Gildon-Oliveira - Vermelho Melodrama

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

GILDON OLIVEIRA SILVA

ESTRATÉGIAS MELODRAMÁTICAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM


TEXTO TEATRAL

Salvador
2013
2

GILDON OLIVEIRA SILVA

ESTRATÉGIAS MELODRAMÁTICAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM


TEXTO TEATRAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Artes Cênica, Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
Artes Cênicas.

Orientador: Profº. Drº. Raimundo Matos de Leão

Salvador
2013
3

GILDON OLIVEIRA SILVA

ESTRATÉGIAS MELODRAMÁTICAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM


TEXTO TEATRAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênica, Universidade


Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas.

Aprovada em 29 de novembro de 2013.

Banca examinadora

Raimundo Matos de Leão – Orientador


Profº. Drº. em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia

Cleise Furtado Mendes


Profª. Drª. em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia

José Carlos dos Santos Andrade


Profº. Drº. em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo
Faculdade Paulista de Artes
4

Àqueles que, assim como eu, emocionam-se por tudo, sem pudores e com intensidade.
5

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Raimundo Matos de Leão, pelo caminho percorrido juntos e por
tudo o que isso representa para o meu aprendizado.

À professora Cleise Mendes, pelas sábias palavras.

A Marcos Barbosa, pela amizade e pronto atendimento nos momentos de impasses.

A Elisa Mendes, pela amizade, parceria e sonhos compartilhados.

Ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade


Federal da Bahia pelo compartilhamento de experiências e produção do conhecimento.

Aos meus colegas da turma 2012.1, pela prazerosa caminhada.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesquisa de Nível Superior – CAPES, pelo


apoio a está pesquisa.

E à minha família e aos amigos de sempre, porque sempre estão onde precisamos e
quando precisamos.
6

SILVA, Gildon Oliveira. Estratégias melodramáticas na construção de uma narrativa


dramática de ficção. (156 folhas). 2013. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

RESUMO

Esta dissertação tem como ação fundamental a construção da narrativa dramática ficcional
para o teatro Vermelho rubro amoroso... profundo, insistente e definitivo! e uma reflexão
crítica do processo de criação da peça teatral considerando uma investigação teórica sobre o
gênero dramático melodrama e a composição de estratégias de produção de efeitos
emocionais. Neste trabalho, são configuradas diretrizes para um exercício de construção da
fábula em que o dramaturgo se dispôs a compor estratégias de produção de efeitos
emocionais, em especial os modos de relação entre a expressão das emoções das personagens
e a convocação, através da dramaturgia, da disposição emocional do espectador, considerando
a apreciação como uma experiência que envolve a subjetividade humana em diversas
dimensões, sendo a dimensão emocional com as possíveis reações afetivas de um apreciador,
o interesse maior deste estudo.

Palavras-chave: Melodrama. Estratégias de composição. Narrativa dramática.


7

SILVA, Gildon Oliveira. Melodramatic strategies in building a dramatic narrative fiction in


Salvador (Bahia, Brazil). (156 folhas). 2013. Master Dissertation – Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

ABSTRACT

This dissertation is the construction of the fundamental action dramatic narrative fiction to
theater Red crimson love ... deep, persistent and permanent! and a critical reflection of the
process of creating the play considering a theoretical investigation of the dramatic genre of
melodrama and composition strategies to produce emotional effects. In this work are set
guidelines for building exercise fable in which the playwright was willing to compose
strategies to produce emotional effects, especially the relationship between the modes of
expression of the emotions of the characters and the call through the drama, the emotional
disposition the viewer considering the appraisal as an experiment that involves human
subjectivity in various dimensions and the emotional dimension with the possible emotional
reactions of a connoisseur, the interest of this study.

Keywords: Melodrama. Strategies composition. Dramatic narrative.


8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 EU MELODRAMO, TU MELODRAMAS, ELE MELODRAMA 19

1.1 ODE À SENTIMENTALIDADE 20

1.2 UM GÊNERO FORTE, REPRESENTATIVO E DE RESISTÊNCIA 21

1.3 A PROPAGAÇÃO DO GÊNERO 23

1.4 APESAR DE RECHAÇADO, TRATA-SE DE UM GÊNERO 27


CATIVANTE
1.5 A ESTRUTURA MELODRAMÁTICA 30

1.6 TIPOLOGIA DO GÊNERO 32

1.6.1 Melodrama Clássico 32


1.6.2 Melodrama Romântico 33
1.6.3 Melodrama Diversificado 34

1.7 ELEMENTOS RECORRENTES DA LINGUAGEM 36


MELODRAMÁTICA

1.7.1 Monólogo 37
1.7.2 Aparte 38
1.7.3 Reflexão 40
1.7.4 Confidência 41
1.7.5 Melodia 44
1.7.6 Alívio Cômico 45

1.8 TEMÁTICAS 46

1.9 ALGUNS HORIZONTES E NOVOS LUGARES DE OCUPAÇÃO 48


9

2 EU ENCANTO, TU ENCANTAS, ELE ENCANTA... 55

2.1 EFEITOS EMOCIONAIS 57

2.2 RECURSOS E A PRODUÇÃO DE EFEITOS 65

2.3 COMPOSIÇÃO DE ESTRATÉGIAS 70

3 UM ENCANTAMENTO: VERMELHO RUBRO 73


AMOROSO... PROFUNDO, INSISTENTE E DEFINITIVO!

4 ITINERÁRIO SENTIMENTAL E CRIATIVO 124

4.1 ENREDO E ESTRUTURA 126

4.2 LINGUAGEM 130

4.3 PERSONAGENS 134

4.4 EFEITOS EMOCIONAIS DESEJADOS 139

4.5 AS ESTRATÉGIAS MELODRAMÁTICAS 141

CONSIDERAÇÕES FINAIS 149

REFERÊNCIAS 153
10

INTRODUÇÃO

- Vai começar.
- É mais uma daquelas?
- Sim.
- Não sei como não se cansa. É tudo igual.
- Parece igual, mas não é.
- Tem sempre uma mocinha, um herói, um vilão. O bem contra o mal num embate
constante. No final, o mal é castigado e o bem é recompensado.
- Eu sei.
- E então?
- O que me prende não é tanto o que acontece, mas a maneira como acontece. Entende?
Gosto de acompanhar do comecinho, quando tudo é paz e sossego, quando o destino
tece a teia e coloca o par romântico um diante do outro e eles se olham... assim... e
pronto.
- Até o vilão entrar na história e arquitetar um plano para separá-los.
- Uma ameaça que deixa a gente preso, vidrado na história, tamanha a angústia e a
ansiedade. O coração parece que vai sair pela boca a cada investida.
- Mas todo mundo sabe que o casal romântico vai vencer os obstáculos.
- Claro! Eles estão predestinados a ficarem juntos. O amor tudo pode... Ai!
- Você já está chorando?
- Só de imaginar o longo caminho que irão percorrer. Quantas adversidades! Quantas
peripécias! Quantos desencontros e contratempos! Tudo muito doloroso!
- Se é doloroso então, para.
- Só depois que houver a punição para os ruins e a felicidade para os bons. Até lá fico
com o coração na mão: refrão por refrão, quadro a quadro, página por página, cena a
cena, fala por fala... Ai!
- Você gosta de sofrer.
- Assim? Desse jeito? Quem não gosta?

Não imagino melhor forma de dar início a este trabalho sem fazer proveito
daquilo que tenho de mais forte em mim: o desejo constante de escrever narrativas
dramáticas ficcionais. Assim, faço uso do recurso textual para introduzir meu estudo,
11

compondo esse breve diálogo dramático que nada mais é do que um exercício criativo
oriundo das referências que acumulei ao longo dos anos.
Este empirismo corrobora a impressão que tenho de que a formação de uma obra
de arte, os procedimentos para sua elaboração são, como afirma Pareyson (1993),
exercícios de tentativas, de um ―[...] tentar que não se apóia senão, em si mesmo e no
resultado que espera obter [...]‖ (PAREYSON, 1993, p.69), além de uma materialização
do sensível, pois como aponta Cecília Salles (2009), a sensibilidade permeia todo o
processo criativo fazendo com que a criação parta de e caminhe para sensações e, nesse
trajeto, alimente-se delas.
Vi-me inúmeras vezes cercado por narrativas de teor melodramático e
circundado por comentários elogiosos ou pejorativos acerca do gênero ou do produto
que continha características dessa tipologia. Do melodrama e sobre o melodrama, ouvi,
li e vi de tudo um pouco. Muitas afirmativas, muitas negativas, mas nunca testemunhei
a indiferença para com ele. Apropriando-me do universo rodriguiano, digo com ousada
propriedade: Alguém indiferente ao melodrama, pode até ter, mas, duvido.
Contar uma história de forma tal que seduza, emocione e encante sempre me
pareceu algo fantástico, pois muitas vezes me vi seduzido, emocionado e encantado ao
fruir um romance, uma peça teatral, uma música, um filme, uma telenovela... E, assim,
vejo-me ainda hoje.
Tendo certa intimidade com os pormenores da concepção de uma obra artística,
como uma narrativa dramática ficcional, ainda assim, parece-me fantástico que, no
momento da apreciação, o receptor possa se deixar envolver pela história e verter
lágrimas tão sinceras diante de uma fábula, algo que pertence ao não-real, à ficção.
Nessa dinâmica entre realidade e ficção, entre real e simulacro, tenho na emoção um
lugar de fascínio, pois independente do disparador, seja um acontecimento do cotidiano
ou um evento ficcionalizado, ela, a emoção, acontece de forma verdadeira. Assim fui
preenchendo o meu imaginário e repertório cultural com obras artísticas que pareciam
primar pela evocação das emoções do receptor.
Dentro da literatura dramática, o encontro com o gênero melodrama foi
inevitável, assim como a identificação e apropriação de sua linguagem, pois quando
olho com mais atenção para minhas experiências artísticas, me vejo sempre atraído
pelas personagens mais viscerais em meio a conflitos intensos e situações dramáticas
12

extremas. Tenho gosto pelo forte, dinâmico e pulsante ao acompanhar histórias que
surpreendem, tiram o fôlego e emocionam.
Em seu livro O prazer do texto, Roland Barthes sugere a possibilidade de se
criar uma tipologia de leitores, a depender do tipo de prazer que encontram em
diferentes tipos de texto.

[...] Poder-se-ia imaginar uma tipologia dos prazeres de leitura – ou


dos leitores de prazer; não seria sociológica, pois o prazer não é um
atributo nem do produto nem da produção; só poderia ser
psicanalítica, empenhando a relação da neurose leitora na forma
alucinada do texto. O fetichista concordaria com o texto cortado, com
a fragmentação das citações, das fórmulas, das cunhagens, com o
prazer da palavra. O obsessional teria a voluptuosidade da letra, das
linguagens segundas, desligadas, das metalinguagens (...). O
paranóico consumiria ou produziria textos retorcidos, histórias
desenvolvidas como raciocínios, construções colocadas como jogos,
coerções secretas [...] (BARTHES, 1977, p. 82)

Do mesmo modo, seria possível pensar no tipo de relação que os espectadores


desenvolvem com diferentes construções dramatúrgicas e o efeito diverso que as obras
exercem sobre eles. Isso porque a catarse, como afirma Cleise Mendes (2008), não está
simplesmente na obra, nem no receptor, mas no encontro entre eles. Ela se caracteriza
como ―[...] um processo e um acontecimento, um circuito que vai de um sujeito a outro
sujeito, de um desejo a outro desejo.‖ (p.7). Assim, é pertinente afirmar que existem
espectadores fiéis ao melodrama e nesse contexto, sou um espectador melodramático,
se for permitido nomear dessa forma um receptor.

Meu olhar, com satisfação, encontra aspectos melodramáticos inseridos em


obras artísticas distintas como em Vestido de noiva1, Quem eu quero não me quer2,
Central do Brasil3, Direito de amar4 e, ouso dizer, nos tangos e suas coreografias, e em
tantas outras obras artísticas nos mais variados meios de comunicação.

1
Peça teatral escrita por Nelson Rodrigues em 1943.
2
Música composta por Raul Sampaio e Ivo Santos em 1961. Tem como um dos interpretes mais célebres
o cantor Waldick Soriano.
3
Filme dirigido por Walter Salles em 1998 e roteirizado por Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro.
13

O desejo de observar mais de perto as relações entre dramaturgia e emoção,


considerando também a afinidade com o gênero melodrama, formaram o contexto de
onde surge minha proposta de pesquisa, envolvendo discussão acerca do gênero
melodramático e das suas estratégias para a produção do efeito emocional, aplicadas à
construção de um texto dramático.
O universo do dramático é fonte inesgotável para as mais variadas reflexões e
ocupa um lugar relevante no cotidiano da recepção estética em nossa atualidade,
considerando-se que diversos são os meios de comunicação que se apropriam do gênero
dramático para construir narrativas.
Guardadas as inúmeras dimensões das construções ficcionais dramáticas para
os mais diversos meios, este estudo pretende debruçar-se no momento da escrita
dramática, na possibilidade de sistematização de um processo de elaboração de uma
narrativa dramática ficcional na qual se reconheça o agenciamento das estratégias do
melodrama para a produção de efeitos emocionais.
Para a realização deste intento, é preciso considerar de antemão alguns termos
que serão recorrentes ao longo do trabalho, tratando-os já aqui, de forma breve, numa
tentativa de torná-los mais próximos. São eles: melodrama, estratégia, narrativa,
emoção e sentimentalidade 5.
Segundo Huppes (2000), o melodrama é um gênero dramático surgido no teatro
francês, no final do século XVIII, que se caracterizou pelo forte apelo às emoções do
espectador, através de histórias repletas de acontecimentos e situações incríveis no
embate entre o bem e o mal. Por ter como prioridade encher os olhos e os ouvidos do
espectador de forma dinâmica e objetiva, o gênero, como afirma Martín-Barbero (2003),
foi categorizado como algo ―inferior‖ e ―simplório‖. Uma forma esquemática,
superficial e previsível destinada a classes sociais inferiores e de pouco intelecto. Mais
de duzentos anos depois, o gênero, obviamente, sofreu modificações e mostra-se
distinto e diversificado em muitos aspectos. Um dos teóricos que propõe reflexão sobre
o novo lugar que o melodrama ocupa, na atualidade, é Martin-Barbero (2003), ao
referir-se ao gênero como emblemático no processo de mediação entre uma tradição

4
Telenovela produzida e veiculada pela Rede Globo em 1987. Adaptação de Walter Negrão da obra
radiofônica A noiva das trevas de Janete Clair.
5
De forma oportuna, esses termos serão retomados e mais aprofundados durante as explanações ao longo
dos capítulos.
14

popular e a cultura de massas, ressaltando a capacidade de articulação e adequação do


melodrama aos mais variados meios comunicacionais em nossa atualidade.
Jean-Marie Thomasseau (2005) trata o melodrama como um gênero de estética
inovadora e de objetivos claros com relação aos efeitos a serem provocados nas plateias,
causando tamanha empatia em um número tão grande de espectadores. Desde sempre,
essa preocupação em seduzir o público tornou-se um dos aspectos que caracteriza o
gênero de forma basilar e um dos motivos para o sucesso e desdobramento nas suas
diversas formas de acomodação seja no teatro, cinema, televisão, fotografia, música,
etc.
O termo estratégia possui algumas denotações que são interessantes para este
estudo. Uma primeira refere-se ao termo enquanto ―[...] arte militar do planejamento e
execução de operações relativas a pessoas e materiais, para garantir posições vantajosas
de onde se possam empreender ações táticas.‖ (XIMENES, 2000, p. 405). Essa
definição possibilita pensar a escrita dramática como um campo onde acontecem
infinidades de batalhas tendo, como objetivo maior, a vitória alcançada pela apreciação
da obra artística por parte do público.
Outra possibilidade de interpretação para o termo está vinculada a ideia da ―[...]
arte de aplicar os meios e recursos disponíveis para alcançar um objetivo específico.‖
(XIMENES, 2000, p. 405). O que pode fazer do dramaturgo um exímio estrategista, à
medida que desenvolve, na sua obra, toda uma arquitetura de signos que serão
efetivados no instante em que a obra estiver sendo alvo da apreciação, da fruição. Essa
arquitetura será nomeada por Umberto Eco (1979) de ―conjunto de estratégias‖ que se
realiza durante o ato de leitura e são definidas como previsões feitas pela instância
autoral sobre os movimentos inferenciais do receptor durante a experiência de leitura.
Partindo desse pressuposto, podemos encarar o texto como um conjunto de
códigos compartilhados por um leitor-modelo previsto no instante de geração da obra
por seu criador. Em nosso alvo de estudo, o dramaturgo desempenharia o papel de um
estrategista ao articular tais códigos. Uma visão cara, quando associada à perspectiva de
Aristóteles (2007), em sua obra Arte Poética, que defende, entre outras coisas, que a
qualidade de uma obra devia ser avaliada em função da sua habilidade em despertar
15

sentimento, emoção, pois, assim, também seria de certa forma possível mensurar a
capacidade do dramaturgo6.
Segundo Gomes (2003), numa obra, são muitos os tipos de programação de
efeitos construídos por estratégias de composição. Entre as muitas estratégias de
produção de efeitos existentes, este trabalho volta sua atenção para a estratégia de
produção de efeitos emocionais nos quais a organização dos elementos dramáticos se
destina à produção de emoções e de sentimentos, à medida que acessa, através da
representação, o universo reconhecível do espectador e seu campo comum de emoções.
O estudo, que aqui se propõe, faz uso desses termos brevemente abordados
como fundamentação para o momento que precederá às reflexões acerca do gênero
melodrama e das estratégias para a produção de efeitos emocionais: a composição de
uma narrativa.
Uma narrativa pode ser considerada como a descrição ou exposição detalhada de
um fato através de um sistema de códigos linguísticos compartilhado por todos os
envolvidos no mesmo processo de comunicação.
Para este trabalho, procuro limitar-me à ideia da narrativa usada a serviço da
literatura dramática de ficção, abrindo caminho para pensar nas possibilidades de
construção de uma narrativa dramática ficcional dentro do gênero melodrama.
Ao tratar de emoção, atenho-me, em comunhão a Ximenes (2000), a acepção do
termo como uma reação, uma impressão subjetiva do organismo a um determinado
acontecimento. A partir desta possível definição, encaro o termo sentimentalidade7, e
ainda de acordo com Ximenes (2000), como a afetação (condição e/ou natureza) dos
sentimentos numa manifestação exagerada e excessiva acima da razão, um estado de
espírito em que tudo ganha uma dimensão emotiva e, ouso acrescentar, lacrimosa,
considerando ainda uma dada época e/ou o contexto em que essa manifestação se
configura.

6
Aristóteles referia-se, especificamente, ao texto trágico capaz de suscitar no espectador o terror (phóbos)
e a compaixão (éleos).
7
Apesar de serem postos como sinônimos em alguns dicionários, o termo sentimentalidade difere do
termo sentimentalismo, pois enquanto a sentimentalidade ocupa-se da condição ou qualidade da
manifestação sentimental e da disposição a um sentimento, o sentimentalismo preocupa-se, de forma
exagerada, com a importância do sentimento, enxergando a realidade através de um ponto de vista
excessivo e que ignora outros aspectos. Comparando com outro par de termos, para melhor elucidação,
têm-se: feminilidade como qualidade, natureza ou condição do feminino, relativo ao feminino, conjunto
de questões relativas ao feminino; feminismo como ato ou efeito de tomar o partido do feminino, ser
defensor, apologista de.
16

A dinâmica metodológica deste trabalho segue duas vertentes: a pesquisa e a


prática. A pesquisa é referente à abordagem teórica do tema proposto, na qual será
aplicado o método de levantamento bibliográfico a fim de cobrir alguns temas:
conceituação sobre o melodrama e os elementos caracterizadores dessa espécie de
gênero; discussão do gênero dramático melodrama, com ênfase na investigação dos
efeitos que o melodrama é capaz de produzir; reflexões acerca da presença do
melodrama no contexto contemporâneo.
A investida a que dou início tenta, sempre que oportuno, encontrar interseções
nas minhas observações e nas reflexões apontadas por pesquisadores que trabalham o
universo teórico abordado neste estudo. Mostra-se conveniente e proveitoso trazer para
esta discussão os apontamentos feitos principalmente por Jean-Marrie Thomasseau
(2005), Ivete Huppes (2000), Silvia Oroz (1992), Ismail Xavier (2003), Jesus Martin-
Barbero (2003), entre outros pensadores, que tratam do gênero melodrama, sua
formação, expansão e permanência.
É de extrema relevância encontrar, nos trabalhos desses estudiosos, os respaldos
necessários para corroborar as premissas que serão levantadas sobre as características
do melodrama que o diferenciam dos demais gêneros dramáticos e que garantem sua
mutabilidade e capacidade de adequação aos mais variados tipos de meios de
comunicação, pois antes de lidar com uma possível organização de uma estratégia
melodramática, exige-se um reconhecimento dos elementos, dos recursos, das
possibilidades de uso do gênero melodramático e da sua importância.
Vários autores e métodos de análise oferecem chaves para o entendimento de
como obras ficcionais atuam sobre o público. Limito-me a apresentar aqueles com os
quais encontrei afinidade e que me bastam, por ora.
Wilson Gomes (1996) acredita que os meios utilizados para a criação de um
determinado tipo de obra são recursos ou materiais ordenados e dispostos de forma a
produzirem efeitos no momento da apreciação. As estratégias, por sua vez, são esses
meios estruturados, compostos e agenciados como dispositivos, com o objetivo de
programar efeitos específicos. Os efeitos são os resultados da articulação dos meios e
estratégias sobre a apreciação, o que emerge da obra em sua forma final. Em suma, o
pesquisador afirma que é para o espectador que se destinam as estratégias organizadas e
é nele que se esperam a manifestação dos efeitos previamente desejados.
17

Para tratar das emoções de uma forma objetiva e específica, apontando as


emoções que parecem mais suscetíveis ao gênero melodrama, dispõe-se,
principalmente, dos pensamentos de Noel Carroll (1999 e 2008), Ed Tan e Nico Frijda
(1999). Os três teóricos fundamentam esta parte do estudo ao refletirem sobre quais
emoções o melodrama é capaz de suscitar no espectador, considerando a recepção como
elemento imprescindível dessa comunicação, já que é necessário para sua afetação o
envolvimento, a empatia e a disposição do espectador.
Essa fase do estudo é um esforço para a compreensão satisfatória de aspectos
funcionais da dramaturgia, do melodrama, das estratégias dramáticas e dos efeitos
emocionais numa preparação para a fase seguinte: a prática.
A prática consiste na criação e reflexão de um processo de composição de uma
narrativa dramática ficcional, parte do estudo dedicada à experiência da elaboração e
análise da obra artística: Vermelho rubro amoroso... Profundo, insistente e definitivo!
Trata-se do momento destinado a inspiração e transpiração no exercício da
escrita dramática tendo pleno entendimento de que ―[...] a operação artística é um
procedimento em que se faz e atua sem saber de antemão de modo preciso o que se deve
fazer e como fazer, mas se vai descobrindo e inventando aos poucos no decorrer mesmo
da operação [...].‖ (PAREYSON, 1993, p. 69)
Dentre as inúmeras possibilidades de abordagem, estruturação e distribuição do
trabalho, busquei uma alternativa que prima pela funcionalidade da exposição do
pensamento e que garanta a eficácia do estudo almejado. Assim sendo, no primeiro
capítulo, Eu melodramo, tu melodramas, ele melodrama... é traçado um breve panorama
sobre o gênero dramático melodrama, considerando aspectos de seu histórico e evolução
até a nossa atualidade, que se mostram relevantes no que diz respeito à caracterização,
visualidade, reconhecimento e permanência do gênero abordado.
Pressupondo que grande parte da motivação que induz um espectador a fruir
uma narrativa dramática ficcional está na capacidade que essa narrativa tem de encantar
e seduzir o espectador, no segundo capítulo, Eu encanto, tu encantas, ele encanta... é
aberto espaço para uma reflexão sobre os mecanismos que geram tal encantamento e
como o processo se configura.
Sendo a emoção um viés para a produção do encanto, investiga-se como é
possível tocar o público pela via da emoção, que procedimentos excitam o ouvinte e de
18

que forma estes procedimentos podem ser operacionalizados, para, assim, suscitar
emoções intensas e vividas, uma característica marcante do gênero em debate.
A peça, Vermelho rubro amoroso... Profundo, insistente e definitivo!, resultado
artístico da minha pesquisa e terceiro capítulo desta dissertação, é o instante de
elaboração da narrativa dramática ficcional, fazendo uso de alguns elementos narrativos
simbólicos do gênero melodramático em uma tentativa de ―orquestramento‖ dos
recursos de composição em estratégias para produção de efeitos emocionais, tendo em
vista que a organização interna do drama afeta os níveis de significação da obra.
No quarto capítulo, Itinerário sentimental e criativo, proponho uma reflexão
crítica sobre o processo de criação da peça e minhas opções enquanto dramaturgo,
considerando a compreensão do gênero melodrama, sua apropriação e aplicabilidade e a
composição de estratégias para a produção de efeitos emocionais.
Esta proposta de pesquisa tem como premissa que o lugar da emoção, em uma
narrativa, segue ao encontro do lugar da emoção do público que, por sua vez, busca esta
sintonia no momento da fruição, identificando-se e reconhecendo-se ao longo do
caminho, seja através do enredo, do conflito, das personagens, ou ainda, através da
encenação, da música, do trabalho de interpretação executado por um ator ou atriz, etc.
Acredito que a emoção bem trabalhada, o encantamento provocado por uma narrativa
melodramática, pode tornar a experiência ―inesquecível‖ por um breve ou longo
período, sucedido por uma próxima emoção. Assim sendo, pretendo identificar e
interpretar as estratégias do melodrama que podem ser organizadas para atingir os
efeitos emocionais previamente estabelecidos pelo dramaturgo durante o processo de
criação de uma obra.
19

1 EU MELODRAMO, TU MELODRAMAS, ELE MELODRAMA...

Nós melodramamos.

Faço uso de uma licença poética para transformar um substantivo em verbo e


ouso conjugá-lo para melhor ilustrar um pensamento que aqui passo a defender: o
melodrama nos circunda. Escrevo comungando com o pensamento de Peter Brooks
(1995) que prega a concepção de uma imaginação melodramática em nossa atualidade.
Segundo o pesquisador, existe, hoje, a necessidade de observar o melodrama para além
da delimitação do gênero, numa tentativa de compreendê-lo e assimilá-lo como um
modo de perceber e experimentar o mundo. Para entender a amplitude do fenômeno
melodrama, é preciso, antes, tentar compreender a dinâmica relação que o melodrama
estabelece com a teia cultural que o envolve, considerando a forma particular de
tratamento dos assuntos por ele abordados, o conjunto de seus procedimentos e não
apenas o corpus de temáticas aportadas pelo gênero.

Quando se refere aos modos de percepção, o pesquisador Peter Brooks (1995)


me permite verificar um diálogo entre a estrutura do melodrama e outros regimes
discursivos que não necessariamente aportam toda a base melodramática, mas que
refletem, em sua constituição, um processo de apropriação e/ou (re)leitura de algumas
características do gênero, mas que não se limitam a um modelo único e engessado.
Assim, penso que a relação que pode se estabelecer entre um espectador e uma narrativa
melodramática, considerando seu imaginário e as subjetividades num contexto
contemporâneo, constitui um espaço privilegiado para o exercício dos modos de
conhecer e experimentar realidades de diferentes formas através de situações carregadas
de emoções, sentimentos e sentimentalidade.

Tomar ciência do melodrama e de sua poética é ir além de uma análise


sistemática de suas estruturas e técnicas, do determinismo e da composição do gênero,
pois o melodrama não é um gênero estático, regulamentado e delimitado, é um
fenômeno hipertextual que se reutiliza dos elementos de outros gêneros para compor-se
como estrutura dramática dinâmica na qual se trabalha a reorganização de diferentes
estilos.
20

1.1 ODE À SENTIMENTALIDADE

Ah! Basta a emissão dessa exclamativa seguida, ou não, por pequenas frases
como: Minha mãe! Meu pai! Meu filho! Minha filha! Meu amor!, acompanhadas por
longos abraços e troca de carinhos, envolvidas ou não por uma melodia harmonizada ao
clima dramático do enredo para que o efeito se manifeste no espectador e este lacrimeje
envolvido por alguns artifícios do gênero melodrama.

Saber do melodrama, tomar conhecimento de sua composição e desdobramento


é banquetear-se com a experiência do fascínio no trato com um gênero dramático
presente no imaginário popular, de forte referencial iconográfico que agrada e envolve o
destinatário de sua obra – o público – fazendo uso de seus elementos constituintes como
estratégias de apelo à sentimentalidade. Daí, o sentido empregado na construção frasal
do subtítulo, denotando o melodrama como um gênero dramático que faz ovação à
afetação dos sentimentos.

A sedução da audiência através do apelo às emoções pode ser vista como um dos
fatores que caracterizam o gênero melodrama, mas o elemento que o distingue,
verdadeiramente, e do ponto de vista da personagem, é a paixão8 – sua real matéria
prima de consumo e combustão. Fator que impele a criação melodramática como uma
força motivadora e fio condutor para as conexões e vínculos das engrenagens
pertencentes ao gênero.

O grau elevado do sentimento, paixão, vivido e maximizado pelas personagens,


exteriorizado nas ações dramáticas resultantes de seus impulsos afetivos, pode construir
consequentemente uma ligação e interação mútua entre a emoção do espectador e a
fabulação construída através do gênero melodramático. O que não se configura como
uma tarefa fácil, exigindo esforço do criador da obra para expor tal elevação de
sentimento e assim propiciar uma interação entre obra artística e o público apreciador.

Partindo dessa premissa é possível afirmar, segundo Camargo (2005), que


grande parte dos elementos do melodrama, os temas de suas peças, seus princípios
técnicos de estilo e construção são subordinados a um objetivo estético: suscitar e expor
as emoções puras e vívidas, pois a trama, as personagens e os diálogos trabalham em

8
Referindo-se ao impeto, impulso, desejo da realização do objetivo de uma personagem.
21

uníssono, estando a serviço do envolvimento do espectador na vivência intensa dos


sentimentos expostos.

Na tentativa de atingir o espectador pelo viés emotivo, é preciso provocar, antes


de tudo, o reconhecimento e a identificação com a obra artística no instante da fruição.
Um dos caminhos para isso é a dedicação à construção de fábulas melodramáticas que
falem ao coração, sem comedimento e nem bom senso, explorando a diversidade dos
sentimentos e acentuando a sentimentalidade, pois é justamente na hipérbole, no
excesso, no exagero, no desmedimento, na passionalidade em detrimento da lógica, no
desprendimento, que mora o sucesso do melodrama.

Quando afirmo que o melodrama exerce uma ode à sentimentalidade, quero


ressaltar a capacidade que esse tipo de drama tem de entorpecer os sentidos e conduzir o
espectador por caminhos fantásticos para aplicação da justiça, realização do amor e
estabelecimento da paz com promessas de punição para o mal e recompensa para o bem
em um território entrecortado por expectativas, suspiros e exclamações.

1.2 UM GÊNERO FORTE, REPRESENTATIVO E DE RESISTÊNCIA

Do ponto de vista historiográfico, o melodrama se constituiu enquanto gênero na


França, do final do século XVIII, em meio às grandes transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais causadas pela Revolução Francesa. Um período repleto
de mudanças como o fim de um regime feudal; a instalação das bases para o
capitalismo; a revolta das classes populares contra a aristocracia; ascensão da burguesia
e reorganização hierárquica da sociedade francesa.

Nesse contexto, o homem burguês passou a ser o principal tema das


representações do cotidiano, pois a Revolução Francesa instalou a burguesia no poder,
uma classe que, segundo a aristocracia francesa da época e como aponta Thomasseau
(2005) era considerada ―iletrada‖ e ―inculta‖. Com a revolução, o povo ganhou voz e
vez, além do desejo de ser visto, ouvido e representado, não apenas no âmbito social,
mas também, na esfera cultural. ―[...] As paixões políticas despertadas e as terríveis
cenas vividas durante a Revolução exaltaram a imaginação e exacerbaram a
22

sensibilidade de certas massas populares que afinal podem se permitir encenar suas
emoções.‖ (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 170).

O melodrama surgiu para atender a demanda desse novo tipo de público, como
afirma Huppes (2000), um público muito mais rude, ignorante, mas que começava a ter
acesso a bens culturais e que estreitava sua relação com a arte teatral sem conceitos pré-
formados, sem a influência da corte sobre o objeto de fruição e os modos de apreciação
para com a obra. Um público que não carregava o peso excessivo de um repertório
cultural elitista e que se mostrava aberto à experiência da fruição de um novo gênero
mais próximo das camadas populares.

Exigindo pouco do ouvinte e incorporando à sua linguagem cênica as


transformações das mais diversas esferas públicas da época, o melodrama, desenvolveu
uma linguagem própria e repleta de especificidades, ―[...] avessa a ambiguidades e
torneios de estilo, reunindo as condições indispensáveis para agradar plateias
desabituadas de sutilezas.‖ (HUPPES, 2000, p. 14), priorizando o gosto e a aceitação da
audiência como principais parâmetros para moldar o processo da criação artística. Como
pondera Thomasseau (2005):

[...] a lenta transformação que afeta, durante todo o século XVIII, os


gêneros tradicionais da arte, em particular o teatro, conjugada ao
surgimento, na época da Revolução, de um público aumentado pelas
classes populares e extremamente sensibilizado pelos anos de
peripécias movimentadas e sangrentas, conduz à eclosão do que se
convencionou chamar estética melodramática [...]. (THOMASSEAU,
2005, p. 13)

A estética melodramática possibilitou ao teatro francês a saída da estagnação


provocada pelo neoclassicismo (aristocrático) e o possível investimento em um novo
fenômeno cênico que exigia maior mobilidade tanto na construção da fábula, quanto na
forma de representá-la. Um fenômeno que acompanhava as transformações provocadas
pela Revolução Francesa, proporcionando, a uma parte considerável da população, a
experiência da fruição de um gênero mais popular, de fácil identificação, aceitação,
reconhecimento e entendimento e que, através da encenação, atendia aos anseios das
mais diversas classes populares que viam nos palcos, as projeções de seus desejos.

Apesar de ocupar os teatros secundários, de menor prestígio, mas de


popularidade crescente, o melodrama seduziu o público sendo usado ainda como
23

instrumento didático pelo caráter moralizante dos enredos que valorizavam a


supremacia das virtudes e entorpeciam pela estética constituída de belas imagens e
frases melodiosas, cativando, não pelo intelecto, mas pelo encanto, passando ―[...] a ser
um novo gênero, aquele de uma peça popular que, mostrando os bons e maus em
situações apavorantes ou enternecedoras, visa comover o público com pouca
preocupação com o texto, mas com grandes reforços de efeitos cênicos.‖ (PAVIS, 2011,
p. 238).

Com tramas repletas de inúmeras peripécias, encontros, desencontros,


reencontros, enganos, revelações inesperadas e de grande impacto, perseguições, tipos
radicais e/ou irracionais, culto à virtude, valorização da família, da honra, da moral, dos
bons costumes, supremacia dos bons, punição destinada aos malfeitores e
principalmente, a esperança de felicidade para os virtuosos, o melodrama deu prazer,
encantamento e exemplos morais à burguesia, então classe revolucionária. Torna-se,
assim, um instrumento comunicativo democrático no que compete ao público que
atingia e a forma com a qual se referia a ele, fazendo uso da mesma linguagem e de
temáticas próximas às vicissitudes das classes populares.

Instaurando-se em lugares onde a inquietação das emoções burguesas encontrava


um meio de representação latente, o melodrama encontrou território fértil para seu
desenvolvimento e distinção através da representação do excesso, da exacerbação dos
sentidos, do expurgamento de opressões e da redenção de infortúnios por meio das
lágrimas. Assim, o gênero obteve força para atingir uma de suas máximas: o
arrebatamento do espectador.

1.3 A PROPAGAÇÃO DO GÊNERO

Em um rápido e preconceituoso olhar, o melodrama pode parecer um gênero


simplório, pautado apenas no exagero e no excesso, porém, ao olhá-lo com maior
atenção e cuidado, percebe-se que se trata de um gênero complexo, pois utilizou-se, de
forma consciente, de elementos literários e espetaculares de outros gêneros, que, na
época de sua constituição, estavam em voga ou que o precederam, para triunfar no seu
24

objetivo de conquistar as classes mais populares na França, do final do século XVIII e


início do século XIX, sendo acolhido pelos braços do povo, pois vivia para ele e por ele.

Assim, deu-se a utilização da tragédia, da comédia, do drama burguês, do


romance francês e inglês, do realismo, do naturalismo e posteriormente de outros
gêneros, retirando desses, alguns elementos para a produção de seus textos e
contribuições para o delineamento de suas formas estilísticas. Paulatinamente, o
melodrama, tomou o espaço dos gêneros tradicionais atentando para as particularidades
do seu público, engendrando modificações e adequações, objetivando tornar-se cada vez
mais atrativo, sedutor, acessível e de fácil entendimento. Dessa forma, configurou-se em
uma prática teatral comprometida com o gosto da plateia e fundamentada em alguns
pontos fulcrais: ―[...] em primeiro lugar, o espetáculo, que ganha importância sobre o
acabamento retórico; em segundo, a felicidade do par romântico, para a qual converge a
atenção máxima; em terceiro, a mensagem edificante.‖ (FARIA; GUINSBURG, 2012,
p. 77)

Apesar de bem sucedido, era considerado distante do chamado teatro sério,


vinculado ao cânone clássico da literatura européia, e relacionado com a decadência do
teatro de cunho literário. Nesta conjuntura, onde o melodrama estava instalado, surge o
naturalismo definindo-se como um movimento estético – não necessariamente exclusivo
do teatro – que intensificava as ideias do realismo pondo-se contra as excentricidades
românticas e contra as idealizações da paixão amorosa. Valorizava-se a observação
cuidadosa da realidade, da razão e da ciência, alternando a admiração do belo e das
idealizações para a admiração do real, do concreto e do objetivo. Dessa forma, o
naturalismo opunha-se às práticas teatrais que não compartilhavam de suas definições,
negando-as e apontando-as como antinaturais.

