Aimee Semple McPherson - Obra
Aimee Semple McPherson - Obra
Aimee Semple McPherson - Obra
Marcelo Lopes*
Resumo
O presente texto pretende lançar luz sobre a fundadora da Igreja do Evangelho
Quadrangular – Aimee Semple McPherson – desde uma perspectiva da Ciência da
Religião. Para tanto, colocamos sob o escrutínio sua história e sua experiência religiosa.
Além disso, o texto aborda sinteticamente o papel da cura divina na Igreja Quadrangular
e como esta denominação influenciou o subcampo religioso pentecostal brasileiro. Por
fim, lançamos algumas problematizações e provocações cujo fito é o de ensejar novas
abordagens sobre a temática ora em tela, que julgamos deveras significativa.
Palavras-chave: Aimee McPherson. Cura divina. Pentecostalismo.
Abstract
This paper aims to shed light on the founder of the Foursquare Church - Aimee Semple
McPherson - from the perspective of the Science of Religion. For this, we must put under
the scrutiny your history and religious experience. In addition, the text briefly discusses
the role of divine healing in the Foursquare Church, and how this denomination
influenced the Brazilian Pentecostal religious subfield. Finally, we launched some
problematizations and provocations whose aim is to give rise to new approaches to the
subject now under the screen, which we consider truly significant.
Keywords: Aimee McPherson. Divine healing. Pentecostalism.
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Considerações iniciais
pensamos que é assaz relevante lançar luz sobre essa importante personagem do
movimento pentecostal, especialmente do pentecostalismo de cura divina.
Sob este lócus, parece-nos bem sedimentada a noção de que a religião está
intrinsecamente relacionada às mais viscerais necessidades humanas, desde as
orações e oferendas por uma boa colheita, até a percepção e perplexidade ante a
finitude da vida, bem como a decorrente incerteza do post mortem. Portanto,
Não seria novidade dizer que a cosmovisão religiosa judaica era totalizante
e, dessa forma, tanto a política quanto a medicina, por exemplo, estavam sujeitas
aos preceitos do Tanach, isto é, da literatura sagrada hebraica. Prova disso é que
era o sacerdote, e não o médico, o indivíduo legalmente capaz de proceder ao
diagnóstico e tratamento da lepra, bem como a exarar a sentença de isolamento
social nos casos em que a doença não fosse sanada (Bíblia TEB, Levítico 13-14).
Destarte, não é difícil entender o porquê da doença ter sido encarada como
forma punitiva e até mesmo pedagógica num universo religioso para o qual a
ordem do mundo era regida por uma inteligência de autoridade acima da
humana (Guerra, 2011, p. 77). Dessa forma, o Deus de Israel era,
simultaneamente, fonte de doença, mas também de cura. Na realidade, mal ou
bem dependeriam, a fortiori, da fidelidade e observância do devoto às leis de
Deus: ―Se ouvires atentamente a voz do Senhor, teu Deus, se fizeres o que é
direito aos seus olhos, se prestares atenção aos seus mandamentos, se
guardares todos os seus decretos, não te infligirei nenhuma das moléstias que
infligi ao Egito, pois eu sou o Senhor, que te curo‖ (Bíblia TEB, Êxodo 15.26, grifo
nosso).
Jesus não tinha somente uma visão ou uma teoria, mas uma
práxis e um programa – e um programa não somente para ele,
mas para outros (as) também. Que foi isso? Basicamente, foi o
seguinte: curar os doentes, comer com tais pessoas a quem se
curou e anunciar a presença do Reino naquela mutualidade de
vida. Pode-se perceber esse programa comunitário funcionando
em textos como Mc 6,7-13 e Lc 9,1-6 ou Mt 10,5-14 e Lc 10,1-11
(Crossan, 2009a, p. 25, grifo nosso).
extraídas informações pontuais sobre fatos positivos, como datas, nomes, locais,
acontecimentos, etc.; ora, a partir delas, procedemos a algumas reflexões e
problematizações sobre as memórias ali construídas.
Nesse sentido, a IEQ não parece configurar exceção, pois sua teologia
confessional revela, de maneira peremptória, o constructo mítico que visa
fundamentar o Evangelho Quadrangular. Assim, foi preciso revestir o discurso
com um caráter sagrado, que fosse além, que ultrapassasse a concretude da
experiência humana individual, conforme expresso na seguinte assertiva da
historiadora da denominação Ignez Terezina Rech Scotti: ―a mensagem
quadrangular, como já dito antes, não foi criada por Aimee, fundadora da Igreja
do Evangelho Quadrangular. Ela, na verdade, remonta aos dias do Antigo
Testamento‖ (2010, p. 17).
