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Pós-Graduação em Comunicação
do pensamento acadêmico.
COSTA, Nathália Drey. Trabalhe você mesmo: o trabalho “criativo” na sociedade de plataforma. Contracampo,
Niterói, v. 39, n. 2, p. 42-58, ago./nov. 2020.
DOI – http://doi.org/10.22409/contracampo.v39i2.38782
Resumo
Palavras-chave
Trabalho; Trabalho Criativo; Sociedade de plataforma.
Abstract
The relation between labour, creativity and the platformization of capitalism is the
thematic axis of this discussion. The aim of this paper was to discuss the relationship
between “creative” work and platform society by analyzing initial research results
through an online exploratory questionnaire conducted in the first half of 2019 with
workers from the Brazilian creative industry. Also resulting from reflections arising
from the thesis I develop about the communicative dimension of “creative” labour,
this analysis deals with the platformization of creative labour, understanding from
a critical perspective how the notions of creativity and work are associated with
neoliberal subjectivity, flexibility, precariousness and the purpose / mission logic of
work in today’s platform society.
Keywords
Labour; Creative Labour; Platform society.
Trabalhe você mesmo: o trabalho “criativo” na sociedade de plataforma
Introdução
O imaginário acerca da relação entre trabalho e tecnologia consiste em uma relação bastante
polarizada: ou estamos caminhando para a derrocada irreversível das profissões, ocupações e relações
humanas; ou estamos percorrendo o glorioso caminho de tijolos amarelos rumo ao progresso, abraçado
pelo avanço tecnológico, conduzido em direção ao parque de diversões da contemporaneidade, recheado de
tempos de lazer, trabalhos criativos e estimulantes, assim como também novas ansiedades e preocupações.
Na reflexão de Raymond Williams (2011), a tecnologia não é neutra, tampouco desenvolvimentista por
si só. Requer usos possíveis, apropriações e negociações por parte dos sujeitos que se relacionam com a
mesma, podendo ser em si uma tecnologia potencializada ou mesmo atrofiada a depender da situação
na qual se encontra. A tecnologia não é um ambiente neutro desprovida de algum tipo de preconceito
e manutenção de privilégios, e, por não ser neutra, pode ser apropriada e reapropriada a depender das
habilidades, reproduzindo também certos tipos de desigualdades (raciais, econômicas e de gênero), como
já apontava Judy Wajcman (2012) ao analisar a relação entre feminismo e tecnologia.
O caso atual das plataformas - e sua organização societal - remete a uma porção de complexas
relações, entre essas a relação da humanidade com o trabalho, com a comunicação e com as plataformas.
Com isso, podemos perceber que o movimento não é de obsolescência da velha tecnologia em direção à
novidade, mas de adaptação e coexistência, com o surgimento de outros recursos que se ligam aos modelos
convencionais. As plataformas, por sua vez, também não operam em valores neutros, estruturando a vida
em sociedade através da alimentação permanente da lógica neoliberal com a mercantilização dos dados
gerados pelos produtores/usuários (VAN DIJCK et al., 2018). Um cenário atual que relaciona tecnologia,
comunicação e trabalho presente em muitas análises é o da sociedade de plataforma (VAN DIJCK et al.,
2018) e sua relação com o capitalismo em escala global. Para Van Dijck (2018), o que ocorre é justamente
a plataformização da sociedade, uma vez que esses espaços combinam a infraestrutura online com as
estruturas sociais, transformando dados em mercadorias através do processamento algorítmico, ocultando
problemáticas sociais e econômicas implícitas em tal relação - entre as quais está a questão do trabalho.
A sociedade de plataforma e sua relação com o capitalismo está inserida também em lógicas
econômicas situadas na cultura digital, a exemplo da questionável economia do compartilhamento (SLEE,
2017), da economia de demanda ou economia dos bicos (gig economy) configuradas por plataformas
tecnológicas e digitais, mercados de algoritmos e geração de dados através dos usos da internet. No
contexto da sociedade de plataforma, a comunicação torna-se, além de uma necessidade, um importante
insumo para o trabalho, desenvolvido principalmente através do uso da internet e do intermédio das
plataformas de grandes empresas globais. O predomínio do uso de plataformas e da internet para
diversos setores do trabalho humano alimenta algumas premissas de predominância da imaterialidade do
trabalho, da construção da sociedade do conhecimento, do tempo livre, da criatividade e da comunicação.
Décadas antes convencionou-se a defesa, inclusive, da tese de fim do trabalho (no Brasil, como exemplo
principal de contraponto a essa tese, podemos trazer as pesquisas e resultados do sociólogo do trabalho
Ricardo Antunes, principalmente em seu livro Adeus ao trabalho?, de 1995). A predominância absoluta
do tempo livre, do trabalho criativo, da concepção de inovação como progresso substancial na produção
das sociedades, da tecnologia como aliada de chefes (substitutos do patrão) e colaboradores (substitutos
dos trabalhadores) na exploração de mais-valia relativa (maior produção em menos tempo de trabalho).
As tecnologias digitais e de comunicação nos auxiliam nesta empreitada solitária de mérito e
sucesso. São nossos smartphones e notebooks que podem nos auxiliar a nos conectarmos e a nos
comunicarmos de modo a operacionalizar nosso trabalho (e emprego) no espaço da internet e da sociedade
de plataforma. Uma quantidade de plataformas, aplicativos, dispositivos mediados pela ambiência digital
e conectados à internet desenvolve uma gama de relações (de produção, circulação e consumo, inclusive)
que afetam social e culturalmente nossa atividade laboral. As modalidades de contrato e de trabalho
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atuais são preenchidas por categorias cada vez mais flexibilizadas, informalizadas e precarizadas. Até
mesmo profissões de prestígio intelectual e com forte poder simbólico e cultural estão enredadas pelas
modalidades flexíveis e precarizantes de trabalho. A economia em escala global e o capital financeiro das
grandes empresas (das quais fazem parte plataformas digitais) exigem, como afirma Antunes (2018, p. 34),
“disponibilidade perpétua para o labor, facilitada pela expansão do trabalho online e dos ‘aplicativos’, que
tornam invisíveis as grandes corporações globais que comandam o mundo financeiro e dos negócios”. A
proletarização de diversos setores de serviços é uma onda que já cobre nossas cabeças.
