Aimee Semple McPherson - Obra

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O legado de uma pioneira: Aimee Semple McPherson, a cura

divina e seus desdobramentos no subcampo religioso


pentecostal brasileiro1

Legacy of a pioneer: Aimee Semple McPherson, divine healing and its


developments in the Brazilian Pentecostal religious subfield

Marcelo Lopes*

Resumo
O presente texto pretende lançar luz sobre a fundadora da Igreja do Evangelho
Quadrangular – Aimee Semple McPherson – desde uma perspectiva da Ciência da
Religião. Para tanto, colocamos sob o escrutínio sua história e sua experiência religiosa.
Além disso, o texto aborda sinteticamente o papel da cura divina na Igreja Quadrangular
e como esta denominação influenciou o subcampo religioso pentecostal brasileiro. Por
fim, lançamos algumas problematizações e provocações cujo fito é o de ensejar novas
abordagens sobre a temática ora em tela, que julgamos deveras significativa.
Palavras-chave: Aimee McPherson. Cura divina. Pentecostalismo.

Abstract
This paper aims to shed light on the founder of the Foursquare Church - Aimee Semple
McPherson - from the perspective of the Science of Religion. For this, we must put under
the scrutiny your history and religious experience. In addition, the text briefly discusses
the role of divine healing in the Foursquare Church, and how this denomination
influenced the Brazilian Pentecostal religious subfield. Finally, we launched some
problematizations and provocations whose aim is to give rise to new approaches to the
subject now under the screen, which we consider truly significant.
Keywords: Aimee McPherson. Divine healing. Pentecostalism.

__________________________

Considerações iniciais

Aimee Semple McPherson foi uma personagem deveras significativa para a


história do movimento pentecostal. Dizemos isso não somente em função da
abrangência internacional que o Evangelho Quadrangular alcançou, nem
somente de sua especificidade ministerial, isto é, a cura divina2, mas, sobretudo,
por ter sido a única mulher fundadora de uma denominação pentecostal de
segunda onda (Freston, 1994) e, por isso mesmo, uma pioneira. Portanto,

*Doutorando em Ciência da Religião (Religião, Sociedade e Cultura) pela Universidade Federal de


Juiz de Fora. Integrante do Grupo de pesquisa NEPROTES (Núcleo de Estudos em Protestantismo e
Teologias — UFJF/CNPq). E-mail para contato: [email protected].

PLURA, Revista de Estudos de Religião, ISSN 2179-0019, vol. 6, nº 1, 2015, p. 74-99.


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pensamos que é assaz relevante lançar luz sobre essa importante personagem do
movimento pentecostal, especialmente do pentecostalismo de cura divina.

1. Antes, um pouco de história sobre a cura...

Segundo o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, ―nenhuma civilização até hoje


pôde passar sem gente que curasse‖ (2001, p. 35). Tomando por base tal
declaração, pode-se imaginar que a cura teve e ainda tem abissal importância
para as diversas formas de religiões e religiosidades.

Sob este lócus, parece-nos bem sedimentada a noção de que a religião está
intrinsecamente relacionada às mais viscerais necessidades humanas, desde as
orações e oferendas por uma boa colheita, até a percepção e perplexidade ante a
finitude da vida, bem como a decorrente incerteza do post mortem. Portanto,

desde suas primeiras origens, o homem é religioso. Os cultos


tornaram e tornam possível interpretar os mistérios da vida e da
morte. Desde os tempos mais remotos o homem busca felicidade,
salvação e cura (Terrin apud Lopes, 2014a, p. 301-302, grifo
nosso).

A tradição cristã, herdeira da judaica, de igual modo teve em alta conta a


cura divina. Adentrando no assunto propriamente dito, da nominação tradição
judaico-cristã se pode depreender, de imediato, a relevância das influências do
judaísmo na religião cristã. Nesse sentido, convém relembrar que o movimento de
Jesus ou protocristianismo3 iniciou-se no seio do judaísmo helenístico, e, pelo
fato de Jesus ter sido judeu, bem como quase todos os seus discípulos, seria
praticamente impossível que ―a seita dos Nazarenos‖ (Bíblia TEB, Atos dos
apóstolos 24.5) não fosse permeada de concepções judaicas. Se assim ocorreu,
parece bem plausível apontar alguns aspectos sobre a concepção da cura divina
daquele judaísmo.

Não seria novidade dizer que a cosmovisão religiosa judaica era totalizante
e, dessa forma, tanto a política quanto a medicina, por exemplo, estavam sujeitas
aos preceitos do Tanach, isto é, da literatura sagrada hebraica. Prova disso é que
era o sacerdote, e não o médico, o indivíduo legalmente capaz de proceder ao
diagnóstico e tratamento da lepra, bem como a exarar a sentença de isolamento
social nos casos em que a doença não fosse sanada (Bíblia TEB, Levítico 13-14).

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O judaísmo antigo associava, portanto, tanto as doenças quanto a cura


delas a causas espirituais. Assim, não foi sem motivo que o autor deuteronômico
vinculou a infelicidade e a maldição ao afastamento e à quebra da aliança com
Deus, conforme se pode perceber:

Maldito serás ao chegar e ao sair. O Senhor te enviará desgraça,


pânico e ameaças em todos os teus empreendimentos, até que
sejas exterminado e de repente desapareças, por causa do mal
que terás feito ao me abandonar. O Senhor fará pegar uma peste
que acabará por te eliminar da terra em cuja posse estarás
entrando. O Senhor te fará definhar, ter febre, inflamação,
ardências, seca, ferrugem e fungo, que te perseguirão até que
desapareças (Bíblia TEB, Deuteronômio 28. 19-21).

Destarte, não é difícil entender o porquê da doença ter sido encarada como
forma punitiva e até mesmo pedagógica num universo religioso para o qual a
ordem do mundo era regida por uma inteligência de autoridade acima da
humana (Guerra, 2011, p. 77). Dessa forma, o Deus de Israel era,
simultaneamente, fonte de doença, mas também de cura. Na realidade, mal ou
bem dependeriam, a fortiori, da fidelidade e observância do devoto às leis de
Deus: ―Se ouvires atentamente a voz do Senhor, teu Deus, se fizeres o que é
direito aos seus olhos, se prestares atenção aos seus mandamentos, se
guardares todos os seus decretos, não te infligirei nenhuma das moléstias que
infligi ao Egito, pois eu sou o Senhor, que te curo‖ (Bíblia TEB, Êxodo 15.26, grifo
nosso).

Por seu turno, o movimento de Jesus, segundo John Dominic Crossan,


tinha por escopo a implantação do Reino de Deus de forma imanente. Nesse
objetivo, parece prevalecer em seu ministério uma dupla lógica: a da
mutualidade da cura e da comensalidade, de forma que

Jesus não tinha somente uma visão ou uma teoria, mas uma
práxis e um programa – e um programa não somente para ele,
mas para outros (as) também. Que foi isso? Basicamente, foi o
seguinte: curar os doentes, comer com tais pessoas a quem se
curou e anunciar a presença do Reino naquela mutualidade de
vida. Pode-se perceber esse programa comunitário funcionando
em textos como Mc 6,7-13 e Lc 9,1-6 ou Mt 10,5-14 e Lc 10,1-11
(Crossan, 2009a, p. 25, grifo nosso).