Este construto mítico parece ser bem mais que apenas uma tentativa de
formulação teológica cuja hermenêutica carece de cientificidade à luz de uma
teologia protestante ortodoxa, por exemplo. Esta é a base sobre a qual as pessoas
encontram seu mito primordial com uma roupagem teológica, isto é, sancionada
pela instituição, e é a partir daí que elas fundamentam e buscam viver sua
experiência religiosa.
Foi justamente a partir dessa ―realidade viva‖ que Aimee, através de suas
experiências pessoais com a cura divina, deu início a um movimento de tendas
itinerantes, nas quais ministrava a cura divina, e que mais tarde originou a
International Church of The Four Square Gospel.
Contudo, não tardaria para que Aimee se relacionasse com o que mudaria
completamente sua vida: a fé pentecostal.
Após isso, Aimee iniciou sua busca pela própria experiência pentecostal,
de modo que se aplicava constantemente em longas jornadas de oração pelo
batismo no Espírito Santo. Nesse ínterim, logrou êxito nessa tarefa, mas antes de
obter o carisma glossolal, teve uma visão na qual estava subentendido seu
chamamento para o ministério de pregação do Evangelho, conforme indica o
texto do historiador oficial da IEQ, o Rev. Júlio de Oliveira Rosa:
Em 1922,
Doutrinariamente,
O que Mendonça quis explicar, dito de outra maneira, é que houve uma
associação de algumas características ministeriais de Jesus com as faces do ser
enigmático de Ezequiel, de modo que, nessa perspectiva, o rosto de homem
simboliza Jesus como salvador; o rosto de leão, Jesus como o batizador com o
Espírito santo; o rosto de águia, Jesus como o rei que há de vir; e, finalmente, o
rosto de boi, como não poderia deixar de ser, Jesus como o grande médico divino.
Mas o trabalho ficou restrito àquela cidade por dois anos. Seu
desenvolvimento deu-se somente a partir de 1953 quando, a convite de Willians,
Inicialmente,
Sob este locus, se uma montanha, um cipó ou uma escada podem ser
considerados como Axis mundi, por que não uma tenda também não poderia ser?
Assim, a tenda era o ponto de rotura no qual o sagrado não só se manifestava,
mas também proporcionava cura.
Desse modo,
Este, todavia, não foi seu único campo de influência, pois não tardaria
para uma cisão da IEQ dar ensejo à diversificação da segunda vaga pentecostal.
O título que demos a esta seção enseja que a IEQ não só influenciou,
também inspirou outras igrejas pentecostais de segunda onda. Uma dessas foi a
Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA). Fundada em 1962 por David Miranda, ―a
IPDA talvez seja a igreja que mais investe no uso do rádio, bem como na posse de
emissoras, gravadoras e estúdios. A cura divina é adaptada para o meio; mas o
vínculo entre rádio e igreja é sempre mantido, o primeiro sendo porta de entrada
para a segunda‖ (Freston, 1994, p. 127).
Cumpre sublinhar ainda que outros traços da IPDA diferem tanto da IEQ
quanto da BPC, mormente em relação ao seu acentuado sectarismo e legalismo
exacerbado. Como exemplos desses traços podemos citar a expressa proibição de
assistir programas televisivos quaisquer que forem seus conteúdos, a total falta
de colaboração com outras denominações, bem como o ascetismo de condenação
e retirada do mundo, isto é, apatia política e distanciamento de atividades
lúdicas. Todavia, isso não esmaece a inspiração taumatúrgica e midiática da
IPDA. Portanto, no que toca à inspiração, pode-se afirmar que a fundação da
IPDA ―foi uma possibilidade aberta pelo movimento das tendas‖ (Freston, 1994,
p. 129).
Assim, não foi sem motivo que somente na Convenção Geral das
Assembleias de Deus no Brasil de 1962 que se aprovou a ampla utilização do
rádio na evangelização, bem como o projeto de se ter uma emissora de
abrangência nacional. A primeira discussão sobre o assunto ocorreu na
convenção de 1937, mas a aprovação deu-se somente vinte anos depois (Daniel,
2004, p. 331). Destacamos, todavia, que algumas igrejas da Assembleia de Deus
9
já se utilizavam da mídia radiofônica antes de sua aprovação formal .