O trabalho atravessado pelas plataformas e pela cultura da internet se relaciona com as esferas
da produção e do consumo, produzindo sujeitos híbridos, como define Van Dijck (2018): os produtores/
usuários. Os dados e as informações de cada usuário/produtor/consumidor estão sob a posse das
grandes empresas que direcionam a maior parte do conteúdo que é produzido e compartilhado na web.
Conhecidos pela sigla GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), também denominados
como Big Five, os cinco gigantes correspondem ao enorme oligopólio da informação e comunicação em
tempos de ambiência digital. Uma vez que o trabalho humano não está deslocado de seu espaço digital ─
e, boa parte de seus procedimentos encontra-se nessa ambiência ─, seria possível afirmar que o GAFAM
é, em escala global, o novo chefe mundial? O monopólio das superplataformas (VAN DIJCK et al., 2018)
reorganiza o que entendemos sobre trabalho, consumo e, não obstante, comunicação, misturando suas
rotinas e invisibilizando as próprias lógicas.
Para este artigo, busco um recorte a respeito do trabalho na sociedade de plataforma a partir de
questões referentes ao trabalho realizado em setores da indústria criativa ─ o trabalho dito como criativo1.
A compreensão social e a preocupação governamental com setores criativos para a economia começou ao
final dos anos 1980, início dos 1990, conforme contextualiza Leonardo De Marchi (2013). De acordo com
o autor, o fomento de políticas culturais com foco na economia criativa é baseado na experiência inglesa
do Partido Trabalhista (Labour Party) entre os anos 1990 e 2000. Através de setores reformistas liderados
por Tony Blair, obtiveram-se mudanças significativas nas políticas britânicas para cultura e comunicação
com a substituição do termo indústrias culturais (cultural industries) por indústrias criativas (creative
industries) nos documentos oficiais do partido, prometendo revoluções na abordagem do discurso do
Novo Trabalhismo, com foco na cultura por via do desenvolvimento político e econômico (DE MARCHI,
2013).
A primeira compreensão global a respeito da indústria criativa deu-se no ano de 2008 através de
um estudo realizado pela Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD),
com análises a respeito da indústria e economia criativas em escala internacional. No mesmo ano, o Brasil
também apresentou um estudo localizado no país a respeito das características, dos dados e informações
situados na indústria criativa brasileira. O estudo foi realizado no mesmo ano pela Federação das Indústrias
do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) pela primeira vez, mantendo-se com certa regularidade e atualização
e adquirindo a denominação de Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil desde então.
A última versão do Mapeamento (2019) até a escrita deste texto constava em sua sexta edição,
fazendo referência ao período que vai de 2015 (ano da última publicação) a 2017 (contemplando também
o biênio anterior de 2013 a 2015). O mapeamento é realizado a cada dois anos e, a critério de pesquisa,
define indústria criativa/economia criativa a partir de 13 setores agrupados em quatro áreas: 1) Consumo
(Design, Arquitetura, Moda e Publicidade), 2) Mídias (Editorial e Audiovisual), 3) Cultura (Patrimônio e
Artes, Música, Artes Cênicas e Expressões Culturais) e 4) Tecnologia (P&D, Biotecnologia e TIC).
O Mapeamento realizado pela FIRJAN aponta algumas categorias profissionais, bem como salários
e mercado para atuação. Em recente divulgação da Federação, há apontamentos para um perfil profissional
que contemple qualidades como digital e inovador. Ainda de acordo com a Federação, teriam sido abertas
24 mil vagas com o perfil digital e inovador em dez profissões localizadas na economia criativa, o que
representaria, nas palavras da instituição, “as transformações da nova economia, caracterizada por novos
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Trabalhe você mesmo: o trabalho “criativo” na sociedade de plataforma
modelos de negócio, hábitos de consumo e relações de trabalho” (FIRJAN, 2019). Os dados divulgados
pela Federação afirmam que, no Brasil, há 245 mil estabelecimentos e 837 mil profissionais inseridos no
denominado mercado de trabalho criativo.
Porém, a pesquisa realizada e divulgada pelo Mapeamento só considera os dados obtidos
por meio do mercado formal de trabalho no país, fornecidos até 2017 pelo Ministério do Trabalho
(também extinto pelo atual governo brasileiro em janeiro de 2019). A informalidade e a precariedade
dos contratos de trabalho no setor criativo é uma realidade experimentada pelos trabalhadores que
enveredaram pelo ramo. É possível que os postos de emprego e a geração de renda sejam maiores,
relacionando profundamente o mercado criativo ao mercado informal brasileiro. Interessante ressaltar
que termos como novo, novidade e inovação aparecem com bastante frequência no discurso empresarial,
principalmente como requisitos básicos a vagas de emprego. Aliado ao perfil inovador, agora também o
perfil digital passa a ser uma competência requerida entre os profissionais criativos (termo utilizado no
ramo para se referir aos trabalhadores da indústria criativa). Neste artigo, ao longo das considerações
teóricas sobre o plataformização do trabalho dito criativo, trago também os resultados iniciais de uma
pesquisa exploratória realizada em 2019 e que colaborou para o levantamento das primeiras pistas à tese2
que desenvolvo sobre a dimensão comunicacional do trabalho denominado criativo.
