O Planeta Dos Dragoes - Jack Vance

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O PLANETA DOS DRAGÕES

No planeta Aerlith, os homens procuram reconstituir a civilizaçã o


perdida. No passado, com suas astronaves e uma ciência avançada, a
raça humana conquistara e colonizara toda a galá xia.

Agora só restam pequenos nú cleos isolados, entregues à pró pria


sorte.

E o que é pior: destruindo-se mutuamente em guerras inú teis, frutos


da inveja, ambiçã o e poder. Perdida a tecnologia antiga, recorrem a
armas primitivas, como se tivessem voltado à Idade Média. E
dispõ em de estranhos dragõ es, uma raça domesticada e
aperfeiçoada durante séculos, para a finalidade exclusiva da guerra.
Levam nomes sinistros e têm uma aparência diabó lica.

Como se toda essa auto determinaçã o ainda nã o bastasse, sã o os


ataques pe-rió dicos de seres vindos de outro planeta, os Bá sicos,
que destroem tudo em nome de uma "Regra"

monstruosa, levando os homens como prisioneiros e submetendo-os


à condiçã o de seres inferiores e primitivos.

Além dos homens e dragõ es, vivem em Aerlich os Sacerdotes, uma


raça misteriosa de homens que andam nus e só falam quando
interrogados. Praticam uma espécie de misticismo Zen, embora seu
raciocínio obedeça a uma ló gica implacá vel. E nã o sã o tã o inocentes
e pacatos como parecem.

Joaz Banbeck sonha vencer os Bá sicos e retomar a gloriosa jornada


do homem pelo Universo.
O Planeta dos Dragões é a narrativa fascinante de homens que
lutam por sua sobrevivência num planeta inó spito, sob a eterna
ameaça de um povo que despreza a raça humana.

CAPÍTULO 1

Os apartamentos de Joaz Banbeck, cavados no coraçã o da rocha


calcá ria, compunham-se de cinco peças principais, em cinco níveis
diferentes. No alto estavam o relicá rio e a câ mara oficial do
conselho: o primeiro, uma sala de sombria magnificência abrigando
os diversos arquivos, troféus e recordaçõ es da família Banbeck; o
segundo, um vestíbulo estreito e comprido, onde os lambris escuros
subiam até a altura do peito; no alto, a abó bada branca de estuque
estendia-se por toda a extensã o do rochedo, desorte que as sacadas
davam para o Vale Banbeck de um lado e sobre a Alameda Kergan
do outro.

Na parte inferior ficavam os aposentos particulares de Joaz Banbeck:


uma sala de visitas que era, ao mesmo tempo, quarto de dormir,
estú dio e, embaixo de tudo, a oficina onde ninguém tinha
autorizaçã o de entrar.
A entrada nos apartamentos era através do estú dio, sala espaçosa
em forma de L com o teto decorado de requintados relevos, e do
qual desciam quatro candelabros cravejados de granadas.

Estes estavam apagados no momento, a luz cinzenta e difusa que


penetrava na peça provinha de quatro lâ minas polidas de vidro
sobre as quais, à semelhança de uma câmera obscura, estavam
focalizadas as vistas que davam para o Vale Banbeck. As paredes
eram recobertas de fibra de junco tratado; um tapete dese-nhado
com â ngulos, quadrados e círculos, nas tonalidades castanho-
avermelhado, marrom e preto, cobria o piso.

No meio do estú dio estava um homem nu, com longos cabelos


castanhos e finos ondulando sobre as costas, um colar dourado
pendendo em volta do pescoço. Os traços eram fortes e angulosos, o
corpo esguio; parecia estar prestando atençã o a alguma coisa ou
talvez meditando.

Vez por outra olhava de relance para um globo amarelo de má rmore


em cima de uma estante pró xima, movendo os lá bios
simultaneamente como se estivesse memorizando alguma frase ou
sequência de ideias.

Na outra extremidade do estú dio uma porta pesada moveu-se sem


ruído e uma moça de rosto juvenil espiou para dentro com
expressã o alegre e maliciosa. Ao enxergar o homem nu, levou a mã o
à boca, como se abafasse uma exclamaçã o de surpresa. O homem
voltou-se, mas a porta já tinha sido fechada.

Durante alguns instantes permaneceu mergulhado em reflexã o


profunda, depois caminhou lentamente em direçã o a uma das
paredes internas da sala. Retirou uma seçã o da estante, passou 1
pela abertura. Atrá s dele a estante fechou-se sozinha com um baque
surdo. Descendo por uma escada em caracol, entrou num cô modo
cavado rusticamente na rocha: a oficina particular de Joaz Banbeck.
Em cima da bancada havia ferramentas, peças e pedaços de metal,
uma prateleira de células eletromotoras, extensõ es de circuitos: em
suma, coisas pelas quais Joaz Banbeck se interessava.

O homem nu parou defronte da bancada, segurou um dos aparelhos,


examinou-o com uma espécie de condescendência, embora seu
olhar fosse tã o límpido e interessado quanto o de uma criança.
Vozes abafadas, provenientes do estú dio, penetraram na oficina. O
homem nu levantou a cabeça para ouvir melhor, depois meteu-se
para baixo da bancada, levantou um bloco de pedra, passou pelo
buraco e foi dar numa abertura escura. Apó s recolocar a pedra no
lugar, apanhou uma vara luminosa e desceu por um tú nel estreito
que ia dar numa caverna natural. A intervalos irregulares tubos
luminosos emitiam uma luz fraca que servia apenas para desfazer a
escuridã o. O

homem caminhou rapidamente, os cabelos sedosos esvoaçando


sobre os ombros e formando um halo.

De volta ao estú dio, a jovem Phade e um idoso senescal discutiam


acaloradamente.

—Juro que o vi! - insistia Phade.

—Com estes meus olhosque a terra há de comer! Um dos sacerdotes,


em pé no meio da sala, como já descrevi. - Puxou com raiva o
cotovelo do velho.

—Você acha mesmo que estou ficando louca ou histérica?


Rife, o senescal, deu de ombros, sem se pronunciar por uma coisa
nem por outra.

—Nã o o estou vendo agora. Subiu a escada e olhou para dentro do


quarto. Vazio. As portas em cima estã o trancadas. Voltou-se e lançou
um olhar irô nico para Phade.

—E eu estava sentado no meu posto na entrada.

—Você estava dormindo. Estava inclusive roncando quando passei


por aqui!

—Você se enganou. Eu apenas tossi.

—Com os olhos fechados, a cabeça caída para trá s? Rife tornou a


balançar os ombros.

—Dormindo ou acordado, dá na mesma. Admitindo que a criatura


entrou na sala, por onde ela saiu? Eu estava acordado depois que
você me chamou, como você mesma percebeu.

—Entã o nã o saia daqui enquanto procuro Joaz Banbeck! Phade


correu pelo corredor que dava para a Alameda das Aves, assim
chamada pela série de pá ssaros fabulosos de lá pislazú li, ouro,
ciná brio, malaquita e marcassita incrustados no má rmore. Passando
pela galeria de jade verde e cinza, de coluna sem espiral, ganhou a
Alameda Kergan, desfiladeiro natural que formava a 2

principal via da Aldeia Banbeck. Ao chegar perto do portal, chamou


dois rapazes que vinham do campo.
—Corram até a criadeira à procura de Joaz Banbeck! Tragam-no
aqui sem demora. Preciso falar urgentemente com ele.

Os dois jovens correram em direçã o a um cilindro baixo de tijolos


pretos que se encontrava a um quilô metro e meio mais para o norte.

Phade aguardou. Com o sol Skene no alto do céu, o ar estava quente;


os canteiros de ervilhaca, de bellegarde, de spharganum exalavam
um perfume agradá vel. Phade encostou-se à cerca. Refletiu sobre o
peso daquela notícia: teria sido mesmo realidade?

—Nã o! - exclamou com decisã o. —Eu vi! Eu vi!

De ambos os lados, penhascos altos e brancos subiam até a Beira


Banbeck, com montanhas e rochedos mais adiante, estendendo-se
por todo o céu negro pontilhado de flocos de cirros. Skene
resplandecia fortemente, um pontinho minú sculo de luminosidade.

Phade suspirou, meio convencida de seu pró prio erro. Outra vez,
com menos veemência, tranquilizou-se a si mesma. Nunca vira antes
um sacerdote; por que haveria de imaginar um agora?

Os dois rapazes, ao chegarem à s criadeiras, desapareceram na


poeira dos cercados e das pistas de treinamento. Escamas brilhavam
e piscavam; criados, mestres de dragõ es, protegidos com armaduras
de couro preto agitavam-se no picadeiro. Joaz Banbeck apareceu
pouco depois.

Montado numa Aranha alta, de pernas finas, que açulava a fim de


obter o má ximo dos saltos longos, avançava lentamente pelo
caminho que levava à Aldeia Banbeck.
A incerteza de Phade aumentou. Joaz se mostraria irritado?
Desdenharia a notícia com um olhar de incredulidade? Ansiosa,
observou-o aproximar-se. Como viera para o Vale Banbeck há
apenas um mês, sentia-se insegura de sua posiçã o. Seus mestres a
haviam treinado com aplicaçã o no pequeno vale desolado do sul,
onde nascera, mas a diferença entre a instruçã o e a realidade prá tica
de todos os dias desorientava-a à s vezes. Aprendera que todos os
homens obedeciam a um grupo pequeno e idêntico em
comportamentos; Joaz Banbeck, no entanto, nã o observara estes
limites e Phade julgava-o inteiramente imprevisível.

Sabia que Joaz era um homem relativamente jovem, embora nã o se


pudesse calcular sua idade a partir da aparência. Joaz tinha o rosto
pá lido e á ustero, e seus olhos cinzas brilhavam como cristais; a boca
rasgada, de lá bios finos, sugeria flexibilidade, embora nunca se
curvasse muito além da linha reta. Andava com indolência e sua voz
nã o tinha veemência; também nã o fazia questã o de exibir nenhuma
habilidade especial com sabre nem com pistola. Parecia evitar
deliberadamente 3

qualquer gesto que pudesse conquistar a admiraçã o ou afeiçã o dos


seus sú ditos. Phade, no início, julgou-o frio, se bem que depois
mudara de opiniã o. Chegou à conclusã o de que Joaz era um homem
entediado e solitá rio, com um temperamento tranquilo que à s vezes
parecia meio melancó lico. Mas ele a tratava sem descortesia e
Phade, provocando-o com as mil e uma seduçõ es que conhecia,
imaginou algumas vezes perceber uma faísca de resposta.

Joaz Banbeck desmontou da Aranha e mandou-a de volta para a


cocheira. Phade aproximou-se com hesitaçã o, enquanto Joaz dirigia-
lhe um olhar interrogativo.
—O que justifica esse chamado tã o urgente? Está lembradado item
19?

Phade corou embaraçada. Havia descrito meio infantilmente os


exercícios rigorosos de seu treinamento. Joaz referia-se agora a um
item de uma das classificaçõ es que lhe escapara da mente.

Ela falou rapidamente, com excitaçã o:

—Eu abri a porta do estú dio, bem devagar, com todo cuidado. E sabe
o que vi? Um sacerdote, nu em pêlo! Ele nã o me viu. Tornei a fechar
a porta e corri à procura de Rife. Quando voltamos os dois, a sala
estava vazia!

As sobrancelhas de Joaz contraíram-se ligeiramente e ele levantou a


vista em direçã o ao vale.

—Estranho - disse e perguntou depois de um instante:

—Você tem certeza de que ele nã o a viu?

—Nã o. Acho que nã o. Mesmo assim, quando voltei com esse velho e
estú pido Rife, ele tinha desaparecido! É verdade que eles conhecem
magia?

—Quanto a isso, nã o posso responder - retrucou Joaz.

Os dois voltaram pela Alameda Kergan, atravessaram tú neis e


corredores abertos nas rochas, chegando finalmente ao vestíbulo.
Rife cochilava novamente em sua mesa. Joaz fez sinal para que
Phade se afastasse e, adiantando-se em silêncio, abriu a porta do
estú dio. Olhou para um lado e para o outro, com as narinas alertas. A
sala estava vazia. Subiu as escadas, examinou a pequena sala-
dormitó rio e voltou ao estú dio. A menos realmente que houvesse
má gica, o sacerdote tinha encontrado uma entrada secreta. Com este
pensamento na cabeça, Joaz abriu a porta do armá rio de livros,
entrou na oficina e examinou de novo o ar a procura do aroma
agridoce característico dos sacerdotes. Um vestígio? Possivelmente.

Investigou a peça palmo a palmo, examinando-a de todos os â ngulos.


Finalmente, junto à parede embaixo da bancada, descobriu uma
fenda quase imperceptível, de formato retangular.

Joaz balançou a cabeça com uma satisfaçã o sombria. Ergueu-se e


voltou para o estú dio.

Examinou as estantes. O que havia ali que pudesse interessar ao


sacerdote? Da pró xima vez que 4

encontrar um sacerdote, pensou distraidamente, vou indagar-lhe a


este respeito. Pelo menos terá que me dizer a verdade. Pensando
melhor, a pergunta pareceu-lhe ridícula; os sacerdotes, apesar de
andarem nus, nã o eram selvagens; aliá s, tinham sido eles que lhe
haviam fornecido seus quatro painéis de visã o - um aparelho que
revelava boa dose de inventividade.

Joaz inspecionou em seguida o globo amarelo de má rmore que


considerava seu objeto mais precioso - a representaçã o mítica do
planeta É den. Aparentemente nã o fora mexido. Numa outra estante
havia modelos dos dragõ es de Banbeck - as Megeras, cor de
ferrugem; os Assassinos de Chifres Compridos e seus primos, os
Assassinos Galopantes; os Monstros Azuis; os Demô nios, que se
arrastavam no chã o, imensamente fortes, tendo nas pontas dos
rabos ferrõ es de aço; por ú ltimo, os maciços Moloques, que tinham
os crâ nios polidos e brancos como uma casca de ovo.
Ligeiramente afastado estava o progenitor do grupo inteiro - uma
criatura pá lida, cor de pérola, apoiada em duas pernas, com dois
membros centrais muito versá teis, sem falar no par de membros
anteriores, multiarticulados, no pescoço. Por mais esplendidamente
detalhados que fossem estes modelos, por que haveriam de
despertar a curiosidade dos sacerdotes? Nã o havia nenhuma razã o
aparente, sobretudo quando os originais podiam ser estudados
diariamente sem o menor obstá culo.

E a oficina? Joaz esfregou o queixo comprido e pá lido. Nã o nutria


ilusõ es sobre o valor do seu trabalho. Simples ocupaçõ es ociosas,
nada mais. Nã o havia sentido em ficar ali fazendo conjecturas.

Muito provavelmente o sacerdote nã o viera com nenhuma missã o


específica; a visita devia fazer parte de uma inspeçã o permanente.
Mas por quê?

Ouviu baterem à porta: o punho irreverente do velho Rife. Joaz


atendeu.

—Joaz Banbeck, uma mensagem de Ervis Carcolo do Vale Feliz.


Deseja conferenciar com você e aguarda uma resposta na Beira
Banbeck.

—Muito bem - disse Joaz; vou conferenciar com ErvisCarcolo.

—Aqui ou na Beira Banbeck?

—Na Beira Banbeck, dentro de meia hora.

5
CAPÍTULO 2

A quinze quilô metros do Vale Banbeck, além de uma regiã o deserta


e assolada pelos ventos, formada de cordilheiras, rochedos, picos,
fendas espantosas, precipícios á ridos e campos de pedregulhos
rolados, encontra-se o Vale Feliz. Da mesma largura que o Vale
Banbeck, mas tendo somente a metade da extensã o e da
profundidade, seu solo depositado pelo vento era apenas um pouco
menos rico e menos produtivo.

O conselheiro principal do Vale Feliz era Ervis Carcolo, homem


troncudo, de pernas curtas, rosto afogueado, boca grossa, um
temperamento instá vel, ora alegre ora colérico. Ao contrá rio de Joaz
Banbeck, nada agradava tanto a Carcolo quanto suas visitas à s
cocheiras dos dragõ es, onde tratava os mestres dos dragõ es, os
criados e os pró prios dragõ es com toda sorte de críticas, exortaçõ es
e advertências,

Ervis Carcolo era um homem enérgico que se preocupava em fazer o


Vale Feliz retornar à condiçã o de prestígio que desfrutara uma doze
geraçõ es antes. Durante aqueles tempos difíceis, antes do advento
dos dragõ es, os homens combatiam pessoalmente e os guerreiros do
Vale Feliz haviam sido especialmente ousados, há beis e impiedosos.
O Vale Banbeck, o Grande Rift do Norte, Clewhaven, o Vale Sadro e a
Ravina Phosphor reconheciam todos a autoridade da família
Carcolo.
Foi entã o que desceu do espaço a nave dos Bá sicos, ou grefos, como
eram conhecidos na época. Seus ocupantes mataram ou
aprisionaram a populaçã o inteira de Clewhaven, tentando o mesmo
no Grande Rift do Norte, no que só foram parcialmente bem
sucedidos; bombardearam em seguida os povoados remanescentes
com granadas explosivas. Quando os sobreviventes retornaram aos
vales devastados, o domínio do Vale Feliz nã o era mais que um
sonho. Na geraçã o seguinte, durante a Idade do Ferro Ú mido, até
mesmo o sonho perdeu sua razã o de ser. Numa batalha decisiva,
Goss Carcolo foi capturado por Kergan Banbeck e forçado a castrar-
se com sua pró pria faca.

Transcorreram cinco anos de paz; depois os Bá sicos voltaram. Apó s


despovoar o Vale Sadro, a grande nave negra aterrou no Vale
Banbeck, mas os habitantes tinham sido prevenidos e fugiram para
as montanhas. Ao anoitecer, vinte e três Bá sicos investiram na
retaguarda de seus guerreiros 6

cuidadosamente treinados. Havia diversos pelotõ es de Tropas


Pesadas, um esquadrã o de Atiradores - que se pareciam bastante
com os homens de Aerlith - e um esquadrã o de batedores.

Estes ú ltimos eram ostensivamente diferentes. A tempestade


vespertina desabou sobre o vale, inutilizando os aparelhos voadores
da nave, o que deu a Kergan Banbeck a oportunidade de realizar um
feito surpreendente, graças ao qual seu nome tornou-se lendá rio em
Aerlith. Em vez de seguir seu povo na fuga aterrorizada em direçã o
ao Topo das Pedras, Kergan reuniu sessenta guerreiros e exortou-os
à luta com exclamaçõ es de jú bilo e de escá rnio. Saltando de uma
emboscada, seus homens exterminaram um pelotã o das Tropas
Pesadas, puseramos outros em debandada e capturaram os vinte e
três Bá sicos, antes mesmo que estes se dessem conta do perigo. Os
Atiradores recuaram em pâ nico, tomados de frustraçã o,
impossibilitados de usarem suas armas com receio de matarem seus
chefes. As Tropas Pesadas avançaram à s cegas, decididas a fazer alto
somente quando Kergan Banbeck fosse morto. Desorientadas, foram
obrigadas a recuar enquanto Kergan Banbeck e seus homens
escapavam na escuridã o, levando consigo os vinte e três
prisioneiros.

A longa noite de Aerlith passou, a tempestade matutina varreu de


leste, com trovõ es e raios, e afastou-se majestosamente para oeste,
como se abrisse uma cortina para Skene, que se levantou como um
á tomo luminoso. Três homens saíram da nave dos Bá sicos: um
Atirador e dois Batedores.

Subiram a encosta da Beira Banbeck enquanto no alto voava um de


seus pequenos aparelhos, o qual nã o passava de uma minú scula
plataforma flutuante, que mergulhava e rodopiava no vento como
um papagaio mal equili-brado. Os três homens caminharam
penosamente para o sul em direçã o ao Topo das Pedras, regiã o de
sombras e de luzes caó ticas, de rochas fraturadas e de rochedos
caídos, de pedregulhos e pedras amontoados. Era ali o refú gio
habitual dos homens perseguidos.

