Práticas Sociais Entre A Literatura e A História-3
Práticas Sociais Entre A Literatura e A História-3
Práticas Sociais Entre A Literatura e A História-3
S587p
CDU: 821
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Reginaldo Nascimento Neto
Luis Rodolfo Cabral Sales
Ciências da Saúde
Raffaelle Andressa dos Santos Araújo
Ciências Sociais Aplicadas
Johnny Herberthy Martins Ferreira
Nilvanete Gomes de Lima
SUMÁRIO
11 Apresentação
9
É em meio a esse caráter transgressor que o presente
texto prefacial surgiu, pois partiu do limite-catalisador da
página em branco. A plenitude da linguagem, ou da escrita
propriamente dita, está no mote impulsionador dos textos que
compõem a presente coletânea. Os próprios artigos aqui
apresentados também nasceram desse intento de
transgressão, pois romperam com os limites da página, ao
colocarem em funcionamento os elementos das hipóteses,
problematizações, objetivos, teorias, empirias e sínteses.
Fizeram a transposição da atividade do pensamento para a
instrumentalização daqueles elementos, configurando suas
escritas. Os autores tiveram, e têm, a plena consciência de que
nos conflitos entre a Literatura como fonte de e para a História
não se pode esquecer de que é a partir do próprio texto
literário que as problematizações devem surgir. Tempos,
Espaços, Sujeitos e Narrativas são aspectos e componentes
que estão presentes tanto na História quanto na Literatura.
São pontos de inflexão e de diálogos entre os dois campos de
saber. É nessa consciência de que “a objetividade ou a
transcendência da história é uma miragem, pois o historiador
está engajado nos discursos através dos quais ele constrói o
objeto histórico” (COMPAGNON, 2010, p. 219), que se pode
entender muitas das aproximações entre História e Literatura.
10
cristalizados sobre o fazer histórico e o fazer literário. Cada
leitor, conforme Roger Chartier, apresenta diferentes
maneiras de ler, que trazem “gestos específicos, os seus
próprios usos dos livros, o seu texto de referência”
(CHARTIER, 1990, p. 131). A pluralidade de leituras e
recepções do livro é uma marca indelével do âmbito
transgressor da escrita, de seus usos e consumos. A múltipla
característica da coletânea se inscreve, também, na polissemia
dos termos História e Literatura, que trabalham e operam com
categorias comuns aos dois campos do conhecimento.
11
narrativas dos jornais sobre os quais se debruça apontam para
debates que partem das relações de gênero, mas que se
inscrevem, também, no cotidiano e nas mentalidades da
cidade no período republicano em seus primeiros anos.
12
Em Melhorando a sociedade ao mudar o papel feminino,
Maria do Socorro Baptista Santos, faz incursões pela obra da
escritora norte-americana, Charlotte Perkins Gilman. Socorro
Baptista, atenta à dimensão processual dos acontecimentos na
história, chama atenção do leitor para o fato de que a escritora
teve uma trajetória pessoal e literária marcada pelo viés
radical do pensamento feminino, ainda no século XIX. Os
silenciamentos, que, por questões das regras das artes e por
aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos, aplacaram
o maior conhecimento da obra da escritora. Charlotte foi
(re)visitada por feministas da década de 1960, incrementando
novos debates. Socorro Baptista toma a esfera econômica com
o pretexto para dar visibilidade às questões das relações de
poder e de gênero, entre o fictício e o não fictício, que
engendraram a obra engajada de Charlotte. Socorro Baptista,
por meio de suas leituras de Charlotte, acredita na
possibilidade, para além da utopia, de que é possível a
valorização dos espaços de atuação de homens e mulheres,
com equidade de condições.
13
(CERTEAU, 1994), que demarcam os lugares de ação e de
atuação dos sujeitos, sejam homens ou mulheres.
14
brasileira, visto que a personagem de Clara dos Anjos aglutina
em si tais elementos socioeconômicos. Nesse sentido, as
muitas categorias de interseccionalidade são apresentadas ao
passo que as múltiplas distâncias, discriminações e
desigualdades sociais. Aspectos ligados, também, ao papel
das famílias nas relações sociais, assim como os casamentos,
dão indícios da interseccionalidade e da história do
patriarcalismo brasileiro.
15
16
APRESENTAÇÃO
17
forma de trazê-las à tona e dar-lhes, se não uma total
visibilidade, pelo menos uma possível lembrança, que pode
suscitar, no leitor deste livro, a curiosidade e a necessidade de
melhor conhecê-las.
(Organizadores)
18
CAPÍTULO I
DE INOCENTE E INDEFESA A
DESTEMIDA E SEDUTORA: RELAÇÕES DE
GÊNERO EM COMPANY OF WOLVES DE
ANGELA CARTER
19
Vermelho”, “Capuchinho Vermelho”, “Capuzinho
Vermelho” ou “Capinha Vermelha”. Essa narrativa, de
origem desconhecida, mas que chegava aos ouvidos das
crianças e adultos que se sentavam ao redor da fogueira para
espantar o frio por meio da oralidade, e que tem encantado
geração após geração, foi se transformando na própria
oralidade, e na linguagem escrita das mais diversas formas,
de Charles Perrault (século XVII), passando pelos Irmãos
Grimm (século XIX), chegando a Angela Carter (século XX).
20
pequenas”1, chamando a atenção do advogado, poeta,
contista e antologista francês, que inclui o conto Le Petit
Chaperon Rouge em uma antologia que logo se tornou clássica
entre os jovens franceses. Analisando a versão de Perrault da
narrativa de Chapeuzinho Vermelho, percebe-se que é uma
narrativa pequena, sucinta, e que termina de modo muito
brutal:
1 Texto original: a folk tale that European mothers and nurses told to young
children.
21
“É para comer você.”
22
Vemos aqui que as meninas,
E sobretudo as mocinhas
23
A citação acima reforça a ideia de que “ser devorada
pelo lobo” tem um sentido muito mais metafórico do que real,
e que o cuidado que as jovens devem ter com a besta selvagem
seria o cuidado necessário consigo mesmas, no sentido de
evitar seduções e situações que as colocariam em posições
constrangedoras. Os “lobos gentis e prestimosos” podem ser,
inclusive, parte da família, em quem as garotas usualmente
confiam, o que faz com que a inclusão da lição de moral ao
final da narrativa seja tão importante quanto a própria
narrativa, sobretudo por se tratar de um período da história
em que a virgindade feminina era vista como seu mais
precioso bem.
2 Texto original: Since woman is considered not only a person but a commodity, the
24
O castigo dado a Chapeuzinho Vermelho na versão de
Perrault também pode ser visto como metafórico,
representando a morte não somente física, mas
principalmente a morte social, tanto da jovem seduzida, que
perde o valor de mercado apontado por Waelti-Walters
(1994), como da avó, que por ser idosa, há muito já não tem
esse valor, sendo sua única função naquela sociedade
proteger e alertar a jovem neta. Desse modo, ambas as
personagens são retratadas como seres frágeis, reforçando a
inferioridade da mulher na sociedade da época.
reputation of the seducer equals that of a happy man who succeeds in life. But if
seducing brings credit, being seduced is, on the contrary, a disgrace. The moral
disrepute suffered by the seduced woman is in fact material depreciation. By losing her
virginity she falls to the level of a used object; she joins other “tainted women”,
damaged goods that are hard to market. Thus, for a young woman, honesty is her
virginity.
25
devorou a coitada da Chapeuzinho
Vermelho.
26
Percebe-se a existência do mesmo diálogo, mas uma
diferente finalização: tanto a menina como a avó são
devoradas inteiras, e depois resgatadas pelo caçador, que
assume o papel de herói, usualmente representado nos contos
de fada por príncipes, pais e irmãos das jovens indefesas. No
caso da história da menina da capa vermelha quem salva as
personagens femininas é um caçador, figura muito
importante no contexto no qual a história se insere: uma vila,
próxima a uma floresta, provavelmente repleta de animais
selvagens. O caçador representa, assim, uma figura crucial
para a manutenção da própria vila, protegendo-a dos animais
e garantindo também o alimento, a carne. É possível também
perceber que a cena em que a menina tira a roupa e se deita
com o lobo não consta da narrativa dos irmãos alemães, pois
ela sai vestida de dentro do animal. Assim, qualquer
conotação sexual que a relação lobo / menina pudesse ter fica
apagada, perdida.
27
perigosas e ter cuidado com estranhos aparentemente
amigáveis”3. Esta simplicidade, não só do conto aqui
estudado, mas dos contos de fada de modo geral, entretanto,
é questionada por Bettelheim, que afirma:
3 Texto original: its obvious moral is that children should obey their mothers when they
walk through dangerous areas, and to beware of seemingly friendly strangers.
28
a um comportamento baseado no princípio
do prazer - que, presume-se, Chapeuzinho já
havia abandonado em favor do princípio da
realidade, graças aos ensinamentos paternos
- podendo então ocorrer graves choques
(BETTELHEIM, 2002, p. 184).
29
Nesse momento, a garota demonstra estar em conflito
entre o que “quer fazer” e o que “deve fazer”, e somente se
lembra de suas obrigações quando não consegue mais pegar
flores. É o peso já excessivo daquelas que colhera que a faz se
lembrar da avó, e retomar o caminho, chegando lá tarde
demais para salvar a velha senhora. Para Bettelheim (2002, p.
185):
30
maternais, a mãe e a bruxa … são
insignificantes em Chapeuzinho, onde nem a
mãe nem a avó podem fazer nada - nem
ameaçar nem proteger. O macho, em
contraste, é de importância capital, dividido
em duas figuras opostas: a do sedutor
perigoso que, se cedermos a ele, se
transforma no destruidor da avó boa e da
menina; e a do caçador, a figura paterna
responsável, forte e salvadora. É como se
Chapeuzinho tentasse entender a natureza
contraditória do homem vivenciando todos
os aspectos da personalidade dele: as
tendências egoístas, associais, violentas e
potencialmente destrutivas do id (o lobo); e
as propensões altruístas, sociais, reflexivas e
protetoras do ego (o caçador).
31
diferentes gerações tendem a se comportar de forma diversa
frente a situações semelhantes. O conceito de geração permite
não apenas situarmos as tipologias femininas apresentadas
pela autora no conto, mas situar sua própria obra. “Como
metáfora para a construção social do tempo” (FEIXA;
LECCARDI, 2010, p. 185), o termo geração permite que
compreendamos as diferenças entre comportamentos e
práticas sociais localizadas em diferentes momentos no
tempo. No conto analisado, pode-se perceber essa dimensão
nas maneiras como as personagens femininas são
representadas nas suas relações com as personagens
masculinas.
