A Sociologia No Ensino Médio PDF
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O conhecimento sociolgico espirala dentro e fora do universo da vida social, reconstruindo tanto esse universo como a si mesmo como uma parte integral deste processo. Anthony Giddens Mrio Bispo dos Santos
Texto produzido, sob orientao da professora Fernanda Sobral, na disciplina Cincia, Tecnologia e Sociedade do programa de Ps Graduao do Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia. Mrio Bispo dos Santos mestrando em Sociologia pela UnB e professor de Sociologia na Secretaria de Educao do DF
INTRODUO Desde o incio da dcada de 80, parlamentares, estudantes, professores, entidades da sociedade civil vm lutando para que a Sociologia seja includa como disciplina nos currculos do Ensino Mdio, dada a sua importncia na formao da cidadania. Finalmente, agora, ao trmino da dcada de 90, os Parmetros Curriculares Nacionais, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (DCNEM), Parecer 15/98 do Conselho Nacional de Educaco, estabelecem que os conceitos, procedimentos e atitudes provenientes da Geografia, Histria, Filosofia e da Sociologia devem constituir a rea de Cincias Humanas e suas Tecnologias. Tendo em vista a concretizao das diretrizes e parmetros citados, algumas unidades da federao efetivaram reformas curriculares que incluem a Sociologia como disciplina obrigatria. Com certeza, tais modificaes vm ao encontro das reivindicaes de todos aqueles que lutam pelo ensino da Sociologia. No caso do DF, a Sociologia deixa de ser uma disciplina constante da parte diversificada do currculo, com carga de 2 (duas) horas semanais no 3 ano, para se tornar uma disciplina obrigatria nos trs anos, com carga de 2 (duas) horas semanais. Salientamos, entretanto, que no tem sido fcil o processo de efetivao da Sociologia no Ensino Mdio. No caso Rede Pblica do DF, os professores de Sociologia, tm enfrentado dificuldades de toda ordem: administrativas: nmero excessivo de turmas, em geral, 16 turmas por 40h de jornada, o que por um lado, dificulta a realizao de atividades criativas, o acompanhamento dos alunos e uma avaliao diagnstico e por outro lado, gera desgaste fsico e mental. Polticas: a resistncia de professores e alunos, capitaneada pelo Sindicato dos Professores, em funo da diminuio da carga horria de outras disciplinas. Pedaggicas: domnio precrio dos conceitos bsicos das cincias sociais e dos conceitos da prpria reforma curricular tais como, tecnologia,
competncia e habilidade, interdisciplinaridade, contextualizao, trabalho projetos. Do nosso ponto de vista, existe uma compreenso clara de que Universidade pode contribuir de diversas formas para a superao dessas dificuldades. Em primeiro lugar, ela pode participar da melhoria da qualificao dos professores de Sociologia, promovendo cursos de atualizao e revitalizando o currculo da licenciatura em Cincias Sociais em virtude da Reforma do Ensino Mdio. Em segundo lugar, a Universidade pode incentivar estudos e pesquisas, em nvel de graduao e ps-graduao sobre o prprio ensino de Sociologia. Nesse sentido, pretende-se com esse trabalho trazer elementos para uma melhor compreenso sobre as questes relativas s condies epistemolgicas em que se desenvolve o trabalho do professor de Sociologia. Somente para fins expositivos, a anlise das referidas condies epistemolgicas estar dividida em duas partes. Uma primeira parte, na qual, se aborda as questes relacionadas mais s condies internas/cognitivas ou didtico-epistemolgicas, isto , questes de ordem microssociolgicas relacionadas organizao da escola, ao tratamento dos contedos, aplicao de mtodos de ensino, aos processos de avaliao e especialmente, questes relacionadas s representaes sociais de cincia, de conhecimento escolar e de Sociologia no interior da escola. E uma segunda parte, na qual, se faz a anlise das questes ligadas mais s condies externas/macroestruturais de carter scio-epistemolgica, ou seja, questes de ordem macrossociolgicas relacionadas s mudanas no mundo do trabalho, implementao de polticas educacionais e em especial, as questes relacionadas ao modo de produzir e distribuir conhecimento nas sociedades contemporneas que podem afetar as representaes sociais dos professores. 2.0 CONDIES INTERNAS DE CARTER DIDTICO-EPISTEMOLGICO O trabalho do professor de Sociologia tem como referncia os documentos curriculares oficiais, por isso, iniciaremos nossa anlise a partir das disposies colocadas para o ensino de Sociologia nos Parmetros Curriculares Nacionais Tendo em vista a preocupao com o domnio de tecnologias, expressa nas Diretrizes Curriculares Nacionais, os PCNEM (MEC, 1999, p.85) propem que a Sociologia, em conjunto com a Cincia Poltica e a Antropologia, permita ao educando desenvolver as seguintes competncias e habilidades Representao e comunicao Identificar, analisar e comparar os diferentes discursos sobre a realidade: as explicaes das Cincias Sociais, amparadas nos vrios paradigmas tericos, e as do senso comum. Produzir novos discursos sobre as diferentes realidades sociais, a partir das observaes e reflexes realizadas. Investigao e compreenso Construir instrumentos para uma melhor compreenso da vida cotidiana, ampliando a viso de mundo e o horizonte de expectativas, nas relaes interpessoais com os vrios grupos sociais.
