Narrar para Nao Morrer A Historia de Sherazade
Narrar para Nao Morrer A Historia de Sherazade
Narrar para Nao Morrer A Historia de Sherazade
A HISTÓRIA DE SHERAZADE
Fernanda Coutinho
Janin
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Nada mais natural para quem se propõe a falar sobre Sherazade
do que principiar pela exposição de alguns relatos. O primeiro que aqui
se coloca é da autoria de um também contador de histórias, que, ao lado,
de sua produção ficcional, desenvolve uma prática ensaística, onde os
meandros da relação leitor /auditor /texto são colocados em evidência.
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e de sua repercussão sobre o leitor. Como sabemos, Wilde legou-nos
uma profusa coleção de aforismos e frases célebres, e, nesse particular,
é-lhe creditada uma famosa afirmação, que nos chega por meio de um
diálogo entre dois amigos, Vivian e Cyrillo, no qual o primeiro deles
expõe suas idéias a respeito da arte, buscando munir-se de material para
uma discussão estética que terá por titulo A decadência da mentira.
Nesse ensaio, publicado em 1891, entre outras ocorrências de
metadiscursividade, observa-se a que se segue:
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Sherazade era a filha de um vizir, que se ofereceu para entreter
Xariar, contando-lhe histórias, na intenção de salvar as mulheres de sua
terra, que morriam todas as manhãs, porque o rei, tendo sido traído,
avaliava-lhes a fidelidade pela medida de uma noite. No caso presente,
então, a ficção opera uma metamorfose, um deslocamento de sentidos:
habitualmente tomada como uma inverdade é ela que, através da retórica
sedutora de Sherazade, de seu poder de sortilégio, restabelece para Xariar
a noção de confiança, passando sua vida a ser regida pelo viés da ficção.
A descrição de Sherazade aparece logo na secção "Contos árabes",
que abre o primeiro dos seis livros da série:
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"Quem não prevê o fim de uma aventura perigosa não poderá dela sair
se airosamente." 84 Bem a propósito, de acordo com Roland Barthes:
"Teimar quer dizer, em suma, manter ao revés e contra tudo a força de
uma deriva e de uma espera." 85
Vítima de um ardil, em sua vida pessoal, o rei, noite após noite,
contudo, engoda-se em uma burla autoperrnitida. A voz coleante apre
senta-lhe histórias como que tiradas de uma caixa mágica. A narração
anterior encaixa-se à seguinte e a mesma voz as organiza, dando-lhes
um sentido de continuidade, ao passo que detém o poder do corte, sua
secreta arma. Xariar, presa do encantamento. Xariar, pairando sobre o
mundo finito em seu tapete voador, vê-se, de repente, chamado à reali
dade: uma nova aurora é chegada. O dia transforma-se em apagamento
em sua existência agora intervalar. Somente a vinda de uma outra noite
será capaz de restabelecer-lhe a existência.
Sherazade, porém, não está sozinha em sua empresa de afirmar
a fala feminina, perante um universo que a relega à submissão, o que
ainda se pode verificar em menor grau na vida de hoje. A metáfora do
desvelamento como símbolo da estratégia de repúdio ao silenciamento
da mulher torna-se mais pertinente, ainda, quando lembramos que burca,
em árabe, quer dizer exatamente véu.
Sua irmã, Dinarzade, é convocada a participar dessa cruzada,
passando a partilhar o quarto do casal e a imiscuir-se ativamente no jogo
de seduzimento, o qual segue um movimento ternário. Em primeiro
lugar, o romper da manhã que paralisa o encantamento. A cada noite,
desde a primeira, Dinarzade, com seu discurso admirativo, acende ainda
mais o interesse do sultão. Essa é a segunda parte do movimento: "Meu
Deus, minha irmã, como é maravilhoso o vosso conto!" 86 Trata-se de
uma enunciação que prepara o diferimento da morte, o que é reforçado
pela própria narradora, no terceiro movimento, por meio da reiteração.
O seguimento é ainda mais surpreendente.- respondeu Xeraza
de- e vos ficaríeis de acordo, se o sultão quisesse deixar-me viver ainda
hoje e me permitisse que vos continuasse a contá-lo na próxima noite.
Xariar, que tinha ouvido Xerazade com prazer, disse para si
mesmo:
84 BARTHES, Ro1and. Aula. Aula inaut'l
, lrnl da cadeira de Scmio1ogia Literária do Co1egio de França, pronunciada dia
7 de janeiro Je 1977. Tradução e posfácio de Leria Perrone-�loisés. São Paulo: Culrrix, 1996. p. 26.
