O Rural No Paraná

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“Um resumo do Brasil”: diferença e

historicidade na construção do rural no Paraná

Beatriz Anselmo Olinto1*


1
Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, Guarapuava/PR – Brasil

Marcos Nestor Stein2**


2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Marechal Cândido Rondon, PR - Brasil

RESUMO
O presente artigo aborda discursos sobre o rural no estado do Paraná, em meados do século
XX. Serão analisados os principais eixos performativos dos discursos sobre as gentes e as
terras desse estado, elaborados em artigos, ensaios e discursos de Bento Munhoz da Rocha
Neto, entre 1951 e 1955, quando governou o estado, bem como na obra Dois repórteres
no Paraná, publicada sob os auspícios de seu governo, em 1953. O foco é problematizar
as subjetivações organizadas por tal discursividade, as quais criaram e (des)qualificaram
personagens, articulando-os aos condicionantes externos – meio, clima, heranças culturais,
psicologia – de forma a limitar a ação desses sujeitos e capacitá-los, ou não, em um processo
de construção da noção de propriedade e proprietários naquele estado. Tais eixos narrativos
serão compreendidos como acontecimentos discursivos que se articulam dentro de narrati-
vas historicizadas, ou seja, narrativas que compõem regimes de historicidades. O objetivo
principal é conhecer como os projetos de (re)ocupação de grandes áreas do território parana-
ense estavam ligados a um projeto de futuro nacional e à construção de um Brasil diferente.
Palavras-chave: história rural; historicidade; identificações; regiões.

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X02004210.
Artigo recebido em 20 de junho de 2018 e aceito para publicação em 14 de fevereiro de 2019.
* Professora da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná / Departamento de História, campus Gua-
rapuava/PA – Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6520-0711.
** Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná / Colegiado de História, campus Marechal Cân-
dido Rondon/PR – Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2623-
0686.
O artigo é um dos resultados dos estágios de pós-doutorado desenvolvidos pelos autores na UFF. As pesquisas
desenvolvidas nos estágios são vinculadas ao INCT Proprietas: História Social da Propriedade e Direitos de
Acesso, coordenado pela professora Márcia Maria Menendes Motta. O presente trabalho foi realizado com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Fi-
nanciamento 001.

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Um resumo do Brasil: diferença e historicidade na construção do rural no Paraná
Beatriz Anselmo Olinto e Marcos Nestor Stein

“A summary from Brazil”: difference and historicity in rural construction


in Paraná

ABSTRACT
This article discusses rural discourses in the state of Paraná in the mid - 20th century. It
analyses the main performative axes of discourses about the people and the land of this
state elaborated in articles, essays and speeches of Bento Munhoz da Rocha, between 1951
and 1955, when he ruled the state, as well as in the work “Two reporters in Paraná”, which
was published under the auspices of his government in 1953. It aims to problematize the
subjectivities organized by these discourses, which have created and (dis)qualified characters,
articulating them to external constraints - environment, climate, cultural inheritance,
psychology - in order to limit the action of these subjects and enabled them (or not) to
participate in the construction of the notions of property and ownership in that state. Such
narrative axes will be understood as discursive events that are articulated within historicized
narratives, that is, narratives that compose regimes of historicities. The main objective is to
know how the projects of (re)occupation of large areas of the territory of Paraná were linked
to a project of national future and the construction of a different Brazil.
Keywords: rural history; historicity; identifications; regions.

“Un resumen de Brasil”: diferencia e historicidad en la construcción de lo


rural en Paraná

RESUMEN
El presente artículo aborda discursos sobre lo rural en el estado de Paraná, para mediados del
siglo XX. Serán analizados los principales ejes performativos de los discursos sobre las personas
y las tierras de ese estado, elaborados en artículos, ensayos y discursos de Bento Munhoz da
Rocha, entre 1951 y 1955, cuando gobernó el estado, bien como en la obra “Dos reporteros en
Paraná” publicada sobre los auspicios de su gobierno, en 1953. El foco es problematizar las sub-
jetividades organizadas por tal discursividad, las cuales crearon y (des) calificaron personajes,
articulándolos a los condicionantes externos -medio, clima, herencias culturales, psicología- de
forma a limitar la acción de esos sujetos y capacitarlos, o no, en un proceso de construcción de
la noción de propiedad y propietarios en aquel estado. Tales ejes narrativos serán comprendidos
como acontecimientos discursivos que se articulan dentro de narrativas historicizadas, o sea,
narrativas que componen regímenes de historicidades. El objetivo principal es conocer cómo
los proyectos de (re) ocupación de grandes áreas del territorio paranaense estaban ligadas a un
proyecto de futuro nacional y a la construcción de un Brasil diferente.
Palabras clave: historia rural; historicidad; identificaciones; regiones.

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Introdução

Em 1955, em palestra sobre o papel do Paraná na economia nacional, o então ministro


da Agricultura e ex-governador do Paraná, Bento Munhoz da Rocha Neto1 afirmava: “O
Paraná é hoje, literalmente, um resumo do Brasil, quer pelo meio físico quer pelo elemento
humano, síntese de todas as heranças”2. Bento Munhoz não estava analisando apenas o
presente, ele percebia no Paraná um modelo para a compreensão do país, um modelo de
narrativa sobre o seu passado e sobre o seu futuro.
Em sua gestão no governo do Paraná, entre 1951 e 1955, Bento Munhoz iniciou as obras
do Centro Cívico3, entre as quais estão o Palácio Iguaçu, sede do governo, o Palácio da Jus-
tiça, a Biblioteca Pública do Paraná e o Teatro Guaíra. Também criou a Fundação de Assis-
tência ao Trabalhador Rural e a Secretaria do Trabalho e Assistência Social, as Casas Rurais
e a Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel). Como ministro da Agricultura,
criou, pelo decreto-lei de 23 de setembro de 1955, o Serviço Social Rural, órgão subordinado
ao ministério que, além de prestar assistência social aos trabalhadores rurais, principalmente
nos campos da educação e saúde, visava fomentar a economia das pequenas propriedades e
incentivar a criação de cooperativas ou associações rurais.4
Cabe também registrar que, naquele momento, a economia paranaense era eminen-
temente rural exportadora. No norte, o café, cultivado por migrantes oriundos, em sua
maioria, de São Paulo, havia suplantado a erva-mate e a madeira como principal produto do
estado.5 Além disso, o período é marcado pelo processo de colonização do sudoeste e oeste
do estado por agricultores vindos, em maior número, de Santa Catarina e Rio Grande do
Sul e pela implantação, com incentivo do governo, de colônias agrícolas formadas por imi-
grantes europeus, como foi o caso das colônias de Witmarsun, no município de Palmeira,
­Castrolanda, em Castro e Entre Rios, em Guarapuava.6

1
Bento Munhoz da Rocha Neto nasceu em Paranaguá (PR), em 17 de dezembro de 1905, filho do político
Caetano Munhoz da Rocha, governador do Paraná de 1920 a 1928, e de Olga Carneiro de Sousa Munhoz da
Rocha. Engenheiro e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), deputado constituinte em 1946,
deputado federal entre 1946 e 1951, governador do Paraná, de 1951 a 1955, ministro da agricultura em 1955
e, novamente, deputado federal, de 1959 a 1963. Faleceu em 1973.
Disponível em: htpp://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/bento-munhoz-da-rocha-
-neto. Acesso em: 14 mai. 2018.
2
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. O Paraná: ensaios. Curitiba: Coleção Farol do Saber, 1995. p. 52.
3
Para uma interessante reflexão envolvendo a construção do centro cívico e as comemorações do centenário
de emancipação do Paraná, ver: BAHLS, Aparecida Vaz da Silva. A busca de valores identitários: a memória
histórica paranaense. Tese (Doutorado em História). Curitiba: UFPR, 2007.
4
Disponível em: htpp://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/bento-munhoz-da-rocha-
-neto. Acesso em: 14 mai. 2018.
5
OLIVEIRA, Semi Cavalcanti de. Ciclos Econômicos da Erva-mate e do Café. In: SCORTEGAGNA,
Adalberto et al. (org.). Paraná espaço e memória: diversos olhares histórico-geográficos. Curitiba: Editora
Bagozzi, 2005. p. 204-227.
6
Sobre a colônia Witmarsun, ver: BALHANA Altiva P.; MACHADO Paulo P. (orgs.). Campos gerais:
estruturas agrárias. Curitiba: UFPR, 1968. Para mais informações sobre a colônia Castrolanda, ver: ELFES,

