as demais, relaciona-se com um modelo arcaico
de polícia e pela política de guerra às drogas. Como já mapeado pelos
Movimentos Negros, esse modelo e essa política apenas contribuem
para o genocídio e encarceramento dos jovens negros.
A partir desse fio narrativo, constrói-se o argumento que urde
o texto escrito por Daniel Arcades, que, entre outras coisas, debate o
direito de uma mulher negra de procurar e enterrar o corpo de seu irmão,
vítima dessa chacina. Antônia é movida pelos mesmos motes da heroína
de Sófocles, mas com ambientação, território, raízes e debates políticos
particulares às heroínas soteropolitanas.

TRONCO DE PÉ, GALHOS QUE CRESCEM: A


TRANSPOSIÇÃO DE FOLHAS E TEXTOS EM CENA

Uma árvore imagética, projetada no corpo das atrizes, estre-


mece o público, fincada com suas raízes na terra e com sua grandeza e
imponência de pé. Emulando a raiz histórica que atravessa e solidifica
5 
Seus nomes são Everson Pereira dos Santos, 27 anos, Ricardo Vilas Boas Silvia, 27,
Jeferson Pereira dos Santos, 22, João Luís Pereira Rodrigues, 21, Adriano de Souza
Guimarães, 21, Vitor Amorim de Araújo, 19, Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19,
Bruno Pires do Nascimento, 19, Tiago Gomes das Virgens, 18, Natanael de Jesus Costa,
17, Rodrigo Martins de Oliveira, 17, Caíque Bastos dos Santos, 16.

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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

a dramaturgia de Antônia (2015), a encenação proposta por Kalumbí


valeu-se da imagem da árvore para estender, terra adentro e vento afora,
o debate ancestral que está presente no texto.
O foco desta encenação, então, deu-se na relação de duas mulheres
negras, irmãs e diante da execução sumária, sem direito a um sepulta-
mento, do próprio irmão. Em lados opostos, tanto na crença na ances-
tralidade, quanto na forma de enxergar o mundo e lutar por seus direitos,
lá estão elas: Esmera e Antônia: diante de centenas de folhas secas no
chão, representação de perdas incontáveis, carregadas em suas peles e
em vivências diferentes de dor, cansaço, revolta e fé.
Ambientou-se a cena num formato mais íntimo. Com um texto
denso, proporcional ao debate sério proposto pela escrita, a montagem é
focada em uma cena entre as duas irmãs, na qual, num diálogo preciso,
desenlaçam seus antagonismos e dificuldades de se relacionar com as perdas:
ANTÔNIA – Vai tua vida, irmã! Vai que eu vou a
minha e ela hoje tem cheiro de caça. Vou caçar nosso
irmão como a natureza me ensinou, com farejo de
mulher bravia que sente o cheiro do sangue dos seus.
Vai, pode voltar à igreja que eu volto à favela e caço
por cada rua o corpo de nosso irmão. Ele não vai ficar
jogado às traças em qualquer beco da favela. Não vai! /
ESMERA – Pareces louca! A morte de nossos irmãos
lhe tirou a lucidez. Que deus lhe guarde e lhe pro-
teja! Vou rezar para que tenha uma morte tranquila. /
ANTÔNIA – Dispenso as suas rezas! (silêncio) Tua fé
também mata! Mata a nossa memória e nossa história
todos os dias! Dispenso! / ESMERA – Não blasfeme,
Antônia! Entendo a sua agonia, mas entenda a minha
dor e a minha fé (ARCADES, 2015, p. 5 – 6).

Aqui, verifica-se o dialogismo de Arcades com a obra sofocliana. Em


ambas as peças, é a partir das réplicas e do antagonismo entre os caracteres
que se apresentam as personagens: Antônia e Esmera, Antígona e Ismene:
ISMENE: Agora que restamos eu e tu, sozinhas, /
pensa na morte inda pior que nos aguarda / se contra
a lei desacatarmos a vontade / do rei e a sua força. E
não nos esqueçamos/ de que somos mulheres e, por
conseguinte, / não poderemos enfrentar, só nós, os

26
Corpo e Afeto

homens. / Enfim, somos mandadas por mais poderosos/


e só nos resta obedecer a essas ordens / e até a outras
inda mais desoladoras. / Peço indulgência aos nossos
mortos enterrados/ mas obedeço, constrangida, aos
governantes; / ter pretensões ao impossível é loucura.
(ANTÍGONA, v. 65 – 76).
Ambos os pares, Antônia e Esmera, Antígona e Ismene, situam-se
em posições opostas, diante de uma mesma árvore, uma mesma realidade,
para pensar os modos profundos de diálogo com a perda. Uma opta por um
enfretamento político de uma norma imposta como detentora do destino de
suas vidas, enquanto a outra tenta reconstruir sua vida mantendo-se viva.
De maneiras opostas, buscam não acumular mais mortes de familiares.
Centrada a discussão no par Antônia e Esmera e trazida para as
demandas vividas pelas mulheres negras na contemporaneidade, o tronco
desse debate fortifica-se com a leitura de bell hooks. Para a ensaísta:
“nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar começaram
a partir do contexto escravocrata. Isso não deveria nos surpreender, já
que nossos ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus
amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão” (2010, s/p).
Nesse ponto, a reflexão de hooks (2010) vai ao encontro das de
Mbembe (2018) e Almeida (2019). A raiz do racismo instaura-se no seio
das relações familiares, uma vez desumanizados, surge a dificuldade
no ato de amar, gerada pelas violências vividas. Essas questões, que vão
do íntimo ao social e do social ao íntimo, pois eles não se distinguem
quando se fala em racismo estrutural, reverberam no corpo das atrizes
criadoras e compositoras da artesania de suas heroínas. O recorte da
poética arcadiana gerou um diálogo, ao todo, de quatro páginas. Trans-
formado em uma cena, tornou-se latente os afetos das atrizes, dando
ao trabalho uma veia pulsante de amores que se correlacionam. Entre
as falas mais duras, existia uma dose de um amor com expressões mais
brandas, revestidas de proteção.
A corporalidade de cada atriz foi guiando os caminhos para a
escolha de uma encenação mais livre do texto. Na cenografia, usou-se
tonalidades entre marrom e vermelho, galhos que atravessavam o corpo

27
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

de cada atriz e se confundiam entre as suas veias. Um gesto de costurar


com o todo, no qual as irmãs eram a árvore que não estava fisicamente
em cena, mas se dissolvia na poética.
Folhas secas compuseram todo o chão, dando recursos visuais
e sonoros bastante instigantes para pensar a cena. Num diálogo entre
morte e vida, como está presente no texto arcadiano, a folha mostra uma
intermediação possível para a criação estética que contempla a poética do
texto escrito, pensando o processo de encenação a partir da dramaturgia.
Fernandes (2010, p. 166), retomando ideias de Pavis, pensa a
teatralidade como um campo de experimentação de possibilidades,
no qual “o texto cênico é fruto da composição de vários códigos que o
encenador mobiliza na estruturação de uma gigantesca partitura, em
que espaço, ator, texto verbal, música e demais matérias teatrais traçam
figuras, ritmos, organizações formais”. Logo, o texto de Arcades torna-
-se, então, o disparador para uma cena pensada dentro da construção de
várias imagens possíveis, amarrando toda a dimensão estética num lugar
quase fotográfico e dando um caráter ritual a essa experiência, na qual
todos são inseridos no universo a ser contado ao entrar na sala de teatro.
Ao trazer a imagem para o campo das folhas e eleger o ritual como
atmosfera para costurar essa encenação, objetivou-se romper o tempo
de uma linhagem cronológica e ocidental, para, assim, pensar o caráter
ancestral dos afetos que o genocídio negro proporciona aos corpos. As
folhas guiaram todo o processo de composição estética, atravessando a
forma de pensar a maquiagem e o figurino. Na caracterização, saltaram
os galhos da árvore que, como já mencionado, atravessaram os corpos das
atrizes, costurando-os junto de todo o cenário. A narrativa caminhou
entre morte e renovação, marcadas pelos processos de ataques a esses
troncos. Mas vivas, com vida, a encarnação dessas personagens pode ser
os galhos de renovação e da luta de toda uma comunidade. Nas fotos,
vê-se, em cena, Esmera6 e Antônia7:
6 
Maria Vitória Gonçalves é graduanda em Direito e sua primeira atuação profissional
enquanto atriz foi em Antônia, interpretando Esmera.
7 
Bruna Gabriela Batista é atriz e palhaça Bigulina, faz parte do grupo teatral Atuantes,
no qual já atuou nas peças: Ôoo casamento maluco e Catavento amarelo. Esteve no elenco

28
Corpo e Afeto

Figura 1 – Esmera em Cena. Figura 2 – Esmera em Cena.


Imagem: Núbia Kalumbí Imagem: Núbia Kalumbí

Para iluminação da cena escolheu-se cores mais quentes para con-


versar com a maquiagem das atrizes. Utilizou-se pouca luz, para manter o
ar intimista mais focado nas personagens que a linha de encenação produz,
pois o jogo da cena esteve totalmente atrelado a ambas. Dentro disso,
Antônia tem os seus troncos e raízes de pé, mas suas folhas marcam o chão.

FRUTOS AO VENTO: AS REVERBERAÇÕES DO


QUE FICA

O processo de encenação e imersão em Antônia sugere um pro-


cesso de ensino-aprendizagem germinado através da prática. Durante o
processo de levantamento da obra, as atrizes e a diretora foram imersos
num processo de leituras, encontros e diálogos que reverberou como
processo formativo na construção pessoal de cada participante. Antônia

de uma montagem de A menina e o vento e participou como intérprete de Antônia na


encenação da peça homônima.

29
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

articula afetos sobre vida e morte, um debate político e estético sobre


uma raiz profunda e cheia de ramificações.
Como relata Maria Vitória Gonçalves, intérprete de Esmera, ao
ser questionada sobre quais foram os resultados deixados pelo processo
de construção em Antônia:
Antônia me deixa questionamentos e me ensinou a
questionar, a questionar a história, a questionar o porquê
que nós olhamos para apenas um lado. A questionar
o porquê sempre é mais fácil acreditar no que um jor-
nal diz, ficar naquela dúvida se era traficante ou não,
como se isso fosse justificativa para matar tantas vidas.
Eu acredito que o primeiro ponto é: me tornei mais
questionadora (Entrevista concedida à diretora, 2021).