32
terror. Enquanto conto de terror, The Company of Wolves
mostra uma bruxa poderosa que utiliza seus poderes como
extensão de seus sentimentos, situando os atos mágicos como
uma prática conectada à subjetividade da personagem. Isso a
faz tomar uma atitude cruel sobre os que estão ao seu redor.
Vejamos como Carter apresenta a bruxa: “Uma vez, uma
bruxa do vale transformou uma festa de casamento inteira em
lobos porque o noivo havia escolhido outra garota. Ela
costumava mandar que eles a visitassem, à noite, por
despeito, e eles se sentavam e uivavam em torno de sua
cabana por ela, fazendo uma serenata para ela com sua
miséria.”4 (CARTER, 2006, p. 131, tradução nossa). Nessa
passagem, Carter constrói a representação de uma mulher
poderosa que com seus poderes mágicos foi capaz de
transformar todos que haviam ido à sua festa de casamento
em lobos. Note-se aí um elemento comum às narrativas de
contos de fada: a ideia de que para uma mulher ser
independente ela não poderia ser uma simples mulher, tinha
que ter poderes especiais que, por vezes, a travestia em uma
pessoa má. Nos contos de fada, a mulher bruxa normalmente
aparece em oposição à mulher que leva uma vida considerada
normal, que casa, tem filhos e vive para cuidar do lar e do
marido.
4 Texto original: A witch from up the valley once turned an entire wedding party into
wolves because the groom had settled on another girl. She used to order them to visit
her, at night, from spite, and they would sit and howl around her cottage for her,
serenading her with their misery.
33
Essa oposição por vezes constrói a ideia de que a
mulher bruxa é menor, menos valorosa que aquela outra
mulher. No trecho transcrito, o mesmo acontece. A bruxa é
abandonada porque o homem escolheu outra mulher. Embora
Carter não diga que a outra mulher foi preterida por não ser
bruxa, o uso do termo another girl5 se referindo à outra mulher
como garota deixa transparecer a ideia de que a outra mulher
é pura, inocente e, nesse caso, seria mais apropriada ao
casamento. Por conta da atitude do homem, a bruxa se vinga
nos convidados transformando-os em lobos e obrigando-os a
visitá-la para lhe cantar serenatas em forma de uivos.
34
O narrador do conto, que podemos definir como um
narrador participante pela forma como se coloca dentro da
narrativa, segue contando da seguinte forma:
6 Testo original: Not so very long ago, a young woman in our village married a man who
vanished clean away on her wedding night. The bed was made with new sheets and
bride lay down in it; the groom said, he was going out to relieve himself, insisted on it,
for the sake of decency, and she drew the coverlet up to her chin and she lay there. And
she waited and she waited and then she waited again – surely he’s been gone a long
time? Until she jumps up in bed and shrieks to hear a howling, coming on the Wind
from the forest.
35
mulher resignada é reforçada pela autora quando ela conta do
retorno de seu marido, como segue:
7 Texto original: The young woman’s brothers searched the outhouses and the hay-stacks
but never found any remains so the sensible girl dried her eyes and found herself
another husband not too shy to piss into a pot who spent the nights indoors. She gave
him a pair bonny babies and all went right as a trivet until, one freezing night, the night
of the solstice, the hinge of the year when things do not fit togetherness as well as they
should, the longest night, her first good man came home again.
36
casamento havia sido arranjado. O segundo casamento,
portanto, teria mais chances de sucesso uma vez que havia
sido engendrado pela própria mulher. Embora Carter reforce
aqui a necessidade da presença masculina para que a vida da
mulher siga seu curso, podemos dizer que em certa medida a
autora está preparando o leitor para sua personagem
principal, cuja postura destemida e sedutora será discutida
mais tarde. Ainda sobre a mulher e seu novo casamento, a
autora nos conta:
37
se soltou novamente e ele estava exatamente
como estava, anos atrás, quando fugiu de seu
leito conjugal, de modo que ela chorou e seu
segundo marido bateu nela (CARTER, 2006,
p. 132, tradução nossa).8
8 Texto original: A great thump on the door announced him as she was stirring the soup
for the father of her children and she knew him the moment she lifted the latch to him
although it was years since she’d worn black for him and now he was in rags and his
hair hung down his back and never saw a comb, alive with lice. ‘Here I am again,
missus,’ he said. ‘Get me my bowl of cabbage and be quick about it.’ Then her second
husband came in with wood for the fire and when the first one saw she’d slept with
another man and, worse, clapped his red eyes on her little children who’d crept into
the kitchen to see what all the din was about, he shouted: ‘I wish I were a wolf again,
to teach this whore a lesson!’ So a wolf he instantly became and tore off the eldest boy’s
left foot before he was chopped up with the hatchet they used for chopping logs. But
when the Wolf lay bleeding and gasping its last, the pelt peeled off again and he was
just as he had been, years ago, when he ran away from his marriage bed, so that she
wept and her second husband beat her.
38
não escreve nem uma linha sobre a mulher reagir à violência,
denotando que seu breve momento de independência se
esvaziou quando deixou o luto e casou-se novamente. Não é
de estranhar que Carter faça menção à violência em seu conto.
Além de ser um conto de terror, em que a violência é de se
esperar, tais atos contra as mulheres são temas recorrentes nas
bandeiras de lutas feministas. Por ser ela mesmo feminista,
retratar a violência nesse momento do conto é mostrar uma
das facetas da opressão masculina que precisam ser
combatidas.
39
perder tempo em seu caminho para ter
certeza de que o belo cavalheiro ganharia sua
aposta (CARTER, 2006, 134-135, tradução
nossa)9
9 Texto original: ‘Is it a bet?’ he asked her. ‘Shall we make a game of it? What will you
give me if I get to your grandmother’s house before you?’ ‘What would you like?’ she
asked disingenuously. ‘A kiss.’ Commonplaces of a rustic seduction; she lowered her
eyes and blushed. He went through the undergrowth and took her basket with him but
she forgot to be afraid of the beasts, although now the moon was rising, for she wanted
to dawdle on her way to make sure the handsome gentleman would win his wager
40
move dentro do pináculo invisível de sua
própria virgindade. Ela é um ovo inteiro; ela
é um vaso selado; ela tem dentro de si um
espaço mágico cuja entrada é fechada com
um tampão de membrana; ela é um sistema
fechado; ela não sabe como tremer. Ela tem
sua faca e não tem medo de nada. Seu pai
poderia proibi-la, se ele estivesse em casa,
mas ele está na floresta, juntando lenha, e sua
mãe não pode negar a ela. (CARTER, 2006, p.
133, tradução nossa)10
10 Texto original: Children do not stay young for long in this savage country. There are
no toys for them to play with so they work hard and grow wise but this one, so pretty
and the youngest of her family, a little late-comer, had been indulged by her mother
and the grandmother who’d knitted her the red shawl that, today, has the ominous if
brilliant look of blood on snow; her breasts have just begun to swell; her hair is like
lint, so fair it hardly makes a shadow on her pale forehead; her cheeks are an
emblematic scarlet and white and she has just started her woman’s bleeding, the clock
inside her that will strike, henceforward, once a month. She stands and moves within
the invisible pentacle of her own virginity. She is an unbroken egg; she is a sealed
vessel; she has inside her a magic space the entrance to which is shut tight with a plug
of membrane; she is a closed system; she does not know how to shiver. She has her
knife and she is afraid of nothing. Her father might forbid her, if he were home, but he
is away in the forest, gathering wood, and her mother cannot deny her
41
por não ver o jovem sedutor. Logo percebe seu engano, e,
embora assustada ao se dar conta da morte da avó, não fica
com medo de ter o mesmo destino. Solicitada a tirar a amada
capa vermelha, ela assim o faz: “Ela fechou a janela da
trenódia dos lobos e tirou seu xale escarlate, a cor das
papoulas, a cor dos sacrifícios, a cor de sua menstruação e,
como seu medo não lhe fazia bem, ela parou de ter medo.11
(CARTER, 2006, p. 138, tradução nossa, grifo dos autores). Ela
se despe do medo ao se despir da capa, a ideia de que o medo
seria totalmente inútil: o que poderia uma simples garota
contra o poderoso lobo? Esse despir-se do medo, entretanto,
também indica o quanto ela está pronta não somente para ser
seduzida, mas para seduzir, o que fica mais claro à medida
que o conto chega próximo ao final.
11 Texto original: She closed the window on the wolves’ threnody and took off her scarlet
shawl, the colour of poppies, the colour of sacrifices, the colour of her menses, and,
since her fear did her no good, she ceased to be afraid.
42
“O que devo fazer com minha blusa?”
[…]
12 She bundled up her shawl and threw it on the blaze, which instantly consumed it. Then
she drew her blouse over her head; her small breasts gleamed as if the snow had
invaded the room. ‘What shall I do with my blouse?’ ‘Into the fire with it, too, my pet.’
[…] What big arms you have.’ ‘All the better to hug you with.’ Every wolf in the world
now howled a prothalamion outside the window as she freely gave the kiss she owed
him. ‘What big teeth you have!’ She saw how his jaw began to slaver and the room was
full of the clamour of the forest’s Liebestod but the wise child never flinched, even
when he answered: ‘All the better to eat you with.’ The girl burst out laughing; she
43
Percebe-se que, no ato de se despir, a jovem não hesita,
não questiona as razões do lobo, nem se faz de inocente. Ela
apenas pergunta o que deve fazer com as roupas, e as joga no
fogo como ele sugere. Algumas falas merecem ser destacadas:
ele a chama de “my pet”13, “meu bichinho de estimação”,
como se ela fosse apenas um brinquedo. Entretanto, ela o beija
de livre e espontânea vontade, sem que ele cobre a aposta que
vencera. As perguntas são provocativas, e as respostas a
levam a agir: ao responder que tem braços grandes para a
abraçar, ela o beija; ao responder que tem dentes grandes para
a devorar, ela sorri, largamente. Ela fez um jogo de sedução
no qual ele se julga vencedor, mas é ela quem dá as cartas
finais:
44
cama da vovó, entre as patas do terno lobo.
