Narrar para Nao Morrer A Historia de Sherazade

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NARRAR PARA NÃO MORRER:

A HISTÓRIA DE SHERAZADE

Fernanda Coutinho

Dizem os árabes que ninguém consegue


Ler até o fim esse livro das Noites.
As noites são o Tempo, o que não dorme
5egue a leitura enquanto morre o dia
E 5herazade te contará tua história.

Jorge Luis Borges

O povo árabe é um povo de contadores:


a poesia lhes rem ao nascimento e, nessa vida de repouso
e cansaço, não ter outra alegria depois do amor, além de
uma história compilada e cheia de toda espécie de paixão
e aventuras.
É preciso que o árabe conte, como é
preciso que o gondoleiro de Veneza cante. O árabe tem
contos para todas as posições da vida: alegria ou dor, ruína
ou fortuna, doença ou saúde. Alivia as dores contando,
aumenta alegria contando. O conto é o sonho acordado
do árabe. É a sua vingança e a sua admiração, é a sua
censura e o seu louvor. Ele põe nos contos o bom príncipe
ou o mau ministro e Já-lo desempenhar papel digno dele.
5ob a tenda numa cidade, sob a árvore
que se coroa de folhas ao bordo da fonte límpida, e no
deserto de areia invadido de sol; ott no meio do palácio
de mármore e ouro; ou sob a cabana, o que pede o árabe?
Um conto, um conto bem feito, isto é, bem estranho, bem
maravilhoso; e então ele ouve mo/emente, acalantado por
essa língua harmoniosa que é o italiano do Oriente.

Janin
77
Nada mais natural para quem se propõe a falar sobre Sherazade
do que principiar pela exposição de alguns relatos. O primeiro que aqui
se coloca é da autoria de um também contador de histórias, que, ao lado,
de sua produção ficcional, desenvolve uma prática ensaística, onde os
meandros da relação leitor /auditor /texto são colocados em evidência.

O contador de histórias referido é o


argentino Ricardo Piglia (Adrogué, Buenos Aires, 1940),
que, no questionamento, bem como na narração que o
ilustra, traz à cena uma dúvida antiga, digamos, uma
indagação de mil e uma noites: que tipos de laços travamos
com a matéria ficcional? A problemática é conduzida por
Piglia nos termos seguintes:
O que quer dizer terminar uma obra?
De quem depende decidir que uma história está terminada?
Flannery O 'Connor, a grande narradora norte americana,
contara lima história muito divertida. '8

Tenho lima tia qlie pensa que nada


acontece num relato, a menos qlie alguém se case ou
mate outro no final. Escrevi um conto em qlie um
vagabundo se casa com a filha idiota de uma velha.
Depois da cerimônia, o vagabundo leva a filha em
viagem de núpcias, abandona-a num hotel de estrada
e vai embora sozinho, conduzindo o automóvel. Bom,
essa é lima história completa. E no entanto não pude
convencer minha tia de que esse era lim conto completo.
Ela queria saber o acontecia com a filha idiota depois
de abandonada. 79

No segundo relato, em vez de uma pessoa anônima, temos à fren­


te alguém de renome no mundo da criação literária. Trata-se de Oscar
Wilde, aqui mostrado em sua faceta de escritor que, muitas vezes, faz do
espaço do texto um loC!is para a discussão das idiossincrasias da narrativa
78 Flannery O'Connor (Savannah, Geórgia, 1925- Milledgeville, Geórgia, 1964). Entre seus romances, encontram­
se O céu é dos violentos e Sangue sábio, além de contos consagrados, reunidos nas coletâneas: Um bom homem
é difícil de encontrar e Tudo o que sobe deve convergir.
79 PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José �farcos ;\fariani de �!acedo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004. p.100.

78
e de sua repercussão sobre o leitor. Como sabemos, Wilde legou-nos
uma profusa coleção de aforismos e frases célebres, e, nesse particular,
é-lhe creditada uma famosa afirmação, que nos chega por meio de um
diálogo entre dois amigos, Vivian e Cyrillo, no qual o primeiro deles
expõe suas idéias a respeito da arte, buscando munir-se de material para
uma discussão estética que terá por titulo A decadência da mentira.
Nesse ensaio, publicado em 1891, entre outras ocorrências de
metadiscursividade, observa-se a que se segue:

Uma leitura constante de Balzac


converte nossos amigos vivos em sombras e nossos conhecidos
em sombras de sombras. Seus personagens têm uma espécie de
vida férvida e fortemente colorida. Dominam-nos e desafiam o
ceticismo. Uma das maiores tragédias de minha vida é a morte de
Lucien de Rubempré80. É um pesar de que jamais consegui
libertar-me completamente. Persegue-me em meus momentos
81
de prazer. Lembro-me dele quando rio.

