Gildon-Oliveira - Vermelho Melodrama
Gildon-Oliveira - Vermelho Melodrama
Gildon-Oliveira - Vermelho Melodrama
Salvador
2013
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Salvador
2013
3
Banca examinadora
Àqueles que, assim como eu, emocionam-se por tudo, sem pudores e com intensidade.
5
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Raimundo Matos de Leão, pelo caminho percorrido juntos e por
tudo o que isso representa para o meu aprendizado.
E à minha família e aos amigos de sempre, porque sempre estão onde precisamos e
quando precisamos.
6
RESUMO
Esta dissertação tem como ação fundamental a construção da narrativa dramática ficcional
para o teatro Vermelho rubro amoroso... profundo, insistente e definitivo! e uma reflexão
crítica do processo de criação da peça teatral considerando uma investigação teórica sobre o
gênero dramático melodrama e a composição de estratégias de produção de efeitos
emocionais. Neste trabalho, são configuradas diretrizes para um exercício de construção da
fábula em que o dramaturgo se dispôs a compor estratégias de produção de efeitos
emocionais, em especial os modos de relação entre a expressão das emoções das personagens
e a convocação, através da dramaturgia, da disposição emocional do espectador, considerando
a apreciação como uma experiência que envolve a subjetividade humana em diversas
dimensões, sendo a dimensão emocional com as possíveis reações afetivas de um apreciador,
o interesse maior deste estudo.
ABSTRACT
This dissertation is the construction of the fundamental action dramatic narrative fiction to
theater Red crimson love ... deep, persistent and permanent! and a critical reflection of the
process of creating the play considering a theoretical investigation of the dramatic genre of
melodrama and composition strategies to produce emotional effects. In this work are set
guidelines for building exercise fable in which the playwright was willing to compose
strategies to produce emotional effects, especially the relationship between the modes of
expression of the emotions of the characters and the call through the drama, the emotional
disposition the viewer considering the appraisal as an experiment that involves human
subjectivity in various dimensions and the emotional dimension with the possible emotional
reactions of a connoisseur, the interest of this study.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1.7.1 Monólogo 37
1.7.2 Aparte 38
1.7.3 Reflexão 40
1.7.4 Confidência 41
1.7.5 Melodia 44
1.7.6 Alívio Cômico 45
1.8 TEMÁTICAS 46
REFERÊNCIAS 153
10
INTRODUÇÃO
- Vai começar.
- É mais uma daquelas?
- Sim.
- Não sei como não se cansa. É tudo igual.
- Parece igual, mas não é.
- Tem sempre uma mocinha, um herói, um vilão. O bem contra o mal num embate
constante. No final, o mal é castigado e o bem é recompensado.
- Eu sei.
- E então?
- O que me prende não é tanto o que acontece, mas a maneira como acontece. Entende?
Gosto de acompanhar do comecinho, quando tudo é paz e sossego, quando o destino
tece a teia e coloca o par romântico um diante do outro e eles se olham... assim... e
pronto.
- Até o vilão entrar na história e arquitetar um plano para separá-los.
- Uma ameaça que deixa a gente preso, vidrado na história, tamanha a angústia e a
ansiedade. O coração parece que vai sair pela boca a cada investida.
- Mas todo mundo sabe que o casal romântico vai vencer os obstáculos.
- Claro! Eles estão predestinados a ficarem juntos. O amor tudo pode... Ai!
- Você já está chorando?
- Só de imaginar o longo caminho que irão percorrer. Quantas adversidades! Quantas
peripécias! Quantos desencontros e contratempos! Tudo muito doloroso!
- Se é doloroso então, para.
- Só depois que houver a punição para os ruins e a felicidade para os bons. Até lá fico
com o coração na mão: refrão por refrão, quadro a quadro, página por página, cena a
cena, fala por fala... Ai!
- Você gosta de sofrer.
- Assim? Desse jeito? Quem não gosta?
Não imagino melhor forma de dar início a este trabalho sem fazer proveito
daquilo que tenho de mais forte em mim: o desejo constante de escrever narrativas
dramáticas ficcionais. Assim, faço uso do recurso textual para introduzir meu estudo,
11
compondo esse breve diálogo dramático que nada mais é do que um exercício criativo
oriundo das referências que acumulei ao longo dos anos.
Este empirismo corrobora a impressão que tenho de que a formação de uma obra
de arte, os procedimentos para sua elaboração são, como afirma Pareyson (1993),
exercícios de tentativas, de um ―[...] tentar que não se apóia senão, em si mesmo e no
resultado que espera obter [...]‖ (PAREYSON, 1993, p.69), além de uma materialização
do sensível, pois como aponta Cecília Salles (2009), a sensibilidade permeia todo o
processo criativo fazendo com que a criação parta de e caminhe para sensações e, nesse
trajeto, alimente-se delas.
Vi-me inúmeras vezes cercado por narrativas de teor melodramático e
circundado por comentários elogiosos ou pejorativos acerca do gênero ou do produto
que continha características dessa tipologia. Do melodrama e sobre o melodrama, ouvi,
li e vi de tudo um pouco. Muitas afirmativas, muitas negativas, mas nunca testemunhei
a indiferença para com ele. Apropriando-me do universo rodriguiano, digo com ousada
propriedade: Alguém indiferente ao melodrama, pode até ter, mas, duvido.
Contar uma história de forma tal que seduza, emocione e encante sempre me
pareceu algo fantástico, pois muitas vezes me vi seduzido, emocionado e encantado ao
fruir um romance, uma peça teatral, uma música, um filme, uma telenovela... E, assim,
vejo-me ainda hoje.
Tendo certa intimidade com os pormenores da concepção de uma obra artística,
como uma narrativa dramática ficcional, ainda assim, parece-me fantástico que, no
momento da apreciação, o receptor possa se deixar envolver pela história e verter
lágrimas tão sinceras diante de uma fábula, algo que pertence ao não-real, à ficção.
Nessa dinâmica entre realidade e ficção, entre real e simulacro, tenho na emoção um
lugar de fascínio, pois independente do disparador, seja um acontecimento do cotidiano
ou um evento ficcionalizado, ela, a emoção, acontece de forma verdadeira. Assim fui
preenchendo o meu imaginário e repertório cultural com obras artísticas que pareciam
primar pela evocação das emoções do receptor.
Dentro da literatura dramática, o encontro com o gênero melodrama foi
inevitável, assim como a identificação e apropriação de sua linguagem, pois quando
olho com mais atenção para minhas experiências artísticas, me vejo sempre atraído
pelas personagens mais viscerais em meio a conflitos intensos e situações dramáticas
12
extremas. Tenho gosto pelo forte, dinâmico e pulsante ao acompanhar histórias que
surpreendem, tiram o fôlego e emocionam.
Em seu livro O prazer do texto, Roland Barthes sugere a possibilidade de se
criar uma tipologia de leitores, a depender do tipo de prazer que encontram em
diferentes tipos de texto.
1
Peça teatral escrita por Nelson Rodrigues em 1943.
2
Música composta por Raul Sampaio e Ivo Santos em 1961. Tem como um dos interpretes mais célebres
o cantor Waldick Soriano.
3
Filme dirigido por Walter Salles em 1998 e roteirizado por Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro.
13
4
Telenovela produzida e veiculada pela Rede Globo em 1987. Adaptação de Walter Negrão da obra
radiofônica A noiva das trevas de Janete Clair.
5
De forma oportuna, esses termos serão retomados e mais aprofundados durante as explanações ao longo
dos capítulos.
14
sentimento, emoção, pois, assim, também seria de certa forma possível mensurar a
capacidade do dramaturgo6.
Segundo Gomes (2003), numa obra, são muitos os tipos de programação de
efeitos construídos por estratégias de composição. Entre as muitas estratégias de
produção de efeitos existentes, este trabalho volta sua atenção para a estratégia de
produção de efeitos emocionais nos quais a organização dos elementos dramáticos se
destina à produção de emoções e de sentimentos, à medida que acessa, através da
representação, o universo reconhecível do espectador e seu campo comum de emoções.
O estudo, que aqui se propõe, faz uso desses termos brevemente abordados
como fundamentação para o momento que precederá às reflexões acerca do gênero
melodrama e das estratégias para a produção de efeitos emocionais: a composição de
uma narrativa.
Uma narrativa pode ser considerada como a descrição ou exposição detalhada de
um fato através de um sistema de códigos linguísticos compartilhado por todos os
envolvidos no mesmo processo de comunicação.
Para este trabalho, procuro limitar-me à ideia da narrativa usada a serviço da
literatura dramática de ficção, abrindo caminho para pensar nas possibilidades de
construção de uma narrativa dramática ficcional dentro do gênero melodrama.
Ao tratar de emoção, atenho-me, em comunhão a Ximenes (2000), a acepção do
termo como uma reação, uma impressão subjetiva do organismo a um determinado
acontecimento. A partir desta possível definição, encaro o termo sentimentalidade7, e
ainda de acordo com Ximenes (2000), como a afetação (condição e/ou natureza) dos
sentimentos numa manifestação exagerada e excessiva acima da razão, um estado de
espírito em que tudo ganha uma dimensão emotiva e, ouso acrescentar, lacrimosa,
considerando ainda uma dada época e/ou o contexto em que essa manifestação se
configura.
6
Aristóteles referia-se, especificamente, ao texto trágico capaz de suscitar no espectador o terror (phóbos)
e a compaixão (éleos).
7
Apesar de serem postos como sinônimos em alguns dicionários, o termo sentimentalidade difere do
termo sentimentalismo, pois enquanto a sentimentalidade ocupa-se da condição ou qualidade da
manifestação sentimental e da disposição a um sentimento, o sentimentalismo preocupa-se, de forma
exagerada, com a importância do sentimento, enxergando a realidade através de um ponto de vista
excessivo e que ignora outros aspectos. Comparando com outro par de termos, para melhor elucidação,
têm-se: feminilidade como qualidade, natureza ou condição do feminino, relativo ao feminino, conjunto
de questões relativas ao feminino; feminismo como ato ou efeito de tomar o partido do feminino, ser
defensor, apologista de.
16
que forma estes procedimentos podem ser operacionalizados, para, assim, suscitar
emoções intensas e vividas, uma característica marcante do gênero em debate.
A peça, Vermelho rubro amoroso... Profundo, insistente e definitivo!, resultado
artístico da minha pesquisa e terceiro capítulo desta dissertação, é o instante de
elaboração da narrativa dramática ficcional, fazendo uso de alguns elementos narrativos
simbólicos do gênero melodramático em uma tentativa de ―orquestramento‖ dos
recursos de composição em estratégias para produção de efeitos emocionais, tendo em
vista que a organização interna do drama afeta os níveis de significação da obra.
No quarto capítulo, Itinerário sentimental e criativo, proponho uma reflexão
crítica sobre o processo de criação da peça e minhas opções enquanto dramaturgo,
considerando a compreensão do gênero melodrama, sua apropriação e aplicabilidade e a
composição de estratégias para a produção de efeitos emocionais.
Esta proposta de pesquisa tem como premissa que o lugar da emoção, em uma
narrativa, segue ao encontro do lugar da emoção do público que, por sua vez, busca esta
sintonia no momento da fruição, identificando-se e reconhecendo-se ao longo do
caminho, seja através do enredo, do conflito, das personagens, ou ainda, através da
encenação, da música, do trabalho de interpretação executado por um ator ou atriz, etc.
Acredito que a emoção bem trabalhada, o encantamento provocado por uma narrativa
melodramática, pode tornar a experiência ―inesquecível‖ por um breve ou longo
período, sucedido por uma próxima emoção. Assim sendo, pretendo identificar e
interpretar as estratégias do melodrama que podem ser organizadas para atingir os
efeitos emocionais previamente estabelecidos pelo dramaturgo durante o processo de
criação de uma obra.
19
Nós melodramamos.
Ah! Basta a emissão dessa exclamativa seguida, ou não, por pequenas frases
como: Minha mãe! Meu pai! Meu filho! Minha filha! Meu amor!, acompanhadas por
longos abraços e troca de carinhos, envolvidas ou não por uma melodia harmonizada ao
clima dramático do enredo para que o efeito se manifeste no espectador e este lacrimeje
envolvido por alguns artifícios do gênero melodrama.
A sedução da audiência através do apelo às emoções pode ser vista como um dos
fatores que caracterizam o gênero melodrama, mas o elemento que o distingue,
verdadeiramente, e do ponto de vista da personagem, é a paixão8 – sua real matéria
prima de consumo e combustão. Fator que impele a criação melodramática como uma
força motivadora e fio condutor para as conexões e vínculos das engrenagens
pertencentes ao gênero.
8
Referindo-se ao impeto, impulso, desejo da realização do objetivo de uma personagem.
21
sensibilidade de certas massas populares que afinal podem se permitir encenar suas
emoções.‖ (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 170).
O melodrama surgiu para atender a demanda desse novo tipo de público, como
afirma Huppes (2000), um público muito mais rude, ignorante, mas que começava a ter
acesso a bens culturais e que estreitava sua relação com a arte teatral sem conceitos pré-
formados, sem a influência da corte sobre o objeto de fruição e os modos de apreciação
para com a obra. Um público que não carregava o peso excessivo de um repertório
cultural elitista e que se mostrava aberto à experiência da fruição de um novo gênero
mais próximo das camadas populares.
Não tenho dúvidas de que tenha existido a constante presença do melodrama nos
palcos nacionais, pois devido à sua capacidade de adequação ao momento e ao rico
manancial de sua dramaturgia, o gênero, terminou por desembocar em estilos afastados
9
Denominação dada, no século XV, pelos europeus, ao continente americano na época de sua descoberta.
O novo continente expandiu o horizonte geográfico dos europeus que passaram a considerar Europa, Ásia
e África como o velho mundo.
10
Detenho-me por ora na influência do melodrama na produção textual dramática para o teatro,
posteriormente me debruçarei nos desdobramentos do gênero nos mais diversos meios comunicacionais
em nosso cenário midiático brasileiro.
26
11
Os dramaturgos citados, não são necessariamente melodramaturgos, mas nas suas obras é possível
identificar fortes marcas características do gênero melodrama. O que ratifica a observação sobre a
capacidade de propagação, difusão e permanência do gênero imbricado em outros gêneros dramáticos e
estéticas teatrais.
27
parodiado, sendo os dois níveis separados por uma distância crítica marcada pela ironia.
[...] Sendo ao mesmo tempo citação e criação original, mantém com o pré-texto estreitas
relações intertextuais‖. (PAVIS, 2011, p. 278)
Não abalado pela depreciação da qual era vítima, o melodrama se firma como a
dramaturgia da hipérbole, do lugar da evocação exacerbada dos sentidos, sentimentos e
da sentimentalidade, além da invocação do pathos12. Essas características, utilizadas
como estratégias de identificação, definem o gênero que ―[...] se desenvolve no
momento em que a encenação começa a impor seus efeitos visuais e espetaculares, a
substituir o texto elegante por golpes de teatro impressionantes.‖ (PAVIS, 2011, p. 238)
Sobre o gênero, Huppes (2000) chama atenção para riqueza dos eventos13 que se
multiplicam abundantemente, somados à espantosa velocidade com que informações
necessárias para a compreensão do enredo são transmitidas para a plateia. Estas
informações despertam emoções e sentimentos alternados em uma dinâmica de
superposições. O encadeamento dos inúmeros eventos, sejam quais forem os temas
tratados, é uma indubitável característica identitária do gênero, pois, antes do
12
Segundo Pavis (2011) o termo pode ser compreendido como o arcabouço emotivo do espectador
provocado durante um processo de apreciação, contemplação. O pathos é delimitado pelos códigos
ideológicos inerentes ao homem em determinada época sendo um tipo de experiência humana, ou sua
representação em arte, que evoca dó, compaixão ou uma simpatia compassiva no espectador ou leitor.
13
Também nominadados como acontecimentos ou peripécias.
29
14
Os elementos de composição serão abordados neste estudo em local mais propício para um melhor
detalhamento.
30
Seguindo esta premissa, é possível perceber que o mal ataca, oprime, manipula e
se mostra capaz de perpetrar qualquer tipo de vilania, enquanto o bem se limita a agir de
acordo com os preceitos determinados por suas virtudes. O mal imobiliza o bem até o
limite permitido pela tensão dramática e, se estiverem unidos por quaisquer laços de
afinidade (familiares, profissionais ou afetivos), maior o impacto que se obtém do
31
choque entre ambos. Próximo ao desfecho da trama, o bem encontra, nas virtudes, força
suficiente para combater o mal e vencê-lo, sem vangloriar-se dos feitos e sem atitudes
imbuídas pelo orgulho desnecessário, mas com amor, piedade e, algumas vezes,
abnegação. Sobre essa tipificação do bem nas personagens melodramáticas, Ivete
Huppes (2000) aponta:
intriga. Não é só o fim que atrai o público, por restaurar e restabelecer a paz e a
tranquilidade de outrora, mas também o caminho percorrido para se chegar a ele e a
experiência de fruição contida durante o processo de apreciação.