Por fim, mas não menos importante, levanta-se a tese de Mendonça de que
a IEQ, em certo sentido, lançou as bases do neopentecostalismo. ―Pode-se dizer
que a Igreja do Evangelho Quadrangular, embora tipicamente pentecostal,
inseriu em seus fundamentos teológicos a chave do neopentecostalismo‖
(Mendonça, 2008, p. 136). De fato, há ao menos dois indícios que parecem
fundamentar esta tese, um mítico ou teológico e o outro relativo à práxis ou ao
rito.
Muito embora não haja uma ligação direta naqueles termos weberianos
para a ruptura do profeta em relação ao sacerdote e a consequente geração de
novos movimentos religiosos, entre as várias denominações neopentecostais – as
mais expressivas são Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Igreja
Internacional da Graça de Deus (IIGD) e a Igreja Mundial do Poder de Deus
(IMPD) –, em relação à IEQ, os argumentos de Mendonça são sobriamente sólidos
para permitir inferir que, sim, as bases do neopentecostalismo talvez tenham
sido lançadas, não propositalmente é claro, pela IEQ.
Portanto, tanto numa tese quanto noutra, a IEQ, de algum modo, também
deu ensejo à formação do neopentecostalismo. Ademais, há no tempo presente
igrejas neopentecostais como, por exemplo, a IIGD e, sobretudo, a IMPD cujo
apanágio é justamente a cura divina (Lopes, 2014c). Não fosse a ênfase
taumatúrgica da IEQ na segunda onda pentecostal, talvez fosse improvável que
tais igrejas tivessem hoje este usufruto.
Considerações finais
contexto de sua própria época. Na questão de gênero e religião, por exemplo, foi
vanguardista com seu exemplo de liderança e sua influência no pentecostalismo.
Todavia, na questão étnica, por sua vez, parece que Aimee deixou-se levar
pelo espírito, mas não o Espírito Santo. Antes, sucumbiu ao espírito de sua
época, no qual a Boa nova paulina de que ―Não há mais nem judeu nem grego; já
não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o homem e a mulher
[e, porque não inferir, nem negro nem branco]; pois todos vós sois um só em
Cristo‖ (Bíblia TEB, Gálatas 32.8), não teve a pregnância devida.
Referências bibliográficas
1
Este texto é parte do primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado em Ciência da Religião
pelo PPCIR – UFJF, denominada: A trajetória de um carisma: Usos da cura divina entre o
pentecostalismo do Evangelho Quadrangular e o neopentecostalismo da Igreja Mundial do Poder de
Deus, defendida dia 26 de fevereiro de 2014, sob a orientação do Prof. Dr. Arnaldo Érico Huff
Júnior.
2
Reconhecemos que há uma multiplicidade de termos para designar tal fenômeno: cura
sobrenatural, cura mágica e cura espiritual, dentre outros tantos. Neste sentido, optamos pelo
termo cura divina dada sua especificidade na tradição cristã, uma vez que uma cura espiritual
poderia ser mais adequada ao espiritismo, no qual os espíritos humanos desencarnados poderiam
fazê-lo, ou, ainda, cura mágica, notadamente mais afeta ao xamanismo, por exemplo. Não
obstante, há ainda os desdobramentos de concepções heterógenas de pessoa, individuo e cura.
Thomas Csordas, por exemplo, afirma que ―o conceito tripartite de pessoa é a base para três tipos
distintos mas inter-relacionados de cura: a cura física da doença corporal, a cura interior da
perturbação e da doença emocional, e a liberação dos efeitos adversos de demônios e espíritos
malignos‖ (Csordas, 2008, p. 33). Assim, dada a variedade de concepções de cura atinentes à
ampla gama dos diversos movimentos religiosos, é preciso que se operacionalize uma definição
minimamente específica quanto ao sentido que lhe é atribuído tanto no pentecostalismo de
segunda quanto no de terceira onda, possibilitando uma perspectiva comparativa. Portanto, o
termo cura divina, sinteticamente, remete aqui a quaisquer intervenções entendidas como
supraempíricas, num dado estado de perturbação da saúde psicofísica, tenha ela causas
espirituais ou não, e, como ponto central, seja atribuído ao Deus do cristianismo a alteração, a
melhora qualitativa do estado morbo anterior, e, quiçá, a erradicação da doença/enfermidade física
ou psicológica. Enfim, esta definição mínima parece dar conta de especificar o fenômeno da cura
divina no pentecostalismo de segunda onda, que é adjetivado de pentecostalismo de cura divina,
mormente a IEQ.
