Princípio Da Adequação Social
Princípio Da Adequação Social
Princípio Da Adequação Social
PENAL
1. Introdução
Conforme será percebido, esse tema possui intrínsecas conexões com inúmeros outros
tópicos da parte geral do direito penal. Nesta unidade de aprendizagem, nós nos
debruçaremos sobre os debates doutrinários e jurisprudenciais mais relevantes do
tema, passando pelos fundamentos e por questões periféricas.
Tendo em vista a enorme complexidade do tema (no sentido de que para a sua
adequada compreensão, como já mencionado, faz-se absolutamente mandatória a
correlação com outros tópicos da disciplina) e, para evitar a repetição indesejada e
desnecessária de conceitos nas diversas unidades de aprendizagem que lhe serão
postas à disposição, será evitado neste texto o detalhamento extensivo de temas que
circundam apenas lateralmente a insignificância, embora importantes para a sua
compreensão. Dessa forma, para garantir um estudo completamente coerente,
recomenda-se também a consulta aos materiais de estudo que versem sobre os
seguintes tópicos:
2. Fundamentos
Em resumo, ter-se-á por ação socialmente adequada aquela que, mesmo que esteja
adequada formalmente à norma penal incriminadora, seja materialmente atípica por
estar compreendida dentro de um âmbito de liberdade de ação conferido pelo
próprio consenso valorativo de uma sociedade. Devemos pensar, assim, que toda
proibição, nessa forma de pensar, terá caracteres formalmente descritivos, mas
também carregados de uma forte carga axiológica que lhes ditará a validade ou a
invalidade incriminadora.
É interessante, neste ponto, perceber como o que dissemos no início do tópico acerca
da impossibilidade de se tomar os diversos fundamentos do tema ora em estudo como
categorias reciprocamente excludentes se materializará: na frase anterior
mencionamos que, de acordo com o pensamento daquele a quem se atribui a
paternidade do conceito de adequação social, Hans Welzel, toda proibição terá traços
objetivo-descritivos e também axiológico-valorativos através dos quais deve ser
interpretada a proibição normativa: com isso – e, claro, conglobando o pensamento ao
restante de nosso texto –, percebemos que a adequação social arrima-se em um
princípio interpretativo geral que propõe e atua como um critério de respeito da norma
à realidade empírica e repudia a concepção puramente causal (típica do modelo
clássico/naturalista de fato punível, cujos maiores expoentes foram Franz von Liszt e
Ernst von Beling, para quem o tipo penal seria puramente objetivo, descritivo e sem
nenhum tipo de elemento valorativo em seu conteúdo) de ilícito penal.
Essa perspectiva também é adotada por autores brasileiros, como Luiz Régis Prado e
Érika Mendes de Carvalho, para quem a adequação social funciona como um critério
externo de interpretação (PRADO; CARVALHO, 2006, p. 3). Também, para esses
autores, pode funcionar como um “filtro normativo – a saber, como um critério
hermenêutico extra-sistemático – que exclui do âmbito do desvalor do resultado
determinadas condutas valoradas, do ponto de vista social, como adequadas” (PRADO;
CARVALHO, 2006, p. 4).
Atenção!
Essa característica, conforme já se viu nas linhas acima, pode-se apresentar, nas
provas, sob alguns signos linguísticos relativamente distintos (princípio geral, critério
interpretativo), mas, como regra, deve ser avaliada tendo como norte o seu predicado
de restrição do alcance interpretativo dos tipos incriminadores.
Imaginemos, por exemplo, que uma determinada norma penal incrimine, formalmente,
uma certa conduta que não é desvalorada pelos membros da sociedade como um
comportamento incompatível e/ou merecedor de reprovação. Para isso, poderemos
trabalhar com a hipótese de uma lei incriminadora que determina a proibição do
barbear-se ou do raspar o próprio rosto; do vestir-se com roupas chamativas ou sem
elas; do caminhar nos logradouros públicos com ou sem chapéus; do cumprimentar com
um “bom dia” um cidadão após o horário do almoço ou com um “boa tarde” antes de ter
feito a refeição.
Em cada uma dessas hipóteses, poderemos ter condutas perfeitamente típicas do ponto
Atenção!
Para sintetizar, esse fundamento nos diz em uma frase que o direito
penal não pode estar desvinculado da realidade de uma
determinada sociedade em um determinado contexto cultural.