15
Referindo-se ao grande avanço tecnológico na Europa do final do século XVIII e todo século XIX.
Avanços estes que contribuíram para exploração de novos campos do conhecimento e desenvolvimento
do pensamento artístico.
33
16
Livre tradução de Coelina ou L’Enfant du mystère.
34
17
Livre tradução de ―Thérese ou L’Orpheline de Genéve”.
18
Na origem, no século XV, é um espetáculo de canções, acrobacias e monólogos. Até o século XVIII se
faz presente nos espetáculos para o teatro de feira que usam música e dança. Já no século XIX passa a ser
uma comédia de intriga, uma comédia ligeira, sem pretensão intelectual segundo Patrice Pavis no
Dicionário de Teatro.
19
Gênero de teatro musicado leve, derivado da ópera-bufa, em que o canto e a fala se alternam.
20
As novidades passam a serem incorporadas como truques dentro da encenação. O magnetismo, o trem e
o barco a vapor são exemplos disso. As histórias passam a acontecer em localidades espetaculares e
originais.
35
21
Livre tradução de Les Crochets du Père Martin.
22
Livre tradução de ―Le Tour du monde em 80 jours”.
36
23
Muitos jornais exageravam ou até mesmo falsificavam as notícias com objetivo único de aumentar o
número de vendagens. Seria equivalente ao que hoje denomina-se como ―imprensa marrom‖.
24
Livre tradução de ―La Porteuse de pain”.
37
1.7.1 Monólogo
[...]
AUGUSTA – Tudo favorece os meus planos! Não descansarei sem
atingir meu objetivo! E este se aproxima do fim! Miriam está
chegando o teu! Elisa, Flávia! Elisa contra tua vontade, hei de tornar-
38
[...]
(Bianca em meio à luz soturna, híbrida)
BIANCA (trágica) - Meu amado. Mantenha teso o arco do seu juízo,
pois o que direi esmagará teu ânimo, tornando-o turvo. Inconsolável.
Uma desgraça retumbante prenuncia-se tal qual uma tempestade
avassaladora... À beira do rio, esparramadas numa trilha rasteira,
floresce em botões miúdos, umas flores negras de aspecto funesto
alcunhadas ordinariamente de pata de tarântula. Contudo. A alcunha
ordinária não se deve tão somente a similitude aracnídea, seu nocivo
consumo inapropriado - apesar de não ser fatal - embaralha as
faculdades mentais, criando ilusões pavorosas, tomando o sim pelo
não. O perfume. É atraente e se não fosse por seu aspecto repulsivo,
seria facilmente, ao engano, ingeridas por nossas crianças. Lá,
Nataniel. Privado. Sobre o jugo da cegueira. Inebriou-se, como que
pelo ilusório canto das filhas de Calíope e provando da flor tardou a
perceber o engano cometido. Arrebatado pelos primeiros sintomas do
mal tombou sobre o rio caudaloso, debatendo-se inutilmente, sendo
enfim levado pela correnteza, sem mais resistir... Afogado.
(conclusiva) Nataniel morreu afogado. (Silêncio profundo)26
1.7.2 Aparte
25
Trecho extraído da cena 02 da peça Corações que sofrem de José Coelho. 1946.
26
Trecho extraído da cena 06 da peça teatral Rebu de Jô Bilac. 2009.
39
são pequenas réplicas ditas de forma rápida mesmo diante de outras personagens. Pela
convenção teatral os apartes não são ouvidos pelas demais personagens, apenas pela
plateia.
[...]
MARGARIDA - Fiz tudo isso, está certo. Sou uma criatura
infame, desprezível, que não o amava e que o enganou. Mas quanto
mais infame eu seja menos se deve lembrar de mim, expondo por
mim a sua vida e a vida daqueles que o amam. Armando, é de
joelhos que eu estou pedindo. Vá-se embora, saia de Paris e não olhe
para trás.
ARMANDO - Está bem, mas com uma condição.
MARGARIDA - Diga depressa, eu a aceito, seja qual for.
ARMANDO - Você vem comigo.
MARGARIDA (Recuando) - Nunca!
ARMANDO - Nunca?
MARGARIDA - Dai-me coragem, meu Deus!27
ARMANDO - Escute, Margarida parece que vou enlouquecer,
sinto a cabeça girando; no estado em que estou um homem é capaz
de tudo, mesmo de uma infâmia. Por um momento pensei que fosse
o ódio que me impelia era o amor, o amor invencível, rancoroso,
machucado, acrescido de remorso, do desprezo e da vergonha.
Porque, depois do que aconteceu tenho vergonha do que sinto. Mas
diga uma única palavra de arrependimento, atire a culpa no acaso, na
fatalidade, na fraqueza, que eu esqueço de tudo. Que me importa
esse homem? Só o odeio porque você o ama. Se disser que ainda me
ama, eu te perdôo, Margarida. Fugiremos de Paris e do passado,
iremos até o fim do mundo se for preciso' até onde não exista mais
ninguém, só nós e o nosso amor.28
1.7.3 Reflexão
27
Destaque de aparte para melhor exemplificação.
28
Trecho extraído da cena 06 do Ato IV da peça teatral A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho.
1852. Versão traduzida de 1965. Apesar de considerado como o primeiro drama realista, a peça teatral de
Dumas encontra-se num ―entre-lugar‖, pois, acredita-se, apresenta elementos do melodrama, como o
aparte em destaque.
40
Outro fator que distingue a reflexão é que a plateia não precisa obrigatoriamente
ser colocada na posição de cúmplice e por este meio apoiar ou concordar com as ações
daquele que reflete.
[...]
MARIANA – Minha filha! Pobre menina! Condenada no alvorecer da
aurora da vida! Como tudo isto me deprime o coração. Eu sinto que
vou definhando aos poucos! Não tenho forças para superar este
martírio. E eu preciso de forças para revelar. Como revelar-lhe o seu
infortúnio? Onde encontrarei ânimo para o fazer? Eu não suporto mais
a sua presença! E ela é minha filha! Eu fujo ao seu mais leve contato,
não a tenho acariciado como dantes fazia! Por quê? Porque tenho
medo! Tenho medo! E ela é minha filha! Minha única filha! Qual a
mãe que não chora com o sofrimento de sua filha? Medo? Medo de
que? Talvez que a sua doença seja contagiosa? Não! É o coração de
mãe que tem medo! Medo de despedaçar o coração de sua filha, que a
pouco despertou pra a vida! E como revelar-lhe? Eu endoideço. Se
Martha aqui não estivesse, eu praticaria uma loucura! Não me deixes,
Martha! Tu me tens dado forças para não trair-me diante de minha
filha! Eu agradeço a Deus... Que disse eu? Deus! Sempre essa palavra
a perseguir-me! Deus! Eu não creio na sua existência! Mas não é por
sua culpa que eu sofro? Que mal lhe fiz para assim castigar-me? E o
meu Mário! Que me foi roubado quando eu mais precisava de seu
braço, de seu coração bondoso?... E agora minha filha, que ainda não
conhece a maldade do mundo! O retrato fiel do meu infeliz Mário!
Mário se tu aqui estivesses, sentirias a mesma dor que me punge!
Mário! Mário!29
[...]
(Rosalinda sai)
AGATHA - Finalmente os fados estão a meu favor! Com o
afastamento da pequena, torno-me a única herdeira do conde Mauricio
de Belmont. Serei a mulher mais poderosa de todo o Vale Negro.
Agatha, a reles governanta, a bruxa intratável, a corcunda repugnante,
a harpia selvagem! Ah, os camponeses pagarão caro o seu desprezo, a
sua maledicência. Resta apressar a morte do conde. (Apanha a tisana)
29
Trecho extraído da cena 07 da peça teatral A luz de seus olhos de José Coelho. 1945.
41
1.7.4 Confidência
[...]
Aprígio (violento) – Escuta! Vim aqui saber! Escuta! Você
conhecia esse rapaz?
Arandir (desesperado) – Nunca vi.
Aprígio – Era um desconhecido?
Arandir – Juro! Por tudo que há de mais! Que nunca, nunca!
Aprígio – Mentira!
[...]
Arandir – Vou buscar minha mulher. (Aprígio recua, puxando
o revólver.)
Aprígio (apontando) – Não se mexa! Fique onde está!
Arandir (atônito) – O senhor vai.
Aprígio – Você era o único homem que não podia casar com a
minha filha! O único!
Arandir (atônito e quase sem voz) – O senhor me odeia
porque. Deseja a própria filha. É paixão. Carne. Tem ciúmes
de Selminha.
30
Trecho extraído da cena 09 da peça teatral A maldição do Vale Negro de Caio Fernando Abreu e Luiz
Arthur Nunes. 1988.
31
Em se tratando de telenovelas, o confidente geralmente ganha a alcunha de orelha, pois, no caso da
telenovela, a personagem existe mais para ouvir, do que interagir de forma mais dinâmica dentro da
economia do drama.
42
1.7.5 Melodia
32
Trecho extraído da última cena da peça teatral Beijo no Asfalto de Nelson Rodrigues. 1960.
43
[...] Chega-se a abusar tanto deste recurso, que se converte num estilo
próprio que atua como ―anunciador‖ de futuros acontecimentos ou
como ―comentaristas‖ de situações. Desse modo, a música converte-
se num elemento de efeito dramático, constituindo-se num suporte
fundamental da narração. (OROZ, 1992, p. 93-94)
44
1.8 TEMÁTICAS
Nos enredos que envolvem o jogo entre bem e mal, certo e errado, punições,
duelos, disputas, recompensas, virtudes, vilanias, cartas, coincidências, amores
impossíveis, intrigas, conspirações, mistérios, segredos, crianças trocadas, separações,
desencontros, filhos perdidos, reencontros, juramentos, venenos, passagens secretas,
promessas, assassinatos, fugas espetaculares, punhais, calabouços, porões, sótãos, noites
tempestuosas cortadas por relâmpagos e trovões, é possível identificar predominantes
matrizes temáticas do gênero melodrama que dão dinâmica à tessitura da intriga na
longa escalada em direção ao clímax patético de seu enredo.
Ao tematizar a luta pelo justo, o núcleo da ação, via de regra, opõe dois blocos:
um grupo de personagens boas e íntegras que sofre violência por parte de um grupo
ruim e inescrupuloso. Quando a temática gira em torno da realização amorosa, o enredo
mostra um jovem casal enamorado procurando afastar os empecilhos interpostos à sua
união. ―[...] Em ambas as alternativas a dificuldade de sucesso é introduzida pela ação
de personagens mal-intencionadas‖ (HUPPES, 2000, p.33) que criaram, através de suas
ações desmedidas, os empecilhos para a restauração da harmonia na vida das
personagens boas.
33
O alívio cômico apresenta-se de forma recorrente em grande parte das peças melodramáticas, mas não é
um recurso determinante para a existência de uma composição melodramática, pois é possível existir um
melodrama sem necessariamente a aplicação de um alívio cômico personificado. Tendo ciência disso, o
que faço, na composição da peça melodramática que segue no capítulo 3, é instaurar, através de algumas
falas, uma breve atmosfera espirituosa, uma lufada de comicidade que se instala através das réplicas de
algumas personagens em momentos precisos da trama oferecendo ao público instantes de relaxamento
antes dos momentos de forte cunho patético.
46
34
Destaque meu.
47
O melodrama sempre esteve associado ―[...] ao apelo direto aos sentidos, sendo
sinônimo de enredo de lágrimas, relacionado ao trágico e ao sentimental, porém de
maneira popularizada e mais propensa a provocar a empatia entre o gênero e o público.‖
(OROZ, 1992, p. 46-47). Soma-se a habilidade de misturar-se e acomodar-se nas frestas
de outros gêneros, abrindo-se para uma gama de interfaces combinatórias com outros
movimentos artísticos, reconfigurando-se junto a tantos outros estilos e formas de
linguagens.
35
Suscitação e exposição das emoções puras, intensas e vívidas, que trabalham unidas a serviço do
envolvimento do espectador na vivência dos sentimentos expostos.
48
36
Não desconsidero o uso de marcas do gênero melodrama em produtos e/ou narrativas não ficcionais
como telejornalismo, documentários, programas de auditório, entre outros. Sabe-se que esses produtos e
meios comunicativos podem valer-se de fatos reais, cotidianos, para criarem situações melodramáticas
capazes de conduzir o público à comoção. Essa perspectiva não é proveitosa para o que se propõe nesta
pesquisa, que é voltada para uma reflexão sobre a criação dramática ficcional fazendo uso do genêro
melodramático para produzir efeitos específicos e especificados ao longo do estudo.
37
O pesquisador José Carlos dos Santos Andrade (2010) afirma que da somatória dos fatores circo mais
teatro propiciou o sugirmento de um gênero nunca antes posto em prática e que se convencionou chamar
de circo-teatro ou teatro-pavilhão. Segundo o autor, o teatro-pavilhão volta-se para camadas sociais
menos favorecidas e menos exigentes ―[...] no que se refere à qualidade dramatúrgica do texto, às nuances
psicológicas de interpretação dos atores, ou fidelidades no que diz respeito à época ou à região no
tratamento visual dos espetáculos.‖ (ANDRADE, 2010, p. 55)
49
38
Sirk, cineasta alemão que realizou grandes obras cinematográficas na Hollywood da década de 50, é
oriundo do teatro, tendo trabalhado para o Terceiro Reich e fugido para a América, onde se apropriou do
melodrama para criar a parte mais importante da sua filmografia.
39
Pedro Almodóvar é um realizador espanhol que começou sua carreira como um cineasta underground
nos anos 80. Hoje é considerado um dos realizadores europeus de maior prestígio internacional.
50
alterando-lhes o sentido. Douglas Sirk serviu-se do gênero para tratar da união entre a
cultura nobre e a cultura plebéia, dando aos seus filmes grande intensidade emocional e
afetiva, já Pedro Almodóvar abusa do apelo para o teor emotivo de seus enredos e inova
à medida que traz para o centro dos seus discursos, personagens estigmatizadas e
marginalizadas pela sociedade.
Têm-se como exemplo O direito de nascer40 que é até hoje uma das
radionovelas de maior sucesso no Brasil, tendo sido transmitida, ao longo de três anos,
pela Rádio Nacional. O enredo melodramático conta a história da jovem Maria Helena
que dá à luz uma criança, tornando-se mãe solteira, o que era algo inaceitável para a
época e passa a ser alvo do ódio do pai Dom Rafael, um homem poderoso e muito
bravo, que não mediu esforços para oprimir a filha e amaldiçoar o próprio neto, sem
prestar-lhes qualquer tipo de ajuda. Após o nascimento do bebê, a criada Dolores foge
com a criança que recebe o nome de Alberto. Enquanto isso, Maria Helena vai para um
convento, passando a se chamar Sóror Helena da Caridade. Com o passar dos anos, o
menino que foi criado longe da família de sangue torna-se médico e, por obra
do destino se apaixona pela prima Isabel Cristina e acaba por atender e salvar a vida do
avô que tanto o desprezou.
40
Versão brasileira com tradução e adaptação de Eurico Silva transmitida pela Rádio Nacional, São Paulo,
1951. A radionovela original é cubana e escrita por Felix Caignet. Posteriormente, década de 60, houve
uma adaptação homonima para a televisão, repetindo o mesmo sucesso de audiência.
51
Outro ponto a ser considerado é que a fotonovela, no Brasil, foi um dos modos
de ficção mais difundidos por sua combinação simples de dois elementos textuais —
fotografias e texto escrito — facilitando a compreensão do leitor, essa configuração
simples estende-se para a televisão e os modos de concepção da teledramaturgia nos
primeiros anos de constituição.
41
Narrativa literária seriada. Características essencias: quanto ao formato, é publicada de forma parcial e
sequenciada em periódicos (jornais e revistas); quanto ao conteúdo, apresenta narrativa ágil, profusão de
eventos e ganchos intencionalmente voltados para prender a atenção do leitor. A teledramaturgia, mais
especificamente, a telenovela, aglutina algumas caraterísticas desse tipo de narrativa como, por exemplo:
formato capitular; o gancho como instrumento para ampliação do suspense e da expectativa; a
diversificação dos núcleos de ação; a construção das personagens e de suas interrelações.
52
42
Quando vincula-se à ideia de que o texto melodramático ―[...] se presta bem à transposição cênica
(visualidade do jogo teatral, conflitos abertos, troca rápida de diálogos)‖, conforme Pavis (2001, p. 373).