Patrão-plataforma, trabalhador-plataformizado
O entendimento da relação entre trabalho e plataforma é perpassado pela comunicação e carrega
consigo alguns signos, a exemplo da noção de criatividade e de trabalho imaterial e criativo. A expansão
da noção de criatividade (inclusive como um setor que, paradoxalmente, se associa à ideia de indústria ─ a
indústria criativa) como insumo está no centro da relação produtor/usuário. O trabalho recebe a alcunha
de criativo ─ desconsiderando sua dialética espetacular (ANTUNES, 2009; 2018) ─ e toda uma gama de
trabalhadores ─ entre os quais incluem-se os comunicadores - engendra-se em alguns mitos a respeito de
autonomia, liberdade, criatividade e divertimento para o trabalho. Para Muniz Sodré (2014), os tradicionais
meios de comunicação são transformados em um complexo industrial e o sujeito individualista não é mais
aquele sozinho diante do mundo, mas o sozinho com o mundo dentro de si mesmo como efeito das
tecnologias da comunicação. O papel da comunicação em uma sociedade do capitalismo de plataforma
pode ser pensado, em confluência com a premissa de Sodré (2014), através do campo comunicacional no
qual a mesma equivale a um modo geral de organização, a “forma organizativa” principal dos diferentes
modelos simbólicos e percepções de tempo, espaço e sociabilidades. A continuidade (com domínio
financeiro e tecnológico) da mercantilização da ordem, mas não um novíssimo modo de produção
econômica (SODRÉ, 2014).
Um dos aspectos mais salientes da presença da comunicação no trabalho plataformizado é o uso
dos meios de comunicação como meios de produção, premissa já levantada por Raymond Williams (2011).
Williams rejeitou determinismos tecnológicos e pensou a cultura enquanto sistema social produtivo tendo
os meios de comunicação como meios de produção cultural e comunicativa, relações sociotécnicas de
produção cultural (ANTUNES e GOMES, 2019). Fuchs (2015) sintetiza que trabalho (work), para Marx,
é a criação de bens e serviços que satisfaçam as necessidades humanas e sociais, enquanto o trabalho
(labour) é relação de estranhamento e alienação do trabalho que conduz a sociedade de classes. Logo, a
comunicação enquanto necessidade humana vincula-se à noção de trabalho incorporada às relações de
alienação e mercantilização (FUCHS, 2015). Em consonância, podemos pensar que o trabalho comunicativo
observável não se trata apenas dos bens culturais em circulação nos meios de comunicação (e produção),
2 A tese que realizo está inserida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Fe-
deral de Santa Maria (Poscom/UFSM) desde 2017 e recebe orientação da professora Dra. Liliane Dutra
Brignol.
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mas do próprio corpo de trabalho, do sujeito trabalhador por trás da produção e circulação de tais bens
diante das lógicas capitalistas financeirizadas do mercado global ─ cujo sistema nervoso central hoje se
engendra na sociedade de plataforma.
A relação do capitalismo com as plataformas e com o trabalho resulta em um fenômeno que
Antonio Casilli e Julian Posada (2018) denominam como plataformização do trabalho e da sociedade.
Experienciamos, portanto, com o advento da sociedade de plataforma (VAN DIJCK et al., 2018) e sua
aliança com o capitalismo global a expansão dos níveis de exploração e intensificação do ritmo de
trabalho, ao contrário das teses que prenunciavam seu fim ou superação. Grohmann (2019) salienta
que a plataformização é um desígnio mais propício que “uberização” do trabalho, visto a relação de
dependência que trabalhadores/consumidores adquirem em relação às plataformas digitais, “com suas
lógicas algorítmicas, dataficadas e financeirizadas – em meio a mudanças que envolvem a intensificação
da flexibilização de relações e contratos de trabalho e o imperativo de uma racionalidade empreendedora”
(GROHMANN, 2019, p. 112).
O sucesso desses serviços fez com que as plataformas se estabelecessem atualmente como
“paradigma organizacional e tecnológico” (GROHMANN, 2018, p. 3) para empresas no geral, privadas,
públicas, tecnológicas, culturais. Porém, ainda que as plataformas sejam organizadas a partir da
tecnologia digital, Casilli e Posada (2018) argumentam que, na realidade, as mesmas emergem mais
como uma resposta a desenvolvimentos sociais e econômicos de longo prazo, principalmente na relação
das pessoas com o mercado e as empresas enquanto métodos tradicionais de organização da produção
humana. Slee (2017) indica que uma das consequências mais cruéis do capitalismo de plataforma é a falta,
ausência ou drástica redução da responsabilização corporativa e social das grandes empresas em relação
à sociedade. Patrões que não são patrões, editores que não são editores, trabalho que não é trabalho. O
não-ser das plataformas as irresponsabilizam diante das consequências de seus atos, da conduta ética das
profissões, do ônus de gerir e gestar trabalhadores. Como nos aponta Slee (2017), o discurso é ainda o
de que os gigantes digitais não passam de intermediários entre os interesses do trabalhador autônomo e
do consumidor, ambos imbuídos de um poder infinitamente maior no plano discursivo que na realidade
efetiva. Trata-se da lógica da empresa-plataforma (SLEE, 2017).
O surgimento desta modalidade de empresa possibilitou as bases para a conexão entre
produtores e consumidores por meio de plataformas de oferta de serviços, estabelecendo o império das
empresas de plataforma mais lucrativas da atualidade. Tais empresas não precisam deter patrimônios e
propriedades com estoques, almoxarifados e todas as instalações custosas que integravam o poderio das
grandes indústrias modernas, rebaixando seus custos a zero enquanto detêm poder e lucros exorbitantes
fundamentalmente através do trabalho realizado pelos usuários, produtores de conteúdo e consumidores/
produtores (SLEE, 2017).
Slee (2017) atenta para o pessimismo que surge após a esperança na cultura do compartilhamento,
muito em consequência da acumulação de fortunas em pouquíssimas mãos de empresas que controlam
o uso, a produção, a distribuição e o consumo na internet. Entre as consequências de tal fenômeno,
Slee (2017) identifica a corrosão do senso de comunidade, o consumismo desenfreado e a precarização
do trabalho (o título de seu livro – What’s Yours Is Mine: Against The Sharing Economy –, por exemplo,
recebeu, no Brasil, a alcunha de Uberização: a nova onda do trabalho precarizado justamente por ser a
Uber uma das principais empresas de plataforma da atualidade e a precarização do trabalho de motoristas
no mundo inteiro uma das relações – para não dizer simplificadamente consequências – da implantação
da empresa em muitos países).