A julgar o movimento de Jesus por esse prisma, sobretudo na grande


comissão, quando por ocasião de sua ascensão delegou aos discípulos a tarefa de

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continuar sua obra integralmente, percebe-se de forma muito clara esse


importante aspecto de seu ministério que deveria ser perenizado, como se pode
perceber no texto bíblico:

E lhes disse: ‗Ide pelo mundo inteiro, proclamai o evangelho a


todas as criaturas. Quem crer e for batizado será salvo, quem não
crer será condenado. E eis os sinais que acompanharão os que
houverem crido: em meu nome, expulsarão os demônios, falarão
novas línguas, pegarão serpentes com as mãos e, se beberem
algum veneno mortal, isto não lhes causará mal algum; imporão
as mãos a doentes e estes serão curados’. Então, o Senhor Jesus,
depois de ter falado, foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de
Deus (Bíblia TEB, Marcos 16.15-19, grifo nosso).

Durante todo o ministério de Jesus a cura foi um carisma deveras


significativo. Ademais, as curas tinham um viés legitimador, pois ―como atestado
inconteste de investidura divina o pregador realizava sinais: curava e exorcizava
espíritos impuros‖ (Justi, 2010). Sublinhe-se ainda que no processo de
burocratização da Seita dos Nazarenos, o carisma pessoal de Jesus, portanto,
passou aos seus discípulos e mais tarde à instituição igreja, tornando-se um
carisma institucional em termos weberianos4 (2000).

Assim, o carisma da cura sempre perpassou a história da igreja cristã.


Mas não seria possível, dentro dos limites deste trabalho, fazer um apanhado
histórico que dê conta de abarcar a toda a história da cura no cristianismo. No
entanto, podemos assinalar que sua importância variou muito, dependendo da
época e do local. Outro aspecto digno de nota é o fato de que os movimentos de
avivamento espiritual ocorridos dentro do protestantismo norte-americano nos
séculos XVIII e XIX deram novo fôlego a esse carisma. E mais, na verdade
prepararam o terreno para que a cura divina pudesse ter papel de não somenos
importância para o pentecostalismo no século XX. Feita essa visada inicial
panorâmica e propedêutica, passemos ao assunto propriamente dito.

2. Aimee: uma pioneira

Desde logo é preciso salientar que, neste ensaio, além de textos


acadêmicos, utilizamos também algumas fontes primárias da própria instituição,
qual seja, da Igreja do Evangelho Quadrangular. Por isso, cumpre aclarar aqui o
tratamento que foi dado a essas histórias oficiais. Nesse sentido, ora delas foram

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extraídas informações pontuais sobre fatos positivos, como datas, nomes, locais,
acontecimentos, etc.; ora, a partir delas, procedemos a algumas reflexões e
problematizações sobre as memórias ali construídas.

Feita essa ressalva inicial, pode-se afirmar que a Igreja do Evangelho


Quadrangular foi um movimento de cura divina por excelência em seus
primórdios. Diz-se isso com base em sua própria história que, nesse período,
quase se confunde com a biografia de sua fundadora, a bela jovem canadense de
origem metodista: Aimee Kennedy.

Figura 1 - A jovem Amiee. Disponível em:


<http://www.quadrangularbrasil.com.br/quadrangularbra
sil/>. Acesso em: 11 jan. 2013.

A propósito de sua biografia, também é digno de nota o fato de que há


certa dificuldade de se classificar Aimee na tipologia weberiana (2000) dos
especialistas do sagrado. Ora, Aimee não era ordenada na Igreja Metodista; logo,
não se encaixaria como sacerdote. Também não se pode dizer que o tipo ideal do
mago lhe seja pertinente, sobretudo pela pertença protestante, embora quase
nominal apenas. Por fim, como profeta, Aimee, ao menos inicialmente, não

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causou ruptura institucional em sua denominação e tampouco tinha carisma


pessoal.

Sua experiência pentecostal com o primeiro esposo, Robert Semple, fez


com que Aimee o seguisse no campo missionário: até então ela era apenas uma
coadjuvante. Todavia, com a morte de Robert, como veremos mais adiante, Aimee
passou a protagonizar seu próprio movimento. Nesse sentido, desse momento em
diante, pode-se com relativa coerência vinculá-la ao tipo ideal weberiano do
profeta, isto porque ―por ‗profeta‘ queremos entender aqui o portador de um
carisma puramente pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma
doutrina religiosa ou um mandado divino‖ (Weber, 2000, p. 303). Nesse caso, a
doutrina era o Evangelho Quadrangular e o mandado era universalizar o
movimento de cura divina.

De fato, pode-se dizer que se tratava de um movimento de cura divina por


excelência. Não só porque este era o centro de sua pregação, ou pela experiência
pessoal de Aimee com a cura divina, mas acima de tudo porque, curiosamente,
Aimee pregava a cura divina antes mesmo de ter recebido por revelação a
mensagem do Evangelho Quadrangular em 1922, o que ocorreu muitos anos
após a sua conversão (1908) e o subsequente início de seu ministério de cura
divina (Scotti, 2010).

A propósito, aquela tendência intrínseca do homo religiosus de retornar à


hierofania primordial (Eliade, 1998, p. 338), sobretudo com a finalidade de
narrar um mito arquetípico – que, aliás, neste caso específico, buscou legitimá-
lo, torná-lo palatável teologicamente –, cristalizou-se na doutrina quadrangular.

Nesse sentido, a IEQ não parece configurar exceção, pois sua teologia
confessional revela, de maneira peremptória, o constructo mítico que visa
fundamentar o Evangelho Quadrangular. Assim, foi preciso revestir o discurso
com um caráter sagrado, que fosse além, que ultrapassasse a concretude da
experiência humana individual, conforme expresso na seguinte assertiva da
historiadora da denominação Ignez Terezina Rech Scotti: ―a mensagem
quadrangular, como já dito antes, não foi criada por Aimee, fundadora da Igreja
do Evangelho Quadrangular. Ela, na verdade, remonta aos dias do Antigo
Testamento‖ (2010, p. 17).

Seus apologistas se utilizam, neste fito, inclusive de métodos


hermenêuticos pouco convencionais ou ortodoxos, segundo expresso neste

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discurso notadamente apologético:

Você pode hesitar em chamar Isaías de pregador quadrangular,


mas o profeta era certamente um arauto do evangelho
quadrangular! Isaías profetizou sobre Jesus Cristo como Salvador
e Operador de Curas: ‗Mas ele foi traspassado por nossas
transgressões, e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que
nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras somos
sarados‘ (Is 53.5). O Novo Testamento aplica, justamente, esta
profecia a Jesus, como Salvador e Operador de Curas (cf. I Pe
2.24) Isaías também predisse os fenômenos de Atos 2.4 e o
batismo no Espírito Santo5: ‗Pelo que por lábios gaguejantes e por
língua estranha falará o Senhor a este povo‘ (Is 28. 11) (Cox apud
Scotti, 2010, p. 17).

Este construto mítico parece ser bem mais que apenas uma tentativa de
formulação teológica cuja hermenêutica carece de cientificidade à luz de uma
teologia protestante ortodoxa, por exemplo. Esta é a base sobre a qual as pessoas
encontram seu mito primordial com uma roupagem teológica, isto é, sancionada
pela instituição, e é a partir daí que elas fundamentam e buscam viver sua
experiência religiosa.

Mormente no pentecostalismo, no qual a experiência religiosa se quer


eminentemente epidérmica, emocional,

um mito, assim entendido, tem a ver com realidades vivas. As


pessoas assumem um comportamento mítico e, através deste,
atestam sua realidade, não definida concretamente, mas captada
através do mito, no que se revela uma estrutura inacessível à
compreensão empírico-racionalista. Pela re-atualização do mito,
as pessoas explicam o mundo e o representam simbolicamente
(Huff Júnior, 2006, p. 19).