Fazendo alto diante das Pedras, os Atiradores chamaram Kergan


Banbeck, convocando-o para uma conferência.

Kergan Banbeck apresentou-se sem demora e teve lugar entã o o


diá logo mais estranho na histó ria de Aerlith. O Atirador falou na
língua dos homens com dificuldade, uma vez que seus lá bios, sua
língua e sua glote eram mais adaptadas à fala dos Bá sicos.
—Você está sujeitando vinte e três dos nossos Venerados. É
necessá rio que os encaminhe aqui, com toda a humildade.

O Atirador falou com sobriedade, com um ar de delicada melancolia;


nã o afirmava, nã o ordenava nem insistia. Como seus há bitos
linguísticos correspondiam aos padrõ es dos Bá sicos, o mesmo
ocorria com seus processos mentais.

Kergan Banbeck, um homem alto e seco de sobrancelhas negras e


brilhantes, os cabelos negros presos numa crista alta de cinco
pontas, deu uma gargalhada sem graça.

—O que você me diz dos habitantes de Aerlith que foram mortos? E


dos outros que estã o capturados no interior da nave?

O Atirador inclinou-se profundamente; sua figura tambémera


marcante, com uma nobre cabeça aquilina. Nã o tinha cabelos, com
exceçã o de pequenos tufos de pêlos amarelos e finos. A pelebrilhava
como se fosse envernizada; as orelhas, no que se diferenciava mais
notavelmente dos homens desadaptados de Aerlith, eram pequenos
abanos frá geis.

Vestia um traje simples, azul-escuro e branco; nã o levava armas


consigo, a nã o ser o ejetor de multiutilidade. Com perfeita
compostura e argumentaçã o tranquila, respondeu à s perguntas de
Kergan Banbeck.

Os habitantes de Aerlith que foram mortos estã o mortos. Os que


estã o a bordo da nave serã o fundidos ao substrato, onde a infusã o
de sangue fresco do exterior é valiosa.
Kergan Banbeck examinou o Atirador com desdenhosa deliberaçã o.
Em alguns aspectos, pensou Kergan Banbeck, este homem
modificado e cuidadosamente cruzado assemelha-se aos sacerdotes
de Aerlith, especialmente na pele clara, nos traços fortemente
modelados, nos longos braços e pernas. Talvez a telepatia estivesse
em açã o, ou algum eflú vio do odor característico tivesse chegado até
ele. Ao voltar a cabeça, avistou um sacerdote entre as rochas a uns
vinte metros de distâ ncia - um homem nu com exceçã o do colar
dourado e dos cabelos castanhos que ondulavam sobre as costas
como uma flâ mula. Segundo a antiga tradiçã o, Kergan Banbeck
olhou como que através dele; como se nã o tivesse presença física. O
Atirador, apó s um rá pido relance, imitou seu gesto.

—Rogo que solte os prisioneiros de Aerlith que estã o na nave -


insistiu Kergan Banbeck com a voz serena.

O Atirador balançou a cabeça sorrindo e empregou seus melhores


esforços para se fazer compreender.

—Estas pessoas nã o estã o em discussã o. O... - fez uma pausa,


procurando encontrar as palavras certas - ...o destino delas está ...
parcelado, quantificado, ordenado. Estabelecido. Nada mais pode ser
modificado.

O sorriso de Kergan Banbeck tornou-se uma careta cínica.


Permaneceu silencioso e indiferente, enquanto o Atirador falava. O
sacerdote aproximou-se lentamente do grupo, dando pequenos
passos de cada vez.
—É preciso entender - continuou o Atirador - que existe um padrã o
para os fatos. A funçã o de indivíduos como eu consiste em
manipular os fatos de maneira que correspondam ao padrã o.

Inclinou-se e, com um gesto gracioso do braço, apanhou uma


pequena pedra pontuda no chã o.

— Da mesma forma que posso polir esta pedra a fim de adaptá -la a
um orifício redondo.

Kergan Banbeck deu um passo à frente, apanhou a pedra e atirou-a


para o alto, sobre os grandes seixos.

—Você nã o polirá nunca esta pedra para tampar um orifício


redondo.

O Atirador balançou a cabeça num gesto de leve desaprovaçã o.

—Há sempre outras pedras à mã o.

—E há sempre mais orifícios - declarou Kergan Banbeck.

—Vamos ao assunto, entã o - disse o Atirador. —Proponho resolver


esta situaçã o de uma maneira correta.

—O que você me oferece em troca dos vinte e três grefos?

O Atirador sacudiu os ombros com indecisã o. As ideias daquele


homem eram tã o absurdas, bá rbaras e arbitrá rias quanto as pontas
do seu penteado.

—Se desejar, poderei lhe dar instruçõ es e conselhos... Kergan


Banbeck fez um gesto brusco.
—Estabeleço três condiçõ es.

O sacerdote estava apenas a uns três metros do grupo, com o rosto


inexpressivo e o olhar vago.

—Primeiro, exijo uma garantia contra os ataques futuros aos


habitantes de Aerlith. Cinco grefos deverã o permanecer aqui como
reféns. Segundo - para dar maior segurança à validezperpétua da
garantia - você deverá me fornecer uma nave espacial, equipada,
energizada, armada, além de instruir-me quanto ao seu uso.

O Atirador jogou a cabeça para trá s e produziu uma série de ruídos


estranhos pelo nariz.

—Terceiro, deve libertar todos os homens e mulheres que estã o a


bordo da nave.

O Atirador piscou e murmurou algumas palavras á speras de espanto


para os Batedores. Estes se moveram, e impacientes, observando
Kergan Banbeck com o canto dos olhos, como se fosse nã o só um
selvagem como também um louco. O pequeno aparelho voador
sobrevoava a regiã o; o Atirador olhou para cima e pareceu receber
algum conforto com sua visã o. Voltando-se em seguida 9

para Kergan Banbeck com uma atitude firme e decidida, falou como
se o diá logo anterior nã o houvesse sido trocado.

—Vim aqui informar-lhe que os vinte e três Venerados devem ser


libertados imediatamente.

Kergan Banbeck repetiu suas exigências.


—Forneça-me uma espaçonave, cesse os ataques a Aerlith e solte os
prisioneiros. Aceita ou nã o as condiçõ es?

O Atirador parecia confuso.

—Esta é uma situaçã o peculiar... indefinida, inquantificada.

—Nã o entende minhas palavras? - gritou Kergan Banbeck


exasperado. —Olhou de relance para o sacerdote, num gesto que
nã o correspondia à etiqueta, e agiu entã o de maneira inteiramente
nã o-ortodoxa.

—Sacerdote, como posso me fazer entender por este cabeça-dura?


Ele parece que nã o ouve.

O sacerdote deu um passo à frente, o rosto tã o inexpressivo e sereno


quanto antes. Vivendo segundo uma doutrina que proibia a
interferência ativa ou intencional nos assuntos humanos, só podia
dar uma resposta específica e limitada a qualquer pergunta.

—Ele está ouvindo suas palavras, mas nã o existe acordo de ideias


entre os dois. A estrutura mental dele deriva da de seus chefes, e
corresponde à sua. Quanto à maneira de entrar num acordo com ele,
isto eu nã o posso adiantar.

Kergan Banbeck encarou novamente o Atirador.

—Ouviu o que lhe perguntei? Entendeu minhas condiçõ es para a


libertaçã o dos grefos?

—Ouvi perfeitamente - retrucou este.


—Suas palavras nã o fazem sentido, sã o absurdos, paradoxos. Ouça-
me com atençã o. você liberte os Venerados. É irregular, nã o é
concebível que você tenha uma nave, ou que as outras exigências
sejam atendidas.

O rosto de Kergan Banbeck ficou rubro de có lera. Voltou-separa seus


homens, mas, moderando a ira, falou lentamente, com cuidadosa
clareza.

—Eu tenho algo que você deseja. Você tem algo que eu desejo.
Vamos negociar.

Durante vinte segundos os dois homens se encararam. Em seguida, o


Atirador deu um suspiro profundo.

—Vou empregar suas pró prias palavras, para você entender. As


certezas... nã o, nã o as certezas. Existem coisas determinadas. Estas
sã o as unidades de certeza, os quanta da necessidade e da ordem. A
existência é a sucessã o regular dessas unidades, uma apó s a outra. A
atividade do 10

Universo pode ser expressa mediante estas unidades. A


irregularidade, o absurdo - sã o como meio homem, meio cérebro,
meio coraçã o, a metade de todos os ó rgã os vitais. Essas coisas nã o
podem existir. O fato de você manter prisioneiros vinte e três
Venerados é um absurdo deste tipo, um insulto ao fluxo racional do
Universo.

Kergan Banbeck atirou as mã os para o alto e voltou-se novamente


para o sacerdote.
—Como posso terminar com essa incoerência? Como posso me fazer
entender?

O sacerdote refletiu.

—Ele nã o diz coisas incoerentes. Emprega apenas uma linguagem


que você nã o pode entender. Você pode fazê-lo entender sua
linguagem apagando todo o conhecimento e a disciplina anteriores
de sua mente, substituindo-os por padrõ es de sua mentalidade.

Kergan Banbeck lutou contra uma angustiante sensaçã o de


frustraçã o e irrealidade. A fim de obter respostas exatas do
sacerdote, era necessá rio dirigir uma pergunta precisa; aliá s, era
surpreendente que este sacerdote em particular permitisse ser
interrogado. Pensando cuidadosamente, Kergan indagou:

—Como sugere entã o que eu negocie com este homem?

—Liberte os vinte e três grefos.

O sacerdote tocou os dois botõ es na frente do colar dourado: gesto


ritual indicando que, embora com relutâ ncia, realizara um ato que
provavelmente alteraria o curso do futuro. De novo tocou no colar e
entoou:

—Solte os grefos. Ele irá embora depois disso. Kergan Banbeck


exclamou com raiva incontida:

—A quem você serve? Aos homens ou aos grefos? Confesse a


verdade! Fale!

—Por minha fé, por meu credo, pela verdade do meu tand, nã o sirvo
a pessoa alguma a nã o ser a mim mesmo.
O sacerdote voltou o rosto para o grande rochedo do Monte Gethron
e afastou-se lentamente, enquanto o vento soprava seus cabelos
finos e compridos para os lados.

Kergan Banbeck observou-o enquanto se afastava; em seguida, com


fria decisã o, voltou-se para o Atirador.

—Sua discussã o de certezas e absurdos é interessante. Sinto que


você confundiu as duas coisas. Pelo menos do meu ponto de vista!
Nã o vou libertar os vinte e três grefos a menos que você atenda à s
minhas condiçõ es. Se nos atacar outra vez, vou cortar os
prisioneiros ao meio, para ilustrar e concretizar sua figura de
retó rica, e para convencê-lo talvez de que os absurdos sã o possíveis.
Nã o tenho mais nada a acrescentar.

11

O Atirador sacudiu a cabeça lentamente, seu tom era de piedade:

—Ouça, vou me explicar melhor. Certas condiçõ es sã o


inimaginá veis, inquantificá veis, nã o-destinadas...

—Vá embora! - trovejou Kergan Banbeck. —Caso contrá rio você vai
se reunir aos vinte e três venerados grefos, e eu vou ensinar-lhe a
que ponto o inimaginá vel pode vir a ser real!

O Atirador e os dois Batedores, murmurando e resmungando,


voltaram-se, afastaram-se das Pedras para a Beira Banbeck,
descendo em direçã o ao vale. Em cima deles o aparelho voador
passou velozmente, descreveu uma curva, balançou e pousou como
uma folha que caísse.
Observando a retirada dos Bá sicos, os homens de Banbeck
presenciaram logo em seguida uma cena extraordiná ria. Pouco
depois de regressar à nave, o Atirador tornou a sair dela, pulando,
dançando e fazendo cabriolas. Outros o seguiam - Atiradores,
Batedores, Tropas Pesadas e mais oito grefos - todos pulando,
saltando, correndo de um lado para o outro, com movimentos
desordenados. As portinholas da nave projetavam luzes de diversas
cores e os homens de Banbeck ouviram o ruído crescente de
má quinas aceleradas ao má ximo.

—Eles enlouqueceram! - murmurou Kergan Banbeck. Hesitou um


segundo, depois deu a ordem: Reú nam todos os homens. Vamos
atacá -los enquanto estã o indefesos!

Das Pedras desceram correndo os homens do Vale Banbeck.


Enquanto corriam pelo penhasco abaixo, alguns homens e mulheres
aprisionados no Vale Sadro saíram timidamente da espaçonave e,
sem encontrar resistência, fugiram para a liberdade em direçã o ao
Vale Banbeck. Outros fizeram o mesmo - e, neste instante, os
guerreiros de Banbeck atingiram o leito do vale.

Perto da nave a loucura e o delírio tinham cessado; os alienígenas


amontoavam-se tranquilamente ao lado do casco bojudo. De
repente, ouviu-se uma explosã o atordoante e a visã o ofuscante de
uma imensa labareda branca e amarela. A nave desintegrou-se. Uma
grande cratera abriu-se no chã o; fragmentos de metal caíram sobre
os guerreiros de Banbeck que investiam sobre os inimigos.

Kergan Banbeck olhou estupefato para a cena de destruiçã o.


Lentamente, com os ombros trêmulos, convocou seu povo e
conduziu-o de volta para o vale devastado. Na retaguarda,
caminhando em fila indiana, amarrados com cordas, iam os vinte e
três grefos, de olhos baixos, submissos, já distantes de sua existência
anterior. A trama do Destino era inevitá vel: as circunstâ ncias
presentes nã o se aplicavam aos vinte e três Venerados. O
mecanismo deveria por isso adaptar-se para assegurar a progressã o
serenados acontecimentos. Os vinte e três, portanto, eram outra
coisa mais que Venerados: eram uma ordem inteiramente diferente
de criaturas. Se isto 12
16

fosse verdade, o que eram eles de fato? Dirigindo uns aos outros a
mesma pergunta em vozes lastimosas e tristonhas, eles desceram
pelo rochedo íngreme em direçã o ao Vale Banbeck.

13

CAPÍTULO 3

Durante os longos anos de Aerlith, as fortunas do Vale Feliz e do


Vale Banbeck oscilaram entre os grupos opostos dos Carcolos e
Banbecks. Golden Banbeck, o avô de Joaz, viu-se forçado a
abandonar a clientela do Vale Feliz quando Uttern Carcolo, um
perfeito criador de dragõ es, produziu os primeiros Demô nios.
Golden Banbeck, por sua vez, criou os Moloques, deixando que a
situaçã o de paz aparente perdurasse algum tempo.

Os anos continuaram passando: Ilden Banbeck, o filho de Golden,


homem frá gil e incapaz, morreu ao cair do alto de uma Aranha
rebelde. Quando Joaz era ainda uma criança doentia, Grode Carcolo
decidiu tentar a sorte e investiu contra o Vale Banbeck. Nã o contava,
porém, com a presença do velho Hendel Banbeck, tio-avô de Joaz e
Grã o-Mestre dos Dragõ es. As forças do Vale Feliz foram destroçadas
no Precipício de Starbreak; Grode Carcolo foi morto e o jovem Ervis
ferido por um assassino. Por diversas razõ es, incluindo a idade de
Hendel e a juventude de Joaz, o exército de Banbeck nã o soube tirar
proveito da situaçã o. Ervis Carcolo, embora exaurido pela perda de
sangue e dores violentas, fez uma retirada em perfeita ordem.
Assim, durante anos, uma trégua duvidosa foi mantida entre os vales
vizinhos.

Joaz tornou-se um jovem melancó lico. Embora nã o despertasse o


entusiasmo nem a afeiçã o de seu povo, nã o provocava também
desagrado total. Ele e Ervis Carcolo estavam unidos por um
desprezo mú tuo. Ao ouvir falar do estú dio de Joaz, com seus livros,
pergaminhos, modelos e projetos, o complexo sistema ó tico que
permitia uma visã o completa sobre o Vale Banbeck (sistema
fornecido, segundo rumores, pelos sacerdotes), Carcolo levantava as
mã os para o alto em sinal de desdém.

—Instruçã o? Uma ova! De que adiante esta mania de ficar


vomitando coisas do passado?

Para onde leva tudo isso? Ele devia ter nascido sacerdote. No fundo
pertence ao mesmo tipo de gente débil, de boca amarga e mente
confusa!

Um certo vendedor itinerante, um tal de Dae Alvonso, que


combinava os ofícios de menestrel, comprador de crianças,
psiquiatra e quiroprá tico, transmitiu a Joaz as calú nias de Carcolo.
Joaz ouviu com indiferença.

14

—Ervis Carcolo devia era cruzar-se com um dos seus Moloques -


comentou Joaz. - Produziria entã o uma criatura invencível, com a
armadura dos Moloques e sua pró pria e incurá vel estupidez.
A observaçã o foi levada, no seu devido tempo, ao conhecimento de
Carcolo e, por coincidência, feriu-o num ponto especialmente
vulnerá vel. Carcolo vinha tentando secretamente uma inovaçã o nas
suas chocadeiras; um dragã o que fosse tã o possante quanto um
Moloque e tivesse a inteligência e a agilidade selvagem do Monstro
Azul. Ervis, no entanto, trabalhava seguindo uma teoria
superotimista e intuitiva, ignorando por completo os conselhos de
Bast Givven, seu Grã o-Mestre dos Dragõ es.

Os ovos chocaram e doze filhotes sobreviveram. Ervis Carcolo criou-


os entre crises alternadas de ternura e exasperaçã o. Finalmente os
dragõ es cresceram. A esperança de Carcolo de produzir uma
combinaçã o de fú ria e invencibilidade realizou-se concretamente
em quatro criaturas irritá veis e indolentes, de torsos balofos, pernas
altas e esguias, apetite insaciá vel. ("Como se alguém pudesse criar
um dragã o ordenando simplesmente: Exista!" -comentou Bast
Givven em tom de zombaria com seus ajudantes; depois advertiu-os:
"Cuidado com estes animais. Sã o suficientemente há beis para atrair
um de vocês e esmagá -los com uma pata!") O tempo, o esforço, os
cuidados, os alimentos gastos com estes híbridos inú teis
enfraqueceram o exército de Carcolo. Nã o lhe faltavam Megeras
fecundas; havia nú mero suficiente de Assassinos de Chifres
Compridos e de Assassinos Galopantes, mas os tipos mais pesados e
especializados, sobretudo os Moloques, estavam muito aquém dos
seus planos. A lembrança da antiga gló ria do Vale Feliz era a
obsessã o dos seus sonhos; primeiro subjugaria o Vale Banbeck e,
muitas vezes, planejava mentalmente a cerimô nia em que reduziria
Joaz Banbeck à mera condiçã o de servente dos peõ es.

As ambiçõ es de Ervis Carcolo eram complicadas por uma série de


dificuldades. A populaçã o do Vale Feliz tinha duplicado mas, em vez
de aumentar a cidade furando novos picos ou abrindo tú neis,
Carcolo construiu três novas chocadeiras de dragõ es, uma dú zia de
cocheiras e uma enorme pista de treinamento. Os habitantes do vale
nã o tinham outra alternativa senã o apinhar-se nos fétidos tú neis
existentes ou construir habitaçõ es precá rias nas encostas dos
morros. Criadeiras, cocheiras, picadeiros; a á gua era desviada do
lago para abastecer as chocadeiras; enormes quantidades de
mantimentos eram destinadas à alimentaçã o dos dragõ es. O povo do
Vale Feliz, subnutrido, doentio, miserá vel, nã o partilhava nenhuma
das aspiraçõ es de Carcolo - e a falta de entusiasmo da populaçã o o
enfurecia.

15

Seja como for, quando o vendedor itinerante Dae Alvonso repetiu a


recomendaçã o de Joaz Banbeck, segundo a qual Ervis Carcolo devia
cruzar-se com um Moloque, Carcolo ferveu de raiva.

—Uma ova! O que Joaz Banbeck sabe a respeito da criaçã o de


dragõ es? Duvido inclusive que compreenda o dragonês!