Porém, ainda que a cultura do compartilhamento e os valores comunitários tenham sido
superados pelo capitalismo na sociedade de plataforma, ainda é desse discurso que grandes empresas
se utilizam para jogar com valores de coletividade e trabalho ─ fortemente alimentado pelo também
discurso da colaboração. A produção do valor em empresas-plataforma, como indicam Casilli e Posada
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Trabalhe você mesmo: o trabalho “criativo” na sociedade de plataforma
(2018), expõe que a estrutura em rede das plataformas é o que as permite se apropriar do trabalho e da
atividade dos consumidores/trabalhadores em diversas partes por transação, ao invés de extrair esse valor
da produção por meio de relações de subordinação (como fazem empresas tradicionais). Assim, por um
lado, as plataformas monetizam as interações entre os usuários e produtores, capturando valor através da
participação (CASILLI e POSADA, 2018). Essa captura de recursos pode ser considerada como participação
e co-criação, fazendo com que usuários trabalhem, caracterizando o trabalho digital (FUCHS, 2019;
CASILLI e POSADA, 2018). Porém, esse mesmo trabalho digital não se limita a colaboração e participação
ditas gratuitas (a exemplo da construção de softwares, produção de vídeos para canais na internet etc.)
incluindo atividades de usuários que disponibilizam informações lucrativas aos gigantes da tecnologia
em suas transações reduzidas a um clique (CASILLI e POSADA, 2018). Além da colaboração e da captura
de dados dos usuários, o trabalho também se manifesta através das plataformas por meio de redes de
conexão entre o produtor e o consumidor (sempre intermediadas pelos interesses e pela vigilância das
grandes empresas que disponibilizam tais serviços através de aplicativos, sites, softwares etc). Essa lógica
dual é muito característica do trabalho dito criativo e assim é demonstrada nas respostas ao questionário
sobre o uso de plataformas (redes sociais) e a circulação e produção do trabalho no espaço digital da
internet. Nessa relação, o chefe acaba se tornando os algoritmos produzidos pelas empresas como forma
de monitorar e conduzir o consumo e o trabalho de maneira relacional ─ e, em muitos casos, precarizante.
Especificamente sobre precarização do trabalho, é importante evitar reducionismos: não é,
diretamente, o surgimento de novas tecnologias e sistemas (de internet, digitais etc.) que resulta em
precarização. Em muitos casos, na realidade, o avanço científico e tecnológico (consequentemente
comunicacional também) colabora para o desenvolvimento de novas profissões em uma seara de
desemprego, potencializa muitas atividades, facilita ações conjuntas e em espaços diferentes. Porém,
como não se trata de uma relação simplificadamente dual, além do identificado progresso, as tecnologias
e o capitalismo de plataformas e da informação também resultaram em precarização de contratos, em
aumento da informalidade e oferta generalizada de trabalhos mal (ou nada) ─ remunerados, como atenta
Slee (2017). A acumulação capitalista em poucas empresas também demonstra a dificuldade que temos
(e teremos) de redistribuir riquezas fruto do trabalho humano. Como o próprio Slee (2017) salienta, a
partir de sua experiência de trabalho na indústria da tecnologia, as novas (e antigas) tecnologias “podem
desempenhar um papel importante em construir um futuro melhor, mas eles não fornecem um atalho
para resolver problemas sociais complexos ou antigas fontes de conflito social” (SLEE, 2017, p. 33).
Toda a gama de dados gerados pelos usuários (e trabalhadores) na internet está se transformando
em um novo petróleo, como definem Chandler e Fuchs (2019), visto que os dados gerados (e comercializados)
pela humanidade desenvolvem o século XXI na mesma proporção que o petróleo transformou a economia
e as sociedades no século XX. “Tais discursos populares afirmam que o big data permite novas formas de
gerar conhecimento que levarão a possibilidades inovadoras e criativas” (CHANDLER e FUCHS, 2019). No
entanto, apesar da mina de ouro incutida na geração e comercialização de dados, é fundamental atentar
para o fato de que o big data não é um recurso natural. Como salienta Grohmann (2019), apesar de ser
uma verdade em termos financeiros, a comparação dos dados ao petróleo esconde que aqueles não seriam
produtos naturais e, portanto, careceriam de construção e apropriação. Os dados estão incutidos no modo
de produção capitalista através de documentação, filtragem e extração e, na mesma linha dos algoritmos,
ganham sentido de paradigma científico e tornam-se objetos supostamente neutros e inquestionáveis
(GROHMANN, 2019). O grande perigo é a naturalização e neutralização dos dados, pois, assim, escondem-
se diferenças e desigualdades diversas ─ inclusive coloniais ─ entre a produção e o consumo do trabalho
plataformizado (CASILLI, 2018).
A era da financeirização e mundialização do capital, como define Ricardo Antunes (2018), está
organizando uma nova divisão internacional do trabalho com claras tendências à informalidade (e
precariedade) e à intelectualidade por meio do uso de tecnologias de informação e comunicação, além de
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dispositivos digitais, para o trabalho. Em O privilégio da servidão, o sociólogo afirma ser a eliminação do
trabalho pelo maquinário um engodo, visto que o momento apresenta, na realidade, a expansão do novo
proletariado da era digital:
Fuchs (2015) indica que tanto a internet quanto a globalização são meios e sistemas inseridos
no capitalismo, resultando em relações de trabalho que aparentam ser novidade, porém, escondem se
tratar de relações fundamentais de classe, a exemplo de uma divisão internacional do trabalho digital
que envolve trabalho assalariado, trabalho não-remunerado, trabalho industrial, trabalho que produz
conteúdo informacional juntamente de outras modalidades de trabalho digital (ou não-digital). Como
defende Tom Slee (2017), a internet não é uma ruptura tão intensa quanto alguns entusiastas e otimistas
alardeiam, visto que modelos de negócio e compartilhamentos são engolidos pelos gigantes comerciais
(agora também digitais) assim como os já mercados monopolistas tradicionais. Afinal, “não se trata de
construir uma alternativa à economia de mercado dirigida por corporações. Trata-se de expandir o livre
mercado para novas áreas de nossas vidas” (SLEE, 2017, p. 48). A produção na internet circunda o trabalho
- em suas diferentes modalidades - que produz valor direta ou indiretamente (no caso da geração de dados
às grandes plataformas).