Na colocação de Vitória Gonçalves, percebe-se a importância de


contestar, questionar e cobrar das mídias de imprensa. Com um papel,
muitas vezes, tendencioso, alguns veículos midiáticos difundem notícias
equivocadas sobre chacinas como a do Cabula. É preciso questionar os
relatos nessas mídias de divulgação instantânea, refletindo sobre de que
ótica está se partindo o discurso.
Santos e Martins (2018, p. 17), ao analisarem as notícias veiculadas
sobre a Chacina do Cabula, no dia seguinte ao acontecimento, demons-
tram a precipitação dos dois principais jornais impressos da cidade de
Salvador: “Correio” e “A tarde”. Ambos trazem textos tendenciosos,
nesses primeiros momentos, sobre o ocorrido. Percebe-se, assim, a
importância desse questionamento crítico aos veículos de informação.
Também inquirida, Bruna Batista, intérprete de Antônia, faz
uma análise da sua vida pessoal, destacando quais estruturas estão sendo
movidas em si, após ter sido atravessada pelo processo:
Antônia é forte e corajosa, mas isso não impede ela de
ser gente, então ela pode sentir medo sim, e pode ser
vulnerável e foi depois desse pensamento que eu con-
segui sair do texto e interpretar ela. Trouxe isso para a
vida, e tento aplicar, entendendo cada situação. Eu até
me pergunto: isso aqui que eu estou passando é uma
situação a ser encarada como Antônia ou como Bruna.
(Entrevista concedida à diretora, 2021).

30
Corpo e Afeto

Apontando essa colocação, de como a montagem reverberou no seu


cotidiano, a atriz acentua o quanto o processo artístico carrega consigo
um poder de transformação e mobilização do cotidiano. Reafirmando
o caráter formativo desse processo de montagem, em sua fala, a atriz
Maria Vitória Gonçalves relata:
eu percebi que eu gosto de escrever e que eu comecei a
me interessar ainda mais por literaturas que abordassem
temas como o racismo, o sexismo, como os nossos corpos
sempre foram objetificados, como a nossa construção de
família é diferente, então eu acredito que ultrapassou
apenas algo montado e em determinado tempo para
as pessoas verem. Eu acredito que muito do que eu
sou, muito do que eu serei, tem a ver com o que eu vivi
durante o nosso processo, tem a ver com quem eu fui.
Então, às vezes, eu consigo olhar para o meu passado,
depois de ter tido as nossas experiências, e conseguir dar
nome a muitas das dores que eu tive, dar nome a muito
das frustrações que nós compartilhamos em comum.
(Entrevista concedida ao diretor, 2021).

Construir com a dramaturgia de Antônia (2015) criou diversos


lugares outros – corpo, afeto, família –, que, como mostram os relatos,
reverberam nos corpos negros envolvidos e absorvidos por esse processo.
Consegue-se mapear, minimamente, os frutos que vêm sendo encontra-
dos e replantados por essa colheita proposta de forma política, poética e
estética, entre o texto de Arcades, as concepções da encenação e o que
fica contido na narrativa das atrizes.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Iniciamos, aqui, um processo não acabado, ainda em crescimento,


arvorando-se, de cavar as profundidades de diálogos que podem ser
criados a partir dessa obra, entendendo desde o processo de germinação,
com a expansão marítima e escravização na diáspora, para entender o
genocídio negro como o sintoma de um Estado racista, omisso e genocida
a ser combatido por uma arte e uma educação antirracistas.
Nas escolhas estéticas da cena – propostas pelo processo de plantio
e replantio, às vezes, poda e, por fim, colheita dos frutos –, analisamos que
31
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

fica as possíveis correlações entre a dramaturgia clássica, a dramaturgia


negra e uma encenação realizada no âmbito da universidade pública.
Perpassada pelo ensino, pela pesquisa e pela extensão, a montagem cênica
de Antônia cumpre os pressupostos trazidos pela Lei 11.645/2008, ao
discutir um tema tão caro à história passada e presente da população negra.
A árvore está presente com suas folhas secas e galhos que insistem
em não cair, como metáfora de denúncia e esperança, num equilíbrio
entre vida e morte. Escrever sobre Antônia – num momento em que
somos afetados mundialmente por uma pandemia e no qual chacinas,
como a do Cabula, continuam a se repetir nas favelas espalhadas pelo
país – talvez seja uma construção de possibilidades para tencionar as
visões sobre o que se pode fazer a partir da arte.
Rever o mito grego, nas ruas do Cabula, leva-nos aos questiona-
mentos: quem pode morrer? Quem pode matar? As folhas dessa árvore
caíram e continuam caindo, mas continuaremos aqui, escavando essa
terra em busca do direito de dar a última morada a esses corpos afetados,
diaspóricos e pretos. Dedicamos este capítulo às atrizes, às famílias dos
jovens do Cabula e às suas memórias, e finalizamos com a última frase
da encenação, nome de um Movimento Negro Soteropolitano, que atua
mais firmemente em prol da justiça pelos mortos da Chacina do Cabula,
semeemos esta frase: REAJA OU SERÁ MORTA/O.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

ARCADES, Daniel. Antônia. Salvador – BA, 2015. Texto conseguido com o autor.

BOND, Letycia. Atlas da Violência: assassinatos de negros crescem 11,5% em 10 anos.


Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-08/atlas-da-violen-
cia-assassinatos-de-negros-crescem-115-em-10-anos . Acesso em 12 jun 2021.

BRASIL. Lei 11.645, de 10 de marco de 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.


br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> Acesso em: 25 jul. 2021.

FERRAZ, Leidson Malan. A dramaturgia na página impressa e pública: apontamentos


sobre publicações do teatro brasileiro. Revista Olhares, v. 7, n. 18. Disponível em: https://
www.olharesceliahelena.com.br/index.php/olhares/article/view/119. Acesso em 23 jul. 2021.

32
Corpo e Afeto

FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva:


FAPESP, 2010.

hooks, bell. Vivendo de Amor. Tradução de Maísa Mendonça. Disponível em: https://
www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso em 09 jun. 2021.

MARTINS, Leda Maria. A fina lâmina da palavra. O Eixo e a Roda, v. 15, p. 55-84, 2007.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Tradução de Mário da Gama Kury. 8ª Ed. Rio de


Janeiro: Jorge Jahar, 1998.

SOUZA, Florentina. Quilombo de palavra. In: CONCEIÇÃO, Jônatas; BARBOSA,


Lindinalva (Org.). Quilombo de palavras, a literatura dos afro-descendentes. 2. ed.
Salvador: CEAO/UFBA, 2000.

SANTOS, Taiane Almeida. MARTINS, Hebert Toledo. A representação da Chacina


do Cabula em impressos da capital baiana. Cachoeira-Bahia: Trabalho apresentado no
IV Congresso Internacional sobre Culturas, 2018. Disponível em: https://www3.ufrb.
edu.br/eventos/4congressoculturas/wp-content/uploads/sites/19/2019/03/Taiane-Al-
meida-Santos-UFRB-Herbert-Toledo-Martins-UFSB.pdf. Acesso em 27 jul. 2021.

33
IDENTIDADE ETNICORRACIAL ENTRE
CRIANÇAS NEGRAS NO CONTEXTO DE
COMPARAÇÃO SOCIAL

Juliana Pereira Rodrigues Nunes8


Josimar Nunes Pereira de Freitas9
Mariana Bonomo10

INTRODUÇÃO

Embora os negros sejam maioria populacional no Brasil (constituem


54% da população nacional, segundo IBGE), ainda sofrem preconceito e
discriminação racial, frutos de um histórico processo marcado por tensões
e sofrimentos de diferentes ordens (LIMA; VALA, 2004; OLIVEIRA,
2005). Estudos têm apontado que, no Brasil, o racismo é um dos principais
mecanismos causadores e reforçadores das desigualdades socioeconômicas
entre brancos e negros, gerando, ainda, uma série de efeitos psicossociais na
vida das pessoas, tanto relacionados a aspectos de saúde, quanto de escola-
ridade, mercado de trabalho e de identificação etnicorracial, entre outras.
Sobre os aspectos relacionados à saúde, Faro e Pereira (2011)
afirmam que práticas raciais discriminatórias aumentam o risco de
comorbidades como estresse, transtornos de ansiedade e depressão, por
exemplo. Também no contexto escolar tem-se identificado os efeitos do
racismo afetando o relacionamento saudável entre pares, bem como o
desempenho e evasão escolares entre alunos negros (ALVES; SILVA,
2013; CUNHA JUNIOR, 2009; CARVALHO, 2005; LIMA; VALA,
2005). Em estudo realizado com estudantes universitários (BONILHA,
2011), por exemplo, observou-se que estudantes negros apresentam bai-

8 
Especialização em Neuropsicopedagogia Clínica (CENSUPEG). Psicóloga.
CV: http://lattes.cnpq.br/9154393638343858
9 
Especialização em Metodologia do Ensino de Geografia (FLC). Professor de
Geografia (SEDU-ES). CV: http://lattes.cnpq.br/4951880321655249
10 
Doutorado em Psicologia (UFES) Docente (UFES).
CV: http://lattes.cnpq.br/4087691008379051

34
Corpo e Afeto

xo-autoestima e consideram que a cor da pele é um fator predominante


na definição de sucesso e fracasso. No mercado de trabalho, a exclusão
dos negros também se faz presente, como pode ser verificado nos dados
do IBGE (2019) que informam que, em média, pessoas brancas recebem
75% a mais do que pretos e pardos, sendo a taxa de desemprego maior
entre pessoas negras (comparativo de 71% entre os grupos).
Para Ferreira e Camargo (2011) e França e Lima (2014), até mesmo o
processo de construção, desenvolvimento e fortalecimento de uma identidade
social positiva vinculada à categoria etnicorracial tem sido afetado. Sobre essa
dimensão, Bento (2012) e Schuman (2014) debatem que a maneira como
os negros são representados no Brasil e a própria vivência do racismo tem
gerado em muitas pessoas negras um processo de desidentificação com seu
grupo social e racial de referência. De acordo com Lima e Vala (2005), a
estratégia de tendência ao branqueamento vem sendo utilizada por aqueles
que não se reconhecem como pertencentes ao grupo social negro, posto que
o ideal de brancura tem sido baseado na crença de que a cor da pele está
diretamente relacionada ao status socioeconômico dos grupos.
De modo mais específico, no contexto da infância, apesar de ainda
escassas (CRUZ, 2011), investigações têm apontado que o preconceito
racial tem impactado também nesse período do desenvolvimento iden-
titário das pessoas (FERNANDES; ALMEIDA; NASCIMENTO,
2008; ROTH; VILLEGAS, 2015). De acordo com Silva e Branco (2011),
desde muito cedo, as crianças se deparam com estereótipos inferiorizantes
atribuídos aos negros, tais como ‘cabelo de pico’, ‘negrinho’, ‘bandido’,
‘menino mal’, ‘bagunceiro’, dentre outros. As autoras denunciam o quanto
deve ser difícil para a criança negra e de minorias étnicas construírem
uma identidade social positiva, principalmente devido à desvalorização
da negritude em relação aos padrões de beleza, que assumem a branqui-
tude hegemônica como sendo o padrão de sociabilidade de referência.
Estudos comparativos realizados com crianças pertencentes a grupos
étnico-minoritários têm revelado alguns fatores em relação às práticas
preconceituosas e discriminatórias entre pares. Carvalho (2005) verifi-
cou que crianças imigrantes ao se relacionarem com as crianças nativas