Construir uma viso mais crtica da indstria cultural e dos meios de comunicao de massa, avaliando o papel ideolgico do marketing enquanto estratgia de persuaso do consumidor e do prprio eleitor. Compreender e valorizar as diferentes manifestaes culturais de etnias e segmentos sociais, agindo de modo a preservar o direito diversidade, enquanto princpio esttico, poltico e tico que supera conflitos e tenses do mundo atual. Contextualizao scio-cultural Compreender as transformaes no mundo do trabalho e o novo perfil de qualificao exigida, gerados por mudanas na ordem econmica. Construir a identidade social e poltica, de modo a viabilizar o exerccio da cidadania plena, no contexto do Estado de Direito, atuando para que haja, efetivamente, uma reciprocidade de direitos e deveres entre o poder pblico e o cidado e tambm entre os diferentes grupos. A idia central que o domnio dessas competncias permitir ao educando investigar, identificar, descrever, classificar e interpretar/explicar os fatos relacionados vida social, e assim, instrumentaliz-lo para que possa decodificar a complexidade da realidade social. Tanto nos PCNEM, como no Currculo da Educao Bsica do DF, ressalta-se que as citadas competncias e habilidades devem ser trabalhadas por meio de projetos de investigao, oficinas de aprendizagem, programas de estudos, tendo como ponto de partida os princpios conceituais e metodolgicos desenvolvidos pela Sociologia Compreensiva, pela Sociologia Funcionalista e pela Sociologia Crtica. Cabe entretanto observar que
Ao se tomar os trs grandes paradigmas fundantes do campo de conhecimento sociolgico Karl Marx, Max Weber e Emile Durkheim , discutem-se as questes centrais que foram abordadas, bem como os parmetros tericos e metodolgicos que permeiam tais modelos de explicao da realidade. No entanto, a grande preocupao promover uma reflexo em torno da permanncia dessas questes at hoje, inclusive avaliando a operacionalidade dos conceitos e categorias utilizados por cada um desses autores, no que se refere compreenso da complexidade do mundo atual. (MEC, 1999, p.72) A proposta, portanto, ao enfatizar a formao de competncias, aponta para a superao de uma certa tradio escolar na transmisso dos contedos das cincias. Tais contedos deixam de ser fins para se tornarem meios de formao do educando. A questo que se coloca a seguinte: em que condies epistemolgicas e pedaggicas essa proposta est sendo implementada, ou seja, Como os professores concebem o conhecimento escolar? -
Como concebem a Sociologia? Como uma cincia com um conjunto pronto e acabado de conceitos e teorias? Como uma cincia em interao reflexiva com a realidade? Como um instrumental prtico de interveno na realidade, para organiza-la, control-la, modific-la? Como um discurso sobre o real? A partir da compreenso que os profissionais tm da Sociologia, como desenvolvem seu trabalho? Para os professores, h diferena significativa entre os contedos e mtodos de ensino utilizados no curso de Cincias Sociais na Universidade e os contedos e mtodos que eles utilizam no Ensino Mdio. Para melhor situarmos essas questes, vamos pens-las a partir do terreno epistemolgico que se desenvolve a prtica pedaggica. Na anlise a seguir, ser utilizada uma tipologia com base nos estudos dos professores Fernando Becker e Lcia Helena Alvarez Leite, como tambm, nas observaes do autor deste texto, enquanto professor e coordenador de atividades referentes ao ensino de Sociologia na Rede Pblica do DF. Ressalta-se que essa tipologia deve ser encarada de um ponto de vista weberiano, isto , um instrumento de medida que no pode ser confundido com o real. De modo geral, a prtica dos professores expressa as seguintes concepes epistemolgicas: Concepo cientificista. A maioria dos professores desenvolve suas atividades com base na convico epistemolgica de que o conhecimento escolar constitudo estritamente pelos contedos acumulados e sistematizados pelas cincias. Nessa perspectiva, cabe aos professores, guardies desse conhecimento pronto e acabado, transmiti-lo aos desprovidos do saber cientfico, os alunos. Essa concepo epistemolgica tem implicaes ticas visto que o detentor dos contedos cientficos, tambm, posto como detentor da verdade e portanto da capacidade de decidir e julgar soberanamente sobre todas as questes pedaggicas: horrios, enturmao, aprovao e reprovao dos alunos, etc. A concepo cientificista, tambm tem implicaes na estrutura temporal da escola. Numa estrutura escolar fundamentada no processo de transmisso dos contedos, o tempo de aprendizagem fragmentado e linear. Assim, um contedo A precede um contedo B, que por sua vez precede um C. O primeiro bimestre precede o segundo, a terceira srie precede a quarta e assim por diante. Nessa organizao, o tempo dividido em dias letivos, bimestres, semestres, sries, etc, de acordo com as necessidades de estruturao dos contedos e no de acordo com as necessidades e ritmos de aprendizagem dos alunos. Como conseqncia dessa temporalidade etapista, aqueles que no dominarem os contedos nos prazos estabelecidos deveram repetir o processo. No ensino de Sociologia, a concepo cientificista manifesta-se sob a forma de duas tendncias. Uma tendncia, na qual, os professores organizam suas atividades baseadas na transmisso de conceitos como: classes, interao social, cultura, estratificao social, mobilidade social, etc. E outra tendncia, na qual, os professores preocupam-se em transmitir os fundamentos das principais correntes tericas: funcionalismo, marxismo, etc. -
Temos tambm na prtica dos professores de Sociologia tentativas de articulao dessas duas tendncias, como por exemplo, exposio acerca da compreenso dos tericos clssicos sobre os processos de mudana social ou a discusso da relao indivduo e sociedade a partir dos conceitos de fato social em Durkheim, ao social em Weber e classe social em Marx. Em qualquer das tendncias, a lgica etapista sempre est vertebrando o processo pedaggico. Na abordagem conceitual, por exemplo, primeiro aborda-se o conceito de agrupamento social, depois, os tipos de agrupamentos, os processos de mobilidade social em cada um deles, etc. Na abordagem terica, primeiro, discute-se contexto histrico de surgimento da corrente terica, principais socilogos, questes fundamentais, interlocutores, etc. Ressalta-se que no ensino de Sociologia, na perspectiva cientificista, os instrumentos metodolgicos construdos pelas correntes tericas dificilmente so citados e quase nunca so exercitados. Assim, os alunos recebem informaes sobre os conceitos de solidariedade em Durkheim e classe, grupo de status e grupos de poder em Weber, todavia, raramente recebem informaes sistemticas acerca do instrumental que esses estudiosos utilizaram na construo desses conceitos. Enfim, na perspectiva cientificista, a nfase no na forma como a Sociologia se constri, mas sim, no que a Sociologia construiu, ou seja, a Sociologia feita. Em outras palavras, a preocupao no est centrada no processo de produo sociolgica, mas sim, no resultado dessa produo. Concepo espontanesta Um grupo de professores, em reao ao carter autoritrio, conteudista e excludente da concepo anterior, procura desenvolver atividades pedaggicas, nas quais, o centro do processo no o professor, mas o aluno. Acreditam que os interesses, os temas e as problemticas do cotidiano do aluno devam constituir os contedos do conhecimento escolar. Essa perspectiva epistemolgica tambm tem desdobramentos ticos e organizativos. Como so os alunos os portadores do conhecimento, cabe a eles definirem as normas de organizao da sala de aula, os princpios de convivncia social, os temas que sero estudados, os mtodos de avaliao e os ritmos de aprendizagem. Na prtica dos professores de Sociologia, o espontenesmo comum. Os professores costumam organizar as atividades do bimestre em torno dos interesses dos alunos. As temticas so escolhidas basicamente em duas fontes. Uma primeira fonte o cotidiano dos alunos e suas problemticas: uso de drogas, gravidez na adolescncia, relaes familiares, violncia, etc. Outra fonte constituda pelas temticas hoje em discusso na Antropologia e na Sociologia que interessam aos alunos: diferenas de gnero e orientao sexual, diversidade cultural, diferenas raciais, religiosidade, etc. Os alunos utilizam como material de pesquisa dessas temticas principalmente: jornais, revistas e vdeos. Secundariamente realizam entrevistas e pesquisam em livros e artigos cientficos das Cincias Sociais. As informaes coletadas so expostas em seminrios e feiras.
