Oralidades em Tempos de Possessões
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2 Na compreensão de Pacheco (2006, p. 24), “cidade-floresta remete a pensar noções de uma urbanidade
singular que se elabora pelos saberes, linguagens e experiências sociais de populações formadas dentro
de uma outra lógica de cidade, onde antigos caminhos de roças cedem lugar à construção de ruas de chão
batido, depois asfaltadas, assim como a permanência de práticas de viveres ribeirinhos nesses novos espa-
ços de moradia”. Ainda sobre interconexões das experiências de vida do campo na cidade e vice-versa,
ver: (Williams, 1989, p. 269-313).
3 Quando falamos em possessão, atuação, incorporação, demonização e outros termos alternadamente,
consideramos a designação dos narradores. Quanto a possessão descontrolada, quedas, ataques, estado
de inércia, sinalizam sintomas da experiência iniciática xamânica. No entanto, a identidade dos xamãs
deve ser constituída na capacidade de controlar as entidades, espíritos que possuem o corpo do “esco-
lhido” (Lewis, 1977). Omitimos o depoimento da direção, técnicos e professores neste ensaio, pois tal
abordagem implicaria a construção de um texto mais denso e volumoso.
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4 Funcionário da TV Amazônia, atualmente exerce a função de repórter investigativo, voltado para temas
associados à violência ou acontecimentos de forte apelo emocional. Agradecemos a esse repórter pelas
informações fornecidas.
5 Falamos em “experiência” inspirados no entendimento de Edward. P. Thompson (1981, p. 182), onde
sujeitos históricos “experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades
e interesses e antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura”.
170 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas
“Vila(s) em transe”
Ouvi falar disso, de ver, era quando tava cursando o ensino médio. Saí-
mos da sala na hora do intervalo e fomos para a praça, depois vimos um
tumulto, quando chegamos lá estava uma menina da 7ª série e a prima dela,
que chegou perto, ele passou pra ela também […] elas estava possessa, né?
Daí foi aquele medo, ninguém ficava lá. Mas depois outras pessoas foram
“caindo”, não sei se virou moda [risos], mas daí dava na comunidade do
Cajueiro, Vila Fátima, Alves de Moura, Estirão e Anoerá dos Gamas. No
ônibus mesmo, na volta da escola era todo dia, a gente que segurava eles
pra não se machucarem. Mas sempre começa na escola, depois passa pra
rua. Mas a gente vê que é coisa do outro mundo, elas ficam com a feição
completamente mudada é como se tivesse com muito ódio […] é outra pes-
soa. Teve um caso no balneário, as pessoas pulavam da ponte, quando essa
pulou, começou a se entortar todinha, eu estava lá. Aí ela caiu na água e o
pessoal perceberam e tiraram ela de lá. Se a gente for falar mesmo, sempre
foi assim. ( Joseane de Oliveira, entrevista realizada em 17/04/2011).
Aqui na minha casa tem muito disso, essa aqui é uma que de vez quando
“cai”. Ela já caiu na escola umas duas vezes [Rafaela – filha de 9 anos], mas
é assim […] é tipo uma coisa que vem da minha avó, sabe? Eu me lembro
que o meu tio Antônio subia era em pé de coqueiro de manhã e só saía na
boca da noite, passava o dia todo encantado lá em riba, era um negócio feio,
nisso eu tinha 11 anos. Olhe, eu não padeço disso não, mas minha irmã
teve que fazer conta [benzedeira] pra não ser levada por eles [encantados].