Foi justamente a partir dessa ―realidade viva‖ que Aimee, através de suas
experiências pessoais com a cura divina, deu início a um movimento de tendas
itinerantes, nas quais ministrava a cura divina, e que mais tarde originou a
International Church of The Four Square Gospel.

3. No início, um sagrado dócil... mas que logo se tornou selvagem6

Embora até o período de sua adolescência Aimee tenha frequentado a


Igreja Metodista, segundo crônica oficial da IEQ,

seu interesse e gosto por outras atividades – cinema, patinação no


gelo, romances e bailes – acabaram afastando-a dos caminhos do

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Senhor. No colégio, fascinou-se pela teoria da evolução, de


Darwin, passando a duvidar de suas crenças e, até, de Deus.
Viveu momentos de muita angústia neste período, pois magoara
sua mãe com sua descrença. Ela tinha dezessete anos na época
(Scotti, 2010, p. 30).

Contudo, não tardaria para que Aimee se relacionasse com o que mudaria
completamente sua vida: a fé pentecostal.

Seu primeiro contato com o pentecostalismo foi numa reunião presidida


por Robert Semple, que mais tarde veio a ser seu primeiro esposo. Naquela
reunião Aimee também foi impactada pelos dons espirituais pentecostais de uma
maneira bastante pessoal. Num dado momento da reunião, Semple parou de
falar inglês e, com os olhos fechados e mãos estendidas na direção de Aimee,
começou a falar em línguas estranhas7. Embora não tenha havido interpretação,
Aimee teve a plena convicção de que Deus falara com ela naquela hora
(Evangelho Quadrangular, p. 4-5).

Após isso, Aimee iniciou sua busca pela própria experiência pentecostal,
de modo que se aplicava constantemente em longas jornadas de oração pelo
batismo no Espírito Santo. Nesse ínterim, logrou êxito nessa tarefa, mas antes de
obter o carisma glossolal, teve uma visão na qual estava subentendido seu
chamamento para o ministério de pregação do Evangelho, conforme indica o
texto do historiador oficial da IEQ, o Rev. Júlio de Oliveira Rosa:

Com os olhos fechados, Aimee viu o mundo como se fosse vasto


campo de trigo, já maduro para a ceifa; via o trigo se transformar
em rostos humanos e os ramos em mãos suplicantes. E sobre
essa visão podia ver as palavras de Cristo: ―Os campos já estão
brancos para a ceifa. A seara é realmente grande, mas poucos os
ceifeiros. Rogai pois ao Senhor da seara para que mande ceifeiros
para sua seara.‖ Então o Senhor colocou na sua mão uma foice,
dizendo: ―Vai recolher o trigo, mas lembra-te que a foice te é dada
para cortar o trigo. Muitos ceifeiros usam-na corretamente apenas
poucas horas, e depois começam a cortar e marcar seus colegas.
Aplica-te à tarefa que está perante ti; corta somente o trigo e
recolhe os molhos preciosos‖ (1978, p. 273-274).

No entanto, a especificidade ministerial de Aimee, e que posteriormente


seria o chamariz e apanágio da Cruzada Nacional de Evangelização no Brasil – a
cura divina –, ainda não lhe tinha sido desvelada. Foi numa outra experiência
pentecostal que Aimee, então senhora Semple, teve contato com a cura divina.

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Já trabalhando na evangelização juntamente com seu esposo Robert,


Aimee diversificou seu carismatismo, pois ―nesse tempo ela recebeu também o
dom de interpretar as línguas estranhas‖ (Rosa, 1978, p. 275). É significativo
ressaltar que, curiosamente, à semelhança de Francescon, Vingren e Berg,
pioneiros na implantação do pentecostalismo no Brasil, Aimee também teve uma
experiência pentecostal com o Rev. William H. Durham, com o qual se deu seu
chamamento específico para trabalhar com a cura divina:

Certa ocasião, quando Aimee assistia a uma série de conferências


dirigidas pelo Rev. Durham, Aimee sofreu um acidente caindo de
uma escadaria. Fraturou um osso do pé e rompeu quatro
ligamentos, fazendo com que os dedos ficassem encolhidos.
Mesmo com o gesso após o curativo, o médico não deu muita
esperança de cura; talvez ela ficasse com os dedos encolhidos.
Sentindo muita dor, e com o pé inchado e já preto, ela foi assistir
a um culto do mesmo pastor. Não suportando mais a dor, decidiu
voltar para seu quarto, a um quarteirão do salão de cultos. Já no
seu quarto, pronta para deitar-se e descansar, ouviu uma voz lhe
dizendo: ―Se tu embrulhares o sapato do pé fraturado, voltares ao
culto, e pedires ao Rev. Durham para orar por ti, levando contigo
o sapato para calçá-lo na volta, eu curá-lo-ei.‖
Um tanto duvidosa a princípio, mas dada a insistência daquela
voz em seu coração, dirigiu-se ao salão apoiada numa muleta.
Sentindo dores horríveis por haver tropeçado com a muleta,
contou aos irmãos o que Deus tinha falado. Em seguida, o Rev.
Durham colocou suas mãos sobre o seu tornozelo e disse: ―No
nome de Jesus receba a cura.‖ Sentindo que fora curada no
mesmo instante, o gesso foi tirado e de um salto colocou-se em pé
e começou a andar, louvando a Deus. Desde aquele momento, ela
teve fé e poder de Deus para orar pelos enfermos também (Rosa,
1978, p. 275, grifo nosso).

A experiência de Aimee parece encontrar esteio na proposição eliadiana


acerca do contato com o sagrado: ―Quando o sagrado se manifesta por uma
hierofania qualquer, não só há rotura na homogeneidade do espaço, como
também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não-realidade da
imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o
mundo” (Eliade, 2008, p. 26, grifo nosso). De fato, para Aimee, a partir daquele
momento fundou-se um novo mundo 8 no qual Jesus Cristo poderia curar
efetivamente quaisquer doenças; enfim, fundava-se o mundo da cura divina.

A partir dessa experiência, o casal Semple sentiu-se vocacionado para


fazer missões na China. Mas, lá, Robert foi acometido de malária e veio a falecer.
Aimee voltou para os Estados Unidos e anos depois casou-se pela segunda vez,
com Harold Stewart McPherson, adotando o nome de Aimee Semple McPherson,

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como é comumente conhecida. No entanto, o segundo casamento e a vida


doméstica no cuidado dos dois filhos, Roberta do primeiro casamento e Rolf do
segundo, além do marido, tomou todo o tempo de Aimee, pelo que não lhe
sobrava para seu ministério.

Parecia que a chama da cura divina estava se apagando.

Algo, porém começou a incomodar Aimee, pois ela tinha cessado


de pregar para cuidar exclusivamente da família. Ela sentia que
Deus continuava a falar em seu coração, admoestando-a a voltar
ao seu ministério. Isso fez com que ela acabasse numa forte
depressão. Sua saúde foi se tornando cada vez mais debilitada.
Passou por várias cirurgias, sempre clamando e esperando que
Deus a curasse. O que vinha em resposta à sua mente, no
entanto, era: ―Tu irás? Pregarás a Palavra?‖. Sua luta entre fazer a
vontade de Deus e cuidar de sua família continuou até que ela
quase chegou à morte. Numa madrugada, enquanto estava no
leito de um hospital entre a vida e a morte, ela ouviu novamente a
voz do Senhor que dizia: ―Agora, tu irás?‖ Naquele instante, ela
reuniu todas as forças e respondeu: ―Sim, Senhor. Eu irei‖.
Sua resposta em obediência ao novo chamado de Deus para sua
vida devolveu-lhe a saúde e ela entendeu que não se pode fugir à
vontade do Senhor. A partir dali, não cessou de pregar o
evangelho poderoso de Cristo (Scotti, 2010, p. 31-32).

