Dos Paradigmas Acerca Do Ensinar e Do Pesquisar
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Dos Paradigmas Acerca Do Ensinar e Do Pesquisar
Artigo Científico
Instituto de Química, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, Brasil
Resumo
Abstract
- R. Strack - Endereço para correspondência: Instituto de Química (UFRGS). Av. Bento Gonçalves, 9500,
Sala D-114, Campus do Vale, Porto Alegre, RS 91.501-970. E-mail para correspondência:
[email protected]; J.C. Del Pino - Endereço para correspondência: Instituto de Química (UFRGS). Av.
Bento Gonçalves, 9500, Sala D-114, Campus do Vale, Porto Alegre, RS 91.501-970. E-mail para
correspondência: [email protected].
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Ciências & Cognição 2012; Vol 17 (1): 130-151 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 25/10/2011 | Aceito em 24/04/2012 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de abril de 2012
1. Introdução
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2. Estratégia metodológica
A pesquisa na área educacional, como nota Gatti (2004), atualmente, apresenta poucos
estudos com metodologias quantitativas, com predominância das qualitativas. No entanto,
quando lidamos com levantamentos de grande escala a segunda abordagem, importante em
outros contextos, torna-se imprópria por envolver um consumo de tempo que comprometeria
prazos estabelecidos. A metodologia quantitativa envolve considerar, como ponto de partida,
dois aspectos:
“[...] primeiro, que os números, freqüências, medidas, têm algumas propriedades que
delimitam as operações que se podem fazer com eles, e que deixam claro seu alcance;
segundo, que as boas análises dependem de boas perguntas que o pesquisador venha a
fazer, ou seja, da qualidade teórica e da perspectiva epistêmica na abordagem do
problema, as quais guiam as análises e as interpretações.” (Gatti, 2004, 13 p.)
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parece não ser uma forma conveniente de determinar a proximidade a um consenso. Afinal,
como se interpretaria uma média ou um desvio padrão quando o grupo de participantes está
expressando visões diametralmente opostas? (Wierman & Tastle, 2005).
Uma ferramenta matemática desenvolvida por Tastle et al. (2007) utilizando-se de
adaptações na expressão de Shannon (2001), originou uma “equação de consenso” que busca
indicar, numa escala contínua, a convergência das opiniões nas escalas tipo Likert, dentro
dos princípios esboçados pelos autores (Wierman & Tastle, 2005; Tastle et al., 2007). Em
outras palavras, a equação foi estruturada tendo como objetivo a medida do grau de
consenso nas respostas e a qual será utilizada aqui objetivando medir as dispersões das
respostas. O resultado é expresso no intervalo [0,1] (de zero à um) com zero (0%)
representando ausência de consenso e 1 representando consenso total (100%) e assume-se
como convergência forte um valor maior que 0,8 (80%).
Uma forma de sintetizar as contribuições da dispersão obtida pela equação de
consenso e a média aritmética da soma das respostas de cada aluno para cada item Likert é
realizar o produto entre estes dois valores, originando o que denomina-se aqui como Força
Epistêmica (Fε):
onde:
A força epistêmica é uma combinação de fatores que busca indicar uma espécie de
“fator de polarização”, um tipo de vetor que apontaria na direção de uma tendência comum,
de uma “vontade geral” definida a partir dos extremos. Quando comparada com a medida de
outro grupo, surge o que se denomina aqui de diferença de força epistêmica que nada mais é
que a manifestação de uma tendência geral de alteração nas concepções quando transita-se de
um grupo para outro. Quanto mais próximo do valor médio (0) ou quanto mais distante do
consenso forte, assume-se que a força epistêmica tende à zero: uma vez que, ao nos
afastarmos do consenso perdemos “força”, ou quanto mais próximo do valor médio, mais
maleáveis e menos extremistas, “polarizadas” estão as concepções.
Se, na escala Likert [-2,2] o zero (0) representa importância/concordância mediana e,
no consenso, o zero (0) representa ausência de consenso, o valor de Fε(x) = 0 (força
epistêmica igual à zero) implica ou em consenso total (100%) na importância/concordância
mediana (item likert com peso 0) ou dissenso total (0% de consenso) sobre o item, ou seja,
incapacidade de fixação da opinião no grupo, afinal uma concordância/importância mediana
denota, por si só, uma dubiedade do papel que este item desempenha (Tabela 2).
