Práticas Sociais Entre A Literatura e A História-3

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INSTITUTO FEDERAL DO MARANHÃO

Carlos Cesar Teixeira Ferreira


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S587p

Práticas Sociais Entre a Literatura e a História /


Organizadores: Thiago Coelho Silveira e Maria do Socorro Baptista
Barbosa. São Luís, MA: EDIFMA, 2022. 207p.
ISBN: 978-65-5815-069-5
I. Literatura. II. História. III. Sociedade.

CDU: 821
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Luis Rodolfo Cabral Sales
Ciências da Saúde
Raffaelle Andressa dos Santos Araújo
Ciências Sociais Aplicadas
Johnny Herberthy Martins Ferreira
Nilvanete Gomes de Lima
SUMÁRIO

Prefácio – A Transgressão da Escrita: História,


9 Literatura e Sociedade
Pedro Pio Fontineles Filho

11 Apresentação

De Inocente e Indefesa a Destemida e


Sedutora: relações de gênero em Company of
19 Wolves de Angela Carter
Maria do Socorro Baptista Barbosa
Thiago Coelho Silveira

Escrita Feminina na Cidade de União (PI):


49 instrução e modernidade, nos anos de 1920
Jayra Barros Medeiros

Em Busca de Donana: análise de um perfil


feminino em Vaqueiro e Visconde de José
71 Expedito Rêgo
Vicencia Rozilda Gomes Pinheiro
Thiago Coelho Silveira
Melhorando a Sociedade ao Mudar o Papel
Feminino: uma análise comparativa dos textos
91 Women And Economics, The Yellow Wallpaper e
Making A Change, de Charlotte Perkins Gilman
Maria do Socorro Baptista Barbosa
A Prostituta Sagrada e a Profana no Enredo
131 Literário Brasileiro
Gil Derlan Silva Almeida
Noites Afins: morte e desejo no conto Noite na
151 Taverna
Patrícia de Sousa Santos
(Re)Escrevendo a Mulher Numa Perscpectiva

177 de Interseccionalidade a Partir de Lima


Barreto
Roseilda Maria da Silva

205 Sobre os Organizadores

206 Sobre os Autores


PREFÁCIO
A TRANSGRESSÃO DA ESCRITA:
HISTÓRIA, LITERATURA E SOCIEDADE
A transgressão é um gesto relativo ao limite: é aí,
na tênue espessura da linha, que se manifesta o
fulgor de sua passagem, mas talvez também sua
trajetória na totalidade, sua própria origem. A
linha que ela cruza poderia também ser todo o seu
espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece
ser regido por uma obstinação simples: a
transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a
transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente
se fecha de novo em um movimento de tênue
memória, recuando então novamente para o
horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai
além de colocar em ação tais elementos; ele os situa
em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas
quais o pensamento rapidamente se embaraça por
querer apreendê-las (FOUCAULT, 2001, p. 32)

A página em branco, em primeiro momento e para


muitos, parece ser o limite para a linguagem, pois indicaria a
sua ausência. No entanto, é possível pensar que a página em
branco, ou qualquer papel em branco, seria a linguagem em
sua plenitude, visto que no “vazio” da página reside toda e
qualquer possibilidade de escrita. O possível e impossível
estão amalgamados na brancura da folha. Dessa maneira, tal
página é o limite-catalisador que, de maneira híbrida,
restringe e potencializa a escrita ao mesmo tempo.

9
É em meio a esse caráter transgressor que o presente
texto prefacial surgiu, pois partiu do limite-catalisador da
página em branco. A plenitude da linguagem, ou da escrita
propriamente dita, está no mote impulsionador dos textos que
compõem a presente coletânea. Os próprios artigos aqui
apresentados também nasceram desse intento de
transgressão, pois romperam com os limites da página, ao
colocarem em funcionamento os elementos das hipóteses,
problematizações, objetivos, teorias, empirias e sínteses.
Fizeram a transposição da atividade do pensamento para a
instrumentalização daqueles elementos, configurando suas
escritas. Os autores tiveram, e têm, a plena consciência de que
nos conflitos entre a Literatura como fonte de e para a História
não se pode esquecer de que é a partir do próprio texto
literário que as problematizações devem surgir. Tempos,
Espaços, Sujeitos e Narrativas são aspectos e componentes
que estão presentes tanto na História quanto na Literatura.
São pontos de inflexão e de diálogos entre os dois campos de
saber. É nessa consciência de que “a objetividade ou a
transcendência da história é uma miragem, pois o historiador
está engajado nos discursos através dos quais ele constrói o
objeto histórico” (COMPAGNON, 2010, p. 219), que se pode
entender muitas das aproximações entre História e Literatura.

O leitor vai se deparar, ao longo deste livro, com essa


transgressão em diferentes níveis e perspectivas,
dependendo, sobretudo, da sua própria disponibilidade em
não se deixar preso a limites históricos e socialmente

10
cristalizados sobre o fazer histórico e o fazer literário. Cada
leitor, conforme Roger Chartier, apresenta diferentes
maneiras de ler, que trazem “gestos específicos, os seus
próprios usos dos livros, o seu texto de referência”
(CHARTIER, 1990, p. 131). A pluralidade de leituras e
recepções do livro é uma marca indelével do âmbito
transgressor da escrita, de seus usos e consumos. A múltipla
característica da coletânea se inscreve, também, na polissemia
dos termos História e Literatura, que trabalham e operam com
categorias comuns aos dois campos do conhecimento.

Em De Inocente e Indefesa a Destemida e Sedutora: relações


de gênero em Company of Wolves de Angela Carter, os autores,
Maria do Socorro Barbosa e Tiago Silveira, trazem reflexões
acerca das relações entre literatura e gênero a partir da
releitura de um conto de fadas tradicional. A proposta dos
autores é demonstrar e problematizar como o discurso
literário é indício das transformações e conflitos da sociedade,
em seus diferentes espaços e tempos. A literatura, para os
autores, transgride e transforma as maneiras de ver e de sentir
o mundo e no mundo.

Escrita feminina na cidade de União (PI): instrução e


modernidade, nos anos de 1920 é o título do artigo assinado por
Jayra Barros Medeiros. Nesse texto, a historiadora traça
alguns paralelos entre História, Cidade, Imprensa e escrita
literária, para pensar os espaços disputados e rusgados entre
homens e mulheres. Em tal intento, a autora percebe que as

11
narrativas dos jornais sobre os quais se debruça apontam para
debates que partem das relações de gênero, mas que se
inscrevem, também, no cotidiano e nas mentalidades da
cidade no período republicano em seus primeiros anos.

Em Busca de Donana, manuscrito de coautoria de


Vicencia Rozilda Gomes Pinheiro e Thiago Coelho Silveira,
traz à baila o debate sobre o papel feminino e sobre as relações
de gênero no livro de José Expedito Rêgo, intitulado Vaqueiro
e Visconde. Nas inflexões entre o internacional, nacional e
local, os dois historiadores provocam o leitor a, inicialmente,
problematizar os sentidos e significados dos limites e
fronteiras das “espacialidades”, como demarcadores do que é
“ser piauiense”. O ser mulher “piauiense” está nos processos
sociais, políticos, econômicos e culturais que, resguardadas as
devidas proporções temporais e espaciais, também
constituem o ser mulher “brasileira” e o ser mulher
“estrangeira”. Para tanto, Vicencia Rozilda e Thiago Silveira
tomam questões objetivas e subjetivas, como a dor, para
demonstrar que o tolhimento social da mulher é uma prática
universal, observada pelos autores na vida das personagens
do livro analisado, em especial de Donana, considerada
matriarca de família poderosa e tradicional piauiense, ainda
no século XVIII. Tolhimento tal que, em larga medida, parece
se acentuar quando outras variantes são aglutinadas, como a
etnia, a classe social, a escolaridade.

12
Em Melhorando a sociedade ao mudar o papel feminino,
Maria do Socorro Baptista Santos, faz incursões pela obra da
escritora norte-americana, Charlotte Perkins Gilman. Socorro
Baptista, atenta à dimensão processual dos acontecimentos na
história, chama atenção do leitor para o fato de que a escritora
teve uma trajetória pessoal e literária marcada pelo viés
radical do pensamento feminino, ainda no século XIX. Os
silenciamentos, que, por questões das regras das artes e por
aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos, aplacaram
o maior conhecimento da obra da escritora. Charlotte foi
(re)visitada por feministas da década de 1960, incrementando
novos debates. Socorro Baptista toma a esfera econômica com
o pretexto para dar visibilidade às questões das relações de
poder e de gênero, entre o fictício e o não fictício, que
engendraram a obra engajada de Charlotte. Socorro Baptista,
por meio de suas leituras de Charlotte, acredita na
possibilidade, para além da utopia, de que é possível a
valorização dos espaços de atuação de homens e mulheres,
com equidade de condições.

Gil Derlan Almeida teve a missão de contribuir ainda


mais com a proposta transgressora da coletânea. Para tal,
apresenta ao leitor a figura da prostituta para despertar a
análise e a compreensão do papel social dessa mulher ao
longo da história, ou melhor, como essa mulher é
representada em diferentes temporalidades e espacialidades
na narrativa literária. O autor toma a prostituição como
possibilidade de compreender as estratégias e táticas sociais

13
(CERTEAU, 1994), que demarcam os lugares de ação e de
atuação dos sujeitos, sejam homens ou mulheres.

Em Noites a Fins: morte e desejo no conto Noite na Taverna,


Patrícia Santos faz da transgressão a sua força motriz de
reflexão, pois expõe a morte e o desejo como elementos que se
excluem e se completam ao mesmo tempo na narrativa do
conto Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo. A sexualidade
é pensada a partir dos discursos e memórias que os
personagens do conto revelam. Partindo disso, a autora tenta
vislumbrar aspectos sociais, históricos, culturais e literários
do momento de produção, circulação e consumo da narrativa
de Álvares de Azevedo. A autora problematiza, também, os
aspectos biográficos e autobiográficos, pois considera que, em
larga medida, Álvares de Azevedo se projetava por meio de
seus personagens.

O livro Clara dos Anjos, de Lima Barreto, é o texto


literário a partir do qual Roseilda Maria da Silva objetiva
compreender a condição feminina e as relações de gênero,
tendo como mote as noções de interseccionalidade. Em seu
artigo, (Re)Escrevendo a mulher numa perspectiva de
interseccionalidade a partir de Lima Barreto, a autora pretende
inferir sobre as (des)continuidades das relações de gênero,
sobretudo no que tange aos lugares de atuação da mulher na
estrutura de uma sociedade patriarcal, nos séculos XX e XXI.
De maneira perspicaz, a autora não se furta das análises de
temáticas como a pobreza e a condição do negro na sociedade

14
brasileira, visto que a personagem de Clara dos Anjos aglutina
em si tais elementos socioeconômicos. Nesse sentido, as
muitas categorias de interseccionalidade são apresentadas ao
passo que as múltiplas distâncias, discriminações e
desigualdades sociais. Aspectos ligados, também, ao papel
das famílias nas relações sociais, assim como os casamentos,
dão indícios da interseccionalidade e da história do
patriarcalismo brasileiro.

Os capítulos aqui agrupados são transgressões que


promovem novos olhares sobre o manancial teórico-
metodológico e os possíveis da história da sociedade,
sobretudo a partir do discurso e narrativa literários. Essas
possibilidades só se manifestam quando se entende que o
conhecimento do mundo social acontece “na luta política, luta
ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou
de transformar o mundo social, conservando ou
transformando as categorias de percepção desse mundo”
(BOURDIEU, 2010, p. 142). São capítulos que transgridem a
paralisia das pesquisas científicas e permitem ampliar o olhar
sobre as relações intrínsecas e motivadoras entre História e
Literatura, com o objetivo de desnaturalizar a percepção
hermética do que é real e ficcional.

Prof. Dr. Pedro Pio Fontineles Filho – UESPI/UFPI

15
16
APRESENTAÇÃO

Esta publicação apresenta os resultados de trabalhos


de pesquisa desenvolvidos por pesquisadores que transitam
entre a História e a Literatura, pertencentes aos quadros de
instituições de ensino sediadas nos estados do Maranhão,
Paraná e Piauí, possuindo em comum a intenção de alcançar
as práticas sociais de sujeitos reais ou fictícios enquanto
elementos constituidores da própria sociedade em si.

Reunidos em torno deste eixo comum, os capítulos


aqui organizados permitirão que o leitor entre em contato
tanto com a literatura estrangeira como com a literatura de
língua portuguesa de diferentes autorias. Centrados no plano
da produção histórica, este livro contém ainda capítulos que
retratam o papel da mulher ou discutem a escrita feminina,
em diálogo com a produção literária no estado do Piauí.

De modo geral, o livro como um todo direciona a


análise para dar visibilidade a sujeitos nem sempre visíveis na
produção acadêmica e/ou na história, como as mulheres
escritoras, as bruxas, as donas de casa, a mulher considerada
feia, a prostituta, a mulher negra. Tais personagens, quando
não são invisíveis, são estereotipadas, tendo suas identidades
negadas ou tolhidas pela sociedade na qual elas se inserem.
Por isso, entendemos que escrever sobre tais seres, seja
personagens literários, seja personagens históricos, é uma

17
forma de trazê-las à tona e dar-lhes, se não uma total
visibilidade, pelo menos uma possível lembrança, que pode
suscitar, no leitor deste livro, a curiosidade e a necessidade de
melhor conhecê-las.

Thiago Coelho Silveira

Maria do Socorro Baptista Barbosa

(Organizadores)

18
CAPÍTULO I
DE INOCENTE E INDEFESA A
DESTEMIDA E SEDUTORA: RELAÇÕES DE
GÊNERO EM COMPANY OF WOLVES DE
ANGELA CARTER

Maria do Socorro Baptista Barbosa


Thiago Coelho Silveira

A literatura transforma-se ao longo do tempo à medida


que a própria sociedade também passa por mudanças. Assim,
enquanto novas obras literárias surgem outras passam por
um processo de releitura, atendendo a um diálogo entre
literatura e sociedade que constantemente se atualiza. Esse
processo perpassa todo o conjunto da produção literária,
inseridos aí os contos de fada e de terror.

Segundo Franz (2013, p. 12), até os séculos XVII e XVIII,


os contos de fada “costumavam ser a forma principal de
entretenimento para as populações agrícolas na época do
inverno”. Para a autora, contar tais histórias chegou a ser
“uma espécie de ocupação espiritual essencial”. Entre esses
contos, podemos destacar a história da garota que ficou
conhecida em língua portuguesa como “Chapeuzinho

19
Vermelho”, “Capuchinho Vermelho”, “Capuzinho
Vermelho” ou “Capinha Vermelha”. Essa narrativa, de
origem desconhecida, mas que chegava aos ouvidos das
crianças e adultos que se sentavam ao redor da fogueira para
espantar o frio por meio da oralidade, e que tem encantado
geração após geração, foi se transformando na própria
oralidade, e na linguagem escrita das mais diversas formas,
de Charles Perrault (século XVII), passando pelos Irmãos
Grimm (século XIX), chegando a Angela Carter (século XX).

Neste artigo, discute-se como as transformações


ocorridas nos textos escritos provocam mudanças não
somente na forma, mas também, e principalmente, no modo
como os (as) autores (as) retratam as personagens femininas
em suas narrativas, marcadamente nas relações que tais
personagens estabelecem com o masculino e consigo mesmas,
com seu corpo e com sua sexualidade.

Na companhia de lobos tornamo-nos mulher

Segundo os estudiosos do assunto, como Franz (2013),


Gardner (2000), Alwin (2013) e outros, Charles Perrault teria
sido o primeiro autor a publicar este conto, em 1697,
direcionando-o ao público infantil. Para Gardner (2000, p. 1,
tradução nossa), essa história começou como “um conto
folclórico que mães e babás europeias contavam a crianças

20
pequenas”1, chamando a atenção do advogado, poeta,
contista e antologista francês, que inclui o conto Le Petit
Chaperon Rouge em uma antologia que logo se tornou clássica
entre os jovens franceses. Analisando a versão de Perrault da
narrativa de Chapeuzinho Vermelho, percebe-se que é uma
narrativa pequena, sucinta, e que termina de modo muito
brutal:

Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa e foi se


enfiar na cama, onde ficou muito espantada
ao ver a figura da avó na camisola. Disse a
ela:

“Minha avó, que braços grandes você tem!”

“É para abraçar você melhor, minha neta.”

“Minha avó, que pernas grandes você tem!”

“É para correr melhor, minha filha.”

“Minha avó, que orelhas grandes você tem!”

“É para escutar melhor, minha filha.”

“Minha avó, que olhos grandes você tem!”

“É para enxergar você melhor, minha filha.”

“Minha avó, que dentes grandes você tem!”

1 Texto original: a folk tale that European mothers and nurses told to young
children.

21
“É para comer você.”

E dizendo estas palavras, o lobo malvado se


jogou em cima de Chapeuzinho Vermelho e
a comeu (PERRAULT, 2010, p. 80-81).

Dessa forma, a menina é severamente punida por ter


desobedecido à mãe, e ter parado para conversar com o lobo
na floresta. Não há perdão para a desobediência da jovem. O
diálogo que ocorre antes da morte da garota parece indicar
que a menina não tinha percebido ainda que não era com a
avó que estava conversando, não se percebe medo nem
hesitação em sua fala. As perguntas, na realidade, mostram
curiosidade diante do corpo da avó que pode ser visto
também como curiosidade diante do próprio corpo. É preciso
lembrar que, no contexto em que os contos de fada eram
narrados, nada ou quase nada era permitido às meninas. A
descoberta da sexualidade era vista pela família como uma
preocupação, um problema. O fato de que a menina tira a
roupa e se deita com a “avó” tem uma forte conotação sexual,
sendo essa parte muitas vezes retirada da narrativa.

Percebe-se ainda, nesta narrativa, o total domínio do


lobo, que representaria, então, o total domínio do masculino e
a impotência e ou ingenuidade das personagens femininas:
tanto a avó como a menina são devoradas, sem possibilidade
de salvação. Na lição de moral incluída ao final do texto
perraultiano a questão da sexualidade fica ainda mais clara:

22
Vemos aqui que as meninas,

E sobretudo as mocinhas

Lindas, elegantes e finas,

Não devem a qualquer um escutar.

E se o fazem, não é surpresa

Que do lobo virem o jantar.

Falo “do” lobo, pois nem todos eles

São de fato equiparáveis.

Alguns são até muito amáveis,

Serenos, sem fel nem irritação.

Esses doces lobos, com toda educação,

Acompanham as jovens senhoritas

Pelos becos afora e além do portão.

Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos,

São, entre todos, os mais perigosos

(PERRAULT, 2010, p. 82).

23
A citação acima reforça a ideia de que “ser devorada
pelo lobo” tem um sentido muito mais metafórico do que real,
e que o cuidado que as jovens devem ter com a besta selvagem
seria o cuidado necessário consigo mesmas, no sentido de
evitar seduções e situações que as colocariam em posições
constrangedoras. Os “lobos gentis e prestimosos” podem ser,
inclusive, parte da família, em quem as garotas usualmente
confiam, o que faz com que a inclusão da lição de moral ao
final da narrativa seja tão importante quanto a própria
narrativa, sobretudo por se tratar de um período da história
em que a virgindade feminina era vista como seu mais
precioso bem.

Como afirma Waelti-Walters (1994, p. 185, tradução


nossa):

Visto que a mulher é considerada não apenas


uma pessoa, mas uma mercadoria, a
reputação do sedutor é igual à de um homem
feliz que tem sucesso na vida. Mas se seduzir
traz crédito, ser seduzido é, ao contrário, uma
desgraça. O descrédito moral sofrido pela
mulher seduzida é, na verdade, depreciação
material. Ao perder a virgindade, ela cai ao
nível de um objeto usado; ela se junta a outras
“mulheres contaminadas”, produtos
danificados que são difíceis de comercializar.
Assim, para uma jovem, a honestidade é a
sua virgindade2.

2 Texto original: Since woman is considered not only a person but a commodity, the

24
O castigo dado a Chapeuzinho Vermelho na versão de
Perrault também pode ser visto como metafórico,
representando a morte não somente física, mas
principalmente a morte social, tanto da jovem seduzida, que
perde o valor de mercado apontado por Waelti-Walters
(1994), como da avó, que por ser idosa, há muito já não tem
esse valor, sendo sua única função naquela sociedade
proteger e alertar a jovem neta. Desse modo, ambas as
personagens são retratadas como seres frágeis, reforçando a
inferioridade da mulher na sociedade da época.

Em 1812, quando os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm


reescreveram a história, surge uma figura salvadora, o
caçador, que mata o lobo, resgata a menina e a avó, enchendo
o estômago da besta de pedras:

- Ó avó, que boca grande, assustadora, você


tem!

- É para melhor te comer.

Assim que pronunciou estas últimas


palavras, o lobo saltou fora da cama e

reputation of the seducer equals that of a happy man who succeeds in life. But if
seducing brings credit, being seduced is, on the contrary, a disgrace. The moral
disrepute suffered by the seduced woman is in fact material depreciation. By losing her
virginity she falls to the level of a used object; she joins other “tainted women”,
damaged goods that are hard to market. Thus, for a young woman, honesty is her
virginity.

25
devorou a coitada da Chapeuzinho
Vermelho.

Saciado o seu apetite, o lobo deitou-se de


costas na cama, adormeceu e começou a
roncar muito alto. Um caçador que por acaso
ia passando junto à casa pensou: “Como essa
velha está roncando alto! Melhor ir ver se há
algum problema”. Entrou na casa e, ao
chegar junto à cama, percebeu que havia um
lobo deitado nela.

“Finalmente te encontrei, seu velhaco”, disse.


“Faz muito tempo que ando à sua procura!”

Sacou sua espingarda e já estava fazendo


pontaria quando atinou que o lobo devia ter
comido a avó e que, assim, ele ainda poderia
salvá-la. Em vez de atirar, pegou numa
tesoura e começou a abrir a barriga do lobo
adormecido. Depois de algumas tesouradas,
avistou um gorro vermelho. Mais algumas, e
a menina pulou fora, gritando: “Ah, eu
estava tão apavorada! Como estava escuro na
barriga do lobo!”

Embora mal pudesse respirar, a idosa vovó


também conseguiu sair da barriga. Mais que
depressa Chapeuzinho Vermelho catou
umas pedras grandes e encheu a barriga do
lobo com elas. Quando acordou, o lobo
tentou sair correndo, mas as pedras eram tão
pesadas que suas pernas bambearam e ele
caiu morto (GRIMM, 2010, p. 149-151).

26
Percebe-se a existência do mesmo diálogo, mas uma
diferente finalização: tanto a menina como a avó são
devoradas inteiras, e depois resgatadas pelo caçador, que
assume o papel de herói, usualmente representado nos contos
de fada por príncipes, pais e irmãos das jovens indefesas. No
caso da história da menina da capa vermelha quem salva as
personagens femininas é um caçador, figura muito
importante no contexto no qual a história se insere: uma vila,
próxima a uma floresta, provavelmente repleta de animais
selvagens. O caçador representa, assim, uma figura crucial
para a manutenção da própria vila, protegendo-a dos animais
e garantindo também o alimento, a carne. É possível também
perceber que a cena em que a menina tira a roupa e se deita
com o lobo não consta da narrativa dos irmãos alemães, pois
ela sai vestida de dentro do animal. Assim, qualquer
conotação sexual que a relação lobo / menina pudesse ter fica
apagada, perdida.

Nesta versão, a garota sobrevive e promete nunca mais


desobedecer à mãe: “Chapeuzinho Vermelho disse consigo:
‘Nunca se desvie do caminho e nunca entre na mata quando
sua mãe proibir’” (GRIMM, 2010, p. 151), o que denota a
intencionalidade dos autores em doutrinar as meninas
segundo as normas de conduta e moral de sua época.

De acordo com Gardner (2000, p. 2, tradução nossa), a


narrativa é simples e direta: “sua moral óbvia é que as crianças
devem obedecer às mães quando elas caminham por áreas

27
perigosas e ter cuidado com estranhos aparentemente
amigáveis”3. Esta simplicidade, não só do conto aqui
estudado, mas dos contos de fada de modo geral, entretanto,
é questionada por Bettelheim, que afirma:

As figuras e situações dos contos de fadas


também personificam e ilustram conflitos
internos, mas sempre sugerem sutilmente
como estes conflitos podem ser solucionados
e quais os próximos passos a serem dados na
direção de uma humanidade mais elevada
(2002, p. 25).

No caso específico de Chapeuzinho Vermelho, o


psicólogo infantil assegura que a menina vive um momento
pré-puberdade no qual transita entre dois espaços seguros: a
casa dos pais e a casa da avó. Saindo voluntariamente da casa
paterna para visitar a senhora idosa, ela não percebe o perigo
da floresta: “Para Chapeuzinho o mundo fora do lar paterno
não é uma selva ameaçadora onde a criança não consegue
encontrar o caminho. Existe uma estrada bem conhecida, da
qual a mãe aconselha-a a não se desviar” (BETTELHEIM,
2002, p. 184). Para o autor, a ausência de medo é que leva ao
perigo, pois pode levá-la a pensar no prazer que não lhe era
permitido:

Se o mundo fora do lar e do dever se torna


atraente demais, poderá acontecer uma volta

3 Texto original: its obvious moral is that children should obey their mothers when they
walk through dangerous areas, and to beware of seemingly friendly strangers.

28
a um comportamento baseado no princípio
do prazer - que, presume-se, Chapeuzinho já
havia abandonado em favor do princípio da
realidade, graças aos ensinamentos paternos
- podendo então ocorrer graves choques
(BETTELHEIM, 2002, p. 184).

Enquanto no texto de Perrault há pouca possibilidade


dessa chamada ao prazer, no conto dos Irmãos Grimm isso se
torna bem visível na fala do lobo quando se encontra com a
garota na floresta:

“Chapeuzinho, notou que há lindas flores


por toda parte? Por que não para e olha um
pouco para elas? Acho que nem ouviu como
os passarinhos estão cantando lindamente.
Está se comportando como se estivesse indo
para a escola, quando é tudo tão divertido
aqui no bosque.”

Chapeuzinho Vermelho abriu bem os olhos e


notou como os raios de sol dançavam nas
árvores. Viu flores bonitas por todos os
cantos e pensou: “Se eu levar um buquê
fresquinho, a vovó ficará radiante. Ainda é
cedo, tenho tempo de sobra para chegar lá,
com certeza”.

Chapeuzinho Vermelho deixou a trilha e


correu para dentro do bosque a procura de
flores. Mal colhia uma aqui, avistava outra
ainda mais bonita acolá, e ia atrás dela.
Assim, foi se embrenhando cada vez mais na
mata (GRIMM, 2010, p. 147-148).

29
Nesse momento, a garota demonstra estar em conflito
entre o que “quer fazer” e o que “deve fazer”, e somente se
lembra de suas obrigações quando não consegue mais pegar
flores. É o peso já excessivo daquelas que colhera que a faz se
lembrar da avó, e retomar o caminho, chegando lá tarde
demais para salvar a velha senhora. Para Bettelheim (2002, p.
185):

Chapeuzinho Vermelho é na realidade uma


criança que já luta com problemas pubertais,
para os quais ainda não está preparada
emocionalmente pois ainda não dominou os
problemas edípicos. [...] Chapeuzinho deseja
descobrir as coisas, como indica a
advertência materna para que não fique
espionando os cantos. Ela observa que algo
está errado quando encontra a avó
“parecendo muito estranha”, mas se
confunde com o disfarce do lobo nas roupas
da avó. Chapeuzinho está tentando entender,
quando pergunta à Avó sobre suas orelhas
grandes, quando observa os olhos grandes e
questiona as mãos enormes e a boca horrível.
Aqui temos uma enumeração dos quatro
sentidos: audição, visão, tato e paladar que a
criança púbere usa para compreender o
mundo.

‘Chapeuzinho Vermelho’, de forma


simbólica projeta a menina nos perigos do
conflito edípico durante a puberdade, e
depois salva-a deles, para que ela possa
amadurecer livre de conflitos. As figuras

30
maternais, a mãe e a bruxa … são
insignificantes em Chapeuzinho, onde nem a
mãe nem a avó podem fazer nada - nem
ameaçar nem proteger. O macho, em
contraste, é de importância capital, dividido
em duas figuras opostas: a do sedutor
perigoso que, se cedermos a ele, se
transforma no destruidor da avó boa e da
menina; e a do caçador, a figura paterna
responsável, forte e salvadora. É como se
Chapeuzinho tentasse entender a natureza
contraditória do homem vivenciando todos
os aspectos da personalidade dele: as
tendências egoístas, associais, violentas e
potencialmente destrutivas do id (o lobo); e
as propensões altruístas, sociais, reflexivas e
protetoras do ego (o caçador).

Na análise do psicólogo se percebe, com clareza, uma


forte predominância dos elementos patriarcais e paternalistas
constitutivos dos contos de fada, nos quais o masculino
representa tanto o mal, a sedução, o despertar da sexualidade
não adequada para uma jovem honesta, como nos alerta
Waelti-Walters (1994), como o bem, o protetor, aquele que a
afasta do prazer pecaminoso, garantindo que sua virgindade
se mantenha até o casamento.

Um importante fator a se pensar na discussão dessas


duas versões de Chapeuzinho Vermelho, bem como na versão
que agora começamos a analisar, The Company of Wolves, de
Angela Carter, é como se estabelecem as relações entre
diferentes relações de mulheres. Diferentes mulheres de

31
diferentes gerações tendem a se comportar de forma diversa
frente a situações semelhantes. O conceito de geração permite
não apenas situarmos as tipologias femininas apresentadas
pela autora no conto, mas situar sua própria obra. “Como
metáfora para a construção social do tempo” (FEIXA;
LECCARDI, 2010, p. 185), o termo geração permite que
compreendamos as diferenças entre comportamentos e
práticas sociais localizadas em diferentes momentos no
tempo. No conto analisado, pode-se perceber essa dimensão
nas maneiras como as personagens femininas são
representadas nas suas relações com as personagens
masculinas.

A forma como isso acontece está intrinsicamente


relacionada ao perfil da autora do conto. Carter é uma
escritora declaradamente feminista e, portanto, seus escritos
são amplamente marcados por personagens femininas cujos
comportamentos rompem com os padrões que se esperaria
para o tempo da narrativa trabalhado na obra. Carter é, dessa
forma, uma autora de uma geração que utiliza a literatura
como uma prática social que reforça, defende e propaga um
ideal de mulher que aceita suas responsabilidades e as
consequências de seus atos enquanto protagonista de algo que
lhe é próprio e singular: a própria vida.

A primeira mulher que aparece na narrativa é uma


bruxa. Não é de estranhar, pois personagens místicas ou com
poderes mágicos são comuns em contos de fada e mesmo de

32
terror. Enquanto conto de terror, The Company of Wolves
mostra uma bruxa poderosa que utiliza seus poderes como
extensão de seus sentimentos, situando os atos mágicos como
uma prática conectada à subjetividade da personagem. Isso a
faz tomar uma atitude cruel sobre os que estão ao seu redor.
Vejamos como Carter apresenta a bruxa: “Uma vez, uma
bruxa do vale transformou uma festa de casamento inteira em
lobos porque o noivo havia escolhido outra garota. Ela
costumava mandar que eles a visitassem, à noite, por
despeito, e eles se sentavam e uivavam em torno de sua
cabana por ela, fazendo uma serenata para ela com sua
miséria.”4 (CARTER, 2006, p. 131, tradução nossa). Nessa
passagem, Carter constrói a representação de uma mulher
poderosa que com seus poderes mágicos foi capaz de
transformar todos que haviam ido à sua festa de casamento
em lobos. Note-se aí um elemento comum às narrativas de
contos de fada: a ideia de que para uma mulher ser
independente ela não poderia ser uma simples mulher, tinha
que ter poderes especiais que, por vezes, a travestia em uma
pessoa má. Nos contos de fada, a mulher bruxa normalmente
aparece em oposição à mulher que leva uma vida considerada
normal, que casa, tem filhos e vive para cuidar do lar e do
marido.

4 Texto original: A witch from up the valley once turned an entire wedding party into
wolves because the groom had settled on another girl. She used to order them to visit
her, at night, from spite, and they would sit and howl around her cottage for her,
serenading her with their misery.