As tendências dessa divisão internacional do trabalho se articulam por meio de processos de
simbiose, mesclando trabalho produtivo e improdutivo, material e imaterial, desenvolvendo novas
formas de geração de mais-valor, sob o comando de uma hegemonia do capital financeiro internacional
(ANTUNES, 2018). O consumismo digital de nossa época colabora para as simbioses no imaginário a
respeito do trabalho, sendo a compreensão da imaterialidade de toda a produção uma das forças mais
preponderantes. Huws (2011) atentará para o tal “mito da economia imaterial” na atualidade, em um
contexto de economia de demanda e plataformas digitais de agenciamento laboral, fruto do capitalismo
financeiro e das ondas entusiastas com as tecnologias digitais. A ideia de que o trabalho hoje se resume ao
esforço intelectual e imaterial é, para Huws (2011), um engodo que esconde a presença da materialidade
nas relações sociais e de trabalho. Huws (2011) argumenta que há no capitalismo uma habilidade de
geração de mercadorias novas que aparentam “algo mágico, como se estivessem sendo obtidas do ar”
(2011, p. 31). O trabalho realizado em ambientes digitais em contexto de plataformas é mais um dos
setores nos quais o trabalho é invisibilizado por meio da ilusão produzida através das mercadorias. A
acentuada divisão internacional do trabalho sofre ações diretas das tecnologias incorporadas ao trabalho,
tais como computadores e celulares pessoais (e profissionais), bem como o acesso à internet e ao espaço
digital.
Huws (2014) identifica que a produção, a distribuição e o consumo aos poucos vão se dissolvendo
na sociedade do capitalismo imaterial, forçando alguns trabalhos remunerados a deixarem de o ser, assim
como fomentando novos empregos e atividades econômicas nutridas em esferas da vida até então vistas
tradicionalmente de fora do mercado: “A maioria dos trabalhadores se envolve em vários tipos diferentes
de trabalho, remunerados e não remunerados, simultaneamente e ao longo do curso de suas vidas,
transpondo essas categorias simples” (HUWS, 2014, p. 17). A criatividade, por sua vez, acaba por se tornar,
nessa lógica, um insumo e uma condição: é preciso que a criatividade seja quase um produto imaterial
do trabalho denominado criativo e, ao mesmo tempo, represente uma condição que possibilite que o
trabalhador permaneça no mercado de trabalho e não se torne obsoleto. Porém, apesar dos discursos de
criatividade e autorrealização, “a geração de conteúdo não tem sido imune às tensões e conflitos sobre a
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3 No original: “la generación de contenido no ha sido inmune a las tensiones y conflictos sobre la propie-
dad, el control de la producción y las normas laborales”.
4 Utilizei, para caracterização dos setores e ocupações, o Mapeamento da Indústria Criativa organizado
pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) para o biênio de 2017 a 2019. No mapeamento,
os estados do Sul e Sudeste brasileiros são os mais representativos na quantificação de trabalhadores
inseridos formalmente na indústria criativa. Por opções de recorte de pesquisa, recolhi as respostas de
informantes localizados nestas regiões.
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espaço ao mesmo tempo fixo (é necessário e pré-requisito para o trabalho) e móvel (fisicamente, pode
ser realizado de múltiplos espaços); e outra que respondeu “sala de ensaio, escritório, rua, cama, bar...
todos?”, indicando tanto certa reflexividade a respeito da multiplicidade de espaços para o trabalho
(possibilitada por meio do acesso à internet e de dispositivo/tecnologia de comunicação) quanto o
borramento da fronteira entre trabalho e outros setores da vida (a rua se torna espaço de trabalho, a cama
se torna espaço de trabalho, o bar se torna espaço de trabalho – espaços que antes indicavam somente
transitoriedade, descanso, lazer). É praticamente impossível encontrar algum trabalhador inserido nas
indústrias criativas que não esteja também inserido nos modelos de produção, distribuição e consumo na
internet – e na sociedade de plataforma.
Uma questão que ressalta a complexidade do trabalho na sociedade de plataforma é o fruto do
trabalho gratuito, ou, a produção de conteúdo para os gigantes digitais da nossa era. As redes sociais
e algumas plataformas que sediam a criação de conteúdo hoje ocupam um espaço importante para os
criadores de conteúdo. No questionário, as redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, LinkedIn, Whatsapp
etc.) apareceram como a ampla opção no momento de divulgar, circular ou produzir o conteúdo dos
profissionais criativos. A fronteira público/privado também é uma pista saliente nas respostas seguintes:
65% utilizam conta profissional em rede social, seguidos de 55% que utilizam conta pessoal nas mesmas
redes. O Brasil tem forte incidência de usos de redes sociais. Aqui, o trabalho é compartilhado, exposto
e impulsionado por meio das redes sociais como Facebook, Whatsapp e Instagram – antes mesmo de
ser definida por meio de outras plataformas identificadas por pesquisadores europeus, ou mesmo por
meio de aplicativos de serviços. Todos estão presentes, porém, as redes sociais são parte integrante da
cultura brasileira de internet, a mistura entre espaço público e privado (perfis pessoais e profissionais
mesclados, por exemplo) é sintomático. Programas de edição e recursos digitais gratuitos também
despontaram como as principais opções dos criativos, demonstrando o aspecto da gratuidade e do
compartilhamento incorporado ao uso da internet. Aplicativos mais utilizados estão no escopo da edição
e do compartilhamento de mensagens, assim como a importância da conta profissional de e-mail. Pacotes
de software, por sua vez, aparecem em maior número na modalidade paga, indicando o monopólio que
muitas empresas no setor possuem neste mercado.
