Prática de intervenção nas violências na Amazônia
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Prática de intervenção nas violências na Amazônia - Luanna Tomaz de Souza
PARTE 1 - INTERVENÇÕES E EXPERIÊNCIAS NAS VIOLÊNCIAS DE GÊNERO NA AMAZÔNIA
1. ENTRE O ENGESSAMENTO JURÍDICO E A MILITÂNCIA PELAS MULHERES: RELATOS DE UMA FEMINISTA NEGRA PROFISSIONAL DO DIREITO ATUANDO NA COMBEL
Samara Tirza Dias Siqueira¹
1. INTRODUÇÃO
O presente relato diz respeito à minha experiência como servidora pública municipal, militante e ex-assessora da Coordenadoria da Mulher de Belém (COMBEL), no atendimento às mulheres do município e Região Metropolitana de Belém (RMB), em sua maioria vítimas de violência de gênero.
Aqui, pretendo discutir sobre a realização do acolhimento psicossocial e orientação jurídica, uma das atribuições da COMBEL, com base na minha função enquanto membra do Grupo de Trabalho Técnico Operacional, responsável pela orientação jurídica das mulheres que buscaram atendimento.
Inicialmente, destaco a importância da experiência na formação do pensamento de mulheres negras, inclusive, como forma de resistência ao silenciamento imposto pela academia branca e racista. Em seguida, apresento o trabalho exercido pela COMBEL, a partir das atribuições previstas no seu Regimento Interno. Por fim, discuto sobre a necessidade de um ensino jurídico crítico e humano, tendo em vista os desafios com os quais me deparei ao ser uma profissional do direito e militante no atendimento às mulheres em situação de violência.
2. EXPERIÊNCIA DE MULHERES NEGRAS NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO
Produzir conhecimento sempre foi algo caro às mulheres negras no Ocidente, em razão dos pressupostos de validação brancos que nos descaracterizaram enquanto sujeitas e empurraram-nos para o lugar de objeto. Nesse sentido, Patricia Hill Collins (2019, p. 401) explica:
Como os homens brancos de elite controlam as estruturas ocidentais de validação de conhecimento, os temas, paradigmas e epistemologias da pesquisa acadêmica tradicional são permeados por seus interesses. Consequentemente, as experiências das mulheres negras estadunidenses, e de todas as afrodescendentes, foram sistematicamente distorcidas ou excluídas do que conta como conhecimento.
Assim, temas importantes que atravessam a vida das mulheres negras foram silenciados e apagados, ou discutidos de forma superficial e equivocada.
Ao falar do conhecimento produzido pelas mulheres negras, nomeado como epistemologia feminista negra, Patricia Hill Collins (2019) explica que o primeiro paradigma de análise do conhecimento é a experiência.
experiência é algo tão relevante na epistemologia feminista produzida pelas mulheres negras, que é o fator de diferença entre conhecimento e sabedoria, sendo esta última imprescindível para a sobrevivência das mulheres negras ao racismo (COLLINS, 2019). Dessa forma, a experiência é capaz de conceder um status maior ao conhecimento, de modo que, nas palavras de Patricia Hill Collins (2019, p. 411): Conhecimento sem sabedoria é suficiente para os poderosos, mas sabedoria é essencial para a sobrevivência dos subordinados
.
Além disso, viver a experiência proporciona maior credibilidade e confiança nas reivindicações de conhecimento daquelas pessoas que se dizem especialistas em determinados temas relacionados à experiência narrada. Portanto, a experiência como critério de significado é um princípio epistemológico imprescindível para a formação do pensamento negro (COLLINS, 2019).
Todavia, ainda que a experiência seja fundamental para a produção de conhecimento de mulheres negras, também é utilizada pelo centro acadêmico como forma de invalidação do conhecimento, sob o argumento de deixá-lo enviesado.
Nesse sentido, Grada Kilomba (2019, p. 50) explica que o centro acadêmico é um espaço branco onde o privilégio de fala tem sido negado para as pessoas negras
. É um lugar em que, reiteradamente, os discursos teóricos classificam o conhecimento produzido pelas mulheres negras como inválido (KILOMBA, 2019).
As formas de saber, que não obedecem ao padrão eurocêntrico de conhecimento, são rejeitadas sob a justificativa de não serem científicas. Dessa forma, a ciência reflete as relações raciais de poder, que ditam a suposta verdade objetiva sobre a realidade e o sujeito credível (KILOMBA, 2019). Além disso, caracterizam o conhecimento produzido por mulheres negras como não neutro, arraigado de sentimentos e, portanto, acientífico, por relacionarem a sua teorização às suas experiências. Logo, afastado da objetividade e da neutralidade, o conhecimento que envolve a experiência, e ascende à sabedoria, é considerado inválido.
academicismo dominante relaciona-se de forma violenta com sujeitas/os marginalizadas/os, suas experiências e teorizações, espelhando a desigualdade histórica, política, social e emocional que moldou as relações raciais. Para lutar contra esta violência, Grada Kilomba (2019, p. 58) indica a necessidade de:
[...] uma epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar específicos, de uma história e uma realidade específicas – não há discursos neutros. [...] Eu, como mulher negra, escrevo com palavras que descrevem minha realidade, não com palavras que descrevem a realidade um erudito branco, pois escrevemos de lugares diferentes.