Carcolo referia-se ao sistema pelo qual as ordens e instruçõ es eram


transmitidas aos animais: um jargã o secreto, peculiar a cada
exército. Aprender a língua do dragã o inimigo era o principal
objetivo do Mestre dos Dragõ es, uma vez que adquiriria assim um
certo grau de controle sobre as forças do inimigo.

—Eu sou um homem prá tico e valho por dois dele - prosseguiu
Carcolo. —Ele sabe porventura projetar, criar, educar e treinar
dragõ es? Sabe impor disciplina, ensinar ferocidade?

Nã o. Deixa tudo isso a cargo dos mestres de dragõ es, enquanto se


refestela num sofá comendo gulodices e fazendo guerra apenas
contra a paciência de suas virgens trovadoras. Dizem que, por
adivinhaçã o astroló gica, ele prediz a volta dos Bá sicos, que anda
como pescoço empinado, observando o céu. Um homem como este

—"De outra forma nã o haverá mais Vale Feliz. Nem haverá mais
Ervis Carcolo."

—Que nada! - retrucou Carcolo em voz baixa. —Os micos só sabem


dar gritinhos histéricos.

—Talvez ele pretenda dar um conselho honesto. Suas palavras


seguintes... Mas tenho receio de ofender sua dignidade.

—Continue! Diga!

—Suas palavras foram estas... nã o, nã o ouso repeti-las. Em síntese,


Joaz considera ridículo seu esforço no sentido de formar um
exército; ele compara desfavoravelmente sua inteligência coma dele;
e prevê...

—Basta! - berrou Ervis Carcolo, sacudindo os punhos cerrados. Ele é


um adversá rio sutil, mas por que você se presta ao seu joguinho?

Dae Alvonso balançou a cabeça branca.

—Estou apenas repetindo, e com relutâ ncia, o que ele me disse


porque você perguntou. Mas agora que tirou tudo de mim, retribua-
me o favor. Nã o deseja comprar alguns remédios, elixires, drogas ou
poçõ es? Tenho aqui o elixir da eterna juventude que roubei do cofre
pessoal do sacerdote Demie. Na minha carroça levo meninos e
meninas, crianças obedientes e bonitas a preço mó dico. Posso ouvir
suas atribulaçõ es, curar seus defeitos de pronú ncia, garantir uma
disposiçã o tranquila... ou talvez adquirir alguns ovos de dragõ es?
16

—Nã o estou precisando de nada no momento - retrucouCarcolo. —


Muito menos ovos de dragõ es que dã o cria de lagartos. Quanto à s
crianças o Vale Feliz está repleto delas. Traga-me uma dú zia de bons
Moloques e pode levar consigo uma centena de crianças à sua
escolha.

Dae Alvonso balançou tristemente a cabeça e se afastou. Carcolo


debruçou-se sobre a cerca de pedras, contemplando os currais de
dragõ es.

O sol caía por trá s dos rochedos do Monte Despoire; a noite se


aproximava. Aquele era o momento mais agradá vel do dia em
Aerlith, quando o vento cessava, deixando tranquilo o enorme vale
aveludado. O brilho de Skene desfazia-se num amarelo esfumaçado,
dentro de uma auréola de bronze; as nuvens da tempestade noturna
que se aproximava juntavam-se, subindo e descendo; passavam,
ondulando, brilhando e mudando de tonalidade: ouro, laranja-
acastanhado, ouro-velho e violeta.

Skene se pô s; os ouros e alaranjados passaram a tons marrons de


carvalho e pú rpura; os relâ mpagos rasgaram as nuvens e a chuva
desabou como uma cortina negra. Nas cocheiras os homens
moviam-se com cuidado, porque agora os dragõ es tornavam-se
imprevisíveis - agressivos, apá ticos ou agitados. Depois da chuva, a
noite desceu rapidamente; uma brisa fria e suave soprou pelos vales.
No céu negro começaram a brilhar com intensidade as estrelas do
aglomerado. Uma das mais cintilantes emitia luz de cores
alternadas: vermelha, verde, branca.
Ervis Carcolo estudou cuidadosamente a estrela. Uma ideia levou à
outra e logo a uma sequência de açõ es que poderiam dissolver todas
as incertezas e insatisfaçõ es que amarguravam sua vida. Carcolo
torceu a boca numa careta amarga; tinha que fazer algumas
propostas ao sonhador do Joaz Banbeck - já que era inevitá vel, que
diabo!

Assim, na manhã seguinte, pouco depois que Phade, a virgem


trovadora, descobriu o sacerdote no estú dio de Joaz, um mensageiro
apareceu no Vale, convidando Joaz Banbeck para uma conferência
com Ervis Carcolo no alto da Beira Banbeck.

17

CAPÍTULO 4

Ervis Carcolo aguardava na Beira Banbeck com Bast Givven, Grã o-


Mestre dos Dragõ es, e dois guias jovens. Atrá s, em fileiras, estavam
as montarias: quatro Aranhas brilhantes, com os membros
anteriores dobrados, as pernas estendidas em â ngulos exatamente
iguais. Faziam parte da criaçã o mais recente de Carcolo, que nutria
um orgulho desmedido por suas montarias. As barbelas que cingiam
as faces có rneas estavam presas com cabochõ es de ciná brio; um
círculo esmaltado de preto e enfeitado com um cravo central cobria
o peito dos animais. Os homens vestiam as tradicionais calças pretas
de couro, jaquetas castanho avermelhadas, capacetes pretos de
couro, com abanos compridos atrá s das orelhas caindo sobre os
ombros.
Os quatro homens aguardavam, pacientes ou inquietos segundo o
temperamento de cada um, percorrendo com a vista a extensã o bem
tratada do Vale Banbeck. Para o sul estendiam-se os campos de
hortaliças, ervilhaca, bellegarde, couve-flor, e um pomar de ameixa
amarela. Na direçã o oposta, perto da entrada da Fenda Clybourne, a
forma da cratera formada pela explosã o da nave Bá sica ainda podia
ser vista. Para o norte havia mais campos, adiante os complexos dos
dragõ es, formados de cocheiras de tijolos pretos, a criadeira, o
picadeiro de exercícios. Mais além estavam as Pedras de Banbeck,
uma á rea de terras desoladas, onde nas idades anteriores uma parte
da montanha havia ruído, criando uma visã o desoladora de calhaus
rolados semelhante ao Topo das Pedras, ao pé do Monte Gethron, se
bem que de menor extensã o.

Um dos guias mencionou sem muito tato a prosperidade evidente do


Vale Banbeck, como se fosse uma crítica velada ao Vale Feliz. Ervis
Carcolo ouviu-o de mau humor durante alguns instantes, depois
dirigiu-lhe um olhar altivo.

—Veja aquela represa ali - disse o guia. —Nó s perdemos a metade


de nossa á gua com as infiltraçõ es.

—É verdade - comentou o outro. —Aquele paredã o de pedras é uma


boa ideia. Nã o entendo por que nã o construímos algo semelhante.

Carcolo fez mençã o de responder, mas depois mudou de ideia. Com


um resmungo abafado afastou-se dali. Bast Givvenfez um sinal e os
dois guias calaram-se.

Poucos momentos depois Givven anunciou:

18
—Joaz Banbeck está a caminho. Carcolo olhou para a Alameda
Kergan.

—Onde está sua comitiva? Ou vem sozinho?

—É o que parece.

Poucos minutos depois Joaz Banbeck surgiu na Beira Banbeck


cavalgando uma Aranha enfeitada de veludo cinza e vermelho.
Vestia um casaco comprido e amplo de passeio, de um tecido
marrom, ondulante, por cima da camisa cinza e de calças do mesmo
tom, e um chapéu de bico comprido de veludo azul. Levantou a mã o
num displicente gesto de saudaçã o; Ervis Carcolo respondeu
bruscamente ao cumprimento; com um movimento de cabeça
dispensou Bast Givven e os dois guias que logo se afastaram.

—Você mandou uma mensagem pelo velho Alvonso – disse Carcolo


com rispidez.

Joaz assentiu com a cabeça.

—Espero que ele tenha transmitido fielmente minhas observaçõ es...

Carcolo fez uma careta maldosa.

—Algumas vezes foi obrigado a abrandar suas palavras.

—O que revela tato da parte do velho Dae Alvonso.


—Pelo que entendi, você me considera impulsivo, incompetente,
insensível aos interesses do Vale Feliz. Alvonso admitiu que você
empregou a palavra "imprudente" com referência a mim.

Joaz sorriu com educaçã o.

—Os sentimentos deste tipo sã o transmitidos melhor através de


intermediá rios.

Carcolo reagiu com uma grande demonstraçã o de tolerâ ncia.

—Pelo visto, você acredita na volta iminente dos Bá sicos.

—Exatamente. Se minha teoria estiver correta, isto é, se a estrela


Coralyne for o seu mundo, o Vale Feliz está seriamente ameaçado,
como demonstrei a Alvonso.

—E por que também nã o o Vale Banbeck? - indagou Carcolo com


irritaçã o.

Joaz olhou surpreso para o homem à sua frente.

—Nã o é ó bvio? Eu tomei as devidas providências. Meu povo está


abrigado em tú neis e nã o em cabanas. Temos diversos caminhos de
fuga, caso seja necessá rio, tanto em direçã o à s Pedras quanto ao
Topo.

—Muito interessante - Carcolo fez um esforço para dominar a voz.


—Se sua teoria for correta

- e nã o me pronuncio a este respeito - eu deveria tomar


naturalmente algumas precauçõ es semelhantes. Mas eu penso em
termos diferentes. Prefiro o ataque, a atividade, à defesa passiva.
—Fantá stico - retrucou Joaz. - Os feitos importantes sã o realizados
por homens como voce.

19

Carcolo enrubesceu ligeiramente.

—Nã o se trata disso no momento. Eu vim propor um projeto em


conjunto. É inteiramente novo, mas cuidadosamente planejado.
Considerei os diversos aspectos do assunto durante muitos anos.

—Aguardo sua sugestã o com o maior interesse - disse Joaz.

Carcolo estufou as bochechas.

—Você conhece as lendas tã o bem quanto eu, ou talvez melhor.


Nosso povo exilou-se em Aerlith durante a Guerra das Dez Estrelas.
A Coalizã o do Pesadelo aparentemente venceu a Regra Antiga, mas
como a guerra terminou - ele levantou as mã os - isso ninguém sabe...

—Há uma indicaçã o significativa. Os Bá sicos visitam Aerlith de


tempos em tempos e nos saqueiam impunemente. Nã o vimos outros
homens até hoje a nã o ser aqueles que servem os Bá sicos.

—Homens? - repetiu Carcolo com desprezo. —Eu dou outro nome a


eles. De qualquer forma trata-se apenas de uma deduçã o e
ignoramos a sequência da histó ria. Talvez os Bá sicos governem o
aglomerado estelar, talvez eles nos ataquem somente porque somos
fracos e sem armas. Talvez sejamos os ú ltimos homens; talvez a
Regra Antiga esteja em vias de ser imposta novamente. E nã o se
esqueça que muitos anos já passaram desde o ú ltimo ataque dos
Bá sicos a Aerlith.

—Muitos anos decorreram desde a ú ltima vez em que Aerlith e


Coralyne estiveram numa aposiçã o conveniente.

Carcolo fez um gesto de impaciência.

—Suposiçã o que pode ou nã o ser relevante. Deixe-me explicar o


axioma bá sico da minha proposta. É bastante simples. Penso que o
Vale Banbeck e o Vale Feliz sã o uma extensã o de terra muito
pequena para homens como nó s. Merecemos um espaço vital maior.

Joaz concordou.

—Gostaria que fosse possível nã o pensar nas dificuldades prá ticas


para conseguir isso.

—Estou pronto a sugerir um método que pode desfazer essas


dificuldades.

—Neste caso, o poder, a gló ria e a riqueza também serã o nossos.

Carcolo fixou Joaz com atençã o e bateu com a borla de contas


douradas da bainha de sua espada na perna.

—Pense nisso. Os sacerdotes já habitavam Aerlith antes de nó s. Há


quanto tempo, ninguém sabe dizer. É um mistério. Por sinal, que
sabemos nó s dos sacerdotes? Quase nada. Eles negociam o metal e o
vidro em troca de alimentos, moram em cavernas profundas, o
credo deles é o 20
afastamento, o devaneio, o desapego, ou como se quiser chamar...
algo totalmente incompreensível para alguém como eu. - Desafiou
Joaz com o olhar; Joaz simplesmente passou o dedo pelo queixo
comprido.

—Eles se apresentam como simples pensadores metafísicos. Na


realidade, sã o uma gente muito misteriosa. Alguém já viu por acaso
uma sacerdotisa? O que pensar das luzes azuis, das torres de pá ra-
raios, da magia dos sacerdotes? O que dizer de suas peregrinaçõ es
bizarras à noite, das formas estranhas que se movem no céu, talvez
em direçã o a outros planetas?

—Essas histó rias existem certamente - concordou Joaz. —Quanto ao


grau de credibilidade que se possa atribuir a elas...

—Agora chegamos ao ponto crucial da minha proposta! - exclamou


Ervis Carcolo.

—O credo dos sacerdotes proíbe aparentemente a vergonha, a


inibiçã o, o medo, o receio das conseqü ências. Daí eles serem
obrigados a responder a qualquer pergunta que lhes for dirigida.

Entretanto, com credo ou sem credo, eles obscurecem


completamente qualquer informaçã o que um homem perseverante
possa obter deles à força de adulaçõ es.

Joaz examinou-o curiosamente.

—Pelo visto - disse - você já tentou algo neste sentido.

—Já . Por que haveria de negar? Interroguei os sacerdotes com


determinaçã o e persistência.
Responderam à s minhas perguntas com seriedade e reflexã o, mas
nã o me informaram nada -

balançou a cabeça. —Em vista disso, sugiro que apliquemos a


coaçã o.

—Você é um homem corajoso. Carcolo balançou a cabeça com


modéstia.

—Nã o empregaria medidas diretas. Mas eles têm que comer. Se o


Vale Banbeck e o Vale Feliz cooperarem, poderemos aplicar uma
forma de persuasã o bastante eficaz: a fome. Entã o as palavras deles
serã o mais claras.

Joaz refletiu alguns instantes. Ervis Carcolo torceu a borlada bainha.

—Seu plano nã o é tolo. - disse Joaz por fim. —Pelo contrá rio, é até
engenhoso... pelo menos à primeira vista. Que tipo de informaçã o
você espera obter? Em suma, quais sã o seus objetivos?

Carcolo aproximou-se e tocou Joaz com o dedo indicador.

—Nã o sabemos nada dos mundos exteriores. Estamos abandonados


aqui, neste mundo miserá vel de pedras e ventos, a vida você se
engana? Digamos que a Regra Antiga tenha voltado...

Pense nas cidades ricas, nas estaçõ es alegres de veraneio, nos


palá cios, nas ilhas de prazer! Olhe para o céu à noite e pense nas
maravilhas que podiam ser nossa! Você me pergunta como podemos
21
satisfazer estes desejos. Pois bem, o sistema pode ser tã o simples
que os sacerdotes o revelem sem a menor relutâ ncia.

— Você quer dizer...

—A comunicaçã o com os mundos dos homens! A salvaçã o deste


pequeno mundo solitá rio nos confins do Universo!

Joaz Banbeck balançou a cabeça indeciso.

—Bela visã o... mas as evidências sugerem uma situaçã o bem


diferente... a destruiçã o do Homem e do Império Humano.

Carcolo estendeu as mã os num gesto de tolerâ ncia e compreensã o.

—Talvez você tenha razã o. Mas por que nã o indagar estas coisas aos
sacerdotes? Minha proposta concreta é a seguinte. Primeiro é
necessá rio que você e eu concordemos com respeito ao objetivo
comum. Depois solicitamos uma audiência ao sacerdote Demie e
fazemos nossas perguntas. Se ele responder livremente, tudo bem.
Se se esquivar, agimos de acordo com o combinado, negamos
alimento aos sacerdotes até que nos informem clara e francamente o
que desejamos saber.

—Existem outros vales e ravinas - disse Joaz pensativamente.

Carcolo fez um gesto brusco.

—Podemos impedir qualquer comércio deste tipo pela persuasã o ou


pela força de nossos dragõ es.

—A essência de sua ideia me agrada, mas receio que nã o seja tã o


simples assim.
Carcolo bateu na perna com a borla da bainha.

—E por que nã o?

—Em primeiro lugar, Coralyne brilha luminosamente no céu. Esta é


nossa primeira preocupaçã o no momento. Se Coralyne passar ao
largo, se os Bá sicos nã o nos atacarem, aí sim poderemos tratar deste
assunto. Além disso - o que se aplica mais imediatamente ao caso -
duvido que possamos levar os sacerdotes à submissã o pela fome.
Acho isso muitíssimo imprová vel. Vou mais longe ainda. Considero a
coisa impossível.

—Por que motivo?

—Eles andam nus pela neve e sob as tempestades. Você acha mesmo
que receiam a fome?

Sem falar nos líquens selvagens que podem colher. Como


poderíamos proibí-los disso? Você pode tentar algum tipo de coaçã o,
mas nã o eu. As histó rias sobre os sacerdotes talvez nã o passem de
superstiçã o... mas também podem ser a mais pura realidade.

22

Ervis Carcolo deu um suspiro fundo de tédio.

—Joaz

Banbeck,

eu
o

julgava

um

homem

de

açã o.

Mas

você

se acomoda simplesmente à s falhas...

—Nã o sã o falhas, sã o erros graves que nos levariam ao desastre.

—Bem e, neste caso, qual seria sua sugestã o? Joaz coçou o queixo.

—Se Coralyne se afastar e estivermos ainda em Aerlith - em lugar de


aprisionados na nave dos Bá sicos - vamos descobrir uma maneira de
saquear os segredos dos sacerdotes. Neste meio tempo, recomendo
vivamente que você defenda o Vale Feliz contra um novo assalto.
Suas chocadeiras e cocheiras ocupam um espaço grande demais.
Deixe-as de lado por enquanto e construa tú neis mais seguros para
o povo.

Ervis Carcolo olhou diretamente para o Vale Banbeck a seus pés.


—Eu nã o sou um homem da defensiva. Ataco primeiro!

—Você vai atacar feixes de calor e raios iô nicos com seus dragõ es?

Ervis Carcolo voltou a encarar Joaz Banbeck.

—Posso considerar que somos aliados no plano que propus?

—Em termos gerais, sim. Contudo, nã o desejo cooperar no sentido


de coagir os sacerdotes pela fome ou de outra forma qualquer. Pode
ser perigoso, além de inú til.

Durante um instante Carcolo nã o conseguiu dominar o ó dio que


sentia por Joaz Banbeck. Os lá bios se contorceram, as mã os se
crisparam.

—Perigo! Que perigo pode haver num punhado de pacifistas nus?

—Nã o sabemos se sã o pacifistas. Sabemos que sã o homens. Carcolo


voltou a aparentar uma alegre cordialidade.

—Talvez você tenha razã o. Mas somos aliados... No essencial pelo


menos.

—Até certo ponto.

—Perfeito. Sugiro entã o uma açã o conjunta, com uma estratégia


comum - no caso de sermos atacados, bem entendido.

Joaz assentiu sem muita convicçã o:

—É . Pode funcionar.
—Vamos entã o coordenar nossos planos - continuou Carcolo.
Digamos que os Bá sicos desçam no Vale Banbeck. Sugiro que seu
povo se refugie no Vale Feliz, enquanto o exército do Vale Feliz se
une ao seu para cobrir a retirada. Da mesma forma, se atacarem o
Vale Feliz, meu povo irá refugiar-se no Vale Banbeck.

23

Joaz riu, divertido.

—Ervis Carcolo, que tipo de luná tico você me considera? Volte para
seu vale, ponha de lado suas manias dementes de grandeza, cave
uma proteçã o para si mesmo. E depressa! Coralyne está brilhando!

Carcolo manteve-se rígido:

—Quer dizer que rejeita minha proposta de aliança?