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de certa forma, com algumas barreiras espaciais (como é o caso de clientes/chefes distantes). A ideologia
do microempreendedor brasileiro já é calcada na precarização do trabalho e a modalidade do freelancer
uma realidade de grande parte dos trabalhadores criativos (principalmente jornalistas, publicitários,
designers). Essa situação não indica menos precariedade, mas também não é como se o trabalho fosse
anteriormente estável e rentável ao ponto de o uso de plataformas agora representar um rebaixamento
de condições e remuneração. A compreensão do trabalho gratuito na internet, por sua vez, pode ser
pensada tanto a partir da cultura colaborativa quanto na geração de dados expropriados pelas grandes
corporações. É possível que o trabalhador criativo, inserido nessas lógicas, seja extremamente produtivo,
alimentando as plataformas e a cultura da internet, ao mesmo passo em que tenta equilibrar custos e
remuneração com seus serviços prestados.
O próprio trabalho, diante da financeirização e mundialização do capital, adquire cada vez
mais mobilidade entre sentidos anteriormente fixados como produtivo/improdutivo, material/imaterial
diante do capital financeiro, informacional e digital (ANTUNES, 2018). Mas não é apenas o trabalho que
se reorganiza diante da sociedade de plataforma capitalista - é também a subjetividade do trabalhador
imerso em tais lógicas. Como exemplificam Dardot e Laval (2016), a economia, a cultura, as regras para os
sistemas judiciário e político sofreram e ainda sofrem as intervenções da razão neoliberal (a “nova razão
do mundo”), mas, a novidade plantada na sociedade neoliberal (alimentada pelas crises do capital que vão
e voltam ciclicamente) é a constituição e interferência da razão na subjetivação. As mobilidades no interior
das subjetividades dos trabalhadores ─ que passa desde a compreensão de si mesmo como peça em uma
engrenagem até o entendimento de si como chefe e patrão próprios ─ são aspectos a se considerar com
atenção.
O sujeito neoliberal, o sujeito econômico, produtivo e eficaz (DARDOT e LAVAL, 2016) é uma
invenção dos nossos tempos engendrados na lógica normativa neoliberal, uma subjetividade competitiva
(em todos os níveis), responsabilizada individualmente pelas crises e oportunidades do emprego, que
funciona no modelo de gestão empresarial e que se comporta como microempresa em concorrência com
as demais microempresas de sujeitos neoliberais: a lógica do Você S.A. A cultura do empreendedorismo
(ou do trabalho a partir da perspectiva do mérito individual) carrega consigo alguns desses valores.
Destaca-se a compreensão de self-made, trabalhador autônomo, único responsável pelo seu sucesso
(e, consequentemente, também pelo seu fracasso). A lógica da subjetividade neoliberal desenha um
profissional que, além de multitarefa, é também “chefe-de-si-próprio e empregado-de-si-mesmo”, como
aponta Ricardo Antunes (2018). Ao construir sua problematização a respeito da nossa sociedade do
cansaço (uma sociedade exaurida pela própria produtividade constante), Byung-Chul Han (2017) sentencia
que a sociedade do século XXI não é mais aquela sociedade disciplinar foucaultiana, mas, a sociedade do
desempenho, formada por sujeitos de desempenho e de produção, “empresários de si mesmo” (HAN,
2017). Assim, perpassa entre os empreendedores (e entre aqueles que almejam empreender) um intenso
sentimento de produtividade e de pró-atividade, pois, “o poder ilimitado é o verbo modal positivo da
sociedade do desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e
motivação” (HAN, 2017, p. 24).
A era do capitalismo que também pode ser adjetivado como flexível, de acordo com Richard Sennett
(2009), estaria produzindo uma sociedade imediatista, corroída em seus valores morais, que ao substituir
a jornada fixa de trabalho pela informalidade e flexibilidade não gerou consequentemente autonomia
ou liberdade emancipatória, mas, sim, novos formatos de dominação, possivelmente mais diluídos e
pulverizados nas rotinas pessoais e profissionais. Para os criativos (denominação dada aos trabalhadores
inseridos ─ formal ou informalmente ─ na indústria criativa) que responderam ao questionário, as
modalidades e vínculos de trabalho mais preponderantes foram as categorias “autônomo” e “freelancer”.
Uma das respondentes salientou sobre seu trabalho: “[É] sem orientações, preciso ser autônoma dentro
da agência e ‘me virar para trazer os resultados’. Como adoram dizer, é preciso entregar mais do que foi
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pedido. Lá adoram o papo de que trabalhamos para nós mesmos e não para a empresa”.
A ideologia do autônomo e do empreendedorismo acomete tanto trabalhadores inseridos neste
tipo de modalidade de vínculo empregatício quanto aqueles que trabalham em empresas por contratos
(seja por meio de contratos formais ou precarizados); tanto os que trabalham em ambientes privados (casa,
coworking etc.) quanto aqueles que trabalham com times e equipes. A individualidade da produtividade
integra a ideologia neoliberal no sistema produtivo. Para trabalhadores criativos informais (ou freelas) é
bastante recorrente o discurso sobre dividir o próprio trabalho entre “o que me sustenta” e “o que faço
por amor”, respingando um pouco na ideologia do autônomo em consonância com a máxima “amar o
trabalho”, “amar o que se faz”. É comum encontrar um freelancer criativo que relata dividir suas ocupações
entre remuneração, satisfação profissional, satisfação pessoal, equilibrando-as todas na realização de seu
trabalho (fato que transparece em muitas respostas ao questionário).