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A (re)ocupação de vastas áreas do território do estado se fez acompanhar por diversos


conflitos armados envolvendo a posse e a propriedade da terra. Os exemplos mais emblemá-
ticos ocorreram no Sudoeste, com a Revolta dos Colonos, ou Levante dos Posseiros,7 e, no
extremo norte, onde ocorreu a Revolta do Porecatu, ou Guerra do Porecatu.8
Levando isso em consideração, o presente artigo lança um olhar sobre algumas nar-
rativas buscando compreender as maneiras pelas quais experiências e expectativas dialo-
garam e compuseram uma historicidade, na qual se associava o desenvolvimento agrário
do Paraná com o mundo rural do Brasil, em meados do século XX. O foco da análise são
os textos produzidos por Bento Munhoz da Rocha Neto e pelos jornalistas Rubem Braga
e Arnaldo P. D’Horta, os quais acompanharam o então governador em uma viagem pelo
interior do estado no ano de 1952. Da viagem resultou a publicação do livro intitulado
Dois repórteres no Paraná, em 1953,9 em função das comemorações do centenário da
emancipação política do estado do Paraná. Em relação aos escritos de Rocha Neto, além
de um texto publicado por ocasião das referidas comemorações, selecionamos duas publi-
cações que reúnem uma considerável quantidade de textos por ele produzidos. A primeira
intitula-se Discursos e conferências: 1951-195510 e é constituída por 48 textos, mas não há
informações sobre a data da publicação da coletânea. A segunda intitula-se O Paraná:
ensaios e é formada por 11 textos. Essa última foi publicada em 1995 como um volume
da coleção Farol do saber, financiada pela prefeitura de Curitiba. No mesmo período, o
governo estadual de Jaime Lerner (1995-2003) organizou a coleção Um Brasil diferente,
expressão cunhada, na década de 1950, pelo historiador e literato Wilson Martins para
particularizar o estado do Paraná em relação ao Brasil.
A escolha desse conjunto de escritos justifica-se em função dos eixos aqui problemati-
zados, pois que abordam temáticas recorrentes nas obras de Rocha Neto, a saber: o Paraná
rural como região estabelecida e delimitada a partir de sua história, as gentes que em seu
território se fixaram, ou estavam se fixando, e as interpretações sobre aspectos de sua natu-
reza, especialmente o solo e o clima. Compreendemos que as palavras reorganizavam o viver
social e político e forneciam novos sentidos aos acontecimentos então experienciados. Nessa
perspectiva, acompanhamos as reflexões de Maria Julieta Cordova acerca das ligações entre
a política, a história e o discurso identitário para Rocha Neto:

Albert. Campos gerais: estudo da colonização. Curitiba: Incra,1973. Acerca do processo de formação da colônia
Entre Rios, ver: STEIN, Marcos N. O oitavo dia: produção de sentidos identitários na Colônia Entre Rios-PR
(segunda metade do século XX). Guarapuava: Unicentro, 2011.
7
WACHOWICZ, Ruy C. Paraná, sudoeste: ocupação e colonização. Curitiba: Lítero-Técnica, 1985.
8
PRIORI, Angelo. A Guerra de Porecatu. Revista Diálogos. DHI/PPH/UEM, v. 14, n. 2, p. 367-379, 2010.
9
Para essa análise, utilizamos a 2ª edição, de 2001.
10
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. Discursos e conferências: 1951-1955. Curitiba: Imprensa Oficial. s/d.

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[...] a política, para Bento, estava comprometida de forma eficaz, com o sentido simbólico,
especialmente na reprodução de ideias sobre identidade do paranaense, que ainda que sempre
em busca do progresso, não deveria nunca deixar de lembrar de seu passado e de sua história.11

Diante disso, levando-se também em consideração os limites de um artigo, serão abor-


dados dois eixos performativos12: as subjetivações, que criam, qualificam e desqualificam
sujeitos, em processos que constituem noções naturalizadas de proprietários (fazendeiros
e colonos) e não proprietários (nordestinos, caboclos, negros e índios) das terras então (re)
ocupadas; e os condicionantes externos, nos quais meio, biologia, heranças culturais, psi-
cologia e/ou questões sociais se apresentam como limitadores, ou determinantes, da ação
dos sujeitos.
Serão analisadas as formas pelas quais tais performances se articulam dentro de narra-
tivas historicizadas, ou seja, narrativas que articulam regimes de historicidades, compreen-
didos como: “maneiras de engrenar passado, presente e futuro ou de compor um misto das
três categorias”,13 tanto em relação ao estado quanto lançando expectativas em um horizonte
nacional. Trata-se de uma historicidade que produz um conhecimento sobre o passado ao
mesmo tempo em que projeta um futuro. Nas palavras de Koselleck:

Esperança e recordação, ou mais genericamente, expectativa e experiência – pois que a


expectativa abarca mais que a esperança, e a experiência é mais profunda que a recordação –
são constitutivas, ao mesmo tempo, da história e de seu conhecimento, e certamente o fazem
mostrando e produzindo a relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã.14

Ou seja, buscamos perceber como concepções de passado, presente e futuro são utiliza-
das para compor uma temporalidade com um sentido progressivo,15 envolvendo, especial-
mente, a posse da terra no Paraná por determinados grupos humanos. Cabe adiantar que
11
CORDOVA, Maria Julieta W. O discurso regional autorizado de formação social e histórica paranaense.
Sociologia & Política. I Seminário Nacional de Sociologia e Política. UFPR: 2009. Disponível em: https://
www.humanas.ufpr.br/site/evento/SociologiaPolitica/anais/gt6.htm, 2009. p. 5.
12
“O discurso regionalista é um discurso performativo, que tem em vista impor como legítima uma nova
definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada”. BOURDIEU, Pierre.
O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. p. 116.
13
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
­Autêntica, 2013. p. 11.
14
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/ PUC-Rio, 2006. p. 308.
15
Ainda segundo Koselleck, o século XVIII traz, junto com o conceito moderno de História (Geschichte),
uma filosofia do progresso: “(...) o progresso descortina um futuro capaz de ultrapassar o espaço do tempo
e da experiência tradicional, natural, prognosticável, o qual por força de sua dinâmica, provoca por sua vez
novos prognósticos, transnaturais e de longo prazo.” Ibidem, p. 36. Tais prognósticos alienados do campo
de experiência tradicional, e com uma percepção acelerada de futuro próximo, podem ser acompanhados,
também, nos textos analisados no presente artigo.

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esses eixos performativos dos discursos não se dão separadamente, pois que, nas fontes, se
encontram mesclados, sobrepostos, constituindo determinados sentidos narrativos.
Por discursos, entendem-se a efetividade e a regularidade de uma fala, suas paráfrases e
sua polissemia em um dado momento histórico, momento por ela mesma delimitado a par-
tir do seu acontecimento. Porém, dentro desses discursos, serão problematizadas as constru-
ções narrativas, tanto memorialísticas, quanto historiográficas, geográficas e institucionais,
enquanto espaços de sentido, os quais fornecem uma inteligibilidade para as experiências
vividas, projetam desejos, estabilizam identidades e organizam noções de história.
A opção será uma variação de escala para a análise das fontes – sem seguir uma ordem
cronológica dos escritos –, buscando as interações entre o local e o geral, região e nação, suas
exclusões e sobreposições, as quais permitem que se diga um Paraná para explicar um Brasil.
Em outros termos, a hipótese que propomos para o debate, neste artigo, é a de que o estado
em questão foi constituído como uma região não apenas delimitando uma especificidade
para si e para as suas sub-regiões, mas sim projetando-o como um modelo para a nação.
Acompanhando as reflexões de Yves Lacoste sobre a Geografia Regional de tradição
francesa, pode-se perceber como as regiões são constituídas com individualidades, persona-
lidades preexistentes, para as quais “o papel da geografia seria talhar sua fisionomia e mostrar
os seus traços resultando de uma harmoniosa interação entre condições naturais e heranças
históricas muito antigas”.16 O autor denomina essas formas narrativas de “geografismos”,
ou seja, metáforas que alçam porções do espaço terrestre à condição de forças políticas e de
sujeitos da história, porém:

(...) esses malabarismos de estilo não são assim tão inocentes como podem parecer à primeira
vista, pois eles permitem escamotear as diferenças e as contradições entre os diversos grupos
sociais que se encontram nesses lugares ou sobre esses territórios. E a razão pela qual esses
geografismos são tão utilizados nos discursos patrióticos, quer se trate do Estado nação ou da
região, que alguns consideram como mininações ou como nações em potencial.17

Nesse sentido, voltando a Rocha Neto, pode-se compreender como a construção de uma
historicidade para o Brasil passava pela composição de regiões, tipos humanos, problemas e
temporalidades. As próximas páginas buscam lançar algumas reflexões sobre a construção
dessa paisagem de complexidade.