—Claro que nã o. Mas nã o posso arcar com a proteçã o do seu povo se


vocês nã o fizerem nada neste sentido. Atenda minhas exigências, dê
provas de que você é um aliado à altura... e entã o voltaremos a falar
sobre este assunto.

Ervis Carcolo fez meia-volta, acenou para Bast Givven e os dois


guias. Sem mais uma palavra e sem olhar para Joaz, montou na sua
esplêndida Aranha, açulou o animal numa corrida de saltos rá pidos
pela Beira Banbeck e pela encosta acima em direçã o ao Precipício
Starbreak. Seus homens o seguiram, se bem que menos
precipitadamente.
Joaz observou a comitiva se afastar, meneando tristemente acabeça.
Montou em seguida na Aranha e voltou pela mesma trilha em
direçã o ao Vale Banbeck.

24

CAPÍTULO 5

O longo dia de Aerlith, equivalente a seis das antigas Unidades


Diurnas, passou. No Vale Feliz havia uma atividade febril, como se
todos se preparassem para uma decisã o iminente. Os dragõ es
exercitavam-se em formaçõ es cerradas, guias e cornetins davam
ordens em tom severo. No arsenal preparavam-se projéteis,
misturava-se pó lvora, poliam-se e afiavam-se as espadas.

Ervis Carcolo cavalgava com uma ostentaçã o dramá tica, esgotava as


dezenas de Aranhas que lhe serviam de montaria ao fazer os
dragõ es descreverem diversas evoluçõ es. As forças do Vale dragõ es
ativos de escamas cor de ferrugem-avermelhada, cabeçasestreitas e
afiladas, garras cortantes como formõ es. Os membros anteriores
eram fortes e bem desenvolvidos; usavam lanças, espadas curvas ou
bastõ es com igual habilidade. Um homem que investisse contra uma
Megera nã o tinha a menor chance de sucesso, uma vez que as
escamas defendiam os animais tanto das balas quanto dos golpes
desferidos. Por outro lado, uma ú nica cutilada do dragã o, o corte da
garra semelhante a uma foice, significava morte para o homem.
As Megeras eram fecundas, robustas e floresciam mesmo nas
condiçõ es existentes nas criadeiras do Vale Feliz; daí a
predominancia desses animais no exército de Cartolo. Esta situaçã o
nã o era do agrado de Bast Givven, Grã o-Mestre dos Dragõ es, homem
magro e vigoroso, de rosto chato e nariz aquilino, olhos pretos e
parados como gotas de nanquim num prato. Habitualmente
casmurro e calado, tornava-se eloquente na sua oposiçã o ao ataque
dirigido contra o Vale Banbeck.

—Veja bem, Ervis Carcolo, podemos contar com um bando de


Megeras, com um nú mero suficiente de Assassinos Galopantes e de
Assassinos de Chifres Compridos. Mas nã o de Monstros Azuis, de
Demô nios nem de Moloques! Estamos perdidos se formos
apanhados numa emboscada nos precipícios!

—Nã o pretendo lutar nos precipícios - explicou Carcolo. —Vou


forçar a batalha contra Joaz Banbeck. Seus Moloques e Demô nios sã o
inú teis nos penhascos. Quanto aos Monstros Azuis, estamos em
igualdade de condiçã o.

—Você subestima uma coisa - disse Bast Givven.

—O quê?

25

—É imprová vel que Joaz Banbeck lhe conceda essa vantagem.


Atribuo a ele uma inteligência muito maior.

—Dê-me provas! - insistiu Carcolo.


—O que dele conheço só mostra vacilaçã o e estupidez! Por isso
vamos atacar, rijamente.

Carcolo bateu com o punho na palma da mã o. —Só assim vamos


exterminar os orgulhosos Banbecks.

Bast Givven voltou-se para sair; Carcolo chamou-o com irritaçã o.

—Você nã o demonstra muito entusiasmo por esta campanha!

—Eu sei o que nosso exército pode fazer e o que nã o pode. Se Joaz
Banbeck é o homem que você julga ser, vamos vencer. Se tiver ao
menos a astú cia de alguns criados que ouvi há dez minutos, vamos
sofrer um sério revés.

Com a voz dura de raiva, Carcolo ordenou:

—Volte para seus Demô nios e Moloques. Quero que consigam ser
tã o rá pidos quanto as Megeras.

Bast Givven tomou seu caminho. Carcolo pulou numa Aranha e


esporeou-a com os calcanhares. O animal saltou para a frente, parou
repentinamente e torceu o pescoço comprido para encarar Carcolo
no rosto, que gritou:

—Toca, toca! Vamos à toda! Mostre a estes palermas o que significa


ímpeto e disposiçã o!

A Aranha saltou com tanta força que Carcolo caiu para trá s, indo
bater de cabeça no chã o, onde permaneceu gemendo. Os criados
acorreram rapidamente e levaram-no para um banco onde se sentou
praguejando em voz baixa. O médico examinou-o, apalpou-o,
recomendou que fosse levado imediatamente para o leito e receitou
um calmante.

Carcolo foi levado para seu apartamento embaixo do muro oeste do


Vale Feliz e, sob o cuidado das esposas, dormiu durante vinte e
quatro horas. Quando acordou, já passava do meio-dia. Quis
levantar-se, mas estava muito dolorido para se mover e, gemendo,
tornou a deitar-se.

Chamou entã o Bast Givven, que veio ao quarto do doente e ouviu,


sem fazer nenhum comentá rio, suas recomendaçõ es. A noite desceu;
os dragõ es voltaram à s cocheiras, nã o havia mais nada a fazer senã o
aguardar o amanhecer.

Durante a longa noite, Carcolo sujeitou-se a uma série de


tratamentos: massagens, banhos quentes, infusõ es e cataplasmas.
Exercitou-se com disposiçã o e, quando amanheceu, declarou-se em
perfeita forma física. No alto do céu a estrela Coralyne vibrava em
cores venenosas: vermelho, verde, branco, sem dú vida a estrela
mais brilhante do aglomerado estelar. Carcolo recusou-se olhar 26

para a estrela, mas o brilho dela atingia o canto dos seus olhos por
toda parte onde andasse no vale.

A madrugada aproximou-se. Carcolo planejou iniciar a marcha logo


que os dragõ es estivessem controlá veis. Um relâ mpagono oriente
assinalou a aproximaçã o da tempestade matinal, ainda invisível no
horizonte. Com grande cuidado os dragõ es foram levados de suas
cocheiras e enfileirados na coluna de marcha. Havia trezentas
Megeras, oitenta e cinco Assassinos Galopantes, um nú mero igual de
Assassinos de Chifres Compridos, uma centena de Monstros Azuis,
cinqü enta e dois Demô nios imensamente poderosos, com bolas de
aço munidas de puas na extremidade da cauda, e dezoito Moloques.
Os animais grunhiam malignamente entre si, aguardando a
oportunidade de ferir um ao outro ou de arrancar a perna de um
criado desatento. A escuridã o lhes estimulava o ó dio cada vez maior
pela humanidade, embora nã o soubessem nada do passado, nem das
circunstâ ncias em que haviam sido escravizados.

Os relâ mpagos da madrugada coriscavam e trovejavam, iluminando


as ribanceiras, os picos prodigiosos das Montanhas do Malheur. A
tempestade passou lá no alto, deslocando-se com suas rajadas de
vento e chuvas torrenciais para o Vale Banbeck. O oriente brilhava
com uma luz pá lida cinza-esverdeada. Carcolo deu o sinal da partida.
Ainda dolorido e com os membros endurecidos encaminhou-se
cambaleante para sua Aranha; montou e ordenou que a montaria
praticasse uma curveta especial e dramá tica. Mas Carcolo calculou
mal; a malícia da noite dominava ainda a mente do dragã o. O animal
terminou a curveta com um movimento brusco do pescoço que
atirou novamente Carcolo no chã o, onde permaneceu meio louco de
dor e de raiva.

Tentou levantar, tornou a cair; tentou de novo, perdeu os sentidos.


Durante cinco minutos permaneceu inconsciente, depois pareceu
despertar por pura força de vontade.

—Levantem-me - falou com voz fraca. —Amarrem-me na sela.


Vamos marchar.

Como a ordem era evidentemente impossível de ser cumprida,


ninguém fez um movimento.

Carcolo enfureceu-se e chamou aos berros Bast Givven.


—Siga em frente. Nã o podemos parar agora. Você assumirá o
comando das tropas.

Givven assentiu com desâ nimo. Aquela honra nã o lhe agradava


nada.

—Você conhece o plano da batalha - arquejou Carcolo. —Contorne o


norte da Garra, atravesse o Skanse a toda velocidade, tome a direçã o
norte contornando da Fenda Azul, depois siga para o sul ao longo da
Beira Banbeck. É ali que Joaz Banbeck dará por sua presença e você
deverá assumir a posiçã o de ataque demaneira que, no momento em
que ele avançar com seus Moloques, poderá vencê-lo com nossos
Demô nios. Evite empregar nossos Moloques, persiga o inimigo com
as 27

Megeras, reserve os Assassinos para o ataque quando chegar o


momento decisivo. Você me entende, nã o?

—Teoricamente, pelo que você fala, a vitó ria é certa - murmurou


Bast Givven.

—Nã o só teoricamente, a menos que você cometa erros graves. Ah,


minhas costas! Nã o posso me mexer. Enquanto a grande batalha é
travada, vou ter que ficar sentado aqui vendo os ovos chocarem na
criadeira! Parta agora! Combata corajosamente pelo Vale Feliz!

Givven deu uma ordem e as tropas puseram-se em marcha. As


Megeras pularam na frente, seguidas pelos sedosos Monstros
Galopantes e pelos pesados Assassinos de Chifres Compridos, com
os fantá sticos espigõ es no peito terminando em aço. Atrá s iam os
maciços Moloques, grunhindo, rugindo, os dentes chocando-se uns
contra os outros com a vibraçã o de seus passos.
Ladeando os Moloques marchavam os Demô nios, carregando
espadas curvas, brandindo suas bolas de aço nos rabos como o
escorpiã o balança seu ferrã o. Depois, na retaguarda, iam os
Monstros Azuis, dragõ es robustos e rá pidos, bons trepadores, tã o
inteligentes quanto as Megeras.

Nos flancos marchava uma centena de homens: mestres de dragõ es,


cavaleiros, guias e cornetins.

Estavam armados com espadas, pistolas e grandes bacamartes.

Carcolo, deitado na maca, observava a marcha até que o ú ltimo


homem desapareceu de vista; mandou entã o que o transportassem
para o portal que conduzia à s cavernas do Vale Feliz.

Nunca antes as cavernas lhe pareceram tã o miserá veis e vazias. Com


amargura, contemplou as fileiras de barracõ es ao longo da
montanha, construídas de rochas, lâ minas de líquen impregnadas de
resina, juncos colados com piche. Quando terminasse a campanha
Banbeck, construiria novos aposentos e salõ es nos penhascos. As
esplêndidas decoraçõ es da Aldeia Banbeck eram bem conhecidas; o
Vale Feliz seria ainda mais magnífico. Os salõ es brilhariam com
opalina e madrepérola, prata e ouro. Mas com que finalidade, afinal?
Se os acontecimentos seguissem o curso planejado, havia a
perspectiva de realizaçã o de seu grande sonho. Neste caso, que
propó sito teriam umas míseras decoraçõ es nos tú neis do ValeFeliz?

Gemendo, deixou que o deitassem na cama e distraiu-se imaginando


o andamento da marcha. Agora as tropas deveriam estar avançando
pela Cordilheira do Balanço, contornando a Garra de um quilô metro
e meio de altura. Tentou estender os braços, esticar as pernas. Os
mú sculos protestaram, a dor percorria o corpo de alto a baixo - mas
lhe pareceu que o sofrimento era menor do que antes. Agora o
exército estaria subindo as plataformas que circundavam a grande
á rea de precipícios altos, conhecida como o Skanse. O médico deu
uma poçã o a Carcolo; ele bebeu e dormiu. Acordou mais tarde com
um sobressalto. Que horas seriam?

28

Suas tropas já deviam ter iniciado o combate! Ordenou que o


levassem para o portã o exterior; ainda insatisfeito, mandou que os
criados o transportassem pelo vale para a nova criadeira dos
dragõ es, cujo caminho oferecia uma vista panorâ mica da parte alta e
baixa do vale. Apesar dos protestos das esposas, foi levado para lá e
encontrou algum conforto na medida em que lhe permitiam as
contusõ es.

Dispô s-se a esperar o tempo necessá rio, mas as notícias nã o


tardaram a chegar.

Do caminho norte surgiu um cornetim montado numa Aranha


coberta de espuma. Carcolo mandou um criado interceptá -lo e,
indiferente à s dores, levantou-se do leito. O cornetim saltou do
animal, subiu vacilante a rampa e caiu exausto contra o parapeito.

—Emboscada! - exclamou ofegante. —Um revés pavoroso!

—Emboscada? - repetiu Carcolo com a voz sumida. —Onde?

—Quando subíamos as plataformas do Skanse. Esperaram até que


nossas Megeras e Assassinos chegassem ao alto, aí atacaram com
Monstros, Demô nios e Moloques. Dividiram nossas tropas ao meio,
fizeram-nos recuar e depois rolaram blocos de pedra sobre nossos
Moloques.

Nosso exército foi destroçado!

Carcolo afundou na cama, olhando para o céu.

—Quantos perdidos?

—Nã o sei. Givven mandou tocar a retirada. Recuamos do jeito que


foi possível.

Carcolo continuou deitado como se estivesse em coma, enquanto o


cornetim afundou em cima de um banco.

Uma coluna de poeira surgiu ao norte, depois se dissolveu, fazendo


ver um certo nú mero dos dragõ es do Vale Feliz. Todos estavam
feridos; marchavam, saltavam, mancavam, arrastavam se ao acaso,
rosnando, grunhindo, esbravejando. Primeiro veio um grupo de
Megeras, balançando as cabeças horríveis de um lado para o outro;
depois um par de Monstros Azuis, que contorciam os membros
anteriores como se fossem braços humanos; depois um Moloque,
maciço como um sapo, com as pernas abertas de cansaço. Ao
aproximar-se das cocheiras, tropeçou e caiu com um baque surdo no
chã o, onde permaneceu imó vel, com as pernas e as garras
levantadas para o alto.

Do caminho norte surgiu Bast Givven, coberto de poeira e de olhos


esbugalhados. Desmontou de sua Aranha exausta, subiu a rampa.
Com um esforço inaudito, Carcolo levantou-se novamente do leito.
Givven narrou as peripécias do dia com a voz tã o igual e serena que
parecia indiferente, mas mesmo o insensível Carcolo nã o se iludiu.
Perguntou estupefato: 29

—Exatamente onde ocorreu a emboscada?

—Subimos as plataformas passando pela Ravina Chloris. No local


onde o Skanse se precipita na ravina há um afloramentode pó rfiro.
Foi ali que nos atacaram.

Carcolo deu um assobio por entre os dentes.

—Inacreditá vel.

Bast Givven balançou levemente a cabeça.

—Digamos que Joaz Banbeck tenha partido antes da tempestade


matutina - disse Carcolo -

uma hora antes do que julgaria possível. Suponhamos que tenha


levado suas tropas numa marcha acelerada. Como pode, mesmo
assim, ter chegado à s plataformas antes de nó s?

—Na minha opiniã o - retrucou Givven - a emboscada nã o era uma


ameaça até termos atravessado o Skanse. Eu tinha planejado
patrulhar o Barchback, em toda a extensã o do Precipício Azul e da
Fenda Azul.

Carcolo concordou com ar sombrio.

—Como foi entã o que Joaz Banbeck levou suas tropas para as
plataformas tã o cedo? Givven voltou-se, olhou para o vale abaixo,
onde dragõ es e homens feridos arrastavam-se pelo caminho do
norte.

—Nã o tenho ideia.

—Alguma droga? - sugeriu Carcolo, intrigado. —Uma poçã o para


pacificar os dragõ es? Será possível que tenha passado a noite inteira
acampado no Skanse?

—A ú ltima suposiçã o é plausível - admitiu Givven de mau humor. —


Embaixo do Espigã o Barch há cavernas vazias. Se Joaz alojou ali suas
tropas durante a noite, teve apenas que atravessar o Skanse para
nos alcançar.

—Talvez tenhamos subestimado Joaz Banbeck - murmurou Carcolo


com raiva. Caiu deitado no leito com um gemido.

—Quais foram nossas perdas no total?

Os cá lculos de perdas apresentavam nú meros bem altos. Do


esquadrã o já insuficiente dos Moloques, somente sobraram seis. De
uma força de cinqü enta e dois Demô nios, quarenta sobreviveram
sendo que cinco estavam feridos. As Megeras, Monstros Azuis e
Assassinos sofreram terríveis baixas. Uma grande parte alto nos
precipícios, onde enterraram suas presas poderosas no meio dos
detritos. Dos cem homens, doze foram mortos à bala, outros
quatorze atacados por dragõ es; uns vinte outros estavam feridos em
diversos graus.

Carcolo continuou deitado, de olhos fechados, com os lá bios


trêmulos.

30
—Foi o terreno que nos salvou - continuou Givven. —Joaz Banbeck
nã o quis levar suas tropas até a ravina. Se houve algum erro tá tico
de um dos lados, foi certamente este. Ele trouxe um nú mero
insuficiente de Megeras e de Monstros Azuis.

—Belo consolo... - murmurou Carcolo. —Onde estã o as reservas?

—Mantemos uma boa posiçã o na Cordilheira do Balanço. Nã o vimos


nenhum dos batedores de Banbeck, nem homens nem Megeras, e é
prová vel que Joaz Banbeck pense que voltamos para o vale. De
qualquer maneira, suas forças principais ainda estavam reunidas no
Skanse.

Carcolo fez um esforço enorme para levantar-se. Saiu cambaleando


pelo passadiço e olhou do alto para o dispensá rio. Cinco Demô nios
estavam mergulhados em tinas de bá lsamo, suspirando alto. Um
Monstro Azul estava pendurado numa funda, bramindo, enquanto os
cirurgiõ es cortavam fragmentos quebrados da armadura de sua
carne cinzenta. Enquanto Carcolo observava a cena, um dos
Demô nios levantou-se nas duas pernas anteriores, a espuma
jorrando da goela. Urrou num tom pungente e peculiar; depois caiu
para trá s e afundou, morto, na tina de bá lsamo.

Carcolo voltou-se para Givven.

—Você vai fazer o seguinte. Joaz Banbeck deve ter enviado


batedores. Retire suas tropas ao longo da Cordilheira do Balanço.
Depois de se exibir claramente à s patrulhas de Joaz, siga na direçã o
de uma das Gargantas Despoire... a Garganta Turmalina serve
perfeitamente. Meu raciocínio é o seguinte: Joaz pensará que você
está se retirando para o Vale Feliz e irá à toda em direçã o ao sul,
atrá s da Garra, para atacar suas tropas que descem pela Cordilheira
do Balanço. Ao passar pela Garganta Turmalina, você terá a
vantagem do terreno e poderá destruir Joaz Banbeck com todo seu
exército.

Bast Givven sacudiu a cabeça com firmeza.

—E o que acontecerá se os batedores deles nos localizarem a


despeito de nossas precauçõ es?

Joaz precisa apenas seguir nossas pegadas para nos encurralar na


Garganta Turmalina, sem outra saída a nã o ser pelo alto do Morro
Despoire, ou entã o pelo Precipício Starbreak. Mas se nos
aventurarmos neste precipício, os Moloques de Banbeck nos
destruirã o em questã o de minutos.

Ervis Carcolo afundou pesadamente no leito.

—Traga as tropas de volta para o Vale Feliz. Vamos aguardar outra


oportunidade.