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O instrumento foi respondido por 121 alunos ingressantes dos cursos de graduação
em Química da Região Metropolitana de Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande
do Sul - 26 alunos; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS – 37
alunos; Universidade Luterana do Brasil - ULBRA – 41 alunos; Centro Universitário La
Salle - Unilasalle – 17 alunos) e por 62 alunos concluintes (UFRGS – 12; PUCRS – 27;
ULBRA – 10; Unilasalle – 13). A aplicação do questionário envolveu o consentimento dos
professores das disciplinas de início e fim de curso dos cursos de Química das respectivas
instituições, os quais cederam cerca de meia-hora das suas aulas para que os alunos
respondessem as questões. Não era permitido que os questionários fossem levados para
posterior entrega, tendo em vista que gostaríamos de levantar suas noções mobilizadas in
loco.
Neste trabalho serão discutidas as questões 5, 6, 7 e 11 que versam respectivamente
sobre as finalidades da pesquisa em química, atributos de um pesquisador, papel da
pesquisa no ensino e atributos daqueles que fazem parte das Instituições de Ensino e
Pesquisa, restritas às respostas aos respondentes da UFRGS. Uma análise mais
pormenorizada das respostas dos ingressantes pode ser encontrada em Strack (2010).
3. O paradigma do consenso
O esforço de compreensão sobre a formação do cientista não pode ignorar que esta
atividade está permeada por uma matriz disciplinar, abrangendo todo um conjunto de
compromissos de pesquisa de uma comunidade, sua constelação de crenças, valores e técnicas
partilhados pelos seus membros. Como Ostermann (1996) salientou, o modelo kuhniano de
desenvolvimento científico traz como implicação para a Educação em Ciências a busca pela
correspondência entre epistemologia e aprendizagem e, neste sentido, é importante
compreender o papel das instituições de Ensino Superior na formação de um consenso com
consequências epistemológicas.
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Uma reflexão não somente sobre as respostas destes alunos mas, também, com relação
às funções pedagógicas da pesquisa parece apontar na direção de que seria a academia um
lugar onde certas compreensões de pesquisa são consolidadas enquanto outras são cambiadas.
Tomando em específico as noções que permanecem sem alteração, seria de se supor que isso
decorre do não-questionamento destas mesmas durante a formação profissional. Como muito
bem coloca Durkheim (1995, p. 13), embora num contexto mais voltado à formação
pedagógica,
4. Algumas concepções
2,0
1,5
1,0 Ingressantes
Concluintes
0,5
0,0
Desc Sint Inven Pop Merc Gov Comp Public Refl Cons
Inicia-se a análise pela força epistêmica enfatizando o papel que esta (Figura 1)
desempenha como quadro síntese das tendências de consenso e de atribuições de importância
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1
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5 Ingressantes
Concluintes
0,4
0,3
0,2
0,1
0
Desc Sint Inven Pop Merc Gov Comp Public Refl Cons
A figura 2 indica que alguns consensos permaneceram estáveis em itens como Atender
os interesses do Governo, Compreender o mundo e Construir conhecimento. Aumentos de
consenso surgiram em itens como Refletir sobre o Ensino, Publicar artigos, Inventar Coisas,
Atender aos interesses do mercado e, em menor grau, Descobrir leis naturais.
Os respondentes mantêm um perfil semelhante entre ingressantes e concluintes na
figura 3. Os pesos atribuídos em vários itens foi inferior ao conferido pelos ingressantes, à
exceção de Construir conhecimento, Refletir sobre o ensino, Publicar artigos e Atender aos
interesses do mercado.
A construção de conhecimento surge como um primeiro da imagem do papel
desempenhado da pesquisa em química enquanto um processo epistêmico: de forma sucinta e
genérica pode-se dizer que a concepção geral nesta questão é construir conhecimento
atendendo as necessidades da população.
Neste contexto de pesquisa pergunta-se pelos atributos de um dos seus principais
atores, o pesquisador (Questão 6), talvez a peça-chave na elucidação da imagem dos alunos
sobre as liberdades e demandas na pesquisa química.
Questão 6: Graus de importância atribuídos aos diversos atributos de um pesquisador6.
