Princípio Da Adequação Social

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DIREITO

PENAL

INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL

Princípio da adequação social

1. Introdução

Caro(a) leitor(a), nesta unidade, estudaremos o princípio da adequação social, também


chamado de princípio da conduta socialmente adequada, importantíssima
categoria na teoria do fato punível, relevante instrumento de contenção do poder
punitivo, de filtro da punição e de tutela das liberdades públicas frente ao Estado.
Difundido inicialmente na doutrina por Hans Welzel, que assim o fez no final da década
de 1930, em seu Estudo sobre o Sistema Penal (Studien zum System des Strafrechts), o
referido princípio tem história irregular no direito penal e pode ser alocado, a depender
do ponto de vista teórico, em diversas categorias do fato punível.

Conforme será percebido, esse tema possui intrínsecas conexões com inúmeros outros
tópicos da parte geral do direito penal. Nesta unidade de aprendizagem, nós nos
debruçaremos sobre os debates doutrinários e jurisprudenciais mais relevantes do
tema, passando pelos fundamentos e por questões periféricas.

Tendo em vista a enorme complexidade do tema (no sentido de que para a sua
adequada compreensão, como já mencionado, faz-se absolutamente mandatória a
correlação com outros tópicos da disciplina) e, para evitar a repetição indesejada e
desnecessária de conceitos nas diversas unidades de aprendizagem que lhe serão
postas à disposição, será evitado neste texto o detalhamento extensivo de temas que
circundam apenas lateralmente a insignificância, embora importantes para a sua
compreensão. Dessa forma, para garantir um estudo completamente coerente,
recomenda-se também a consulta aos materiais de estudo que versem sobre os
seguintes tópicos:

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Teorias da ação (sobretudo a teoria causalista da conduta, fruto do trabalho de
juristas como Ernst Beling e Franz von Liszt no contexto do chamado sistema
clássico de delito; as teorias sociais da ação fundamentadas na ação como
fenômeno socialmente relevante; e as teorias de matriz significativa e
comunicativa da conduta, modelos de matriz pós-finalista desenvolvidos na
Europa).
Tipicidade (formal, material e conglobante) e seus elementos constitutivos e/ou
excludentes/limitadores.
Antijuridicidade (sobretudo os tópicos relativos à distinção entre
antijuridicidade formal e material).
Imputação objetiva do resultado e os problemas relativos ao tema dos riscos
juridicamente permitidos e/ou socialmente autorizados.

2. Fundamentos

A existência de poucas obras de peso que tratem especificamente sobre o tema da


adequação social no Brasil torna complicado, em alguma medida, o seu estudo
sistemático e aprofundado. O tema, apesar de presente na dogmática penal desde
muitas décadas − suas primeiras formulações sistemáticas datam de meados de
1930, contemporâneo, em certa medida, dos estudos que culminaram com o
estabelecimento do modelo finalista de fato punível, com o trabalho Estudo sobre o
Sistema Penal (Studien zum System des Strafrechts) de Hans Welzel −, merece
aprofundamento.

De maneira preliminar, poderemos sintetizar as diversas possibilidades de fundamentos


do princípio da adequação social com a seguinte esquematização, cujo conteúdo
doutrinário aprofundaremos na sequência. Já de plano devemos ter em mente que
essas possibilidades de fundamentos não são excludentes entre si, mas, em
realidade, dialogam umas com as outras de maneira recíproca.

FUNDAMENTOS DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

1 – Um princípio interpretativo geral

2 – Uma exigência de respeito à realidade

3 – Uma reação a uma concepção objetiva e causal de ilícito

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A ideia central da conduta socialmente adequada deita raízes na postura teórica
segundo a qual uma atividade humana poderia constituir crime em todos os seus
aspectos formais e legais, ou seja, se adequar, a título de subsunção, à
descrição normativa do âmbito do proibido em direito penal, mas, ainda assim,
estaria blindada de eventual punição por se encontrar dentro de uma esfera de
tolerância social, abarcada por um âmbito de liberdade social de ação
conferido pelo próprio consenso de uma determinada sociedade – fenômeno que
prescindiria de previsão legal específica e que poderia se materializar de maneiras
diversas, tais quais se vislumbra numa conduta meramente aceitada pelo corpo social
como parte do convívio gregário (tolerância social em sentido estrito); ou numa
conduta propriamente fomentada ou estimulada como uma norma cultural autônoma da
norma jurídica (tolerância social em sentido amplo).

Diga-se também ser plenamente possível a adoção de critérios, como a aceitação


enquanto postura consensual da sociedade frente ao caso concreto e à
tolerância enquanto postura indiferente da sociedade frente ao caso concreto
(RODRIGUES, 2012, p. 47).

A aceitação de dita fórmula nunca foi pacífica na história da literatura especializada,


muito porque seus contornos básicos, bem como suas possibilidades de rendimento
teórico seriam nebulosos, conforme os críticos (SCANDELARI, 2018, p. 81-98). A
despeito disso, frise-se, a sua utilização na doutrina e na jurisprudência do
direito penal brasileiro de hoje é uma realidade e, em que pese alguns
questionamentos, a sua existência, a sua validade e o seu cabimento são pouco
questionados, de modo que, nas provas, se pode considerar como perfeitamente
admissível frente ao nosso atual ordenamento.

Ainda de maneira introdutória e se referindo ao pensamento do autor que inicialmente


desenvolveu os primeiros contornos teóricos da adequação social, a literatura
especializada costuma apontar que

Em Welzel, a adequação social de uma conduta decorre de sua teoria do


significado social da ação [que posteriormente foi reformulada para
a teoria da ação teleologicamente dirigida/teoria do agir
final/teoria da ação finalista], mas também se relaciona intimamente
com a sua teoria do tipo e seu método para melhor interpretá-lo em vista
de casos reais. Para ele, na função dos tipos de representar um modelo
de conduta proibida está claro que todas as condutas selecionadas e
neles descritas possuem uma carga, de intensidade variável, de

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inadequação social (SCANDELARI, 2018 − grifos nossos).

Nessa perspectiva é que o próprio Welzel (a quem, de novo, frise-se, se atribui a


paternidade histórica do princípio da adequação social tal como nós o
conhecemos na doutrina) estatui que “Nos tipos está patente a natureza social e ao
mesmo tempo histórica do Direito penal: indicam as formas de conduta que se
distanciam profundamente das ordens históricas da vida social” (WELZEL, 1997, p. 66).