Os relatos das experiências de Aimee com a cura divina não se findaram


ali, antes, desse dia em diante não só continuaria sendo curada em várias outras
ocasiões, mas também seria ―usada por Deus com experiências de cura divina‖
(Rosa, 1978, p. 277) para o mundo. Foi a partir dessa ―chancela‖ para o seu
chamado não só para pregar o evangelho, mas propagar a cura divina, que Aimee
deu continuidade ao seu ministério evangelístico e, com mais ênfase, ao da cura
divina.

Em 1915 Aimee deu o pontapé inicial em suas campanhas na cidade de


Mount Forest. Foi num salão de reuniões alugado para tal que ocorreram os
primeiros cultos. Contudo, foi através das tendas de lona que o movimento de
cura divina se espalhou pelos EUA e pelo mundo, e a primeira tenda comprada
por Aimee com as ofertas recolhidas nesses cultos serviu de modelo de como os
missionários propagariam a fé quadrangular nos locais de missão.

Mesmo já pregando a cura divina conforme outrora mencionado, foi numa


dessas campanhas que se relata ter Aimee recebido a mensagem do Evangelho
Quadrangular, que ajudaria a transformar o movimento de tendas de lona, cuja
mensagem central era a de cura divina, em Igreja do Evangelho Quadrangular

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(International Church of The Four Square Gospel).

Em 1922,

Aimee se encontrava na cidade de Oakland, na Califórnia. Ela


pregava, como era de seu costume, em uma tenda de lona que
comportava cerca de oito mil pessoas. O número de assistentes,
no entanto, era bem maior, pois uma multidão a assistia do lado
de fora. O texto usado por ela naquela noite encontra-se em
Ezequiel 1.1-28. Nele, o profeta descreve a visão de um ser de
quatro rostos, semelhante ao homem, porém com pés de bezerro
(Scotti, 2010, p. 34).

Doutrinariamente,

a Igreja do Evangelho Quadrangular (Cruzada Nacional de


Evangelização), (...), tem como base teológica as especializações de
Jesus: salvador, batizante com o Espírito Santo, o grande médico
e o rei que há de voltar. Embora na doutrina da Igreja essas
qualidades sejam diferentes ângulos do ministério de Jesus, na
realidade constituem verdadeiras especializações ou até mesmo
configuram distintas divindades, vez que algumas delas, como o
de batizante com o Espírito Santo e, principalmente, o de ―grande
médico‖, são privilegiados na prática religiosa (Mendonça, 2008,
p. 68-69).

O que Mendonça quis explicar, dito de outra maneira, é que houve uma
associação de algumas características ministeriais de Jesus com as faces do ser
enigmático de Ezequiel, de modo que, nessa perspectiva, o rosto de homem
simboliza Jesus como salvador; o rosto de leão, Jesus como o batizador com o
Espírito santo; o rosto de águia, Jesus como o rei que há de vir; e, finalmente, o
rosto de boi, como não poderia deixar de ser, Jesus como o grande médico divino.

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Figura 2. Um dos símbolos do Evangelho Quadrangular.


Disponível em:
<http://www.quadrangular.com.br/pagina.php?nome_li
nk=Símbolos>. Acesso em: 20 jan. 2013.

Após ter recebido a revelação da mensagem Quadrangular, Aimee,


impulsionada por esta nova bandeira, continuou durante os vinte e dois anos
seguintes a propagar tal fé. Nesse período, seu ministério foi deveras profícuo,
conseguindo, por exemplo, a primeira rádio de propriedade de uma igreja
evangélica nos EUA – a Rádio KFSG – e construiu o Angelus Temple, sede
internacional da IEQ.

Em 26 de setembro de 1944, Aimee, com a saúde já bastante debilitada,


faleceu após ter pregado pela última vez, coincidentemente, na mesma cidade de
Oakland onde, vinte e dois anos antes, recebera a revelação da mensagem
Quadrangular. Seu filho Rolf K. McPherson, a partir dali, assumiu a liderança da
igreja que continuou se expandindo, inclusive internacionalmente.

4. Um grande legado: a cura divina e a IEQ

A mensagem Quadrangular chegou ao Brasil no ano de 1951, com o


trabalho missionário do Pr. Harold Edwin Willians, que fundou na cidade de São
João da Boa Vista, São Paulo, a primeira Igreja do Evangelho Quadrangular, ―sob
o nome de ‗Igreja Evangélica do Brasil‘‖ (Rosa, 1978, p. 251).

Mas o trabalho ficou restrito àquela cidade por dois anos. Seu
desenvolvimento deu-se somente a partir de 1953 quando, a convite de Willians,

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o pregador de cura divina Raymond Boatright iniciou campanhas de cura divina


com as famosas tendas de lona aos moldes de Aimee, sua precursora. ―Dessas
campanhas surgiria a Cruzada Nacional de Evangelização‖ (Rosa, 1978, p. 251),
embrião da Igreja do Evangelho Quadrangular no Brasil.

Assim, a IEQ se expandiu no Brasil, inicialmente, não com a doutrina


Quadrangular ―ortodoxa‖ propriamente dita, já consolidada nos EUA, mas
através da hipertrofia da cura divina, a ponto do historiador da IEQ, o Rev. Julio
O. Rosa queixar-se acerca disso, conforme ele mesmo registrou:

Observando hoje a proliferação de movimentos ditos da ―cura


divina‖, digo com pesar que nem de longe se parecem, pelo menos
alguns deles, com os fundamentos da IGREJA DO EVANGELHO
QUADRANGULAR, ou sejam [sic!]: SALVAÇÃO DA ALMA,
BATISMO COM O ESPÍRITO SANTO, CURA DIVINA, SEGUNDA
VINDA DE CRISTO. Tanto as conferências públicas, as reuniões,
como os próprios programas de rádio estão cheios de absurdos e
distorções do que era originalmente, o idealismo de Aimee Semple
McPherson, a fundadora da IGREJA DO EVANGELHO
QUADRANGULAR. É claro que estamos cientes de que muitos
pregadores da própria Igreja Quadrangular têm se excedido em
práticas que absolutamente não enquadradas nas diretrizes da
Igreja; e diga-se de passagem, a Igreja do Evangelho
Quadrangular é bastante liberal na aplicação de seus princípios,
entretanto não ensinou jamais uma pregação unilateral. Muitos
pregadores estão pregando só CURA DIVINA e EXPULSÃO DE
DEMÔNIOS, mantendo seus ouvintes anos a fio sub-alimentados
espiritualmente, porque não recebem doutrinação completa (Rosa,
1978, p. 14, grifo nosso).

É ressaltado, assim, o papel protagônico exercido pela cura divina no


processo de implantação da IEQ no Brasil, muito embora atualmente a prática
da cura não seja

mais rotina, cedendo lugar a exercícios residuais de testemunhos


pessoais públicos da intervenção divina no cotidiano dos crentes.
Sem análise mais aprofundada, parece que velhas tradições
milenaristas protestantes, ao apontarem para um futuro ―sem
males‖ pela intervenção divina na história, afastaram para
segundo plano a prática ostensiva da cura divina (Mendonça,
2008, p. 143).

Inicialmente,

o movimento de Willians e Boatrigth tornou-se conhecido por


Cruzada Nacional de Evangelização e fez grande furor com suas
tendas de lona de 1953 a 1960, inaugurando o período dos
milagres, isto é, a ―repetição dos milagres de Cristo‖, como
afirmavam seus líderes (Mendonça, 2008, p. 146).