Ressalta-se que na viso espontanesta, o ensino de Sociologia enfatiza a pesquisa e assim, ainda que precariamente procura possibilitar ao aluno a apropriao do instrumental metodolgico desenvolvido nas Cincias Sociais. Todavia, trata-se de uma apropriao totalmente descontextualizada visto que no propicia ao educando um estudo dos princpios filosficos e sociolgicos que fundamentaram a elaborao dos instrumentos de pesquisa. Concepo globalizante A professora Lcia Leite (1997.p.5) afirma que as duas concepes expostas, aparentemente diferentes, tm algo em comum: Uma viso dicotmica do que seja conhecimento escolar, acabando por fragmentar um processo que no pode ser fragmentado. O que para os professores tem sido visto como dois aspectos dicotmicos, na verdade, constitui-se em um nico processo, global e complexo, com vrias dimenses. Numa perspectiva globalizante, os contedos cientficos e os contedos postos pelos alunos esto articulados num mesmo processo pedaggico e assim constituem o conhecimento escolar. No h como descartar o conhecimento cientfico visto que ele no fruto do acaso, mas sim, da prpria ao do homem no processo de transformao de sua realidade. Nem to pouco h como negar os interesses e proposies dos alunos, pois, sem eles, desaparece a possibilidade de uma escola atraente e criativa. Uma parcela, ainda pequena de professores, tem procurado desenvolver atividades dentro dessa viso epistemolgica, principalmente, por meio de projetos de trabalhos. Os projetos so desenvolvidos a partir de questes significativas para a turma que podem ser sugeridas pelos alunos, pelos professores ou pela prpria conjuntura social. As questes postas no projeto geram necessidades que faro com que os alunos se defrontem com os conhecimentos cientficos como instrumentos culturais para entendimento da realidade e no como conceitos abstratos desprovidos de significao. Essa viso do processo de produo do conhecimento na escola, como as duas anteriores, tambm tem implicaes ticas e organizativas. Assim, o planejamento das atividades construdo pelo professor e pelos alunos com base em algumas questes: O que j sabemos acerca da questo que pretendemos investigar? O que queremos saber? Como faremos para buscar as respostas para nossas perguntas? Quando faremos? No desenvolvimento do projeto, temos atividades desenvolvidas pelos alunos como, entrevistas, pesquisa bibliogrfica, pesquisa de campo e atividades organizadas pelo professor, como por exemplo, a organizao de mdulos de aprendizagem com a funo de aprofundar e sistematizar alguns contedos relevantes para o projeto. No processo de sntese, alunos e professores sistematizam os conceitos, valores, competncias e procedimentos desenvolvidos, identificam
questes novas passveis de serem abordadas em novos projetos, avaliam o processo e fazem encaminhamentos. No ensino de Sociologia, alguns professores tm ensaiado o trabalho com projetos. Geralmente, os projetos tm como detonadores temas relativos aos problemas colocados pela realidade scio-econmica brasileira, por exemplo, a relao desemprego e criminalidade numa dada cidade. No desenvolvimento de um projeto como esse, os alunos buscaro dados na delegacia, na administrao, no noticirio e em outras fontes que informem melhor acerca da questo. O professor por sua vez, buscar construir um mdulo de aprendizagem que aprofunde e sistematize o conceito de criminalidade com base nas teorias e pesquisas produzidas pela Sociologia. O trabalho com projetos, no ensino de Sociologia, enfrenta dentre outras, duas dificuldades. A primeira relacionada participao dos professores de outras disciplinas. Geralmente, os projetos geram necessidades de aprendizagem que demandam uma resposta interdisciplinar, todavia, vivemos ainda, no ensino mdio, em um ambiente disciplinar e compartimentalizado. A outra dificuldade est relacionada utilizao dos contedos da Sociologia. Os contedos trabalhados no processo de instrumentalizao esto fundamentalmente relacionados aos conceitos e teorias sociolgicas. Assim, os alunos no utilizam os instrumentos metodolgicos fornecidos pelas Cincias Sociais que contribuiriam tanto no momento de planejamento, como no momento de pesquisa em si. Como conseqncia, os alunos, em muitos trabalhos, tratam as questes de forma superficial e os dados de forma assistemtica. No projeto citado sobre a relao desemprego e criminalidade, caso os alunos tivessem em mente, por exemplo, as orientaes de Durkheim quanto ao tratamento dos fatos sociais, o principio de causalidade weberiano e as categorias abstrato e concreto, mediato e imediato marxistas, certamente, teramos um trabalho mais sistemtico na formao de procedimentos e atitudes Enfim a consolidao do trabalho com projetos em Sociologia requer uma ampliao do entendimento do que seja contedo sociolgico. 3.0 CONDIES EXTERNAS DE CARTER SCIO-EPISTEMOLGICO Inicialmente importante lembrar que o professor de sociologia est atuando com uma disciplina que foi estabelecida no currculo do Ensino Mdio, a partir de uma reforma curricular que reflete a mudana de uma concepo do papel social da educao centrada na cidadania, hegemnica na dcada de 80, para uma educao centrada na competitividade. (Sobral, 1999) Mudana essa que est relacionada s transformaes no mundo do trabalho e na forma de produo e apropriao do conhecimento. Esta foram desencadeadas nas ltimas dcadas e tambm tm implicaes na forma de produo do conhecimento sociolgico. A seguir, sero estudadas essas mudanas e suas implicaes para educao e para a Sociologia com base nas contribuies de Gibbons, Giddens, Castells e outros.