31

CAPÍTULO 6

Aberto no penhasco, ao sul do rochedo que abrigava os


apartamentos de Joaz, havia um grande aposento conhecido como
Salã o de Kergan. As proporçõ es da peça, a simplicidade e ausência
de ornamentos, a mobília antiga e pesada contribuíram para o clima
peculiar do ambiente da mesma forma que o odor que ali dominava.
O cheiro provinha das paredes de pedras nuas, do piso petrificado e
atapetado de musgo, da madeira antiga - perfume forte e penetrante
que desagradava sempre a Joaz, assim como todos os outros
aspectos do aposento. As dimensõ es exageradas pareciam-lhe
arrogantes, a ausência de ornamentos davam a impressã o de rudeza
e mesmo brutalidade. Certo dia ocorreu a Joaz que nã o era tanto o
ambiente que lhe desagradava, quanto o pró prio Kergan Banbeck,
juntamente com todo o repertó rio de histó rias fantasiosas que o
cercavam.

A peça, na realidade, era agradá vel em muitos aspectos. Três janelas


altas de nervuras davam para o vale. Os caixilhos eram feitos de
pequenos painéis quadrados de vidro azul-esverdeado montados
em batentes de pau-ferro preto e o teto também era recoberto de
madeira. Pelos detalhes podia-se ver que naquele cô modo fora
permitida uma certa dose do típico requinte dos Banbeck. Havia
colunas pintadas com cabeças de gá rgulas, um friso esculpido com
florõ es convencionais. A mobília era composta de três peças - duas
cadeiras altas, trabalhadas à mã o, e uma mesa maciça, todas de
madeira preta envernizada e de respeitá vel antiguidade.

Joaz encontrara finalmente uma utilidade para a sala. Em cima da


mesa estava um mapa em relevo cuidadosamente detalhado do
distrito, na escala de três polegadas por milha. No centro avistava-se
o Vale Banbeck, à direita o Vale Feliz, separados por um turbilhã o de
rochedos e de abismos, penhascos, espigõ es, paredõ es colossais e
cinco picos gigantescos: o Monte Gethron ao sul, o Monte Despoire
no centro, o Espigã o Barch, a Garra e o Monte Halcyon ao norte.
Diante do Monte Gethron estava o Topo das Pedras; o Precipício
Starbreak, por sua vez, estendia-se até o Monte Despoire e o Espigã o
Barch. Além do Monte Despoire, entre as plataformasdo Skanse e do
Brachback, o Skanse propriamente dito cobria toda a extensã o do
solo até as ravinas e encrespadas escarpas de basalto aos pés do
Monte Halcyon.

32

Enquanto Joaz estudava o mapa, Phade entrou na sala, sem fazer o


menor ruído. Joaz percebeu, porém, sua presença pelo odor de
incenso em cuja fumaça ela se banhara antes de procurar Joaz. A
moça usava o costume tradicional em Banbeck nos dias de festa -
tú nica justa de intestino de dragã o, com um regalo de pele marrom
no pescoço, nos cotovelos e nos joelhos. O

chapéu alto e cilíndrico, trabalhado na borda superior, caía sobre os


cachos castanhos e bonitos, enquanto no alto balançava uma pluma
vermelha.

Joaz fingiu nã o perceber sua presença; a jovem aproximou-sede suas


costas e lhe fez có cegas no pescoço com a pele da gola. Joaz
demonstrou uma indiferença impassível; Phade, sem se deixar
iludir, fez uma expressã o de tristeza e preocupaçã o.

—Nó s vamos ser todos mortos? Como vai a guerra?

—Muito bem para o Vale Banbeck. E muito mal para Ervis

—Você está planejando sua destruiçã o! - exclamou Phade. —Você


vai matá -lo! Pobre Ervis Carcolo!
—Ele bem merece.

—E o que será do Vale Feliz? Joaz Banbeck balançou os ombros.

—Irá melhorar certamente.

—Você será o novo governante?

—Nã o, eu nã o.

—Pense só ! - murmurou Phade. —Joaz Banbeck, Tirano do Vale


Banbeck, do Vale Feliz, da Ravina Phosphor, de Glore, de Tarn, de
Clewhaven e do Grande Rift do Norte!

—Nã o. A menos que você queira governar em meu lugar.

—Ah, sim! E que grandes mudanças ocorreriam! Vestiria os


sacerdotes com fitas vermelhas e amarelas. Ordenaria que
cantassem, dançassem e bebessem o vinho de maio. Mandaria os
dragõ es para a Arcá dia, com exceçã o de algumas Megeras delicadas
que tomariam conta das crianças. E nã o haveria mais estas batalhas
furiosas. Queimaria as armaduras e partiria as espadas. Eu...

—Minha mariposinha querida - disse Joaz com um sorriso - que


reino efêmero você teria!

—Por que efêmero? Por que nã o eterno? Se os homens nã o tivessem


meios de lutar...

—E quando os Bá sicos invadissem nossas terras, você atiraria


guirlandas em seus pescoços?
—Que nada! Eles nunca mais voltarã o. Afinal de contas o que
ganham molestando alguns vales remotos como este?

—Quem sabe o que eles ganham? Nó s somos homens livres... talvez


os ú ltimos homens livres do Universo. Quem sabe? Será realmente
que eles voltarã o? Coralyne está brilhando no céu.

33

Phade mostrou-se subitamente interessada no mapa em relevo.

—E a guerra atual... terrível! Você vai atacar, ou se defender?

—Tudo depende de Ervis Carcolo. Preciso apenas aguardarque ele


se exponha. -Depois de olhar para o mapa acrescentou
pensativamente: —Ervis é bastante inteligente para me causar
danos se eu nã o agir com cautela.

—E o que acontecerá se os Bá sicos voltarem quando vocês


estiverem lutando?

Joaz sorriu.

—Talvez fujamos todos para as Pedras. Talvez lutemos juntos.

—Eu vou lutar com você - disse Phade assumindo uma atitude
corajosa. —Vamos atacar á grande nave dos Bá sicos, enfrentar os
raios de calor e os dardos de energia. Vamos investir contra a porta
da nave e puxar o nariz do primeiro aventureiro que se apresentar!

Num ponto pelo menos sua tá tica deixa a desejar. Como você vai
localizar o nariz de um Bá sico?
—Neste caso, vamos pegar no... —Ela voltou a cabeça ao ouvir um
ruído no vestíbulo. Joaz atravessou o quarto a passos largos e abriu
a porta bruscamente. O porteiro Rife adiantou-se.

—Recebi ordens para chamá -lo quando a garrafa derramasse ou


quebrasse. Pois bem, aconteceram as duas coisas,
irremediavelmente, há menos de cinco minutos.

Joaz afastou Rife do caminho e desceu correndo pelo corredor.

—O que significa isso? - perguntou Phade. —Rife, o que você disse


que deixou Joaz tã o perturbado?

Rife balançou a cabeça com impaciência.

—Eu estou tã o espantado quanto ele. Uma garrafa me foi confiada.


"Observe esta garrafa noite e dia." Essa foi a ordem. E mais, "Se a
garrafa quebrar ou entornar, chame-me imediatamente." Eu disse a
mim mesmo que nesse negó cio, com toda certeza, tem alguma coisa
por trá s. Ou será que Joaz me considera tã o senil a ponto de me
confiar uma tarefa tã o idiota quanto vigiar uma garrafa? Eu sou
velho, meu queixo treme, mas nã o sou imbecil. Pois bem. Para minha
surpresa, nã o é que a garrafa quebrou sozinha? A explicaçã o é
certamente banal: caiu simplesmente no chã o. Mesmo assim, sem
saber o que tudo isso quer dizer, obedeço à s ordens e contei
imediatamente o ocorrido a Joaz.

Phade nã o controlou a impaciência.

—Onde está afinal essa garrafa?

—No estú dio de Joaz Banbeck.


34

Phade correu tã o depressa quanto permitia a tú nica justa sobre as


pernas. Atravessou o tú nel, passou por cima da ponte coberta da
Alameda Kergan, subiu em seguida a rampa em direçã oaos
apartamentos de Joaz.

Atravessou o comprido vestíbulo, passou pela antecamara onde uma


garrafa estava quebrada no chã o e rumou em direçã o ao estú dio,
onde parou perplexa. Nã o havia ninguém ali. Observou a seçã o da
estante que formava um â ngulo na parede. Demansinho, com receio,
atravessou a sala e espiou para dentro da oficina de Joaz.

A cena era bastante estranha. Joaz estava muito à vontade, com um


sorriso frio nos lá bios, enquanto do outro lado da peça um sacerdote
nu procurava inutilmente remover um obstá culo que fechava uma
á rea da parede. A porta estava bem trancada e os esforços do
sacerdote foram totalmente vã os. Voltou-se, lançou um olhar breve
para Joaz e dirigiu-se para a saída que dava para o estú dio.

Phade prendeu a respiraçã o e recuou um passo.

O sacerdote entrou no estú dio e dirigiu-se para a porta.

—Um momento! - exclamou Joaz. —Desejo falar com o senhor.

O sacerdote parou e voltou a cabeça com um gesto sereno de dú vida.


Era um jovem de rosto suave, inexpressivo, quase bonito. A pele
transparente e fina cobria os ossos pá lidos; os olhos, grandes, azuis,
inocentes, pareciam olhar sem focalizar nada em especial. Era de
físico delicado e de porte esbelto; as mã os finas, com dedos que
tremiam de nervosismo. Por cima das costas, quase até a cintura,
descia a cabeleira comprida de fios castanhos.

Joaz sentou-se com deliberado espalhafato, sem afastar os olhos do


sacerdote. Falou entã o num tom que nã o dissimulavaum certo
enfado.

—Sua conduta me parece muito pouco delicada. Tratava-se de uma


afirmaçã o que nã o exigia resposta, e o sacerdote guardou silêncio.

—Sente-se ali, por favor - disse Joaz, indicando um banco. Você tem
muito que explicar.

Foi apenas imaginaçã o de Phade ou uma faísca de surpresa divertida


brilhou e morreu quase instantaneamente nos olhos do jovem
sacerdote? Também dessa vez nã o deu resposta. Joaz, adaptando-se
à s normas peculiares mediante as quais a comunicaçã o deve ser
conduzida com os sacerdotes, indagou:

—Deseja sentar-se ali?

—Nã o faz diferença - disse o sacerdote. —Como já estou em pé, vou


ficar de pé.

35

Joaz levantou-se da cadeira e fez um gesto sem precedente.


Empurrou o banco para trá s do sacerdote, deu com a quina da mã o
na parte de trá s de seus joelhos e o empurrou firmemente sobre o
banco.
—Como você está sentado, pode continuar sentado. Com uma
delicada dignidade o sacerdote levantou-se.

—Vou continuar em pé. Joaz balançou os ombros.

—Como desejar. Pretendo dirigir-lhe algumas perguntas. Espero


que coopere e responda com precisã o.

O sacerdote piscou os olhos como uma coruja.

—Irá fazer isso?

—Certamente. Mas prefiro voltar pelo caminho que tomei para vir
aqui.

Joaz ignorou o comentá rio.

—Primeiro, o que você veio fazer em meu estú dio?

O sacerdote respondeu cuidadosamente, com a voz de alguém que


se dirige a uma criança.

—Sua linguagem é vaga. Estou confuso e nã o devo responder, uma


vez que fiz o voto de dizer apenas a verdade a quem a deseja ouvir.

Joaz ajeitou-se na cadeira.

— Nã o tenho pressa. Estou disposto a ter uma longa conversa. Vou


perguntar entã o... Você teve algum impulso explicá vel que o
persuadiu ou o impeliu a vir ao meu estú dio?

—Sim.
—Quantos desses impulsos você reconhece?

—Nã o sei.

—Mais de um?

—Talvez.

—Menos de dez?

—Nã o sei.

—Hummm... Por que está indeciso?

—Eu nã o estou indeciso.

—Entã o por que nã o pode especificar o nú mero indagado?

—Nã o há este nú mero.

—Entendo. Quer dizer, entã o, que há diversos elementos de um


ú nico motivo, que dirigiu seu cérebro para ativar seus mú sculos, de
maneira que o trouxessem aqui?

36

—Possivelmente.

Os lá bios finos de Joaz esboçaram um sorriso de triunfo.

—Você pode descrever um elemento do motivo decisivo?


—Sim.

—Descreva-o, entã o.

Havia um imperativo contra o qual o sacerdote estava protegido.


Qualquer forma de coaçã o conhecida de Joaz - fogo, espada, sede,
mutilaçã o - nã o era mais para o sacerdote do que mera
inconveniência; ignorava-as como se nã o existissem. Seu mundo
pessoal interior era o ú nico mundo da realidade. Agindo ou reagindo
diante de situaçõ es criadas pelos homens, a passividade e a candura
absoluta eram suas respostas obrigató rias. Compreendendo alguma
coisa disso, Joaz reformulou a ordem.

—Pode pensar num elemento do motivo que o impeliu a vir aqui?

—Sim.

—Qual foi?

—O desejo de vagar.

—Pode pensar em outro?

—Sim.

—Qual é?

—O desejo de exercitar-me andando.

—Entendo. Por falar nisso, você está procurando esquivar se à s


minhas perguntas?
—Respondo à s perguntas que me sã o feitas. Enquanto agir assim,
enquanto abrir minha mente a todos que buscam o conhecimento -
porque este é nosso credo - nã o há questã o de evasã o.

—É o que você diz. No entanto, você nã o me deu uma resposta que


me pareça satisfató ria.

A resposta do sacerdote ao comentá rio foi uma dilataçã o quase


imperceptível das pupilas.

—Está certo entã o - disse Joaz. —Pode pensar em outro motivo para
ter vindo até aqui?

—Sim.

—Qual é?

—Interesso-me por antiguidades. Vim ao seu estú dio admirar as


relíquias dos mundos antigos.

—Ah, sim? - Joaz levantou as sobrancelhas. —Tenho sorte de


possuir estes tesouros fascinantes. Qual das minhas antiguidades
interessou-o especialmente?

37

—Os livros, os mapas, o grande globo do Arquimundo.

—O Arquimundo? O É den?

—Este é um dos seus nomes.


Joaz franziu os lá bios.

—Quer dizer entã o que veio aqui estudar minhas antiguidades.


Muito bem, que outros elementos existem para este motivo?

O sacerdote hesitou um instante.

—Foi-me sugerido que viesse aqui.

—Por quem?

—Pelo Demie.

—Por que ele sugeriu isso?

—Estou incerto.

—Nã o pode conjeturar?

—Sim.

—Quais sã o essas conjecturas?

O sacerdote fez um pequeno gesto delicado com os dedos.

—O Demie pode desejar tornar-se um Homem Total e procura


aprender assim os princípios de sua existência. Ou talvez queira
trocar alguns artigos com o senhor. Ou pode estar fascinado com a
descriçã o de suas antiguidades. Ou pode estar curioso com respeito
ao foco dos painéis de visã o. Ou...

—Basta. Qual destas conjecturas, ou de outras conjecturas possíveis,


considera a mais prová vel?
—Nenhuma.

Joaz tornou a levantar as sobrancelhas.

—Como justifica isso?

—Uma vez que qualquer nú mero desejado de conjecturas pode ser


formado, o denominador de uma razã o de improbabilidade é
variá vel e o conceito inteiro torna-se sem sentido.

Joaz fez cara de enfado.

—Das conjecturas que lhe ocorreram até o momento, qual delas


considera a mais prová vel?

—Suspeito que o Demie julga desejá vel que eu venha aqui para ficar
em pé.

—O que você obtém ficando em pé?

—Nada.

38

—Neste caso, o Demie nã o lhe mandou aqui para ficar em pé.

O sacerdote nã o fez nenhum comentá rio à afirmaçã o de Joaz. Este


formulou a pergunta com um cuidado maior.

—O que você pensa que o Demie pretende obter mandando-o vir até
aqui para ficar em pé?
—Creio que deseja que eu aprenda como os Homens Totais pensam.

—E você aprendeu como eu penso vindo até aqui?

—Estou aprendendo muita coisa.

—De que maneira isso o ajuda?

—Nã o sei.

—Quantas vezes você visitou meu estú dio?

—Sete vezes.

—Por que você, especialmente, foi escolhido para vir aqui?

—O sínodo aprovou o meu tand. Talvez seja eu o pró ximo Demie.

Joaz falou de lado para Phade:

—Prepare o chá .

Voltou-se em seguida para o sacerdote.

—O que é o tand?

O sacerdote deu um suspiro fundo.

Meu tand é a representaçã o de minha alma.

—Hummm. Com que se parece?


A expressã o do sacerdote foi indefinida.

—Nã o pode ser descrito.

—Eu tenho um?

—Nã o.

Joaz balançou os ombros.

—Entã o você pode ler meus pensamentos. Silêncio.

—Você pode ler meus pensamentos?

—Nã o muito bem.

—Por que você deseja ler meus pensamentos?

—Estamos vivos no mesmo Universo. Como nã o temos permissã o


para agir, somos obrigados a conhecer.

Joaz sorriu ceticamente.

39

—Como o conhecimento o ajuda se você nã o age segundo o que


sabe?

—Os conhecimentos seguem a Base Racional, da mesma forma que a


á gua corre para um buraco e forma um poço.
—Conversa! — exclamou Joaz subitamente irritado. — Sua doutrina
obriga-o a nã o interferir em nossos assuntos. Entretanto, você
permite que a "Base Racional" crie condiçõ es graças à s quais os
fatos sã o influenciados. Isto é correto, por acaso?

—Nã o estou certo. Somos um povo passivo.

—Mas o Demie tinha um plano em mente quando o mandou aqui.


Correto?

—Nã o posso dizer.

Joaz passou para outra linha de perguntas.

—Para onde leva o tú nel atrá s da minha oficina?

—Para uma caverna.

Phade colocou o bule de prata diante de Joaz. Ele serviu-se e provou


a bebida pensativamente. Havia variedades incontá veis de disputas;
o sacerdote e ele estavam disputando um jogo de palavras e de
ideias. O sacerdote era treinado na arte da paciência e da evasiva;
Joaz, por sua vez, podia contar com o orgulho e a determinaçã o. O
sacerdote levava a desvantagem de ter a necessidade inata de dizer
a verdade; Joaz, por seu lado, tinha que tatear como um cego,
ignorando o objetivo que buscava, o prêmio a ser ganho. Muito bem,
pensou Joaz, vamos continuar a partida. Vamos ver quem cede
primeiro. Ofereceu chá ao sacerdote, que o recusou com um gesto
tã o brusco da cabeça que parecia mais um tremor.

Joaz

deu
a

entender

que,

para

ele,

recusa

nã o

tinha

menor

importâ ncia.

—Se desejar comer ou beber, é só dizer. Estou apreciando tanto


nossa conversa que tenho receio de prolongá -la além dos limites de
sua paciência. Tem certeza que nã o quer sentar-se?

—Prefiro ficar em pé.

—Como quiser. Bem, voltemos à nossa conversa. A caverna que


mencionou... é habitada pelos sacerdotes?
—Nã o entendi a pergunta.

—Os sacerdotes usam a caverna?

—Sim.

Lentamente, fragmento por fragmento, Joaz arrancou a informaçã o


que desejava: a caverna era ligada a uma série de salas onde os
sacerdotes derretiam metais, fabricavam vidro, comiam, 40

dormiam, faziam suas cerimô nias. Em certa época houvera uma


abertura que dava para o Vale Banbeck, mas desde muito esta
passagem fora fechada. Por quê? Havia guerras em todo o
aglomerado estelar; bandos de homens vencidos refugiavam-se em
Aerlith, instalando-se nos rifts e nos vales. Os sacerdotes preferiam
uma existência distante e, assim, fecharam suas cavernas ao mundo
exterior. Onde era a abertura? O sacerdote pareceu vago, indefinido.
Em alguma parte ao norte do vale. Atrá s do Topo das Pedras?
Possivelmente. O comércio entre os homens e os sacerdotes era
praticado na entrada de uma caverna embaixo do Monte Gethron.
Por quê?

Questã o de há bito, declarou o sacerdote. Além disso, o local era mais


acessível ao Vale Feliz e à Ravina Phosphor. Quantos sacerdotes
viviam nestas cavernas? Nã o sabia dizer com certeza. Alguns tinham
morrido, outros nascido. Mais ou menos quantos, aquela manhã ?
Uns quinhentos, talvez.

A essa altura o sacerdote estava exausto e Joaz ligeiramente rouco.