Aqui se insere uma contradição ao conceito de alienação e estranhamento marxistas ao definir,
por sua própria cultura, que o trabalho não é mais um meio para saciar necessidades. Ele é, em si,
uma necessidade própria. Carrega consigo marcas que disputam atenção e que sentenciam: satisfação,
prestígio, reconhecimento, sucesso, realização profissional. Diante da pergunta “quais são suas motivações
para o trabalho que realiza?”, os criativos responderam da seguinte forma: a maior parte das respostas
concentrou-se no atributo da “experiência”, indicando tanto transitoriedade (acúmulo de experiências,
acúmulo de cargos, direcionamento de carreira a partir do acúmulo de experiências) quanto foco no
conhecimento e desenvolvimento de habilidades profissionais. Outro demonstrativo é a segunda opção
─ “desenvolvimento pessoal” ─ que evidencia mais uma vez o elemento do propósito, da motivação, o
trabalho não apenas como canal para remuneração e trocas econômicas, mas, também, como espaço de
desenvolvimento, crescimento individual, aperfeiçoamento do sujeito. Empatado está o critério de salário
e remuneração, muito próximo ao elemento de subsistência – indicando que, apesar de ser uma escolha,
o trabalho criativo é uma forma de manutenção da vida no sistema capitalista (o que, em partes, não é
uma mera opção). Desenvolvimento de habilidades criativas e realização profissional também enquanto
critérios predominantes se assemelham às categorias que indicam o trabalho enquanto crescimento, mais
uma vez atreladas a ideia de motivação, propósito. Desejos muito pessoais que demonstram a centralidade
do trabalho em nossas vidas (que representa um entre os aspectos principais nos quais precisamos obter
sucesso, assim como na saúde, no casamento, nas relações sociais, entre outros).
Esses são os modalizadores do trabalho inseridos no capitalismo contemporâneo dotado de
razão neoliberal: o distanciamento do sentido social e coletivo do trabalho (como compreendia Marx) e
a aproximação às categorias de desempenho individual, realização pessoal. Entretanto, a questão central
não é a crítica à projeção laboral ou mesmo a busca por sentidos de realização e satisfação profissionais
(características que, em si, não são necessariamente distanciadas do trabalho, uma vez que o próprio
trabalho é também criação/realização/expressão e a forma pela qual o sujeito se expressa e se posiciona
socialmente). Há uma constante luta interna (para além dos conflitos de classe) que configura a relação do
sujeito com seu trabalho, a contradição entre autorrealização por meio do trabalho e cansaço/desgaste
oriundos da mesma esfera, embora de relação diferente, visto que o trabalho integra sua dialética
espetacular (ANTUNES, 2018), versando sempre sobre alienação e criação, realização e sofrimento. Um
dos elementos interessantes de trazer à tona ao se discutir satisfação e exploração no/do trabalho é a
questão da criatividade e a glamourização que a circunda diante do imaginário a respeito dos trabalhos e
empregos identificados como criativos.
Ao contrário do imaginário automatizado, repetitivo, de sofrimento e alienação, o surgimento
de uma indústria criativa teria a seu favor o uso das qualidades humanas para o trabalho, como o
próprio ato de criação, transformando diretamente rotinas produtivas e a relação de muitos com o
próprio trabalho através da flexibilidade, da criatividade, da inovação, do intelecto. Conjuntamente
à ideia de criatividade, o conceito de inovação (fortemente atrelado aos desenvolvimentos científicos,
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Trabalhe você mesmo: o trabalho “criativo” na sociedade de plataforma
informacionais e comunicacionais das últimas décadas) conecta-se ao de trabalho, como define Martinez
(2019). Aliados do trabalho criativo, a inovação e o empreendedorismo passam a valer na gramática
sobre o trabalho, distanciando a mesma das noções de exploração, alienação, considerados antiquados,
enquanto novos signos são louvados: aqueles associados à criatividade, inovação, empreendedorismo,
excluindo os mesmos das condições materiais do mundo do trabalho (GROHMANN, 2015). Com tais signos
em circulação, produzem-se discursos sobre o mundo do trabalho que reiteram sentidos de “trabalho
criativo”, “inovador”, “com amor”, que Grohmann (2015) define como consumo do trabalho adjetivado.
Essa associação produz identificações e um contexto comunicacional para o trabalho, apelando para
a criatividade, unindo trabalho e consumo em uma mesma esfera (GROHMANN, 2015). As noções de
divertimento, amor e vocação invisibilizam sentidos negativos atribuídos ao trabalho, ao que Fuchs (2015)
denomina como “fetichismo inverso da mercadoria” ─ o divertimento esconde que o trabalho é trabalho,
o processo produtivo aparece na mesma dimensão que a mercadoria, mas a sua dimensão de trabalho é
apagada e ocultada.
As ocupações no capitalismo pós-industrial (que é caracterizado por novas modalidades de
emprego e ocupações, boa parte delas relacionadas aos serviços) trazem significados em suas relações
que fornecem valores do produto para os consumidores, ou, “dito de outra forma, o próprio trabalhador
é parte do produto que está sendo oferecido ao cliente” (SORJ, 2000, p. 30). O trabalhador criativo como
garoto-propaganda de sua marca e de seu trabalho, as narrativas que o sujeito emite a partir de suas
projeções nas plataformas de redes sociais (fotografias, textos, posts, vídeos etc.) que misturam a vida
pessoal com a vida profissional indicam também um imaginário contemporâneo a respeito do trabalhador
criativo. Se o trabalho moderno era um definidor da projeção social do sujeito mediante cargo e ocupação,
hoje é possível pensar que o trabalho ainda é um importante mediador da projeção social, porém,
misturado a outros aspectos da vida contemporânea, desenhando um sujeito que é integrado e ao mesmo
tempo múltiplo. A ideia ao redor do propósito de trabalho também aparece nas respostas indicadas,
promovendo ideais a respeito de divulgação da arte, incentivo à criatividade, apoio aos artistas, soluções
para problemas de comunicação e criação, como consequências e atributos quase transcendentais ao
trabalho (emprego) criativo. Representam atividades rotineiras, porém, ao mesmo tempo podem ser
considerados como propósitos humanitários superiores a um simples ofício. Também são expressos como
atributos valiosos aos trabalhadores para além da relação trabalho-salário, representando uma espécie de
missão cotidiana do ofício do trabalho criativo.