3.1 A EMERGNCIA DE UM MODO REFLEXIVO DE PRODUO E APROPRIAO DO CONHECIMENTO E A REFORMA DO ENSINO MDIO No captulo dedicado ao novo Ensino Mdio nos Parmetros Curriculares Nacionais afirmado claramente que as reformas curriculares no Brasil e na Amrica Latina se pautam nas constataes sobre as mudanas no conhecimento e seus desdobramentos no que se refere produo e s relaes sociais de modo geral (MEC, 1999, p.14) Conforme o documento, tais mudanas decorrem da chamada terceira revoluo tcnico-industrial, na qual, o conhecimento tem um lugar central nos processos de desenvolvimento econmico, organizao do trabalho e das relaes sociais. Ainda conforme o documento, na sociedade dos anos 90, o crescimento do volume de informaes em conseqncia das novas tecnologias coloca como parmetro para a formao dos cidados um ensino voltado no para acumulao de conhecimentos, mas sim para a preparao cientfica e a capacidade de utilizar as diferentes tecnologias relativas s reas de conhecimento. Assim, a Reforma do Ensino Mdio, bem como, a reforma da Educao Profissional esto postas como mecanismos de insero competitiva do pas na nova ordem scio-econmica mundial fundada numa nova forma de produzir e distribuir conhecimento. Conforme Castells no livro A Sociedade em Rede, essa nova forma de produo e apropriao do conhecimento tem seu surgimento relacionado reestruturao capitalista empreendida nos anos 80 como resposta crise econmica decorrente do esgotamento do modelo keynesiano de crescimento desencadeada nos anos 70. Para compreendermos essa mudana, necessrio termos em mente algumas categorias utilizadas por Castells, no livro citado, no que se refere a sua anlise da produo capitalista. Para Castells (1999, p.34), as sociedades tm sua organizao e dinmica estruturadas por relaes historicamente determinadas de poder, experincia e produo. Com base em categorias marxistas, Castells define produo como um processo, no qual, os homens transformam a matria (natureza, a natureza modificada pelo homem, a natureza produzida pelo homem e a prpria natureza humana) em um produto, em parte consumido e em parte acumulado para investimentos determinados socialmente. A relao entre os homens e a natureza envolve o uso de meios de produo com base em energia, conhecimentos e informao. Para o autor, a tecnologia justamente, a forma especfica dessa relao. De acordo com Castells, as regras relativas apropriao, distribuio e uso do excedente constituem modos de produo que, por sua vez, definem relaes sociais de produo, determinando a existncia de classes num certo contexto histrico. No sculo XX temos dois modos de produo:
o capitalismo, modo de produo definido pela separao entre produtores e meios de produo em funo da propriedade privada; o que possibilita aos capitalistas determinarem os princpios de apropriao do excedente. Esse modo de produo busca a maximizao de lucros, ou seja, o aumento do excedente acumulado pelos proprietrios dos meios de produo. o estatismo, modo de produo definido pelo controle estatal do excedente, portanto, um controle externo esfera econmica exercido pelos detentores do poder estatal. Tal modo de produo objetiva ou objetivava a maximizao do poder, ou seja, via aumento da capacidade militar e ideolgica do aparato burocrtico buscava impor seus objetivos sobre parcelas cada vez maiores de indivduos. Na perspectiva terica desenvolvida por Castells, o modo de produo, portanto, determina a forma de apropriao e uso do excedente. O nvel do excedente por sua vez determinado pelo grau de produtividade. O nvel de produtividade est relacionado ao modo de desenvolvimento da produo que nada mais do que os procedimentos tcnicos utilizados pelos trabalhadores, utilizao de meios de produo; com aplicao de energia e conhecimento para transformarem matria em produto. O modo de desenvolvimento estabelecido pelo elemento incrementador da produtividade. O autor cita trs modos de desenvolvimento: o agrrio, cuja incrementao da produtividade deriva do aumento da quantidade de trabalhadores e de terras cultivveis. o industrial, no qual o aumento da produtividade depende da introduo de novas fontes de energia e da descentralizao do uso de energia nos processos de produo e circulao. o informacional, cuja fonte de produtividade encontra-se na tecnologia de gerao de conhecimento, de processamento de informao e de comunicao de smbolos. Ressalta-se que o industrialismo era o modo de desenvolvimento sobre o qual surgiu e se desenvolveu o capitalismo e o estatismo. Todavia, esse modo de desenvolvimento, na dcada de 70, esgotou sua capacidade de possibilitar incrementos de produtividade e em conseqncia tivemos o desencadeamento de crises, tanto no modo de produo capitalista como no estatista. As reformas econmicas iniciadas nos anos 80, em pases organizados sob os dois modos de produo buscavam justamente o estabelecimento de mudanas na base tcnica da produo. Para Castells, a Perestroyka estatista falhou devido, entre outros fatores, s limitaes polticas do regime sovitico e a Perestroyka capitalista obteve xito no sentido de aumentar a produtividade. A reestruturao capitalista teve como metas: aprofundar a lgica capitalista de busca de lucros nas relaes capital/trabalho, aumentar a produtividade do trabalho, globalizar a produo, circulao e mercados e direcionar o apoio estatal para ganhos de produtividade e competitividade das economias nacionais. Tais reformas somente tiveram xito porque houve uma mudana na base tcnica da produo capitalista de um modelo industrial para um modelo informacional de desenvolvimento. O autor esclarece que a centralidade dessa mudana no reside no conhecimento, mas sim, na aplicao do conhecimento para a gerao de
novos conhecimentos e dispositivos de processamento e comunicao de informaes, em um ciclo de realimentao cumulativo entre inovao e seu uso que se tornou o elemento dinamizador da produtividade do modo de produo capitalista. Dessa forma, a informao tornou-se o produto principal do processo produtivo. As informaes so aplicadas na produo de dispositivos de processamento e comunicao de informaes, isto , so aplicados na produo de tecnologias de informao constitudas por um conjunto de tecnologias em microeletrnica, computao(hardwares e softwares) telecomunicaes, radiodifuso, optoletrnica e engenharia gentica. Tais tecnologias so modificadas na medida em que os usurios (consumidores, tcnicos e trabalhadores) aprendem a utiliz-las, aprendem a aperfeio-las e por meio delas aprendem comunicar suas experincias relativas a esse processo de aprendizagem. As informaes geradas nesse processo de aprendizagem so utilizadas na produo de novas tecnologias. O campo de produo de programas de computador est repleto de exemplos do processo descrito acima. Usurios avanados constantemente sugerem para as empresas algumas medidas tendo em vista a superao das falhas de segurana e aperfeioamento de seus programas. Outros usurios trabalham no melhoramento de programas com cdigos de fonte abertos, como exemplo, o sistema operacional Linux. Outros criam programas que contribuem para o desenvolvimento do prprio processamento de informaes, como por exemplo, programas de comunicao instantnea como o ICQ, navegadores, players, etc. Conforme Castells, as tecnologias da informao no so simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Usurios e criadores tornam-se a mesma pessoa. Segue-se uma relao muito