De uma maneira ou de outra, fica clara a visceralidade da experi­


ência com o mundo ficcional, o qual se impõe de tal forma ao imaginário
humano, que uma suspensão abrupta da narrativa gera mal-estar, pas­
sando o leitor /ouvinte a sentir-se logrado em sua boa-fé como habitante
do mundo-do-faz-de-conta.
Esse é bem o caso da tia de Flannery O'Connor, que passa a
figurar como modelo de leitora insatisfeita para Piglia. Em Wilde, o
processo se delineia a partir da visão fiou que se estabelece nos contornos
entre ficção e realidade, ou entre realidade ficcional e realidade factual,
se preferirmos, uma vez que, por intermédio de Vivian, ele incorpora
ao personagem o estatuto de alguém p er tence nte ao mundo referencial.
Essas situações relacionadas à fruição da fantasia encontram
em Sherazade, a narradora de As Mil e uma noites, e Xariar, seu ouvinte
preferencial, o exemplo de uma experiência paradigmática.
Mas de onde teria surgido essa pessoa capaz de tão bem mani­
pular os dados da imaginação, em outras palavras: quem era Sherazade?
80 "A Decadência da mentira." ln: WILDE, Oscar. Obra completa. Org., Trad. e Anot., Oscar Mendes. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 1077.
81 GALL\ND, Antoine. (Versão) A� mil e uma noires. TraJ. ;\fartim Velho Sotto Maior. f?J: Unaria Paisagem
Rio, f?J.[ \�1, p. 22.

79
Sherazade era a filha de um vizir, que se ofereceu para entreter
Xariar, contando-lhe histórias, na intenção de salvar as mulheres de sua
terra, que morriam todas as manhãs, porque o rei, tendo sido traído,
avaliava-lhes a fidelidade pela medida de uma noite. No caso presente,
então, a ficção opera uma metamorfose, um deslocamento de sentidos:
habitualmente tomada como uma inverdade é ela que, através da retórica
sedutora de Sherazade, de seu poder de sortilégio, restabelece para Xariar
a noção de confiança, passando sua vida a ser regida pelo viés da ficção.
A descrição de Sherazade aparece logo na secção "Contos árabes",
que abre o primeiro dos seis livros da série:

tinha um ânimo Jttperior ao seu sexo,


muitíssimo espírito e uma admirável perspicácia. Lia muito
e tinha tão prodigiosa memória que nada lhe escapava de
tudo quanto lesse. Tinha-se aplicado devotadamente ti
filosofia, à medicina, à história e às bela.; artes; efazia melhore.r
versos que o.r do.r poetas mais célebres de se11 tempo. Além disso,
era dotada de uma surpreendente beleza; e uma virtude muito
82
sólida coroava todas e.rsas excelentes qualidades.

O retrato inteiro, de corpo e alma, denota um dos primeiros


aspectos do perfil identitário dessa narradora extraordinária: a idéia
de uma personagem que permite ao mundo feminino ter novamente
acesso à luz do dia, quer dizer, em função de sua arte de seduzir pela
palavra, suplanta-se a dimensão noturna de todo um gênero. Definindo­
se como uma mulher transgressora, ela vai de encontro inicialmente às
ponderações e súplicas de seu pai:

Não, não di.rse o vzzzr- .ro/a o


-

que for que me quereis apresentar com o fim de me levar a


permitir que vos lanceis nesse horrível perigo, não imagineis
que eu consinta nisso. Se o sultão me ordenasse que eu vos
metesse o punhal no vosso coração, então teria de obedecer,
que triste ofício para um pai. Ah! se nada receais da morte,
receai ao menos causar-me a dor mortal de ver as minhas
mãos tintas com o vosso sangue.83 (grifo nosso)
Mesmo o sultão faz uso de um discurso dissuasivo para afastá-la
de seu intento, alertando-a para o preço a ser pago pela persistência:
82 GALLAND, id., p. 23.
83 idem, ibidem.