Essa postura teórica, de plano já se nota, é adequada a um programa de direito penal


democrático que propugne, para habilitar a incidência da punição, analisar não
somente o processo de subsunção da conduta à norma (ou seja, a análise da
chamada tipicidade formal), mas, também, se a conduta encontra-se
verdadeiramente (a título material, substancial) fora do convívio natural e da
historicidade política de uma determinada sociedade em um determinado
contexto cultural, com os seus valores, a sua ética e a sua moral próprios.

Em resumo, ter-se-á por ação socialmente adequada aquela que, mesmo que esteja
adequada formalmente à norma penal incriminadora, seja materialmente atípica por
estar compreendida dentro de um âmbito de liberdade de ação conferido pelo
próprio consenso valorativo de uma sociedade. Devemos pensar, assim, que toda
proibição, nessa forma de pensar, terá caracteres formalmente descritivos, mas
também carregados de uma forte carga axiológica que lhes ditará a validade ou a
invalidade incriminadora.

É interessante, neste ponto, perceber como o que dissemos no início do tópico acerca
da impossibilidade de se tomar os diversos fundamentos do tema ora em estudo como
categorias reciprocamente excludentes se materializará: na frase anterior
mencionamos que, de acordo com o pensamento daquele a quem se atribui a
paternidade do conceito de adequação social, Hans Welzel, toda proibição terá traços
objetivo-descritivos e também axiológico-valorativos através dos quais deve ser
interpretada a proibição normativa: com isso – e, claro, conglobando o pensamento ao
restante de nosso texto –, percebemos que a adequação social arrima-se em um
princípio interpretativo geral que propõe e atua como um critério de respeito da norma
à realidade empírica e repudia a concepção puramente causal (típica do modelo
clássico/naturalista de fato punível, cujos maiores expoentes foram Franz von Liszt e
Ernst von Beling, para quem o tipo penal seria puramente objetivo, descritivo e sem
nenhum tipo de elemento valorativo em seu conteúdo) de ilícito penal.

2.1. Adequação social como princípio interpretativo geral

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Nessa perspectiva, Welzel trabalhou, no mais recente de seus trabalhos sobre o tema, a
adequação social como um princípio interpretativo geral e, segundo apontam os
seus escritos, “os tipos devem interpretar-se de tal modo que somente se lhes encaixem
condutas socialmente inadequadas” (ROXIN, 1997, p. 294).

Essa perspectiva também é adotada por autores brasileiros, como Luiz Régis Prado e
Érika Mendes de Carvalho, para quem a adequação social funciona como um critério
externo de interpretação (PRADO; CARVALHO, 2006, p. 3). Também, para esses
autores, pode funcionar como um “filtro normativo – a saber, como um critério
hermenêutico extra-sistemático – que exclui do âmbito do desvalor do resultado
determinadas condutas valoradas, do ponto de vista social, como adequadas” (PRADO;
CARVALHO, 2006, p. 4).

Nessa mesma toada, a adequação social como critério hermenêutico é também


mencionada por autores como Vico Mañas (1994, p. 31), Renato de Mello Jorge Silveira
(2010, p. 16-17), Juarez Cirino dos Santos (2018, p. 88) e Hans Joachim Hirsch (apud
SANTOS, 2018, p. 88), que menciona essa categoria dogmática como um princípio de
interpretação da lei penal.

Atenção!

Independentemente do termo exato utilizado (critério hermenêutico


extrassistemático, critério hermenêutico, princípio de interpretação da
lei penal, filtro normativo, princípio interpretativo geral), que poderá
variar de avaliação para avaliação, de julgado para julgado e de autor
para autor (mais importa, neste ponto, a compreensão adequada do tema
do que a memorização de cada um dos termos utilizados por cada uma
das vertentes de pensamento acima apresentadas), é amplamente
dominante, no âmbito da jurisprudência dos tribunais superiores,
que, em direito penal, a adequação social é um verdadeiro vetor
de interpretação restritiva dos tipos penais.

Essa característica, conforme já se viu nas linhas acima, pode-se apresentar, nas
provas, sob alguns signos linguísticos relativamente distintos (princípio geral, critério
interpretativo), mas, como regra, deve ser avaliada tendo como norte o seu predicado
de restrição do alcance interpretativo dos tipos incriminadores.

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Essa é também a postura da doutrina amplamente majoritária no âmbito da literatura
brasileira, podendo, como regra, ser adotada nas provas.

2.2. Adequação social como exigência de respeito à realidade

A adequação, nessa perspectiva, nada mais é do que a rejeição social plena e


incontestável de uma norma penal incriminadora em pleno vigor. Nada disso é matéria
regulada em lei, e nem poderia ser, já que o juízo de atipicidade aqui não é legal, mas
extralegal, cultural.

O que está em jogo é o grau de rejeição social, a intensidade de


intolerância que a sociedade atribui a uma descrição típica; tais
fenômenos correspondem a juízos axiológicos que sempre devem ter
garantidos os seus espaços na teoria do crime, ao invés de serem
relegados ao esquecimento. É precisamente nesse ponto em que a
adequação social, em sua essência, ainda pode, aparentemente,
representar um critério válido de definição pela aplicação ou não de
determinada norma incriminadora e, até mesmo, como uma das
referências – nunca a única – para atualização do ordenamento positivo
conforme os ditames ético-morais de cada sociedade – claro, de
forma lenta, gradual e razoavelmente controlável, de preferência
mediante o filtro do Judiciário (SCANDELARI, 2018, p. 93).

Tem-se, nessa toada, que o princípio da adequação social se fundamenta na


necessidade de jamais desvincular o direito penal normativo da realidade social
e cultural de uma sociedade. Com isso, essa construção teórica buscará um
processo de aproximação entre o normativo e o real, a criação de pontes entre o
ser e o dever-ser.

Imaginemos, por exemplo, que uma determinada norma penal incrimine, formalmente,
uma certa conduta que não é desvalorada pelos membros da sociedade como um
comportamento incompatível e/ou merecedor de reprovação. Para isso, poderemos
trabalhar com a hipótese de uma lei incriminadora que determina a proibição do
barbear-se ou do raspar o próprio rosto; do vestir-se com roupas chamativas ou sem
elas; do caminhar nos logradouros públicos com ou sem chapéus; do cumprimentar com
um “bom dia” um cidadão após o horário do almoço ou com um “boa tarde” antes de ter
feito a refeição.