prxima entre os processos sociais de criao e manipulao de smbolos (a cultura e a sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e servios (as foras produtivas). Tais mudanas trazem uma nova relao entre o homem e mquinas visto que ... pela primeira vez na histria, a mente humana uma fora direta de produo, no apenas um elemento decisivo no sistema produtivo...Assim, os computadores, sistemas de comunicao, decodificao e programao gentica so todos amplificadores e extenses da mente humana. O que pensamos e como pensamos expresso em bens, servios, produo material e intelectual, sejam alimentos, moradia, sistemas de transporte, sade e educao (1999, p.51). Dessa forma, temos um processo de reflexividade do conhecimento que envolve de um lado, atores que tm seus conhecimentos transformados e ampliados mediante o uso de tecnologias da informao e do outro lado, tecnologias de informao que so modificadas em funo dos novos conhecimentos que so gerados no processo de sua utilizao. Como vimos, esse modo reflexivo de produo de informao a fonte de incremento de produtividade no novo modo de desenvolvimento do
capitalismo. Essa mudana na base tcnica da produo capitalista gera uma demanda cada vez maior por conhecimento cientfico por parte das empresas visto que ele fundamental na melhoria de competitividade. Em funo dessa demanda vemos surgir o que Michael Gibbons e colaboradores (1994) denominam um novo modo de produo do conhecimento cientfico caracterizado pela: Aplicabilidade. No modo tradicional, newtoniano, o conhecimento produzido tendo em vista os interesses cognitivos do cientista, como por exemplo, a consolidao de uma linha de pesquisa no contexto da disciplina que atua. No novo modo, a produo do conhecimento visa atender demandas e problemas colocados pelas prticas sociais. Diversidade e flexibilidade institucional. No modo tradicional, , o conhecimento tem como espao de produo a universidade. No novo modo de produo, ns temos conhecimento sendo produzido em diversos lugares: academia, empresas, ONGs, centros de pesquisa e nos prprios locais de trabalho. Muitas vezes, temos pesquisadores dessas diversas instituies, articulados por meio das tecnologias de informao numa rede de grupos de pesquisa que buscam atender demandas especficas. Transdisciplinaridade. Justamente em funo das demanda postas, teremos em cada grupo pesquisadores com formaes diversas. Os problemas colocados no contexto do novo modelo de desenvolvimento so complexos e exigem respostas rpidas, por isso, a necessidade de pesquisadores de vrias reas de conhecimento. Reflexividade social. Um conhecimento produzido num contexto de aplicao e diversidade institucional se difunde pela sociedade visto que a sua produo envolve no s diversos tipos de pesquisadores como tambm no pesquisadores interessados nos problemas colocados pela realidade social. Assim, temos grupos e movimentos participando ou querendo participar, direta ou indiretamente, da produo e da apropriao do conhecimento; o que implica por sua vez em constantes modificaes nesses processos. As vises de Castells e Gibbons sobre a questo da informao na sociedade contempornea aproximam-se da viso de Giddens, ainda que o primeiros autores enfatizem as dimenses material e organizacional da produo do conhecimento e o segundo enfatize a dimenso sociolgica de sua apropriao. Para Giddens, nas sociedades modernas, o conhecimento cientfico consolidado em sistemas especializados (as prticas dos chamados profissionais, a especializao objetivada em mquinas e mecanismos monetrios, etc) possibilita que os sujeitos estejam constantemente examinando suas prticas sociais. Um exemplo dado pelo autor (1993, p.39) relativo s prticas sexuais. Ele cita relatrios de pesquisas, como o relatrio Kinsey, que quando foram divulgados provocaram debates, novas investigaes e mais debates que se tornaram parte de um domnio pblico amplo e que serviram para modificar opinies de leigos sobre as prprias prticas, envolvimentos e preferncias sexuais. Assim, tais pesquisas contriburam para acelerar a reflexividade das prticas sexuais habituais e cotidianas
Um outro exemplo (1993, p.42)est relacionado reflexividade do corpo acelerada pela inveno da dieta. A dieta est ligada a uma cincia: a Nutrio. Ela situa a responsabilidade pelo desenvolvimento e a aparncia diretamente nas mos do seu proprietrio. O que o indivduo come , mesmo entre os mais carentes, torna-se uma questo reflexivamente impregnada de seleo diettica. O que se come uma escolha do estilo de vida, influenciado e construdo, por um nmero imenso de livros de culinria, tratados mdicos populares, guias nutricionais. Dessa forma, enquanto Castells e Gibbons ressaltam o processo reflexivo de produo do conhecimento; Giddens ressalta a sociedade reflexiva onde o conhecimento tem papel fundamental. Pode-se inferir que so dois lados de uma mesma situao. De um lado, ns temos sujeitos (trabalhadores, tcnicos, pesquisadores, usurios) que ao utilizarem as tecnologias de informao produzem e renovam informaes que contribuem para modificar essas tecnologias e do outro lado, informaes constantemente renovadas e veiculadas por tambm renovadas tecnologias que alcanam e transformam indivduos nos mais diversos lugares e grupos sociais. Como vimos, a emergncia desse modo de produo e apropriao reflexiva do conhecimento, nova base tcnica de reproduo do capital, est relacionada reestruturao capitalista que envolve, em maior ou menor grau, empresas em diversos pases. No Brasil, desde do incio da dcada de 90, h um esforo dos governos e empresrios no sentido de adaptao do pas a esse processo de reestruturao, por meio da ampliao da abertura econmica ao capital estrangeiro, privatizao de empresas estatais, desregulamentao das atividades produtivas, flexibilizao da legislao trabalhista e mudanas nos mtodos de organizao e gesto trabalho Conforme Frigotto (1994, p.61), nesse contexto, conceitos pontes foram criados e outro ressignificados, tais como :sociedade do conhecimento, qualidade total, formao flexvel e polivalente, educao geral e abstrata, empregabilidade, policognio, integrao, flexibilidade, competitividade, currculo por competncias e habilidades, etc. Esses conceitos se concretizam em programas e mtodos que visam otimizar tempo, energia e espao, isto , objetivam aumentar a produtividade: programas de reengenharia, descentralizao produtiva, terceirizao e em proposta educacionais que visam a formao de um novo trabalhador com capacidade de abstrao, criatividade, responsabilidade, lealdade e disponibilidade para colocar seu potencial comportamental e cognitivo disposio da empresa. Interessante notar como esses conceitos tornam-se cada vez mais hegemnicos nos discursos sobre os processos de formao do trabalhador embasando a idia de educao para competitividade no momento atual. Assim, ns vemos jornais de grande circulao produzirem cadernos que trazem informaes que objetivam contribuir para a empregabilidade do leitor. Nesses cadernos geralmente temos testes que medem a criatividade, adaptabilidade, liderana, etc., modelos para a elaborao de currculos e