33
Essa oposição por vezes constrói a ideia de que a
mulher bruxa é menor, menos valorosa que aquela outra
mulher. No trecho transcrito, o mesmo acontece. A bruxa é
abandonada porque o homem escolheu outra mulher. Embora
Carter não diga que a outra mulher foi preterida por não ser
bruxa, o uso do termo another girl5 se referindo à outra mulher
como garota deixa transparecer a ideia de que a outra mulher
é pura, inocente e, nesse caso, seria mais apropriada ao
casamento. Por conta da atitude do homem, a bruxa se vinga
nos convidados transformando-os em lobos e obrigando-os a
visitá-la para lhe cantar serenatas em forma de uivos.

A autora não deixa claro o tempo cronológico da


narrativa, mas, por ser uma releitura de “Chapeuzinho
Vermelho”, podemos situá-la na passagem do período
medieval para o período moderno. Nesse momento da
história, a mulher independente não era bem quista e, de
certo, nem permitida. Assim, a associação da mulher
independente a uma bruxa não necessariamente má, mas que
se deixa levar pelo calor dos seus sentimentos, serve para que
Carter comece a construção de um perfil de mulher
independente em oposição a uma mulher submissa, como ela
faz em seguida.

5 outra garota. (tradução nossa)

34
O narrador do conto, que podemos definir como um
narrador participante pela forma como se coloca dentro da
narrativa, segue contando da seguinte forma:

Não faz muito tempo, uma jovem de nossa


aldeia se casou com um homem que
desapareceu completamente na noite de
núpcias. A cama estava feita com lençóis
novos e a noiva deitou-se nela; o noivo disse
que ia sair para se aliviar, insistiu nisso, por
uma questão de decência, e ela puxou a
colcha até ao queixo e ficou ali deitada. E ela
esperou e ela esperou e então ela esperou
novamente - certamente ele já se foi há muito
tempo? Até que ela pula na cama e grita ao
ouvir um uivo, vindo da floresta com o vento
(CARTER, 2006, p. 131, tradução nossa).6

Nesta passagem do conto, a figura da bruxa foi deixada


de lado para dar espaço a uma mulher resignada que casa com
um homem que desaparece na noite do casamento. Quando
ainda estavam em casa, antes das núpcias, ele decide ir ao lado
de fora da casa para se aliviar e a esposa, que cedo deve ter
aprendido a não questionar o marido, permanece na cama,
coberta e à sua espera. Passa o tempo e só depois de muito
esperar é que ela nota seu desaparecimento. Sua postura de

6 Testo original: Not so very long ago, a young woman in our village married a man who
vanished clean away on her wedding night. The bed was made with new sheets and
bride lay down in it; the groom said, he was going out to relieve himself, insisted on it,
for the sake of decency, and she drew the coverlet up to her chin and she lay there. And
she waited and she waited and then she waited again – surely he’s been gone a long
time? Until she jumps up in bed and shrieks to hear a howling, coming on the Wind
from the forest.

35
mulher resignada é reforçada pela autora quando ela conta do
retorno de seu marido, como segue:

Os irmãos da jovem revistaram as


dependências externas e as pilhas de feno,
mas nunca encontraram nenhum vestígio,
então a garota sensata enxugou os olhos e
encontrou outro marido não muito tímido
para mijar em uma panela que passava as
noites dentro de casa. Ela lhe deu dois bebês
lindos e tudo correu bem até que, numa noite
gelada, a noite do solstício, a virada do ano
em que as coisas não se encaixam tão bem
como deveriam, a noite mais longa, seu
primeiro marido voltou para casa (CARTER,
2006, p. 131, tradução nossa).7

De início, percebe-se que a mulher segue a ritualística


da esposa que anseia o retorno do marido. Seus irmãos vão
em busca deste e só depois de acabadas as esperanças ela se
lança a um novo casamento. Neste ponto, percebe-se uma
mudança de postura da personagem, pois ela deixa de ser
passiva em relação ao casamento e ela mesma busca o novo
companheiro. Carter, então, deixa transparecer que de
alguma forma esta mulher toma a dianteira da escolha ao
mesmo tempo em que fica subentendido que o primeiro

7 Texto original: The young woman’s brothers searched the outhouses and the hay-stacks
but never found any remains so the sensible girl dried her eyes and found herself
another husband not too shy to piss into a pot who spent the nights indoors. She gave
him a pair bonny babies and all went right as a trivet until, one freezing night, the night
of the solstice, the hinge of the year when things do not fit togetherness as well as they
should, the longest night, her first good man came home again.

36
casamento havia sido arranjado. O segundo casamento,
portanto, teria mais chances de sucesso uma vez que havia
sido engendrado pela própria mulher. Embora Carter reforce
aqui a necessidade da presença masculina para que a vida da
mulher siga seu curso, podemos dizer que em certa medida a
autora está preparando o leitor para sua personagem
principal, cuja postura destemida e sedutora será discutida
mais tarde. Ainda sobre a mulher e seu novo casamento, a
autora nos conta:

Uma grande batida na porta o anunciou


enquanto ela estava mexendo a sopa para o
pai de seus filhos e ela o conheceu no
momento em que levantou o trinco para ele,
embora fizesse anos que ela não usava preto
para ele e agora ele estava em farrapos e seu
cabelo caía nas costas e nunca vira um pente,
cheio de piolhos. “Aqui estou eu de novo,
senhora” disse ele. “Pegue minha tigela de
repolho e seja rápido.” Então seu segundo
marido entrou com lenha para o fogo e
quando o primeiro viu que ela tinha dormido
com outro homem e, pior, pôs os olhos
vermelhos nos filhos pequenos que entraram
na cozinha para ver o que estava
acontecendo, ele gritou: 'Eu gostaria de ser
um lobo de novo, para dar uma lição a esta
prostituta!' Então um lobo ele
instantaneamente se tornou e arrancou o pé
esquerdo do filho mais velho antes de ser
picado com a machadinha que usavam para
cortar toras. Mas quando o Lobo ficou
sangrando e ofegando pela última vez, a pele

37
se soltou novamente e ele estava exatamente
como estava, anos atrás, quando fugiu de seu
leito conjugal, de modo que ela chorou e seu
segundo marido bateu nela (CARTER, 2006,
p. 132, tradução nossa).8

Com o retorno do marido desaparecido, conforme


descrito acima, uma confusão se instala em casa. O antigo
esposo esperava que a esposa estivesse esperando por ele
resignadamente. Ela por outro lado, vestiu o luto e só depois
de cumprido esta ritualística resolveu se casar novamente. No
entanto, em uma sociedade patriarcal o homem acredita que
sempre está com a razão. Foi essa postura que Carter nos
demonstrou no texto acima. Nesta passagem, a mulher que
havia tomado a dianteira de sua vida ao escolher seu novo
marido, retoma seu antigo papel vivendo sob o jugo do novo
marido. Quando o antigo marido, então transformado em
lobo, ataca seu filho mais velho e é decepado pelo novo esposo
eles podem ver a transformação se desfazer e o lobo voltar a
ser homem. Então a mulher chora e por isso apanha. Carter

8 Texto original: A great thump on the door announced him as she was stirring the soup
for the father of her children and she knew him the moment she lifted the latch to him
although it was years since she’d worn black for him and now he was in rags and his
hair hung down his back and never saw a comb, alive with lice. ‘Here I am again,
missus,’ he said. ‘Get me my bowl of cabbage and be quick about it.’ Then her second
husband came in with wood for the fire and when the first one saw she’d slept with
another man and, worse, clapped his red eyes on her little children who’d crept into
the kitchen to see what all the din was about, he shouted: ‘I wish I were a wolf again,
to teach this whore a lesson!’ So a wolf he instantly became and tore off the eldest boy’s
left foot before he was chopped up with the hatchet they used for chopping logs. But
when the Wolf lay bleeding and gasping its last, the pelt peeled off again and he was
just as he had been, years ago, when he ran away from his marriage bed, so that she
wept and her second husband beat her.

38
não escreve nem uma linha sobre a mulher reagir à violência,
denotando que seu breve momento de independência se
esvaziou quando deixou o luto e casou-se novamente. Não é
de estranhar que Carter faça menção à violência em seu conto.
Além de ser um conto de terror, em que a violência é de se
esperar, tais atos contra as mulheres são temas recorrentes nas
bandeiras de lutas feministas. Por ser ela mesmo feminista,
retratar a violência nesse momento do conto é mostrar uma
das facetas da opressão masculina que precisam ser
combatidas.

Essas duas primeiras narrativas do conto de Carter


servem como prenúncio da narrativa principal, a reescritura
do conto “Chapeuzinho Vermelho”. Assim como a menina
dos contos clássicos, a protagonista de The Company of Wolves
usa uma capa vermelha tecida pela avó, e segue pela floresta
para levar uma cesta de alimentos para a velha senhora. O
encontro na floresta também marca o conflito entre o dever e
o prazer, sendo o segundo muito mais forte e presente:

“É uma aposta?” Perguntou ele. “Vamos


fazer disso um jogo? O que você vai me dar
se eu chegar à casa da sua avó antes de você?”
“O que você gostaria?” Ela perguntou
maliciosamente. “Um beijo.” Lugares-
comuns de uma sedução rústica; ela baixou
os olhos e corou. Ele passou pela vegetação
rasteira e levou sua cesta com ele, mas ela se
esqueceu de ter medo das feras, embora
agora a lua estivesse subindo, pois ela queria

39
perder tempo em seu caminho para ter
certeza de que o belo cavalheiro ganharia sua
aposta (CARTER, 2006, 134-135, tradução
nossa)9

Esquecendo suas obrigações para com sua família, em


especial para com a avó, que a esperava em casa, sozinha, a
garota coloca, com muita clareza, sua própria vontade em
primeiro lugar: ela quer ser seduzida, ela quer aquele beijo
prometido. Não há o medo do que esta sedução possa lhe
causar, conforme a narrativa:

As crianças não ficam jovens por muito


tempo neste país selvagem. Não há
brinquedos para elas brincarem, então elas
trabalham duro e ficam mais sábias, mas esta,
tão bonita e a mais nova de sua família, um
pouco atrasada, foi agraciada por sua mãe e
a avó que lhe tricotou o xale vermelho que,
hoje, tem o aspecto sinistro, embora
brilhante, de sangue na neve; seus seios
apenas começaram a inchar; o cabelo dela
parece fiapo, tão claro que mal faz sombra em
sua testa pálida; suas bochechas são de um
vermelho e branco emblemático e ela acaba
de começar a sangrar como uma mulher, o
relógio dentro dela que baterá, daqui em
diante, uma vez por mês. Ela se levanta e se

9 Texto original: ‘Is it a bet?’ he asked her. ‘Shall we make a game of it? What will you
give me if I get to your grandmother’s house before you?’ ‘What would you like?’ she
asked disingenuously. ‘A kiss.’ Commonplaces of a rustic seduction; she lowered her
eyes and blushed. He went through the undergrowth and took her basket with him but
she forgot to be afraid of the beasts, although now the moon was rising, for she wanted
to dawdle on her way to make sure the handsome gentleman would win his wager

40
move dentro do pináculo invisível de sua
própria virgindade. Ela é um ovo inteiro; ela
é um vaso selado; ela tem dentro de si um
espaço mágico cuja entrada é fechada com
um tampão de membrana; ela é um sistema
fechado; ela não sabe como tremer. Ela tem
sua faca e não tem medo de nada. Seu pai
poderia proibi-la, se ele estivesse em casa,
mas ele está na floresta, juntando lenha, e sua
mãe não pode negar a ela. (CARTER, 2006, p.
133, tradução nossa)10

Consciente do próprio corpo, e certa de que ninguém


pode lhe deter, a garota não tem medo, e essa ausência de
medo é o que, de acordo com Bettelheim (2002), atrai o perigo.
O lobo parece perceber isso, ao fazer a aposta que a faz se
demorar na floresta, deixando o caminho livre para que ele
possa se alimentar da avozinha, sozinha em casa, sem
proteção.

Quando a garota chega à casa da avó, e acredita, a


princípio, que a está vendo, fica visivelmente desapontada

10 Texto original: Children do not stay young for long in this savage country. There are
no toys for them to play with so they work hard and grow wise but this one, so pretty
and the youngest of her family, a little late-comer, had been indulged by her mother
and the grandmother who’d knitted her the red shawl that, today, has the ominous if
brilliant look of blood on snow; her breasts have just begun to swell; her hair is like
lint, so fair it hardly makes a shadow on her pale forehead; her cheeks are an
emblematic scarlet and white and she has just started her woman’s bleeding, the clock
inside her that will strike, henceforward, once a month. She stands and moves within
the invisible pentacle of her own virginity. She is an unbroken egg; she is a sealed
vessel; she has inside her a magic space the entrance to which is shut tight with a plug
of membrane; she is a closed system; she does not know how to shiver. She has her
knife and she is afraid of nothing. Her father might forbid her, if he were home, but he
is away in the forest, gathering wood, and her mother cannot deny her

41
por não ver o jovem sedutor. Logo percebe seu engano, e,
embora assustada ao se dar conta da morte da avó, não fica
com medo de ter o mesmo destino. Solicitada a tirar a amada
capa vermelha, ela assim o faz: “Ela fechou a janela da
trenódia dos lobos e tirou seu xale escarlate, a cor das
papoulas, a cor dos sacrifícios, a cor de sua menstruação e,
como seu medo não lhe fazia bem, ela parou de ter medo.11
(CARTER, 2006, p. 138, tradução nossa, grifo dos autores). Ela
se despe do medo ao se despir da capa, a ideia de que o medo
seria totalmente inútil: o que poderia uma simples garota
contra o poderoso lobo? Esse despir-se do medo, entretanto,
também indica o quanto ela está pronta não somente para ser
seduzida, mas para seduzir, o que fica mais claro à medida
que o conto chega próximo ao final.

Seguindo a trama dos contos de fada já analisados, o


diálogo sobre o corpo se repete, mas a garota sabe
perfeitamente que está perguntando sobre o corpo do rapaz,
ao mesmo tempo em que se desnuda, e mostra o próprio
corpo:

Ela embrulhou seu xale e jogou-o no fogo,


que imediatamente o consumiu. Então ela
tirou a blusa pela cabeça; seus seios pequenos
brilhavam como se a neve tivesse invadido o
quarto.

11 Texto original: She closed the window on the wolves’ threnody and took off her scarlet
shawl, the colour of poppies, the colour of sacrifices, the colour of her menses, and,
since her fear did her no good, she ceased to be afraid.

42
“O que devo fazer com minha blusa?”

“No fogo também, meu bichinho de


estimação.”

[…]

“Que braços grandes você tem.”

“Para te abraçar melhor.”

Cada lobo no mundo agora uivava um


protalâmio fora da janela enquanto ela
livremente dava o beijo que ela devia a ele.

“Que dentes grandes você tem!”

Ela viu como sua mandíbula começou a


escorrer e a sala estava cheia do clamor da
canção de amor da floresta, mas a criança
sábia nunca vacilou, mesmo quando
respondeu:

“Para te comer de melhor.”

A garota começou a rir; ela sabia que não era


carne de ninguém. (CARTER, 2006, p. 138,
tradução nossa)12

12 She bundled up her shawl and threw it on the blaze, which instantly consumed it. Then
she drew her blouse over her head; her small breasts gleamed as if the snow had
invaded the room. ‘What shall I do with my blouse?’ ‘Into the fire with it, too, my pet.’
[…] What big arms you have.’ ‘All the better to hug you with.’ Every wolf in the world
now howled a prothalamion outside the window as she freely gave the kiss she owed
him. ‘What big teeth you have!’ She saw how his jaw began to slaver and the room was
full of the clamour of the forest’s Liebestod but the wise child never flinched, even
when he answered: ‘All the better to eat you with.’ The girl burst out laughing; she

43
Percebe-se que, no ato de se despir, a jovem não hesita,
não questiona as razões do lobo, nem se faz de inocente. Ela
apenas pergunta o que deve fazer com as roupas, e as joga no
fogo como ele sugere. Algumas falas merecem ser destacadas:
ele a chama de “my pet”13, “meu bichinho de estimação”,
como se ela fosse apenas um brinquedo. Entretanto, ela o beija
de livre e espontânea vontade, sem que ele cobre a aposta que
vencera. As perguntas são provocativas, e as respostas a
levam a agir: ao responder que tem braços grandes para a
abraçar, ela o beija; ao responder que tem dentes grandes para
a devorar, ela sorri, largamente. Ela fez um jogo de sedução
no qual ele se julga vencedor, mas é ela quem dá as cartas
finais:

Ela riu dele na cara, arrancou a camisa para


ele e jogou-a no fogo, no rastro de fogo de
suas próprias roupas descartadas. As chamas
dançavam como almas mortas na noite das
bruxas e os ossos velhos debaixo da cama
provocaram um barulho terrível, mas ela não
lhes deu atenção. Carnívoro encarnado, só a
carne imaculada o acalma. Ela deitará a
cabeça temerosa dele em seu colo e tirará os
piolhos de sua pele e talvez coloque os
piolhos na boca e os coma, como ele mandar,
como faria em uma cerimônia de casamento
selvagem. […] Veja! doce e sã, ela dorme na

knew she was nobody’s meat.


13 meu bichinho de estimação. (tradução nossa)

44
cama da vovó, entre as patas do terno lobo.
(CARTER, 2006, p. 139, tradução nossa)14

Se ele é o sedutor, ela certamente não é sua vítima


inocente: é ela quem o despe, e, ao vê-lo transformado em
lobo, o acaricia, o doméstica, em uma “cerimônia de
casamento selvagem” na qual ela pratica todas as ações. O
final deixa muito claro: quem se torna “pet”, “bichinho de
estimação”, é o lobo, em um predomínio, aqui, do feminino
sobre o masculino, em uma trajetória na qual a doce
Chapeuzinho Vermelho que temia desobedecer a mãe se torna
uma mulher decidida e dona do próprio destino.

Considerações finais

As narrativas de contos de fada comumente sugerem


lições de moral cujos objetivos estão direcionados ao
ajustamento dos comportamentos à moral predominante. Por
outro lado, os contos de terror são cheios de enigmas,
suspenses, violência e, por vezes, retratam a sexualidade de
uma forma não esperada.

14 She laughed at him full in the face, she ripped off his shirt for him and flung it into the
fire, in the fiery wake of her own discarded clothing. The flames danced like dead souls
on Walpurgisnacht and the old bones under the bed set up a terrible clattering but she
did not pay them any heed. Carnivore incarnate, only immaculate flesh appeases him.
She will lay his fearful head on her lap and she will pick out the lice from his pelt and
perhaps she will put die lice into her mouth and eat them, as he will bid her, as she
would do in a savage marriage ceremony. […] See! sweet and sound she sleeps in
granny’s bed, between the paws of the tender wolf

45
Em Company of Wolves, Carter faz uma releitura de um
tradicional conto de fadas, Chapeuzinho Vermelho,
transformando-o em conto de terror ao passo em que
representa a personagem principal não mais como inocente e
indefesa, mas destemida e sedutora. Põe, portanto, por terra
as narrativas anteriores do conto, escritas por homem, que
fragilizam o ser feminino frente às adversidades, que
subjugam a mulher sob o poder masculino.

Assim, ao apontar e analisar as diferentes


representações construídas acerca de Chapeuzinho Vermelho,
por diferentes autores em diferentes épocas, deu-se
visibilidade às construções do ser feminino mostrando de
modo intencional como literatura e sociedade permanecem
em diálogo constante, resultando em produções literárias
arquitetadas para a transmissão de determinadas visões de
mundo.

Referências

BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Tradução:


Arlene Caetano. 16 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
CARTER, A. “The Company of Wolves”. In: CARTER, Angela.
The Bloody Chamber and other stories. London: Vintage, 2006.
FEIXA, C.; LECCARDI, C. O conceito de geração nas teorias
sobre juventude. Revista Sociedade e Estado. v. 25, n. 2, p. 185-
204, maio/ago. 2010.

46
GRIMM, J.; GRIMM, W. “Chapeuzinho Vermelho”. 1812. In:
MACHADO, A. M. (Org.). Contos de Fadas: de Perrault, Grimm,
Andersen e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 145-152.
PERRAULT, C. “Chapeuzinho Vermelho”. 1697. In:
MACHADO, A. M. (Org.). Contos de Fadas: de Perrault, Grimm,
Andersen e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 77-82.
VON FRANZ, M. L. A Interpretação dos Contos de Fada. São
Paulo: Paulus, 2013.
WAELTI-WALTERS, J. Feminisms of the Belle Epoque: A
Historical and Literary Anthology. Lincoln: University of
Nebraska Press, 1994.

47
48
CAPÍTULO II
ESCRITA FEMININA NA CIDADE DE
UNIÃO (PI): INSTRUÇÃO E MODERNIDADE,
NOS ANOS DE 1920
Jayra Barros Medeiros

A instrução passa a ser vislumbrada pelas


mulheres como uma forma de obter
reconhecimento intelectual. Essa
convergência em torno da instrução feminina
marca uma modernização de papéis
femininos na sociedade, ao mesmo tempo em
que o cotidiano se dinamiza com o aumento
das perspectivas de educação, trabalho e
lazer para as mulheres na cidade (ROCHA,
2011, p. 48).

Na década de 1920, uma representante da sociedade


unionense deixa sua marca em um periódico de
representatividade nacional, o “Jornal das Moças”, que era
editado no Rio de Janeiro, nos primeiros anos da República, e
contava com a contribuição de seus leitores. Esses leitores
escreviam e publicavam, no referido jornal, sob a forma de
pseudônimos, utilizados especialmente como “artimanha por
mulheres que tinham que se mascarar para não serem
conhecidas e evitarem a censura” (ROCHA, 2011, p. 48). Essa
iniciativa ajudava a consolidar um novo perfil feminino que

49
passava a ser composto pelas mudanças vivenciadas na
cidade.

Desta forma, o objetivo principal do referido artigo é


analisar as concepções sobre as mulheres, na década de 1920,
contidas nos escritos de “Pérola Branca”, da cidade de União
(PI). Esses escritos fazem parte da revista feminina, “Jornal
das Moças”, percebido por nós como “um fio de relato”
afinado com os ideais de civilidade e ou com as demandas da
modernidade1, na Primeira República. Assim como, com as
transformações dos papéis masculinos e femininos que
ganharam formas com as novas concepções que assolavam o
Brasil, no início do século XX. O que nos faz pensar nas
instruções contidas nos referidos escritos, e, portanto, em uma
“cultura escolar” como um conjunto de normas e condutas
que permitem a transmissão de comportamentos que podem
variar segundo as épocas (DOMINIQUE JULIA, 2001). Neste
artigo, defendemos que o periódico possuía características de
uma cultura escolar, na medida em que, permitia a troca de
mensagens por pessoas de todos os estados da federação.
Sendo que, essas mensagens continham, muitas vezes,

1 Para tanto, levamos em consideração que a vertigem fantasmagórica do homem


moderno possui ressonâncias em espaços ditos “periféricos”, onde variam as figuras,
as intensidades, as especificações. Mas a sensação de deslocamento perene, o corte de
raízes, a navegação à deriva são fenômenos experimentados, desde o início da Idade
Moderna, cada vez mais em escala planetária. (HARDMAN, 1988). E ainda, a
“modernidade como um tempo em que se reflete a ordem – do mundo do habitat
humano, do eu humano e da conexão entre os três: um objeto de pensamento, de
preocupação e de uma prática ciente de si mesma, cônscia de ser uma prática consciente
e preocupada com o vazio que deixaria se parasse ou meramente relaxasse”
(BAUMAN, 1999, p. 13).

50
normas e condutas a serem seguidas, ou seja, permitiam uma
transmissão de comportamentos que estavam relacionados
aos ideais de civilidade e ou com as demandas da
modernidade.

Ao analisarmos a civilidade que circulava no Brasil,


nos anos de 1920, e sua relação com nossa pesquisa
percebemos que essas ideias eram desejadas e vivenciadas, na
cidade de União. Esses desejos podem ser percebidos através
da renovação de seus costumes e do seu cotidiano.
Acontecimentos como a instalação da “Fábrica União”2
demonstram como as vivências dos unionenses estavam
permeadas pelos desejos de modernidade. A Navegação a
Vapor3, por exemplo, flutuava o rio Parnaíba, no período em

2
Tentativa industrial de Augusto Daniel (Intendente Municipal de União, nos
primeiros anos da República) e seus produtos feitos da banana. Projeto
ambicioso e empreendedor para o período, que envolveu os incentivos
estaduais e municipais com isenção de impostos o que anunciava a
necessidade e os desejos dos unionenses em relação às modernidades do
período estudado. A Lei nº 692 promulgada em 9 de julho de 1912 concedia
o privilégio ao unionense, Augusto Daniel por espaço de 20 anos, para o
preparo de produtos de bananas, “farinha para a alimentação em geral,
bananas passas, bananadas, vinagre, aguardente e álcool” (TERESINA, 1923,
p. 272.). O governo do Estado passava a investir em “[...] aparelhos
modernos, escritórios e agências [...] para o preparo e comércio dos referidos
produtos e exportação para os diversos municípios do Estado e fora dele”
(PIAUÍ, 1912).
3
A navegação a vapor foi instalada, no Piauí, em meados do século XIX.
Dentre os fatores que facilitaram o desenvolvimento desse processo,
destacamos a configuração do comércio que se lançava para exportações com
produtos como maniçoba, carnaúba, babaçu, algodão e ainda, a necessidade
de comunicação entre as cidades, vilas e fazendas da referida província que, no período

51
questão. Nesse sentido, podemos destacar ainda a escrita
feminina que pode ser vista como uma prática que rompia
com uma sociedade rural, iletrada e que possuía anseios pelo
urbano em sintonia com os navios que vinham do exterior e
do restante do país. Podemos ainda, pensar nas ambivalências
que as ideias de modernidade podem carregar.

Neste sentido, a navegação do rio Parnaíba que se


inicia em meados do século XIX, funcionava como um
caminho líquido servindo como transporte de mercadorias
que circulavam pelo Piauí até a cidade de Parnaíba, local onde
se escoava os produtos para o restante do país e do mundo.
Esse transporte não se resumia apenas nas mercadorias
trazidas de outras regiões do país ou do exterior, mas também
na viabilidade das moças unionenses participarem da
civilidade que atravessava o país. Na medida em que
possibilitava não só o contato com os jornais de outros estados
da federação como também o domínio das práticas
discursivas e a afirmação intelectual dessas mulheres nesses
periódicos.

em questão, era feita com dificuldades, mesmo por via fluvial. Dessa forma, o
transporte pelo rio Parnaíba contribuiu para estruturação dos caminhos fluviais das
cidades piauienses que escoavam não só seus produtos pelas cidades portuárias, mas
também, representações de civilidade e desenvolvimento que permeavam as cidades
brasileiras. Através de exportações e importações com o exterior (países como
Inglaterra, França), Piauí, encontrava-se com os novos modelos de civilidade e
modernidade que circulavam as maiores cidades brasileiras. Esse encontro contribuiu
para redefinição do comércio e para o amálgama das representações sobre civilidade e
desenvolvimento com as estruturas provincianas que existiam nas cidades piauienses,
nesse período.

52
“Jornal das Moças”: normas e condutas para as mulheres
piauienses, nos anos de 1920?

Encontrei, há poucos dias, amarrotada e suja,


a carta que abaixo transcrevo, amarelada pela
chuva e pelo calor do sol. A letra muito fina e
boa, desenhada, mostrava que o remetente
era guarda-livros: Querida amiga, apesar do
perigo que corria, fiquei, sinceramente
pesaroso com o término de nossa viagem de
Miguel Alves a União. Na barca, embora mal
acomodados, eu vivia feliz, ouvindo, bem
perto de mim, a tua voz e, ainda mais feliz,
com os olhares que, de quando em quando
me lançavas [...] (BRANCA, Pérola. Carta
perdida. Jornal das Moças, p. 8, 1926).

A escrita anterior intitulada de “A Carta Perdida” foi


publicada no “Jornal das Moças” sob o pseudônimo de Pérola
Branca4 que residia na Cidade de União (PI) como consta no
final de cada publicação da referida escritora. Na qual, a
modernidade será como um desejo por um estilo de vida
cosmopolita e metropolitano. Espaço no qual será teatralizado
o amor romântico, hábitos de costumes e lazer como os
passeios de barco e a intelectualidade representada pela
“escrita fina”. Desta forma, “o sentimento romântico é
caracterizado por uma nova relação do presente com a

4 Não tivemos como objetivo pesquisar a identidade do pseudônimo “Pérola Branca” e


sim entender como a sua participação nos escritos no período da Primeira República
revelava indícios de modernidades e escolaridades em União (PI). Já que, a escritora
apresentou-se em sua produção como unionense e mulher.

53
história e a natureza” (GAGNEBIN, 2005. p.144), na qual a
história é lugar da saudade da infância da humanidade que
não volta mais e a natureza a inocência que se perdeu. Assim,
o passado não é mais vivido como algo eterno, mas como
aquilo que foi definitivamente perdido. Na poesia a seguir
podemos visualizar esse romantismo e essas sensibilidades da
referida autora,

PRECE

“Saudade aza de dôr do pensamento”

Ao Sr. Conselheiro

Fadigada e tristonha eu vou sozinha,

Carpindo a dor cruel desta saudade.

Amargurada e triste é a vida minha,

Viver chorando em plena flor da idade...

Eu quisera ser tu, o avezinha

Que não vives, como eu, na soledade.

54
Foi-se a alegria que minha alma tinha,

Foi-se a ilusão da minha mocidade...

Dezoito primaveras tenho agora

Como é cruel sentir nossa senhora,

Fugir sorrindo a última ilusão!

Eu tenho n’ alma a fé esclarecida.

Ouvi, o santo Deus, minha oração,

Matai meu padecer, tirai-me a vida!!!


(BRANCA, Pérola, 7 de Maio, Jornal das
Moças, 1925. p. 3).

As sensibilidades contidas no poema fazem parte das


pessoas que vivenciavam esse período, quando não somente
a razão e o conhecimento eram representados como atributos
especiais da civilização. Uma sensibilidade construída e
cultivada diante do conjunto de valores denominados
civilizados. Pautada em nova relação dos homens com a
natureza, que era vivenciada através de uma sensibilidade
aguçada pela emoção do corpo e da alma (NAXARA, 2004).

55
Como podemos perceber essa sensibilidade aguçada e
as emoções de “Pérola Branca” causaram ressonâncias no
“Jornal das Moças”. Em consonância com seu tempo, a
“jovenzinha” demonstra-nos como é difícil separar o
individual do coletivo, por mais concentrado que ele se
apresente, uma vez que sempre aflora um sentido plural nas
experiências vividas, pois nenhum indivíduo se mantém sem
os liames que o envolve em um espaço social. As experiências
contadas de “Pérola Branca” possibilitam desvendar o tempo
e o espaço, a cidade de União e os anos de 1920, os anseios que
a modernidade trazia para seus habitantes. E ainda, as
convivências com os vapores e a eletricidade.

Ao mesmo tempo, a autora apresenta sua forma de ser


e estar em uma cidade do interior do Nordeste em “tempos de
eletricidade e vapor”, nos chama atenção para o “poder da
individualidade, presente na manifestação das sensibilidades
[...] permite indicar a força dos sentimentos na constituição da
realidade social” (SAUDOSA CONDESSA. Confortando.
Jornal das moças, p. 7, 1926). Esses sentimentos envolvem um
universo plural, ou seja, muitas manifestações e movimentos
de ser e estar em União na Primeira República. Com suas
peculiaridades, a escritora Pérola Branca comunicava-se com
seus contemporâneos pelo Jornal das Moças. Como
demonstra o trecho a seguir,

Confortando

A gentil Pérola Branca

56
[...] queixam-se de nos, as mulheres, quando
eles são os verdadeiros culpados de todos os
nossos desditos. Sim, nos só sabemos amar
uma vez, porém, muitos deles o fazem por
“Sport”. Depois, a mulher é a perdição do
homem!! Quando nos daríamos a fé a gota
última do nosso sangue pelo homem amado!!

(SAUDOSA CONDESSA. Confortando.


Jornal das moças, p. 7, 1926).

Foram muitas respostas, elogios e poemas de


consolação para a moça desiludida que pedia a morte, em
sonetos dedicados a um amor perdido em meios aos
palmeirais piauienses. Das quais, destacamos o trecho
anterior que descreve os sentimentos masculinos e os associa
ao esporte, ao público, enquanto as mulheres são direcionadas
à pureza e ao amor romântico. A autora deixa as pistas para
entendermos as sensibilidades masculinas e femininas do
período e as relações que se redefiniam com a chegada da
modernidade, na medida em que as mulheres se angustiavam
com seus papéis de dóceis e donas de casas e ao mesmo tempo
se mantinham ligadas a esses padrões de comportamentos.
Dentre os poemas em homenagem a escritora unionense,
destacamos

[...] para que tanto desprezo pela vida,


amiguinha?! Contai-me se possível for, o que
vos lamenta, pois desejo ser a vossa modesta
conselheira, já que tiveste o gesto de dedicar-
me vosso mimoso trabalhinho. Não sabeis

57
que onde existe amor aí existe o sofrimento
[...] (SAUDOSA CONDESSA. Confortando.
Jornal das moças, p. 7, 1926).