16
LACOSTE, Yves. A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. p. 29. Disponível em:
www.sabotagem.cjb.net. Acesso em: 13 nov. 2018.
17
Ibidem, p. 31.

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Os prisioneiros da temporalidade: sujeitos do presente-passado e do futuro-presente

Refletir sobre a construção de uma determinada imagem do Paraná rural – incluindo as


suas “gentes” que, como veremos mais adiante, são também classificadas a partir da sua suposta
inserção em diferentes temporalidades – e os sentidos que envolviam o Brasil, pode contribuir
no debate e na compreensão tanto das mudanças quanto das permanências das concepções e
dos projetos sobre o rural na organização do referido estado e da nação brasileira.
Um exemplo da constituição desse tipo de imagem é o que podemos perceber no seguin-
te fragmento de um dos escritos de Bento Munhoz da Rocha Neto:

Paranaenses de todas as origens culturais se sentem igualmente paranaenses, julgam-


se progressivamente iguais aos outros de sua convivência diária, das suas ligações, de sua
solidariedade, de suas afinidades, à gente, enfim da sua região brasileira [...] Ser paulista,
paranaense, catarinense ou gaúcho, sentir-se preso ao seu meio, onde se situa o centro de todos
os seus interesses, preocupações e aspirações, é, para gente de poucas gerações do Brasil, o
grande e verdadeiro caminho de inteira assimilação pela cultura nacional.18

Nesse fragmento do texto intitulado “Regionalismo” – aspecto que Rocha Neto julgava
essencial para a compreensão do Brasil19 –, podemos observar como ele definia os estados
com sinônimos de regiões, apagando outras diferenças internas a eles e, ao mesmo tempo,
naturalizando-os no binômio região-meio. Trata-se, assim, da construção de um quadro de
tipos humanos – as gentes –, espaços geográficos e econômicos que caracterizavam o pre-
sente do estado e do Brasil. Ao final, Rocha Neto sinaliza para uma outra temporalidade, o
futuro, quando as diferenças entre os habitantes dos estados brasileiros seriam apagadas por
meio do processo – também naturalizado – de assimilação.
Percebe-se que a constituição de sujeitos e a delimitação das regiões também estão presas
às distintas temporalidades, o que implica a eleição daqueles que adentrariam o futuro e
dos que permaneceriam no passado e, portanto, desapareceriam nesse suposto processo de
assimilação. Tal narrativa também pode ser acompanhada na sua mensagem apresentada à
Assembleia Legislativa do Estado, em 1953. A mensagem integra a publicação oficial rela-
tiva ao 1º centenário de emancipação política do Paraná. Além da apresentação de obras e
serviços executados pelo governo em diversas áreas do estado, o discurso classificava e pro-
duzia uma ordem no processo de (re)ocupação de seu território, processo que é nominado e

18
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. Discursos e conferências, op. cit. p. 217.
19
Em suas palavras: “A simples extensão territorial do Brasil é uma condição de diversidades regionais. A
imigração europeia, começada na primeira metade do século XIX, ainda mais as ampliou. E é pela própria
região, que os brasileiros, novos pela cultura, são incorporados culturalmente à grande unidade nacional.”
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. Discursos e conferências, op. cit, p. 217.

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adjetivado como “invasão benéfica que cobre o Paraná”20. Em que pese a positivação desse
processo migratório – como indica a expressão supracitada – o discurso que segue possui um
tom menos enaltecedor. Vejamos:

Sinto no Governo o reverso da nossa evolução trepidante e, mais ainda, os efeitos da rápida
transformação do nosso estilo de atividade econômica. Testemunho o surgimento do desnível
econômico, inédito até então no Paraná, terra clássica da pequena lavoura de subsistência, com
a avalanche da onda cafeeira que traz riqueza, mas é acompanhada também por multidões de
desajustados e doentes. Percebe-se a miséria que acompanha o progresso.21

Na passagem acima, a miséria é vista como o acompanhamento inexorável do progresso


cafeeiro e não como sua consequência. Nessa perspectiva, as pessoas não se tornariam desa-
justadas ou doentes pelo modelo de desenvolvimento econômico defendido pelo autor e sim
pela velocidade das transformações perpetradas por esse modelo. Embora Rocha Neto cons-
titua o rural paranaense como um espaço de aceleradas mudanças que produziriam riqueza,
há a permanência de um aspecto que define esse espaço: a carência, a pobreza de grande
parte de sua população.22 Daí a necessidade de intervenção do Estado por meio da Funda-
ção de Assistência ao Trabalhador Rural e das Casas Rurais. Outro elemento que chamou
nossa atenção é que a denominação de tais mudanças como “evolução” – noção que inclui
aprimoramento – é colocada em xeque pelo próprio autor ao apontar o “desnível” como algo
novo, e que era trazido por ela, em oposição ao espaço de experiência agrícola anterior no
estado. Nesse sentido, o desajustado seria também aquele que não estaria em sincronia com
o novo tempo. Esse também seria um sujeito coletivo apresentado como externo ao Paraná,
vindo do Brasil em uma “onda”, ou seja, um movimento causado pela própria mudança.
A sobrevivência dessas pessoas naquele novo presente seria possível somente, segundo o au-
tor, por meio da ação estatal.
Com esse panorama, Rocha Neto, em seguida, apresenta detalhes acerca das ações que
deveriam ser implementadas pela Fundação de Assistência ao Trabalhador sobre tal po-
pulação, tais como a verificação das suas condições sanitárias e educacionais. Assim, essas
pessoas recém-chegadas eram percebidas como miseráveis em recursos, saúde e conheci-

20
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do Estado. In:
PARANÁ. 1º Centenário da Emancipação Política do Paraná (1853-1953). Curitiba: Edição do Governo do
Paraná. 1953. p. 12.
21
Idem.
22
Atualmente, essa perspectiva sobre o rural é objeto de diversas críticas. Um dos autores que critica essa visão
do rural é Ricardo Abramovay. Em suas palavras: “Há um vício de raciocínio na maneira como se definem
as áreas rurais no Brasil, que contribui decisivamente para que sejam assimiladas automaticamente a atraso,
carência de serviços e falta de cidadania”. In: ABRAMOVAY, Ricardo. Funções e medidas da ruralidade no
desenvolvimento contemporâneo. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. p. 2. Disponível em: http://ipea.gov.br/agencia/
images/stories/PDFs/TDs/td_0702.pdf. Acesso em: 15 nov. 2018.