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Figura 3. Foto de uma tenda da Cruzada Nacional de Evangelização. Disponível em:


<http://www.quadrangularbrasil.com/images/Raymond_Boatrigth/Raymond_Boatrigth%200
1.jpg>. Acesso em: 20 jan. 2013.

Sobre a importância das tendas de lona nesse período, mas, sobretudo


sobre sua função simbólica, pode-se inferir, numa perspectiva eliadiana, que elas
configuram um local sagrado, e sagrado por excelência, pois era ali que ele se
manifestava sobrenaturalmente através das curas. Logo, lá ocorria uma rotura
de nível, pois o espaço não era homogêneo; pode-se dizer que lá era o verdadeiro
mundo, o centro do mundo religioso.

Se assim foi, é crível afirmar que as tendas da Cruzada Nacional de


Evangelização eram lugares qualitativamente diferenciados, na perspectiva do
nativo, evidentemente. Assim, este

lugar sagrado constitui uma rotura na homogeneidade do espaço;


(b) essa rotura é simbolizada por uma ―abertura‖, pela qual se
tornou possível a passagem de uma região cósmica a outra (do
Céu à Terra e vice-versa; da Terra para o mundo inferior); (c) a
comunicação com o Céu é expressa indiferentemente por certo
número de imagens referentes todas elas ao Axis mundi: pilar (cf. a
universalis columna), escada (cf. a escada de Jacó), montanha,

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árvore, cipós etc.; (d) em torno desse eixo cósmico estende-se o


―Mundo‖ (―nosso mundo‖) – logo, o eixo encontra-se ―ao meio‖, no
―umbigo da Terra‖, é o Centro do Mundo (Eliade, 2008, p. 38).

Sob este locus, se uma montanha, um cipó ou uma escada podem ser
considerados como Axis mundi, por que não uma tenda também não poderia ser?
Assim, a tenda era o ponto de rotura no qual o sagrado não só se manifestava,
mas também proporcionava cura.

Inclusive, pode-se ir um pouco mais além nesse sentido e traçar um


paralelo com a narrativa veterotestamentária, isto é, com a tenda da congregação
ou tabernáculo de Moisés. E isto em dois sentidos, quais sejam: primeiro, como
lugar da manifestação de Deus com sinais e prodígios; e, em segundo, como o
sagrado itinerante, errante nesta terra, no mundo profano dos homens,
sacralizando o local onde estacionasse, fazendo com que este último logo se
tornasse um imago mundi (Eliade, 2008). Paralelamente, no entanto, quando as
tendas viram templos, perdem sua mobilidade e se rotinizam, o sagrado é
também domesticado e os milagres escasseiam. Foi assim com a tenda de
Moisés, que tinha a nuvem de dia e a coluna de fogo à noite, mas, ao tornar-se
templo, tal não mais ocorria.

Naturalmente, como ocorre com praticamente todos os movimentos


religiosos, o sagrado selvagem desse movimento de cura divina logo tendeu a se
rotinizar, ou como disse Roger Bastide, à ―domesticação do sagrado‖ (2006, p.
252). Este processo, em termos bastideanos, seria a domesticação do sagrado
selvagem, mas como bem lembra Mendonça, baseando-se no próprio Bastide,
essa domesticação,

ao contrário do que se pode pensar, tem um aspecto positivo,


pois que assegura sua continuidade sob a forma de uma
comemoração, de uma ―lembrança‖ ensurdecida, de uma
memória ou tradição. Por outro lado, porém, a instituição,
através de sua liturgia burocratizada, impede que o sagrado volte
em inovações perigosas, e também com outro discurso diferente
do aceito pela ortodoxia. A liturgia padrão, assim como o discurso
certo da ortodoxia, aprisiona o sagrado, transformando-o de
selvagem em dominado (Mendonça, 2004, p. 31).

Desse modo,

a ―selvageria‖ do sagrado é sempre limitada ao tempo, um tempo


sagrado que logo cede lugar ao tempo profano, isto é, o tempo do
sagrado preso aos cânones defendidos pelos seus sacerdotes

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religiosos (...), em suma, a ordem provém do sagrado dominado


(Mendonça, 2007, p. 25).

Disso se depreende que a cura divina, enquanto ―selvageria‖ sagrada da


Cruzada Nacional de Evangelização, no Brasil, não resistiu ao processo de
domesticação do movimento, isto é, à burocratização que culminou na formação
da Igreja do Evangelho Quadrangular. Mas não antes de influenciar
significativamente as igrejas de segunda onda do pentecostalismo brasileiro, de
modo que não seria errôneo afirmar que a IEQ foi o ícone e embrião dessa vaga
pentecostal nacional.

5. A IEQ e a segunda onda: influência, inspiração e imposição?

Nesta seção nos propomos a iluminar a abrangência do legado que,


pensamos, a IEQ teve no subcampo religioso pentecostal brasileiro. Para tanto
nos utilizaremos de três substantivos explicitados no título da seção.

Em primeiro lugar, influência tem que ver com a capacidade de ocasionar


um resultado sobre algo ou alguém, ou seja, ação que uma pessoa ou coisa
exerce sobre outra. Em segundo lugar, inspiração tem que ver com fazer nascer o
entusiasmo criador ou ao menos proporcioná-lo, e, ainda, ensejar novas ideias.
Por último, imposição tem que ver com ação de determinar, estabelecer por
pressão das circunstâncias. Assim, correlacionaremos esses substantivos às
igrejas da segunda onda pentecostal com a IEQ.

O movimento de cura divina através das tendas de lona se propagou


paulatinamente por praticamente todo Brasil, promovendo amplo alcance ao
pentecostalismo de segunda onda, representado pelo êxito da IEQ em sua
empresa missionária. Sua influência inicial deu-se dentro do gradiente
protestante. Objetivamente, a Cruzada começou, no princípio da década de
cinquenta, seus trabalhos numa Igreja Presbiteriana Independente, ou seja,
pregando o ―Evangelho completo‖ a já evangélicos (Lopes, 2014b, p. 101). Como
consequência disso, segundo Paul Freston, ―boa parte da liderança nacional [da
IEQ] era oriunda da IPI e da Igreja Metodista‖ (1993, p. 83).

Este, todavia, não foi seu único campo de influência, pois não tardaria
para uma cisão da IEQ dar ensejo à diversificação da segunda vaga pentecostal.

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Segundo Ricardo Mariano, no rastro das campanhas de cura divina da Cruzada


surgiram as igrejas Brasil para Cristo (São Paulo, 1955), Deus é Amor (São
Paulo, 1962), Casa da Bênção (Belo Horizonte, 1964) e várias outras de menor
porte (Mariano, 1999).

Inicialmente, nos ateremos à ―cisão nacionalista O Brasil para Cristo [que]


roubou as multidões e as atenções da mídia‖ (Freston, 1993, p. 83). O fundador
da igreja O Brasil para Cristo (BPC), foi o ex-operário e diácono da Assembleia de
Deus, Manoel de Mello. Mello teve influência não negligenciável no movimento de
cura divina, pois ―com a chegada das tendas, e impulsionado pela recuperação
de uma doença grave, ligou-se à Cruzada Nacional de Evangelização‖ (Freston,
1994, p. 117).

Contudo, não tardou para que o espírito autônomo e emancipador de


Mello o levasse à cisão com a Cruzada e à fundação da BPC. ―Foi então que,
provavelmente a exemplo dos chilenos que criaram a igreja pentecostal ‗O Chile
para Cristo‘, Mello lançou as bases de sua nova agremiação – ‗O Brasil para
Cristo‘‖ (Rolim, 1985, p. 52).