A participação feminina em periódicos definiu-se no


Piauí no final do século XIX e início do século XX e confere
uma maior visibilidade e apropriação das práticas discursivas
que geravam “possibilidades de atuação das mulheres na
sociedade, especialmente no que concerne ao domínio das
práticas discursivas e afirmação intelectual” (ROCHA, 2011,
p. 33). Essa afirmação intelectual era vista no período como
uma valorização da cultura letrada e da educação formal, “a
letra fina e boa” fazia parte de uma parcela pequena da
população unionense, com maioria analfabeta nos quais
importantes núcleos viviam “sem um estabelecimento de
ensino, sem uma escola pública estadual ou municipal”
(TERESINA, 1923). O povoado de Santa Rita e Liberdade,
localizados no município de União, não contavam com uma
escola. Essa realidade não se distanciava do restante do país
que deixava “em segundo plano o preparo intelectual das
gerações que se formam” (TERESINA, 1923, p. 24). A letra
elegante, o passeio de barco são hábitos que chegam com os
vapores, como também, a publicação em um jornal de
circulação nacional. A aproximação desses hábitos e ideais
pelos unionenses revela uma sociedade que se queria
moderna, antenada com os modelos do restante do país e que
restringia essas conquistas a uma parcela da população.

58
Para melhor entendermos esses anseios, é só
observarmos que a publicação nesse periódico era por meio
de um concurso com a participação de vários estados do
Brasil, os escritores e seus escritos eram selecionados e
comunicavam entre si através de suas publicações
demonstrando o cotidiano e os anseios que cada um
vivenciava. O jornal fazia publicações que demonstravam
através dos seus escritos os comportamentos de homens e
mulheres de sua época. Contribuindo, ainda, para a
configuração de “uma rede de sociabilidade feminina e
masculina, composta por moças e rapazes do Rio de Janeiro e
de outras cidades do país, dentre elas Teresina” (CARDOSO,
2006, p. 5).

A partir dos escritos de Pérola Branca, a cidade de


União inseria-se no rol dos núcleos urbanos citados pela
historiadora Elizângela Barbosa e nos possibilita ver a
emergência de novas concepções de modernidade que o
período em questão carregava, mostrando-nos como as
mulheres unionenses se envolviam em novas práticas sociais
que ensinavam a participar ativamente da sociedade e ao
mesmo tempo ser boa mãe e dona de casa, preceitos
fundamentais para a mulher moderna em uma época que a
modernização das cidades estreitava sua relação com a
cultura letrada.

Sobre a participação de Pérola Branca no universo


moderno das cidades brasileiras destacamos a poesia de sua

59
autoria “Cabelos Curtos” com a qual a autora participa de
muitas polêmicas. Nesse período a moda5 dos cabelos curtos
adentrava o Brasil e não agradava a todos. Algumas pessoas
mostravam-se radicalmente contra a nova mulher e os seus
cabelos. Como demonstra o trecho a seguir,

[...] As mulheres que, escandalosamente


cortaram os cabelos a La garçonne. E quantas,
ontem, na missa, adeptas dessa excêntrica
moda, com o pescoço raspado, os lábios
carminados, mostraram aquela multidão até
que ponto chega a degenerescência humana!
(A MODA de hoje. Jornal das Moças, p. 7,
1925).

Podemos perceber que os cabelos curtos não eram


aprovados pelas pessoas mais tradicionais e que os adeptos
dessa moda eram ligados ao novo, à modernidade e à
civilidade do período em questão. Pérola Branca se mostra em
consonância com essas ideias e escreve os poemas que foram
aprovados para o “Jornal das Moças”: “‘Carta Perdida’ e
‘Cabelos Curtos’ foram aceitos minha amiguinha. Estou de
pleno acordo com suas ideias. A mulher deve usar cabelos
curtos, mas sem abusar, convenhamos que uma mulher careca
deve ser quase horrível” (POSTAIS Rápidos. Jornal das Moças,
29 de abril, 1926).

5 De acordo com GAGNEBIN (2005) a moda longe de ser um fenômeno superficial, dá a


ver, mostrar a beleza em cada uma das suas configurações históricas. O referido autor
destaca a moda ao fazer uma análise da modernidade em Baudelaire.

60
A escrita da referida autora não se resume apenas à
forma que as mulheres deveriam cortar os cabelos e, sim, ao
novo modelo de mulher que aparecia em meio às concepções
de civilização e modernidade que permeavam a Primeira
República e se mostravam em consonância com os
organizadores do jornal e com uma parcela dos seus leitores
quando afirmavam que:

Antigamente, tempo da onça, segundo tenho


ouvido dizer, as senhoras usavam penteados
colossais... já que não podiam mostrar sua
opinião, em público, devido ao recato
daquela época, que, felizmente, já vai longe,
mostravam cabelos e só cabelos! Hoje, a
mulher não pode perder tempo, pois há os
“chás-dançantes”. Há quem não goste desse
divertimento, porém muitos o tem como um
dever!!!... Tudo mudou!!! (CABELLOS
Curtos? Não sei!!. Jornal das Moças, 24 de
dezembro, 1925).

De acordo com a correspondente do “Jornal das


Moças” o corte à inglesa ou a “La garçonne” (francesa)6 que
tanto interessava a parcela feminina da população brasileira
não se resumia apenas a uma estética ou a um cabelo curto e,,
sim, ao modo de pensar e agir de uma sociedade que com os
novos tempos trazia à cena não só novos cabelos, mas uma
nova maneira de pensar e agir. O que nos faz pensar a moda

6 Forma como os cortes de cabelo acima do pescoço eram conhecidos no final do século
XIX e início do século XX.

61
para além do vestuário e entendê-la como um fenômeno
histórico ligado às concepções de modernidade com um
incessante esforço para alcançar o novo e romper com a
tradição.

A esse respeito destacamos as análises da filósofa, Lars


Svendsen que nos apresenta a moda não apenas com o olhar
à esfera das roupas, considerando que “esse fenômeno invade
os limites de todas as outras áreas do consumo” (2010, p. 10) e
que, portanto, sua lógica penetra a arte, a política e a ciência,
fica claro que estamos falando sobre algo que reside
praticamente no centro do mundo moderno. Em nossas
análises, associamos a moda às sociabilidades e à cultura da
Primeira República, ou seja, ao modo de ser que levava as
mulheres a demonstrar sua opinião em público e a se
desfazerem dos grandes penteados e das poucas ideias.

A praticidade e a ligação ao mundo do trabalho


também eram invocadas pelas adeptas ao uso dos cabelos
curtos; “para uma jovem empregada, principalmente no
comércio, não poderia haver moda mais prática [...] (Cabelos
Curto? Sim! Jornal das Moças, p. 4, 1925). A sociedade
moderniza-se propiciando uma crescente incorporação
feminina ao mercado de trabalho e à esfera pública, gerando
uma mentalidade pautada na rapidez e na praticidade dos
cabelos à inglesa que proporcionava às mulheres, pois, “sendo
curtos, são lavados mais rapidamente, podendo assim
praticar esta ação mesmo pela manhã de um dia útil”. A

62
sociedade adapta-se ao ritmo urbano, ou seja, as cidades que
incorporam a “ideia de centro de realizações – de saber,
comunicações, luz [...] barulho, mundanidade e ambição”
(WILLIAMS, 2000, p. 11). E para participar desse espaço, as
mulheres mudavam o corte de cabelo e com isso uma
mentalidade. No entanto, isso não agradava uma esfera da
sociedade que se apegava às concepções tradicionais e que
entendia que “o maior orgulho da mulher é cuidar da lida
doméstica [...] a mulher que não cuida da vida doméstica não
é digna de ser respeitada pelos homens” (Nossos direitos.
Jornal da Moças, p. 2, 1925). Ainda relacionado à nova moda,
um outro correspondente do jornal das moças destaca,

[...] o homem de fato pertence ao sexo forte,


não deveria deixar dominar pelo fraco [...]
Fizeram desaparecer o que de mais belo a
mulher tem [...] decididamente o mundo está
doido [...] Como poderá uma mulher, com
todas essas ‘obrigações’ que a sociedade e a
educação de agora exigem, ser uma boa
esposa, uma ótima dona de casa?
(EDUCAÇÃO. Jornal da Moças, p. 4, 1925).

Eram essas as interrogações que homem moderno do


final do século XIX e início do século XX nutria. As
contradições apontadas por nós no decorrer do trabalho
chegavam à seara do cotidiano de homens e mulheres que
tinham que conviver com o novo e ao mesmo tempo com as
tradições que envolviam o período. Alguns homens eram

63
avessos aos cabelos curtos. Como acrescenta “Rapsag”, um
dos correspondentes do referido jornal,

Eu, porém, eterno admirador da verdadeira


beleza do sexo frágil, sem recursos outros
que não os que a natureza lhe concedeu, dei
uma opinião francamente oposta, segundo o
meu modo de pensar, criticando-o e fazendo
ver, as mulheres que tivessem juízo, o
ridículo de sua situação [...] Mas... Não deveis
ter pena!!! Corte-os, minha senhora, corte-os!
Quem vos dirá que com eles cortados, esses
vossos cabelos, que talvez sejam belos, vossas
idéias cresceram? (A LA GARÇONNE? Não!!
Jornal da Moças, p. 8, 1924).

Já, outros eram a favor da moda. Como destaca João


Mendes Pereira,

Seguiram-se meses. A primavera floriu a


copa do arvoredo com suas peregrinas flores.
Novamente na alma amor desenhou o perfil
adorado. Mas... já não tinha os longos cachos
anelados... O pescoço nu alvejava
docemente... Amava a ainda. [...] E é por isso
que amo os cabelos curtos (SEM TÍTULO.
Jornal da Moças, p. 13, 1924).

Com frequência apareciam as pessoas que não


queriam discussões, “Cabelos curtos? Cabelos compridos?
Cada um use como mais gostar. Também os tenho curto.
Aprecio muito esta moda [...]” (CABELOS Curtos? Não sei!

64
Jornal da Moças, p. 12, 1925). No entanto, as mulheres que
utilizavam os cabelos curtos com frequência e ironicamente
eram comparadas aos homens, “Reparaste como ficou bem na
Ruth o cabelo a La garçone? Se reparei. Do pescoço para cima
é exatamente o retrato do irmão mais moço”. Os papéis se
invertiam, transbordavam e causavam contradições no
âmbito da sociedade moderna fazendo com muitos
lamentassem “infelizmente, hoje em dia, o sexo está trocado”.

Perola Branca envolve-se nessas discussões ao publicar


o poema “Cabelos Curtos” que é retirado do jornal pelas
polêmicas causadas e o “La Garçonne” que não pode ser
publicado devido às discussões que o tema causou. Como
demonstra o trecho a seguir,

Sinto bastante não poder aceitar o seu


trabalho com o título de “La Garçonne”, em
resposta ao “Ainda pelos cabelos” de Rapsag,
porque não admito polemicas no “jornal das
moças”. As polemicas são sempre como as
questões judiciárias que dão águas pelas
barbas... Confesso-lhe, também, senhorita
que se o trabalho, publicado, daquele nosso
colaborador tivesse passado pelas minhas
mãos (foi aceito pelo meu antecessor) eu não
o publicaria nas colunas dessa revista. Como
o que está feito... vamos dar um tiro e matar
a questão (SEM TÍTULO. Jornal das Moças, p.
4, 1927).

65
Como vimos às polêmicas sobre “os cabelos”
femininos permearam o jornal estudado e ao mesmo tempo
descortinavam as relações sociais entre homens e mulheres,
no período em questão. Pérola Branca, por exemplo,
lamentava que os homens não tivessem aproveitado os
tempos de civilização para adocicar suas ações. Em “Drama
social” a escritora mostra-se atenta às diferenças sociais e à
autoridade que homem exercia sobre as mulheres “desgraça a
vida da mulher por que não tem força, para dar o troco que
merece certas ofensas” (BRANCA Pérola. Drama Social. Jornal
da Moças, p. 11, 1925). Com esses escritos, podemos
descortinar um pouco do universo feminino unionense e nos
encantar com essa literatura que fez um passeio de barco a
vapor pelas águas brasileiras no período estudado e que
encantou seus leitores. Como demonstra o trecho a seguir,
“Em ‘Drama social’ mais uma vez amiguinha demonstrou a
sua vocação, provando que em todo lugar se pode fazer
literatura, até no Piauí”. A referida autora responde as críticas
ao Piauí que infelizmente não foi publicada. O que fez o
colaborador do jornal responder, “Li a sua cartinha, bem sei
que seu Estado tem nascido grandes sábios [...] creio que foi o
piauiense que demonstrou que a doença é um grande mal
para a saúde. ‘Saudades’ será publicado”. Os elogios contidos
no jornal das moças para a referida escritora são muitos dentre
eles destacamos o poema a seguir que faz questão de enfatizar
a naturalidade da escritora,

66
ELLAS...

Há muito chora uma ilusão perdida

Que lhe causou a triste soledade;

Por isso ella num auge de saudade,

Pediu a deus que lhe tirasse a vida!

Dentro em breve a ventura merecida,

Recodará a flor da mocidade,

E então no peito seu só piedade,

Encontrará pela ilusão querida...

Ela nasceu aqui no Piauhy;

Ouvindo além, do palmeiral frondoso

O saudoso cantar do jurity...

O seu verso tão cheio de beleza

Nos deixa ver um coração saudoso

Que vive imerso em intima tristeza! (Jornal


das moças, 29 de abril, 1926).

67
Considerações finais

Pérola Branca nos leva, aos anos de 1920, e nos


proporciona pensar as instruções e as modernidades que
adentravam o território brasileiro. Remetendo-nos a um
cantinho do Rio Parnaíba que através das novidades que
chegavam com os vapores viviam as instruções e as
modernidades. A “Fábrica União” e a instalação da Usina
“For-Fail” são provas de como esses ventos ecoavam sob o Rio
Parnaíba e chegavam até a cidade de União que entre desejos,
contradições e decepções participou das ambivalências que as
modernidades podem nos trazer.

Os escritos do “Jornal das Moças” chegam à União


pelos vapores e nos ajuda a entender como, nos anos de 1920,
as produções técnicas estavam relacionadas aos homens,
enquanto as mulheres ligavam-se ao sensível e ao inteligível.
Sabemos que essas divisões poderiam transbordar em dados
momentos e que poderiam existir várias outras formas de ser
e estar em União. No entanto, Pérola Branca representa uma
possibilidade de ser unionense e que, portanto, nos ajuda a
decifrar, caminhar pelos labirintos da escrita e da instrução no
Piauí dos anos de 1920.

Referências

A LA GARÇONNE? Não!! Jornal da Moças, p. 8, 1924.

68
A MODA de hoje. Jornal das Moças, p. 7, 1925.
BRANCA Pérola. Drama Social. Jornal da Moças, p. 11, 1925.
BRANCA, Pérola. Carta perdida. Jornal das Moças, p. 8, 1926.
BRANCA, Pérola. Prece Jornal das Moças, p. 3, 7 maio 1925.
CABELLOS curtos? Não sei! Jornal da Moças, p. 12, 24 dez. 925.
CABELOS Curto? Sim! Jornal das Moças, p. 4, 1925.
CARDOSO, Elizangela B. Entre teias e tramas: família e relações
de gênero em Teresina (1930-1970). In: SEMINÁRIO
INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 7., 2006,
Florianópolis. Anais. Florianópolis: Editora Mulheres, 2006.
EDUCAÇÃO. Jornal da Moças, p. 4, 1925.
Fontes
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história. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista
Brasileira de História da Educação, n. 1, p. 9-44, 2001.
NAXARA, M. Natureza e civilização: sensibilidades românticas
em representações do Brasil no século XIX. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (org.). Memória e (Res)Sentimento: indagações
sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da UNICAMP,
2004.
NOSSOS direitos. Jornal da Moças, p. 2, 1925.
POSTAIS Rápidos. Jornal das Moças, 29 abr. 1926.
ROCHA, O. C. L. Mulheres, escritas e feminismo no Piauí
(1850-1950). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves,
2011.
SAUDOSA CONDESSA. Confortando. Jornal das moças, p. 7,
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SEM TÍTULO. Jornal da Moças, p. 13, 1924.
SEM TÍTULO. Jornal das Moças, p. 3, 1926.
SEM TÍTULO. Jornal das Moças, p. 4, 1927.
SEM TÍTULO. Jornal das Moças, p. 5, 1926.
STEPHANOU, M.; BASTOS, M. H. História, memória e História

69
da Educação. In: STEPHANOU, M.; BASTOS, M. H. (org.).
Histórias e memórias da educação no Brasil: Vol. III, Século XIX.
Petrópolis: Vozes: 2011. p. 416-429.
SVENDSEN, L. Moda uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
p. 10
TERESINA. O Piauí no Centenário da Independência (1823-
1923). Teresina: Papelaria Piauiense, 1923.
WILLIAMS, R. O campo e a cidade na história e na literatura.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

70
CAPÍTULO III
EM BUSCA DE DONANA: ANÁLISE DE
UM PERFIL FEMININO EM VAQUEIRO E
VISCONDE DE JOSÉ EXPEDITO RÊGO
Vicencia Rozilda Gomes Pinheiro
Thiago Coelho Silveira

Quando lemos os clássicos de séculos passados,


percebemos o desejo das mulheres serem donas de si, pelo
menos na ficção, pois, na vida real, isso pode ser sinônimo de
desonra, pobreza e muito sofrimento. É como se ouvíssemos
através da leitura os ecos dos choros, gritos e ranger de dentes
de personagens femininas que ousaram experimentar o sabor
de se tornarem senhoras de suas próprias vontades.

Ao lembrar o grande clássico de Vitor Hugo (2014), Os


miseráveis, publicado originalmente em 1862, nos deparamos
com a pobre Fantini, iludida por um rapaz e abandonada com
uma filha pequena, que teve um trágico fim: sem os cabelos e
os dentes vendidos para mandar dinheiro para os cuidadores
de sua criança, tendo que se vender a qualquer um por
qualquer preço e muitas vezes violentada e humilhada.
Morreu tuberculosa, chamando pela filha e teve a promessa

71
do herói da história, Jan Valjan, de recuperar e proteger a sua
doce Cosette.

Esse é um dos milhares de exemplos de obras literárias


que colocam a mulher na condição de dependente do homem.
Pouco se explora a sua coragem e o que enfrentou para
sobreviver. Imaginemos quantos dias de fome Fantine passou
para sustentar a filha, além de todas as outras humilhações.
Suas atitudes exigem coragem e força, mas que são
subestimadas quando a obra constrói a imagem de uma pobre
moribunda que caiu nas graças e misericórdia de Jan Valjan.
Na trama, Fantine morre e cai no esquecimento, semelhante
às muitas mulheres que morrem no teatro da vida sem
direitos e desejos realizados.

Este retrato não é característico apenas da literatura


estrangeira. O encontramos no Brasil, seja na literatura
nacional ou regional, nos apresentando personagens
femininas que vivem a dor e o sufocamento. Para a discussão
que este capítulo propõe, tomaremos como objeto de estudo
um clássico da literatura piauiense: Vaqueiro e Visconde, de
José Expedito Rêgo (2009). O título evidentemente remete a
protagonistas do sexo masculino, constituindo-se em uma
biografia romanceada do Visconde da Parnaíba, Manoel de
Sousa Martin, umas das lideranças políticas mais fortes e
influentes que já houve no Piauí. Não à toa, a primeira edição
da obra, publicada em 1981, chamava-se Né de Sousa, fazendo
referência ao apelido do protagonista.

72
No entanto, nosso interesse se dirige às personagens
femininas, mas em especial uma, que na obra ocupa o papel
de coadjuvante na história, aqui se constitui na protagonista
de nossa análise. Dessa forma, analisaremos como estas
personagens são sufocadas na trama, sob o véu de mulheres
decentes, religiosas, fiéis aos maridos e cuidadosa com os
filhos. Se a literatura imita a vida, recriando e reinventando,
encontramos em Vaqueiro e Visconde a representação de
práticas sociais conservadoras, cujas correntes as amarravam
e as impediam de ter autonomia.

A dor é algo que parece ser inerente às mulheres e que


aparece na narrativa de Rêgo (2009) materializadas na carne
e, também, sentidas na alma, latejando diferentes
intensidades ao longo da vida, como se as personagens da
trama pagassem um preço por serem o que são. Um valor alto
para todas, sejam as casadas e ricas, as moças jovens que
esperam por um noivo ou a mulher pobre, que é a mais
negligenciada.

Assim, nos interessa escrever sobre as formas que as


personagens femininas são descritas como acessórios dos
homens da trama literária. Esse recorte nos provoca muitas
inquietações, fazendo com que nos perguntemos como as
personagens femininas são silenciadas na obra. Para tanto,
objetivamos analisar o sofrimento da personagem Donana,
permitindo ainda identificar a história de vida da personagem

73
e analisar os elementos sociais e culturais que provocam a sua
invisibilidade.

Sendo este trabalho uma pesquisa acadêmica de cunho


literário, realizamos um itinerário de pesquisa com
abordagem bibliográfica, conforme destacam Gil (2002),
Prodanov e Freitas (2013). Também nos apoiamos na
proposição de Ferreira (2018, p. 187), ao relacionar a literatura
aos estudos culturais, apontando a possiblidade de se analisar
na narrativa os “valores socioculturais que a obra selecionou,
refletiu, transformou ou rejeitou”. Nesse universo, como
conta Baptista (2009), inserem-se os trabalhos que tomam as
mulheres como sujeitos da análise. Portanto, a discussão
realizada acerca de Vaqueiro e Visconde dialoga com outros
estudos, como aqueles desenvolvidos por Barbosa (2015),
Schawantes (2006) e Zinani (2006), sem prejuízo da
contribuição de outros.

Nesse sentido, este capítulo foi organizado de forma a


dar visibilidade à personagem Donana, descrita como
matriarca de uma família poderosa no Piauí, mãe de Manuel
de Sousa Martins, retratado como o homem mais poderoso da
província. Dessa maneira, a análise empreendida alcança as
representações sobre a vida de uma mulher de elite, cujo
destino é determinado pelos homens de sua família.

74
Sufocar a dor, silenciar o gemido

A narrativa de Vaqueiro e visconde passa-se por volta da


metade do século XVIII, nas terras do Piauí colonial.
Historicamente, estamos tratando de um período em que as
mulheres eram sobrepujadas na sociedade, elemento que é
significativamente representado na obra. Tal posicionamento
da narrativa não causa estranhamento, uma vez que o livro é
uma biografia romanceada de um homem que, para a história
do Piauí, teve uma atuação a longo prazo na política local.

Dito isso, reconhecemos o esforço de Rêgo (2009) em


adicionar à narrativa os elementos característicos do recorte
temporal da narrativa, construindo representações literárias
sobre o espaço sobre o qual ele escreve. Ancorando-nos em
Chartier (2002, 1991), podemos afirmar que Rêgo construiu
representações acerca das mulheres na obra que, por um lado,
se apoiam no perfil que os estudos históricos traçam sobre
estes sujeitos naquele período, mas também resultam da
perspectiva criativa e particular do literato.

Na primeira página do livro, após o sumário, há uma


nota que se chama Julgamento. Nela estão contidas as
opiniões de vários escritores piauienses sobre a obra, das
quais destacamos a fala do crítico literário Enéas Athanázio
que diz: “O livro contempla um largo período da história do
Piauí.[...] E preenche com a imaginação as lacunas que os
registros não podem cobrir” (RÊGO, 2009, p. 11),

75
reconhecendo a qualidade do trabalho do autor. Nesse
sentido, embora reconheçamos que a literatura não tem
compromisso com a verdade, a obra aborda personagens que
existiram na história do Piauí, constituindo-se em uma das
fontes que melhor descreve literariamente o imaginário e os
costumes do Piauí do século XVIII.

É importante ressaltar que em “[...] livros de autoria


masculina a construção de uma identidade feminina é sempre
pensada, vista e descrita de um ponto de vista externo ao
feminino” (BARBOSA, 2015, p. 27). Essa proposição nos
interessa, pois precisamos manter em mente que Vaqueiro e
visconde é uma obra escrita por um sujeito masculino e que
tem no centro da narrativa um personagem também
masculino. Logo, essas mulheres descritas são vistas tanto de
forma externa, como são construídas à sombra de
personagens masculinos.

Silva (2000) destaca que a identidade é construída


também pela diferença, na medida em que o próprio eu é
significado em relação ao outro. Partindo desse
entendimento, podemos afirmar que em uma obra de autoria
masculina a identidade feminina é uma construção do outro
pelo outro, o que em parte explica a subalternização das
personagens como acessórios do protagonista. Dizemos em
parte, pois não julgamos ser possível descartar a
intencionalidade do escritor em construir esse perfil visando

76
alcançar certa verossimilhança em relação ao discurso
histórico sobre a época.

Essa visão externa ao feminino, ressaltada por Barbosa


(2015), é percebida na construção da personagem Donana. Ela
aparece do capítulo I ao VI com algum destaque, mas no
capítulo VII sua presença se dá algumas poucas vezes em
diálogos com o filho. Chegando no capítulo X explica-se de
forma aligeirada que já havia morrido. Sua existência na
trama é em função do marido e filho mais velho, o
protagonista do romance, de modo que quando seu marido
morre e o filho se casa, a sua presença no enredo desaparece.
O momento resumiu-se a apenas três palavras “Donana tinha
morrido” (RÊGO, 2009, p. 67). Não houve maiores explicações
de sua morte, como morreu, de que, com quem estava, bem
diferente da descrição da morte do marido, Né Martins.

Nessa obra, as personagens femininas têm momentos


de destaque, mas sempre em função do homem. Como lembra
Tapety (2007), a narrativa do livro enfoca a construção social
e política do Piauí, de modo que vemos nas mulheres que
aparecem na narrativa a representação dos valores piauienses
daquele século. Donana, forma abreviada utilizada para o
chamamento Dona Ana, é a personagem feminina na qual
vamos nos deter. Com ela começa toda a história e riqueza da
família Martins, porém esse mérito passa despercebido para o
leitor desatento em função da ênfase dada ao protagonismo
do homem.

77
Para entender melhor os motivos desses enredos
literários serem organizados dessa forma, recorremos a
Schawantes (2006) que apresenta um argumento sobre esse
fenômeno nos romances. A autora afirma que “[...] para
escrever romances, um autor, independente de seu gênero,
precisa criar personagens femininos, e essa criação vai derivar
do conceito de feminilidade da sociedade” (SCHAWANTES,
2006, p. 08). Destarte, embora existam obras literárias que
retratam mulheres do século XVIII com um perfil mais
independente e como uma exceção ao que se esperaria para o
período, Rêgo (2009) faz a opção pela construção de um perfil
que não foge à regra do conservadorismo dessa época.

Neste caso, pode-se perceber a construção de


personagens como Donana que, alinhada ao que o discurso
histórico aponta no sentido da submissão ao poder patriarcal
(SAFIFIOTI, 1979), aparece por vezes até mais inferiorizadas.
Vejamos como é descrito o início do relacionamento de Né
Martins e Donana:

[...] Né Martins, homem de trinta e muitos


anos. Veio novo de Portugal, mas demorou
algum tempo pela Bahia. Resolveu tentar nos
rincões nordestinos, trouxe carta de
recomendação para o bastardo Coelho
Rodrigues, trabalhou a princípio com o
velho, na fazenda deste. Foi quando começou
o namoro com Donana, bem mais nova que
ele. Ambos ganharam com o casamento.
Donana era rica, porém não era bonita. Ele,

78
pobre, tinha saúde, disposição para o
trabalho e, nas veias, sangue português
limpo. A doação da fazenda veio a calhar
(RÊGO, 2009, p. 20).

Donana tem como características ser rica e feia,


enquanto o autor ainda enfatiza que foi uma grande vantagem
ter casado com o português puro e trabalhador. Com isso,
afirma que os dois ganharam com o casamento. Analisemos
melhor a situação retratada. Né Martins ganhou com o
casamento uma rica fazenda além da proteção do sogro rico e
uma mulher submissa e fiel que fazia todas as suas vontades,
pois esse era o perfil feminino daquela época. Por outro lado,
Donana já era rica e casou-se com um homem pobre. Na obra
não se relata paixão ou amor entre as personagens, o que nos
permite inferir que o autor buscou apresentar-nos um
casamento como resultado de um arranjo, uma exigência
social a ser cumprida, situação que constitui lugar comum das
mulheres no período (FALCI, 1997).

A esse respeito lembramos, como Reis (2013), que a


literatura possui uma dimensão estética, sociocultural e
histórica que, relacionadas entre si, compõem o universo da
criação do autor para alcançar seu público leitor. A construção
de Rêgo (2009), enquanto biografia romanceada, não poderia
deixar de retratar os traços da família no período colonial que
ele representa no texto. Como afirma Zinani, a “[...] família
constitui a sociedade primordial. É na interação que ocorre

79
nas relações familiares que se estrutura, desde a primeira
infância, o arcabouço da personalidade” (2006, p. 85).

Na obra, os sentimentos relacionados à personagem


supracitada são apenas de preocupações, dores,
constrangimentos, como se a mulher do século XVIII não fosse
capaz de buscar a felicidade, enquanto era sempre agraciada
com dores. Outra passagem da obra interessante que nos
chama a atenção é o parto do primeiro filho de Donana, que
envolve dores reprimidas e constrangimentos das mulheres
que aparecem no ritual.

A construção da personagem é baseada em valores


cristãos conservadores, o que dificulta o trabalho da parteira
Josefa. Os primeiros momentos de dor são descritos da
seguinte forma: “Donana mostrava-se cheia de
acanhamentos, não queria deixar que Josefa desse ao menos
uma olhadinha, para ver como ia a cousa. Pelo jeito ainda
estava longe. Primeiro parto era assim mesmo” (RÊGO, 2009,
p. 19). Observa-se nesse fragmento, que em um momento de
muita dor física, a construção moral da personagem a impedia
de seguir os procedimentos do parto e alimenta seu
constrangimento, como se uma ação que é natural fosse algo
proibido.

Uma outra passagem da descrição do parto reforça


essa teoria. O fragmento diz o seguinte: “Josefa andou ligeiro,
que os gemidos de Donana se faziam mais perto uns dos
outros e mais intensos. Não que se desse para ouvir de longe,

80
pois mulher de vergonha não grita alto, nessas horas. Gemia
porque era o jeito. Quem podia aguentar aquilo, sem gemer?”
(RÊGO, 2009, p. 21). Assim, constrói-se a representação de
uma mulher decente: não abre as pernas, não grita e sufoca o
gemido.

Presa a esses valores, Donana teve que sufocar as


dores intensas do parto até o último minuto. O momento não
só retrata a dor física, mas também permite inferir sobre a dor
emocional que a personagem enfrenta, por não ter poder e
controle sobre seu próprio corpo. Além do sentimento de
incapacidade, da preocupação de que a criança nasceria
saudável, mas principalmente, de que a cria seria um menino
para dar orgulho ao marido. Donana poderia achar aquela
situação humilhante.

As cobranças nesses momentos eram muitas e só


restava a Donana reprimir todas essas dores. A hora do
nascimento aproximava-se e assim o autor descreve:

Donana meteu a ponta do lençol entre os


dentes e mordeu, como ensinou a parteira, o
rosto congestionou, as veias do pescoço para
arrebentar. Josefa conheceu que havia
chegado a hora. Aquele repuxo grande não
podia ser outra cousa. O menino nascia.
Sentou-se do lado da cama e esperou.
Realmente não tardou que o rapaz
estrebuchasse e berrasse, sobre os panos
limpos. Josefa limpou-lhe o nariz e a boca,
amarrou e cortou o umbigo, pôs pucumã,

81
envolveu-o nos cueiros. Passou a cuidar da
mãe (RÊGO, 2009, p. 22).