Isso de ficar agarrado em pé de pau, enfezado, aparece até em outras casas
aí na frente. Essa aí [Rafaela] fica valente mas é só na época […] Ninguém
não fala disso em casa não, a gente às vezes escuta as mulher falando que
isso é dos índios que viviam aqui da banda dos Cacicó, mas não acredito
não, tem umas fala que é só invenção. ( Jair Nunes, entrevista realizada em
28/04/2011).12
12 Nas famílias locais há relatos que mencionam que essa região do nordeste paraense foi habitada por uma
aldeia indígena chamada de tribo dos Cacicó, e que as encantarias que povoam a floresta ou o espírito
desses índios habitam a região. Essas informações não representam unanimidade, pelo contrário, a maior
parte das pessoas questionadas a esse respeito ou não têm conhecimento, ou negam veementemente tais
suposições. Por enquanto, não temos informação documental, etnográfica ou arqueológica que funda-
mente essas constatações, o que, evidentemente, não anula a forte herança cultural afroindígena dissemi-
nada em cantos e recantos do mundo amazônico. Para maiores informações, entre outros, acompanhar
leituras de Gomes (2005) e Pacheco (2009).
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Acho que foi na semana passada, quando o diácono daqui botou todos os
que caíam dentro da igreja. Nisso, todo mundo foi embora, só ficou ele lá
dentro, trancado com umas 12 ou 13 meninas. Passou-se uma meia hora e
só ouvimos a voz dele brigando, dizendo: “Sai daqui demônio, deixa essas
inocente em paz, Satanás.” Hum! Foi só ele fechar a boca […] daqui a pouco
ouvimos foi os gritos dele e delas – pense num negócio feio – a coordena-
dora da escola entrou na igreja e o alvoroço tava armado […] tinha umas
13 Pensamos o conceito de encantaria como um conjunto de praticas mágico-religiosas que revela ritos
e transformações sob o signo geral da religião brasileira dos encantados (Prandi, 2004, p. 7-9). Maués
(1995, p. 189-201) que compreende os encantados da mata como oiaras, caruanas, que se manifestam
no trabalho dos pajés denominados de “guias” ou “cavalheiros”.
176 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas
duas que estavam era no soco com ele, chega escorria sangue na blusa e
haja gente pra segurar, se não fosse a coordenadora elas iam matar ele […]
quando a igreja foi aberta elas saíram correndo pelos ramal, tinha uma que
mergulhava nas maliça14 de peito assim, parecia que deslizava em sabão,
no meio de pedra, tronco de pau e tudo. Nesse dia parecia que tava todo
mundo doido. Diz que o diácono levou uns quatro pontos na boca e os
espíritos só foram sair pra perto de meia-noite. ( Joseane de Oliveira, entre-
vista realizada em 17/04/2011).
envolvidas pelas outras que estão e passam, por sua vez, a ter afinidades com
as vítimas, se sensibilizando com os problemas das outras, criando vínculos
com as possuídas. O diácono da vila acha que é problema psicológico, mas
assim, ele também acredita que tem duas ou três que também são possuí-
das. […] nós fomos visitar no km 15 uma das garotas [ Jéssica] que é a que tá
com problema maior, ela chegou a surrar dez homens. (Wilson, entrevista
realizada em 06/05/2011).16
[…] Nessas vilas isso é de muito tempo […] lá naquela região é acometida
por bastantes situações trágicas, acidentes, violência, tem um cidadão aqui
que o pai dele chegou a matar com 14 facadas – ele é pernambucano e o pai
é cearense – um cidadão chamado de Chiquinho, que é o espírito principal
que aterroriza toda a população, e ele disse que só vai ser liberto quando
16 A garota em questão tem 12 anos e vamos chamá-la de Jéssica, pois teremos oportunidade de conversar
com ela na visitação escolar registrada a seguir.
17 Interessante lembrarmos o drama vivido pelo moleiro mediterrâneo diante da inquisição e do embate
entre lógicas culturais sobrepostas, registrado magnificamente na caligrafia de O queijo e os vermes (Gin-
zburg, 2006).
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Hum […] olha, isso que tá acontecendo contigo, tu pensa que é bom, mas
não é não! Eles tão assim […] mas depois vão te pedir coisa ruim pra ti fazer.