35
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

vivenciam processos discriminatórios. Também Fernandes, Almeida e


Nascimento (2008) identificaram dinâmicas de exclusão em relação a
crianças negras, como rejeição à proximidade e ao contato. França e Lima
(2014), por sua vez, ao estudarem a identidade étnica e os estereótipos em
crianças quilombolas e indígenas, por meio da comparação de fotos de
pessoas brancas, indígenas e negras, verificaram que as crianças quilom-
bolas se autoidentificavam como negras, já as indígenas como morenas.
Em relação aos estereótipos, parte atribuiu os traços mais positivos aos
brancos, chegando a manifestar o desejo de serem brancas.
Considerando tais reflexões, este estudo, apoiado na Teoria da
Identidade Social, teve como objetivo investigar os níveis de identifi-
cação psicossocial entre crianças negras, no contexto de comparação
social entre os grupos brancos, pardos e pretos. Por meio dessa tarefa,
pretendeu-se verificar se as práticas raciais discriminatórias têm causado
algum impacto no desenvolvimento de uma identidade etnicorracial
positiva entre as crianças no contexto em análise.
A constituição da identidade social é também fruto de processos
relacionais e socioculturais. Relacional na medida em que fala da interação
entre pessoas, a partir da definição de espaços dialógicos que implicam
em “nós” e no “outro”, de quem nos distinguimos, nos relacionamos ou
nos opomos. É sociocultural, ainda, porque está associado ao universo
social de inserção dos sujeitos, em que há sentimentos, crenças, normas
e valores inscritos em códigos de comunicação e práticas identitárias
(TAJFEL, 1983; BONOMO, 2010). Nesse contexto, a identidade social
pode ser definida como o pertencimento físico e/ou psicológico, ou seja,
psicossocial, de um indivíduo a um grupo social (ou grupos sociais) no
âmbito de categorias sociais mais amplas de referência.
O processo de identificação psicossocial, na perspectiva de análise
sobre o sujeito, organiza-se em importantes dimensões, de ordem cogni-
tiva, avaliativa e emocional (BONOMO, 2010). Enquanto a dimensão
cognitiva permite ao indivíduo saber que pertence a um grupo, ou seja,
refere-se ao reconhecimento pela pessoa de que faz parte de determi-
nado grupo social, a dimensão avaliativa é um processo que implica na

36
Corpo e Afeto

permanente ponderação sobre a conotação que esse grupo possui no


meio social (seja positiva ou negativa), visto que para a manutenção de
uma identidade social, os indivíduos tendem a se identificar com grupos
que favorecem positivamente o seu auto-conceito. A dimensão afetiva,
por sua vez, diz respeito aos aspectos emocionais, principalmente de
carga histórica que existem no reconhecimento da identidade social
(DESCHAMPS; MOLINER, 2014; TAJFEL, 1983).
Associados à dimensão identitária, existem ainda outros dois processos
elementares no desenvolvimento da identidade social, quais sejam: catego-
rização social e comparação social (CARVALHO, 2005; DESCHAMPS;
MOLINER, 2014), configuração denominada dinâmica C.I.C. (categori-
zação – identidade – comparação). Para os autores, a categorização social é
um processo que ocorre devido à necessidade cognitiva de simplificação e
organização do mundo social em categorias mais amplas.
Tajfel (1983) propõe que, ao definir-se como pertencente a deter-
minado grupo, tem-se o processo de comparação social, viabilizado
pelo sistema avaliativo, em que os indivíduos fazem distinção entre o
endogrupo (nós, o próprio grupo) e o exogrupo (eles, o grupo de oposição
na relação estabelecida). Ainda de acordo com o autor, já na infância, os
indivíduos começam a manifestar preferência por pessoas que se asseme-
lhem a eles, e, a partir do processo de socialização, passam a desenvolver
conceitos e avaliações acerca dos diversos grupos humanos, sejam eles
étnicos, religiosos ou de gênero, por exemplo. Pereira, Álvaro, Oliveira
e Dantas (2011) discutem que a categorização e a comparação sociais
estão na base da formulação de estereótipos, preconceitos e discrimina-
ção social, surgindo da necessidade dos indivíduos de atribuírem status
positivo ao endogrupo, a fim de afirmar sua identidade social.
Considerando, contudo, as pertenças sociais no contexto de gru-
pos excluídos histórica e socialmente e que são retratados de modo
negativo no plano do pensamento social, principalmente na esfera das
hegemonias, cabe indagar: como indivíduos que se identificam com esses
grupos poderão manter sua identidade social positiva? Tajfel (1983), há
mais de três décadas, sugeriu que dois processos basilares podem ser

37
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

observados, quais sejam, a mudança e a mobilidade sociais. O primeiro


decorre da percepção do indivíduo de que o grupo do qual participa
não oferece a ele características que positivem sua autoimagem e, frente
a isso, um artifício utilizado é tentar desenvolver estratégias coletivas
de transformação, visando ressignificar a identidade grupal no sistema
social mais amplo. Em contextos em que essa mobilização coletiva
(que pode ocorrer no plano dos movimentos sociais, por exemplo) é
impossibilitada, o indivíduo pode entrar em conflito valorativo com o
próprio grupo. Neste caso, pode haver a sua deserção do grupo original
a fim de se identificar com um grupo que, segundo sua avaliação, possua
status social mais positivo, processo denominado de mobilidade social.
Diante de tais apontamentos, a presente pesquisa surge da neces-
sidade de compreender, empiricamente, como crianças negras se reco-
nhecem em função da categoria etnicorracial de referência, tendo em
vista o processo de branqueamento no Brasil, ativado e fortalecido pelo
constrangimento dos grupos minoritários à identificação com os padrões
hegemônicos de sociabilidade.

MÉTODO

Com o objetivo de investigar a preferência etnicorracial, a auto-


-categorização e o desejo de mobilidade de pertença sócio-categorial
entre crianças negras, o presente estudo baseou-se em pesquisa anterior,
realizada por Máximo, Larrain, Nunes e Lins (2012). Recorrendo a algu-
mas adaptações, a partir do referido trabalho, foram utilizadas histórias
sobre diferentes situações hipotéticas a fim de averiguar as tomadas de
posição das crianças frente às dimensões analisadas no presente estudo.
Participaram, portanto, desta pesquisa 106 crianças negras, sendo
55 do sexo feminino e 51 do sexo masculino, com idades entre 07 e 10
anos (M=8,63, DP=1,08). Todos os participantes residiam em um bairro
de periferia da região da Grande Vitória, no estado do Espírito Santo.
A escolha das crianças ocorreu por meio de consenso entre dois entre-
vistadores, que consideraram apenas a cor da pele (preta) e a idade como
critérios de seleção dos potenciais participantes residentes no Bairro.

38
Corpo e Afeto

No que se refere aos procedimentos de coleta dos dados, frente às


situações hipotéticas apresentadas, a criança era convidada a responder
escolhendo entre três imagens: (1) para as participantes do sexo feminino,
três fotos de jovens do sexo feminino, a saber, uma branca, uma parda
e uma preta; e (2) para os participantes do sexo masculino, a mesma
configuração etnicorracial, com fotos de pessoas do sexo masculino.
Ressalta-se, ainda, que a utilização dessa classificação e nomenclatura
(branco, pardo e preto), para investigação e análise empírica, baseou-se
nas referências do IBGE (2020). Entende-se, contudo, que a negri-
tude é muito mais do que apenas a cor da pele, configurando-se como
dimensão política e socioidentitária de diferentes povos, trajetórias
históricas, práticas culturais e religiosas, e contextos de vida cotidianos
(PETRUCCELLI, 2013).
Para o presente capítulo, foram selecionados os dados referentes a
três situações analisadas, considerando as dimensões beleza, auto-cate-
gorização e mobilidade social, conforme as seguintes histórias apresen-
tadas às crianças: 1) “Haverá um concurso para escolher a pessoa mais
bonita da escola, a rainha (para participantes do sexo feminino) ou o rei
da escola (para participantes do sexo masculino). Para você, quem é o/a
mais bonito/a?” (dimensão beleza); 2) “Dentre as três imagens, com qual
dessas você acha que mais se parece?” (dimensão auto-categorização);
e 3) “Imagine que aparecerá uma fada madrinha ou gênio da lâmpada
e você poderá fazer um pedido. Você poderá escolher ser do jeito que
você quiser. Se você pudesse escolher, com qual dessas três imagens
você gostaria de se parecer?” (dimensão mobilidade social). Em cada
situação analisada, a seguinte sequência foi adotada: apresentação da
situação, escolha da criança por meio da indicação da foto, e justificativa
verbal da escolha.
As entrevistas foram realizadas individualmente, em três escolas
da região, após o aceite das crianças e a autorização e registro da anuência
dos responsáveis pelos participantes, por meio da assinatura do Termo
de Consentimento/Assentimento Livre e Esclarecido. Além disso, as
entrevistas foram gravadas utilizando como recursos áudio e vídeo, para
posterior transcrição, tratamento e análise das informações obtidas.
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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

A análise dos dados, por sua vez, foi realizada a partir da utilização
de recursos metodológicos quantitativos e qualitativos. Para verificar a
associação entre as variáveis do estudo (categorias beleza, auto-cate-
gorização e mobilidade social), foi aplicado o teste Qui-quadrado de
Pearson por meio do software SPSS 20. As justificativas apresentadas
pelas crianças, frente às tomadas de posição em relação às situações
investigadas, foram sistematizadas por meio da Análise de Conteúdo
Categorial-Temática. Segundo Bardin (2002), essa é uma estratégia
que congrega um conjunto de técnicas de análise de ordem objetiva,
bem como a abordagem dos conteúdos e significados organizadores dos
discursos e narrativas sobre o fenômeno analisado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados do estudo são apresentados a partir dos dados


encontrados segundo as situações analisadas, em relação à compara-
ção social estabelecida, para as dimensões beleza, auto-categorização
e mobilidade social. Na Tabela 1, podem ser visualizados os dados
relativos à análise comparativa entre a preferência etnicorracial para
cada uma das três dimensões investigadas, e, na Tabela 2, a análise de
correlação entre a dimensão beleza e as variáveis auto-categorização
e mobilidade social.
No que concerne à referência de beleza para as crianças (ver
Tabela 1), considerando a amostra total, a maior parte (56,6%) esco-
lheu a pessoa de cor branca como a mais bonita da escola (para ser a
rainha/rei da escola), seguidas daquelas que elegeram a de cor parda
(37,7%) e a de cor preta (5,7%). Dentre estes, tendo em vista a ordem de
frequência de seleção das categorias por sexo do participante, pode-se
encontrar relativa diferença: 61,8% das meninas apontaram à pessoa
parda, 34,5% à branca e 3,6% à preta, como a mais bonita; enquanto
80,4% dos meninos optaram, preferencialmente, pelo branco, 11,8 %
pelo pardo e 7,8 % pelo preto.