O fragmento recortado é momento em que o parto


ganha mais visibilidade e detalhes na narrativa. É possível
perceber a dor física e os primeiros cuidados com a criança,
para só depois a mãe ser atendida, pois tinha que estar pronta
para receber o marido e outras visitas para conhecer a criança.
A obra dá visibilidade para este fato, que faz parte da cultural
local e está presente no nosso cotidiano até hoje. Vejamos:

Don´Ana Rodrigues de Santana estava


composta e arrumada, quando Né Martins
entrou radiante, para ver o recém-nascido.
Era homem como esperado. E chegou em
paz! Donana sorria da cama, o menino do
lado, muito vermelho e amassado,
respirando manso. [...] Né Martins sorria
contente (RÊGO, 2009, p. 22).

A citação mostra a felicidade do pós-parto, reforçando


uma prática cultural que se estabelece como uma
permanência histórica desde muitos antes do período
retratado. A mulher precisava estar arrumada para o marido
e para as visitas, muitas vezes tentando esconder o
desconforto do momento, caracterizado pelo leite
derramando dos seios e umedecendo a roupa, o sangramento,
as dores nas costas e nos seios, a experiência das primeiras
mamadas.

82
Mesmo nessa passagem, que aparenta dar visibilidade
para a mãe, é o pai alegre e satisfeito que o autor quer deixar
marcado na memória do leitor, deixando de lado os
sentimentos e dores reprimidos, sejam físicos ou emocionais.
Após o parto, o filho foi chamado de Manuel de Sousa Martins
e para diferenciá-lo do pai, o apelidaram de Né de Sousa.
Donana teve outros filhos e outras funções na vida de seu
marido, que permitem ver a força de Donana como uma
personagem feminina representada em meio aos desafios de
viver em um universo masculino.

O mascaramento das habilidades de Donana

A mulher do século XVIII, em especial, a piauiense, era


muito valorizada por ter qualidades como saber cozinhar,
cuidar da roupa do marido, cuidar da casa dos filhos, estar
sempre disposta e atenta ao marido. São qualidades valorosas
e atendem ao perfil conservador cristão do período, mas longe
de ser uma escolha, era uma imposição. Ao falar da
personagem Donana, a obra literária enfatiza essas virtudes,
que eram essenciais para mulher. Há uma passagem na
narrativa que ressalta essa afirmação ao fazer referência de
suas principais qualidades:

Apesar do grande número de negras e


mulatas de que dispunha a seu serviço, não
era dessas de ficar deitada numa rede, a

83
distribuir ordens e mais ordens. Gostava ela
própria de arranjar suas cousas. Só se deitava
de noite, para dormir. Nada de ficar
preguiçando, na varanda, as mucamas a lhe
matarem o cafuné (RÊGO, 2009, p. 26).

O valor de Donana estava na sua coragem para fazer o


trabalho doméstico, em ser uma mulher incansável para com
o que se esperava dela. Essa mulher incansável era apenas um
ideal, seja na realidade ou no discurso literário. Para além da
mulher valorosa, a passagem permite alcançar nas entrelinhas
a sua solidão. Não havia amigas para conversar e sua
sociabilidade se restringia aos cuidados do marido e dos
filhos. Assim, abdica do direito de descansar, de “ficar
preguiçando”, para manter a imagem da mulher que tem as
qualidades necessárias para ser esposa, ainda que isso lhe
requeira sacrifícios.

Na obra existe uma outra qualidade de Donana, que


era incomum para sociedade piauiense daquela época, sua
atuação como administradora da fazenda quando o marido
viajava para realizar seus negócios na Bahia. Assim, diferentes
de outros fazendeiros que deixavam um vaqueiro de
confiança para tocar a produção da propriedade, era a esposa
de Né Martins que tudo acompanhava. O fragmento
apresenta essa qualidade da personagem:

Não teve receio de deixar a mulher só, na


fazenda. Donana era disposta e sabia dirigir

84
muito bem uma propriedade. Até leite sabia
tirar, arreava mesmo as novilhas de primeira
barriga. Apenas montava em cavalo para
campear. Cavalgava bem, de banda, em sela
apropriada. No entanto fazia as devidas
determinações. Indagava de Afonso a
respeito das vacas amojadas, conhecia de
nome algumas malhadas. Mulher de valor
Donana (RÊGO, 2009, p. 26).

O autor retrata algo incomum na literatura que aborda


esse período, descrevendo uma mulher fazendo trabalhos
considerados tipicamente masculinos e com reconhecimento.
Além disso, está se tratando de uma mulher de elite, de quem
se espera menos preparo para o trabalho do que as mulheres
pobres. Desse modo, embora os vaqueiros não costumassem
dar credibilidade às ordens de uma mulher, com Donana era
diferente, ela era respeitada. Apesar disso, a qualidade que
prevaleceu na descrição da personagem foi de boa dona de
casa, mãe e esposa zelosa.

Mesmo tendo os conhecimentos administrativos da


fazenda, quando ficou viúva foi o filho mais velho, Né de
Sousa, que tomou de conta das propriedades do pai e da mãe,
uma vez que Donana herdou muitas terras de sua família.
Dessa maneira, mantém-se a representação colonial do
padrão de alijar a mulher do controle sobre seus bens em favor
do homem. Essas relações entre personagens masculinos e

85
femininos nas obras literárias são analisadas por Schawantes,
ao afirmar:

Há uma interdependência entre personagem


e enredo, cada um determina o outro. Em
uma cultura centrada em valores masculinos,
as personagens femininas estão encerradas
nos “textos da feminilidade”, nos quais elas
seguem destinos à sombra das personagens
masculinos, cumprindo as expectativas deles
em relação a elas (SCHAWANTES, 2006, p.
08).

A autora nos ajuda a compreender os motivos de


personagens femininas seguirem um determinado destino na
trama literária, o que nos parece se aplicar à personagem que
analisamos. Donana, que primeiro esteve à sombra de Né de
Sousa, segue sob os desígnios de Né Martins. Assim, Rêgo
(2009) habilmente representa o que se espera dos homens, ou
seja, a liderança da fazenda, mas também o que se espera das
mulheres, a subserviência. Com a morte do pai, parecia
natural que o filho mais velho da família tocasse os negócios,
a despeito das habilidades de sua mãe.

Ao falar da viuvez da personagem analisada, vamos


explorar como ela é retratada ao enfrentar esse sofrimento e
desafio que foi a perda do marido. Em sua última viagem de
negócios, Né Martins retorna muito doente carregado em uma
rede, o que gera um grande susto e temor na esposa que pensa
que o marido estivesse morto. Essa era só o começo da luta de

86
Donana. O marido estava todo inchado e com falta de ar. Ela
então faz o que se esperava: “Donana se desdobrava nos
cuidados com o marido doente e aprovava tudo que o filho
mais velho fazia” (RÊGO, 2009, p. 42). Ela cuidou do marido
até o último minuto e submeteu-se às ordens do filho, Né de
Sousa, que assumiu o lugar de provedor do lar mesmo antes
da morte do pai.

Mais uma vez, lembra-se de Schawantes ao indicar que


em “[...] uma sociedade em que a experiência masculina é
valorizada e a experiência feminina é trivializada, o traço
essencial a qualquer representação vai depender da
experiência masculina” (2006, p.11). Analisando a obra de
Rêgo (2009), pode-se afirmar que é um livro com traços de
uma cultura masculina patriarcal, e que as personagens
femininas são acessórios do enredo. Dessa maneira, por ser
uma biografia romanceada, o autor tenta ser fiel à cultura da
época e retrata as mulheres e seus comportamentos da forma
como se esperava que elas fossem naquele momento da
história. As personagens femininas e seus destinos dependem
da experiência masculina, predominantemente.

Isso ocorreu com Donana, cujo destino na trama é


submetido ao de seu marido. Nos momentos finais da vida de
Né Martins, sua esposa aparece como a mulher que
permaneceu fiel até o último momento, que teve um desfecho
trágico, dramático e rápido. “Donana chorava em silêncio,
segurando a mão do esposo. Foi tudo muito rápido. Morreu

87
ali mesmo na varanda, à luz fraca das cinco da tarde. Donana
pôs entre seus dedos sem força a imagem de Cristo de prata,
que lhe presenteara a mãe” (RÊGO, 2009, p. 43). Depois da
morte do marido, Donana vive a solidão do luto e pouco é
citada ao longo da obra. A sua morte se quer foi representada
em algum momento da trama.

Considerações finais

Este capítulo problematizou as representações


literárias construídas em torno de uma das personagens
coadjuvantes do enredo de Vaqueiro e Visconde, Donana. A
análise permitiu perceber como a construção do seu perfil
feminino busca verossimilhança com o discurso histórico
existente em torno das mulheres que viveram no Brasil em
meados do século XVIII. Vivendo à sombra dos homens de
sua família, Donana experenciou um casamento arranjado e
junto dele, as dores, os silenciamentos e as obrigações de ser
mãe, esposa e dona do lar.

Pudemos ainda descrever como a mulher piauiense do


século XVIII aparece no imaginário do autor, descrevendo
Donana com base na cultura e valores daquele século, ao
passo estereotipa seu perfil e pouco explora as habilidades da
personagem como administradora da fazenda nas ausências
do marido. A obra tem um forte cunho histórico em

88
representar personagens importantes para o Piauí, além de
ser rica em detalhes o cotidiano da sociedade e da
representação da mulher.

Dessa maneira, ao optar por alcançar Donana como


sujeito da análise, queremos demonstrar o potencial de olhar
para a literatura além da obviedade da narrativa, alcançando
e dando visibilidade para personagens que, embora não sejam
protagonistas, possuem uma razão de existir na obra e são
relevantes para os estudos literários. Em Vaqueiro e Visconde o
autor não se deteve apenas na representação de Donana,
havendo outros perfis de mulheres na narrativa a serem
explorados, as quais espera-se que futuramente sejam
abordadas em outras pesquisas deste cunho.

Referências

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de l’APEF, n. especial, p. 451-461, jun. 2009.
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89
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M. (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
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SCHAWANTES, C. Dilemas da Representação Feminina. OPSIS:
Revista do NIESC, v. 6, p. 7-19, 2006.
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socioculturais (1960 a 2000). 2007. Dissertação (Mestrado em
História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2007.
ZINANI, C. J. Literatura e Gênero: A construção da identidade
feminina. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006.

90
CAPÍTULO IV
MELHORANDO A SOCIEDADE AO
MUDAR O PAPEL FEMININO: UMA
ANÁLISE COMPARATIVA DOS TEXTOS
WOMEN AND ECONOMICS, THE YELLOW
WALLPAPER E MAKING A CHANGE, DE
CHARLOTTE PERKINS GILMAN

Maria do Socorro Baptista Barbosa

Em cumprimento ao dever, uma vida


cercada,

O que quer que o espírito se volte para


olhar;

Sem chance de escapar, exceto pelo pecado;

Nem mesmo espaço para fugir –

Simplesmente para viver e trabalhar.

Uma obrigação imposta, não solicitada,

Ainda vinculativo com a força da lei natural;

91
A pressão do pensamento antagônico;

Doendo dentro, a cada hora,

Uma sensação de desperdício de energia.

Uma casa com telhado tão escuro

As pesadas vigas bloquearam a luz do sol;

Não se pode ficar ereto sem um golpe;

Até a alma dentro

Grita por uma sepultura - mais ampla.1

(GILMAN, tradução nossa)

Charlotte Perkins Gilman é uma das mais importantes


escritoras do final do século XIX, e, como Schwartz (1989, p.
viii, tradução nossa) afirma, ela foi, em vida, uma feminista
radical, “uma das principais pensadoras do movimento

1 Texto original: In duty bound, a life hemmed in, / Whichever may the spirit turns to
look; / No chance of breaking out, except by sin; / Not even room to shirk — / Simply
to live, and work. / An obligation preimposed, unsought, / Yet binding with the force
of natural law; / The pressure of antagonistic thought; / Aching within, each hour, /
A sense of wasting power. / A house with roof so darkly low / The heavy rafters shut
the sunlight out; / One cannot stand erect without a blow; / Until the soul inside /
Cries for a grave — more wide.

92
feminino.”2, cuja ambições iam muito além das limitações
impostas ao seu gênero. Em muitos aspectos, ela tinha ideias
muito avançadas para seu tempo, e o direito ao voto, que era
o mais importante elemento do movimento de mulheres
naquele período, não era a coisa mais importante para ela: era
apenas um pequeno passo em direção a uma completa
mudança na sociedade. Entretanto, após sua morte, seus
escritos foram relegados a uma posição inferior, e ela foi quase
completamente esquecida, até seu “redescobrimento”, na
década de 1960, por uma nova geração de feministas que
ficaram encantadas com sua vida, que teria sido “mais vívida
do que qualquer livro.”3 (SCHWARTZ, 1989, p. viii, tradução
nossa).

Tendo em mente tais aspectos, neste trabalho,


mostrarei como as ideias da escritora sobre relações
econômicas, apontadas em seu livro Women and Economics,
publicado em 1898, influenciaram dois de seus contos, The
Yellow Wallpaper, de 1892, e Making a Change, de 1911. Sendo
narrativas totalmente distintas, elas trazem algumas
semelhanças, e pretendo mostrar como tais textos, incluindo
o texto não fictício, sugerem a forma como o papel da mulher
na sociedade deveria ser alterado para melhorar a sociedade
como um todo, e como papéis sexuais e de gênero são

2 Texto original: a leading thinker in the women’s movement.


3 Texto original: more vivid than any book.

93
apresentados, nos três textos, como as chaves para as relações
humanas.

Para fazer uma análise comparativa de tais textos, farei


um paralelo entre as vidas das protagonistas, prestando
atenção nas relações entre a forma como elas são apresentadas
nas narrativas e o pensamento de Gilman expresso no seu
texto não fictício. É interessante notar que as duas
personagens possuem uma trajetória semelhante até um certo
momento, quando há uma mudança radical, que ocorre
devido a uma série de fatores, todos tão interligados que não
é possível analisá-los separadamente. Desta forma, discutirei
cada um de tais aspectos de acordo com a sequência em que
aparecem nas narrativas, sempre tentando ver de que maneira
os textos fictícios refletem as ideias apresentadas no texto não
ficcional.

Iniciando com uma discussão sobre os papéis de


gênero ao final do século XIX, é importante ver a posição de
Gilman sobre este tão complexo assunto. Embora a ideia de
gênero como sendo uma construção social seja uma noção da
segunda metade do século XX, a autora é bem consciente
acerca da influência social sobre os comportamentos sexuais:

Desde o momento em que nossos filhos


nascem, usamos todos os meios conhecidos
para acentuar a distinção sexual em meninos
e meninas; e a razão pela qual o menino não
é tão irremediavelmente marcado por esta
distinção quanto a menina é que, além de

94
tudo, ele tem todo o campo da expressão
humana aberto para ele. Em nossa constante
insistência em proclamar a distinção de sexo,
passamos a considerar a maioria dos
atributos humanos como masculinos, pela
simples razão de que eram permitidos ao
homem e proibidos às mulheres (GILMAN,
1900, p. 43, tradução nossa)4.

Papéis de gênero vs papéis econômicos

Em The Yellow Wallpaper (1989), os papéis de gênero são


claramente definidos: John, o marido, deve trabalhar para
sustentar sua mulher e filhos, enquanto a esposa, a
protagonista sem nome, deve permanecer em casa. Porque ele
tem uma boa condição financeira, ela não precisa se preocupar
com os afazeres domésticos: há empregadas para tudo,
inclusive para cuidar do bebê. Entretanto, ela sente que,
porque está doente, ela não está seguindo a prática social que
determina, de forma marcante, que uma boa esposa deve
servir como “descanso” e “conforto” para seu marido: “Of
Claro que é apenas nervosismo. Não me pesa muito cumprir
o meu dever de forma alguma! Eu pretendia ser uma grande

4 Texto original: From the time our children are born, we use every means known to
accentuate sex-distinction in both boy and girl; and the reason that the boy is not so
hopelessly marked by it as the girl is that he has the whole field of human expression
open to him besides. In our steady insistence on proclaiming sex-distinction we have
grown to consider most human attributes, for the simple reason that they were allowed
to man and forbidden to women.

95
ajuda para John, um grande descanso e conforto, e aqui estou
eu já um peso comparável!”(GILMAN, 1989, p. 5, tradução
nossa)5.

Em Making a Change (1911), a mesma coisa acontece no


início. Frank, o marido, trabalha para sustentar sua esposa,
seu filho, e sua mãe, enquanto Julia, a esposa, fica em casa.
Como ele não é um homem rico, ele não pode contratar muitos
auxiliares para o trabalho doméstico. Há apenas uma
empregada, e Julia tem de cuidar da criança sozinha, o que
realmente considera ser seu dever, mas, como a protagonista
sem nome do outro conto, ela também sente que não é uma
ajuda para o marido, dando-lhe o “descanso” e “conforto” que
ele espera dela:

Quando o bebê nasceu, seu coração


transbordou de total devoção e gratidão; ela
era sua esposa - a mãe de seu filho. Sua
felicidade aumentou e transbordou de tal
forma que ela ansiava mais do que nunca por
sua música, pela corrente livre de expressão,
para transmitir seu amor, orgulho e
felicidade. Ela não tinha o dom de palavras.
(GILMAN, 1911, p. 3, tradução nossa)6.

5 Texto original: Of course it is only nervousness. It does not weight on me so not to do


my duty in any way! I meant to be such a help to John, such a great rest and comfort,
and here I am a comparative burden already!
6 Texto original: When the baby came, her heart overflowed with utter devotion and

thankfulness; she was his wife — the mother of his child. Her happiness lifted and
pushed within till she longed more than ever for her music, for the free-pouring current
of expression, to give forth her love and pride and happiness. She had not the gift of

96
Gilman afirma que a noção de que cabe ao marido
sustentar sua esposa, considerada então como uma “lei
natural”, como a epígrafe sugere, não é de forma alguma
natural, pois em nenhum dos outros animais a fêmea é
sustentada pelo macho, exceto por períodos de extrema
necessidade. Até o final do século XIX e início do século XX,
entretanto, a maiorias das mulheres era sustentada por
homens durante toda sua vida, como se elas não fossem
capazes de prover por si mesmas. Ela observa:

Somos a única espécie animal em que a fêmea


depende do macho para se alimentar, a única
espécie animal em que a relação sexual é
também econômica. Conosco, um sexo
inteiro vive em uma relação de dependência
econômica do outro sexo, e a relação
econômica se combina com a relação sexual.
O status econômico da mulher humana é
relativo à relação sexual (GILMAN, 1900, p.
18, tradução nossa)7.

Por meio da citação acima, é possível ver que a autora


estava bastante preocupada com relações de gênero ligadas às
relações econômicas. Ela conclui:

words.
7 Texto original: We are the only animal species in which the female depends on the male
for food, the only animal species in which the sex relation is also an economic relation.
With us an entire sex lives in a relation of economic dependence upon the other sex,
and the economic relation is combined with the sex relation. The economic status of the
human female is relative to the sex-relation

97
In Na espécie humana, a condição é
permanente e geral, embora haja exceções, e
embora o século atual esteja testemunhando
o início de uma grande mudança a esse
respeito. Estamos acostumados a encarar
esse fato além de nossa generalização de que
é "natural", e de que outros animais também
o fizeram. (GILMAN, 1900, p. 19, tradução
nossa)8.

É bastante polêmico discutir se algo é ou não natural.


Showalter (1989, p. 2, tradução nossa) esclarece:

Enquanto uma visão tradicional sustentaria


que sexo, gênero e sexualidade são os
mesmos - que um homem biológico, por
exemplo, "naturalmente" adquire as normas
comportamentais masculinas de sua
sociedade, e que sua sexualidade
"naturalmente" evolui de seus hormônios –
pesquisas em uma série de disciplinas
mostram que o conceito de masculinidade
varia amplamente dentro de várias
sociedades e períodos históricos, e que a
sexualidade é um fenômeno complexo
moldado pela experiência social e pessoal.9.

8 Texto original: In the human species the condition is permanent and general, though
there are exceptions, and though the present century is witnessing the beginnings of a
great change in this respect. We have been accustomed to face this fact beyond our loose
generalization that is was “natural,” and that other animals did so, too.
9 Texto original: While a traditional view would hold that sex, gender, and sexuality are

the same — that a biological male, for example, “naturally” acquires the masculine
behavioral norms of his society, and that his sexuality “naturally” evolves form his
hormones — scholarship in a number of disciplines shows that concept of masculinity

98
Razão versus emoção

Aparentemente, o final do século XIX, quando os três


textos em análise foram publicados, foi marcado por uma
guerra entre os sexos. Porque as mulheres estavam lutando
por seus direitos, “os homens veem os menores passos
femininos em direção à autonomia como passos ameaçadores
que os privarão de toda autoridade.”10 (GILBERT; GUBAR,
1987, p. 66, tradução nossa). Textos literários bem conhecidos
deste período, mesmo os escritos por homens, lidam com
papéis sexuais e relações de gênero. É como se os homens
temessem a independência da mulher, pois, caso isto
acontecesse, eles perderiam seu poder patriarcal. Harris (1991,
p. 47, tradução nossa) afirma que “a América do século XIX
foi caracterizada por pronunciamentos públicos estridentes
sobre o que constituía a natureza dos dois sexos.”11, e
Shumaker (1985, p. 589, tradução nossa) observa que “a
questão do papel da mulher no século XIX está
inextricavelmente ligada à questão mais geral de como
alguém percebe o mundo.”12. A percepção do mundo é,
tradicionalmente falando, bem diferente para homens e

vary widely within various societies and historical periods, and that sexuality is a
complex phenomenon shaped by social and personal experience
10 Texto original: men view the smallest female steps toward autonomy as threatening

strides that will strip them of all authoriry


11 Texto original: nineteenth-century America was characterized by strident public

pronouncements about what constituted the nature of two sexes.


12 Texto original: the question of women’s role in the nineteenth century is inextricably

bound up with the more general question of how one perceives the world.

99
mulheres: homens têm uma visão racional do mundo,
enquanto mulheres são mais conectadas com a imaginação e
a emoção. Despret (2011, p. 31-32) aponta que

Numerosas pesquisas vieram inclusive


confirmar e apoiar esta crítica: o contraste
emoção / razão, que, aliás, confirma outros
dualismos afiliados – passividade /
atividade; natureza / cultura; corpo /
consciência / subjetividade / pensamento
racional; valores / fatos; transbordamento /
controle-vontade – é um contraste que
hierarquiza os seres. Do lado dos detentores
privilegiados da razão, encontraremos
aqueles que têm o direito do exercício no
espaço público (os homens, se possível,
brancos e civilizados); do lado das emoções,
encontraremos aqueles que dele são
excluídos: as mulheres, as crianças, aqueles
que durante muito tempo chamamos
primitivos, até mesmo as classes
trabalhadoras (sempre à beira de um motim).

Gilman não se contrapõe por completo a tal visão, mas


a descontrói na medida em que suas narrativas se
desenvolvem. Bem no início de The Yellow Wallpaper (1989),
John é apresentado como um homem bastante racional: “John
é prático ao extremo. Ele não tem paciência com a fé, tem um
horror intenso à superstição, e ele zomba abertamente de
qualquer conversa de coisas que não possam ser sentidas,

100
vistas e colocadas em números.”13 (GILMAN, 1989, p. 1,
tradução nossa). Por outro lado, Frank, de Making a Change
(1911), não é tão racional, pois ele é um homem sensível que
“tinha se apaixonado profunda e desesperadamente pela
beleza exaltada e mente sutil da jovem professora de
música.”14 (GILMAN, 1911, p. 3, tradução nossa).

A racionalidade de John é tão acentuada que ele é visto


como uma espécie de super-homem, pois ele “nunca ficou
nervoso em sua vida.”15 (GILMAN, 1989, p. 5, tradução
nossa), enquanto Frank, sendo um homem mais sensível, fica
bastante nervoso e irritado quando descobre que sua mãe e
sua esposa lhe haviam mentido: “Ele ficou tão surpreso e
zangado que fez uma coisa muito incomum – ele deixou seu
trabalho e foi para casa no início da tarde.”16 (GILMAN, 1911,
p. 4, tradução nossa).

As mulheres são bastante sensíveis: a narradora


anônima do primeiro conto é uma escritora, Julia, do segundo,
é uma musicista. Arte e imaginação estão fortemente ligadas.
A protagonista sem nome tem uma imaginação tão forte que
ela “costumava ficar acordada quando criança e obter mais

13 Texto original: John is practical in the extreme. He has no patience with faith, an intense
horror of superstition, and he scoffs openly at any talk of things not to be felt and seen
and put down in figures.
14 Texto original: had fallen deeply and desperately in love with the exalted beauty and

fine mind of the young music teacher.


15 Texto original: never was nervous in his life.
16 Texto original: surprised and so angry was he that he did a most unusual thing — he

left his business and went home early in the afternoon.

101
entretenimento e terror de paredes e móveis simples do que a
maioria das crianças poderia encontrar em uma loja de
brinquedos.”17 (GILMAN, 1989, p. 6, tradução nossa). Julia,
embora não tenha uma imaginação tão forte, é uma mulher
muito sensível, com sentimentos fortes que ela não consegue
expressar com palavras. A música é sua forma de expressar
seus sentimentos e ideias, e, quando ela é obrigada a desistir,
ela se sente muito mal, assumindo, entretanto, a necessidade
de sacrificar-se por seu marido: “Aqui estava uma nobre
devoção por parte da jovem esposa, que idolatrava tanto o
marido que ela costumava desejar ter sido a maior musicista
da Terra – que ela pudesse desistir por ele!”18 (GILMAN, 1911,
p. 3, tradução nossa).

Casamento: perda da autonomia feminina?

Auto sacrifício é algo comum em casamentos,


especialmente para mulheres, que, ao final do século XIX,
devem viver para seus maridos e filhos, nunca se
preocupando consigo mesmas. Então, por que deveria uma

17 Texto original: used to lie awake as a child and get more entertainment and terror out
of blank walls and plain furniture than most children could find in a toy-store.
18 Texto original: Here was a noble devotion on the part of the young wife, who so

worshipped her husband that she used to wish she had been the greatest musician on
Earth—that she might give it up for him!

102
mulher se casar? Gilman (1900, p. 64, tradução nossa) dá a
seguinte resposta:

A menina deve se casar: senão como viver? O


futuro marido prefere que a menina não
saiba de nada. Ele é o mercado, a demanda.
Ela é o suprimento. E com as melhores
intenções a mãe serve à vantagem econômica
de sua filha, preparando-a para o mercado.
Este é um excelente exemplo. É comum. É
muito ruim. É claramente rastreável à nossa
relação econômico-sexual.19

Heilbrun (1978, p. 309, tradução nossa) observa que o


preço do casamento é o autoabandono do eu da mulher, e,
quando ela deseja uma vida diferente, tudo se torna diferente:
“Mesmo o marido menos inteligente percebe (e alguns dos
mais inteligentes acreditam) que uma mudança no casamento
profunda o suficiente para satisfazer as esposas em fuga
alteraria profundamente a fundação dessa comunidade
conservadora, a família.”20

A renúncia da autonomia por causa do casamento é


bastante frequente nos escritos de mulheres do século XIX,

19 Texto original: The girl must marry: else how live? The prospective husband prefers
the girl to know nothing. He is the market, the demand. She is the supply. And with
the best intentions the mother serves her child’s economic advantage by preparing her
for the market. This is an excellent instance. It is common. It is most evil. It is plainly
traceable to our sexuo-economic relation.
20 Texto original: Even the least intelligent husband realizes (and some of the most
intelligent believe) that a change in marriage profound enough to satisfy the fleeing
wives would profoundly alter the foundation of that conservative community, the
family.

103
talvez como uma forma de chamar atenção para o fato de que
o casamento, embora seja “a aventura da mulher, o objeto de
sua busca, o fim de sua jornada.”21 (HEILBRUN, 1978, p. 309,
tradução nossa), é também uma forma de fechar a mulher no
espaço doméstico, com a desculpa de que tal espaço é “a
esfera própria da mulher, seu lugar divinamente ordenado,
seu fim natural.”22 (GILMAN, 1900, p. 65, tradução nossa).

Aprisionamento versus fuga

Gilbert e Gubar (1980) declaram que em muitos dos


escritos do século XIX mulheres eram caracterizadas por
imagens de aprisionamento e fuga, devido ao fato de que
quase todas as mulheres daquele tempo estavam, de alguma
forma, aprisionadas em casas que pertenciam a homens. Tais
imagens, as autoras afirmam, “refletem o próprio desconforto
da escritora, sua sensação de impotência, o medo de que ela
habite lugares estranhos e incompreensíveis.”23 (GILBERT;
GUBAR, 1980, p. 84, tradução nossa). Tais imagens são
claramente vistas nos textos de Gilman. Em Women and
Economics (1900, p. 23, tradução nossa), ela coloca tudo em
termos de relações econômicas:

21 Texto original: the women’s adventure, the object of her quest, her journey’s end.
22 Texto original: the women’s proper sphere, her divinely ordered place, her natural end.
23 Texto original: reflect the women writer’s own discomfort, her sense of powerlessness,

the fear that she inhabits alien and incomprehensible places.

104
O trabalho que a esposa realiza no lar é dado
como parte de seu dever funcional, não como
emprego. A esposa do homem pobre, que
trabalha em uma casa pequena, fazendo todo
o trabalho para a família, ou a esposa do
homem rico, que sabiamente e graciosamente
administra uma casa grande e coordena sua
função, cada uma tem direito a um
pagamento justo por serviços prestados. 24

Nos contos, as heroínas enfrentam o aprisionamento


de seus casamentos diferentemente, cada uma de sua própria
maneira: embora no início ambas sofram de uma doença
nervosa por causa de uma depressão pós-parto, elas não são
tratadas da mesma forma. Em Making a Change (1911, p. 3,
tradução nossa), Frank sequer tem consciência do sofrimento
de sua esposa, não porque ele não se preocupe com ela, mas
porque lhe falta o conhecimento específico sobre doenças
nervosas: “Se Frank fosse um alienista, ou mesmo um clínico
geral, ele teria notado. Mas seu trabalho consistia em bobinas
elétricas, dínamos e fiação de cobre – não nos nervos das
mulheres – e ele não percebeu.”25

24 Texto original: The labor which the wife performs in the household is given as part of
her functional duty, nor as employment. The wife of the poor man, who works in a
small house, doing all the work for the family, or the wife of the rich man, who wisely
and gracefully manages a large house and administers its function, each is entitled to
fair pay for services rendered.
25 Texto original: If Frank had been an alienist, or even a general physician, he would

have noticed it. But his work lay in electric coils, in dynamos and copper wiring—not
in women’s nerves—and he didn’t notice it.

105
Em The Yellow Wallpaper (1989, p. 1, tradução nossa),
John não vê doença alguma em sua esposa, pois ele, como
médico, vê somente os corpos sadio da mulher, e é incapaz de
entender seus problemas mentais. Ela parece ter mais
consciência do que ele sobre o quê está acontecendo: “John é
médico, e talvez – (eu não diria isso a uma alma viva, claro,
mas este é um papel morto e um grande alívio para minha
mente) – talvez seja uma das razões de eu não melhorar mais
rápido. Veja, ele não acredita que eu estou doente.”26
(destaque no original).

Nervosismo, histeria: mulher, sexo frágil?

Desde que as mulheres eram consideradas como o sexo


frágil, suas doenças não eram vistas com seriedade,
especialmente as doenças nervosas, que eram tratadas pelos
médicos como uma demonstração de fraqueza. Gilbert e
Gubar (1980, p. 54, tradução nossa) afirmam que “a
socialização patriarcal literalmente adoece as mulheres, tanto
física quanto mentalmente.”.27 Elas dizem também que “A
cultura do século XIX parece ter realmente advertido as
mulheres a adoecerem. Em outras palavras, as “doenças

26Texto original: John is a physician, and perhaps — (I would not say it to a living soul,
of course, but this is a dead paper and a great relief to my mind) — perhaps that is one
reason I do not get well faster. You see, he does not believe I am sick.
27 Texto original: patriarchal socialization literally makes women sick, both

physically and mentally.