—Voltando aos motivos - ou aos elementos dos motivos - para você
ter vindo ao meu estú dio. Estã o ligados de alguma maneira com a
estrela Coralyne e uma possível invasã o dos Bá sicos, ou grefos,
como eram chamados antigamente?

De novo o sacerdote hesitou. Depois respondeu:

—Sim, estã o.

—Os sacerdotes vã o nos ajudar a lutar contra os Bá sicos, no caso de


nos atacarem?

—Nã o! A resposta foi seca e clara.

—Mas eu suponho que os sacerdotes desejam a expulsã o dos


Bá sicos?

Sem resposta.

Joaz reformulou a pergunta.

—Os sacerdotes desejam que os Bá sicos sejam expulsos de Aerlith?

—Segundo a Base Racional somos obrigados a nos manter alheios


aos assuntos dos homens e dos nã o-homens.

Joaz cerrou os lá bios.

—Suponhamos que os Bá sicos invadam suas cavernas, e os levem à


força para o planeta Coralyne. O que vocês farã o neste caso?

O sacerdote esboçou um sorriso imperceptível.


—A pergunta nã o pode ser respondida.

—Vocês resistiriam aos Bá sicos em caso de ataque?

—Nã o posso responder a esta pergunta. Joaz deu uma risada alta.

—Mas a resposta nã o é sim? O sacerdote assentiu.

41

—Vocês têm armas, nesse caso?

Os olhos azuis e mansos do sacerdote pareciam esmaecer. Segredo?


Cansaço? Joaz repetiu a pergunta.

—Sim - disse o sacerdote. Seus joelhos tremiam, mas ele os


enrijeceu.

—Que tipo de armas?

—Uma variedade sem conta. Projéteis, como pedras. Armas


pontudas, como cajados partidos. Armas de corte e de percussã o,
como os utensílios de cozinha. — Sua voz começou a sumir como se
ele se afastasse dali. — Venenos... arsênico, enxofre, triventidum,
á cidos, germes negros. Armas incandescentes como tochas elentes
que focalizam os raios do sol. Armas que sufocam... cordas, laços,
fios. Cisternas para afogar os inimigos...

—Sente-se, descanse um pouco - insistiu Joaz. —Sua lista me


interessa, mas o efeito total parece-me inadequado. Vocês possuem
outras armas que sirvam para repelir decisivamente os Bá sicos no
caso de um ataque?
A pergunta, por deliberaçã o ou acaso, nã o foi respondida. O
sacerdote ajoelhou-se lentamente, como se rezasse. Tombou de
rosto no chã o, depois virou de lado. Joaz deu um pulo, levantou a
cabeça caída do sacerdote pelos cabelos. Os olhos, entreabertos,
deixaram ver uma horrível á rea branca.

—Fale! - gritou Joaz. —Responda à minha ú ltima pergunta! Vocês


têm armas - ou uma arma -

para repelir um ataque dos Bá sicos?

Os lá bios pá lidos moveram-se.

—Nã o sei.

Joaz franziu a testa, fixou o rosto lívido, afastou-se assustado.

—O homem está morto.

Phade, que cochilava no sofá , com o rosto rosado, os cabelos


revoltos, olhou a cena apavorada.

—Você o matou! — exclamou com a voz abafada pelo terror.

—Nã o. Ele morreu... ou provocou a pró pria morte. Phade atravessou


a sala cambaleante e aproximou-se de Joaz, que a afastou
distraidamente. Ela franziu a testa, balançou os ombros e, como Joaz
nã o lhe dava atençã o, saiu da sala.

Joaz sentou-se na cadeira, fixando atentamente o corpo caído, sem


vida.
—Ele só se esgotou - murmurou consigo - quando insisti sobre os
segredos.

42

Levantou-se de um pulo, foi até a porta do vestíbulo e disse a Rife


para chamar um barbeiro.

Uma hora depois o cadá ver, sem os cabelos, estava numa cama de
madeira coberto por um lençol.

Joaz segurava nas mã os a cabeleira improvisada com cabelos


compridos do sacerdote.

O barbeiro retirou-se da sala; os criados levaram o cadá ver. Joaz


permaneceu sozinho no estú dio, tenso e atento. Retirou as roupas e
ficou nu como o sacerdote. Com todo cuidado, colocou a peruca na
cabeça e examinou-se no espelho. Havia diferença para um olhar
casual? Faltava alguma coisa. O colar. Joaz colocou-o no pescoço e
observou-se novamente no espelho com desconfiada satisfaçã o.

Entrou na oficina, hesitou um instante, soltou a armadilha e


removeu cuidadosamente a tampa de pedra. Agachado nas mã os e
nos joelhos, olhou para o tú nel escuro, enquanto segurava na mã o
um tubo de algas luminescentes. Na luz crepuscular o tú nel parecia
vazio. Dominando o medo, Joaz engatinhou pela abertura. O tú nel
era baixo e estreito: avançou com hesitaçã o, sentindo os nervos à
flor da pele. Parava freqü entemente para ouvir algum ruído
possível, mas nã o escutava nada além de sua pró pria respiraçã o.

Cem metros adiante, o tú nel desembocou numa caverna natural.


Joaz parou, indeciso, escutando atentamente no escuro. Tubos
luminescentes, dispostos a intervalos irregulares nas paredes,
davam alguma luz, o suficiente para delinear a direçã o da caverna,
que parecia ser norte, paralela ao comprimento do vale. Depois de
algum tempo retomou a caminhada, parando de vez em quando,
com o ouvido atento. Segundo sabia, os sacerdotes eram pessoas
mansas e passivas, se bem que tremendamente reservadas. Como
reagiriam diante da presença de um intruso? Nã o podia ter certeza;
por isso continuou a avançar com grande cautela.

A caverna subiu, desceu, alargou-se, para depois estreitar-se


novamente. Havia evidências inegá veis de uso - pequenos cubículos,
cavados nas paredes, iluminados por candelabros que sustentavam
frascos altos de vidro de matéria luminosa. Em dois destes
cubículos, Joaz avistou sacerdotes; o primeiro adormecido sobre um
tapete vermelho, o segundo sentado de pernas cruzadas, olhando
fixamente para um objeto formado de varetas torcidas de metal.
Como os dois nã o lhe prestaram nenhuma atençã o, prosseguiu com
um andar mais confiante.

A caverna começou a descer, alargou-se como uma cornucó pia e


desembocou subitamente numa gruta tã o espaçosa que Joaz pensou,
por um momento, que tinha saído no meio da noite. O

teto estava além do brilho de milhares de lâ mpadas, fogos e frascos


luminosos. Em frente e à esquerda havia fundiçõ es e forjas que
pareciam em operaçã o; uma curva na parede da caverna parecia
esconder alguma coisa, que Joaz logo identificou como uma
construçã o tubular em diversos 43

planos. Parecia ser uma oficina, onde um nú mero enorme de


sacerdotes estavam ocupados em tarefas complicadas. À direita
havia uma pilha de fardos e uma fileira de baldes continha produtos
de natureza desconhecida. Pela primeira vez, Joaz viu as
sacerdotisas. Nã o eram nem as ninfas nem as bruxas semi-humanas
da lenda popular. Como os homens, todas tinham uma aparência
pá lida e frá gil, mas com traços bem definidos; como os homens,
moviam-se com cuidado e deliberaçã o e, da mesma forma que eles,
cobriam-se apenas com os cabelos compridos, que batiam na
cintura.

Havia pouca conversa e nã o se ouviam risos: reinava antes uma


atmosfera de tranquilidade e concentraçã o, que nã o dava a
impressã o de tristeza. A caverna possuía um clima de uso e tradiçã o,
como se ali o tempo tivesse ficado retido. O chã o de pedra estava
polido pelos passos incontá veis de pés descalços; as exalaçõ es de
muitas geraçõ es manchavam as paredes.

Ninguém prestou atençã o a Joaz, que caminhou lentamente,


conservando-se nas á reas sombrias, e fez uma pausa ao lado de uma
pilha de fardos. Para a direita a caverna diminuía em proporçõ es
irregulares formando um vasto tú nel horizontal, afastava-se,
descrevia curvas, se encolhia, perdendo-se sob a luz sombria.

Joaz examinou toda a extensã o da caverna enorme. Onde estava o


arsenal com as armas que o sacerdote havia provado existirem pelo
simples fato de morrer? Voltou sua atençã o mais uma vez para a
esquerda e examinou detalhadamente a oficina estranha, feita de
patamares, que se levantava uns vinte metros acima do chã o de
pedra. Construçã o estranha, pensou Joaz, empinando o pescoço; nã o
podia realmente compreender a natureza daquela construçã o. Aliá s,
todos os aspectos da grande caverna - tã o perto do Vale Banbeck e,
ao mesmo tempo, tã o distante – eram estranhos e maravilhosos.
Armas? Deviam estar em algum lugar, porém nã o ousava mais
procurá -
las. Nã o poderia ficar espionando indefinidamente sem correr o
risco de ser descoberto. Voltou-se em direçã o ao caminho por onde
viera e caminhou — a passagem sombria, os cubículos, onde os dois
sacerdotes continuavam como antes — um deles dormindo, o outro
atento ao dispositivode metal torcido. Caminhou muito e muito
tempo. Tinha ido tã o longe assim? Onde estava a fenda que levava ao
seu apartamento? Teria passado por ela, sem perceber? Sentiu o
pâ nico apertar-lhe a garganta, mas continuou assim mesmo,
observando tudo cuidadosamente. Lá estava ela, nã o se enganara!
Havia uma abertura à direita, uma fenda quase querida e familiar.
Mergulhou por ela, caminhou com passos rá pidos e saltitantes, como
um homem submerso, segurando o tubo luminoso adiante dos
olhos. Uma figura surgiu à sua frente, uma forma branca e
gigantesca. Joaz ficou paralisado. A figura sombria dirigia-se ao seu
encontro. O rapaz colou-se à parede. O vulto passou à sua frente e,
subitamente, diminuiu para uma altura normal. Era o jovem
sacerdote de 44

quem Joaz tinha cortado os cabelos e deixado como morto no


estú dio. O sacerdote o encarou fixamente, olhos azuis límpidos e
brilhantes nos quais se lia crítica e desprezo.

—Devolva meu colar.

Com os dedos dormentes Joaz retirou o colar dourado. O sacerdote


apanhou-o, mas nã o fez nenhum movimento para colocá -lo no
pescoço. Olhou para a peruca que pesava sobre a cabeça deJoaz.
Com uma careta idiota, Joaz tirou a cabeleira revolta e estendeu-a. O
sacerdote deu um salto para trá s como se Joaz fosse um duende da
caverna. Passando ao seu lado, tã o longe dele quanto permitia a
passagem estreita, saiu andando rapidamente pelo tú nel abaixo.
Joaz deixou a peruca cair no chã o e olhou de relance para o monte
de cabelos maltratados. Voltou-se, procurou o sacerdote com os
olhos, e só conseguiu distinguir um vulto pá lido que logo depois
confundiu-se na escuridã o. Joaz continuou a subir lentamente o
tú nel. Adiante a vistou uma luz retangular, a entrada de sua oficina.
Engatinhou como antes pelo buraco estreito e voltou ao mundo da
realidade. Furiosamente, com toda sua força, jogou a pedra em cima
do buraco e bateu o portã o que havia detido antes o sacerdote.

Encontrou suas roupas onde as deixara. Embrulhado no casaco,


dirigiu-se para a porta exterior e passou pelo vestíbulo, onde Rife
estava cochilando. Joaz estalou os dedos.

—Mande vir pedreiros e diga que tragam cimento, ferro e pedra.

Tomou banho e esfregou-se vá rias vezes com emulsõ es. Ao sair do


banheiro, levou os pedreiros à oficina e ordenou-lhes que
tampassem o buraco.

Em seguida foi deitar-se no seu quarto. Bebendo uma taça de vinho,


deixou a mente vagar. A recordaçã o transformou-se em devaneio, e
o devaneio em sonho. Mais uma vez atravessou o tú nel, com os pés
leves como asas, até a caverna subterrâ nea; agora, porém, os
sacerdotes levantavam a cabeça dos cubículos para observá -lo
passar. Finalmente, chegou à entrada do grande salã o subterrâ neo e,
mais uma vez, olhou com espanto para a esquerda e para a direita.
Continuou caminhando pelo chã o de pedras, passou por sacerdotes
que trabalhavam atentamente em fornalhas e bigornas. Centelhas
saltavam de tubos de ensaio, o gá s azul se desprendia vacilante dos
metais derretidos.

Joaz foi até um quarto pequeno encravado na pedra. Um homem de


idade, magro e alto, estava sentado ali, a grande cabeleira branca
como neve. O homem examinou Joaz com inexpressivos olhos azuis
e disse alguma coisa, mas a voz era abafada, inaudível. Falou de
novo, e, dessa vez, suas palavras soaram alto na mente de Joaz.

45

—Eu o trouxe aqui para adverti-lo, para que nã o nos cause dano.
Isso nã o lhe trará proveito algum. A arma que está procurando é ao
mesmo tempo inexistente e fica além da sua imaginaçã o.

Deixe-a longe de sua ambiçã o.

Com grande esforço Joaz conseguiu balbuciar:

—O jovem sacerdote nã o negou. Esta arma deve existir!

—Somente dentro dos limites estreitos da interpretaçã o especial. O


jovem só pode falar a verdade literal e só pode agir com delicadeza.
Por que você se admira que vivamos à parte? Os Homens Totais
julgam a pureza incompreensível; vocês acreditam progredir, mas
nã o alcançam nada a nã o ser um exercício praticado à s escondidas.
Para que você nã o tente de novo com maior ousadia, terei que me
rebaixar e deixar as coisas bem claras. Eu afirmo que esta suposta
arma está absolutamente além do seu controle.

Primeiro a vergonha, depois a indignaçã o assaltaram Joaz. Gritou:

—Você nã o compreende minha urgência! Por que haveria de agir de


forma diferente?

Coralyne está perto; os Bá sicos estã o pró ximos. Vocês nã o sã o


homens? Por que nã o nos ajudam a defender o planeta?
O Demie balançou a cabeça e os cabelos brancos ondularam com
uma lentidã o hipnó tica.

—Cito para você a Base Racional: passividade, completa e absoluta.


Isto implica solidã o, santidade, quietude, paz. Você pode imaginar a
angú stia a que me arrisco ao falar consigo?

Intervenho, interfiro, com uma grande dor espiritual. Vamos pô r fim


a isso. Visitamos seu estú dio em paz, nã o lhe causamos nenhum
dano, nã o fizemos nenhuma indignidade. Você fez uma visita a nosso
salã o, e para isso humilhou um jovem nobre. Vamos nos dar por
satisfeitos e terminar com as exploraçõ es mú tuas. Está de acordo?

Joaz ouviu sua voz responder, sem uma decisã o consciente de sua
parte; soava mais nasal e aguda do que gostaria.

—Você me oferece este acordo agora, depois de ter descoberto


todos os meus segredos; mas eu nã o sei nenhum dos seus.

O rosto do Demie parecia afastar-se e tremer. Joaz leu desprezo em


sua expressã o e, na agitaçã o do sonho, mexia-se e revirava-se na
cama. Fez um esforço para falar com a voz calmada razã o.

—Vamos, ambos somos homens. Por que haveríamos de discutir?


Vamos dividir nossos segredos, vamos nos ajudar mutuamente.
Examine livremente meus arquivos, minhas pastas, 46

minhas relíquias, e permita, depois, que eu conheça igualmente esta


arma existente mas nã o-existente. Juro que só será usada contra os
Bá sicos, para nossa proteçã o mú tua.

Os olhos do Demie brilharam.


—Nã o.

—Por que nã o? - insistiu Joaz. —Certamente que nã o nos deseja mal.

—Somos desprendidos e sem paixõ es. Aguardamos a extinçã o de


vocês. Vocês sã o os Homens Totais e os ú ltimos remanescentes da
humanidade. Quando desaparecerem, os pensamentos negros e os
planos sinistros desaparecerã o também; o crime, a dor e a malícia
terã o desaparecido.

—Nã o posso acreditar nisso - disse Joaz. —Talvez nã o haja outros


homens no aglomerado estelar... mas quem sabe no resto do
Universo? A Regra Antiga foi bem longe; mais cedo ou mais tarde os
homens vã o voltar a Aerlith.

A voz do Demie tornou-se plangente.

—Julga que falamos apenas através da fé? Duvida de nosso


conhecimento?

—O Universo é grande. A Regra Antiga foi longe.

—Os ú ltimos homens habitam Aerlith. Os Homens Totais e os


Sacerdotes. Vocês passarã o; nó s levaremos adiante a Base Racional
como uma bandeira de gló ria, por todos os mundos do universo.

—E como vocês se transportarã o nesta missã o? Podem voar para as


estrelas nus como caminham sobre os precipícios?

—Haverá meios. O tempo há de resolver.


—Seus objetivos, demandam um tempo longo demais. Mesmo nos
planetas de Coralyne há homens. Escravizados, deformados na
mente e no corpo, mas homens mesmo assim. O que será deles?
Parece que vocês estã o errados, que se deixam guiar apenas pela fé.

O Demie guardou silêncio. Seu rosto parecia mais duro agora.

—Nã o sã o fatos o que digo? - insistiu Joaz. —Como você pode


conciliar a realidade desses fatos com sua fé?

O Demie respondeu com mansidã o.

—Os fatos nã o podem nunca ser conciliados com a fé. Segundo


nossa fé, estes homens, caso existam, também passarã o. O tempo é
longo. Ah, os mundos da claridade: eles esperam por nó s!

47

—Agora fica claro que vocês se aliaram aos Bá sicos, que aguardam
nossa destruiçã o. E isto só pode mudar nossa atitude em relaçã o a
vocês. Acho que Ervis Carcolo tinha razã o. Eu estava errado.

—Continuamos passivos - disse o Demie. Seu rosto onduou, como


que em ondas de variadas cores. —Vamos ser testemunhas da
passagem dos Homens Totais sem emoçã o. Sem ajudar nem
prejudicar. Dessa vez Joaz respondeu com fú ria:

Sua fé, sua Base Racional - seja lá o que for —Só está servindo para
iludi-los. Eu faço esta ameaça: se nã o nos ajudarem, sofrerã o tanto
quanto nó s.

—Somos passivos, somos indiferentes.


—E o que será de seus filhos? Os Bá sicos nã o fazem diferença entre
nó s. Levarã o vocês para seus currais com a mesma violência que nos
levam. Por que haveríamos de lutar para protegê-los?

O Demie empalideceu; seu rosto encobriu-se sob uma espécie de


névoa transparente onde os olhos brilharam, fosforescentes como
os de certos animais.

—Nã o necessitamos de proteçã o - gritou. —Estamos seguros.

—Vocês sofrerã o nosso destino - exclamou Joaz. —Eu lhe garanto


isso!

O Demie transformou-se repentinamente numa casca seca, como um


mosquito morto; com incrível velocidade, Joaz voltou pelas
cavernas, pelos tú neis, passando pela oficina e o estú dio, até o
quarto de dormir, onde estava agora erguido na cama, com os olhos
arregalados, a garganta apertada, a boca seca.

A porta abriu-se e a cabeça de Rife apareceu.

—Chamou por mim?

Joaz levantou-se nos cotovelos e percorreu o quarto com a vista.

—Nã o, nã o chamei...

Rife retirou-se e Joaz tornou a deitar-se na cama, olhando para o


teto. Sonhara um sonho muito estranho. Sonho? Uma síntese de sua
pró pria imaginaçã o? Ou, em realidade, uma confrontaçã o, um
diá logo entre duas mentes? Impossível saber. Talvez nã o valesse a
pena! O fato valia por si mesmo. Atirou as pernas para fora da cama
e olhou para a porta. Sonho ou realidade, dava na mesma. Levantou-
se, vestiu as sandá lias e sua roupa de pele amarela; caminhou
vagarosamente para a Sala do Conselho e saiu num balcã o
ensolarado. briam os penhascos ocidentais. À direita e à esquerda
estendia-se o Vale Banbeck... Nunca parecera mais pró spero e
fecundo. E nunca tã o irreal, como se fosse uma paisagem estranha
naquele planeta. Voltou-se para o norte e olhou em direçã o ao
grande paredã o de pedras que se levantava da Beira Banbeck.
Aquilo 48

também era irreal, uma fachada atrá s da qual viviam os sacerdotes.


