Oralidades em Tempos de Possessões

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ART I GO S VARI AD O S

Oralidades em tempos de possessões afroindígenas

Jerônimo da Silva e Silva*


Agenor Sarraf Pacheco**

“De ouvido na notícia”

No início de março de 2011, as populações de Capanema em suas


localidades de Tauari e Mirasselvas, assim como as do município de Traqua-
teua foram surpreendidas com notícias veiculadas por pessoas que viviam ou
transitavam pela Vila Socorro, localizada entre os municípios de Capanema
e Traquateua, no nordeste do Pará, em proximidades do km 14. Através de
“boatos” e relatos de populares “curiosos”, tomamos conhecimento de que
nessa vila muitas crianças e adolescentes foram atormentados por espíritos,
“encostos” de pessoas já falecidas.1 Após serem “atuadas” pelas entidades,

* Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA). Líder do


Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (Geca/CNPq/UFPA) em parceria com o professor dou-
tor Agenor Sarraf Pacheco (PPGA/PPGArtes/UFPA). Exerce assessoria e pesquisa junto ao Arquivo
Público do Estado do Pará (Apep/Secult).
** Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), atuando nos Programas de Pós-Graduação em Artes
e Antropologia. Líder do Grupo de Estudos Culturais na Amazônia (Geca/CNPq/UFPA) em parceria
com o doutorando Jerônimo da Silva e Silva (PPGA/UFPA). Diretor do Arquivo Público do Estado do
Pará (Apep/Secult).
1 A cidade de Capanema está localizada no nordeste paraense, na microrregião Bragantina, tem relações
limítrofes com Traquateua, Maracanã, Salinópolis, Bragança, Peixe-Boi e Ourém, e fica a uma distância
de 160 km de Belém pela rodovia BR 316 (IBGE, 1957, p. 334-335-337-339). A Lei Estadual nº 5858,
de 29 de setembro de 1994, elevou Traquateua à categoria de município, cuja divisão territorial é datada
em 15/07/1997. A população está estimada em 27.455 habitantes segundo dados do IBGE de 2010
(cf. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1), agregando dezenas de vilas, ramais e povo-
ados, caracterizados por pequenas e médias áreas agrícolas.
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tornaram-se “violentas, fortes, mudando de personalidade, invocando os


mortos” (Cláudia França, entrevista realizada em 03/04/2011).
A Vila Socorro é politicamente vinculada a Traquateua. No entanto,
em função de estar em situação fronteiriça com vilas, aldeias e povoações
de outros municípios, esse lugar constitui-se em zona de trânsito por onde
circulam pessoas de diferentes matrizes étnico-raciais, sociais, de gênero,
faixa etária, credo religioso, seja para comercializar, seja para realizar visitas
a parentes e amigos, adensando as formas de viver em ambientes amazônicos
que podem ser interpretados como “cidades-florestas”.2
Os rumores populares atraíram o interesse da mídia local, de religiosos
e de autoridades diversas. No dia 19 de abril de 2011, a TV Amazônia exi-
biu uma matéria no local das manifestações espirituais sob o título de “fatos
sobrenaturais e surpreendentes na Vila Socorro”. A notícia jornalística enfa-
tizou os “desmaios coletivos e comportamentos considerados estranhos, a
fonte de medo e preocupação dos moradores”, bem como a quantidade de
crianças e adolescentes do sexo feminino vitimadas pelas “possessões diárias”.3
Um dos motivos desses fenômenos espirituais se deu, segundo a narrativa
de alguns moradores, em função da presença dos espíritos de pessoas mortas
na rodovia que liga Belém a Bragança, onde a frequência de acidentes de auto-
móvel multiplica as cruzes na beira da estrada. Denominada popularmente
como “rodovia da morte”, esse local seria cenário de manifestação dos mortos,
onde “saem do areal da beira da estrada” e atormentam motoristas e viajantes.
O cotidiano da vila foi profundamente alterado com a intensificação
dos desmaios, convulsões e/ou “surtos” coletivos diários. As aulas na Escola
Municipal Odilon Holanda Pontes precisaram ser suspensas, pois durante as
atividades escolares, mais de seis desmaios/possessões foram contabilizados

2 Na compreensão de Pacheco (2006, p. 24), “cidade-floresta remete a pensar noções de uma urbanidade
singular que se elabora pelos saberes, linguagens e experiências sociais de populações formadas dentro
de uma outra lógica de cidade, onde antigos caminhos de roças cedem lugar à construção de ruas de chão
batido, depois asfaltadas, assim como a permanência de práticas de viveres ribeirinhos nesses novos espa-
ços de moradia”. Ainda sobre interconexões das experiências de vida do campo na cidade e vice-versa,
ver: (Williams, 1989, p. 269-313).
3 Quando falamos em possessão, atuação, incorporação, demonização e outros termos alternadamente,
consideramos a designação dos narradores. Quanto a possessão descontrolada, quedas, ataques, estado
de inércia, sinalizam sintomas da experiência iniciática xamânica. No entanto, a identidade dos xamãs
deve ser constituída na capacidade de controlar as entidades, espíritos que possuem o corpo do “esco-
lhido” (Lewis, 1977). Omitimos o depoimento da direção, técnicos e professores neste ensaio, pois tal
abordagem implicaria a construção de um texto mais denso e volumoso.
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entre os turnos da manhã e da tarde, tornando desgastante e infrutífero o


desempenho escolar dos estudantes (Cláudia França, entrevista realizada em
03/04/2011).
O impacto da matéria e o desespero da população fizeram com que o jor-
nalista em questão – Pedro Paulo4 – evocasse um apelo às pessoas que “estu-
dam o lado espiritual”, objetivando ajudar a solucionar o drama vivido pelos
moradores. Sabemos da importância do discurso midiático no que tange ao
direito de acesso à informação e como instituição responsável por denunciar
sofrimentos vividos pela pessoa humana, no entanto, para uma análise por-
menorizada da realidade em estudo, foi preciso esquadrinhar aspectos de seu
cotidiano, bem como determinadas condições de vida e trabalho dos agen-
tes históricos que ali habitam. Atentarmos para alguns elementos e práticas
culturais dessas pessoas é condição sine qua non para se compreender como
experiências sociais contemporâneas se articulam com tradições constituin-
tes no fazer da história da vila e de seus moradores.5
Por se tratar de temática bastante complexa, este ensaio não pretende
exaurir o entendimento desses fenômenos, nem perscrutar as diferentes
motivações, interesses sociais, significações que os conformam, pois isso exi-
giria um tempo maior de análise e maturação de sua teia de sentidos. A preo-
cupação inicial desta pesquisa – dada a fragilidade e o cuidado de se caminhar
num ambiente de experiências tão dolorosas e espinhosas – foi estabelecer
uma compreensão a partir de alguns depoimentos de moradores que experi-
mentaram ou testemunharam aqueles acontecimentos, entrelaçando-os com
discursos institucionais da Igreja e da mídia para examinar cenas do transe.
No difícil exercício da escrita, procuramos reavaliar, paulatinamente, e inten-
sificar, quando possível, o processo de análise daqueles episódios.
Nessas circunstâncias, centraremos esforços para interpretar experiên-
cias cotidianas, interagindo com narrativas de servidores públicos, religiosos,
jornalistas e estudantes. De antemão, pelas observações realizadas, esses nar-
radores colocam em questionamento o discurso do “sobrenatural” estrutu-
rado na fala de terceiros, questionam olhares institucionais, percebendo essas