(CARTER, 2006, p. 139, tradução nossa)14
Considerações finais
14 She laughed at him full in the face, she ripped off his shirt for him and flung it into the
fire, in the fiery wake of her own discarded clothing. The flames danced like dead souls
on Walpurgisnacht and the old bones under the bed set up a terrible clattering but she
did not pay them any heed. Carnivore incarnate, only immaculate flesh appeases him.
She will lay his fearful head on her lap and she will pick out the lice from his pelt and
perhaps she will put die lice into her mouth and eat them, as he will bid her, as she
would do in a savage marriage ceremony. […] See! sweet and sound she sleeps in
granny’s bed, between the paws of the tender wolf
45
Em Company of Wolves, Carter faz uma releitura de um
tradicional conto de fadas, Chapeuzinho Vermelho,
transformando-o em conto de terror ao passo em que
representa a personagem principal não mais como inocente e
indefesa, mas destemida e sedutora. Põe, portanto, por terra
as narrativas anteriores do conto, escritas por homem, que
fragilizam o ser feminino frente às adversidades, que
subjugam a mulher sob o poder masculino.
Referências
46
GRIMM, J.; GRIMM, W. “Chapeuzinho Vermelho”. 1812. In:
MACHADO, A. M. (Org.). Contos de Fadas: de Perrault, Grimm,
Andersen e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 145-152.
PERRAULT, C. “Chapeuzinho Vermelho”. 1697. In:
MACHADO, A. M. (Org.). Contos de Fadas: de Perrault, Grimm,
Andersen e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 77-82.
VON FRANZ, M. L. A Interpretação dos Contos de Fada. São
Paulo: Paulus, 2013.
WAELTI-WALTERS, J. Feminisms of the Belle Epoque: A
Historical and Literary Anthology. Lincoln: University of
Nebraska Press, 1994.
47
48
CAPÍTULO II
ESCRITA FEMININA NA CIDADE DE
UNIÃO (PI): INSTRUÇÃO E MODERNIDADE,
NOS ANOS DE 1920
Jayra Barros Medeiros
49
passava a ser composto pelas mudanças vivenciadas na
cidade.
50
normas e condutas a serem seguidas, ou seja, permitiam uma
transmissão de comportamentos que estavam relacionados
aos ideais de civilidade e ou com as demandas da
modernidade.
2
Tentativa industrial de Augusto Daniel (Intendente Municipal de União, nos
primeiros anos da República) e seus produtos feitos da banana. Projeto
ambicioso e empreendedor para o período, que envolveu os incentivos
estaduais e municipais com isenção de impostos o que anunciava a
necessidade e os desejos dos unionenses em relação às modernidades do
período estudado. A Lei nº 692 promulgada em 9 de julho de 1912 concedia
o privilégio ao unionense, Augusto Daniel por espaço de 20 anos, para o
preparo de produtos de bananas, “farinha para a alimentação em geral,
bananas passas, bananadas, vinagre, aguardente e álcool” (TERESINA, 1923,
p. 272.). O governo do Estado passava a investir em “[...] aparelhos
modernos, escritórios e agências [...] para o preparo e comércio dos referidos
produtos e exportação para os diversos municípios do Estado e fora dele”
(PIAUÍ, 1912).
3
A navegação a vapor foi instalada, no Piauí, em meados do século XIX.
Dentre os fatores que facilitaram o desenvolvimento desse processo,
destacamos a configuração do comércio que se lançava para exportações com
produtos como maniçoba, carnaúba, babaçu, algodão e ainda, a necessidade
de comunicação entre as cidades, vilas e fazendas da referida província que, no período
51
questão. Nesse sentido, podemos destacar ainda a escrita
feminina que pode ser vista como uma prática que rompia
com uma sociedade rural, iletrada e que possuía anseios pelo
urbano em sintonia com os navios que vinham do exterior e
do restante do país. Podemos ainda, pensar nas ambivalências
que as ideias de modernidade podem carregar.
em questão, era feita com dificuldades, mesmo por via fluvial. Dessa forma, o
transporte pelo rio Parnaíba contribuiu para estruturação dos caminhos fluviais das
cidades piauienses que escoavam não só seus produtos pelas cidades portuárias, mas
também, representações de civilidade e desenvolvimento que permeavam as cidades
brasileiras. Através de exportações e importações com o exterior (países como
Inglaterra, França), Piauí, encontrava-se com os novos modelos de civilidade e
modernidade que circulavam as maiores cidades brasileiras. Esse encontro contribuiu
para redefinição do comércio e para o amálgama das representações sobre civilidade e
desenvolvimento com as estruturas provincianas que existiam nas cidades piauienses,
nesse período.
52
“Jornal das Moças”: normas e condutas para as mulheres
piauienses, nos anos de 1920?
53
história e a natureza” (GAGNEBIN, 2005. p.144), na qual a
história é lugar da saudade da infância da humanidade que
não volta mais e a natureza a inocência que se perdeu. Assim,
o passado não é mais vivido como algo eterno, mas como
aquilo que foi definitivamente perdido. Na poesia a seguir
podemos visualizar esse romantismo e essas sensibilidades da
referida autora,
PRECE
Ao Sr. Conselheiro
54
Foi-se a alegria que minha alma tinha,
55
Como podemos perceber essa sensibilidade aguçada e
as emoções de “Pérola Branca” causaram ressonâncias no
“Jornal das Moças”. Em consonância com seu tempo, a
“jovenzinha” demonstra-nos como é difícil separar o
individual do coletivo, por mais concentrado que ele se
apresente, uma vez que sempre aflora um sentido plural nas
experiências vividas, pois nenhum indivíduo se mantém sem
os liames que o envolve em um espaço social. As experiências
contadas de “Pérola Branca” possibilitam desvendar o tempo
e o espaço, a cidade de União e os anos de 1920, os anseios que
a modernidade trazia para seus habitantes. E ainda, as
convivências com os vapores e a eletricidade.
Confortando
56
[...] queixam-se de nos, as mulheres, quando
eles são os verdadeiros culpados de todos os
nossos desditos. Sim, nos só sabemos amar
uma vez, porém, muitos deles o fazem por
“Sport”. Depois, a mulher é a perdição do
homem!! Quando nos daríamos a fé a gota
última do nosso sangue pelo homem amado!!
57
que onde existe amor aí existe o sofrimento
[...] (SAUDOSA CONDESSA. Confortando.
Jornal das moças, p. 7, 1926).
58
Para melhor entendermos esses anseios, é só
observarmos que a publicação nesse periódico era por meio
de um concurso com a participação de vários estados do
Brasil, os escritores e seus escritos eram selecionados e
comunicavam entre si através de suas publicações
demonstrando o cotidiano e os anseios que cada um
vivenciava. O jornal fazia publicações que demonstravam
através dos seus escritos os comportamentos de homens e
mulheres de sua época. Contribuindo, ainda, para a
configuração de “uma rede de sociabilidade feminina e
masculina, composta por moças e rapazes do Rio de Janeiro e
de outras cidades do país, dentre elas Teresina” (CARDOSO,
2006, p. 5).
59
autoria “Cabelos Curtos” com a qual a autora participa de
muitas polêmicas. Nesse período a moda5 dos cabelos curtos
adentrava o Brasil e não agradava a todos. Algumas pessoas
mostravam-se radicalmente contra a nova mulher e os seus
cabelos. Como demonstra o trecho a seguir,
60
A escrita da referida autora não se resume apenas à
forma que as mulheres deveriam cortar os cabelos e, sim, ao
novo modelo de mulher que aparecia em meio às concepções
de civilização e modernidade que permeavam a Primeira
República e se mostravam em consonância com os
organizadores do jornal e com uma parcela dos seus leitores
quando afirmavam que:
6 Forma como os cortes de cabelo acima do pescoço eram conhecidos no final do século
XIX e início do século XX.
61
para além do vestuário e entendê-la como um fenômeno
histórico ligado às concepções de modernidade com um
incessante esforço para alcançar o novo e romper com a
tradição.
62
sociedade adapta-se ao ritmo urbano, ou seja, as cidades que
incorporam a “ideia de centro de realizações – de saber,
comunicações, luz [...] barulho, mundanidade e ambição”
(WILLIAMS, 2000, p. 11). E para participar desse espaço, as
mulheres mudavam o corte de cabelo e com isso uma
mentalidade. No entanto, isso não agradava uma esfera da
sociedade que se apegava às concepções tradicionais e que
entendia que “o maior orgulho da mulher é cuidar da lida
doméstica [...] a mulher que não cuida da vida doméstica não
é digna de ser respeitada pelos homens” (Nossos direitos.
Jornal da Moças, p. 2, 1925). Ainda relacionado à nova moda,
um outro correspondente do jornal das moças destaca,
63
avessos aos cabelos curtos. Como acrescenta “Rapsag”, um
dos correspondentes do referido jornal,
64
Jornal da Moças, p. 12, 1925). No entanto, as mulheres que
utilizavam os cabelos curtos com frequência e ironicamente
eram comparadas aos homens, “Reparaste como ficou bem na
Ruth o cabelo a La garçone? Se reparei. Do pescoço para cima
é exatamente o retrato do irmão mais moço”. Os papéis se
invertiam, transbordavam e causavam contradições no
âmbito da sociedade moderna fazendo com muitos
lamentassem “infelizmente, hoje em dia, o sexo está trocado”.
65
Como vimos às polêmicas sobre “os cabelos”
femininos permearam o jornal estudado e ao mesmo tempo
descortinavam as relações sociais entre homens e mulheres,
no período em questão. Pérola Branca, por exemplo,
lamentava que os homens não tivessem aproveitado os
tempos de civilização para adocicar suas ações. Em “Drama
social” a escritora mostra-se atenta às diferenças sociais e à
autoridade que homem exercia sobre as mulheres “desgraça a
vida da mulher por que não tem força, para dar o troco que
merece certas ofensas” (BRANCA Pérola. Drama Social. Jornal
da Moças, p. 11, 1925). Com esses escritos, podemos
descortinar um pouco do universo feminino unionense e nos
encantar com essa literatura que fez um passeio de barco a
vapor pelas águas brasileiras no período estudado e que
encantou seus leitores. Como demonstra o trecho a seguir,
“Em ‘Drama social’ mais uma vez amiguinha demonstrou a
sua vocação, provando que em todo lugar se pode fazer
literatura, até no Piauí”. A referida autora responde as críticas
ao Piauí que infelizmente não foi publicada. O que fez o
colaborador do jornal responder, “Li a sua cartinha, bem sei
que seu Estado tem nascido grandes sábios [...] creio que foi o
piauiense que demonstrou que a doença é um grande mal
para a saúde. ‘Saudades’ será publicado”. Os elogios contidos
no jornal das moças para a referida escritora são muitos dentre
eles destacamos o poema a seguir que faz questão de enfatizar
a naturalidade da escritora,
66
ELLAS...