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2
1,5
1
0,5
0 Ingressantes
Concluintes
-0,5
-1
-1,5
-2
Desc Sint Inven Pop Merc Gov CompPublic Refl Cons
2,0
1,5
1,0 Ingressantes
Concluintes
0,5
0,0
Imp Apol Ateu Criat Solit Meto Publ Ens Cptvo Cmtte Conh Enga
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1
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5 Ingressantes
0,4 Concluintes
0,3
0,2
0,1
0
Imp Apol Ateu Criat Solit Meto Publ Ens Cptvo Cmtte Conh Enga
2
1,5
1
0,5
0 Ingressantes
-0,5 Concluintes
-1
-1,5
-2
-2,5
Imp Apol Ateu Criat Solit Meto Publ Ens Cptvo Cmtte Conh Enga
O gráfico dos pesos atribuídos (figura 6) indica que Ser ateu não é uma condição de
um competente pesquisador na área de Química (valores negativos), da mesma forma, não é
necessário Ser solitário, mas é extremamente valorizado o fato da Criatividade e da
Competência, seguido pelo Ter muito conhecimento. Em suma, a grande dFε expressa em
itens como Ateu e Solit indicam a existência de uma posição fortemente estabelecida de que
estes atributos não são condições necessárias ao bom profissional da Química.
Aqui cabe uma ressalva importante. No cabeçalho da questão já havia a referência aos
atributos de um competente pesquisador, o que implicou o fato de que o item ser competente
ser redundante nas respostas. Infelizmente tal redundância passou despercebida não só pelos
avaliadores do questionário como pelos próprios autores o que implica que a presença do item
ser competente acaba por não trazer um acréscimo à discussão já que estava induzida a
escolha por este item no cabeçalho.
Na verdade, o uso do termo 'competente' na pesquisa criou uma referência circular:
marca-se o item “ser competente” porque a pergunta se referia à um “competente
pesquisador”. É interessante que a imensa maioria reforça a importância da competência que
já estava expressa na questão. Essa pontuação alta se referiria apenas ao efeito da referência
circular ou seria realmente um consenso?
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Mas isso não nos responde uma pergunta básica: o que significa 'ser competente' ou
“qual a definição de ser competente por parte dos respondentes?” Embora o termo
competência faça parte inclusive de documentos orientadores educacionais nacionais como as
Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Química, sua definição não foi posta sob
crivo, demonstrando a observação de Thomas Kuhn sobre uso dos conceitos na ciência: há
consenso no uso, mas não necessariamente na definição que damos individualmente ao
conceito. Enfim, seria competência um conceito que mobiliza diferentes noções de diferentes
indivíduos? Uma espécie de núcleo agregador de significados7? Um tipo de schemata (Freitas,
2005)?
Observando os resultados, as respostas podem ser organizadas em dois grupos com
importâncias relativas opostas: as atribuições de importância positiva, como por exemplo, ser
criativo (Criat), ser competente (Cmtte) e ter conhecimento (Conh) e as atribuições de
importância negativa, quais sejam, ser ateu (Ateu) e ser solitário (Solit).
É interessante observar a existência de dois atributos necessários que se destacam
como comuns aos grupos: criatividade e conhecimento. O atributo desnecessário, ser ateu,
também recorrente em todos os grupos, completa as características genéricas de um
pesquisador da área de química, segundo o conjunto geral dos respondentes.
Retornando às reflexões do papel da pesquisa, uma outra pergunta a ser respondida
versa sobre sua importância frente ao (ou para o) ensino acadêmico (Questão 7).
Questão 7: Graus de importância atribuídos aos diversos papéis que a pesquisa na área
de química pode desempenhar no ensino acadêmico de química8.
2,0
1,5
1,0 Ingressantes
Concluintes
0,5
0,0
Comp Reflex Ambi Atual
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0,8
0,7
0,6
0,5 Ingressantes
0,4 Concluintes
0,3
0,2
0,1
0
Comp Reflex Ambi Atual
Uma parte do efeito da força epistêmica observada no gráfico anterior, justifica-se pelo
consenso observado (figura 8), onde itens como 'habilita compreensão da natureza da ciência,
análise das práticas e suas metodologias' e 'atualização de conhecimentos por parte daqueles
que ensinam' mantenham-se estáveis entre ambos grupos.
2
1,5
1
0,5
0 Ingressantes
Concluintes
-0,5
-1
-1,5
-2
Comp Reflex Ambi Atual
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1,5
1,0 Ingressantes
Concluintes
0,5
0,0
Invent Pesq Metod ArtPq Artpub Ens Admin Equip
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“How are scientists taught to do science?’’ and ‘‘What implication does this have for the
research education of teachers?” (Feldman; Divoll & Rogan-Klyve, 2009, p. 443).