53
43
Apesar de ser uma ―noção bastante fluida, pois, como o insólito, o estranho e todas as categorias
definidas a partir da recepção do espectador, ela é função tanto do sujeito que vê quando (sic) do objeto
visto.‖ (PAVIS, 2011, p.141), A dimensão espetacular de uma obra relaciona-se com a concepção de
quem a põe em cena, bem como do movimento estético vigente quando de sua encenação.
54
44
Apesar de ter conhecimento das inúmeras possibilidade de concepção e produção de obras artísticas, é
relevante para este trabalho tratar apenas da narrativa dramática ficcional composta para o teatro como
obra de arte, para não fugir do foco da pesquisa.
45
É sabido que expressões artísticas não representativas e não figurativas podem ter a presença de
características e investimentos afetivos. No entanto, para este estudo, mostra-se mais proveitoso somente
a abordagem da narrativa dramática ficcional como forma de expressão artística de grande investimento
afetivo, favorecendo o reconhecimento e a reflexão sobre o uso de elementos de composição utilizados
como recursos evidenciadores deste propósito (suscitamento de emoções).
55
46
Uso do termo na acepção de ―obra dramática‖.
47
Gomes (2004) refere-se a obra de arte não como um todo significante, porém como um material
expressivo que se distingue de acordo com a dimensão fundamental da subjetividade humana que estiver
inserida.
56
Tendo mais clara, para esta pesquisa, a definição de emoção, avanço na reflexão
de que as emoções que sentimos durante apreciação de uma obra artística oriundam-se
dos mesmos processos que geram nossas emoções na ―vida real‖, sendo aquelas
(fomentadas durante o momento da fruição) tão verdadeiras quanto estas (sentidas e
processadas em nosso cotidiano). Umas e outras são verdadeiras em suas
contextualizações, pois podem ser acionadas tanto por situações reais, como também
pelos mais variados tipos de pensamentos e crenças envolvendo mente e corpo na
dinâmica da estruturação de um momento emotivo.
48
Na concepção de Caroll (1999), o afeto é uma disposição ampla e mais generalizada daquilo que age
sobre o ser, dizendo respeito aos variados tipos de sentimentos e sensações experimentados pelo sujeito,
incluindo impressões e reflexos automáticos, por exemplo: ao calor, ao frio, ao susto, etc.
49
Livre tradução de: ―[...] cognitivists emphasize the way that emotion and cognitions cooperate to orient
us in our environment and to make certain objects more salient. Emotions help us to evaluate our world
and react toit more quickly. Fear or love provide a motive force that more often then not works in tandem
with thought processes.‖ (SMITH, 1999, p. 02)
58
50
Tratando-se de uma narrativa dramática ficcional, é válido constatar que muito da tipologia dos gêneros
são definidos em função do apelo emocional que o material pode suscitar.
51
Referindo-se a obra artística. No caso do estudo proposto, referindo-se mais especificamente a uma
narrativa dramática ficcional.
52
O pesquisador cognitivista tem seu trabalho voltado para uma filosofia das emoções fílmicas baseada
nas análises de experiências cinematográficas, porém os apontamentos dedicados ao estudo das emoções
fílmicas podem ser aplicados em um território mais vasto de narrativas dramáticas ficcionais que vão
além do cinema e que se prestam para elucidar as reflexões sugeridas neste trabalho.
53
Livre tradução de: affectively prefocused.
54
O impacto emocional resultante da abordagem destes cenários associa-se ao fato de que estes mesmos
atendem às expectativas de um imaginário coletivo e de um senso comum onde são facilmente
compreendidos por um grande número de pessoas, apelando para inquietudes centrais e sujeitas à
circunstâncialidade cultural e histórica na vivência do ser humano.
59
A piedade é uma emoção dedicada a alguém que sofre. Assim sendo, é sentida
pelo espectador e tem por objeto o ―sofredor de infortúnios‖, uma personagem
vitimizada por algo ou por outra personagem. Não é surpreendente constatar que, tendo
essa premissa em perspectiva, as narrativas melodramáticas deem destaque às aflições
vividas por seus protagonistas55, já que, para que o espectador possa se comover do
drama destas personagens é preciso que elas sejam de alguma forma vítimas das
circunstâncias. Segundo Carrol (1999, p. 36), ―[...] A piedade melodramática envolve
coisas más acontecendo a pessoas boas ou, pelo menos, coisas desproporcionalmente
más acontecendo a pessoas de caráter duvidoso.‖ 56
A admiração se encaixaria nessa equação emocional, à medida que o público
testemunha as heroínas e/ou heróis, típicos do melodrama, cheios de virtudes, sofrendo
intensamente os infortúnios da vida. O efeito emocional da admiração manifesta-se por
conta do modo como essas personagens enfrentam as adversidades, com altas doses de
generosidade, sacrifício, resignação e/ou abnegação.
Faço, aqui, uma breve interseção, porém interessante, entre o trabalho de Carroll
(1999) referindo-se ao melodrama e às explanações de Aristóteles (2007) sobre a
tragédia, pois ambos preocupam-se com os efeitos que a obra pode suscitar,
considerando as personagens e suas vivências como um poderoso disparador para a
produção de tais efeitos.
Enquanto Carroll (1999) dedica-se a refletir sobre a piedade e a admiração,
Aristóteles (2007), ao apontar a compaixão e o horror como efeitos próprios da
tragédia, afirma que a compaixão nasceria do homem injustamente infortunado e o
horror do homem semelhante a nós. Nessa perspectiva, para que uma tragédia seja
sublime ela deve ocorrer a um ―[...] homem que, não se distinguindo por sua
superioridade e justiça, não obstante não é mau nem perverso, mas cai no infortúnio em
consequência de qualquer falta‖. (ARISTÓTELES, p. 51-52)
É na relação estabelecida entre personagens fundamentais e o público que
Carroll (1999) e Aristóteles (2007) aproximam-se, pois veem, nessa interação, a chave
que pode desencadear os efeitos emocionais mediante a identificação e o
55
Se tratando de melodrama, em geral, os vilões quando sofrem não costumam ser dignos de pena, pois
estão recebendo algum tipo de punição por seus atos de vilania.
56
Livre tradução de: [...] melodramatic pity involves bad things happening to good people, or, at least,
disproportionately bad things happening to people of mixed character. (CARROL, 1999, p. 36)
60
Mendes (2008) enxerga a catarse como um fenômeno, cujo efeito potencial não
se reduz nem a experiência puramente emocional nem à aprendizagem lógico-racional.
O efeito catártico, segundo ela, conjuga esses dois processos, ao permitir uma vivência e
uma distância, graças ao caráter simultaneamente real e irreal da ficção. Nessa linha de
pensamento, o processo catártico partiria da emoção e a ela retornaria, possibilitando
uma aventura de natureza afetiva e intelectual a um só tempo, caracterizando-se como
―[...] um processo e um acontecimento[...]‖ (MENDES, p.07).
[...] Se a personagem deve aí funcionar como elemento catalisador, é
porque o desejo não pode ser nomeado sem disfarces. Isto dispensaria
o drama, pois é através de suas máscaras e simulacros que autores e
públicos brincam de conhecer o próprio desejo. (MENDES, p. 07)
Discorrendo um pouco mais sobre quais efeitos emocionais seriam mais aptos
ao gênero melodramático, debruço-me nas observações feitas por Ed Tan e Nico Frijda
(1999) quando examinam, o que para eles, parece ser um efeito basilar para o
melodrama (embora não exclusivo do gênero): o sentimentalismo. Essa manifestação,
na definição dos autores, seria ―[...] caracterizada pela urgência de chorar ou por um
61
estado de comoção com uma intensidade excessiva para a importância atribuída à sua
razão.‖ (TAN; FRIJDA, 1999, p. 49)57.
O sentimentalismo se manifestaria quando o público encontra-se diante de uma
situação que ele experimenta como avassaladora, por não ter condições de controlar ou
evitar o que é mostrado pela obra. O choro, o romper em lágrimas, em momentos nos
quais a personagem ou as personagens58, após enfrentarem uma série de dificuldades,
finalmente, alcançam o seu objetivo ou rendem-se ao destino adverso, seria a
consequência do acúmulo de toda a tensão exposta no drama. Atentando para essas
afirmativas, é válido considerar que as respostas sentimentais são acionadas,
geralmente, nos momentos de resolução dos conflitos, quando cessam as expectativas
em relação ao desenlace e o desenvolvimento do enredo.
Ed Tan e Nico Frijda (1999) identificam três temas que seriam eficientes para a
convocação do sentimentalismo: separação-reunião59; justiça sob risco60; temor
inspirador61.
Tratando um pouco de cada um desses temas, tem-se que o primeiro –
separação-reunião – está associado aos desejos do indivíduo de buscar, conservar,
recuperar ou restaurar laços afetivos e íntimos com outros indivíduos. Aparecem em
narrativas dramáticas ficcionais sob as mais diversas variações, desde a criança que é
afastada dos parentes e depois de muitas complicações, retorna para casa como no filme
O Mágico de Oz62, até o homem que entende o valor de si mesmo e dos seus entes
queridos e retorna para o meio familiar como no filme A felicidade não se compra63.
O segundo tema – justiça sobre risco – trata diretamente do reconhecimento da
virtude – um dos pilares do melodrama – em meio a um grande conflito moral, pois,
somente no desenlace da trama, é que os bons e puros são reconhecidos e
recompensados como merecem. Como exemplo do segundo tema, tem-se – e que já
deve fazer parte do imaginário coletivo – as histórias em que as heroínas e/ou os heróis
57
Livre tradução de: [...] characterized by an urge to cry or a state of being moved with a strength in
excess to the importance we attach to its reason. (TAN; FRIJDA, 1999, p. 49)
58
A personagem pode ser usada como um recurso eficaz na composição de uma estratégia para a
produção de efeito emocional quando aposta-se na interação com o público através do reconhecimento,
simpatia e/ou empatia. Essas afirmativas serão melhor desenvolvidas adiante.
59
Livre tradução de: separation-reunion. (TAN; FRIJDA, 1999)
60
Livre tradução: justice in jeopardy. (TAN; FRIJDA, 1999)
61
Livre tradução: awe-inspiration. (TAN; FRIJDA, 1999)
62
Filme estadunidense, roteirizado por Noel langley, Florence Ryerson e Edgar Allan Woof, dirigido por
Victor Fleming, 1939.
63
Filme estadunidense, roteirizado por Frances Goodrich e Albert Hackett, dirigido por Frank Capra,
1947.
62
são acusados injustamente, vão a julgamento e quando tudo parece perdido e tem-se a
certeza de uma condenação, algo acontece acabando com a vitimização e punindo os
verdadeiros culpados. Como ocorreu na telenovela Mulheres de Areia64, quando Ruth,
assumindo o lugar da sua irmã gêmea Raquel, é julgada pelo assassinato de Wanderley
Amaral e em meio às acusações assume sua verdadeira identidade para não ser punida
por um crime que não cometeu.
Por último, o terceiro tema – temor inesperado – está vinculado a um misto de
fascínio e ao medo provocado pela representação do inefável, do intangível e do
imensurável. São as representações de algo grandioso, diante do qual o indivíduo se
sente pequeno e insignificante como nos filmes pautados em catástrofes. Como exemplo
tem-se o filme O Impossível65.
Jesus Martin-Barbero (2003) trata também das emoções que podem ser
suscitadas por uma narrativa ficcional dramática dentro do gênero melodrama, porém
sua análise parte do princípio de que a tipologia das personagens, que compõem a
dramaturgia melodramática, está associada a diferentes sentimentos e situações,
assumindo uma forma menos relacionada a uma tradição estritamente teatral e sim aos
―[...] modos dos espetáculos de feira e com os temas das narrativas que vêm da literatura
oral, em especial com os contos de medo e de mistério, com os relatos de terror.‖
(MARTIN-BARBERO, p.170).
Na abordagem de Martin-Barbero, o medo, por exemplo, seria despertado a
partir de situações terríveis e personificado pela personagem do
vilão/traidor/perseguidor/agressor66.
[...] Ao encarnar as paixões agressoras, o traidor é o personagem do
terrível, o que produz medo, cuja simples presença suspende a
respiração dos espectadores, mas também é o que fascina: príncipe e
serpente que se move na escuridão, nos corredores do labirinto e do
secreto. (MARTIN-BARBERO, p.176)
64
Telenovela escrita por Ivani Ribeiro, produzida e veiculada pela Rede Globo em 1993.
65
Filme estadunidense e espanhol, roteirizado por Sérgio G. Sánchez, dirigido por Juan Antônio Bayona,
2012.
66
O semiólogo identifica tal efeito emocional como uma possível herança do romance de ação.
63
afirma Huppes (2000), considerando as emoções que as personagens más são capazes
de suscitar.
Indo um pouco além do que foi apontado por Martin-Barbero, acredito que na
vileza não se encontra apenas o disparador do medo, mas também o alvo da antipatia e
da repulsa do espectador. Os vilões, através das suas atitudes, posicionamento e das
ações, colocam em exercício toda a maldade que possuem ganhando a aversão do
público e não a simpatia. Os vilões quando bem construídos, cumprem sua função,
despertando na plateia a revolta e o desejo de punição para o mal e a recompensa para
os bons.
Quando afirmo essa função de ser detestável, incluo nisso o fato de que os vilões
são odiados pelo público com intensa paixão, pois como acontece de forma recorrente
em grande parte das atuais telenovelas brasileiras, por exemplo, a vilania é sedutora e
exerce fascínio. Os motivos para tal podem ser muitos e variados, desde o
desregramento até a falta de limites, mas certo é que a personagem má é rechaçada com
intensidade, o que me permite dizer que o público ama odiá-las e espera ansioso por
cada ação maldosa para então revoltar-se, indignar-se e desejar um fim punitivo para tal
―ser‖.
Já o entusiasmo, seria provocado a partir de situações excitantes e personificado
pela personagem do justiceiro/galã/mocinho67.
[...] Protetor, é o personagem que, no último momento, salva a vítima
e castiga o traidor. [...] É pela bondade e sensibilidade, a contraface do
traidor. E portanto o que tem por função desfazer a trama de
malentendidos e desvelar a impostura permitindo que a ―verdade
resplandeça‖. Toda, a da vítima e a do traidor. (MARTIN-BARBERO,
2003, p. 177)
67
Martin-Barbero identifica o entusiasmo como um efeito emocional oriundo das epopéias e aglutinado
pelo gênero melodrama.
68
Para o teórico, a dor seria uma emoção vinculada às tragédias.
64
Os recursos são os meios ou materiais que podem ser ordenados e dispostos com
vistas à produção de efeitos no público durante o processo de apreciação de uma obra
artística. Vários são os recursos que podem ser empregados neste intento e podem ser
classificados de muitos modos. Gomes (2004) os classifica seguindo alguns parâmetros
tradicionais da linguagem audiovisual. Assim, têm-se os recursos: visuais, sonoros,
cênicos e narrativos70.
69
No capítulo 4 desta pesquisa, será feita análise da composição de estratégias melodramáticas para a
produção de alguns efeitos emocionais, tais como a piedade e a admiração a partir dos fragmentos
extraídos de trechos da peça teatral que compõe o capítulo 3 deste trabalho.
70
Gomes traça uma tipologia para os recursos baseando-se na linguagem audiovisual, porém, para esta
pesquisa interessam os recursos narrativos por serem os elementos chaves na composição de uma
narrativa, além disso, estes mesmos recursos narrativos quando agenciados são capazes de compor
eficazes estratégias para a produção do efeito emocional, foco das reflexões que se seguirão.
65
71
Não se desconsidera a existência de outros elementos que compõem o conjunto de recursos narrativos e
nem a sua importância, porém, para este estudo, os elementos listados são mais relevantes pois serão
estudados de forma mais detalhada e em coerência com a proposta de trabalho feita nesta pesquisa.
72
Entende-se objeto como qualquer coisa ou matéria foco de um desejo. Pode ser amor, poder, vingança,
etc.
73
Entende-se que o sujeito pode ser a mesma personagem, uma outra personagem, um obstáculo
psicológico, moral ou material.
66
Sobre a relação entre a ação dramática e o conflito dramático, Hegel (1964) faz
considerações esclarecedoras, quando diz que uma ação dramática não se limitaria à
realização simplista de um fim determinado, mas o oposto disso: a ação dramática
aconteceria em um ambiente de conflitos e colisões, sendo alvo de circunstâncias,
motivações e paixões, gerando, a partir do embate, no conflito – e como reação – mais
ações dramáticas.