4 Funcionário da TV Amazônia, atualmente exerce a função de repórter investigativo, voltado para temas
associados à violência ou acontecimentos de forte apelo emocional. Agradecemos a esse repórter pelas
informações fornecidas.
5 Falamos em “experiência” inspirados no entendimento de Edward. P. Thompson (1981, p. 182), onde
sujeitos históricos “experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades
e interesses e antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura”.
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práticas culturais enquanto formas contínuas de estruturar e dar sentido para


suas tradições (Hall, 1999, p. 10-13).
As vozes do lugar, por serem tributárias de matrizes culturais indíge-
nas e africanas, sem negar a presença de colonizadores europeus filhos de um
cristianismo primitivo6 e do catolicismo devocional, os quais foram ressigni-
ficados e adensaram a construção compartilhada de cosmologias de povos de
tradições orais em Capanema, Traquateua, Maracanã, Salinópolis, Bragança,
Peixe-Boi e Ourém, desmontam interpretações apressadas formuladas espe-
cialmente pelos meios de comunicação, olvidando experiências de agentes
históricos conformados no seio de culturas afroindígenas nesse portal da
Amazônia brasileira.
O conjunto das experiências de possessões que estremeceram o coti-
diano aparentemente tranquilo daqueles lugares da Amazônia Bragantina7
completa-se com a chegada na Vila Socorro de Cristiano – um jovem dotado
de especiais propriedades xamânicas, pronto para combater os espíritos, entre
o céu e a terra, capaz de não apenas “exorcizar” essas manifestações espiritu-
ais, mas catalisar esperanças daqueles moradores da floresta amazônica.8 Nos
rituais de incorporação que não esperaram o cair da noite, práticas mágico-
-terapêuticas desempenhadas pelo xamã visaram acalmar espíritos ou encan-
tados que tomaram corpos de crianças e adolescentes do sexo feminino.
Desse modo, as possessões ocorridas, a partir da ótica do rezador Cris-
tiano e de alguns populares, podem ser identificadas em três direções: entida-
des incorpóreas, mortos-vivos e demônios. A primeira aponta pistas de dons
que algumas das meninas sobressaltadas por possessões trouxeram como
sinas9 de suas trajetórias humanas e espirituais para assumirem-se como novos
xamãs da região. A segunda indica espíritos peregrinos de antigos habitantes

6 O uso do termo “primitivo” refere-se à matriz de um cristianismo oral disseminado em peregrinações,


pregações e ensinamentos por Jesus Cristo em terras do Oriente Médio.
7 Cunhamos a expressão “Amazônia Bragantina” para enfatizar hábitos alimentares, linguagens, religio-
sidades, costumes e dinâmica de populações que transitam em vilas, sítios, comunidades, “terrenos”,
encruzilhadas e “beira de estrada” nas fronteiras campo/cidade de área do nordeste paraense, revelando
experiências que, sem negar diferenças desses territórios, quebram noções de isolamento administrativo
entre os municípios para traduzir específicos modos de viver na plural Amazônia.
8 Utilizamos livremente termos, expressões e designações espirituais xamânicas ao papel de Cristiano na
comunidade. Lembramos que o depoimento dos entrevistados é igualmente variável na definição iden-
titária cultural desse jovem.
9 No contexto amazônico mencionamos o conceito de “sina”, “destino” ou “fado” tal como pensado por
Fares (2008) no seu estudo sobre a diversidade de matintapereiras na região Bragantina.
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da região que, por motivos diversos, continuam vagando e procurando con-


tatos com o povoado. E a terceira são espíritos malignos, que guerreiam com
forças do bem naquele território.
Esse universo de encantados, espíritos e demônios permite notar que
práticas culturais comungadas no passado e no presente pelas populações
rurais e urbanas da Amazônia Bragantina não constituem uma genealogia
pura ou acontecimento fundante, mas forjaram-se sob códigos compósitos e
fluidos, sofrendo transformações do local onde são operadas (Bhabha, 2003;
Hall, 2009).10
As vivências dos agentes históricos são registradas à luz da metodologia
da história oral, valorizando-se formas da linguagem corporal, silêncios, ges-
tos e intensidade das narrativas (Zumthor, 2000). Os múltiplos papéis que os
moradores assumem na afirmação e dinâmica das identidades e as cosmovisões
construídas nas representações do mundo natural, plasmado na religiosidade
amazônica, são pensados na articulação dos intelectuais dos estudos culturais
e pós-coloniais, alcançando formulações da antropologia das religiões.

“Vila(s) em transe”

Entre os meses de abril e junho de 2011, estivemos realizando visitas na


Vila Socorro com objetivo de acompanhar os “fenômenos sobrenaturais” e
escutar a narrativa dos moradores. No ato de ouvir os estudantes da vila, fomos
surpreendidos pela postura calma e serena de que os fatos ocorridos e tratados
com ineditismo pelos meios de comunicação nos municípios vizinhos eram, na
verdade, algo comum, pois “não era[m] de hoje, e sim de muito antigamente”.

Ouvi falar disso, de ver, era quando tava cursando o ensino médio. Saí-
mos da sala na hora do intervalo e fomos para a praça, depois vimos um
tumulto, quando chegamos lá estava uma menina da 7ª série e a prima dela,
que chegou perto, ele passou pra ela também […] elas estava possessa, né?
Daí foi aquele medo, ninguém ficava lá. Mas depois outras pessoas foram
“caindo”, não sei se virou moda [risos], mas daí dava na comunidade do
Cajueiro, Vila Fátima, Alves de Moura, Estirão e Anoerá dos Gamas. No
ônibus mesmo, na volta da escola era todo dia, a gente que segurava eles

10 Expressão utilizada por vários narradores ao mencionarem a atividade de Cristiano.


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pra não se machucarem. Mas sempre começa na escola, depois passa pra
rua. Mas a gente vê que é coisa do outro mundo, elas ficam com a feição
completamente mudada é como se tivesse com muito ódio […] é outra pes-
soa. Teve um caso no balneário, as pessoas pulavam da ponte, quando essa
pulou, começou a se entortar todinha, eu estava lá. Aí ela caiu na água e o
pessoal perceberam e tiraram ela de lá. Se a gente for falar mesmo, sempre
foi assim. ( Joseane de Oliveira, entrevista realizada em 17/04/2011).

O depoimento oral permite alcançar experiências compartilhadas por


pessoas que, na maioria dos casos, apenas estudavam na Vila Socorro, tendo
residência em outras localidades. O transporte escolar não era apenas o palco
das manifestações desconhecidas, mas o momento onde os jovens, sozinhos,
longe da tutoria de pais e professores, criavam estratégias para afirmar papéis
identitários, hierarquias e redes de solidariedade entre os ramais que interli-
gam as vilas.
O depoimento dessa jovem conecta dois elementos que surgem como
aspectos aparentemente contraditórios de uma mesma estrutura de senti-
mentos que atravessa culturas indígenas e negras em solo da Amazônia Bra-
gantina (Williams, 1979): tanto o medo como a aceitação de uma tradição
de possessões são narrados de modo indissociado, ou seja, se por um lado, o
medo é um sinal de negação, fuga ou mesmo uma forma de demonização ou
estranhamento causada pela intolerância religiosa do catolicismo ortodoxo
na história da Amazônia, por outro, a aceitação e/ou naturalização das pos-
sessões podem ser entendidas como patrimônio imaterial de um ethos ritua-
lístico, baseado na ancestralidade e na composição imemorial de sabedorias
orais de heranças afroindígenas, que, diante do olhar exógeno (mídia, curio-
sos, transeuntes diversos) reveste-se de negação.11
As possessões atingiam meninas entre 10 e 16 anos, inicialmente no
horário escolar e depois no espaço doméstico e público. A narradora ressalta
a multiplicidade desses eventos nas circunvizinhanças, enfatizando a escola
como espaço público que agrega a maioria das crianças e adolescentes disper-
sos em dezenas de povoados e vilas no interior do município de Traquateua.