Feldman e cols. (2009) apontam o fato de que existem numerosos estudos sobre como
cientistas fazem ciência, em contrapartida, poucos estudos foram feitos sobre como cientistas
aprendem a fazer ciência. Transladando para a Didática das Ciências: embora existam estudos
feitos sobre como os professores devam ensinar (e alguns outros sobre como eles atuam
efetivamente enquanto ensinam), pouquíssimas pesquisas foram feitas no sentido de como os
futuros professores de Ensino Superior aprendem a ensinar. Ligado à isso fica a própria
formação de professores da Escola Básica, uma vez que sua formação se dá através de
instituições nas quais seus professores-formadores ministrantes das diversas disciplinas são
justamente estes professores Ensino Superior que passaram por uma formação orientada
fundamentalmente para a pesquisa.
Seria de se supor que os professores da IES seriam capazes de promover, como os
autores do artigo supracitado questionam, uma compreensão da atividade científica a ponto de
habilitar os professores da Escolarização Básica a trabalhar a ciência enquanto atividade de
investigação e menos como atividade de transmissão? Isso só seria possível se, conforme
pontuam os referidos autores, os professores em formação estivessem, em maior ou menor
grau, engajados em grupos de pesquisa, participando da vida de laboratório. Mas, neste caso,
já não estaríamos formando pesquisadores (aqueles que pesquisam) ao invés de professores
(aqueles que professam)? Ou seria possível um perfil intermediário que dê conta de ambas
atribuições e, ainda sim, evitar recair na dicotomia cada vez mais emergente entre ensino e
pesquisa? Afinal nada impede, a priori, que um dos vícios da formação universitária
recorrentes atualmente, qual seja, a noção de formação de bons pesquisadores pressupondo
que se tornem bons educadores, sejam reproduzidos nos diversos níveis de ensino.
A questão ‘How are scientists taught to do science?” (Feldman et al, 2009, p. 443) é
indissociável desta outra “Como os professores ensinam a ensinar?” Afinal os doutos que
pesquisam e os doutos que ensinam participam dos mesmos grupos ou, no mínimo, da mesma
comunidade dos praticantes de uma dada ciência. Ou não?
Tardif (2000, p. 18), ao discutir os problemas epistemológicos do modelo universitário
de formação, argumenta:
“Por exemplo, a pesquisa, a formação e a prática constituem, nesse modelo, três pólos
separados: os pesquisadores produzem conhecimentos que são em seguida transmitidos
no momento da formação e finalmente aplicados na prática: produção dos
conhecimentos, formação relativa a esses conhecimentos e mobilização dos
conhecimentos na ação tornam-se, a partir desse momento, problemáticas e questões
completamente separadas, que competem a diferentes grupos de agentes: os
pesquisadores, os formadores e os professores. Por sua vez, cada um desses grupos de
agentes é submetido a exigências e a trajetórias profissionais conforme os tipos de
carreira em jogo. De modo geral, os pesquisadores têm interesse em abandonar a esfera
da formação para o magistério e em evitar investir tempo nos espaços de prática: eles
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devem antes de tudo escrever e falar diante de seus pares, conseguir subvenções e
formar outros pesquisadores por meio de uma formação de alto nível, doutoral ou pós-
doutoral, cujos candidatos não se destinam ao ensino primário e secundário.”