67
Considerações finais
Referências
68
A MODA de hoje. Jornal das Moças, p. 7, 1925.
BRANCA Pérola. Drama Social. Jornal da Moças, p. 11, 1925.
BRANCA, Pérola. Carta perdida. Jornal das Moças, p. 8, 1926.
BRANCA, Pérola. Prece Jornal das Moças, p. 3, 7 maio 1925.
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CABELOS Curto? Sim! Jornal das Moças, p. 4, 1925.
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STEPHANOU, M.; BASTOS, M. H. História, memória e História
69
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WILLIAMS, R. O campo e a cidade na história e na literatura.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
70
CAPÍTULO III
EM BUSCA DE DONANA: ANÁLISE DE
UM PERFIL FEMININO EM VAQUEIRO E
VISCONDE DE JOSÉ EXPEDITO RÊGO
Vicencia Rozilda Gomes Pinheiro
Thiago Coelho Silveira
71
do herói da história, Jan Valjan, de recuperar e proteger a sua
doce Cosette.
72
No entanto, nosso interesse se dirige às personagens
femininas, mas em especial uma, que na obra ocupa o papel
de coadjuvante na história, aqui se constitui na protagonista
de nossa análise. Dessa forma, analisaremos como estas
personagens são sufocadas na trama, sob o véu de mulheres
decentes, religiosas, fiéis aos maridos e cuidadosa com os
filhos. Se a literatura imita a vida, recriando e reinventando,
encontramos em Vaqueiro e Visconde a representação de
práticas sociais conservadoras, cujas correntes as amarravam
e as impediam de ter autonomia.
73
e analisar os elementos sociais e culturais que provocam a sua
invisibilidade.
74
Sufocar a dor, silenciar o gemido
75
reconhecendo a qualidade do trabalho do autor. Nesse
sentido, embora reconheçamos que a literatura não tem
compromisso com a verdade, a obra aborda personagens que
existiram na história do Piauí, constituindo-se em uma das
fontes que melhor descreve literariamente o imaginário e os
costumes do Piauí do século XVIII.
76
alcançar certa verossimilhança em relação ao discurso
histórico sobre a época.
77
Para entender melhor os motivos desses enredos
literários serem organizados dessa forma, recorremos a
Schawantes (2006) que apresenta um argumento sobre esse
fenômeno nos romances. A autora afirma que “[...] para
escrever romances, um autor, independente de seu gênero,
precisa criar personagens femininos, e essa criação vai derivar
do conceito de feminilidade da sociedade” (SCHAWANTES,
2006, p. 08). Destarte, embora existam obras literárias que
retratam mulheres do século XVIII com um perfil mais
independente e como uma exceção ao que se esperaria para o
período, Rêgo (2009) faz a opção pela construção de um perfil
que não foge à regra do conservadorismo dessa época.
78
pobre, tinha saúde, disposição para o
trabalho e, nas veias, sangue português
limpo. A doação da fazenda veio a calhar
(RÊGO, 2009, p. 20).
79
nas relações familiares que se estrutura, desde a primeira
infância, o arcabouço da personalidade” (2006, p. 85).
80
pois mulher de vergonha não grita alto, nessas horas. Gemia
porque era o jeito. Quem podia aguentar aquilo, sem gemer?”
(RÊGO, 2009, p. 21). Assim, constrói-se a representação de
uma mulher decente: não abre as pernas, não grita e sufoca o
gemido.
81
envolveu-o nos cueiros. Passou a cuidar da
mãe (RÊGO, 2009, p. 22).
82
Mesmo nessa passagem, que aparenta dar visibilidade
para a mãe, é o pai alegre e satisfeito que o autor quer deixar
marcado na memória do leitor, deixando de lado os
sentimentos e dores reprimidos, sejam físicos ou emocionais.
Após o parto, o filho foi chamado de Manuel de Sousa Martins
e para diferenciá-lo do pai, o apelidaram de Né de Sousa.
Donana teve outros filhos e outras funções na vida de seu
marido, que permitem ver a força de Donana como uma
personagem feminina representada em meio aos desafios de
viver em um universo masculino.
83
distribuir ordens e mais ordens. Gostava ela
própria de arranjar suas cousas. Só se deitava
de noite, para dormir. Nada de ficar
preguiçando, na varanda, as mucamas a lhe
matarem o cafuné (RÊGO, 2009, p. 26).
84
muito bem uma propriedade. Até leite sabia
tirar, arreava mesmo as novilhas de primeira
barriga. Apenas montava em cavalo para
campear. Cavalgava bem, de banda, em sela
apropriada. No entanto fazia as devidas
determinações. Indagava de Afonso a
respeito das vacas amojadas, conhecia de
nome algumas malhadas. Mulher de valor
Donana (RÊGO, 2009, p. 26).
85
femininos nas obras literárias são analisadas por Schawantes,
ao afirmar:
86
Donana. O marido estava todo inchado e com falta de ar. Ela
então faz o que se esperava: “Donana se desdobrava nos
cuidados com o marido doente e aprovava tudo que o filho
mais velho fazia” (RÊGO, 2009, p. 42). Ela cuidou do marido
até o último minuto e submeteu-se às ordens do filho, Né de
Sousa, que assumiu o lugar de provedor do lar mesmo antes
da morte do pai.
87
ali mesmo na varanda, à luz fraca das cinco da tarde. Donana
pôs entre seus dedos sem força a imagem de Cristo de prata,
que lhe presenteara a mãe” (RÊGO, 2009, p. 43). Depois da
morte do marido, Donana vive a solidão do luto e pouco é
citada ao longo da obra. A sua morte se quer foi representada
em algum momento da trama.
Considerações finais
88
representar personagens importantes para o Piauí, além de
ser rica em detalhes o cotidiano da sociedade e da
representação da mulher.
Referências
89
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M. (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
1997. p. 241-278.
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História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2007.
ZINANI, C. J. Literatura e Gênero: A construção da identidade
feminina. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006.
90
CAPÍTULO IV
MELHORANDO A SOCIEDADE AO
MUDAR O PAPEL FEMININO: UMA
ANÁLISE COMPARATIVA DOS TEXTOS
WOMEN AND ECONOMICS, THE YELLOW
WALLPAPER E MAKING A CHANGE, DE
CHARLOTTE PERKINS GILMAN
91
A pressão do pensamento antagônico;
1 Texto original: In duty bound, a life hemmed in, / Whichever may the spirit turns to
look; / No chance of breaking out, except by sin; / Not even room to shirk — / Simply
to live, and work. / An obligation preimposed, unsought, / Yet binding with the force
of natural law; / The pressure of antagonistic thought; / Aching within, each hour, /
A sense of wasting power. / A house with roof so darkly low / The heavy rafters shut
the sunlight out; / One cannot stand erect without a blow; / Until the soul inside /
Cries for a grave — more wide.
92
feminino.”2, cuja ambições iam muito além das limitações
impostas ao seu gênero. Em muitos aspectos, ela tinha ideias
muito avançadas para seu tempo, e o direito ao voto, que era
o mais importante elemento do movimento de mulheres
naquele período, não era a coisa mais importante para ela: era
apenas um pequeno passo em direção a uma completa
mudança na sociedade. Entretanto, após sua morte, seus
escritos foram relegados a uma posição inferior, e ela foi quase
completamente esquecida, até seu “redescobrimento”, na
década de 1960, por uma nova geração de feministas que
ficaram encantadas com sua vida, que teria sido “mais vívida
do que qualquer livro.”3 (SCHWARTZ, 1989, p. viii, tradução
nossa).
93
apresentados, nos três textos, como as chaves para as relações
humanas.
94
tudo, ele tem todo o campo da expressão
humana aberto para ele. Em nossa constante
insistência em proclamar a distinção de sexo,
passamos a considerar a maioria dos
atributos humanos como masculinos, pela
simples razão de que eram permitidos ao
homem e proibidos às mulheres (GILMAN,
1900, p. 43, tradução nossa)4.
4 Texto original: From the time our children are born, we use every means known to
accentuate sex-distinction in both boy and girl; and the reason that the boy is not so
hopelessly marked by it as the girl is that he has the whole field of human expression
open to him besides. In our steady insistence on proclaiming sex-distinction we have
grown to consider most human attributes, for the simple reason that they were allowed
to man and forbidden to women.
95
ajuda para John, um grande descanso e conforto, e aqui estou
eu já um peso comparável!”(GILMAN, 1989, p. 5, tradução
nossa)5.
thankfulness; she was his wife — the mother of his child. Her happiness lifted and
pushed within till she longed more than ever for her music, for the free-pouring current
of expression, to give forth her love and pride and happiness. She had not the gift of
96
Gilman afirma que a noção de que cabe ao marido
sustentar sua esposa, considerada então como uma “lei
natural”, como a epígrafe sugere, não é de forma alguma
natural, pois em nenhum dos outros animais a fêmea é
sustentada pelo macho, exceto por períodos de extrema
necessidade. Até o final do século XIX e início do século XX,
entretanto, a maiorias das mulheres era sustentada por
homens durante toda sua vida, como se elas não fossem
capazes de prover por si mesmas. Ela observa:
words.
7 Texto original: We are the only animal species in which the female depends on the male
for food, the only animal species in which the sex relation is also an economic relation.
With us an entire sex lives in a relation of economic dependence upon the other sex,
and the economic relation is combined with the sex relation. The economic status of the
human female is relative to the sex-relation
97
In Na espécie humana, a condição é
permanente e geral, embora haja exceções, e
embora o século atual esteja testemunhando
o início de uma grande mudança a esse
respeito. Estamos acostumados a encarar
esse fato além de nossa generalização de que
é "natural", e de que outros animais também
o fizeram. (GILMAN, 1900, p. 19, tradução
nossa)8.
8 Texto original: In the human species the condition is permanent and general, though
there are exceptions, and though the present century is witnessing the beginnings of a
great change in this respect. We have been accustomed to face this fact beyond our loose
generalization that is was “natural,” and that other animals did so, too.