11 A ambiguidade apresentada acima é um componente específico da escrita racional acadêmica. As pes-


soas entrevistadas denotam leveza invejável no trato dessas compreensões. Pensamos a relação entre
“medo” e “aceitação” amparados no conceito de “estrutura de sentimentos”, onde identidades culturais
criam lógicas específicas ao plasmar sentimentos/sensibilidades, rejeitadas como contraditórias no dis-
curso logocêntrico (Williams, 1979, p. 130-137).
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Todavia, o imaginário desses sujeitos sociais não se curva ao argumento


do inexplicável. Homens e mulheres da floresta têm referências explicativas e
abundantes, inscritas no acervo de suas tradições orais, sabedorias populares
e relação com a natureza (Antonacci, 2001, p. 105-138). Significativo é o
relato da estudante Glória Maria:

Tem o caso de um rapaz também que quando incorporava virava o “Mão de


Gancho”. Que era lenda de um homem que foi morto e teve os pés e a mão
cortados, lá no rio Quatipuru. E como não acharam o corpo dele […] ele
sempre aparece com a mão de um gancho mesmo, aí ele possui e castiga os
outros. Porque nessa época ainda não tinha ponte e eles [pais, avós] diziam
que a ponte do rio era de madeira e a água era muito escura com galhos e
muita gente morreu lá, é o “Mão de Gancho” que leva, leva pra perto da
ponte, onde tem uma pedra, e é lá que ele vive, e o pior que debaixo dessa
pedra é fundo mesmo. […] esse rapaz quando era possuído pelo “Mão de
Gancho” andava de cabeça pra baixo, tipo plantando bananeira, o cabelo
ficava “armado” e subia nas paredes, dava muito medo. Os pastores da
Assembleia [de Deus], da Quadrangular e os padres nem encostaram nele
[risos]. Esses casos era só com o Cristiano. Na época dos meus pais, tinha
uma escola aqui que aparecia o “menino da caixa”, todos os antigos contam
isso: “Um dia, na hora do recreio apareceu em cima da caixa d’água da escola
um menino de 7 anos, bem pretinho, dançando, era de dia e todo mundo
viu! O professor subiu lá e não tinha ninguém […] nessa hora caíram bem
uns seis no chão se debatendo, todo mundo teve febre e dor de cabeça. Diz
que era gente carregada em carroça pro posto [de Saúde], parece ser uma
coisa daqui mesmo. (Glória Maria, entrevista realizada em 17/04/2011).

Estamos diante de memórias que recuperam em tradições orais entida-


des negras e europeias, acionando poderes sobrenaturais de pelo menos duas
ou três gerações. A história local contada pelos mais experientes é reintegrada
e atualizada em versões da narrativa de Glória Maria. Os enredos são entre-
laçados à memória social da cultura local e criam sentidos para vivências do
presente. A comunidade refaz a identidade memorial pretérita, e, simultanea-
mente, questiona a fragilidade da ação das igrejas locais e seus “cristianismos”.
A resistência desses sujeitos em relação ao modelo explicativo cristão
encontra ressonância justificada na crença de que possessões e transes são
explicados ora pela presença da força mágica dos rios e da ação do “Mão de
Gancho” e sua morada subaquática, na paisagem encantada da floresta, ora
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como uma herança espiritual transmitida por várias gerações. Sintomati-


camente, o espaço escolar é mencionado como um ambiente propício para
a manifestação do espírito dos mortos e entidades diversas no imaginário
ancestral dos moradores, onde netos, filhos, pais e avós testemunhavam casos
semelhantes na história familiar (Le Goff, 2003, p. 207-209).
Um relato que diversifica a tese dos contínuos transes espirituais na
população das vilas e com longa duração histórica é o depoimento de dona
Nazaré, para quem “essas presepadas são devido o afastamento de Deus e da
Igreja dos jovens, aí depois que o mal pega é que resolve voltar pra Igreja,
mas antigamente que o povo obedecia os mandamentos isso quase não tinha”
(Nazaré Mendonça Alves, entrevista realizada em 12/05/2011).
Evocamos o surpreendente depoimento de Jair Nunes, colono de 63
anos, residente no ramal que liga Vila Socorro à localidade de Tentuga, onde
vive com a esposa e seus cinco filhos. O entrevistado interpreta essas mani-
festações no seio da família como herança espiritual oriunda do panteão das
encantarias indígenas.

Aqui na minha casa tem muito disso, essa aqui é uma que de vez quando
“cai”. Ela já caiu na escola umas duas vezes [Rafaela – filha de 9 anos], mas
é assim […] é tipo uma coisa que vem da minha avó, sabe? Eu me lembro
que o meu tio Antônio subia era em pé de coqueiro de manhã e só saía na
boca da noite, passava o dia todo encantado lá em riba, era um negócio feio,
nisso eu tinha 11 anos. Olhe, eu não padeço disso não, mas minha irmã
teve que fazer conta [benzedeira] pra não ser levada por eles [encantados].
Isso de ficar agarrado em pé de pau, enfezado, aparece até em outras casas
aí na frente. Essa aí [Rafaela] fica valente mas é só na época […] Ninguém
não fala disso em casa não, a gente às vezes escuta as mulher falando que
isso é dos índios que viviam aqui da banda dos Cacicó, mas não acredito
não, tem umas fala que é só invenção. ( Jair Nunes, entrevista realizada em
28/04/2011).12

12 Nas famílias locais há relatos que mencionam que essa região do nordeste paraense foi habitada por uma
aldeia indígena chamada de tribo dos Cacicó, e que as encantarias que povoam a floresta ou o espírito
desses índios habitam a região. Essas informações não representam unanimidade, pelo contrário, a maior
parte das pessoas questionadas a esse respeito ou não têm conhecimento, ou negam veementemente tais
suposições. Por enquanto, não temos informação documental, etnográfica ou arqueológica que funda-
mente essas constatações, o que, evidentemente, não anula a forte herança cultural afroindígena dissemi-
nada em cantos e recantos do mundo amazônico. Para maiores informações, entre outros, acompanhar
leituras de Gomes (2005) e Pacheco (2009).
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O tempo das encantarias descritas por Jair emerge entrelaçado à memó-


ria familiar. Trata-se de entidades que ao se manifestarem em interações com
o mundo vegetal – árvores, matas, raízes, folhas – ameaçam as pessoas atingi-
das, levando-as para reinos e regiões subaquáticas. Esses seres, na perspectiva
de Jair, marcam a história das famílias locais, interligando as representações
identitárias com os núcleos que familiares elaboram de si. Nesses lugares,
ainda que ações incorporativas sejam corriqueiras, o silêncio parece ser pode-
roso signo de comunicação cultural, pois a narrativa é exercida longe das
crianças, no “pé de orelha” e “cochichos” no fundo do quintal. A performance
na oralidade dos moradores contrastava com as técnicas investigativas dos
jornalistas locais: a postura teatral exigida diante de câmeras e gravadores,
a relação objetiva, quase mecânica de perguntas e respostas e a exigência de
reduzir seus modos de vida a definições sintéticas são características do dis-
curso midiático. Com isso, não apreendem olhares, gestos, risos, expressões
faciais, tosses e outras formas de compartilhar experiências sociais.13
A incapacidade da Igreja Evangélica e da Igreja Católica é enunciada
sem surpresa e com desdém por Joseane e Glória Maria, que justificam a ino-
perância das lideranças religiosas sob a constatação de que são “pessoas que
não têm fé suficiente”, ou de que “esse tipo de coisa é pra quem tem uma
vida muito próxima de Deus”, questionando a autoridade de lideranças ins-
titucionais cristãs. Um reforço da fala desses sujeitos é intensificado quando
um representante da Igreja Católica realiza um “exorcismo” mal sucedido no
interior da Igreja, no final do mês de abril, provocando grande alvoroço na
Vila Socorro.