3
Convém delimitar aqui o sentido deste termo: entende-se por protocristianismo uma grandeza
cultural de natureza religiosa/política que se desenvolve na Palestina no contexto do judaísmo
helenístico no século I a.e.c., talvez a primeira metade e poucas décadas a mais, tendo como
precursor João, o batista ou batizador; e, como profeta-fundador, Jesus, o Cristo. Embora alguns
estudiosos atribuam a Paulo a fundação do cristianismo, para este recorte inicial, parece mais
plausível outorgar tal tarefa ao próprio Jesus como iniciador do movimento.
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Em Weber o carisma pode ser entendido como uma qualidade extraordinária, de caráter extra-
quotidiano, cujo reconhecimento pelo grupo social lhe confere validação ou legitimação. É
justamente o carisma que diferencia e caracteriza certos indivíduos (profetas, feiticeiros, chefes
militares e políticos). Estes detêm um carisma pessoal. No entanto, há também o carisma de
função ou de instituição, que é derivado da apropriação de um carisma pessoal fundador (profético)
que foi rotinizado. Esse carisma institucional fica circunscrito a uma instituição do tipo igreja, a
qual delega tal carisma ao seu quadro de especialistas do sagrado.
5
Sinteticamente, o batismo com (no) Espírito Santo é o tema fulcral da vivência religiosa
pentecostal; aliás, é a razão identitária mesmo desse componente do gradiente protestante. Trata-
se de uma variação ou evolução da concepção puritano-pietista advinda do metodismo de John
Wesley. Nos Estados Unidos, com o movimento Holiness, a herança teológica metodista da primeira
e segunda bênção (conversão e santificação) foi acrescida de uma terceira bênção, a saber, o
batismo com o Espírito Santo, que no pentecostalismo evidencia-se pelo falar em outras línguas.
6
Aqui nos referimos ao postulado de Roger Bastide sobre o sagrado selvagem e o sagrado
domesticado. Segundo Bastide, o sagrado selvagem é criador, uma força dinamogênica capaz de
impulsionar a experiência extática. Já o sagrado docilizado ou domesticado é aquele prezo aos
cânones e sua força é limitada pela instituição religiosa. No entanto, a selvageria é intrínseca ao
sagrado e está latente no sagrado domesticado, podendo, diante de certas circunstâncias, dar
vazão à sua selvageria. Antonio Gouvêa Mendonça, comentando Roger Bastide, afirma que a
―selvageria‖ do sagrado é sempre limitada ao tempo, um tempo sagrado que logo cede lugar ao
tempo profano, isto é, o tempo do sagrado preso aos cânones defendidos pelos seus sacerdotes
religiosos (...), ―em suma, a ordem provém do sagrado dominado‖ (Mendonça, 2007, p. 25). Há,
portanto, uma possível dialética, ciclicidade, sazonalidade na atuação do sagrado selvagem num
dado movimento religioso. Com relativa pregnância, pode-se associar a selvageria e domesticação
do sagrado no gradiente protestante ao processo da seita se tornar igreja e, de sua cisão profética,
surgir uma outra seita, por exemplo.
7
O falar línguas estranhas é um fenômeno extático não restrito ao cristianismo. Caracteriza-se,
grosso modo, pelo ―falar‖ outras línguas sob o impulso do sagrado. Na fé cristã há basicamente
duas formas que pode ocorrer, quais sejam, a glossolalia e a xenolalia. A glossolalia é comumente
associada ao evento do pentecostes neotestamentário (Atos 2), no qual os discípulos foram
batizados com (no) Espírito Santo e começaram a falar outras línguas como sinal externo desse
batismo. A teologia pentecostal postula que a glossolalia, isto é, falar em línguas estranhas ou dos
anjos é, praticamente, uma conditio sine qua non para se tornar um pentecostal pleno, muito
embora no mito de origem de Atos 2 o fenômeno tenha sido o falar línguas idiomáticas. O termo
xenolalia está associado justamente às línguas idiomáticas, mas pode estar vinculado ao fenômeno
extático, não tanto para edificação do fiel, mas muito mais para a evangelização, como um sinal do
poder de Deus, segundo creem os pentecostais.
8
Quando se fala da fundação de um novo mundo remete-se, a fortiori, ao mundo de outrora. No
caso de Aimee, este mundo se refere ao seu mundo religioso cheio de indagações e incertezas de
sua adolescência no metodismo, ―quando começou a aprender sobre a teoria da evolução [na
escola], sofreu um grande impacto e procurou seu professor com a pergunta sobre quem estava
certo: seu livro de estudos, ou a Bíblia? O professor, altivo, respondeu que embora a Bíblia fosse