A personagem dramática é um ser fictício, uma criatura irreal moldada por meio
da organização de traços recolhidos da realidade e trabalhados pela imaginação. Pensa,
fala e age de acordo com características estabelecidas na definição do seu perfil. A
personagem é inserida em um mundo construído sobre uma coerência interna e fica
subordinada a esta lógica, agindo e reagindo de acordo com as regras de funcionamento
desse universo possível.
As categorias principais de personagens são: protagonista – personagem
principal de uma narrativa, a quem se devem as principais ações dinamizadoras do
enredo, a quem o texto dedica maior pormenorização das ações e atitudes; antagonista –
personagem de oposição ao protagonista. Suas atitudes provocam o surgimento de
conflitos, cuja superação conduz às transformações no enredo; secundários, adjuvantes
ou coadjuvantes – surgem em redor do protagonista ou do antagonista, auxiliando-os ou
prejudicando-os em suas ações. No desenvolvimento de uma trama, o desempenho de
uma personagem secundária é quase sempre o mesmo.
A relação que se estabelece entre público e personagem durante a veiculação de
uma narrativa ficcional dramática é um fato interessante para ser observado porque
muito do direcionamento das emoções do espectador pode estar diretamente ligado às
relações estabelecidas com as personagens durante o processo de apreciação.
É o que aponta Carroll (2008), quando confere à simpatia74 do público para com
as personagens, um fator relevante para a compreensão dos modos de suscitar emoções
na plateia, já que os vínculos emocionais criados para com o protagonista, por exemplo,
podem ser fortes e persistentes, acompanhando o espectador ao longo de quase todo o
desenvolvimento da trama, moldando suas respostas emocionais.
Em função da simpatia ou antipatia por determinadas personagens, é que alguns
desdobramentos da ação dramática acontecem e podem ser considerados negativos ou
74
O termo é usado de forma genérica para definir uma atitude favorável ou positiva em relação a outra
pessoa ou personagem, que favorece a expressão de interesse ou a preocupação com o seu bem-estar.
67
75
Livre tradução de: sympathy, conceived as an emotion involves visceral feelings of distress when the
interests of the object of our pro-attitude are endangered and feelings of elation, closure, and/or
satisfaction when their welfare is achieved. (CARROLL, 2008, p. 177)
76
Segundo Carroll (2008), a maneira mais objetiva para atingir com mais eficácia a interação entre
público e personagens, seria recorrer a parâmetros morais suficientemente abrangentes para serem
compartilhados pelo maior número possível de pessoas, a despeito de suas identidades culturais e perfis
pessoais. A fórmula é bem conhecida de todos: protagonistas cheios de virtude e boas intenções de um
lado contra vilões repulsivos com interesses maquiavélicos de outro. O que nos lembra características
fundamentais do gênero melodrama e da sua conceituação/constituição.
68
77
Referindo-me ao criador de uma obra artística, compositor ou ainda, e mais de acordo com a pesquisa, o
dramaturgo.
70
À medida que são delimitados os tipos de efeitos que serão suscitados, exigi-se
do artista o reconhecimento dos recursos disponíveis para atingir tal intento no instante
da criação de tal obra. Esses recursos, compreendidos como ferramentas de uma
linguagem e de uma forma de expressão artística, serão estruturados no momento da
composição e assim configurados como estratégias programadas.
Gomes (2004) faz uma interessante alusão ao mito da Bela Adormecida que se
mostra fortuito para essa reflexão. O pesquisador diz que um efeito é como uma
semente plantada na criação e que desabrocha somente no momento da apreciação. Para
que o desabrochar aconteça de forma plena, é preciso o bom entendimento, por parte do
criador, das especificidades de sua obra e das exigências na elaboração das estratégias
para produção do efeito desejado. Assim, o ato da apreciação se definiria como um
momento de interação plena entre a obra e o sujeito, pois os efeitos pré-determinados
suscitariam no contemplador um encantamento, um despertar, como no beijo dado na
Bela Adormecida fazendo com que no
[...] ato de apreciar, informação, sensação, emoções vêm a efeito, e,
então, uma cifra, um código, um signo, uma elaboração se
transformam plenamente em expressão, um material se converte em
obra, operando sobre a estrutura cognitiva, sensorial e anímica de um
sujeito. (GOMES, p. 57)
Como afirma Gomes (2004), é o todo que emociona. É a unidade que evoca o
pathos do público à medida que atende, através da representação, ao universo
reconhecível do espectador e a seu campo comum de emoções e sentimentalidade. O
que me permite refletir que, assim sendo, o drama contemporâneo
[...] continua a oferecer, graças à mágica exata e sutil da
representação, um tipo específico de experiência que conjuga
ludicamente o êxtase de um ritual e o prazer de compreender. A
adesão voluntária ao pathos da personagem; a sintonia cruel ou
piedosa com suas palavras e ações; o compartilhar atento desse trajeto
ridículo ou terrível é justamente o espaço do drama, seu jogo e
segredo milenar. Origem do drama, o mito, seja como reencontro ou
utopia, tem ainda o poder de emocionar-nos [...]. (MENDES, 2008,
p.10)
3 UM ENCANTAMENTO:
Personagens: Lurdes Maria; Lúcio Mauro; Maria Amélia; Carlos Manuel e Madame
Nora.
ATO I
CENA 01
Lurdes Maria, aspecto tresloucado, aparece vestida com um velho e surrado vestido de
noiva, desgastado pela ação do tempo. Traz em uma das mãos um pedaço de papel, um
velho fragmento de uma carta. Vagueia sem rumo, a esmo, e elucubra entre a loucura e
a lucidez. Ao fundo, um enfermeiro a observa segurando em uma das mãos uma camisa
de força.
Lurdes Maria. Ah, minha felicidade! Meus dias felizes que não voltam mais! A vida
me foi madrasta. O destino fez de mim uma pobre diaba e sorriu para os meus inimigos.
Víboras traiçoeiras! Maria Amélia era um lobo em pele de cordeiro! Hoje eu conheço a
verdadeira face daquela mulher... Mentirosos... Maria Amélia e o degenerado Lúcio
Mauro... O que restou de mim? Só os queixumes, as lamúrias, os meus tormentos e essa
saudade sem fim. Ah, Carlos Manuel! Aqueles vilões desalmados. Sim. Vilões
abomináveis! Queriam o meu fim e por isso tramaram... Eles foram os culpados por
tudo o que fiz... Carlos Manuel... Vem me ver, querido... Vem buscar-me que ainda sou
tua. Não percebe que sou uma vítima? Sim. A maior de todas. Eu! Ah! Se eu soubesse!
Ela viu. Tentou me avisar. Fui ludibriada... aquele vermelho... tanto sangue... Madame
Nora tinha razão, meu Deus! Madame Nora, tinha razão. As cartas não mentem jamais!
Não mentem... as cartas... não mentem... As cartas não mentem jamais!
Lurdes Maria continua vagueando, porém mais agitada. O enfermeiro aproxima-se,
recolhe o fragmento de papel das mãos dela e começa a atar a camisa de força em
Lurdes Maria.
CENA 02
Lúcio Mauro, parado, de pé, em meio à penumbra. Traz em uma das mãos uma mala.
73
Lúcio Mauro. ...Algumas vezes percebi você me olhando e... parecia um olhar
apaixonado, mas outras vezes, parecia que você tinha interesse por outro alguém. Sei
que não tenho direito de exigir nada, mas peço um posicionamento. Não posso
continuar me iludindo... se existe a possibilidade de que eu tenha meu sentimento
correspondido, vem ao meu encontro na estação, mas se não há chance para realizar o
meu desejo, peço que me perdoe... destrua essa carta e esqueça-se de mim. Lúcio
Mauro.
Lúcio Mauro desaparece em meio à escuridão.
CENA 03
Emocionada, Maria Amélia, sentada no sofá da sala, termina de ler a carta.
Maria Amélia (sofrida). Ai, Lúcio!
Lurdes Maria (fora de cena). Amelinha!
Maria Amélia (recompondo-se). Estou aqui, Lurdinha.
Maria Amélia, rápida, guarda a carta entre os seios. Lurdes Maria entra.
Lurdes Maria. Trago novidades, prima.
Lurdes Maria aproxima-se de Maria Amélia, abraça-a e beija sua face. Tratam-se
como irmãs.
Lurdes Maria. Sou a mulher mais feliz do mundo! A mais feliz de todas.
Maria Amélia. Qual o motivo?
Lurdes Maria mostra o anel que traz no dedo. Frenética, agita a mão em demasiado.
Lurdes Maria. Noiva, Amelinha! Noiva!
Lurdes Maria comemora como uma adolescente. Maria Amélia acompanha com menos
entusiasmo.
Maria Amélia. Felicidades, Lurdinha!
Lurdes Maria. Por que está assim? Estava chorando, Amelinha?
Maria Amélia fala ao mesmo tempo em que se afasta de Lurdes Maria.
Maria Amélia. Alergia.
Lurdes Maria. Pensava nele. Não adianta negar. Eu sei.
Maria Amélia fica, por instantes, absorta.
Lurdes Maria. Esquece aquele ingrato.
Maria Amélia. Não fale assim, Lurdinha.
Lurdes Maria. Falo assim sim. Assim e muito mais. Lúcio Mauro foi criado nesta casa
como um filho e veja só como ele retribuiu. Foi embora sem explicações. Não teve
74
consideração por nenhuma de nós. Tia Júlia, coitada, que Deus a tenha, morreu a
míngua, esperando uma notícia. Já se passaram três anos. Três anos, Amelinha! Não são
três dias.
Maria Amélia. É melhor mudarmos o rumo desta conversa. Você fica sempre
aborrecida.
Lurdes Maria. Não tenho aborrecimento. Tenho mágoa. Isso sim.
Longo silêncio entre elas.
Maria Amélia. Deixa-me ver o anel.
Lurdes Maria volta a ficar frenética e agitar a mão.
Maria Amélia. Mas fica parada, Lurdinha. Sacudindo a mão dessa forma não consigo
ver.
Lurdes Maria estende a mão para Maria Amélia. Maria Amélia posiciona-se atrás de
Lurdes Maria. Falam olhando fixamente para o anel.
Lurdes Maria. Podia jurar que não tínhamos futuro. Carlos Manuel parecia tão
desinteressado no começo do namoro. Sempre tão distante e vago. Cheguei a pensar em
acabar com tudo, mas a minha perseverança se mostrou gratificante. Depois de três anos
de namoro, veio a recompensa.
Maria Amélia. É lindo!
Lurdes Maria. O desejo de toda minha vida. Noiva!
Maria Amélia. Deixa o vestido por minha conta. Faço questão. Será o mais bonito de
todos.
Lurdes Maria. Não poderia esperar outra coisa da minha madrinha.
Maria Amélia. Madrinha? Eu?
Lurdes Maria. Afinal é ou não é minha prima querida?
Maria Amélia. Lurdinha!
Abraçam-se emocionadas.
Maria Amélia. Mais que prima. Uma irmã!
Lurdes Maria. Uma irmã!
Examinam o anel como que hipnotizadas.
CENA 04
Em meio à penumbra, é possível ver um vulto se deslocando. Trata-se de Madame Nora
como uma sombra, uma forma obscura de ser que, trajando longas vestes pretas, da
cabeça aos pés, espalha fumaça produzida pela queima da ramagem que traz nas mãos.
75
Quanto mais esta sombra se desloca, mais a ramagem queima e mais fumaça é
produzida. Atrás da sombra vem uma mulher vestida de noiva, andando devagar,
parecendo flanar, sem destino aparente. Em uma mão leva um buquê de flores e na
outra um punhal. O vestido de noiva é amarelecido e manchado de vermelho. Um longo
véu e uma longa grinalda não permitem reconhecer de quem se trata. Continuam
andando a esmo. A sombra vai abrindo caminho para a passagem da noiva.
CENA 05
Na sala, Lurdes Maria está recostada no sofá com os olhos fechados. Carlos Manuel
entra.
Carlos Manuel. Lurdinha!
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Lurdes Maria estende a mão para Carlos Manuel que vai ao seu encontro. Lurdes
Maria repousa a cabeça no peito de Carlos Manuel, respira lenta e profundamente
antes de falar.
Lurdes Maria. Tive outra vez aquele sonho, Carlos Manuel... Tão horrível! Tão real...
Lurdes Maria levanta-se e fala enquanto afasta-se de Carlos Manuel.
Lurdes Maria (absorta). Uma mulher... não conseguia ver o rosto... Nunca senti tanto
medo. Meu corpo... Não conseguia respirar... Parecia que a vida escapava... Cada vez
que o vulto se aproximava de mim... O vestido de noiva esvoaçava/
Carlos Manuel. Uma noiva?
Lurdes Maria. Alvo... branco... divinal. Quando estava próximo a mim, ergueu um
punhal e, juro por tudo que me é sagrado, aquilo foi uma ameaça. Tenho certeza. Fiquei
ainda mais espantada quando vi uma mancha vermelha espalhar-se... Um vermelho...
rubro... intenso... um presságio de sangue.
Carlos Manuel. Isso é fadiga, coração. Você está cansada com os preparativos do
casamento. Vou falar com Amelinha. Ela pode te auxiliar um pouco mais.
Lurdes Maria. Amelinha já faz mais do que deveria. É um verdadeiro anjo. Deixe-a em
paz.
Carlos Manuel se aproxima de Lurdes Maria e afaga os cabelos dela. Lurdes Maria
aninha-se no ombro de Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Não suporto vê-la assim, Lurdinha!
Lurdes Maria. Ah, meu querido!
Beijam-se.
76
CENA 06
Maria Amélia ao telefone.
Maria Amélia. Sim. Maria Amélia. Quem? Lúcio? Lúcio Mauro é você? Oh, meu
Deus! Como é bom ouvir sua voz depois de todos esses anos! Minhas preces foram
atendidas! Não sabe a saudade... Ah, Lúcio Mauro! Vou buscá-lo. Iremos todos.
Maria Amélia desliga o telefone e tomada de emoção, chora e ri ao mesmo tempo.
Maria Amélia. Bastou ouvir sua voz... e o meu coração...
Após certo tempo, seca as lágrimas e tenta recompor-se.
Maria Amélia. Amelinha, Amelinha, acalme-se, mulher!
Maria Amélia respira fundo repetidas vezes.
Maria Amélia. Mantém sob controle o juízo. Não ouve os palpites do coração, pois este
é insensato.
Maria Amélia respira fundo repetidas vezes.
Maria Amélia. E se Lúcio Mauro perguntar sobre a carta? O que faço?
Maria Amélia sai aflita.
CENA 07
Mais uma vez a noiva misteriosa atravessa o ambiente. Desta vez traz nas mãos um
velho revólver e caminha lenta. Ouve-se a voz de Lurdes Maria.
Lurdes Maria (fora de cena). Tia Júlia, ajude-me! Vem em meu socorro. Ela quer
acabar comigo. Maldita! Noiva, maldita!
A noiva misteriosa continua flanando até desaparecer.
CENA 08
Maria Amélia e Carlos Manuel esperam ansiosos.
Carlos Manuel. Não sei se agimos certo, Amelinha.
Maria Amélia. Foi melhor assim, Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Quando acordar, Lurdinha não vai gostar nem um pouco.
Maria Amélia. É mais prudente poupá-la de emoções fortes. Conheço bem a minha
prima. Ainda guarda muita mágoa.
Carlos Manuel caminha de um lado para o outro inquieto. Maria Amélia aproxima-se e
põe uma mão no ombro dele.
Maria Amélia. Disse antes e volto a repetir, se quiser pode ficar com Lurdinha. Eu
espero Lúcio Mauro. Dou as boas vindas em nome de todos.
Carlos Manuel. Eu fico.
77
Maria Amélia desmaia. Lúcio Mauro a ampara e a ergue nos braços. Carlos Manuel
abana a moça.
CENA 09
Lurdes Maria, ajoelhada no chão, percebe as mãos ensanguentadas. Tenta limpar-se,
mas não consegue. Aos poucos se vê cercada por uma fumaça. A sombra está atrás
dela. Lurdes Maria tenta esconder as mãos.
Lurdes Maria. Diz o que quer.
A sombra estende para Lurdes Maria uma carta de Tarô. Lurdes Maria examina a
carta.
Lurdes Maria. Não. Nunca!
Lurdes Maria chora e depois rasga a carta.
Lurdes Maria. Desaparece daqui!
Devagar, a sombra afasta-se e desaparece. Lurdes Maria volta a tentar limpar as
mãos.
CENA 10
Na sala, Maria Amélia está deitada no sofá. Lúcio Mauro, sentado ao lado, fica
segurando uma das mãos da mulher. Carlos Manuel permanece, de pé, próximo aos
dois.