Acho que foi na semana passada, quando o diácono daqui botou todos os
que caíam dentro da igreja. Nisso, todo mundo foi embora, só ficou ele lá
dentro, trancado com umas 12 ou 13 meninas. Passou-se uma meia hora e
só ouvimos a voz dele brigando, dizendo: “Sai daqui demônio, deixa essas
inocente em paz, Satanás.” Hum! Foi só ele fechar a boca […] daqui a pouco
ouvimos foi os gritos dele e delas – pense num negócio feio – a coordena-
dora da escola entrou na igreja e o alvoroço tava armado […] tinha umas

13 Pensamos o conceito de encantaria como um conjunto de praticas mágico-religiosas que revela ritos
e transformações sob o signo geral da religião brasileira dos encantados (Prandi, 2004, p. 7-9). Maués
(1995, p. 189-201) que compreende os encantados da mata como oiaras, caruanas, que se manifestam
no trabalho dos pajés denominados de “guias” ou “cavalheiros”.
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duas que estavam era no soco com ele, chega escorria sangue na blusa e
haja gente pra segurar, se não fosse a coordenadora elas iam matar ele […]
quando a igreja foi aberta elas saíram correndo pelos ramal, tinha uma que
mergulhava nas maliça14 de peito assim, parecia que deslizava em sabão,
no meio de pedra, tronco de pau e tudo. Nesse dia parecia que tava todo
mundo doido. Diz que o diácono levou uns quatro pontos na boca e os
espíritos só foram sair pra perto de meia-noite. ( Joseane de Oliveira, entre-
vista realizada em 17/04/2011).

A fala repreensiva e demonizadora do sacerdote despertou um acesso


de fúria inimaginável na postura das crianças e jovens no interior do templo.
A violência e a fuga descontrolada fazem entrever táticas de recusa radical,
negação explícita das formas de nomeação, controle e intolerância do catoli-
cismo romanizador.
Nas incursões iniciais, esboçamos uma tentativa de compreender que
agentes históricos envolvidos em situações de conflito constituem, com base
nessas experiências, papéis sociais, principalmente ao articularem sentidos
criados tanto por pessoas de localidades limítrofes como de representantes
de poderes instituídos e meios de comunicação. A interpretação da furiosa
reação espiritual dentro da igreja narrada por Joseane – depoente evangé-
lica – acena estratégias de afirmação de sua religião e negação do catolicismo
nos jogos da memória. Nessa assertiva, podemos operar com a tese de que
a “memória é um processo individual, que ocorre no meio social dinâmico,
valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista
disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas”
(Portelli, 1997, p. 16).
Não adotamos a postura ingênua da pergunta como indicativo do
encontro com uma verdade “em-si”, mas buscamos significações culturais nos
elementos expressos em compreensões dos narradores, ou ainda, não busca-
mos um sentido lógico, mas tentamos captar quais práticas culturais permi-
tem urdir uma lógica diversa, para a qual o saber ocidental é tão estranho
(Viveiros de Castro, 1996).15

14 Arbusto dotado de espinhos, conhecido no Nordeste como “malicia”.


15 Pensamos no ato de narrar como uma forma de apontar “feixes” dinâmicos que perpassam a linguagem
da cultura (Burke, 1992, p. 327-348), dando ao narrador a oportunidade de “expressar e lidar com suas
lembranças dolorosas a até mesmo dar um novo sentido às velhas histórias” (Thomson, 1997, p. 63).
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 177

As questões apresentadas acima são enriquecidas com a chegada de Cris-


tiano na Vila Socorro. As vivências particulares desse jovem rezador, dotado
de propriedades xamânicas, e revestido de reconhecida autoridade social e
espiritual, permitiram apreender resistência e mesclas culturais da ancestrali-
dade de cosmologias afroindígenas. Igualmente a interpretação de suas expe-
riências faz visibilizar uma das surpreendentes formas de como populações
amazônicas de tradições orais recepcionaram e ressignificaram orientações
do cristianismo primitivo, catolicismo devocional e ultramontano entre os
séculos XVII e XIX, sem esquecer suas ressonâncias em tempos presentes.

A peleja: “com o Índio Flechador ninguém pode”

Durante a pesquisa de campo, conversamos com profissionais da saúde e


da educação na vila e fomos aconselhados a procurar autorização de represen-
tantes do poder municipal. Tivemos oportunidade de conversar com Wil-
son, secretário municipal de Ciência e Tecnologia em Traquateua. Fomos
acolhidos em sua residência com toda cortesia, mesmo que o entrevistado
estivesse reunido com amigos num típico almoço de sábado.
Formado em ciências da computação, Wilson demonstrou em sua fala
uma tentativa de aproximar o que chamou de “coisas sobrenaturais” das expli-
cações científicas pensadas na academia – motivações psicológicas, socioló-
gicas ou econômicas. O secretário ressaltou o esforço da Prefeitura Muni-
cipal de Traquateua em relação a esses fatos e a formação de uma comissão
composta por familiares e autoridades públicas, com objetivo de atender as
pessoas acometidas por “possessão demoníaca”.

Há duas semanas o professor Joel – diretor da Escola Odilon – fez reunião


e tirou comissão para analisar os fatos que estavam ocorrendo. Doze garo-
tas estavam acometidas pelo problema. No seu parecer todas estavam com
problemas espirituais. A comissão era composta pela direção da escola,
funcionários da saúde e educação, entidades religiosas e representantes dos
pais dos alunos. Na verdade, essas jovens estudam na Vila Socorro, mas
são das comunidades ao redor. Nessa comissão foi detectada a necessidade
de visitar as famílias e conversar com as vítimas […] e chegamos à conclu-
são que duas ou três estão realmente com problema espiritual, acometidas
por possessão demoníaca, as demais estão com problemas psicológicos, são
178 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas

envolvidas pelas outras que estão e passam, por sua vez, a ter afinidades com
as vítimas, se sensibilizando com os problemas das outras, criando vínculos
com as possuídas. O diácono da vila acha que é problema psicológico, mas
assim, ele também acredita que tem duas ou três que também são possuí-
das. […] nós fomos visitar no km 15 uma das garotas [ Jéssica] que é a que tá
com problema maior, ela chegou a surrar dez homens. (Wilson, entrevista
realizada em 06/05/2011).16

O estilo de narrar de Wilson expressa a ambiguidade de uma identidade


que busca conciliar a lógica racional com a dinâmica das tradições religio-
sas. Para ele a possessão existe, mas nem todas as crianças que desmaiam têm
convulsões e ímpetos de violência, as manifestações espirituais ocorrem em
sujeitos e tempos específicos. O fato de existirem laços de amizade entre as
crianças, de dividirem espaços, angústias e perpetuarem vínculos de solidarie-
dade faz com que, emocionalmente, comunguem com a vitimização de seus
iguais. Por conseguinte, o discurso demonizador ainda prevalece como um
fundamento inquestionável – pano de fundo – energia motriz, que aciona o
medo na comunidade e explica a natureza das possessões.17
A demonização através do medo tem apenas força de nomeação, ou
seja, quando esses sujeitos mencionam Lúcifer, Diabo e Demônio, os substi-
tuem fartamente por espíritos, desencarnados ou mortos. Isso nos faz pensar
que, ao designarem essas entidades nesses termos, estão apenas ressaltando o
aspecto negativo das experiências testemunhadas por populações formadas
em outros circuitos de crenças e relações com a natureza (Delumeau, 1989,
p. 84-96; Muchembled, 2001, p. 17-49; Souza, 1993, p. 177). Vejamos como
o narrador sobrepõe essas interpretações:

[…] Nessas vilas isso é de muito tempo […] lá naquela região é acometida
por bastantes situações trágicas, acidentes, violência, tem um cidadão aqui
que o pai dele chegou a matar com 14 facadas – ele é pernambucano e o pai
é cearense – um cidadão chamado de Chiquinho, que é o espírito principal
que aterroriza toda a população, e ele disse que só vai ser liberto quando

16 A garota em questão tem 12 anos e vamos chamá-la de Jéssica, pois teremos oportunidade de conversar
com ela na visitação escolar registrada a seguir.
17 Interessante lembrarmos o drama vivido pelo moleiro mediterrâneo diante da inquisição e do embate
entre lógicas culturais sobrepostas, registrado magnificamente na caligrafia de O queijo e os vermes (Gin-
zburg, 2006).
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 179

desenterrarem uma faca que tá enterrada lá perto da Vila Socorro […] é o


espírito que mais incorpora lá. Já fizeram vários grupos de busca para achar
essa bendita faca, mas não acham nada, parece uma coisa. Ali, facadas, “ter-
çadadas” e acidente de briga de família são muito comuns. (Wilson, entre-
vista realizada em 06/05/2011).