Em cada uma dessas hipóteses, poderemos ter condutas perfeitamente típicas do ponto

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de vista formal (descritas objetivamente como proibidas), mas essas determinações
normativas, se analisadas do ponto de vista cultural de uma sociedade, mostrar-se-ão
tão fora da realidade, tão desvinculadas da historicidade de uma determinada
civilização que não merecerão (frisamos, independentemente da sua previsão
formalmente típica) a punição do Estado.

Um exemplo corriqueiro de adequação social na doutrina, na perspectiva sob a qual a


estamos trabalhando, está na conduta de uma mãe que, ao nascer da filha pequena, lhe
fura as orelhas para colocar os brincos.

Percebamos, pois, concretamente, no quadro abaixo delimitado, como se materializa o


que dissemos:

LESÃO CORPORAL (ART. 129, CÓDIGO PENAL − CP)


“OFENDER A INTEGRIDADE CORPORAL OU A SAÚDE DE OUTREM:

PENA – DETENÇÃO, DE TRÊS MESES A UM ANO.”

SOB O PONTO DE VISTA FORMAL SOB O PONTO DE VISTA AXIOLÓGICO

Temos uma conduta socialmente


adequada, que não é tida pelo meio
social como merecedora de punição ou
como merecedora da mais gravosa das
reações jurídicas (a pena em sentido
Temos uma conduta típica perfeitamente
forte). Cuida-se, portanto, de uma prática
adequada à norma penal incriminadora.
completamente tolerada e adequada à
Em uma primeira análise, portanto, a mãe
historicidade cultural de nosso meio.
que perfura as orelhas da filha recém-
Assim, nos será possível tomá-la como
nascida para lhe colocar os brincos
limitadora da incriminação formal e
incorre no âmbito de proibição
através desse critério diremos que, em
formal, praticando, em tese, o delito do
concreto, será ilegítima a criminalização
art. 129 do atual Código Penal brasileiro.
da mãe que aja da forma como
exemplificamos, ante a manifesta
ausência de repúdio social de sua
comunidade à sua ação, nada obstante a
previsão formalmente típica da pena.

Atenção!

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Neste ponto poderemos perceber, portanto, que fundamentar a
adequação social em uma exigência de respeito da norma à realidade
significa trabalhar também com um critério empírico de controle da
validade e da invalidade da incriminação: à medida que tenhamos
uma incriminação que normativamente seja manifestamente incompatível
com a realidade social e cultural de uma determinada comunidade de
pessoas, com sua história, porquanto criminaliza condutas que
socialmente não são merecedoras de ojeriza social, teremos também
uma incriminação ilegítima.

Trazendo para o âmbito de nosso direito penal atual – e fazendo também


uma ponte com nosso direito constitucional –, poderemos tranquilamente
dizer que uma norma penal que criminalize uma conduta que não
seja incompatível com a concepção do socialmente adequado
deverá ser compreendida como inconstitucional, em virtude de
desrespeito à realidade.

Para sintetizar, esse fundamento nos diz em uma frase que o direito
penal não pode estar desvinculado da realidade de uma
determinada sociedade em um determinado contexto cultural.

2.3. Adequação social como reação a uma concepção objetiva e


causal do ilícito

O princípio da adequação social, ante tudo o que já foi visto, tem seu núcleo na recusa
de habilitação de poder punitivo pela mera causação cega de um resultado previsto em
lei como tipicamente proibido. Essa postura estritamente formal-naturalista
fundamentou, por exemplo, o sistema clássico de delito (sistema Liszt/Beling/Radbruch)
e a sua respectiva teoria causalista da conduta penalmente relevante, fundado nas
bases do positivismo cientificista e escorado na teoria da equivalência dos antecedentes
causais como seu ponto central. Não à toa, o conceito e o conteúdo da adequação social
são desenvolvidos por autores majoritariamente pós-causalistas, neokantianos,
finalistas e pós-finalistas das mais variadas categorias e das mais diversas referências
teóricas.

Devemos perceber que uma concepção puramente objetiva, descritiva e causal do ilícito
penal estará restrita ao âmbito da tipicidade formal e da mera causação de um

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resultado para legitimar a incriminação. Dessa forma, voltemos ao exemplo anterior
da mãe que perfura as orelhas da filha recém-nascida para lhe colocar os brincos:

LESÃO CORPORAL (ART. 129, CP):


“OFENDER A INTEGRIDADE CORPORAL OU A SAÚDE DE OUTREM:

PENA – DETENÇÃO, DE TRÊS MESES A UM ANO.”

EM UMA CONCEPÇÃO QUE REPUDIA,


EM UMA CONCEPÇÃO PURAMENTE PELO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
OBJETIVA, DESCRITIVA E CAUSAL DO SOCIAL, UM MODELO PURAMENTE
ILÍCITO PENAL OBJETIVO, DESCRITIVO E CAUSAL DO
ILÍCITO PENAL

A mãe não será criminalizada, já que, em


que pese incorrer na tipicidade formal
do delito de lesão corporal, a despeito
de participar da causação do
resultado típico, a análise do fato
A mãe será criminalizada, uma vez que
punível não é puramente objetiva,
incorreu na tipicidade formal do
descritiva e causalista, devendo ser
delito de lesão corporal em desfavor
permeada por considerações
da filha recém-nascida, participando da
axiológicas – como o princípio da
causação do resultado típico (a ofensa
adequação social –, que orientarão o
à integridade física da criança pela
Estado no sentido da validade ou da
perfuração feita contra a vontade dela ou
invalidade de uma determinada
independentemente de consentimento
incriminação concreta. Aqui, como
expresso dela), que deve ser analisado
podemos deduzir, essa análise dar-se-á no
sob um prisma puramente objetivo
âmbito da criminalização secundária
(blindado de considerações axiológicas).
ou criminalização concreta
(circunscrita ao processo de aplicação de
uma pena determinada pelo magistrado
com competências criminais ante um caso
concreto).

Ganham relevo, neste particular, dois elementos-chave para a concepção da adequação


social como um repúdio a um modelo puramente causal, objetivo e descritivo de ilícito
punível: (i) a teoria das normas de cultura, responsável por vincular a legitimidade
das normas jurídicas aos interesses da sociedade; e (ii) a teoria social da ação, que

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vincula, no âmbito da conduta penalmente relevante, o contexto sociológico e os
aspectos axiológico-valorativos do comportamento.