Portanto, a experiência na produção de conhecimento, além de conferir maior credibilidade, é essencial para denunciar dores, opressões e apontar para estratégias de luta e sobrevivência, que somente a sabedoria (conhecimento com experiência) é capaz de mostrar.
3. ATENDIMENTO ÀS MULHERES NA COORDENADORIA DA MULHER DE BELÉM (COMBEL)
A Coordenadoria da Mulher de Belém (COMBEL) foi criada pelo Decreto nº 63.033, de 8 de março de 2010, cuja finalidade, segundo o art. 1º do seu Regulamento Interno, é:
[...] promover no âmbito Municipal, políticas que visem a equidade de gênero, eliminar a discriminação e violência contra a mulher, assegurando-lhe o exercício pleno de seus direitos, sua participação e integração no desenvolvimento econômico, social, político e cultural.
Portanto, a COMBEL possui o objetivo de promover políticas públicas municipais para mulheres, de cunho multidisciplinar, para a sua participação e integração em vários setores sociais.
Ademais, a COMBEL deve ter uma atuação ampla em defesa das mulheres, conforme as competências listadas no art. 2º do Regimento Interno. Por isso, tem a competência de articular os órgãos da administração municipal para elaboração e viabilização das políticas públicas para as mulheres (inc. I); fomentar a execução de ações com órgãos governamentais e demais entidades em prol da garantia dos direitos das mulheres em diversas áreas, como renda, habitação, saúde, educação, cultura e outras áreas básicas de dignidade humana (inc. II); realizar parcerias com instituições públicas e privadas, em âmbito nacional e internacional, com o objetivo de cooptar recursos para a implementação de políticas públicas para as mulheres (inc. III); promover a formação da comunidade e das/os servidoras/es públicas/os municipais sobre assuntos voltados para as mulheres (inc. IV); promover a realização de estudos, pesquisas, encontros, reuniões e debates sobre a condição das mulheres e políticas públicas para este grupo (inc. V); sistematizar informações relacionadas às mulheres de interesse à Coordenadoria (inc. VI); promover eventos com disponibilização gratuita de informações e orientações sobre serviços básicos, como saúde, jurídico e assistência social (inc. X); prestar assessoria as entidades comunitárias sobre a sua organização e desenvolvimento (inc. XI); e propor e supervisionar a implementação de políticas públicas municipais para mulheres (inc. XII).
De acordo com o art. 3º do Regimento Interno, a COMBEL é composta por uma Coordenação Geral, Secretaria Administrativa e Grupo de Trabalho Técnico Operacional (GTTO), do qual eu fiz parte. Este grupo é formado por mulheres da área do Direito, Serviço Social e Psicologia, com experiência e conhecimento acerca das discussões de gênero, em consonância com o art. 3º, §3º do Regimento Interno.
Uma das atribuições da equipe do Técnico Operacional é prestar atendimento às demandas sociais das mulheres, relacionadas à saúde, emprego e renda, educação, cultura e acompanhamento das mulheres vítimas de violência, de acordo com o art. 5º, inciso XI, do Regimento Interno.
De forma mais imediata no trabalho da COMBEL, a equipe do Técnico Operacional realiza o acolhimento psicossocial e orientação jurídica: a psicóloga executa a escuta especializada; a assistente social é responsável por apresentar os programas de assistência dos governos municipal, estadual e federal, bem como encaminhar a acolhida para o órgão competente pelo cadastro no(s) programa(s) em que ela se encaixa; e o jurídico presta orientação no sentido de avaliar os fatos relevantes para o Direito e encaminhar a acolhida para o órgão que deve amparar a demanda apresentada, como a Delegacia da Mulher, Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Defensoria Pública, entre outros.
A maioria das mulheres que buscam o acolhimento estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica, dentre as quais, a maior parte é negra. Este é um dado muito importante, tendo em vista o direcionamento político da equipe.
A atuação do grupo ocorreu em um governo de esquerda, portanto, o ambiente político é comprometido com a mudança social e efetivo entendimento da realidade das mulheres vulnerabilizadas do município. Para além disso, o corpo de servidoras do GTTO da COMBEL era formado por mulheres negras e militantes, o que significa que adicionamos uma perspectiva ativista no desenvolver do nosso trabalho.
A grande demanda das mulheres que acolhemos, com base em um olhar jurídico, é de violência doméstica e familiar – sobretudo violência física – alimentos, divórcio e guarda. Elas estão em contextos diversos: por vezes, somente elas trabalham, em outras, dependem financeiramente do agressor ou de algum/a membro/a da família; são beneficiárias de programas de assistência de renda ou moradia; usuárias de drogas; desempregadas; aposentadas; servidoras públicas, entre outras.