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mentos. A elas seriam oferecidos “ensinamentos que vão da enfermagem à horticultura”.23


Em outros termos, as ações do Estado deveriam focar em uma educação que congregasse
aspectos sanitários, cujo objetivo seria a superação da condição perigosa de doentes, e a
instrução acerca do cultivo de hortaliças, um conhecimento utilitário. Tratava-se, portanto,
da constituição de seres saudáveis e produtivos, os quais deixariam de ser um problema ao
terem um lugar hierarquicamente definido no presente e no futuro. Para essa “multidão”,
deve-se ressaltar que o tema da propriedade da terra não era abordado em nenhum momento
e os projetos estatais não os enxergavam como sujeitos potencialmente proprietários das tais
lavouras de café ou de gado. A educação rural era apresentada como uma característica desse
Paraná sujeito e modelo do desenvolvimento nacional. Sobre os projetos de educação rural
desenvolvidos nos outros estados, inclusive no vizinho e cafeicultor São Paulo,24 nada é dito.
Silenciamento que funciona como estratégia discursiva para a construção do horizonte de
progresso como uma excepcionalidade identitária para o Paraná.
A imagem de uma população carente, configurada pela sua miséria, é logo substituída
pelo seu contraponto: a população do centro-sul do Paraná. Tal região é classificada como
“zona da lavoura de subsistência”, onde vive o “lavrador de origem europeia recente” e onde
“raramente existem trabalhadores rurais assalariados”. Para essa região e essa população,
a intervenção do governo não é colocada de imediato, pois esse lavrador seria “portador
de outras heranças” e, portanto, “a técnica deverá ser diferente, e a experiência indicará os
caminhos a seguir25. Ou seja, diferentemente das gentes pobres das áreas de produção de
café, caracterizadas como “desajustados”, narrados anteriormente, para os imigrantes euro-
peus do centro-sul paranaense, o passado não é o grilhão que os impede de prosperar, mas,
ao contrário, constitui o guia para o futuro. Salienta-se aqui como a opção por uma forma
narrativa apoiada em conhecimentos geográficos sobre as sub-regiões paranaenses possibi-
lita enquadrar as questões levantadas pelo autor em quadros físicos, como se fossem dados
naturais e não humanos.
Na página seguinte, o olhar volta a ser dirigido para o norte, para Maringá e Peabiru.
O Estado é novamente apresentado como instrumento cuja função é prestar assistência
“[...] mais direta aos nacionais, principalmente aos nordestinos que, mais uma vez batidos
pela inclemência das secas, procuram o Paraná em ondas sucessivas”.26. Ou seja, trata-se de
uma imagem em que os nordestinos estão presos – e, portanto, estão constituídos por uma
determinada temporalidade – a um pretérito e a uma região, que também é constituída
23
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. Mensagem apresentada à ...., op. cit, p. 12.
24
Destaca-se, aqui, o Congresso Agrícola de 1878, em São Paulo, que estipulou a “educação para o trabalho
através da criação de escolas agrícolas” como uma de suas reinvindicações, bem como a fundação do Institu-
to Agronômico de Campinas e da Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz, em Piracicaba, ao início
do século XX. Ver: NAXARA, Márcia R. C. Estrangeiro na sua própria terra: representações do brasileiro
1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998. p. 53 e 68.
25
Idem.
26
Ibidem, p. 13.

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como vinculada a um passado, pois é adjetivada como “velhos lugares em que viveram seus
ancestrais”27. Logo em seguida, o autor enaltece o “dever de brasilidade e humanidade do
Paraná”, ao aliviar o sofrimento “de tantos brasileiros” – sem, no entanto, mais uma vez,
constituí-los como sujeitos para o futuro.
Na sequência, a narrativa transforma-se em números que procuram quantificar a produ-
ção de café do estado – 5 milhões de sacas, que correspondem a 30% da produção nacional
– e a riqueza proveniente de sua exportação: 300 milhões de dólares. Aqui, o Paraná nova-
mente é instituído como uma espécie de sujeito que desempenha um papel no presente que,
concomitantemente, já se encontra projetado em um futuro que envolve o Brasil. É o que
Rocha Neto sintetiza por meio da seguinte frase: “Não me canso de falar sobre a missão que
ao Paraná cabe realizar na evolução da economia cafeeira nacional”.28 Para o autor, o Paraná
teria uma missão para com a nação, uma perspectiva de apontar o seu futuro, sua evolução, o
que nos lembra novamente das reflexões de Lacoste, para quem “Os geografismos proliferam
nos discursos políticos”.29
Em seguida, a narrativa traz uma advertência acerca dos perigos que podem acometer
esse processo em que o leitmotiv é a produção de café:

Não pode ser uma fatalidade o nomadismo da cultura do café, e se o Paraná está ainda no seu
início da sua capacidade de produção, é preciso prever e evitar que se venham a repetir aqui os
mesmos erros que tem acompanhado a onda verde. É preciso evitar que à prosperidade trazida
pelo café suceda o deserto ou então outro gênero de cultura, desorganizando sucessivamente
os fundamentos da economia brasileira.30

Esse perigo do Paraná, no futuro, tornar-se o presente das regiões cafeeiras em decadên-
cia, é logo afastado ao indicar a ação de sujeitos positivados, a saber: “os fazendeiros, aqueles
que detêm a consciência que é mais [...] conveniente conservar do que recuperar o solo”.31
Já os “pequenos lavradores” seriam assistidos pelo Estado por meio das “Casas Rurais”, que
venderiam a preço de custo vacinas, sementes e máquinas.
O próximo aspecto abordado na obra envolve a instalação de imigrantes europeus. Veja-
mos como esse cenário, localizado em Guarapuava e em Castro, é constituído:

O Estado tem facilitado a imigração estrangeira para as zonas paranaenses que, pelo seu clima,
mais se prestam à colonização europeia. O êxito da colônia de Entre Rios, com a sua promissora
cultura de trigo, está destinado a revolucionar os velhos métodos agronômicos conservados em

27
Idem.
28
Idem.
29
LACOSTE, Yves. A geografia, op. cit, p. 31.
30
Idem.
31
Idem.

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grandes áreas do estado, valorizando-as decisivamente. Além de Castrolanda, onde holandeses


se estão localizando, o estado estuda com os órgãos federais a localização de grandes correntes
de lavradores europeus em zonas de condições semelhantes às de Guarapuava.32

Portanto, o território paranaense é loteado em função de seu clima, perspectiva de pro-


dução agrícola – no caso acima, o trigo – e em função da população constituída como ideal
para ocupá-lo. Esses três aspectos somados desaguavam, para o autor, em um futuro não
muito distante, em que uma das características fundamentais seria a valorização das terras.
Após isso, a fala de Rocha Neto retorna a dissertar sobre os nacionais. A metáfora envol-
ve, uma vez mais, uma noção climática: a seca, é em oposição a essa que o estado se cons-
titui: “O Paraná é buscado como um oásis, para onde se dirigem os homens insatisfeitos da
instabilidade econômica nacional”.33 Ao não apresentar detalhes sobre essa instabilidade no
âmbito nacional, e nem o porquê do Paraná não ser afetado por ela, a narrativa produz uma
paradoxal imagem em que o estado é inserido simultaneamente fora do Brasil – pois não
padece de seus problemas econômicos – e no seu interior, como uma das unidades da fede-
ração. Nesse sentido, o Paraná seria como um oásis cercado pelo deserto da crise econômica,
para onde os sedentos por terra, riqueza e futuro se deslocavam.
A importância de tal movimento migratório é, na sequência, reforçada com a apresentação
de dados sobre o crescimento demográfico do estado, de 126.722, em 1872, para 2.115,547,
em 1950. Semelhante comparação é feita em relação ao orçamento.34 Nesse caso, lançava-se
mão de números não apenas para informar as diferenças entre a quantidade de pessoas e de
recursos dos primeiros anos da província e à época das comemorações de seu centenário, mas
também para estabelecer uma espécie de continuidade e de aceleração desse crescimento. É
um quadro homogeneizante que não apresenta a distinção, encontrada nos parágrafos an-
teriores, entre aqueles para quem o futuro reserva um lugar ao sol – como, por exemplo, os
fazendeiros proprietários de terras – e para aqueles que permaneciam presos ao passado.
Entretanto, o quadro que estabelecia os sujeitos do passado, do presente e do futuro, a
partir da posse e propriedade da terra, é ampliado em outra publicação comemorativa ao
centenário do Paraná, produzida quando os repórteres Rubem Braga e Arnaldo P. D’Horta
acompanharam o então governador do Paraná em viagem pelo estado, em 1952. Rubem
Braga (1913-1990), escritor e jornalista, ganhou notoriedade como cronista de jornais e re-
vistas de grande circulação no país e como correspondente de guerra do Diário Carioca junto
às tropas da Força Expedicionária Brasileira na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial35.

32
Ibidem, p. 14.
33
Idem.
34
“(...) de 176.4000$000, de 1854 a 1855, para Cr$ 1.649.644.333,70 em 1953.” Idem.
35
Para uma aprofundada análise das crônicas de guerra na Itália escritas por Braga, que envolvem história,
literatura e jornalismo, ver: MELO, Mariani Carolina de Souza. A crônica vai à guerra: Rubem Braga e os
escritos do front. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Uberlândia: UFU, 2016.