O princípio da adequação social, ante tudo o que já foi visto, tem seu núcleo na recusa
de habilitação de poder punitivo pela mera causação cega de um resultado previsto em
lei como tipicamente proibido. Essa postura estritamente formal-naturalista
fundamentou, por exemplo, o sistema clássico de delito (sistema Liszt/Beling/Radbruch)
e a sua respectiva teoria causalista da conduta penalmente relevante, fundado nas
bases do positivismo cientificista e escorado na teoria da equivalência dos antecedentes
causais como seu ponto central. Não à toa, o conceito e o conteúdo da adequação social
são desenvolvidos por autores majoritariamente pós-causalistas, neokantianos,
finalistas e pós-finalistas das mais variadas categorias e das mais diversas referências
teóricas.
Devemos perceber que uma concepção puramente objetiva, descritiva e causal do ilícito
penal estará restrita ao âmbito da tipicidade formal e da mera causação de um
Tem-se majoritariamente na literatura que a teoria das normas de cultura foi formulada
pelo professor alemão Max Ernst Mayer em uma antiga monografia datada do ano de
1903 (Rechtsnormen und Kulturnormen), não tendo aplicação somente ao direito
penal, mas também à filosofia jurídica e à sociologia. Enquanto na área filosófica
o autor fundamentou-se em Heinrich Rickert e seus estudos em ciência cultural e
ciência natural, concebendo cultura como “a totalidade dos objetos reais em que
residem valores universalmente reconhecidos e que por esses mesmos valores são
cultivados”, na sociologia buscou-se em Raffaele Garofalo – um autor também caro à
história da criminologia e das formulações antigas de delito − a sua conceituação de
delito natural: o que viola os sentimentos altruístas de piedade e de probidade.
Como seu referencial teórico jurídico, teve, na obra de Karl Binding, fundador do
positivismo germânico, um norte. Esse antigo professor alemão desenvolveu, nessa
perspectiva, a ideia de que a norma não se confunde com a lei, mas a precede,
servindo de sustentáculo e referencial necessário para ela – lembremos, para
vislumbrar as relações entre o princípio ora objeto do nosso estudo e a teoria das
normas de cultura, do que já dissemos acerca da adequação social como um critério
de controle da legitimidade de uma determinada criminalização concreta,
levada a cabo na criminalização secundária, pela imposição de uma pena pelo
magistrado criminal frente ao caso concreto submetido ao Poder Judiciário.
A teoria das normas de cultura inseria no seu núcleo uma plêiade grande de valores,
como comandos morais, religiosos e os próprios costumes. Tinha-se, aqui, a
gênese do que viria a ser o fundamento da antijuridicidade material – a categoria
segundo a qual somente haverá ilicitude em um fato se este violar gravemente os
interesses e/ou valores caros à sociedade –, que fundamentou diversos sistemas de
delito e, ao mesmo tempo, deu azo a diversas formulações de adequação social, como
inexistência de ilicitude: um evento, para que seja delito, nessa perspectiva, deve ser
formalmente antijurídico (contrário às normas de direito) e materialmente antijurídico
(contrário às normas de cultura).
Atenção!
PRINCIPAIS AUTORES
Eberhard Schmidt
Hans-Heinrich Jeschek
Johannes Wessels
Werner Maihofer
Karl Wolff
Arthur Kaufmann
Ernst Wolff
CONCEITUAÇÃO
ELEMENTO CENTRAL
Como visto, o histórico do princípio da adequação social não é uniforme, menos ainda
simples. O seu próprio idealizador, Welzel, adotou diferentes posições para
explicá-lo e fundamentá-lo.
Essa postura decorreu dos primeiros trabalhos de Welzel sobre a adequação social e
baseava-se na sua deferência à teoria da ação social, antes das formulações
definitivas de sua teoria da ação finalista.
Assim, exemplificando, sob essa forma de pensar, o agente que perpetrasse uma
conduta que não fosse socialmente inadequada não praticaria ação relevante,
e, por via de consequência, nem sequer haveria a análise dos seguintes
estratos do fato punível (antijuridicidade e culpabilidade), menos ainda da
punibilidade.
Como vimos, a história da adequação social não é uniforme, menos ainda linear. Os
seus fundamentos extrajurídicos são muitos, mas assim também o são os seus
fundamentos jurídicos. É por esse motivo, então, que, ao longo dos anos e das
concepções teóricas, o instituto que ora estudamos foi situado em diversos estratos do
fato punível, sendo amplamente majoritário, entretanto, hoje em dia, que a sua
localização está no coração da tipicidade material, como uma autêntica causa
supralegal de exclusão de tipicidade.