Lúcio Mauro. Amelinha continua a mesma... Um anjo!
Lúcio Mauro acaricia os cabelos de Maria Amélia.
Carlos Manuel. Seu retorno foi inesperado. Mais um pouco e eu teria desmaiado
também.
Ambos riem e depois ficam um tempo em silêncio.
Lúcio Mauro. Por que Lurdinha não foi com vocês à estação?
Carlos Manuel (desconcertado). Não sabe da sua chegada.
Carlos Manuel senta-se do outro lado do sofá.
Carlos Manuel. Ainda se aborrece quando citamos o seu nome.
Silêncio. Maria Amélia revira-se um pouco e Lúcio Mauro solta a mão da mulher.
Lúcio Mauro fica absorto.
Carlos Manuel. Lúcio, é bom ter você por perto.
Silêncio novamente.
Lúcio Mauro. Carlos/
Carlos Manuel. Lurdinha e eu vamos nos casar...
79
Lúcio Mauro levanta-se do sofá. Fica afastado e de costas para Carlos Manuel.
Lúcio Mauro. Casar?
Carlos Manuel. Estamos noivos há dois anos.
Silêncio. Carlos Manuel levanta-se e se aproxima de Lúcio Mauro.
Carlos Manuel. Não ficou feliz com a notícia?
Lúcio Mauro (disfarçando). Bastante.
Lúcio Mauro volta-se para Carlos Manuel e o abraça. Novamente se abraçam por um
longo tempo.
Carlos Manuel. Ah, meu caro, senti sua falta!
Lúcio Mauro, delicamente, afasta Carlos Manuel. Maria Amélia desperta e quieta ouve
a conversa dos dois.
Carlos Manuel. Foi difícil suportar a sua ausência. Amelinha ficou deprimida por
meses. Uma morta viva, coitada! Lurdinha encontrou apoio em mim e eu nela. Só assim
foi possível continuar sem vo/
Lúcio Mauro (irônico). Mas conseguiram.
Carlos Manuel (duro). Você virou um fantasma entre nós... Até hoje procuro encontrar
a razão, o motivo para aquele sumiço sem explicação/
Lúcio Mauro. Sem explicação?
Maria Amélia agita-se no sofá e interrompe a conversa.
Maria Amélia (afetada). Lúcio! Lúcio Mauro!
Lúcio Mauro aproxima-se do sofá e estende as mãos para Maria Amélia.
Lúcio Mauro. Estou aqui, Amelinha.
Maria Amélia (melíflua). Então não foi um sonho. Ah!
Maria Amélia atira-se nos braços de Lúcio Mauro e o abraça com força.
Carlos Manuel. Ainda bem que despertou.
Maria Amélia (para Carlos Manuel). Onde está Lurdinha? É melhor ir vê-la.
Carlos Manuel (compreendendo a intenção de Maria Amélia). Tem razão.
Carlos Manuel sai.
Maria Amélia. Preciso falar com você.
Lúcio Mauro. Depois/
Maria Amélia. Tenho que te contar o que fiz, mesmo correndo o risco de ser
desprezada.
Lúcio Mauro. Desprezar você? Eu?
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Maria Amélia, tomando as mãos de Lúcio Mauro entre as suas, as beija com
entusiasmo e inicia choro.
Maria Amélia. Vai me detestar quando souber/
Lúcio Mauro seca as lágrimas de Maria Amélia e segura o rosto dela entre suas mãos.
Lúcio Mauro. Fala de uma vez, Amelinha.
Maria Amélia. A carta. A carta que me pediu... Eu... Eu... Nunca a entreguei.
Lúcio Mauro retira as mãos do rosto de Maria Amélia, levanta-se e se afasta.
Lúcio Mauro. Não entregou?
Lúcio Mauro, abalado, anda de um lado para outro sem olhar para Maria Amélia.
Maria Amélia. Depois que conversamos, eu não resisti e li. Sofri muito com cada
palavra que você escreveu. Sua declaração de amor ofendia todo o meu sentimento.
Lúcio Mauro. Que sentimento?
Maria Amélia. Ainda tem dúvidas?
Maria Amélia desliza do sofá para o chão e se põe de joelhos diante de Lúcio Mauro.
Maria Amélia. Te amo... com loucura... desde sempre.
Lúcio Mauro (chocado). Meu Deus!
Maria Amélia. Enciumada, tomei aquele papel como uma afronta. Não podia aceitar
que você, meu Lúcio, gostasse de outro alguém além de mim.
Lúcio Mauro. Aquela carta... era uma esperança de felicidade... Você me traiu, Maria
Amélia. Me traiu!
Maria Amélia ergue-se e, rápida, se aproxima de Lúcio Mauro e o abraça.
Maria Amélia. Lúcio!
Lúcio Mauro livra-se do abraço de Maria Amélia com veemência.
Lúcio Mauro. Afaste-se de mim.
Lúcio Mauro afasta-se em direção à porta de saída da casa. Maria Amélia corre e o
impede de sair, ficando entre ele e a porta.
Maria Amélia. Escuta. Por favor!
Maria Amélia titubeia procurando palavras.
Maria Amélia. Olha ao nosso redor... Vê a felicidade que existe aqui. Carlos Manuel e
Lurdinha se amam.
Maria Amélia respira fundo e tenta recompor-se um pouco.
Maria Amélia. Vão se casar.
Cuidadosa, Maria Amélia continua.
81
Maria Amélia. Se mostrasse a carta, abortaria uma história de amor que estava
começando. Sua partida, sei que são duras as minhas palavras, me desculpe, os uniu
ainda mais. Estavam destinados/
Lúcio Mauro. Fui covarde. Deveria ter entregado a carta pessoalmente, ou ainda,
declarar-me sem recorrer a subterfúgios...
Maria Amélia. Agora é tarde.
Lúcio Mauro. Agora é tarde.
Maria Amélia. Eles se amam e serão felizes.
Lúcio Mauro. Serão os únicos felizes... Cada vez que você os vir aos beijos, lembre-se
que aquele lugar poderia ser o meu, mas essa possibilidade me foi roubada...
Maria Amélia. Eu peço, imploro, que me perdoe.
Lúcio Mauro. Nunca.
Cada palavra dita por Lúcio Mauro é um golpe em Maria Amélia. Lúcio Mauro sai da
casa batendo a porta com violência. Maria Amélia, devastada, sai da sala.
CENA 11
Lurdes Maria entra na sala e, um pouco tonta, ampara-se nos móveis. Carlos Manuel
desce as escadas e vai ao seu encontro.
Carlos Manuel. Lurdinha!
Lurdes Maria. Sinto-me estranha.
Carlos Manuel beija a testa de Lurdes Maria.
Carlos Manuel. É efeito do calmante.
Lurdinha, incrédula, encara Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Queria poupá-la, Lurdinha.
Lurdes Maria. De que?
Carlos Manuel afasta-se um pouco, mas Lurdes Maria o segura pela mão.
Lurdes Maria. Diz.
Carlos Manuel. Lúcio retornou.
Lurdes Maria permanece estática.
Carlos Manuel. Eu e Amelinha fomos buscá-lo enquanto você descansava. Penso o que
aconteceria contigo ao vê-lo de supetão. Mesmo Amelinha, ao por os olhos nele,
desmaiou emocionada.
Lurdes Maria. Onde está agora?
Carlos Manuel. Recupera-se/
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Lurdes Maria. Neste momento, pouco me importo com Maria Amélia. Onde está
Lúcio Mauro?
Lúcio Mauro entra pela porta da frente. Encaram-se em silêncio por um longo tempo.
Lurdes Maria. Quanto tempo esperei pelo dia em que poderia devolver a ofensa que
você fez a minha família.
Lúcio Mauro. Vocês são, por consideração, minha família também.
Lurdes Maria ri. Depois respira fundo e fala em tom amargurado.
Lurdes Maria. Você não sabe o que é consideração.
Carlos Manuel. Não seria melhor adiarmos esta conversa?
Lúcio Mauro e Lurdes Maria falam ao mesmo tempo.
Lurdes Maria e Lúcio Mauro. Não.
Silêncio. Carlos Manuel se retira. Lúcio Mauro se aproxima de Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Sei que me odeia/
Lurdes Maria. O que tenho é rancor. (Pausa) Como foi capaz de causar tanta dor
àqueles que você dizia amar?
Lúcio mauro. Ainda digo que os amo.
Lurdes Maria. Mentira!
Lúcio Mauro. Verdade! Deus sabe o quanto estimo vocês. Acolheram-me quando,
ainda recém nascido, fui abandonado na soleira da porta desta casa. Se não fosse por Tia
Júlia, eu nem sei... Cuidou de mim e me tratou como um filho. Aproximou-me de vocês
e fez com que crescêssemos juntos, como irmãos. Depois do acidente que vitimou os
seus pais e os pais de Amelinha, nos unimos ainda mais, pois tínhamos apenas uns aos
outros. Vocês duas são a minha família. Acredita mesmo que eu seria capaz de renegar
tudo isso?
Lurdes Maria. O que sei é que você escapou daqui como se esta casa fosse uma prisão.
Lúcio Mauro. Se você pudesse colocar de lado toda essa mágoa/
Lurdes Maria. Não posso, Lúcio Mauro. Tia Júlia esperou o seu retorno até o último
dia. Eu estava lá, ao pé da cama, segurando a mão dela enquanto chamava o seu nome...
Silêncio.
Lúcio Mauro. Houve motivos para o meu afastamento. Se ficasse/
Lurdes Maria. O que sua presença poderia causar de tão ruim?
Lúcio Mauro, emocionado, pega em uma mão de Lurdes Maria, a beija e a conduz ao
seu peito de forma acolhedora. Lurdes Maria retira a mão e se afasta sem olhá-lo, já
83
emocionada. Lúcio Mauro caminha para a saída, mas antes de sair para e volta-se
para Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Foi o melhor... Acredite.
Lurdes Maria aos poucos se aproxima. Ficam de frente um para o outro e se encaram
por alguns instantes. Lurdes Maria dá um tapa na face de Lúcio Mauro. Encaram-se.
Lurdes Maria atira-se nos braços de Lúcio Mauro. Abraçam-se por um longo tempo e
choram copiosamente.
CENA 12
No quarto, prostrada no chão, diante do espelho, Maria Amélia sofre.
Maria Amélia. Existe dor maior do que amar e não ser amada em retribuição? Se
pudesse, abriria o peito e arrancaria todo esse sentimento, mas, infelizmente, amor não
se destrói... nem pela força... nem pela fúria... amor... só se consome... até o fim...
Maria Amélia tenta erguer-se, mas nãoconsegue.
CENA 13
Na sala, Carlos Manuel conforta Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Esses pesadelos... são uma provação. Estou chegando ao meu limite.
Carlos Manuel. Por que não procuramos um médico? Ele poderia prescrever/
Lurdes Maria afasta-se um pouco de Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Você tem razão. Preciso sim de uma consulta, mas não de um médico.
Carlos Manuel. Seu caso é puro esgotamento. Um médico/
Lurdes Maria. Pensava da mesma forma que você. Fiz o que estava ao meu alcance e
tudo foi em vão. Uma vidente me ajudará.
Carlos Manuel. Vai cair na mão de enganadores, isso sim. Ouve bem o que digo.
Lurdes Maria. Madame Nora. A cartomante. Tia Júlia acreditava nela. Dizia que
Madame Nora era a melhor de todas. A mais poderosa.
Carlos Manuel. Não me agrada essa ideia, mas faça o que achar melhor. Quero vê-la
bem. Isso é o que me importa.
Lurdes Maria circunda Carlos Manuel com os braços e o beija no rosto.
CENA 14
Lúcio Mauro está subindo as escadas e Maria Amélia desce.
Maria Amélia. Estava à sua procura.
Lúcio Mauro. O que quer?
Maria Amélia estende para Lúcio Mauro um papel roto.
84
Lurdes Maria, nervosa, abre a bolsa e vasculha o interior. Madame Nora levanta-se
devagar com as cartas nas mãos.
Lurdes Maria. Não deveria ter vindo aqui. Dei ouvidos a uma lunática.
Lurdes Maria retira da bolsa um maço de dinheiro e o atira sobre a mesa.
Lurdes Maria. Está aí o seu dinheiro.
Madame Nora olha para o dinheiro e depois para Lurdes Maria.
Madame Nora. Não quero. Recolhe o dinheiro e mede as palavras.
Silêncio entre elas. Depois de um tempo, Lurdes Maria recolhe as notas.
Lurdes Maria (desabafo em fio de voz). Velha ridícula!
Madame Nora, devagar, caminha em direção à porta de saída e abre. Afasta-se para
dar passagem a Lurdes Maria. Lurdes Maria, com as notas de dinheiro amassadas nas
mãos caminha para a saída, mas estanca na porta e fala de costas para Madame Nora.
Lurdes Maria (profundo desprezo). Adeus, Madame.
Madame Nora. Até breve.
Lurdes Maria. Não pretendo vê-la outra vez.
Madame Nora. Vai me procurar. Eu sei.
Lurdes Maria. Quando sair daqui, esquecerei essas cartas e suas mentiras.
Madame Nora. Ouve um aviso, minha criança. As cartas não metem jamais.
Lurdes Maria vai embora.
CENA 16
Lurdes Maria, sozinha, na sala, reflete sobre os últimos acontecimentos.
Lurdes Maria. Está errada. Eu mereço a felicidade. Mereço, sim.
Lurdes Maria pondo as mãos na cabeça e segurando as têmporas, respira fundo.
Recompõe-se.
Lurdes Maria. Calma, Lurdinha! Calma! Esquece aquela/
Lurdes Maria vê Carlos Manuel aproximar-se e vai ao seu encontro, o abraça forte.
Lurdes Maria. Meu querido!
Lurdes Maria dá pequenos beijos, estalinhos, por todo o rosto de Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Como foi?
Lurdes Maria afasta-se e tenta disfarçar o nervosismo.
Lurdes Maria. Um desapontamento. Imagine você que Madame Nora não passava de
uma farsante.
Carlos Manuel. Eu te avisei.
86
Maria Amélia se posiciona de costas para Lurdes Maria no intuito de que a outra não
perceba o seu estado. Limpa e guarda a carta entre os seios e permanece de costas
para Lurdes Maria.
Maria Amélia. O que houve, Lurdinha?
Lurdes Maria. Tanta coisa...
Lurdes Maria senta-se no sofá e se abandona entre as almofadas. Maria Amélia, tonta,
mas cuidadosa, aproxima-se e senta-se perto de Lurdes Maria, pondo uma almofada no
colo para camuflar a mancha na roupa.
Maria Amélia. Diz o que te perturba. Sou toda ouvidos.
Lurdes Maria. Você sabe dos meus pesadelos, da minha cisma com presságios e tudo
mais, não sabe?
Maria Amélia aquiesce.
Lurdes Maria. Procurei uma vidente. Madame Nora, amiga de Tia Júlia, lembra? Essa
mulher foi o meu erro. Ai, Amelinha! Ouvi coisas que... nem sei.
Maria Amélia estende uma mão para Lurdes Maria em sinal de apoio. Lurdes Maria
segura a mão de Maria Amélia.
Lurdes Maria. Disse a Carlos Manuel que Madame Nora não passava de uma falsária,
mas menti, Amelinha. Menti.
Lurdes Maria respira fundo.
Lurdes Maria. Não quero que ele saiba o quanto as palavras dela me afetaram. Por
mais que eu tente esquecer... não consigo... não consigo...
Lurdes Maria levanta-se, angustiada, e se afasta de Maria Amélia. Maria Amélia a
princípio ouve tudo o que Lurdes Maria diz, mas aos poucos perde o foco e fica absorta
murmurando o que dizia quando estava sozinha.
Lurdes Maria (absorta). ―Madame Nora?‖ indaguei.
Ao fundo aparece Madame Nora, de pé, com as cartas de Tarô entre as mãos.
Embaralha as cartas.
Madame Nora. Vamos entrando, minha criança.
Madame Nora desloca-se caminhando devagar em direção a uma pequena mesa.
Senta-se e estende o braço para a outra cadeira. Lurdes Maria desloca-se, afastando-se
do lugar onde estava com Maria Amélia e caminha na direção de Madame Nora
enquanto fala.
Lurdes Maria (absorta). Ficamos de frente uma para a outra no mais absoluto silêncio.
88
À medida que Lurdes Maria fala, Madame Nora executa exatamente o que é dito por
ela.
Lurdes Maria. Entre nós, cartas de tarô amontoadas sobre a mesa coberta por uma
grande toalha amarelecida. Ela esfregou as mãos e, juro por minha alma, que uma névoa
circundou aquele corpo. Ela tornou-se ágil e habilidosa, manipulou as cartas enquanto
aspirava forte e profundamente. Naquele lugar, estávamos eu, a vidente e mais... uma
presença...