Temos um imaginário que reforça a memória de pessoas que faleceram


em circunstâncias trágicas, inesperadas ou violentas. Nessas narrativas, os
espíritos das pessoas mortas exigem a realização de um pedido para que a
comunidade volte a viver em paz. Existe uma “missão”, uma dívida das pes-
soas vivas para com essas entidades em sua errância, na tentativa dos mora-
dores de desencravarem o facão do tronco submerso do Igarapé, ou ainda, de
pessoas vítimas de trânsito que mandam mensagens aos familiares.18
Ao mesmo tempo em que os narradores interpretam esses aconteci-
mentos como uma manifestação demoníaca, uma maldição que caracteriza
quem vive na região, também vivenciam essas experiências como uma voca-
ção dada por Deus para libertar os espíritos que “estão presos nesse mundo”,
conforme assinalou Wilson. No decorrer da análise das narrativas coletadas
vemos emergir, na articulação de sabedorias orais, uma adequação as súbi-
tas incorporações das crianças e jovens com a elaboração de uma identidade
social capaz de fazer confluir ramais, vilas e povoados em crenças e histórias
cuja simbiose tanto reedita velhos preconceitos contra formas de manifesta-
ções espirituais populares quanto renova tradições de religiões não canônicas
praticadas por populações amazônicas.

Elas estavam com problemas na escola e em casa, e no dia 28 de abril, o


diácono Antônio Moura, auxiliar do padre Maurício, pároco de Traqua-
teua, fez uma reunião com as 12 jovens na Igreja, e nesse dia elas tiveram
uma manifestação sobrenatural muito forte. Quebraram imagens, carteiras
nas costas do diácono, e ele foi obrigado a usar da força física para não ser
mutilado. Também levei um jovem tido como rezador e exorcista, que é o
Cristiano, na região entre Castanhal e Vizeu ele é o único exorcista que a

18 Estamos conectados às compreensões de Eliade a respeito do imaginário aquático: “Tanto no plano


cosmológico como no plano antropológico, a imersão nas águas não é uma extinção definitiva, mas a
reintegração passageira do indistinto, seguida de uma nova criação, de uma nova vida ou de um novo
homem, segundo se trate de um momento cósmico, biológico ou soteriológico” (Eliade, 1991, p. 152;
Figueiredo, 2008; Galvão, 1975).
180 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas

gente tem conhecimento que resolve as situações, reza em criança, adulto e


não cobra nada, todo mundo aqui já viu o que ele fez. (Wilson, entrevista
realizada em 06/05/2011).

Desde as primeiras investidas no local de pesquisa, ouvimos falar do reza-


dor exorcista Cristiano e de sua capacidade de sempre “resolver os problemas de
espírito em toda essa região”. No início de maio, conseguimos autorização para
acompanhar a comitiva responsável pelo “apaziguamento espiritual” na escola
e nas vilas. Caminhamos ao local e, quando iniciávamos uma entrevista com
o jovem rezador, fomos comunicados pela direção que a adolescente Jéssica
estava passando mal na sala da direção. O calor e o tumulto na Escola Odilon
Holanda era insuportavelmente reforçado por dezenas de alunos e curiosos
que se espremiam no interior do recinto para ver de perto o acontecimento.
Na sala da direção, estava o diretor, a coordenadora e uma responsável
por Jéssica, a qual se encontrava no centro da sala, sentada com a cabeça baixa
e as mãos para trás. Cristiano, um jovem de 23 anos, magro, com aproximada-
mente 1,75 de altura e fortes traços afroindígenas, ao entrar na escola baixou
a cabeça e começou a falar em tom de sussurro, com expressão facial tensa.
Ao se aproximar de Jéssica, pediu que a deixassem relaxada e não fizessem
barulho. Ouçamos passagens dessa “cura espiritual”:

Hum […] olha, isso que tá acontecendo contigo, tu pensa que é bom, mas
não é não! Eles tão assim […] mas depois vão te pedir coisa ruim pra ti fazer.
Eu sei que tu pergunta como eu sei disso, né? Mas eu sei porque era assim
também, esse que tá aí contigo não [é] do bem não. Mas agora ele vai apare-
cer e vai embora porque eu vou mandar embora em nome de Jesus! Eu disse
EM NOME DE JESUS, TÁ OUVINDO SATANÁS?! Agora, tu diz que
bate em todo mundo, pois eu te desafio a bater em mim – BATE, PODE
BATER! EU TÔ MANDANDO! Tu não bate em mim porque eu estou
com sete anjos com espada de fogo aqui e com o Caboclo Flechador [risos],
e com esse ninguém pode! […] Agora pega a Bíblia aqui, pega põe no peito
e reza comigo o Pai Nosso, depois dessa reza tu vai ficar boa, mas depois, se
tu ficar triste de novo ele volta, então […] a senhora é a tia? Parente? Pois é,
leve ela na missa todo dia até ela dormir direito, enquanto ela tiver vendo
vulto nas paredes e não dormir bem, continue tudo. Ponha uma Bíblia
debaixo da cabeça de noite […] é só isso. (Cristiano, depoimento colhido
em 12/05/2011).
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 181

Cristiano não estabeleceu contato físico com Jéssica, manteve-se sen-


tado de frente para ela com olhar altivo e com tom de voz elevado, a garota
não manifestou movimentos bruscos, entretanto, olhava firmemente todos
na sala, suas expressões faciais oscilavam entre um leve riso cínico, choro
compulsivo e vermelhidão nos olhos na iminência de ato violento. A jovem,
não respondia às investidas do rezador, limitava-se a acenar com a cabeça,
apenas a voz de Cristiano ecoava no ambiente escolar. O rezador menciona a
presença de seres espirituais, olhando para os lados, como se não estivesse em
uma sala com pessoas, mas sim conversando com as entidades.
Aspecto importante é a preocupação com a vida espiritual de Jéssica,
após o afastamento do espírito. Sua orientação insiste no acompanhamento
familiar, na boa alimentação e na ida à Igreja. O Caboclo Flechador é apre-
sentado como um guia espiritual fortíssimo capaz de transitar com auxílio
dos sete anjos que fazem a sua guarda. Essa entidade, veremos, aparece entre-
laçada ao poder de Jesus Cristo. A ida à Igreja é uma forma de manter a “cura
espiritual”; o poder da libertação, no entanto, é reivindicado junto aos encan-
tados, denotando, dessa forma, níveis de autoridades espirituais.19
Enquanto Cristiano conversava com a responsável de Jéssica na escola,
muitas pessoas chegaram desesperadas afirmando que “eles [os espíritos]
estavam se atuando dentro das casas”. A partir desse instante, acompanhamos
o jovem rezador num percurso a três locais diferentes: duas crianças de 8 e
9 anos foram rezadas dentro do ônibus escolar, onde ameaçavam entrar no
[corpo] do motorista para “virar o ônibus”; uma adolescente de 14 anos se
debatia na calçada ao lado da Igreja, e, amparada pelas colegas, dizia estar
sendo possuída pelo falecido Chiquinho; e, posteriormente, outra adoles-
cente de 14 anos “incorporou” dentro de sua residência, exigindo um longo
período de reza e “pendenga” entre a entidade e o rezador. Observemos
alguns aspectos do discurso do xamã neste último caso:20