Todavia, gostaria de chamar atenção para aquelas que se encontram atravessadas pelas categorias de raça, gênero e classe, e como a formação baseada nos feminismos negros é essencial para compreensão dessas realidades.
A minha atuação na COMBEL foi orientada pela intersetorialidade (estabelecida pelo art. 2º, inciso I do Regimento Interno) e interseccionalidade (esta última, sobretudo, por eu ter sido forjada pelas matrizes dos feminismos negros). Isso significa a priorização de um trabalho articulado com outras secretarias municipais, bem como a noção de que nossas atendidas podem estar situadas no entrecruzamento de raça, gênero e classe.
Com base no direcionamento da intersetorialidade, observando o previsto no art. 2º, inc. I, do Regimento Interno, a equipe priorizou a execução de políticas para as mulheres em parceria com as secretarias municipais, geralmente, responsáveis pelas matérias que as mulheres do município possuem maiores demandas. Assim, constantemente trabalhamos em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SESMA), Secretaria Municipal de Educação (SEMED) e o Banco do Povo, com o intuito de tratarmos, especialmente, a saúde das mulheres, promovermos cursos de capacitação e inserção na economia.
Logo, a intersetorialidade é importante para a execução de políticas públicas mais completas para as mulheres, que possam, realmente, suprir ao máximo as suas demandas, contribuindo para a garantia de direitos humanos básicos.
Já a interseccionalidade proporciona o entendimento de que na criação e execução de políticas públicas generalistas, muitas mulheres não serão contempladas, tendo em vista que o universalismo tende a privilegiar mulheres brancas, cis, de classe social média a alta e sem deficiência. Portanto, as nossas políticas precisam alcançar os bairros periféricos de Belém, as mulheres negras e pobres, para promovermos mudanças mais efetivas.
As mulheres que demandam o acolhimento da equipe do Técnico Operacional, geralmente, sofreram violência física, tem filhos/as com o agressor e estão vulneráveis economicamente. A procura pelo atendimento comumente se dá em razão da violência física ser mais perceptível, deixar vestígios e ter maior reprovabilidade social.
Nesse sentido, Virgínia Feix (2011, p. 204) ensina que a violência física é a forma mais evidente e identificável de violência doméstica e familiar contra mulheres, pois produz resultados visíveis e materialmente comprováveis, como ferimentos e hematomas, no entanto, não é caracterizada somente quando deixa marcas perceptíveis, mas também deve ser entendida como toda a forma de utilização da força física que ofenda o corpo ou a saúde da mulher agredida
.
Essa forma de violência contra as mulheres, quando ocorrida em âmbito doméstico e familiar, está prevista no art. 7º, inciso I, da Lei nº 11.340, também conhecida como Lei Maria da Penha (LMP): a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal
. É a forma de violência mais reconhecida pela sociedade e até pelas próprias vítimas.
Uma outra demanda de mulheres que recebemos diz respeito à violência psicológica em âmbito doméstico e familiar, mas que, diversas vezes, não é reconhecida como tal. Geralmente, as mulheres sofrem junto com a violência física, mas só chegam até a COMBEL em razão desta última.
De acordo com o art. 7º, inc. II, da LMP, a violência psicológica:
[...] entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Segundo Virgínia Feix (2011), a violência psicológica é intrínseca a todas as modalidades de violência doméstica e familiar contra mulheres. No entanto, é uma das mais difíceis de serem reconhecidas pelas vítimas, que relatam não terem denunciado para a polícia o agressor por não entenderem ter sofrido um tipo de violência. A violência psicológica impacta na dignidade da vítima, ao ponto de ela não entender como conseguirá viver após o relacionamento com o agressor.
Dessa forma, ter um organismo de políticas públicas para as mulheres em âmbito municipal, como a COMBEL, é importante para fortalecer o enfrentamento à violência contra as mulheres em âmbito doméstico e construir o protagonismo da vítima nesse processo, com escuta e orientações.
4. APONTAMENTOS PARA A INCLUSÃO DA LUTA PELAS MULHERES NO ENSINO JURÍDICO
Como profissional do direito e militante, quando me deparei com casos de violência doméstica e familiar contra mulheres na minha atuação, a percepção sobre a formação jurídica ser engessada e desumanizada, com caráter extremamente tecnicista, se aprofundou. Não aprendemos como devemos lidar com uma mulher vítima de violência de gênero. Somos treinadas/os para sabermos as leis de cor e salteado
e a sua aplicação, mas não como tratarmos as vítimas.
A crise
² no ensino jurídico no Brasil tem origem na formação das primeiras faculdades de Direito no país, que prezaram pela racionalidade, cientificismo e conhecimento totalizante típicos do eurocentrismo³ (GOMES, 2019).
A criação dos cursos jurídicos no Brasil ocorreu após a independência, visto que, até então, Portugal não aceitava a criação de faculdades de Direito no país. Quando o Brasil deixa de ser colônia portuguesa, iniciam-se as discussões para a implementação do ensino jurídico, sob a justificativa da necessidade de trazer luzes
aos brasileiros (GOMES, 2019).