Ficam em silêncio. Encaram-se. Lurdes Maria incomoda-se.
Lurdes Maria. Sou Lurdes Maria, Lurdinha. Sobrinha de Júlia. Sua amiga de/
Madame Nora. Infância. Eu sei. Eu lembro.
Lurdes Maria. Madame Nora/
Madame Nora. Madame, sim? É o suficiente.
Lurdes Maria. Está bem. Madame/
Madame Nora estende sua mão para Lurdes Maria.
Madame Nora. Deixa-me ver. Sua mão. Deixa.
Lurdes Maria coloca sua mão sobre a mão de Madame Nora. Madame Nora examina a
mão de Lurdes Maria por algum tempo sem nada dizer e depois fala, ainda segurando
a mão de Lurdes Maria.
Madame Nora. Tem dormido bem, minha criança? Parece abatida.
Lurdes Maria. Estou exausta. Por isso vim aqui. Preciso/
Madame Nora. Eu sei.
Lentamente Madame Nora solta a mão de Lurdes Maria.
Madame Nora. Eu vi.
Lurdes Maria recolhe a mão devagar e a leva ao peito.
Madame Nora. Tem sono, mas teme dormir/
Lurdes Maria. Pesadelos.
Madame Nora. Por isso tão cansada, tão frágil.
Lurdes Maria. Um espectro me ameaça.
Madame Nora. Alguém atravessa seu caminho ou você está atravessando o caminho de
alguém.
Lurdes Maria. Não entendo.
Madame Nora. Difícil. Eu sei. Mas vai entender.
89
Lurdes Maria. Esses sonhos... tão ruins... não sei explicar, Madame, mas sinto que são
prenúncio de algum mal. Quero saber qual o significado.
Madame Nora. A ignorância é uma dádiva! Uma dádiva! Tem certeza que deseja
saber?
Lurdes Maria permanece estática. Madame Nora aponta as cartas sobrepostas.
Madame Nora. Então parte, minha criança. Parte.
Lurdes Maria reparte a pilha de cartas. Madame Nora sinaliza para que Lurdes Maria
vire uma carta. Ela atende. Madame Nora analisa a carta e depois olha para Lurdes
Maria. Encaram-se em profundo silêncio. Novamente, Madame Nora, sinaliza para que
Lurdes Maria vire mais uma carta, repetindo a análise e a troca de olhares silenciosos.
Uma última vez, Madame Nora sinaliza e repetem todo o procedimento.
Madame Nora. Esse espectro tem rosto?
Lurdes Maria. Um véu o esconde.
Mamade Nora. É uma mulher?
Lurdes Maria. Tenho certeza.
Mamade Nora. Mas não consegue ver o rosto.
Lurdes Maria. Não consigo.
Madame Nora. Uma pena! É sempre bom olhar nos olhos de quem nos encara. Os
olhos sempre falam mais do que a boca. Um espectro sem rosto tem muito a esconder.
Madame Nora revira mais uma carta, respira fundo e fecha os olhos. Fala como se
estivesse em breve transe com a mão depositada sobre a carta.
Madame Nora. O passado está voltando... e com ele vem um segredo... uma verdade
escrita em confissão. Cuidado, minha criança!
Lurdes Maria. O que?
Madame Nora. Uma mancha.
Lurdes Maria. Madame!
Madame Nora. Marca o fim da sua felicidade... Uma mancha rubra...
Lurdes Maria. A senhora está me assustando.
Madame Nora. Vermelha como sangue...
Lurdes Maria. Meu Deus!
Madame Nora. Não tente afastar o que está destinado a ficar junto.
Lurdes Maria. Mas eu nada fiz!
Madame Nora. Esse casamento...
90
ATO II
CENA 18
Carlos Manuel, sentado, bebe. Lúcio Mauro entra e, ao vê-lo, tenta sair, mas a fala de
Carlos Manuel o impede.
Carlos Manuel. Até quando?
Lúcio Mauro. Não estou/
92
Silêncio.
Madame Nora. Não veio aqui apenas para se desculpar.
Lurdes Maria. Vim pedir auxílio.
Madame Nora. Nada mudou, minha criança. Não irá gostar do que eu verei e nem do
que falarei.
Lurdes Maria. Não vim em busca de palavras nem da sua vidência.
Madame Nora. O que deseja então?
Lurdes Maria observa as ervas, os frascos e os líquidos. Madame Nora interrompe a
tarefa e observa Lurdes Maria.
Madame Nora. Parece que a vida deu uma volta no tempo e Júlia está na minha frente
outra vez... pedindo, insistindo, implorando para que eu manipule minhas ervas, maneje
minhas essências, macere sua obsessão numa poção de encantamento.
Madame Nora circunda Lurdes Maria e depois apanha algumas ervas e substâncias de
vários frascos e as leva ao seu local de trabalho.
Lurdes Maria. Na agonia da morte, Tia Júlia delirava muito e contou sobre a paixão
desenfreada... que pediu sua ajuda...
Madame Nora. Ela não disse para quem era a poção. Se eu soubesse...
Lurdes Maria. Falou do bebê...
Madame Nora. Um filho não pode pagar pelos erros dos pais. Fiz o que julguei melhor.
Lurdes Maria. Quando o efeito da poção/
Madame Nora. ―Um sentimento cativo não perdura‖, eu disse, mas não me ouviu.
Estava tão descontrolada que não ouvia mais nada e nem ninguém. Roubou uma de
minhas poções...
Lurdes Maria. Foi um acidente, uma fatalidade.
Madame Nora. Entrou por aquela porta parecendo um fantasma. Gritava e se batia
arrependida pelo que fez. Por causa dela, você e sua prima ficaram órfãs.
Lurdes Maria. Culpou-se até o último instante por ter dado a poção que entorpeceu os
sentidos do meu pai enquanto ele dirigia.
Madame Nora. ―Queria ter sido avisada‖, ela disse. Mas eu avisei, minha criança, eu
avisei. (absorta) Toda escolha tem um preço... e a vida cobra... de um jeito ou de
outro...
Lurdes Maria. Minha história é diferente, Madame. Carlos Manuel me ama... Tenho
certeza.
101
Lurdes Maria. Isso foi antes. Tudo mudou logo após o meu noivado. Assim que Maria
Amélia viu o meu anel... os olhos dela arderam de inveja... Depois disso, nunca mais foi
a mesma. Acredito que ela amou você um dia, mas agora deseja Carlos Manuel/
Lúcio Mauro. Isso é loucura/
Lurdes Maria. Quer conquistá-lo pelo prazer de me ver sofrer. Por não poder ser feliz,
ela não permitirá que eu seja.
Lúcio Mauro. Está sendo injusta.
Lurdes Maria (Aparte). A justiça é uma ilusão moldada por interesses particulares.
Lúcio Mauro. Você não sabe mais o que diz. Está obcecada por esses sonhos e
presságios.
Lurdes Maria. Sei bem o que digo: quero vê-la morta.
Lúcio Mauro. Lurdinha! Não permitirei/
Lurdes Maria. Não só permitirá como fará parte.
Lúcio Mauro. Jamais!
Lurdes Maria. Se quiser saber o nome de seus pais, você fará exatamente o que eu
disser.
Lúcio Mauro lança um olhar incrédulo para Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Eu sei. Tia Júlia me contou tudo. Uma longa confissão no leito de
morte.
Lúcio Mauro. Por que eu?
Lurdes Maria. Quero que Maria Amélia veja a vida sendo arrancada do seu corpo
pelas mãos do homem que ela amou um dia e que nunca pode correspondê-la, pois
amava a mulher que ela mais detesta, a sua prima.
Lúcio Mauro reage às palavras de Lurdes Maria como se despertasse do estado de
torpor.
Lúcio Mauro. Está enganada/
Lurdes Maria. Não se dê ao trabalho de negar o que é óbvio. O seu retorno confirmou
minhas desconfianças do passado. Sei o que sente por mim e que esse sentimento foi a
causa da sua partida e é o motivo da sua frieza com Carlos Manuel. Você sacrificou
todo o seu amor para que eu fosse feliz ao lado do homem que escolhi. O seu esforço
não foi em vão. Eu e Carlos Manuel nos amamos muito e seremos felizes quando Maria
Amélia desaparecer de uma vez por todas.
Lúcio Mauro. Não a matarei.
103
Lurdes Maria. Assim que você fizer e me trouxer provas, direi os nomes dos seus pais.
Lúcio Mauro (fio de voz). Meus pais!
Lurdes Maria circunda Lúcio Mauro e depois se afasta saindo do lugar.
Lúcio Mauro. Quando você se tornou assim... tão má?
Lurdes Maria fala de soslaio.
Lurdes Maria. Ah, Lúcio! Má, eu sempre fui, meu querido, mas só agora precisei
mostrar-me... sincera.
Lurdes Maria sai. Lúcio Mauro fica só.
CENA 23
Maria Amélia está ajoelhada diante de um velho baú. Retira dele velhas roupas de
bebê, um punhal e um diário. Abre e lê um trecho localizado entre as páginas finais.
Maria Amélia. “... meu bem mais precioso e minha razão de viver. Não posso me
separar dele. Não posso. A ideia de Nora é minha esperança de mantê-lo perto de mim
sem levantar suspeitas...” Pobre Tia Júlia!
São ouvidas batidas na porta.
Lúcio Mauro (fora de cena). Amelinha!
Maria Amélia, rápida, vai abrir a porta. Lúcio Mauro entra. Maria Amélia permanece
todo o tempo com o diário na mão.
Maria Amélia. Cumpriu sua palavra.
Maria Amélia o abraça.
Maria Amélia. Está tremendo.
Lúcio Mauro a afasta delicadamente e caminha aproximando-se do baú.
Lúcio Mauro. ―Uma boa índole molda o caminho de um homem‖. Tia Júlia vivia
repetindo. Lembra? Acreditei tanto nisso que fui embora quando percebi que meus
sentimentos poderiam ferir pessoas que tanto amo. Sofri muito, mas nada comparado ao
vazio que carrego comigo desde sempre.
Maria Amélia. Do que está falando?
Lúcio Mauro (sofrido). Não conheço meus pais.
Lúcio Mauro apanha o punhal e o segura com firmeza e não encara Maria Amélia.
Maria Amélia. Lúcio!
Maria Amélia afasta-se devagar e, no mesmo ritmo, é perseguida por Lúcio Mauro.
Lúcio Mauro. Quero saber quem são eles.
104
Lúcio Mauro avança em direção a Maria Amélia, que se defende usando o diário como
escudo.
Maria Amélia. Não!
Black out.
ATO III
CENA 24
Lurdes Maria encontra-se com Lúcio Mauro em um lugar ermo.
Lurdes Maria. Como foi?
Lúcio Mauro. Rápido.
Lurdes Maria. Então?
Lúcio Mauro. Morta.
Lúcio Mauro entrega fotografias para Lurdes Maria. Lurdes Maria analisa as
fotografias detidamente.
Lurdes Maria. Quanto sangue! Tão vermelho!
Lurdes Maria devolve as fotografias.
Lurdes Maria. E o corpo?
Lúcio Mauro. Só eu sei onde está.
Lurdes Maria abraça-se a Lúcio Mauro, que não corresponde.
Lurdes Maria. Ah, Lúcio!
Lúcio Mauro afasta Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Quem são meus pais?
Lurdes Maria. Lúcio...
Lúcio Mauro. Diz.
Lurdes Maria afasta-se e Lúcio Mauro rápido a segura.
Lúcio Mauro. Mentiu pra mim.
Lúcio Mauro aperta o pescoço dela com força, ao mesmo tempo em que se curvam para
o chão em uma movimentação única, à medida que Lurdes Maria vai desfalecendo.
Lurdes Maria. Sou sua irmã.
Lúcio Mauro solta Lurdes Maria e levanta-se rápido. Lurdes Maria fala, recuperando o
fôlego.
105
Lurdes Maria. Sou mais uma de suas vítimas. Desconfiada de suas atitudes psicóticas,
busquei a verdade sobre o desaparecimento de minha prima, encontrei fotografias e
quase morri buscando justiça para um crime tão brutal. É isso o que contarei às
autoridades...
Lúcio Mauro e Lurdes Maria encaram-se durante certo tempo. Lúcio Mauro sai e
Lurdes Maria respira aliviada.
CENA 25
Lúcio Mauro, com uma mala, desce, rápido, as escadas. Carlos Manuel em sentido
oposto se interpõe.
Lúcio Mauro. Vou embora.
Carlos Manuel. Caso-me em algumas semanas.
Lúcio Mauro. Não posso mais ficar.
Carlos Manuel. Lúcio!
Lúcio Mauro. Desejo felicidades.
Carlos Manuel. Por favor!
Lúcio Mauro nega-se.
Carlos Manuel. Se não por mim, por Lurdinha.
Lúcio Mauro. É justo por causa dela que eu preciso/
Lúcio Mauro interrompe-se e começa a afastar-se, Carlos Manuel o impede.
Carlos Manuel. Continua.
Lúcio Mauro evita encarar Carlos Manuel.
Carlos Manuel. O que ia dizer?
Lúcio Mauro tenta passar, mas Carlos Manuel não deixa. Medem forças.
Lúcio Mauro. Me deixa passar, Carlos.
Carlos Manuel. Você a ama.
Lúcio Mauro estanca.
Carlos Manuel. Não vai suportar vê-la se casando com outro.
Lúcio Mauro. Você não faz ideia de quem é sua noiva.
Lúcio começa a afastar-se novamente. Carlos Manuel se coloca na sua frente e o
segura pelo braço.
Carlos Manuel. Se ainda tem amizade por mim, ao menos um pouco, não me deixe
assim às cegas. É da minha felicidade que estamos falando.
Lúcio Mauro abraça Carlos Manuel, que fica surpreendido.
107
Lúcio Mauro. Digo com sinceridade: não se case com Lurdes Maria.
Afastam-se. Lúcio Mauro sai, deixando para trás Carlos Manuel, atônito.
CENA 26
No quarto, Lurdes Maria descansa deitada na cama. Diante de um grande espelho
(daqueles de corpo inteiro) está o vestido de noiva dependurado no manequim para
costura. Carlos Manuel está sentado na cama, próximo aos pés de Lurdes Maria.
Carlos Manuel (absorto). Lurdinha! Lurdes! Lúcio Mauro... queria me dizer alguma
coisa importante... avisar-me... acho que ele teme que eu me machuque... Lurdes! Tenho
dúvidas... Entende o que digo, Lurdinha? Não sei o que sinto por você... Gosto de você,
mas... Não sei. Gostar é sempre pouco, não é? Entende o que digo, Lurdes? Lurdinha!
Lurdes Maria (despertando). Carlos!
Já desperta, Lurdes Maria, rápida, levanta-se e põe o manequim atrás do espelho.
Lurdes Maria. Dá azar.
Carlos Manuel. Não me importo.
Lurdes Maria. O que há com você?
Carlos Manuel. Lúcio Mauro... queria me dizer alguma coisa importante... avisar-me...
acho que ele teme que eu me machuque.../
Lurdes Maria. Não perca o seu tempo tentando compreender as atitudes de/
Carlos Manuel. Deixou-me entender que está indo embora por sua causa.
Carlos Manuel levanta-se e caminha na direção de Lurdes Maria. Iniciam jogo de
perseguição pelo quarto.
Carlos Manuel. O que fez, Lurdes?
Lurdes Maria. Nada, meu bem.
Carlos Manuel. Onde está Amelinha?
O quarto começa a ser invadido por uma névoa.
Carlos Manuel. Suas mãos...
Lurdes Maria tenta esconder as mãos.
Lurdes Maria. O que têm elas?
Carlos Manuel. Estão sujas.
Lurdes Maria esfrega as mãos uma na outra e depois nas roupas. Carlos Manuel,
rápido, tenta ver as mãos de Lurdes Maria, mas ela foge subindo na cama. Madame
Nora, segurando algumas cartas de Tarô, entra no quarto e assim como Carlos
Manuel, começa a circundar a cama.
108
CENA 27
Lurdes Maria, vestida de noiva, radiante, permanece parada no alto da escada.
Lurdes Maria. Finalmente!
Lúcio Mauro a surpreende quando fala do pé da escada.
Lúcio Mauro. Como você está linda, minha irmã!
Lurdes Maria (surpreendida). Lúcio Mauro!
Lurdes Maria recupera-se.
Lurdes Maria (dissimulando). Carlos Manuel e eu estávamos tão apreensivos, sem
notícias suas.