cartas, dicas de cursos, orientaes para entrevista, anlises das perspectivas do mercado de trabalho. Percebe-se tambm, a presena crescente desses conceitos nos cursos de qualificao profissional. Aqui no DF, o Projeto Saber, no perodo de 199598, tinha uma proposta padro para os diversos cursos, na qual, os alunos deveriam se apropriar de habilidades gerais, habilidades especficas e habilidades de gesto. Tais habilidades eram trabalhadas no estudo de temas como: princpios e tcnicas comportamentais, entrevista, currculo, relaes interpessoais no trabalho, administrao do tempo, qualidade no atendimento, qualidade total e qualidade do empresrio de sucesso (grifos nossos) Os conceitos citados fundamentam tambm o discurso do empresariado em defesa de reformas na educao. Todos os dias, assistimos empresrios e seus representantes, por meio de artigos, reportagens, programas de TV, afirmarem que a insero competitiva do Brasil no mercado mundial depende de mudanas relativas qualidade e gesto da educao bsica e profissional. nesse contexto de reestruturao capitalista, ressignificao de conceitos e discursos em favor da educao que se desencadeou a partir de 1997, uma reforma do ensino mdio e da educao profissional. Essas reformas visam, justamente formao de trabalhadores polivalentes e com capacidade de abstrao e formao de cidados/usurios capazes de lidar de uma forma reflexiva com as tecnologias das linguagens e cdigos, das cincias da natureza e das cincias humanas, rea na qual, est inserida a Sociologia. Portanto, a Sociologia inserida novamente no currculo do ensino mdio, em um contexto de educao com nfase na competitividade, no qual, essa cincia, em conjunto com Antropologia e Poltica, deve contribuir com suas tecnologias para que o educando desenvolva competncias e habilidades relacionadas por exemplo, aos processos de gesto e planejamento do trabalho. H, ento, uma concepo epistemolgica bastante definida acerca do conhecimento sociolgico que deve ser trabalhado na educao bsica mdia: a Sociologia como tecnologia. A seguir, essa concepo ser analisada e criticada, a partir da viso de Giddens sobre o papel da Sociologia, no contexto das sociedades contemporneas marcadas pela alta reflexividade do conhecimento. 3.2 A SOCIOLOGIA NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO REFLEXIVO Nossa anlise ter como ponto de partida a justificativa dada pelos mentores da Reforma do Ensino Mdio para a associao das Cincias Humanas com suas tecnologias, visto que tradicionalmente nos currculos, tal associao somente era feita com as Cincias da Natureza. Nos Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (PCNEM), a presena das tecnologias na rea de Cincias Humanas justificada pela compreenso ampla da tecnologia como produto e processo, assim como, pela distino entre as tecnologias duras produzidas pelas Cincias da Natureza configuradas em ferramentas e instrumentos materias e as tecnologias ideais, isto , referidas mais diretamente ao pensamento e as idias, tais como as que
envolvem processos de gesto e seleo e tratamento de informaes, embasados em recortes sociolgicos. (1999, p.22-23) Ainda, como justificativa para insero das tecnologias na rea de Cincias Humanas, os PCNEM apontam que a essa rea cabe: Construir a reflexo sobre as relaes entre a tecnologia e totalidade cultural, redimensionando tanto a produo quanto vivncia cotidiana dos homens. Inclui-se aqui o papel da tecnologia nos processos econmicos e sociais e os impactos causados pelas tecnologias sobre os homens, a exemplo do tempo fugido ou eternamente presente, em decorrncia da acelerao do fluxo de informaes. (1999, p.23) Tendo em vista essa viso das tecnologias nas cincias Humanas, o Parecer 15/98 (MEC, 1999, p.168) estabelece que os conceitos, procedimentos, tcnicas e valores provenientes da Geografia, Filosofia, Histria e Sociologia, disciplinas constitutivas da rea de Cincias Humanas e suas tecnologias, devem ser trabalhados de forma interdisciplinar e contextualizada, com o objetivo de contribuir para que o educando desenvolva as seguintes competncias e habilidades: Entender os princpios das tecnologias associadas ao conhecimento do indivduo, da sociedade e da cultura, entre as quais as de planejamento, organizao, gesto, trabalho em grupo, trabalho de equipe, e associa-las aos problemas que se propem resolver. Entender o impacto das tecnologias associadas s cincias humanas sobre sua vida pessoal, os processos de produo, o desenvolvimento do conhecimento e a vida social Aplicar as tecnologias das cincias humanas e sociais na escola, no trabalho e outros contextos relevantes para sua vida. Entender a importncia das tecnologias contemporneas de comunicao e informao para o planejamento, gesto, organizao, fortalecimento do trabalho em equipe A compreenso descrita acima contraria a percepo que a maioria das pessoas tem, arragaida no senso comum, de que tecnologia necessariamente um conhecimento concretizado em artefatos como computadores, motores, televisores, etc. Certamente essa viso comum presente tambm nas mentes dos educadores dificulta a implantao da reforma. A professora Juana Sancho da Universidade de Barcelona, em entrevista ao Jornal do Brasil (1999), denuncia que na realidade mais que senso comum, essa viso est impregnada de uma ideologia, na qual, o conceito de tecnologia sobreposto pelo conceito de tecnologia de informaes, isto , um conjunto de aparatos, artefatos ou produtos (computadores, redes telemticas, internet, televiso) para produzir, receber, tratar e transmitir informao.
Para a professora, em primeiro lugar, tal situao dificulta a problematizao e discusso dos fundamentos polticos e ticos de tecnologias que de fato tm mais influncia sobre a vida das pessoas, como as tecnologias organizativas (o taylorismo, o fordismo, o toyotismo), sistemas polticos e econmicos, sistemas organizativos de escolas, empresas, hospitais etc, as tecnologias simblicas (criao e utilizao de signos e smbolos) e as biotecnologias (bioengenharia, manipulao gentica de animais e plantas). Em segundo lugar, hierarquiza os conhecimentos e refora uma diviso de poder, trabalho e riqueza, na qual, certas formas de saber, valores e vises de mundo so priorizadas em detrimento de outras. Desconsidera portanto, que qualquer tecnologia, seja ela artefatual, simblica, organizativa ou biotecnolgica, surge em um determinado contexto para tentar resolver um problema que se coloca para um cientista em seu laboratrio, numa empresa em seu departamento de pesquisa e desenvolvimento, numa indstria de guerra ou um profissional no seu trabalho cotidiano. Desconsidera enfim que qualquer indivduo produtor e consumidor de tecnologia, de conhecimento em ao. Enfim, para Sancho uma concepo que ao reduzir a tecnologia dimenso material encobre as relaes entre saber e poder, tanto no mbito das polticas econmicas e sociais como no mbito do cotidiano das pessoas no trabalho, na escola, no hospital, etc. Assim, desse ponto de vista, a associao entre as Cincias Humanas e suas Tecnologias pode significar, em tese, um avano na crtica ideologia descrita acima. Postas as possibilidades e as dificuldades quanto compreenso do estatuto das tecnologias das Cincias Humanas, uma questo mais especfica nos colocada: quais so as possibilidades e limites epistemolgicos da Sociologia como uma tecnologia? Dito de outro forma, existe conhecimento produzido na Sociologia que tenha alguma aplicabilidade? Cabe notar que esses questionamentos acerca da praticidade da Sociologia, no so somente feitos por pesquisadores e epistemlogos. Assim temos, os alunos no Ensino Mdio que freqentemente perguntam para que estudam Sociologia? Os amigos e parentes dos graduandos em Cincias Sociais que os interrogam: por que a escolha desse curso? O que o socilogo faz de prtico? Interessante ressaltar que os ouvintes de Anthony Giddens na BBC de Londres, constantemente lhe questionam: a Sociologia pode nos ajudar nas nossas decises dirias ou ela somente uma teoria interessante? Giddens (1999) responde que a Sociologia um assunto com implicaes prticas importantes para nossa vida visto que ela pode contribuir para uma crtica social, uma reforma da prtica social, de diversas formas: ela melhora os conhecimentos relativos s circunstncias sociais em que estamos envolvidos e possibilita maiores chances de controlarmos os problemas vinculados a essas circunstncias. ela possibilita o aumento da sensibilidade cultural, permitindo a construo de polticas baseadas em valores culturais divergentes. A partir da Sociologia ns podemos investigar as conseqncias intencionais ou no de adoo de certos programas polticos particulares. A