9 Texto original: While a traditional view would hold that sex, gender, and sexuality are
the same — that a biological male, for example, “naturally” acquires the masculine
behavioral norms of his society, and that his sexuality “naturally” evolves form his
hormones — scholarship in a number of disciplines shows that concept of masculinity
98
Razão versus emoção
vary widely within various societies and historical periods, and that sexuality is a
complex phenomenon shaped by social and personal experience
10 Texto original: men view the smallest female steps toward autonomy as threatening
bound up with the more general question of how one perceives the world.
99
mulheres: homens têm uma visão racional do mundo,
enquanto mulheres são mais conectadas com a imaginação e
a emoção. Despret (2011, p. 31-32) aponta que
100
vistas e colocadas em números.”13 (GILMAN, 1989, p. 1,
tradução nossa). Por outro lado, Frank, de Making a Change
(1911), não é tão racional, pois ele é um homem sensível que
“tinha se apaixonado profunda e desesperadamente pela
beleza exaltada e mente sutil da jovem professora de
música.”14 (GILMAN, 1911, p. 3, tradução nossa).
13 Texto original: John is practical in the extreme. He has no patience with faith, an intense
horror of superstition, and he scoffs openly at any talk of things not to be felt and seen
and put down in figures.
14 Texto original: had fallen deeply and desperately in love with the exalted beauty and
101
entretenimento e terror de paredes e móveis simples do que a
maioria das crianças poderia encontrar em uma loja de
brinquedos.”17 (GILMAN, 1989, p. 6, tradução nossa). Julia,
embora não tenha uma imaginação tão forte, é uma mulher
muito sensível, com sentimentos fortes que ela não consegue
expressar com palavras. A música é sua forma de expressar
seus sentimentos e ideias, e, quando ela é obrigada a desistir,
ela se sente muito mal, assumindo, entretanto, a necessidade
de sacrificar-se por seu marido: “Aqui estava uma nobre
devoção por parte da jovem esposa, que idolatrava tanto o
marido que ela costumava desejar ter sido a maior musicista
da Terra – que ela pudesse desistir por ele!”18 (GILMAN, 1911,
p. 3, tradução nossa).
17 Texto original: used to lie awake as a child and get more entertainment and terror out
of blank walls and plain furniture than most children could find in a toy-store.
18 Texto original: Here was a noble devotion on the part of the young wife, who so
worshipped her husband that she used to wish she had been the greatest musician on
Earth—that she might give it up for him!
102
mulher se casar? Gilman (1900, p. 64, tradução nossa) dá a
seguinte resposta:
19 Texto original: The girl must marry: else how live? The prospective husband prefers
the girl to know nothing. He is the market, the demand. She is the supply. And with
the best intentions the mother serves her child’s economic advantage by preparing her
for the market. This is an excellent instance. It is common. It is most evil. It is plainly
traceable to our sexuo-economic relation.
20 Texto original: Even the least intelligent husband realizes (and some of the most
intelligent believe) that a change in marriage profound enough to satisfy the fleeing
wives would profoundly alter the foundation of that conservative community, the
family.
103
talvez como uma forma de chamar atenção para o fato de que
o casamento, embora seja “a aventura da mulher, o objeto de
sua busca, o fim de sua jornada.”21 (HEILBRUN, 1978, p. 309,
tradução nossa), é também uma forma de fechar a mulher no
espaço doméstico, com a desculpa de que tal espaço é “a
esfera própria da mulher, seu lugar divinamente ordenado,
seu fim natural.”22 (GILMAN, 1900, p. 65, tradução nossa).
21 Texto original: the women’s adventure, the object of her quest, her journey’s end.
22 Texto original: the women’s proper sphere, her divinely ordered place, her natural end.
23 Texto original: reflect the women writer’s own discomfort, her sense of powerlessness,
104
O trabalho que a esposa realiza no lar é dado
como parte de seu dever funcional, não como
emprego. A esposa do homem pobre, que
trabalha em uma casa pequena, fazendo todo
o trabalho para a família, ou a esposa do
homem rico, que sabiamente e graciosamente
administra uma casa grande e coordena sua
função, cada uma tem direito a um
pagamento justo por serviços prestados. 24
24 Texto original: The labor which the wife performs in the household is given as part of
her functional duty, nor as employment. The wife of the poor man, who works in a
small house, doing all the work for the family, or the wife of the rich man, who wisely
and gracefully manages a large house and administers its function, each is entitled to
fair pay for services rendered.
25 Texto original: If Frank had been an alienist, or even a general physician, he would
have noticed it. But his work lay in electric coils, in dynamos and copper wiring—not
in women’s nerves—and he didn’t notice it.
105
Em The Yellow Wallpaper (1989, p. 1, tradução nossa),
John não vê doença alguma em sua esposa, pois ele, como
médico, vê somente os corpos sadio da mulher, e é incapaz de
entender seus problemas mentais. Ela parece ter mais
consciência do que ele sobre o quê está acontecendo: “John é
médico, e talvez – (eu não diria isso a uma alma viva, claro,
mas este é um papel morto e um grande alívio para minha
mente) – talvez seja uma das razões de eu não melhorar mais
rápido. Veja, ele não acredita que eu estou doente.”26
(destaque no original).
26Texto original: John is a physician, and perhaps — (I would not say it to a living soul,
of course, but this is a dead paper and a great relief to my mind) — perhaps that is one
reason I do not get well faster. You see, he does not believe I am sick.
27 Texto original: patriarchal socialization literally makes women sick, both
106
femininas” de que as mulheres vitorianas sofriam nem
sempre eram subprodutos de sua formação em feminilidade;
eles eram o objetivo de tal treinamento (tradução nossa)”.28
for women in particular patriarchal culture has always assumed mental exercices
would have dare consequences.
30 Texto original: she had given up her music, perforce, for many months and missed it
107
formas de educar a criança, foi muito para ela: “Julia estava
mais à beira do desastre completo do que a família sonhava.
As condições eram tão simples, tão usuais, tão inevitáveis.”31
(GILMAN, 1911, p. 3, tradução nossa). Ela decide mudar as
coisas, dando a Frank alguma paz, por meio de sua
autodestruição, ao cometer suicídio.
31 Texto original: Julia was more near the verge of complete disaster than the family
dreamed. The conditions were so simple, so usual, so inevitable.
32 Texto original: If a physician of hight standing, and one’s own husband, assures friends
and relatives that there is really nothing the matter with one but temporary nervous
depression — a slightly hysterical tendency — what is one to do?
108
desordens nervosas. De acordo com Schwartx (1989, p. xv,
tradução nossa), a cura, que consistia “em o paciente não
fazer nada ... deixou Gilman quase morta; a paciente fictícia
não tem recursos para se salvar.”33 A “cura pelo repouso”,
como Gilman aponta em sua autobiografia, foi designada para
“o empresário exausto de tanto trabalho, e as mulheres da
sociedade exausta de tanto brincar.”34 (SHUMAKER, 1985, p.
591, tradução nossa).
33 Texto original: of the patient’s doing nothing… drove Gilman nearly dead; the fictional
patient does not have the resources to save herself.
34 Texto original: the businessman exhausted from too much work, and the society
symptoms are nervousness and weight loss, the treatment must be undisturbed
tranquillity and good nutrition.
36 Texto original: with its images of barred windows and sinister bedsteads.
109
fico muito cansado quando tento. É tão desanimador não ter
um conselho e companhia sobre o meu trabalho.”37
(GILMAN, 1989, p. 6, tradução nossa).
37 Texto original: I think sometimes that if I were only well enough to write a little it would
relieve the press of ideas and rest me. But I find I get pretty tired when I try. It is so
discouraging not to have an advice and companionship about my work.
38 Texto original: Half the human race is denied free productive expression, is forced to
confine its productive human energies to the same channels as its reproductive sex-
energies. Its creative skill is confined to the level of immediate personal bodily service,
to the making of clothes and preparing of food for individuals.
110
meu poder de imaginação e hábito de fazer histórias, uma
fraqueza nervosa como a minha certamente levará a todo tipo
de fantasias excitadas, e que devo usar minha vontade e bom
senso para controlar a tendência.”39 (GILMAN, 1989, p. 6,
tradução nossa).
39 Texto original: He says that with my imaginative power and habit of story-making, a
nervous weakness like mine is sure to lead to all manner of excited fancies, and that I
ought to use my will and good sense to check the tendency
111
que aguento”.40 (GILMAN, 1911, p. 5,
tradução nossa).
40 Texto original: “And dear — my own love — I don’t mind it now at all! I love my home,
I love my work, I love my mother, I love you. And as to children — I wish I had six!”
He looked at her flushed, eager, lovely face, and drew he close to him. “If it makes you
as happy as that,” he said, “I guess I can stand it”
41 Texto original: “Don’t say a thing, dearie—I understand. I understand, I tell you! Oh,
112
Pode-se dizer que, de certa forma, a Sra. Gordin se
posiciona contra o patriarcalismo quando ela não apenas
permite que sua nora trabalhe sem o consentimento do filho.
Gallop (1987, p. 322, tradução nossa) afirma que “na tentativa
de ir além do pai, a mãe parece uma alternativa, mas se
estamos tentando ir além do patriarcado, a mãe não está
fora,”42 pois “a instituição da maternidade é a pedra angular
do patriarcado.”43. A mãe de Frank certamente tenta ir contra
o patriarcalismo quando ela decide ajudar a nora
contrariando todas as expectativas, pois normalmente as
mulheres não são amigas de outras mulheres em textos
fictícios. De acordo com Gilman (1900) a razão pela qual não
poderia haver amizade entre mulheres era porque elas não
trabalhavam, e passavam a maior parte do tempo sozinhas,
em casa:
my dear girl—my precious daughter! We haven’t been half good enough to you, Frank
and I! But cheer up now—I’ve got the loveliest plan to tell you about! We are going to
make a change! Listen now!” And while the pale young mother lay quiet, patted and
waited on her heart’s content, great plans were discussed and decided on
42 Texto original: in trying to move beyond the father, the mother looks like an alternative,
113
humana.44 (GILMAN, 1900, p. 196, destaque
no original, tradução nossa).
44 Texto original: The reason why friendship means more to men than to women, and
why they associate so much more easily and freely, is that they are further developed
in race-functions, and that they work together. In the natural association of common
effort and common relaxation is the true opening for human companionship.
45 Texto original: There comes John’s sister. Such a dear girl as she is, and so careful of
me! I must not let her find me writing. She is a perfect and enthusiastic housekeeper
and hopes for no better profession. I verily believe she thinks it is the writing which
makes me sick.