Lurdes Maria desce as escadas e estende os braços na intenção de abraçá-lo, porém,
Lúcio Mauro, afasta-se, indo para outra direção, no meio da sala, e mantendo uma
distância entre eles.
Lúcio Mauro. Fui preso.
Lurdes Maria (falsa). Não.
Lúcio Mauro. Denuncia anônima.
Lurdes Maria (falsa). Mentira!
Lúcio Mauro. Verdade.
Lurdes Maria (falsa). Jura?
Lúcio Mauro aquiesce.
Lurdes Maria (falsa). Que horror!
Lúcio Mauro. Mas não havia provas suficientes contra mim.
Lúcio Mauro aproxima-se de Lurdes Maria. Ela não o encara.
Lurdes Maria. Está pensando que eu... Jamais! Somos irmãos.
Lúcio Mauro. Esquece isso.
Lurdes Maria finalmente o encara e demonstra seu desprezo.
Lurdes Maria. Então, o que faz na minha casa?
Lúcio Mauro. Quero ver sua alegria chegar ao fim.
Batidas na porta. Ouve-se a voz de Carlos Manuel.
Carlos Manuel (fora de cena). Lurdinha!
Lurdes Maria (espantada). Carlos Manuel!
Carlos Manuel (fora de cena). Recebi o recado.
Lurdes Maria. Recado?
Lurdes Maria lança um olhar de reprovação para Lúcio Mauro.
110
Lurdes Maria respira fundo e calmamente retira aos mãos da cabeça e caminha,
aproximando-se de Carlos Manuel.
Lúcio Mauro. Lurdes Maria me chantageou.
Ao ouvir a fala de Lúcio Mauro, Carlos Manuel aproxima-se de Lucio Mauro e Lurdes
Maria o segue.
Lúcio Mauro. Para revelar a identidade dos meus pais, ela exigiu que eu matasse Maria
Amélia.
Lurdes Maria (para Lúcio Mauro). Como pode me acusar assim? (para Carlos
Manuel) Não dê mais ouvidos a está víbora. Infelizmente somos irmãos, mas não
cúmplices. Tudo o que ele fez, foi sozinho e por conta própria. Ele matou a pobre Maria
Amélia e ainda fez registro do crime.
Lurdes Maria vai até Lúcio Mauro e procura nos bolsos do paletó as fotografias.
Encontra-as e as mostra a Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Veja! Mostrou-me, dizendo que faria o mesmo comigo.
Carlos Manuel vê as fotografias e choca-se as deixando caírem no chão.
Carlos Manuel. Meu Deus!
Longo silêncio. Lurdes Maria caminha, devagar, até o lugar onde está o telefone e faz
uma ligação.
Lurdes Maria. Polícia...
Não se ouve mais o que é dito por Lurdes Maria ao telefone. Carlos Manuel aproxima-
se de Lúcio Mauro. Breve silêncio entre eles.
Carlos Manuel. Por que fez isso, Lúcio? Amelinha era um anjo!
Lúcio Mauro. Um dia fomos amigos, Carlos, e em nome dessa amizade, eu digo:
Lurdes Maria não é quem parece ser.
Lurdes Maria desliga o telefone e aproxima-se deles.
Lurdes Maria. Logo a polícia estará aqui.
Carlos Manuel levanta-se e desamarra Lúcio Mauro.
Lurdes Maria. O que é isso, afinal? Que devoção é essa que você tem a uma amizade
do passado?
Carlos Manuel (para Lúcio Mauro). Vá embora.
Lúcio Mauro permanece sentado. Carlos Manuel se afasta, ficando de costas para
Lúcio Mauro e Lurdes Maria.
Carlos Manuel. Nunca mais quero vê-lo.
114
Lúcio Mauro entrega um cálice com vinho para Lurdes Maria e senta-se novamente.
Lurdes Maria. Maria Amélia interceptou a sua carta induzida por um sentimento
desmedido. Assim como era o seu por mim. Assim como é o meu por Carlos Manuel.
Você e Maria Amélia deveriam me entender... Está em nosso sangue amar de maneira
insistente... e definitiva.
Lúcio Mauro toma mais vinho e respira fundo.
Lúcio Mauro. A carta/
Lurdes Maria. Esqueça isso, Lúcio.
Lúcio Mauro. Não era para você/
Lurdes Maria. O que?
Lúcio Mauro. A carta que escrevi... não foi para você.
Carlos Manuel entra na sala, seguido por Maria Amélia, trazendo nas mãos a carta. Ao
vê-lo, Lurdes Maria e Lúcio Mauro levantam-se.
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Carlos Manuel (p/ Lúcio Mauro). Maria Amélia me contou.
Carlos Manuel aproxima-se de Lúcio Mauro e mostra a carta.
Carlos Manuel. É verdade?
Lúcio Mauro tenta tomar a carta das mãos de Carlos Manuel, mas não consegue.
Carlos Manuel lê os fragmentos. Lurdes Maria olha para os homens sem compreender
o que acontece.
Carlos Manuel. ―Acredite quando digo que de outra forma não conseguiria dizer tudo
o que sinto”/
Carlos Manuel interrompe a leitura e olha para Lúcio Mauro. Enquanto Carlos Manuel
retoma a leitura, Lurdes Maria, absorta, põe as mãos na cabeça e sussurra a mesma
fala de Madame Nora, como uma dublagem.
Madame Nora (off). O passado está voltando... e com ele vem um segredo... uma
verdade escrita em confissão...
Carlos Manuel. “Não sei bem como aconteceu, mas me surpreendi apaixonado. Te
desejando a cada instante e sofrendo cada vez que me tomava apenas como um amigo.
Por medo e por vergonha de uma possível rejeição calei fundo o meu sentimento e te
amei em silêncio. Procurei motivos para esquecê-lo, mas não consegui...”
Lúcio Mauro emociona-se. Lurdes Maria mais uma vez balbucia as palavras de
Madame Nora.
120
Lurdes Maria, em estado de choque, deixa cair Maria Amélia e a arma. Lúcio Mauro
corre e ampara Maria Amélia nos braços. Carlos Manuel aproxima-se e ajoelha-se ao
lado deles. Maria Amélia ergue uma mão, alisa o rosto de Lúcio Mauro, e morre.
Carlos Manuel levanta-se e ergue Lúcio Mauro. Abraçam-se. Lurdes Maria observa as
mãos sujas e o vestido ensanguentado e abandona-se no chão. Ao lado de Lurdes Maria
está a carta que ela recolhe lentamente. Aos poucos, Lurdes Maria começa a sussurrar
elucubrando entre a loucura e a lucidez. Madame Nora, lentamente, atravessa o espaço
atrás de todos, espalhando uma espessa fumaça.
Lurdes Maria. Ah! Se eu soubesse. Ela viu. Tentou me avisar. Fui ludibriada... aquele
vermelho... tanto sangue... Madame Nora tinha razão, meu Deus! Madame Nora, tinha
razão. As cartas não mentem jamais! Não mentem... as cartas... não mentem... As cartas
não mentem jamais!
Luz cai em resistência ao mesmo tempo em que ouve-se a sirene do carro da polícia
aproximando-se.
122
Da ideia à escrita
Há um longo caminho entre a ideia para uma obra dramática e a sua execução.
Este ponto de partida, princípio de tudo, para conceber-se enquanto tal, não surge
espontaneamente e nem de forma conclusa se dispõe para ser lançado na prática do
exercício da escrita, pelo contrário, vai se formulando aos poucos, acredito, numa
dinâmica de influências do consciente e do subconsciente do artista, podendo, a criação,
ser assim ―[...] observada no estado de contínua metamorfose: um percurso feito de
formas de caráter precário, porque hipotético [...]‖ (SALLES, 2009, p. 29).
Nossas vontades, desejos e intuições são moldados nesse lugar obscuro e ainda
pouco conhecido que é o subconsciente associado ao nosso consciente influente e
influenciado pelo cotidiano que nos circunda. Nesse terreno de abstrações e inexatidões,
é que uma ideia toma forma para manifestar-se na arte e através dela. Não existindo
uma teoria fechada, nem um método assertivo ou uma metodologia pronta que anteceda
o processo de criação em si.
123
recorte de jornal com a matéria intitulada O crime do ketchup e me disse: ―Uma peça.
Escreve.‖
Como quis, assim, o acaso. Cá, estou eu.
A partir de então, me entreguei à tarefa de pensar sobre o que me era possível
reconhecer e identificar do gênero melodramático contido naquela história e decidir por
qual caminho seguir, se fazer uma versão teatralizada da história ou apropriar-me dela e
realizar uma releitura. Ative-me ao desejo de inspirar-me livremente nos
acontecimentos do Crime do Ketchup para escrever uma peça melodramática como a
parte prática da minha pesquisa em comum acordo com a parte teórica.
A decisão de seguir adiante com a ideia aconteceu de forma paulatina e intuitiva.
Não sendo a primeira vez que ―[...] percebi como todos os fatores para a tomada de uma
decisão já estavam preparados na parte inconsciente da minha mente, sem que a parte
consciente tivesse participado da celebração.‖ (BROOK, 1999, p. 96)78.
Refletir sobre o processo de criação artística de uma obra dramática é uma
tentativa de inteirar-se do caminho percorrido e considerá-lo como uma revelação,
autodescoberta, já que durante o processo, não se tem, ou melhor, não se detém a ele de
maneira clara e consciente. Assim, é preciso considerar que todo o processo de criação
está sujeito a suscetibilidades que podem fazer o artista avançar e/ou retroceder, fazer
e/ou desfazer, escrever, reescrever, ler e reler, tudo isso inúmeras vezes e ainda assim
não encontrar a tão esperada satisfação, constatando que a arte não é uma ciência exata
e não existe fórmula e nem garantias para um possível sucesso.
A escrita dramática consistiria, então, em sua essência de tentativas e
aprimoramentos, pois, por mais que se tenha ideia do que se quer fazer, é durante o
processo de feitura que o fenômeno acontece, podendo ou não chegar ao lugar
inicialmente desejado ou surpreender-se com o novo e inesperado. Entre as inúmeras
possibilidades de escolha para o melhor desenvolvimento de uma obra artística, um dos
fatores que fazem diferença nessa composição é a instrumentalização que o artista
possui para exercitar seu ofício.
78
Este pensamento ratifica a possível visão de que alguns direcionamentos são tomados por um
dramaturgo. No seu curso de elaboração de uma peça teatral, são, na maioria das vezes, processados em
diversos planos da consciência do artista numa interação complexa e intensa entre o criador e a criatura.
125
79
Segundo Mendes (2008), o pacto receptivo é o estabelecimento de um acordo entre público e obra
artística onde se fixam convenções. O público aceita os modos como a obra se configura e é apresentada e
assim se permite envolver. Em nosso caso de estudo, o pacto aconteceria pela aceitação dos códigos da
representação da linguagem melodramática (o caráter patético, a grandiloquência, a tipificação, entre
outros tantos). As convenções/concepções são agenciadas em um discurso e oferecidas no momento da
enunciação. A recepção aceita através de um acordo, pacto, permitindo-se a fruição.
126
Essa escolha de estruturação aparece desde o princípio do texto, pois a peça tem
como ponto de partida o final. Mostra-se na cena 01, Ato I, a personagem Lurdes Maria
já enlouquecida, elucubrando sobre tudo o que vivenciou até chegar aquele momento.
Um olhar mais atencioso poderia encarar a cena de abertura como um convite ao
passado, uma rememoração que ajudaria a compreender o que aconteceu com aquela
personagem e o que a levou aquele estado físico e mental. Segue trecho exemplificador:
[...]
Lurdes Maria respira fundo.
Lurdes Maria. Não quero que ele saiba o quanto as palavras dela me
afetaram. Por mais que eu tente esquecer... não consigo... não
consigo...
127
[...]
Lúcio Mauro apanha o punhal e o segura com firmeza e não encara
Maria Amélia.
Maria Amélia. Lúcio!
Maria Amélia afasta-se devagar e, no mesmo ritmo, é perseguida por
Lúcio Mauro.
Lúcio Mauro. Quero saber quem são eles.
Lúcio Mauro avança em direção a Maria Amélia, que se defende
usando o diário como escudo.
Maria Amélia. Não!
Black out.
[...]
4.2 LINGUAGEM
80
Eric Bentley denomina fala como ―declamação‖. Neste estudo, encara-se a fala como aquilo que uma
personagem emite e também o que não emite, é o texto dramático principal, aquele ao qual o espectador
tem acesso direto e imediato. Silêncios, pausas, titubeios, gestualidades e movimentação das personagens
podem ganhar a valoração de réplicas, falas dramáticas, pois adquirem uma grade eloquência dependendo
do seu uso e aplicabilidade.
129
que se cria é que o diálogo parece se encaixar naturalmente como uma conversa cheia
de intencionalidades.
O texto Vermelho rubro amoroso... profundo, insistente e definitivo! é produto
de uma cuidadosa manipulação estética de linguagem que buscou dar ao texto dramático
uma melodia específica, fluida, melosa e dramática, numa tentativa de traduzir nas
ações das personagens e no que elas emitem, os estados anímicos em que se encontram
e principalmente, a sentimentalidade que carregam. No fragmento da cena 03, Ato I,
exemplifica-se a preocupação com a fluidez das falas e a dinâmica entre elas. A cena é
imbuída de informações que caracterizam as personagens e o universo dramático em
que estão inseridas, expondo ainda a relação afetiva que existe entre as primas, haja
vista, a forma carinhosa com que se tratam. A cena ressalta também a intimidade e
cumplicidade entre elas.
[...]
Lurdes Maria. O desejo de toda minha vida. Noiva!
Maria Amélia. Deixa o vestido por minha conta. Faço questão. Será o
mais bonito de todos.
Lurdes Maria. Não poderia esperar outra coisa da minha madrinha.
Maria Amélia. Madrinha? Eu?
Lurdes Maria. Afinal é ou não é minha prima querida?
Maria Amélia. Lurdinha!
Abraçam-se emocionadas.
Maria Amélia. Mais que prima. Uma irmã!
Lurdes Maria. Uma irmã!
Examinam o anel como que hipnotizadas.
[...]
[...]
Lúcio Mauro. Verdade! Deus sabe o quanto estimo vocês.
Acolheram-me quando, ainda recém nascido, fui abandonado na
130
soleira da porta desta casa. Se não fosse por Tia Júlia, eu nem sei...
Cuidou de mim e me tratou como um filho. Aproximou-me de vocês e
fez com que crescêssemos juntos, como irmãos. Depois do acidente
que vitimou os seus pais e os pais de Amelinha, nos unimos ainda
mais, pois tínhamos apenas uns aos outros. Vocês duas são a minha
família. Acredita mesmo que eu seria capaz de renegar tudo isso?
(Cena 11, Ato 1)
[...]
Maria Amélia. Existe dor maior do que amar e não ser amada em
retribuição? Se pudesse, abriria o peito e arrancaria todo esse
sentimento, mas, infelizmente, amor não se destrói... nem pela força...
nem pela fúria... amor... só se consome... até o fim... (Cena 12, Ato I)
[...]
Lurdes Maria. Vermelha... rubra... intensa... A noiva sem rosto é
Maria Amélia. Queria ser surda para não ouvir as palavras que saem
da minha boca, mas não sou. Maria Amélia, minha amiga, minha
prima, a quem considerei uma irmã, é a ameaça que paira sobre a
minha felicidade. (Cena 17, Ato I)
[...]
[...]
Maria Amélia. A carta. A carta que me pediu... Eu... Eu... Nunca a
entreguei.
131
como uma fala, são tão eloquentes quanto, pois a sua aplicação não é gratuita e nem
tampouco descartável podendo ser ignorada ou distorcida em uma encenação sem que
haja o comprometimento da narrativa.
Na peça aqui analisada, a rubrica foi empregada enquanto recurso narrativo,
quando havia necessidade de criar uma movimentação dramática que não cabia ser
desenvolvida no campo das palavras, do verbo. Julgando-se a ação dramática melhor
representada por uma configuração imagética do que por uma declaração verbal.
Seguem exemplos:
[...]
Lurdes Maria aos poucos se aproxima. Ficam de frente um para o
outro e se encaram por alguns instantes. Lurdes Maria dá um tapa na
face de Lúcio Mauro. Encaram-se. Lurdes Maria atira-se nos braços
de Lúcio Mauro. Abraçam-se por um longo tempo e choram
copiosamente.
(cena 11, ato I)
[...]