80
"Quem não prevê o fim de uma aventura perigosa não poderá dela sair­
se airosamente." 84 Bem a propósito, de acordo com Roland Barthes:
"Teimar quer dizer, em suma, manter ao revés e contra tudo a força de
uma deriva e de uma espera." 85
Vítima de um ardil, em sua vida pessoal, o rei, noite após noite,
contudo, engoda-se em uma burla autoperrnitida. A voz coleante apre­
senta-lhe histórias como que tiradas de uma caixa mágica. A narração
anterior encaixa-se à seguinte e a mesma voz as organiza, dando-lhes
um sentido de continuidade, ao passo que detém o poder do corte, sua
secreta arma. Xariar, presa do encantamento. Xariar, pairando sobre o
mundo finito em seu tapete voador, vê-se, de repente, chamado à reali­
dade: uma nova aurora é chegada. O dia transforma-se em apagamento
em sua existência agora intervalar. Somente a vinda de uma outra noite
será capaz de restabelecer-lhe a existência.
Sherazade, porém, não está sozinha em sua empresa de afirmar
a fala feminina, perante um universo que a relega à submissão, o que
ainda se pode verificar em menor grau na vida de hoje. A metáfora do
desvelamento como símbolo da estratégia de repúdio ao silenciamento
da mulher torna-se mais pertinente, ainda, quando lembramos que burca,
em árabe, quer dizer exatamente véu.
Sua irmã, Dinarzade, é convocada a participar dessa cruzada,
passando a partilhar o quarto do casal e a imiscuir-se ativamente no jogo
de seduzimento, o qual segue um movimento ternário. Em primeiro
lugar, o romper da manhã que paralisa o encantamento. A cada noite,
desde a primeira, Dinarzade, com seu discurso admirativo, acende ainda
mais o interesse do sultão. Essa é a segunda parte do movimento: "Meu
Deus, minha irmã, como é maravilhoso o vosso conto!" 86 Trata-se de
uma enunciação que prepara o diferimento da morte, o que é reforçado
pela própria narradora, no terceiro movimento, por meio da reiteração.
O seguimento é ainda mais surpreendente.- respondeu Xeraza­
de- e vos ficaríeis de acordo, se o sultão quisesse deixar-me viver ainda
hoje e me permitisse que vos continuasse a contá-lo na próxima noite.
Xariar, que tinha ouvido Xerazade com prazer, disse para si
mesmo:
84 BARTHES, Ro1and. Aula. Aula inaut'l
, lrnl da cadeira de Scmio1ogia Literária do Co1egio de França, pronunciada dia
7 de janeiro Je 1977. Tradução e posfácio de Leria Perrone-�loisés. São Paulo: Culrrix, 1996. p. 26.
85 GALLAND, op. cir. p. 37.
86 idem, ibidem.

81
Esperarei até amanhã; fá-la-ei morrer quando ouvir o fim do
seu conto.87
Podemos afirmar, portanto, que a elevada voltagem das histó­
rias de Sherazade, nascidas cada uma delas da potência de excitação
deixada pela anterior, como num thriller emocional, esvazia a lógica
da destruição existente no reino em que morava, e, pelo domínio
exercido sobre a sede de sonho do sultão, institui para ele uma nova
dimensão do poder. Essa nova condição é devida, em grande parte,
a Dinarzade, que "edita" as falas da irmã, apoiada em um código
dialógico feito todo ele de cumplicidade. Esse aspecto, ao nível da
produção do texto, é materialmente expresso por meio da caracte­
rização de Dinarzade como narratário intradiegético. O narratário é
um personagem especial nas histórias, um destinatário para quem o
narrad or encaminha sua fabulação, o que foi salientado no trecho
citado envolvendo as duas irmãs.
A Sherazade pode ser também atribuído o exercício de outro papel
feminino que é o da criação de laços: com seu complexo jogo de iludir,
ela liga o mundo oriental ao ocidental, fixando a face da literatura árabe
mais firmemente ancorada no imaginário coletivo do Ocidente. E esse
fenômeno é perceptível mesmo em leitores ouvintes de tenra idade, pois
embora "Ali Babá e os quarenta ladrões", "Simbad, o marujo", "Aladim
e a lâmpada maravilhosa" não tivessem como alvo específico as crianças,
representam, em muitos casos, uma leitura de iniciação para a infância.
Para essa narradora, a quem eram tão caros os relatos de via­
gens de seus personagens, cabe também marcar a época do translado
de suas fábulas para o Ocidente, o que se deu no século XV II, através
da tradução do arqueólogo, orientalista e tradutor francês Antoine
Galland (1646-1715). Para muitos estudiosos esse fato representou um
choque de maravilhoso no cartesiano século XVI I I europeu. Assim,
vale a pena lembrar o que defende Lawrence Venutti, em Escândalos da
Tradução: "Sem dúvida, o efeito que produz as maiores consequências
- e, portanto, a maior fonte potencial de escândalo - é a formação de
identidades culturais. A tradução exerce um poder enorme na construção
de representacões de culturas estrangeiras".88
87 VENUTI, Lawrence. A formação de identidades culturais. ln: Escândalos da Tradução. Trad. Laureano
Pelegrin et ai. Bauru: EDUSC, 2002. p. 130.
88 BORGES, Jorge Luis. "Os tradutores das Mil e uma noites". ln: A História da Eternidade, de 1935. Obras
Completas. Trad. Carlos Nejar et al. São Paulo: Globo, 1999.