Eu sei que tu pergunta como eu sei disso, né? Mas eu sei porque era assim
também, esse que tá aí contigo não [é] do bem não. Mas agora ele vai apare-
cer e vai embora porque eu vou mandar embora em nome de Jesus! Eu disse
EM NOME DE JESUS, TÁ OUVINDO SATANÁS?! Agora, tu diz que
bate em todo mundo, pois eu te desafio a bater em mim – BATE, PODE
BATER! EU TÔ MANDANDO! Tu não bate em mim porque eu estou
com sete anjos com espada de fogo aqui e com o Caboclo Flechador [risos],
e com esse ninguém pode! […] Agora pega a Bíblia aqui, pega põe no peito
e reza comigo o Pai Nosso, depois dessa reza tu vai ficar boa, mas depois, se
tu ficar triste de novo ele volta, então […] a senhora é a tia? Parente? Pois é,
leve ela na missa todo dia até ela dormir direito, enquanto ela tiver vendo
vulto nas paredes e não dormir bem, continue tudo. Ponha uma Bíblia
debaixo da cabeça de noite […] é só isso. (Cristiano, depoimento colhido
em 12/05/2011).
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19 Em uma definição parcial, o Caboclo Flechador é uma entidade com linha específica nas encantarias
da pajelança rural (Maués, 1995), que vive no reino da mata nas raízes do “Tabocal – Bambu Ama-
relo, grande touceira de bambu, morada do Caboclo Fleixeiro Gentil de Arruda […] e outras categorias
de caboclos, como ‘Seu’ Boiadeiro, Zé Baiano, Chapéu de Couro, Corre-Campo, e ‘Mestre’ Gêrerê”
(Figueiredo, 1979, p. 71), acrescentamos a estes o Caboclo D’Água, registrado no clássico de Cascudo
(1954, p. 325-327).
20 Interpretamos “pendenga” como sinônimo de luta, combate e rixa, na forma como são evocados por
Cristiano.
182 SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de posessões afroindígenas
Por que tu não olha pra mim, por quê? Viu coisa mais forte? Tá mais
pesado do meu lado? Como é o teu nome? De onde tu vem? Por que tu
deixa tuas colegas se aproximar de ti e eu não? […] vamos conversar nós
dois, tu vai me agredir e eu vou te consolar. Olha dentro do meu olho – tem
medo? Tu quer ficar boa… Não? Todo mundo quer ter vida normal […] eu
quero lutar pela vida! Me diz, quem é tu que perturba essa jovem? Assim a
gente pode te ajudar, o que é? Tá com dor de cabeça? […] tá com vontade
de voar em mim pra me dá-lhe, né? Vem! Se aproxima de mim! – não, não,
pode soltar ela, tá amarrada pelo guia – vem, eu quero ver se tu pode, VEM
SATANÁS! BATE! EU QUERO QUE TU BATA NO ROSTO AQUI!
BEM AQUI! [o rezador bate no peito e no próprio rosto em tom autori-
tário] tu quer me esganar, me azunhar [arranhar], né? Mas o Senhor é meu
pastor, o braço dele é meu escudo! Eu tô aqui no teu nome, Senhor Deus:
vem um pastor que é preparado e tu quer dá-lhe, vem um diácono servo de
Deus, tu vem e dá-lhe e eu […] um simples pecador, um homem qualquer,
por que o inimigo não quer me dá-lhe? O quê? Tu vai matar ela? [risos] vai
nada! […] espera […] olha a janela! Pulou, fugiu […] Calma, não deixa ela
se bater não, a onda dele [inimigo] é machucar o corpo dela. (Cristiano,
depoimento colhido em 12/05/2011).
21 Madalena é um nome fictício. A ética e o bom senso na metodologia da história oral exigem que pre-
servemos a identidade de sujeitos sociais e relatos que não tivemos autorização e acesso na pesquisa de
campo (Maués, 2008; Portelli, 1997, p. 22).
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sendo “homens santos e abençoados”, não tinham o poder de Deus para liber-
tar os enfermos espirituais que ali se apresentavam.
O exorcismo é interrompido quando Madalena fica de pé no sofá,
esgueira-se pelas paredes e salta de costas para a janela, e desta para o quintal
ao lado e adentra no matagal. A forma rápida e súbita do movimento corpó-
reo da adolescente, além de ser vista como um sinal de possessão é interpre-
tado pelas testemunhas como poder do rezador. A esse respeito revelou dona
Antônia Almeida: “O inimigo foge quando vê a presença de Deus.”