Segundo Ana Cecília Gomes (2019), a independência brasileira é marcada pelo protagonismo dos bacharéis em direito formados pelas universidades europeias, que trouxeram para a colônia os ideais iluministas, os quais incentivaram e nortearam o rompimento com a metrópole portuguesa. De maneira simultânea, esta história silencia as estratégias e os marcos de resistência de povos indígenas e negros no Brasil, que lutavam contra a dominação de Portugal e a escravização, consolidando a imagem dos grupos racializados como sujeitos passivos perante os acontecimentos (GOMES, 2019).
A importação de um modelo europeu de ensino jurídico serviu para a manutenção dos processos de violência contra povos indígenas e africanos nas Américas, resguardando as esferas de poder e reafirmando um pacto liberal, antidemocrático, escravista e conservador. Assim, a formação dos cursos jurídicos no Brasil manteve a lógica de exclusão do capitalismo, da desumanização de pessoas e foi destinada, exclusivamente, às elites brancas rurais dominantes (GOMES, 2019).
Sob forte influência europeia, portanto, a colonialidade, como forma de permanência das hierarquias coloniais (GROSFOGUEL, 2008), moldou os espaços acadêmicos do Direito no Brasil. Para Ana Cecília Gomes (2019), a intelectualidade brasileira tem no eurocentrismo e na colonialidade a justificativa para a permanência das imposições sociais. Dessa forma, o ensino jurídico brasileiro é estruturado por uma matriz de colonialidade que mantém o padrão de poder colonial, imperialista, racista e sexista, que silencia as demandas dos mais diversos grupos vulnerabilizados pelos processos sociais que produzem desigualdades.
Nesse sentido, Jalusa Arruda, Anderson Oliveira e Natalia Carvalho (2022) afirmam que, em razão das heranças coloniais, o ensino jurídico reproduz valores racistas e cisheteropatriarcais. Tais heranças marcam o Direito como um campo de constante disputa, no qual as abordagens contra-hegemônicas buscam desconstruir o próprio Direito e as práticas jurídicas consideradas neutras, universais e abstratas (ARRUDA, OLIVEIRA, CARVALHO, 2022).
Dessa forma, a crise
no ensino jurídico retroalimenta pressupostos de uma sociedade extrema e perversamente desigual e produz o distanciamento das/os estudantes da realidade e de questões relacionadas aos grupos sociais vulnerabilizados, sobretudo pelos atravessamentos de raça, sexualidade e gênero (ARRUDA, OLIVEIRA, CARVALHO, 2022).
Para romper com essa lógica é necessário estimular uma formação capaz de instrumentalizar a práxis jurídica de afirmação da dignidade enquanto direito humano fundamental e do respeito às diferenças
(ARRUDA, OLIVEIRA, CARVALHO, 2022, p. 280). Esse rompimento pode ser alcançado por meio da práxis que os feminismos negros ofertam.
A interseccionalidade, como instrumento político teórico-metodológico (COLLINS, BILGE, 2020), é um caminho apresentado e aberto pelas feministas negras para visibilizar, denunciar e discutir as diversas violências que afetam as vidas das mulheres negras. A partir da interseccionalidade é possível disputar o ensino jurídico para promover maior sensibilidade às mais diversas questões sociais, além de fazê-lo como um campo de luta política.
Com base na orientação interseccional na minha atuação na COMBEL, pude compreender que mulheres negras em situação de violência doméstica e familiar viveram experiências raciais violentas e estão mais vulnerabilizadas a terem sua palavra desqualificada ao procurarem um órgão público para denunciar a sua situação. Também me fez refletir que as violências psicológicas e morais podem ter conotação mais graves pela possibilidade de serem informadas pelo racismo. Outra questão é o acesso aos órgãos competentes por falta de dinheiro para passagem de ônibus ou representação por advogadas/os, uma vez que a Defensoria Pública não consegue suportar toda a demanda que recebe.
Em suma, a minha sensibilidade profissional no atendimento às mulheres foi possível em razão dos aprendizados adquiridos enquanto militante. Por isso, acredito que a luta dos movimentos, sobretudo de mulheres negras, pode contribuir imensamente para a humanização do ensino jurídico.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do meu olhar profissional de atendimento às mulheres em situação de violência, vislumbro a humanização da formação jurídica como método de enfrentamento e forma de evitar revitimização. Precisamos entender e adotar os pressupostos feministas de manuseio do Direito para reconhecermos a vítima enquanto sujeito no contexto de violência, não mero objeto que precisa ser salvo.
Nas diversas situações que chegaram até a COMBEL, a influência de classe e de raça foi latente, cuja percepção é imprescindível para pensar a metodologia dos acolhimentos e a criação e execução de políticas públicas para mulheres do município.