114
si mesma, que fica em casa todo o tempo, que não tem
permissão para trabalhar fora.
115
Se Julia, como mãe, deve cuidar de seu filho, como ela
poderia sair de casa para trabalhar? Sua sogra dá a solução:
ela cuidaria do neto, a quem ela ama muito. Fica claro, desde
o início, que Julia, embora amando o esposo, e desejando ser
uma boa esposa e mãe, não estava preparada para a
maternidade. Entretanto, supõe-se que mulheres tenham o
“instinto maternal”, que é “sagrado” e “divino”. Gilman não
concorda com tal ideia:
116
treinados, não deixados às volatilidades do
“instinto maternal”.49.
49 Texto original: outline radical ideas on them meaning and ramifications of human
work, on the institutions of marriage and the family … on motherhood, and on
childbearing in particular, which she vehemently believed should be entrusted to
trained professionals, not let to the volatilities of “maternal instinct”.
50 Texto original: It is fortunate Mary is so good with the baby. Such a dear baby!
51 Texto original: There’s one comfort, the baby is well and happy, and does not have to
occupy this nursery with the horrid wallpaper. If we had not used it, that blessed child
would have. What a fortunate escape! Why, I wouldn’t have a child of mine, an
impressionable little thing, live in such a room for worlds.
117
Julia encontra uma forma de expressar sua imaginação
e seus sentimentos por meio de sua música, escapando da
morte e reencontrando sua quase perdida identidade. A
protagonista de The Yellow Wallpaper (1989) é proibida de usar
sua imaginação por meio da escrita, então ela se volta para o
papel de parede amarelo, no qual ela vê barras ou grades,
atrás das quais ela se vê, caminhando direto para a loucura,
libertando sua mente enquanto perde sua identidade.
Shumaker (1985, p. 590, tradução nossa) afirma que “ao tentar
ignorar e reprimir sua imaginação, em suma, John acaba
provocando as mesmas circunstâncias que deseja prevenir.”52.
Ao final da narrativa, ela destrói o papel de parede e sua
identidade, ela já não é ela mesma, ela é a mulher que estava
atrás do padrão barrado / “gradeado” do papel de parede,
de onde ela fugiu, e ninguém pode colocá-la de volta. Para
Shumaker (1985, p. 597, tradução nossa), “em certo sentido,
ela descobriu, pouco a pouco, e finalmente revelou a John, a
esposa que ele está tentando criar – a mulher sem ilusões ou
imaginação que passa o tempo todo rastejando.”53. Sua perda
de identidade fica muito clara: “Continuei rastejando do
mesmo jeito, mas olhei para ele por cima do ombro.
“Finalmente consegui sair”, disse eu, “apesar de você e de
Jane. E eu tirei a maior parte do papel, então você não pode
52 Texto original: by trying to ignore and repress her imagination, in short, John
eventually brings about the very circumstances he wants to prevent.
53 Texto original: in a sense, she has discovered, bit by bit, and finally revealed to John,
the wife he is attempting to create — the woman without illusions or imagination who
spends all her time creeping.
118
me colocar de volta!”54 (GILMAN, 1989, p. 20, tradução
nossa).
54 Texto original: I kept on creeping just the same, but I looked at him over my shoulder.
“I’ve got out at last,” said I, “in spite of you and Jane. And I’ve pulled off most of the
paper, so you can’t put me back!
55 Texto original: female identity is a process.
56 Texto original: the very idea that her work might be beneficial to her disturbs John. He
119
De alguma forma, a atividade escrita parece sempre ter
sido prerrogativa masculina, sendo a energia criativa própria
dos homens, que ganham poder com isso. Gilbert e Gubar
(1979, p. 10, tradução nossa) afirmam que, quando tal energia
aparece em uma mulher, “pode ser anômalo, bizarro, porque
como uma característica masculina, é essencialmente ‘não
feminino’”57. As autoras também apontam que há uma noção
patriarcal, espalhada na civilização literária ocidental, que
clama para que o escritor seja tipo um deus que: “‘cria’ seu
texto como Deus criou o mundo.”58 (GILBERT; GUBAR, 1979,
p. 4, tradução nossa). Não é de se admirar, então, que a
protagonista de The Yellow Wallpaper hesite em pegar a caneta
ao ser proibida pelo esposo de escrever e, como toda mulher
escritora “de autoria de um Deus masculino e de um homem
semelhante a um deus, morta em uma imagem perfeita de si
mesma”59 (GILBERT; GUBAR, 1979, p. 15, tradução nossa),
sua autocontemplação “pode-se dizer que começou com um
olhar penetrante no espelho do texto literário com inscrições
masculinas. Lá ... olhando longamente, ela veria ... um
prisioneiro enfurecido: ela mesma.”60 (GILBERT; GUBAR,
1979, p. 15, tradução nossa).
is both fearful and contemptuous of her imaginative and artistic powers, largely
because he fails to understand them or the view of the world they lead her to.
57 Texto original: it may be anomalous, freakish, because as a male characteristic, it is
essentially ‘unfeminine’.
58 Texto original: ‘fathers’ his text just as God has fathered the world.
59 Texto original: authored by a male God and by a godlike male, killed into a perfect
image of herself.
60 Texto original: may be said to have begun with a searching glance into the mirror of
120
É possível ser livre no casamento?
the male inscribed literary text. There … looking hard enough, she would see … an
enrage prisoner: herself.
121
[…]
61 It is so hard to talk with John about my case, because he is so wise, and because he loves
me so. But I tried it last night. […] I thought it was a good time to talk, so I told him
that I really was not gaining here, and that I wished he would take me away. “Why,
darling!” said he, “our lease will be up in three weeks, and I can’t see how to leave
before”.
62 And in after years he was heard to remark, “This being married and bringing up
122
Mas sua loucura não é sua derrota, pelo contrário.
Aparentemente, ela é a vitoriosa, pois, ao final, ele desmaia
ao vê-la engatinhando ao redor do quarto. Entretanto,
como Gilbert e Gubar (1979, p. 91, tradução nossa)
observam:
63 Texto original: But John’s unmasculine swoon of surprise is the least of the triumphs
Gilman imagines for her madwoman. More significant are the madwoman’s own
imaginings and creations, mirages of health and freedom with which her author
endows her like a fairy godmother showering gold on a sleeping heroine.
123
dessa mistura básica de interesse pecuniário
e conforto da criatura, e que homens e
mulheres, eternamente atraídos pela força
mais profunda na natureza, possam
finalmente encontrar um plano de amor puro
e perfeito.64 (GILMAM, 1900, p. 193, tradução
nossa).
64 Texto original: In reality, we may hope that the most valuable effect of this change in
the basis of living will be the cleansing of love and marriage from this base admixture
of pecuniary interest and creature comfort, and that men and women eternally drawn
together by the deepest force in nature, will be able at last to meet a plane of pure and
perfect love.
65 Texto original: Of course if you were in any danger, I could and would, but you really
are better, dear, whether you can see it or not. I am a doctor, dear, and I know. You are
124
Por outro lado, Frank é um eletricista, um homem
simples que não se importa de ter uma esposa que seja sua
igual, e que gosta de música como parte dela mesma. Ele é
capaz de ouvir opiniões dos outros, e de entender os
sentimentos dos outros, e se sente muito bem quando
percebe que as pessoas que ele ama estão tão felizes como
ele próprio.
getting flesh and color, your appetite is better, I feel really much easier about you.
66 Texto original: He was pleased, too, vastly pleased, to have her health improve rapidly
and steadily, the delicate pink come back to her cheeks, the soft light to her eyes; and
when she made music for him in the evening, soft music, with shut doors — not to
waken Albert — he felt as if his days of courtship had come again.
125
tais condições pode não ser bem- sucedido. Making a
Change, por sua vez, pode representar o tipo de casamento
ideal, a união utópica entre pessoas iguais na qual um
respeita o outro enquanto seres humanos que ambos são.
Considerações finais
67 Texto original: Gender is not only a question of difference, which assumes that the sexes
are separate and equal; but of power, since in looking at the history of gender relations,
we find sexual asymmetry, inequality, and male dominance in every known society.
126
interiores, o mundo seria melhor e um gênero não dominaria
o outro, e homens, mulheres e crianças teriam muito mais paz
e liberdade.
68 Texto original: We shall have homes that are places to live in and love in, to rest in and
play in, to be alone in and to be together in; and they will not be confused and declassed
by admixture with any industry whatever. … The relation of wife to husband and
mother to child is changing for the better with this outward alteration. All the personal
relations of the family will be open to a far purer and fuller growth
127
as mulheres como objetos de domínio, nada teria acontecido.
É necessário não reproduzir a mesma estrutura”.69
Referências
69 Texto original: if the success of women’s studies would be to constitute men as an object
of study and women as mastering objects, nothing will have happened. It is necessary
not to reproduce the same structure.
128
GALLOP, J. Reading the mother tongue: psychoanalytic feminist
criticism. Critical Inquiry, v. 13, p. 314-329, 1987.
GARDINER, J. K. On female identity and writing by women.
Critical Inquiry, v. 8, p. 347-361, 1981.
GILBERT, S. M.; GUBAR, S. No man’s land: the place of the
women writer in the twentieth century. New Haven: Yale
University Press, 1987. v. 1.
GILBERT, S. M.; GUBAR, S. The Madwoman in the attic: the
women writer and the nineteenth century literary imagination.
New Haven: Yale University Press, 1980.
GILMAN, C. P. Making a Change. Forerunner, v. 2, n. 12, p. 1-5,
1911.
GILMAN, C. P. The Yellow Wallpaper and other writings. New
York: Bentom Books, 1989.
GILMAN, C. P. Women and Economics: a Study of the
Economic Relation Between Men and Women as a Factor in
Social Evolution. London: G. P. Putnam’s Sons; Boston: Small,
Maynard & Company, 1900.
HARRIS, S. K. “But is it any good?”: evaluating nineteenth-
century American women’s fiction. American Literature: a
journal of Literary History, Criticism and Bibliography, v. 63, n.
1, p. 43-61, 1991.
HEILBRUN, C. G. Marriage and Contemporary Fiction. Critical
Inquiry, v. 5, p. 309-322, 1978.
SCHWARTZ, L. S. Introduction. In: GILMAN, C. P. The Yellow
Wallpaper and other writings. New York: Bentom Books, 1989.
p. vii-xxviii.