“Os alunos passam pelos cursos de formação de professores sem modificar suas crenças
anteriores sobre o ensino. E, quando começam a trabalhar como professores, são
principalmente essas crenças que eles reativam para solucionar seus problemas
profissionais.” (Tardif, 2000, pp. 13-14)
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“What does it mean that science teachers ought to know how to do science? Does it
mean that they should be Novice Researchers who have been exposed to a community
of practice, but have developed little of the skills needed to develop and carry out a
research project? Or does it mean that a teacher should be a Proficient Technician, who
is a skilled member of the community of practice, but does not participate in the
creation or warranting of new knowledge? Or does it mean that for a teacher to
adequately teach children how to do science, he or she must be a Knowledge
Producer?” (Feldman et al., 2009, p. 456)
“Vou tentar resumir rapidamente a natureza da educação nas ciências naturais ignorando
as muitas diferenças significativas, porém menores, entre as várias ciências e entre as
abordagens de diferentes instituições educacionais. A característica mais estável desta
educação é que, numa medida totalmente desconhecida noutros campos criativos, se
realiza inteiramente através de manuais. É comum que os estudantes licenciados e pós-
graduandos de química, física, astronomia, geologia ou biologia adquiram a substância
dos seus campos a partir de livros escritos especialmente para estudantes. Até estarem
preparados, ou quase, para começar o trabalho das suas próprias dissertações, não se
lhes pede que tentem projetos de investigação experimentais nem são expostos a
produtos imediatos da investigação feita por outros, isto é, às comunicações
profissionais que os cientistas escrevem uns para os outros. Não há antologia de “textos
selecionados” nas ciências naturais. Nem os estudantes de ciência são encorajados a ler
os clássicos históricos dos seus próprios campos – trabalhos onde podiam descobrir
outras maneiras de olhar os problemas discutidos nos seus livros de texto, mas onde
também encontrariam problemas, conceitos e padrões de solução que as suas futuras
profissões há muito descartaram e substituíram.” (Kuhn, 1989, p. 279)
Parece que Kuhn se refere à grande maioria dos alunos de cursos de ciências naturais
os quais não participam de atividades em grupos de pesquisa, a denominada Iniciação
Científica. Convém observar que o simples nome "Iniciação Científica" já denota que a
'iniciação à ciência' ocorre com a participação em atividades de pesquisa. Fica a pergunta: o
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ensino, então, não é uma iniciação à ciência? Ou melhor, não é uma "iniciação científica" à
ciência?
Nesse sentido, talvez devêssemos tentar reverter o pensamento sobre o papel da
Iniciação Científica (IC) na formação do universitário para compreender o que significa a
ausência da IC na formação universitária.
Antes, convém perguntar, “o que pretendemos com a IC”? Formar pesquisadores,
professores ou professores-pesquisadores, ou ainda, professores pesquisadores de sua
prática?Afinal, mesmo podendo ter um substrato comum, ou seja, o papel da pesquisa na
retificação dos conhecimentos postos, as noções supracitadas podem desembocar em
consequências diametralmente opostas. Pois vejamos:
Pesquisador: um cientista e sua vida de laboratório;
Professor: aquele que professa, discursa sobre uma arte ou ciência;
Professor-pesquisador: marcadamente esse é o caso dos professores das IES que devem ser
professores e, ainda, realizar suas pesquisas. As consequências deste perfil é a disputa de
tempo entre ensino e pesquisa.
Professor pesquisador de sua prática: neste perfil, o professor, ainda que um pesquisador,
não necessariamente se engaja na fabril concepção de “máquina de produzir artigos” e sim
na reflexão de sua prática diária. A questão é: que tipo de atividade faculta a emergência
deste perfil de profissional? Parece que a IC forma pesquisadores e não necessariamente
professores pesquisadores de sua prática.
Me parece que, o que é consenso em um grupo, é o questionável de outro. Dito de
forma diferente: o que uma comunidade de pesquisadores considera ultrapassado, pode ser o
senso comum subjacente à outra comunidade. Afinal essa última [comunidade] não pesquisa a
temática da primeira. Seria o caso das diferenças entre os pesquisadores de ensino de Química
e os pesquisadores da chamada “Química dura”.
Retomando a discussão sobre a natureza da educação em ciências naturais, Kuhn
(1989, p. 280) enfatiza que:
“Mesmo a teoria educacional mais vagamente liberal deve considerar esta técnica
pedagógica como um anátema. Todos concordamos que os estudantes devem começar
por aprender um bom bocado do que já se sabe, mas também insistimos em que a
educação lhes deve dar muito mais. Dizemos que eles devem aprender a reconhecer e a
avaliar problemas que ainda não tenham recebido nenhuma solução inequívoca; deve
ser-lhes fornecido um arsenal de técnicas para abordarem os problemas futuros; e
devem aprender a ajuizar da importância destas técnicas e a avaliar as possíveis
soluções parciais que podem fornecer. Em muitos aspectos, estas atitudes em relação à
educação parecem-me absolutamente correctas e, não obstante, devemos reconhecer
duas coisas a seu respeito. Primeira, a educação nas ciências naturais parece que ficou
incólume à sua existência. Continua a ser uma iniciação dogmática numa tradição
preestabelecida em que o estudante não está equipado para avaliar. Segunda, pelo
menos no período em que foi seguida por um certo prazo numa relação de
aprendizagem, esta técnica de exposição exclusiva a uma tradição produziu uma imensa
classe de inovações.”