106
femininas” de que as mulheres vitorianas sofriam nem
sempre eram subprodutos de sua formação em feminilidade;
eles eram o objetivo de tal treinamento (tradução nossa)”.28

As doenças nervosas, então, eram consideradas como


consequências de atividades mentais, visto que as mulheres
deveriam se ater às atividades domésticas, não às atividades
intelectuais, como Gilbert e Gubar (1980, p. 55, tradução
nossa) também notam: “demasiada imaginação pode ser
perigosa para qualquer pessoa, homem ou mulher, mas para
as mulheres, em particular, a cultura patriarcal sempre
assumiu que os exercícios mentais teriam consequências
ousadas.”29

Em Making a Change (1911, p. 3, tradução nossa), não


há uma clara conexão entre a depressão de Julia e a prática de
atividades mentais. Pelo contrário, a ausência de tais
atividades é que parece estar causando seu nervosismo: “ela
havia desistido de sua música, forçosamente, por muitos
meses, e sentia falta dela mais do que ela imaginava.”30 Muito
tempo sem dormir ou descansar cuidando de seu filho, e a
tensa situação que surgiu entre ela e o esposo por causa das

28 Texto original: Nineteenth-century culture seems to have actually admonished women


to be ill. In other words, the “female diseases” from which Victorian women suffered
were not always byproducts of their training in femininity; they were the goal of such
training.
29 Texto original: too much imagination may be dangerous to anyone, male or female, but

for women in particular patriarchal culture has always assumed mental exercices
would have dare consequences.
30 Texto original: she had given up her music, perforce, for many months and missed it

more than she knew

107
formas de educar a criança, foi muito para ela: “Julia estava
mais à beira do desastre completo do que a família sonhava.
As condições eram tão simples, tão usuais, tão inevitáveis.”31
(GILMAN, 1911, p. 3, tradução nossa). Ela decide mudar as
coisas, dando a Frank alguma paz, por meio de sua
autodestruição, ao cometer suicídio.

Em The Yellow Wallpaper (1989), a ideia de doenças


nervosas ligadas às atividades mentais está clara desde o
começo, quando a protagonista é proibida de trabalhar, ou
seja, quando ela é proibida de usar sua imaginação, quando
ela é proibida de escrever. Tanto seu marido quanto seu irmão
não acreditam que ela esteja realmente doente, como ela
inteligentemente pergunta: “Se um médico de alto nível, e seu
próprio marido, garante a amigos e parentes que não há
realmente nada de errado com alguém além de depressão
nervosa temporária - uma tendência ligeiramente histérica - o
que se deve fazer?”32 (GILMAN, 1989, p. 2, tradução nossa).

O que pode uma mulher fazer, em tais casos? Se ela


pertence a uma classe social alta, como a narradora de The
Yellow Wallpaper, ela é tratada pelo método de S. Weir
Mitchell. Ele foi o neurologista da própria Gilman, e sua “cura
pelo repouso” foi largamente usada em mulheres com

31 Texto original: Julia was more near the verge of complete disaster than the family
dreamed. The conditions were so simple, so usual, so inevitable.
32 Texto original: If a physician of hight standing, and one’s own husband, assures friends

and relatives that there is really nothing the matter with one but temporary nervous
depression — a slightly hysterical tendency — what is one to do?

108
desordens nervosas. De acordo com Schwartx (1989, p. xv,
tradução nossa), a cura, que consistia “em o paciente não
fazer nada ... deixou Gilman quase morta; a paciente fictícia
não tem recursos para se salvar.”33 A “cura pelo repouso”,
como Gilman aponta em sua autobiografia, foi designada para
“o empresário exausto de tanto trabalho, e as mulheres da
sociedade exausta de tanto brincar.”34 (SHUMAKER, 1985, p.
591, tradução nossa).

O motivo pelo qual John não acredita que sua esposa


esteja doente é o medo que ele tem da grande imaginação que
ela possui. Ele “quer lidar apenas com as causas e efeitos
físicos: se os sintomas de sua esposa são nervosismo e perda
de peso, o tratamento deve ser tranquilidade imperturbada e
boa nutrição.”35 (SHUMAKER, 1985, p. 591, tradução nossa).
Então, ele a tranca em um quarto que, “com suas imagens de
janelas gradeadas e estrados sinistros.”36 (SHUMAKER, 1985,
p. 589, tradução nossa), representa sua prisão. Entretanto, o
que realmente a perturba não é o enclausuramento, mas o fato
de ser proibida de escrever: “Às vezes penso que, se eu
estivesse bem o suficiente para escrever um pouco, isso
aliviaria a pressão de ideias e me descansaria. Mas acho que

33 Texto original: of the patient’s doing nothing… drove Gilman nearly dead; the fictional
patient does not have the resources to save herself.
34 Texto original: the businessman exhausted from too much work, and the society

women exhausted from too much play.


35 Texto original: wants to deal only with physical causes and effects: if his wife’s

symptoms are nervousness and weight loss, the treatment must be undisturbed
tranquillity and good nutrition.
36 Texto original: with its images of barred windows and sinister bedsteads.

109
fico muito cansado quando tento. É tão desanimador não ter
um conselho e companhia sobre o meu trabalho.”37
(GILMAN, 1989, p. 6, tradução nossa).

Gilman aponta, com clareza, em Women and Economics


(1900), que sua opinião difere da opinião de John. Ela
questiona por que mulheres não são incluídas nas forças
produtivas, e forçadas a ficarem em casa enquanto os homens
trabalham e passam a maior parte de seu tempo fora de casa.
Ela afirma:

Metade da raça humana tem negada a livre


expressão produtiva, é forçada a confinar
suas energias humanas produtivas aos
mesmos canais que suas energias sexuais
reprodutivas. Sua habilidade criativa está
confinada ao nível do serviço corporal
pessoal imediato, à confecção de roupas e
preparação de alimentos para indivíduos. 38
(GILMAN, 1900, p. 85, tradução nossa).

A narradora anônima também não concorda com seu


marido. Ela gostaria de ter a oportunidade de expressar suas
ideias, e a única forma que ela tem de fazer isso é por meio da
escrita. John não entende tais necessidades: “Ele diz que, com

37 Texto original: I think sometimes that if I were only well enough to write a little it would
relieve the press of ideas and rest me. But I find I get pretty tired when I try. It is so
discouraging not to have an advice and companionship about my work.
38 Texto original: Half the human race is denied free productive expression, is forced to

confine its productive human energies to the same channels as its reproductive sex-
energies. Its creative skill is confined to the level of immediate personal bodily service,
to the making of clothes and preparing of food for individuals.

110
meu poder de imaginação e hábito de fazer histórias, uma
fraqueza nervosa como a minha certamente levará a todo tipo
de fantasias excitadas, e que devo usar minha vontade e bom
senso para controlar a tendência.”39 (GILMAN, 1989, p. 6,
tradução nossa).

Julia tem mais sorte: depois de ser salva após sua


tentativa de suicídio, ela volta a trabalhar. É importante
destacar que ela trabalhava, antes de se casar, como
professora de música, e seu marido tinha uma grande
admiração por seu talento. Então, quando ele descobre, por
meio de um amigo, que ela está novamente dando aulas de
música, embora fique irritado, ele logo entende que uma das
razões pelas quais tudo aparenta estar tão perfeito e pacífico
em casa é exatamente porque ela está seguindo sua profissão,
permitindo que ela pague por uma empregada mais eficiente,
além de fazê-la feliz, visto que ela ama música quase acima de
qualquer coisa, com exceção dele e do filho. O entendimento
de Frank acerca da situação faz com que tudo fique bem:

“E querida – meu próprio amor – eu não me


importo com isso agora! Amo minha casa,
amo meu trabalho, amo minha mãe, amo
você. E quanto aos filhos – eu gostaria de ter
seis!” Ele olhou para seu rosto corado,
ansioso e adorável e puxou-a para perto de
si. “Se isso te deixa tão feliz”, disse ele, “acho

39 Texto original: He says that with my imaginative power and habit of story-making, a
nervous weakness like mine is sure to lead to all manner of excited fancies, and that I
ought to use my will and good sense to check the tendency

111
que aguento”.40 (GILMAN, 1911, p. 5,
tradução nossa).

As protagonistas e outras personagens femininas

O que salva Julia da morte não salva a narradora


anônima de The Yellow Wallpaper (1989) da loucura: a
interferência de outra personagem feminina. Em Making a
Change (1911), a presença da sogra da protagonista é
fundamental para sua sobrevivência e para sua
independência financeira. É a mãe de Frank que salva a vida
de Julia e quem a estimula a trabalhar enquanto ela (a sogra)
cuidava do filho do casal:

“Não diga nada, querida – eu entendo. Eu


entendo, eu te digo! Oh, minha querida
menina – minha preciosa filha! Não temos
sido bons o suficiente com você, Frank e eu!
Mas anime-se agora – tenho o plano mais
adorável para contar a você! Vamos fazer
uma mudança! Ouça agora!”

E enquanto a jovem mãe pálida ficava quieta,


acariciava e esperava o conteúdo de seu
coração, grandes planos eram discutidos e
decididos.41 (GILMAN, 1911, p. 4, grifo da
autora, tradução nossa).

40 Texto original: “And dear — my own love — I don’t mind it now at all! I love my home,
I love my work, I love my mother, I love you. And as to children — I wish I had six!”
He looked at her flushed, eager, lovely face, and drew he close to him. “If it makes you
as happy as that,” he said, “I guess I can stand it”
41 Texto original: “Don’t say a thing, dearie—I understand. I understand, I tell you! Oh,

112
Pode-se dizer que, de certa forma, a Sra. Gordin se
posiciona contra o patriarcalismo quando ela não apenas
permite que sua nora trabalhe sem o consentimento do filho.
Gallop (1987, p. 322, tradução nossa) afirma que “na tentativa
de ir além do pai, a mãe parece uma alternativa, mas se
estamos tentando ir além do patriarcado, a mãe não está
fora,”42 pois “a instituição da maternidade é a pedra angular
do patriarcado.”43. A mãe de Frank certamente tenta ir contra
o patriarcalismo quando ela decide ajudar a nora
contrariando todas as expectativas, pois normalmente as
mulheres não são amigas de outras mulheres em textos
fictícios. De acordo com Gilman (1900) a razão pela qual não
poderia haver amizade entre mulheres era porque elas não
trabalhavam, e passavam a maior parte do tempo sozinhas,
em casa:

A razão pela qual a amizade significa mais


para os homens do que para as mulheres, e
porque eles se associam com muito mais
facilidade e liberdade, é que são mais
desenvolvidos nas funções raciais e trabalham
juntos. Na associação natural de esforço
comum e relaxamento comum, é a
verdadeira abertura para a companhia

my dear girl—my precious daughter! We haven’t been half good enough to you, Frank
and I! But cheer up now—I’ve got the loveliest plan to tell you about! We are going to
make a change! Listen now!” And while the pale young mother lay quiet, patted and
waited on her heart’s content, great plans were discussed and decided on
42 Texto original: in trying to move beyond the father, the mother looks like an alternative,

but if we are trying to go beyond patriarchy, the mother is not outside.


43 Texto original: the institution of motherhood is a cornerstone of patriarchy.

113
humana.44 (GILMAN, 1900, p. 196, destaque
no original, tradução nossa).

Em The Yellow Wallpaper (1989), a outra personagem


feminina é a irmã de John que, ao contrário da mãe de Frank,
não tem interesse nem vontade em ajudar a cunhada. De certa
forma, ela compartilha das ideias de John sobre atividades
intelectuais para mulheres, reforçando o patriarcalismo e
substituindo o irmão no cuidado pela narradora quando este
não está em casa: “Lá vem a irmã de John. Uma menina tão
querida como ela e tão cuidadosa comigo! Não devo deixar
que ela me encontre escrevendo. Ela é uma dona de casa
perfeita e entusiasta, e não deseja profissão melhor. Eu
realmente acredito que ela pensa que é a escrita que me deixa
doente.”45 (GILMAN, 1989, p. 7, tradução nossa).

Tanto a esposa como a irmã de John, Jennie, parecem


compartilhar o mesmo papel, pois ambas estão sob o controle
dele. Embora Jennie esteja aparentemente livre, ela é tão
prisioneira como a cunhada: tudo o que ela faz é reforçar o
poder do irmão. Em alguns momentos, ela sequer é a irmã de
John, ela é apenas a “irmã”, uma mulher que é também
submetida ao poder do homem, que não é livre para viver por

44 Texto original: The reason why friendship means more to men than to women, and
why they associate so much more easily and freely, is that they are further developed
in race-functions, and that they work together. In the natural association of common
effort and common relaxation is the true opening for human companionship.
45 Texto original: There comes John’s sister. Such a dear girl as she is, and so careful of
me! I must not let her find me writing. She is a perfect and enthusiastic housekeeper
and hopes for no better profession. I verily believe she thinks it is the writing which
makes me sick.

114
si mesma, que fica em casa todo o tempo, que não tem
permissão para trabalhar fora.

Identidade feminina posta em xeque

É importante enfatizar que, no início de ambas as


narrativas, somente os homens podem sair de casa para
ganhar seus sustentos. Em The Yellow Wallpaper (1989), a
liberdade de John de ir e vir é mencionada várias vezes: ele
nunca está em casa durante do dia, e, algumas vezes, nem à
noite, “quando seus casos são graves.”46 (GILMAN, 1989, p. 4,
tradução nossa). Esta liberdade masculina é bastante comum
na literatura tradicional, pois o espaço doméstico é sempre
considerado o espaço do feminino, o “lugar da mulher”,
enquanto o espaço público é visto como o espaço masculino,
o “lugar do homem”. Entretanto, em Making a Change, há uma
subversão desta visão tradicional quando Julia vai à esfera
pública seguir sua profissão, tornando-se uma bem- sucedida
professora de música e compartilhando com o esposo as
despesas da casa. Nesta narrativa, Gilman (1900, p. 145,
tradução nossa) confirma o que ela diz em Women and
Economics: “casamento não é perfeito a menos que seja entre
classes iguais.”47.

46 Texto original: when his cases are serious.


47 Texto original: marriage is not perfect unless it is between class equals.

115
Se Julia, como mãe, deve cuidar de seu filho, como ela
poderia sair de casa para trabalhar? Sua sogra dá a solução:
ela cuidaria do neto, a quem ela ama muito. Fica claro, desde
o início, que Julia, embora amando o esposo, e desejando ser
uma boa esposa e mãe, não estava preparada para a
maternidade. Entretanto, supõe-se que mulheres tenham o
“instinto maternal”, que é “sagrado” e “divino”. Gilman não
concorda com tal ideia:

A educação de mulheres jovens não tem


departamento de maternidade. É
considerado indelicado dar a esta consagrada
funcionária qualquer conhecimento prévio
de seus sagrados deveres. A mais importante
e maravilhosa das funções humanas é
deixada de uma época para outra nas mãos
de mulheres absolutamente inexperientes. 48
(GILMAN, 1900, p. 130, tradução nossa).

Schwartz (1989, p. ix, tradução nossa) afirma que os


livros de Gilman

delinear ideias radicais sobre o significado e


as ramificações do trabalho humano, sobre as
instituições do casamento e da família ...
sobre a maternidade e, em particular, sobre a
gravidez, que ela veementemente acreditava
que deveriam ser confiadas a profissionais

48 Texto original: The education of young women has no department of maternity. It is


considered indelicate to give this consecrated functionary any previous knowledge of
her sacred duties. The most important and wonderful of human functions is left from
age to age in the hands of absolutely untaught women.

116
treinados, não deixados às volatilidades do
“instinto maternal”.49.

Em The Yellow Wallpaper (1989), por causa de sua


posição social e sua doença nervosa, a protagonista não
precisa se preocupar com seu bebê, como ela mesma nota: “É
uma sorte que Mary seja tão boa com o bebê. Que bebê tão
querido!”50 (GILMAN, 1989, p. 5, tradução nossa). Isso não
significa que ela não ama seu filho, apenas que ela, como uma
mulher muito sensível e de imaginação fértil, não está
preparada para a realidade da maternidade. Entretanto, ela se
preocupa com a criança mesmo assim:

Há um consolo, o bebê está bem e feliz e não


precisa ocupar este berçário com o papel de
parede horrível.

Se não o tivéssemos usado, aquela criança


abençoada o teria. Que fuga feliz! Ora, eu não
teria um filho meu, uma coisinha
impressionável, vivendo em tal sala para
mundos.51 (GILMAN, 1989, p. 10, tradução
nossa).

49 Texto original: outline radical ideas on them meaning and ramifications of human
work, on the institutions of marriage and the family … on motherhood, and on
childbearing in particular, which she vehemently believed should be entrusted to
trained professionals, not let to the volatilities of “maternal instinct”.
50 Texto original: It is fortunate Mary is so good with the baby. Such a dear baby!
51 Texto original: There’s one comfort, the baby is well and happy, and does not have to

occupy this nursery with the horrid wallpaper. If we had not used it, that blessed child
would have. What a fortunate escape! Why, I wouldn’t have a child of mine, an
impressionable little thing, live in such a room for worlds.

117
Julia encontra uma forma de expressar sua imaginação
e seus sentimentos por meio de sua música, escapando da
morte e reencontrando sua quase perdida identidade. A
protagonista de The Yellow Wallpaper (1989) é proibida de usar
sua imaginação por meio da escrita, então ela se volta para o
papel de parede amarelo, no qual ela vê barras ou grades,
atrás das quais ela se vê, caminhando direto para a loucura,
libertando sua mente enquanto perde sua identidade.
Shumaker (1985, p. 590, tradução nossa) afirma que “ao tentar
ignorar e reprimir sua imaginação, em suma, John acaba
provocando as mesmas circunstâncias que deseja prevenir.”52.
Ao final da narrativa, ela destrói o papel de parede e sua
identidade, ela já não é ela mesma, ela é a mulher que estava
atrás do padrão barrado / “gradeado” do papel de parede,
de onde ela fugiu, e ninguém pode colocá-la de volta. Para
Shumaker (1985, p. 597, tradução nossa), “em certo sentido,
ela descobriu, pouco a pouco, e finalmente revelou a John, a
esposa que ele está tentando criar – a mulher sem ilusões ou
imaginação que passa o tempo todo rastejando.”53. Sua perda
de identidade fica muito clara: “Continuei rastejando do
mesmo jeito, mas olhei para ele por cima do ombro.
“Finalmente consegui sair”, disse eu, “apesar de você e de
Jane. E eu tirei a maior parte do papel, então você não pode

52 Texto original: by trying to ignore and repress her imagination, in short, John
eventually brings about the very circumstances he wants to prevent.
53 Texto original: in a sense, she has discovered, bit by bit, and finally revealed to John,

the wife he is attempting to create — the woman without illusions or imagination who
spends all her time creeping.

118
me colocar de volta!”54 (GILMAN, 1989, p. 20, tradução
nossa).

Por que esta narradora perde sua identidade? Proibida


de trabalhar, ela se permite ser influenciada pelo papel de
parede de tal forma que, pouco a pouco, ela se transforma na
mulher que sua imaginação vê por trás das barras / “grades”
do papel. Gardiner (1981, p. 349, tradução nossa) afirma que
“identidade feminina é um processo.”55, e usualmente, em
textos literários, as personagens femininas buscam por suas
identidades. No caso deste conto, há uma inversão: a
narradora parece consciente de quem é ao iniciar a narrativa,
sabendo inclusive por que se encontra tão nervosa e se
preocupa com o filho. Ela se transforma à medida que o tempo
passa, e, presa no quarto, sem ter o que fazer, fica cada vez
mais impressionada com os padrões que enxerga no papel de
parede. Talvez, se ela fosse autorizada a trabalhar, ela não
tivesse enlouquecido. Shumaker (1985, p. 591, tradução nossa)
afirma que: “a própria ideia de que seu trabalho possa ser
benéfico para ela perturba John. Ele tem medo e despreza seus
poderes imaginativos e artísticos, principalmente porque ele
não consegue entendê-los ou a visão de mundo para a qual
eles a levam.”.56

54 Texto original: I kept on creeping just the same, but I looked at him over my shoulder.
“I’ve got out at last,” said I, “in spite of you and Jane. And I’ve pulled off most of the
paper, so you can’t put me back!
55 Texto original: female identity is a process.
56 Texto original: the very idea that her work might be beneficial to her disturbs John. He

119
De alguma forma, a atividade escrita parece sempre ter
sido prerrogativa masculina, sendo a energia criativa própria
dos homens, que ganham poder com isso. Gilbert e Gubar
(1979, p. 10, tradução nossa) afirmam que, quando tal energia
aparece em uma mulher, “pode ser anômalo, bizarro, porque
como uma característica masculina, é essencialmente ‘não
feminino’”57. As autoras também apontam que há uma noção
patriarcal, espalhada na civilização literária ocidental, que
clama para que o escritor seja tipo um deus que: “‘cria’ seu
texto como Deus criou o mundo.”58 (GILBERT; GUBAR, 1979,
p. 4, tradução nossa). Não é de se admirar, então, que a
protagonista de The Yellow Wallpaper hesite em pegar a caneta
ao ser proibida pelo esposo de escrever e, como toda mulher
escritora “de autoria de um Deus masculino e de um homem
semelhante a um deus, morta em uma imagem perfeita de si
mesma”59 (GILBERT; GUBAR, 1979, p. 15, tradução nossa),
sua autocontemplação “pode-se dizer que começou com um
olhar penetrante no espelho do texto literário com inscrições
masculinas. Lá ... olhando longamente, ela veria ... um
prisioneiro enfurecido: ela mesma.”60 (GILBERT; GUBAR,
1979, p. 15, tradução nossa).

is both fearful and contemptuous of her imaginative and artistic powers, largely
because he fails to understand them or the view of the world they lead her to.
57 Texto original: it may be anomalous, freakish, because as a male characteristic, it is

essentially ‘unfeminine’.
58 Texto original: ‘fathers’ his text just as God has fathered the world.
59 Texto original: authored by a male God and by a godlike male, killed into a perfect

image of herself.
60 Texto original: may be said to have begun with a searching glance into the mirror of

120
É possível ser livre no casamento?

Há muitas formas de se alcançar a liberdade, mas a


narradora anônima não tem muitas opções. Ela não pode
fugir, pois não se sente bem; ela não quer morrer; então, sua
única escolha é a loucura. Diferentemente de Julia, que
consegue a liberdade por meio da música, e diferentemente
da própria Gilman, que pôde escapar das duras
consequências da “cura pelo repouso”, a jovem mãe presa no
quarto com o papel de parede amarelo consegue uma forma
diferente de liberdade: sua mente não pode mais ser
controlada.

Enquanto a narrativa de Julia tem um final feliz, talvez


porque ela e o marido tenham tido uma longa conversa
durante a qual ela pôde falar de seus sentimentos e de tudo
que ela e a sogra têm feito para melhorar suas vidas, a
narrativa da protagonista anônima segue um percurso
diferente, pois esta não tem a menor oportunidade de
conversar com o esposo. Ela tenta contar o que está
acontecendo com ela, mas ele que não quer ouvir:

É muito difícil falar com John sobre meu caso,


porque ele é muito sábio e porque me ama
muito. Mas tentei ontem à noite.

the male inscribed literary text. There … looking hard enough, she would see … an
enrage prisoner: herself.

121
[…]

Achei que era uma boa hora para conversar,


então disse a ele que realmente não estava
ganhando aqui e que gostaria que ele me
levasse embora.

“Porquê querida!” disse ele, “nosso aluguel


terminará em três semanas, e não consigo ver
como sair antes”. (tradução nossa)
61
(GILMAN, 1989, p. 11).

Em Making a Change (1911), que começa com um


casamento tradicional, no qual o homem submete a mulher
ao seu poder, termina com um relacionamento entre iguais
no qual tanto o homem como a mulher trabalham e ajudam
a sustentar a família. As últimas palavras de Frank
mostram como as mudanças que ocorreram em suas vidas
ajudaram a fazer a ele e sua família mais felizes: “E anos
depois, ele foi ouvido comentando: ‘Estar casado e criar
filhos é tão fácil quanto pode ser – quando você aprende
como!’”62 (GILMAN, 1911, p. 5, tradução nossa).

Em The Yellow Wallpaper (1989), não há mudanças,


pois John não aceita ouvir sua esposa, levando-a à loucura.

61 It is so hard to talk with John about my case, because he is so wise, and because he loves
me so. But I tried it last night. […] I thought it was a good time to talk, so I told him
that I really was not gaining here, and that I wished he would take me away. “Why,
darling!” said he, “our lease will be up in three weeks, and I can’t see how to leave
before”.
62 And in after years he was heard to remark, “This being married and bringing up

children is as easy as can be—when you learn how!”

122
Mas sua loucura não é sua derrota, pelo contrário.
Aparentemente, ela é a vitoriosa, pois, ao final, ele desmaia
ao vê-la engatinhando ao redor do quarto. Entretanto,
como Gilbert e Gubar (1979, p. 91, tradução nossa)
observam:

Mas o desmaio não masculino de surpresa de


John é o menor dos triunfos que Gilman
imagina para sua louca. Mais significativas
são as próprias imaginações e criações da
louca, miragens de saúde e liberdade com
que sua autora a dota como uma fada
madrinha derramando ouro sobre uma
heroína adormecida.63

De alguma forma, o casamento de John também se


torna um casamento de iguais: ou o final é visto como a
derrota da esposa com sua perda de identidade, como
Shumaker observa, ou é visto como a derrota dele, devido
ao fato de que agora ela está sem controle, como apontam
Gilbert e Gubar. Entretanto, nenhuma das soluções
apresentadas está de acordo com a opinião de Gilman sobre
uma relação de gênero perfeita:

Na realidade, podemos esperar que o efeito


mais valioso dessa mudança na base da vida
seja a purificação do amor e do casamento

63 Texto original: But John’s unmasculine swoon of surprise is the least of the triumphs
Gilman imagines for her madwoman. More significant are the madwoman’s own
imaginings and creations, mirages of health and freedom with which her author
endows her like a fairy godmother showering gold on a sleeping heroine.

123
dessa mistura básica de interesse pecuniário
e conforto da criatura, e que homens e
mulheres, eternamente atraídos pela força
mais profunda na natureza, possam
finalmente encontrar um plano de amor puro
e perfeito.64 (GILMAM, 1900, p. 193, tradução
nossa).

Comparando as duas narrativas, é possível afirmar


que as duas protagonistas são bem parecidas: ambas são
mulheres sensíveis com talentos artísticos que parecem ter
se casado por amor e que não estavam preparadas para
serem mães, apesar da situação de depressão pós-parto que
acomete as duas após o nascimento de seus primeiros
filhos. Seus esposos, entretanto, são completamente
diferentes: John é um médico, e não é capaz de ver além das
aparências. Ele se considera o próprio dono da verdade: “É
claro que, se você estivesse em perigo, eu poderia e iria, mas
você realmente está melhor, querida, quer possa ver ou
não. Eu sou um médico, querida, e eu sei. Você está
ganhando carne e cor, seu apetite está melhor, eu me sinto
muito tranquilo por você. 65 (GILMAN, 1989, p. 11,
tradução nossa).

64 Texto original: In reality, we may hope that the most valuable effect of this change in
the basis of living will be the cleansing of love and marriage from this base admixture
of pecuniary interest and creature comfort, and that men and women eternally drawn
together by the deepest force in nature, will be able at last to meet a plane of pure and
perfect love.
65 Texto original: Of course if you were in any danger, I could and would, but you really

are better, dear, whether you can see it or not. I am a doctor, dear, and I know. You are

124
Por outro lado, Frank é um eletricista, um homem
simples que não se importa de ter uma esposa que seja sua
igual, e que gosta de música como parte dela mesma. Ele é
capaz de ouvir opiniões dos outros, e de entender os
sentimentos dos outros, e se sente muito bem quando
percebe que as pessoas que ele ama estão tão felizes como
ele próprio.

Ele estava satisfeito também, imensamente


satisfeito, por ver sua saúde melhorar rápida
e constantemente, o rosa delicado voltando
para suas bochechas, a luz suave para seus
olhos; e quando ela fazia música para ele à
noite, música suave, com as portas fechadas
– não para acordar Albert – ele sentia como
se seus dias de namoro tivessem chegado
novamente.66 (GILMAN, 1911, p. 4, tradução
nossa).

As diferenças entre as personagens masculinas é o


que faz as duas narrativas tão distintas. The Yellow
Wallpaper, considerado por alguns críticos como um texto
autobiográfico, pode ser visto como uma espécie de aviso,
de alerta, para mulheres: uma mulher não deve se casar
com alguém que não é seu igual, pois um casamento em

getting flesh and color, your appetite is better, I feel really much easier about you.
66 Texto original: He was pleased, too, vastly pleased, to have her health improve rapidly
and steadily, the delicate pink come back to her cheeks, the soft light to her eyes; and
when she made music for him in the evening, soft music, with shut doors — not to
waken Albert — he felt as if his days of courtship had come again.

125
tais condições pode não ser bem- sucedido. Making a
Change, por sua vez, pode representar o tipo de casamento
ideal, a união utópica entre pessoas iguais na qual um
respeita o outro enquanto seres humanos que ambos são.

Considerações finais

Ao discutir as relações de gênero em um texto literário,


não é possível esquecer que, como Showalter (1989, p. 4,
tradução nossa) observa: “O gênero não é apenas uma questão
de diferença, o que pressupõe que os sexos sejam separados e
iguais; mas de poder, uma vez que, ao olhar para a história
das relações de gênero, encontramos assimetria sexual,
desigualdade e dominação masculina em todas as sociedades
conhecidas.”67

Em The Yellow Wallpaper, a dominação masculina é


clara e certa, com o marido subjugando a esposa, sustentando-
a e mantendo-a em casa o tempo inteiro. Em Making a Change,
isto também parece ocorrer no início, mas, como o título
sugere, uma mudança ocorre e todos ficam mais felizes. É
como se, através deste pequeno conto, a autora quisesse
mostrar que, se os papéis tradicionais podem ser alterados, se
as mulheres pudessem desenvolver suas habilidades

67 Texto original: Gender is not only a question of difference, which assumes that the sexes
are separate and equal; but of power, since in looking at the history of gender relations,
we find sexual asymmetry, inequality, and male dominance in every known society.

126
interiores, o mundo seria melhor e um gênero não dominaria
o outro, e homens, mulheres e crianças teriam muito mais paz
e liberdade.

Teremos casas que sejam lugares para morar


e amar, para descansar e brincar, para
ficarmos sozinhos e juntos; e eles não serão
confundidos e desclassificados pela mistura
com qualquer indústria. (…) A relação da
esposa com o marido e da mãe com o filho
está mudando para melhor com essa
alteração externa. Todas as relações pessoais
da família estarão abertas a um crescimento
muito mais puro e pleno 68 (GILMAN, 1900,
p. 174, tradução nossa).

Alterar a situação da mulher não significa que agora


mulheres devem sustentar seus maridos e mantê-los dentro
da esfera doméstica. Este tipo de mudança apenas repetiria a
situação ainda presente em muitas partes do mundo, com a
alteração do dominante, não da sociedade. O que os textos de
Gilman sugerem é que um “final feliz” é possível somente
quando um não tenta subjugar o outro, quando há um
relacionamento entre iguais. Como afirma Derrida (1987, p.
203, tradução nossa), “se o sucesso dos estudos das mulheres
consistisse em constituir os homens como objeto de estudo e

68 Texto original: We shall have homes that are places to live in and love in, to rest in and
play in, to be alone in and to be together in; and they will not be confused and declassed
by admixture with any industry whatever. … The relation of wife to husband and
mother to child is changing for the better with this outward alteration. All the personal
relations of the family will be open to a far purer and fuller growth

127
as mulheres como objetos de domínio, nada teria acontecido.
É necessário não reproduzir a mesma estrutura”.69

Finalmente, o que os textos de Gilman sugerem é que


a dominação masculina, que acontece desde o início do
mundo, está chegando ao fim, e o futuro das relações de
gênero parece ser um futuro de igualdade, no qual os papéis
sexuais não são definidos pelo masculino, mas por ambos os
sexos, sem hierarquia. Claro que é uma utopia, mas, para uma
mulher como a de Gilman, com ideais tão avançados para seu
tempo, a utopia não é apenas um sonho, mas um desejo que
poderia se tornar realidade. Tudo depende dos homens e
mulheres, pois, se cada um decidir aceitar o outro como ele ou
ela é, cada relacionamento será melhor, e um gênero não
precisará subjugar o outro.

Referências

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Derrida. In: JARDINE, A.; SMITH, P. (org.). Men in Feminism.
New York: Routledge, 1987. p. 189-203.
DESPRET, V. As ciências da emoção estão impregnadas de
política? Catherine Lutz e a questão do gênero das emoções.
Fractal: Revista de Psicologia, v. 23, n. 1, p. 29-42, jan./abr. 2011.

69 Texto original: if the success of women’s studies would be to constitute men as an object
of study and women as mastering objects, nothing will have happened. It is necessary
not to reproduce the same structure.