19 Em uma definição parcial, o Caboclo Flechador é uma entidade com linha específica nas encantarias
da pajelança rural (Maués, 1995), que vive no reino da mata nas raízes do “Tabocal – Bambu Ama-
relo, grande touceira de bambu, morada do Caboclo Fleixeiro Gentil de Arruda […] e outras categorias
de caboclos, como ‘Seu’ Boiadeiro, Zé Baiano, Chapéu de Couro, Corre-Campo, e ‘Mestre’ Gêrerê”
(Figueiredo, 1979, p. 71), acrescentamos a estes o Caboclo D’Água, registrado no clássico de Cascudo
(1954, p. 325-327).
20 Interpretamos “pendenga” como sinônimo de luta, combate e rixa, na forma como são evocados por
Cristiano.
182 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas

Por que tu não olha pra mim, por quê? Viu coisa mais forte? Tá mais
pesado do meu lado? Como é o teu nome? De onde tu vem? Por que tu
deixa tuas colegas se aproximar de ti e eu não? […] vamos conversar nós
dois, tu vai me agredir e eu vou te consolar. Olha dentro do meu olho – tem
medo? Tu quer ficar boa… Não? Todo mundo quer ter vida normal […] eu
quero lutar pela vida! Me diz, quem é tu que perturba essa jovem? Assim a
gente pode te ajudar, o que é? Tá com dor de cabeça? […] tá com vontade
de voar em mim pra me dá-lhe, né? Vem! Se aproxima de mim! – não, não,
pode soltar ela, tá amarrada pelo guia – vem, eu quero ver se tu pode, VEM
SATANÁS! BATE! EU QUERO QUE TU BATA NO ROSTO AQUI!
BEM AQUI! [o rezador bate no peito e no próprio rosto em tom autori-
tário] tu quer me esganar, me azunhar [arranhar], né? Mas o Senhor é meu
pastor, o braço dele é meu escudo! Eu tô aqui no teu nome, Senhor Deus:
vem um pastor que é preparado e tu quer dá-lhe, vem um diácono servo de
Deus, tu vem e dá-lhe e eu […] um simples pecador, um homem qualquer,
por que o inimigo não quer me dá-lhe? O quê? Tu vai matar ela? [risos] vai
nada! […] espera […] olha a janela! Pulou, fugiu […] Calma, não deixa ela
se bater não, a onda dele [inimigo] é machucar o corpo dela. (Cristiano,
depoimento colhido em 12/05/2011).

O rezador discursou para a comunidade e, ao mesmo tempo, se dirigiu


à Madalena.21 Notamos que diversas vezes as pessoas estavam atentas mais à
mensagem do exorcista do que ao ritual de libertação em si. A comunidade
endossou a autoridade espiritual, de modo que ele circulou livremente pelas
casas sem qualquer formalidade, constrangimento ou cerimônia. O desafio
público à entidade que possuiu o corpo, a coragem e a proximidade com que
enfrentou o “encosto” impressionou crentes e curiosos. Madalena estava na
sala, sentada no sofá enquanto sua mãe lia algumas passagens bíblicas. O
rezador se aproximou bastante e desafiou o espírito a espancá-lo, a adoles-
cente ficou de pé com as mãos para trás, como se estivessem atadas, e apenas
emitia grunhidos com o rosto quase que colado na face do guia espiritual.
A autoridade do narrador é afirmada em oposição aos líderes das religi-
ões institucionais na vila. Pastores evangélicos e diáconos católicos, mesmo

21 Madalena é um nome fictício. A ética e o bom senso na metodologia da história oral exigem que pre-
servemos a identidade de sujeitos sociais e relatos que não tivemos autorização e acesso na pesquisa de
campo (Maués, 2008; Portelli, 1997, p. 22).
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 183

sendo “homens santos e abençoados”, não tinham o poder de Deus para liber-
tar os enfermos espirituais que ali se apresentavam.
O exorcismo é interrompido quando Madalena fica de pé no sofá,
esgueira-se pelas paredes e salta de costas para a janela, e desta para o quintal
ao lado e adentra no matagal. A forma rápida e súbita do movimento corpó-
reo da adolescente, além de ser vista como um sinal de possessão é interpre-
tado pelas testemunhas como poder do rezador. A esse respeito revelou dona
Antônia Almeida: “O inimigo foge quando vê a presença de Deus.”
Durante quase três horas, acompanhamos Cristiano transitando de um
lado para o outro da vila. Nesse território, enquanto uma dezena de pessoas o
seguia, outros o observavam com um terço no pescoço sentado na frente de
suas casas. Impossível não retermos na memória alguns aspectos dessa esté-
tica visual de um cotidiano em ebulição.
Primeiro, a forma como as crianças acompanhavam tudo, sem restrição
alguma a respeito das vítimas (assuntos sobre problemas familiares, postura
sexual, opinião de pais, vizinhos), vivenciando a experiência de êxtase umas
das outras. Segundo, a maneira como a comunidade estava magnetizada
pelo medo e fascinada pelo aparente excêntrico evento. Nesse palco, algu-
mas mulheres e crianças choravam continuamente, havia um clima de insta-
bilidade emocional intenso. E terceiro, o cenário turbulento se contrapõe à
calma do entrevistado. De andar lento e cadenciado, circulava na vila inteira
com a cabeça erguida, pronunciando palavras inaudíveis e sempre com a mão
direita passando-a na cabeça e no queixo, algo constante e involuntário.
De hábitos simples, após o término das rezas, Cristiano sentou na cal-
çada e pediu um copo de água para uma senhora, que lhe ofereceu pão e suco.
Enquanto se alimentava aproveitamos para nos aproximar e acabamos por
ouvir como as encantarias emergem em profusão com os componentes do
cristianismo não ortodoxo, em que uma das matrizes é afroindígena:

Tá vendo professor? Tá vendo o inimigo? Vou te dizer uma coisa, vou te


dizer uma verdade: Deus sabe o que faz e o povo não sabe o que fala. Eu
já passei por isso, mas não assim, mas d’outro jeito […] isso é uma coisa
que não tem explicação, se eu disser o que é que estou vendo, vão dizer
que tô em outro mundo. Aqui, duas são espírito mesmo, mas as outras são
“encosto”, parece quando uma pessoa pega um choque na tomada e passa
pras outra que pega nesse pessoa, né? É mais um negócio da cabeça dela
mesmo, isso tem que falar com a família […] olhe o guia que me segue é
184 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas

o Caboclo Flechador, tem outros, mas ele é que comanda os anjos tudo.
Eu passava era de dia no meio das brenhas, surrado por ele, só depois que
aprendi é que fui rezar e expulsar as força do inimigo, esse meu guia é o
mais poderoso, com ele ninguém pode. O senhor viu aquela menina que-
rendo me bater? Ela tava amarrada pelos anjos e pelas cordas do guia […]
Deus me deu isso foi pra fazer o bem. (Cristiano, depoimento colhido em
12/05/2011).