Autores como Claus Roxin e Hans Joachim Hirsch tendem a seguir a mesma postura
teórica, trabalhando adequação social no âmbito da tipicidade (FARIA, 2005, p. 146 e
segs.).
Cuida-se de uma categoria incidente sobre uma conduta que não é inerente
sobre uma conduta inerente ao convívio ao convívio social, mas causa tão pouco
social. dano que não merece a reação do poder
punitivo.
Nessa toada, nas palavras do autor, a adequação social “não trata de casos nos quais
somente existe uma permissão excepcional (justificação), mas sim ações que, em razão
de sua completa normalidade social, nem sequer são abarcadas pelo tipo em sentido
estrito” (HIRSCH, 2005, p. 10-11).
Atenção!
Também a partir de uma visão crítica, pode-se dizer que deslocar para o âmbito da
antijuridicidade o problema da adequação social significaria retornar ao modelo
clássico/causalista de fato punível, que concebia um tipo penal avalorado,
meramente descritivo, completamente livre de valor. Essa postura não é correta
atualmente, sobretudo em razão do advento do modelo finalista de delito (com as
contribuições do modelo neoclássico/neokantiano), dentro do qual a tipicidade não
é imune a valorações e critérios axiológicos, com eles dialogando intrinsecamente.
Caro(a) leitor(a), a partir deste ponto, mostraremos alguns dos principais julgados dos
tribunais superiores que, direta ou indiretamente, envolveram debates sobre o
princípio da adequação social. Desde o início, avisamos que o tema é pouco
desenvolvido do ponto de vista doutrinário na grande maioria dos julgados do
Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que
geralmente passam ao largo de uma análise aprofundada sobre o instituto e muitas
vezes confundem conceitos e/ou realizam valorações pouco compatíveis com todo o
escorço histórico e doutrinário que traçamos ao longo de nossa unidade de
aprendizagem.
O referido precedente, assim como a maioria esmagadora dos julgados do STJ que se
debruçam sobre o tema, trata de eventual atipicidade material do delito
supramencionado com base no princípio da adequação social (outros precedentes
semelhantes em: STJ, AgRg no REsp. nº 1.566.553/MG; AgRg no REsp. nº
1.629.768/SE; AgRg no AREsp. nº 1.043.241/SP; HC nº 359.040/RS).
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso
permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua
residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o
titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder,
ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar
arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo
com determinação legal ou regulamentar:
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de
fogo estiver registrada em nome do agente.
Embora correta a jurisprudência do STJ na conclusão (já que parece fugir a menor
razoabilidade lógica que se vislumbrem presentes os pressupostos da adequação
social), nota-se que a fundamentação da decisão peca por confundir conceitos e
categorias que, embora parecidas, não se confundem.
A dois, o precedente menciona que a conduta do agente não seria adequada no plano
normativo. Tem-se aqui mais um erro grave de premissa (embora, novamente, a
conclusão do julgado pareça correta), já que, normativamente, se está falando do léxico
da tipicidade formal, ou seja, da previsão em abstrato de uma determinada conduta
como incriminada pelo tipo legal de crime. O princípio da adequação social, entretanto,
não atua no plano legal, mas a seu revés: atua no plano metajurídico, no plano dos
fatos.
O âmbito dessa discussão situa-se no campo teórico da redação típica do art. 217-A do
CP.
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: (...).
CP, art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra
exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou
gerente:
2 – Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não tem o
condão de revogar tipos penais. Nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro (com alteração da Lei n. 12.376/2010), não se destinando à
vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
3 – Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse parte dos costumes ou fosse
socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei penal em vigor (STF, HC
nº 104.467/RS. PRIMEIRA TURMA, rel. Min. Cármen Lúcia. Julgamento em 08.02.2011.
DJe 09.03.2011).
Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer
ato relativo à sua realização ou exploração:
Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de
réis.
Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis,
aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para terceiro.
Parcela relevante da doutrina apontará aqui uma crítica severa, no sentido de que a
prática é possuidora de um baixíssimo desvalor da ação, sendo, inclusive,
amplamente estimulada em diversas localidades do país (sobretudo as mais
interioranas), não havendo, portanto, legitimidade nessa incriminação. Uma postura
mais crítica dirá, inclusive, que a criminalização do “jogo do bicho” é permeada por
uma forte carga de preconceitos sociais, atualmente incompatíveis com um direito
penal que se proponha subsidiário e fragmentário.
PODER LEGISLATIVO
PODER JUDICIÁRIO