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Entre 1961 e 1963, atuou como embaixador em Marrocos.36 Arnaldo Pedroso D’Horta
(1914 - 1973) foi desenhista, pintor, crítico de arte, professor e jornalista. Como jornalista,
atuou em jornais como a Folha da Manhã e O Estado de S. Paulo, mas foi o desenho e a
gravura que lhe deram mais notoriedade.37
O livro Dois repórteres no Paraná é constituído por sete capítulos. Cada capítulo é com-
posto por um texto de Braga e outro de D’Horta. O primeiro apresenta informações e im-
pressões de ambos ao chegarem em Curitiba. O segundo capítulo intitula-se “De Curitiba
a Porecatu”, e reúne os textos “As Terras Devolutas”, assinado por D’Horta, e “Terras”, de
Braga. Provavelmente, a escolha de Porecatu, situado no extremo norte do Paraná, para ser
a primeira localidade a ser visitada, deve-se ao fato de ali ter sido palco de um grave conflito
agrário, de repercussão nacional, também denominado “Guerra de Porecatu”, ocorrido no
final da década de 1940 e início dos anos de 1950. O conflito envolveu posseiros, jagunços,
grileiros, governo do Paraná e dirigentes do partido comunista – que atuaram na organi-
zação da resistência armada e das ligas camponesas na região. A resistência armada dos
posseiros foi sufocada com a ação da polícia militar do Paraná e de agentes das Delegacias
Especializadas de Ordem Política e Social (DOPS).38
Começaremos nossa análise do capítulo sobre Porecatu pelo texto de Braga. Percebe-se
um discurso que constrói uma ordem temporal para a questão de quem seria o dono das
terras por aquelas bandas: “No princípio, as terras eram todas de Deus. Depois um governo
deu uma imensa concessão neste norte do Paraná. [...] Então as terras passaram a ser todas
do Diabo”.39 Na passagem, a propriedade da terra é posta em uma temporalidade sagrada,
entre Deus e o Diabo. O princípio e o fim aparecem mediados pela ação do governo em
concedê-la a outrem. Não há propriedade antes, e o presente é do Diabo, visto como o motor
dos conflitos deflagrados no norte do Paraná no período. O nascimento da propriedade é,
assim, retirado da historicidade humana e atribuído a figuras metafísicas.
Em relação aos conflitos agrários, os autores tentam explicar o de Porecatu40 diminuindo
a influência de comunistas e reafirmando a naturalidade da propriedade privada, assim:

Falou-se muito de comunismo no norte do Paraná, e isso por causa dos acontecimentos de
Porecatu [...]. Muita gente chegou a pensar que o comunismo no Brasil tinha finalmente se

36
Disponível em: https://www.ebiografia.com/rubem_braga/. Acesso em: 20 nov. 2017.
37
Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9760/arnaldo-pedroso-dhorta. Acesso em:
20 nov. 2017.
38
PRIORI, Angelo. A Guerra de Porecatu, op. cit.
39
BRAGA, Rubem; D’HORTA, Arnaldo. Dois repórteres no Paraná. 2 ed. Curitiba: Imprensa Oficial do
Paraná, 2001, p. 23.
40
Para mais informações, ver: PRIORI, Angelo et al. História do Paraná: séculos XIX e XX [online]. Marin-
gá: Eduem, 2012. p. 129-41. Disponível em: http://books.scielo.org/id/k4vrh/pdf/priori-9788576285878-11.
pdf. Acesso em: 13 nov. 2018.

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infiltrado no campo e se organizado entre os camponeses, para usar a linguagem sua predileta.
Minha impressão [...], o comunismo continua a ser um fenômeno urbano.41

Nesse sentido, depois de afastada a ideia de comunismo no mundo rural, define-se que
seria a falta de limites entre as propriedades e a revenda de terras para terceiros à revelia de
vendas anteriores, que teriam causado o conflito, a saber:

Os distúrbios que ocorreram em Porecatu tiveram como causa principal o distúrbio assim
produzido por autoridades inescrupulosas na situação de grande número de pessoas com
interesse nas terras requeridas, ou que já as possuíam como posseiros.42

Uma vez trocado o governo, o problema estaria resolvido, pelo menos na visão de
D’Horta. Em consonância, Braga afirma no capítulo denominado “Materialismo”, que as
pessoas chamadas pelo autor de “pioneiros” seriam “materialistas” demais para serem “co-
munistas”. O que parece contraditório à primeira vista, é logo compreendido pela narrativa
urdida pelo autor da seguinte forma: ser “materialista”, para ele, consistia em objetivar, por
meio de seu trabalho, apenas a obtenção de mais “dinheiro”. Vejamos:

Aqui nessas terras, onde só se fala de trabalho e de dinheiro, a linguagem adotada é uma
linguagem de negócio: ‘não compensa’. O comunismo é apresentado como um negócio que
não interessa, materialmente: um atraso de vida.43

Nessa passagem, pode se perceber que os pioneiros de Braga não são todas as pessoas
que habitavam aquela região, mas sim, e apenas, os que empreendem atividades capitalistas,
entendidas pelo autor como aquilo que criaria o progresso. Dicotomicamente, o comunismo
é associado ao atraso, a algo do passado, já superado.44
Para os dois repórteres e seus olhares treinados para filtrar o mundo pela lente dicotô-
mica do progresso e do atraso, os conflitos de terra apresentam-se como um desafio narrati-
vo. Como explicar a grilagem empreendida pelo governo Lupion? Braga faz uso de termos
morais como “orgia”, “barafunda”, que teriam sido promovidas em “quartos de hotel” por
funcionários, intermediários e “magnatas das terras devolutas”.45 Assim, a grilagem não era

41
BRAGA, Rubem; D’HORTA, Arnaldo. Dois repórteres no Paraná, op. cit., p. 35.
42
Ibidem, p. 20.
43
Ibidem, p. 36-37.
44
Uma interessante análise do discurso que envolve as categorias pioneirismo e comunismo foi realizada por
José Rollo Gonçalves. GONÇALVES, José Henrique R. A mística do pioneirismo, antídoto contra o socialis-
mo: Bento Munhoz da Rocha Neto, a reforma agrária e o Norte do Paraná dos anos 50 e 60. Revista História
Regional, v. 2, n. 1. Ponta Grossa: UEPG, 1997.
45
BRAGA, Rubem; D’HORTA, Arnaldo. Dois repórteres no Paraná, op. cit, p. 23 e 24.

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jamais compreendida como uma dinâmica perene da reocupação territorial brasileira46, mas
como um ambiente de exceção causado pelo desgoverno de um político específico e solucio-
nada com a chegada de Bento Munhoz da Rocha ao governo do estado, quando “conseguiu
descascar o mais horrível abacaxi que recebeu de herança”. Diz o Governador em discurso:
“Cuidei de defender os pobres porque os ricos, esses sabem se defender muito bem”47. Cabe
aqui lembrar que, findo o governo de Munhoz da Rocha, Moisés Lupion foi reeleito como
governador do Paraná.48
Percebe-se um procedimento de repetição na ordenação dos discursos analisados. Não
são discursos somente ditos, mas constantemente repetidos e com reaparições solenes e co-
mentários. É o que ressalta Braga: “Como o Sr. Bento Munhoz não cansa de repetir (...)”.49
Tal afirmação sugere que não se queria nenhuma novidade no que era dito, era preciso orde-
nar e controlar os acontecimentos, discursivos ou não.
Ao analisarmos a estrutura do livro e como os sujeitos proprietários e não proprietários
são nele constituídos, percebe-se que as distinções são compostas e tramadas em relações
com as diferentes temporalidades. É o que podemos ler no seguinte fragmento do texto sobre
Porecatu:

Os mais ricos lavradores paulistas que emigraram para o Paraná estão evitando reproduzir
aqui os erros da lavoura cafeeira paulista. Eles aprenderam que é bom negócio adubar o cafezal
e protegê-lo contra a erosão. Para ajudar os novos cafeicultores a fazer o mesmo, o governo
instalará, este mês, uma série de Casas Rurais. A marcha gloriosa e insensata dos batalhões