128
GALLOP, J. Reading the mother tongue: psychoanalytic feminist
criticism. Critical Inquiry, v. 13, p. 314-329, 1987.
GARDINER, J. K. On female identity and writing by women.
Critical Inquiry, v. 8, p. 347-361, 1981.
GILBERT, S. M.; GUBAR, S. No man’s land: the place of the
women writer in the twentieth century. New Haven: Yale
University Press, 1987. v. 1.
GILBERT, S. M.; GUBAR, S. The Madwoman in the attic: the
women writer and the nineteenth century literary imagination.
New Haven: Yale University Press, 1980.
GILMAN, C. P. Making a Change. Forerunner, v. 2, n. 12, p. 1-5,
1911.
GILMAN, C. P. The Yellow Wallpaper and other writings. New
York: Bentom Books, 1989.
GILMAN, C. P. Women and Economics: a Study of the
Economic Relation Between Men and Women as a Factor in
Social Evolution. London: G. P. Putnam’s Sons; Boston: Small,
Maynard & Company, 1900.
HARRIS, S. K. “But is it any good?”: evaluating nineteenth-
century American women’s fiction. American Literature: a
journal of Literary History, Criticism and Bibliography, v. 63, n.
1, p. 43-61, 1991.
HEILBRUN, C. G. Marriage and Contemporary Fiction. Critical
Inquiry, v. 5, p. 309-322, 1978.
SCHWARTZ, L. S. Introduction. In: GILMAN, C. P. The Yellow
Wallpaper and other writings. New York: Bentom Books, 1989.
p. vii-xxviii.
SHOWALTER, E. Introduction: the rise of gender. In:
SHOWALTER, E. Speaking of Gender. London: Routledge,
1989. p. 1-13.
SHUMAKER, C. “Too terribly good to be printed”: Charlotte
Gilman’s The Yellow Wallpaper. American Literature: a journal

129
of Literary History, Criticism and Bibliography, v. 57, n. 4, p. 588-
599, 1985.

130
CAPÍTULO V
A PROSTITUTA SAGRADA E A
PROFANA NO ENREDO LITERÁRIO
BRASILEIRO
Gil Derlan Silva Almeida

Meretrizes, concubinas, destruidoras de lar e raparigas


são apenas algumas das nomenclaturas usadas desde tempos
remotos para referirem-se às prostitutas. Presentes em grande
parte dos textos da literatura brasileira, a prostituta ocupa
desde cedo a representação humana do sexo e do erotismo.
Rodeada num imaginário de fantasias, fetiches e
extravagâncias, estas personagens constituem o ponto central
e o fio de ligação de muitas narrativas que consagraram e
consagram a produção literária brasileira.

Colocadas à margem da sociedade com suas


identidades subjugadas, as profissionais do sexo foram
excluídas do padrão patriarcal de sociedade, e vistas como
fonte de diversão sem compromisso para aqueles que
queriam aventuras amorosas, iniciações sexuais ou casos
extraconjugais. Desta forma, a figura da prostituta dentro da
literatura é permeada pela simbologia de mercadoria, em que
o usuário não teria de assumir qualquer reponsabilidade após
o fim do serviço. Desta forma, vê-se na figura da prostituta a

131
construção de uma identidade que chamaremos aqui de “eu
profano”.

A degradação da prostituta profana - que


representa o lado negro da sexualidade
feminina - era profunda. Ela representa
exatamente a antítese da prostituta sagrada,
cuja sexualidade reverenciava a deusa; ainda
assim, ambas existiam em justaposição.
Pergunta-se o que levava algumas mulheres
e homens ao templo do amor e outras e
outros ao bordel (QUALLS-CORBETT, 1990,
p. 49).

A partir dessa visão, denotamos que a imagem dessas


mulheres se construiu em torno de uma ótica com duas
facetas: a deusa de um passado bem remoto; a pecadora do
presente que carrega toda a carga sexual consigo. No entanto,
devem-se enxergar essas personagens sobre mais de um
prisma. Esta segunda identidade, chamaremos “eu sagrado”.
A segunda visão centra-se no sentimento da mulher por trás
da meretriz e como essa lida com questões e conflitos próprios
de sua vida enquanto mulher e não somente como
profissional do sexo. No “eu sagrado” das personagens são
expostos comportamentos de nada mais do que uma mulher
que busca ser feliz como as outras e sofre os preconceitos e
visões deturpadas de uma sociedade patriarcal e
discriminatória.

Tal mulher não pode ser considerada sexy ou


provocante no sentido habitual destes

132
termos, pois sua sexualidade não é
superficial, não é motivada por projeto
consciente ou por exigências inconscientes.
Não se trata de comportamento aprendido,
de capacidade adquirida ou de questão de
habilidade, mas sim de sutileza de seu ser,
das profundidades de sua alma. Seu
semblante exprime força, “uma força
misteriosa que todos sentem, mas que
filósofo algum jamais explicou” (QUALLS-
CORBETT, 1990, p. 96).

Conhecida como a profissão mais velha do mundo, a


prostituição vem de culturas milenares, e desde a antiga
Pompeia é dotada da significação de entretenimento sexual e
de profanidade. No entanto, a importância dessas
personagens é inegável e pode ser comprovada nos enredos
de diversos clássicos brasileiros. Segundo Nancy Qualls-
Corbett (1990, p. 121), “consequentemente a prostituição é um
dos principais produtos do casamento civilizado”. Desta
forma, a autora canadense põe valor ao serviço meretrício e
até o defende como consequência de uma sociedade que
supervalorizou o casamento e encheu-se de tabus e estigmas
para falar sobre erotismo e sexualidade.

Sabe-se que as construções e representações impostas


ao cerne de discussões das prostitutas beiram, em sua maioria,
a vertente patriarcal de visões que inferiorizam o sexo
feminino, ao passo que mantém o poder hegemônico nos
sujeitos masculinos (ROBERTS, 1998). A prostituta sempre
carregou na sua evolução histórica uma alcunha dialética em

133
suas atuações e performances. A mesma história que a
consagrou deusa no passado antigo, a usou como instrumento
de controle da vida sexual dos homens burgueses da Idade
Moderna. Essas mulheres desempenharam diversos papéis na
história da humanidade e das discussões sobre a sexualidade
feminina.

Na literatura maranhense nos deparamos com Vanju,


musa de Mestre Severino na obra Cais da Sagração (1981) de
Josué Montello. Uma prostituta que sonha com o matrimônio
e o véu acompanhado de vestido branco, talvez como forma
de representar um grau de pureza que outrora tivesse, mas
que não vê tal sonho de ter sua vestimenta branca realizada.
Fadada a um final trágico pelas mãos de seu companheiro,
Vanju sofre do mesmo patriarcalismo e realidade social que
subvertia com seus comportamentos, ou seja, por não se
adequar aos padrões sociais, é deles vítima. A morte de nossa
personagem, que nos é apresentada logo no início da
narrativa montelliana, seria a única saída encarada pelo
parceiro para pôr fim a sua vida de “mulher janeleira”.

No Romantismo brasileiro, a prostituta toma a figura


de uma protagonista. Em Lucíola (2002), José de Alencar cria
uma narrativa ousada ao colocar uma profissional de sexo
como o centro de sua obra. Lúcia é a representação dual de
uma mulher sentimental e amorosa que sonha com a vida
perfeita dentro dos padrões patriarcais e conservadores de
uma sociedade típica do século XVII, mas é ao mesmo tempo

134
uma figura cheia de erotismo e paixão que conseguiu uma
vida de luxo e badalação na corte às custas da venda de seu
próprio corpo. Tem-se assim, um misto de significação
sagrada e profana dentro de um mesmo ser, brindando assim
uma personagem fabulosa e recheada de conflitos internos
que são eixos geradores para as atitudes da personagem.

Quanto ao Modernismo, movimento literário do


século XX e que sagrou a identidade nacional do país, vemos
a figura de Fräulein Elza, a famosa professora do amor de Amar,
Verbo Intransitivo (1987). Mais uma vez, a figura central de uma
obra gira em torno das ações e sentimentos de uma prostituta. Esta
por sua vez, uma profissional contratada com um fim específico:
ser a responsável pela iniciação sexual de um jovem burguês de
família tradicional carioca.

Se é Vanju, Fräulein ou Lúcia, percebe-se que a prostituta


foi figura de destaque em âmbito nacional de grande parte de
produções literárias e que é uma representação feminina presente
dentro das letras brasileiras, reclamando seu devido valor e
sabendo que sua importância deve ser valorizada e creditada.
Passaremos então, a analisar o perfil de cada uma dessas
personagens e suas ações e características associando-as aos eus
que definiram a meretriz como personificação sagrada ou profana
dentro das sociedades e das narrativas que as inserem.

135
O furor sexual e o sonho do matrimônio: Vanju, Cais da
Sagração, Josué Montello

Publicado em 1981, Cais da Sagração de Josué Montello,


ocupa o patamar de um dos melhores romances já feitos em
língua portuguesa no mundo. Agraciado pela crítica e
responsável por ser uma das melhores reproduções
memorialísticas do Maranhão de outrora, o romance traz
consigo além das aventuras de Mestre Severino e sua
preocupação em morrer sem conseguir um sucessor para o
Bonança, a figura de Vanju, representando em parte, o sexo, a
sexualidade e o erotismo da mulher brasileira e maranhense,
figura que consegue sair da realidade de prostíbulo e alcovas
e alcançar o status de mulher casada. É vista e retratada na
obra como uma mulher exuberante, vaidosa, com corpo
escultural e que exprimia sexualidade com seus seios fartos,
mamilos pequeninos, curvas suaves, umbigo ocluso, quadris
cheios e coxas unidas (MONTELLLO, 1971). No romance,
Vanju usa um chapéu, é esta sua peça de vestuário favorita e
a marca de suas vestimentas, talvez seja a representação do
desejo de sair da vida profana, pois era uma peça cara que na
maioria das vezes era usada por mulheres casadas.

A linguagem do vestuário, tal como a


linguagem verbal, não serve apenas para
transmitir certos significados, mediante
certas formas significativas. Serve também
para indicar posições ideológicas segundo os
significados transmitidos e as formas

136
significativas que foram escolhidas pra
transmitir. “A roupa é uma linguagem
articulada” (ECO, 1989, p. 17).

Com o sonho de casar-se com véu e grinalda, outra


representação de pureza, Vanju consegue a realização da
cerimônia e assim sair da vida de prostituta, porém não se
enxerga ainda como uma figura de representação sagrada na
personagem montelliana. Segundo o próprio Montello, Vanju
não tinha ofício enquanto mulher casada, seu ofício era
apenas ser bonita (MONTELLO, 1917), percebe-se isso em
inúmeros momentos da narrativa, até mesmo pela
transferência da responsabilidade de ser mãe à Lourença, que
era a outra companheira de Mestre Severino e que assume a
responsabilidade de criar a filha da concorrente.

A personagem representa o furor sexual e a saciedade


erótica que só eram aliviadas em sua companhia. Mestre
Severino dividia a casa e a vida de matrimônio com Vanju e
Lourença, mas esta última admitia que não conseguiria
competir com a rival, uma vez que a primeira já havia causado
inveja nas antigas companheiras de bordel, antes de ser tirada
de lá por Severino para casar-se e ser mulher direita, o que
seria de Lourença ao tentar ir contra Vanju em quesitos de
beleza e erotismo? Temos uma personagem que sabe fazer-se
na cama e enfeitiçar um homem com suas artimanhas sexuais,
claramente a exposição do eu profano, um misto de quem tem
autoridade no que sabe fazer, tendo adquirido experiência
com os anos de bordel e as diversas vivências de concubina.

137
Vanju era mulher janeleira, aquela que tinha os homens aos
seus pés, mesmo sem se arrumar era bonita, uma beleza que
irradiava excitação a quem contemplasse e que enfeitiçou o
barqueiro de Cais da Sagração (MONTELLO, 1981).

Percebemos o eixo sagrado em Vanju em seu desejo de


ser mulher de família, casar-se, criar os filhos e ser a
representação de mulher de bem para o mundo que a
rodeava. No entanto, esta vida não parece poder encontrar
realização e plenitude para uma personagem como Vanju,
uma vez que seu eu profano manifesta-se na vida já de casada,
ambiente que seria morada do eu sagrado ao supostamente
ceder às investidas de outro homem. É como se o “eu profano”
da personagem entrasse em conflito com o “eu sagrado”.

Severino ao matar Vanju com medo de uma possível


traição que não conseguiria evitar, segundo ele mesmo,
encerra tudo antes que a personagem volte para a antiga vida
e se perca novamente. Na visão machista e conservadora do
barqueiro jamais seria possível aceitar que a companheira
fosse de outro homem, contudo, nota-se também que há a
presença de amor mesmo na atitude criminosa de Mestre
Severino, uma vez que o crime previsto no tarô acontece, mas
o próprio assassino entrega-se, aceita sua pena e sofre a perda
da amada em sua cela solitária da prisão.

A personagem de Montello apresenta características de


uma figura que embora alicerçada na vida de casada nos
moldes de família “quase” tradicional, não conseguia

138
suprimir o desejo de ser de mais de um homem. Afirma-se
que a personagem amava Severino, mas o ardor e a possível
aventura de um romance com Genésio atiçavam o imaginário,
o que nos leva ao questionamento de que se viva, a traição
teria ou não acontecido. Por um determinado período, Vanju
conseguiu manter, dentro de um molde de mulher casada e
fiel, a clara representação de seu eu sagrado, mas o desejo e a
aventura que permeiam o ato proibido enfeitiçam a rapariga,
temos então o eu profano vindo à tona mais uma vez.

O comportamento de mulher da vida, que se deita com


mais de um homem faz parte da natureza interna da
personagem, podendo assim ser adormecido, mas não
extinto. E que na presença de uma oportunidade ou fator que
o aguce, este torna a aparecer. Nota-se então uma personagem
dual que ressalta e dialoga com seu eu profano e com seu eu
sagrado, que beira os pensamentos puros, com outros
carregados de pecado e malícia.

A prostituta cortesã, proibida e tolerada: Lucíola, José de


Alencar

Na construção da obra de José de Alencar, temos a


figura de uma personagem que beira e habita os limites das
normas sociais, uma prostituta que em sua representação
dialoga sobre o estereótipo de família nuclear. Na obra

139
Lucíola (2002), do mestre indianista, a figura da cortesã é
moldada como uma mulher que anda sobre duas fronteiras
dentro de si, que demonstra seu lado sagrado, representando
um amor casto, o dever e a intimidade apaziguadora do
universo da vida familiar. E no outro, o espaço da luxúria, da
ruidosa vida mundana, da embriaguez e do mercado do
prazer, dando as caras a seu eu profano.

Inspirado em A Dama das Camélias (1848) de Dumas


Filho, a Lúcia de José de Alencar é tida pela sociedade da
época como uma criatura infeliz que escandaliza a sociedade
com sua ostentação de luxo e extravagância, no entanto,
ressalta-se claramente a dualidade existencial dentro de tal
figura com as manifestações comportamentais de seu eu
sagrado e outras vezes a de seu eu profano. No início da
narrativa, concebemos Lúcia como uma personagem
angelical, com alma casta e que por infortúnio da vida
entregou-se ao mercado do prazer. Mas nota-se no desenrolar
do enredo a mesma alma casta dentro de um corpo de
demônio, constatado por meio de suas ações.

A protagonista do romance é apresentada como uma


mulher fria, nobre que se constitui um misto de sarcasmo e
bonomia. Sempre bela, era enrubescida como menina,
cândida e diáfana. “É preciso ter como Lúcia a beleza, a
sedução e o espírito que enchem uma sala; a mobilidade e a
elegância que multiplicam uma mulher, como o prisma

140
reproduz o raio do sol por mil facetas [...]” (ALENCAR, 1998,
p. 53).

Comparada a um prisma que reproduz o raio de sol


em mil facetas, a meretriz era um abismo de perdição com
pureza na alma. Imposta a condição de prostituta por
necessidade, temos uma mulher que estava à frente de seu
tempo, e rompia paradigmas ao contrapor imagens e
interpretações. Nas manifestações de seu eu sagrado, temos
uma mulher que busca o amor e a felicidade dentro da
condição de amada por um homem, um ser que almeja o
padrão de família que não tivera, mas que enfrenta os
preconceitos por meio da exclusão social de seu ofício.

Denominadas de bonecas de papelão, tais mulheres


eram configuradas como poluição da atmosfera que
habitavam, eram sensuais e provocavam a inveja em quem
quer que fosse. (ALENCAR, 1998). O caráter depreciativo
atribuído a Lúcia acentua-se desde a escolha do nome, nada
impede-nos de associar Lúcia a Lúcifer, anagrama de palavras
que busca aproximar a meretriz ao lado mal e demoníaco do
mundo, criando na representação da personagem uma ideia
de trevas.

A Lúcia de José de Alencar transita entre seu eu


profano e sagrado em momentos significativos para o enredo
da obra. Seria impossível esquecer os momentos em que
Paulo, seu amante e amor, surpreende-se com a cena de Lúcia
bêbada e dançando de forma chamativa em cima de uma

141
mesa, as vistas da sociedade da corte carioca. Trata-se de uma
manifestação de seu eu profano e vê-se assim uma figura
representativa que vai da imprudência ao cinismo
rapidamente. Uma mulher que não se incomoda com
estigmas sociais e que personifica um abismo de perdição na
alma.

A ideia da prostituta é associada na obra a uma mulher


que não tem a liberdade sobre seu corpo por conta do ofício
que escolhera. Uma concubina que numa cadeia simbólica
retrata o mundo proibido, a sociedade moralmente afetada,
sendo assim objeto de nojo, ódio e degradação. Lúcia passa
por tais esferas e junta em sua representação o mais imaculado
quando mostra seu amor por Paulo. Vê-se uma mulher
apaixonada, disposta a largar a vida de meretriz e a cidade
grande para viver o amor com o amado. Um eu sagrado que
direciona a personagem para a vida que sempre sonhara e que
almeja finalmente a tão sonhada família para si. Ao final, nos
deparamos com um sonho não concluído, Lúcia morre doente
e Paulo, seu companheiro amado, lamenta a morte da amada
que busca a realização de um sonho do qual jamais poderá
usufruir.

Com a história de Lucíola no movimento romântico


brasileiro, temos um José de Alencar que mostra à sociedade
o protagonismo da prostituta numa corte que julgava
identidades e descriminava ferozmente o diferente, taxando-
o de imoral.

142
É no auge do Romantismo brasileiro que o
escritor José de Alencar escandaliza o público
leitor de romances - formado essencialmente
por mulheres e jovens estudantes das classes
abastadas - quando apresenta sua cortesã a
jovem e bela Lúcia, protagonista da obra
Lucíola [...] A partir daí, as representações da
prostituta têm-se mostrado bastante diversas
e recorrentes nas ficções brasileiras. E após as
primeiras décadas do século passado, estas
personagens começaram a “circular” de uma
maneira e em espaços cada vez mais
surpreendentes e denunciadores
(MOREIRA, 2007, p. 241).

É inegável considerar que no Romantismo a mulher é


revelada como um eixo importante de grandes produções do
literário nacional, tais assertivas sobre estas personagens são
meras representações, podendo se fazer, em parte, apenas
uma ótica para ver e assimilar as questões. Como
representações que são devem sempre ser questionadas e
postas em xeque (ZILBERMAN, 2016). A prostituta não só se
faz presente, como também é um elemento que estrutura o
próprio fio narrativo da obra. O eu profano dialoga com o
sagrado o que torna a personagem mais instigante e
misteriosa, ao passo que causa ódio em uns e faz outros
caírem de amores a seus pés.

143
A professora do amor: Elza Fraülein, Amar, Verbo
Intransitivo de Mário de Andrade

É no Modernismo brasileiro que Mário de Andrade


nos agracia com um enredo forte, que representa a mulher
como mola propulsora na denúncia de um mundo marcado
pelo poderio masculino. Fraülein é uma personagem
inteligente, culta e autônoma. Bem resolvida com suas
condições morais e humanas, vê-se como dona de seu próprio
destino e busca seguir a sua vida da melhor maneira possível.

Amar, Verbo Intransitivo (1987) é um livro que fala sobre


a lição de amar e a iniciação amorosa. Fraülein é contratada
secretamente como professora de amor e instrutora de sexo,
porém disfarçada de instrutora de piano e línguas. Em seu
sagrado Elza acalentava o sonho do amor ideal e dividia-se
entre a dicotomia homem do sonho x homem real.

Elza e Fraülein são uma mesma personagem com


traços prototípicos diferentes, por isso são sempre
mencionadas em separado. Ambas têm uma nova visão e
compreensão de mundo, uma dimensão de pensar variada e
veem o amor como uma pedagogia burguesa (ANDRADE,
1987). Fraülein é o ponteiro do relógio familiar dos Sousa
Costa, como afirma-se na própria obra, é uma heroína que tem
a profissão que a fraqueza lhe permitiu escolher.
Representada como a “mãe do amor” de Carlos, seu aluno-

144
amante, mostra-nos a expressão feminina com autoria e
autonomia.

O serviço da meretriz é a formação dos homens, fica a


seus cuidados o ensinar dos primeiros passos amorosos, a
atividade de saciar as primeiras fomes de prazer, amor e sexo
dos jovens e a prevenção quanto às ciladas que a vida pode
trazer a um inexperiente. Mário de Andrade a descreve como
cheia de facetas e mistérios, uma potranca na invernada, ema,
siriema e dona de uma beleza incomum.

O que mais atrai nela são os beiços, curtos,


bastante largos, sempre encarnados. E inda
bem que sabem rir: entremostram apenas uns
dentinhos dum amarelado sadio mas sem
frescor. Olhos castanhos pouco fundos. Por
isso duma calma quase religiosa, puros. Que
cabelos mudáveis! ora louros, ora sombrios,
dum pardo em fogo interior. Ela tem esse
jeito de os arranjar, que estão sempre
pedindo arranjo outra vez. Às vezes, as
madeixas de Fraülein se apresentam
embaraçadas, soltas de forma tal, que as
luzes penetram nelas e se cruzam como
numa plantação nova de eucaliptos. Ora é
mecha mais loura que Fraülein prende e cem
vezes torna a cair [...] (ANDRADE, 1995, p.
58).

Nesta obra, predomina na prostituta o eu sagrado, com


poucos traços de profanidade. A governanta e professora da
família Sousa Costa mostra seu lado sagrado ao defender a

145
moral e a ordem pré-estabelecidas e o lado profano ao
transgredi-los para aperfeiçoar e consolidar a iniciação
amorosa e sexual de seu pupilo. Fraülein é uma prostituta
diferente das demais já explicitadas neste trabalho, não usa de
sensualidade e erotismo, acredita no amor e quer que Carlos
a compreenda para seja um homem pronto para a vida pós-
matrimônio.

O livro mostra a verbalização do sexo, sem embora


deixá-lo vulgar em momento algum do enredo. As cenas de
sexo são evitadas para que não se rotule um caráter erótico ao
texto, mesmo que o leitor compreenda, pelo desenrolar dos
fatos, a ação nas cenas.

Outro traço interessante de nossa personagem é a


dualidade no sonho e vida de Fraülein quanto a existência e
chegada do homem de seu sonho e de sua vida. O primeiro é
representado como um ser intacto e doce, enquanto o segundo
é fortemente visível, esperto, hábil e real.

De qualquer forma, nossa protagonista não demonstra


total felicidade em sua atual condição. Sonha com o dia que
poderá construir sua família e estabelecer-se definitivamente
com o seu homem, e acredita, por alguns segundos, em que
seu envolvimento com Carlos chegaria. Pobre Fraülein! Nas
palavras do autor: “Professora de amor... porém não nascera
pra isso, sabia. As circunstâncias é que tinham feito dela a
professora de amor, se adaptara. Nem discutia se era feliz, não

146
percebia a própria infelicidade. Era verbo ser” (ANDRADE,
1987. p. 104).

A prostituta desta obra mostra seu eu sagrado em


situações em que idealiza uma vida ao lado de Carlos e
começa a ver-se como mais que uma mãe de amor do jovem.
Já o lado profano manifesta-se em poucos momentos, apenas
em situações que de fato Fraülein seduz o jovem para ensinar-
lhe sobre flerte, conquista, sexo e prazer.

Considerações finais

Logo, vê-se que ao analisar as obras que denotam a


participação da prostituta na literatura brasileira é possível se
refletir sobre o papel que estas mulheres desempenharam
para a sociedade de tempos atrás. São personagens que
ocupam seu lugar por excelência e que carregam consigo
inúmeros estereótipos e preconceitos. Ao passo que são
figuras sagradas, também são profanas, simbolizam o bem e
o mal, o imaculado e o maculado, a luz e a treva, o caminho
de retidão e o de pecado.

Possuem suas características peculiares e singulares e


colaboram para a criação de uma identidade nacional que
representa a realidade de nossa sociedade, expressa aqui em
obras geniais de uma literatura que buscava, em parte,
desmistificar tabus e romper com os paradigmas em torno da

147
figura feminina, uma gama de histórias que jogava fora o ideal
de sociedade pura e casta e a identificava como adúltera e
adepta dos serviços da prostituição.

Assim, sob a ótica da prostituta como uma


representante do feminino e do empoderamento da mulher
dona de si e que usava suas artimanhas para ganhar a vida,
vemos que esse serviço, um dos mais velhos do mundo,
caminhou de mãos dadas para o desenvolvimento da
sociedade burguesa, ultrapassando a hierarquia social de
pobres e ricos que continua viva dentro dos dias atuais.

Referências

ALENCAR, J. Lucíola. 8. ed. São Paulo. Ática, 2002.


ANDRADE, M. Amar, Verbo Intransitivo. 14. ed. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1987.
DE MARCO, V. O Império da cortesã: Lucíola, um perfil de
Alencar. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
MONTELLO, J. Cais da Sagração. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981.
MOREIRA, A. S. O espaço da prostituta na literatura brasileira
do século XX. Caligrama: Revista de Estudos Românicos. v. 12,
p. 237-250, dez. 2007.
QUALLS-CORBETT, N. A prostituta sagrada: a face eterna do
feminino. São Paulo: Paulus, 1990.
ROBERTS, N. As Prostitutas na História. Rio de Janeiro: Rosa
dos Ventos, 1998.

148
ZILBERMAN, R. A mulher e a leitura: representações. In:
MENDES, A. M.; CARVALHO, D. B. A.; ZINANI, C. J. A. (Org.).
Literatura e Gênero: alteridade e poder (des) construindo
paradigmas. Teresina: EDUFPI, 2016. p. 147-168.

149
150
CAPÍTULO VI
NOITES AFINS: MORTE E DESEJO NO
CONTO NOITE NA TAVERNA
Patrícia de Sousa Santos

Morreu um trovador – morreu de fome.


Acharam- n’o deitado no caminho: Tão doce
era o semblante! Sobre os lábios flutuava-lhe
um riso esperançoso. E o morto parecia
adormecido (AZEVEDO, 2002, p. 7).

A morte serviu de musa inspiradora a muitos artistas,


e a literatura esteve cercada pelo “sombrio olhar da musa da
finitude”, acompanhando os desvalidos de esperanças, como
refúgio aos apaixonados e como alternativa aos desesperados.
A morte também seria para alguns o ponto máximo do desejo,
momento em que o corpo exausto chegaria a seu último
suspiro culminando em gozo pleno.

A morte por vezes, foi a companheira das noites ébrias,


em que o desapego terreno resultaria no desejo pleno, uma
mistura entre feitiço e malícia, a companheira derradeira ora
se vestia como o olhar consolador das damas da noite, ora
podia trazer o laço singelo da pureza das virgens, que
causavam paixões e despertavam, nos idos dos oitocentos, os

151
desejos ocultos dos boêmios, que atravessavam as cidades a
saborear cada canto e viela.

É a moça “nua e bela em sua virgindade eterna”


(AZEVEDO, 2006, p. 3) que encontra a eternidade pela morte,
que intensifica a pureza e também desperta a libido, o corpo
puro se aproxima da natureza, é parte dela e se transforma em
essência para os “apetites” secretos. A busca pela musa de
pureza presente nas narrativas românticas, intocável e bela,
despertava por ser um ser intocável pelas ânsias ocultas dos
seus admiradores. A bela moça é despida de pudor e ao
“abraçar” a morte deixa o corpo se entregar aos desejos.

Este artigo busca localizar o desejo e a morte nas


aventuras dos personagens de Álvares de Azevedo no conto
“Noite na Taverna”. Cinco rapazes que protagonizam a
história, a maior parte deles estrangeiros que em meio a uma
bebedeira contam suas aventuras sexuais, sendo o livro
cercado pelo desejo, libertinagem, angústia e morte, essa
companhia constante dos rapazes servia como consolo e
refúgio nos momentos de desventura.

Os personagens do conto são quase todos estrangeiros,


uma forma encontrada pelo autor de eximir-se das
responsabilidades de seus personagens, o conto é escrito em
meados do século XIX, após as turbulentas revoluções que
marcariam e mudariam toda a idade contemporânea, Álvares,
assim como muitos intelectuais de sua época, vive a
melancolia e a solidão como inspiração tendo como ponto de

152
refúgio as suas angústias e a morte. Predomina na obra o estilo
pesado e obscuro, algo que acaba marcando boa parte do
trabalho de Álvares de Azevedo, que por conta de problemas
de saúde tinha no “prenúncio” da morte, inspiração para
parte de sua poesia.

A obra destaca-se especialmente por transgredir a


conduta social vigente, causando desconforto com os relatos
das aventuras dos cinco jovens que fariam da noite a
testemunha de seus “crimes” e amores platônicos; podemos
inclusive sugerir que tais aventuras podiam fazer parte dos
desejos implícitos do autor, que se escondia atrás dos seus
personagens. A vida de boêmio, o sexo descompromissado,
os atos suicidas são a inspiração para os jovens aventureiros
descritos pelo autor, que parecem viver em um universo
fantástico onde não há regras.

Os contos do livro tornam-se significativos pela


transgressão sempre acompanhada da morte, pela ausência
de Deus, pela embriaguez, em um universo onde não há
limites aos desejos, “um mundo longe do visionário e
platônico” (AZEVEDO, 2002, p. 3) propostos pelo próprio
autor e a maioria dos poetas do seu tempo, aqui a mulher
perde o seu lugar de musa imaculada tão comum para os
românticos e torna-se objeto de luxúria, assim como também
tomada por ela, sendo comum algumas personagens
portarem-se como os homens “[...] Uma noite, e após uma
orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Bárbara.

153
Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a
febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda
nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. (AZEVEDO,
2006, p. 9).

A mulher envolta na luxúria e nas vontades íntimas


deixa e permite ao jovem o passeio na alcova, a moça de
formas delicadas tem o olhar da morte, se entrega à essência e
à necessidade do corpo, assim as mulheres trabalhadas na
obra passeiam pelo universo circunscritos dos homens, o
ambiente das bebedeiras dos boêmios é parte da trajetória de
Álvares de Azevedo. Noite na Taverna está no campo da
transgressão, rompe com o estabelecido e se delicia com isso.

Desejo burguês

No conto Noite na Taverna, o tempo é excluído, não há


uma temporalidade fixa apenas os relatos das
desventuras/aventuras dos personagens, a própria
localização do tempo se dá pela escrita do autor, sendo
possível inferir que seus personagens passeiam pelo século
XIX; as transformações na literatura e no próprio contexto
histórico da época servem de mote para a construção do
enredo, uma sociedade burguesa ascendente e as
peculiaridades de um gosto cultural em construção.

154
O livro foi publicado após a morte de Álvares de
Azevedo, em 1855, a publicação dessa obra póstuma
demonstraria toda a importância que o autor tinha para a
literatura brasileira, inclusive inaugura um novo momento na
escrita do autor de amante submisso a amante platônico e
passional. Alguns intelectuais na atualidade o apontam como
sendo uma literatura fantástica (BATALHA, 2011), reforçam
esse termo especialmente pela narrativa, que o levaria a um
universo inexistente, irreal aliado ao real. Para o trabalho
proposto o que nos interessa é a “morte” como musa,
inspiração e motivação.

O autor como filho do seu tempo vive as marcas dos


acontecimentos históricos importantes, o século XIX,
momentos marcados inclusive pela “derrota definitiva dos
aristocratas pelo poder burguês” (HOBSBAWN, 1977, p. 129).
O grupo social que se afirmava tinha desejo de renovação,
portanto, rompia com os modelos impostos pelo antigo
regime, inclusive com a Igreja Católica que com seus dogmas
e tradições era vista como um entrave ao tão desejado
progresso, sendo comum à boa parte dos artistas sua
desvinculação religiosa ou aproximação com práticas
religiosas que privilegiasse o lucro como elemento de
crescimento do homem (WEBER, 2012).