A oposição entre bem e mal, o papel dos anjos como guardiões, prote-
tores e mensageiros espirituais e a evocação de Deus como o nome que tem
autoridade suprema sobre os demônios e espíritos são referências culturais
de um cristianismo primitivo migrante e em reatualização que, nas palavras
do narrador é reforçado pela ação do Caboclo Flechador, pai da corrente dos
encantados com a qual Cristiano trabalha.
As representações religiosas do rezador são entrelaçadas a uma forte sen-
sibilidade frente ao sofrimento das crianças em questão. O ato de comparti-
lhar as experiências dolorosas no corpo e na voz, bem como a percepção de
que a maioria daqueles agentes cujos corpos tornam-se aparelhos de incorpo-
ração, apontam identidades mobilizadas pela energia espiritual do transe de
duas ou três e a afirmação de que “é mais um negócio da cabeça dela”. Tal afir-
mativa ainda denota um senso de incompreensão dos processos psicológicos
e espirituais pelos quais atravessam aquelas crianças e adolescentes.
A história da iniciação xamânica de Cristiano é detalhada na fala de
dona Joana, mãe do rezador, sempre presente em suas idas e “missões” espi-
rituais. Em meio ao movimento de pessoas e ações do rezador, permitiu-nos
“um dedo de prosa” sobre a temática em tela:

[…] Desde 18 anos – ele tá com 23 anos –, mas ele carrega isso desde
criança, ele fazia “arte” desde criança nos 10 anos, mas eu não acreditava
nisso. Ele via era muito, tinha um quadro de São Jorge guerreiro na minha
casa e ele ficava horas e horas olhando para aquele quadro assim, ele dizia:
“Mãe eu sinto que alguém me puxa pra perto desse quadro.” Ele ia pro iga-
rapé, ele chegava chorando, que eles [encantados] tinham levado a sandália
dele. Aí ele fazia as coisas, né? E eu batia nele, mas aí ele caiu doente, e ele
dizia: “Mãe eu tenho que ajudar alguém, mas eu não sei como.” Aí ele caía
no quintal e eu chorava em cima dele, aí ele [Cristiano] falou com uma
voz diferente [do encantado]: “Não chora que eu não vou matar ele […]
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 185

na hora certa vão saber o meu nome.” Aí por diante ele caía quase todo
dia, e ele acordava de noite e enchia de vela dentro de casa até de manhã,
passava de dia sem dormir. Eu sofri muito como mãe, o pai já era falecido
[…] aí quando foi um dia foi uma voz nele: “Eu sou guia, sou o Caboclo
Índio Guerreiro Flechador, o seu filho vai ter que trabalhar, tu vai procurar
alguém pra preparar o teu filho.” E Cristiano não queria, mas as coisas bai-
xavam nele e jogava ele nos buraco na mata, debaixo dos troncos de árvore
que ficava lá prostrado. Aí quando foi um dia, uma irmã da Assembleia de
Deus, uma evangélica preparou ele, era a finada Paulina. Ela disse: “Meu
filho você é igual a mim, eu vou partir desse mundo e quando eu for você
vai sentir, e aí os meus guias vão ir pra ti.” Quando a mulher morreu com 95
anos, ele acordou de noite e disse: “Mãe, acorda, se arruma que a dona Pau-
lina morreu”, e daí é que foi mesmo. Eu lhe digo, eu como mãe não gosto,
fico me tremendo quando ele vem pra essas peleja. A esposa dele me manda
vim pra reparar ele, porque ele faz e diz as coisas e depois não lembra. O
senhor pensa? Depois vou ter que contar tudinho pra ele o que fez aqui,
ainda agora ele disse: “Mãe eu tô aqui, mas não tô pisando no chão, pra
mim, eu tô é voando.” Pra ele, ele tá é flutuando, né? Agora tem uma coisa
[…] Ele não recebe no corpo mais não, a finada Paulina ensinou pra ele não
cair no chão, ela passou o fio pra ele [corda com nós que Cristiano diz ter
em casa e usa na cintura], agora ele só conversa, assim como nós estamos
falando aqui. Ele reza pra criança, peito aberto, espinhela caída, cura de
doença ruim, passa remédio de planta, trabalho de malvadeza, tudo isso
ele desfaz. Já veio gente de todas essas bandas, até do Maranhão […] meu
filho nunca cobrou nada de ninguém, lá na vila [Fátima] ele é ajudante de
pedreiro e roçador, vive com a mulher e os filhos, mas não explora nin-
guém, se dão agrado ele recebe só isso. Aqui! Depois disso ele vai passar
dois dias na cama tomando caribé e leite quente, porque isso mexe com a
cabeça das pessoas, né? (Dona Joana, entrevista realizada em 12/05/2011).

A identidade cultural do rezador-exorcista é tecida no imaginário


materno, através do sofrimento que o acompanhou desde a infância; pri-
meiro pelo chamamento xamânico através da imagem de São Jorge, oriunda
do catolicismo devocional; segundo, através da violenta ação dos “guias” no
corpo e alma do “escolhido” – reino dos encantados; e, terceiro, e não menos
importante, o papel da poderosa rezadora evangélica, dona Paulina, que
expõe representações de Jesus Cristo como entidade motriz da identidade
186 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas

assembleiana (evangélica), tanto no controle das possessões como na relação


mediúnica junto ao Caboclo Flechador.22
Somamos a esses elementos a relação umbilical entre mãe e filho, iden-
tidades plasmadas e mediadas em torno de sentimentos relativos à proteção,
ao cuidado, ao medo e à preparação (Tronca, 2004). Dona Joana se intitula o
sujeito narrador, voz e percepção de Cristiano, ou ainda, a fala que testifica o
seu exercício espiritual na cena do transe.
As características da experiência espiritual de Cristiano sedimentam um
processo de construção de uma identidade multifacetada no diálogo com os
territórios religiosos das cosmologias amazônicas.

Saídas: “por outros ramais”

Durante os dias subsequentes, seguindo as visitações de Cristiano no


interior das vilas, povoados e ramais de difícil acesso, buscamos contato com
as famílias das crianças que passaram pela experiência das possessões e fica-
mos impressionados ao constatar como a dita sociedade civil e os poderes
públicos ignoram as necessidades mais básicas da existência desses agentes
sociais: ausência de eletricidade, atendimento médico-hospitalar precário e
difícil acesso às escolas são problemas que denunciam as condições de vulne-
rabilidade a que estão submetidas aquelas populações.
Nas visitas do rezador, os momentos de reza e aconselhamento são
intercalados com perguntas de caráter socioeconômico: “vocês já comeram
hoje, já?”, “quando chove aqui, vaza muito?”, “ela já sabe ler direitinho, né?”.
Tanto Cristiano quanto as pessoas entrevistadas denotam compreensão de
que os “problemas” que acometiam crianças e adolescentes estavam asso-
ciados ao conjunto da vida social, e não apenas à esfera espiritual, demons-
trando como populações da floresta explicam, a partir de suas cosmologias, a