46
Acerca da grilagem, Márcia Motta afirma que: “1) (...) a grilagem não é recente, constitui-se, pois, num
processo histórico e secular de ocupação ilegal; 2) (...) grilar não é uma prática isolada, mas tem a ver com os
esforços dos senhores e possuidores de terra em expandir suas propriedades ad infinitun e 3) a grilagem não é
somente um crime cometido contra o verdadeiro proprietário (seja um indivíduo, no caso de terras particu-
lares invadidas, seja em áreas pertencentes ao Estado, no caso mais frequente de invasão de terras devolutas),
mais é um crime cometido contra a nação.” A grilagem como legado. Disponível em: http://www.direito.mppr.
mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/7MottaAGrilagemcomoLegado.pdf.
Acesso em: 04 dez. 2017.
47
BRAGA, Rubem; D’HORTA, Arnaldo. Dois repórteres no Paraná, op. cit., p. 25.
48
 Em seu primeiro mandato (1947-1951) como governador do Paraná, a administração de Lupion “[...] foi
marcada pelo agravamento da luta armada entre posseiros e grileiros, que disputavam a posse das terras do
norte do estado. Nessa época, Lupion fundou a Clevelândia Industrial e Territorial (Citla), empresa voltada
para a colonização e a exploração madeireira que se envolveu nos anos seguintes em graves conflitos sociais
no campo paranaense”. Em seu segundo mandato como governador (1956-1961), “agravaram-se os conflitos
agrários no Paraná, pois os lavradores se recusavam a deixar as terras em que trabalhavam, organizando a
resistência armada aos pistoleiros contratados por algumas empresas. Essa luta resultou em sucessivos le-
vantes em municípios da região sudoeste do estado, como Francisco Beltrão, Pato Branco, Santo Antônio e
Capanema. Na condição de proprietário da Citla, Lupion foi envolvido diretamente nesses conflitos, sendo
acusado pela imprensa e por parlamentares oposicionistas de utilizar a Força Pública do estado em auxí-
lio à ação violenta das empresas imobiliárias”. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/
verbete-biografico/moises-lupion-de-troya.
49
BRAGA, Rubem; D’HORTA, Arnaldo. Dois repórteres no Paraná, op. cit., p. 22.

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verdes, em busca de terras novas deve parar: estas aqui, do setentrião paranaense, são as últimas
do Brasil a poder produzir o café com um alto rendimento. A um Paraná que sempre viveu
de mate e madeira o sr. Bento Munhoz da Rocha não se cansa de repetir que é preciso ter
consciência de que o estado está vivendo o seu ciclo do café.50

Fazendeiros ricos vindos de São Paulo possuiriam um conhecimento advindo de fracas-


sos anteriores; a experiência seria pedagógica para esses e impediria que repetissem os mes-
mos erros do passado no futuro. Diferente dos primeiros, as pessoas que eram mais novas no
cultivo do café necessitariam de auxílio do governo para poderem ter êxito em sua lavoura.
O conhecimento não estaria com eles, não haveria experiência pedagógica no seu passado,
o conhecimento lhes era externo e deveria ser transmitido através dos projetos do governo
estadual. O café havia encontrado o seu lugar final, o “setentrião paranaense”, visto quase
como um ponto de chegada, como um destino para aquele cultivo, o que só se torna possível
através da construção de mais um geografismo discursivo por parte do autor.

Agricultores, caboclos, favelados e os condicionantes para o futuro

De forma semelhante ao que se pode observar no fragmento sobre Porecatu, citado na


seção anterior deste artigo, o quadro de conflito e desordem é substituído na narrativa quan-
do os dois repórteres abordam a fixação de imigrantes suábios do Danúbio, em Guarapuava.
Agora, eles teciam – através da instituição de uma relação entre passado, presente e futuro
interna ao discurso – uma imagem de esperança apaziguadora como o horizonte de expec-
tativa. Vejamos um fragmento desse discurso:

São alemães, de famílias que estavam radicadas há 200 anos na Iugoslávia, e que deixaram esse
país em 1944, quando Tito subiu ao poder, para se refugiarem na Áustria. Organizaram uma
cooperativa, e graças a empréstimos conseguidos de uma sociedade suíça de ajuda a refugiados
de guerra, puderam aparelhar-se para vir instalar-se no Brasil. São todos agricultores – mas
agricultores europeus, e não faltam em seu meio, os mecânicos, os eletricistas, os agrônomos.51

A narrativa constrói sentido, unifica o que é plural, tece coerências e apresenta um tra-
jeto. Com isso, a diversidade étnica do grupo era apagada, tornam-se alemães; seu apoio
aos nazistas durante a Segunda Guerra era silenciado, foi Tito quem os expulsou; a negativa
da Alemanha em permitir a entrada desses refugiados em seu território era esquecida, eles

50
Ibidem, p. 52.
51
BRAGA, Rubem; D’HORTA, Arnaldo. Dois repórteres no Paraná, op. cit., p. 73-74.

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apenas ficaram na Áustria.52 O apoio do governo do Paraná para a vinda também sofria o
mesmo processo de apagamento, afinal, eram europeus, eles organizariam a cooperativa
autonomamente – ao contrário dos agricultores nacionais que necessitavam de apoio dos
projetos do governo como as Casas Rurais, mencionadas anteriormente.
O mais importante para as reflexões aqui propostas é a definição dos imigrantes como
agricultores, pois que os autores estavam cientes das representações que envolviam essa pro-
fissão no Brasil – onde rural era ligado a noções de atraso, arcaísmo e/ou degeneração53 –,
por isso, justificavam a diferença desses agricultores recém-chegados: eram “europeus”, o
que acarretava, no texto, um arrolar de outras carreiras profissionais complementares e com
maior status social nas terras tupiniquins – “mecânicos, eletricistas, agrônomos”.
O texto continua reafirmando que a imigração foi custeada pelos próprios colonos, si-
lenciando sobre a indenização dada pelo governo do Paraná aos fazendeiros desapropriados
– indenização em dinheiro e terras ao Noroeste do estado.54 Ao qualificar positivamente
esses imigrantes, construía-se, também, uma dualidade com a população brasileira, como
pode se observar a seguir:

Eles trouxeram seu capital, suas máquinas, sua técnica e seu rude apetite de trabalho. Esse
ano plantaram trigo mais cedo, e os trigais hão de madurar louros como as tranças de suas
mulheres. Que sejam felizes, esses homens que produzem paz. Mas haja também no Brasil
quem possa organizar 500 famílias brasileiras em cinco aldeias brancas – 500 famílias de gente
da roça que nossa imprevidência e nosso desprezo deixam formar não essas aldeias brancas que
se enxergam de longe, na imensidão dos campos, e sim mais uma súbita, sórdida e negra favela
na perambeira de qualquer morro do Rio de Janeiro...55

O texto, assinado por Rubem Braga, articula, na passagem acima, preconceitos machis-
tas e racistas comuns à elite intelectual brasileira em meados do século XX. Para o autor,
os europeus não traziam só conhecimentos, eles teriam “apetite” por trabalho, mesmo que
“rude”, mas também branqueariam as paisagens e populações brasileiras com o entendimen-

52
Sobre a vinda dos suábios para o Brasil, ver: STEIN, Marcos N. O oitavo dia: produção de sentidos identi-
tários na Colônia Entre Rios-PR (segunda metade do século XX). Guarapuava: Unicentro, 2011.
53
Sobre essas interpretações do rural presentes na historiografia brasileira de esquerda no período, acompa-
nhamos as reflexões de Márcia Motta que, ao analisar a questão da escravidão em obra de Caio Prado Jr., des-
taca o seguinte: “A noção de degeneração, comum a muitos autores do período, corresponsabiliza o escravo
pelo seu destino. As classes escravizadas, mal preparadas, tornar-se-iam um ‘corpo estranho’ na sociedade que
ajudaram a construir por sua força e sua degeneração se espraiem por outras categorias de pobres livres. Há
uma impossibilidade histórica para a existência digna daqueles homens.” MOTTA, Márcia M. M. O rural à
La gauche: campesinato e latifúndio nas interpretações de esquerda (1955-1996). Niterói: UFF, 2014. p. 99.
Encontraremos paráfrases de tais interpretações nas obras aqui analisadas.
54
STEIN, Marcos N. O oitavo dia: produção de sentidos identitários na Colônia Entre Rios − PR (segunda
metade do século XX). Guarapuava: Unicentro, 2011.
55
BRAGA, Rubem; D’HORTA, Arnaldo. Dois repórteres no Paraná, op. cit., p. 78.