40
Corpo e Afeto

Tabela 1. Teste de dependência entre as variáveis no que se refere à preferên-


cia etnicorracial no contexto da comparação social entre as categorias branco,
pardo e preto
Sexo
Variáveis Feminino Masculino Total Valor-p
n % N % N %
Branco 19 34,5 41 80,4 60 56,6
Beleza Pardo 34 61,8 6 11,8 40 37,7 0,000*
Preto 2 3,6 4 7,8 6 5,7
Branco 3 5,5 5 9,8 8 7,5
Auto-categorização Pardo 37 67,3 11 21,6 48 45,2 0,000*
Preto 15 27,3 35 68,6 50 47,1
Branco 28 50,9 32 62,7 60 56,6
Mobilidade social Pardo 23 41,8 15 29,4 38 35,8 0,426
Preto 4 7,3 4 7,8 8 7,5

Nota: * significativo quando p<0,05.

A situação de auto-categorização foi definida pela maneira como


as crianças se identificaram no contexto das categorias comparativas em
análise. Os resultados indicaram que 47,1% dos participantes se auto-
-reconheceram como pretos, 45,2% como pardos e 7,5% como brancos.
Nota-se que, entre as meninas, 67,3% se veem como pardas, 27,3% como
pretas e 5,5% como brancas. Já os respondentes do sexo masculino, 68,6%
se auto-categorizaram como pretos, seguidos de 21,6% que se definiram
como pardos e 9,8% como brancos.
Quando perguntados se gostariam de ser de outra maneira (dimen-
são denominada de mobilidade social), a maioria das crianças manifestou
o desejo de serem brancas (56,6%), um terço de serem pardas (35,8%) e
7,5% de serem pretas. Tendo em vista o recorte a partir da variável sexo,
a mesma tendência foi verificada: entre as meninas, 50,9% manifestaram
preferência por serem pertencentes à categoria branca, 41,8% à parda e
7,3% por continuarem sendo pretas; e, entre os meninos, 62,7% optaram
pelo branco, 29,4% pelo pardo e 7,8% pelo preto.

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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

Ao relacionar as variáveis auto-categorização e mobilidade social


com a dimensão beleza (ver Tabela 2), observa-se associação significativa
entre essas variáveis.

Tabela 2. Teste de dependência entre as variáveis auto-categorização e mobilidade


social em relação à dimensão beleza
Auto-categorização Valor-p
Branco Pardo Preto Total
N % n % N % N % 0,003*
Branco 8 100 21 43,8 31 62 60 56,6
Pardo 26 54,2 14 28 40 37,7
Preto 1 2,1 5 10 6 5,7
Total 8 48 50 106
Mobilidade social Valor-p
Beleza Branco Pardo Preto Total
n % n % N % N %
Branco 44 73,3 14 36,8 2 25 60 56,6 0,001*
Pardo 14 23,3 21 55,3 5 62,5 40 37,7
Preto 2 3,3 3 7,9 1 12,5 6 5,7
Total 60 38 8 106

Nota: * significativo quando p<0,05.

No que se refere à correlação entre auto-categorização e beleza,


verificou-se que as crianças que afirmaram serem brancas (n=8) também
indicaram esse grupo como sendo o mais bonito. Já entre as crianças
que se reconheceram como pardas (n=48), apenas uma indicou o preto
com o mais belo. Entre as crianças que se auto-categorizaram como
pretas (n=50), apenas cinco indicaram o preto como sendo a referência
de beleza. Quanto à mobilidade social, pode-se destacar algumas infor-
mações provenientes das porcentagens desta variável: 73,3% das crianças
que apontaram o branco como escolha, como o mais belo, gostariam de
ser assim (n=60); entre as crianças que manifestaram desejo de serem
pardas (n=38), a maioria (ou seja, 55,3%) avaliou que pessoas dessa cor
são as mais bonitas; e entre aquelas que selecionaram a cor preta como

42
Corpo e Afeto

referência para se parecerem, uma vê essa cor como a mais bonita, duas
escolheram a branca e cinco a cor parda.
Assumindo os dados em conjunto, destaca-se que a categoria beleza,
por constituir-se como estímulo positivo à elaboração da justificativa pela
criança, posto que a ideia de que o que é belo é positivo, está centrada sobre
a perspectiva de valorização do grupo escolhido. Como exemplos de justi-
ficativas para essas escolhas, foi possível verificar respostas como: “Porque
ela é morena bonita. Eu gosto da cor morena! Gosto mais da cor morena do que
da branca. Porque a branca, eles querem ser branco e não tem como” (Sujeito
10); e “porque ele é branco” (Sujeito 68). Em relação à análise do processo de
mobilidade social, observou-se que meninos e meninas desejavam mudar
de categoria etnicorracial a qual declararam pertencer para outra cate-
goria, e, a maior parte optou por mudar para a categoria pessoas brancas.
Em linhas gerais, nas justificativas, foi possível apreender que o desejo
pela mudança poderia estar relacionado aos aspectos físicos e também aos
efeitos da nomeação, que foram sendo revestidos de usos e significados
tidos como negativos nos contextos de vida e de interações sociais esta-
belecidas, conforme narrativas das crianças: “Porque ele é branco, ele tem o
cabelo muito bom, dá pra pentear certinho, cortar” (Sujeito 91); e “É... porque
tem gente que fica me chamando de preta, e ai eu queria ser branca” (Sujeito 38).
Os resultados encontrados no presente estudo corroboram com
aqueles verificados por Máximo, Larrain, Nunes e Lins (2012), que
analisaram que crianças brancas e morenas se identificaram do mesmo
modo como foram categorizadas, e já as negras tenderam a se autocate-
gorizar como morenas e brancas. Para os autores, isso revela um processo
de autobranqueamento das crianças negras.
As relações sociais no Brasil foram construídas sócio-histori-
camente a partir de imaginário baseado na noção de que quanto mais
claro o tom de pele, maior a probabilidade de associação do indivíduo
com características consideradas positivas. Isto também ocorre em
relação à negritude, em que quanto mais enegrecido, maior a chance de
ser relacionado com características sociais negativas (LIMA; VALA,
2004; LIMA; VALA, 2005; OLIVEIRA, 2005, SCHUMAN, 2014).

43
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

No caso do presente estudo, percebe-se que essa dinâmica de compa-


ração social e associação de características em relação à cor atuou na tomada
de posição das crianças negras frente às situações apresentadas (referência de
beleza, auto-conceito e desejo de mudança de categoria etnicorracial). Ou seja,
foi possível verificar os efeitos da comparação social, orientada pela valoração
que as pertenças sociais possuem na esfera da categorização que recebem dos
sistemas hegemônicos vigentes – que também envolvem tensionamentos e
disputas na arena dos movimentos de resistência e enfrentamentos a essas
construções sociais. Para Tajfel (1983), a comparação social, como mecanismo
de manutenção da identidade, tem como função organizar e promover essa
distinção entre os grupos, a partir da atribuição de características positivas
à própria pertença (que visam elevar o seu status) e negativas aos grupos
dos quais não se faz parte ou se avalia como não sendo favorável pertencer
(BONOMO, 2010; DESCHAMPS; MOLINER, 2014).
Os resultados deste estudo apontam, portanto, para a existência de
reprodução de um imaginário social em que são atribuídas, ao longo do
processo de comparação social, diferentes conotações a cada uma das catego-
rias etnicorraciais analisadas. Menor investimento em aspectos positivos no
que se refere ao grupo dos negros (pretos e pardos) foi, portanto, observado,
enquanto a associação dos brancos à ideia de beleza e de grupo de referência
para se autoidentificar foi constatada. Essa dinâmica, identificada nos dados
do presente estudo, evidencia e sugere a tendência de embranquecimento
das tomadas de posição das crianças, revestidas de significados e cargas
simbólicas construídas historicamente e que se mantêm no contexto social
contemporâneo, atuando sobre diferentes esferas da vida das pessoas -
incluindo o desenvolvimento identitário e o direito fundamental de afirmação
dos modos de vida, segundo pertença etnicorracial originária e enraizada
nos povos, nas culturas e nas ancestralidades de referência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tarefa assumida no presente estudo consistiu em realizar uma


investigação acerca de como crianças negras se identificam no contexto
de comparação social entre os grupos brancos, pardos e pretos, refe-
renciado pela categoria de análise beleza, em relação à forma como se
44
Corpo e Afeto

auto-conceituam e como gostariam de ser. Objetivou-se, assim, refletir


se a tendência ao branqueamento é algo presente na realidade destas
crianças, podendo vir a influenciar no desenvolvimento de uma iden-
tidade social positiva associada ao seu grupo de pertença etnicorracial.
A importância de estudos dessa natureza se apoia na necessidade
de fundamentação de intervenções psicossociais a partir tanto do debate
político-identitário quanto de sustentação empírica, que contribuam para
diagnóstico e denúncia das diferentes formas de violências estruturais
que se têm promovido contra povos e segmentos etnicorraciais no Brasil.

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Nota: O presente estudo foi financiado pelo CNPq, a partir de bolsa de Iniciação Cien-
tífica recebida pela primeira autora. O relatório completo está disponível nos Anais da
Jornada de Iniciação Científica da UFES. Vitoria: PRPPG, 2016, v. 7.