O grupo social que ascendia nesse momento busca


entretenimentos diversos, se articulando em torno de artistas
e da participação política, o desejo era de ocupar os lugares

155
antes dominados por uma minoria de bens nascidos, ou seja,
assumir os postos da aristocracia, “[...] ‘grande burguesia’ de
banqueiros, grandes industriais e, às vezes, altos funcionários
civis, aceita por uma aristocracia que se apagou ou que
concordou em promover políticas primordialmente
burguesas” (HOBSBAWN, 1977, p. 129), um foco para o estilo
de vida dessa classe em franco crescimento.

Como sugere Robert Darnton (2014), os livros


representava o tempo/cultura de quem sorvia os escritos, a
Revolução teria permitido um olhar mais sensível a literatura,
ousamos dizer que esse prazer dos mecenas dos séculos XVIII
e XIX, suas bibliotecas representavam também o seu lugar
social. No Brasil, terra de letramento tardio, a produção
literária era feita para os pares, lida entre os semelhantes, as
caricaturas sociais eram vistas com simpatia, mesmo que isso
representasse a vida de alguns dos interlocutores dessa
literatura.

Os jovens aspiram ao moderno afastando-se de antigos


paradigmas, as artes aparecem como uma resposta ao “novo
viver”, uma sociedade que espia o progresso o racional, pelas
letras dos intelectuais ou pelo pincel dos pintores ou por
transgressões ao corpo, por uma ruptura, às vezes velada, das
normas, especialmente as da Igreja Católica. São filhos de
uma época obscura, mas não estavam necessariamente
apartados dela; a boêmia sugeria a lógica desses jovens
burgueses e os caminhos que a arte seguiria.

156
O estilo de vida boêmio, que sem dúvida
trouxe uma contribuição importante à
invenção do estilo de vida do artista, com a
fantasia do trocadilho, a blague, as canções, a
bebida e o amor sob todas as formas,
elaborou-se tanto contra a existência bem-
comportada dos pintores e dos escultores
oficiais quanto contra as rotinas da vida
burguesa (BOURDIEU, 1996, p. 72).

Havia um grande desenvolvimento das artes


patrocinado pelos burgueses que desejavam exclusividade e
entretenimento, os paradigmas da velha aristocracia eram
ocultados ou por vezes negados e esses “novos senhores”
tomavam o lugar dos bem-nascidos dos nobres por sangue.
No Brasil, após a chegada da família real, em 1808, o país
passou por uma onda de modernização, teatros, jardins
botânicos, bibliotecas tudo isso para dá à Colônia o aspecto
civilizador e modernista proposto pela burguesia. Como cita
Eric Hobsbawn (1977), há nesse momento um “extraordinário
florescimento” das artes, que se expandia para além dos
territórios europeus chegando a suas Colônias, esse
reflorescimento viria agradar ao público erudito de
praticamente toda Europa.

Alguns gêneros artísticos tiveram grande relevância


nesse período, sendo a literatura a mais expressiva, grandes
nomes se imortalizariam por seus romances, como o francês
Balzac e o russo Dostoievsky. Podemos considerar que há
uma dupla revolução, uma primeira social – que queria

157
mudar as formas de governo na maioria dos países europeus;
e outra artística - na qual a ansiedade e “o horror” do moderno
eram transformados em arte.

Baudelaire percebia nas ações do homem


contemporâneo a aproximação com a arte, essa era
representada nos trajes e nas ações do grupo, o presente
buscava ocultar um passado visto como retrógado, mas de
tanto temerem o “passado, conservando o sabor do fantasma,
recuperará a luz e o movimento da vida, e se tornará
presente” (BAUDELAIRE, 1996, p. 9). Em se tratando das
narrativas românticas brasileiras, as mulheres eram seres
inalcançáveis, as donzelas presas à própria sorte, em um
mundo em que só a poesia podia tocá-las, verter seu sabor de
juventude.

Os artistas dos anos da Revolução, em especial os de


1789 a 1848, eram inspirados pelos acontecimentos públicos
não sendo, portanto, alheios aos fatos, isso acabaria criando
dentro das artes, os movimentos nacionalistas como os
existentes no Brasil, a vontade de legitimar-se estava presente
na arte, sendo marcada pela criação de heróis nacionais, por
uma escrita que tentava se afastar das influências europeias,
mas que traziam as marcas da escrita e da política do velho
mundo.

No Brasil, segundo Nelson Werneck Sodré (2002), a


maior expressão literária foi dada pelo romantismo, ao qual
se vincula Álvares de Azevedo, sendo um dos maiores

158
expoentes da poesia romântica. Como já citado, Álvares
mantém “estreitos laços” com a morte principalmente por
conta de seus problemas de saúde, mas isso não o separou das
tavernas, nem da vida libertina que tinha boa parte dos
intelectuais da época.

Para Sodré, a extravagância na prosa de Álvares de


Azevedo, especialmente Noite na Taverna, é o momento em
que o autor dá “vazão a todos os descomedimentos da escola”
(SODRÉ, 2002, p. 273), extrapolando o proposto pela escola
romântica, mas tal fato não lhe afasta e sim lhe dá respaldo.

Uma noite do século

Entraremos na penumbra dos relatos de Noite na


Taverna, o livro narra as histórias de cinco rapazes que
durante uma noite de bebedeiras em uma taverna contam
episódios inusitados de suas vidas, as narrativas são sempre
cheias de atos de libertinagem, assassinatos, desejos e
necrofilia, uma verdadeira exaltação à transgressão em um
tempo em que as regras morais definiam os sujeitos.

A aventura vivida pelos rapazes flerta como na


maioria das narrativas com a morte, a finitude que os permitia
uma liberdade que a vida não lhes daria, a morte seria aquilo
que tornaria as necessidades emergenciais, esse olhar diante
da morte contrasta com o que sugere Phillipe Ariès sobre o

159
homem contemporâneo, que veria a morte como fim, uma
eterna luta contra a vida, mas, segundo o autor apenas os
romancistas e poetas tinham a ousadia de dá voz a morte.

Quando o medo da morte entrou, ficou de


início confinado ao lugar em que só o amor
se manteve tanto tempo ao abrigo e afastado
e de onde só os poetas, romancistas e artistas
ousavam fazê-lo sair no mundo imaginário.
Mas, sem dúvida, a pressão foi muito forte e,
no decurso dos séculos XVII e XVIII, o medo
louco transbordou para fora do imaginário e
penetrou na realidade vivida, nos
sentimentos conscientes e expressos sob uma
forma, todavia limitada, conjurável, que não
se estende ao mito inteiro, através da morte
aparente, dos perigos que se corre quando se
passa a ser um morto-vivo (ARIÈS, 2014, p.
442).

A beleza dramática da morte se alia na obra de Álvares


de Azevedo aos desejos mais obscuros, aqueles ocultos nos
recônditos da moral e dos bons costumes, a morte aqui é
ousada e corpulenta, carregada de prazer carnal. Os
personagens são em sua maioria estrangeiros, o que podemos
inferir como uma estratégia utilizada pelo autor para não
“desmoralizar” a sociedade da sua época, como também uma
forma de se eximir dos atos de seus personagens, que agem
completamente diferente da conduta social estabelecida, são
semelhantes a parte da intelectualidade brasileira na época,
mas são “desconectados” dos homens de letras do país.

160
Os estrangeiros descritos por Azevedo vêm de um
universo “sem regras”, mesmo circunscritos em espaços
urbanos conhecidos, praças, bares, igrejas e tavernas, eles
parecem imersos em um mundo paralelo permissivo e
libidinoso, um mundo fantástico, como sugere alguns autores
ao tratar a obra (BATALHA, 2011), onde o sexo tão reprimido
é vivido de forma intensa e, por vezes, mortal.

O primeiro capítulo se inicia com uma comparação, as


mulheres embriagadas na taverna lembram os personagens
de mulheres mortas, de defuntas que parecem descansar após
as alegrias e prazeres vividos, à morte caberia toda a beleza,
mas uma beleza mórbida suscetível à podridão da terra, que
também traz a vida, quando transformada em adubo para as
mais belas plantas.

Senhores, em nome de todas as nossas


reminiscências, de todos os nossos sonhos
que mentiram, de todas as nossas esperanças
que desbotaram, uma última saúde! A
taverneira aí nos trouxe mais vinho: uma
saúde! O fumo e a imagem do idealismo, e o
transunto de tudo quanto há de mais
vaporoso naquele espiritualismo que nos fala
da imortalidade da alma! (AZEVEDO, 2006,
p. 5-6).

Outro ponto importante é a embriaguez que possibilita


o encontro com as “delícias do corpo”, o ébrio perde a virtude
e entrega-se as mais provocantes orgias, sendo comum no
livro a citação dos deuses gregos e romanos, Baco e Dionísio,

161
como também o Deus Cristão é visto como utopia, como
objeto de fanatismo. Deus sufocaria os desejos, portanto, ele é
excluído e, afastado dos libertinos.

Na jangada do náufrago, no cadafalso, no


deserto, sempre banhado do suor frio do
terror é que vem a crença em Deus! Crer nele
como a utopia do bem absoluto, o sol da luz
e do amor, muito bem! Mas, se entendeis por
ele os ídolos que os homens ergueram
banhados de sangue e o fanatismo beija em
sua inanimação de mármore de há cinco mil
anos... não creio nele (AZEVEDO, 2006, p. 4).

Foucault (2001) fala que ao matar Deus, o transgressor


busca o limite, encontra o excesso e rompe o sagrado de Deus,
aqui o sagrado não está em Deus, mas nos desejos realizados
no sabor do corpo, que rompe as barreiras do aceitável
socialmente, o sexo é o ponto culminante dos transgressores,
é o ponto de encontro com a essência do homem, que chegaria
à divindade pelo êxtase.

[...] A linguagem da sexualidade, pela qual


Sade, desde que pronunciou suas primeiras
palavras, fez percorrer em um único discurso
todo o espaço do qual ele se tornou
subitamente o soberano, alçou-nos até uma
noite em que Deus está ausente e em que
todos os nossos gestos se dirigem a essa
ausência em uma profanação que ao mesmo
tempo a designa, a dissipa, se esgota nela, e
se vê levada por ela a sua pureza vazia de
transgressão (FOUCAULT, 2001, p. 29).

162
Deus não existe na lógica do transgressor, pois ele seria
o que impede os corpos de viver livremente, ante a divindade
surgiria aquela que extrapola os desejos e que serve aos
corpos em delírio, o sexo tão religiosamente combatido,
aproximaria o povo da morte o deixaria ao lado do sopro
derradeiro, essa sensação que os transgressores buscam, os
aproximariam da sua essência animal, como afirma Foucault
(2001).

É no segundo capítulo que percebemos o afastamento


total de Deus e a necessidade de transgredir, um dos
personagens, Solfieri, conta as suas aventuras em Roma, a
cidade sagrada é para ele também a cidade do fanatismo e da
perdição, onde ao mesmo tempo em que se vive a crença em
Deus e na castidade, a própria igreja exalta a luxúria, pois:

Roma é a cidade do fanatismo e da perdição:


na alcova do sacerdote dorme a gosto a
amásia, no leito da vendida se pendura o
crucifixo lívido. É requintar de gozo
blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão
do amor, o beijo lascivo à embriaguez da
crença (AZEVEDO, 2006, p. 27).

Tal posicionamento demonstra a postura da burguesia


em relação à Igreja vista também como cercada de vícios, com
religiosos entregues à corrupção da carne, demonstrando toda
a sua humanidade, diante de uma instituição que os considera
santos, mas também aponta para parte da sociedade que se
deixa levar pelas palavras de controle de um “corpo”

163
corrompido. “É um requintar de gozo blasfemo que mescla o
sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez
da crença” (AZEVEDO, 2006, p. 27), uma fé no desejo, no culto
ao gozo que “perderia” de clérigos aos mortais, que se
entregam ao corpo puro de uma moça ou a morbidez de um
corpo desacordado, violado pela ânsia da posse imposta pelos
personagens.

Solfieri conta aos convivas a história de uma moça que


havia visto em uma porta durante sua estada em Roma, a
moça parecia para ele uma visão “[...] A face daquela mulher
era como a de uma estátua pálida à lua” (AZEVEDO, 2006, p.
27), e ele passa a noite com ela em um cemitério violando os
túmulos com seu desejos. Uma noite após uma de suas
numerosas orgias na “cidade santa”, Solfieri sai ainda com a
imagem da moça, ao encontrar a porta de uma igreja aberta
ele avista uma moça abraçada pelo sono eterno, essa
lembrava-lhe seu “Anjo do Cemitério”, ele não pensou duas
vezes e a levou nos braços um tanto ébria.

Tomei-a no colo, preguei-lhe mil beijos nos


lábios. Ela era bela assim: rasguei- lhe o
sudário, despi-lhe o véu e a capela, como o
noivo as despe a noiva. Era uma forma
puríssima. [...] o gozo foi fervoroso - cevei em
perdição aquela vigília. A madrugada
passava já frouxa nas janelas (AZEVEDO,
2006, p. 28).

164
Para Solfieri, a moça não estava morta apenas dormia,
pois sofria de catalepsia, sendo desperta horas depois em seus
braços, a moça então acorda, durante dois dias e duas noite
vive com ele momentos de convulso delírio, o ápice do desejo
viria com a morte da moça, morte que viria entre os goles de
vinho e sorrisos descontrolados de um corpo quase sem vida,
pois para Solfieri ela ainda vivia, seu último gole veria a sua
entrega nos braços do anjo da morte.

Esse momento o autor rompe com o sagrado ao violar


o cemitério, a morada eterna e a Igreja da Casa de Deus,
“maculando” o corpo morto que parecia ressurgir para abrir
espaço ao desejo, seria como diz Foucault “uma profanação
em um mundo que não reconhece mais sentido positivo no
sagrado” (2001, p. 29). O sagrado no universo de Alvares está
ligado aos anseios materiais e às necessidades do corpo, não
há espírito, há somente desejos a serem realizados.

Antônio Cândido ao analisar as poesias de Álvares de


Azevedo, a mulher em sono profundo sugeriria o próprio
medo do autor, os desejos reprimidos em uma juventude
incompreendida, esse sentimento o aproximaria da morte,
pois morte e sexo estariam intimamente ligados na sua
narrativa.

Macário e A noite na taverna estão ligados,


no que toca aos significados profundos
haveria nesta ligação uma pedagogia
satânica visando a desenvolver o lado escuro

165
do homem, que tanto fascinou o Romantismo
e tem por correlativo manifesto a noite, cuja
presença envolve as duas obras e tantas
outras de Álvares de Azevedo como
ambiente e signo (CÂNDIDO, 1989, p. 17).

A noite, na visão de Cândido, encobriria o satânico, o


mórbido, traria o mistério e as alianças ocultas entre sujeitos
que se escondem na penumbra, apostando nas suas ânsias
libertinas, mas é um lugar de paixões, em alguns momentos
verdadeiras, que se renovariam com o crepúsculo e
morreriam a cada nascer do sol.

Os personagens de Álvares de Azevedo não buscam o


amor, são movidos à paixão e ao ideal de conquista, apesar de
alguns deles chegarem a falar de sentimentos impossíveis,
estes mais próximos à obsessão que do amor. Podemos
encontrar na obra os sentimentos eróticos, a loucura dos
desejos transpostas para o sexo, seriam o ápice da
“imaginação dramática de Álvares” (CÂNDIDO, 1989, p. 18).

No capítulo três, um dos mais intensos, temos a


narrativa de Bertram, a mulher surge como um objeto de
desejo e ela mesma é tomada por ele, nesse instante explode o
erotismo entre os dois, feito de sofrimento e violência,
primeiro com a separação de Bertram e Ângela, depois com
os assassinatos cometidos por Ângela que mata o marido e o
filho para viver seu prazer com Bertram. Ao cometer o

166
assassinato Ângela “desafia a morte” como forma de
encontrar o erotismo.

Quando Ângela veio com a luz, eu vi... Era


horrível!... O marido estava degolado. Era
uma estátua de gesso lavada em sangue...
Sobre o peito do assassinado estava uma
criança de bruços. Ela ergueu-a pelos
cabelos... Estava morta também: o sangue
que corria das veias rotas de seu peito se
misturava com o do pai! (AZEVEDO, 2006, p.
33).

O crime liberta Ângela dos compromissos, ou seria a


morte a companheira que permitiria essa liberdade aos
amantes? O certo é que a companheira das horas derradeiras
se torna a alforria de Ângela, e possibilita reacender sua
paixão com Bertram, o retorno ao amante é para ela o limiar
para vida.

[...] o sentido do erotismo é a fusão, a


supressão dos limites, inscrevendo a
atividade erótica no domínio da violência
[...]. Na experiência do amor, objetos
distintos se confundem até chegar a um
estado de ambivalência no qual o sentido de
tempo – de duração individual – amplia sua
significação (MORAES, 2002, p. 50).

A vida é pensada e testada a cada “euforia do corpo”,


limites muito próximos da realidade da época, século XIX, em
que a expectativa de vida era curta e, portanto,

167
era necessário viver os momentos intensamente, assim
Bertram e Ângela vivem o extremo, tomando como “sentido
último do erotismo, a morte” (MORAES, 2002, p. 51), morrer
não é o fim, mas um possível recomeço.

Toda uma mística e toda uma espiritualidade


o provam que elas não podiam
absolutamente dividir as formas contínuas
do desejo, da embriaguez, da penetração, do
êxtase e do extravasamento que faz
desfalecer; todos esses movimentos pareciam
conduzir, sem interrupção nem limite, ao
âmago de um amor divino do qual eles eram
o último extravasamento e o manancial
(FOUCAULT, 2001, p. 28).

Bertram e Ângela vivem o absoluto, o homicídio é a


parte do desejo que parte de um sentimento sem culpa, para
extravasarem a parte de sua essência, o sexo antes proibido
pela convenção do casamento e da maternidade, pode
encontrar seu limiar no encontro das almas amantes, a morte
seria o interdito que sugere George Bataille, a morte violenta
que reaproximaria o homem da barbárie.

Há na proposição acima uma verdade


primeira: o interdito fundado pelo medo não
nos propõe somente observá-lo. A
contrapartida não falha nunca. Derrubar
uma barreira é, em si, algo de atraente; a ação
proibida adquire um sentido que não tinha
antes, quando um terror, ao nos afastar dela,
cercava-a com um halo de glória. “Nada”,

168
escreve Sade, “contém a libertinagem..., a
verdadeira maneira de espalhar e multiplicar
os desejos é querer lhe impor limites.” Nada
contém a libertinagem..., ou melhor, de
forma geral, não há nada que reduza a
violência (BATAILLE, 1987, p. 31).

O corpo libertino é também próximo da morte e no


caso de Ângela a libertinagem vem pela violência e escândalo
que a morte dos seus sugerem. A violência antes afastada pela
relação de trabalho e, consequente, civilidade da sociedade, é
retomada pela assassina por um prazer quase senil, embora o
“mais cruel dos assassinos não pode ignorar a maldição que o
atinge. Pois a maldição é a condição de sua glória”
(BATAILLE, 1987, p. 32).

O crime dá à mulher liberdade, Ângela e Bertram


percorrem o mundo em busca de aventura, para não serem
descobertos Ângela veste-se de homem e passa a comportar-
se como um e, revelando que a liberdade no período de escrita
de Álvares era um privilégio masculino, nesse contexto não
há regras apenas para a satisfação dos desejos dos
personagens, que culmina com o abandono de Ângela que
deixa Bertram na solidão. “Um dia ela partiu: partiu, mas
deixou-me os lábios ainda queimados dos seus, e o coração
cheio de gérmen de vícios que ela aí lançara. Partiu. Mas sua
lembrança ficou como o fantasma de um mau anjo perto de
meu leito” (AZEVEDO, 2006, p. 38).

169
O abandono faz com que o Bertram discuta a condição
humana perante a sua fragilidade de homem, “o que é o
homem? É a escuma que ferve hoje na torrente e amanhã
desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de
fatal como o sepulcro!” (AZEVEDO, 2006, p. 39). O homem de
Álvares é fraco e suscetível à dor, é nada e, portanto, está
exposto às “desventuras do amor”, quem sabe não amor no
sentido poético e divino, mas carnal, formado pela vontade
como diz André Maurois de viver os “amores físicos”
(MAUROIS, 1965, p. 343), feitos especialmente das loucuras
do desejo e do desafio à morte.

Os personagens descritos rompem com dois


paradigmas sociais: a instituição do casamento e o crime cujos
acusados sequer sentem remorso, a morte do marido e a do
filho são vistas por Bertram e Ângela como uma porta para a
liberdade, é o condenável que os permite aflorar sua
sexualidade e seus desejos.

A sexualidade tem um sentido mais


imediatamente natural e sem dúvida talvez
só tenha conhecido uma tão grande
felicidade de expressão no mundo cristão dos
corpos decaídos e do pecado [...]. Não
libertamos a sexualidade, mas a levamos,
exatamente ao limite. (FOUCAULT, 2001, p.
28).

Podemos inferir que mesmo rompendo com


instituições sociais estabelecidas como a Igreja e a família, o

170
autor conquista liberdade através da linguagem, nesse caso é
a escrita, que o permite romper barreiras e travestir-se como
quiser, seriam as possibilidades dispostas pela literatura.
Como afirma Durval Muniz, a “literatura seria o discurso das
auroras, pois buscaria perceber como as coisas se movem a
caminho de suas próprias formas utilizando as menores
sombras e os menores feixes de luz” (ALBUQUERQUE JR.,
2007, p. 5). A liberdade disposta pelos personagens de Álvares
só foi possível graças à literatura e sua apropriação desses
minúsculos feixes de luz, a história que durante anos pareceu
apartada dos literários hoje se apropria deles para caracterizar
uma sociedade.

Os demais capítulos trazem também outras narrativas


fantásticas, mas acabam tendo menor expressão que a dos
personagens descritos. O último capítulo é o momento de
encontrar a morte “face-a-face”. Após contarem suas
desventuras, os amigos dormem sob o efeito entorpecedor do
vinho, quando adentra a taverna uma mulher vestida de
negro, parecia à própria aparição da morte, ao entrar ela
observa os rostos, parece procurar um conhecido, até esbarrar
em um deles Johann, ela o mata com uma punhalada.

Ela encontra entre os amigos um antigo amante,


Arnold os dois trocam carícias e ela que parecia envolta pelo
véu da morte, morre nos braços de Arnold que em seguida
suicida-se. A mulher é descrita como se fosse a própria morte
que acaba tendo seu fim no último desejo: o beijo final no

171
amante perdido. A mulher que antes era provida de
incomparável beleza, agora tinha a “tez lívida, seus olhos
acesos, seus lábios roxos, suas mãos de mármore”
(AZEVEDO, 2006, p. 72). Ela era a aclamada e desejada morte
que veio visitá-los, oferecendo seu suspiro e o desejo
derradeiro.

Foucault encontra na linguagem literária, a liberdade


para transgredir, ponto em que encontra seu limite, “a
linguagem está quase inteiramente por nascer onde a
transgressão encontrará seu espaço a ser iluminado”
(FOUCAULT, 2001, p. 32). Bourdieu percebe na escrita
romântica na permissibilidade da transgressão um espaço que
se confunde com a boêmia e com o desespero pelo
desconhecido “[...] os romancistas contribuíram grandemente
para o reconhecimento público da nova entidade social
(burguesia), especialmente ao inventar e difundir a própria
noção de boêmia, e para a construção de sua identidade, de
valores, de suas normas e seus mitos” (BORDIEU, 1996, p. 72).

Esse homem burguês e moderno cria um estilo de vida


a sua maneira, servindo de exemplo a seu tempo, mostrando-
se disposto a vida intensa, sentimento muitas vezes livre no
papel, na arte, mas envolto pela moral de seus predecessores
é, antes um bon vivant, que saboreia a vida em doses largas,
mas que prefere a virgem imaculada na sua alcova doméstica,
é boêmio e na sua escrita conclama a mulher dos desejos.

172
O homem Álvares apesar de não ter vivido todas as
aventuras de seus personagens, estava ali, inserido nas suas
conquistas, era sua alma e seus desejos que estavam expostos,
fazendo com que a escrita de Noites na Taverna se aproxime
dos relatos autobiográficos. Foi sua aproximação com a morte
que o fez clamá-la, a necessidade de chegar ao ápice do desejo
tornou-o amante e servo da morte, com ela tomou os últimos
goles da vida.

Considerações finais

Álvares de Azevedo assim como vários outros


românticos fizeram seu passeio entre o mundo ideal do
romantismo e as transgressões vividas em seu cotidiano,
diríamos, tomando as palavras de Antônio Candido que o
autor expressava nos seus escritos os desejos da juventude,
com suas mulheres inalcançáveis que, por vezes, deixava-se
levar pelos amores carnais, renunciando a toda candura de
seu tempo.

Noite na Taverna sugere um encontro com a realidade


social da época entre a pobreza de mulheres perdidas e
amarguradas pela vida, as virgens intocadas imaculadas ou a
alcova de seus quartos ou os espaços públicos de controle
como é o caso das Igrejas, essa segundo Luiz Mott (2018),
servia de proteção, mas também era perigosa, pois podia

173
sugerir encontros furtivos entre os sujeitos que agora se
encontravam nesse ambiente religioso.

A obra transgressora é também um passeio pelo


realismo e pelos escritos fantásticos por meio de seus
personagens imaginados à sombra do seu tempo, mas
desvinculados do real, uma fuga ou omissão do autor; a
transgressão também é uma aproximação com a morte que é
vista ao longo da obra como o ápice do desejo, que o afastaria
de Deus, mas o aproximaria da plenitude.

Referências

ALBUQUERQUE JR, D. M. História: a arte de inventar o


passado. Bauru: EDUSC, 2007.
ARIÈS, P. O homem diante da morte. São Paulo: UNESP, 2014.
AZEVEDO, A. Noite na taverna. São Paulo: Martin Claret, 2006.
AZEVEDO, A. Poemas irônicos, venenosos e sarcásticos. Minas
Gerais: M&M Editores, 2002.
BAUDELAIRE, C. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
BORDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo
literário. São Paulo: Companhia das letras, 1996.
CANDIDO, A. A educação pela noite & outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1989.
FOUCAULT, M. Prefácio à transgressão. In: MOTTA, M. B.
(Org.). Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 28-46, v. 3.

174
HOBSBAWN, E. J. A Era das revoluções: Europa 1789- 1848. 8.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
MAUROIS, A. De Proust a Camus. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1965.
MORAES, E. R. O corpo impossível: a decomposição da figura
humana – de Lautremout a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2002.
MOTT, L. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o
calundu. In: SOUZA, L. M. (Org.). História da vida privada no
Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2018. p. 155-220.
WEBER, M. Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: UNB, 2012.

175
176
CAPÍTULO VII

(RE)ESCREVENDO A MULHER NUMA


PERSCPECTIVA DE
INTERSECCIONALIDADE A PARTIR DE
LIMA BARRETO
Roseilda Maria da Silva

É recente a inclusão de temáticas sobre pobreza, etnia,


matrimônio, mulheres e outros grupos nas discussões
historiográficas. Por esta e outras razões é pertinente discutir
a condição da mulher nos anos 1920 e relacionar com os dias
atuais na perspectiva da interseccionalidade a partir da
literatura.

Lima Barreto, romancista carioca, viveu entre 1881 e


1922, filho de um tipógrafo e uma professora, escreveu sobre
o que percebeu e viveu no Brasil da Primeira República.
Abordou assuntos relacionados aos aspectos sociais e
políticos, apresentou, sobretudo, uma literatura recheada de
assuntos polêmicos e ao mesmo tempo ausentes nas
discussões de sua época. Sua escrita aponta para uma
literatura do inconformismo, e traz temas poucos discutidos
nesse contexto e ainda complexos nos dias atuais. Um autor

177
insurgente, não se convencia da aparente normalidade
daquela sociedade que vivia sob os encantos proporcionados
pelas mudanças advindas da modernização, ou, do “fim” de
um processo de escravidão.

O autor escreveu Clara dos Anjos, romance com duas


versões, a primeira escrita no início do século XX, e a segunda
concluída no mesmo ano de sua morte, em 1922, mas
publicada apenas em 1948. Lima Barreto não apresentou
apenas a história individual sobre Clara dos Anjos, mas a
história das relações sociais entre homens e mulheres e
sobretudo a história de muitas mulheres que, assim como
Clara, foram e ainda são, julgadas a partir de um olhar
patriarcal que interpreta a mulher como sedutora, errante,
digna ou indigna de um casamento, este que foi, e de certa
forma ainda é, o indicador de felicidade e de respeito em uma
família, além de ser visto como uma das maiores conquistas
de uma mulher.

Lima Barreto trouxe para sua escrita a voz dos


excluídos que ecoa ainda nos dias atuais e de alguma forma
chega aos diversos espaços e nos convida a refletir sobre as
relações sociais, dentre elas as de gênero, em uma época que
a voz feminina ficou restrita ao espaço privado. O autor viveu
nesse contexto de vigilância feminina, em que era silenciada e
desprovida do poder de decisão, deixou como legado uma
escrita de denúncia registrada em seus personagens, por meio

178
das quais podemos entender o lugar da mulher na sociedade
patriarcal brasileira do século XX e XXI.

As mulheres apresentadas pelo autor em seus


romances pertenciam a diversos segmentos, para esta
discussão teremos como ponto de partida uma breve leitura
do romance Clara dos Anjos, nele será observada a personagem
que deu origem ao título e entender a mensagem que o autor
quis repassar quando inseriu a jovem em diversos segmentos
que são melhor compreendidos no âmbito da
interseccionalidade.

Mesmo que a literatura esteja numa perspectiva


ficcional, a obra de Lima Barreto está alinhada às diversas
realidades experienciadas e percebidas em seu contexto, com
sua forma peculiar de escrever fez diversas denúncias sociais
as quais servem para pensar o contexto atual e problematizá-
lo. Embora não tenha se dedicado a uma escrita das mulheres,
a presença feminina é significativa em seus contos e romances
e colaboram para pensar o lugar delas naquele e no contexto
atual.

É difícil realizar uma leitura sobre Clara dos Anjos sem


problematizar as atribuições feitas pelo autor à personagem,
ela representa uma mulher jovem, negra e pobre, uma forma
de compreender diversas nuances de uma sociedade
preconceituosa, machista e excludente. É possível entender a
amplitude dessa obra por oferecer a oportunidade de
entender o lugar dessa menina na dinâmica dessa sociedade e

179
a partir dela refletir sobre as mudanças ocorridas, sobre as
repetições de determinadas práticas discriminatórias, sobre os
lugares ainda reservados às mulheres em uma sociedade
erguida e sustentada pelas decisões masculinas.

Mulher no espaço público: pobre ou relapsa?

Considerando o contexto em que viveu e escreveu


Lima Barreto, bem como a forma como a história das
mulheres foi registrada, é importante entender que não há
uma linearidade nos acontecimentos, nem aqueles
relacionados à opressão ou à superação. Desta forma, “a
história da mulher é, antes de tudo, uma história de
complementaridades sexuais, onde se interpenetram práticas
sociais, discursos e representações do universo feminino
como uma trama, intriga e teia” (DEL PRIORE, s. d., p. 10).

A historiografia mostra que o percurso da mulher,


principalmente nos aspectos relacionados à economia, à
moral ou ao social, esteve associada ao homem. Desde
pequena, Clara esteve sob os cuidados de um homem, a
princípio sob o olhar do pai que juntamente com a mãe a
protegia, por ser filha única, muito mais por ser mulher, e
também do padrinho, Antônio da Silva Marramaque, que se
sentia responsável pela jovem de tal forma que sua morte está
relacionada à proteção da afilhada.

180
Ou seja, a proteção neste romance tem duas realidades,
se por um lado o pai de Clara, a protegia na esperança de que
arrumasse um bom rapaz e assim conseguisse o tão almejado
casamento, por outro lado, a mãe de Cassi o protegia de um
casamento com uma mulher que julgava inadequada.
Salustiana, mãe de Cassi era uma senhora preconceituosa que
não aceitava o filho se casar com uma jovem pobre e morena,
como o autor se refere à cor da protagonista. Por essa razão, o
defendia dos problemas causados devido ao seu
envolvimento com as mulheres que, em sua maioria, estavam
inseridas na mesma realidade de Clara: pobres e negras.

Clara dos Anjos representa mulheres de diversas


épocas que ocupavam posições sociais pouco relevantes e não
possuíam o poder de decisão dos homens, que decidiam,
inclusive, sobre suas atividades laborais: se poderiam ou não
trabalhar; se trabalhariam fora de casa, qual seria o trabalho;
etc. Conforme Cláudia Fonseca (2004), a falta de poder sobre
as mulheres, demonstrada pelo homem quando lhe dava essa
permissão, colocava-as em perigo, devido ao julgamento
moral sofrido por elas, principalmente se trabalhavam nas
fábricas.