85 GALLAND, op. cir. p. 37.
86 idem, ibidem.
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Esperarei até amanhã; fá-la-ei morrer quando ouvir o fim do
seu conto.87
Podemos afirmar, portanto, que a elevada voltagem das histó
rias de Sherazade, nascidas cada uma delas da potência de excitação
deixada pela anterior, como num thriller emocional, esvazia a lógica
da destruição existente no reino em que morava, e, pelo domínio
exercido sobre a sede de sonho do sultão, institui para ele uma nova
dimensão do poder. Essa nova condição é devida, em grande parte,
a Dinarzade, que "edita" as falas da irmã, apoiada em um código
dialógico feito todo ele de cumplicidade. Esse aspecto, ao nível da
produção do texto, é materialmente expresso por meio da caracte
rização de Dinarzade como narratário intradiegético. O narratário é
um personagem especial nas histórias, um destinatário para quem o
narrad or encaminha sua fabulação, o que foi salientado no trecho
citado envolvendo as duas irmãs.
A Sherazade pode ser também atribuído o exercício de outro papel
feminino que é o da criação de laços: com seu complexo jogo de iludir,
ela liga o mundo oriental ao ocidental, fixando a face da literatura árabe
mais firmemente ancorada no imaginário coletivo do Ocidente. E esse
fenômeno é perceptível mesmo em leitores ouvintes de tenra idade, pois
embora "Ali Babá e os quarenta ladrões", "Simbad, o marujo", "Aladim
e a lâmpada maravilhosa" não tivessem como alvo específico as crianças,
representam, em muitos casos, uma leitura de iniciação para a infância.
Para essa narradora, a quem eram tão caros os relatos de via
gens de seus personagens, cabe também marcar a época do translado
de suas fábulas para o Ocidente, o que se deu no século XV II, através
da tradução do arqueólogo, orientalista e tradutor francês Antoine
Galland (1646-1715). Para muitos estudiosos esse fato representou um
choque de maravilhoso no cartesiano século XVI I I europeu. Assim,
vale a pena lembrar o que defende Lawrence Venutti, em Escândalos da
Tradução: "Sem dúvida, o efeito que produz as maiores consequências
- e, portanto, a maior fonte potencial de escândalo - é a formação de
identidades culturais. A tradução exerce um poder enorme na construção
de representacões de culturas estrangeiras".88
87 VENUTI, Lawrence. A formação de identidades culturais. ln: Escândalos da Tradução. Trad. Laureano
Pelegrin et ai. Bauru: EDUSC, 2002. p. 130.
88 BORGES, Jorge Luis. "Os tradutores das Mil e uma noites". ln: A História da Eternidade, de 1935. Obras
Completas. Trad. Carlos Nejar et al. São Paulo: Globo, 1999.
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Para Jorge Luis Borges, um amante confesso da prosa com fra
grância de tâmara da rainha Sherazade: "Palavra por palavra, a versão
de Galland é a mais mal escrita de todas, a mais mentirosa e mais fraca,
mas foi a mais bem lida. Quem nela se embebeu conheceu a felicidade
e o assombro."
Se é Sherazade quem está em jogo, cabe bem a pergunta: e depois?
A fortuna de As Mil e uma noites é inestimável no Ocidente. Como
se fossem vasos repletos de pedras preciosas, arco-íris de gemas: jades,
ametistas, corais ...
Bastaria lembrar Borges, que ressalta a poeticidade do útulo da
obra, ao observar: "Creio que ela reside no fato de a palavra mil ser para ' '
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Como toda personagem marcante, a sultana deambula pelos
séculos afora, inspirando discussões, questionamentos e analogias,
com relação à mulher - ou melhor, às relações entre gêneros - dos
tempos modernos e mesmo pós-modernos. A personagem faz com que
pensemos na condição feminina no curso de sua inserção nos vários
mundos, cada um exigindo uma sabedoria na modulação da voz. Em
As Mulheres e o silêncio da história, 1-'lichelle Perrot ecoa as ânsias das
Sherazades, mesmo as de hoje, em sua busca por um lugar nas noites e
também nos dias sem fim:
Evidentemente, a irrupção de uma
presença e de uma fala femininas em locais que lhes eram
até então proibidos, ou pouco familiares, é uma inovação
do século 19 que muda o horizonte sonoro. Subsistem,
no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao
passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual
dos traços, da memória, e, ainda mais, da História, este
relato que, por muito tempo, 'esqueceu' as mulheres, como
se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução,
inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos
fora do acontecimento.
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