46
FEMININO NEGRO NA LITERATURA
BRASILEIRA: O IMAGINÁRIO SOCIAL E A
IDENTIDADE CULTURAL VALIDADAS DO
REALISMO À CONTEMPORANEIDADE

Isabella Lameira Martins11

INTRODUÇÃO

Sou mulher negra com formação – humana, social e acadêmica


– contextualizada em meio a uma sociedade que ainda não reconhece
a “igualdade” como direito inerente ao ser humano: quer seja de raça,
gênero, opção sexual, nível social. No decorrer de minha infância e
adolescência vivenciei diversos episódios racistas, fundamentados em
ofensas étnicas acerca principalmente de meu cabelo e de meu tom de
pele, principais características que compõem minha identidade racial.
E, mesmo após passar por esse período, e, mesmo após me afirmar
em sociedade como cidadã capaz em tudo que me disponho a fazer,
constato que tais discriminações ainda se perpetuam, quer seja em minha
vida, quer seja na vida de tantos outros jovens que fazem parte de minha
diáspora – substantivo feminino utilizado para identificar “separação de
um povo ou de muitas pessoas, por diversos lugares, geralmente causada
por perseguição política, religiosa, ética ou por preconceito”.
A sociedade acaba por naturalizar episódios segregadores fundantes
em seu cotidiano, tais como:
¾¾ O homem negro perde a vida tentando respirar, por aparente-
mente sua cor ser muito ameaçadora, obrigando quatro policiais
a “imobiliza-lo “até a sua morte;
¾¾ A mulher negra perde seu filho por um capricho da patroa
branca, que, por sua vez, estava ocupadíssima esmaltando as

Mestranda em Estudos de Linguagens – Literatura, Cultura e Tecnologia (CEFET/


11 

MG). Professora de Língua e Literatura Inglesa e Portuguesa/BH e Contagem.


CV: http://lattes.cnpq.br/2854054581859431

47
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

unhas e não podia olhar a criança da empregada, enquanto a


mesma saia para passear com o cachorro da patroa.
Com o decorrer dos anos, acontecimentos como estes foram sendo
cada vez mais naturalizados e incorporados ao dia a dia das pessoas,
entretanto, é claro que tais episódios e a contínua afirmação da ima-
gem do povo negro como sujeito inferior está arraigada a um histórico
patriarcal e racista, construído ao longo dos séculos, ao preço de sangue,
de silêncio e de dor. Apresento aqui uma breve análise e discussão sobre
o processo de constituição do “Feminino Negro” validados socialmente
e culturalmente pela literatura brasileira, especificamente no marco tem-
poral referenciado pelo período do Realismo até a Contemporaneidade.

MULHER NEGRA NA LITERATURA BRASILEIRA:


UM RESGATE HISTÓRICO

Quando o Realismo surge no Brasil, em 1881, o país passava pelo


processo de abolicionismo – movimento que veio a abolir a escravidão
no Brasil em 1888. Então, é nesse cenário de final da escravidão e início
do que talvez seria um novo ciclo para vidas negras, que se desenvolve
o período do Realismo no Brasil:
A escravidão (...) foi sancionada pelos mesmos homens,
que tudo haviam sabido sacrificar para libertar-se do
jugo de seus opressores, e assumirem a categoria de
nação livre! Eles, que acabavam de conquistar a liber-
dade, não coravam de rodear-se de escravos! (FLO-
RESTA, 1855).

O Realismo foi “a estética literária que preconizava um reflexo das


contradições sociais, uma descrição mais verista dos fatos humanos, um docu-
mento dos costumes da época” (GADELHA, 2020). O Realismo no Brasil
buscou dar enfoque ao homem branco, ao seu cotidiano e à crítica social
estabelecida, tendo ficado conhecido pelas denúncias sociais e riqueza
de detalhes retratadas na arte literária, o que, por sua vez, transmitia
uma sensação de proximidade da realidade vivida socialmente com a
realidade retratada pela literatura. Mas, qual era a imagem transferida,
objetivamente, a partir da literatura realista, que conseguia descrever a

48
Corpo e Afeto

mulher negra recém abolida, nas teias da escritura real e denunciativa


do social, vivido nesse contexto histórico?
Certamente Deus criou as mulheres para um melhor
fim, que para trabalhar em vão toda sua vida (FLO-
RESTA, 1989b/Grifo meu).

Pelos registros históricos até então validados culturalmente,


sabemos que o sistema patriarcal criou estereótipos femininos negros
que foram reproduzidos e propagados através das artes, em especial, a
literatura. E, por meio dessa vertente – a arte literária – conseguimos
encontrar o registro da descrição da mulher negra – identidade social,
cultural e de gênero – retratada nesse recorte temporal.
O chamado pai do Realismo, Machado de Assis, que também
muito taxado com o auto branqueamento no que tangia às autodescrições
físicas, apresenta em seu enredo obras que retratam a imagem da mulher
negra em personagens de seus contos, como em “Pai contra mãe”, conto
publicado no livro Relíquias da casa velha, de 1906, o autor cria a perso-
nagem da mulata Arminda, conceituando ainda a realidade de escravas
fugidas nesse período eminente à abolição. Arminda aparece no conto
como uma escrava fugida e grávida do seu senhor. Era comum o uso do
corpo da mulher negra como objeto de desejo de seus chamados donos:
No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após
algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum
tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos
da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido
Neves viu todo esse espetáculo (ASSIS, 2007, p. 159).

Outra obra do período realista que retrata a imagem da mulher


negra como personagem é o romance “O cortiço”, de Aluísio de Azevedo,
que propaga a imagem da mulata sensual, reproduzindo um discurso
antes já dito em outros períodos da literatura que o antecederam. Sua
estruturação permite-nos verificar o “reforço” para com o imagético até
então criado, da objetificação do corpo da mulher negra. Dizeres cos-
tumeiros, em uma cronologia histórica, que perpassa pela semiótica da
vexação de homens euro descendentes pelos corpos de pele preta, eroti-
zados, promíscuos e ao dispor, na fantasia errônea criada historicamente:

49
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

Que personagens singulares! (...) Exigir uma servidão a


que eles mesmos não têm coragem de se submeter, (...) e
querer que lhe sirvamos de ludibrio, nós, a quem eles são
obrigados a fazer a corte e atrair em seus laços com as
submissões as mais humilhantes” (FLORESTA, 1989b).
Encontramos, pois, na literatura mundial, o registro objetificado
da mulher negra, sem desejos próprios, criada unicamente para atender
de forma subserviente aos seus senhores. E a literatura brasileira, por
sua vez, não fugiu a essa proposta estruturante: os registros validados
culturalmente retratam a força imperiosa de uma sociedade patriarcal
e racista, estruturada na exploração de uma mão de obra subjugada
nos seus mínimos direitos, por meio de um sistema regulador para o
estabelecimento da ordem divina:
Se este sexo altivo quer fazer-nos acreditar que tem
sobre nós um direito natural de superioridade, por que
não nos prova o privilégio, que para isso recebeu da
Natureza, servindo-se de sua razão para se convence-
rem? (FLORESTA,1989b/Grifo meu).

No recorte temporal demarcado pela Contemporaneidade, por


sua vez, encontramos importantes registros femininos publicados na
série “Cadernos Negros”, produção editorial com publicação regular desde
1978. A série “Cadernos Negros” contou com importantes contribuições
literárias de conceituadas autoras, tais como: Conceição Evaristo, Lia
Vieira, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Sônia
Fátima da Conceição, dentre outras representantes que colocaram em
cena personagens negras que dispõem de imagéticos consideravelmente
distintos dos transpostos no decorrer do período realista.
As referidas autoras que durante muito tempo foram excluídas
do circuito acadêmico, conseguem validar registros de seus olhares
sobre a (verdadeira) realidade vivenciada pela mulher negra, e, através
dessa produção editorial específica, estruturada por publicações cole-
tivas, por meio da série “Cadernos Negros”, conseguem estabelecer uma
viabilização maior de contato com o público leitor e, que até então,
permanecia órfão de tais representações em personagens dentro da
literatura nacional.

50
Corpo e Afeto

Os “Cadernos Negros” abriram caminho para a voz narrativa das


personagens negras que não descarta sua sexualidade, mas, que ao mesmo
tempo não a objetifica mais como outrora fora feito a cunho de homens
brancos. As personagens geralmente estão atreladas pelos feitos de luta,
resistência e, principalmente, de sua autoafirmação social.
As personagens criadas nesse marco editorial traduzem o ponto
de vista da mulher negra, enfatizando questões inerentes a exclusão
do feminino, representadas por personagens negras e que vivem como
domésticas, presidiárias, faveladas. Mas, acima de tudo, são mulheres
fortes, de lideranças e referências comunitárias. Com epítetos de traba-
lhadoras, mães, amigas, e, sobretudo, mulheres.

CONSIDERAÇÕES: MULHER NEGRA NA


LITERATURA BRASILEIRA – CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE SOCIAL E SEU PAPEL CULTURAL

Desde os tempos ancestrais a mulher negra, como indivíduo


atuante na história da sociedade patriarcal racista e sexista, ou seja, como
uma personagem representativa da literatura, teve seu papel reduzido ao
antagonismo, ou, ao coadjuvantismo baseado no seu passado escravo,
em ambas as relações. O sistema patriarcal criou estereótipos femini-
nos negros que foram reproduzidos e propagados através das artes, em
especial, a literatura.
A literatura teve especial importância em criar um estereótipo de
mulher negra, objetificada, sexualizada, oprimida, sem desejos próprios,
submissa e vivendo as sombras de um passado escravocrata.
Desde os primórdios da literatura brasileira, em maior parte
as histórias em que se tem uma personagem negra, encontramos essa
indicativa patriarcal, racista e que por sua maioria nos foram contadas
através do olhar do homem branco euro descendente:
Flutuando como barco sem rumo ao sabor do vento
neste mar borrascoso que se chama mundo, a mulher
foi até aqui conduzida segundo o egoísmo, o interesse
pessoal, predominante nos homens de todas as nações
(FLORESTA, 1997).

51
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

Somente após a ascensão de escritoras negras, por meados de


1970, como Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis e Carolina
Maria de Jesus passamos a contar com o “olhar” e a “fala” feminina para
validação de nossa própria história. É evidente que existem outras, no
entanto, o destaque maior tornou Maria Firmina do Reis e Carolina
Maria de Jesus como nossas principais referências.

Imagem: “Carolina Maria de Jesus” - Ilustração do livro “Narrativas Negras” (autoria:


Coletivo Narrativas Negras/Editora Voo/Belo Horizonte/MG).

O trabalho de ambas as autoras teve o cuidado de nos apresentar


outras perspectivas para a imagem da mulher negra na literatura brasileira,
com desejos, memórias, afetividades, como formas de auto representação
e também para o registro de seu papel protagonista.

52
Corpo e Afeto

Imagem: “Maria Firmina dos Reis” - Ilustração do livro “Narrativas Negras” (autoria:
Coletivo Narrativas Negras/Editora Voo/Belo Horizonte/MG).