Para os realistas e naturalistas, o melodrama se configurava como uma


composição movimentada que aproximava elementos variados e às vezes díspares,
desafiando os conceitos de verossimilhança – que existiam em outros gêneros – para
atender à demanda do final feliz, presente e tão determinante para o gênero, pois, na
resolução de um conflito melodramático, invariavelmente, o bem é recompensado; e o
mal, punido à altura de sua maldade, mesmo que, para isso, sejam necessários recorrer a
acasos, milagres, coincidências nada verdadeiras e nada condizentes com o real ou o
natural.
25

Mesmo carregando a pecha de uma expressão artística menor e de gosto


duvidoso, o melodrama continuou seu percurso, envolvendo emocionalmente a plateia e
mantendo-a cativa, valendo-se de recursos variados para surpreender a audiência. De
forma gradual, o gênero aproximou-se e misturou-se, como forma de adequação e
sobrevivência, aos novos gêneros e se propagou pela Europa buscando novos ares e
novos espaços propícios para sua manifestação popular. Acredita-se que foi aí, na
popularidade, onde repousou o êxito desse tipo de drama, pois a conquista das
numerosas plateias oriundas dos extratos sociais mais populares garantiu a
sobrevivência, disseminação e proliferação por diversos países da Europa e do Novo
Mundo9. Graças à evolução e ao desenvolvimento tecnológico, o melodrama chegou ao
Brasil vindo de Portugal. Comum entre os países tem-se:

[...] o gosto que está situado na origem do teatro mais popular da


época, ou seja, o melodrama de temática sentimental. Essa tendência
tinha chegado a Portugal através da França e veio para o Brasil mais
rapidamente em função das excursões das companhias teatrais. As
canseiras da viagem transatlântica tinham de encontrar compensação à
altura. Não admira, portanto que as companhias escolhessem o
repertório de aceitação mais imediata e com essa iniciativa acabassem
influenciando a sedimentação de valores estéticos. (FARIA;
GUINSBURG, 2012, p. 75-76)

Com efeito, ao percorrermos a breve história do teatro no Brasil, de 1838 até as


primeiras décadas do século XX10, é possível que parte considerável da produção
dramatúrgica nacional tenha sido subordinada ao gosto do grande público
despreocupado com a erudição e seduzido pela ―[...] fórmula intrinsecamente otimista
do melodrama, que encorajava heróis e heroínas a lutar por uma sorte melhor.‖
(FARIA; GUINSBURG, 2012, p. 76).

Não tenho dúvidas de que tenha existido a constante presença do melodrama nos
palcos nacionais, pois devido à sua capacidade de adequação ao momento e ao rico
manancial de sua dramaturgia, o gênero, terminou por desembocar em estilos afastados

9
Denominação dada, no século XV, pelos europeus, ao continente americano na época de sua descoberta.
O novo continente expandiu o horizonte geográfico dos europeus que passaram a considerar Europa, Ásia
e África como o velho mundo.
10
Detenho-me por ora na influência do melodrama na produção textual dramática para o teatro,
posteriormente me debruçarei nos desdobramentos do gênero nos mais diversos meios comunicacionais
em nosso cenário midiático brasileiro.
26

da matriz, mas fazendo-se presente em autores responsáveis por consideráveis


renovações teatrais no cenário cultural do Brasil.

[...] Os escritores que utilizaram tais componentes para dialogar com o


público, no momento em que a nação começava a construir sua
identidade cultural, tiveram recepção compensadora dando notável
contribuição para a popularização do teatro no Brasil. (FARIA;
GUINSBURG, 2012, p. 94)

Nesse segmento de reflexão, é possível identificar aspectos do melodrama em


Antônio José ou O Poeta e a Inquisição (1838) de Gonçalves de Magalhães, Leonor de
Mendonça (1847) de Gonçalves Dias, As Asas de um Anjo (1858) e A Mãe (1860) de
José de Alencar, A Casa Fechada (1922) de Renato Viana, Deus lhe Pague... (1933) de
Joracy Camargo, Conflito (1939) de Maria Jacinta, Vestido de Noiva (1943) e Beijo no
Asfalto (1960) de Nelson Rodrigues, por exemplo.11

Em um tempo mais recente, é possível citar alguns trabalhos como A Maldição


do Vale Negro (1976) de Caio Fernando Abreu e Luiz Arthur Nunes, Vem Buscar-me
que Ainda Sou Teu (1979) de Carlos Alberto Soffredini, Melodrama (1995) de Felipe
Miguez e Rebu (2009) de Jô Bilac, como exemplos de dramaturgos que se debruçam no
melodrama e na tradição do gênero no Brasil, investigando novos modos de abordagem
e representação do mesmo na cena contemporânea.

Com exceção da peça de Soffredini, as demais obras citadas no parágrafo


anterior são paródias do gênero melodrama. Essa constatação merece uma reflexão
breve, pois também a paródia se configura como um lugar de permanência para o
gênero, mesmo que de forma pouco ―séria‖.

Acredito que a paródia pode ser vista como um formato ou modalidade de


recriação pautada na reconfiguração e/ou resignificação, de maneira irônica, de um
texto preexistente. ―[...] Mais que imitação grosseira ou travestimento, a paródia exibe o
objeto parodiado e, à sua maneira, presta-lhe homenagem.‖ (PAVIS, 2011, p. 278).
Podendo fazer referência a uma situação dramática, a uma personagem, a um gênero ou
estilo, a paródia ―[...] compreende simultaneamente um texto parodiante e um texto

11
Os dramaturgos citados, não são necessariamente melodramaturgos, mas nas suas obras é possível
identificar fortes marcas características do gênero melodrama. O que ratifica a observação sobre a
capacidade de propagação, difusão e permanência do gênero imbricado em outros gêneros dramáticos e
estéticas teatrais.
27

parodiado, sendo os dois níveis separados por uma distância crítica marcada pela ironia.
[...] Sendo ao mesmo tempo citação e criação original, mantém com o pré-texto estreitas
relações intertextuais‖. (PAVIS, 2011, p. 278)

Com essas afirmativas, desejo chamar atenção para a funcionalidade da paródia


à medida que não se restringe pura e simplesmente a uma técnica cômica, mas a um
procedimento que, no caso do teatro, por exemplo, desvela o fazer artístico ao instituir
uma dinâmica de comparações e comentários com a obra parodiada, constituindo um
metadiscurso crítico que pode se mostrar interessante para refletir sobre os modos de
produção literária e/ou teatral. Isto posto, acrescento que trechos das peças A Maldição
do Vale Negro e Rebu, paródias do gênero melodrama, serão oportunamente utilizados
como exemplos para ilustrar algumas observações apontadas neste trabalho acerca do
gênero melodrama e seus elementos recorrentes, pois servem de modo satisfatório para
análise de alguns elementos de composição do gênero.

Tecendo um pouco mais sobre a propagação do melodrama, afirmo que existem


alguns meios comunicacionais, para além do teatro, onde o gênero foi acolhido e
persiste de forma ―séria‖ em nossa atualidade, como por exemplo, o cinema e a
televisão. Nesses meios, o melodrama é utilizado na composição de narrativas que, na
maioria das vezes, tem como objetivo a sedução e fidelização do público. Sobre os
possíveis novos lugares de ocupação do gênero melodrama, seu uso e funcionalidade,
haverá discussão mais abrangente em um tópico específico neste estudo.

1.4 APESAR DE RECHAÇADO, TRATA-SE DE UM GÊNERO CATIVANTE

A alcunha cativante, aqui empregada, é uma tentativa de elucidar ainda mais a


capacidade que o melodrama adquiriu de conquistar a simpatia e prender a atenção do
público, mesmo sendo alvo, principalmente no princípio de sua constituição, de
preconceitos, tanto por sua configuração, quanto pela destinação da sua obra.

Versando um pouco mais sobre este aspecto, tem-se a observação do gênero,


durante todo o século XIX, como um tipo de drama menor, que exigia pouco intelecto
para sua apreciação e, assim, sendo rotulado como manifestação de uma expressão
28

artística sem valor simbólico ou de entretenimento descartável destinado a incultos ou


aos desprovidos de repertório e referencial cultural.

A verdade é que, enquanto gênero dramático, o melodrama estabeleceu, com


eficácia, as convenções que identificaram e diferenciaram a sua linguagem dentro do
discurso teatral, destacando uma economia de códigos e elementos narrativos a serviço
de uma composição que buscava sempre o melhor resultado: cativar. Talvez, seja a
capacidade de encher os olhos, emocionar, seduzir e arrebatar que tenha despertado o
preconceito que o gênero sofreu desde sua constituição. Talvez, sejam esses mesmos
artifícios o seu grande trunfo e garantia de sobrevida.

Não abalado pela depreciação da qual era vítima, o melodrama se firma como a
dramaturgia da hipérbole, do lugar da evocação exacerbada dos sentidos, sentimentos e
da sentimentalidade, além da invocação do pathos12. Essas características, utilizadas
como estratégias de identificação, definem o gênero que ―[...] se desenvolve no
momento em que a encenação começa a impor seus efeitos visuais e espetaculares, a
substituir o texto elegante por golpes de teatro impressionantes.‖ (PAVIS, 2011, p. 238)

Comprometido com a teatralidade e com o espetacular, mostra-se magnânimo na


elaboração da intriga.

[...] Nesse nível praticamente não há fronteira para a inventividade dos


autores. As ações se desdobram em toda a sorte de peripécias com o
concurso de uma riqueza cênica jamais vista. A intenção é cultivar
emoções e sensações, de modo que a plateia seja envolvida pela ilusão
teatral. (HUPPES, 2000, p. 28)

Sobre o gênero, Huppes (2000) chama atenção para riqueza dos eventos13 que se
multiplicam abundantemente, somados à espantosa velocidade com que informações
necessárias para a compreensão do enredo são transmitidas para a plateia. Estas
informações despertam emoções e sentimentos alternados em uma dinâmica de
superposições. O encadeamento dos inúmeros eventos, sejam quais forem os temas
tratados, é uma indubitável característica identitária do gênero, pois, antes do

12
Segundo Pavis (2011) o termo pode ser compreendido como o arcabouço emotivo do espectador
provocado durante um processo de apreciação, contemplação. O pathos é delimitado pelos códigos
ideológicos inerentes ao homem em determinada época sendo um tipo de experiência humana, ou sua
representação em arte, que evoca dó, compaixão ou uma simpatia compassiva no espectador ou leitor.
13
Também nominadados como acontecimentos ou peripécias.
29

prevalecimento do bem, é preciso existir os percalços, os obstáculos e principalmente,


as surpresas.

[...] Em comparação com outras formas artísticas, observa-se que nem


a variação temática nem o colorido linguístico, todavia presentes,
sequer rivalizam com a importância que o desdobramento inesperado
tem neste gênero. É aqui que o artista aplica o máximo de criatividade.
Leva o espectador de sobressalto em sobressalto para um desfecho,
que nem sempre concede o repouso do final feliz. A capacidade para
surpreender deve certamente ser associada ao caráter do enredo.
Adotando uma peculiar linha de progressão, o melodrama se mantém
aberto para incorporar sempre novos desdobramentos em vez de
prefigurar o desfecho e de persegui-lo em linha reta. (HUPPES, 2000,
p. 28-29)

Tendo em conta as premissas anteriormente apresentadas, é válido considerar


que o formato pode ser uma das máximas para compreensão deste tipo de gênero,
vinculando a maneira como os elementos da composição14 são organizados para melhor
narrar a fábula. Thomasseau (2005) identifica-os e reconhece-os como elementos
constituintes das convenções que caracterizam o gênero e que terminam por definir sua
linguagem e estética.

Tendo essas observações em perspectiva, é possível encontrar na composição de


uma narrativa melodramática as adversidades sequencialmente impostas, as revelações
surpreendentes, reviravoltas, pressentimentos, desenlaces e solilóquios de
autorevelação, a presença das evocações, dos dilaceramentos e da passionalidade que
conduz a exacerbação dos sentidos e do caráter patético nas mais diversas situações
propostas no desenvolvimento de uma trama.

Assim sendo, as sucessivas peripécias apresentadas na tessitura de uma intriga


acontecem em função da progressão e gradação dramática em direção ao clímax (de
forte apelo sentimental) do enredo, dentro de um universo ficcional, onde a
sentimentalidade seja elevada ao nível de valor e verdade.

1.5 A ESTRUTURA MELODRAMÁTICA

14
Os elementos de composição serão abordados neste estudo em local mais propício para um melhor
detalhamento.
30

A composição de um melodrama move-se a partir da dinâmica entre as


polaridades: bem e mal. Dá-se a apresentação do bem em estado de equilíbrio logo
desestabilizado pela atuação do mal que ataca, oprime e manipula. Haja o que houver,
durante o desenvolvimento da trama, o bem tem que ser essencialmente bom e o mal,
quanto pior for, melhor estará a serviço do enredo. Esse maniqueísmo não se limita a
composição da trama, ao engendramento das ações dramáticas, mas expande-se para a
construção das personagens, como aponta Ivete Huppes (2000):

[...] As personagens são construídas de forma muito mais esquemática


no melodrama. O foco principal incide sobre a ação, que abre a
batalha entre os polos morais opostos. Aqui os bons confiam na
justiça, por mais que esta tarde para vigorar. [...] Se não tem condições
de reagir, aceitam sofrer em vez de trocar de partido. Pode-se dizer
que a dúvida está ausente. Amparados em convicções inquebrantáveis,
conformam-se com a má sorte, quando sucumbe a esperança de
solução positiva. Os bons são talhados de uma maneira tão compacta e
monolítica que desconhecem razões para mudança, vergonha ou
arrependimento. Seguem para frente em linha reta, no rumo da
felicidade ou da desgraça, tanto faz. (HUPPES, 2000, p. 113)

Nessa dinâmica de polaridades, quanto maior a rejeição - a repulsa que o mal


desperta no público - na mesma proporção, o público, desejará a vitória do bem, a
supremacia das virtudes e a punição dos vícios.

[...] Em termos estruturais, o melodrama é uma composição muito


simples. Bipolar, estabelece contrastes em nível horizontal e vertical.
Horizontalmente, opõe personagens representativas de valores
opostos: vício e virtude. No plano vertical, alterna momentos de
extrema desolação e desespero, com outros de serenidade ou de
euforia, fazendo a mudança com espontânea velocidade. Em geral o
pólo negativo é mais dinâmico, na medida em que oprime e amordaça
o bem. Mas no final, graças à reação violenta, que inclui duelos,
batalhas, explosões etc., a virtude é restabelecida e o mal conhece
exemplar punição. O movimento representa uma confirmação da boa
ordem: aquela que deve permanecer de agora para sempre. (HUPPES,
2000, p. 27)

Seguindo esta premissa, é possível perceber que o mal ataca, oprime, manipula e
se mostra capaz de perpetrar qualquer tipo de vilania, enquanto o bem se limita a agir de
acordo com os preceitos determinados por suas virtudes. O mal imobiliza o bem até o
limite permitido pela tensão dramática e, se estiverem unidos por quaisquer laços de
afinidade (familiares, profissionais ou afetivos), maior o impacto que se obtém do
31

choque entre ambos. Próximo ao desfecho da trama, o bem encontra, nas virtudes, força
suficiente para combater o mal e vencê-lo, sem vangloriar-se dos feitos e sem atitudes
imbuídas pelo orgulho desnecessário, mas com amor, piedade e, algumas vezes,
abnegação. Sobre essa tipificação do bem nas personagens melodramáticas, Ivete
Huppes (2000) aponta:

[...] Movem-nos sentimentos totalmente positivos: lealdade, amor,


abnegação etc. Nem os malfeitores lhes despertam ódio. No máximo,
demonstram piedade por eles. Por mais sofrimento que lhes tenham
infligido, não encaram a luta como vingança. Tampouco qualificam
como desforra a pena que porventura conseguem fazer aplicar.
Conscientes da superioridade dos ideais que abraçam, os bons não
cogitam mudar de lado ou incorporar ardis escusos. (HUPPES, 2000,
p. 113)

Essa estruturação básica pode e, em grande parte, torna as narrativas


melodramáticas previsíveis, mas não fáceis de serem elaboradas, pois requerem a
complexidade que é negada à psicologização das personagens, daí a frequência com que
as mudanças bruscas ou reviravoltas se sucedem, em detrimento de qualquer pudor de
verossimilhança.

Nesse aspecto, o gênero revela-se apto para assimilar as muitas possibilidades


dos enredos, garantindo que o público, mesmo capaz de prever e sinalizar os caminhos
que serão tomados pela trama, possa ser surpreendido por uma peripécia. A surpresa
inserida na trama desestabiliza a normalidade e provoca reações emocionais de forte
impacto tanto nas personagens, quanto na recepção. As eventualidades deixam todos à
mercê do jogo do imprevisto e do inesperado, vítimas do acaso que arremessa as
personagens em um turbilhão de acontecimentos. É a roda da fortuna que faz com que a
sorte oscile e gere grande parte das mudanças suscetíveis em um enredo melodramático.

Aí, repousa também um dos grandes artifícios do gênero: as reviravoltas


envolvem as personagens e evolucionam a trama, deixando o espectador atento ao
desenvolvimento da narrativa e apreensivo na expectativa do próximo evento
inesperado, da surpresa e do choque. É coerente refletir que a previsibilidade da
estrutura melodramática seja um dos fatores que influenciam o processo de
cumplicidade e pacto receptivo com o público, pois esta audiência, mesmo sendo capaz
de prever as possibilidades do desfecho de um enredo, entrega-se e acompanha a fruição
da trama embalada pela sequencialidade das peripécias apresentadas na evolução da
32

intriga. Não é só o fim que atrai o público, por restaurar e restabelecer a paz e a
tranquilidade de outrora, mas também o caminho percorrido para se chegar a ele e a
experiência de fruição contida durante o processo de apreciação.

1.6 TIPOLOGIA DO GÊNERO

O gênero melodrama sofre transformações com o decorrer do tempo,


acompanhando a evolução tecnológica e as modificações políticas, econômicas, sociais
e culturais da França pós-revolução. Modifica-se, seguindo tendências estéticas, e se
diversifica em paralelo às novas vertentes e formas de expressões culturais em voga
naquele período histórico.

Em uma tentativa de maior compreensão do gênero e de identificar sua


mutabilidade como um fator importante para a manutenção do seu populismo,
Thomasseau (2005) discorre sobre as variações na tipologia do gênero ao adequar-se ao
novo15. Assim, tem-se o gênero melodrama dividido em âmbitos: Clássico, Romântico e
o Diversificado.

1.6.1 Melodrama Clássico

Período compreendido entre 1800 e 1823. Nesta fase, o melodrama, de acordo


com Thomasseau (2005), é extremamente moralista, de caráter educacional e
perpetuador de valores sociais e das virtudes individuais reafirmando constantemente a
importância da família e do amor à pátria.

As narrativas são constituídas em atos: sendo o primeiro para apresentar os


personagens; o segundo destinado ao desenvolvimento da trama, complicação e
infelicidade da vítima; e o terceiro como o lugar para a conclusão, reparação da justiça e
clímax patético.

15
Referindo-se ao grande avanço tecnológico na Europa do final do século XVIII e todo século XIX.
Avanços estes que contribuíram para exploração de novos campos do conhecimento e desenvolvimento
do pensamento artístico.
33

As personagens que representam o bem são modelos a serem seguidos,


possuindo qualidades admiráveis e recebendo a felicidade como recompensa por se
manterem em um caminho virtuoso. Em contrapartida, há as personagens do mal que
são imorais e cheias de vícios, merecedoras de punição. Os personagens são o centro do
melodrama e trazem uma forma simples: alguns serão bons do início ao fim da trama,
enquanto outros serão maus, sem mudança de caráter.

Segundo Thomasseau (2005) um dos melodramaturgos mais relevantes e uma


das obras de maior representatividade são, respectivamente, René-Charles Guilbert de
Pixerécourt e seu trabalho Coelina ou Celina, a filha do mistério16 (1800). Nesta peça,
encontravam-se os elementos constitutivos essenciais para o gênero, tendo a intriga
engendrada por um conjunto de situações de forte apelo ao patético, prendendo o
interesse do público do início ao fim do enredo.

1.6.2 Melodrama Romântico

Seguindo sua característica de refletir a atmosfera da época, o gênero melodrama


sofre algumas alterações e assim o clássico cai em desuso, cedendo espaço para o
romântico que, segundo Thomasseau (2005), acontece de 1823 a 1848. Nesta fase, é
possível observar que o espetáculo torna-se mais complacente, a fatalidade mata com
mais frequência os protagonistas, os vilões sobrevivem, a paixão passa a ocupar o
centro da cena e, principalmente, a influência das obras românticas vai ficando cada vez
mais significativa à medida que os heróis trágicos vão sendo substituídos por heróis
românticos.

Os três atos do texto se transformam em cinco, divididos em numerosos quadros.


Acrescentam o prólogo no espetáculo e, por isso, os monólogos explicativos diminuem
e os patéticos se tornam numerosos, acompanhados de sentimentalidade e raras músicas
de orquestra.

Essas alterações possibilitam uma maior ousadia no momento da criação da


obra: os vícios se tornam presentes e aceitáveis; o exagero e a desmedida ganham mais
espaço; a morte aparece em várias formas; a salvação do herói nem sempre acontece; o

16
Livre tradução de Coelina ou L’Enfant du mystère.
34

casamento e as relações amorosas são passionais contribuindo como tema que


permanece até o final do século XIX.

Entre os principais representantes apontados por Thomasseau (2005) encontra-se


Victor Ducange e sua obra repleta de situações violentas, de ações e diálogos breves,
diretos e objetivos, sublinhados por encenações precisas e movimentadas como é o caso
da peça Teresa ou A órfã de Genebra17 (1820).

1.6.3 Melodrama Diversificado

Compreendido entre 1848 até o início da Primeira Grande Guerra, 1914, o


melodrama sofre a concorrência de outros gêneros dramáticos como o vaudeville18 e a
opereta19, sendo necessárias adequações para seduzir o público ―[...] sensível ao charme
e às emoções do espetacular.‖ (THOMASSEAU, 2005, p. 96). Assim, os
melodramaturgos aumentam o número de quadros, personagens, músicas e balés, além
de incorporarem às tramas, as inovações técnicas e os avanços tecnológicos da época20.

As encenações mais espetacularizadas atendem a um público mais diversificado


entre intelectuais e boêmios. O gênero adéqua, garantindo, assim, sua permanência,
preservando seus estereótipos e em alguns casos, preservando, também, alguns
componentes tradicionais de sua estrutura.

A diversificação do gênero, neste período, é apontada por Thomasseau (2005)


em quatro grandes inspirações:

Melodrama militar, patriótico e histórico tem como tema as tendências políticas da


época e traz para o centro da cena o senso de dever cívico e o orgulho à pátria, contando
a história da França e de Paris através de personagens, em sua maioria militares, cheios

17
Livre tradução de ―Thérese ou L’Orpheline de Genéve”.
18
Na origem, no século XV, é um espetáculo de canções, acrobacias e monólogos. Até o século XVIII se
faz presente nos espetáculos para o teatro de feira que usam música e dança. Já no século XIX passa a ser
uma comédia de intriga, uma comédia ligeira, sem pretensão intelectual segundo Patrice Pavis no
Dicionário de Teatro.
19
Gênero de teatro musicado leve, derivado da ópera-bufa, em que o canto e a fala se alternam.
20
As novidades passam a serem incorporadas como truques dentro da encenação. O magnetismo, o trem e
o barco a vapor são exemplos disso. As histórias passam a acontecer em localidades espetaculares e
originais.
35

de orgulho e honra. Um exemplo satisfatório é a peça Os Três Mosqueteiros (1844) de


Alexandre Dumas.

Melodrama de costumes e naturalista, a abordagem de temáticas centra-se nas questões


familiares e da diferença entre as classes sociais. Assim, são temas recorrentes: as
crianças perdidas, heranças, duelos, casamentos, direitos de precedência e preconceitos
sociais. Um expoente é a obra dramática Os Ganchos do Pai Martin21 (1858) de
Cormon e Grangé.

Os avanços tecnológicos e as descobertas científicas permitiram a desvelamento


de um novo mundo e o melodrama ganhou novo fôlego criativo, dando abertura para
histórias de heróicos caçadores, descobridores, exploradores de terras estrangeiras,
mares desconhecidos, etc.

O Melodrama de aventuras e de exploração tem novos horizontes e novas perspectivas


para o desenvolvimento da ação dramática. ―[...] A intriga é semelhante à dos
melodramas tradicionais, mas ela é deslocada para um espaço dos mais exóticos e dos
mais inquietantes [...]‖ (THOMASSEAU, 2005, p. 111) como a América, Índia,
Austrália, regiões inóspitas da África entre outras localidades. Uma peça de destaque foi
A volta ao mundo em 80 dias22 (1874) de Julio Verne e Dennery.

Melodrama policial e judiciário traz as histórias de suspense e da solução de crimes.


Um herói é acusado injustamente e um policial perspicaz e inteligente desvendará as
pistas e solucionará o crime punindo o verdadeiro culpado.

[...] O inocente era ali frequentemente cumulado de suspeitas e só


conseguia se justificar na última cena. Era necessário apenas sublinhar
esta dimensão, insistir sobre o erro judiciário, colocar em cena o
cenário já bastante teatral de um tribunal de júri e criar um
personagem policial perspicaz e obstinado. (THOMASSEAU, 2005,
p. 112)

21
Livre tradução de Les Crochets du Père Martin.
22
Livre tradução de ―Le Tour du monde em 80 jours”.
36

Nesse tipo de narrativa, o suspense é mantido durante toda a trama e o quebra-


cabeça só é revelado na última cena, privilegiando a preparação do crime, a encenação e
o inquérito. Muito dos sucessos desse tipo de melodrama foram inpirados em casos
policiais verídicos, ou não23, extraídos de jornais sensacionalistas da época. Um
exemplo de melodrama policial é a obra A carregadora de pães24 (1889) de Xavier de
Montépin. Jeanne Fortier, mãe de dois filhos, é o objeto de desejo de Jacques Garaud.
Rejeitado por ela, ele rouba a fábrica onde ambos trabalham, mata o patrão e incendeia
o estabelecimento. Jeanne é acusada, foge, mas é presa. Enlouquece e depois de anos –
e de escapar de outro incêndio – recobra a razão, fugindo do hospital. Usando outro
nome, ela retorna a sua cidade como vendedora de pães. Jacques Garaud também
retorna, agora rico, mas depois de algumas peripécias, é desmascarado por uma carta
que o filho de Jeanne havia guardado em seu pequeno cavalo de brinquedo. Jeanne é
reabilitada, reúne toda a sua família e casa sua filha.

1.7 ELEMENTOS RECORRENTES DA LINGUAGEM MELODRAMÁTICA

Na convenção do gênero melodramático, são muitos os elementos que podem


ser organizados enquanto recursos narrativos incorporados na tessitura da intriga com
finalidades específicas e a serviço do drama. Dentre os diversos elementos que podem
ser usados em uma composição melodramática, serão expostos os mais relevantes para
o estudo proposto, considerando que, posteriormente, no instante da criação dramática,
alguns desses elementos serão alvo de reflexão.

Os elementos narrativos abarcados para esta discussão tiveram como parâmetro


de escolha a especificidade, sua aplicabilidade e como se realizam na dinâmica com o
público. Sendo assim, versarei sobre monólogo, aparte, confidência, reflexão, melodia e
alívio cômico. O crédito no uso desses elementos, enquanto recursos dramáticos, é por
apresentarem alternativas que movimentam a trama, intensificam o drama e o interesse
da plateia no que está sendo apresentado. Engendrados com o intuito de prender a

23
Muitos jornais exageravam ou até mesmo falsificavam as notícias com objetivo único de aumentar o
número de vendagens. Seria equivalente ao que hoje denomina-se como ―imprensa marrom‖.
24
Livre tradução de ―La Porteuse de pain”.
37

atenção do público, funcionam à medida que aguçam os sentidos, excitam a curiosidade


e a expectativa da audiência.

Tais elementos recorrentes no gênero melodrama prestam serviço à narração


quando estabelecem dinâmica entre personagem-personagem e/ou personagem-público,
já que recapitulam fatos, rememoram aspectos relevantes da trama, atentam a percepção
do público para determinado acontecimento, desvelam sentimentos ocultos e
contribuem na exposição das características das personagens, além de dispensar ―[...] a
encenação de acontecimentos que são importantes para a compreensão da trama, mas
retardariam demasiadamente a ação, se tivessem de ser mostrados.‖ (HUPPES, 2000, p.
75).

É válida uma reflexão mais detalhada e particularizada desses elementos,


ponderando suas possibilidades de uso e seu engendramento como artifícios para atingir
o propósito primordial do gênero: envolver o público, seduzi-lo, vencer-lhe as
resistências uma vez que se tornam excelentes meios para elucidação de sentimentos e
para o desvelamento do oculto, do que uma personagem segreda.

1.7.1 Monólogo

Também denominado como solilóquio, define-se como sendo os discursos de


uma só personagem sem a participação de um interlocutor. É por meio destas réplicas
que uma personagem expõe a sua subjetividade, exprime seus sentimentos e/ou estados
anímicos.

Dentro do texto dramático, os monólogos podem ser: recapitulativos – quando


colocados no início da peça (para deixar o público a par da história) ou quando houver a
necessidade de lembrar qual o sentido da trama, complementando o enredo; patéticos –
quando servem para evidenciar o sofrimento da vítima ou a maldade do algoz ―[...] que
depois de mentir para todas as outras personagens diz a verdade ao público e traz à luz o
negrume de sua alma ou seus remorsos.‖ (THOMASSEAU, 2005, p. 31).

[...]
AUGUSTA – Tudo favorece os meus planos! Não descansarei sem
atingir meu objetivo! E este se aproxima do fim! Miriam está
chegando o teu! Elisa, Flávia! Elisa contra tua vontade, hei de tornar-
38

te faceira! Contra tua vontade te sepultarei em vida! Flávia! Flávia! A


ti, não ouso pensar o destino que te reservo! E tudo por quê? Porque
um homem se interpôs entre eu e minha irmã! Teu pai! E quanto a sua
falta para comigo! Sofri! Sofri! Marcos! Marcos! Tu não me
compreendeste! Sou uma vítima do coração! Tudo em mim era
bondade! Tudo em mim era amor! E tu mataste tudo! Tudo!
Escolheste ela! Ela de quem tanto desdenhavas! Ela que dizias ser
uma moça sem dotes morais. Quanto custou caro a ti e a ela! Ela
morta! E tu em um hospício! Tuas filhas em meu poder! Em meu
poder! Elisa morta em vida! Miriam segue os teus passos! Flávia!
Flávia a tua imagem, o mesmo orgulho! Flávia sofrerá a maior das
vinganças. Se a pudesses ver! Ouvir! Quanta altivez! Lançarei na lama
o que uma moça na sua idade mais preza, a honra! E o conseguirei!
Sim, conseguirei! Quebrarei o seu orgulho com a mesma facilidade
com que quebro este vazo! (Toma de um vaso que está sobre a mesa e
25
lança-o ao chão.)

[...]
(Bianca em meio à luz soturna, híbrida)
BIANCA (trágica) - Meu amado. Mantenha teso o arco do seu juízo,
pois o que direi esmagará teu ânimo, tornando-o turvo. Inconsolável.
Uma desgraça retumbante prenuncia-se tal qual uma tempestade
avassaladora... À beira do rio, esparramadas numa trilha rasteira,
floresce em botões miúdos, umas flores negras de aspecto funesto
alcunhadas ordinariamente de pata de tarântula. Contudo. A alcunha
ordinária não se deve tão somente a similitude aracnídea, seu nocivo
consumo inapropriado - apesar de não ser fatal - embaralha as
faculdades mentais, criando ilusões pavorosas, tomando o sim pelo
não. O perfume. É atraente e se não fosse por seu aspecto repulsivo,
seria facilmente, ao engano, ingeridas por nossas crianças. Lá,
Nataniel. Privado. Sobre o jugo da cegueira. Inebriou-se, como que
pelo ilusório canto das filhas de Calíope e provando da flor tardou a
perceber o engano cometido. Arrebatado pelos primeiros sintomas do
mal tombou sobre o rio caudaloso, debatendo-se inutilmente, sendo
enfim levado pela correnteza, sem mais resistir... Afogado.
(conclusiva) Nataniel morreu afogado. (Silêncio profundo)26

1.7.2 Aparte

Funciona como um breve descolamento do contexto, como se a personagem


deixasse escapar um pensamento, um ato falho, que somente o público percebe e passa a
deter aquela informação sobre o caráter da personagem ou sobre um fragmento da
trama, relevante ou não para o desenrolar do enredo. Na maioria das vezes, os apartes

25
Trecho extraído da cena 02 da peça Corações que sofrem de José Coelho. 1946.
26
Trecho extraído da cena 06 da peça teatral Rebu de Jô Bilac. 2009.
39

são pequenas réplicas ditas de forma rápida mesmo diante de outras personagens. Pela
convenção teatral os apartes não são ouvidos pelas demais personagens, apenas pela
plateia.

Recurso amplamente empreendido pelos autores melodramáticos, discrimina-se


do monólogo pela brevidade e precisão da colocação do pensamento direcionado ao
público, reforçando a relação de cumplicidade palco/plateia, pois a audiência toma par
das complicações da intriga, das verdadeiras intenções de algumas personagens e se
torna ciente de algo que é desconhecido pelos demais integrantes do enredo.

[...]
MARGARIDA - Fiz tudo isso, está certo. Sou uma criatura
infame, desprezível, que não o amava e que o enganou. Mas quanto
mais infame eu seja menos se deve lembrar de mim, expondo por
mim a sua vida e a vida daqueles que o amam. Armando, é de
joelhos que eu estou pedindo. Vá-se embora, saia de Paris e não olhe
para trás.
ARMANDO - Está bem, mas com uma condição.
MARGARIDA - Diga depressa, eu a aceito, seja qual for.
ARMANDO - Você vem comigo.
MARGARIDA (Recuando) - Nunca!
ARMANDO - Nunca?
MARGARIDA - Dai-me coragem, meu Deus!27
ARMANDO - Escute, Margarida parece que vou enlouquecer,
sinto a cabeça girando; no estado em que estou um homem é capaz
de tudo, mesmo de uma infâmia. Por um momento pensei que fosse
o ódio que me impelia era o amor, o amor invencível, rancoroso,
machucado, acrescido de remorso, do desprezo e da vergonha.
Porque, depois do que aconteceu tenho vergonha do que sinto. Mas
diga uma única palavra de arrependimento, atire a culpa no acaso, na
fatalidade, na fraqueza, que eu esqueço de tudo. Que me importa
esse homem? Só o odeio porque você o ama. Se disser que ainda me
ama, eu te perdôo, Margarida. Fugiremos de Paris e do passado,
iremos até o fim do mundo se for preciso' até onde não exista mais
ninguém, só nós e o nosso amor.28

1.7.3 Reflexão

27
Destaque de aparte para melhor exemplificação.
28
Trecho extraído da cena 06 do Ato IV da peça teatral A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho.
1852. Versão traduzida de 1965. Apesar de considerado como o primeiro drama realista, a peça teatral de
Dumas encontra-se num ―entre-lugar‖, pois, acredita-se, apresenta elementos do melodrama, como o
aparte em destaque.
40

Pode ser considerado um tipo de monólogo, porém sua aplicabilidade e uso é


que determina a sua especificidade e o efeito causado. Assim como em um monólogo,
as reflexões acontecem isoladas das demais personagens, mas vão além, à medida que
permitem à personagem proceder a uma investigação íntima, uma análise da consciência
e de seus escrúpulos, servindo, às vezes, como explicação plausível para a aceitação dos
atos da personagem.

Outro fator que distingue a reflexão é que a plateia não precisa obrigatoriamente
ser colocada na posição de cúmplice e por este meio apoiar ou concordar com as ações
daquele que reflete.

[...]
MARIANA – Minha filha! Pobre menina! Condenada no alvorecer da
aurora da vida! Como tudo isto me deprime o coração. Eu sinto que
vou definhando aos poucos! Não tenho forças para superar este
martírio. E eu preciso de forças para revelar. Como revelar-lhe o seu
infortúnio? Onde encontrarei ânimo para o fazer? Eu não suporto mais
a sua presença! E ela é minha filha! Eu fujo ao seu mais leve contato,
não a tenho acariciado como dantes fazia! Por quê? Porque tenho
medo! Tenho medo! E ela é minha filha! Minha única filha! Qual a
mãe que não chora com o sofrimento de sua filha? Medo? Medo de
que? Talvez que a sua doença seja contagiosa? Não! É o coração de
mãe que tem medo! Medo de despedaçar o coração de sua filha, que a
pouco despertou pra a vida! E como revelar-lhe? Eu endoideço. Se
Martha aqui não estivesse, eu praticaria uma loucura! Não me deixes,
Martha! Tu me tens dado forças para não trair-me diante de minha
filha! Eu agradeço a Deus... Que disse eu? Deus! Sempre essa palavra
a perseguir-me! Deus! Eu não creio na sua existência! Mas não é por
sua culpa que eu sofro? Que mal lhe fiz para assim castigar-me? E o
meu Mário! Que me foi roubado quando eu mais precisava de seu
braço, de seu coração bondoso?... E agora minha filha, que ainda não
conhece a maldade do mundo! O retrato fiel do meu infeliz Mário!
Mário se tu aqui estivesses, sentirias a mesma dor que me punge!
Mário! Mário!29

[...]
(Rosalinda sai)
AGATHA - Finalmente os fados estão a meu favor! Com o
afastamento da pequena, torno-me a única herdeira do conde Mauricio
de Belmont. Serei a mulher mais poderosa de todo o Vale Negro.
Agatha, a reles governanta, a bruxa intratável, a corcunda repugnante,
a harpia selvagem! Ah, os camponeses pagarão caro o seu desprezo, a
sua maledicência. Resta apressar a morte do conde. (Apanha a tisana)
29
Trecho extraído da cena 07 da peça teatral A luz de seus olhos de José Coelho. 1945.
41

Algumas gotas a mais hoje, outras amanhã, e eu em breve estarei


completamente sozinha no castelo. (Conta as gotas) Uma... duas...
três... quatro...30

1.7.4 Confidência

Longo texto, réplica ou cena inteira que exige um interlocutor, um confidente31.


Uma personagem verbaliza para outra algo que lhe passa pela mente. A confidência
implica sempre em uma inquietação, uma revelação da maior importância, proferida em
um momento crítico que é utilizada quase sempre para mudar o curso da história ou
justificar atitudes da personagem que extravasa seus sentimentos. Como segue no
exemplo abaixo, que, acredito, trata-se de uma das maiores confidências da dramaturgia
brasileira.

[...]
Aprígio (violento) – Escuta! Vim aqui saber! Escuta! Você
conhecia esse rapaz?
Arandir (desesperado) – Nunca vi.
Aprígio – Era um desconhecido?
Arandir – Juro! Por tudo que há de mais! Que nunca, nunca!
Aprígio – Mentira!
[...]
Arandir – Vou buscar minha mulher. (Aprígio recua, puxando
o revólver.)
Aprígio (apontando) – Não se mexa! Fique onde está!
Arandir (atônito) – O senhor vai.
Aprígio – Você era o único homem que não podia casar com a
minha filha! O único!
Arandir (atônito e quase sem voz) – O senhor me odeia
porque. Deseja a própria filha. É paixão. Carne. Tem ciúmes
de Selminha.