“[…] espero contudo que a comunicação tenha esclarecido por que razão um sistema
educacional, melhor descrito como uma iniciação a uma tradição inequívoca, deve ser
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inteiramente compatível com o trabalho científico com êxito. E espero, além disso, ter
tornado plausível a tese histórica de que nenhuma parte da ciência progrediu muito e
depressa antes de esta educação convergente e a correspondente prática normal
convergente se terem tornado possíveis. Por fim, embora esteja para lá da minha
competência derivar correlatos de personalidade desta concepção do desenvolvimento
científico, espero ter dado um sentido claro à visão de que o cientista produtivo deve ser
um tradicionalista que gosta de jogar intricados jogos com regras preestabelecidas, para
ser um inovador com êxito que descobre regras novas e novas peças com que jogar.”
(Kuhn, 1989, pp. 288-289)
6. Conclusões
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6. Referências bibliográficas
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Notas
(1) “As conferências de consenso envolvem pequenos grupos de cidadãos, que passam por um processo de
aprendizado sobre uma dada questão tecnológica, envolvem pessoas especializadas e fazem avaliação das
questões-chave que identificam como críticas” (Einsiedel e Eastlick, 2005, p. 203)
(2) Conselho Federal de Química, Resolução Ordinária nº. 927, de 11/11/1970
(3) The Relevance of Science Education é um projeto comparativo internacional que visa averiguar a relevância
dos conteúdos dos currículos de ciências em diferentes contextos culturais. A população de estudo são
estudantes que estão a finalizar a educação secundária (15-16 anos). Maiores informações em
http://www.ils.uio.no/english/rose/
n
̄ 1
(4) S k = ∑ ai , onde:
n i
ai representa o valor associado pela normalização (-2, -1, 0, 1 ou 2) atribuído por cada i-ésimo respondente
em cada conjunto de respondentes de uma respectiva k-ésima questão.
(5) Legenda: Desc: descobrir leis naturais, Sint: sintetizar substâncias, Inven: inventar coisas, Pop: atender às
necessidades da população, Merc: atender aos interesses do mercado, Gov: atender aos interesses do governo,
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Ciências & Cognição 2012; Vol 17 (1): 130-151 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
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Comp: compreender o mundo, Public: publicar artigos, Refl: possibilitar reflexões sobre o ensino, Cons:
construir conhecimento
(6) Legenda: Imp: imparcial, Apol: apolítico, Ateu: ateu, Criat: criativo, Solit: solitário, Meto: seguir rigidamente
as metologias das ciências, Publ: publicar artigos, Ens: saber ensinar, Cptvo: competitivo, Cmtte:
competente, Conhe: ter muito conhecimento, Enga: socialmente engajado
(7) Um termo que, mesmo sem possuir uma definição clara por parte daquele que o utiliza, é mobilizado,
trazendo como consequência que cada indivíduo atribui um conjunto de noções. O resultado é um termo-
chave que cria consenso, ainda que não exista consenso na sua definição. Provavelmente foi esse efeito que
emergiu a partir do respectivo item da questão 06. Num exemplo mais sofisticado, Levine (2000) remonta
aos apontamentos de Kuhn com relação à alguns trabalhos de Piaget - traçando uma correlação entre
Desenvolvimento Cognitivo e História da Ciência - e, a partir disso, reflete sobre os trabalhos posteriores em
psicologia do desenvolvimento que se inspiram em algumas noções de Thomas Kuhn, por sua vez inspiradas
na psicologia do desenvolvimento, criando uma circularidade.
(8) Comp: habilita compreensão da natureza da ciência, análise das práticas e suas metodologias; Reflex: refletir
sobre a prática como pesquisador e como professor; Ambi: aprendizagem no ambiente da produção científica;
Atual: atualização de conhecimentos por parte daqueles que ensinam
(9) Invent: Inventar, Pesq: Pesquisar, Metod: seguir metodologia das ciências, ArtPq: publicar artigos para outros
pesquisadores, Artpub: publicar artigos para o público em geral, Ens: ensinar, Admin: saber administrar,
Equip: trabalhar em equipe.
(10) Seria de se perguntar, também, se são as práxis que moldam as concepções e não as concepções que mudam
as práxis. Além disso, a relação entre uma noção e a prática relacionada a esta pode não ser linearmente
dependente: o papel do grupo, a “pressão social”, o “efeito de grupo” deve ser levado em conta. O que leva à
outra pergunta: é possível transcender o 'efeito de grupo'?
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