Temos, desde o início do período realista, obras em que a descri-


ção da mulher negra funda-se estruturalmente por papéis sexualizados
e objetificados. Como exemplo podemos citar nesse recorte temporal,
a obra “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo: o autor propaga a imagem
da mulata sensual, reproduzindo um discurso antes já dito, em outros
períodos da literatura que antecederam. Reforçando o imagético criado
da objetificação do corpo da mulher negra, imaginário sociodiscursivo
esse que permeia até a atualidade em diversos discursos.
E, permeando por períodos conseguintes, encontramos transposi-
ções do mesmo símbolo de representatividade do feminino negro. Dessa
forma, muitas das imagens representadas da mulher negra na literatura
nacional eram, em sua maioria, fundadas nas ideologias racistas e sexistas
e, principalmente, com base em seu passado escravo. Essas mulheres
eram, por sua vez, representadas a partir da imagem da negra validada
socialmente e culturalmente, vista como:

53
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

[...] coisa pau pra toda obra, objeto de compra e venda


em razão de sua condição de escrava. Mas é objeto
sexual, ama de leite, saco de pancada das sinhazinhas,
porque, além de escrava, é mulher. Evidentemente,
esta maneira de viver a chamada ”condição feminina”
não se dá fora da condição de classe... e mesmo de cor
(GIACOMINI, 1988, p. 87-88, Grifo da autora).
Ao buscarmos a literatura helênica como referenciação para a constitui-
ção e validação histórica, social e cultural do “papel” e da “figura feminina”
retratadas através da literatura, e mesmo que ainda tenha portado persona-
gens femininas importantes e fortes, uma mulher, em específico, merece
ter registrado o seu devido destaque: Helena de Tróia, por ter lançado dez
mil navios ao mar, sendo essencial à guerra entre os Aqueus e os Troianos.
Observando os traços da personagem Helena, criada por Homero,
em sua épica Ilíada, ou quando têm seus atos justificados por Górgias - a
mesma, por sua beleza e fraqueza, não possuía determinado discerni-
mento sobre seu destino.
Afastei com este discurso a infâmia de uma mulher,
permaneci na regra que estabeleci no início do discurso;
tentei dissipar a injustiça da reprimenda e a ignorân-
cia da opinião; quis escrever o discurso, por um lado,
como um elogio de Helena, por outro lado, como um
brinquedo (GÓRGIAS, Elogio de Helena).

Seguindo ainda a linha histórico-literária, podemos citar a hagio-


grafia de Santa Joana D’arc, que, ao se afirmar como guerreira foi quei-
mada na fogueira. Nos primórdios da literatura luso-brasileira, temos
a personagem feminina cantada de forma esdrúxula e depreciativa, nas
canções de escárnio e maldizer da Idade Média.
Ai dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv’en[o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei todavia;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
(GUILHADE, 1485).

54
Corpo e Afeto

É com essa visão constituída e validada socialmente e cultural-


mente sobre a mulher que se criará a influência sobre as demais perso-
nagens literárias contemporâneas, e esse olhar não somente influenciará
o campo da literatura, mas também a sociedade, que carecendo de
personagens femininas fortes e independentes, acabará por subjugar a
mulher a um papel coadjuvante de sua própria existência.
Hoje temos no funk carioca, que deprecia a mulher e a reduz a
objeto, comódites que podem ser trocadas e substituídas quando bem
convier, perpetuando o estereótipo e a objetificação criadas em tempos
ancestrais:
“Se cada homem (...) fosse obrigado a declarar o que
sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos
de acordo em dizer que nós nascemos para seu uso, (...)
reger uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos
amos, isto é, a eles homens” (FLORESTA, 1989b/
Grifo meu).

Desde os primórdios da palavra escrita, em todas as histórias


– míticas ou épicas – que nos foram transpostas a apresentação da per-
sonagem feminina, deparamos, de forma recorrente, com o registro de
personagens identificadas como sendo “autoras” de tragédias à humani-
dade. A literatura teve especial importância em criar um estereótipo de
mulher como sendo o ser fraco, oprimido e de alguma forma responsável
por infortúnios. Uma obra literária é o produto da interação viva entre
escritor, leitor e forças sociais, um produto de amplo repertório e con-
seguinte, responsável pela retratação de diversificadas visões de mundo,
podendo induzir seu leitor à reflexão.

55
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

Imagem: Ilustração do livro “Narrativas Negras” (autoria: Coletivo Narrativas Negras/


Editora Voo/Belo Horizonte/MG).

A literatura auxilia no processo de transformação social, sendo


assim, faz-se necessário a compreensão do impacto representativo da
mulher na literatura, perante uma sociedade ainda machista e patriarcal.
E, por conseguinte, identificar os efeitos que ecoaram pela história,
agregando diversas significações do que seria ou deveria ser a mulher,
para conseguirmos “recontar” nossa história:
A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil,
ela, [a Mulher], assumirá a posição que lhe compete
nos pode somente consolar de sua sorte presente (FLO-
RESTA, 1989a/Grifo meu).

A literatura muito contribuiu para essa construção de culpabilidade,


moralidade e encargos que à mulher foi e ainda é vinculada. Esta, que por
sua natureza é a arte que captura o tempo de uma sociedade pelas minúcias
de subjetividades culturais de determinada época, e nos permite conhecer
não somente a História social, mas também os pensamentos, ideologias,
crenças, formas de amar e padrões determinantes de seu devido tempo. E
através da “Arte Literária” a Mulher Negra vem reescrevendo sua história
na contemporaneidade: e o caminho ainda é longo ...!!!
56
Corpo e Afeto

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57
AFETOS E (RE)EXISTÊNCIAS DE
CORPOREIDADES NEGRAS NO
AMBIENTE EDUCACIONAL

Douglas Santos Gois12


Ana Luisa Alves Cordeiro13

INTRODUÇÃO

A corporeidade negra é um lugar estratégico para se compreender a


experiência e identidade negra, já que sabemos que essas, necessariamente,
passam pelo corpo e a sua imersão nos espaços e instituições sociais. Fazendo
do corpo o ponto de partida para a constituição da identidade negra, assim
como também é o lugar em que a violência racial (em que podemos destacar
o genocídio e epistemicídio) se materializa, reiterando a hierarquização dos
corpos e o “lugar”, a posição ocupada pelo sujeito negro em nossa sociedade.14
A proposta do capítulo é refletir sobre como o racismo afeta a
corporeidade negra no ambiente educacional, já que entendemos que a
raça se estabeleceu enquanto um elemento crucial nas configurações de
poder/conhecimento, assim como também teve um papel nas formações
simbólicas sociais e históricas (SILVA, 2001).
O corpo negro tem sido inscrito por signos e significados conforme
o fenômeno racial, isto é, a racialização de seus corpos redireciona, dá
forma às experiências coletivas e individuais dessa população. Podemos
notar esse redirecionamento emergir no (re)aparecimento do corpo negro
nos espaços educacionais, influenciando a sua experiência. Ainda que
12 
Graduando em Psicologia (UFMT). Integra o Núcleo Indígena Preto de Práticas
Psicológicas (NIP/UFMT). CV: http://lattes.cnpq.br/4186463500373680
13 
Pós-doutorado em Educação (UFJF). Doutorado em Educação (UCDB). Professora
Permanente no Programa de Pós-graduação em Educação (UFMT).
CV: http://lattes.cnpq.br/7982716310560380
14 
Este estudo vincula-se ao Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Mascu-
linidades E Corporeidades De Meninos Negros Na Perspectiva De Uma Educação
Antirracista”, defendido por Douglas Santos Gois, sob orientação da Profa. Dra. Ana
Luisa Alves Cordeiro, em 2021, no Curso de Psicologia da UFMT, campus Cuiabá.

58
Corpo e Afeto

concordemos que haja uma certa invisibilidade em torno do corpo, seu


apagamento e silenciamento no ocidente, partimos do entendimento de
que o corpo negro é sempre visível, sempre se comunica, a cor da pele
negra sempre salta aos olhos, está enunciada.

CORPOREIDADES NEGRAS, RACISMO E


EDUCAÇÃO

A corporeidade negra é um enunciado, construído em meio a


expropriação de seu valor total, que pode ser entendido a partir de Lélia
Gonzalez, intelectual negra brasileira, que escreveu sobre a violência do
racismo, isto é, a violência racial diante de corpos não brancos que se
naturalizou ao longo da história, sobretudo na colonização, nos ajudando
a entender a expropriação do valor total dos corpos negros:
[...] sabemos o quanto a violência do racismo e de suas
práticas nos despojou do nosso legado histórico, da
nossa dignidade, da nossa história e da nossa con-
tribuição para o avanço da humanidade nos níveis
filosófico, científico, artístico e religioso; o quanto a
história dos povos africanos sofreu uma mudança brutal
com a violenta investida europeia, que não cessou de
subdesenvolver a África (GONZALEZ, 2020, p. 136,
grifos nossos).

O despojo reitera a compreensão europeia que via as mani-


festações culturais, a língua, religião, organização e o corpo desses
povos como manifestações absurdas, exóticas, “selvagens”, isto é, uma
“manifestação oca de sentido”, como nos fala Bona (2019), vazia e sem
significado aos olhos do branco, a cultura “negro-africana” passa a
ocupar o lugar de inferior, enquanto a branca ocidental que representa
a evolução e o signo humano seria a sua superior, essa sobreposição
dos corpos brancos diante a corporeidade negra, juntamente a diferença
racial, de que nos fala Denise Ferreira Silva (2001), que estabeleceu
uma ligação intrínseca entre o lugar de origem, corpos e formas de
consciência, garantem a hierarquização desses elementos, ao passo
que essa reitera a superioridade do homem branco enquanto grupo
dominante (GONZALEZ, 2020).