Lurdes Maria, em estado de choque, deixa cair Maria Amélia e a
arma. Lúcio Mauro corre e ampara Maria Amélia nos braços. Carlos
Manuel aproxima-se e ajoelha-se ao lado deles. Maria Amélia ergue
uma mão, alisa o rosto de Lúcio Mauro, e morre. Carlos Manuel
levanta-se e ergue Lúcio Mauro. Abraçam-se. Lurdes Maria observa
as mãos sujas e o vestido ensanguentado e abandona-se no chão. Ao
lado de Lurdes Maria está a carta que ela recolhe lentamente. Aos
poucos, Lurdes Maria começa a sussurrar elucubrando entre a
loucura e a lucidez. Madame Nora, lentamente, atravessa o espaço
atrás de todos, espalhando uma espessa fumaça.
(cena 27, ato III)
[...]
4.3 PERSONAGENS
situação dramática apresenta-se com a devida caracterização dos seus agentes, seus
traços, motivações básicas, suas relações num dado tempo e espaço. Na ficção
dramática, uma personagem age de acordo com sua motivação e os objetivos contrários
instalam o conflito.
Assim, é possível reconhecer Lurdes Maria, Lúcio Mauro, Maria Amélia, Carlos
Manuel e Madame Nora como personagens cheias de personalidade, interesse e
motivação, pois cada um busca, a sua maneira, atingir um objetivo pessoal durante o
desenvolvimento do enredo. O que elas se dispõem a fazer para atingir os objetivos vai
de acordo com as características presentes em suas personalidades e que são
demonstradas nas ações executadas durante o desenrolar da trama.
Considerando a tipologia e os possíveis modos classificatórios, Thomasseau
(2005, p.39) afirma que de acordo com as convenções estabelecidas pelo clássico
gênero dramático melodrama, a divisão da humanidade82 seria ―simples e intangível: de
um lado os bons, de outro os maus. Entre eles, nenhum compromisso possível.‖ Essa
dicotomia serviu muito para o estabelecimento de parâmetros e a sistematização do
gênero nos primórdios da formação e do desenvolvimento da linguagem e da estética do
melodrama, pois as personagens eram máscaras de comportamentos fortemente
codificadas e imediatamente reconhecíveis e identificáveis pelo público.
Desde o início do desenvolvimento de um enredo melodramático, ficava claro
para o espectador do que se tratava a história e o tipo de gente que a vivenciava. Logo, o
público tomava ciência de quem eram as personagens por suas ações que revelavam o
teor de seus caráteres. Se fossem bons, agiriam com retidão e seriam cheios de virtudes,
os mocinhos, perseguidos e vitimizados pelas ações condenáveis dos vilões, maus e
cruéis do início ao fim da trama.
Dado os ditames do gênero melodramático, a peça Vermelho rubro amoroso...
profundo, insistente e definitivo! faz uso dos arquétipos bom e mau, vilão e mocinho,
porém um olhar mais detido pode observar sutilezas na construção das personagens que
revelam ser esta fronteira entre bem e mal muito mais tênue e fluida. Uma oportunidade
para trabalhar as convenções clássicas do gênero à luz de novas perspectivas, numa
tentativa de expor as múltiplas possibilidades de abordagem para o melodrama em
nossa atualidade.
82
Compreende-se o uso do termo humanidade no sentido de personas, criações dramáticas e ficcionais.
Uma ilusão de ser animado, pessoa humana.
134
[...]
Carlos Manuel. “Põe de lado os precários, hipócritas e imorais
valores que nos cercam e empresta seus olhos para uma nova visão de
mundo onde não existem retesados juízos e nem juízes. Neste lugar é
que eu me encontro...”
Lúcio Mauro. Te amando.
[...]
[...]
Lurdes Maria. Tive outra vez aquele sonho, Carlos Manuel... Tão
horrível! Tão real...
Lurdes Maria levanta-se e fala enquanto afasta-se de Carlos Manuel.
Lurdes Maria (absorta). Uma mulher... não conseguia ver o rosto...
Nunca senti tanto medo. Meu corpo... Não conseguia respirar...
Parecia que a vida escapava... Cada vez que o vulto se aproximava de
mim... O vestido de noiva esvoaçava/
Carlos Manuel. Uma noiva?
Lurdes Maria. Alvo... branco... divinal. Quando estava próximo a
mim, ergueu um punhal e, juro por tudo que me é sagrado, aquilo foi
uma ameaça. Tenho certeza. Fiquei ainda mais espantada quando vi
uma mancha vermelha espalhar-se... Um vermelho... rubro... intenso...
um presságio de sangue.
83
Jargão utilizado pelos escritores na prática da escrita dramática quando fazem referência a personagem
que tem como função mais ouvir do que falar. Ela existe na cena para interagir com a personagem
principal evitando assim o monológo desnecessário.
136
[...]
[...]
Lurdes Maria. Não deveria ter vindo aqui. Dei ouvidos a uma
lunática.
Retira da bolsa um maço de dinheiro e o atira sobre a mesa.
Lurdes Maria. Está aí o seu dinheiro.
Madame Nora olha para o dinheiro e depois para Lurdes Maria.
Madame Nora. Não quero. Recolhe o dinheiro e mede as palavras.
Silêncio entre elas. Depois de um tempo, Lurdes Maria recolhe as
notas.
Lurdes Maria (desabafo em fio de voz). Velha ridícula!
(Cena 15, Ato I)
[...]
Lúcio Mauro. Quando você se tornou assim... tão má?
Lurdes Maria fala de soslaio.
Lurdes Maria. Ah, Lúcio! Má, eu sempre fui, meu querido, mas só
agora precisei mostrar-me... sincera.
(Cena 22, Ato II)
[...]
84
Esses efeitos emocionais já foram apontados anteriormente no capítulo 2 desta pesquisa.
139
de amor, sacrifica-se, dando a sua vida para que Lúcio Mauro possa viver e ser feliz ao
lado de Carlos Manuel).
Os vilões, via de regra, não provocam esses tipos de emoções nos espectadores,
pois não são dignos de piedade, porque, por pior que seja o flagelo recebido por eles,
parece ser o castigo merecido e ainda, apesar da vilania conter em certo aspecto um
magnetismo sedutor, admirá-la necessita de uma identificação contundente, algo que
nem todos – público – estão preparados para assumirem. Nesta lógica, a personagem
Lurdes Maria, representativa da vileza, suscita no espectador a antipatia, revolta,
indignação, o desejo forte de punição por todo o exercício de maldade praticado ao
longo do enredo melodramático.
Inspirando-me nos trabalhos de Ed Tan e Nico Frijda (1999) tento explorar a o
sentimentalismo e a atmosfera de sentimentalidade como um dos extratos do gênero
melodrama manifestados tanto nas personagens quanto no público, como uma
consequência do acúmulo de toda a tensão exposta no drama ao longo do
desenvolvimento da trama. Considerando essa observação dedico atenção a trechos da
última cena da peça teatral Vermelho rubro amoroso... profundo, insistente e
definitivo!, reconhecendo e propondo análise das estratégias melodramáticas
agenciadas.
Os trechos destacados pertencem a cena 27, Ato III, e foram escolhidos por
mostrarem-se mais representativos das estratégias compostas para a produção de efeitos
emocionais e satisfatórios para ilustrarem as observações que serão apontadas. No
fragmento que segue, foram utilizadas duas estratégias, tendo como objetivo aumentar a
expectativa, surpreender e estimular no público a piedade para com a personagem Lúcio
Mauro.
[...]
Lúcio Mauro. Eu vou contar.
Lúcio Mauro aproxima-se de todos.
140
[...]
Lúcio Mauro fecha o diário.
Lúcio Mauro. Tia Júlia é a minha mãe!
[...]
85
Do latim, Aqui e agora.
141
[...]
Lúcio Mauro. Estou ainda mais angustiado do que antes. Minha
esperança de ter uma família foi em vão. Estou como sempre fui... só.
Maria Amélia. Não está sozinho. Tem a mim.
Lúcio Mauro segura as mãos de Maria Amélia entre as suas.
Lúcio Mauro. Amelinha! Há pouco eu poderia ter tirado a sua vida.
Maria Amélia. Se estiver disposto a me perdoar, eu me disponho a
fazer o mesmo.
Lúcio Mauro abraça Maria Amélia. Um longo e emocionado abraço.
[...]
[...]
Lúcio Mauro. Ela sabia que a minha mãe estava morta e ainda assim/
Maria Amélia aproxima-se de Lúcio Mauro e segura em suas mãos.
Maria Amélia. Temos que agir com cuidado de agora em diante.
Lurdes Maria nos fez de marionetes e acha que ainda nos manipula.
Lúcio Mauro. Aonde quer chegar?
Maria Amélia. Nós a venceremos em seu próprio jogo. Fingiremos
minha morte e assim poderemos/
Lúcio Mauro. Descobrir a identidade do meu pai/
Maria Amélia. E mostrar a Carlos Manuel quem é minha prima.
[...]
[...]
Carlos Manuel. Tudo isso abriu os meus olhos.
Lurdes Maria. Meu amor/
Carlos Manuel. Não me chame assim.
Lurdes Maria. Hoje é o nosso casa/
Carlos Manuel caminha devagar em direção a porta. Lurdes Maria se
interpõe na frente de Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Espere. Você está confuso é só isso.
Carlos Manuel. Estava me enganando todo esse tempo.
Lurdes Maria segura o rosto de Carlos Manuel entre suas mãos e o
beija. Carlos Manuel não corresponde. Os dois ficam se olhando por
certo tempo e em silêncio. Devagar, Carlos Manuel, retira as mãos de
Lurdes Maria do seu rosto.
Carlos Manuel. Agora sei que não te/
Lurdes Maria. Não diga/
Carlos Manuel. Não te amo.
[...]
[...]
Lurdes Maria, emocionada, abraça-se a Carlos Manuel. Em um
crescente de emoção, ela ampara-se no corpo dele, mas não consegue
permanecer de pé. Desliza até o chão e fica prostrada de joelhos na
frente dele, chorando. Lúcio Mauro e Maria Amélia observam o
sofrimento de Lurdes Maria. Carlos Manuel se afasta, mas a fala de
Lurdes Maria o impede de seguir adiante.
Lurdes Maria (verdadeiramente sofrida). Eles têm razão... Queria ser
boa, mas não sou. Agi de forma condenável, mas foi por medo de
perdê-lo. Os pesadelos, as premonições de Madame Nora. Vi a
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mancha na roupa de Maria Amélia e... Acha que sou incapaz de ser
verdadeira? Convivo com uma verdade desde que te conheci: o meu
amor.
[...]
[...]
Lúcio Mauro. A carta/
Lurdes Maria. Esqueça isso, Lúcio.
Lúcio Mauro. Não era para você/
Lurdes Maria. O que?
Lúcio Mauro. A carta que escrevi... não foi para você.
Carlos Manuel entra na sala, seguido por Maria Amélia, trazendo nas
mãos a carta. Ao vê-lo, Lurdes Maria e Lúcio Mauro levantam-se.
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Carlos Manuel (p/ Lúcio Mauro). Maria Amélia me contou.
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Diretores, atores, produtores e outros profissionais responsáveis por um processo de encenação.
144
[...]
Lúcio Mauro e Carlos Manuel entreolham-se e beijam-se. No
encontro entre os corpos, o vinho que está no cálice segurado por
Lúcio Mauro é derramado na sua vestimenta e o cálice cai no chão,
assim como a carta. Lurdes Maria, trôpega, afasta-se caminhando
para o fundo da sala e lá se ampara em um móvel. Maria Amélia,
emocionada, afasta-se também. Lúcio Mauro e Carlos Manuel se
separam e entreolham-se, admirados.
[...]
[...]
Lúcio Mauro. Deixe-nos ir, Lurdes. Merecemos a felici/
Lurdes Maria (verdadeiramente sofrida). E quanto a mim?
Lurdes Maria aponta a arma para Lúcio Mauro.
145
[...]
Maria Amélia. Acredite quando digo que me arrependi do que fiz. Se
fosse preciso, daria minha vida para reparar o meu erro e garantir a
sua felicidade.
[...]
[...]
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não nomearei este momento como uma conclusão, pois sei que não se trata
disso. Minha fé numa prática continuada de estudo e produção de conhecimento me
detém e impede o levantamento de tal afirmativa. Acredito que é chegado o momento
para expor aqui e deixar em registro algumas ponderações em relação ao trabalho
executado e o caminho traçado para esta execução.
Neste lugar, encontro-me satisfeito, pois carrego, em mim, a crença de que atingi
meus objetivos ao propor um estudo sobre o melodrama, detendo minha atenção aos
possíveis efeitos emocionais que o gênero seria capaz de suscitar no espectador
contemporâneo. Nessa seara, fiz um recorte apropriado aos meus interesses de
pesquisador e artista ao considerar que um dramaturgo poderia antever as emoções que
seriam suscitadas no espectador e criar estratégias durante o seu processo de criação,
fazendo uso de alguns elementos que constituem e caracterizam o gênero melodrama
como recursos para atingir tal intento.
Dediquei-me a avançar a investigação de forma paulatina, passo a passo,
cuidando de cada etapa para que minhas observações estivessem bem fundamentadas e
conduzissem o leitor de maneira progressiva pelo caminho que trilhei no processo de
pesquisa.
Desejando compartilhar as minhas impressões com clareza e coerência,
debrucei-me no melodrama, constatando que o gênero modernizou-se e adequou-se ao
sabor dos tempos para (r)existir em nossa atualidade, em diferentes meios de
comunicação, sob diferentes formas e aspectos. Creio que onde existem situações
dramáticas capazes de induzir a plateia a uma constante dinâmica de apelo às emoções e
sensações, lá pode ser encontrado o melodrama, exercitando o seu fascínio através da
ilusão, identificação e principalmente da emoção.
Investigar, mesmo que de forma breve e sucinta, a relevância do gênero
melodramático, sua permanência/resistência e as possibilidades de abrangência pelo
viés dos efeitos emocionais, traz a certeza de que estamos diante de um vasto campo de
pesquisa em constante transformação e propício para inúmeras outras propostas de
reflexões sobre os mais diversificados aspectos e perspectivas sobre o gênero.
Nos primeiros momentos dessa pesquisa, expus observações sobre o melodrama
numa tentativa de ir além dos conceitos já pré-formados e que o mitificam como algo
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atenção para algo tão complexo e interessante que são as emoções e os estados anímicos
que podem acometer a recepção no instante da fruição de uma obra artística.
O processo dramatúrgico para elaboração de Vermelho rubro amoroso...
profundo, insistente e definitivo! foi um vasto e enriquecedor exercício, pois como
afirma Salles (2009), o artista como sendo o primeiro receptor da obra, é o primeiro a
ser atingido por seus efeitos.
Llosa (1971) relata a ternura que sentiu por uma personagem de A Casa Verde e
como essa emoção, durante a construção de determinados episódios, o compeliu a
levantar-se da máquina, descomposto pela emoção. Assim também me surpreendi
algumas vezes, tocado pelas emoções que tentava apreender nas linhas do meu trabalho,
confiando por vezes na intuição e na certeza de que ―muito da complexidade da relação
do artista com a matéria se explica pela mobilização interior que esse confronto exige,
mobilização essa de considerável intensidade emocional‖ (SALLES, 2009, p. 767)
Sempre tive clara a ideia de que por mais que se tenha planejado, pensado na
possibilidade de criar método e modelo, por mais que se tenha pesquisado sobre o
gênero melodrama e pensado a organização que deveria ser aplicada ao drama, o
caminho só é revelado à medida que é trilhado, vivenciado pela escrita. Configurando
este ―o arcano procedimento do artista: em seu produzir ele se deixa guiar pela própria
obra que vai fazendo‖ (PAREYSON, 1993, p.76). Aplica-se aqui a velha e profunda
sabedoria popular: Só aprende-se a fazer, fazendo.
Exatamente assim, deu-se a escrita dessa peça teatral. Um jogo que
constantemente surpreendia o jogador pelas exigências das regras. Criar, considerando o
lugar da emoção do dramaturgo e da plateia em uma dinâmica constante de projeção,
antevendo uma possível reação, uma possível emoção, não é tarefa simples. É trabalho
árduo, pois é impossível estabelecer com exatidão que a emoção do público é suscitada
por uma determinada estratégia dramática, já que alguém da plateia pode estar
emocionado por motivos pessoais que nada tenham a ver com o que é apresentado.
Assim sendo, não sei se serei bem sucedido no meu intento, pois tenho ciência de que
esse tipo específico de sucesso é uma abstração impossível de alcançar, na exata medida
em que é igualmente impossível prever, pela arte, qualquer unanimidade de recepção.
Como afirma Salles (2009) quando diz que no processo de criação artística, onde existe
qualquer possibilidade de variação contínua – aqui inserida a ideia de incompletude
como algo inerente a obra artística – a precisão absoluta é impossível.
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Abreu, Caio Fernando. Morangos Mofados – Contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1982.
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REFERÊNCIAS
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