Observou o paredã o e fez uma imagem do que seria a grande
caverna. O penhasco localizado no extremo norte do vale nã o devia
representar provavelmente mais do que uma casca!

Voltou sua atençã o para o campo de exercícios, onde os Monha era a


vida: produzira os Bá sicos e os Moloques, os sacerdotese homens
como ele. Pensou em Ervis Carcolo e teve que lutar contra uma
irritaçã o repentina. Mas aqueles pensamentos eram uma distraçã o
tremendamente inoportuna naquele momento; uma coisa era certa,
porém: nã o demonstraria tolerâ ncia quando Carcolo fosse
finalmente levado a prestar contas de seus atos. Um passo leve nas
suas costas, o contato da gola de pele, o toque de mã os alegres e o
perfume do incenso. A tensã o de Joaz desfez-se. Senã o houvesse
criaturas semelhantes à s jovens trovadoras, seria necessá rio
inventá -las.

Nas profundezas da Escarpa Banbeck, num cubículo iluminado por


um candelabro de doze frascos, um homem nu, de cabelos brancos,
estava sentado imó vel. Num pedestal, ao nível de seus olhos, estava
o tand, uma construçã o complicada de varetas de ouro e fios de
prata, trançados e torcidos aparentemente ao acaso. A gratuidade do
desenho, contudo, era apenas aparente. Cada curva simbolizava um
aspecto da Senciência Final; a sombra projetada na parede
representava a Base Racional, sempre mutá vel, sempre a mesma.

O objeto era sagrado para os sacerdotes e servia como fonte de


revelaçã o. O estudo do tand era infinito; novas intuiçõ es eram
continuamente derivadas de alguma relaçã o de â ngulo e de curva
até entã o invisível. A nomenclatura era elaborada: cada parte,
inserçã o, dobra ou curva tinha um nome; e todos os aspectos das
relaçõ es entre as diversas partes eram igualmente categorizados.

Assim era o culto do tand: hermético, inflexível, sem compromisso.


Nos ritos da puberdade, o jovem sacerdote podia estudar o tand
original durante quanto tempo quisesse; cada um devia construir
uma duplicata do tand original, baseando-se apenas na memó ria.
Ocorria entã o o fato mais importante de sua vida: a visã o do tand
por um sínodo de anciã os. Numa imobilidade reverente os anciã os
refletiam sobre a criaçã o do tand durante horas a fio pesando as
variaçõ es infinitesimais de proporçõ es, de raio, de curvas e de
â ngulos. Avaliavam assim a qualidade do iniciado, julgavam seus
atributos pessoais, determinavam sua compreensã o da Senciência
Final, a Base Racional.

De vez em quando, o testemunho do tand revelava um cará ter tã o


impuro que era considerado intolerá vel; o tand vi\ era jogado numa
fornalha, o metal derretido destinado a uma latrina, o infeliz iniciado
expulso para a face do planeta, onde viveria à s pró prias custas.

49

O Demie nu, de cabelos brancos, que contemplava seu belíssimo


tand, suspirou, agitou-se inquieto. Tinha sido visitado por uma
influência tã o ardente, tã o apaixonada, ao mesmo tempo tã o cruel e
eterna, que sua mente estava oprimida. Inesperadamente, surgiu em
seu cérebro um resíduo negro de dú vida. Será - perguntou a si
mesmo - que nos afastamos insensivelmente da verdadeira Base
Racional? Estudamos o tand com olhos cegos? Como saber, ah!
Como saber! Tudo é relativamente fá cil na ortodoxia, mas como se
pode negar que o bem em si mesmo é inegá vel? Os absolutos sã o as
formulaçõ es mais incertas que existem, enquanto as incertezas sã o
as mais reais.

Trinta e cinco quilô metros além das montanhas, na luz pá lida e


longa da tarde de Aerlith, Ervis Carcolo fazia seus planos. "Pela
ousadia, pela violência, pela força do ataque eu posso derrotá -

lo! Em decisã o, coragem e resistência sou mais do que seu igual. Ele
nã o vai me iludir de novo, destruir meus dragõ es e matar meus
homens! Ah, Joaz Banbeck, você vai pagar caro sua traiçã o!"

Levantava os braços em có lera. "Ah, Joaz Banbeck, carneirinho de


rosto branco!" Golpeou o ar com o punho. "Eu vou esmigalhá -lo
como um torrã o de terra!" Franziu a testa, esfregou o queixo
redondo e vermelho. "Mas como? Onde? Ele tem todas as
vantagens!"

Carcolo refletiu sobre os possíveis estratagemas. "Ele espera que eu


ataque, isso é certo. Sem dú vida vai preparar novamenteuma
emboscada. Vou patrulhar todos os palmos do terreno, éló gico, mas
isto ele também espera que eu faça, atento para que eu nã o me
precipite sobre eles do alto das montanhas. É possível que se
esconda atrá s do Monte Despoire ou ao longo da Guarda Norte para
me surpreender quando atravessar o Skanse. Se isso acontecer o
mais certo é me aproximar por outro caminho... pela Passagem
Maudlin e por baixo do Monte Gethron? Se atrasarem sua marcha,
vou encontrar-me com ele no Vale Banbeck. Se me anteceder, vou
espreitá -

lo por entre os picos e os abismos."

50

CAPÍTULO 7

Com a chuva fria da madrugada martelando sobre a tropa, atrilha


iluminada apenas pela luz dos relâ mpagos, Ervis Carcolo partiu com
seus homens e dragõ es. Quando os primeiros raios de sol atingiram
o Monte Despoire, já haviam atravessado a Passagem Maudlin.

Até aqui tudo corre bem, exultou Ervis Carcolo. Ergueu-se nos
estribos para percorrer com a vista o Precipício Starbreak.Nã o havia
sinal das forças de Banbeck. Aguardou um momento, esmiuçando as
bandas distantes da Cordilheira Northguard, formas escuras contra
o céu. Passou um minuto, dois minutos; os homens batiam as mã os,
os dragõ es inquietos rosnavam e grunhiam.

A impaciência começou a torturar Carcolo; praguejou e amaldiçoou


a sorte. O mais simples dos planos nã o podia ser levado a cabo sem
erro? Foi entã o que avistou o clarã o de um helió grafo no Espigã o
Barch e outro a sudeste das encostas do Monte Gethron. Carcolo fez
o sinal de avançar; o caminho estava limpo através do Precipício
Starbreak e, em pouco, surgia na Passagem Maudlin o exército do
Vale Feliz. Primeiros os Assassinos de Chifres Compridos, com
presas e cristas de aço; em seguida a agitaçã o vermelha das
Megeras, lançando as cabeças para a frente enquanto corriam; atrá s
ia o reforço das tropas.

O Precipício Starbreak estendia-se, imenso, diante deles, uma


encosta íngreme coalhada de fragmentos de meteoritos que
brilhavam como flores no musgo cinza-esverdeado. Em toda parte
erguiam-se picos majestosos; a neve brilhava vivamente na luzclara
da manhã : Monte Gethron, Monte Despoire, Espigã o Barche, mais
para o sul, Clew Taw.

Os batedores convergiram da esquerda para a direita e trouxeram


notícias idênticas. Nã o havia sinal de Joaz Banbeck nem de suas
tropas. Carcolo começou a suspeitar de uma outra possibilidade.

Talvez Joaz Banbeck nã o tivesse se dignado entrar no campo. A ideia


enfureceu-o e, ao mesmo tempo, encheu-o de alegria: se era assim,
Joaz pagaria caro sua negligência.

A meio caminho do Precipício Starbreak, chegaram a um cercado


onde avistaram uns duzentos filhotes de Demô nios das criaçõ es de
Joaz Banbeck. Dois velhos e um menino guardavam o curral e
observaram com horror a aproximaçã o das tropas do Vale Feliz.

51

Carcolo porém passou rapidamente adiante, deixando o cercado


para trá s, sem molestá -los.

Se ganhasse o dia, os animais fariam parte de seus despojos; se


perdesse, os filhotes dos Demô niosnã o poderiam oferecer nenhum
perigo.
Os velhos e o menino subiram no telhado da cabana de palha, de
onde observaram Carcolo e suas tropas passarem - os homens de
uniformes pretos e capacetes de bicos, com as abas atrá s das
orelhas; os dragõ es, saltando, arrastando-se, marchando, segundo a
natureza de cada um, com as escamas brilhantes; o vermelho
acastanhado das Megeras; o brilho venenoso dos Monstros Azuis; os
Demô nios preto-esverdeados; os Moloques cinzentos e marrons,
assim como os Assassinos.

Ervis Carcolo caminhava no flanco direito, enquanto Bast Givven ia


na retaguarda. Carcolo acelerou o passo, tomado pela ansiedade de
que Joaz Banbeck pudesse levar os Demô nios e os Moloques até a
Escarpa Banbeck antes que ele chegasse até lá - isto supondo que
Joaz Banbeck, em toda verossimilhança, tivesse sido apanhado
dormindo.

No entanto tudo correu bem e Carcolo chegou à Beira Banbeck sem


nenhuma dificuldade.

Gritou em triunfo, balançando ogorro colorido no alto:

—Joaz Banbeck, o grande preguiçoso! Quero ver tentar subir a


Escarpa Banbeck agora!

E Ervis Carcolo dominou o Vale Banbeck com o olhar de um


conquistador.

Bast Givven nã o parecia partilhar o triunfo de Carcolo e se mantinha


atento, olhando seguidamente para o norte, o sul, a retaguarda.

Carcolo observou-o durante algum tempo com o canto dos olhos,


maliciosamente, e depois gritou:
—Ei, ei, você aí? O que foi?

—Nã o sei ainda; talvez algo importante - retrucou Bast Givven,


percorrendo a paisagem.

Carcolo soprou os bigodes. Givven continuou, com a voz fria que


tanto irritava Carcolo.

—Joaz Banbeck parece estar preparando uma armadilha como da


outra vez.

— Por que você diz isso?

—Julgue por você mesmo. Acha que ele nos concederia uma
vantagem dessas sem cobrar um preço alto?

—Besteira! - exclamou Carcolo. —O preguiçoso deve estar chocando


sua ú ltima vitó ria!

Mas esfregou o queixo e olhou com ansiedade para o Vale Banbeck.


Dali do alto parecia curiosamente tranquilo. Havia uma
tranquilidade estranha nos campos e nas cocheiras. Carcolo sentiu
um frio no coraçã o e gritou:

52

—Olhem para as criadeiras, lá estã o os dragõ es de Banbeck! Givven


lançou um olhar para o vale depois mirou Carcolo de esguelha.

—Três Megeras, no ovo. Empertigou o corpo e afastou a vista do


vale; sondou os picos e cordilheiras do norte e do leste. Suponhamos
que Joaz Banbeck partiu antes da madrugada, chegou à Beira
Banbeck, junto aos despenhadeiros, e atravessou o Precipício Azul...

—E o que você me diz da Fenda Azul?

—Ele evitou a Fenda Azul em direçã o ao norte, chegou a Barchback,


atravessou o Skanse e deu a volta no espigã o Barch...

Carcolo examinou a Cordilheira do Norte com uma atençã o dobrada.


Um vestígio de movimento, o brilho de escamas?

—Retirada! - berrou Carcolo. —Rumo ao Espigã o Barch! Eles estã o


à s nossas costas!

Assustadas, as tropas romperam as fileiras, atravessaram correndo


a Beira Banbeck em direçã o aos contra fortes abruptos do Espigã o
Barch. Joaz, ao ver sua estratégia descoberta, lançou os esquadrõ es
de Assassinos para interceptar o exército do Vale Feliz; o objetivo
agora era travar o combate e, se possível, cortar-lhes a retirada para
as encostas do Espigã o Barch.

Carcolo calculou rapidamente. Considerava os Assassinos sua tropa


de elite e tinha um grande orgulho deles. Atrasou propositadamente
o passo, esperando dar combate aos guerreiros da linha de frente de
Banbeck, destruí-los rapidamente e chegar o mais depressa possível
à proteçã o que as vertentes do Espigã oBarch ofereciam.

Os Assassinos de Banbeck, contudo, nã o se aproximaram; tomaram


antes o caminho das elevaçõ es do Espigã o Barch. Carcolo enviou à
frente suas Megeras e Monstros Azuis; com um grunhido horrível, as
duas linhas se encontraram. As Megeras deBanbeck correram à
toda, sendo rechaçadas pelos Assassinos Galopantes de Carcolo, e
forçadas a fugir aos saltos.
O corpo principal das tropas de Carcolo, excitado diante dos
inimigos em debandada, nã o se controlou. Os guerreiros desceram
do Espigã o Barch e mergulharam no Precipício Starbreak. Os
Assassinos Galopantes alcançaram as Megeras de Banbeck,
atacaram-nas pelas costas, derrubando-as e as estriparam, expondo
seus ventres rosados, sob seus gritos lancinantes.

Os Assassinos de Chifres Compridos de Banbeck aproximaram-se


em círculo, atacaram de flanco os Assassinos Galopantes de Carcolo,
estraçalhando-os com os chifres revestidos deaço, empalando-os
com as lanças. Eles nã o viram, porém, os Monstros Azuis de Carcolo
que saltavam sobre eles. Com machados e maças, subjugaram-nos
iniciando o macabro divertimento que consistia em trepar em cima
do Assassino dominado e arrancar-lhe o chifre e as escamas, e a pele
53

da cabeça à cauda, com um rá pido movimento do chifre. Joaz


Banbeck perdeu trinta Megeras e duas dú zias de Assassinos. Mesmo
assim, o ataque teve saldo positivo, dando-lhe oportunidade de
retirar seus cavaleiros, os Demô nios e os Moloques da Cordilheira
Norte, antes que Carcolo alcançasse os picos elevados do Espigã o
Barch.

Enquanto as tropas se retiravam - por uma linha íngreme nas


encostas esburacadas - Carcolo enviou seis homens ao cercado onde
os filhotes dos Demô nios agitavam-se apavorados com o combate.
Os homens derrubaram as porteiras, mataram os dois velhos e
levaram os filhotes dos Demô nios pelo precipício em direçã o à s
tropas de Banbeck. Os histéricos filhotes, seguindo seus instintos,
agarravam-se aos pescoços dos dragõ es que encontravam pelo
caminho, os quais eram cruelmente feridos desta forma, uma vez
que seus pró prios instintos os impediam de se livrarem à força dos
filhotes.

Esta façanha, uma genial improvisaçã o, suscitou a desordem no seio


das tropas de Banbeck e possibilitou a Ervis Carcolo atacar, entã o,
com o grosso de suas forças. Dois esquadrõ es de Megeras
desdobraram-se em leque para perseguir os homens; os Assassinos -
a ú nica categoria em que tinha um maior contingente do que o do
exército de Joaz Banbeck - foram enviados ao encalço dos Demô nios,
enquanto os Demô nios de Carcolo, bem nutridos, fortes e luzidios,
investiam contra os Moloques de Banbeck, lançando-se sob seus
grandes ventres marrons e atirando a bola deaço de vinte quilos,
presa na ponta das caudas, contra a parte interna das pernas das
criaturas. As linhas de batalha estavam desorientadas; tanto homens
quanto dragõ es eram pisados, despedaçados, esquartejados. As
balas zuniam no ar saturado dos ruídosdos aços que se retorciam, e
reverberavam entre o soar das trombetas, apitos, gritos, berros e
grunhidos.

A mudança ocasional da tá tica original alcançou um resultado


melhor do que Carcolo esperava. Seus Demô nios penetravam cada
vez entre os alucinados e indefesos Moloques do inimigo, enquanto
os Assassinos e Monstros Azuis de Carcolo rechaçavam os Demô nios
de Banbeck. O pró prio Joaz Banbeck, assaltado por Megeras,
escapou com vida unicamente graças à retirada estratégica para trá s
da linha de combate, onde obteve o apoio de um esquadrã o de
Monstros Azuis. Num gesto de fú ria, Joaz soou o toque de retirada; o
exército desceu rapidamente pelas encostas, deixando o terreno
coberto de cadá veres e corpos que se debatiam.

Carcolo, no auge da excitaçã o, levantou-se na sela e fez sinal para


que seus Moloques, que até entã o tinham sido preservados como
seus pró prios filhos, investissem. Grunhindo e soluçando, os
Moloques precipitaram-se pesadamente no meio da confusã o,
arrancando grandes bocadas de carne à direita e à esquerda,
despedaçando dragõ es menores comos membros anteriores, 54

pisoteando Megeras, abocanhando Monstros Azuis e Assassinos,


atirando-os a distâ ncia. Seis cavaleiros de Banbeck tentaram resistir
à investida; dispararam seus mosquetõ es à queima-roupa nas faces
demoníacas, o que de nada adiantou: foram todos derrubados e
pisoteados.

No Precipício Starbreak a batalha prosseguia. Com a maior


dispersã o da luta, a vantagem do Vale Feliz diminuiu. Carcolo
hesitou durante um longo momento. Ele e suas tropas estavam
igualmente embriagados; o sucesso inesperado lhes subia à cabeça.
Mas será que ali, no Precipício Starbreak, podiam estar à altura do
exército mais numeroso de Banbeck? A cautela ditou a retirada das
tropas em direçã o ao Espigã o Barch; era o ú nico modo de tirar
partido da vitó ria limitada. A essa altura um forte pelotã o de
Demô nios inimigos já estava reunido e manobrava no terreno para
investir contra a pequena força dos Moloques. Bast Givven
aproximou-se, esperando claramente a ordem de retirada. Mas
Carcolo aguardava ainda, excitado com a confusã o criada por seis
dos seus Moloques.

O rosto severo de Bast Givven estava tenso.

—Vamos recuar enquanto é tempo! Vamos ser aniquilados se os


flancos do exército inimigo nos atacarem!

Carcolo segurou-o pelo cotovelo.


—Ouça! Descubra onde os Demô nios estã o reunidos, onde Joaz
Banbeck está cavalgando!

Tã o logo atacarem, mande seis Assassinos Galopantes de cada lado.


Cerque-o, mate-o!

Givven abriu a boca para protestar; olhou, porém, para onde Carcolo
apontava e foi obedecer à s ordens.

Ali vinham os Demô nios de Banbeck, marchando dissimuladamente


em direçã o aos Moloques do Vale Feliz. Joaz, erguendo-se na sela,
observava o progresso dos animais. De repente, de ambos os lados,
os Assassinos Galopantes o atacaram. Quatro cavaleiros e seis jovens
corneteiros, soando o alarme, correram à toda para protegê-lo.
Ouviu-se o clangor de aço contra aço e de aço contra escamas. Os
Assassinos lutavam com espadas e bastõ es; os cavaleiros, sem poder
usar os mosquetõ es, recorreram à s espadas curvas, e, um a um,
foram derrubados. Levantando-se nas pernas traseiras, um dos
Assassinos desferiu um golpe contra Joaz, que se defendeu
desesperadamente. O Assassino levantou ao mesmo tempo a espada
e o bastã o - mas, disparada de uns cinqü enta metros, uma bala de
mosquetã o veio atravessar seu ouvido. Enlouquecido de dor, o
animal soltou as armas, caiu sobre Joaz, contorcendo-se e
esperneando. Os monstros Azuis de Banbeck atacaram; os
Assassinos avançaram e recuavam perto do animal moribundo,
investindo 55

contra Joaz, lançando golpes de espada, dando coices e pondo


finalmente em fuga os Monstros Azuis.

Ervis Carcolo gemeu de decepçã o; por uma fraçã o de segundo teria


saído vencedor. Joaz Banbeck, porém, pisado, contundido, talvez
ferido, tinha escapado com vida. No alto do morro apareceu um
cavaleiro: um jovem sem armas chicoteava ferozmente uma Aranha
cambaleante.