30
Trecho extraído da cena 09 da peça teatral A maldição do Vale Negro de Caio Fernando Abreu e Luiz
Arthur Nunes. 1988.
31
Em se tratando de telenovelas, o confidente geralmente ganha a alcunha de orelha, pois, no caso da
telenovela, a personagem existe mais para ouvir, do que interagir de forma mais dinâmica dentro da
economia do drama.
42

Aprígio (num berro) – De você! (estrangulando a voz) Não de


minha filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o teu
namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim mesmo que
só diria teu nome a teu cadáver. Quero que você morra
sabendo. O meu ódio é amor. Por que beijaste um homem na
boca? Mas eu direi o teu nome. Direi teu nome a teu cadáver.
(Aprígio atira, a primeira vez. Arandir cai de joelhos. Na
queda, puxa uma folha de jornal, que estava aberta na cama.
Torcendo-se. abre o jornal, como uma espécie de escudo ou
bandeira. Aprígio atira, novamente, varando o papel impresso.
Num espasmo de dor, Arandir rasga a folha. E tomba,
enrolando-se no jornal. Assim morre.)
Aprígio – Arandir! (mais forte) Arandir! (um último canto)
Arandir!32

1.7.5 Melodia

A importância da música para o gênero melodrama aparece desde sua


denominação, pois o termo melodrama foi cunhado tendo a música em sua
configuração: melos indica música e esse elemento foi o que distinguiu o gênero das
outras espécies de drama, em sua origem. Patrice Pavis (2011, p. 238), no Dicionário de
Teatro, agrega mais uma conceituação ao afirmar que no melodrama, ―[...] a música
intervém nos momentos mais dramáticos para exprimir a emoção de uma personagem
silenciosa.‖ Essa afirmativa apontada pelo autor serve para elucidar um dos aspectos da
funcionalidade da música dentro do gênero melodrama, mas não para delimitar todos os
aspectos e possibilidades de uso, pois, assim sendo, reduz a complexidade do
melodrama a apenas uma das múltiplas possibilidades estilísticas que estão à disposição
do gênero.

A relação música-texto, apontada por Patrice Pavis (2011) como definidora do


gênero aqui em questão, já era utilizada constantemente no teatro de feira muito antes
do surgimento do melodrama propriamente dito, e não serve para definir nem o teatro
de feira, nem o melodrama.

Assim, é possível afirmar que existe um lugar de relevância destinado aos


arranjos melódicos em uma narrativa melodramática e que adquirem função específica

32
Trecho extraído da última cena da peça teatral Beijo no Asfalto de Nelson Rodrigues. 1960.
43

quando inseridos em momentos estratégicos no desenvolvimento de uma trama, pois


enriquecem as cenas intensificando a dramaticidade e o apelo emocional para marcar,
por exemplo, ―[...] os momentos solenes ou cômicos, para caracterizar o traidor e
preparar a entrada da vítima, para ampliar a tensão ou relaxá-la.‖ (MARTIN-
BARBERO, 2003, p. 172).

São as músicas, enquanto elemento narrativo, que ―embalam‖ e contribuem


diretamente para a condução das emoções tanto da obra em si quanto da plateia no
momento da apreciação. O uso eficaz da música imprime a narrativa uma carga
dramática intensa e funcional à medida que emociona e desperta a comoção do
ouvinte/espectador.

Sobre a relação entre a música, como recurso narrativo, e o público, Angel


Rodriguez (2006) afirma que:

[...] O som não enriquece imagens, mas modifica a percepção global


do receptor. O áudio não atua em função da imagem e dependendo
dela; atua com ela e ao mesmo tempo que ela, fornecendo informação
que o receptor processará de modo complementar em função de sua
tendência natural à coerência perceptiva. (RODRIGUEZ, 2006, p.
276-277)

A música, quando bem usada dentro de uma narrativa melodramática, torna-se


um poderoso dispositivo que, aliado à dramaturgia, proporciona o reforço da atmosfera
sentimental, cumprindo inúmeros objetivos: marcação das entradas ao mesmo tempo
em que anuncia (por seu tema melódico) qual personagem chega e que tom emocional
ele traz à situação dramática; gerar expectativas; criar atmosfera propícia para os
momentos mais significativos do desenlace amoroso, para o confrontamento entre Bem
x Mal e o clímax da história.

Referindo-se ao papel da música na composição da narrativa melodramática,


Silvia Oroz (1992) diz:

[...] Chega-se a abusar tanto deste recurso, que se converte num estilo
próprio que atua como ―anunciador‖ de futuros acontecimentos ou
como ―comentaristas‖ de situações. Desse modo, a música converte-
se num elemento de efeito dramático, constituindo-se num suporte
fundamental da narração. (OROZ, 1992, p. 93-94)
44

A música inserida na composição de uma narrativa melodramática é um artifício


de grande e eficaz impacto que conduz e, de certa forma, manipula o humor da
audiência.

Detenho atenção, aqui, ao fato da melodia estar mais ligada à linguagem


melodramática pelo viés da encenação do que pela dramaturgia. Torna-se um poderoso
recurso do melodrama enquanto elemento constituinte em uma montagem cênica, tendo
papel relevante e, porque não dizer, fundamental ao marcar personagens e delinear as
atmosferas anímicas das cenas. Mas, não é imprescindível, no instante autoral, na
composição de uma narrativa dramática ficcional.

1.7.6 Alívio Cômico

Ivete Huppes (2000) afirma que o melodrama aproxima o grotesco e o elevado,


o heroísmo e a vilania, o tom grave e o ridículo, na forma de um conjunto
suficientemente dinâmico que mantém a plateia atenta do começo ao final da exposição
de uma narrativa. Partindo dessa premissa, é pertinente observar que a comicidade
inserida na composição de uma narrativa melodramática pode ter a função de
transportar a plateia paulatinamente da seriedade para o riso (excitação cômica e leve)
para em seguida conduzi-la às emoções pungentes e intensas como aponta Andrade
(2010):

[...] O fator cômico é extremamente útil e significativo quando


colocado imediatamente após o momento em que a tensão gerada por
um determinado conflito atinge seu ponto mais elevado no
desenvolvimento de um episódio [...] (ANDRADE, 2010, p. 104)

Seja através de uma cena cômica, em sua estrutura de composição, ou de uma


personagem cômica, um bobo, por exemplo – mais comum nas narrativas
melodramáticas – a comédia acontece antes ou depois de uma cena patética de grande
sofrimento no intuito de abrandar alguns momentos da trama dando à recepção, uma
oportunidade para respirar e ganhar fôlego em uma espécie de preparação para o
próximo turbilhão de emoções que a aguardam. Assim, a audiência pode, durante o
processo de apreciação, fruir toda a obra sem um ―esgotamento‖ emocional.
45

O alívio cômico33 viria a ser um paliativo, um refrigério bem medido, pesado e


posto em local adequado dentro da trama, uma localidade específica no
desenvolvimento da história que permitisse um descanso ao público antes de cenas de
forte apelo emocional.

1.8 TEMÁTICAS

Nos enredos que envolvem o jogo entre bem e mal, certo e errado, punições,
duelos, disputas, recompensas, virtudes, vilanias, cartas, coincidências, amores
impossíveis, intrigas, conspirações, mistérios, segredos, crianças trocadas, separações,
desencontros, filhos perdidos, reencontros, juramentos, venenos, passagens secretas,
promessas, assassinatos, fugas espetaculares, punhais, calabouços, porões, sótãos, noites
tempestuosas cortadas por relâmpagos e trovões, é possível identificar predominantes
matrizes temáticas do gênero melodrama que dão dinâmica à tessitura da intriga na
longa escalada em direção ao clímax patético de seu enredo.

Huppes (2000) afirma que existem dois núcleos temáticos recorrentes e


entrelaçados dentro do gênero melodrama: a reparação da injustiça e a busca da
realização amorosa.

Ao tematizar a luta pelo justo, o núcleo da ação, via de regra, opõe dois blocos:
um grupo de personagens boas e íntegras que sofre violência por parte de um grupo
ruim e inescrupuloso. Quando a temática gira em torno da realização amorosa, o enredo
mostra um jovem casal enamorado procurando afastar os empecilhos interpostos à sua
união. ―[...] Em ambas as alternativas a dificuldade de sucesso é introduzida pela ação
de personagens mal-intencionadas‖ (HUPPES, 2000, p.33) que criaram, através de suas
ações desmedidas, os empecilhos para a restauração da harmonia na vida das
personagens boas.

33
O alívio cômico apresenta-se de forma recorrente em grande parte das peças melodramáticas, mas não é
um recurso determinante para a existência de uma composição melodramática, pois é possível existir um
melodrama sem necessariamente a aplicação de um alívio cômico personificado. Tendo ciência disso, o
que faço, na composição da peça melodramática que segue no capítulo 3, é instaurar, através de algumas
falas, uma breve atmosfera espirituosa, uma lufada de comicidade que se instala através das réplicas de
algumas personagens em momentos precisos da trama oferecendo ao público instantes de relaxamento
antes dos momentos de forte cunho patético.
46

Já Thomasseau (2005) destaca como recorrência temática dentro do gênero


melodrama dois eventos considerados, por ele, pontos fulcrais para o desempenho do
gênero: a perseguição e o reconhecimento.

A relação entre os dois, a movimentação criada entorno dessas polaridades daria


ao melodrama, segundo o autor, uma dinâmica própria, pois a perseguição funcionaria
como o disparador da ação, dando movimento à intriga e mantendo o suspense. Já o
reconhecimento inibiria a perseguição numa estratégia de fechamento do enredo e
quanto mais rapidamente ele, o reconhecimento, se desse, mais o patético da situação se
mostraria poderoso.

Observo que, independente do esquema de polaridades, existe um dinamismo


desigual entre as personagens, pois, como sugere Huppes (2000), são os maus que agem
com maior força e ímpeto, tendo papel mais ativo em uma trama, protagonizando a
perseguição, já que ―[...] não valorizam nenhum código de ética e isso lhes permite
muito mais ousadia em seus planos mirabolantes, deixando-se levar pela impetuosidade
das paixões sem o concurso da razão.‖ (ANDRADE, 2010, p. 99). Dessa forma, ―[...]
aos bons34 incube em geral a guarda ou, no máximo, o esforço para restabelecer valores
positivos.‖ (HUPPES, 2000, p. 34).

O vilão personifica a perseguição, pois, antes da sua chegada, o mundo, onde


acontece a fábula, estava posto em sossego e era harmonioso. Após sua punição, os
equívocos se dissipam, as famílias se restabelecem e, enfim, a ―vida‖ retorna a uma
ordem cujo equilíbrio ele havia rompido. Tudo acontece em uma longa caminhada em
direção ao desfecho patético, depois de ultrapassar fortes cenas de perseguição e tensão
dramática até, finalmente, atingir a pacificação dada pelo reconhecimento sempre
objetivando – marca especial do gênero – suscitar o patético e o sensacional.

1.9 ALGUNS HORIZONTES E NOVOS LUGARES DE OCUPAÇÃO

É possível identificar aspectos do gênero melodramático nas mais variadas


formas de narrativas dramáticas, amalgamados a subgêneros, estilos, temáticas,

34
Destaque meu.
47

universos culturais distintos e nos mais diversificados meios comunicacionais. Muito se


deve a dois aspectos intimamente ligados: o apelo à sentimentalidade e a capacidade de
adequação/adaptação.

O melodrama sempre esteve associado ―[...] ao apelo direto aos sentidos, sendo
sinônimo de enredo de lágrimas, relacionado ao trágico e ao sentimental, porém de
maneira popularizada e mais propensa a provocar a empatia entre o gênero e o público.‖
(OROZ, 1992, p. 46-47). Soma-se a habilidade de misturar-se e acomodar-se nas frestas
de outros gêneros, abrindo-se para uma gama de interfaces combinatórias com outros
movimentos artísticos, reconfigurando-se junto a tantos outros estilos e formas de
linguagens.

Acompanhando a evolução tecnológica e histórica dos meios de comunicação, o


melodrama ganhou nova roupagem, diluindo-se na composição e estrutura de novos
meios culturais, adaptando-se, paulatinamente, às novas possibilidades de construção de
fábula para os mais diversos meios, porém, mantendo o forte e funcional aspecto
popular. Thomasseau (2005) aponta que a evolução do gênero e a sua adaptação a novas
mídias pode ser visto como uma forma de prolongamento da matriz estética35 que o
melodrama representa.

Xavier (2003) diz que a capacidade de articular sentimentalidade com recursos


visuais tem garantido ao melodrama dois séculos de sobrevivência, pois desde sua
origem, o gênero sofre transformações, agregando novas referências e adaptando-se às
mudanças sociais e culturais, mas mantendo o poder de arrebatar o público, de arrancar-
lhe lágrimas privilegiando primeiramente a emoção.

Por parte do melodrama, a migração do gênero para outros meios comunicativos


foi uma forma de manutenção e artifício de sobrevivência. Por parte dos meios
comunicativos, o processo de migração e adequação do gênero pode ser visto como um
fenômeno para atender às necessidades e especificidades destes meios que precisavam
envolver, seduzir e conquistar plateias através de histórias de forte apelo emocional,
objetivando a fidelização do público em formação.

É válida uma breve reflexão sobre os desdobramentos do gênero melodrama em


âmbitos como circo, cinema, rádio, fotonovela, teledramaturgia e em novos meios

35
Suscitação e exposição das emoções puras, intensas e vívidas, que trabalham unidas a serviço do
envolvimento do espectador na vivência dos sentimentos expostos.
48

midiáticos36 numa tentativa de identificar as múltiplas possibilidades de aplicação e


funcionalidade, além de ratificar a ideia de que o gênero melodrama, apesar de ter sua
origem no teatro francês, expandiu-se e, hoje, pertence a muitas linguagens e muitas
nacionalidades.

O melodrama encontra no circo um meio de produção e divulgação muito


importante, pois os circos atuavam num campo ousado de originalidade e
experimentação como estratagema para manterem os espaços e os públicos. Assim, no
circo de variedades, cenas teatrais melodramáticas, adequadas à realidade do picadeiro,
eram apresentadas nos intervalos entre números artísticos, porém é no circo-teatro ou
teatro-pavilhão37 que o melodrama encontra um território fértil para desenvolvimento e
expansão, pois

[o] texto nascido no seio do circo-teatro é marcado pelo que se pode


chamar de um estilo de linguagem próprio, do qual os palcos
convencionais tentarão se apoderar, com o objetivo de atender à
demanda de um público que crescia espantosamente e exigia com
mais frequência a apresentação de peças desse tipo.
Essa nova escrita dramática, que exigia um estilo adequado à
representação, chamada de melodrama circense, inundou os palcos
com heróis e heroínas destemidos e impolutos colocados frente a
frente com vilões abomináveis, que representavam a personificação do
mal absoluto. Personalidades dotadas de traços acentuadamente
opostos mediam forças diante de uma plateia que via naqueles quadros
o preenchimento do seu imaginário, falando de fatos, situações e
pessoas que, apesar de fictícias, lhes eram extremamente familiares.
(ANDRADE, 2010, p. 58)

Para assegurar-se da fidelização do público, o circo empreendia medidas de


reelaboração e adequação às novidades das mais diferentes épocas e localidades,
estabelecendo um trânsito cultural de fluxo contínuo das capitais para o interior e dos
interiores para as capitais tornando a expressão artística circense um dos importantes

36
Não desconsidero o uso de marcas do gênero melodrama em produtos e/ou narrativas não ficcionais
como telejornalismo, documentários, programas de auditório, entre outros. Sabe-se que esses produtos e
meios comunicativos podem valer-se de fatos reais, cotidianos, para criarem situações melodramáticas
capazes de conduzir o público à comoção. Essa perspectiva não é proveitosa para o que se propõe nesta
pesquisa, que é voltada para uma reflexão sobre a criação dramática ficcional fazendo uso do genêro
melodramático para produzir efeitos específicos e especificados ao longo do estudo.
37
O pesquisador José Carlos dos Santos Andrade (2010) afirma que da somatória dos fatores circo mais
teatro propiciou o sugirmento de um gênero nunca antes posto em prática e que se convencionou chamar
de circo-teatro ou teatro-pavilhão. Segundo o autor, o teatro-pavilhão volta-se para camadas sociais
menos favorecidas e menos exigentes ―[...] no que se refere à qualidade dramatúrgica do texto, às nuances
psicológicas de interpretação dos atores, ou fidelidades no que diz respeito à época ou à região no
tratamento visual dos espetáculos.‖ (ANDRADE, 2010, p. 55)
49

veículos de produção, divulgação e difusão dos mais variados empreendimentos


culturais.

É possível acreditar que o espetáculo circense encontrou no melodrama ―[...] o


seu verdadeiro canal de expressão, transformando-o quase que em uma marca registrada
dos pavilhões‖ (ANDRADE, 2010, p. 78). Assim, ―[...] a fórmula encontrada e posta em
prática revelou-se mágica e encantadora, arrebatando multidões, conquistando
comovidas plateias e alcançando um público distinto e variado, praticante de hábitos e
costumes diferenciados‖ (ANDRADE, 2010, p. 58).

O cinema se relaciona com o gênero melodrama desde a sua configuração


enquanto forma de expressão artística, permitindo apontar como um dos seus objetivos
o retratar das emoções, expressando e despertando afetos através de suas narrativas
fílmicas. Thomasseau (2005) corrobora, afirmando que:

[...] o cinema, com efeito, desde seus primeiros filmes, retomará os


grandes sucessos do gênero e alguns autores de melodramas [...]
chegaram mesmo a escrever roteiros. Reencontramos, assim, os
prolongamentos da estética melodramática nos filmes de espionagem,
de capa e espada e, sobretudo nos westerns [...]. (THOMASSEAU,
2005, p. 136)

A apropriação do gênero e sua adequação em uma forma diferente de linguagem


que não a teatral não se mostra uma tarefa fácil. É trabalho complexo, destinado aos que
detém larga compreensão do gênero e sua funcionalidade. No caso do cinema, destaco o
trabalho de dois diretores/autores: Douglas Sirk38 e Pedro Almodóvar39.

Apesar de pertencerem a épocas distintas, ambos usaram o melodrama de


maneiras diferentes na concepção de suas obras, porém com objetivos similares: criticar
a sociedade a partir da colisão entre pontos de vistas individuais de personagens,
femininas ou masculinas, com determinados valores, regras, mitos, ícones e convenções
sociais. O cinema, enquanto meio de comunicação, permitiu aos cineastas, Sirk e
Almodóvar, cada um ao seu modo, fazer uma análise crítica e irônica da sociedade e dos
mitos que a compõem, obedecendo aparentemente às suas normas para subvertê-las,

38
Sirk, cineasta alemão que realizou grandes obras cinematográficas na Hollywood da década de 50, é
oriundo do teatro, tendo trabalhado para o Terceiro Reich e fugido para a América, onde se apropriou do
melodrama para criar a parte mais importante da sua filmografia.
39
Pedro Almodóvar é um realizador espanhol que começou sua carreira como um cineasta underground
nos anos 80. Hoje é considerado um dos realizadores europeus de maior prestígio internacional.
50

alterando-lhes o sentido. Douglas Sirk serviu-se do gênero para tratar da união entre a
cultura nobre e a cultura plebéia, dando aos seus filmes grande intensidade emocional e
afetiva, já Pedro Almodóvar abusa do apelo para o teor emotivo de seus enredos e inova
à medida que traz para o centro dos seus discursos, personagens estigmatizadas e
marginalizadas pela sociedade.

No rádio, o domínio do gênero aparece na tessitura da intriga apoiada na


exploração da sentimentalidade à medida que a ação acontece desdobrada em surpresas,
impressões e emoções apoiadas em arranjos sonoros (diálogos, trilha musical e efeitos
de contrarregragem). Tudo convergindo na intenção de seduzir o espectador que ouve o
desenrolar da história de dramaturgia simplificada para facilitar o entendimento do
ouvinte.

Têm-se como exemplo O direito de nascer40 que é até hoje uma das
radionovelas de maior sucesso no Brasil, tendo sido transmitida, ao longo de três anos,
pela Rádio Nacional. O enredo melodramático conta a história da jovem Maria Helena
que dá à luz uma criança, tornando-se mãe solteira, o que era algo inaceitável para a
época e passa a ser alvo do ódio do pai Dom Rafael, um homem poderoso e muito
bravo, que não mediu esforços para oprimir a filha e amaldiçoar o próprio neto, sem
prestar-lhes qualquer tipo de ajuda. Após o nascimento do bebê, a criada Dolores foge
com a criança que recebe o nome de Alberto. Enquanto isso, Maria Helena vai para um
convento, passando a se chamar Sóror Helena da Caridade. Com o passar dos anos, o
menino que foi criado longe da família de sangue torna-se médico e, por obra
do destino se apaixona pela prima Isabel Cristina e acaba por atender e salvar a vida do
avô que tanto o desprezou.

Assim como o rádio, antes do advento da televisão, outro meio de comunicação


que se mostrou acolhedor ao gênero melodrama foi a fotonovela – quadrinhos que
utilizam, no lugar dos desenhos, fotografias, de forma a contar, sequencialmente, uma
história. No Brasil, as fotonovelas tiveram um mercado cativo por mais de 25 anos,
entre os anos 1950 e 70, representando a ideia de uma imprensa popular feminina, com
milhões de leitores de histórias publicadas em revistas com grande circulação nacional.
A fotonovela apresenta uma narrativa que utiliza em conjunto a fotografia e o texto

40
Versão brasileira com tradução e adaptação de Eurico Silva transmitida pela Rádio Nacional, São Paulo,
1951. A radionovela original é cubana e escrita por Felix Caignet. Posteriormente, década de 60, houve
uma adaptação homonima para a televisão, repetindo o mesmo sucesso de audiência.
51

verbal como nas histórias em quadrinhos desenhadas, cada quadrinho da sequência


corresponde a uma cena, no caso, corresponde a uma fotografia acompanhada de uma
mensagem textual.

A característica principal das histórias veiculadas nas fotonovelas é a intriga


sentimental, geralmente, apresentando uma heroína de origem humilde que luta por um
amor difícil e complicado, alcançando seu objetivo de felicidade no final da narrativa.
As fotonovelas, em sua maioria, eram dirigidas a um público feminino, pois exaltava
qualidades femininas determinadas por convenção de uma época: suavidade, doçura,
maternidade vinculada a sacrifícios em nome do bem familiar, o casamento como meta
de vida e realização pessoal.

Outro ponto a ser considerado é que a fotonovela, no Brasil, foi um dos modos
de ficção mais difundidos por sua combinação simples de dois elementos textuais —
fotografias e texto escrito — facilitando a compreensão do leitor, essa configuração
simples estende-se para a televisão e os modos de concepção da teledramaturgia nos
primeiros anos de constituição.

A televisão mostrou-se um território oportuno para o desenvolvimento de


narrativas dramáticas ficcionais dentro do gênero melodrama. Utilizando-se dos
princípios da comunicação de massas, a teledramaturgia pauta-se em uma linguagem de
fácil apreensão, mantendo características melodramáticas acrescidas do folhetim41.

No caso do Brasil, trata-se de uma linguagem de considerável inserção social e


cultural. A grande receptividade associa-se diretamente com os modos de produção no
processo de criação da narrativa que se constrói, sobretudo, através das estratégias
utilizadas para a identificação mimética comovendo e prendendo o interesse de milhões
de telespectadores. Um terreno fértil para a construção de histórias com técnicas
narrativas que atendem às convenções características do gênero melodramático,
intentando o encantamento e o apelo à sentimentalidade no desenrolar das tramas.

41
Narrativa literária seriada. Características essencias: quanto ao formato, é publicada de forma parcial e
sequenciada em periódicos (jornais e revistas); quanto ao conteúdo, apresenta narrativa ágil, profusão de
eventos e ganchos intencionalmente voltados para prender a atenção do leitor. A teledramaturgia, mais
especificamente, a telenovela, aglutina algumas caraterísticas desse tipo de narrativa como, por exemplo:
formato capitular; o gancho como instrumento para ampliação do suspense e da expectativa; a
diversificação dos núcleos de ação; a construção das personagens e de suas interrelações.
52

Hoje, são inúmeras as possibilidades de aplicação do gênero dramático


melodrama para a construção de narrativas ficcionais, pois crescem de forma
exponencial as novas mídias, lugares favoráveis para a reedição periódica de alguns
clássicos melodramáticos como também para a continuação da estética, dos efeitos, dos
estereótipos e da tipologia do gênero. Com o advento da tecnologia, cada vez mais, o
melodrama encontra novos caminhos para percorrer considerando as especificidades do
meio comunicacional usado para construção da fábula e também os recursos
melodramáticos que melhor se adéquam a essa possível construção e veiculação. Sobre
essa capacidade de aplicação e adequação do gênero, Ivete Huppes (2000) diz que:

[...] Por excelência moderno, o melodrama busca deliberadamente a


sintonia com o grande público, identificando nessa adesão caminho
para o sucesso. Quem lhe assegura a continuidade é a recepção
positiva. Representações ligadas a estéticas muito diferentes
continuam a recorrer ao modelo melodramático, ainda quando seguem
propostas estéticas divergentes. Buscam ali sugestões que de fato
incorporam às novas realizações, ou agem em direção inversa:
encontram pretexto para a ironia e para a paródia em relação a
convenções que julgam ultrapassadas. Ambas as alternativas
testemunham a mesma coisa. Reconhecem a vitalidade do melodrama
e o seu potencial de inspiração ainda não esgotado. (HUPPES, 2000,
p. 23)

Alguns recursos narrativos que compõem as convenções do gênero se mantêm


sedimentados (apesar das inúmeras adequações às mídias), como, por exemplo, o jogo
entre forças/polaridades bem e mal, o que me permite reconhecê-los como elementos
empregados na tessitura de uma intriga para surpreender, envolver e evocar o pathos da
plateia. Nessa perspectiva, tem-se o melodrama como um funcional mecanismo de
estratégias anímicas comprometido com a realidade dos estados emocionais das
personagens, do enredo e da trama, tendo como parâmetro fundamental a motivação do
pathos do receptor.

Entre as possibilidades que configuram as causas da perpetuação do gênero


melodrama, a emoção e as estratégias para produção de efeitos emocionais seriam
assertivas opções de escolha, pois, através delas, o melodrama continuaria a exercer
fascínio no espectador, reafirmando sua cumplicidade com a teatralidade42 e com o

42
Quando vincula-se à ideia de que o texto melodramático ―[...] se presta bem à transposição cênica
(visualidade do jogo teatral, conflitos abertos, troca rápida de diálogos)‖, conforme Pavis (2001, p. 373).
53

espetacular43, naquilo que é mostrado ao público, no formato e intencionalidade com


que a exposição se efetua.
No decorrer dos próximos capítulos, a matéria sobre as estratégias para produção
de efeitos e os efeitos emocionais propriamente ditos serão discutidos.

43
Apesar de ser uma ―noção bastante fluida, pois, como o insólito, o estranho e todas as categorias
definidas a partir da recepção do espectador, ela é função tanto do sujeito que vê quando (sic) do objeto
visto.‖ (PAVIS, 2011, p.141), A dimensão espetacular de uma obra relaciona-se com a concepção de
quem a põe em cena, bem como do movimento estético vigente quando de sua encenação.
54

2 EU ENCANTO, TU ENCANTAS, ELE ENCANTA...

Nós encantamos, nos encantamos, ou ainda, somos encantados?


O que sente um apreciador diante de uma obra de arte? O que acontece no
íntimo de um sujeito que se detém diante de uma pintura? Ou quando lê um livro? Ou
ainda, quando assiste, uma ópera, balé, peça teatral? Quando vê um filme ou uma
narrativa ficcional televisiva? O que sente um espectador enquanto frui?
É possível que existam muitas respostas de diferentes correntes filosóficas e
estéticas, porém, acredito que uma dessas inúmeras respostas perpasse pelo campo do
subjetivo e considere o ato e o efeito de emocionar-se como uma das possibilidades de
ocorrência durante o processo de apreciação de uma obra artística.
Gomes (2004) afirma que uma obra artística apresenta um conjunto de
investimentos que tocam em questões significativas para o modo como o espectador
vivencia a experiência de apreciação da obra. Partindo desse pressuposto e em
comunhão as afirmativas desse pesquisador, acredito que seja possível afirmar que
grande parte da motivação que nos leva a fruir uma narrativa dramática ficcional,
considerando-a como uma obra artística44, independentemente da plataforma midiática
na qual esteja inserida, pode estar associada a sua capacidade de provocar, no fruidor,
um encanto45.
Assim sendo, é comum, durante o processo de uma apreciação, existir o estímulo
ao fascínio, ao medo, ao êxtase, a repulsa, à alegria, à tristeza, ao horror, à compaixão e
a tantas outras manifestações ou investimentos de afetos e emoções, pois os estímulos
advindos de uma obra de arte seduzem, atraem e deslumbram o espectador à medida
que podem propiciar ―[...] certas disposições de ânimo e desafiar o surgimento de ideias
e juízos‖ (MENDES, 2008, p. 07-08). Porém, como afirma Mendes, sendo necessário
que o repertório imaginário do fruidor comporte a situação que lhe é reapresentada para
que a comunhão aconteça.

44
Apesar de ter conhecimento das inúmeras possibilidade de concepção e produção de obras artísticas, é
relevante para este trabalho tratar apenas da narrativa dramática ficcional composta para o teatro como
obra de arte, para não fugir do foco da pesquisa.
45
É sabido que expressões artísticas não representativas e não figurativas podem ter a presença de
características e investimentos afetivos. No entanto, para este estudo, mostra-se mais proveitoso somente
a abordagem da narrativa dramática ficcional como forma de expressão artística de grande investimento
afetivo, favorecendo o reconhecimento e a reflexão sobre o uso de elementos de composição utilizados
como recursos evidenciadores deste propósito (suscitamento de emoções).
55

Tendo em vista a possibilidade de uma narrativa dramática ficcional evocar


estados anímicos no público durante o evento da apreciação, trago as observações
apontadas por Aristóteles em Arte Poética (2007) numa tentativa de corroborar minhas
afirmativas apontadas até aqui, já que o pensador grego, através do seu estudo sobre a
tragédia, configurou-se como um dos pioneiros na análise do drama46 e seus possíveis
efeitos. Aristóteles (2007) propõe que a qualidade de uma obra também deveria ser
mensurada, além das suas características de composição, pela habilidade de suscitar
sentimentos, provocar emoções no apreciador, o que, segundo ele, se configuraria como
um efeito fundamental, aquilo que o realizador deveria buscar antes de tudo e para onde
deveria ser focada a destinação principal da representação e o princípio com base no
qual se julgaria se a obra atingiu ou não os objetivos de sua criação. Acompanhando
está linha de pensamento, Gomes (2004), detém-se na ideia de que cada obra deve ser
pensada em função de uma destinação e dos efeitos que poderá operar naqueles que irão
apreciá-la.
Para uma possível compreensão do processo de apreciação de uma obra de arte,
Gomes (2004) chama atenção para o entendimento necessário que se deve dedicar a
ideia de apreciação ao afirmar que se trata de uma experiência, uma vivência,
intimamente ligada à subjetividade de cada um e que as impressões manifestadas no
indivíduo podem ser compreendidas através de três dimensões fundamentais: cognitiva,
sensorial e afetiva.
Essas dimensões revelam-se importantes, pois em cada uma delas, o fenômeno
da expressão47 ganha diversificados sentidos. Assim, segundo Gomes (2004), tem-se, na
dimensão cognitiva, a expressão como significação, envolvendo o reconhecimento de
informações elementares para a compreensão dos signos empregados na construção da
obra; na dimensão sensorial, a expressão ganha o sentido de produção de sensações
focando a disposição sensorial da recepção através de respostas sensório-motoras; na
dimensão afetiva, a expressão está associada à convocação de sentimentos, ao
suscitamento de estados anímicos que estimulam o envolvimento do público no
processo de apreciação da obra.

46
Uso do termo na acepção de ―obra dramática‖.
47
Gomes (2004) refere-se a obra de arte não como um todo significante, porém como um material
expressivo que se distingue de acordo com a dimensão fundamental da subjetividade humana que estiver
inserida.
56

Uma narrativa dramática ficcional configura-se como uma composição capaz de


afetar áreas distintas de nossa compreensão, um conjunto de códigos que conferem
conteúdo a suas expressões e que se endereça a um apreciador hipotético, dotado das
competências necessárias para executá-la.
Versando um pouco mais sobre o efeito emocional que uma obra é capaz de
executar, cabe também para esta reflexão a afirmativa feita por Gomes (2004) de que
para cada gênero de representação existiria e corresponderia um efeito apropriado e
dominante e que este efeito deveria ser explorado pelo realizador no instante de criação
da obra. Isso em vista, tem-se que a natureza da apreciação já estaria prevista no
processo de composição da obra e o trabalho do realizador consistiria em exercitar uma
projeção, prevendo os efeitos que desejaria alcançar na plateia e compondo, a partir dos
recursos dispostos, estratégias para alcançar o efeito desejado.
As premissas apontadas até aqui estimulam alguns questionamentos: A partir de
que mecanismo ou mecanismos são convocadas as disposições emocionais do
espectador? Como é possível tocar o público pela via da emoção, instigando o seu
ânimo? Que procedimentos excitam o pathos do ouvinte e de que forma estes
procedimentos podem ser operacionalizados para assim suscitarem emoções intensas e
vividas?

Toda a argumentação que pode ser levantada neste estudo, no intuito de


encontrar respostas para os questionamentos apontados anteriormente, considera um
desvendamento da lógica interna da construção de uma narrativa dramática ficcional,
mais especificamente, nos procedimentos da criação textual – foco desta pesquisa – sem
perder de vista as observações feitas sobre o melodrama e como alguns elementos do
gênero se mantêm apoiados em estratégias específicas de composição com objetivos
claros em relação aos efeitos a serem provocados nas plateias.

2.1 EFEITOS EMOCIONAIS

Em Princípios de poética: com ênfase na poética do cinema, Gomes (2004)


estabelece diretrizes para exercícios de análise interna de materiais fílmicos com foco
na compreensão do modo particular com que uma obra agencia os recursos à sua
disposição para produzir determinados efeitos. Nesse contexto, os efeitos emocionais
ganham relevo, pois:
57

[...] Os estímulos que constituem fundamentalmente a expressão são


igualmente de natureza afetiva e [...] executar os efeitos de uma
expressão, significa, por sua vez, constituir um determinado
sentimento, emocionar (-se). (GOMES, 2004, p. 54)

Para este momento do trabalho, faz-se necessário deter-me um pouco mais no


termo emoção e na acepção da qual farei uso. Segundo Ximenes (2000), a emoção
significa uma espécie de perturbação provocada por algum fato que abala o espírito e
provoca uma reação subjetiva do organismo – acompanhada de um estado afetivo
penoso ou agradável – a um acontecimento. As emoções estariam inseridas no campo
dos afetos48, porém caracterizadas e diferenciadas por requererem um componente
cognitivo.
Abordar as emoções sob uma perspectiva cognitivista, como será feito ao longo
deste estudo, pode, a princípio, parecer algo contraditório já que o termo cognitivismo
indica uma ênfase na compreensão do pensamento e do processamento de informações,
porém a abordagem dada neste estudo não reduz a experiência afetiva a uma questão de
cognição, mas compreende que emoção e cognição estão intimamente ligadas.
[...] os cognitivistas enfatizam o modo como emoções e cognição
cooperam para nos orientar em nosso ambiente, tornando certos
objetos mais salientes. Emoções nos ajudam a avaliar nosso mundo e a
reagir a ele mais rapidamente. Medo e amor nos fornecem uma força
motivadora que trabalha juntamente com os processos de pensamento
com mais freqüência do que o contrário.49 (SMITH, 1999, p. 02)

Tendo mais clara, para esta pesquisa, a definição de emoção, avanço na reflexão
de que as emoções que sentimos durante apreciação de uma obra artística oriundam-se
dos mesmos processos que geram nossas emoções na ―vida real‖, sendo aquelas
(fomentadas durante o momento da fruição) tão verdadeiras quanto estas (sentidas e
processadas em nosso cotidiano). Umas e outras são verdadeiras em suas
contextualizações, pois podem ser acionadas tanto por situações reais, como também
pelos mais variados tipos de pensamentos e crenças envolvendo mente e corpo na
dinâmica da estruturação de um momento emotivo.

48
Na concepção de Caroll (1999), o afeto é uma disposição ampla e mais generalizada daquilo que age
sobre o ser, dizendo respeito aos variados tipos de sentimentos e sensações experimentados pelo sujeito,
incluindo impressões e reflexos automáticos, por exemplo: ao calor, ao frio, ao susto, etc.
49
Livre tradução de: ―[...] cognitivists emphasize the way that emotion and cognitions cooperate to orient
us in our environment and to make certain objects more salient. Emotions help us to evaluate our world
and react toit more quickly. Fear or love provide a motive force that more often then not works in tandem
with thought processes.‖ (SMITH, 1999, p. 02)
58

Isso me permite observar que, durante um processo de apreciação de uma


narrativa dramática de ficção, são evocados, na recepção, estados anímicos
diferenciados e condizentes com o tipo de narrativa que está sendo apreciada50. Esses
estados anímicos encorajam a recepção a estabelecer, na maioria das vezes, desde o
início da narrativa uma consistente orientação emocional em relação ao texto51 que é
apresentado.
Noël Carroll (1999)52 refere-se à obra artística como um material afetivamente
pré-focalizado53, considerando que os realizadores da obra, configuram previamente os
seus efeitos, convidando o espectador a experimentar emoções específicas, atendendo,
assim, as especificidades do gênero no qual a obra se enquadra. Assim, em caráter de
ilustração dessas afirmativas expostas, tem-se que o espectador atenderia a evocação do
riso proposto em uma comédia ou iria às lágrimas evocadas por um melodrama.
Para emocionar, as produções recorrem a configurações, contextos e cenários
que pela repetição e uso em sobremodo acabam se institucionalizando como uma série
de convenções caracterizadoras de gêneros e definidoras das linguagens onde as
narrativas dramáticas ficcionais podem ser empregadas54. Partindo desse pressuposto, é
pertinente crer que enquanto as histórias de horror encenam e reencenam cenários de
perseguição, angústia e medo, os melodramas exploram a exaustão os cenários de
sacrifícios, vinganças, infortúnios, uniões e separações entre amantes e familiares.
Noël Carroll (1999), em um artigo publicado na coletânea Passionate Views,
apresenta uma breve análise de aspectos do gênero melodrama relacionados com
estratégias de composição articuladas para conduzir o espectador às lágrimas. Este
efeito, segundo o pesquisador cognitivista, é produzido por meio da convocação de dois
estados emocionais: piedade e admiração.