22 Além da capacidade de controlar a possessão e interpretar sinais, esses sujeitos podem realizar a saída
espiritual do corpo a outros mundos: a viagem xamânica é a capacidade de viajar ao céu ou de descer ao
inferno, bem como travar lutas com espíritos, enfrentar outros xamãs, buscar ajuda, proteção e objetos
nesses espaços espirituais ( Cavalcante, 2008; Eliade, 1960, p. 113-116; Maués, 1990; Trindade, 2007).
Na definição de Cascudo (1972, p. 472), “São Jorge é invocado como defensor das almas contra o demô-
nio, tentações, suspeita de feitiço, rivalizando, dentro de certa medida, com o poderoso São Miguel. Nos
Candomblés da Bahia identificam-no com Oxóssi, e Odé, e nas Umbandas do Rio de Janeiro, Recife e
Porto Alegre com Ogum.”
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 187

indissociabilidade entre campos que foram fatiados por determinada prerro-


gativa epistemológica.
O exercício do narrar traduz não apenas uma forma de comunicação,
mas a principal mediação para se penetrar em camadas das estruturas de sen-
timento e pertencimento histórico e cultural dessas populações que, esque-
cidas por poderes públicos, contudo capazes de lutar contra as adversidades
da vida, continuam desfazendo mitos e preconceitos, por meio de um modo
próprio de dialogar e entender o natural, o humano e o sobrenatural.
Segundo informação dada por moradores locais, entre junho a setem-
bro, o número de casos vem diminuindo consideravelmente nessas comuni-
dades. A imprensa local sustenta a hipótese de que a diminuição desses acon-
tecimentos deve-se a “realização de gincanas, palestras, festinhas estudantis,
concurso de redação, programações em datas comemorativas como o dia das
mães com o objetivo de trabalhar a mente dos alunos para que os mesmos
possam afastar os maus pensamentos” (Correio de Capanema, 2011, p. 3).
A velocidade com que a imprensa local divulga e pretende “solucionar”
determinados eventos culturais não deve apressar a reflexão acadêmica e o
andamento da pesquisa de campo. As formas de espiritualidade ali emergen-
tes e latentes dialogam com as identidades dos moradores, as quais se refazem
nos caminhos e atalhos da história cultural amazônica: os seres da floresta,
os mortos e seres malignos assumem, no imaginário local, a função de punir,
advertir, amedrontar e instruir os vivos, tornando-se, eles mesmos, força
vivificadora e energia condutora da presença humana em solo amazônico
(Ginzburg, 2009, p. 77).
As perdas (mortes, traumas, violências, carência econômica, discrimi-
nação social e política) são reinventadas e transportadas para suprir lacunas
e criar sentidos num tempo em que o direito de viver, dizer não a reedições
de epistemicídios, ultrapassar o conformista discurso do multiculturalismo
guetizador, tornaram-se ações arriscadas e perigosas. Para além das relações
ambíguas entre deuses, forças do mal, homens, mortos e encantados, acima
de qualquer pretensão de ter “encontrado” uma verdade, esse exercício de
escrita é, acima de qualquer hipótese, o testemunho de que “compartilhar
memórias pode significar reavivar sonhos e esperanças”, uma forma de “pros-
seguir sem deixarem-se perder pelo desespero ou mesmo mortes antecipadas”
(Antonacci, 2006, p. 21).
Cristiano acredita que o compromisso espiritual com as pessoas da Vila
Socorro e demais localidades não constitui uma escolha, e sim um destino,
188 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas

uma sina. Por outro lado, o jovem exorcista atribui ao Caboclo Flechador a
força que legitimou sua autoridade junto aos encantados e seres incorpóreos.
A forma como transitou nas casas, atravessou quintais e espaço escolar
fez do Caboclo Flechador um encantado do ar, que sob a companhia dos anjos
paira entre o céu e a terra, como um guardião, um mediador, um tradutor da
cosmologia local. Nesses quadros, esse líder da corrente desvela uma identi-
dade desterritorializada, que acaba por borrar generalizações e homogeneida-
des de compreensões que desejam continuar interpretando a tradicional paje-
lança cabocla amazônica como territorializada apenas nas águas (Silva, 2011).
Cristiano é um rezador que dificilmente recebe pessoas em casa, sua
forma de atuação consiste nos deslocamentos, no ritual do preparo e na
expectativa daqueles que recorrem a seus poderes mágico-terapêuticos. Cada
investida realizada nas comunidades é uma aventura, uma saga, que, preser-
vada pela força da memória e corporificada pela argamassa de sabedorias
orais, o transformam não em mais um estudo de caso, nem tampouco no
“maior rezador-exorcista entre Vizeu e Castanhal”, de acordo com compre-
ensões de Wilson, mas em um representante de vozes e experiências de tradi-
ções afroindígenas que, mesmo vivendo interdições dos poderes constituídos
no passado e no presente, renovou-se nas táticas do cotidiano, fazendo do
campo das encantarias a última fronteira onde o saber científico, urbanocên-
trico, letrado e midiático deixa ver suas fragilidades e incompreensões.

Fontes orais
Cláudia França, 17 anos, estudante, moradora da Vila Manoel dos Santos – igualmente
vinculada ao município de Traquateua. Entrevistada em 03/04/2011.

Joseane de Oliveira, 18 anos, moradora da Vila Fátima, localizada a 12 km da Vila Socorro,


evangélica e descendente de cearenses. Entrevistada em 17/04/2011. Alguns fatos e pessoas
foram omitidos a seu pedido.

Glória Maria, 20 anos, moradora da Vila Fátima, católica e descendente de piauienses.


Entrevistada em 17/04/2011.

Nazaré Mendonça Alves, 58 anos, moradora da Vila Socorro, católica. Entrevistada em


12/05/2011.

Jair Nunes, 63 anos, colono, residente no ramal que liga Vila Socorro e Tentuga onde vive
com esposa e seus cinco filhos, descendente de maranhenses e paraenses. Notamos que em
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 189

quase três horas de informação, o entrevistado revelou que conhecia não apenas as histórias
e tradições familiares, mas também tinha fascínio por relatos religiosos, como histórias de
santos, aparições, encantos diversos. Entrevistado em 28/04/2011.

Wilson, secretário municipal de Ciência e Tecnologia de Traquateua. Entrevistado em


06/05/2011.

Cristiano, 23 anos, rezador exorcista. Depoimento colhido em 12/05/2011.

Antônia Almeida, 40 anos, moradora local. Depoimento colhido em 12/05/2011.

Joana, viúva e mãe/responsável/acompanhante do rezador exorcista Cristiano em suas


incursões e pelejas espirituais nesses povoados amazônicos, é natural da Vila Fátima. O
“dedo de prosa” foi realizado na Vila Socorro, em 12/05/2011.

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Resumo: Neste ensaio, seguindo rastros da metodologia da história oral, através de entrevistas
com diferentes moradores, e mapeando discursos midiáticos, discutiremos sentidos de
possessões indígenas e africanas em populações que habitam a Amazônia Bragantina. A base
teórica parte dos estudos culturais e pós-coloniais, alcançando a antropologia das religiões para
acompanhar possessões coletivas em crianças e adolescentes do sexo feminino na Vila Socorro
(km 14), no município de Traquateua (PA). Completamos o enredo do texto, apresentando o
jovem xamã Cristiano que, ao operar com poderes do Caboclo Flechador, frente a entidades
incorpóreas, mortos-vivos e demônios, desvela sentidos e memórias que povoam corpos e dons
espirituais emergentes no seio das populações locais. A interpretação aponta que a avaliação
apressada dos acontecimentos como “fenômenos sobrenaturais” pelos meios de comunicação
silencia tradições de culturas afroindígenas neste portal da Amazônia brasileira.

Palavras-chave: oralidade, possessões, cultura afroindígena, Amazônia Bragantina.

Oralities in times of possessions afroindígenas

Abstract: In this essay, following the traces of Oral History Methodology, through
interviews with residents, and mapping different media discourses, we discuss the meanings of
indigenous and African possessions among populations that inhabit the Bragantine Amazon.
The theoretical approach starts from the Cultural and Post-Colonial Studies, reaching the
Anthropology of Religions to accompany collective possessions in children and female
adolescents at Socorro village (Km 14), in the municipality of Traquateua. We complete the
plot of the text introducing the young shaman Cristiano, who, to operate with powers from
Caboclo Flechador, facing intangible entities, undead and demons, unveils senses and memories
that inhabit bodies and spiritual gifts emerging within local populations. The interpretation
indicates that a hasty assessment of events, such as “supernatural phenomena” by the media,
silents traditions of afro indigenous cultures at this portal of the Brazilian Amazon area.

Keywords: orality, possessions, afro indigenous cultures, Bragantine Amazon.

Recebido em 10/09/2012
Aprovado em 24/11/2012

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