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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

É a partir dessa hierarquização entendida como natural que surgem


as dualidades branco/negro, razão/emoção, mente/corpo. Sendo a África
um continente tido como sem história, sem cultura e/ou civilização, o
seu componente, o negro, possui “uma natureza sub-humana”, ele é
“selvagem”, o “bárbaro” (BONA, 2019; GONZALEZ, 2020), isto é, o
elemento África-Negro é ligado a emoção, ao corpo, enquanto a razão
e a mente são elementos brancos, representados pela brancura. Essa
ligação da corporeidade negra ao corpo e emoção é um ponto importante
para a nossa análise, já que sabemos que no ocidente o corpo precisa ser
suprimido em nome da razão, temos aprendido nos espaços sociais que
o corpo precisa estar ausente, que ele precisa ser anulado.
O relato de bell hooks (2000) sobre seu primeiro dia de aula
como professora nos ajuda a entender isso, o corpo negro não aparece no
contexto dualista da metafisica ocidental. A anulação, o apagamento do
corpo, assim como a sua destruição total, pensando corpos negros, pode
ser entendida a partir da compreensão de que o corpo negro é o local em
que se inscreve o ódio branco, onde a violência racial se materializa, é o
ponto de encontro, o cruzamento da inscrição genocida e do epistemi-
cídio, considerando que estes são efetuados a partir da sua intersecção.
Discorrendo sobre o ambiente educacional, sabemos que este é um
espaço que ocupa uma posição estratégica na constituição das identidades
dos sujeitos, considerando as significações e representações a respeito
do corpo negro que podem estar presentes no ambiente educacional,
elas podem potencializar a construção da identidade negra ou estigma-
tizá-la, negando-a (GOMES, 2002). E como nos apresenta Eliane dos
Santos Cavalleiro (2003), que pesquisou o atravessamento do racismo
na educação infantil na cidade de São Paulo, nos mostra que o primeiro
contato da criança com a violência racial ocorre já nesse período, isto é, a
escola não está ausente de reproduzir e reiterar a norma estabelecida pela
violência racial, sobretudo se considerarmos que ela está atravessada pelo
racismo estrutural e institucionalizado que redireciona as experiências
que ali ocorrem. Como destaca Silvio Almeida (2018),
[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura
social, ou seja, do modo “normal” com que se cons-

60
Corpo e Afeto

tituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e


até familiares, não sendo uma patologia social e nem
um desarranjo institucional. O racismo é estrutural.
Comportamentos individuais e processos institucionais
são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e
não exceção (ALMEIDA, 2018, p. 38, grifos do autor).
A diferença racial, que como vimos possui um caráter hierárquico,
e assim é lida no ocidente (GOMES, 2014), no ambiente educacional é
transformada em deficiência e desigualdade, o/a aluno/a negro/a é, neces-
sariamente, visto/a como o/a aluno/a mais fraco/a, com mais dificuldades
de aprendizagem (GOMES, 2002). É preciso discorrer um pouco sobre a
transformação da diferença racial em desigualdade, primeiro cabe pontuar,
que a diferença racial marca o/a negro/a enquanto o/a Outro/a, a partir
da instrumentalização da raça, gênero, entre outros, como nos fala hooks
(2019), essa ideia de produção do/a Outro/a, que coloca a população negra
nesse lugar, marca, necessariamente, esta como o oposto do sujeito branco
que representa, neste caso, a intelectualidade, a beleza, o signo da huma-
nidade, isto é, a representação do aluno/a negro/a como os mais fracos/
as na sala de aula, com maiores dificuldades de aprendizado, também é
direcionada pelo compreensão de que a criança inteligente, fácil de ensinar,
esperta é a criança branca, e não a negra, isto é, a marcação, ou produção
da população negra como “o Outro” do sujeito “Branco” instrumentaliza
a produção das desigualdades no ambiente educacional.
No entanto, as explicações que surgem para justificarem essa
compreensão do aluno/a negro/a como os/as mais fracos/as na sala de
aula variam, por exemplo, as explicações sócio econômicas, essas que
muitas vezes acabam por isolar o/a negro/a somente dentro dessas con-
dições socioeconômicas que afligem toda a classe trabalhadora brasileira,
ignorando a influência e o atravessamento da raça, enquanto fenômeno
social. A autora Nilma Lino Gomes (2002) continua a respeito das
justificações, ela escreve que:
Quando a diferença étnica/racial é transformada em
deficiência, surgem também justificativas pautadas
num “psicologismo” que reduz as implicações histó-
ricas, sociais e econômicas que incidem sobre o povo

61
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

negro a comportamentos individuais: “alunos com


dificuldade de aprendizagem”, por exemplo. A ênfase
nesse “psicologismo” encobre o caráter excludente da
estrutura escolar brasileira, dando margem para que
a diferença cultural da aprendizagem seja vista como
desvio (GOMES, 2002, p. 40).
A diferença racial como nos mostra Gomes (2002) também reproduz
seu caráter essencialista no ambiente educacional, cria-se um vínculo entre
o corpo negro e “desvio”, a dificuldade de aprendizagem, o/a aluno/a mais
fraco/a. A autora, Vera Lúcia Neri da Silva (2002 apud TELES, 2010)
nos apresenta a representação e expectativas para com as crianças negras
dos/as professores/as da educação infantil. A autora, Carolina de Paula
Teles (2010), destaca que as crianças negras, sobretudo meninos negros,
apareciam quando as professoras descreviam as “crianças difíceis de ensinar”.
As crianças negras também eram sempre vistas como terríveis, agressivas,
teimosas, diferentemente das crianças brancas, ainda que essas tivessem
comportamentos parecidos (TELES, 2010; CAVALLEIRO, 2003). Essas
são situações que atravessam as trajetórias de vida da população negra,
inscrevem seus corpos em lugares construídos como apropriados pelo
racismo, dos quais o ambiente educacional não faz parte, dimensionando
vivências afetivas, desde crianças, perpassadas por olhares pejorativos,
descredibilidade, violências e violações de direitos.
Na pesquisa intitulada “Políticas de Ação Afirmativa: implica-
ções na trajetória acadêmica e profissional de afro-brasileiros/as cotistas
egressos/as da UEMS (2007-2014)”, Ana Luisa Cordeiro (2017) traz
o relato de um homem negro, cotista egresso do curso de Física, que
explicita como o racismo é uma engrenagem que no ambiente educacio-
nal transmuta as diferenças raciais em desigualdades educacionais, que
enfrentou ao longo do curso boicotes de um professor ao seu desempenho
acadêmico, conforme relato abaixo:
[...] então eu nunca tive aquele medo assim. Eu tinha
certeza que no final das contas eu é iria conseguir, que ia
ser difícil. É então é, preconceito de alguns professores
que, que não acreditavam talvez na, no meu êxito, eu
procurava responder é com ‘avali’, com minhas notas,
com meu desempenho. E na, uma das questões assim

62
Corpo e Afeto

é bem, bem polêmica eram as avaliações, as avaliações


subjetivas, apresentações de seminários, elaboração de
relatórios, onde cabia uma interpretação subjetiva. Então
é não em todos os momentos mas em alguns momentos
eu tenho impressão que eu fui é prejudicado referente a
isso. E assim, eu lembro que na, na minha apresentação
de seminário é o professor ele fechava, parecia que ele
colocava é um tapa-ouvidos, e colocava é um tapa-olhos
ali, e ele já tinha ‘talv’, parecia que ele já tinha pensado
antes o que ele ia falar sobre minha apresentação. Então
ele nem prestava atenção no que eu tava dizendo, é e depois
ele já tinha um discurso pronto pra dizer o que tinha feito.
E num era nada daquilo que eu tinha feito. Ai em alguns
momentos teve até o pessoal da minha turma percebeu
que o professor pegava no meu pé, ai alguns ainda ten-
taram interferir, assim me defender “mas professor você
tá dizendo que ele não explicou se ele explicou” ai o pro-
fessor foi é, usou naquele momento aquele seu poder todo
de autoridade pra é, pra fazer os outros alunos pararem
ali de, de tentar argumentar ao meu favor. É, só que ai
mesmo esse professor falou, falou, falou, eu fui levando
ali, porque tudo bem podia falar, falar, o meu objetivo
não era ‘faz’ ter um confronto direto, meu objetivo era
terminar o curso, então eu deixei ele falar, ele falou um
monte, foi assim em alguns momentos dolorosos, é que
‘de’ joga um pouco pra baixo assim, só que ai como nas
avaliações subjetivas ele já tinha as concepções que acabava
fundamentando ele me dar uma nota baixa, nas avaliações
objetivas eu procurava tirar uma nota boa (EGRESSO
6, 2016) (CORDEIRO, 2017, p. 144).
Este cotista egresso segue relatando ainda sobre como a subjetividade
racista do professor tentava minar sua intelectualidade, sua confiança,
como nas avaliações objetivas procurava recuperar suas notas uma vez que
nas avaliações subjetivas era afetado pelo racismo (CORDEIRO, 2017).
[...] ele pegou marcou uma avaliação pra uma data que
eu não poderia fazer porque eu trabalhava, ai eu peguei
e falei “professor eu não posso fazer nessa data e nesse
horário e não é uma data horário do curso”, ai ele pegou
a avaliação e pediu pra adiantar pra que eu fizesse então,
adiantasse a avaliação, que eu fizesse antes da, da turma.
Ai eu fiz essa avaliação antes da turma e fiz praticamente

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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

no gabinete dele, ele olhando pra mim o tempo todo,


cada linha que eu escrevia ele ficava olhando, no final eu
tirei uma boa nota na avaliação, acho que foi um nove,
nove ponto cinco, foi uma das melhores notas se não a
melhor nota da turma que fez a mesma avaliação, com
as mesmas questões que ele passou depois pra turma.
Então, eu não fui atrás depois pra ele me devolver essa
prova, ele nunca me procurou pra me devolver, mas só
sei que foi um dos momentos assim que realmente eu
senti que, que a pessoa não queria que eu continuasse no
curso. Ela queria de qualquer forma, não ‘peraí’ “vamo”
tirar essa pessoa daqui, que isso não pode dar certo. É
foi um, foram questões nesse sentido. Ai assim fora isso
‘né’ teve vários casos de professor dizendo assim “aqui
na universidade nós não temos que nivelar por baixo”,
foi o que eu vi assim por exemplo é, é uma fala muito
recorrente que eles, que eles faziam pra outros cotistas.
E assim, e quando por exemplo eu fazia algum tipo de
cálculo, alguma coisa muito sofisticada alguns olhavam
assim é de forma ascética não acreditando talvez que
eu tinha feito aquilo. Então por isso que eu digo que
pra mim foi um momento de aprendizagem, tanto pra
alguns professores ali que olhavam pra, pra isso como
uma forma de desconfiar, de não acreditar na capacidade
e como, como pra todos os alunos. Então, alguns alunos
também olhavam assim ‘nossa mas não é possível’ e no
final a gente entrou com uma turma de quarenta alunos,
alguns foram ficando, no segundo ano nós tínhamos
só dez ou quinze, no terceiro ano reduziu mais ainda,
acho que eram seis, no final formaram três no tempo
correto. E eu tive a felicidade de ser um desses três
(EGRESSO 6, 2016) (CORDEIRO, 2017, p. 144-145).
As falas do egresso nos ajudam a pensar o que está posto para a
população negra enquanto uma vivência coletiva e individual nos espaços
educacionais, o atravessamento afetivo de sua trajetória nos ambientes
educacionais. Como falamos, o racismo é uma engrenagem que trans-
forma, no ambiente educacional, as diferenças raciais em desigualdades
educacionais, ao passo que redireciona as vivências afetivas, a dimensão
do cuidado, do ensino-aprendizagem da população negra, isto é, há,
quando não, um descredito atribuído as realizações, o que Carneiro