Assim, no que toca a esse fundamento da adequação social, poderemos sistematizar da


seguinte forma:

ADEQUAÇÃO SOCIAL COMO REPÚDIO A UM MODELO CAUSAL E OBJETIVO DE


ILÍCITO PENAL

Primeiro ponto importante: a teoria das normas de cultura

Segundo ponto importante: a teoria social da ação

a) A teoria das normas de cultura

Tem-se majoritariamente na literatura que a teoria das normas de cultura foi formulada
pelo professor alemão Max Ernst Mayer em uma antiga monografia datada do ano de
1903 (Rechtsnormen und Kulturnormen), não tendo aplicação somente ao direito
penal, mas também à filosofia jurídica e à sociologia. Enquanto na área filosófica
o autor fundamentou-se em Heinrich Rickert e seus estudos em ciência cultural e
ciência natural, concebendo cultura como “a totalidade dos objetos reais em que
residem valores universalmente reconhecidos e que por esses mesmos valores são
cultivados”, na sociologia buscou-se em Raffaele Garofalo – um autor também caro à
história da criminologia e das formulações antigas de delito − a sua conceituação de
delito natural: o que viola os sentimentos altruístas de piedade e de probidade.

Como seu referencial teórico jurídico, teve, na obra de Karl Binding, fundador do
positivismo germânico, um norte. Esse antigo professor alemão desenvolveu, nessa
perspectiva, a ideia de que a norma não se confunde com a lei, mas a precede,
servindo de sustentáculo e referencial necessário para ela – lembremos, para
vislumbrar as relações entre o princípio ora objeto do nosso estudo e a teoria das
normas de cultura, do que já dissemos acerca da adequação social como um critério
de controle da legitimidade de uma determinada criminalização concreta,
levada a cabo na criminalização secundária, pela imposição de uma pena pelo
magistrado criminal frente ao caso concreto submetido ao Poder Judiciário.

Assim, o delito será, nessa perspectiva, conceituado como um evento imputável


compreendido no tipo legal e, necessariamente, contrário às normas de cultura
reconhecidas pelo Estado, e essas normas de cultura poder-se-iam tomar como

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ordens e proibições por meio das quais uma sociedade determinada exige de seus
membros o comportamento que seja adequado. De outro giro, uma vez que certa
conduta não se consubstancie em uma contrariedade, em uma agressão às normas de
cultura, ela não se poderá conceituar como materialmente delituosa, pois está
abarcada por um âmbito de legitimidade empírica, fruto da própria historicidade
cultural e política da sociedade.

A teoria das normas de cultura inseria no seu núcleo uma plêiade grande de valores,
como comandos morais, religiosos e os próprios costumes. Tinha-se, aqui, a
gênese do que viria a ser o fundamento da antijuridicidade material – a categoria
segundo a qual somente haverá ilicitude em um fato se este violar gravemente os
interesses e/ou valores caros à sociedade –, que fundamentou diversos sistemas de
delito e, ao mesmo tempo, deu azo a diversas formulações de adequação social, como
inexistência de ilicitude: um evento, para que seja delito, nessa perspectiva, deve ser
formalmente antijurídico (contrário às normas de direito) e materialmente antijurídico
(contrário às normas de cultura).

Atenção!

O direito, nessa toada, teria como papel principal não a produção de


interesses aplicáveis à sociedade, mas, em verdade, o reconhecimento
desses interesses por meio da história da cultura. Significa, em outras
palavras, que, se uma conduta é formalmente antijurídica, mas não o é
materialmente, então ter-se-ia uma contrariedade entre os interesses do
Estado e os interesses da sociedade (uma incongruência entre as normas
de direito e as normas de cultura que lhes servem necessariamente de
sustentáculo, portanto), devendo, necessariamente, prevalecer os da
sociedade (as normas de cultura, em benefício da realidade da
sociedade), uma vez que é incabível a concepção de normas jurídicas às
quais não correspondessem, antes, como fundamento de legitimidade,
normas de cultura no mesmo sentido. Do contrário, as condutas
mandadas pela norma jurídica seriam inexigíveis dos cidadãos.

As normas de cultura, então, poderiam, nessa perspectiva, ser reconhecidas como


excludentes supralegais de antijuridicidade material: quando desaparece a norma
de cultura que deu origem ao surgimento da norma jurídica, o fato praticado, embora
formalmente antijurídico, deixa de ser crime por lhe faltar antijuridicidade material.

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Devemos perceber que – conforme esmiuçaremos um pouco mais adiante –, atualmente,
prevalece na doutrina e na jurisprudência que a adequação social se insere
dogmaticamente no âmbito da tipicidade material, e não da antijuridicidade
material (tendo em vista, ainda, que essa categoria “antijuridicidade material’’ é muito
pouco utilizada por autores e julgados modernos, já que o âmbito de proibição pela
lesão expressiva aos interesses e/ou valores sociais foi transferido para o interior do
princípio da lesividade/da ofensividade e, assim, passa a ser analisado dentro da
tipicidade). Nada obstante, vem de lá – da antijuridicidade material – o seu fundamento
mais remoto.

b) Notas sobre a teoria da ação social

Como a teoria social da ação fundamentou o primeiro trabalho de Welzel


relacionado à adequação social – lembremos do que já mencionamos acima sob a
sua perspectiva acerca do âmbito de proibição dos tipos penais, que, além de
possuírem caracteres objetivo-descritivos, estariam também permeados por uma forte
carga axiológica necessariamente referenciada ao contexto e à historicidade (bem como
por óbvio aos elementos axiológico-valorativos) de uma determinada sociedade,
exprimem-se as suas principais características:

PRINCIPAIS AUTORES

Eberhard Schmidt
Hans-Heinrich Jeschek
Johannes Wessels
Werner Maihofer
Karl Wolff
Arthur Kaufmann
Ernst Wolff

POSIÇÃO CRONOLÓGICA NOS MODELOS DE AÇÃO

Majoritariamente, situa-se na literatura como uma plêiade de teorias da conduta


desenvolvidas entre as teorias causalistas (modelo clássico de delito) e as teorias
finalistas (modelo finalista de delito). É, portanto, majoritariamente atrelada ao
sistema neokantiano de delito, intermediário que é entre os dois anteriormente
mencionados. São teorias conciliadoras que não excluem de plano nem as
perspectivas causais nem as perspectivas finais. Assim, conglobam as posturas
naturalistas com as posturas axiológicas e valorativistas.