SHOWALTER, E. Introduction: the rise of gender. In:
SHOWALTER, E. Speaking of Gender. London: Routledge,
1989. p. 1-13.
SHUMAKER, C. “Too terribly good to be printed”: Charlotte
Gilman’s The Yellow Wallpaper. American Literature: a journal
129
of Literary History, Criticism and Bibliography, v. 57, n. 4, p. 588-
599, 1985.
130
CAPÍTULO V
A PROSTITUTA SAGRADA E A
PROFANA NO ENREDO LITERÁRIO
BRASILEIRO
Gil Derlan Silva Almeida
131
construção de uma identidade que chamaremos aqui de “eu
profano”.
132
termos, pois sua sexualidade não é
superficial, não é motivada por projeto
consciente ou por exigências inconscientes.
Não se trata de comportamento aprendido,
de capacidade adquirida ou de questão de
habilidade, mas sim de sutileza de seu ser,
das profundidades de sua alma. Seu
semblante exprime força, “uma força
misteriosa que todos sentem, mas que
filósofo algum jamais explicou” (QUALLS-
CORBETT, 1990, p. 96).
133
suas atuações e performances. A mesma história que a
consagrou deusa no passado antigo, a usou como instrumento
de controle da vida sexual dos homens burgueses da Idade
Moderna. Essas mulheres desempenharam diversos papéis na
história da humanidade e das discussões sobre a sexualidade
feminina.
134
uma figura cheia de erotismo e paixão que conseguiu uma
vida de luxo e badalação na corte às custas da venda de seu
próprio corpo. Tem-se assim, um misto de significação
sagrada e profana dentro de um mesmo ser, brindando assim
uma personagem fabulosa e recheada de conflitos internos
que são eixos geradores para as atitudes da personagem.
135
O furor sexual e o sonho do matrimônio: Vanju, Cais da
Sagração, Josué Montello
136
significativas que foram escolhidas pra
transmitir. “A roupa é uma linguagem
articulada” (ECO, 1989, p. 17).
137
Vanju era mulher janeleira, aquela que tinha os homens aos
seus pés, mesmo sem se arrumar era bonita, uma beleza que
irradiava excitação a quem contemplasse e que enfeitiçou o
barqueiro de Cais da Sagração (MONTELLO, 1981).
138
suprimir o desejo de ser de mais de um homem. Afirma-se
que a personagem amava Severino, mas o ardor e a possível
aventura de um romance com Genésio atiçavam o imaginário,
o que nos leva ao questionamento de que se viva, a traição
teria ou não acontecido. Por um determinado período, Vanju
conseguiu manter, dentro de um molde de mulher casada e
fiel, a clara representação de seu eu sagrado, mas o desejo e a
aventura que permeiam o ato proibido enfeitiçam a rapariga,
temos então o eu profano vindo à tona mais uma vez.
139
Lucíola (2002), do mestre indianista, a figura da cortesã é
moldada como uma mulher que anda sobre duas fronteiras
dentro de si, que demonstra seu lado sagrado, representando
um amor casto, o dever e a intimidade apaziguadora do
universo da vida familiar. E no outro, o espaço da luxúria, da
ruidosa vida mundana, da embriaguez e do mercado do
prazer, dando as caras a seu eu profano.
140
reproduz o raio do sol por mil facetas [...]” (ALENCAR, 1998,
p. 53).
141
mesa, as vistas da sociedade da corte carioca. Trata-se de uma
manifestação de seu eu profano e vê-se assim uma figura
representativa que vai da imprudência ao cinismo
rapidamente. Uma mulher que não se incomoda com
estigmas sociais e que personifica um abismo de perdição na
alma.
142
É no auge do Romantismo brasileiro que o
escritor José de Alencar escandaliza o público
leitor de romances - formado essencialmente
por mulheres e jovens estudantes das classes
abastadas - quando apresenta sua cortesã a
jovem e bela Lúcia, protagonista da obra
Lucíola [...] A partir daí, as representações da
prostituta têm-se mostrado bastante diversas
e recorrentes nas ficções brasileiras. E após as
primeiras décadas do século passado, estas
personagens começaram a “circular” de uma
maneira e em espaços cada vez mais
surpreendentes e denunciadores
(MOREIRA, 2007, p. 241).
143
A professora do amor: Elza Fraülein, Amar, Verbo
Intransitivo de Mário de Andrade
144
amante, mostra-nos a expressão feminina com autoria e
autonomia.
145
moral e a ordem pré-estabelecidas e o lado profano ao
transgredi-los para aperfeiçoar e consolidar a iniciação
amorosa e sexual de seu pupilo. Fraülein é uma prostituta
diferente das demais já explicitadas neste trabalho, não usa de
sensualidade e erotismo, acredita no amor e quer que Carlos
a compreenda para seja um homem pronto para a vida pós-
matrimônio.
146
percebia a própria infelicidade. Era verbo ser” (ANDRADE,
1987. p. 104).
Considerações finais
147
figura feminina, uma gama de histórias que jogava fora o ideal
de sociedade pura e casta e a identificava como adúltera e
adepta dos serviços da prostituição.
Referências
148
ZILBERMAN, R. A mulher e a leitura: representações. In:
MENDES, A. M.; CARVALHO, D. B. A.; ZINANI, C. J. A. (Org.).
Literatura e Gênero: alteridade e poder (des) construindo
paradigmas. Teresina: EDUFPI, 2016. p. 147-168.
149
150
CAPÍTULO VI
NOITES AFINS: MORTE E DESEJO NO
CONTO NOITE NA TAVERNA
Patrícia de Sousa Santos
151
desejos ocultos dos boêmios, que atravessavam as cidades a
saborear cada canto e viela.
152
refúgio as suas angústias e a morte. Predomina na obra o estilo
pesado e obscuro, algo que acaba marcando boa parte do
trabalho de Álvares de Azevedo, que por conta de problemas
de saúde tinha no “prenúncio” da morte, inspiração para
parte de sua poesia.
153
Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a
febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda
nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. (AZEVEDO,
2006, p. 9).
Desejo burguês
154
O livro foi publicado após a morte de Álvares de
Azevedo, em 1855, a publicação dessa obra póstuma
demonstraria toda a importância que o autor tinha para a
literatura brasileira, inclusive inaugura um novo momento na
escrita do autor de amante submisso a amante platônico e
passional. Alguns intelectuais na atualidade o apontam como
sendo uma literatura fantástica (BATALHA, 2011), reforçam
esse termo especialmente pela narrativa, que o levaria a um
universo inexistente, irreal aliado ao real. Para o trabalho
proposto o que nos interessa é a “morte” como musa,
inspiração e motivação.
155
antes dominados por uma minoria de bens nascidos, ou seja,
assumir os postos da aristocracia, “[...] ‘grande burguesia’ de
banqueiros, grandes industriais e, às vezes, altos funcionários
civis, aceita por uma aristocracia que se apagou ou que
concordou em promover políticas primordialmente
burguesas” (HOBSBAWN, 1977, p. 129), um foco para o estilo
de vida dessa classe em franco crescimento.
156
O estilo de vida boêmio, que sem dúvida
trouxe uma contribuição importante à
invenção do estilo de vida do artista, com a
fantasia do trocadilho, a blague, as canções, a
bebida e o amor sob todas as formas,
elaborou-se tanto contra a existência bem-
comportada dos pintores e dos escultores
oficiais quanto contra as rotinas da vida
burguesa (BOURDIEU, 1996, p. 72).
157
mudar as formas de governo na maioria dos países europeus;
e outra artística - na qual a ansiedade e “o horror” do moderno
eram transformados em arte.
158
expoentes da poesia romântica. Como já citado, Álvares
mantém “estreitos laços” com a morte principalmente por
conta de seus problemas de saúde, mas isso não o separou das
tavernas, nem da vida libertina que tinha boa parte dos
intelectuais da época.
159
homem contemporâneo, que veria a morte como fim, uma
eterna luta contra a vida, mas, segundo o autor apenas os
romancistas e poetas tinham a ousadia de dá voz a morte.
160
Os estrangeiros descritos por Azevedo vêm de um
universo “sem regras”, mesmo circunscritos em espaços
urbanos conhecidos, praças, bares, igrejas e tavernas, eles
parecem imersos em um mundo paralelo permissivo e
libidinoso, um mundo fantástico, como sugere alguns autores
ao tratar a obra (BATALHA, 2011), onde o sexo tão reprimido
é vivido de forma intensa e, por vezes, mortal.
161
como também o Deus Cristão é visto como utopia, como
objeto de fanatismo. Deus sufocaria os desejos, portanto, ele é
excluído e, afastado dos libertinos.
162
Deus não existe na lógica do transgressor, pois ele seria
o que impede os corpos de viver livremente, ante a divindade
surgiria aquela que extrapola os desejos e que serve aos
corpos em delírio, o sexo tão religiosamente combatido,
aproximaria o povo da morte o deixaria ao lado do sopro
derradeiro, essa sensação que os transgressores buscam, os
aproximariam da sua essência animal, como afirma Foucault
(2001).
163
corrompido. “É um requintar de gozo blasfemo que mescla o
sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez
da crença” (AZEVEDO, 2006, p. 27), uma fé no desejo, no culto
ao gozo que “perderia” de clérigos aos mortais, que se
entregam ao corpo puro de uma moça ou a morbidez de um
corpo desacordado, violado pela ânsia da posse imposta pelos
personagens.
164
Para Solfieri, a moça não estava morta apenas dormia,
pois sofria de catalepsia, sendo desperta horas depois em seus
braços, a moça então acorda, durante dois dias e duas noite
vive com ele momentos de convulso delírio, o ápice do desejo
viria com a morte da moça, morte que viria entre os goles de
vinho e sorrisos descontrolados de um corpo quase sem vida,
pois para Solfieri ela ainda vivia, seu último gole veria a sua
entrega nos braços do anjo da morte.
165
do homem, que tanto fascinou o Romantismo
e tem por correlativo manifesto a noite, cuja
presença envolve as duas obras e tantas
outras de Álvares de Azevedo como
ambiente e signo (CÂNDIDO, 1989, p. 17).
166
assassinato Ângela “desafia a morte” como forma de
encontrar o erotismo.
167
era necessário viver os momentos intensamente, assim
Bertram e Ângela vivem o extremo, tomando como “sentido
último do erotismo, a morte” (MORAES, 2002, p. 51), morrer
não é o fim, mas um possível recomeço.