50
Tratando-se de uma narrativa dramática ficcional, é válido constatar que muito da tipologia dos gêneros
são definidos em função do apelo emocional que o material pode suscitar.
51
Referindo-se a obra artística. No caso do estudo proposto, referindo-se mais especificamente a uma
narrativa dramática ficcional.
52
O pesquisador cognitivista tem seu trabalho voltado para uma filosofia das emoções fílmicas baseada
nas análises de experiências cinematográficas, porém os apontamentos dedicados ao estudo das emoções
fílmicas podem ser aplicados em um território mais vasto de narrativas dramáticas ficcionais que vão
além do cinema e que se prestam para elucidar as reflexões sugeridas neste trabalho.
53
Livre tradução de: affectively prefocused.
54
O impacto emocional resultante da abordagem destes cenários associa-se ao fato de que estes mesmos
atendem às expectativas de um imaginário coletivo e de um senso comum onde são facilmente
compreendidos por um grande número de pessoas, apelando para inquietudes centrais e sujeitas à
circunstâncialidade cultural e histórica na vivência do ser humano.
59

A piedade é uma emoção dedicada a alguém que sofre. Assim sendo, é sentida
pelo espectador e tem por objeto o ―sofredor de infortúnios‖, uma personagem
vitimizada por algo ou por outra personagem. Não é surpreendente constatar que, tendo
essa premissa em perspectiva, as narrativas melodramáticas deem destaque às aflições
vividas por seus protagonistas55, já que, para que o espectador possa se comover do
drama destas personagens é preciso que elas sejam de alguma forma vítimas das
circunstâncias. Segundo Carrol (1999, p. 36), ―[...] A piedade melodramática envolve
coisas más acontecendo a pessoas boas ou, pelo menos, coisas desproporcionalmente
más acontecendo a pessoas de caráter duvidoso.‖ 56
A admiração se encaixaria nessa equação emocional, à medida que o público
testemunha as heroínas e/ou heróis, típicos do melodrama, cheios de virtudes, sofrendo
intensamente os infortúnios da vida. O efeito emocional da admiração manifesta-se por
conta do modo como essas personagens enfrentam as adversidades, com altas doses de
generosidade, sacrifício, resignação e/ou abnegação.
Faço, aqui, uma breve interseção, porém interessante, entre o trabalho de Carroll
(1999) referindo-se ao melodrama e às explanações de Aristóteles (2007) sobre a
tragédia, pois ambos preocupam-se com os efeitos que a obra pode suscitar,
considerando as personagens e suas vivências como um poderoso disparador para a
produção de tais efeitos.
Enquanto Carroll (1999) dedica-se a refletir sobre a piedade e a admiração,
Aristóteles (2007), ao apontar a compaixão e o horror como efeitos próprios da
tragédia, afirma que a compaixão nasceria do homem injustamente infortunado e o
horror do homem semelhante a nós. Nessa perspectiva, para que uma tragédia seja
sublime ela deve ocorrer a um ―[...] homem que, não se distinguindo por sua
superioridade e justiça, não obstante não é mau nem perverso, mas cai no infortúnio em
consequência de qualquer falta‖. (ARISTÓTELES, p. 51-52)
É na relação estabelecida entre personagens fundamentais e o público que
Carroll (1999) e Aristóteles (2007) aproximam-se, pois veem, nessa interação, a chave
que pode desencadear os efeitos emocionais mediante a identificação e o

55
Se tratando de melodrama, em geral, os vilões quando sofrem não costumam ser dignos de pena, pois
estão recebendo algum tipo de punição por seus atos de vilania.
56
Livre tradução de: [...] melodramatic pity involves bad things happening to good people, or, at least,
disproportionately bad things happening to people of mixed character. (CARROL, 1999, p. 36)
60

reconhecimento do público para com as personagens e suas experiências no


desenvolvimento do enredo dramático.
Outro aspecto interessante a ser observado é apontado por Oroz (1992) ao afirma
que através do melodrama, a catarse, um dos importantes focos das reflexões de
Aristóteles, se daria na contemporaneidade (associada a outras emoções que não mais o
horror e a compaixão como na tragédia grega), no instante de perplexidade do
espectador durante a recepção, à medida que ele projeta-se e identifica-se. As
afirmativas de Oroz são válidas a partir do instante em que há uma reconfiguração e
reinterpretação do conceito de catarse afastando um pouco do campo aristotélico e
aplicando-o ―a variedade de formas do drama contemporâneo‖ (MENDES, 2008, p.01).
Assim tem-se por catarse:

[...] Um processo em que a participação afetiva do fruidor é


inseparável do movimento crítico-cognitivo, uma aprendizagem (se
pudermos usar com extremo cuidado essa palavra) de tipo
especialíssimo, que não separa sensações e conceitos, gozos e valores,
mas conjuga-os ludicamente, no todo de uma experiência. (MENDES,
p. 35)

Mendes (2008) enxerga a catarse como um fenômeno, cujo efeito potencial não
se reduz nem a experiência puramente emocional nem à aprendizagem lógico-racional.
O efeito catártico, segundo ela, conjuga esses dois processos, ao permitir uma vivência e
uma distância, graças ao caráter simultaneamente real e irreal da ficção. Nessa linha de
pensamento, o processo catártico partiria da emoção e a ela retornaria, possibilitando
uma aventura de natureza afetiva e intelectual a um só tempo, caracterizando-se como
―[...] um processo e um acontecimento[...]‖ (MENDES, p.07).
[...] Se a personagem deve aí funcionar como elemento catalisador, é
porque o desejo não pode ser nomeado sem disfarces. Isto dispensaria
o drama, pois é através de suas máscaras e simulacros que autores e
públicos brincam de conhecer o próprio desejo. (MENDES, p. 07)

Discorrendo um pouco mais sobre quais efeitos emocionais seriam mais aptos
ao gênero melodramático, debruço-me nas observações feitas por Ed Tan e Nico Frijda
(1999) quando examinam, o que para eles, parece ser um efeito basilar para o
melodrama (embora não exclusivo do gênero): o sentimentalismo. Essa manifestação,
na definição dos autores, seria ―[...] caracterizada pela urgência de chorar ou por um
61

estado de comoção com uma intensidade excessiva para a importância atribuída à sua
razão.‖ (TAN; FRIJDA, 1999, p. 49)57.
O sentimentalismo se manifestaria quando o público encontra-se diante de uma
situação que ele experimenta como avassaladora, por não ter condições de controlar ou
evitar o que é mostrado pela obra. O choro, o romper em lágrimas, em momentos nos
quais a personagem ou as personagens58, após enfrentarem uma série de dificuldades,
finalmente, alcançam o seu objetivo ou rendem-se ao destino adverso, seria a
consequência do acúmulo de toda a tensão exposta no drama. Atentando para essas
afirmativas, é válido considerar que as respostas sentimentais são acionadas,
geralmente, nos momentos de resolução dos conflitos, quando cessam as expectativas
em relação ao desenlace e o desenvolvimento do enredo.
Ed Tan e Nico Frijda (1999) identificam três temas que seriam eficientes para a
convocação do sentimentalismo: separação-reunião59; justiça sob risco60; temor
inspirador61.
Tratando um pouco de cada um desses temas, tem-se que o primeiro –
separação-reunião – está associado aos desejos do indivíduo de buscar, conservar,
recuperar ou restaurar laços afetivos e íntimos com outros indivíduos. Aparecem em
narrativas dramáticas ficcionais sob as mais diversas variações, desde a criança que é
afastada dos parentes e depois de muitas complicações, retorna para casa como no filme
O Mágico de Oz62, até o homem que entende o valor de si mesmo e dos seus entes
queridos e retorna para o meio familiar como no filme A felicidade não se compra63.
O segundo tema – justiça sobre risco – trata diretamente do reconhecimento da
virtude – um dos pilares do melodrama – em meio a um grande conflito moral, pois,
somente no desenlace da trama, é que os bons e puros são reconhecidos e
recompensados como merecem. Como exemplo do segundo tema, tem-se – e que já
deve fazer parte do imaginário coletivo – as histórias em que as heroínas e/ou os heróis
57
Livre tradução de: [...] characterized by an urge to cry or a state of being moved with a strength in
excess to the importance we attach to its reason. (TAN; FRIJDA, 1999, p. 49)
58
A personagem pode ser usada como um recurso eficaz na composição de uma estratégia para a
produção de efeito emocional quando aposta-se na interação com o público através do reconhecimento,
simpatia e/ou empatia. Essas afirmativas serão melhor desenvolvidas adiante.
59
Livre tradução de: separation-reunion. (TAN; FRIJDA, 1999)
60
Livre tradução: justice in jeopardy. (TAN; FRIJDA, 1999)
61
Livre tradução: awe-inspiration. (TAN; FRIJDA, 1999)
62
Filme estadunidense, roteirizado por Noel langley, Florence Ryerson e Edgar Allan Woof, dirigido por
Victor Fleming, 1939.
63
Filme estadunidense, roteirizado por Frances Goodrich e Albert Hackett, dirigido por Frank Capra,
1947.
62

são acusados injustamente, vão a julgamento e quando tudo parece perdido e tem-se a
certeza de uma condenação, algo acontece acabando com a vitimização e punindo os
verdadeiros culpados. Como ocorreu na telenovela Mulheres de Areia64, quando Ruth,
assumindo o lugar da sua irmã gêmea Raquel, é julgada pelo assassinato de Wanderley
Amaral e em meio às acusações assume sua verdadeira identidade para não ser punida
por um crime que não cometeu.
Por último, o terceiro tema – temor inesperado – está vinculado a um misto de
fascínio e ao medo provocado pela representação do inefável, do intangível e do
imensurável. São as representações de algo grandioso, diante do qual o indivíduo se
sente pequeno e insignificante como nos filmes pautados em catástrofes. Como exemplo
tem-se o filme O Impossível65.
Jesus Martin-Barbero (2003) trata também das emoções que podem ser
suscitadas por uma narrativa ficcional dramática dentro do gênero melodrama, porém
sua análise parte do princípio de que a tipologia das personagens, que compõem a
dramaturgia melodramática, está associada a diferentes sentimentos e situações,
assumindo uma forma menos relacionada a uma tradição estritamente teatral e sim aos
―[...] modos dos espetáculos de feira e com os temas das narrativas que vêm da literatura
oral, em especial com os contos de medo e de mistério, com os relatos de terror.‖
(MARTIN-BARBERO, p.170).
Na abordagem de Martin-Barbero, o medo, por exemplo, seria despertado a
partir de situações terríveis e personificado pela personagem do
vilão/traidor/perseguidor/agressor66.
[...] Ao encarnar as paixões agressoras, o traidor é o personagem do
terrível, o que produz medo, cuja simples presença suspende a
respiração dos espectadores, mas também é o que fascina: príncipe e
serpente que se move na escuridão, nos corredores do labirinto e do
secreto. (MARTIN-BARBERO, p.176)

É interessante dedicar um pouco mais de linhas tecendo comentários sobre a


vilania, essa peça chave para o bom andamento de uma história melodramática, como

64
Telenovela escrita por Ivani Ribeiro, produzida e veiculada pela Rede Globo em 1993.
65
Filme estadunidense e espanhol, roteirizado por Sérgio G. Sánchez, dirigido por Juan Antônio Bayona,
2012.
66
O semiólogo identifica tal efeito emocional como uma possível herança do romance de ação.
63

afirma Huppes (2000), considerando as emoções que as personagens más são capazes
de suscitar.
Indo um pouco além do que foi apontado por Martin-Barbero, acredito que na
vileza não se encontra apenas o disparador do medo, mas também o alvo da antipatia e
da repulsa do espectador. Os vilões, através das suas atitudes, posicionamento e das
ações, colocam em exercício toda a maldade que possuem ganhando a aversão do
público e não a simpatia. Os vilões quando bem construídos, cumprem sua função,
despertando na plateia a revolta e o desejo de punição para o mal e a recompensa para
os bons.
Quando afirmo essa função de ser detestável, incluo nisso o fato de que os vilões
são odiados pelo público com intensa paixão, pois como acontece de forma recorrente
em grande parte das atuais telenovelas brasileiras, por exemplo, a vilania é sedutora e
exerce fascínio. Os motivos para tal podem ser muitos e variados, desde o
desregramento até a falta de limites, mas certo é que a personagem má é rechaçada com
intensidade, o que me permite dizer que o público ama odiá-las e espera ansioso por
cada ação maldosa para então revoltar-se, indignar-se e desejar um fim punitivo para tal
―ser‖.
Já o entusiasmo, seria provocado a partir de situações excitantes e personificado
pela personagem do justiceiro/galã/mocinho67.
[...] Protetor, é o personagem que, no último momento, salva a vítima
e castiga o traidor. [...] É pela bondade e sensibilidade, a contraface do
traidor. E portanto o que tem por função desfazer a trama de
malentendidos e desvelar a impostura permitindo que a ―verdade
resplandeça‖. Toda, a da vítima e a do traidor. (MARTIN-BARBERO,
2003, p. 177)

A dor, de acordo com a proposta de Martin-Barbero, resultaria das situações


ternas e se personificaria na personagem vítima/ingênua68, ―[...] encarnação da
inocência e da virtude, quase sempre mulher. [...] Sociologicamente, a vítima é uma
princesa que se desconhece enquanto tal, e que, tendo vindo de cima, aparece rebaixada,
humilhada, tratada injustamente‖ (MARTIN-BARBERO, p. 176).
Apesar de não estar vinculada a tríade de personagens chaves do melodrama, o
bobo, de acordo com Martin-Barbero (2003), seria uma personagem importante para o

67
Martin-Barbero identifica o entusiasmo como um efeito emocional oriundo das epopéias e aglutinado
pelo gênero melodrama.
68
Para o teórico, a dor seria uma emoção vinculada às tragédias.
64

gênero, pois, figuraria a estrutura melodramática representando o alívio cômico e o


efeito emocial do riso, da comicidade, a partir de situações burlescas. Sobre a
personagem cômica dentro do melodrama, o autor afirma que:
[...] A figura do bobo no melodrama remete por um lado a do
palhaço no circo, isto é, aquele que produz distensão e
relaxamento emocional depois de um forte momento de tensão,
tão necessário em um tipo de drama que mantém as sensações e
os sentimentos quase sempre no limite. Mas remete por outro
lado ao plebeu, o anti-herói torto e até grotesco, com sua
linguagem anti-sublime e grosseira, rindo-se da correção e da
retórica dos protagonistas, introduzindo a ironia de sua aparente
torpeza física, sendo como é um equilibrista, e sua fala cheia de
refrões e jogos de palavras. (MARTIN-BARBERO, 2003, p.
177)

É imprescindível, para este estudo, a tentativa de compreensão dos efeitos


emocionais que podem ser suscitados no público durante o momento de apreciação de
uma narrativa dramática ficcional composta dentro do gênero melodrama, considerando,
como Nöel Carroll (1999), que o efeito emocial causado por um determinado tipo de
gênero durante o processo de apreciação termina por caracterizá-lo e distingui-lo69.
Tendo isso em perspectiva, cabe afirmar que para atingir efeitos pré-
determinados é preciso antes dispor da efetivação de meios/recursos, o que discuto logo
a seguir.

2.2 RECURSOS PARA A PRODUÇÃO DOS EFEITOS

Os recursos são os meios ou materiais que podem ser ordenados e dispostos com
vistas à produção de efeitos no público durante o processo de apreciação de uma obra
artística. Vários são os recursos que podem ser empregados neste intento e podem ser
classificados de muitos modos. Gomes (2004) os classifica seguindo alguns parâmetros
tradicionais da linguagem audiovisual. Assim, têm-se os recursos: visuais, sonoros,
cênicos e narrativos70.

69
No capítulo 4 desta pesquisa, será feita análise da composição de estratégias melodramáticas para a
produção de alguns efeitos emocionais, tais como a piedade e a admiração a partir dos fragmentos
extraídos de trechos da peça teatral que compõe o capítulo 3 deste trabalho.
70
Gomes traça uma tipologia para os recursos baseando-se na linguagem audiovisual, porém, para esta
pesquisa interessam os recursos narrativos por serem os elementos chaves na composição de uma
narrativa, além disso, estes mesmos recursos narrativos quando agenciados são capazes de compor
eficazes estratégias para a produção do efeito emocional, foco das reflexões que se seguirão.
65

Os recursos visuais abarcam os procedimentos de montagem, planos,


enquadramentos, movimentos de câmera, aspectos da imagem como luminosidade,
plasticidade e etc. Os recursos sonoros concentram-se na trilha, modulação e equação
dos registros de áudio. Os recursos cênicos compreendem as direções (geral, arte,
elenco, etc.), suas instâncias e dependências como atores, cenários, figurinos,
maquiagens, adereços, etc. Os recursos narrativos, interesse desta pesquisa, são
elementos de composição de uma narrativa, instrumentos com os quais é possível
construir um enredo e contar uma história. Destaco: ação dramática, conflito
dramático, personagem dramático e diálogo dramático71. Sem descartar as informações
intertextuais relacionadas às convenções de gênero que permitem ao público antecipar
desdobramentos ou construir hipóteses sobre uma narrativa.
É proveitoso esmiuçar esses elementos narrativos, identificando suas funções e
possibilidades de uso enquanto recursos, pois quando agenciados, codificados, na
instância estratégica da realização, são estes mesmos elementos que posteriormente,
direta ou indiretamente, são decodificados pelo público como texto na instância
operativa da contemplação da obra artística.
A Ação dramática é o elemento básico para a composição da matéria dramática.
Pode ser definida como todo e qualquer movimento – não necessariamente físico – que
é fruto de uma vontade e que visa um determinado objetivo, porém é importante
ressaltar que nem todo movimento é uma ação dramática. Para que o seja, é necessário
que esse movimento resulte de um querer alcançar um determinado objetivo conhecido
pelo sujeito, pela personagem.
O conflito dramático acontece quando um sujeito, uma personagem, qualquer
que seja sua natureza exata, ao perseguir certo objeto72 é confrontado em sua empreitada
por outro sujeito73. Esta oposição se traduz, então, por um combate individual ou
filosófico e a dinâmica provocada pelo embate entre essas forças de oposição é o
conflito em si.

71
Não se desconsidera a existência de outros elementos que compõem o conjunto de recursos narrativos e
nem a sua importância, porém, para este estudo, os elementos listados são mais relevantes pois serão
estudados de forma mais detalhada e em coerência com a proposta de trabalho feita nesta pesquisa.
72
Entende-se objeto como qualquer coisa ou matéria foco de um desejo. Pode ser amor, poder, vingança,
etc.
73
Entende-se que o sujeito pode ser a mesma personagem, uma outra personagem, um obstáculo
psicológico, moral ou material.
66

Sobre a relação entre a ação dramática e o conflito dramático, Hegel (1964) faz
considerações esclarecedoras, quando diz que uma ação dramática não se limitaria à
realização simplista de um fim determinado, mas o oposto disso: a ação dramática
aconteceria em um ambiente de conflitos e colisões, sendo alvo de circunstâncias,
motivações e paixões, gerando, a partir do embate, no conflito – e como reação – mais
ações dramáticas.
A personagem dramática é um ser fictício, uma criatura irreal moldada por meio
da organização de traços recolhidos da realidade e trabalhados pela imaginação. Pensa,
fala e age de acordo com características estabelecidas na definição do seu perfil. A
personagem é inserida em um mundo construído sobre uma coerência interna e fica
subordinada a esta lógica, agindo e reagindo de acordo com as regras de funcionamento
desse universo possível.
As categorias principais de personagens são: protagonista – personagem
principal de uma narrativa, a quem se devem as principais ações dinamizadoras do
enredo, a quem o texto dedica maior pormenorização das ações e atitudes; antagonista –
personagem de oposição ao protagonista. Suas atitudes provocam o surgimento de
conflitos, cuja superação conduz às transformações no enredo; secundários, adjuvantes
ou coadjuvantes – surgem em redor do protagonista ou do antagonista, auxiliando-os ou
prejudicando-os em suas ações. No desenvolvimento de uma trama, o desempenho de
uma personagem secundária é quase sempre o mesmo.
A relação que se estabelece entre público e personagem durante a veiculação de
uma narrativa ficcional dramática é um fato interessante para ser observado porque
muito do direcionamento das emoções do espectador pode estar diretamente ligado às
relações estabelecidas com as personagens durante o processo de apreciação.
É o que aponta Carroll (2008), quando confere à simpatia74 do público para com
as personagens, um fator relevante para a compreensão dos modos de suscitar emoções
na plateia, já que os vínculos emocionais criados para com o protagonista, por exemplo,
podem ser fortes e persistentes, acompanhando o espectador ao longo de quase todo o
desenvolvimento da trama, moldando suas respostas emocionais.
Em função da simpatia ou antipatia por determinadas personagens, é que alguns
desdobramentos da ação dramática acontecem e podem ser considerados negativos ou

74
O termo é usado de forma genérica para definir uma atitude favorável ou positiva em relação a outra
pessoa ou personagem, que favorece a expressão de interesse ou a preocupação com o seu bem-estar.
67

positivos, desejáveis ou indesejáveis. ―[...] A simpatia, concebida como uma emoção,


envolve sentimentos viscerais de agonia quando os interesses do objeto de nossa pró-
atitude estão ameaçados e de euforia, completude e/ou satisfação quando o seu bem-
estar é alcançado.‖75 (CARROLL, 2008, p. 177).
Carroll (2008), refletindo um pouco mais sobre as respostas emocionais do
público, prossegue afirmando que essa configuração – interação do público com
personagens ficcionais dramáticas - deixa os criadores com o comprometimento de
mobilizar, sem ambiguidades, as simpatias e antipatias de público pelas personagens.76
Já o pesquisador Ed Tan (1996), acredita que a tipificação na construção de
algumas personagens, distinguindo-as de acordo com suas motivações, contribuiria para
que suas destinações ganhassem grande relevância para o espectador, pois, segundo o
pesquisador, seria, justamente, essa disposição – do espectador – para compreender as
preocupações de uma personagem que caracterizaria o processo de empatia.
De acordo com Tan (1996), ao sentir empatia por determinadas personagens, os
sentimentos do público em relação a um determinado evento tem a mesma valência dos
sentimentos que as personagens vivenciam naquele contexto específico. Trazendo um
pouco a reflexão para a seara do melodrama, é como se ao fruir uma narrativa dramática
ficcional melodramática, fosse possível experimentar emoções negativas com os
infortúnios e positivas com a boa sorte das personagens do enredo.
Diferente de Carroll (2008), no entanto, Tan (1996) elege a empatia e não a
simpatia como mecanismo central para a compreensão do engajamento em relação à
personagem, o que não significa que não confira importância à noção de simpatia, mas
que a compreenda como uma espécie de disposição favorável em relação a uma
determinada personagem.
Partindo do pressuposto de que a personagem é uma peça central na construção
dos efeitos das narrativas ficcionais e, ainda, um elemento privilegiado na mediação do
ingresso do público na narrativa ficcional dramática, é cabível afirmar que a

75
Livre tradução de: sympathy, conceived as an emotion involves visceral feelings of distress when the
interests of the object of our pro-attitude are endangered and feelings of elation, closure, and/or
satisfaction when their welfare is achieved. (CARROLL, 2008, p. 177)
76
Segundo Carroll (2008), a maneira mais objetiva para atingir com mais eficácia a interação entre
público e personagens, seria recorrer a parâmetros morais suficientemente abrangentes para serem
compartilhados pelo maior número possível de pessoas, a despeito de suas identidades culturais e perfis
pessoais. A fórmula é bem conhecida de todos: protagonistas cheios de virtude e boas intenções de um
lado contra vilões repulsivos com interesses maquiavélicos de outro. O que nos lembra características
fundamentais do gênero melodrama e da sua conceituação/constituição.
68

compreensão do modo como é construída a resposta emocional do espectador às


personagens de ficção perpassa também pelos modos de concepção dos atributos
físicos, caracterização e das associações com a persona dos atores que as interpretam.

Assim, o espectador não projeta a si mesmo na subjetividade da personagem,


mas apenas assimila a situação vivida por ela, sem perder nunca de vista as diferenças
entre as circunstâncias vividas por ambos, nem a consciência da natureza da sua
experiência como espectador de ficção, acredito eu.
O diálogo dramático é uma enunciação constituida a serviço do drama,
configurando-se não apenas pelas palavras proferidas, mas também por atos, gestos,
pensamentos e omissões (quando fica evidente, para o espectador, a escolha da
personagem em esconder, em omitir, em não dizer).
Pavis (2011, p. 92) afirma que ―[...] o diálogo dramático é geralmente uma troca
verbal entre as personagens [...]‖ e comporta em si algumas obrigações fundamentais
como, por exemplo, caracterizar as personagens que enunciam, caracterizar o mundo
ficcional em que as personagens estão inseridas e ainda e tão importante quando as
demais obrigações: veicular a ação dramática sem perder de vista a progressão e a
gradação dramática.

Sobre o diálogo dramático, Pavis (2011) aponta ainda que:


[...] O diálogo entre personagens é amiúde considerado como a forma
fundamental e exemplar do drama. A partir do momento que
concebemos o teatro como apresentação de personagens atuantes, o
diálogo passa a ser ―naturalmente‖ a forma de expressão privilegiada.
[...] O diálogo parece ser o meio mais apto para mostrar como se
comunicam os locutores: o efeito da realidade é então muito mais
forte, porquanto o espectador tem a sensação de assistir a uma forma
familiar de comunicação entre pessoas. (PAVIS, p. 93)

Nessa espécie de comunicação, uma fala não deve apenas ilustrar os


acontecimentos, mas deve anunciar, provocar, ratificar, retificar, refletir sobre os
movimentos e eventos de uma trama de maneira intensa e precisa. No mundo da ficção,
assim como a personagem está a serviço do enredo, tudo o que ela pensa, fala ou não
fala, deve estar a serviço do enredo também.
O esforço do artista – dramaturgo – é, na instância da criação, fazer com que
suas palavras sejam enunciadas pelas personagens, não como se tivessem sido
preparadas (escritas), mas como se nascessem no exato momento da emissão, fruto da
69

vontade, intenção e motivação das personagens que falam. O dramaturgo desaparece


cedendo lugar à obra que toma vida diante do espectador. Esse momento de execução
da ―mágica‖ – velamento do artista – é também o instante em que toda a elaborada
arquitetura é testada, pois é, justamente, no processo de fruição que se espera alcançar
os efeitos previamente determinados. Para o sucesso de tamanho empreendimento é
necessária dedicada engenharia e planejamento de estratégias, o que examino em
seguida.

2.3 COMPOSIÇÕES DE ESTRATÉGIAS

Uma estratégia pode ser entendida como a organização de um conjunto de


disposições a favor de um propósito. Essa premissa permite-me refletir, ainda, que um
estrategista deve planejar com habilidade e ardil a configuração de uma estratégia,
partindo da combinação de ações disponíveis e a sua aplicabilidade, considerando não
apenas o endereçamento, destinação da estratégia, mas também os objetivos que devem
ser atingidos durante a execução de tal planejamento.
Conduzindo as observações, brevemente apresentadas, para o centro dessa
discussão, é pertinente ressaltar que o poeta77 é também o responsável pela formulação
das estratégias destinadas ao espectador, sujeito, fruidor e destinatário. É para o
espectador que se destinam as estratégias organizadas e é nele que se esperam as
manifestações dos objetivos pelos quais uma estratégia é composta.
Considerando que uma obra de arte pode e deve suscitar no espectador uma
infinidade de efeitos e que os efeitos podem ser atingidos com excelência mediante a
organização das estratégias elaboradas para atingi-los, é válido afirmar que
determinados efeitos exigem o uso de estratégias específicas, como aponta Aristóteles
(2007), ao propor que em cada um dos gêneros de representação, o criador, deveria
buscar o efeito apropriado e buscá-lo prioritariamente sobre qualquer outro tipo de
efeito possível. Isso conduz a interpretação de que a cada gênero corresponda um efeito
(adequado, característico, próprio e conveniente) e que o papel do criador é projetar,
prever e organizar estrategicamente os efeitos no apreciador que são adequados para o
seu gênero de obra.

77
Referindo-me ao criador de uma obra artística, compositor ou ainda, e mais de acordo com a pesquisa, o
dramaturgo.
70

À medida que são delimitados os tipos de efeitos que serão suscitados, exigi-se
do artista o reconhecimento dos recursos disponíveis para atingir tal intento no instante
da criação de tal obra. Esses recursos, compreendidos como ferramentas de uma
linguagem e de uma forma de expressão artística, serão estruturados no momento da
composição e assim configurados como estratégias programadas.
Gomes (2004) faz uma interessante alusão ao mito da Bela Adormecida que se
mostra fortuito para essa reflexão. O pesquisador diz que um efeito é como uma
semente plantada na criação e que desabrocha somente no momento da apreciação. Para
que o desabrochar aconteça de forma plena, é preciso o bom entendimento, por parte do
criador, das especificidades de sua obra e das exigências na elaboração das estratégias
para produção do efeito desejado. Assim, o ato da apreciação se definiria como um
momento de interação plena entre a obra e o sujeito, pois os efeitos pré-determinados
suscitariam no contemplador um encantamento, um despertar, como no beijo dado na
Bela Adormecida fazendo com que no
[...] ato de apreciar, informação, sensação, emoções vêm a efeito, e,
então, uma cifra, um código, um signo, uma elaboração se
transformam plenamente em expressão, um material se converte em
obra, operando sobre a estrutura cognitiva, sensorial e anímica de um
sujeito. (GOMES, p. 57)

É sabido que estratégias visam agenciar recursos para compor a programação de


efeitos pretendidos e previamente estabelecidos. Isso posto, deixo claro que, entre as
muitas estratégias existentes para a programação de efeitos, este trabalho dedica atenção
particular as estratégias utilizadas, pelo dramaturgo, no instante da criação de uma
narrativa dramática ficcional dentro do gênero melodrama. Estratégias essas, pensadas
para estimular o pathos do público, suscitando estados anímicos, como um convite à
experimentação de emoções à medida que – de certa forma – este público se reconheça
em algum aspecto e sentido, através da similitude de uma representação com sua
realidade de valores, depositando credibilidade no que está sendo proposto.
Emocionar a recepção, levando-a às vezes as lágrimas, por exemplo, é um
objetivo na organização de uma estratégia de produção de efeito emocional que exige
uma economia atenciosa e consciente de que não são os aspectos isolados que mostram
a eficácia de uma estratégia, mas sim o conjunto, a unidade desses aspectos e os
mecanismos do seu uso e aplicação.
71

Como afirma Gomes (2004), é o todo que emociona. É a unidade que evoca o
pathos do público à medida que atende, através da representação, ao universo
reconhecível do espectador e a seu campo comum de emoções e sentimentalidade. O
que me permite refletir que, assim sendo, o drama contemporâneo
[...] continua a oferecer, graças à mágica exata e sutil da
representação, um tipo específico de experiência que conjuga
ludicamente o êxtase de um ritual e o prazer de compreender. A
adesão voluntária ao pathos da personagem; a sintonia cruel ou
piedosa com suas palavras e ações; o compartilhar atento desse trajeto
ridículo ou terrível é justamente o espaço do drama, seu jogo e
segredo milenar. Origem do drama, o mito, seja como reencontro ou
utopia, tem ainda o poder de emocionar-nos [...]. (MENDES, 2008,
p.10)

Neste desejo de encantar é que tomo o caminho da criação dramática no capítulo


posto em sequência. Conduzindo e sendo conduzido, no instante autoral, pelo objetivo
de emocionar uma audiência em determinada instância da apreciação, faço uso dos
recursos mais convenientes e elaboro estratégias cabíveis para a proposta de narrativa
melodramática que me ponho a configurar nas próximas páginas.
72

3 UM ENCANTAMENTO:

VERMELHO RUBRO AMOROSO... PROFUNDO, INSISTENTE E DEFINITIVO!


Melodrama de Gildon Oliveira

Personagens: Lurdes Maria; Lúcio Mauro; Maria Amélia; Carlos Manuel e Madame
Nora.

ATO I

CENA 01
Lurdes Maria, aspecto tresloucado, aparece vestida com um velho e surrado vestido de
noiva, desgastado pela ação do tempo. Traz em uma das mãos um pedaço de papel, um
velho fragmento de uma carta. Vagueia sem rumo, a esmo, e elucubra entre a loucura e
a lucidez. Ao fundo, um enfermeiro a observa segurando em uma das mãos uma camisa
de força.
Lurdes Maria. Ah, minha felicidade! Meus dias felizes que não voltam mais! A vida
me foi madrasta. O destino fez de mim uma pobre diaba e sorriu para os meus inimigos.
Víboras traiçoeiras! Maria Amélia era um lobo em pele de cordeiro! Hoje eu conheço a
verdadeira face daquela mulher... Mentirosos... Maria Amélia e o degenerado Lúcio
Mauro... O que restou de mim? Só os queixumes, as lamúrias, os meus tormentos e essa
saudade sem fim. Ah, Carlos Manuel! Aqueles vilões desalmados. Sim. Vilões
abomináveis! Queriam o meu fim e por isso tramaram... Eles foram os culpados por
tudo o que fiz... Carlos Manuel... Vem me ver, querido... Vem buscar-me que ainda sou
tua. Não percebe que sou uma vítima? Sim. A maior de todas. Eu! Ah! Se eu soubesse!
Ela viu. Tentou me avisar. Fui ludibriada... aquele vermelho... tanto sangue... Madame
Nora tinha razão, meu Deus! Madame Nora, tinha razão. As cartas não mentem jamais!
Não mentem... as cartas... não mentem... As cartas não mentem jamais!
Lurdes Maria continua vagueando, porém mais agitada. O enfermeiro aproxima-se,
recolhe o fragmento de papel das mãos dela e começa a atar a camisa de força em
Lurdes Maria.
CENA 02
Lúcio Mauro, parado, de pé, em meio à penumbra. Traz em uma das mãos uma mala.
73

Lúcio Mauro. ...Algumas vezes percebi você me olhando e... parecia um olhar
apaixonado, mas outras vezes, parecia que você tinha interesse por outro alguém. Sei
que não tenho direito de exigir nada, mas peço um posicionamento. Não posso
continuar me iludindo... se existe a possibilidade de que eu tenha meu sentimento
correspondido, vem ao meu encontro na estação, mas se não há chance para realizar o
meu desejo, peço que me perdoe... destrua essa carta e esqueça-se de mim. Lúcio
Mauro.
Lúcio Mauro desaparece em meio à escuridão.
CENA 03
Emocionada, Maria Amélia, sentada no sofá da sala, termina de ler a carta.
Maria Amélia (sofrida). Ai, Lúcio!
Lurdes Maria (fora de cena). Amelinha!
Maria Amélia (recompondo-se). Estou aqui, Lurdinha.
Maria Amélia, rápida, guarda a carta entre os seios. Lurdes Maria entra.
Lurdes Maria. Trago novidades, prima.
Lurdes Maria aproxima-se de Maria Amélia, abraça-a e beija sua face. Tratam-se
como irmãs.
Lurdes Maria. Sou a mulher mais feliz do mundo! A mais feliz de todas.
Maria Amélia. Qual o motivo?
Lurdes Maria mostra o anel que traz no dedo. Frenética, agita a mão em demasiado.
Lurdes Maria. Noiva, Amelinha! Noiva!
Lurdes Maria comemora como uma adolescente. Maria Amélia acompanha com menos
entusiasmo.
Maria Amélia. Felicidades, Lurdinha!
Lurdes Maria. Por que está assim? Estava chorando, Amelinha?
Maria Amélia fala ao mesmo tempo em que se afasta de Lurdes Maria.
Maria Amélia. Alergia.
Lurdes Maria. Pensava nele. Não adianta negar. Eu sei.
Maria Amélia fica, por instantes, absorta.
Lurdes Maria. Esquece aquele ingrato.
Maria Amélia. Não fale assim, Lurdinha.
Lurdes Maria. Falo assim sim. Assim e muito mais. Lúcio Mauro foi criado nesta casa
como um filho e veja só como ele retribuiu. Foi embora sem explicações. Não teve
74

consideração por nenhuma de nós. Tia Júlia, coitada, que Deus a tenha, morreu a
míngua, esperando uma notícia. Já se passaram três anos. Três anos, Amelinha! Não são
três dias.
Maria Amélia. É melhor mudarmos o rumo desta conversa. Você fica sempre
aborrecida.
Lurdes Maria. Não tenho aborrecimento. Tenho mágoa. Isso sim.
Longo silêncio entre elas.
Maria Amélia. Deixa-me ver o anel.
Lurdes Maria volta a ficar frenética e agitar a mão.
Maria Amélia. Mas fica parada, Lurdinha. Sacudindo a mão dessa forma não consigo
ver.
Lurdes Maria estende a mão para Maria Amélia. Maria Amélia posiciona-se atrás de
Lurdes Maria. Falam olhando fixamente para o anel.
Lurdes Maria. Podia jurar que não tínhamos futuro. Carlos Manuel parecia tão
desinteressado no começo do namoro. Sempre tão distante e vago. Cheguei a pensar em
acabar com tudo, mas a minha perseverança se mostrou gratificante. Depois de três anos
de namoro, veio a recompensa.
Maria Amélia. É lindo!
Lurdes Maria. O desejo de toda minha vida. Noiva!
Maria Amélia. Deixa o vestido por minha conta. Faço questão. Será o mais bonito de
todos.
Lurdes Maria. Não poderia esperar outra coisa da minha madrinha.
Maria Amélia. Madrinha? Eu?
Lurdes Maria. Afinal é ou não é minha prima querida?
Maria Amélia. Lurdinha!
Abraçam-se emocionadas.
Maria Amélia. Mais que prima. Uma irmã!
Lurdes Maria. Uma irmã!
Examinam o anel como que hipnotizadas.
CENA 04
Em meio à penumbra, é possível ver um vulto se deslocando. Trata-se de Madame Nora
como uma sombra, uma forma obscura de ser que, trajando longas vestes pretas, da
cabeça aos pés, espalha fumaça produzida pela queima da ramagem que traz nas mãos.
75

Quanto mais esta sombra se desloca, mais a ramagem queima e mais fumaça é
produzida. Atrás da sombra vem uma mulher vestida de noiva, andando devagar,
parecendo flanar, sem destino aparente. Em uma mão leva um buquê de flores e na
outra um punhal. O vestido de noiva é amarelecido e manchado de vermelho. Um longo
véu e uma longa grinalda não permitem reconhecer de quem se trata. Continuam
andando a esmo. A sombra vai abrindo caminho para a passagem da noiva.
CENA 05
Na sala, Lurdes Maria está recostada no sofá com os olhos fechados. Carlos Manuel
entra.
Carlos Manuel. Lurdinha!
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Lurdes Maria estende a mão para Carlos Manuel que vai ao seu encontro. Lurdes
Maria repousa a cabeça no peito de Carlos Manuel, respira lenta e profundamente
antes de falar.
Lurdes Maria. Tive outra vez aquele sonho, Carlos Manuel... Tão horrível! Tão real...
Lurdes Maria levanta-se e fala enquanto afasta-se de Carlos Manuel.
Lurdes Maria (absorta). Uma mulher... não conseguia ver o rosto... Nunca senti tanto
medo. Meu corpo... Não conseguia respirar... Parecia que a vida escapava... Cada vez
que o vulto se aproximava de mim... O vestido de noiva esvoaçava/
Carlos Manuel. Uma noiva?
Lurdes Maria. Alvo... branco... divinal. Quando estava próximo a mim, ergueu um
punhal e, juro por tudo que me é sagrado, aquilo foi uma ameaça. Tenho certeza. Fiquei
ainda mais espantada quando vi uma mancha vermelha espalhar-se... Um vermelho...
rubro... intenso... um presságio de sangue.
Carlos Manuel. Isso é fadiga, coração. Você está cansada com os preparativos do
casamento. Vou falar com Amelinha. Ela pode te auxiliar um pouco mais.
Lurdes Maria. Amelinha já faz mais do que deveria. É um verdadeiro anjo. Deixe-a em
paz.
Carlos Manuel se aproxima de Lurdes Maria e afaga os cabelos dela. Lurdes Maria
aninha-se no ombro de Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Não suporto vê-la assim, Lurdinha!
Lurdes Maria. Ah, meu querido!
Beijam-se.
76