CONCEITUAÇÃO

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Há imprecisão doutrinária na literatura, tendo em vista que não existe somente uma
teoria da ação, mas inúmeras. De toda forma, há consenso no sentido de que as duas
formulações mais difundidas foram:

1. A conduta como fenômeno social;


2. A conduta como comportamento humano socialmente
relevante.
Nessa mesma perspectiva, leia-se o seguinte fragmento:

As formas em que se realiza o intercâmbio do homem com seu meio


(finalidade no atuar positivo e dirigibilidade na omissão de ação) não
são unificáveis ao nível ontológico, porque a omissão mesma não existe
nela. Ação e omissão de ação podem, contudo, ser compreendidas em
um conceito de ação unitário, se conseguirmos encontrar um ponto de
vista valorativo superior, que unifique no âmbito normativo elementos
não unificáveis no âmbito do ser. Esta síntese deve ser procurada na
relação do comportamento humano com seu meio. Este é o sentido do
conceito social de ação. Ação é o comportamento humano de
relevância social (JESCHEK; WEIGEND, 1996 − grifos nossos).

ELEMENTO CENTRAL

A distinção entre ações socialmente relevantes (potencialmente objeto do direito


penal) e ações socialmente irrelevantes (nas quais o direito penal não teria
nenhum interesse). A relevância social é um elemento axiológico superior
introduzido como atributo central do tipo de injusto penalmente relevante.

2.4. A trajetória do pensamento de Hans Welzel

Como visto, o histórico do princípio da adequação social não é uniforme, menos ainda
simples. O seu próprio idealizador, Welzel, adotou diferentes posições para
explicá-lo e fundamentá-lo.

Para melhor compreensão do histórico de pensamento deste importante professor


alemão de direito penal, confira-se o quadro abaixo:

PRIMEIRA FASE: ADEQUAÇÃO SOCIAL COMO CRITÉRIO DE VALORAÇÃO SOCIAL

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DA AÇÃO

Essa postura decorreu dos primeiros trabalhos de Welzel sobre a adequação social e
baseava-se na sua deferência à teoria da ação social, antes das formulações
definitivas de sua teoria da ação finalista.
Assim, exemplificando, sob essa forma de pensar, o agente que perpetrasse uma
conduta que não fosse socialmente inadequada não praticaria ação relevante,
e, por via de consequência, nem sequer haveria a análise dos seguintes
estratos do fato punível (antijuridicidade e culpabilidade), menos ainda da
punibilidade.

SEGUNDA FASE: ADEQUAÇÃO SOCIAL COMO CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO


CONSUETUDINÁRIA DE COMPORTAMENTOS TÍPICOS

Aqui, em um segundo momento de sua teoria, Welzel desloca do âmbito da teoria


da ação para o âmbito da antijuridicidade (e, portanto, da justificação) o trato das
condutas socialmente aceitáveis.
Assim, exemplificando, sob essa forma de pensar, o agente que perpetrasse uma
conduta que não fosse socialmente inadequada poderia até praticar uma ação
penalmente relevante, mas estaria abarcado por uma causa excludente de
ilicitude, e, por via de consequência, haveria a análise dos estratos da
tipicidade e da antijuridicidade, mas não da culpabilidade, e, menos ainda, da
punibilidade.

TERCEIRA FASE: ADEQUAÇÃO SOCIAL COMO CRITÉRIO DE


INTERPRETAÇÃO DO TIPO LEGAL DE CRIME

Neste terceiro momento, Welzel estatui, no âmbito da tipicidade, o princípio da


adequação social, sendo inclusive hoje a postura doutrinária majoritária na doutrina e
na jurisprudência, podendo ser tranquilamente tida por correta na maioria
esmagadora das provas.
Assim, exemplificando sob essa forma de pensar, o agente que perpetrasse uma
conduta que não fosse socialmente inadequada sequer praticaria um fato
típico (materialmente típico), eis que, na interpretação do tipo penal
incriminador, a adequação social agiria como um critério restritivo, um
obstáculo à ampliação da abrangência do tipo. Dessa forma, em razão da
atipicidade de um fato, nem sequer haveria de se realizar a análise dos seguintes
estratos do fato punível (antijuridicidade e culpabilidade), nem sequer da
punibilidade.

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3. Posição sistemática na teoria do fato punível

Como vimos, a história da adequação social não é uniforme, menos ainda linear. Os
seus fundamentos extrajurídicos são muitos, mas assim também o são os seus
fundamentos jurídicos. É por esse motivo, então, que, ao longo dos anos e das
concepções teóricas, o instituto que ora estudamos foi situado em diversos estratos do
fato punível, sendo amplamente majoritário, entretanto, hoje em dia, que a sua
localização está no coração da tipicidade material, como uma autêntica causa
supralegal de exclusão de tipicidade.

Trazemos, então, ao leitor todo o escorço histórico do tópico, mencionando


enfaticamente, entretanto, que deve ser adotada, no âmbito das provas objetivas,
discursivas e orais, a postura segundo a qual a adequação social se insere no
âmbito da tipicidade material (com a produção dos efeitos pertinentes).

3.1. Tipicidade material

É atualmente a postura doutrinária majoritária, prevalecendo na jurisprudência


nacional e internacional e decorre da terceira e última fase do pensamento de Hans
Welzel, como sistematizamos no quadro anterior. Assim, uma conduta socialmente
adequada não será objeto do direito penal, tendo em vista que, em que pese
formalmente típica, será atingida pelo critério de interpretação restritiva do tipo
legal de crime. Essa maneira de ver é a dominante tanto na literatura alemã (que
seguiu, como regra, a linha do pensamento welzeliano) quanto na literatura brasileira
(SANTOS, 2018, p. 87-88).

Autores como Claus Roxin e Hans Joachim Hirsch tendem a seguir a mesma postura
teórica, trabalhando adequação social no âmbito da tipicidade (FARIA, 2005, p. 146 e
segs.).

a) Adequação social e insignificância

Embora haja pontos de proximidade teórica entre os dois conceitos, a literatura


majoritária é no sentido de que não se confundem. Ressalvam-se autores específicos,
que minoritariamente tendem a trabalhar a insignificância nos mesmos termos da
adequação social, como Roldán Barbero e Garcia Martin (2010, p. 192), Jorge de
Figueiredo Dias (2007, p. 677) e Heinz Zipf (1979, p. 106).