Diferentemente dessas, aquelas que realizavam o


trabalho doméstico não recebiam o mesmo julgamento,
porque o espaço privado era de fato o destino delas. Mas, ao
saírem para o espaço público, eram julgadas de mães relapsas

181
e negligentes com a educação dos filhos, porque necessitavam
deixá-los, quando precisavam, com outras pessoas.

A mulher pobre, cercada por uma


moralidade oficial completamente desligada
de sua realidade, vivia entre a cruz e a
espada. O salário minguado e regular de seu
marido chegaria a suprir as necessidades
domésticas só por um milagre. Mas a dona de
casa, que tentava escapar à miséria por seu
próprio trabalho, arriscava sofrer o pejo da
“mulher pública” (FONSECA, 2004, p. 433).

Não são apenas as questões étnicas que pesam sobre a


mulher na sociedade brasileira, as relacionadas à sua classe
também. Conforme a autora, ao se referir à mulher dos anos
1920, a luta da mulher por trabalho neste período não foi
apenas por independência financeira, mas por necessidade, e
mesmo assim eram julgadas, social e moralmente por serem
mulheres públicas. Qual o problema de serem consideradas
assim? Hoje, é permitido questionar, mas na época não
deviam. Ou seja, a pobreza tanto definia a mulher, quanto o
lugar que ocupava socialmente.

Ainda sobre a condição da mulher no início do século


XX, Soihet (2004) afirma que as transformações da cidade
carioca sofridas pela modernização dos espaços estimularam
a mulher de classe abastada a sair às ruas, embora
acompanhadas, para o lazer principalmente. Enquanto a
mulher pobre era convidada a fazer a vigilância de suas filhas

182
e a ficar em casa, mesmo necessitando trabalhar devido a sua
condição financeira.

Os espaços públicos representavam perigo, também


para as mulheres, mães e pobres. Médicos e juristas
determinavam uma vigilância constante às suas filhas, já que
a preocupação com a moralidade era sinônimo de progresso
social. A autora apresenta uma reflexão importante, do ponto
de vista da posição social ocupada por esta mulher neste
período, sobre as questões étnicas e de classe intercruzadas,
ao levantar a seguinte questão: como poderiam se privar ao
lar sendo pobres e a necessidade as obrigando a trabalharem?
Não era uma escolha apenas, não era independência, mas sim
necessidade.

Muitas sofreram por necessitarem vivenciar esse


espaço, seja enquanto transeuntes indo ao trabalho, ou
simplesmente no processo de socialização. A violência fez
parte de uma tentativa de retirar desse meio pessoas que não
eram de classe social favorecida. A autora apresenta um caso
de uma mulher que foi espancada por guardas na rua e levada
à delegacia sem ter cometido crime algum. Estavam dispostos
a retirarem das ruas aqueles que aos olhos da modernidade
colaboravam para modificar a paisagem e, portanto, deveriam
ser retirados, fossem homens ou mulheres.

No caso das mulheres, acrescentavam-se os


preconceitos relativos ao seu
comportamento; sua condição de classe e de

183
gênero acentuava a incidência da violência. O
desrespeito às suas condições existenciais
traduzia-se em agressões físicas e morais. Foi
o que ocorreu, na situação em pauta, através
da imputação à Lídia do exercício da
prostituição, a mais infamante pecha para
uma mulher na época (SOHIET, 2004, p. 307).

A citação de Sohiet nos mostra como não há respeito


ao feminino. Há um grande desrespeito à condição social da
mulher, pois, embora ela necessitasse trabalhar, o espaço
público não deveria ser o seu lugar. Estar livremente na rua,
não só as mulheres, mas todos aqueles que ficavam à margem
do mercado de trabalho eram vistos como desocupados e,
portanto, uma questão a ser resolvida pela polícia, o estado
intervinha para conter e culpar as pessoas por essa situação.

De acordo com Rago (2004), no final do século XIX e


início do XX, as mulheres eram percebidas de diversas formas
pelos mais variados setores e / ou profissões, tais como
industriais, médicos higienistas, jornalistas, literatos, e outros,
, que definiam a identidade social, sexual e até pessoal delas.
Através dessas informações historiadores/ historiadoras
analisam de acordo com o contexto e mostram, de forma
aproximada, quem eram aquelas mulheres e a relação daquele
período com o atual.

Os documentos consultados dão pistas diferentes de


como essas mulheres eram percebidas de “Frágeis e infelizes
para os jornalistas, perigosas e “indesejáveis” para os patrões,

184
passivas e inconscientes para os militantes políticos, perdidas
e “degeneradas” para os médicos e juristas, as trabalhadoras
eram percebidas de vários modos” (RAGO, 2004, p. 484).
Como se percebe é uma interpretação masculina sobre as
mulheres, não é de se estranhar diante de uma sociedade com
regras e julgamentos elaborados e ditados por homens, em
sua maioria, logo, a literatura feminina foi apresentada do
ponto de vista masculino.

De acordo com Rago (2004), os documentos que


contêm informações feitas por mulheres são poucos e o teor
são de denúncias, porque havia também um movimento de
contenção da mulher, principalmente por aqueles que temiam
a mobilização das mulheres trabalhadoras para reivindicar
seus direitos enquanto trabalhadoras. Embora também tivesse
o ponto de vista de outras categorias, tais como socialistas,
anarquistas que estavam tentando alertar o proletariado sobre
sua condição de trabalhador, mas, como percebe-se, eram
homens preocupados com homens.

Isso significa que lidamos muito mais com a


construção masculina da identidade das
mulheres trabalhadoras do que com sua
própria percepção de sua condição social,
sexual e individual. Não é à toa que, até
recentemente, falar das trabalhadoras
urbanas no Brasil significava retratar um
mundo de opressão e exploração demasiada,
em que elas apareciam como figuras
vitimizadas e sem nenhuma possibilidade de

185
resistência. Sem rosto, sem corpo, a operária
foi transformada numa figura passiva, sem
expressão política nem contorno pessoal
(RAGO, 2004, p. 485).

Embora articulassem as decisões políticas, orientassem


os homens nessas decisões como bem representa Edgarda, no
romance Numa e a Ninfa, de Lima Barreto, ela que, devido ao
contexto, não estava diretamente ligada à política, mas era a
partir dela, de suas articulações com os representantes do
poder e dos conselhos dados ao esposo que as decisões
políticas eram tomadas. Neste caso, havia uma dependência
contrária, o esposo não tomava decisões políticas sem antes
ouvir a esposa que sabia como a política funcionava.

Mesmo que tenha sido educada para se casar, Edgarda


não enfrentava a sociedade para afirmar seu lugar, apenas
agia nos bastidores, para que o marido realizasse aquilo que
ela não poderia realizar diretamente. Ela quem percebia as
necessidades da população, quem entendia o que deveria ser
feito para agradar aos eleitores, afinal ela estava em uma
família que entendia de uma política estruturada nos
interesses individuais.

Uma leitura sobre gênero a partir da literatura

Para compreensão dessa relação, cabe uma breve


reflexão sobre o que se compreende por gênero, para então

186
entendê-la. Tomando como referência as discussões de Joan
Scott, é importante frisar que o termo gênero provavelmente
tenha feito sua primeira aparição entre as feministas
americanas, com a pretensão de frisar o caráter fundamental
social das diferenças baseadas no sexo.

A palavra indicava uma rejeição do


determinismo biológico implícito no uso de
termos como “sexo” ou “diferença sexual”. O
termo “gênero” enfatizava igualmente o
aspecto relacional das definições normativas
da feminilidade. Aquelas que estavam
preocupadas pelo fato de que a produção de
estudos sobre mulheres se centrava nas
mulheres de maneira demasiado estreita e
separada utilizaram o termo “gênero” para
introduzir uma noção relacional em nosso
vocabulário analítico (SCOTT, 1995, p. 72).

A autora enfatiza que segundo esta definição homens


e mulheres deveriam ser compreendidos em termos
recíprocos e não através de estudos que distanciam esta
relação. A história das mulheres e dos homens deveria ser de
interesse dos pesquisadores, numa correlação e nunca apenas
de um, como se acontecesse de forma isolada.

Em vários contos, crônicas e romances, Lima Barreto


traz para o enredo de suas narrativas pessoas que de alguma
forma estavam à margem daquela sociedade que se dizia
moderna, embora a sua obra tenha como discussão central
questões políticas, as denúncias sociais estão presentes e são

187
direcionadas a diversos segmentos que foram por muito
tempo deixados à margem das discussões, tais como o negro,
a mulher, o pobre que aparecem em diversas relações na
literatura de Lima Barreto e nos convidam para pensar os seus
lugares naquela e nesta sociedade.

É comum encontrar nos romances do autor a figura


feminina, embora nem todas tenham sido protagonistas,
como foi Clara dos Anjos, porém, são centrais em alguma
medida, principalmente nas questões predominantemente
masculinas, como é o caso da política. A representatividade
das mulheres nos romances de Lima Barreto, mostra que sua
literatura é importante para se compreender as relações de
gênero ao longo do tempo e do espaço.

É comum esse protagonismo feminino aparecer nos


romances e contos de Lima Barreto, em Numa e a Ninfa,
embora o foco seja as questões políticas, neste o autor
apresenta como figura central da narrativa um político que
angariou espaços importantes neste meio devido a um
casamento com a filha de um outro político. Conseguiu ter a
visibilidade que desejava na política através desse casamento.

Sua esposa não ocupa um cargo importante, mas sabe


a importância do prestígio social do esposo para alcançar o
prestígio almejado, Edgarda começa fazer da política sua
motivação para conquistar essa visibilidade. O casamento não
é central no romance, mas um meio viável para articular os
interesses políticos do esposo, e dela também, ela demonstra

188
interesse nessas questões e não no casamento e menos ainda
nos afazeres domésticos, comum naquela sociedade.

Edgarda faz parte de um contexto predominantemente


masculino, representa apenas uma das categorias inseridas na
interseccionalidade, é mulher, mas não é negra e nem pobre.
Sua dependência se relaciona apenas à voz, por ser mulher
sua voz chegava a outros espaços através do marido, sua
opressão se materializa na ausência desse falar, ao menos para
o público e no público. Sua voz ecoa em benefício do marido
e de certa forma dela própria, pois se realiza nessa articulação,
mesmo que nos bastidores.

Diferentemente de Edgarda, Clara dos Anjos


contempla as categorias da interseccionalidade. Mulher,
negra, pobre e jovem, devido à proteção dos pais é uma moça
ingênua que se envolve com um rapaz branco e de condição
social diferente da sua. Além de sofrer a opressão das
categorias da interseccionalidade, é culpabiliza por
engravidar, essa culpa está relacionada à sua condição de
mulher, à sua condição étnica e à sua condição social.

Sobre interseccionalidade, Crenshaw (2002) afirma que


a relação de sistema múltiplos de subordinação tem se
apresentado de diversas formas, tem apontado a
discriminação inclusive de forma tripla. Entender esse
conceito é necessário não apenas nas discussões sobre gênero,
mas para poder perceber como o processo histórico de
discriminação acontece. Através desse conceito é possível

189
compreender os resultados das estruturas sociais baseadas na
associação dos diversos tipos de subordinação, e a forma
como o preconceito se manifesta, uma vez que a
interseccionalidade,

Trata especificamente da forma pela qual o


racismo, o patriarcalismo, a opressão de
classe e outros sistemas discriminatórios
criam desigualdades básicas que estruturam
as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a
interseccionalidade trata da forma como
ações e políticas específicas geram opressões
que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p.
177).

Embora pareçam separadas, essas categorias estão


relacionadas e se intercruzam de alguma forma demarcando
o lugar da mulher na estrutura social, colocando-a em
posições distintas devido ao pertencimento a uma ou mais
categorias, mesmo aquelas mulheres que não sabem que isso
acontece, e mesmo as que sabem, muitas vezes não
conseguem se livrar desse tipo de tratamento.

O assunto necessita ser discutido, falta


empoderamento nesta perspectiva e se faz urgente dialogar
para se compreender e aprender com quem vivencia essa
situação, e sobretudo compreender as reflexões literárias e
históricas de quem há muito tempo denuncia essas questões e

190
chama a atenção para o preconceito e a discriminação racial,
de gênero e de classe existente. “As mulheres racializadas
frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o
racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram”
(CRENSHAW, 2002, p. 177).

Com essa reflexão Crenshaw (2002) nos apresenta


segmentos relacionados ao racismo, gênero e classe, o que nos
possibilita entender a inserção de Clara dos Anjos nessas
categorias em um contexto em que essas discussões não eram
realizadas e nem compreendidas da forma como são
atualmente. Ainda não são tão fortes como deveriam ser, mas,
estão presentes nos mais diversos lugares, sobre como a
questão do racismo, de classe e de gênero devem ser
discutidas constantemente, principalmente nas relações de
gênero.

O desejo de Edgarda e provavelmente de sua família,


embora o autor não deixe tão explícito, é de que o esposo fosse
reconhecido na política, assim, ela teria prestígio através da
posição ocupada naquele cenário pelo marido.

A mulher em que o casamento já começava a


pesar, aborrecia-se com essa obscuridade.
Não o amara, não o supunha inteligente, mas
havia não sei que de organizado nele, de
médio, de segurança de processo, que
esperou sempre que a política o fizesse pelo
menos conhecido; mas, assim não o queria e

191
o seu enlace era um desastre sem desculpa
aos seus olhos (BARRETO, 1950, p. 8).

Na passagem acima, Lima Barreto apresenta uma


mulher reflexiva sobre o seu casamento, o qual deveria ser
marcado pela harmonia e pelo progresso do casal, porém,
dava sinal de fracasso, ao menos aos olhos da esposa que
começava a entender o quanto este enlace tornara-se pesado.
Aparentemente estava insatisfeita com o casamento, que não
era prioridade em sua vida, passou a ser questionável, porque
também não estava correspondendo aos seus planos iniciais
de proporcionar prestígio social, embora sonhasse com um
homem que possibilitasse o seu reconhecimento social. Nessa
época, a mulher não podia votar e nem ser votada, isso
aconteceu na década de 1930, significando um avanço da
mulher na composição social e política do Brasil.

É importante compreender que Lima Barreto não


romantiza a relação mulher e casamento, mesmo que a
sociedade impusesse moralmente essa obrigação. Edgarda
representa uma mulher que, embora cumprisse a agenda
social da imposição moral do casamento, não o aceitava como
sua única função na sociedade. Resiste a esta imposição, se
mostra contrária quando age e faz aquilo que acreditava
atender ao seu desejo e não ao da família e demais imposições.
Casou-se, mas fez do seu casamento uma ponte para realizar
o que gostava de fazer, envolver-se na política, embora não
fosse considerado assunto de mulher.

192
Talvez o casamento nem tivesse para ela a importância
construída no imaginário social, mas foi através dele que as
mulheres também poderiam ser vistas como importantes,
dependendo com quem se casassem, poderiam ser
consideradas mulheres direitas e de prestígio.

A sociedade naquela época, conservadora como nos


dias atuais, determinava quando uma mulher seria bem-
sucedida, o matrimônio foi um dos medidores. O casamento
e não a profissão, nem mesmo ser filha de um político, esta
condição facilitou o casamento, um meio para conseguir a
visibilidade social e política que tanto desejava, afinal ser
político é ter a certeza de que seria respeitado social e
moralmente, mesmo tendo uma profissão como a de Numa.

Tomando essas realidades como ponto de discussão, é


importante entender as peculiaridades de cada época. Sobre
esta questão, Pesavento (2008) afirma que as emoções,
temores e sentimentos devem ser historicizados e
compreendidos em seus contextos. Desta forma, essas
características fazem parte de um contexto específico, mas
podem ser relacionadas a outras realidades e temporalidades.
Os romances de Lima Barreto têm uma forma peculiar de
mostrar o espaço ocupado por grupos pouco discutidos e
também negligenciados desde sua época.

Mesmo dentro dos padrões impostos socialmente,


Edgarda era uma mulher que não se contentou com o
casamento, principalmente porque seu esposo não ter

193
alcançado o prestígio que ela tanto desejava. O matrimônio
seria bom se trouxesse para ela o prestígio do marido, motivo
pelo qual se dedicava a preparação dele quanto às promessas
que deveria dar aos eleitores.

Diferentemente de Edgarda, Clara dos Anjos é uma


jovem com outras nuances. Protegida e orientada para o
casamento, seus pais não aprovavam seu envolvimento com
o rapaz por quem se apaixonou, engravidou e foi rejeitada por
ele e sua mãe, essa rejeição está relacionada à condição da
jovem, não apenas por ser morena, como se refere o autor, mas
por ser pobre também.

O posicionamento da mãe do rapaz é comum entre as


mulheres em outras instâncias, “quando as mulheres
permitem que contestações às tradições culturais patriarcais
dentro de suas comunidades sejam silenciadas, elas perdem a
oportunidade de transformar práticas que são prejudiciais às
mulheres em geral” (CRENSHAW, 2002, p. 11). Embora seja
necessário problematizar o contexto, não se pode deixar de
fazer as devidas reflexões. Quando a mãe de Cassi
naturalizava o comportamento do filho e o defendia, estava
concordando e ao mesmo tempo prejudicando a si mesma e
as demais. Na compreensão das discussões sobre gênero, as
mulheres também devem ser incluídas no processo de
construção e desconstrução de determinadas práticas sociais,
tanto aquelas que se encontram em situações favoráveis

194
quanto às situações desfavoráveis nas relações de igualdade
étnica, social e de gênero.

Quem foi Cassi Jones? Um jovem de condição social


melhor que a das mulheres com quem se relacionava, branco,
um violeiro conhecido por essa habilidade, um rapaz cuja
fama era a de se envolver e, em seguida, abandonar. As
mulheres com quem se envolvia quase todas pertenciam a
mesma realidade social de Clara. O rapaz não firmava
compromisso com as moças, sabendo dessa fama o pai de
Clara temia que a filha se envolvesse e fosse abandonada e
mal-vista pela sociedade. O casamento era um evento
esperado, mas não queriam arriscar a sorte e preferiram
afastá-la. Mas, a proteção de nada valeu, o casal providenciou
uma maneira de se encontrar e levar adiante o
relacionamento, mesmo sem essa permissão.

O romance inicia com a apresentação de um dos


aspectos mais importantes da narrativa. Joaquim dos Anjos, o
pai de Clara, é o primeiro que aparece no enredo, homem
pobre que havia herdado uma herança da mãe, inicia sua vida
familiar no subúrbio do Rio de Janeiro. A opção por iniciar o
romance com essas informações tenha sido, provavelmente,
proposital para mostrar a que família Clara dos Anjos
pertencia e assim apresentar a origem social de Clara,
marcada pela desigualdade de classe de sua família.

195
Realizada essa primeira parte do romance, o autor se
ocupa na apresentação da protagonista, mostra os cuidados
de seu pai.

Era tratada pelos pais com muito desvelo,


recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou
pai, só saía com D. Margarida, uma viúva
muito séria que morava nas vizinhanças e
ensinava a Clara bordados e costuras. No
mais, isto era raro e só acontecia aos
domingos, Clara deixava, às vezes, a casa
paterna, para ir ao cinema do Méier ou
Engenho de Dentro, quando a sua professora
de costuras se prestava a acompanhá-la
(BARRETO, 1948, p. 34).

Como é possível perceber, Clara foi protegida e


orientada para o casamento, a permissão para sair de casa foi
cedida se estivesse na companhia da mãe, da vizinha com
descrição de mulher séria e da amiga da família que ensinava
a Clara os dotes de uma boa esposa, ou com a professora com
quem a moça convivia. A função dessas mulheres foi a de
cuidar e educar para o casamento, as decisões de com quem
era permitido casar, ficava por conta da figura masculina, do
pai ou do padrinho.

Clara, assim como sua mãe, cuidava dos afazeres


domésticos e servia comida ao pai, ao padrinho e aos amigos
dele enquanto ficavam na sala e conversavam sobre política,
“A bênção, meu padrinho; bom-dia, seu Lafões. Êles

196
respondiam e punham-se a pilheriar com Clara: Dizia
Marramaque: - Então, minha afilhada, quando se casa? - Nem
penso nisso, respondia ela, fazendo um trejeito faceiro”
(BARRETO, 1948, p. 38). Esse jeito faceiro, desconstruía a
resposta dada automaticamente, ela, se interessava pelo
matrimônio, assim como a maioria das moças de sua época. O
assunto casamento não era apenas por parte da família, o
padrinho também demonstrava preocupação. Ou seja, a
escolha poderia inclusive ser de outras pessoas próximas a
família, mas não apenas da moça. Além do mais um homem,
intervindo na questão, vale salientar que o papel do padrinho
era visto como relevante na educação dos afilhados.

Relação casamento e interseccionalidade

A pergunta sobre o casamento representa uma


preocupação central com relação às moças, Clara parecia
familiarizada, mesmo quando respondia como quem não se
interessava pelo assunto. A descrição do autor sobre a
personagem demonstra que o assunto a agradava, uma vez
que ficava de um jeito diferente. A jovem ficou atenta quando
o nome de um rapaz foi anunciado.

- Queria pedir a você autorização para cá


trazer, no dia dos anos, aqui da menina, um
mestre do violão e da modinha. Clara não se
conteve e perguntou apressada: - Quem é?

197
Lafões respondeu: - É o Cassi. [...] Acabaram
de tomar café. Clara afastou-se com a bandeja
e as xícaras cheia de uma forte, tenaz e malsã
curiosidade: - Quem seria êsse Cassi?
(BARRETO, 1948, p. 38-39).

A reunião entre o pai de Clara dos Anjos e seus amigos


versava, a princípio, sobre política, ao chegar à sala para servir
o café, a centralidade dos comentários voltava-se para ela, o
assunto acompanha a jovem em todo o romance, a relação
dela com o casamento e deste com a sua condição de negra,
pobre, jovem e mulher.

A narrativa não é sobre educação formal, não é sobre


trabalho, não é sobre amizade, é sobre casamento. Clara dos
Anjos despertava interesse e passou a interagir e querer saber
sobre de quem o amigo do pai estava falando. Casar-se não
era interesse da moça, era principalmente da família
representada pelo pai, pelo padrinho e amigos da família. Ao
não se mostrar satisfeito com a possibilidade de o rapaz vir a
casa da moça, o padrinho demonstrou o quanto sentia-se na
responsabilidade de intervir nas decisões da família
relacionadas à moça.

Os homens que estavam preocupados com a questão


matrimonial, a mãe de Clara não aparece na conversa porque
estava na cozinha preparando a refeição para a família. De um
lado, o pai e o padrinho de Clara preocupados com o
casamento, tentavam evitar o casamento da filha com
qualquer um, do outro, a mãe de Cassi se posicionava

198
contrária ao casamento do filho com uma moça que tivesse as
mesmas condições de Clara. O pai de Cassi e um tio irmão de
sua mãe, não aprovavam o comportamento do rapaz que
insistia em continuar com essa prática de enganar as moças
sem sentimentos e compromissos.

A forma como se envolvia e frequentemente


abandonava as moças causava uma certa angústia nas
famílias que se sentiam envergonhadas com o peso do
julgamento social sobre as filhas, que chegavam inclusive a
cometer suicídio, como foi o caso da mãe de Nair, outra jovem
com as mesmas características de Clara se envolveu com Cassi
e foi abandonada, provocando o suicídio de sua mãe. Isso
demonstra o quanto as questões de gênero não devem ser
discutidas apenas do ponto de vista da mulher, as relações
entre homens e mulheres estão interligadas e assim devem ser
discutidas.

Conforme Lima Barreto, (1948, p. 42) o envolvimento


de Cassi com as mulheres passava por repercussões
significativas, os casos chegavam aos jornais, às delegacias e
necessitavam de advogados para defendê-lo do casamento
forçado e até da prisão.

Quando a polícia ou os responsáveis pelas


vítimas, pais, irmãos, tutores, punham-se em
campo para processá-lo convenientemente,
êle corria à mãe, D. Salustiana, chorando e
jurando a sua inocência, asseverando a tal
fulana - qualquer das vítimas, já estava

199
perdida, por êsse ou por aquele; que fôra
uma cilada que lhe armaram, para encobrir
um mal feito por outrem e por o saberem de
boa família, etc., etc. (BARRETO, 1948, p. 42).

Mais uma vez, como apresenta a citação, o assunto


matrimonial é de domínio masculino, quando Cassi se
distanciava da obrigação do casamento, saíam em defesa da
mulher a polícia, os pais e os irmãos, todos do sexo masculino,
essa proteção não era unânime porque as mulheres também
protegiam os homens ao mesmo tempo em que julgavam
outras mulheres, como bem representa a mão de Cassi no
julgamento de Clara e outras moças.

A mãe de Cassi o defendia por um motivo específico, a


preocupação não se dava apenas por ele ser seu filho, estava
preocupada com a condição social e racial das moças com
quem ele se envolvia.

A discriminação interseccional é
particularmente difícil de ser identificada em
contextos onde forças econômicas, culturais e
sociais silenciosamente moldam o pano de
fundo, de forma a colocar as mulheres em
uma posição onde acabam sendo afetadas
por outros sistemas de subordinação. Por ser
tão comum, a ponto de parecer um fato da
vida, natural ou pelo menos imutável, esse
pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes,
invisível (CRENSHAW, 2002, p. 06).

200
Essas condições estão juntas, é necessário entendê-las
e relacioná-las com a representação de Clara dos Anjos na
estrutura das relações sociais, a partir de sua condição social
e étnica. Nesta perspectiva, Lima Barreto chama a atenção
para a compreensão das segregações discutidas na
interseccionalidade e possibilita entender quanto Clara dos
Anjos estava inserida em diversas categorias, sofria a
desigualdade social devido à pobreza de sua família, bem
caracterizada no início do romance. Clara é jovem, negra, uma
condição étnica não aceita pela mãe de Cassi, pobre, isso
mostra o quanto a mulher sofre o peso do julgamento de uma
sociedade preconceituosa, excludente, patriarcal e machista,
mas esse preconceito nem sempre é compreendido,
principalmente quando vem acompanhado de outras
categorias discriminatórias nem sempre identificáveis.

Considerações finais

A literatura de Lima Barreto se diferencia de tantas


outras pela forma como os personagens são apresentados,
cada um ocupa um espaço vasto da imensidão de uma
sociedade preconceituosa e excludente. São personagens bem
situados no enredo que representam, ao mesmo tempo em
que é possível considerá-los atemporais, uma vez que foram
pensados em um determinado contexto e podem ser
discutidos com base em realidades atuais. Com isso, sua

201
escrita marca sobretudo uma forma peculiar de discutir
temáticas urgentes nas questões relacionadas ao preconceito,
à desigualdade social, e às de gênero, esse diálogo se faz
necessário na construção de uma sociedade mais justa,
democrática e conhecedora de sua história e do lugar ocupado
por homens e mulheres nessa construção.

O autor de Clara dos Anjos não apenas apresenta a


condição feminina naquele modelo de sociedade de início do
século XX, chama a atenção para questões instigantes e
complexas no âmbito das relações sociais, representadas por
uma mulher que é protagonista de um romance escrito em um
período com poucos registros sobre a condição feminina,
esses, ainda raros, estão relacionados à condição da mulher
operária.

As discussões aqui apresentadas, não se esgotam e


nem dão conta de toda a complexidade que é a temática, nesse
ponto de vista, são resultados de uma das diversas leituras
possíveis sobre a condição da mulher na perspectiva da
interseccionalidade. Foi instigante compreender o universo
de uma mulher jovem, negra, pobre protegida pelos pais,
orientada para o casamento, que se envolveu com um rapaz
galanteador de origem social e étnica diferente da sua. Mulher
que sentiu o peso de uma sociedade preconceituosa, machista
e excludente. Romance com possibilidades amplas de
discussão, não apenas para compreender a condição da
mulher numa sociedade com as características apresentadas,

202
mas a capacidade de ir além das complexidades das relações
de gênero.

As discussões não se esgotam na perspectiva


apresentada, outras abordagens poderão ser relacionadas à
condição da mulher dentro das vertentes abordadas, o que
não se deve é deixar de discutir e fazer chegar a outros espaços
possibilidades de diálogo sobre a subordinação das mulheres
inseridas nos elementos da interseccionalidade. As reflexões
sobre esta relação constituem a representação de muitas
mulheres do século XXI que continuam imersas em discursos
com as características das emitidas à Clara dos Anjos que
devem ser problematizadas e desconstruídas.

Referências

BARRETO, L. A. H. Clara dos Anjos. São Paulo: Editora Mérito


S. A., 1948.
BARRETO, L. A. H. Numa e a ninfa. Rio de Janeiro: Gráfica
Editora Brasileira, 1950.
CRENSHAW, K Documento para o encontro de especialistas
em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. 2002.
Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acesso em:
14 set. 2020.
DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil: raízes
históricas do machismo brasileiro. Disponível:
http://www2.defensoria.pa.def.br/ouvidoria/Anexos/File/O
uvidoria/49A%20Mulher%20na%20Hist%C3%B3ria%20do%20

203
Brasil%20-%20Mary%20Del%20Priore-.pdf. Acesso em: 11 set.
2020.
FONSECA, C. Ser Mulher, Mãe e pobre. In: DEL PRIORE, M.
(org.). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo:
Contexto, 2004. p. 428-463.
PESAVENTO, S. J. História & História Cultural. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
RAGO, M. Trabalho feminino e sexualidade. In: DEL PRIORE,
M. (org.). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo:
Contexto, 2004. p. 484-508.
SCOTT, J. Gênero: Uma categoria útil de análise histórica.
Educação e Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In:
DEL PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. 7. ed.
São Paulo: Contexto, 2004. p. 304-335.

204
SOBRE OS ORGANIZADORES

Maria do Socorro Baptista Barbosa

Doutora em Letras Inglês e Literatura Correspondente


(UFSC). Mestra em Letras Inglês e Literatura Correspondente
(UFSC). Graduada em Letras Português e Inglês (UFPI).
Atualmente, é professora aposentada da Universidade
Estadual do Piauí. Tem ampla experiência na área de Letras,
atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura,
Identidade Nacional, Literatura Canadense, Ensino, Leitura e
Cultura, bem como Literatura e outras artes, em especial o
Cinema.

Thiago Coelho Silveira

Doutor em História (UNISINOS). Mestre em História


do Brasil (UFPI). Graduado em História (UESPI) e Filosofia
(UEMA). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Maranhão (IFMA), Campus Presidente
Dutra. Professor permanente do Programa de Pós-graduação
em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT/IFMA).
Tem experiência na área de História, Educação e Filosofia
atuando principalmente nos seguintes temas: política, cidade,
memória, ensino e literatura.

205
SOBRE OS AUTORES

Gil Derlan Silva Almeida

Doutorando Letras/Estudos Literários (UFPI). Mestre


em Letras/Estudos Literários (UFPI). Especialista em Língua
Inglesa (FLATED). Especialista em Língua Portuguesa
(FLATED). Graduado em Letras-Língua Portuguesa e
Literaturas (UEMA) e Letras-Língua Inglesa (UNITINS).
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Maranhão (IFMA). Membro do Grupo de
Pesquisa Linguagens, Cultura e Ensino: o uso da língua na
formação técnica e tecnológica (IFMA). Membro do Grupo de
Pesquisa Ensino-Aprendizagem de Línguas e Literaturas nos
Institutos Federais (IFMA).

Jayra Barros Medeiros

Doutoranda em História do Brasil (UFPI). Mestra em


História do Brasil (UFPI). Especialista em História Cultural
(UFPI). Graduada em História (UESPI). Professora da
Secretaria Municipal de Educação de Teresina (SEMEC).

206
Patrícia de Sousa Santos

Doutora em História (UNISINOS). Mestra em História


do Brasil (UFPI). Graduada em História (UFPI). Professora do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Maranhão (IFMA), Campus São João dos Patos.

Roseilda Maria da Silva

Doutoranda em História (UNISINOS). Mestra em


Ciências Sociais (UFCG). Especialista em História, Arte e
Cultura (UEPG). Especialista em Saúde da Família (FIP).
Graduada em História (UFCG) e Serviço Social (UEPB).
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Paraná (IFPR), Campus Telêmaco Borba.

Vicencia Rozilda Gomes Pinheiro

Doutoranda em História (UNISINOS). Mestra em


História do Brasil (UFPI). Graduada em História (UESPI).
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Maranhão (IFMA), Campus Imperatriz.

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