A BPC foi um sucesso imediato e Mello chegou à fama nacional


com menos de 30 anos de idade. Se a IEQ inovara com tendas,
trazendo a cura divina para fora dos templos, a BPC foi mais
longe, alugando espaços seculares como cinemas, ginásios e
estádios. Já em 1958, enchia o Pacaembu em feriados nacionais,
com a presença de autoridades civis e bandas do Exército
(Freston, 1994, p. 118-119).

Pensamos, assim, que a IEQ influenciou de maneira bastante significativa


essa igreja da segunda onda pentecostal brasileira, qual seja, a BPC. Afirmamos
isso porque a ênfase da BPC também foi a cura divina e muito embora tenha, em
certo sentido, inovado na propagação midiática da fé pentecostal, sua matriz,
notoriamente, foi a IEQ.

O título que demos a esta seção enseja que a IEQ não só influenciou,
também inspirou outras igrejas pentecostais de segunda onda. Uma dessas foi a
Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA). Fundada em 1962 por David Miranda, ―a
IPDA talvez seja a igreja que mais investe no uso do rádio, bem como na posse de
emissoras, gravadoras e estúdios. A cura divina é adaptada para o meio; mas o
vínculo entre rádio e igreja é sempre mantido, o primeiro sendo porta de entrada
para a segunda‖ (Freston, 1994, p. 127).

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Conquanto David Miranda não tenha sofrido uma influência direta do


movimento de tendas como o teve seu congênere Manuel de Mello, certamente
teve uma inspiração naquele movimento para que seu ministério se sobressaísse
justamente pela ênfase na cura divina e, à semelhança da BPC, na ampla difusão
midiática, vedada a difusão televisiva.

Cumpre sublinhar ainda que outros traços da IPDA diferem tanto da IEQ
quanto da BPC, mormente em relação ao seu acentuado sectarismo e legalismo
exacerbado. Como exemplos desses traços podemos citar a expressa proibição de
assistir programas televisivos quaisquer que forem seus conteúdos, a total falta
de colaboração com outras denominações, bem como o ascetismo de condenação
e retirada do mundo, isto é, apatia política e distanciamento de atividades
lúdicas. Todavia, isso não esmaece a inspiração taumatúrgica e midiática da
IPDA. Portanto, no que toca à inspiração, pode-se afirmar que a fundação da
IPDA ―foi uma possibilidade aberta pelo movimento das tendas‖ (Freston, 1994,
p. 129).

As igrejas de segunda onda não se restringem somente a estes dois


exemplos aqui analisados. Mas pensamos que abordar todas as denominações de
segunda onda seria uma tarefa demasiadamente extensa e uma digressão bem
pouco produtiva para o fito a que nos propomos. Portanto, a BPC e a IPDA
parecem dar conta de evidenciar a influência e inspiração que a IEQ teve
enquanto denominação pioneira da segunda onda pentecostal.

Trataremos aqui da última proposta desta seção. Se nos parágrafos


anteriores trabalhamos a questão da influência e inspiração, agora nos ateremos
à imposição. Por imposição entendemos a ação de determinar, estabelecer por
pressão das circunstâncias, e não por força de decreto ou algo que o valha.
Sendo assim, pensamos que a IEQ impôs uma nova forma de ser pentecostal.
Sua ampla utilização da mídia radiofônica e sua preocupação com a cura divina
afetaram não somente as igrejas de segunda onda, mas instaram, por força das
circunstâncias, que a Assembleia de Deus, pertencente a primeira onda
pentecostal, revisse seus conceitos com relação à utilização dessa mídia.

Assim, não foi sem motivo que somente na Convenção Geral das
Assembleias de Deus no Brasil de 1962 que se aprovou a ampla utilização do
rádio na evangelização, bem como o projeto de se ter uma emissora de
abrangência nacional. A primeira discussão sobre o assunto ocorreu na

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convenção de 1937, mas a aprovação deu-se somente vinte anos depois (Daniel,
2004, p. 331). Destacamos, todavia, que algumas igrejas da Assembleia de Deus
9
já se utilizavam da mídia radiofônica antes de sua aprovação formal .

Exceção feita à Congregação Cristã no Brasil, que ainda rechaça o uso de


10
mídias , as demais igrejas não puderam ficar alijadas de um projeto midiático
para fins proselitistas, sob pena de estagnação ou até mesmo perda de fieis. Tal
modernização se impôs como um legado da IEQ no subcampo religioso
pentecostal brasileiro. Pode-se aventar ainda outras contribuições, como a
liderança feminina e a suavização dos usos e costumes.

A cura divina, muito embora com pouco destaque no pentecostalismo de


primeira onda, com a IEQ ganhou relevo e centralidade cúltica, de modo que sua
influência perpassou da segunda para a terceira onda, como veremos a seguir.

6. Para começar a concluir: problematizações

Por fim, mas não menos importante, levanta-se a tese de Mendonça de que
a IEQ, em certo sentido, lançou as bases do neopentecostalismo. ―Pode-se dizer
que a Igreja do Evangelho Quadrangular, embora tipicamente pentecostal,
inseriu em seus fundamentos teológicos a chave do neopentecostalismo‖
(Mendonça, 2008, p. 136). De fato, há ao menos dois indícios que parecem
fundamentar esta tese, um mítico ou teológico e o outro relativo à práxis ou ao
rito.

Em relação à questão teológica, Mendonça afirma que ―seus quatro


fundamentos são: salvação da alma, batismo com o Espírito Santo, cura divina e
segunda vinda de Cristo‖ (Mendonça, 2008, p. 136). Quanto a isto, no
neopentecostalismo parece ter ocorrido mesmo uma síntese teológica com ênfase
em sua utilidade no cotidiano, privilegiando sobretudo o que de mais pragmático
há na doutrina quadrangular: a cura divina.

Assim, a segunda vinda de Cristo parece ter perdido bastante de seu


caráter milenarista e passado à vinda diária para atender as necessidades mais
prementes dos fiéis, ficando a questão de um novo céu e uma nova terra
totalmente em segundo plano. A salvação da alma, por sua vez, segue no mesmo
rumo, isto é, muito menos ligada à escatologia pentecostal tradicional, vinculada
à esperança da vida eterna nos céus, e bem mais pragmática no sentido de salvar

PLURA, Revista de Estudos de Religião, ISSN 2179-0019, vol. 6, nº 1, 2015, p. 74-99.


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o que é preciso no aqui e agora, ou seja, livrar-se das mazelas físicas e


emocionais.

Outra questão decorrente do movimento foi que a cura divina restou


associada, quase que exclusivamente, ao exorcismo, pois a cura passa, na
maioria das vezes, também pela libertação das entidades malignas causadoras
das doenças. Isso, de certo modo, acabou contribuindo para fomentar a prática
da guerra santa cujas entidades das religiões afrobrasileiras se tornaram os
principais alvos (Camurça, 2009). E, por fim, a glossolalia foi praticamente
abolida, perdendo a centralidade que tinha na primeira onda e a importância
secundária no deuteropentecostalismo. Pelo que, nessa terceira onda, falar em
línguas estranhas, isto é, o dom de línguas, parece não dizer muita coisa às
massas ansiosas pela solução de seus problemas imediatos do dia a dia.

Toda esta transformação no arcabouço teológico pentecostal teve


implicações imediatas no âmbito ritual ou litúrgico, pois a práxis cúltica passou
a orbitar em torno da

oferta dos bens de religião. Logo, dependendo do carisma do líder,


numerosos desvalidos, doentes de corpo e alma, desesperados e
desraigados, e mesmo pessoas decepcionadas pela desatenção de
suas próprias Igrejas, vão chegando e engrossando as fileiras
desse cristianismo (Mendonça, 2008, p. 137).