Por fim, a minha experiência na COMBEL me faz apontar para uma mudança urgente na nossa formação jurídica e a compreensão de que as mulheres são diversas, bem como os seus atravessamentos merecem atenção para uma intervenção mais efetiva no enfrentamento das violências.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, Jalusa; OLIVEIRA, Anderson; CARVALHO, Natalia. Do ensino jurídico à sala de aula feminista: a experiência no Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, v. 7, n. 21, p. 273-291, 2022.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Tradução de Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2020.
CONGRESSO NACIONAL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. [S. l.], 7 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 21 nov. 2022.
FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 201-213, 2011.
GOMES, Ana Cecília de Barros. Colonialidade na academia jurídica brasileira: uma leitura decolonial em perspectiva amefricana. 2019. 280 f. Tese (doutorado em direito) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito, 2019.
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista crítica de ciências sociais, n. 80, p. 115-147, 2008.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
PREFEITURA MUNICIPAL DE BELÉM. Decreto nº 63.713, de 21 de maio de 2010. Homologa o regimento interno da Coordenadoria da Mulher de Belém, e dá outras providências. [S. l.], 10 jun. 2010. Disponível em:
1 Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD-UFPA). Especialista em Análise de Teorias de Gênero e Feminismos na América Latina pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (IFCH-UFPA). Assessora parlamentar na Câmara Municipal de Belém.
2 Se refere à aplicação do ensino tecnicista, acrítico e desumanizado (ARRUDA, OLIVEIRA, CARVALHO, 2022).
3 [...] o eurocentrismo é entendido como uma relação de poder, não é somente a perspectiva de quem é europeu, mas dos que estão sob o signo da hegemonia eurocêntrica, possuindo, portanto, uma relação com a construção social de todos os povos
(GOMES, 2019, p. 35).
2. PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO: UMA FERRAMENTA PARA REESCRITA FEMINISTA DE DECISÕES JUDICIAIS
Cristiane da Silva Gonçalves⁴
Luanna Tomaz de Souza⁵
1. INTRODUÇÃO
A reescrita de decisões judiciais em perspectiva feminista é um projeto colaborativo que envolve pesquisadoras do mundo inteiro. O projeto foi inaugurado pelo Women’s Court of Canada (WCC) em 2004, desde então a reescrita de decisões tem alcançado inúmeros países, dentre eles o Brasil. O objetivo das pesquisadoras canadenses era demonstrar que as decisões da Suprema Corte do Canadá poderiam ser escritas de forma juridicamente diferentes e que a reescrita tinha o potencial de ficar ao lado e, talvez, até superar a decisão proferida pelos magistrados (KOSHAN, 2018).
Em todas as outras experiências que ocorreram, embora com abordagens feministas teóricas e metodológicas distintas, é possível verificar que havia um fator semelhante entre elas: romper com a suposta neutralidade do direito (HODSON; LAVERS, 2019; SILVA et al, 2021).
A reescrita aqui no Brasil não foi diferente. O projeto brasileiro, que conta com a participação de acadêmicas de universidades públicas e privadas de diversas regiões do país, busca criticar o desaparecimento de sujeitos pelo direito. Isso porque a falsa concepção de imparcialidade e neutralidade na realidade refletem um posicionamento excludente e discriminatório de grupos marginalizados, como as mulheres (SILVA, 2023).
Inegável é, portanto, que a exclusão sistêmica de determinados grupos alcança o processo de tomada de decisões judiciais. E esse fato não é desconhecido pelo judiciário, uma vez que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero⁶, aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria n. 27, de 2 de fevereiro de 2021, com o objetivo de orientar magistrados e magistradas para a garantia ao acesso das mulheres à Justiça e ao enfrentamento à violência de gênero⁷.
Recentemente a Resolução nº 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.
O Protocolo apresenta como base o método interpretativo-dogmático, cujo objetivo é interpretar o direito de maneira não abstrata, atenta à realidade, buscando identificar e desmantelar as desigualdades estruturais (CNJ, 2021). O método é utilizado como uma ferramenta de análise do direito, em que o princípio da igualdade antisubordinatória torna visível as desigualdades estruturais que podem permear determinada demanda judicial.
Como guia interpretativo, o princípio da igualdade orienta que a decisão do Judiciário deve ser voltada a desafiar e reduzir as hierarquias sociais, buscando, portanto, um resultado igualitário. O objetivo deste trabalho é então discutir o uso do protocolo como ferramenta na reescrita de decisões em perspectiva feminista e para a construção de novos contornos jurídicos.
Para este trabalho, então, tomamos como objeto de pesquisa as orientações apresentadas pelo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, com o intuito de investigar de que forma ele pode contribuir para a reescrita feminista de decisões judiciais. Serão explorados como referenciais teóricos os livros e artigos sobre reescritas e sobre feminismos jurídicos.
Este artigo foi divido em três seções. No primeiro momento, discute-se os pressupostos teóricos do projeto de julgamentos feministas, com o objetivo de compará-los com as bases do Protocolo. Posteriormente, são apresentadas as orientações gerais do referido documento. Em seguida, discute-se, a partir do referencial teórico, a contribuição do Protocolo para a reescrita e para novos horizontes de decisão⁸.