Durante quase três horas, acompanhamos Cristiano transitando de um
lado para o outro da vila. Nesse território, enquanto uma dezena de pessoas o
seguia, outros o observavam com um terço no pescoço sentado na frente de
suas casas. Impossível não retermos na memória alguns aspectos dessa esté-
tica visual de um cotidiano em ebulição.
Primeiro, a forma como as crianças acompanhavam tudo, sem restrição
alguma a respeito das vítimas (assuntos sobre problemas familiares, postura
sexual, opinião de pais, vizinhos), vivenciando a experiência de êxtase umas
das outras. Segundo, a maneira como a comunidade estava magnetizada
pelo medo e fascinada pelo aparente excêntrico evento. Nesse palco, algu-
mas mulheres e crianças choravam continuamente, havia um clima de insta-
bilidade emocional intenso. E terceiro, o cenário turbulento se contrapõe à
calma do entrevistado. De andar lento e cadenciado, circulava na vila inteira
com a cabeça erguida, pronunciando palavras inaudíveis e sempre com a mão
direita passando-a na cabeça e no queixo, algo constante e involuntário.
De hábitos simples, após o término das rezas, Cristiano sentou na cal-
çada e pediu um copo de água para uma senhora, que lhe ofereceu pão e suco.
Enquanto se alimentava aproveitamos para nos aproximar e acabamos por
ouvir como as encantarias emergem em profusão com os componentes do
cristianismo não ortodoxo, em que uma das matrizes é afroindígena:
o Caboclo Flechador, tem outros, mas ele é que comanda os anjos tudo.
Eu passava era de dia no meio das brenhas, surrado por ele, só depois que
aprendi é que fui rezar e expulsar as força do inimigo, esse meu guia é o
mais poderoso, com ele ninguém pode. O senhor viu aquela menina que-
rendo me bater? Ela tava amarrada pelos anjos e pelas cordas do guia […]
Deus me deu isso foi pra fazer o bem. (Cristiano, depoimento colhido em
12/05/2011).
A oposição entre bem e mal, o papel dos anjos como guardiões, prote-
tores e mensageiros espirituais e a evocação de Deus como o nome que tem
autoridade suprema sobre os demônios e espíritos são referências culturais
de um cristianismo primitivo migrante e em reatualização que, nas palavras
do narrador é reforçado pela ação do Caboclo Flechador, pai da corrente dos
encantados com a qual Cristiano trabalha.
As representações religiosas do rezador são entrelaçadas a uma forte sen-
sibilidade frente ao sofrimento das crianças em questão. O ato de comparti-
lhar as experiências dolorosas no corpo e na voz, bem como a percepção de
que a maioria daqueles agentes cujos corpos tornam-se aparelhos de incorpo-
ração, apontam identidades mobilizadas pela energia espiritual do transe de
duas ou três e a afirmação de que “é mais um negócio da cabeça dela”. Tal afir-
mativa ainda denota um senso de incompreensão dos processos psicológicos
e espirituais pelos quais atravessam aquelas crianças e adolescentes.