CENA 06
Maria Amélia ao telefone.
Maria Amélia. Sim. Maria Amélia. Quem? Lúcio? Lúcio Mauro é você? Oh, meu
Deus! Como é bom ouvir sua voz depois de todos esses anos! Minhas preces foram
atendidas! Não sabe a saudade... Ah, Lúcio Mauro! Vou buscá-lo. Iremos todos.
Maria Amélia desliga o telefone e tomada de emoção, chora e ri ao mesmo tempo.
Maria Amélia. Bastou ouvir sua voz... e o meu coração...
Após certo tempo, seca as lágrimas e tenta recompor-se.
Maria Amélia. Amelinha, Amelinha, acalme-se, mulher!
Maria Amélia respira fundo repetidas vezes.
Maria Amélia. Mantém sob controle o juízo. Não ouve os palpites do coração, pois este
é insensato.
Maria Amélia respira fundo repetidas vezes.
Maria Amélia. E se Lúcio Mauro perguntar sobre a carta? O que faço?
Maria Amélia sai aflita.
CENA 07
Mais uma vez a noiva misteriosa atravessa o ambiente. Desta vez traz nas mãos um
velho revólver e caminha lenta. Ouve-se a voz de Lurdes Maria.
Lurdes Maria (fora de cena). Tia Júlia, ajude-me! Vem em meu socorro. Ela quer
acabar comigo. Maldita! Noiva, maldita!
A noiva misteriosa continua flanando até desaparecer.
CENA 08
Maria Amélia e Carlos Manuel esperam ansiosos.
Carlos Manuel. Não sei se agimos certo, Amelinha.
Maria Amélia. Foi melhor assim, Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Quando acordar, Lurdinha não vai gostar nem um pouco.
Maria Amélia. É mais prudente poupá-la de emoções fortes. Conheço bem a minha
prima. Ainda guarda muita mágoa.
Carlos Manuel caminha de um lado para o outro inquieto. Maria Amélia aproxima-se e
põe uma mão no ombro dele.
Maria Amélia. Disse antes e volto a repetir, se quiser pode ficar com Lurdinha. Eu
espero Lúcio Mauro. Dou as boas vindas em nome de todos.
Carlos Manuel. Eu fico.
77

Maria Amélia, desconcertada, afasta-se. Silêncio. Maria Amélia caminha de um lado


para o outro. Carlos Manuel tenta acender um cigarro, mas trêmulo, desiste. Ficam
absortos.
Carlos Manuel (off). Cinco anos!
Maria Amélia (off). Outra vez entre nós.
Carlos Manuel (off). Terá muito que explicar.
Maria Amélia (off). Mal pude acreditar quando atendi a ligação.
Carlos Manuel (off). A vontade que tenho é de encher de sopapos a cara daquele
sujeitinho. Uma coisa como essa não se faz... cinco anos!
Maria Amélia (off). Estou tão nervosa!
Carlos Manuel (off). Serei educado. Nada mais que isso. Não merece salamaleques.
Maria Amélia (off). Meu coração está em pandarecos!
Lúcio Mauro aproxima-se por trás de Maria Amélia. Carlos Manuel é o primeiro a vê-
lo.
Carlos Manuel. Lúcio!
Carlos Manuel, rápido, vai em direção a Lúcio Mauro e o abraça forte. Lúcio Mauro
retribui. Ficam assim durante algum tempo. Afastam-se e tomam o rosto um do outro
entre as mãos. Encaram-se.
Carlos Manuel. Cinco anos! Quanto tempo! Quanto tempo! Cinco anos!
Novo abraço. Maria Amélia aproxima-se, tímida. Os homens se separam. Lúcio Mauro
volta-se para ela.
Lúcio Mauro. Amelinha!
Maria Amélia. Lúcio Mauro!
Aproximam-se de braços erguidos um para o outro. Maria Amélia estanca.
Maria Amélia. Tia Júlia morreu.
Lúcio Mauro recolhe os braços, surpreendido pela notícia. Maria Amélia o abraça
forte.
Maria Amélia. Quase morri junto, de tanta saudade.
Lúcio Mauro abraça Maria Amélia, que suspira emocionada.
Maria Amélia. Você voltou...
Maria Amélia o abraça ainda com mais força.
Maria Amélia (off). Voltou para mim.
78

Maria Amélia desmaia. Lúcio Mauro a ampara e a ergue nos braços. Carlos Manuel
abana a moça.
CENA 09
Lurdes Maria, ajoelhada no chão, percebe as mãos ensanguentadas. Tenta limpar-se,
mas não consegue. Aos poucos se vê cercada por uma fumaça. A sombra está atrás
dela. Lurdes Maria tenta esconder as mãos.
Lurdes Maria. Diz o que quer.
A sombra estende para Lurdes Maria uma carta de Tarô. Lurdes Maria examina a
carta.
Lurdes Maria. Não. Nunca!
Lurdes Maria chora e depois rasga a carta.
Lurdes Maria. Desaparece daqui!
Devagar, a sombra afasta-se e desaparece. Lurdes Maria volta a tentar limpar as
mãos.
CENA 10
Na sala, Maria Amélia está deitada no sofá. Lúcio Mauro, sentado ao lado, fica
segurando uma das mãos da mulher. Carlos Manuel permanece, de pé, próximo aos
dois.
Lúcio Mauro. Amelinha continua a mesma... Um anjo!
Lúcio Mauro acaricia os cabelos de Maria Amélia.
Carlos Manuel. Seu retorno foi inesperado. Mais um pouco e eu teria desmaiado
também.
Ambos riem e depois ficam um tempo em silêncio.
Lúcio Mauro. Por que Lurdinha não foi com vocês à estação?
Carlos Manuel (desconcertado). Não sabe da sua chegada.
Carlos Manuel senta-se do outro lado do sofá.
Carlos Manuel. Ainda se aborrece quando citamos o seu nome.
Silêncio. Maria Amélia revira-se um pouco e Lúcio Mauro solta a mão da mulher.
Lúcio Mauro fica absorto.
Carlos Manuel. Lúcio, é bom ter você por perto.
Silêncio novamente.
Lúcio Mauro. Carlos/
Carlos Manuel. Lurdinha e eu vamos nos casar...
79

Lúcio Mauro levanta-se do sofá. Fica afastado e de costas para Carlos Manuel.
Lúcio Mauro. Casar?
Carlos Manuel. Estamos noivos há dois anos.
Silêncio. Carlos Manuel levanta-se e se aproxima de Lúcio Mauro.
Carlos Manuel. Não ficou feliz com a notícia?
Lúcio Mauro (disfarçando). Bastante.
Lúcio Mauro volta-se para Carlos Manuel e o abraça. Novamente se abraçam por um
longo tempo.
Carlos Manuel. Ah, meu caro, senti sua falta!
Lúcio Mauro, delicamente, afasta Carlos Manuel. Maria Amélia desperta e quieta ouve
a conversa dos dois.
Carlos Manuel. Foi difícil suportar a sua ausência. Amelinha ficou deprimida por
meses. Uma morta viva, coitada! Lurdinha encontrou apoio em mim e eu nela. Só assim
foi possível continuar sem vo/
Lúcio Mauro (irônico). Mas conseguiram.
Carlos Manuel (duro). Você virou um fantasma entre nós... Até hoje procuro encontrar
a razão, o motivo para aquele sumiço sem explicação/
Lúcio Mauro. Sem explicação?
Maria Amélia agita-se no sofá e interrompe a conversa.
Maria Amélia (afetada). Lúcio! Lúcio Mauro!
Lúcio Mauro aproxima-se do sofá e estende as mãos para Maria Amélia.
Lúcio Mauro. Estou aqui, Amelinha.
Maria Amélia (melíflua). Então não foi um sonho. Ah!
Maria Amélia atira-se nos braços de Lúcio Mauro e o abraça com força.
Carlos Manuel. Ainda bem que despertou.
Maria Amélia (para Carlos Manuel). Onde está Lurdinha? É melhor ir vê-la.
Carlos Manuel (compreendendo a intenção de Maria Amélia). Tem razão.
Carlos Manuel sai.
Maria Amélia. Preciso falar com você.
Lúcio Mauro. Depois/
Maria Amélia. Tenho que te contar o que fiz, mesmo correndo o risco de ser
desprezada.
Lúcio Mauro. Desprezar você? Eu?
80

Maria Amélia, tomando as mãos de Lúcio Mauro entre as suas, as beija com
entusiasmo e inicia choro.
Maria Amélia. Vai me detestar quando souber/
Lúcio Mauro seca as lágrimas de Maria Amélia e segura o rosto dela entre suas mãos.
Lúcio Mauro. Fala de uma vez, Amelinha.
Maria Amélia. A carta. A carta que me pediu... Eu... Eu... Nunca a entreguei.
Lúcio Mauro retira as mãos do rosto de Maria Amélia, levanta-se e se afasta.
Lúcio Mauro. Não entregou?
Lúcio Mauro, abalado, anda de um lado para outro sem olhar para Maria Amélia.
Maria Amélia. Depois que conversamos, eu não resisti e li. Sofri muito com cada
palavra que você escreveu. Sua declaração de amor ofendia todo o meu sentimento.
Lúcio Mauro. Que sentimento?
Maria Amélia. Ainda tem dúvidas?
Maria Amélia desliza do sofá para o chão e se põe de joelhos diante de Lúcio Mauro.
Maria Amélia. Te amo... com loucura... desde sempre.
Lúcio Mauro (chocado). Meu Deus!
Maria Amélia. Enciumada, tomei aquele papel como uma afronta. Não podia aceitar
que você, meu Lúcio, gostasse de outro alguém além de mim.
Lúcio Mauro. Aquela carta... era uma esperança de felicidade... Você me traiu, Maria
Amélia. Me traiu!
Maria Amélia ergue-se e, rápida, se aproxima de Lúcio Mauro e o abraça.
Maria Amélia. Lúcio!
Lúcio Mauro livra-se do abraço de Maria Amélia com veemência.
Lúcio Mauro. Afaste-se de mim.
Lúcio Mauro afasta-se em direção à porta de saída da casa. Maria Amélia corre e o
impede de sair, ficando entre ele e a porta.
Maria Amélia. Escuta. Por favor!
Maria Amélia titubeia procurando palavras.
Maria Amélia. Olha ao nosso redor... Vê a felicidade que existe aqui. Carlos Manuel e
Lurdinha se amam.
Maria Amélia respira fundo e tenta recompor-se um pouco.
Maria Amélia. Vão se casar.
Cuidadosa, Maria Amélia continua.
81

Maria Amélia. Se mostrasse a carta, abortaria uma história de amor que estava
começando. Sua partida, sei que são duras as minhas palavras, me desculpe, os uniu
ainda mais. Estavam destinados/
Lúcio Mauro. Fui covarde. Deveria ter entregado a carta pessoalmente, ou ainda,
declarar-me sem recorrer a subterfúgios...
Maria Amélia. Agora é tarde.
Lúcio Mauro. Agora é tarde.
Maria Amélia. Eles se amam e serão felizes.
Lúcio Mauro. Serão os únicos felizes... Cada vez que você os vir aos beijos, lembre-se
que aquele lugar poderia ser o meu, mas essa possibilidade me foi roubada...
Maria Amélia. Eu peço, imploro, que me perdoe.
Lúcio Mauro. Nunca.
Cada palavra dita por Lúcio Mauro é um golpe em Maria Amélia. Lúcio Mauro sai da
casa batendo a porta com violência. Maria Amélia, devastada, sai da sala.
CENA 11
Lurdes Maria entra na sala e, um pouco tonta, ampara-se nos móveis. Carlos Manuel
desce as escadas e vai ao seu encontro.
Carlos Manuel. Lurdinha!
Lurdes Maria. Sinto-me estranha.
Carlos Manuel beija a testa de Lurdes Maria.
Carlos Manuel. É efeito do calmante.
Lurdinha, incrédula, encara Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Queria poupá-la, Lurdinha.
Lurdes Maria. De que?
Carlos Manuel afasta-se um pouco, mas Lurdes Maria o segura pela mão.
Lurdes Maria. Diz.
Carlos Manuel. Lúcio retornou.
Lurdes Maria permanece estática.
Carlos Manuel. Eu e Amelinha fomos buscá-lo enquanto você descansava. Penso o que
aconteceria contigo ao vê-lo de supetão. Mesmo Amelinha, ao por os olhos nele,
desmaiou emocionada.
Lurdes Maria. Onde está agora?
Carlos Manuel. Recupera-se/
82

Lurdes Maria. Neste momento, pouco me importo com Maria Amélia. Onde está
Lúcio Mauro?
Lúcio Mauro entra pela porta da frente. Encaram-se em silêncio por um longo tempo.
Lurdes Maria. Quanto tempo esperei pelo dia em que poderia devolver a ofensa que
você fez a minha família.
Lúcio Mauro. Vocês são, por consideração, minha família também.
Lurdes Maria ri. Depois respira fundo e fala em tom amargurado.
Lurdes Maria. Você não sabe o que é consideração.
Carlos Manuel. Não seria melhor adiarmos esta conversa?
Lúcio Mauro e Lurdes Maria falam ao mesmo tempo.
Lurdes Maria e Lúcio Mauro. Não.
Silêncio. Carlos Manuel se retira. Lúcio Mauro se aproxima de Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Sei que me odeia/
Lurdes Maria. O que tenho é rancor. (Pausa) Como foi capaz de causar tanta dor
àqueles que você dizia amar?
Lúcio mauro. Ainda digo que os amo.
Lurdes Maria. Mentira!
Lúcio Mauro. Verdade! Deus sabe o quanto estimo vocês. Acolheram-me quando,
ainda recém nascido, fui abandonado na soleira da porta desta casa. Se não fosse por Tia
Júlia, eu nem sei... Cuidou de mim e me tratou como um filho. Aproximou-me de vocês
e fez com que crescêssemos juntos, como irmãos. Depois do acidente que vitimou os
seus pais e os pais de Amelinha, nos unimos ainda mais, pois tínhamos apenas uns aos
outros. Vocês duas são a minha família. Acredita mesmo que eu seria capaz de renegar
tudo isso?
Lurdes Maria. O que sei é que você escapou daqui como se esta casa fosse uma prisão.
Lúcio Mauro. Se você pudesse colocar de lado toda essa mágoa/
Lurdes Maria. Não posso, Lúcio Mauro. Tia Júlia esperou o seu retorno até o último
dia. Eu estava lá, ao pé da cama, segurando a mão dela enquanto chamava o seu nome...
Silêncio.
Lúcio Mauro. Houve motivos para o meu afastamento. Se ficasse/
Lurdes Maria. O que sua presença poderia causar de tão ruim?
Lúcio Mauro, emocionado, pega em uma mão de Lurdes Maria, a beija e a conduz ao
seu peito de forma acolhedora. Lurdes Maria retira a mão e se afasta sem olhá-lo, já
83

emocionada. Lúcio Mauro caminha para a saída, mas antes de sair para e volta-se
para Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Foi o melhor... Acredite.
Lurdes Maria aos poucos se aproxima. Ficam de frente um para o outro e se encaram
por alguns instantes. Lurdes Maria dá um tapa na face de Lúcio Mauro. Encaram-se.
Lurdes Maria atira-se nos braços de Lúcio Mauro. Abraçam-se por um longo tempo e
choram copiosamente.
CENA 12
No quarto, prostrada no chão, diante do espelho, Maria Amélia sofre.
Maria Amélia. Existe dor maior do que amar e não ser amada em retribuição? Se
pudesse, abriria o peito e arrancaria todo esse sentimento, mas, infelizmente, amor não
se destrói... nem pela força... nem pela fúria... amor... só se consome... até o fim...
Maria Amélia tenta erguer-se, mas nãoconsegue.
CENA 13
Na sala, Carlos Manuel conforta Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Esses pesadelos... são uma provação. Estou chegando ao meu limite.
Carlos Manuel. Por que não procuramos um médico? Ele poderia prescrever/
Lurdes Maria afasta-se um pouco de Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Você tem razão. Preciso sim de uma consulta, mas não de um médico.
Carlos Manuel. Seu caso é puro esgotamento. Um médico/
Lurdes Maria. Pensava da mesma forma que você. Fiz o que estava ao meu alcance e
tudo foi em vão. Uma vidente me ajudará.
Carlos Manuel. Vai cair na mão de enganadores, isso sim. Ouve bem o que digo.
Lurdes Maria. Madame Nora. A cartomante. Tia Júlia acreditava nela. Dizia que
Madame Nora era a melhor de todas. A mais poderosa.
Carlos Manuel. Não me agrada essa ideia, mas faça o que achar melhor. Quero vê-la
bem. Isso é o que me importa.
Lurdes Maria circunda Carlos Manuel com os braços e o beija no rosto.
CENA 14
Lúcio Mauro está subindo as escadas e Maria Amélia desce.
Maria Amélia. Estava à sua procura.
Lúcio Mauro. O que quer?
Maria Amélia estende para Lúcio Mauro um papel roto.
84

Maria Amélia. A carta.


Lúcio Mauro examina o papel e devolve para Maria Amélia.
Lúcio Mauro. Isso agora é passado.
Maria Amélia. Queria encontrar um modo para reparar os meus/
Lúcio Mauro. Não há.
Lúcio Mauro tenta se afastar, mas Maria Amélia segura um de seus braços.
Maria Amélia. Acredite quando digo que me arrependi do que fiz. Se fosse preciso,
daria minha vida para reparar o meu erro e garantir a sua felicidade.
Lúcio Mauro olha para Maria Amélia e depois para a carta nas mãos da mulher e
afasta-se subindo os últimos degraus. Maria Amélia permanece estática com a carta
entre as mãos.
CENA 15
Fim da consulta. Sentadas à mesa estão Lurdes Maria e Madame Nora. Lurdes Maria
seca as lágrimas com um lenço e se recompõe. Madame Nora recolhe as cartas
espalhadas sobre a mesa e pelo chão.
Lurdes Maria. A senhora tem certeza, Madame?
Madame Nora. Vi. Claro como água.
Lurdes Maria. Não poderia ter havido alguma confusão? Um equívoco que seja?
Madame Nora. Sinto muito, minha criança. Uma coisa é nossa vontade, e outra, o
futuro.
Lurdes Maria levanta-se ofendida. Madame Nora continua a recolher as cartas de
forma lenta.
Lurdes Maria. Não acredito em nada do que disse.
Madame Nora. Está em seu direito. Cada um acredita no que suporta, agrada ou
convém.
Lurdes Maria (ofendida). Carlos Manuel... não o conhece... ama-me. Tem adoração
por mim.
Madame Nora aponta para Lurdes Maria uma carta de Tarô.
Madame Nora. Destino, minha criança! Destino!
Lurdes Maria (obstinada). Sou noiva. Ouviu bem? Noiva!
Madame Nora olha para Lurdes Maria com um olhar aterrador.
Madame Nora. Não se casarão.
85

Lurdes Maria, nervosa, abre a bolsa e vasculha o interior. Madame Nora levanta-se
devagar com as cartas nas mãos.
Lurdes Maria. Não deveria ter vindo aqui. Dei ouvidos a uma lunática.
Lurdes Maria retira da bolsa um maço de dinheiro e o atira sobre a mesa.
Lurdes Maria. Está aí o seu dinheiro.
Madame Nora olha para o dinheiro e depois para Lurdes Maria.
Madame Nora. Não quero. Recolhe o dinheiro e mede as palavras.
Silêncio entre elas. Depois de um tempo, Lurdes Maria recolhe as notas.
Lurdes Maria (desabafo em fio de voz). Velha ridícula!
Madame Nora, devagar, caminha em direção à porta de saída e abre. Afasta-se para
dar passagem a Lurdes Maria. Lurdes Maria, com as notas de dinheiro amassadas nas
mãos caminha para a saída, mas estanca na porta e fala de costas para Madame Nora.
Lurdes Maria (profundo desprezo). Adeus, Madame.
Madame Nora. Até breve.
Lurdes Maria. Não pretendo vê-la outra vez.
Madame Nora. Vai me procurar. Eu sei.
Lurdes Maria. Quando sair daqui, esquecerei essas cartas e suas mentiras.
Madame Nora. Ouve um aviso, minha criança. As cartas não metem jamais.
Lurdes Maria vai embora.
CENA 16
Lurdes Maria, sozinha, na sala, reflete sobre os últimos acontecimentos.
Lurdes Maria. Está errada. Eu mereço a felicidade. Mereço, sim.
Lurdes Maria pondo as mãos na cabeça e segurando as têmporas, respira fundo.
Recompõe-se.
Lurdes Maria. Calma, Lurdinha! Calma! Esquece aquela/
Lurdes Maria vê Carlos Manuel aproximar-se e vai ao seu encontro, o abraça forte.
Lurdes Maria. Meu querido!
Lurdes Maria dá pequenos beijos, estalinhos, por todo o rosto de Carlos Manuel.
Carlos Manuel. Como foi?
Lurdes Maria afasta-se e tenta disfarçar o nervosismo.
Lurdes Maria. Um desapontamento. Imagine você que Madame Nora não passava de
uma farsante.
Carlos Manuel. Eu te avisei.
86

Lurdes Maria. Tentou tirar vantagens de mim. Acredita?


Lurdes Maria caminha de um lado para o outro e de vez enquando coloca as duas mãos
na cabeça, nas têmporas, e respira fundo.
Lurdes Maria. Dispôs as cartas e falou coisas sem sentido, sem importância.
Carlos Manuel. Deveria ter ido com você. A mim ela não enganaria.
Lurdes Maria. Não havia necessidade. Imagina! (Aparte) Não quero pensar como teria
sido com você ao meu lado.
Carlos Manuel. Essa cartomante te deixou perturbada.
Lurdes Maria nega.
Carlos Manuel. Está inquieta sim.
Lurdes Maria. Não estou.
Carlos Manuel. Não te conheço?
Lurdes Maria, devagar, retira as mãos da cabeça.
Lurdes Maria. Essas suas observações... elas sim me perturbam.
Carlos Manuel aquiesce. Lurdes Maria aproxima-se de Carlos Manuel e aninha-se nos
braços dele.
Carlos Manuel. Sinto pena da sua Tia Júlia, coitada! Passou a vida sendo ludibriada
por essa Madame Nora.
Lurdes Maria (cínica). Pobre Tia Júlia.
Carlos Manuel a conforta.
CENA 17
Maria Amélia bebe vinho e ouve música. Murmura inúmeras vezes um fragmento do
trecho inicial da canção “Quem eu quero não me quer”. Cada vez mais emocionada.
Tem em uma das mãos um cálice e na outra a carta. Murmura repetidas vezes as
mesmas falas, enquanto amassa a carta contra o peito, cada vez mais alterada por
causa do consumo da bebida. Aos poucos aumenta o volume da voz, efeito da bebida, e
é possível ouvir o que diz.
Maria Amélia. Quem eu quero não me quer... Vazio... vazia... Como o amor fez de
mim algo tão descartável? Dei o meu coração e ele foi rejeitado. Meu peito ficou
assim... vazio... vazia...
Maria Amélia, em um crescente de dor e desabafo, bate no peito repetidas vezes e
termina por manchar sua vestimenta com vinho. Lurdes Maria entra.
Lurdes Maria. Prima!
87

Maria Amélia se posiciona de costas para Lurdes Maria no intuito de que a outra não
perceba o seu estado. Limpa e guarda a carta entre os seios e permanece de costas
para Lurdes Maria.
Maria Amélia. O que houve, Lurdinha?
Lurdes Maria. Tanta coisa...
Lurdes Maria senta-se no sofá e se abandona entre as almofadas. Maria Amélia, tonta,
mas cuidadosa, aproxima-se e senta-se perto de Lurdes Maria, pondo uma almofada no
colo para camuflar a mancha na roupa.
Maria Amélia. Diz o que te perturba. Sou toda ouvidos.
Lurdes Maria. Você sabe dos meus pesadelos, da minha cisma com presságios e tudo
mais, não sabe?
Maria Amélia aquiesce.
Lurdes Maria. Procurei uma vidente. Madame Nora, amiga de Tia Júlia, lembra? Essa
mulher foi o meu erro. Ai, Amelinha! Ouvi coisas que... nem sei.
Maria Amélia estende uma mão para Lurdes Maria em sinal de apoio. Lurdes Maria
segura a mão de Maria Amélia.
Lurdes Maria. Disse a Carlos Manuel que Madame Nora não passava de uma falsária,
mas menti, Amelinha. Menti.
Lurdes Maria respira fundo.
Lurdes Maria. Não quero que ele saiba o quanto as palavras dela me afetaram. Por
mais que eu tente esquecer... não consigo... não consigo...
Lurdes Maria levanta-se, angustiada, e se afasta de Maria Amélia. Maria Amélia a
princípio ouve tudo o que Lurdes Maria diz, mas aos poucos perde o foco e fica absorta
murmurando o que dizia quando estava sozinha.
Lurdes Maria (absorta). ―Madame Nora?‖ indaguei.
Ao fundo aparece Madame Nora, de pé, com as cartas de Tarô entre as mãos.
Embaralha as cartas.
Madame Nora. Vamos entrando, minha criança.
Madame Nora desloca-se caminhando devagar em direção a uma pequena mesa.
Senta-se e estende o braço para a outra cadeira. Lurdes Maria desloca-se, afastando-se
do lugar onde estava com Maria Amélia e caminha na direção de Madame Nora
enquanto fala.
Lurdes Maria (absorta). Ficamos de frente uma para a outra no mais absoluto silêncio.
88

À medida que Lurdes Maria fala, Madame Nora executa exatamente o que é dito por
ela.
Lurdes Maria. Entre nós, cartas de tarô amontoadas sobre a mesa coberta por uma
grande toalha amarelecida. Ela esfregou as mãos e, juro por minha alma, que uma névoa
circundou aquele corpo. Ela tornou-se ágil e habilidosa, manipulou as cartas enquanto
aspirava forte e profundamente. Naquele lugar, estávamos eu, a vidente e mais... uma
presença...
Ficam em silêncio. Encaram-se. Lurdes Maria incomoda-se.
Lurdes Maria. Sou Lurdes Maria, Lurdinha. Sobrinha de Júlia. Sua amiga de/
Madame Nora. Infância. Eu sei. Eu lembro.
Lurdes Maria. Madame Nora/
Madame Nora. Madame, sim? É o suficiente.
Lurdes Maria. Está bem. Madame/
Madame Nora estende sua mão para Lurdes Maria.
Madame Nora. Deixa-me ver. Sua mão. Deixa.
Lurdes Maria coloca sua mão sobre a mão de Madame Nora. Madame Nora examina a
mão de Lurdes Maria por algum tempo sem nada dizer e depois fala, ainda segurando
a mão de Lurdes Maria.
Madame Nora. Tem dormido bem, minha criança? Parece abatida.
Lurdes Maria. Estou exausta. Por isso vim aqui. Preciso/
Madame Nora. Eu sei.
Lentamente Madame Nora solta a mão de Lurdes Maria.
Madame Nora. Eu vi.
Lurdes Maria recolhe a mão devagar e a leva ao peito.
Madame Nora. Tem sono, mas teme dormir/
Lurdes Maria. Pesadelos.
Madame Nora. Por isso tão cansada, tão frágil.
Lurdes Maria. Um espectro me ameaça.
Madame Nora. Alguém atravessa seu caminho ou você está atravessando o caminho de
alguém.
Lurdes Maria. Não entendo.
Madame Nora. Difícil. Eu sei. Mas vai entender.
89

Lurdes Maria. Esses sonhos... tão ruins... não sei explicar, Madame, mas sinto que são
prenúncio de algum mal. Quero saber qual o significado.
Madame Nora. A ignorância é uma dádiva! Uma dádiva! Tem certeza que deseja
saber?
Lurdes Maria permanece estática. Madame Nora aponta as cartas sobrepostas.
Madame Nora. Então parte, minha criança. Parte.
Lurdes Maria reparte a pilha de cartas. Madame Nora sinaliza para que Lurdes Maria
vire uma carta. Ela atende. Madame Nora analisa a carta e depois olha para Lurdes
Maria. Encaram-se em profundo silêncio. Novamente, Madame Nora, sinaliza para que
Lurdes Maria vire mais uma carta, repetindo a análise e a troca de olhares silenciosos.
Uma última vez, Madame Nora sinaliza e repetem todo o procedimento.
Madame Nora. Esse espectro tem rosto?
Lurdes Maria. Um véu o esconde.
Mamade Nora. É uma mulher?
Lurdes Maria. Tenho certeza.
Mamade Nora. Mas não consegue ver o rosto.
Lurdes Maria. Não consigo.
Madame Nora. Uma pena! É sempre bom olhar nos olhos de quem nos encara. Os
olhos sempre falam mais do que a boca. Um espectro sem rosto tem muito a esconder.
Madame Nora revira mais uma carta, respira fundo e fecha os olhos. Fala como se
estivesse em breve transe com a mão depositada sobre a carta.
Madame Nora. O passado está voltando... e com ele vem um segredo... uma verdade
escrita em confissão. Cuidado, minha criança!
Lurdes Maria. O que?
Madame Nora. Uma mancha.
Lurdes Maria. Madame!
Madame Nora. Marca o fim da sua felicidade... Uma mancha rubra...
Lurdes Maria. A senhora está me assustando.
Madame Nora. Vermelha como sangue...
Lurdes Maria. Meu Deus!
Madame Nora. Não tente afastar o que está destinado a ficar junto.
Lurdes Maria. Mas eu nada fiz!
Madame Nora. Esse casamento...
90

Lurdes Maria. Meu casa/


Madame Nora. Não acontecerá.
Lurdes Maria. Não!
Madame Nora. O coração do noivo não te pertence.
Lurdes Maria, violenta, bate a mão na mesa e espalha as cartas por todos os lugares.
Lurdes Maria. Já chega!
Madame Nora sai do transe e olha para Lurdes Maria com espanto.
Lurdes Maria (colérica). Pare já com este abuso.
Longo silêncio entre elas. Madame Nora vê as cartas espalhadas por todo o lugar.
Lurdes Maria se recompõe.
Madame Nora. Ouvir é muito difícil, minha criança. Muito difícil/
Lurdes Maria (Aparte). Palavras. Apenas isso. Palavras.
Continuam sentadas e em silêncio. Lurdes Maria não consegue se conter e chora. Seca
as lágrimas com um lenço em um esforço para controlar-se. Madame Nora recolhe as
cartas espalhadas sobre a mesa. Lurdes Maria, devagar, levanta-se e caminha,
afastando-se do lugar onde está Madame Nora e aproximando-se do lugar onde está
Maria Amélia. Maria Amélia continua sentada no sofá, segurando uma almofada no
colo e murmurando absorta. Lurdes Maria senta-se ao lado da prima e também fala
absorta.
Lurdes Maria. Desde então... tudo o que ela disse... não consigo...
Maria Amélia. Vazia... vazio...
Lurdes Maria. Como uma cruz... um martírio...
Lurdes Maria chora copiosamente e deita-se repousando a cabeça no colo de Maria
Amélia. Maria Amélia, ao sentir o peso da prima, parece desperta de seu estado aéreo
e tenta confortá-la, acariciando os seus cabelos.
Maria Amélia. Ah!
Lurdes Maria. Será essa a minha sina, Amelinha? Um sofrimento que não se acaba?
Maria Amélia. Não.
Lurdes Maria. Parecia tão certa em decifrar meus sonhos e fazer premonições. Não há
instante em que não pense em tudo o que ouvi. No segredo do passado, na verdade
escrita em/
Maria Amélia. O que?
Lurdes Maria. Madame Nora disse...
91

Maria Amélia. Verdade escrita? (Aparte) A carta, meu Deus! A carta!


Lurdes Maria. ... Que um segredo do passado/
Maria Amélia, nervosa e rápida, levanta-se obrigando assim Lurdes Maria a erguer-se
também. Lurdes Maria, apoiada no sofá, fica de uma maneira que seu campo de visão
alinha-se à altura da mancha na vestimenta de Maria Amélia. Lurdes Maria vê a
mancha e fica boquiaberta.
Maria Amélia. Não me sinto bem.
Lurdes Maria. Sua roupa, Amelinha? Tem uma/
Maria Amélia. Vinho, Lurdinha. Um líquido perigoso!
Lurdes Maria (aparte). Mancha.
Maria Amélia sai, meio trôpega.
Lurdes Maria. A mancha!
Lurdes Maria levanta-se e caminha desorientada.
Lurdes Maria. Não pode ser.
Lurdes Maria põe as mãos na cabeça e respira fundo.
Lurdes Maria. Vermelha... rubra... intensa... A noiva sem rosto é Maria Amélia. Queria
ser surda para não ouvir as palavras que saem da minha boca, mas não sou. Maria
Amélia, minha amiga, minha prima, a quem considerei uma irmã, é a ameaça que paira
sobre a minha felicidade.
Nova onda de emoção manifestada através de choro copioso. Depois de certo tempo,
Lurdes Maria tenta se conter.
Lurdes Maria. Endurece o coração, Lurdes Maria, porque a partir de agora, mulher,
você será capaz de tudo. De tudo.
Lurdes Maria coloca as mãos nas têmporas e respira fundo repetidas vezes. Depois,
devagar, abaixa as mãos e, resoluta, deixa a sala.

ATO II

CENA 18
Carlos Manuel, sentado, bebe. Lúcio Mauro entra e, ao vê-lo, tenta sair, mas a fala de
Carlos Manuel o impede.
Carlos Manuel. Até quando?
Lúcio Mauro. Não estou/
92

Carlos Manuel. Você sempre encontra uma maneira de/


Lúcio Mauro. Não há nada para conversarmos, Carlos.
Carlos Manuel. Éramos amigos, Lúcio, cúmplices, e agora olhe para nós. Parecemos
dois estranhos.
Lúcio Mauro. Não é fácil, depois de todos esses anos, retornar e ver que/
Carlos Manuel se aproxima de Lúcio Mauro.
Carlos Manuel. Sei por que você foi embora.
Carlos Manuel e Lúcio Mauro encaram-se por certo tempo.
Carlos Manuel. Ninguém pode controlar os sentimentos, Lúcio. Lurdinha não tem
culpa de amar a/
Lúcio Mauro. Não vale a pena discutir o passado/
Carlos Manuel. Seremos parentes.
Lúcio Mauro fala enquanto sai.
Lúcio Mauro. É verdade. Seremos parentes. Não precisa existir amizade onde já existe
parentesco.
Lúcio Mauro sai. Carlos Manuel enche o copo com bebida e bebe tudo de uma única
vez.
CENA 19
Maria Amélia está ajoelhada no chão e borda a barra do vestido de noiva de Lurdes
Maria, que está dependurado em um manequim para costura. Lurdes Maria entra e,
silenciosa, observa o trabalho de Maria Amélia. Maria Amélia percebe a presença de
Lurdes Maria e se assusta.
Maria Amélia. Ai, que susto!
Lurdes Maria. Sou apenas eu: Lurdinha!
Maria Amélia. Estava tão entretida que nem percebi você se aproximando.
Lurdes Maria se aproxima e examina o vestido.
Maria Amélia. Não está uma beleza?
Lurdes Maria. Um primor!
Maria Amélia continua a executar o trabalho, ajoelhada. Lurdes Maria a circunda.
Lurdes Maria. Fico tocada, vendo tanto esmero.
Maria Amélia. Faço com muito gosto.
Lurdes Maria. E nem é seu o casamento.
Maria Amélia para de bordar e olha para o vestido. Alisa o tecido, admirada.
93

Maria Amélia. Mas estou me dedicando como se fosse eu a noiva.


Lurdes Maria. Mas não é.
Maria Amélia. Não sou.
Maria Amélia continua fascinada pelo vestido.
Maria Amélia. Deslumbrante! Vai ver quando vesti-lo, Lurdinha.
Lurdes Maria. Não o vestirei.
Maria Amélia fala, despertando do estado hipnótico.
Maria Amélia. O que?
Lurdes Maria. Este vestido. Não o usarei.
Maria Amélia olha incrédula para Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Não me trará sorte.
Maria Amélia. Ora que tolice!
Lurdes Maria. Pode ser uma bobagem, mas ainda assim não o quero.
Maria Amélia levanta-se, rápida e indignada.
Maria Amélia. O que tem este vestido? Aponta um defeito, Lurdinha. Um só.
Lurdes Maria. Não há defeitos.
Maria Amélia. Justamente. É perfeito!
Lurdes Maria. Estou decidida.
Maria Amélia. Você e suas implicâncias! Quando o vir pronto, sei que mudará de
ideia.
Maria Amélia volta a ajoelhar-se e a bordar a barra do vestido. Lurdes Maria tenta
impedi-la cada vez com mais força e Maria Amélia insiste no bordado. Uma disputa.
Maria Amélia. Falta pouco.
Lurdes Maria. Largue isso.
Maria Amélia. Mas está quase/
Lurdes Maria. Não quero que faça/
Maria Amélia. É meu trabalho.
Lurdes Maria. Pare. Já disse.
Maria Amélia. Sou a madrinha!
Lurdes Maria. Não é.
Lurdes Maria puxa o vestido e consegue tirá-lo das mãos de Maria Amélia.
Lurdes Maria. Não é mais nada pra mim.
Maria Amélia. Qual é o seu problema?
94

Lurdes Maria, irascível, rasga o vestido.


Lurdes Maria. Você, Maria Amélia. Você é o meu problema.
Maria Amélia. Lurdinha!
Lurdes Maria recupera o fôlego enquanto Maria Amélia, ainda ajoelhada, recolhe os
pedaços do vestido que caíram próximos a ela.
Lurdes Maria. Quem olha... com este jeitinho doce, nem pode imaginar quão
enganadora é.
Maria Amélia. Eu?
Lurdes Maria avança em direção à Maria Amélia, que se afasta arrastando-se no chão.
Lurdes Maria. Cínica!
Maria Amélia. Perdeu o juízo?
Maria Amélia consegue levantar-se e as duas mulheres posicionam-se em lados
opostos, uma de frente para a outra, tendo o manequim entre elas.
Lurdes Maria. Te dei toda minha amizade e consideração. Para mim sempre foi mais
do que uma prima. E é assim que retribui?
Maria Amélia. Do que você está falando?
Lurdes Maria. Sei dos seus intentos, mas ouve bem o que digo: Não vai conseguir.
Lurdes Maria, rápida, tenta agarrar Maria Amélia, mas ela escapa. Ambas circundam
o manequim em um jogo de caça.
Lurdes Maria. Carlos Manuel é meu. Ouviu bem? Meu noivo. Meu e de mais
ninguém.
Maria Amélia. Acha que eu o quero? Absurdo!
Lurdes Maria. Traiçoeira! Querendo roubar meu homem. Fazendo-se de amiga quando
na verdade não passa de uma vagabun/
Maria Amélia (extremamente ofendida). Veja lá como fala comi/
Lurdes Maria (descontrolada). Eu falo como eu quiser. (Pausa breve) Nunca poderia
imaginar que seu despeito chegaria a tal ponto. Odeia-me porque é de mim que Lucio
Mauro gosta. Foi a mim que ele amou e ainda ama.
Maria Amélia. Você não sabe o que diz. Não faz ideia/
Lurdes Maria. Com Carlos Manuel você não fica.
Maria Amélia. Não o quero.
Lurdes Maria. Falsa!
Maria Amélia. Seu noivo para mim é lixo, sobra e bagaço.
95

Lurdes Maria. Veja lá como fala do/


Maria Amélia. Cada um fala como bem quiser, não é assim?
Encaram-se.
Lurdes Maria. Lúcio Mauro nunca te quis e nem vai querer. Vai terminar sozinha,
Maria Amélia. Largada e esquecida em algum canto como uma mobília velha e ridícula.
Maria Amélia. Não me deseje mal, Lurdes.
Lurdes Maria. Essa será a minha alegria.
Maria Amélia. Se soubesse o que fiz/
Lurdes Maria. Não me interessam as suas mentiras.
Maria Amélia. Ingrata! Pois se me deseja tanto mal...
Maria Amélia recolhe pedaços do vestido, rasga-os em pedaços menores e os atira em
Lurdes Maria enquanto fala.
Maria Amélia. Você vai cair, Lurdes Maria. Vai cair. Assim como previu Madame
Nora, assim também é meu desejo. Esse casamento não se realiza.
Lurdes Maria investe contra Maria Amélia e lhe dá um tapa no rosto.
Lurdes Maria. Cala a boca!
Maria Amélia, aturdida, cai no chão.
Lurdes Maria. Acostume-se que este é o seu lugar.
Maria Amélia. Não mereço/
Maria Amélia ergue-se devagar e de costas para Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Merece uma surra.
Maria Amélia. Se tocar em mim outra vez... te deixarei cega e aleijada.
Lurdes Maria. Veja só quanta ousadia! Quanta audácia!
Maria Amélia. Não devia mexer comigo, Lurdes Maria. Eu furiosa, fico manifestada...
Satânica.
Lurdes Maria. Quero você fora da minha casa.
Maria Amélia. Essa casa também é minha. Daqui eu não saio.
Lurdes Maria. Vai sair. Ainda que arrastada pelos cabelos.
Maria Amélia fala ao mesmo tempo em que apanha uma tesoura de costura.
Maria Amélia. Um cadáver não pode arrastar ninguém.
Maria Amélia ameaça avançar em direção à Lurdes Maria, mas esta, rápida,
desgrenha os cabelos e rasga as roupas. Bate-se e arranha-se ao mesmo tempo em que
grita descontrolada.
96

Lurdes Maria. Carlos! Lúcio! Acudam! Amelinha enlouqueceu.