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO PROJETO DE REESCRITA DE JULGAMENTOS EM PERSPECTIVA FEMINISTA
Dentro do projeto de julgamentos feministas podemos destacar três pressupostos centrais: a crítica à imparcialidade e a neutralidade do direito, que leva a exclusão de grupos marginalizados; a compreensão de que a reescrita pode ser um caminho para reformar o direito, tornando o mais acessível; e a valorização da pluralidade das perspectivas feministas (SILVA 2023).
Com relação ao primeiro pressuposto destacado, entende-se que apesar da alegada neutralidade das regras e processos para a tomada de decisão, juízas e juízes proferem decisões informadas por diversos marcadores sociais, como gênero, raça e classe. Contraposto a isso, o método de análise feminista busca revelar e se opor ao viés da dinâmica de poder, inerentes à suposta neutralidade da lei, incluindo e afirmando a relevância de fatos que são importantes para aqueles que estão fora da visão dominante. Assim, a análise feminista lança luz sobre fatos ou tópicos que o direito muitas vezes evita ou eufemiza, como a violência contra as mulheres dentro do processo judicial (BERGER et al, 2016).
Soraia da Rosa Mendes e Isadora Dourado (2022) intitulam a violência processual contra mulheres como "lawfare de gênero"⁹. Segundo as autoras, determinados procedimentos jurídicos e até mesmo a legislação podem ser utilizados para perseguir mulheres, tidas como inimigas processuais. Sugerem, então, que nomear e identificar o lawfare de gênero é uma forma de denunciar homens que exploram o sistema de justiça, dando continuidade a outras práticas de violência contra mulheres. Além disso, enfatizam que essa violência também é encoberta pela pretensa neutralidade e imparcialidade do sistema de justiça.
De forma breve, um exemplo marcante da violência no sistema de justiça diz respeito à Lei de Alienação Parental (LAP), Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010¹⁰. Recentemente peritos da Organização das Nações Unidas (ONU), apelaram ao governo federal para combater a violência contra as mulheres e meninas e revogar a referida lei:
A lei levou à proliferação da aplicação da teoria da alienação parental pelos tribunais de família – apesar da ausência de justificação clínica ou científica para tal. A lei também permitiu, em grande medida, que os pais acusados de violência doméstica e abusos fizessem com sucesso falsas acusações contra as mães com as quais se encontrassem em disputas de custódia (ACNUDH, 2023, s.p).
Dentro do processo judicial que envolve a LAP, os estereótipos de gênero também são utilizados como forma de ofender a genitora. Os advogados, por intermédio de suas petições, reproduzem nos autos diversos insultos às mulheres, empregados inclusive dentro da própria relação marital. Discurso este que é acatado pelo judiciário, o qual passa a adotar os rótulos nas decisões, implicando na violência institucional que opera como mecanismo da violência psicológica impetrada pelo genitor/abusador (BORGES KOPP et al, 2023).
Em temáticas como essa, os projetos de reescrita de julgamentos feministas podem contribuir para evidenciar as dimensões discriminatórias, uma vez que refletem acerca do posicionamento excludente e discriminatório de grupos marginalizados dentro do direito. Consideram-se, assim, as decisões judiciais como contingenciais, o que muito se assemelha ao conceito de lawfare de gênero, por isso a reescrita pode ser uma possibilidade de interpretação mais acessível do universo jurídico.
Ao reescrever importantes julgamentos internacionais, Loveday Hodson e Troy Lavers (2019) buscaram demonstrar, por meio da reescrita, as possíveis alternativas às desigualdades estruturais que atingem o curso do processo judicial e expor a cumplicidade das sentenças com a injustiça e a opressão. As sentenças reescritas avaliaram o contexto histórico dos casos e colocaram no centro da análise os direitos das vítimas.
Considerar o contexto social, político, econômico e cultural é outra marca dos julgamentos feministas, ainda mais porque a discriminação de gênero afeta cada mulher de maneira distinta. Devido a isso, para a melhor análise das demandas direcionadas ao sistema de justiça envolvendo uma mulher ou grupo específico de mulheres, é necessário que os agentes do sistema de justiça busquem tomar conhecimento da complexidade do contexto que ela está inserida (SAVERI, 2016). Aqui identificamos outro pressuposto teórico: a valorização da pluralidade de perspectivas feministas.
Segundo Fabiana Cristina Severi (2016), a relação entre direito e ordem social patriarcal é complexa, estando imbricada a diversos eixos de dominação. Ao mesmo tempo em que é variável, tendo em conta as fissuras e ambiguidades que podem ser exploradas como meios estratégicos para transformações sociais contra as opressões e desigualdades. E é a partir dessas fissuras que os julgamentos feministas, bem como o Protocolo encontram caminho para se colocar como oposição a discriminação de gênero do poder dominante.