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to simultâneo – uma sinédoque – que ligava no texto os trigais às supostas louras tranças das
mulheres imigrantes, dando um efeito pitoresco e tranquilizador como um sentido para essa
imigração. Com essa forma, o autor produzia a paz que esperavam que os recém-chegados
produzissem, mesmo se tratando de pessoas deslocadas por uma guerra mundial, na qual
tomaram partido. Os homens trabalhadores plantariam trigo e, simbolicamente, clareariam
os campos e as futuras gerações, pois que as mulheres eram ali metaforizadas pelo vegetal,
tornando ambos objetos da ação masculina (re)produtiva em um horizonte de expectativa
planificado de branqueamento nacional. A imigração no Paraná era, assim, um modelo para
um futuro brasileiro desejado pelos autores da obra.
Tal desejo de futuro, esse futuro-presente, era construído em confessa oposição ao Brasil
daquele momento. O presente nacional era entendido como marcado pelo passado escravis-
ta, compreendido pejorativamente como “favelado” e “imprevidente”, ou seja, incapaz de ele
mesmo prover, prever e projetar perspectivas para o futuro. Tal caracterização nacional foi
observada também no trabalho de Cordova, que analisou os discursos regionalistas de Bento
Munhoz da Rocha Neto. Segundo ela:

Para Bento, a mancha loira do Brasil constituía-se num contraponto teórico do que até então se
produzia em termos de História do Brasil, pois enquanto grandes clássicos, como Casa Grande
& Senzala de Gilberto Freyre, defendem a constituição de um Brasil mulato e mestiço, para
Bento tal argumento não correspondia a formação social e cultural sulista.56

Esse passado-presente, ou seja, o espaço de experiência brasileiro, era definido como


indesejado para o futuro. A população negra era localizada fora do Paraná, era “carioca” e
viveria em um local com topografia montanhosa (“perambeira”), era constituída assim como
um avesso das concepções de futuro presentes nos discursos de Rocha Neto e dos repórteres,
que projetavam a imagem de um trigal loiro e plano. Para compreender essa percepção de
historicidade, lembramos as reflexões de Reinhard Koselleck:

Com isso chego a minha tese: experiência e expectativa são duas categorias adequadas para
nos ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas
também para se tentar descobrir o tempo histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas
dirigem as ações concretas no movimento social e político.57

Podemos afirmar, a partir dos discursos apresentados, que os autores em questão estão
não só construindo uma narrativa fundante para o Paraná, mas sim uma historicidade para
56
CORDOVA Maria Julieta W. O discurso regional autorizado de formação social e histórica paranaense,
op. cit., p. 6. Grifo da autora.
57
KOSELLECK. Reinhardt. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC-Rio, 2006. p. 308.

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o Brasil, pois que o estado não seria um resumo do Brasil do presente, visto como atrasado,
pobre e negro, mas sim, um horizonte de expectativa para um Brasil do futuro. Porém, tal
ideia de progresso excluía as populações compreendidas como representantes de um passa-
do-presente a ser superado.
Na construção desse futuro técnico e branco desejado pelos articulistas, encontrava-se
uma figura limítrofe no mundo rural por eles abordado: o caboclo. Tal personagem constitui-
-se como um momento privilegiado para a análise das representações discursivas sobre a
população brasileira no período. Márcia Naxara apontou a passagem do século XIX para o
XX como o momento em que surgiram diversas concepções sobre a constituição do povo bra-
sileiro dentro de uma perspectiva evolucionista, as quais traziam a ideia de uma humanidade
em uma marcha em direção ao progresso, para a qual os nacionais, por motivos variados, não
estariam aptos.58 Tais formulações parecem ter se cristalizado durante a primeira metade do
século XX e as encontramos de forma refigurada nos discursos de Bento Munhoz.
Será necessário um último olhar atento para tal discursividade com vistas a compreender
como diferentes projetos de futuro estavam mesclados a uma percepção da historicidade do
rural no Paraná. O personagem caboclo apresentava-se, assim, como uma figura limítrofe na
representação da brasilidade – nem branco, nem negro, nem indígena. De difícil classifica-
ção, ele expunha um Brasil rural miscigenado; era a figura dos sertões, o decaído ou doente
Jeca Tatu.59 Mas, para Bento Munhoz da Rocha, ele existia também dentro de cada um de
nós, brasileiros. Daí referir-se a um “caboclismo nosso”, seguindo as palavras do político: “o
caboclismo nosso de cada dia, acha bonito o que está escrito em inglês, [...] advinha a sabe-
doria de vagas técnicas agronômicas” e compõem-se em oposição a uma “[...] colonização
racional, como se iniciou em Guarapuava, onde grande colônia de raça e cultura alemã cul-
tiva trigo em campos nativos que permitem mecanização”.60 Tal caboclismo nacional pode
ser visto também quando o autor analisa a mudança na cultura do café:

Há uma década soaria como absurdo aconselhar a um lavrador de café do Paraná a adubação da
terra. O lavrador sabia que quando a terra se esgotasse iria em frente como um andarilho. Era
um de seus defeitos psicológicos, análogo ao fronteirismo norte-americano em que a mudança,
o deslocamento, a busca de novas paisagens, resolvia todos os problemas.61

58
“[...] momento de lenta e contraditória gestação das representações que levariam à cristalização de uma
imagem instituidora do brasileiro enquanto indolente, vadio, que permaneceu como uma pecha ou mito,
generalizando-se e abrangendo, de certa forma, o povo brasileiro, dando-lhe como características básicas
a preguiça, o conformismo, e a ideia de inadequação à civilização em marcha.” NAXARA, Márcia R. C.
Estrangeiro na sua própria terra: representações do brasileiro 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998. p. 19.
59
NAXARA, Márcia R. C. Estrangeiro na sua própria terra, op. cit. p. 17.
60
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. O Paraná: ensaios, op. cit, p. 59-60.
61
Ibidem, p. 61.

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Na passagem, o autor compara o lavrador nacional com a noção de fronteira presente


na historiografia norte-americana, assim “[...] é possível perceber continuidades discursivas
para problemas de território e nação que constituíram, nas suas especificidades, relações de
poder que delimitaram suas fronteiras”.62 O próprio percurso desses conceitos de fronteira
embasou projetos políticos de expansão de estados em distintos tempos e espaços na Améri-
ca. Uma analogia baseada no movimento populacional, não na sua qualidade.
O fragmento de Rocha Neto também aponta para a permanência da ideia de destino
acerca dos agricultores nacionais, agora denominados caboclos. Como podemos ver, não se
trata de um destino que os conduziria para um futuro/fortuna, mas, ao contrário, os apri-
siona em um pretérito/infortúnio. Sua sina é representada pelo deslocamento constante para
o interior em busca de novas terras, como primeiro elemento desbravador, mas, para quem,
paradoxalmente, raramente os títulos de pioneiro, ou elemento civilizador, são atribuídos.63
Jogados no passado, apesar de serem componentes daquele presente, os agricultores nacio-
nais/caboclos também estavam sob o estigma do atraso. Ao final, o autor comemora o que
entende como uma diminuição do que ele mesmo identificava como um “caboclismo” e
afirma: “Para felicidade nossa, essa atitude está desaparecendo”.64 No horizonte de expecta-
tiva ali projetado, não haveria lugar para as figuras limítrofes, como caboclos e caboclismos,
vistos como remanescentes de um passado agora indesejado.
O presente da década de 50 do século passado era, para Rocha Neto, um tempo de rea­
lizações, de transformações, pois que os efeitos das imigrações europeias já estavam sendo
vistos na população paranaense e um novo brasileiro surgia, a saber: “Como os caboclos
loiros de Guarapuava, de origem nórdica, abrasileirados, pela convivência nacional e total
predominância de nossa cultura”.65 E, nesse sentido, o político diminuía o papel dos outros
povos na composição da população do Paraná. Os indígenas e os negros eram percebidos
como tendo uma contribuição “[...] minguada, pois a ausência de cultura extensiva e inten-
siva nos tempos de colônia – a pecuária foi nessa época a grande atividade – não exigiu a
importação do braço escravo, na mesma intensidade que nas zonas onde se estabeleceu, por
primeiro, o eixo da economia brasileira”.66 O adjetivo “minguar”, utilizado para se referir às
diversas nações indígenas e populações descendentes de pessoas escravizadas, passava uma
obliteração de vidas, as quais, naquele momento, eram exterminadas no chamado norte
novíssimo do Paraná e na grilagem das terras pertencentes à fazenda Invernada Paiol da

62
FIÚZA, Wagner H. N.; OLINTO, Beatriz A. Fronteiras em movimento: o Oeste nos Estados Unidos e
no Brasil. RELACULT − Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade. v. 3, ed. especial, dez.
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63
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ria agrária: propriedade e conflito. Guarapuava: Unicentro, 2009. p. 301.
64
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. O Paraná: ensaios, op. cit., p. 61.
65
Ibidem, p. 146.
66
Ibidem, p. 80-81.