pesquisa sociolgica fornece uma ajuda prtica no assessoramento de iniciativas polticas. O mais importante, a Sociologia propicia um clareamento dela mesma que permite a grupos e indivduos compreenderem e alterarem suas prprias condies de vida. No mais, sabendo sobre o porque ns agimos e como ns fazemos certas coisas em sociedade, provavelmente ns seremos capazes de influenciar nosso prprio futuro. Inclusive para Giddens, em concordncia com Sancho, as Cincias Sociais no mundo moderno tm mais influncia na vida cotidiana das pessoas do que as Cincias da Natureza, visto que a reviso constante das prticas sociais com base no conhecimento sobre essas prticas, hoje, faz parte da dinmica e estrutura das relaes sociais. Um exemplo dado pelo autor (1991, p.47) relativo aos conceitos da Economia como capital, investimento, mercados e indstria que fazem parte da vida econmica moderna. O cidado no precisa dominar esses conceitos, mas todos que utilizam uma conta bancria demonstram um conhecimento implcito e prtico destas noes. Para o autor, estes e outros conceitos das cincias sociais constituem ativamente o que comportamento e informam as razes pelas quais ele empreendido. Para Giddens, a Sociologia tem um papel central nesse processo de reflexividade visto que ela a anlise mais ampla sobre a vida moderna. Um exemplo dessa amplitude dado pelo autor a forma como as estatsticas utilizadas pelas Cincias Sociais refletem sobre o cotidiano das pessoas. Assim, qualquer indivduo num pas ocidental que decide se casar, tem essa deciso , balanceada e refletida pelo conhecimento acerca das altas taxas divrcios. Tal conhecimento pode afetar a prpria deciso de se casar, bem como decises sobre consideraes relacionadas regime das propriedades. Dessa forma, para o autor, a conscincia dos nveis de divrcio no a simples apreenso dos dados. Ela teorizada pelo agente leigo de maneira impregnada pelo pensamento sociolgico. Desta forma, virtualmente todos que consideram o casamento tm uma idia de como as instituies familiares vm mudando posio social e no poder do homem e da mulher, alterao nos costumes sexuais. O casamento e a famlia no seriam o que so hoje se no fossem inteiramente sociologizados e psicologizados. (1991, p.49) Conforme Lash (1999), de fato para Giddens, a Sociologia o sistema especialista fundamental da modernidade, visto que uma parcela crescente da populao tem acesso de uma forma mais ou menos diluda a conceitos sociolgicos como um meio de reflexo sobre as prticas sociais e que a prpria modernidade intrinsecamente sociolgica. E mais, a Sociologia de fato reestrutura reflexivamente seu objeto, o sujeito social, que aprende assim, a pensar sociologicamente. Giddens adverte, entretanto, que um maior conhecimento sobre a vida social no significa um maior controle sobre a mesma, como ocorre na relao
Cincias Naturais e natureza. Para o autor isto aconteceria se a vida social fosse separada do conhecimento ou se esse conhecimento pudesse ser filtrado nas razes para a ao social, produzindo passo a passo aumentos na racionalidade. Percebe-se, portanto, na perspectiva epistemolgica do autor, uma crtica a uma certa viso instrumentalista da Sociologia como conhecimento aplicado, tendo como modelo as tecnologias das Cincias da natureza. Para Giddens (1991, p.23), tal viso est amparada nas teorias clssicas. Numa primeira verso, o conhecimento sociolgico mantm uma relao instrumental com o mundo social de tal forma que pode ser aplicado de uma maneira tecnolgica par intervir na vida social. Numa segunda verso, a marxista, as descobertas das Cincias Sociais so importantes no processo de se fazer a Histria, desde que no sejam aplicadas a objetos inertes, mas filtradas pelo auto-entendimento dos agentes sociais. Trata-se, para o autor, de uma viso mais sofisticada do que a primeira, todavia, sua viso de reflexividade demasiada simples visto que a relao entre a Sociologia e seu objeto deve ser entendida numa hermenutica dupla, na qual, O conhecimento sociolgico espirala dentro e fora do universo da vida social, reconstruindo tanto esse universo, como a si mesmo, como uma parte integral deste processo. (1991, p.:24) Para o autor, (1991,p.59), o processo de aplicao do conhecimento sociolgico diferencia-se do processo das Cincias da Natureza pela sua reflexividade hermenutica e por mais trs fatores: 1. Poder diferencial. A apropriao do conhecimento no ocorre de maneira homognea, mas com freqncia diferencialmente disponvel para aqueles em posio de poder. 2. O papel dos valores. As mudanas na perspectiva derivadas de inputs de conhecimento tm uma relao mvel com as mudanas nas orientaes de valores. 3. O impacto das conseqncias no pretendidas. O conhecimento sobre a vida socialtranscende as intenes daqueles que o aplicam para fins transformativos. Na perspectiva epistemolgica de Giddens, portanto, a Sociologia no desenvolve conhecimento acumulativo da mesma maneira que as Cincias Naturais. No h ento, acumulao de conhecimento de um lado, e controle crescente do desenvolvimento social do outro. Para o autor, a questo fundamental que no foi percebida pelos tericos clssicos da Sociologia a seguinte: No que no exista um mundo social estvel a ser conhecido, mas, que o conhecimento deste mundo contribui para seu carter instvel ou mutvel. (1991, p.51) Assim, a elaborao terica de Giddens acerca do papel da Sociologia na modernidade contribui em muito para o entendimento das possibilidades e condies epistemolgicas de um conhecimento sociolgico aplicado no ensino