3. ORIENTAÇÕES GERAIS DO PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO
O Brasil é signatário de diversos tratados e convenções internacionais que objetivam a proteção das mulheres, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW — Decreto 4.377/2002). Ainda no artigo 1º da referida Convenção encontramos a definição jurídica do que é discriminação contra a mulher, considerando-a como a exclusão sistemática, em razão do gênero, para prejudicar ou anular o exercício de direitos fundamentais¹¹.
Ao ratificar a Convenção, o Brasil assumiu o compromisso de adotar providências para eliminar a discriminação de gênero no espaço privado e público, o que inclui, portanto, o Poder Judiciário. Contudo, em algumas situações, aqueles que deveriam perquirir a justiça e zelar pelo cumprimento do direito das mulheres acabam por provocar a revitimização nos casos de violência que chegam até ao juízo, sob alegação da aplicação neutra do direito.
Diante desse cenário, o Comitê da CEDAW criou a Recomendação Geral nº 33¹² para tratar sobre o acesso das mulheres à justiça. Recomendou-se que os estados-partes adotassem medidas para incluir programas de conscientização e capacitação de todos(as) os(as) operadores(as) do direito, para se eliminar os estereótipos e incorporar a perspectiva de gênero aos aspectos do sistema de justiça. E é a partir deste contexto que nasce o Protocolo para Julgamento sob Perspectiva de Gênero.
Utilizando o método interpretativo-dogmático, o Protocolo apoia-se no entendimento de que a interpretação atravessada por uma suposta neutralidade acaba por reproduzir ainda mais discriminação e violência. Desse modo, sustenta que as diferenças econômicas, culturais, sociais e de gênero das partes na relação jurídica processual devem ser consideradas para que haja um julgamento mais justo (CNJ, 2021).
O documento está organizado em três partes: conceituação; passo a passo para a aplicação do Protocolo; e a questão de gênero aplicada a cada ramo da justiça. O Protocolo é abrangente, trazendo bases de interpretação para o direito privado, público e penal.
Inicia desmistificando a imparcialidade jurídica, informando que a sociedade brasileira é marcada por profundas desigualdades que impõem desvantagens sistemáticas e estruturais a determinados segmentos sociais. Em razão disso, a interpretação e a aplicação do direito estariam atravessadas por essas questões, fazendo com que o patriarcado e o racismo estivessem presentes na atuação jurisdicional (CNJ, 2021).
O Protocolo também embasa a sua construção metodológica no trabalho de Iris Marion Young (2012) e Alda Facio (2002), as quais defendem que a própria ideia de neutralidade já gera parcialidade, tendo em vista que um sujeito universal será o informado no julgamento. E esse sujeito universal tende a ser homem, branco, cisgêneros e heterossexual.
A segunda parte do Protocolo apresenta um passo a passo de como julgar com perspectiva de gênero. De acordo com o Protocolo, o primeiro passo é identificar os marcadores sociais que estão imbricados no contexto do conflito. Nesse ponto, enfatiza a importância de questionar as assimetrias de gênero sob a perspectiva interseccional. Após isso, o magistrado deve avaliar se a mulher está em situação de vulnerabilidade e tomar as medidas necessárias para que a justiça seja um espaço igualitário a ela (CNJ, 2021).
Outro passo imprescindível, diz respeito à Instrução Processual, uma vez que senão conduzida com a perspectiva de gênero, poderá criar um ambiente de violência institucional, como nos casos em que se questiona a qualidade da maternidade ou o comportamento da mulher, tendo como base os papéis de gênero socialmente atribuídos (CNJ, 2021).
Antes de interpretar e aplicar o direito, destaca que outros dois pontos devem ser seguidos para concretizar o julgamento com perspectiva de gênero. Em relação a valoração da prova, esta deve ser pautada no seguinte questionamento: uma prova faltante de fato poderia ter sido produzida? Essa pergunta deve nortear, especialmente, os conflitos que ocorrem em locais privados onde a produção de provas é mais difícil, como os casos de violência doméstica (CNJ, 2021).
Feita a análise das provas, passasse para a identificação do marco normativo e precedentes nacionais ou internacionais que envolvam mulheres, nas suas intersecções com outros marcadores da diferença. Após a apreciação de fatos sob a perspectiva de gênero, chega-se à interpretação e aplicação do direito, a qual será pautada na igualdade substantiva e na não discriminação (CNJ, 2021).
Ao tratar a neutralidade como mito, revela-se que a objetividade e neutralidade são pilares ideológicos que servem aos interesses de um único sujeito (PARK; BUCHOLTZ, 2009). Por isso, existe a necessidade da delimitação de parâmetros de julgamentos com perspectiva de gênero, uma vez que, muito embora existam legislações que tentam implementar a igualdade de gênero no sistema judiciário, a aplicação desses diplomas normativos geralmente não atinge o objetivo desejado (MAGANE, 2022).
A partir desta breve descrição do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, observa-se que por estar pautado nas bases da metodologia feminista, apresenta os pressupostos teóricos da reescrita feminista de decisões judiciais ao longo do seu texto, construindo, assim, um guia denso e comprometido com a busca de justiça social para as mulheres.