Nos termos da doutrina majoritária,

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não se confundem (…) a insignificância e a adequação social. Como visto,
a adequação social incide sobre hipóteses nas quais a conduta, embora
possa adequar-se ao pragma típico, representa uma ação inerente ao
convívio social. Por serem consideradas aceitáveis ou até mesmo
estimuladas, essas condutas não preenchem o conteúdo da proibição
contida no tipo penal. Por outro lado, a insignificância atua em casos de
inexpressiva afetação do bem jurídico, nos quais não há lesividade e,
consequentemente, a possibilidade de instaurar-se um conflito
juridicamente relevante. Não se trata, assim, de uma conduta
socialmente adequada ou estimulada; mas de um fato, cuja conflitividade
é tão reduzida que não justifica o recurso à ultima ratio da pena
(FAGUNDES, 2019, p. 112-113).

Nessa mesma toada, “a insignificância encontra seus alicerces nos princípios da


lesividade e proporcionalidade. Já a adequação social está baseada na ideia de que não
pode ser punida a conduta socialmente aceita ou estimulada” (FAGUNDES, 2019).

Um apontamento lógico é neste momento necessário, embora isso já se pudesse extrair


do texto exposto até este momento: um fato de lesividade insignificante (apto a fazer
incidir o princípio da insignificância) não é sinônimo de um fato socialmente adequado
ou fomentado (apto a fazer incidir o princípio da adequação social). O âmbito de
aplicabilidade da insignificância diz respeito, majoritariamente, ao desvalor do
resultado, já que se relaciona a uma mínima ou inexistente produção de dano ao bem
jurídico. O âmbito de aplicabilidade da adequação social, entretanto, diz respeito,
majoritariamente, ao desvalor do ato, já que, independentemente do resultado, a
conduta é tida por atividade natural no convívio de uma determinada sociedade em um
determinado contexto cultural.

Poderemos, então, sistematizar:

PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Fundamenta-se no baixo desvalor da Fundamenta-se no baixo desvalor do


ação. resultado.

Cuida-se de uma categoria incidente

Cuida-se de uma categoria incidente sobre uma conduta que não é inerente
sobre uma conduta inerente ao convívio ao convívio social, mas causa tão pouco
social. dano que não merece a reação do poder
punitivo.

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Fundamento nos princípios da
intervenção mínima, da
Fundamento na tolerância social de
proporcionalidade, da dignidade da
uma conduta.
pessoa humana, da desnecessidade da
pena, entre outros.

Vejamos os seguintes exemplos:

Exemplo 1: uma mãe perfura as orelhas de sua bebê recém-nascida para


colocar os brincos, independentemente de seu consentimento expresso. Cuida-se
de uma conduta com baixo desvalor de ação, inerente ao convívio social e
com uma alta tolerância social. Assim, estará abrangida pelo princípio da
adequação social, não sendo legítima a incriminação pelo delito de lesão
corporal (art. 129 do CP).
Exemplo 2: um determinado sujeito, maior e capaz subtrai de um terceiro uma
folha de caderno em branco, objeto sem qualquer conversibilidade econômica. A
subtração tem um baixo desvalor do resultado (pois a lesão ao patrimônio
alheio foi mínima, irrisória, írrita, nenhuma, irrelevante, insignificante), porém
não é inerente ao convívio social e tampouco é produto de uma tolerância
social. Entretanto, em razão da manifesta desproporcionalidade entre o fato
e a pena a ser aplicada, e tendo em vista o princípio da intervenção
mínima do direito penal, não será legítima a incriminação pelo delito de furto
(art. 155 do CP), estando abrangido o fato pelo princípio da insignificância, e
não da adequação social.

b) Adequação social como critério de imputação objetiva

Possibilidade, sendo a perspectiva de parcela da literatura, embora minoritária. O


próprio Welzel, sem especificamente mencionar, já trabalhava com uma lógica parecida,
ao tratar como caso de adequação social o famoso exemplo do sobrinho que convence
um tio, de quem seria herdeiro, a utilizar com frequência um meio de transporte,
desejando sua morte por acidente automobilístico, o que efetivamente vem a acontecer.
Cuida-se, sem maiores dúvidas, de um problema de dominabilidade de causalidade e de
criação (ou falta de criação) de um risco juridicamente proibido, critérios hoje
trabalhados dentro da teoria da imputação objetiva do resultado.

3.2. Justificante (excludente de antijuridicidade)

Atualmente minoritária essa postura teórica, que encontra em Eberhard

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Schmidhäuser um de seus principais defensores no âmbito da literatura do direito
penal estrangeiro, como visto, decorre da estruturação da chamada antijuridicidade
material, que guardará estrita correlação com a teoria das normas de cultura.

A doutrina, nesse ponto, tende a ser crítica.

Como bem destaca Hirsch, deslocá-la para o campo das causas de


justificação representaria um evidente paradoxo. Afinal, se a conduta
socialmente adequada pode ser considerada normal, não se pode admitir
que ela preencha o conteúdo da proibição contida no tipo penal. Isto é,
não se pode dizer que esta seria uma conduta anormal, mas justificada
(FAGUNDES, 2019, p. 110).

Nessa toada, nas palavras do autor, a adequação social “não trata de casos nos quais
somente existe uma permissão excepcional (justificação), mas sim ações que, em razão
de sua completa normalidade social, nem sequer são abarcadas pelo tipo em sentido
estrito” (HIRSCH, 2005, p. 10-11).

Atenção!

Também a partir de uma visão crítica, pode-se dizer que deslocar para o âmbito da
antijuridicidade o problema da adequação social significaria retornar ao modelo
clássico/causalista de fato punível, que concebia um tipo penal avalorado,
meramente descritivo, completamente livre de valor. Essa postura não é correta
atualmente, sobretudo em razão do advento do modelo finalista de delito (com as
contribuições do modelo neoclássico/neokantiano), dentro do qual a tipicidade não
é imune a valorações e critérios axiológicos, com eles dialogando intrinsecamente.