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Telha, em Guarapuava.67 Mas o massacre não é visto como tal, ele aparece escamoteado na
naturalização da marcha do progresso, que escolheu quem iria sobreviver e prosperar:

É pela cultura luso-brasileira que estamos construindo no sul o mesmo Brasil de sempre, o
mesmo Brasil talhado para sobreviver, um Brasil mais branco, loiro, em que são sensíveis os
traços culturais europeus não portugueses, um Brasil que se diversifica, que se distingue com
seus aspectos próprios, mas que é o mesmo Brasil, [...].68

Como já foi dito, os nacionais pobres, os indígenas e os negros eram vistos como um
passado no presente, o futuro era loiro e europeu, mesmo que “abrasileirado”. Lembrando
Woodward: “Todas as significações que produzem significados envolvem relações de poder,
incluindo o poder de definir quem é incluído e quem é excluído”.69 Nesse caso, a inclusão
era uma questão de sobrevivência e direito a um futuro.
Delimitavam-se sujeitos, seus lugares e suas atividades, entre o dito e o silenciado, vidas
humanas e seus direitos eram percebidos ou apagados. Os papéis sociais eram idealizados
em um teatro perspectivo, um horizonte de desejo futuro utilitarista, branco e ordeiro, como
pode ser compreendido mais uma vez abaixo:

É o sertanejo, queimando a coivara para plantar roça. É o colono de todos os climas e de


todas as latitudes, egresso de terras cansadas de séculos, esterilizadas pelos conflitos da questão
social; morigerado colono, que prospera na floração da gleba. É o ervateiro podando o erval
dourado. É o pouso silencioso das carroças de quinze cavalos ao longo das estradas. É a cadência
uniforme das serrarias e dos engenhos. É o oceano verde dos cafezais e a fulguração nova de
searas. São as criancinhas loiras buscando escola, em limpas e luminosas manhãs de gelo.70

67
O imóvel denominado Invernada Paiol da Telha localizava-se no atual município de Pinhão. A área foi dei-
xada, em 1860, em testamento pela proprietária, Dona Balbina Siqueira, para os ex-escravos. Posteriormente,
em 1875, grande parte das terras teriam sido usurpadas por Pedro Lustoza de Siqueira, grande proprietário
de terras da região. A fase final dessa expropriação ocorrerá durante a ditadura militar, culminando, em 1975,
quando João Pinto Ribeiro, então delegado de Pinhão, expropria violentamente os remanescentes de escravos
que viviam na área que, então, foi adquirida pela cooperativa Agrária, formada pelos suábios do Danúbio. No
início da década de 1990, um grupo de famílias de descendentes dos escravos reocupou a área, seguindo-se
um processo marcado por diversos conflitos. Para mais informações, ver: HARTUNG, Miriam F. O sangue
e o espírito dos antepassados: escravidão, herança e expropriação no grupo negro Invernada Paiol da Telha-PR.
Florianópolis: NUER/UFSC, 2004 e STEIN, Marcos N; OLINTO, Beatriz A.; KRAMER, Méri F. Um
Paraná esquecido: deslocamentos, memórias e conflitos em Guarapuava. In: COSTA, Hilton; PEGORARO,
Jonas; STANCZYK FILHO, Milton (orgs.). Paraná pelo caminho: histórias, trajetórias e perspectivas. Volu-
me III - Movimentos. Curitiba: Máquina de Escrever, 2017. p. 70-99.
68
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. O Paraná: ensaios, op. cit., p. 83.
69
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz
T. da. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Traduções de Tomaz Tadeu da Silva.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 18.
70
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. O Paraná: ensaios, op. cit., p. 48.

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Um horizonte ordenado em uma lógica produtiva da terra capitalista, na qual a natureza


era compreendida ora como recurso, ora como obstáculo, ou seja, como algo a ser utilizado,
um recurso com propriedade definida. A grilagem, vista como uma exceção, continuava
como dinâmica de reocupação de terras. As populações locais e seus conhecimentos eram
apagados ou desqualificados em um horizonte constituído por palavras de força simbólica
como progresso, futuro e trabalho. O futuro – representado pelas crianças – pertenceria aos
loiros, o fenótipo apresentado para a nova geração. Sob o som das “serrarias e engenhos”,
eram silenciados outros futuros possíveis e outras formas de estar no mundo, campos de ex-
periência vistos como atrasados ou superados. Ao narrar um Paraná e construir um horizon-
te de expectativa para o estado, delimitava-se também um futuro para o Brasil, pois, como
lembra Foucault: “O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo
diante de seus próprios olhos”.71 Verdades que, mesmo de emergência recente, parecem per-
durar como o horizonte do mundo rural brasileiro.

Considerações finais

Criar uma identidade para a população paranaense envolvia criar um passado, uma
história e uma temporalidade progressiva. A problematização das historicidades desenhadas
por entre discursos identitários e suas narrativas é uma forma eficaz de perceber o seu enredo
e de compreender as relações com projetos que, como vimos, previam um futuro somente
para alguns grupos humanos. A expropriação do acesso à terra no Paraná, especialmente
em meados do século XX, não foi uma dinâmica inconsciente, inerente à modernização
agrícola, circunscritas somente ao campo econômico. Ao contrário, ambas foram projetos
de futuro desejados e fundamentados em concepções de história como um processo pro-
gressivo, irreversível e excludente, pois, como lembrava Abramovay: “[...] uma verdadeira
história agrária não se pode limitar à história econômica: os costumes, as tradições étnicas e
nacionais, a cultura de forma geral têm aí um papel de destaque”.72
Narrar o passado implica construir interpretações sobre o pretérito com vistas aos inte-
resses do presente e às suas projeções de futuro. E esse futuro, como vimos, não era para to-
dos. No caso dos discursos de Rocha Neto e dos repórteres que o acompanharam na viagem
pelo interior do Paraná, em 1952, trata-se do estabelecimento, por meio da linguagem, de
um quadro em que os lugares e os papéis eram definidos em uma sociedade hierarquizada.
Inclusive, governar não era uma atividade para muitos, pois que “À elite, isto é, à minoria,
cumpre a missão de dirigir. Está na essência da direção e do governo a noção de minoria.

71
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3 ed. São Paulo: Loyola, 1996. p. 49.
72
ABRAMOVAY, Ricardo. Transformação da vida camponesa: o sudoeste paranaense. Dissertação (Mestrado
em Ciências Sociais). São Paulo: USP, 1981. p. 12.

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Governo é minoria dirigindo; minoria, elite no comando”.73 Essa elite pensava um lugar,
delimitava um estado, sua história, seus personagens e sua hierarquia.
Nesse sentido, o Paraná foi construído, nesses discursos, como uma região com suas es-
pecificidades, um geografismo que o definia e o naturalizava. Também se estava a construir
uma identidade relacional do estado com o Brasil. O Paraná era apresentado não só como
parte do país, tratava-se também de um modelo de desenvolvimento agrário e populacional
para a nação, narrativas que, ao mesmo tempo, historicizavam diferenças e projetavam o
futuro para uma nação “abrasileirada” ao seu feitio.

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73
ROCHA NETO, Bento Munhoz da. O Paraná: ensaios, op. cit., p. 113.

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