4. REESCREVENDO A DECISÃO DO CASO DE PILAR
A Clínica de Atenção à Violência (CAV), do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, integra o projeto nacional de reescritas e colaborou com a reescrita de um caso atendido pela própria Clínica. Pilar¹³ foi uma das assistidas da CAV, tendo recebido assistência jurídica e psicossocial no âmbito da Clínica, durante todo o curso processual que culminou em uma decisão liminar com diversas violações ao direito da mulher e das crianças.
Por esse motivo, o caso de Pilar foi escolhido pela CAV para ser reescrito, a partir das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Em linhas gerais, a decisão reescrita foi proferida para julgar o pedido de busca e apreensão do pai dos filhos de Pilar, a qual fugiu para o Brasil acompanhada das crianças, após várias ocorrências de violência doméstica.
Seu país de origem se manteve inerte diante da violência e ainda beneficiou o pai, diminuindo o espaço de guarda da mãe. Mesmo após pleitear refúgio no Brasil, consoante previsão da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, o pedido foi negado, tendo sido solicitada a sua extradição e determinada a busca e apreensão das crianças a pedido do ex-marido, nos termos da Convenção de Haia (SOUZA, SMITH, 2018).
O pedido de extradição foi negado, contudo, o juiz federal que analisou o pedido de busca e apreensão, proferiu decisão liminar determinando o retorno imediato das crianças ao país de origem. Para isso, privou Pilar ao direito de contraditório, desconsiderando os interesses dos menores, argumentando que a Convenção de Haia privilegia o retorno das crianças ao país de origem e que as exceções ao retorno imediato não estavam presentes no caso. Ademais, sustentou que o contato com os costumes e familiares do país de origem trariam mais benefícios aos menores (SOUZA et al, 2023).
No caso de Pilar, as orientações dispostas no Protocolo, desde a aproximação com o processo até a aplicação e interpretação do direito, foram seguidas como parâmetros norteadores para reescrever a decisão. O primeiro passo foi colocar em destaque o marcador social de gênero, haja vista se tratar de uma mulher que fugiu de seu país de origem, após situações de violência. Desse modo, o princípio do melhor interesse da criança e de proteção à mulher em situação de violência foi colocado em evidência.
Em que pese o magistrado ter entendido que o contato com os costumes e familiares do país de origem trariam mais benefícios ao desenvolvimento psíquico e o equilíbrio físico e emocional das crianças, chama a atenção a falta de uma avaliação psicossocial com Pilar e seus filhos durante a Instrução Processual. Na realidade, não se considerou uma instrução probatória com perspectiva de gênero que tivesse atenção aos elementos faltantes como o próprio depoimento da mulher e das crianças.
Com base no Protocolo, considerou-se a ausência de avaliação psicossocial como uma prova faltante, por isso na decisão reescrita determinou-se a elaboração de avaliação psicossocial da genitora e das crianças, no intuito de verificar quais eram as suas condições no Brasil, especialmente a sua integração ao contexto local e o possível risco no retorno ao país de origem (SOUZA et al, 2023).
Considerando esses fatores, deu-se outra interpretação à Convenção de Haia, agora guiada pela perspectiva de gênero. Percebeu-se, então, violações a esta Convenção, mas também a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW de 1979, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990 e a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951.
Ao fim, a decisão reescrita sob perspectiva de gênero, negou liminarmente a entrega imediata das crianças ao pai e designou audiência para oitiva da mãe, do genitor e das crianças, dando direito a ampla defesa e ao contraditório.
Nesse sentido, constatou-se que se o juiz tivesse utilizado o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, o processo judicial teria respeitado princípios jurídicos fundamentais no ordenamento brasileiro, assim como internacional. Além disso, não haveria a revitimização da mulher durante o curso processual.
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se concluir, com base na reescrita do caso de Pilar, que o Protocolo é um guia interpretativo essencial para orientar a atuação de magistradas e magistrados a evitar a reprodução de estigmas e discriminações de gênero no processo decisório.
Abordagens interpretativas que considerem os marcadores sociais são imprescindíveis para a aplicação mais justa do direito, pautada no princípio da igualdade substancial. Nesse sentido, o Protocolo se apresenta como instrumento da hermenêutica jurídica feminista, cujo filtro interpretativo é a perspectiva de gênero. Assim, constitui uma agenda com que os teóricos críticos do direito e juízes podem contar (MAGANE, 2022).
Inicialmente o Protocolo deixou algumas brechas, sobretudo em relação às estratégias para implantar o julgamento sob perspectiva de gênero nos Tribunais brasileiros. Embora criado em 2019, foi somente em 2023 que o CNJ, por intermédio da Resolução nº 492, de 17 de março de 2023¹⁴, instituiu a obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, quanto a conteúdos relacionados à direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, conforme as diretrizes previstas no Protocolo (CNJ, 2023).
Ainda que apresente vastas possibilidades hermenêuticas, o documento não indica um plano de implantação concreto e efetivo para o delinear das sentenças e decisões proferidas. Desse modo, a Resolução