82
Para Jorge Luis Borges, um amante confesso da prosa com fra­
grância de tâmara da rainha Sherazade: "Palavra por palavra, a versão
de Galland é a mais mal escrita de todas, a mais mentirosa e mais fraca,
mas foi a mais bem lida. Quem nela se embebeu conheceu a felicidade
e o assombro."
Se é Sherazade quem está em jogo, cabe bem a pergunta: e depois?
A fortuna de As Mil e uma noites é inestimável no Ocidente. Como
se fossem vasos repletos de pedras preciosas, arco-íris de gemas: jades,
ametistas, corais ...
Bastaria lembrar Borges, que ressalta a poeticidade do útulo da
obra, ao observar: "Creio que ela reside no fato de a palavra mil ser para ' '

nós quase um sinônimo de 'infinito'. Dizer mil noites é dizer infinitas


noites, as muitas noites, as inumeráveis noites. Dizer 'mil e uma noites'
é acrescentar uma ao infinito." 89
Mas o fascínio pelo Oriente impregnou as várias formas
de a arte representar o emaranhado de histórias que embalam as
noites do tempo. Em As mil e uma Noites (1950), por exemplo, obra
autônoma da fase dos papéis colados, Henri Matisse vai buscar
no encantamento dos contos árabes do século X, a matéria-prima
para a elaboração desta suíte, que denota o apego humano pela
fantasia, tal como ocorreu com o sultão árabe, Xariar, cativo da
sucessão de histórias narradas por Sherazade. I nteressante perce­
ber a ausência de uma moldura uniforme no painel, que se espraia
nas franjas compostas de corações e que incorporam os dizeres da
história: "Elle vit apparaitre le matin. Elle se tut discretement"90,
numa inversão do eixo da logicidade que normalmente não associa
a idéia de vida à noite.
Falar sobre Sherazade exige tempo: sua medida parece ser mes­
mo a das mil e uma noites. A proposta deste breve ensaio, no entanto,
é apenas delinear-lhe um esboço de perfil: o de uma personagem que
desconstrói a representação unívoca da mulher, entendida como um ser
pérfido, o que repercutia o predomínio da visão masculina. A par disso,
empreende outro tipo de aprisionamento com relação ao homem: o
feitiço de nutrir-se da vida pelo caminho da irrealidade.
89 " El a viu amanhecer o dia. Ela se c alo u discr�ramemt:."
90 PERROT, Michelle. As Mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru, SP; EDUSC,
2005. p. 9.

83
Como toda personagem marcante, a sultana deambula pelos
séculos afora, inspirando discussões, questionamentos e analogias,
com relação à mulher - ou melhor, às relações entre gêneros - dos
tempos modernos e mesmo pós-modernos. A personagem faz com que
pensemos na condição feminina no curso de sua inserção nos vários
mundos, cada um exigindo uma sabedoria na modulação da voz. Em
As Mulheres e o silêncio da história, 1-'lichelle Perrot ecoa as ânsias das
Sherazades, mesmo as de hoje, em sua busca por um lugar nas noites e
também nos dias sem fim:
Evidentemente, a irrupção de uma
presença e de uma fala femininas em locais que lhes eram
até então proibidos, ou pouco familiares, é uma inovação
do século 19 que muda o horizonte sonoro. Subsistem,
no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao
passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual
dos traços, da memória, e, ainda mais, da História, este
relato que, por muito tempo, 'esqueceu' as mulheres, como
se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução,
inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos
fora do acontecimento.

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