4. Exculpante (excludente de culpabilidade)

É a minoritária das posturas doutrinárias, sendo defendida apenas por poucos


autores da literatura estrangeira, como Hermann Roeder. A partir de uma perspectiva
crítica, percebe-se que, além de não guardar correlação com os fundamentos da
culpabilidade no atual esquadro do direito penal finalista – percebe-se que a adequação
social não encontra espaço dentre os elementos informadores do estrato da

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culpabilidade, quais sejam (i) imputabilidade, (ii) potencial consciência da ilicitude do
fato e (iii) exigibilidade de conduta diversa adequada ao direito –, “sua compreensão
como exculpante pressupõe uma inaceitável identificação entre a adequação social de
determinadas ações e a natureza proibitiva do injusto” (SANTOS, 2018, p. 88).

5. A jurisprudência e sua crítica

Caro(a) leitor(a), a partir deste ponto, mostraremos alguns dos principais julgados dos
tribunais superiores que, direta ou indiretamente, envolveram debates sobre o
princípio da adequação social. Desde o início, avisamos que o tema é pouco
desenvolvido do ponto de vista doutrinário na grande maioria dos julgados do
Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que
geralmente passam ao largo de uma análise aprofundada sobre o instituto e muitas
vezes confundem conceitos e/ou realizam valorações pouco compatíveis com todo o
escorço histórico e doutrinário que traçamos ao longo de nossa unidade de
aprendizagem.

Dessa forma, após a exposição de determinados julgados, optamos por mencionar de


maneira breve e sucinta alguns argumentos pelos quais poderíamos criticar o conteúdo
da jurisprudência pátria tanto de pontos de vista estritamente formais quanto de pontos
de vista eminentemente materiais/substanciais.

Nada obstante, para as provas objetivas, recomendamos – salvo, por óbvio, em


casos de questões que expressamente demandem uma posição crítica à
jurisprudência – seguir o teor dos julgados como respostas corretas, já que eles
configuram a posição amplamente difundida do Poder Judiciário brasileiro sobre o
tema. Para as provas subjetivas (discursivas e orais), entretanto, recomendamos,
sempre que possível, mencionar as duas posições (o entendimento prevalecente na
jurisprudência e a crítica doutrinária), a fim de antecipar os possíveis espelhos de prova
e/ou demonstrar conhecimento ao examinador, buscando sempre a pontuação mais alta
possível nas avaliações dessa natureza.

5.1. Delito de violação de direito autoral (art. 184, § 2º, do


Código Penal – CP)

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

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Pena − detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

§ 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto


ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação,
execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou
executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:

Pena − reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto,


distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em
depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação
do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do
produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou
fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os
represente. (...)

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PENAL. OFENSA AO


ART. 184, § 2º, DO CP. OCORRÊNCIA. VENDA DE CD’S E DVD’S “PIRATAS”. ALEGADA
ATIPICIDADE DA CONDUTA. PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL.
INAPLICABILIDADE.

1. A jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal orienta-se no


sentido de considerar típica, formal e materialmente, a conduta prevista no
artigo 184, § 2º, do Código Penal, afastando, assim, a aplicação do princípio da
adequação social, de quem expõe à venda CD’s e DVD’s “piratas”.
2. Na hipótese, estando comprovadas a materialidade e a autoria, afigura-se inviável
afastar a consequência penal daí resultante com suporte no referido princípio. (...) (STJ,
REsp. nº 1.193.196/MG, 3ª Seção, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ
26.09.2012, DJe 04.12.2012 − grifos nossos).

O referido precedente, assim como a maioria esmagadora dos julgados do STJ que se
debruçam sobre o tema, trata de eventual atipicidade material do delito
supramencionado com base no princípio da adequação social (outros precedentes
semelhantes em: STJ, AgRg no REsp. nº 1.566.553/MG; AgRg no REsp. nº
1.629.768/SE; AgRg no AREsp. nº 1.043.241/SP; HC nº 359.040/RS).

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Tanto o STJ quanto o STF tem-se mostrado rigidamente reticentes na aplicação da
adequação social. Especificamente no delito objeto deste tópico, é acertada a
jurisprudência, mas deve-se olhar cada caso concreto para vislumbrar ou não a
exclusão da tipicidade, senão pela adequação social, pela insignificância, o que se fará
através da análise, por exemplo, do montante do dano patrimonial estimado a quem
detém os direitos autorais da obra falsificada (“pirateada”) e posta, irregularmente, à
venda.

Confira-se, por fim, o entendimento sumulado sobre o tema da lavra do STJ:

Súmula nº 502. Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao


crime previsto no art. 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas.

5.2. Posse e porte ilegal de armas de fogo e munições de uso


permitido (arts. 12 e 14 da Lei nº 10.826/2003)

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso
permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua
residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o
titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder,
ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar
arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo
com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de
fogo estiver registrada em nome do agente.

(…) É incabível a aplicação do princípio da adequação social, segundo o qual,


dada a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal, não se pode reputar como
criminosa uma ação ou uma omissão aceita e tolerada pela sociedade, ainda que
formalmente subsumida a um tipo legal incriminador. Possuir armas de fogo e

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munições, de uso permitido, sem certificados federais e que só vieram a ser
apreendidas pelo Estado após cumprimento de mandado de busca e apreensão, não é
uma conduta adequada no plano normativo. (...) (STJ, RHC nº 70.141/RJ, 6ª Turma, rel.
Min. Rogério Schietti Cruz, DJ 07.02.2017, DJe 16.02.2017 − grifos nossos).

Embora correta a jurisprudência do STJ na conclusão (já que parece fugir a menor
razoabilidade lógica que se vislumbrem presentes os pressupostos da adequação
social), nota-se que a fundamentação da decisão peca por confundir conceitos e
categorias que, embora parecidas, não se confundem.

A um, o referido julgado, ainda que indiretamente, atrela o fundamento da adequação


social à natureza subsidiária e fragmentária do direito penal, o que se relaciona com o
princípio da intervenção mínima em suas duas vertentes mais conhecidas. Como visto,
entretanto, o princípio da adequação social não decorre do princípio da intervenção
mínima: o que dele exsurge é o princípio da insignificância.

A dois, o precedente menciona que a conduta do agente não seria adequada no plano
normativo. Tem-se aqui mais um erro grave de premissa (embora, novamente, a
conclusão do julgado pareça correta), já que, normativamente, se está falando do léxico
da tipicidade formal, ou seja, da previsão em abstrato de uma determinada conduta
como incriminada pelo tipo legal de crime. O princípio da adequação social, entretanto,
não atua no plano legal, mas a seu revés: atua no plano metajurídico, no plano dos
fatos.