168
escreve Sade, “contém a libertinagem..., a
verdadeira maneira de espalhar e multiplicar
os desejos é querer lhe impor limites.” Nada
contém a libertinagem..., ou melhor, de
forma geral, não há nada que reduza a
violência (BATAILLE, 1987, p. 31).
169
O abandono faz com que o Bertram discuta a condição
humana perante a sua fragilidade de homem, “o que é o
homem? É a escuma que ferve hoje na torrente e amanhã
desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de
fatal como o sepulcro!” (AZEVEDO, 2006, p. 39). O homem de
Álvares é fraco e suscetível à dor, é nada e, portanto, está
exposto às “desventuras do amor”, quem sabe não amor no
sentido poético e divino, mas carnal, formado pela vontade
como diz André Maurois de viver os “amores físicos”
(MAUROIS, 1965, p. 343), feitos especialmente das loucuras
do desejo e do desafio à morte.
170
autor conquista liberdade através da linguagem, nesse caso é
a escrita, que o permite romper barreiras e travestir-se como
quiser, seriam as possibilidades dispostas pela literatura.
Como afirma Durval Muniz, a “literatura seria o discurso das
auroras, pois buscaria perceber como as coisas se movem a
caminho de suas próprias formas utilizando as menores
sombras e os menores feixes de luz” (ALBUQUERQUE JR.,
2007, p. 5). A liberdade disposta pelos personagens de Álvares
só foi possível graças à literatura e sua apropriação desses
minúsculos feixes de luz, a história que durante anos pareceu
apartada dos literários hoje se apropria deles para caracterizar
uma sociedade.
171
amante perdido. A mulher que antes era provida de
incomparável beleza, agora tinha a “tez lívida, seus olhos
acesos, seus lábios roxos, suas mãos de mármore”
(AZEVEDO, 2006, p. 72). Ela era a aclamada e desejada morte
que veio visitá-los, oferecendo seu suspiro e o desejo
derradeiro.
172
O homem Álvares apesar de não ter vivido todas as
aventuras de seus personagens, estava ali, inserido nas suas
conquistas, era sua alma e seus desejos que estavam expostos,
fazendo com que a escrita de Noites na Taverna se aproxime
dos relatos autobiográficos. Foi sua aproximação com a morte
que o fez clamá-la, a necessidade de chegar ao ápice do desejo
tornou-o amante e servo da morte, com ela tomou os últimos
goles da vida.
Considerações finais
173
sugerir encontros furtivos entre os sujeitos que agora se
encontravam nesse ambiente religioso.
Referências
174
HOBSBAWN, E. J. A Era das revoluções: Europa 1789- 1848. 8.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
MAUROIS, A. De Proust a Camus. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1965.
MORAES, E. R. O corpo impossível: a decomposição da figura
humana – de Lautremout a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2002.
MOTT, L. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o
calundu. In: SOUZA, L. M. (Org.). História da vida privada no
Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2018. p. 155-220.
WEBER, M. Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: UNB, 2012.
175
176
CAPÍTULO VII
177
insurgente, não se convencia da aparente normalidade
daquela sociedade que vivia sob os encantos proporcionados
pelas mudanças advindas da modernização, ou, do “fim” de
um processo de escravidão.
178
das quais podemos entender o lugar da mulher na sociedade
patriarcal brasileira do século XX e XXI.
179
a partir dela refletir sobre as mudanças ocorridas, sobre as
repetições de determinadas práticas discriminatórias, sobre os
lugares ainda reservados às mulheres em uma sociedade
erguida e sustentada pelas decisões masculinas.
180
Ou seja, a proteção neste romance tem duas realidades,
se por um lado o pai de Clara, a protegia na esperança de que
arrumasse um bom rapaz e assim conseguisse o tão almejado
casamento, por outro lado, a mãe de Cassi o protegia de um
casamento com uma mulher que julgava inadequada.
Salustiana, mãe de Cassi era uma senhora preconceituosa que
não aceitava o filho se casar com uma jovem pobre e morena,
como o autor se refere à cor da protagonista. Por essa razão, o
defendia dos problemas causados devido ao seu
envolvimento com as mulheres que, em sua maioria, estavam
inseridas na mesma realidade de Clara: pobres e negras.
181
e negligentes com a educação dos filhos, porque necessitavam
deixá-los, quando precisavam, com outras pessoas.
182
e a ficar em casa, mesmo necessitando trabalhar devido a sua
condição financeira.
183
gênero acentuava a incidência da violência. O
desrespeito às suas condições existenciais
traduzia-se em agressões físicas e morais. Foi
o que ocorreu, na situação em pauta, através
da imputação à Lídia do exercício da
prostituição, a mais infamante pecha para
uma mulher na época (SOHIET, 2004, p. 307).
184
passivas e inconscientes para os militantes políticos, perdidas
e “degeneradas” para os médicos e juristas, as trabalhadoras
eram percebidas de vários modos” (RAGO, 2004, p. 484).
Como se percebe é uma interpretação masculina sobre as
mulheres, não é de se estranhar diante de uma sociedade com
regras e julgamentos elaborados e ditados por homens, em
sua maioria, logo, a literatura feminina foi apresentada do
ponto de vista masculino.
185
resistência. Sem rosto, sem corpo, a operária
foi transformada numa figura passiva, sem
expressão política nem contorno pessoal
(RAGO, 2004, p. 485).
186
entendê-la. Tomando como referência as discussões de Joan
Scott, é importante frisar que o termo gênero provavelmente
tenha feito sua primeira aparição entre as feministas
americanas, com a pretensão de frisar o caráter fundamental
social das diferenças baseadas no sexo.
187
direcionadas a diversos segmentos que foram por muito
tempo deixados à margem das discussões, tais como o negro,
a mulher, o pobre que aparecem em diversas relações na
literatura de Lima Barreto e nos convidam para pensar os seus
lugares naquela e nesta sociedade.
188
interesse nessas questões e não no casamento e menos ainda
nos afazeres domésticos, comum naquela sociedade.
189
compreender os resultados das estruturas sociais baseadas na
associação dos diversos tipos de subordinação, e a forma
como o preconceito se manifesta, uma vez que a
interseccionalidade,
190
chama a atenção para o preconceito e a discriminação racial,
de gênero e de classe existente. “As mulheres racializadas
frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o
racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram”
(CRENSHAW, 2002, p. 177).
191
o seu enlace era um desastre sem desculpa
aos seus olhos (BARRETO, 1950, p. 8).
192
Talvez o casamento nem tivesse para ela a importância
construída no imaginário social, mas foi através dele que as
mulheres também poderiam ser vistas como importantes,
dependendo com quem se casassem, poderiam ser
consideradas mulheres direitas e de prestígio.
193
alcançado o prestígio que ela tanto desejava. O matrimônio
seria bom se trouxesse para ela o prestígio do marido, motivo
pelo qual se dedicava a preparação dele quanto às promessas
que deveria dar aos eleitores.
194
quanto às situações desfavoráveis nas relações de igualdade
étnica, social e de gênero.
195
Realizada essa primeira parte do romance, o autor se
ocupa na apresentação da protagonista, mostra os cuidados
de seu pai.
196
respondiam e punham-se a pilheriar com Clara: Dizia
Marramaque: - Então, minha afilhada, quando se casa? - Nem
penso nisso, respondia ela, fazendo um trejeito faceiro”
(BARRETO, 1948, p. 38). Esse jeito faceiro, desconstruía a
resposta dada automaticamente, ela, se interessava pelo
matrimônio, assim como a maioria das moças de sua época. O
assunto casamento não era apenas por parte da família, o
padrinho também demonstrava preocupação. Ou seja, a
escolha poderia inclusive ser de outras pessoas próximas a
família, mas não apenas da moça. Além do mais um homem,
intervindo na questão, vale salientar que o papel do padrinho
era visto como relevante na educação dos afilhados.
197
Lafões respondeu: - É o Cassi. [...] Acabaram
de tomar café. Clara afastou-se com a bandeja
e as xícaras cheia de uma forte, tenaz e malsã
curiosidade: - Quem seria êsse Cassi?
(BARRETO, 1948, p. 38-39).
198
contrária ao casamento do filho com uma moça que tivesse as
mesmas condições de Clara. O pai de Cassi e um tio irmão de
sua mãe, não aprovavam o comportamento do rapaz que
insistia em continuar com essa prática de enganar as moças
sem sentimentos e compromissos.
199
perdida, por êsse ou por aquele; que fôra
uma cilada que lhe armaram, para encobrir
um mal feito por outrem e por o saberem de
boa família, etc., etc. (BARRETO, 1948, p. 42).
A discriminação interseccional é
particularmente difícil de ser identificada em
contextos onde forças econômicas, culturais e
sociais silenciosamente moldam o pano de
fundo, de forma a colocar as mulheres em
uma posição onde acabam sendo afetadas
por outros sistemas de subordinação. Por ser
tão comum, a ponto de parecer um fato da
vida, natural ou pelo menos imutável, esse
pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes,
invisível (CRENSHAW, 2002, p. 06).
200
Essas condições estão juntas, é necessário entendê-las
e relacioná-las com a representação de Clara dos Anjos na
estrutura das relações sociais, a partir de sua condição social
e étnica. Nesta perspectiva, Lima Barreto chama a atenção
para a compreensão das segregações discutidas na
interseccionalidade e possibilita entender quanto Clara dos
Anjos estava inserida em diversas categorias, sofria a
desigualdade social devido à pobreza de sua família, bem
caracterizada no início do romance. Clara é jovem, negra, uma
condição étnica não aceita pela mãe de Cassi, pobre, isso
mostra o quanto a mulher sofre o peso do julgamento de uma
sociedade preconceituosa, excludente, patriarcal e machista,
mas esse preconceito nem sempre é compreendido,
principalmente quando vem acompanhado de outras
categorias discriminatórias nem sempre identificáveis.
Considerações finais
201
escrita marca sobretudo uma forma peculiar de discutir
temáticas urgentes nas questões relacionadas ao preconceito,
à desigualdade social, e às de gênero, esse diálogo se faz
necessário na construção de uma sociedade mais justa,
democrática e conhecedora de sua história e do lugar ocupado
por homens e mulheres nessa construção.
202
mas a capacidade de ir além das complexidades das relações
de gênero.
Referências
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SOBRE OS ORGANIZADORES
205
SOBRE OS AUTORES
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Patrícia de Sousa Santos
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