64
Corpo e Afeto

(2011) chama de epistemicidio – o aniquilamento intelectual, que apa-


rece no exemplo trazido por Cordeiro (2017), há uma certa dimensão
de cuidado, do elogio, da atenção direcionada a esses corpos negros que
é um tanto quando “dura”, um afeto duro, enrijecido, como podemos
ver em Cavalleiro (2003), onde ela nos apresenta a forma com que as
professoras elogiam as atividades feitas pelas crianças. Ainda que seja
sutil, há uma certa diferença de tratamento, de direcionamento do afeto,
do elogio e cuidado que, certamente, é significativa para a construção da
identidade e da autoestima das crianças negras (CAVALLEIRO, 2003).
A diferenciação que aparece no relato feito pelo egresso, trazido
por Cordeiro (2017), e a comparação de tratamento feita por Cavalleiro
(2003) entre crianças negras e brancas, nos evidenciam uma desvalo-
rização sistêmica da corporeidade negra no ambiente educacional, de
seu entendimento e capacidade intelectual, como também a recusa pela
sua presença. Essa desvalorização sistêmica gerência o direcionamento
afetivo que é feito à população negra, o cuidado e a atenção, em que
as necessidades emocionais e afetivas da população negra no ambiente
educacional não são atendidas, isto é, temos aprendido a desvalorizar
as necessidades emocionais do povo negro, a supor que elas não são
importantes (HOOKS, 2010).
É necessário ainda pontuar a influência biológica que incide sobre
o corpo negro que influência essa desvalorização, isto é, concordamos
com Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2002), quando a autora escreve haver uma
certa influência biológica nas construções sociais ocidentais, isto é, a
experiencia negra é ainda atravessada e redirecionada pelas concepções
biológicas de raça, que incidiram sobre o corpo negro. E sendo essas
categorias biológicas elementos que não podem ser transformadas, por
assim dizer, isto é, sendo a cor da pele permanente, como aponta Col-
lins (2019), é possível entender como funciona a lógica racista diante
do corpo negro, entendendo as características supostas da corporeidade
negra como intergeracional e resistente a mudança. Ou seja, a identidade
negra ainda está sendo (re)direcionada pelos pressupostos racistas que
incidiram sobre seu corpo durante a constituição do racismo enquanto
ciência, no século XIX (GONZALEZ, 2020; SILVA, 2001).
65
Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

Essas autoras nos ajudam a entender a forma com que a violên-


cia racial por meio da “deseducação” de que nos fala hooks (2015) e o
“epistemicídio” – aniquilamento intelectual, conceitualizado por Sueli
Carneiro (2011), política direcionada aos corpos negros no ambiente
educacional (re)direcionam a construção da identidade negra em um
sentido pejorativo e negativo, que nega a sua humanidade, sua histórica
e identidade ancestral, sua contribuição e participação no “para o avanço
da humanidade nos níveis filosófico, científico, artístico e religioso”
(GONZALEZ, 2020, p. 136).
Ainda que esta política esteja posta para o povo negro, ela não é
aceita, não sem resistências, as existências inscritas em corpos negros
tensionam os ambientes escolares, estremecem e descontroem o racismo
científico que assinalou a branquitude enquanto lugar hegemônico de
humanidade, beleza, civilidade e intelectualidade. Para hooks (2017),
a resistência incide em linguagem política e solidariedade política para
resistir, para compreender o que nos afeta e o modo como o faz, além
dos meios que podemos tecer coletivamente para transformar a realidade.
Para a autora, isso se dará inclusive por meio de uma educação como
prática da liberdade a partir de um conhecimento libertador.
Podemos afirmar que este conhecimento libertador tem nas leis
10.639/2003 e a Lei n. 11.645/2008 suas principais ferramentas jurídicas
e institucionais como caminho de democratização de uma educação
antirracista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Jurandir Freire Costa (2019) nos fala que ser negro é ser violentado
constantemente, sem pausa, uma violência cruel que não para uma das
junções apresentadas por ele dessa violência é a da anulação da presença
do corpo negro, este não é um corpo desejado dentro da lógica da opres-
são racial, em que o branco, a brancura, é o representante e herdeiro do
progresso e desenvolvimento da humanidade, isto é, a representação
total da cultura, da civilização, da evolução humana, da beleza e da
intelectualidade (COSTA, 2019; GONZALEZ, 2020).

66
Corpo e Afeto

Essa passagem e todo o texto de Jurandir Freire Costa, nos reco-


menda a mudança de percepção em torno de nosso corpo, como escreveu
hooks (2000), é preciso chamar a atenção para o corpo, trair o legado
da opressão racial que o apaga em detrimento da mente. Como nos foi
mostrado por Bona (2019), o corpo, tanto na cultura indígena quanto
africana, está presente como um dos principais elementos de contato
com o mundo, o corpo possui um papel estratégico nessa interação, no
contato com o outro, com o humano e não-humano, isto é, os símbolos e
significados brancos são, necessariamente, insuficientes para pensarmos
a realidade e experiência negra, se mergulhamos na cultura negra, nesse
caso a afro-brasileira, notamos que nas religiões de matrizes africanas,
os povos de terreiros (SANTOS, 2018), o corpo sempre esteve presente
no âmbito cultural negro brasileiro, é preciso tomarmos ele como uma
instituição política, entende-lo enquanto ponto de partida para a (re)
construção de uma identidade negra.
A autora Gomes (2002; 2002a;) em suas várias contribuições para
o debate da identidade e corporeidade das crianças negras, aponta como
os signos e significados em torno do cabelo, por exemplo, influenciam a
construção da identidade da criança negra, assim como outras diversas
autoras e autores que fazem essa discussão, é preciso romper com a ideia
de que o corpo precisa estar ausente do ambiente educacional, chamar a
atenção para ele, de uma forma antirracista, já que sabemos que o corpo
negro não é, necessariamente, invisibilizado, ele a todo momento está
a vista, salta aos olhos.
A Lei n. 10.639/2003 e a Lei n. 11.645/2008 que visam a inserção
e valorização da cultura negra e indígena no ambiente educacional, suas
contribuições para o desenvolvimento da humanidade, apontam também
para valorização da corporeidade negra, sendo necessário (re)formular a
sua afetação e constituição, combatendo a ideia hierárquica que surge na
diferencia racial. É um processo no qual é preciso mudar a postura, o
discurso sobre o corpo negro, construindo práticas que visem a potencia-
lização de sua identidade, bem como sua cultura e história, reivindicando
a dignidade e a humanidade dos corpos negros pelo seu ponto de vista,
pelos seus interesses, considerando sua experiência e vivência.
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Wesley Henrique Alves da Rocha | Érika Aparecida de Oliveira (orgs.)

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de São Paulo, São Paulo, 2010.

69
SOBRE OS ORGANIZADORES

WESLEY HENRIQUE ALVES


DA ROCHA é natural de Ame-
ricana (SP). Atualmente reside em
Cuiabá (MT). É graduado em Psi-
cologia pela Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT), é Mestre e
Doutorando em Estudos de Lingua-
gem pelo Programa de Pós-Gradua-
ção em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso
(PPGEL-UFMT). Organizou os
livros Escrever e inscrever-se: espaços de voz e resistência (2020), Psicologia
e Educação: teoria e prática (2020); Descolonizando a Psicologia: contribuições
para uma prática popular (2021) e Racismo e antirracismo: reflexões, caminhos
e desafios (2021). É também autor do livro Diário de Bitita, de Carolina
Maria de Jesus: saltando os muros da subalternidade (2021).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2042954175386639
E-mail: [email protected]

E R I K A A PA R E C I DA DE
OLIVEIRA, nascida e criada em
Cuiabá (MT). Atualmente é psicó-
loga e mestranda no programa de pós-
-graduação em psicologia (UFMT).
L a t t e s : h t t p : // l a t t e s . c n p q .
br/2416404920152602
E-mail: [email protected]

70
ÍNDICE REMISSIVO

A J
afeto 2, 5, 31, 65, 71 jovens 25, 32, 39, 47, 71
afirmação 44, 48, 71 L
alienação 5, 7-11, 15, 16, 18, 19, 22, 23, 71
literatura 5-7, 20, 22, 23, 33, 47-57, 68, 71
alunos 34, 62-64, 71
literatura brasileira 5-7, 47, 48, 50-52, 57, 71
alunos negros 34, 71
literatura negra 23, 71
apagamento 21-23, 59, 60, 71
aprendizagem 21, 61, 62, 64, 71 M

B mulher 19, 25, 26, 47-56, 71

branco 13, 15-17, 35, 39-43, 48, 51, N


59-61, 66, 71 negritude 2, 5, 16, 17, 20, 35, 39, 43, 46, 71
C P
coletiva 38, 64, 71 patriarcal 48-51, 56, 71
conhecimento 5, 58, 66, 68, 71 poder 23, 24, 31, 58, 63, 71
corpo 2, 5, 12, 15-21, 25-27, 31, 49, 53, 58-60, política 18, 22-25, 31, 39, 47, 66-68, 71
62, 65-68, 71
população negra 2, 5, 15, 22, 32, 61, 62,
corporeidade 6, 15, 58-60, 65, 67, 71 64, 65, 71
criança 10-12, 19, 35, 39, 43, 48, 60, 61, 67, 71 preconceito 15, 34, 35, 46, 47, 62, 68, 71
crianças negras 5, 7, 34, 36, 38, 43, 44, 62, psicossocial 5, 36, 46, 71
65, 67, 69, 71
cuidado 52, 64, 65, 71 R
culpabilidade 56, 71 racismo 2, 5-9, 13-15, 17-19, 21, 22, 24, 27,
cultura 8, 13-16, 19, 20, 22, 23, 47, 59, 31, 32, 34, 35, 45, 46, 58-66, 68, 70, 71
60, 66-68, 71 racismo estrutural 5, 14, 21, 22, 27, 32, 60, 71
cultura negra 67, 71 raça 15, 23, 45, 47, 57, 58, 61, 65, 68, 69, 71
D S
desigualdade 14, 45, 61, 68, 71 saúde 34, 45, 68, 71
diáspora 23, 31, 47, 71 sociedade brasileira 23, 24, 71
E sociocultural 18, 36, 71
subjetiva 5, 7-9, 11-16, 63, 71
educacional 6, 7, 58, 60-62, 64-67, 71
subjetividade 13, 63, 71
educação 15, 22, 31, 45, 58-60, 62, 66, 68-71
escravidão 23, 24, 48, 71 T
F teatro 5, 20-22, 28, 32, 71
feminino 5-7, 38, 39, 41, 47, 48, 51, 53, 71 V
G violência 17, 23, 24, 32, 58-60, 66, 68, 71
vivência 35, 64, 67, 71
grupo 20, 28, 35-38, 42-45, 59, 71
gênero 37, 47, 49, 61, 68, 71
I
identidade 5, 7, 13, 19, 34-38, 44-47, 49, 51,
58, 60, 65-68, 71

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