Dessa maneira, o neopentecostalismo, pentecostalismo de terceira onda


ou ainda, como Mendonça gostava de identificá-lo, pentecostalismo autônomo,
de fato tem certo esteio no pentecostalismo do Evangelho Quadrangular,
sobretudo pela prática realmente autônoma, que no neopentecostalismo se
agrava para um sectarismo bastante aguçado, inclusive em relação aos próprios
pentecostais e neopentecostais.

Muito embora não haja uma ligação direta naqueles termos weberianos
para a ruptura do profeta em relação ao sacerdote e a consequente geração de
novos movimentos religiosos, entre as várias denominações neopentecostais – as
mais expressivas são Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Igreja
Internacional da Graça de Deus (IIGD) e a Igreja Mundial do Poder de Deus
(IMPD) –, em relação à IEQ, os argumentos de Mendonça são sobriamente sólidos
para permitir inferir que, sim, as bases do neopentecostalismo talvez tenham
sido lançadas, não propositalmente é claro, pela IEQ.

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Há, todavia, outras perspectivas neste sentido. Paul Freston (1994) e


Ricardo Mariano postulam ser a Igreja de Nova Vida aquela que lançou as bases
do neopentecostalismo:

embora pequena, genealogicamente pertencente ao


deuteropentecostalismo, a Igreja de Nova Vida desempenhou
destacado papel como formadora e provedora de quadros de
liderança das duas maiores igrejas neopentecostais do país:
Universal do Reino de Deus e Internacional da Graça de Deus. De
suas fileiras saíram Edir Macedo, R. R. Soares e Miguel Ângelo. Já
na Nova Vida encontramos de forma embrionária as principais
características do neopentecostalismo: intenso combate ao Diabo,
valorização da prosperidade material mediante a contribuição
financeira, ausência do legalismo em matéria comportamental
(Mariano, 1999, p. 51).

Entretanto, o mesmo Mariano reconhece que ―embora nascida da ‗costela‘


da Nova Vida, a Igreja Universal é seu oposto em matéria de expansão
denominacional e frequência nas manifestações de poder divino e demoníaco na
vida cotidiana dos fiéis‖ (1999, p. 53). Conquanto a tese de Mariano tenha seu
mérito, a de Mendonça também o tem, e com a vantagem de que a IURD se
aproxima da IEQ em termos de expansão e manifestações do poder divino; e,
mais, o fundador da Nova Vida, Robert McAlister, esteve no Brasil pregando ―nas
campanhas de cura divina em tendas de lona da Cruzada Nacional de
Evangelização‖ (Read apud Mariano, 1999, p. 51-52).

Portanto, tanto numa tese quanto noutra, a IEQ, de algum modo, também
deu ensejo à formação do neopentecostalismo. Ademais, há no tempo presente
igrejas neopentecostais como, por exemplo, a IIGD e, sobretudo, a IMPD cujo
apanágio é justamente a cura divina (Lopes, 2014c). Não fosse a ênfase
taumatúrgica da IEQ na segunda onda pentecostal, talvez fosse improvável que
tais igrejas tivessem hoje este usufruto.

Considerações finais

É verossímil que Aimee não pudesse sequer imaginar nem as proporções


nem os desdobramentos que o movimento por ela iniciado tomaria a partir dos
Estados Unidos. Contudo, sua própria biografia não deixa muito a desejar em
termos de fertilidade heurística. O que queremos dizer com isso é que Aimee foi,
simultaneamente, uma mulher à frente do seu tempo, mas também fruto do

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contexto de sua própria época. Na questão de gênero e religião, por exemplo, foi
vanguardista com seu exemplo de liderança e sua influência no pentecostalismo.

Todavia, na questão étnica, por sua vez, parece que Aimee deixou-se levar
pelo espírito, mas não o Espírito Santo. Antes, sucumbiu ao espírito de sua
época, no qual a Boa nova paulina de que ―Não há mais nem judeu nem grego; já
não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o homem e a mulher
[e, porque não inferir, nem negro nem branco]; pois todos vós sois um só em
Cristo‖ (Bíblia TEB, Gálatas 32.8), não teve a pregnância devida.

Esta perspectiva é corroborada por Anderson, que afirma, em relação ao


público alvo de Aimee:

seu público veio da classe média baixa de migrantes rurais


brancos, mais do que das classes mais humildes que
frequentavam as missões pentecostais menores (Anderson
1979:125). Em sintonia com esse público, Aimee às vezes pregava
em reuniões da Ku-Klux-Klan. Após doze anos de funcionamento, o
Four Square Church tinha apenas 25 membros negros,
organizados separadamente dentro da igreja (ib.: 190-191) (apud
Freston, 1994, p. 111, grifo nosso).

Não queremos com isso de forma alguma denegrir a imagem de Aimee


como racista ou como alguém que apoiava o racismo. Que isso fique bem claro!
Entretanto, como bem disse Niebuhr, ―as causas sociais do cisma [racial] têm
sido tão frequentemente obscurecidas pela racionalização teológica que
dificilmente se trata com franqueza a presença de preconceito racial entre os
cristãos‖ (Niebuhr, 1992, p. 147). Portanto, não se poderia ocultar esse fato tão
grave e significativo que fere (de morte, pensamos!) a ética própria do
cristianismo, qual seja, a ética da fraternidade. Não obstante, tal faceta um tanto
sombria nos parece sobremodo profícua. Mas essa faceta, todavia, é assunto
para outros ensaios...

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1
Este texto é parte do primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado em Ciência da Religião
pelo PPCIR – UFJF, denominada: A trajetória de um carisma: Usos da cura divina entre o
pentecostalismo do Evangelho Quadrangular e o neopentecostalismo da Igreja Mundial do Poder de
Deus, defendida dia 26 de fevereiro de 2014, sob a orientação do Prof. Dr. Arnaldo Érico Huff
Júnior.
2
Reconhecemos que há uma multiplicidade de termos para designar tal fenômeno: cura
sobrenatural, cura mágica e cura espiritual, dentre outros tantos. Neste sentido, optamos pelo
termo cura divina dada sua especificidade na tradição cristã, uma vez que uma cura espiritual
poderia ser mais adequada ao espiritismo, no qual os espíritos humanos desencarnados poderiam
fazê-lo, ou, ainda, cura mágica, notadamente mais afeta ao xamanismo, por exemplo. Não
obstante, há ainda os desdobramentos de concepções heterógenas de pessoa, individuo e cura.
Thomas Csordas, por exemplo, afirma que ―o conceito tripartite de pessoa é a base para três tipos
distintos mas inter-relacionados de cura: a cura física da doença corporal, a cura interior da
perturbação e da doença emocional, e a liberação dos efeitos adversos de demônios e espíritos

PLURA, Revista de Estudos de Religião, ISSN 2179-0019, vol. 6, nº 1, 2015, p. 74-99.