Carlos Manuel e Lúcio Mauro entram no exato instante em que Maria Amélia avança
ameaçadora na direção de Lurdes Maria. Carlos Manuel segura Lurdes Maria e Lúcio
Mauro, Maria Amélia.
Maria Amélia. Me larga!
Lúcio Mauro fala, tomando das mãos de Maria Amélia a tesoura.
Lúcio Mauro. Me dá isso.
Carlos Manuel. O que deu em vocês?
Lurdes Maria. Ela ia me atacar.
Carlos Manuel. Amelinha?
Lúcio Mauro. Por quê?
Lurdes Maria. Inveja!
Carlos Manuel. Não acredito.
Lurdes Maria. Eu a quero longe daqui.
Maria Amélia. Ouve bem o que digo, Lurdes Maria. A partir de hoje tem em mim uma
inimiga.
Lúcio Mauro. Maria Amélia!
Lurdes Maria. Isso, demônia! Mostra sua cara!
Maria Amélia. Esquece nosso parentesco e vigia sua retaguarda/
Lurdes Maria. Qualquer que seja o seu intento, exigirá algo que sempre lhe faltou:
coragem.
Maria Amélia. Ah sua/
Nova investida de Maria Amélia contra Lurdes Maria e novamente os homens exercem
a contenção.
Lúcio Mauro. Já chega.
Lúcio Mauro tenta retirar Maria Amélia, que mostra resistência.
Lurdes Maria. Agora sabem quem é Maria Amélia!
Lúcio Mauro consegue retirar Maria Amélia que sai vociferando.
Maria Amélia (fora da cena). Vai se arrepender, Lurdes Maria. Vai se arrepender! Não
me conhece. Não sabe do que sou capaz.
Lurdes Maria se desvencilha de Carlos Manuel e, transtornada, desfere pequenos
golpes nas almofadas e as morde entre gritos agudos de raiva. Carlos Manuel tenta
acalmá-la.
97

Carlos Manuel. Respira fundo, meu bem, e se acalma.


Lurdes Maria respira profundamente.
Carlos Manuel. Explica pra mim o que aconteceu aqui?
Lurdes Maria. Perdi as estribeiras.
Carlos Manuel. Mas com Amelinha? Logo ela que é um an/
Com violência, Lurdes Maria segura o rosto de Carlos Manuel entre as mãos e fala
encarando-o.
Lurdes Maria. Ouve bem o que digo: Maria Amélia não é gente, Carlos Manuel. Não
se iluda. Maria Amélia não é gente!
Carlos Manuel se desvencilha das mãos de Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Ela queria nos separar.
Carlos Manuel. Não pode ser.
Lurdes Maria. Não estou dizendo? Queria por fim em nossa história. Invejosa!
Breve silêncio.
Lurdes Maria. Pedirei a Ana Joaquina que seja minha madrinha.
Carlos Manuel. Mas você não a suporta.
Lurdes Maria. Ela não sabe disso.
Carlos Manuel apanha alguns pedaços do vestido e os mostra a Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Farei outro.
Carlos Manuel. Há tempo?
Lurdes Maria. Casarei nua, se preciso for, mas casarei. Não nadei tanto para morrer na
praia. Quero meu anel, aqui, estampado no dedo como uma medalha. Ou me caso com
você, Carlos Manuel, ou terminarei meus dias como uma doida, uma desvairada. Está
me ouvindo?
Carlos Manuel aquiesce amedrontado enquanto recolhe os restos do vestido de noiva e
tenta organizar o lugar.
Lurdes Maria (absorta). Se acha que vou ficar quieta, engana-se. Também posso ser
ruim.
Lurdes Maria levanta-se e caminha até Carlos Manuel, o abraça com força e depois
segura a cabeça dele entre suas mãos e o encara.
Lurdes Maria. Você me ama, Carlos?
Carlos Manuel. Lurdinha!
Lurdes Maria. Ama?
98

Carlos Manuel. Oh, minha filha, que pergunta?


Lurdes Maria. Diz.
Carlos Manuel. Eu gosto de você. Gosto muito.
Lurdes Maria. Gosta?
Carlos Manuel. Amo.
Lurdes Maria. Às vezes penso que...
Carlos Manuel. Lurdinha!
Lurdes Maria. Acredite quando digo que tenho loucura por você, meu filho. Loucura!
Não duvide nunca do meu sentimento. Por você, sou capaz de tudo. Entende? De tudo.
Lurdes Maria beija Carlos Manuel com volúpia.
CENA 20
Com força, Lúcio Mauro tenta conter Maria Amélia.
Lúcio Mauro. Já chega, Amelinha.
Maria Amélia. Ela me ofendeu. Disse que eu tinha interesse por Carlos Manuel, aquele
estúpido.
Lúcio Mauro segura Maria Amélia pelos ombros com força.
Lúcio Mauro. Não fale assim de Carlos Manuel. Ele é melhor do que você.
Lúcio Mauro solta Maria Amélia que se recompõe. Silêncio entre eles.
Maria Amélia. Estava bordando o vestido de noiva quando ela apareceu e me atacou
com mentiras. Nunca olhei com interesse para Carlos Manuel... É de você que eu gosto.
Lúcio Mauro permanece calado, sem olhar para Maria Amélia.
Maria Amélia. Lurdes Maria me agrediu... Não pude mais suportar... Perdi o controle.
Lúcio/
Lúcio Mauro. É melhor que você se afaste por um tempo. Vocês duas estão exaltadas
demais.
Maria Amélia. Esta casa é tão minha quanto dela.
Lúcio Mauro. Vou encontrar um lugar para você.
Maria Amélia. Está me castigando pelo que te fiz?
Lúcio Mauro. Se tomasse isso como vingança, seria igual a você ou pior.
Maria Amélia. Mesmo sabendo que fui injustiçada, escolhe apoiá-la/
Lúcio Mauro. Não tomo partido de ninguém.
Maria Amélia. Atende a vontade daquela doente e me escorraça da minha própria casa.
Lúcio Mauro. A chácara é o melhor lugar para você ficar por enquanto.
99

Maria Amélia. Não posso.


Maria Amélia levanta-se e, chorosa, se aproxima de Lúcio Mauro.
Maria Amélia. Depois do acidente... nunca mais voltamos àquele lugar. Nem eu nem
Lurdes Maria. Não se lembra que passamos o fim de semana na chácara, antes do
acidente? Jurei não retornar...
Lúcio Mauro. Logo acontecerá o casamento e Lurdinha estará mais calma. Conversarei
com ela e tentarei reparar essa situação.
Maria Amélia segura a mão de Lúcio Mauro.
Maria Amélia. Lúcio!
Lúcio Mauro. Não se preocupe. Irei vê-la.
Maria Amélia. Faria isso por mim, mesmo depois de tudo o que/
Lúcio Mauro. Prometo.
Lúcio Mauro sai deixando Maria Amélia sozinha.
CENA 21
Madame Nora destila substâncias, essências e elixires. Lurdes Maria entra devagar e
sorrateira. Madame Nora está de costas para Lurdes Maria e assim permanece.
Lurdes Maria. Madame!
Madame Nora não responde e continua a manipular as substâncias. Lurdes Maria se
aproxima um pouco.
Lurdes Maria. Sou eu, Lurdes Maria.
Madame Nora. Eu sei quem você é.
Lurdes Maria. A porta estava aberta.
Madame Nora. Eu te esperava.
Lurdes Maria se aproxima ainda mais de Madame Nora, que continua o trabalho sem
olhar para Lurdes Maria.
Madame Nora. Veio como eu disse que viria.
Lurdes Maria. Sim.
Silêncio.
Lurdes Maria (constrangida). Em nosso último encontro fui impulsiva demais e
acabei/
Madame Nora. Isso agora é passado.
Lurdes Maria. Peço perdão, Madame, eu não deveria/
Madame Nora. Deixemos o passado no lugar dele.
100

Silêncio.
Madame Nora. Não veio aqui apenas para se desculpar.
Lurdes Maria. Vim pedir auxílio.
Madame Nora. Nada mudou, minha criança. Não irá gostar do que eu verei e nem do
que falarei.
Lurdes Maria. Não vim em busca de palavras nem da sua vidência.
Madame Nora. O que deseja então?
Lurdes Maria observa as ervas, os frascos e os líquidos. Madame Nora interrompe a
tarefa e observa Lurdes Maria.
Madame Nora. Parece que a vida deu uma volta no tempo e Júlia está na minha frente
outra vez... pedindo, insistindo, implorando para que eu manipule minhas ervas, maneje
minhas essências, macere sua obsessão numa poção de encantamento.
Madame Nora circunda Lurdes Maria e depois apanha algumas ervas e substâncias de
vários frascos e as leva ao seu local de trabalho.
Lurdes Maria. Na agonia da morte, Tia Júlia delirava muito e contou sobre a paixão
desenfreada... que pediu sua ajuda...
Madame Nora. Ela não disse para quem era a poção. Se eu soubesse...
Lurdes Maria. Falou do bebê...
Madame Nora. Um filho não pode pagar pelos erros dos pais. Fiz o que julguei melhor.
Lurdes Maria. Quando o efeito da poção/
Madame Nora. ―Um sentimento cativo não perdura‖, eu disse, mas não me ouviu.
Estava tão descontrolada que não ouvia mais nada e nem ninguém. Roubou uma de
minhas poções...
Lurdes Maria. Foi um acidente, uma fatalidade.
Madame Nora. Entrou por aquela porta parecendo um fantasma. Gritava e se batia
arrependida pelo que fez. Por causa dela, você e sua prima ficaram órfãs.
Lurdes Maria. Culpou-se até o último instante por ter dado a poção que entorpeceu os
sentidos do meu pai enquanto ele dirigia.
Madame Nora. ―Queria ter sido avisada‖, ela disse. Mas eu avisei, minha criança, eu
avisei. (absorta) Toda escolha tem um preço... e a vida cobra... de um jeito ou de
outro...
Lurdes Maria. Minha história é diferente, Madame. Carlos Manuel me ama... Tenho
certeza.
101

Madame Nora. Então, minha criança, o que veio fazer aqui?


Silêncio. Madame Nora retoma a tarefa, manipulando as substâncias e depositando um
líquido azul em pequenos frascos. Depois, Madame Nora, despeja um pouco do líquido
azul em um copo e mistura com água.
Madame Nora. Não há como se ter certeza do sentimento do outro. Aí está a causa de
muito sofrimento.
Lurdes Maria emociona-se. Madame Nora dá o copo para ela.
Madame Nora. Bebe. Vai te acalmar.
Lurdes Maria bebe tudo de uma só vez. Longo silêncio entre elas. Lurdes Maria respira
profundamente.
Lurdes Maria. Madame!
Madame Nora. Não posso. Não dessa vez.
Lurdes Maria e Madame Nora encaram-se durante um longo tempo.
CENA 22
Lurdes Maria está parada, absorta, em meio à penumbra.
Lurdes Maria. Quem conhece sua verdadeira natureza? Somente aqueles que estiveram
diante de escolhas difíceis ou de situações extremas. Somente esses e ninguém mais.
Lúcio Mauro entra.
Lúcio Mauro. Lurdinha! Procurava-me?
Lurdes Maria. Preciso de sua ajuda.
Lúcio Mauro. O que quer?
Lurdes Maria aproxima-se de Lúcio Mauro e segura o rosto dele entre suas mãos.
Lurdes Maria. Ah, Lúcio!
Lurdes Maria o beija delicadamente nos lábios. Lúcio Mauro fica constrangido.
Lurdes Maria. Tenho quase tudo o que preciso para ser feliz.
Lúcio Mauro. O que falta, Lurdinha?
Lurdes Maria. Você sabe.
Lúcio Mauro, delicadamente, se afasta de Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Ela não é sua rival.
Lurdes Maria. Deseja tudo o que me pertence.
Lúcio Mauro. Maria Amélia tem desprezo por Carlos Manuel e adoração por mim.
102

Lurdes Maria. Isso foi antes. Tudo mudou logo após o meu noivado. Assim que Maria
Amélia viu o meu anel... os olhos dela arderam de inveja... Depois disso, nunca mais foi
a mesma. Acredito que ela amou você um dia, mas agora deseja Carlos Manuel/
Lúcio Mauro. Isso é loucura/
Lurdes Maria. Quer conquistá-lo pelo prazer de me ver sofrer. Por não poder ser feliz,
ela não permitirá que eu seja.
Lúcio Mauro. Está sendo injusta.
Lurdes Maria (Aparte). A justiça é uma ilusão moldada por interesses particulares.
Lúcio Mauro. Você não sabe mais o que diz. Está obcecada por esses sonhos e
presságios.
Lurdes Maria. Sei bem o que digo: quero vê-la morta.
Lúcio Mauro. Lurdinha! Não permitirei/
Lurdes Maria. Não só permitirá como fará parte.
Lúcio Mauro. Jamais!
Lurdes Maria. Se quiser saber o nome de seus pais, você fará exatamente o que eu
disser.
Lúcio Mauro lança um olhar incrédulo para Lurdes Maria.
Lurdes Maria. Eu sei. Tia Júlia me contou tudo. Uma longa confissão no leito de
morte.
Lúcio Mauro. Por que eu?
Lurdes Maria. Quero que Maria Amélia veja a vida sendo arrancada do seu corpo
pelas mãos do homem que ela amou um dia e que nunca pode correspondê-la, pois
amava a mulher que ela mais detesta, a sua prima.
Lúcio Mauro reage às palavras de Lurdes Maria como se despertasse do estado de
torpor.
Lúcio Mauro. Está enganada/
Lurdes Maria. Não se dê ao trabalho de negar o que é óbvio. O seu retorno confirmou
minhas desconfianças do passado. Sei o que sente por mim e que esse sentimento foi a
causa da sua partida e é o motivo da sua frieza com Carlos Manuel. Você sacrificou
todo o seu amor para que eu fosse feliz ao lado do homem que escolhi. O seu esforço
não foi em vão. Eu e Carlos Manuel nos amamos muito e seremos felizes quando Maria
Amélia desaparecer de uma vez por todas.
Lúcio Mauro. Não a matarei.
103

Lurdes Maria. Assim que você fizer e me trouxer provas, direi os nomes dos seus pais.
Lúcio Mauro (fio de voz). Meus pais!
Lurdes Maria circunda Lúcio Mauro e depois se afasta saindo do lugar.
Lúcio Mauro. Quando você se tornou assim... tão má?
Lurdes Maria fala de soslaio.
Lurdes Maria. Ah, Lúcio! Má, eu sempre fui, meu querido, mas só agora precisei
mostrar-me... sincera.
Lurdes Maria sai. Lúcio Mauro fica só.
CENA 23
Maria Amélia está ajoelhada diante de um velho baú. Retira dele velhas roupas de
bebê, um punhal e um diário. Abre e lê um trecho localizado entre as páginas finais.
Maria Amélia. “... meu bem mais precioso e minha razão de viver. Não posso me
separar dele. Não posso. A ideia de Nora é minha esperança de mantê-lo perto de mim
sem levantar suspeitas...” Pobre Tia Júlia!
São ouvidas batidas na porta.
Lúcio Mauro (fora de cena). Amelinha!
Maria Amélia, rápida, vai abrir a porta. Lúcio Mauro entra. Maria Amélia permanece
todo o tempo com o diário na mão.
Maria Amélia. Cumpriu sua palavra.
Maria Amélia o abraça.
Maria Amélia. Está tremendo.
Lúcio Mauro a afasta delicadamente e caminha aproximando-se do baú.
Lúcio Mauro. ―Uma boa índole molda o caminho de um homem‖. Tia Júlia vivia
repetindo. Lembra? Acreditei tanto nisso que fui embora quando percebi que meus
sentimentos poderiam ferir pessoas que tanto amo. Sofri muito, mas nada comparado ao
vazio que carrego comigo desde sempre.
Maria Amélia. Do que está falando?
Lúcio Mauro (sofrido). Não conheço meus pais.
Lúcio Mauro apanha o punhal e o segura com firmeza e não encara Maria Amélia.
Maria Amélia. Lúcio!
Maria Amélia afasta-se devagar e, no mesmo ritmo, é perseguida por Lúcio Mauro.
Lúcio Mauro. Quero saber quem são eles.
104

Lúcio Mauro avança em direção a Maria Amélia, que se defende usando o diário como
escudo.
Maria Amélia. Não!
Black out.

ATO III

CENA 24
Lurdes Maria encontra-se com Lúcio Mauro em um lugar ermo.
Lurdes Maria. Como foi?
Lúcio Mauro. Rápido.
Lurdes Maria. Então?
Lúcio Mauro. Morta.
Lúcio Mauro entrega fotografias para Lurdes Maria. Lurdes Maria analisa as
fotografias detidamente.
Lurdes Maria. Quanto sangue! Tão vermelho!
Lurdes Maria devolve as fotografias.
Lurdes Maria. E o corpo?
Lúcio Mauro. Só eu sei onde está.
Lurdes Maria abraça-se a Lúcio Mauro, que não corresponde.
Lurdes Maria. Ah, Lúcio!
Lúcio Mauro afasta Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Quem são meus pais?
Lurdes Maria. Lúcio...
Lúcio Mauro. Diz.
Lurdes Maria afasta-se e Lúcio Mauro rápido a segura.
Lúcio Mauro. Mentiu pra mim.
Lúcio Mauro aperta o pescoço dela com força, ao mesmo tempo em que se curvam para
o chão em uma movimentação única, à medida que Lurdes Maria vai desfalecendo.
Lurdes Maria. Sou sua irmã.
Lúcio Mauro solta Lurdes Maria e levanta-se rápido. Lurdes Maria fala, recuperando o
fôlego.
105

Lurdes Maria. Temos o mesmo pai.


Silêncio. Lúcio Mauro tenta conter sua emoção.
Lúcio Mauro. E minha mãe?
Lurdes Maria. Tia Júlia.
Lúcio Mauro. Estão/
Lurdes Maria. Mortos. Sinto muito.
Lúcio Mauro sofre. Lurdes Maria fala enquanto ergue-se.
Lurdes Maria. Nosso pai foi o grande amor da vida de Tia Júlia e sua desgraça. Ela
ficou na chácara durante a gestação e, depois do nascimento, auxiliada por Madame
Nora, simulou o abandono.
Lúcio Mauro. Por quê?
Lurdes Maria. Era o único jeito de mantê-lo próximo sem levantar suspeitas. Se minha
mãe descobrisse que a própria irmã... Poderia fazer algum mal a você.
Lúcio Mauro. Ele sabia?
Lurdes Maria. Nunca desconfiou de nada até o dia em que reparou o sinal que você
tem atrás da orelha esquerda. Ele tem o mesmo sinal. Assim como eu. Fez exames e
descobriu a verdade. Confrontou Tia Júlia, mas logo depois teve o acidente e...
Lúcio Mauro. Tia Júlia os/
Lurdes Maria. Não de forma direta. Ela roubou um elixir de Madame Nora. Uma
mistura de ervas que na dosagem errada... Meu pai... nosso pai, entorpecido provocou a
colisão do carro.
Lúcio Mauro. Por isso ela cuidou de nós três.
Lurdes Maria. Culpa.
Lúcio Mauro. Eu nunca pude chamá-la de mãe.
Lúcio Mauro emociona-se.
Lurdes Maria. Morreu sussurrando seu nome e chamando-o de filho.
Lúcio Mauro recobra o controle de suas emoções.
Lúcio Mauro. Como pode esconder isso de mim?
Lurdes Maria. Meu irmão, no amor e na guerra...
Lúcio Mauro. Carlos Manuel vai saber/
Lurdes Maria. Não tente nada contra mim, ou entrego você à polícia.
Lúcio Mauro. Seria acusada como minha cúmplice.
Lurdes Maria mostra as marcas no pescoço.
106

Lurdes Maria. Sou mais uma de suas vítimas. Desconfiada de suas atitudes psicóticas,
busquei a verdade sobre o desaparecimento de minha prima, encontrei fotografias e
quase morri buscando justiça para um crime tão brutal. É isso o que contarei às
autoridades...
Lúcio Mauro e Lurdes Maria encaram-se durante certo tempo. Lúcio Mauro sai e
Lurdes Maria respira aliviada.
CENA 25
Lúcio Mauro, com uma mala, desce, rápido, as escadas. Carlos Manuel em sentido
oposto se interpõe.
Lúcio Mauro. Vou embora.
Carlos Manuel. Caso-me em algumas semanas.
Lúcio Mauro. Não posso mais ficar.
Carlos Manuel. Lúcio!
Lúcio Mauro. Desejo felicidades.
Carlos Manuel. Por favor!
Lúcio Mauro nega-se.
Carlos Manuel. Se não por mim, por Lurdinha.
Lúcio Mauro. É justo por causa dela que eu preciso/
Lúcio Mauro interrompe-se e começa a afastar-se, Carlos Manuel o impede.
Carlos Manuel. Continua.
Lúcio Mauro evita encarar Carlos Manuel.
Carlos Manuel. O que ia dizer?
Lúcio Mauro tenta passar, mas Carlos Manuel não deixa. Medem forças.
Lúcio Mauro. Me deixa passar, Carlos.
Carlos Manuel. Você a ama.
Lúcio Mauro estanca.
Carlos Manuel. Não vai suportar vê-la se casando com outro.
Lúcio Mauro. Você não faz ideia de quem é sua noiva.
Lúcio começa a afastar-se novamente. Carlos Manuel se coloca na sua frente e o
segura pelo braço.
Carlos Manuel. Se ainda tem amizade por mim, ao menos um pouco, não me deixe
assim às cegas. É da minha felicidade que estamos falando.
Lúcio Mauro abraça Carlos Manuel, que fica surpreendido.
107

Lúcio Mauro. Digo com sinceridade: não se case com Lurdes Maria.
Afastam-se. Lúcio Mauro sai, deixando para trás Carlos Manuel, atônito.
CENA 26
No quarto, Lurdes Maria descansa deitada na cama. Diante de um grande espelho
(daqueles de corpo inteiro) está o vestido de noiva dependurado no manequim para
costura. Carlos Manuel está sentado na cama, próximo aos pés de Lurdes Maria.
Carlos Manuel (absorto). Lurdinha! Lurdes! Lúcio Mauro... queria me dizer alguma
coisa importante... avisar-me... acho que ele teme que eu me machuque... Lurdes! Tenho
dúvidas... Entende o que digo, Lurdinha? Não sei o que sinto por você... Gosto de você,
mas... Não sei. Gostar é sempre pouco, não é? Entende o que digo, Lurdes? Lurdinha!
Lurdes Maria (despertando). Carlos!
Já desperta, Lurdes Maria, rápida, levanta-se e põe o manequim atrás do espelho.
Lurdes Maria. Dá azar.
Carlos Manuel. Não me importo.
Lurdes Maria. O que há com você?
Carlos Manuel. Lúcio Mauro... queria me dizer alguma coisa importante... avisar-me...
acho que ele teme que eu me machuque.../
Lurdes Maria. Não perca o seu tempo tentando compreender as atitudes de/
Carlos Manuel. Deixou-me entender que está indo embora por sua causa.
Carlos Manuel levanta-se e caminha na direção de Lurdes Maria. Iniciam jogo de
perseguição pelo quarto.
Carlos Manuel. O que fez, Lurdes?
Lurdes Maria. Nada, meu bem.
Carlos Manuel. Onde está Amelinha?
O quarto começa a ser invadido por uma névoa.
Carlos Manuel. Suas mãos...
Lurdes Maria tenta esconder as mãos.
Lurdes Maria. O que têm elas?
Carlos Manuel. Estão sujas.
Lurdes Maria esfrega as mãos uma na outra e depois nas roupas. Carlos Manuel,
rápido, tenta ver as mãos de Lurdes Maria, mas ela foge subindo na cama. Madame
Nora, segurando algumas cartas de Tarô, entra no quarto e assim como Carlos
Manuel, começa a circundar a cama.
108

Lurdes Maria. Madame?


Madame Nora. Não leve isso adiante.
Lurdes Maria. É tarde. Amanhã é o nosso casamento, (p/Carlos Manuel) não é?
Madame Nora. Onde está seu irmão?
Lurdes Maria. Longe.
Madame Nora. E sua prima?
Lurdes Maria. Mais longe ainda.
Madame Nora. Deixa-me ver suas mãos, minha criança.
Carlos Manuel. Estão sujas.
Lúcio Mauro, segurando um punhal, entra no quarto e assim como os outros, também
circunda a cama de Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. E todo esse vermelho... insistente...
Lurdes Maria. Vai embora daqui.
Lúcio Mauro. Tão rubro... tão sangue...
Lurdes Maria (p/Carlos Manuel). Esquece Lúcio Mauro e tudo mais.
Carlos Manuel. Amelinha?
Lurdes Maria. Não sei.
Lúcio Mauro. Onde está?
Lurdes Maria. Eu não sei.
Madame Nora. Diz, minha criança.
Lurdes Maria (p/Carlos Manuel, mas apontando para Lúcio Mauro). Ele sabe.
(p/Lúcio Mauro) Conta o que fez. Onde está Maria Amélia?
A noiva misteriosa sai detrás do espelho e se aproxima da cama de Lurdes Maria. Em
uma mão segura uma arma e com a outra ela começa a retirar o véu. Lurdes Maria
grita apavorada e ajoelha-se na cama colocando os braços sobre a cabeça.
Black out.
Lurdes Maria, devagar, deita-se na cama, na posição inicial da cena. Em meio à
penumbra do quarto, vê-se apenas a silhueta de Carlos Manuel sentado na cama
próximo a ela. Carlos Manuel está absorto com a cabeça entre as mãos.
Carlos Manuel. Lurdes! Tenho dúvidas... Entende o que digo, Lurdinha? Não sei o que
sinto por você... Gosto de você, mas... Não sei. Gostar é sempre pouco, não é? Entende
o que digo, Lurdes? Lurdinha!
Penumbra.
109

CENA 27
Lurdes Maria, vestida de noiva, radiante, permanece parada no alto da escada.
Lurdes Maria. Finalmente!
Lúcio Mauro a surpreende quando fala do pé da escada.
Lúcio Mauro. Como você está linda, minha irmã!
Lurdes Maria (surpreendida). Lúcio Mauro!
Lurdes Maria recupera-se.
Lurdes Maria (dissimulando). Carlos Manuel e eu estávamos tão apreensivos, sem
notícias suas.
Lurdes Maria desce as escadas e estende os braços na intenção de abraçá-lo, porém,
Lúcio Mauro, afasta-se, indo para outra direção, no meio da sala, e mantendo uma
distância entre eles.
Lúcio Mauro. Fui preso.
Lurdes Maria (falsa). Não.
Lúcio Mauro. Denuncia anônima.
Lurdes Maria (falsa). Mentira!
Lúcio Mauro. Verdade.
Lurdes Maria (falsa). Jura?
Lúcio Mauro aquiesce.
Lurdes Maria (falsa). Que horror!
Lúcio Mauro. Mas não havia provas suficientes contra mim.
Lúcio Mauro aproxima-se de Lurdes Maria. Ela não o encara.
Lurdes Maria. Está pensando que eu... Jamais! Somos irmãos.
Lúcio Mauro. Esquece isso.
Lurdes Maria finalmente o encara e demonstra seu desprezo.
Lurdes Maria. Então, o que faz na minha casa?
Lúcio Mauro. Quero ver sua alegria chegar ao fim.
Batidas na porta. Ouve-se a voz de Carlos Manuel.
Carlos Manuel (fora de cena). Lurdinha!
Lurdes Maria (espantada). Carlos Manuel!
Carlos Manuel (fora de cena). Recebi o recado.
Lurdes Maria. Recado?
Lurdes Maria lança um olhar de reprovação para Lúcio Mauro.
110

Lúcio Mauro. Você precisava vê-lo com urgência.


Carlos Manuel (fora de cena). Eu já estava indo pra a igreja. O que houve?
Lúcio Mauro retira do bolso do paletó fotografias e as mostra para Lurdes Maria
enquanto fala.
Lúcio Mauro. Depois que ele souber de tudo, acho que não haverá mais casamento.
Lúcio Mauro guarda as fotografias no bolso.
Carlos Manuel (fora de cena). Abra a porta. Estou sem a chave.
Lúcio Mauro. O seu sonho acaba aqui.
O desespero de Lurdes Maria cresce a cada instante.
Carlos Manuel (fora de cena). Lurdinha!
Lurdes Maria. Já estou indo, meu bem. (para Lúcio Mauro) Vá embora. Saia pelos
fundos.
Carlos Manuel (fora de cena). Lurdinha!
Lúcio Mauro se dirige à porta.
Lúcio Mauro. Um momento!
Carlos Manuel (fora de cena). Lúcio?
Lurdes Maria, rápida, acerta a cabeça de Lúcio Mauro com um objeto de
ornamentação. Lúcio Mauro cai desmaiado. Lurdes Maria corre até a porta.
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Carlos Manuel (fora de cena). Lurdinha, deixe-me entrar.
Lurdes Maria. Estou vestida de noiva. Vá para a igreja, meu amor. Espere-me no altar.
Carlos Manuel (fora de cena). Ouvi a voz de Lúcio Mauro. Lurdinha, ou abre ou
ponho essa porta abaixo.
Lurdes Maria coloca as mãos nas têmporas e respira fundo. Caminha de um lado para
o outro e tenta recobrar o controle de suas emoções. Mais controlada, devagar, abre a
porta e atira-se nos braços de Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Ah, Carlos Manuel, foi horrível! Lúcio Mauro tentou me matar.
Carlos Manuel vê Lúcio Mauro estendido no chão e desvencilhando-se dos braços de
Lurdes Maria vai até ele.
Carlos Manuel. O que fez, Lurdes?
Lurdes Maria. Tive que golpeá-lo. Legítima defesa.
Carlos Manuel põe os dedos no pescoço de Lúcio Mauro.
Lurdes Maria. Está morto?
111

Carlos Manuel. Não. Desmaiado apenas.


Lurdes Maria (falso alívio). Ah!
Carlos Manuel. Graças a Deus!
Lurdes Maria fecha a porta e enquanto fala, rápida, arranca os fios elétricos dos
abajures.
Lurdes Maria. Estamos diante de um criminoso.
Lurdes Maria amarra os pés e as mãos de Lúcio Mauro.
Lurdes Maria. Esse delinquente esperou o dia do nosso casamento para vingar-se de
mim.
Carlos Manuel. Vingança?
Lurdes Maria. Não contei nada antes porque não queria aborrecê-lo, meu querido, mas
Lúcio Mauro sempre me amou. Não suportou a rejeição e por isso foi embora. Voltou
ainda me desejando e acredito que tenha matado Maria Amélia como uma forma
macabra de provar os seus sentimentos por mim.
Carlos Manuel olha incrédulo para Lúcio Mauro.
Lurdes Maria. Por isso deixei recado dizendo que precisava falar-lhe com urgência.
Lurdes Maria afasta-se de Lúcio Mauro e de Carlos Manuel, que continua a amarrá-lo.
Lurdes Maria caminha de um lado para o outro, segurando as têmporas.
Lurdes Maria. A polícia avisou-me da soltura.
Carlos Manuel. Lúcio estava preso?
Lurdes Maria. Imagine a minha surpresa. Graças a Deus e aos policiais pude me
precaver. Alertaram-me dizendo que Lúcio Mauro ainda está sob investigação e que é o
principal suspeito. Por isso tranquei a porta, mas ainda assim ele conseguiu...
Lurdes Maria inicia falso choro. Carlos Manuel ergue Lúcio Mauro e o coloca sentado
no sofá.
Lurdes Maria. Se você não estivesse chegado, eu...
Carlos Manuel levanta-se, vai até Lurdes Maria e a abraça confortando-a.
Lurdes Maria. Estaria morta. Se não pelas mãos desse bandido, por suas palavras e
acusações. Acredita que ele teve a audácia de afirmar que me culparia pela morte de
Maria Amélia? Sabia que essa mentira me machucaria, pois apesar de afastadas, nos
adorávamos como irmãs.
Carlos Manuel. Lúcio Mauro está louco!
Lurdes Maria. Temos que chamar a polícia antes que ele acorde.
112

Lurdes Maria desloca-se para o lugar onde fica o telefone.


Lurdes Maria (discando números). Não quero dar-lhe a chance de dizer falsidades.
Lúcio Mauro geme e começa a despertar. Lurdes Maria e Carlos Manuel entreolham-
se. Carlos Manuel vai até Lurdes Maria e desliga o telefone.
Carlos Manuel. Eu quero ouvi-lo.
Lúcio Mauro desperta e Carlos Manuel se aproxima dele.
Lúcio Mauro. Ai minha cabeça! Carlos Manuel, eu preciso/
Carlos Manuel. Te darei uma chance para se explicar antes que chame a polícia.
Escolhe bem as palavras...
Lúcio Mauro aquiesce.
Lúcio Mauro. Vim desmascará-la.
Lurdes Maria, rápida, aproxima-se de Carlos Manuel e segura a cabeça dele entre as
suas mãos e fala obrigando-o a olhar o tempo todo para ela.
Lurdes Maria. Não dê ouvidos/
Carlos Manuel tenta desvencilhar-se de Lurdes Maria.
Lúcio Mauro. Ela é a culpada de tudo.
Carlos Manuel consegue afastar Lurdes Maria.
Carlos Manuel. Tudo o que?
Lurdes Maria apanha outro objeto de ornamentação, dessa vez maior, e caminha na
direção de Lúcio Mauro.
Lurdes Maria. Vou calar a boca desse mentiroso de uma vez por todas.
Carlos Manuel a impede tomando o objeto das mãos dela e segurando-a com força.
Carlos Manuel. Pare, Lurdinha. Já chega!
Carlos Manuel a solta.
Lurdes Maria. Este homem... atentou contra minha vida. Você ainda quer dar
atenção...
Lúcio Mauro. O que Lurdes Maria sente por você não é amor. É doença. Por causa
disso desconheceu a prima e a mim, seu irmão.
Carlos Manuel. Irmão?
Lúcio Mauro. Sim. Irmão. Sou filho de Bartolomeu e Júlia.
Carlos Manuel lança um olhar incrédulo para Lurdes Maria que, paralisada, com as
mãos na cabeça, fecha os olhos.
Lúcio Mauro (para Lurdes Maria). Negue, se tiver coragem.
113

Lurdes Maria respira fundo e calmamente retira aos mãos da cabeça e caminha,
aproximando-se de Carlos Manuel.
Lúcio Mauro. Lurdes Maria me chantageou.
Ao ouvir a fala de Lúcio Mauro, Carlos Manuel aproxima-se de Lucio Mauro e Lurdes
Maria o segue.
Lúcio Mauro. Para revelar a identidade dos meus pais, ela exigiu que eu matasse Maria
Amélia.
Lurdes Maria (para Lúcio Mauro). Como pode me acusar assim? (para Carlos
Manuel) Não dê mais ouvidos a está víbora. Infelizmente somos irmãos, mas não
cúmplices. Tudo o que ele fez, foi sozinho e por conta própria. Ele matou a pobre Maria
Amélia e ainda fez registro do crime.
Lurdes Maria vai até Lúcio Mauro e procura nos bolsos do paletó as fotografias.
Encontra-as e as mostra a Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Veja! Mostrou-me, dizendo que faria o mesmo comigo.
Carlos Manuel vê as fotografias e choca-se as deixando caírem no chão.
Carlos Manuel. Meu Deus!
Longo silêncio. Lurdes Maria caminha, devagar, até o lugar onde está o telefone e faz
uma ligação.
Lurdes Maria. Polícia...
Não se ouve mais o que é dito por Lurdes Maria ao telefone. Carlos Manuel aproxima-
se de Lúcio Mauro. Breve silêncio entre eles.
Carlos Manuel. Por que fez isso, Lúcio? Amelinha era um anjo!
Lúcio Mauro. Um dia fomos amigos, Carlos, e em nome dessa amizade, eu digo:
Lurdes Maria não é quem parece ser.
Lurdes Maria desliga o telefone e aproxima-se deles.
Lurdes Maria. Logo a polícia estará aqui.
Carlos Manuel levanta-se e desamarra Lúcio Mauro.
Lurdes Maria. O que é isso, afinal? Que devoção é essa que você tem a uma amizade
do passado?
Carlos Manuel (para Lúcio Mauro). Vá embora.
Lúcio Mauro permanece sentado. Carlos Manuel se afasta, ficando de costas para
Lúcio Mauro e Lurdes Maria.
Carlos Manuel. Nunca mais quero vê-lo.
114

Lurdes Maria olha para Carlos Manuel e o vê emocionado, aproveita-se e se aproxima


de Lúcio Mauro.
Lurdes Maria (cínica). Você tem mesmo muita sorte, Lúcio Mauro. Carlos Manuel é
um homem bom.
Já bem próxima, segreda.
Lurdes Maria. Reze para que a polícia o ache antes de mim, pois essa será sua única
chance de permanecer vivo.
Lurdes Maria afasta-se e volta a falar em um tom forçosamente natural.
Lurdes Maria (cínica). Não sei se estamos agindo corretamente, mas tomarei a atitude
de meu noivo como exemplo. Eu te perdoo, meu irmão. Eu te perdoo.
Lurdes Maria aponta a porta de saída da casa e permanece todo o tempo voltada para
Lúcio Mauro e Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Tenha a certeza de que não ficarei ressentida, apesar de todo o mal que
fez a mim, a Carlos Manuel e, principalmente, a Maria Amélia, que Deus a tenha!
Lúcio Mauro levanta-se.
Lúcio Mauro. Eu nada fiz contra ela.
Uma sombra se projeta na porta desenhando uma silhueta feminina. Lúcio Mauro
caminha até a porta enquanto Lurdes Maria fala.
Lurdes Maria. Você a matou.
Lúcio Mauro abre a porta e Maria Amélia entra, triunfante. Lurdes Maria põe a mão
na cabeça e emite um grito gutural do mais puro pavor. Lurdes Maria abandona-se,
mas antes de atingir o chão, é amparada por Carlos Manuel que, abismado, olha
fixamente para Maria Amélia.
Carlos Manuel. Você está/
Maria Amélia. Viva!
Carlos Manuel (para Lúcio Mauro). Que brincadeira é essa?
Carlos Manuel olha com reprovação para Maria Amélia e depois para Lúcio Mauro.
Lúcio Mauro. Eu vou contar.
Lúcio Mauro aproxima-se de todos.
Lúcio Mauro. Sabendo o quanto eu queria conhecer a identidade dos meus pais, Lurdes
Maria me enredou. Fui fraco, eu sei, mas a possibilidade... entende? Eu...
À medida que falam, Lúcio Mauro e Maria Amélia, deslocam-se e se posicionam como
estavam no instante em que Lúcio Mauro tentou matá-la no interior da chácara.
115

Lúcio Mauro. Quero saber quem são os meus pais.