mdio que no seja meramente instrumental e mecnico. A compreenso da aplicabilidade do conhecimento como um processo de apropriao reflexiva nos coloca a viabilidade de uma Sociologia interessante para os alunos, na medida em que permita a anlise de seus projetos de construo do eu e ao mesmo tempo, fundamenta o exame e a mudana das prticas sociais nas quais esto envolvidos. Parece-nos que essa viso torna a Sociologia mais atraente para o pblico em geral. Conforme Lash (1997,p.144) a aplicabilidade imediata emprica a virtude das teorias da modernidade tanto de Giddens como as de Beck. Para ele, o que tais teorias representam o desenvolvimento do que conhecido na Alemanha como uma zeitdiagnostische Soziologie. Dois livros de Beck, Risk Society e Das ganz normaleI esto entre os livros de Cincia Social mais vendidos na histria da Europa continental, inclusive lidos pelo pblico leigo. Conforme Lash, isto aconteceu porque Beck se referiu ao quanto a mudana social, em suas linhas mais amplas, era tambm a mudana das vidas cotidianas. Quanto a Giddens, de acordo com Lash (p.145), anteriormente suas obras eram lidas para aprender sobre sua teoria social, seus conceitos de distanciamento tempo-espao, a teoria da estruturao.Agora, em virtude de estar com uma obra mais acessvel, as pessoas esto lendo seus livros para saberem sobre confiana, risco, relacionamentos, a crise da modernidade, o papel dos sistemas especialistas. 4. CONSIDERAES FINAIS Neste trabalho, busquei subsdios tericos para compreender as condies epistemolgicos internas e externas sob as quais esto sendo implementadas as reformas curriculares brasileiras que tm como um dos seus desdobramentos a volta da Sociologia ao Ensino Mdio. Tendo em vista esse objetivo, procurei me isentar de fazer comentrios crticos acerca das prprias reformas. Por isso, nesse momento, gostaria de fazer alguns comentrios acerca do carter ideolgico das propostas de reforma educacional em curso Um dos argumentos do Ministrio da Educao (1999, p.14) em favor da reformas seria que elas visam atender os novos contextos gerados pelas mudanas decorrentes da chamada terceira revoluo tcnico-industrial, na qual, o conhecimento tem um lugar central nos processos de desenvolvimento econmico, organizao do trabalho e das relaes sociais. Tanto essas reformas como outras pelas quais passam o pas (privatizao, desregulamentao das atividades produtivas, reforma administrativa, flexibilizao das relaes trabalhistas) so colocadas, freqentemente como decorrncias naturais das mudanas citadas acima. Assim, no haveria outras alternativas e portanto, as crticas no procederiam. Nesse sentido, as crticas so provenientes justamente daqueles que no compreenderam ou no aceitaram o processo de globalizao. Conforme Castells, os processos de reestruturao como resposta crise do modelo de acumulao industrial tiveram vrias formas e intensidades em funo das condies polticas e ideolgicas de cada pas. Assim tivemos o
caso da Unio Sovitica, onde os limites polticos no permitiram a reestruturao proposta por Gorbachov. O caso americano no qual, o keynisianismo blico de Reagan aprofundou o dficit pblico. E os pases do terceiro mundo, nos quais, as polticas de reestruturao foram marcadas por processos de transio poltica. Enfim, as reformas no so fenmenos naturais, mas sim resultam de opes polticas que dependem da correlao de foras entre os grupos e classes que disputam o poder. Estas correlaes por sua vez, esto relacionadas capacidade desses grupos de tornarem seus discursos hegemnicos. No caso brasileiro, o discurso da naturalizao e inevitabilidade das reformas constri a idia de que a mudana na educao consensual e portanto, universal visto que atende aos interesses de todas as classes sociais. Nessa perspectiva, a defesa da melhoria da educao bsica feitas por homens de negcios, entidades empresarias, meios de comunicao expressa em artigos, reportagens, campanhas publicitrias significa que, nesse momento, no s os setores populares esto envolvidos com essa questo. Situao diferente de pocas anteriores, nas quais, o empresariado estava preocupado somente em ter um trabalhador preparado para executar tarefas parcelares, formados em programas de socializao e qualificao como aqueles oferecidos, em tempos no muito remotos, pelo sistema S (SENAC, SENAI, SESI, SESC). Esse tipo de trabalhador, obediente e adestrado, hoje seria, um entrave para a melhoria da qualidade e da produtividade das empresas. Nesse sentido, os empresrios e governo esto juntos com os movimentos sociais na defesa de bandeiras como: toda criana na escola, democratizao e autonomia das escolas e valorizao do magistrio. Assim, nesse contexto, tarefas de todos criar alternativas que acabem com a defasagem idade-srie no ensino fundamental, reformar o ensino mdio e a educao profissional, expandir o acesso ao ensino superior, etc. Um outro aspecto da ideologia das reformas individualizar as solues para os problemas sociais . Dessa, forma o desemprego um problema do trabalhador que no se adaptou ao perfil exigido pelo nova forma de organizao do trabalho, ou seja, ele no possui criatividade, viso de conjunto, capacidade de liderana, de abstrao, domnio de conhecimentos cientficos que fundamentam a produo. Ento cabe ao trabalhador, individualmente, buscar uma melhoria da sua qualificao e assim aumentar sua capacidade de encontrar empregos, isto , sua empregabilidade, visto que, hoje, no h mais postos fixos e definitivos no mercado de trabalho. Na linha desse discurso, o desemprego no parece ter nenhuma relao com as polticas pblicas desenvolvidas. Ao contrrio, o governo com as privatizaes e abertura econmica tm aumentado a entrada de recursos externos no pas que a mdio prazo significaro um montante maior de investimentos na produo e, conseqentemente, um maior nmero de empregos. O governo tem tambm priorizado, por meio de reformas e investimentos, a educao. A melhoria da qualidade da educao fator
preponderante na soluo do desemprego visto que esse tm como causa principal a formao profissional precria do trabalhador brasileiro. Trata-se, portanto de um discurso liberal que naturaliza as relaes sociais, individualiza as questes sociais e enfatiza a educao como promotora da competitividade. Ressalta-se que um discurso contraditrio, pois, prope uma educao que forme trabalhadores criativos, crticos, participativos e ao mesmo tempo, adaptados, dceis e submissos lgica da empresa. Talvez seja esse carter contraditrio, o espao de luta, no qual, os movimentos sociais devam buscar meios para que as reformas tenham um carter mais avanado do que o atual. No podemos nos esquecer de que as reformas em curso esto fundamentadas em princpios pedaggicos, como interdisciplinaridade, contextualizao, utilizao de mltiplas tecnologias, trabalho com projetos que esto presentes em diversas propostas de cunho progressista em curso no pas vimos. Hoje mais do que nunca importante uma viso dialtica do papel da educao. A professora Juana Sancho sintetiza bem esse papel: A melhor educao para um jovem em formao, como indivduo e como profissional, deve ser integral. Ou seja, atender s dimenses intelectuais, emocionais e corporais. Uma educao que possibilite realizar juzos reflexivos e desenvolver habilidades de pesquisa, que capacite para alcanar a auto-realizao e possibilite encontrar o que se realmente; que permita a comunicao, a criatividade, o saber resolver problemas e trabalhar em equipe. Uma educao que tambm leve utilizao das novas tecnologias, mas exercendo uma cidadania responsvel, com auto-satisfao, tendo conscincia de seus direitos e deveres e disposio para o trabalho. Ou seja, algum que no obedea cegamente a ningum nem a nada. Mais que um tecnocrata radical, a educao deve formar um cidado radical. (1999) BIBLIOGRAFIA CONSULTADA TEORIAS SOCIOLGICAS - CASTELLS, M. A sociedade em rede. A era da informao: economia, sociedade e cultura. vol1. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1999. - GIBBONS, M. The new production of knowledge: the dynamics of science in contemporany societies. London, Sage, 1994. - GIDDENS, A. Conseqncias da modernidade. So Paulo, UNESP, 1991. -----------------. A transformao da intimidade. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. So Paulo, UNESP, 1993.
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