A história da iniciação xamânica de Cristiano é detalhada na fala de
dona Joana, mãe do rezador, sempre presente em suas idas e “missões” espi-
rituais. Em meio ao movimento de pessoas e ações do rezador, permitiu-nos
“um dedo de prosa” sobre a temática em tela:
[…] Desde 18 anos – ele tá com 23 anos –, mas ele carrega isso desde
criança, ele fazia “arte” desde criança nos 10 anos, mas eu não acreditava
nisso. Ele via era muito, tinha um quadro de São Jorge guerreiro na minha
casa e ele ficava horas e horas olhando para aquele quadro assim, ele dizia:
“Mãe eu sinto que alguém me puxa pra perto desse quadro.” Ele ia pro iga-
rapé, ele chegava chorando, que eles [encantados] tinham levado a sandália
dele. Aí ele fazia as coisas, né? E eu batia nele, mas aí ele caiu doente, e ele
dizia: “Mãe eu tenho que ajudar alguém, mas eu não sei como.” Aí ele caía
no quintal e eu chorava em cima dele, aí ele [Cristiano] falou com uma
voz diferente [do encantado]: “Não chora que eu não vou matar ele […]
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na hora certa vão saber o meu nome.” Aí por diante ele caía quase todo
dia, e ele acordava de noite e enchia de vela dentro de casa até de manhã,
passava de dia sem dormir. Eu sofri muito como mãe, o pai já era falecido
[…] aí quando foi um dia foi uma voz nele: “Eu sou guia, sou o Caboclo
Índio Guerreiro Flechador, o seu filho vai ter que trabalhar, tu vai procurar
alguém pra preparar o teu filho.” E Cristiano não queria, mas as coisas bai-
xavam nele e jogava ele nos buraco na mata, debaixo dos troncos de árvore
que ficava lá prostrado. Aí quando foi um dia, uma irmã da Assembleia de
Deus, uma evangélica preparou ele, era a finada Paulina. Ela disse: “Meu
filho você é igual a mim, eu vou partir desse mundo e quando eu for você
vai sentir, e aí os meus guias vão ir pra ti.” Quando a mulher morreu com 95
anos, ele acordou de noite e disse: “Mãe, acorda, se arruma que a dona Pau-
lina morreu”, e daí é que foi mesmo. Eu lhe digo, eu como mãe não gosto,
fico me tremendo quando ele vem pra essas peleja. A esposa dele me manda
vim pra reparar ele, porque ele faz e diz as coisas e depois não lembra. O
senhor pensa? Depois vou ter que contar tudinho pra ele o que fez aqui,
ainda agora ele disse: “Mãe eu tô aqui, mas não tô pisando no chão, pra
mim, eu tô é voando.” Pra ele, ele tá é flutuando, né? Agora tem uma coisa
[…] Ele não recebe no corpo mais não, a finada Paulina ensinou pra ele não
cair no chão, ela passou o fio pra ele [corda com nós que Cristiano diz ter
em casa e usa na cintura], agora ele só conversa, assim como nós estamos
falando aqui. Ele reza pra criança, peito aberto, espinhela caída, cura de
doença ruim, passa remédio de planta, trabalho de malvadeza, tudo isso
ele desfaz. Já veio gente de todas essas bandas, até do Maranhão […] meu
filho nunca cobrou nada de ninguém, lá na vila [Fátima] ele é ajudante de
pedreiro e roçador, vive com a mulher e os filhos, mas não explora nin-
guém, se dão agrado ele recebe só isso. Aqui! Depois disso ele vai passar
dois dias na cama tomando caribé e leite quente, porque isso mexe com a
cabeça das pessoas, né? (Dona Joana, entrevista realizada em 12/05/2011).
22 Além da capacidade de controlar a possessão e interpretar sinais, esses sujeitos podem realizar a saída
espiritual do corpo a outros mundos: a viagem xamânica é a capacidade de viajar ao céu ou de descer ao
inferno, bem como travar lutas com espíritos, enfrentar outros xamãs, buscar ajuda, proteção e objetos
nesses espaços espirituais ( Cavalcante, 2008; Eliade, 1960, p. 113-116; Maués, 1990; Trindade, 2007).
Na definição de Cascudo (1972, p. 472), “São Jorge é invocado como defensor das almas contra o demô-
nio, tentações, suspeita de feitiço, rivalizando, dentro de certa medida, com o poderoso São Miguel. Nos
Candomblés da Bahia identificam-no com Oxóssi, e Odé, e nas Umbandas do Rio de Janeiro, Recife e
Porto Alegre com Ogum.”
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uma sina. Por outro lado, o jovem exorcista atribui ao Caboclo Flechador a
força que legitimou sua autoridade junto aos encantados e seres incorpóreos.
A forma como transitou nas casas, atravessou quintais e espaço escolar
fez do Caboclo Flechador um encantado do ar, que sob a companhia dos anjos
paira entre o céu e a terra, como um guardião, um mediador, um tradutor da
cosmologia local. Nesses quadros, esse líder da corrente desvela uma identi-
dade desterritorializada, que acaba por borrar generalizações e homogeneida-
des de compreensões que desejam continuar interpretando a tradicional paje-
lança cabocla amazônica como territorializada apenas nas águas (Silva, 2011).