Uma leitura que aproxima tanto o trabalho do consumo em uma relação praticamente direta
modifica comportamentos e culturas empresariais e profissionais, e em muitos momentos esconde as
consequências negativas (tais como precarização e flexibilização de direitos e remuneração). Vander
Casaqui e Viviane Riegel (2009), ao analisarem consumo simbólico e trabalho criativo no Google,
identificam que há, na produção desenvolvida na empresa, “significações de criatividade, despojamento,
modernidade e juventude, torna-se espetáculo que sublima o caráter competitivo e demais conotações
negativas associadas a essa esfera de atuação humana” (CASAQUI e RIEGEL, 2009, p. 163). No interior
desse contexto que é também comunicacional, o trabalhador do Google torna-se também um consumidor
modelo do universo simbólico da própria marca-empresa, que, por si só, utiliza a sedução da criatividade
unindo, assim, trabalho e consumo, mercadorizando a imagem do mundo do trabalho no contexto criativo
e tecnológico (CASAQUI e RIEGEL, 2009). O trabalhador criativo é, ao mesmo tempo, produtor e produto,
parte da imagem que o circunda se torna aspecto fundamental para que a ideia construída ao redor do
processo produtivo possa ser efetiva em demanda e consumo. E nesse aspecto, Casaqui e Riegel (2009)
trazem Appadurai (1999) e Marx (1867; 2017) para resgatar o sentido de fetichismo da mercadoria agora
desdobrado em fetichismo da produção, que se trata do mascaramento do sistema produtivo, e em
fetichismo do consumo, que por sua vez esconde o simulacro no qual vive o consumidor, afetado pelo
tensionamento de suas escolhas e pelo apagamento do uso de estratégias mercadológicas (APPADURAI,
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Considerações finais
O trabalho dito como criativo, lido através do exercício de questionário-exploratório, pode ser
entendido, a partir das contribuições dos respondentes, como um trabalho considerado importante para
além das trocas econômicas (embora se visualize falta de direitos, garantias e remunerações baixas),
representando quase que uma espécie de propósito de vida, imbuído de criatividade, o que o diferenciaria,
teoricamente, de empregos mecânicos e repetitivos. A missão e propósito imbuídos nas respostas dos
profissionais criativos identificam os valores individuais do trabalho (ainda que missão possa denotar
serviço aos outros) na atual sociedade de plataforma. O sujeito-empreendedor, autônomo, criativo e
5 Optei por manter a expressão utilizada pela informante nesta resposta. A respondente identifica “ladaia”
(gíria para conversa fiada, mentira, ilusão) criada ao redor do espaço (com papeis coloridos, café expres-
so, comida à vontade, sinuca, bebidas etc.) como forma de transmitir aos trabalhadores uma imagem de
ambiente informal, propício à criatividade, estimulante.
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Trabalhe você mesmo: o trabalho “criativo” na sociedade de plataforma
digital – que pensa colaborar enquanto produz independentemente da manifestação do próprio interesse
– é o sujeito da plataformização do trabalho.
Na prática, o trabalho criativo apresenta sintomas industriais fordistas, como a própria repetição,
alienação, relação de exploração do tempo e do assalariamento, hierarquias, todos elementos apontados
pelos respondentes. O tempo de trabalho destinado ao ofício é, em média, longo e pouco diferenciado
do tempo de lazer ou descanso, os espaços são múltiplos e móveis (tanto os digitais quanto os físicos),
trabalhar de casa (home office) é visto quase como um direito trabalhista por muitos e, na visão do
trabalho moderno e tradicional, não é sequer considerado como trabalho. Além disso, há muitos sintomas
de individualização dos processos produtivos e dos espaços de trabalho. A flexibilidade e a autonomia são
lidas como atributos positivos e facilitadores da rotina criativa. Porém, a cultura dos espaços de trabalho
que simulam diversão e informalidade, assim como os discursos de “trabalhe para você” e “faça você
mesmo”, não são lidos acriticamente por todos os profissionais criativos. Para muitos respondentes, a
intenção de valorização, reconhecimento e desenvolvimento de habilidades profissionais e pessoais não
surgem destituídas de pelo menos alguma desconfiança com os valores corporativos e capitalistas.
Mas, como a plataformização do trabalho afeta o trabalho criativo diretamente? A partir das
reflexões geradas entre a soma da articulação teórica com a análise dos resultados da pesquisa exploratória
que realizei, é possível apontar que as principais incidências da plataformização no trabalho criativo são:
1) O não-ser das plataformas que acentuam a figura do sujeito-empresa: a desresponsabilização
e desregulação sobre o trabalho realizado nas plataformas direciona sentidos de mérito individual já
muito presentes diante da racionalidade neoliberal. O “patrão que não é patrão”, logo não é responsável
por assegurar direitos ainda que cobre resultados, e “o empregado que não é empregado”. O trabalho
plataformizado que se esconde em seu significado de trabalho atrás dos sentidos de divertimento, amor
ao trabalho e propósito de vida.
2) A fronteira nebulosa das esferas público e privado, o sujeito-empresa que, através das
plataformas, nunca deixa de o ser. As redes sociais como plataformas de circulação tanto do resultado
do trabalho quanto da própria subjetividade do trabalhador, que passa a desempenhar tal papel a todo
momento.
3) e a dupla característica que adquire o trabalho plataformizado: o produto do trabalhador
criativo que é produzido/circula nas plataformas (e a dependência das mesmas para o trabalho) e o próprio
trabalhador criativo como produto. Nesse segundo aspecto, ainda se insere a questão da produção de
dados, pois, o trabalho denominado como criativo realizado nas plataformas gera mercadoria tanto no
produto final quanto nos dados extraídos graças ao trabalho gratuito digital. Essas e outras questões podem
ser observadas nas respostas ao questionário, assim como no cotidiano ou através do que trabalhadores
criativos comunicam e expressam, por meio de outras pesquisas sobre trabalho e informalidade, trabalho
e criatividade, trabalho e sociedade de plataforma.
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Trabalhe você mesmo: o trabalho “criativo” na sociedade de plataforma
Nathália Drey Costa é doutoranda em Comunicação Midiática, linha de pesquisa Mídia e Identidades
Contemporâneas, pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação (Poscom) da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). Mestre em Comunicação Midiática, também pelo Poscom da UFSM. Bacharel em
Comunicação Social (habilitação em Jornalismo) pela mesma instituição, graduada no ano de 2011.
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