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malignos‖ (Csordas, 2008, p. 33). Assim, dada a variedade de concepções de cura atinentes à
ampla gama dos diversos movimentos religiosos, é preciso que se operacionalize uma definição
minimamente específica quanto ao sentido que lhe é atribuído tanto no pentecostalismo de
segunda quanto no de terceira onda, possibilitando uma perspectiva comparativa. Portanto, o
termo cura divina, sinteticamente, remete aqui a quaisquer intervenções entendidas como
supraempíricas, num dado estado de perturbação da saúde psicofísica, tenha ela causas
espirituais ou não, e, como ponto central, seja atribuído ao Deus do cristianismo a alteração, a
melhora qualitativa do estado morbo anterior, e, quiçá, a erradicação da doença/enfermidade física
ou psicológica. Enfim, esta definição mínima parece dar conta de especificar o fenômeno da cura
divina no pentecostalismo de segunda onda, que é adjetivado de pentecostalismo de cura divina,
mormente a IEQ.
3
Convém delimitar aqui o sentido deste termo: entende-se por protocristianismo uma grandeza
cultural de natureza religiosa/política que se desenvolve na Palestina no contexto do judaísmo
helenístico no século I a.e.c., talvez a primeira metade e poucas décadas a mais, tendo como
precursor João, o batista ou batizador; e, como profeta-fundador, Jesus, o Cristo. Embora alguns
estudiosos atribuam a Paulo a fundação do cristianismo, para este recorte inicial, parece mais
plausível outorgar tal tarefa ao próprio Jesus como iniciador do movimento.
4
Em Weber o carisma pode ser entendido como uma qualidade extraordinária, de caráter extra-
quotidiano, cujo reconhecimento pelo grupo social lhe confere validação ou legitimação. É
justamente o carisma que diferencia e caracteriza certos indivíduos (profetas, feiticeiros, chefes
militares e políticos). Estes detêm um carisma pessoal. No entanto, há também o carisma de
função ou de instituição, que é derivado da apropriação de um carisma pessoal fundador (profético)
que foi rotinizado. Esse carisma institucional fica circunscrito a uma instituição do tipo igreja, a
qual delega tal carisma ao seu quadro de especialistas do sagrado.
5
Sinteticamente, o batismo com (no) Espírito Santo é o tema fulcral da vivência religiosa
pentecostal; aliás, é a razão identitária mesmo desse componente do gradiente protestante. Trata-
se de uma variação ou evolução da concepção puritano-pietista advinda do metodismo de John
Wesley. Nos Estados Unidos, com o movimento Holiness, a herança teológica metodista da primeira
e segunda bênção (conversão e santificação) foi acrescida de uma terceira bênção, a saber, o
batismo com o Espírito Santo, que no pentecostalismo evidencia-se pelo falar em outras línguas.
6
Aqui nos referimos ao postulado de Roger Bastide sobre o sagrado selvagem e o sagrado
domesticado. Segundo Bastide, o sagrado selvagem é criador, uma força dinamogênica capaz de
impulsionar a experiência extática. Já o sagrado docilizado ou domesticado é aquele prezo aos
cânones e sua força é limitada pela instituição religiosa. No entanto, a selvageria é intrínseca ao
sagrado e está latente no sagrado domesticado, podendo, diante de certas circunstâncias, dar
vazão à sua selvageria. Antonio Gouvêa Mendonça, comentando Roger Bastide, afirma que a
―selvageria‖ do sagrado é sempre limitada ao tempo, um tempo sagrado que logo cede lugar ao
tempo profano, isto é, o tempo do sagrado preso aos cânones defendidos pelos seus sacerdotes
religiosos (...), ―em suma, a ordem provém do sagrado dominado‖ (Mendonça, 2007, p. 25). Há,
portanto, uma possível dialética, ciclicidade, sazonalidade na atuação do sagrado selvagem num
dado movimento religioso. Com relativa pregnância, pode-se associar a selvageria e domesticação
do sagrado no gradiente protestante ao processo da seita se tornar igreja e, de sua cisão profética,
surgir uma outra seita, por exemplo.
7
O falar línguas estranhas é um fenômeno extático não restrito ao cristianismo. Caracteriza-se,
grosso modo, pelo ―falar‖ outras línguas sob o impulso do sagrado. Na fé cristã há basicamente
duas formas que pode ocorrer, quais sejam, a glossolalia e a xenolalia. A glossolalia é comumente
associada ao evento do pentecostes neotestamentário (Atos 2), no qual os discípulos foram
batizados com (no) Espírito Santo e começaram a falar outras línguas como sinal externo desse
batismo. A teologia pentecostal postula que a glossolalia, isto é, falar em línguas estranhas ou dos
anjos é, praticamente, uma conditio sine qua non para se tornar um pentecostal pleno, muito
embora no mito de origem de Atos 2 o fenômeno tenha sido o falar línguas idiomáticas. O termo
xenolalia está associado justamente às línguas idiomáticas, mas pode estar vinculado ao fenômeno
extático, não tanto para edificação do fiel, mas muito mais para a evangelização, como um sinal do
poder de Deus, segundo creem os pentecostais.
8
Quando se fala da fundação de um novo mundo remete-se, a fortiori, ao mundo de outrora. No
caso de Aimee, este mundo se refere ao seu mundo religioso cheio de indagações e incertezas de
sua adolescência no metodismo, ―quando começou a aprender sobre a teoria da evolução [na
escola], sofreu um grande impacto e procurou seu professor com a pergunta sobre quem estava
certo: seu livro de estudos, ou a Bíblia? O professor, altivo, respondeu que embora a Bíblia fosse

PLURA, Revista de Estudos de Religião, ISSN 2179-0019, vol. 6, nº 1, 2015, p. 74-99.


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M. Lopes – O legado de uma pioneira: Aimee Semple McPherson… 99

um maravilhoso clássico da literatura, o livro de gênesis e o criacionismo eram uma história


ridícula, um mito. Assim ele continuou a argumentar sobre o assunto, deixando-a ainda mais
confusa. Aimee então passou a questionar se tudo o que havia aprendido desde criança sobre
Deus, como criador dos céus e da terra, era verdade ou uma fábula, como disse seu professor.
Deus existia? Como já conhecia a Bíblia, começou a ler Darwin, Voltaire e Thomas Paine, com o
propósito de chegar a uma conclusão e resolver o dilema. Um dia, quando recebiam a visita de um
pastor, amigo da família, para o chá, ela procurando esclarecer suas dúvidas pergunta (sic!) ao
pastor se Deus ainda operava milagres para provar sua existência. O pastor, sem ajudá-la com sua
resposta, diz: “O tempo dos milagres terminou”. O que ela queria mesmo era encontrar alguém que
lhe dissesse que a Bíblia era um livro em que deveríamos “simplesmente crer”. Assim sua dúvida
seria resolvida facilmente.” (Cf., Alexandre Guidio Dalio, A Chegada da Igreja do Evangelho
Quadrangular no Brasil e o papel da cura divina na sua implantação, p. 12). (grifo nosso). Este era
o antigo mundo religioso de Aimee, um mundo protestante desencantado, no qual a cura divina
dificilmente seria promovida, tanto mais nos moldes do pentecostalismo.
9
Para um aprofundamento nessa temática ver, por exemplo: Roiz, Diogo da Silva; Fonseca, André
Dioney. Representações da igreja assembleia de deus sobre a televisão as entre 1960 e 2000.
Revista Brasileira de História das Religiões. São Paulo, ano II, n. 4, Mai. 2009. p. 185-205.
Disponível em: <http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf3/texto8.pdf>. Acesso em: 20/04/2015.
10
Para maior profundidade ver, por exemplo: Foerster, Norbert Hans Christoph. Poder e política na
congregação cristã no Brasil: um pentecostalismo na contramão. Ciencias Sociales y
Religion/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, out. 2006. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/index.php/CienciasSociaiseReligiao/article/view/2296/1002>. Acesso
em: 20/04/2015.

Recebido em 13/05/2015, revisado em 01/06/2015, aceito para publicação em


01/06/2015.

PLURA, Revista de Estudos de Religião, ISSN 2179-0019, vol. 6, nº 1, 2015, p. 74-99.


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