Cristiano é um rezador que dificilmente recebe pessoas em casa, sua
forma de atuação consiste nos deslocamentos, no ritual do preparo e na
expectativa daqueles que recorrem a seus poderes mágico-terapêuticos. Cada
investida realizada nas comunidades é uma aventura, uma saga, que, preser-
vada pela força da memória e corporificada pela argamassa de sabedorias
orais, o transformam não em mais um estudo de caso, nem tampouco no
“maior rezador-exorcista entre Vizeu e Castanhal”, de acordo com compre-
ensões de Wilson, mas em um representante de vozes e experiências de tradi-
ções afroindígenas que, mesmo vivendo interdições dos poderes constituídos
no passado e no presente, renovou-se nas táticas do cotidiano, fazendo do
campo das encantarias a última fronteira onde o saber científico, urbanocên-
trico, letrado e midiático deixa ver suas fragilidades e incompreensões.
Fontes orais
Cláudia França, 17 anos, estudante, moradora da Vila Manoel dos Santos – igualmente
vinculada ao município de Traquateua. Entrevistada em 03/04/2011.
Jair Nunes, 63 anos, colono, residente no ramal que liga Vila Socorro e Tentuga onde vive
com esposa e seus cinco filhos, descendente de maranhenses e paraenses. Notamos que em
História Oral, v. 15, n. 2, p. 167-192, jul.-dez. 2012 189
quase três horas de informação, o entrevistado revelou que conhecia não apenas as histórias
e tradições familiares, mas também tinha fascínio por relatos religiosos, como histórias de
santos, aparições, encantos diversos. Entrevistado em 28/04/2011.
Referências
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SILVA, J. da S. e. “No ar, na água e na terra”: uma cartografia das identidades nas encantarias
da “Amazônia Bragantina” (Capanema-PA). Dissertação (Mestrado em Comunicação,
Linguagens e Cultura)–Universidade da Amazônia, Belém, 2011.
Resumo: Neste ensaio, seguindo rastros da metodologia da história oral, através de entrevistas
com diferentes moradores, e mapeando discursos midiáticos, discutiremos sentidos de
possessões indígenas e africanas em populações que habitam a Amazônia Bragantina. A base
teórica parte dos estudos culturais e pós-coloniais, alcançando a antropologia das religiões para
acompanhar possessões coletivas em crianças e adolescentes do sexo feminino na Vila Socorro
(km 14), no município de Traquateua (PA). Completamos o enredo do texto, apresentando o
jovem xamã Cristiano que, ao operar com poderes do Caboclo Flechador, frente a entidades
incorpóreas, mortos-vivos e demônios, desvela sentidos e memórias que povoam corpos e dons
espirituais emergentes no seio das populações locais. A interpretação aponta que a avaliação
apressada dos acontecimentos como “fenômenos sobrenaturais” pelos meios de comunicação
silencia tradições de culturas afroindígenas neste portal da Amazônia brasileira.
Abstract: In this essay, following the traces of Oral History Methodology, through
interviews with residents, and mapping different media discourses, we discuss the meanings of
indigenous and African possessions among populations that inhabit the Bragantine Amazon.
The theoretical approach starts from the Cultural and Post-Colonial Studies, reaching the
Anthropology of Religions to accompany collective possessions in children and female
adolescents at Socorro village (Km 14), in the municipality of Traquateua. We complete the
plot of the text introducing the young shaman Cristiano, who, to operate with powers from
Caboclo Flechador, facing intangible entities, undead and demons, unveils senses and memories
that inhabit bodies and spiritual gifts emerging within local populations. The interpretation
indicates that a hasty assessment of events, such as “supernatural phenomena” by the media,
silents traditions of afro indigenous cultures at this portal of the Brazilian Amazon area.
Recebido em 10/09/2012
Aprovado em 24/11/2012