Lúcio Mauro avança em direção a Maria Amélia.
Maria Amélia. Não, Lúcio, por favor! Eu sei quem é sua mãe.
Lúcio Mauro para já muito próximo a Maria Amélia, fazendo extremo esforço para
conter-se. Maria Amélia tem muito próximo ao peito o diário.
Maria Amélia. Acho que aqui há um registro...
Maria Amélia entrega o diário a Lúcio Mauro.
Maria Amélia. Encontrei pouco antes de sua chegada. É de Tia Júlia.
Lúcio Mauro abre o diário e o folheia, lendo alguns trechos.
Lúcio Mauro. “... grávida, Meu Deus! Grávida! Se descobrirem, o que farão comigo?
E com essa criança?...” “... Conto apenas com Nora para ajudar-me neste momento
tão difícil. Sua amizade é meu conforto durante todos esses meses de isolamento nesta
chácara...” “... Vejo o mundo com novos olhos agora que tenho um filho. Nunca me
senti tão completa como me sinto quando seguro Lúcio...”
Lúcio Mauro chora emocionado. Depois de certo tempo, continua.
Lúcio Mauro. “... Temo muito... Não sei do que ela seria capaz se soubesse que tive
um filho com/” Está rasgado.
Lúcio Mauro fecha o diário.
Lúcio Mauro. Tia Júlia é a minha mãe!
Lúcio Mauro chora e é confortado por Maria Amélia que o envolve nos braços.
Lúcio Mauro (pesaroso). Esteve sempre tão perto de mim... Por que nunca me disse
nada? Eu entenderia. Juro.
Lúcio Mauro se recompõe.
Lúcio Mauro. Estou ainda mais angustiado do que antes. Minha esperança de ter uma
família foi em vão. Estou como sempre fui... só.
Maria Amélia. Não está sozinho. Tem a mim.
Lúcio Mauro segura as mãos de Maria Amélia entre as suas.
Lúcio Mauro. Amelinha! Há pouco eu poderia...
Maria Amélia. Se estiver disposto a me perdoar, eu me disponho a fazer o mesmo.
Lúcio Mauro abraça Maria Amélia. Um longo e emocionado abraço. Depois de certo
tempo separam-se. Maria Amélia recolhe o punhal, o diário e as roupas de bebê e os
coloca novamente no interior do baú.
Lúcio Mauro. Ela sabia que a minha mãe estava morta e ainda assim/
116

Maria Amélia aproxima-se de Lúcio Mauro e segura em suas mãos.


Maria Amélia. Temos que agir com cuidado de agora em diante. Lurdes Maria nos fez
de marionetes e acha que ainda nos manipula.
Lúcio Mauro. Aonde quer chegar?
Maria Amélia. Nós a venceremos em seu próprio jogo. Fingiremos minha morte e
assim poderemos/
Lúcio Mauro. Descobrir a identidade do meu pai/
Maria Amélia. E mostrar a Carlos Manuel quem é minha prima.
Lúcio Mauro e Maria Amélia retornam para o espaço onde se encontram Carlos
Manuel e Lurdes Maria, que recolhe as fotografias do chão e as analisa.
Lurdes Maria. Vi o punhal cravado no peito/
Lúcio Mauro. Uma encenação.
Lurdes Maria. E todo este sangue?
Maria Amélia. Ketchup.
Lurdes Maria deixa as fotografias caírem novamente no chão. Põe as mãos na cabeça e
respira fundo. Lurdes Maria apóia-se em um móvel.
Carlos Manuel. Estou cansado de tantas intrigas. Cada vez que exijo saber a verdade,
sou apresentado a mais e mais mentiras. Tudo o que ouvi me faz pensar: que tipo de
pessoas são vocês?
Maria Amélia tenta falar algo, mas Lúcio Mauro a impede. Lurdes Maria fala enquanto
aproxima-se de Carlos Manuel.
Lurdes Maria (cínica e p/ Lucio Mauro e Maria Amélia). Também me pergunto: Que
gente é essa?
Lurdes Maria segura uma das mãos de Carlos Manuel e tenta conduzi-lo até a porta.
Lurdes Maria. Vamos, querido.
Carlos Manuel, devagar, retira a mão.
Carlos Manuel. Não irei a lugar algum com você.
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Lurdes Maria aproxima-se um pouco mais de Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Sou eu, Lurdes Maria. A sua Lurdinha.
Carlos Manuel. Não é. Nem sei se um dia foi.
Lurdes Maria estanca em choque.
Carlos Manuel. Tudo isso abriu os meus olhos.
117

Lurdes Maria. Meu amor/


Carlos Manuel. Não me chame assim.
Lurdes Maria. Hoje é o nosso casa/
Carlos Manuel caminha devagar em direção a porta. Lurdes Maria se interpõe na
frente de Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Espere. Você está confuso é só isso.
Carlos Manuel. Estava me enganando todo esse tempo.
Lurdes Maria segura o rosto de Carlos Manuel entre suas mãos e o beija. Carlos
Manuel não corresponde. Os dois ficam se olhando por certo tempo e em silêncio.
Devagar, Carlos Manuel, retira as mãos de Lurdes Maria do seu rosto.
Carlos Manuel. Agora sei que não te/
Lurdes Maria. Não diga/
Carlos Manuel. Não te amo.
Lurdes Maria, emocionada, abraça-se a Carlos Manuel. Em um crescente de emoção,
ela ampara-se no corpo dele, mas não consegue permanecer de pé. Desliza até o chão e
fica prostrada de joelhos na frente dele, chorando. Lúcio Mauro e Maria Amélia
observam o sofrimento de Lurdes Maria. Carlos Manuel se afasta, mas a fala de Lurdes
Maria o impede de seguir adiante.
Lurdes Maria (verdadeiramente sofrida). Eles têm razão... Queria ser boa, mas não
sou. Agi de forma condenável, mas foi por medo de perdê-lo. Os pesadelos, as
premonições de Madame Nora. Vi a mancha na roupa de Maria Amélia e... Acha que
sou incapaz de ser verdadeira? Convivo com uma verdade desde que te conheci: o meu
amor.
Lurdes Maria levanta-se.
Lurdes Maria. Quando chegou a minha vida... Por mais que tivesse o amor de Tia
Júlia, de Maria Amélia e Lúcio Mauro, ainda assim não me eram suficientes. Existia um
vazio tão grande... tão profundo... Amar você... me fez suportar o desaparecimento de
Lúcio, a morte de Tia Júlia e tudo mais... Sei que no começo não sentia o mesmo por
mim. Eu sei. Sempre soube, mas me dediquei a conquistá-lo e fazer com que
correspondesse ao meu amor.
Carlos Manuel. Esse foi o meu erro. Não deveria ter dado início ao nosso romance. Fui
precipitado. Precisava de amparo, pois a dor que sentia era...
Carlos Manuel lança um breve olhar para Lúcio Mauro.
118

Carlos Manuel. Fique com a certeza de que tentei amá-la/


Lurdes Maria. Você é tudo para mim.
Carlos Manuel afasta-se lentamente e caminha em direção a porta de saída da casa. Na
soleira da porta, olha para todos.
Carlos Manuel. Adeus!
Carlos Manuel vai embora. Lurdes Maria sofre.
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Maria Amélia sai, indo atrás de Carlos Manuel. Silêncio na sala. Lúcio Mauro senta-se
em um dos extremos do sofá. Lurdes Maria recompõe-se e devagar se senta no extremo
oposto ao de Lúcio Mauro. Lurdes Maria respira fundo, Lúcio Mauro faz o mesmo e
ficam absortos por um longo tempo sem se olharem.
Lúcio Mauro. Lurdes!
Lurdes Maria. Sim.
Lúcio Mauro. Não quero ser seu inimigo.
Lurdes Maria. Quem precisa de inimigos quando se tem um irmão?
Lúcio Mauro. Não te odeio.
Lurdes Maria. Nem eu a você.
Longo silêncio.
Lúcio Mauro. Por que agiu dessa forma tão desmedida?
Lurdes Maria. Porque amo de forma desmedida. Você deveria me entender.
Lúcio Mauro olha para Lurdes Maria sem compreendê-la.
Lurdes Maria. Antes de saber que eu era a sua irmã, você me amou exatamente dessa
forma.
Lúcio Mauro. Lurdes, eu/
Lurdes Maria. Não precisa negar. Não mais.
Lúcio Mauro levanta-se e serve-se de vinho bebendo de uma só vez.
Lurdes Maria. Durante anos vi Maria Amélia arrastando a carta que você escreveu
para mim por todos os cantos dessa casa. Lendo e relendo as suas palavras e sofrendo
sempre. Ouvi inúmeras vezes ela balbuciando o que estava escrito enquanto dormia.
Lúcio Mauro. Ela sabe que você/
Lurdes Maria. Nunca disse nada.
Lúcio Mauro serve-se de mais vinho e com gestos oferece a Lurdes Maria que aquiesce.
Lurdes Maria. Não me interessava. Sempre te amei como um irmão...
119

Lúcio Mauro entrega um cálice com vinho para Lurdes Maria e senta-se novamente.
Lurdes Maria. Maria Amélia interceptou a sua carta induzida por um sentimento
desmedido. Assim como era o seu por mim. Assim como é o meu por Carlos Manuel.
Você e Maria Amélia deveriam me entender... Está em nosso sangue amar de maneira
insistente... e definitiva.
Lúcio Mauro toma mais vinho e respira fundo.
Lúcio Mauro. A carta/
Lurdes Maria. Esqueça isso, Lúcio.
Lúcio Mauro. Não era para você/
Lurdes Maria. O que?
Lúcio Mauro. A carta que escrevi... não foi para você.
Carlos Manuel entra na sala, seguido por Maria Amélia, trazendo nas mãos a carta. Ao
vê-lo, Lurdes Maria e Lúcio Mauro levantam-se.
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Carlos Manuel (p/ Lúcio Mauro). Maria Amélia me contou.
Carlos Manuel aproxima-se de Lúcio Mauro e mostra a carta.
Carlos Manuel. É verdade?
Lúcio Mauro tenta tomar a carta das mãos de Carlos Manuel, mas não consegue.
Carlos Manuel lê os fragmentos. Lurdes Maria olha para os homens sem compreender
o que acontece.
Carlos Manuel. ―Acredite quando digo que de outra forma não conseguiria dizer tudo
o que sinto”/
Carlos Manuel interrompe a leitura e olha para Lúcio Mauro. Enquanto Carlos Manuel
retoma a leitura, Lurdes Maria, absorta, põe as mãos na cabeça e sussurra a mesma
fala de Madame Nora, como uma dublagem.
Madame Nora (off). O passado está voltando... e com ele vem um segredo... uma
verdade escrita em confissão...
Carlos Manuel. “Não sei bem como aconteceu, mas me surpreendi apaixonado. Te
desejando a cada instante e sofrendo cada vez que me tomava apenas como um amigo.
Por medo e por vergonha de uma possível rejeição calei fundo o meu sentimento e te
amei em silêncio. Procurei motivos para esquecê-lo, mas não consegui...”
Lúcio Mauro emociona-se. Lurdes Maria mais uma vez balbucia as palavras de
Madame Nora.
120

Madame Nora (off). Cuidado, minha criança.


Lurdes Maria. Cuidado! Ela disse.
Carlos Manuel aproxima-se de Lúcio Mauro.
Carlos Manuel. “Põe de lado os precários, hipócritas e imorais valores que nos
cercam e empresta seus olhos para uma nova visão de mundo onde não existem
retesados juízos e nem juízes. Neste lugar é que eu me encontro...”
Lúcio Mauro. Te amando.
Lúcio Mauro e Carlos Manuel entreolham-se e beijam-se. No encontro entre os corpos,
o vinho que está no cálice segurado por Lúcio Mauro é derramado na sua vestimenta e
o cálice cai no chão, assim como a carta. Lurdes Maria, trôpega, afasta-se caminhando
para o fundo da sala e lá se ampara em um móvel. Maria Amélia, apieda-se de Lurdes
Maria e vai ampará-la. Lúcio Mauro e Carlos Manuel se separam e entreolham-se,
admirados.
Carlos Manuel. Se eu... teria ido ao seu encontro/
Lúcio Mauro. Deixa o passado para trás.
Estão para se beijar novamente quando Maria Amélia retorna para perto deles com as
mãos para o alto em rendição e logo atrás dela vem Lurdes Maria apontando uma
arma, retirada de uma das gavetas do móvel onde se amparava.
Carlos Manuel. Lurdes!
Lurdes Maria. Sabia que a arma de Tia Júlia ia me servir para alguma coisa.
Lurdes Maria empurra Maria Amélia para junto dos homens e aponta a arma na
direção dos três. Lurdes Maria vê a mancha na vestimenta de Lúcio Mauro.
Lurdes Maria. A mancha! Então era você... todo esse tempo... o meu irmão...
Lurdes Maria muito tensa e nervosa, chora descontrolada.
Lúcio Mauro. Deixe-nos ir, Lurdes. Merecemos a felici/
Lurdes Maria (verdadeiramente sofrida). E quanto a mim?
Lurdes Maria aponta a arma para Lúcio Mauro.
Lurdes Maria (confusa). E eu? (perturbada e colérica) E eu?
Lurdes Maria atira em Lúcio Mauro, mas acerta Maria Amélia que se pôs na frente
dele. Maria Amélia ferida caminha em direção a Lurdes Maria e cai em seus braços
manchando o vestido de noiva de vermelho.
Maria Amélia. Nem eu, nem você.
121

Lurdes Maria, em estado de choque, deixa cair Maria Amélia e a arma. Lúcio Mauro
corre e ampara Maria Amélia nos braços. Carlos Manuel aproxima-se e ajoelha-se ao
lado deles. Maria Amélia ergue uma mão, alisa o rosto de Lúcio Mauro, e morre.
Carlos Manuel levanta-se e ergue Lúcio Mauro. Abraçam-se. Lurdes Maria observa as
mãos sujas e o vestido ensanguentado e abandona-se no chão. Ao lado de Lurdes Maria
está a carta que ela recolhe lentamente. Aos poucos, Lurdes Maria começa a sussurrar
elucubrando entre a loucura e a lucidez. Madame Nora, lentamente, atravessa o espaço
atrás de todos, espalhando uma espessa fumaça.
Lurdes Maria. Ah! Se eu soubesse. Ela viu. Tentou me avisar. Fui ludibriada... aquele
vermelho... tanto sangue... Madame Nora tinha razão, meu Deus! Madame Nora, tinha
razão. As cartas não mentem jamais! Não mentem... as cartas... não mentem... As cartas
não mentem jamais!
Luz cai em resistência ao mesmo tempo em que ouve-se a sirene do carro da polícia
aproximando-se.
122

4 ITINERÁRIO SENTIMENTAL E CRIATIVO

Até este ponto do trabalho, fiz um breve panorama sobre o melodrama,


considerando aspectos de seu histórico e evolução até a nossa atualidade, ratificando-o
como um gênero dramático forte e resistente. Expus também, observações sobre a
produção de efeitos emocionais através da economia de recursos e da elaboração de
estratégias para a produção de determinados efeitos dentro de uma narrativa dramática
ficcional.
No capítulo anterior, apresentei uma peça melodramática, acreditando que essa
obra artística se dispõe ao exercício do agenciamento de estratégias de composição,
abrindo caminho para uma reflexão sobre as possibilidades da construção ficcional no
interior do gênero melodrama.
Os capítulos anteriormente apresentados funcionam como lastro para melhor
elucidar as reflexões que serão propostas daqui por diante quando discorrerei sobre os
procedimentos para a criação da obra artística, considerando a compreensão do gênero
melodrama, sua apropriação e aplicabilidade, e a composição de estratégias para a
produção de efeitos emocionais.

Da ideia à escrita

Há um longo caminho entre a ideia para uma obra dramática e a sua execução.
Este ponto de partida, princípio de tudo, para conceber-se enquanto tal, não surge
espontaneamente e nem de forma conclusa se dispõe para ser lançado na prática do
exercício da escrita, pelo contrário, vai se formulando aos poucos, acredito, numa
dinâmica de influências do consciente e do subconsciente do artista, podendo, a criação,
ser assim ―[...] observada no estado de contínua metamorfose: um percurso feito de
formas de caráter precário, porque hipotético [...]‖ (SALLES, 2009, p. 29).
Nossas vontades, desejos e intuições são moldados nesse lugar obscuro e ainda
pouco conhecido que é o subconsciente associado ao nosso consciente influente e
influenciado pelo cotidiano que nos circunda. Nesse terreno de abstrações e inexatidões,
é que uma ideia toma forma para manifestar-se na arte e através dela. Não existindo
uma teoria fechada, nem um método assertivo ou uma metodologia pronta que anteceda
o processo de criação em si.
123

[...] A ação da mão do artista vai revelando esse projeto em


construção. As tendências poéticas vão se definindo ao longo do
percurso: são leis em estado de construção e transformação. Trata-se
de um conjunto de princípios que colocam uma obra em criação
específica e a obra de um artista como um todo em constante
avaliação e julgamento. (SALLES, 2009, p. 44)

Ostrower (1990), segundo Salles (2009), afirma que a criação é um movimento


surgido na confluência das ações da tendência e do acaso. Tomando essa premissa como
base, acredito que o acaso tem papel fundamental neste processo, pois foi ele quem
providenciou encontros, descobertas e coincidências para se chegar até a ideia e só
posteriormente, à escrita do texto dramático para o teatro. Uma conjuntura de eventos
que me permitiu o exercício prático da tentativa.
Um caso inusitado acontecido em Pidobaçu, interior do Estado da Bahia, em
Junho de 2011, povoou os meios de comunicação de forma exacerbada pela irreverência
dos fatos, dos envolvidos no episódio e pela espetacularidade com a qual o fato foi
transformado em notícia, sempre divulgado como O crime do ketchup.
Um pistoleiro contratado para matar uma mulher forjou o crime, utilizando
ketchup. Posteriormente, foi descoberto pela mandante do crime ao ser flagrado com a
suposta ―vítima‖ em uma feira livre da cidade. A mandante procurou a delegacia para
dar queixa e o delegado deu início às investigações. Ao ser chamado para prestar
depoimento, o pistoleiro contou em detalhes como tinha sido firmado o acordo entre as
partes. Uma morte encomendada pela quantia de mil reais livraria a contratante da
ameaça que o seu casamento vinha sofrendo. O que ela não esperava era que o pistoleiro
e a ―vítima‖ fossem velhos conhecidos e que, no passado, tivessem tido um
envolvimento amoroso. Decidiram aplicar na mandante um golpe e por isso simularam
a morte fazendo uso do molho e de uma faca. O pistoleiro tirou fotografias,
comprovando o feito e recebeu o pagamento. Dias depois, ―assassino‖ e ―vítima‖ foram
vistos pela mandante, enamorados, na rua. Esclarecido os pormenores dos fatos, a
mandante foi indiciada por crime de mando, o pistoleiro por extorsão e a ―vítima‖ como
cúmplice no crime de extorsão. Todos respondem ao processo em liberdade.
Ao tomar ciência dessa notícia, pensei que ali repousava uma boa história a ser
contada pelo viés da literatura dramática. Fiz apenas isso: uma breve observação.
Semanas depois, um colega de sala de aula (alunos especiais no Programa de Pós-
Graduação da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia) me entregou um
124

recorte de jornal com a matéria intitulada O crime do ketchup e me disse: ―Uma peça.
Escreve.‖
Como quis, assim, o acaso. Cá, estou eu.
A partir de então, me entreguei à tarefa de pensar sobre o que me era possível
reconhecer e identificar do gênero melodramático contido naquela história e decidir por
qual caminho seguir, se fazer uma versão teatralizada da história ou apropriar-me dela e
realizar uma releitura. Ative-me ao desejo de inspirar-me livremente nos
acontecimentos do Crime do Ketchup para escrever uma peça melodramática como a
parte prática da minha pesquisa em comum acordo com a parte teórica.
A decisão de seguir adiante com a ideia aconteceu de forma paulatina e intuitiva.
Não sendo a primeira vez que ―[...] percebi como todos os fatores para a tomada de uma
decisão já estavam preparados na parte inconsciente da minha mente, sem que a parte
consciente tivesse participado da celebração.‖ (BROOK, 1999, p. 96)78.
Refletir sobre o processo de criação artística de uma obra dramática é uma
tentativa de inteirar-se do caminho percorrido e considerá-lo como uma revelação,
autodescoberta, já que durante o processo, não se tem, ou melhor, não se detém a ele de
maneira clara e consciente. Assim, é preciso considerar que todo o processo de criação
está sujeito a suscetibilidades que podem fazer o artista avançar e/ou retroceder, fazer
e/ou desfazer, escrever, reescrever, ler e reler, tudo isso inúmeras vezes e ainda assim
não encontrar a tão esperada satisfação, constatando que a arte não é uma ciência exata
e não existe fórmula e nem garantias para um possível sucesso.
A escrita dramática consistiria, então, em sua essência de tentativas e
aprimoramentos, pois, por mais que se tenha ideia do que se quer fazer, é durante o
processo de feitura que o fenômeno acontece, podendo ou não chegar ao lugar
inicialmente desejado ou surpreender-se com o novo e inesperado. Entre as inúmeras
possibilidades de escolha para o melhor desenvolvimento de uma obra artística, um dos
fatores que fazem diferença nessa composição é a instrumentalização que o artista
possui para exercitar seu ofício.

4.1 ENREDO E ESTRUTURA

78
Este pensamento ratifica a possível visão de que alguns direcionamentos são tomados por um
dramaturgo. No seu curso de elaboração de uma peça teatral, são, na maioria das vezes, processados em
diversos planos da consciência do artista numa interação complexa e intensa entre o criador e a criatura.
125

Tão relevante quanto a história, o que é contado em uma narrativa dramática


ficcional, é a maneira como se conta essa história. Uma estrutura, modo de dispor e
apresentar um enredo, pode e deve valorizá-lo e torná-lo ainda mais interessante e
atrativo para o espectador. No caso exposto aqui, é válido nos determos não apenas no
conteúdo da história, por se tratar de um melodrama, mas também na forma que o
contém, pois a estrutura também foi pensada como uma estratégia com objetivos
específicos que serão discutidos adiante.
Nessa narrativa dramática ficcional criada para o teatro, é possível identificar
elementos reconhecíveis e característicos do gênero melodrama como as sucessivas
peripécias, as adversidades sequencialmente impostas, as revelações surpreendentes, as
reviravoltas, os pressentimentos, os desenlaces, os solilóquios de autorevelação. Assim
como, a presença das evocações, dos dilaceramentos e da passionalidade que conduz a
exacerbação dos sentidos e do caráter patético nas mais diversas situações propostas no
desenvolvimento da trama.
Uma composição onde, na tessitura da intriga, reverberam aspectos do
melodrama engendrados em função do apelo a sentimentalidade e que propiciam o
estabelecimento do pacto receptivo79 objetivando a fruição através da emoção e, em
alguns instantes pontuais, também o divertimento.
Crendo que a organização interna do drama afeta os níveis de significação e
fruição da plateia, identifico, na organização dada ao enredo, na sua estrutura, um lugar
propício para a articulação de estratégias tendo como objetivo alcançar efeitos
pretendidos e pré-agenciados.
Atendo-se a estrutura na qual se molda o enredo e encarando-a enquanto uma
estratégia, um ponto a ser observado na peça aqui discutida, é o rompimento com a
linearidade temporal da história. Desde o princípio da construção dramática, nota-se a
preocupação em escapar da lógica comum de sucessão temporal, passado – presente –
futuro, e investir no rearranjo dessa temporalidade alinhavando os acontecimentos pela
força dramática que eles contêm ou ainda pela tensão/expectativa que esses mesmos
acontecimentos dramáticos são capazes de suscitar no espectador.

79
Segundo Mendes (2008), o pacto receptivo é o estabelecimento de um acordo entre público e obra
artística onde se fixam convenções. O público aceita os modos como a obra se configura e é apresentada e
assim se permite envolver. Em nosso caso de estudo, o pacto aconteceria pela aceitação dos códigos da
representação da linguagem melodramática (o caráter patético, a grandiloquência, a tipificação, entre
outros tantos). As convenções/concepções são agenciadas em um discurso e oferecidas no momento da
enunciação. A recepção aceita através de um acordo, pacto, permitindo-se a fruição.
126

Essa escolha de estruturação aparece desde o princípio do texto, pois a peça tem
como ponto de partida o final. Mostra-se na cena 01, Ato I, a personagem Lurdes Maria
já enlouquecida, elucubrando sobre tudo o que vivenciou até chegar aquele momento.
Um olhar mais atencioso poderia encarar a cena de abertura como um convite ao
passado, uma rememoração que ajudaria a compreender o que aconteceu com aquela
personagem e o que a levou aquele estado físico e mental. Segue trecho exemplificador:

Lurdes Maria, aspecto tresloucado, aparece vestida com um velho e


surrado vestido de noiva, desgastado pela ação do tempo. Traz em
uma das mãos um pedaço de papel, um velho fragmento de uma carta.
Vagueia sem rumo, a esmo, e elucubra entre a loucura e a lucidez. Ao
fundo, um enfermeiro a observa segurando em uma das mãos uma
camisa de força.
Lurdes Maria. Ah, minha felicidade! Meus dias felizes que não
voltam mais! A vida me foi madrasta. O destino fez de mim uma
pobre diaba e sorriu para os meus inimigos. [...] Ai, meu Deus, o que
restou de mim? Só os queixumes, as lamúrias, os meus tormentos e
essa saudade sem fim. Ah, Carlos Manuel! [...] Eles foram os culpados
por tudo o que fiz... [...] Ela viu. Tentou me avisar. Fui ludibriada...
aquele vermelho... tanto sangue... Madame Nora tinha razão, meu
Deus! Madame Nora, tinha razão. As cartas não mentem jamais! Não
mentem... as cartas... não mentem... As cartas não mentem jamais!
[...]

Em outros trechos da peça é possível reconhecer o uso do mesmo dispositivo, o


rearranjo da temporalidade, utilizado de diferentes formas, seja como um
retrocedimento explícito, acompanhando um fluxo de memória de uma personagem,
como segue no fragmento da cena 17, Ato I:

[...]
Lurdes Maria respira fundo.
Lurdes Maria. Não quero que ele saiba o quanto as palavras dela me
afetaram. Por mais que eu tente esquecer... não consigo... não
consigo...
127

Lurdes Maria levanta-se, angustiada, e se afasta de Maria Amélia.


Maria Amélia a princípio ouve tudo o que Lurdes Maria diz, mas aos
poucos perde o foco e fica absorta murmurando o que dizia quando
estava sozinha.
Lurdes Maria (absorta). ―Madame Nora?‖ indaguei.
Ao fundo aparece Madame Nora, de pé, com as cartas de tarô entre
as mãos. Embaralha as cartas.
Madame Nora. Vamos entrando, minha criança.
[...]

Ou ainda como uma supressão, um corte brusco na narrativa que coloca a


temporalidade em suspensão para intensificar o efeito proposto, no caso do trecho da
cena 23, Ato II, que segue como exemplo, existe uma interrupção brusca que provoca a
expectativa, atiça a curiosidade do espectador.

[...]
Lúcio Mauro apanha o punhal e o segura com firmeza e não encara
Maria Amélia.
Maria Amélia. Lúcio!
Maria Amélia afasta-se devagar e, no mesmo ritmo, é perseguida por
Lúcio Mauro.
Lúcio Mauro. Quero saber quem são eles.
Lúcio Mauro avança em direção a Maria Amélia, que se defende
usando o diário como escudo.
Maria Amélia. Não!
Black out.
[...]

Apesar de adquirir formas diversificadas quando aplicado à narrativa, a


subversão da temporalidade almeja como objetivo principal gerar expectativa,
potencializando e sustentando a tensão dramática. Um recurso que pode segurar o
interesse do espectador, garantindo, assim, o seu envolvimento com a história que está
sendo contada. Os saltos no tempo, para frente ou para trás, permitem uma maior
dinâmica no fluxo dos acontecimentos, sem que para isso, a condução do enredo da
128

história e sua compreensão fiquem comprometidos, funcionando como mais um atrativo


que mantém o interesse do público tanto pelo conteúdo quanto pela forma.

4.2 LINGUAGEM

De acordo com Bentley (1967), apesar de ser toda a literatura constituída de


palavras, no caso da literatura destinada ao teatro, a linguagem empregada na
composição de um texto teatral assume uma natureza mais específica, disponibilizando
inúmeros recursos dos quais um dramaturgo pode lançar mão no instante da elaboração
do seu texto dramático. Recursos estes que terminam por diferenciar a literatura
dramática de uma literatura não-dramática e, por que não dizer, da linguagem comum
utilizada em nosso cotidiano.
A reflexão de Bentley (1967) me conduz a pensar que o dramaturgo deve
preocupar-se com a manipulação e intencionalidade do uso da linguagem durante a
composição de uma narrativa dramática ficcional, pois o bom emprego das palavras,
enquanto elemento constituinte de uma fala80, auxilia na construção dos discursos e no
enriquecimento da narrativa.
Segundo aponta Mendes (2008), de toda a organização do texto dramático, é do
diálogo enunciado pelas personagens que o público compartilha e envolve-se à medida
que ouve e sente, de uma forma ou de outra, tudo o que está sendo enunciado pelas
personagens. Assim sendo, uma fala proferida por uma personagem, além de relacionar-
se à sua função na trama, à sua caracterização e sua posição discursiva, pode aumentar a
intensidade dos efeitos emocionais buscados, ao expandir-se para o público, através do
pacto receptivo, provocando reações esperadas e inesperadas.
Um bom diálogo não é quantificado pelo número e tamanho das réplicas, mas
sim pela intensidade dramática e a dinâmica que acontece entre as falas, como são
utilizadas e o lugar que ocupam na narrativa, criando, assim, certa melodia, harmoniosa
e fluida, que, quando bem orquestrada pelo dramaturgo, torna-se consequência natural
da fala que a precedeu e um bom sustentáculo para a fala que sucederá. A impressão

80
Eric Bentley denomina fala como ―declamação‖. Neste estudo, encara-se a fala como aquilo que uma
personagem emite e também o que não emite, é o texto dramático principal, aquele ao qual o espectador
tem acesso direto e imediato. Silêncios, pausas, titubeios, gestualidades e movimentação das personagens
podem ganhar a valoração de réplicas, falas dramáticas, pois adquirem uma grade eloquência dependendo
do seu uso e aplicabilidade.
129

que se cria é que o diálogo parece se encaixar naturalmente como uma conversa cheia
de intencionalidades.
O texto Vermelho rubro amoroso... profundo, insistente e definitivo! é produto
de uma cuidadosa manipulação estética de linguagem que buscou dar ao texto dramático
uma melodia específica, fluida, melosa e dramática, numa tentativa de traduzir nas
ações das personagens e no que elas emitem, os estados anímicos em que se encontram
e principalmente, a sentimentalidade que carregam. No fragmento da cena 03, Ato I,
exemplifica-se a preocupação com a fluidez das falas e a dinâmica entre elas. A cena é
imbuída de informações que caracterizam as personagens e o universo dramático em
que estão inseridas, expondo ainda a relação afetiva que existe entre as primas, haja
vista, a forma carinhosa com que se tratam. A cena ressalta também a intimidade e
cumplicidade entre elas.

[...]
Lurdes Maria. O desejo de toda minha vida. Noiva!
Maria Amélia. Deixa o vestido por minha conta. Faço questão. Será o
mais bonito de todos.
Lurdes Maria. Não poderia esperar outra coisa da minha madrinha.
Maria Amélia. Madrinha? Eu?
Lurdes Maria. Afinal é ou não é minha prima querida?
Maria Amélia. Lurdinha!
Abraçam-se emocionadas.
Maria Amélia. Mais que prima. Uma irmã!
Lurdes Maria. Uma irmã!
Examinam o anel como que hipnotizadas.
[...]

Por tratar-se de um melodrama, exigiu-se o desenvolvimento de diálogos


intensos, com falas de forte apelo ao pathos, cheias de vocativos, interjeições,
reticências, metáforas e analogias que ressaltavam os estados anímicos das personagens,
suas fragilidades, medos, incertezas, etc. Como se vê nos exemplos que seguem:

[...]
Lúcio Mauro. Verdade! Deus sabe o quanto estimo vocês.
Acolheram-me quando, ainda recém nascido, fui abandonado na
130

soleira da porta desta casa. Se não fosse por Tia Júlia, eu nem sei...
Cuidou de mim e me tratou como um filho. Aproximou-me de vocês e
fez com que crescêssemos juntos, como irmãos. Depois do acidente
que vitimou os seus pais e os pais de Amelinha, nos unimos ainda
mais, pois tínhamos apenas uns aos outros. Vocês duas são a minha
família. Acredita mesmo que eu seria capaz de renegar tudo isso?
(Cena 11, Ato 1)
[...]
Maria Amélia. Existe dor maior do que amar e não ser amada em
retribuição? Se pudesse, abriria o peito e arrancaria todo esse
sentimento, mas, infelizmente, amor não se destrói... nem pela força...
nem pela fúria... amor... só se consome... até o fim... (Cena 12, Ato I)
[...]
Lurdes Maria. Vermelha... rubra... intensa... A noiva sem rosto é
Maria Amélia. Queria ser surda para não ouvir as palavras que saem
da minha boca, mas não sou. Maria Amélia, minha amiga, minha
prima, a quem considerei uma irmã, é a ameaça que paira sobre a
minha felicidade. (Cena 17, Ato I)
[...]

Nas falas dramáticas, as palavras sugerem um quadro diante do espectador,


criando uma referência imagética e ilustrativa do que vai ao espírito da personagem
naquele instante da história. Essa construção textual não deixa de ser uma estratégia que
instiga no espectador a tensão e a atenção para o que está sendo emitido pelas
personagens.
Não é a quantidade de palavras proferidas que traduzem e transmitem a
densidade psicológica das personagens, mas sim a intensidade do que é dito, na forma
como as sentenças são construídas e enunciadas. No caso do melodrama, as falas
possibilitam uma exposição que sugere – para a recepção – que as personagens estão
sempre no limite das suas forças físicas e emocionais, como é mostrado no fragmento
da cena 10, Ato I:

[...]
Maria Amélia. A carta. A carta que me pediu... Eu... Eu... Nunca a
entreguei.
131

Lúcio Mauro retira as mãos do rosto de Maria Amélia, levanta-se e se


afasta.
Lúcio Mauro. Não entregou?
Lúcio Mauro, abalado, anda de um lado para outro sem olhar para
Maria Amélia.
Maria Amélia. Depois que conversamos, eu não resisti e li. Sofri
muito com cada palavra que você escreveu. Sua declaração de amor
ofendia todo o meu sentimento.
Lúcio Mauro. Que sentimento?
Maria Amélia. Ainda tem dúvidas?
Maria Amélia desliza do sofá para o chão e se põe de joelhos diante
de Lúcio Mauro.
Maria Amélia. Te amo... com loucura... desde sempre.
Lúcio Mauro (chocado). Meu Deus!
Maria Amélia. Enciumada, tomei aquele papel como uma afronta.
Não podia aceitar que você, meu Lúcio, gostasse de outro alguém
além de mim.
Lúcio Mauro. Aquela carta... era uma esperança de felicidade... Você
me traiu, Maria Amélia. Me traiu!
Lúcio Mauro dá as costas à Maria Amélia enquanto põe a mão na
boca, numa tentativa de abafar seu sofrimento. Maria Amélia ergue-
se e se aproxima devagar e abraça Lúcio Mauro pelas costas.
Maria Amélia. Lúcio!
Lúcio Mauro livra-se do abraço de Maria Amélia com veemência.
Lúcio Mauro. Afaste-se de mim.
[...]

É interessante apontar que não só as falas são objeto das estratégias de


linguagem na construção de uma narrativa dramática ficcional. Existem ainda e também
a serviço da capacidade de persuasão do dramaturgo na construção da mímese81, as
rubricas, enquanto eficazes recursos narrativos quando bem empregados.
Quando faço referência ao bom uso de uma rubrica, desconsidero a indicação
textual que tenta suprir ou camuflar a deficiência e fragilidade do drama mascarando a
falta de ação dramática e atenho-me as indicações textuais que não se constituindo
81
Termo empregado aqui tendo como denotativo de simulação e artifício em contraposição ao significado
de reprodução.
132

como uma fala, são tão eloquentes quanto, pois a sua aplicação não é gratuita e nem
tampouco descartável podendo ser ignorada ou distorcida em uma encenação sem que
haja o comprometimento da narrativa.
Na peça aqui analisada, a rubrica foi empregada enquanto recurso narrativo,
quando havia necessidade de criar uma movimentação dramática que não cabia ser
desenvolvida no campo das palavras, do verbo. Julgando-se a ação dramática melhor
representada por uma configuração imagética do que por uma declaração verbal.
Seguem exemplos:

[...]
Lurdes Maria aos poucos se aproxima. Ficam de frente um para o
outro e se encaram por alguns instantes. Lurdes Maria dá um tapa na
face de Lúcio Mauro. Encaram-se. Lurdes Maria atira-se nos braços
de Lúcio Mauro. Abraçam-se por um longo tempo e choram
copiosamente.
(cena 11, ato I)
[...]
Lurdes Maria, em estado de choque, deixa cair Maria Amélia e a
arma. Lúcio Mauro corre e ampara Maria Amélia nos braços. Carlos
Manuel aproxima-se e ajoelha-se ao lado deles. Maria Amélia ergue
uma mão, alisa o rosto de Lúcio Mauro, e morre. Carlos Manuel
levanta-se e ergue Lúcio Mauro. Abraçam-se. Lurdes Maria observa
as mãos sujas e o vestido ensanguentado e abandona-se no chão. Ao
lado de Lurdes Maria está a carta que ela recolhe lentamente. Aos
poucos, Lurdes Maria começa a sussurrar elucubrando entre a
loucura e a lucidez. Madame Nora, lentamente, atravessa o espaço
atrás de todos, espalhando uma espessa fumaça.
(cena 27, ato III)
[...]