Em que pesem as críticas doutrinárias apontadas, permanece correta a conclusão da


não aplicação do referido princípio aos delitos ora em exame, não pelos fundamentos
apontados na decisão, mas por não estarem presentes as justificativas típicas do
princípio da adequação social, como esmiuçadas ao longo do texto.

5.3. Relação sexual e/ou prática de quaisquer outros atos


libidinosos com menor de 14 anos de idade e delito de estupro
de vulnerável (art. 217-A, CP)

O âmbito dessa discussão situa-se no campo teórico da redação típica do art. 217-A do
CP.

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: (...).

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Da maneira como redigido o tipo legal de crime, a prática de qualquer ato libidinoso,
em qualquer contexto cultural, em qualquer circunstância (salvo, por óbvio, hipóteses
de erro, ausência de dolo, de culpabilidade etc.) redundará na prática do fato punível
mencionado.

É de se perquirir, entretanto, se há hipóteses nas quais, em determinados contextos


culturais, a prática de certos atos sexuais com menor de 14 anos de idade pode-se
tornar materialmente atípica (embora formalmente se subsuma ao art. 217-A do CP),
como no caso de localidades interioranas nas quais eventuais relações de namoro (e,
eventualmente, até casamento – o que poderá redundar em ilícito civil a depender do
caso concreto) se desenvolvem sem grandes problemas no meio social e sejam,
inclusive, desenvolvidas sob a autorização dos pais ou responsáveis.

Embora haja crítica doutrinária, que o candidato, recomenda-se, exponha apenas em


eventuais provas discursivas e/ou orais a fim de demonstrar maior conhecimento sobre
o tema e, assim, se destacar, a jurisprudência majoritária dos tribunais superiores
tende a não excluir a tipicidade material nesses casos.

Há, inclusive, entendimento sumulado no mesmo sentido da lavra do STJ:

Súmula nº 593. O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal


ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual
consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou
existência de relacionamento amoroso com o agente.

5.4. Casa de prostituição (art. 229, CP)

CP, art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra
exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou
gerente:

Pena − reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CASA DE


PROSTITUIÇÃO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA
ADEQUAÇÃO SOCIAL: IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA TÍPICA. CONSTRANGIMENTO
NÃO CONFIGURADO.

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1 – No crime de manter casa de prostituição, imputado aos Pacientes, os bens jurídicos
protegidos são a moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância
social a serem resguardados pelo Direito Penal, não havendo que se falar em aplicação
do princípio da fragmentariedade.

2 – Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não tem o
condão de revogar tipos penais. Nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro (com alteração da Lei n. 12.376/2010), não se destinando à
vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

3 – Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse parte dos costumes ou fosse
socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei penal em vigor (STF, HC
nº 104.467/RS. PRIMEIRA TURMA, rel. Min. Cármen Lúcia. Julgamento em 08.02.2011.
DJe 09.03.2011).

5.5. “Jogo do bicho” (art. 58, Decreto-Lei nº 3.688/1941 – Lei


das Contravenções Penais)

Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer
ato relativo à sua realização ou exploração:

Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de
réis.

Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis,
aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para terceiro.

(…) Noutro giro, segundo o Princípio da Adequação Social, torna-se impossível


considerar como delituosa uma conduta aceita ou tolerada pela sociedade, mesmo que
se enquadre em uma descrição típica. Também não é o caso. Apesar da pouca
fiscalização e repreensão à infração, o jogo do bicho recebe, e deve receber mesmo,
larga reprovação da sociedade, notadamente por sua nocividade. (…)

A bem da verdade, o “jogo do bicho” deixa notórias seqüelas anti-sociais, já que em


seus bastidores proliferam a corrupção, disputas entre quadrilhas, subornos e até
mortes. (...) (STF, RE nº 608.425, rel. Min. Ayres Britto, DJ 22.06.2010, DJe 02.08.2010
− grifos nossos).

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Incabível também, para a jurisprudência majoritária, a aplicação do princípio da
adequação social às contravenções penais do “jogo do bicho”, em que pese a relativa
normalidade dessa prática em diversas localidades do território nacional.

Parcela relevante da doutrina apontará aqui uma crítica severa, no sentido de que a
prática é possuidora de um baixíssimo desvalor da ação, sendo, inclusive,
amplamente estimulada em diversas localidades do país (sobretudo as mais
interioranas), não havendo, portanto, legitimidade nessa incriminação. Uma postura
mais crítica dirá, inclusive, que a criminalização do “jogo do bicho” é permeada por
uma forte carga de preconceitos sociais, atualmente incompatíveis com um direito
penal que se proponha subsidiário e fragmentário.

6. Destinatários do princípio da adequação social

PODER LEGISLATIVO

Parcela da doutrina enxergará no legislador o primeiro destinatário do princípio,


estatuindo que, antes de orientar o trabalho dos juízes na criminalização secundária
no sentido de excluir a tipicidade material dos fatos puníveis que não sejam
contrários ao âmbito de liberdade de ação conferido pela historicidade política e
cultural de uma determinada sociedade, essa categoria jurídica produzirá efeitos no
âmbito da produção legislativa, ou seja, no âmbito da criminalização primária,
determinando ao legislador que se abstenha de, no âmbito formal, tipificar condutas
que sejam, ex ante e abstratamente, adequadas no paradigma social.

PODER JUDICIÁRIO

Aqui, no âmbito da criminalização secundária (verificação em concreto do fato


punível), ter-se-á a aplicação da adequação social para excluir a tipicidade material
dos fatos decorrentes de condutas socialmente adequadas. Perceba-se que, uma vez
que se precise chegar à aplicação concreta da adequação social, o seu primeiro
destinatário (o Poder Legislativo) ou (i) não cumpriu os mandamentos do princípio e
criminalizou conduta que não deveria ter criminalizado; ou (ii) houve alteração
substancial da realidade política e cultural da sociedade, apto a alterar o paradigma
valorativo de uma conduta axiologicamente desvalorada pela grei quando de sua
positivação normativa.

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"Obra coletiva do Curso Ênfase produzida a partir da análise estatística de incidência
dos temas em provas de concursos públicos. A autoria dos e-books não se atribui aos
professores de videoaulas e podcasts. Todos os direitos reservados."

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