4.3 PERSONAGENS

Uma personagem é o ser, entidade ou agente que pertence a um universo


fantasioso criado em/para uma narrativa. No caso de uma narrativa dramática ficcional,
as personagens, por obrigatoriedade, vivenciam a história que é contada, já que cada
133

situação dramática apresenta-se com a devida caracterização dos seus agentes, seus
traços, motivações básicas, suas relações num dado tempo e espaço. Na ficção
dramática, uma personagem age de acordo com sua motivação e os objetivos contrários
instalam o conflito.
Assim, é possível reconhecer Lurdes Maria, Lúcio Mauro, Maria Amélia, Carlos
Manuel e Madame Nora como personagens cheias de personalidade, interesse e
motivação, pois cada um busca, a sua maneira, atingir um objetivo pessoal durante o
desenvolvimento do enredo. O que elas se dispõem a fazer para atingir os objetivos vai
de acordo com as características presentes em suas personalidades e que são
demonstradas nas ações executadas durante o desenrolar da trama.
Considerando a tipologia e os possíveis modos classificatórios, Thomasseau
(2005, p.39) afirma que de acordo com as convenções estabelecidas pelo clássico
gênero dramático melodrama, a divisão da humanidade82 seria ―simples e intangível: de
um lado os bons, de outro os maus. Entre eles, nenhum compromisso possível.‖ Essa
dicotomia serviu muito para o estabelecimento de parâmetros e a sistematização do
gênero nos primórdios da formação e do desenvolvimento da linguagem e da estética do
melodrama, pois as personagens eram máscaras de comportamentos fortemente
codificadas e imediatamente reconhecíveis e identificáveis pelo público.
Desde o início do desenvolvimento de um enredo melodramático, ficava claro
para o espectador do que se tratava a história e o tipo de gente que a vivenciava. Logo, o
público tomava ciência de quem eram as personagens por suas ações que revelavam o
teor de seus caráteres. Se fossem bons, agiriam com retidão e seriam cheios de virtudes,
os mocinhos, perseguidos e vitimizados pelas ações condenáveis dos vilões, maus e
cruéis do início ao fim da trama.
Dado os ditames do gênero melodramático, a peça Vermelho rubro amoroso...
profundo, insistente e definitivo! faz uso dos arquétipos bom e mau, vilão e mocinho,
porém um olhar mais detido pode observar sutilezas na construção das personagens que
revelam ser esta fronteira entre bem e mal muito mais tênue e fluida. Uma oportunidade
para trabalhar as convenções clássicas do gênero à luz de novas perspectivas, numa
tentativa de expor as múltiplas possibilidades de abordagem para o melodrama em
nossa atualidade.

82
Compreende-se o uso do termo humanidade no sentido de personas, criações dramáticas e ficcionais.
Uma ilusão de ser animado, pessoa humana.
134

No texto dramático aqui discutido, as personagens são imbuídas de contradições


e particularidades com atitudes boas e ruins, mostrando, dessa forma, uma
maleabilidade nas suas composições. Não sendo totalmente boas e nem totalmente más
(afastando-se um pouco do arquétipo melodramático enrijecido, em que o bem é sempre
bom e o mal começa e termina ruim), elas apresentam-se mais humanas, capazes de
demonstrar discernimento, egoísmo, oportunismo, altruísmo, interesse, conivência,
covardia, coragem e acima de tudo paixão e visceralidade em suas atitudes. Agindo de
forma consciente e de acordo com seus desejos. Mesmo quando suas ações são julgadas
condenáveis, as personagens têm ciência desse juízo de valor e ainda assim dão
continuidade as suas ações.
Nesse fluxo de pensamento que tenta enxergar, em nossa contemporaneidade, as
possibilidades de abordagem do gênero melodrama sob novos aspectos e
contextualizações é que firma-se a proposta do envolvimento homoafetivo entre as
personagens Lúcio Mauro e Carlos Manuel como uma tentativa de expor a diversidade
das sexualidades e os possíveis conflitos que circundam essa realidade e que estão
presentes, de forma cada vez mais notória, nas mais diversas esferas públicas e privadas
do século XXI. Como ilustração dessa afirmativa, segue trecho da cena 27, Ato III:

[...]
Carlos Manuel. “Põe de lado os precários, hipócritas e imorais
valores que nos cercam e empresta seus olhos para uma nova visão de
mundo onde não existem retesados juízos e nem juízes. Neste lugar é
que eu me encontro...”
Lúcio Mauro. Te amando.
[...]

Ainda discutindo sobre personagem, mas tratando um pouco da hierarquia de


importância dentro da narrativa, têm-se: Lurdes Maria, Lúcio Mauro e Maria Amélia
formando uma tríade relevante para a história, pois neles concentram-se e deles partem
as principais ações dramáticas que compõem o enredo. É através deles que a história
caminha de forma progressiva e gradativa. A relação fraternal rompida no passado
reorganiza-se de acordo com as revelações que vão sendo desveladas a cada nova
135

peripécia. A dinâmica do relacionamento reconfigura-se para melhor ou para pior até o


desfecho da trama.
Carlos Manuel e Madame Nora são personagens com menos relevância, pois são
mais periféricos, não estando no centro, foco, das principais ações dramáticas (com
exceção do final, uma vez que Carlos Manuel tem participação contundente à medida
que se revela que ele é o interesse afetivo das personagens Lurdes Maria e Lúcio
Mauro), funcionam como suporte para as ações das outras personagens.
Tomasseau (2005) quando aponta para o papel das personagens secundárias
dentro do gênero melodrama, afirmando que são de vital importância para a estrutura de
um enredo melodramático, pois é através das personagens secundárias que são dados
aos espectadores elementos/informações que lhes permitirão reconhecer e classificar as
personagens principais além de servirem e muito para revelar facetas e nuances dessas
personagens que estão em primeiro plano.
No exemplo que segue, cena 05, Ato I, tem-se um fragmento em que Lurdes
Maria conta a Carlos Manuel sobre seus pesadelos. Efetivamente, a cena tem como
objetivo mostrar ao espectador como são os pesadelos da personagem e a importância
que eles têm para a trama. Carlos Manuel cumpre a função de orelha83 dentro da cena.

[...]
Lurdes Maria. Tive outra vez aquele sonho, Carlos Manuel... Tão
horrível! Tão real...
Lurdes Maria levanta-se e fala enquanto afasta-se de Carlos Manuel.
Lurdes Maria (absorta). Uma mulher... não conseguia ver o rosto...
Nunca senti tanto medo. Meu corpo... Não conseguia respirar...
Parecia que a vida escapava... Cada vez que o vulto se aproximava de
mim... O vestido de noiva esvoaçava/
Carlos Manuel. Uma noiva?
Lurdes Maria. Alvo... branco... divinal. Quando estava próximo a
mim, ergueu um punhal e, juro por tudo que me é sagrado, aquilo foi
uma ameaça. Tenho certeza. Fiquei ainda mais espantada quando vi
uma mancha vermelha espalhar-se... Um vermelho... rubro... intenso...
um presságio de sangue.

83
Jargão utilizado pelos escritores na prática da escrita dramática quando fazem referência a personagem
que tem como função mais ouvir do que falar. Ela existe na cena para interagir com a personagem
principal evitando assim o monológo desnecessário.
136

[...]

Thomasseau (2005) ressalta ainda a importância do vilão para o gênero


melodramático. Segundo o pesquisador francês, é no vilão que está concentrado um
papel de extrema força e relevância, já que é pela perseguição exercida sobre a vítima
que a narrativa se preenche de manobras, desdobramentos e peripécias. É o exercício da
vilania que põe em movimento todo o maquinário da estrutura narrativa do melodrama e
a faz girar em inúmeras e inúmeras voltas.
Seguindo essa premissa que reconhece a presença chave do vilão, proponho ir
um pouco além ao afirmar que o vilão é o agente principal do melodrama, pois sem sua
ação maléfica a intriga melodramática perderia o que é essencial em sua constituição: a
certeza de que existirá um desfecho punitivo, a aplicação de um castigo justo aos
culpados e uma recompensa merecida dada aos inocentes perseguidos.
Na peça, aqui discutida, houve a preocupação de trabalhar alguns traços dos
célebres vilões melodramáticos que, na maioria das vezes, induzidos por sentimentos
torpes, tornavam-se capazes de tudo. Como foi apontado anteriormente, as personagens
não são unilaterais, apresentam em algum momento da narrativa aspectos bons e ruins.
Vê-se: Maria Amélia enciumada interceptar a carta que Lúcio Mauro escreveu para
Carlos Manuel; Lúcio Mauro unir-se a Maria Amélia tramando um plano para enganar
Lurdes Maria, etc. Mas, é na personagem Lurdes Maria que a construção da vilania se
intensifica de forma progressiva e gradual.
É difícil, porém não é impossível, encontrar peças melodramáticas em que uma
personagem feminina ocupe o posto da vilania, já que, geralmente, é dedicado à mulher
o papel da vítima perseguida e que exige proteção. Tendo feito esta observação após
leituras de algumas obras melodramáticas e com desejo de subversão, pareceu-me
interessante fazer uso de uma personagem feminina para o papel do vilão da história.
Desta forma, à medida que o texto dramático ia sendo desenvolvido, fiz esforço para
que ficassem cava cada vez mais evidentes e justificadas as motivações que conduziam
a personagem a agir daquela forma, moldando uma vilã imbuída de humanidade,
consciente de suas atitudes erradas, mas que seguia adiante almejando a realização de
seu desejo.
Alguns extratos da peça ilustram momentos em que Lurdes Maria demonstra sua
vileza crescente:
137

[...]
Lurdes Maria. Não deveria ter vindo aqui. Dei ouvidos a uma
lunática.
Retira da bolsa um maço de dinheiro e o atira sobre a mesa.
Lurdes Maria. Está aí o seu dinheiro.
Madame Nora olha para o dinheiro e depois para Lurdes Maria.
Madame Nora. Não quero. Recolhe o dinheiro e mede as palavras.
Silêncio entre elas. Depois de um tempo, Lurdes Maria recolhe as
notas.
Lurdes Maria (desabafo em fio de voz). Velha ridícula!
(Cena 15, Ato I)
[...]
Lúcio Mauro. Quando você se tornou assim... tão má?
Lurdes Maria fala de soslaio.
Lurdes Maria. Ah, Lúcio! Má, eu sempre fui, meu querido, mas só
agora precisei mostrar-me... sincera.
(Cena 22, Ato II)
[...]

4.4 EFEITOS EMOCIONAIS DESEJADOS

Na construção de um texto dramático, as convenções/concepções existentes na


obra são agenciadas em um discurso e veiculadas no instante da apreciação. Partindo
dessa premissa, é possível considerar que, neste mesmo discurso concebido pelo autor,
exista a tentativa de antever as possibilidades de efeitos que serão suscitados no público
no momento de uma enunciação.
Essa possibilidade de suscitar efeitos exige do dramaturgo o trabalho de pensar a
obra em diferentes níveis, considerando a relevância da história, mas, também, e de
igual importância, a forma, a maneira, como essa história é contada, pois os efeitos
imaginados no instante da concepção podem ser suscitados através de fontes diversas
como um diálogo ou uma marcação cênica oriunda de uma rubrica, por exemplo.
É imprescindível observar que a composição de estratégias para a produção de
efeitos em uma narrativa dramática de ficção não é uma sentença axioma de sucesso,
pois não há uma garantia de que os efeitos esperados serão alcançados. Nessa complexa
138

equação, existem múltiplos fatores que influenciam e alteram os resultados. A


previsibilidade de suscitar os efeitos almejados, de maneira efetiva e válida, pode
acontecer à medida que a recepção aceite as estratégias imbuídas nas narrativas
ficcionais dramáticas, através de um acordo (pacto receptivo), permitindo-se então fruir.
No caso aqui estudado, tomando como base fundamental o melodrama, organizo, de
acordo com meus critérios artísticos e universo simbólico, alguns recursos narrativos do
gênero e os engendro enquanto estratégias de composição com o intuito de provocar
efeitos emocionais específicos como a piedade, admiração84 e evocar, na recepção, a
sentimentalidade.
Ter piedade, condoer-se, é uma emoção dedicada aos bons, aos mocinhos das
histórias que sofrem infortúnios e são vítimas de circunstâncias. Como aponta Carrol
(1999), os espectadores apiedam-se quando veem coisas más acontecendo a pessoas
boas, ou coisas desproporcionalmente más acontecendo a pessoas de caráter misto.
Parece que a emoção parte do princípio de que aquelas ―pessoas‖ não são merecedoras
de mazelas e estão sofrendo uma injustiça da vida ou do destino.
A admiração seria uma emoção provocada no espectador de forma exponencial
à medida que a história o envolve e existe a identificação com alguma personagem –
ligação afetiva com um herói e/ou heroína devido à virtuosidade que caracteriza a
personagem e suas ações – ou pelo desempenho de uma personagem em uma
determinada situação dramática com a qual o espectador se identifica. Quanto mais
forem ressaltadas as virtudes de uma personagem e na mesma medida, quanto maior
forem as adversidades enfrentadas por ela com boa dose de sacrifício e resignação,
mais intensa será a admiração despertada no público, pois este passa a testemunhar
com certa respeitabilidade todo o experimento que acompanhou através da história
vivenciada pela personagem.
Em Vermelho rubro amoroso... profundo insistente e definitivo! acontece na
cena final um instante em que essas duas emoções são trabalhadas. No trecho final da
cena 27, Ato III, em que Lurdes Maria atira em Lúcio Mauro, mas acerta Maria Amélia.
Neste momento, a personagem de Maria Amélia pode despertar no espectador a
piedade (suas falhas do passado foram reparadas quando revela para quem a carta se
destinava, tornando-a humana e boa aos olhos de todos) e a admiração (como ato maior

84
Esses efeitos emocionais já foram apontados anteriormente no capítulo 2 desta pesquisa.
139

de amor, sacrifica-se, dando a sua vida para que Lúcio Mauro possa viver e ser feliz ao
lado de Carlos Manuel).
Os vilões, via de regra, não provocam esses tipos de emoções nos espectadores,
pois não são dignos de piedade, porque, por pior que seja o flagelo recebido por eles,
parece ser o castigo merecido e ainda, apesar da vilania conter em certo aspecto um
magnetismo sedutor, admirá-la necessita de uma identificação contundente, algo que
nem todos – público – estão preparados para assumirem. Nesta lógica, a personagem
Lurdes Maria, representativa da vileza, suscita no espectador a antipatia, revolta,
indignação, o desejo forte de punição por todo o exercício de maldade praticado ao
longo do enredo melodramático.
Inspirando-me nos trabalhos de Ed Tan e Nico Frijda (1999) tento explorar a o
sentimentalismo e a atmosfera de sentimentalidade como um dos extratos do gênero
melodrama manifestados tanto nas personagens quanto no público, como uma
consequência do acúmulo de toda a tensão exposta no drama ao longo do
desenvolvimento da trama. Considerando essa observação dedico atenção a trechos da
última cena da peça teatral Vermelho rubro amoroso... profundo, insistente e
definitivo!, reconhecendo e propondo análise das estratégias melodramáticas
agenciadas.

4.5 AS ESTRATÉGIAS MELODRAMÁTICAS

Os trechos destacados pertencem a cena 27, Ato III, e foram escolhidos por
mostrarem-se mais representativos das estratégias compostas para a produção de efeitos
emocionais e satisfatórios para ilustrarem as observações que serão apontadas. No
fragmento que segue, foram utilizadas duas estratégias, tendo como objetivo aumentar a
expectativa, surpreender e estimular no público a piedade para com a personagem Lúcio
Mauro.

[...]
Lúcio Mauro. Eu vou contar.
Lúcio Mauro aproxima-se de todos.
140

Lúcio Mauro. Sabendo o quanto eu queria conhecer a identidade dos


meus pais, Lurdes Maria me enredou. Fui fraco, eu sei, mas a
possibilidade... entende? Eu...
À medida que falam, Lúcio Mauro e Maria Amélia deslocam-se e se
posicionam como estavam no instante em que Lúcio Mauro tentou
matá-la no interior da chácara.
Lúcio Mauro. Quero saber quem são os meus pais.
Lúcio Mauro avança em direção a Maria Amélia.
Maria Amélia. Não, Lúcio, por favor! Eu sei quem é sua mãe.
[...]

Em uma primeira instância, existe a preocupação nas duas formas de abordar o


passado dentro da narrativa. Uma, que é a mais comum dentro do gênero melodrama, é
quando a personagem relata os eventos acontecidos depositando nas palavras toda a
carga dramática. A outra forma mostra-se mais ousada porque interrompe o fluxo
narrativo para fazer uma subversão temporal e que possibilita não apenas tomar
conhecimento dos fatos, mas também a chance de testemunhar como, tais fatos, foram
vivenciados pelas personagens envolvidas. Uma estratégia que torna mais forte a
impressão do hic et nunc85 à medida que faz o passado tornar-se presente.

[...]
Lúcio Mauro fecha o diário.
Lúcio Mauro. Tia Júlia é a minha mãe!
[...]

A identidade da mãe de Lúcio Mauro já havia sido revelada em cena anterior,


porém o que se trabalha aqui é a ideia do encontro e da perda em um mesmo instante,
pois ele descobre quem é sua mãe e sabe que ela está morta. Faz-se uso principalmente
do diálogo enquanto recurso narrativo e objetiva-se suscitar no espectador piedade pela
personagem Lúcio Mauro que vê seu passado desvelado aos poucos.
Dando continuidade à discussão, trago em destaque o novo estado que se
encontram as personagens Lúcio Mauro e Maria Amélia.

85
Do latim, Aqui e agora.
141

[...]
Lúcio Mauro. Estou ainda mais angustiado do que antes. Minha
esperança de ter uma família foi em vão. Estou como sempre fui... só.
Maria Amélia. Não está sozinho. Tem a mim.
Lúcio Mauro segura as mãos de Maria Amélia entre as suas.
Lúcio Mauro. Amelinha! Há pouco eu poderia ter tirado a sua vida.
Maria Amélia. Se estiver disposto a me perdoar, eu me disponho a
fazer o mesmo.
Lúcio Mauro abraça Maria Amélia. Um longo e emocionado abraço.
[...]

Depois de perdoarem-se, as personagens estão ―renovadas‖, pois os problemas


que tinham foram suplantados e a harmonia restabelecida. Um equilíbrio instala-se entre
eles e uma nova motivação os une: punir Lurdes Maria. Aos olhos do público, as
personagens tornam-se cúmplices tendo uma justificável causa que é combater as ações
de uma ―vilã‖.

[...]
Lúcio Mauro. Ela sabia que a minha mãe estava morta e ainda assim/
Maria Amélia aproxima-se de Lúcio Mauro e segura em suas mãos.
Maria Amélia. Temos que agir com cuidado de agora em diante.
Lurdes Maria nos fez de marionetes e acha que ainda nos manipula.
Lúcio Mauro. Aonde quer chegar?
Maria Amélia. Nós a venceremos em seu próprio jogo. Fingiremos
minha morte e assim poderemos/
Lúcio Mauro. Descobrir a identidade do meu pai/
Maria Amélia. E mostrar a Carlos Manuel quem é minha prima.
[...]

Após mostrar, ao público, como se constituiu o plano de ludibriar Lurdes Maria,


enganando-a com fotografias, Lúcio Mauro e Maria Amélia desmascaram-na diante
Carlos Manuel. Esse instante da narrativa é um ponto de virada no enredo, pois
representa o momento em que a personagem Carlos Manuel cresce e ganha mais
relevância na história, passando a conduzir os eventos e alterando a dinâmica entre as
personagens. Tanto o diálogo quanto a rubrica, tem papeis estratégicos na composição
142

da cena dramática, pois tanto um quanto o outro, complementam-se e funcionam


enquanto dispositivos que chama atenção para a mudança na atmosfera apresentada até
então.

[...]
Carlos Manuel. Tudo isso abriu os meus olhos.
Lurdes Maria. Meu amor/
Carlos Manuel. Não me chame assim.
Lurdes Maria. Hoje é o nosso casa/
Carlos Manuel caminha devagar em direção a porta. Lurdes Maria se
interpõe na frente de Carlos Manuel.
Lurdes Maria. Espere. Você está confuso é só isso.
Carlos Manuel. Estava me enganando todo esse tempo.
Lurdes Maria segura o rosto de Carlos Manuel entre suas mãos e o
beija. Carlos Manuel não corresponde. Os dois ficam se olhando por
certo tempo e em silêncio. Devagar, Carlos Manuel, retira as mãos de
Lurdes Maria do seu rosto.
Carlos Manuel. Agora sei que não te/
Lurdes Maria. Não diga/
Carlos Manuel. Não te amo.
[...]

Há nesta sequência de ações dramáticas, um trabalho de gradação na intensidade


do drama exposto, principalmente, da personagem Lurdes Maria que, paulatinamente,
vai sendo dominada por suas emoções ao perceber que a cada gesto, a cada fala, Carlos
Manuel distancia-se dela.

[...]
Lurdes Maria, emocionada, abraça-se a Carlos Manuel. Em um
crescente de emoção, ela ampara-se no corpo dele, mas não consegue
permanecer de pé. Desliza até o chão e fica prostrada de joelhos na
frente dele, chorando. Lúcio Mauro e Maria Amélia observam o
sofrimento de Lurdes Maria. Carlos Manuel se afasta, mas a fala de
Lurdes Maria o impede de seguir adiante.
Lurdes Maria (verdadeiramente sofrida). Eles têm razão... Queria ser
boa, mas não sou. Agi de forma condenável, mas foi por medo de
perdê-lo. Os pesadelos, as premonições de Madame Nora. Vi a
143

mancha na roupa de Maria Amélia e... Acha que sou incapaz de ser
verdadeira? Convivo com uma verdade desde que te conheci: o meu
amor.
[...]

O uso da rubrica ―verdadeiramente sofrida‖, posta no início da fala da


personagem Lurdes Maria, funciona como uma sinalização para os executores86 da obra
de que naquele momento a personagem desvela-se de qualquer dissimulação ou
tentativa de manipulação da situação. Objetiva-se despertar no espectador, certa dose de
comoção para com a personagem ao expor sua fragilidade mesmo que
momentaneamente. A estratégia organizada faz uso, principalmente, das
palavras/diálogo e da sugestão de uma marcação cênica – a personagem está prostrada
no chão, abandonada – simbolismo do estado de espírito da personagem naquele
momento da cena, sentindo-se diminuta diante do que acontece.
No fragmento que segue abaixo, expõe-se a grande revelação da peça e que foi
protelada o máximo possível dentro da trama como uma tática para intensificar o efeito
da surpresa associado à atmosfera sentimental que tal evento poderia provocar, desde
quando fica evidenciado todo o sentimento que Lúcio Mauro nutre por Carlos Manuel e
o sacrifício que se dispôs a fazer para ver o outro feliz. Aposta-se na empatia que a
personagem Lúcio Mauro pode despertar na plateia e na admiração já que, neste exato
ponto da trama, sugere-se que Lurdes Maria não é merecedora do amor de Carlos
Manuel e que Carlos Manuel nunca a amou verdadeiramente.

[...]
Lúcio Mauro. A carta/
Lurdes Maria. Esqueça isso, Lúcio.
Lúcio Mauro. Não era para você/
Lurdes Maria. O que?
Lúcio Mauro. A carta que escrevi... não foi para você.
Carlos Manuel entra na sala, seguido por Maria Amélia, trazendo nas
mãos a carta. Ao vê-lo, Lurdes Maria e Lúcio Mauro levantam-se.
Lurdes Maria. Carlos Manuel!
Carlos Manuel (p/ Lúcio Mauro). Maria Amélia me contou.
86
Diretores, atores, produtores e outros profissionais responsáveis por um processo de encenação.
144

Carlos Manuel aproxima-se de Lúcio Mauro e mostra a carta.


Carlos Manuel. É verdade?
[...]

Há, no fragmento mostrado acima, o apelo à sentimentalidade, pois a partir daí,


cada uma das personagens, imbuída de motivações próprias, reagem aos eventos
dramáticos de acordo com seu estado de espírito. A felicidade que se inicia para Lúcio
Mauro e Carlos Manuel ultrapassa o campo das palavras e invade o das ações físicas,
culminando com um beijo apaixonado que traduz o que já não é mais possível pelas
palavras.

[...]
Lúcio Mauro e Carlos Manuel entreolham-se e beijam-se. No
encontro entre os corpos, o vinho que está no cálice segurado por
Lúcio Mauro é derramado na sua vestimenta e o cálice cai no chão,
assim como a carta. Lurdes Maria, trôpega, afasta-se caminhando
para o fundo da sala e lá se ampara em um móvel. Maria Amélia,
emocionada, afasta-se também. Lúcio Mauro e Carlos Manuel se
separam e entreolham-se, admirados.
[...]

Toda a emoção, causada pela união de um par amoroso, contrasta com o


turbilhão de emoções conflituosas vivenciadas por Lurdes Maria que testemunha a
felicidade alheia e se dá conta de todos os avisos recebidos ao longo da história. De
forma progressiva, Lurdes Maria entende que tudo o que fez foi em vão e sente
angústia, tristeza, desespero, etc. Sente tudo e de forma demasiada, rompe em lágrimas.
Na sequência final da peça, Maria Amélia prepara-se para experimentar a
redenção e vivenciar a abnegação, abrindo mão do seu sentimento para que Lúcio
Mauro seja feliz ao lado de Carlos Manuel, uma ação que pode ser admirável aos olhos
do público.

[...]
Lúcio Mauro. Deixe-nos ir, Lurdes. Merecemos a felici/
Lurdes Maria (verdadeiramente sofrida). E quanto a mim?
Lurdes Maria aponta a arma para Lúcio Mauro.
145

Lurdes Maria (confusa). E eu? (perturbada e colérica) E eu?


Lurdes Maria atira em Lúcio Mauro, mas acerta Maria Amélia que se pôs na
frente dele. Maria Amélia ferida caminha em direção a Lurdes Maria e cai em seus
braços manchando o vestido de noiva de vermelho.
Maria Amélia. Nem eu, nem você.
[...]

O clímax do enredo é alcançado em comunhão ao ápice da manifestação do


pathos das personagens ao atingirem os seus limites de envolvimento afetivo com a
situação dramática que vivenciam. Maria Amélia sacrifica-se em nome do amor e assim
alcança a sua redenção, ao mesmo tempo em que sua atitude de total abnegação
condena Lurdes Maria a loucura com igual intensidade e força dramática.
A morte de Maria Amélia é estruturada de forma a provocar no espectador
piedade e forte comoção, pois ela morre como uma heroína amorosa, cumprindo seu
objetivo anunciado em uma das cenas iniciais da peça.

[...]
Maria Amélia. Acredite quando digo que me arrependi do que fiz. Se
fosse preciso, daria minha vida para reparar o meu erro e garantir a
sua felicidade.
[...]

Tudo na cena ganha tal dimensão sentimental que não há necessidade de


palavras quando a personagem Maria Amélia agoniza nos braços de Lúcio Mauro,
bastando apenas um gesto, doce e delicado, para expressar o que a personagem sente.
Lurdes Maria recebe o castigo quando perde o que a mantinha lúcida e sã: o
amor de Carlos Manuel e os laços fraternos que a unia a Lúcio Mauro e Maria Amélia.
Alvo das reviravoltas do destino, ela, Lurdes Maria, vê-se vestida de noiva com a
mancha vermelha estampada no vestido e compreende que ela própria era a ameaça
presente em seus sonhos e nas premonições de Madame Nora. O desfecho trágico de
Maria Amélia estende-se a Lurdes Maria quando não consegue mais fazer uso de uma
razão coerente.

[...]
146

Lurdes Maria, em estado de choque, deixa cair Maria Amélia e a


arma. Lúcio Mauro corre e ampara Maria Amélia nos braços. Carlos
Manuel aproxima-se e ajoelha-se ao lado deles. Maria Amélia ergue
uma mão, alisa o rosto de Lúcio Mauro, e morre. Carlos Manuel
levanta-se e ergue Lúcio Mauro. Abraçam-se. Lurdes Maria observa
as mãos sujas e o vestido ensanguentado e abandona-se no chão. Ao
lado de Lurdes Maria está a carta que ela recolhe lentamente. Aos
poucos, Lurdes Maria começa a sussurrar elucubrando entre a
loucura e a lucidez. Madame Nora, lentamente, atravessa o espaço
atrás de todos, espalhando uma espessa fumaça.
Lurdes Maria. Ah, como eu amei! Ela viu. Tentou me avisar. Fui
ludibriada... aquele vermelho... tanto sangue... Madame Nora tinha
razão, meu Deus! Madame Nora, tinha razão. As cartas não mentem
jamais! Não mentem... as cartas... não mentem... As cartas não
mentem jamais!
Luz cai em resistência.
[...]

Com o fim da ameaça e a punição destinada ao mal, a paz é restabelecida após


longo e tortuoso caminho de atribulações, a felicidade, finalmente, chega para Lúcio
Mauro e Carlos Manuel na conclusão do enredo. Essa é a recompensa destinada aos
merecedores ao mesmo tempo em que é oferecido à plateia um lugar confortável e
seguro após a maratona de emoções testemunhada e experimentada através da narrativa
dramática ficcional proposta.
Essa reflexão pauta-se muito no exercício do pensar a obra como um todo, um
conjunto, tendo ciência de que não é fácil precisar se as conceituações apontadas aqui
foram intuídas, estudadas, sistematizadas através de leituras e, então, confirmadas pela
escrita propriamente dita da peça ou se foram o estopim para a escrita, ou ainda, se essas
conceituações foram reformuladas no decorrer da construção da narrativa dramática
ficcional. Existe a certeza de que ―[...] o artista dialoga também com a obra em criação.
Ele, muitas vezes em meio à turbulência do processo, vê-se produzindo para a própria
obra [...] Nesses momentos, fica claro que a futura obra justifica o processo‖ (SALLES,
2009, p. 51) e que, como aponta Pareyson (1993), ao produzir, o artista, se deixa guiar
pela própria obra que vai fazendo.
147

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não nomearei este momento como uma conclusão, pois sei que não se trata
disso. Minha fé numa prática continuada de estudo e produção de conhecimento me
detém e impede o levantamento de tal afirmativa. Acredito que é chegado o momento
para expor aqui e deixar em registro algumas ponderações em relação ao trabalho
executado e o caminho traçado para esta execução.
Neste lugar, encontro-me satisfeito, pois carrego, em mim, a crença de que atingi
meus objetivos ao propor um estudo sobre o melodrama, detendo minha atenção aos
possíveis efeitos emocionais que o gênero seria capaz de suscitar no espectador
contemporâneo. Nessa seara, fiz um recorte apropriado aos meus interesses de
pesquisador e artista ao considerar que um dramaturgo poderia antever as emoções que
seriam suscitadas no espectador e criar estratégias durante o seu processo de criação,
fazendo uso de alguns elementos que constituem e caracterizam o gênero melodrama
como recursos para atingir tal intento.
Dediquei-me a avançar a investigação de forma paulatina, passo a passo,
cuidando de cada etapa para que minhas observações estivessem bem fundamentadas e
conduzissem o leitor de maneira progressiva pelo caminho que trilhei no processo de
pesquisa.
Desejando compartilhar as minhas impressões com clareza e coerência,
debrucei-me no melodrama, constatando que o gênero modernizou-se e adequou-se ao
sabor dos tempos para (r)existir em nossa atualidade, em diferentes meios de
comunicação, sob diferentes formas e aspectos. Creio que onde existem situações
dramáticas capazes de induzir a plateia a uma constante dinâmica de apelo às emoções e
sensações, lá pode ser encontrado o melodrama, exercitando o seu fascínio através da
ilusão, identificação e principalmente da emoção.
Investigar, mesmo que de forma breve e sucinta, a relevância do gênero
melodramático, sua permanência/resistência e as possibilidades de abrangência pelo
viés dos efeitos emocionais, traz a certeza de que estamos diante de um vasto campo de
pesquisa em constante transformação e propício para inúmeras outras propostas de
reflexões sobre os mais diversificados aspectos e perspectivas sobre o gênero.
Nos primeiros momentos dessa pesquisa, expus observações sobre o melodrama
numa tentativa de ir além dos conceitos já pré-formados e que o mitificam como algo
148

menor em comparação aos outros gêneros da literatura dramática, classificando-o como


raso, repleto de artificialidades, sentimentalidade barata e de situações inverossímeis.
Deixando essas impressões reducionistas de lado e procurando demonstrar a
versatilidade e abrangência do melodrama, acompanhou-se a evolução do gênero desde
a sua origem na França do século XVIII até a atualidade, considerando seus elementos
constituintes e caracterizadores, a reconfiguração desses elementos e sua aplicabilidade
nos meios de comunicação.
Indo um pouco além da identificação e reflexão sobre o gênero, observei que
muito de sua força e continuidade estão vinculadas às suas tematizações universais, pois
se pautam em questões que tocam na sensibilidade do humano. As relações que
envolvem afetividades, sentimentos e sentimentalidade serão sempre o poderoso mote
de impasses que desencadeiam conflitos em situações intensas e vívidas, passíveis de
serem representadas.
Fazer uso do melodrama, independente do meio comunicacional em que estiver
inserido, é apostar no seu aspecto sedutor e espetacular. Este encantamento, espécie de
apreensão hipnótica que o gênero melodrama provoca no espectador, conduziu a
pesquisa a investigar as possíveis causas para esse fenômeno chegando a um fértil
campo: a emoção e as estratégias para produção de efeitos.
Buscando conceituações sobre estratégias de produção de efeitos, encontrei nos
trabalhos do pesquisador Wilson Gomes (1996, 2003 e 2004) uma diretriz satisfatória
que preenchia as necessidades dessa pesquisa ao distinguir – num primeiro momento –
os efeitos (emocionais, cognitivos e sensoriais) e sinalizar a importância da natureza da
experiência do espectador (fruição), levando em conta os diferentes modos como uma
obra artística pode afetar e influenciar a visão de mundo através da experiência estética
e da mobilidade do arcabouço sentimental inerente ao espectador.
Para atingir um efeito, é preciso compor uma estratégia a partir dos elementos
que constituem a obra, tendo em vista que a funcionalidade da estratégia só acontece no
instante da mediação, quando a obra e o espectador interagem.
A criação de uma narrativa dramática ficcional para o teatro, explorando o
gênero melodrama, mostrou-se propícia, não apenas como uma complementaridade do
estudo proposto, mas também como um instrumento resultante de uma prática artística
que pode estimular a partilha de impressões, fomentar diálogos, debates e discussões a
cerca de aspectos do gênero melodrama, sua evolução e relevância, além de chamar
149

atenção para algo tão complexo e interessante que são as emoções e os estados anímicos
que podem acometer a recepção no instante da fruição de uma obra artística.
O processo dramatúrgico para elaboração de Vermelho rubro amoroso...
profundo, insistente e definitivo! foi um vasto e enriquecedor exercício, pois como
afirma Salles (2009), o artista como sendo o primeiro receptor da obra, é o primeiro a
ser atingido por seus efeitos.
Llosa (1971) relata a ternura que sentiu por uma personagem de A Casa Verde e
como essa emoção, durante a construção de determinados episódios, o compeliu a
levantar-se da máquina, descomposto pela emoção. Assim também me surpreendi
algumas vezes, tocado pelas emoções que tentava apreender nas linhas do meu trabalho,
confiando por vezes na intuição e na certeza de que ―muito da complexidade da relação
do artista com a matéria se explica pela mobilização interior que esse confronto exige,
mobilização essa de considerável intensidade emocional‖ (SALLES, 2009, p. 767)
Sempre tive clara a ideia de que por mais que se tenha planejado, pensado na
possibilidade de criar método e modelo, por mais que se tenha pesquisado sobre o
gênero melodrama e pensado a organização que deveria ser aplicada ao drama, o
caminho só é revelado à medida que é trilhado, vivenciado pela escrita. Configurando
este ―o arcano procedimento do artista: em seu produzir ele se deixa guiar pela própria
obra que vai fazendo‖ (PAREYSON, 1993, p.76). Aplica-se aqui a velha e profunda
sabedoria popular: Só aprende-se a fazer, fazendo.
Exatamente assim, deu-se a escrita dessa peça teatral. Um jogo que
constantemente surpreendia o jogador pelas exigências das regras. Criar, considerando o
lugar da emoção do dramaturgo e da plateia em uma dinâmica constante de projeção,
antevendo uma possível reação, uma possível emoção, não é tarefa simples. É trabalho
árduo, pois é impossível estabelecer com exatidão que a emoção do público é suscitada
por uma determinada estratégia dramática, já que alguém da plateia pode estar
emocionado por motivos pessoais que nada tenham a ver com o que é apresentado.
Assim sendo, não sei se serei bem sucedido no meu intento, pois tenho ciência de que
esse tipo específico de sucesso é uma abstração impossível de alcançar, na exata medida
em que é igualmente impossível prever, pela arte, qualquer unanimidade de recepção.
Como afirma Salles (2009) quando diz que no processo de criação artística, onde existe
qualquer possibilidade de variação contínua – aqui inserida a ideia de incompletude
como algo inerente a obra artística – a precisão absoluta é impossível.
150

O desafio da escrita estendeu-se além da emoção, indo desde a história a ser


contada à maneira de ser contada, exigindo cuidado no manuseio dos
elementos/recursos do gênero melodrama e, ao mesmo tempo, arriscando ir um pouco
além do lugar-comum já tão explorado no universo dramático do qual o gênero faz parte
ao abordar uma relação homoafetiva. Proposição de um espírito artístico inquieto que
busca na sua expressão artística um espaço para a reflexão de nossa atualidade
encarando como desafio escrever, no ano de 2013, um melodrama e não apenas ―mais
um melodrama‖.
Fiz uso e abuso de algumas convenções da linguagem melodramática, do
derramar-se, do rasgar-se, do depositar em palavras todo um universo sentimental e
sensório e, ainda assim, quando não houve mais palavras, acreditei no romper-se em
lágrimas, na passionalidade e na sentimentalidade para atingir o máximo, o ápice, em
cada cena do drama proposto. Um trabalho que exigiu inspiração e muita transpiração
acima de tudo e sem sombra de dúvidas.
Tenho em mim certa inquietação de que não posso escapar do questionamento
sobre o que sei da minha obra, ou ainda, do que sei sobre o meu ofício de escritor
dramático. Em vista disso, comungo com Vendramini (1994, p. 02) quando afirma que
―[...] por mais culto que seja o dramaturgo, sua capacidade de analisar a própria peça
não é garantia suficiente para torná-la teatral, encenável, de qualidade.‖ No final, ficam
em mim poucas certezas e muitas dúvidas. Não sei se escrevi uma boa peça teatral, mas
sei que bebi bastante do líquido melodramático e fiquei inebriado, vertical e
profundamente sensível e emotivo.
Encerro fazendo minhas as palavras finais de Caio Fernando Abreu no conto
Aqueles dois: “Tentei. Tentamos87.”

87
Abreu, Caio Fernando. Morangos Mofados – Contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1982.
151

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