Bast Givven apontou-o e disse a Carcolo.

—Um mensageiro do Vale, com uma notícia urgente.

O rapaz desceu pela escarpa, gritando de longe em direçã o a Carcolo,


mas sua voz se perdia na balbú rdia da batalha. Finalmente
conseguiu se aproximar:

—Os Bá sicos! Os Bá sicos!

Carcolo esmoreceu como uma bola que se esvazia.

—Onde?

—Uma grande nave negra, da metade do tamanho do vale. Eu estava


no descampado e consegui fugir.

O mensageiro apontou para longe, uma expressã o angustiadano


rosto.

—Fale, homem! - bradou Carcolo. —O que eles estã o fazendo?

—Eu nã o vi. Vim correndo trazer a notícia.

Carcolo lançou um olhar para o campo da batalha: os Demô nios de


Banbeck perseguiam seus Moloques, que recuavam lentamente, com
as cabeças baixas, as garras ameaçadoramente estendidas.

Carcolo levantou as mã os num gesto de desespero.


—Toque a retirada! - ordenou a Givven.

Balançando um lenço branco cavalgou em volta do campode batalha


na direçã o onde Joaz Banbeck continuava caído no chã o, enquanto o
Assassino moribundo era erguido de cima de suas pernas. Joaz
olhou para o alto; o rosto estava tã o branco quanto o lenço de
Carcolo. Ao encarar a face do inimigo, os olhos cresceram e
escureceram, a boca tornou-se imó vel.

Carcolo exclamou:

—Os Bá sicos voltaram de novo! Desceram no Vale Feliz, e estã o


destruindo meu povo!

Joaz Banbeck, ajudado pelos cavaleiros, ergueu-se com dificuldade.


Seu corpo oscilava, os braços continuavam caídos, sem vida,
enquanto olhava silenciosamente para o rosto de Carcolo.

Este tornou a falar:

56

—Vamos fazer as pazes. Esta batalha nã o conta. Com nossas forças


reunidas, vamos marchar para o Vale Feliz, atacar os monstros antes
que nos destruam! Ah, já pensou no que poderíamos alcançar com
as armas dos sacerdotes? Joaz manteve-se em silêncio. Outros dez
segundos passaram. Carcolo gritou com fú ria:

—Entã o, o que você decide? Com a voz rouca Joaz respondeu:


—Eu nã o aceito a paz. Você rejeitou meu aviso, você contou saquear
o Vale Banbeck. Nã o vou conceder perdã o.

Carcolo abriu a boca, que parecia um buraco vermelho sob os pêlos


do bigode.

—Mas os Bá sicos estã o aí...

—Volte para suas tropas. Você é meu inimigo, tanto quanto os


Bá sicos. Por que escolheria entre um e outro? Prepare-se para lutar
por sua vida. Eu nã o aceito a paz.

Carcolo recuou alguns passos; seu rosto estava tã o lívidoquanto o de


Joaz.

—Você nunca terá sossego - continuou Joaz. —Mesmo se ganhar


este combate no Precipício Starbreak, jamais conhecerá a vitó ria.
Vou persegui-lo até que você grite por misericó rdia.

Em seguida fez sinal a seus cavaleiros.

—Chicoteiem este cachorro de volta para os seus. Carcolo recuou


sua Aranha dos chicotes ameaçadores, deu meia-volta e afastou-se
aos saltos. O destino da batalha tinha mudado. Os Demô nios de
Banbeck venciam seus Monstros Azuis; um dos Moloques do Vale
Feliz estava morto; o outro, enfrentando três Demô nios, abriu a boca
enorme enquanto balançava a espada monstruosa. Os Demô nios
agitavam-se com as bolas de açogirando no ar e atacaram de frente.
O

Moloque desceu a espada sobre a armadura, rija como rocha, dos


Demô nios; que passaram a atacar por baixo, golpeando as pernas
monstruosas do adversá rio com as espinhentas bolas de aço.
O Moloque tentou livrar-se e caiu majestosamente no chã o. Os
Demô nios abriram sua barriga a golpes de espada - agora Carcolo
tinha apenas cinco Moloques em condiçã o de lutar.

—Recuem! - gritou Carcolo. —Todos para trá s!

No alto do Espigã o Barch suas tropas penavam; a frente da batalha


era uma confusã o inaudita de escamas, armaduras, metais
faiscantes. Felizmente, a retaguarda de Carcolo dava para a escarpa;
apó s dez minutos de pâ nico, conseguiu organizar uma retirada em
ordem. Dois outros Moloques tinham morrido; os três que restavam
conseguiram desvencilhar-se dos adversá rios.

Agarrando pedregulhos, lançavam-nos contra os atacantes que, apó s


uma série de investidas e de arremetidas, sentiram-se contentes
debater em retirada com vida. Joaz, de qualquer maneira, apó s ouvir
a notícia transmitida por Carcolo, nã o estava com disposiçã o de
perder mais combatentes.

57

Carcolo, brandindo a espada num gesto desesperado, levou as


tropas de volta contornando o Espigã o Barch; atravessou em
seguida o desolado Skanse. Joaz voltou para o Vale Banbeck. A
notícia do ataque dos Bá sicos espalhou-se por toda parte. Os
homens cavalgaram sombrios e calados, olhando o tempo todo para
trá s e para o alto. Mesmo os dragõ es pareciam contagiados pelo
medo e rosnavam entre si com grande inquietaçã o.

Ao atravessarem o Precipício Azul, o vento quase onipresente


cessou e a imobilidade da paisagem aumentou a depressã o geral. As
Megeras, como os homens, observaram o céu. Joaz pensou consigo
mesmo como os animais sabiam, como podiam sentir a presença dos
Bá sicos?

Também ele investigou o céu e, quando o exército passou por cima


da escarpa íngreme, pensou avistar, no alto do Monte Gethron, um
pequeno retâ ngulo negro que desapareceu atrá s de um rochedo.

58

CAPÍTULO 8

Ervis Carcolo e os remanescentes do exército desceram à s pressas,


confusamente, o Skanse, atravessaram a regiã o erma de ravinas e
abismos ao pé do monte Despoire em direçã o ao terreno desolado a
oeste do Vale Feliz. Toda aparência de disciplina militar fora
abandonada. Carcolo galopava na frente, sua Aranha soluçando de
cansaço enquanto atrá s marchavam pesadamente, em desordem, os
Assassinos e Monstros Azuis, seguidos de perto por Megeras e
Demô nios, que corriam rente ao chã o, com as bolas de aço raspando
nas rochas e soltando faíscas para o alto. Bem atrá s,arrastavam-se
os Moloques com seus peõ es.

O exército desembocou à beira do Vale Feliz e fez uma pausa brusca.


Carcolo saltou da Aranha, correu até a borda e contemplou
demoradamente o vale.
Contava ver a nave lá embaixo, mas a presença do objeto era tã o
imediata e intensa que o deixou perplexo. O cilindro negro e
brilhante estava pousado numa plantaçã o de hortaliças nã o muito
distante da miserá vel Cidade Feliz. Discos de metal polido, em
ambas as extremidades, brilhavam e faiscavam com furtivas
películas coloridas. Havia três portas: na frente, no centro e atrá s,e
da porta central descia uma rampa até o chã o.

Os Bá sicos tinham trabalhado com uma eficiência incrível. A essa


altura já vinha subindo da cidade uma fila de cativos, controlada por
membros das Tropas Pesadas. Ao se aproximarem da nave as
pessoas passavam por um aparelho de inspeçã o controlado por dois
Bá sicos. Uma série de instrumentos, bem como os olhos dos Bá sicos,
avaliavam homens, mulheres e crianças, e classificavam-nos
segundo algum sistema nã o perceptível para os humanos; depois
disso, eram empurrados pela rampa até a nave,ou encaminhados
para o interior de uma cabine pró xima. Por estranho que parecesse,
a cabine nã o enchia nunca, por maior que fosse o nú mero de pessoas
que nela entravam.

Carcolo passou os dedos trêmulos na testa e voltou os olhos para o


chã o. Quando tornou a olhar para o alto, Bast Givven estava ao seu
lado, e os dois juntos contemplaram o vale embaixo.

De trá s deles soou um grito de alarme. Olhando em volta, Carcolo


avistou um aparelho voador negro, de forma retangular, planando
silenciosamente no alto do Monte Gethron. Os braços 59

estendidos para o alto num ato instintivo de defesa, Carcolo correu


em direçã o à s rochas, dando ordens para os homens se abrigarem.
Dragõ es e guerreiros galgaram as ravinas. No alto planava o
aparelho voador. De uma portinhola aberta desceu uma carga de
bombas explosivas. Elas sacudiram o chã o com uma rajada ruidosa,
levando pelos ares pedras, fragmentos de rochas, ossos, escamas,
peles, postas de carne. Todos os que nã o se abrigaram em tempo
foram destruídos. As Megeras nã o sofreram muito. Todosos
Demô nios, embora atingidos e feridos, conseguiram sobreviver. Dois
Moloques ficaram cegos, e nã o poderiam combater mais criarem
novos ó rgã os de visã o.

O aparelho voador tornou a sobrevoar a regiã o. Muitos homens


dispararam seus mosquetõ es

— ato de desafio aparentemente fú til, mas o fato é que o aparelho


foi atingido e avariado. Girou, descreveu uma curva, virou de costas,
mergulhou em direçã o as montanhas e chocou-se contra a rocha
produzindo uma explosã o brilhante de chamas. Carcolo gritou com
uma alegria delirante, saltou como um demente, correu até a beira
do morro, balançou o punho para a nave embaixo.

Depois, voltando-se para o bando esfarrapado de homens e dragõ es


que tinham subido outra vez a ravina, berrou com a voz rouca:

—O que acham? Vamos lutar? Vamos investir contra eles?Ninguém


respondeu, a nã o ser Bast Givven, numa voz desanimada:

—Nã o há condiçã o. Nã o podemos fazer nada. Por que praticar um


suicídio em massa?

Carcolo afastou-se com o coraçã o pesado demais para poder falar.


Givven dissera a verdade.

Se ousassem investir seriam mortos ou capturados e arrastados


para a nave; depois, num mundo estranho e que nã o poderiam nem
sequer imaginar, seriam empregados em trabalhos terríveis e
intolerá veis. Carcolo cerrou os punhos e olhou para longe
amargurado pelo ó dio.

—Joaz Banbeck, você é o responsá vel por tudo isso! Quando ainda
podia lutar por meu povo, você me deteve!

—Os Bá sicos já estavam aqui - disse Givven com uma ló gica


inoportuna. —Nã o podíamos fazer nada, uma vez que nã o havia
nada para ser feito.

—Podíamos ter lutado! - bradou Carcolo. —Ter avançado pela


retaguarda e desabado sobre eles com nossas forças reunidas! Cem
guerreiros e quatrocentos dragõ es. Sã o armas desprezíveis,
porventura?

Bast Givven julgou inú til discutir. Apontou para longe.

—Estã o examinando nossas criadeiras. Carcolo voltou-se para ver e


deu uma gargalhada.

—Estã o espantados! Estã o com medo! E com toda razã o. Givven


concordou.

60

—Imagino que a figura de um Demô nio ou de um Monstro Azul -


sem falar nos Moloques -

seja motivo de reflexã o.

Embaixo no vale o trabalho sinistro tinha terminado. As tropas


Pesadas voltaram para a nave.
Foi entã o que dois homens enormes, de mais de três metros de
altura, saíram da espaçonave, levantaram a cabine e carregaram-na
pela rampa acima. Carcolo e seus homens observaram a cena com
olhos esbugalhados.

—Gigantes!

Bast Givven deu uma risadinha amarela.

—Os Bá sicos estã o admirados com nossos Moloques; e nó s


boquiabertos com seus Gigantes.

Os Bá sicos voltaram em seguida para a nave, recolheram a rampa e


fecharam as portas.

Depois, de uma torre frontal jorrou um raio de energia que atingiu


sucessivamente cada uma das três criadeiras, explodindo-as num
estilhaçar de tijolos pretos. Carcolo gemeu baixinho, mas nã o disse
nada.

A nave tremeu e flutuou; Carcolo gritou uma ordem; homens e


dragõ es correram a abrigar-se. Colados à s rochas e pedregulhos,
todos viram o cilindro negro levantar-se do vale, tomando a direçã o
oeste.

—Está rumando para o Vale Banbeck — comentou BastGivven.

Carcolo riu, uma risada sem graça. Bast Givven olhou de soslaio para
ele. Ervis Carcolo estaria louco? Em seguida afastou-se dali. Afinal, o
assunto nã o era importante.
Carcolo tomou uma decisã o sú bita. Foi até uma das Aranhas,
montou e voltou-se para encarar seus homens.

—Vou até o Vale Banbeck. Joaz Banbeck fez todo o possível para me
arruinar. Agora chegou minha vez. Nã o dou ordens. Quem quiser me
siga. Lembrem-se apenas: Joaz Banbeck nã o nos deixou combater os
Bá sicos!

E dizendo isso, afastou-se. Os homens olharam para o vale saqueado,


depois para Carcolo que se afastava a passos rá pidos. A nave negra
estava passando agora sobre o Monte Despoire. Nã o havia nada mais
que os prendesse ao vale. Em voz baixa, os homens chamaram os
dragõ es exaustos e todos juntos rumaramem direçã o à s montanhas
desoladas.

61

CAPÍTULO 9

Ervis Carcolo dirigia a Aranha numa carreira vertiginosa pelo


Skanse, entre os imensos rochedos que se erguiam de ambos
osblados; o sol ardente estava bem no alto do céu negro. Para trá s
já btinham ficado as plataformas do Skanse; à frente avistavam-se
oBarchback, o Espigã o Barth e a Cordilheira do Norte.
Indiferentebao cansaço da Aranha, Carcolo chicoteou-a; o musgo
cinzabesverdeado sob os pés ferozes do animal, que ia com a cabeça
estreita abaixada, soltando espuma pelas ventas. Carcolo nã o
prestava atençã o a nada; sua mente estava vazia de tudo que nã o
fossebó dio - ó dio dos Bá sicos, de Joaz Banbeck, de Aerlith, dos
homens, da histó ria humana. Ao aproximar-se da montanha, a
Aranha cambaleou e caiu. Ficou gemendo, com o pescoço esticado,
as pernas estendidas para trá s. Carcolo desceu do animal enoja-do;
olhou para trá s em direçã o à longa encosta íngreme do Skansepara
ver quantos guerreiros o tinham seguido. O ú nico homem que
avistou, montado numa Aranha, andando a passo moderado, foi Bast
Givven, que pouco depois estava ao seu lado, examinando o animal
caído.

— Solte a sobrecilha. Ela se recupera logo. Carcolo animou-se,


pensando ouvir uma entonaçã o nova navoz de Givven. Debruçou-se
sobre o dragã o esfalfado e soltou afivela grande de bronze. Givven
desmontou, esticou os braços, fez massagem nas pernas finas.

—A nave dos Bá sicos desceu no Vale Banbeck - comentou. Carcolo


balançou a cabeça de maneira sinistra.

—Gostaria de estar presente ao desembarque. - Deu um chute na


Aranha. —Vamos, levante-se, bicho, já nã o descansou bastante? Ou
quer que eu ande a pé?

A Aranha lamuriou-se, cansada, mas ergueu-se mesmo assim.


Carcolo preparava-se para montar quando Bast Givven colocou a
mã o em seu ombro. Carcolo olhou para trá s insultado: que
impertinência! Givven disse com calma:

—Aperte a sobrecilha, senã o você vai cair nas pedras e quebrar de


novo os ossos.

Com uma exclamaçã o de desprezo, Carcolo colocou a fivelana


posiçã o certa, enquanto a Aranha gritava de desespero. Sem prestar
atençã o, Carcolo montou e o animal começou a mover-se com
passos trêmulos.

62

O Espigã o Barch levantava-se adiante como a proa de um navio


branco, dividindo a Cordilheira Norte de Barchback. Carcolo parou
para contemplar a paisagem, enrolando o bigode.

Givven mantinha-se em silêncio. Carcolo dirigiu o olharpara o


Skanse embaixo e viu a marcha indolente do seu exército, em
direçã o à esquerda.

Passando embaixo do Monte Gethron, ladeando as Pedras, os


soldados desceram pelo antigo leito de um curso d’á gua em direçã o
à Beira Banbeck. Embora caminhassem vagarosamente, a grande
nave negra nã o viajara mais depressa; somente agora pousava no
vale, enquanto os discos da frente e de trá s giravam com cores
furiosas.

Carcolo murmurou com azedume:

—Joaz Banbeck sabe se virar sozinho. Nã o vejo ninguém por aqui.


Refugiou-se nos tú neis, com os dragõ es e todo o povo.- Franzindo a
boca, imitou a voz de Joaz. —"Ervis Carcolo, meu caro, só existe uma
resposta ao ataque. Cave tú neis!" —E eu respondi para ele: "Sou um
sacerdote por acaso para viver embaixo da terra? Cave e abra
buracos, Joaz Banbeck, faça como quiser. Eu sou um homem de
antigamente; só entro embaixo da terra quando for preciso."

Givven balançou ligeiramente os ombros. Carcolo continuou:


—Com tú neis ou nã o, vã o acabar conseguindo tirá -lo de lá . Se for
preciso, explodem o rochedo inteiro. Nã o lhes faltam recursos.

Givven deu um sorriso sardô nico.

—Joaz Banbeck também conhece alguns truques... como pudemos


constatar a duras penas.

—Vamos ver se consegue capturar uns vinte Bá sicos hoje. - Zombou


Carcolo. Aí eu vou admitir que é um homem inteligente.

Carcolo caminhou até a beira do morro ficando bem à vista da nave


dos Bá sicos. Givven observou-o sem comentar nada.

—Ah! Venha ver! - exclamou Carcolo.

—Eu nã o - disse Givven. —Respeito demais as armas dos Bá sicos.

—Besteira! - disse Carcolo com desdém. Mas mesmo assim, afastou-


se alguns passos da beira do morro. —Há alguns dragõ es na
Alameda Kergan. Apesar de Joaz Banbeck ter falado tanto nos
tú neis... - Olhou um momento em direçã o ao norte do Vale Banbeck,
depois levantou as mã os num gesto de frustraçã o.—Joaz Banbeck
nã o virá ao meu encontro aqui. Nã o há nada que posso fazer. A
menos que desça até a cidade, saia à sua procura e o derrote, ele vai
me escapar por entre os dedos.

63

—A menos que os Bá sicos capturem vocês dois e os levem para o


mesmo curral - disse Givven.
—Qual o quê! - murmurou Carcolo, afastando-se para o lado do
morro.

64

CAPÍTULO 10

As lâ minas de visã o, que permitiam a Joaz Banbeck observarem toda


a extensã o o Vale Banbeck, foram postas em uso pela primeira vez.
Tinha aperfeiçoado o sistema enquanto mexia com um conjunto de
lentes antigas, mas logo desistiu da ideia. Até que um dia, ao
negociar com os sacerdotes na caverna, embaixo do Monte Gethron,
propô s que lhe desenhassem e fornecessem as partes ó ticas do
sistema.

O sacerdote cego e velho que conduzia o negó cio deu-lhe uma


resposta ambígua: em determinadas circunstâ ncias poder-se-ia
pensar na possibilidade de concretizar o projeto.

Passaram-se três meses; Joaz nã o pensou mais no assunto. Um belo


dia, porém, o sacerdote perguntou se Joaz ainda pretendia instalar o
sistema de visã o; se a resposta fosse positiva, podia fornecer
imediatamenteas partes ó ticas. Joaz concordou com o preço
proposto e voltou para o Vale Banbeck com quatro caixotes pesados.
Ordenou que fossem construídos os tú neis necessá rios, instalou as
lentes e descobriu que podia dominar todos os pontos do Vale
Banbeck, contanto que o estú dio estivesse mergulhado na escuridã o.
Agora, enquanto a nave Bá sica escurecia o céu, Joaz Banbeck
acompanhava do seu estú dio a descida do grande casco negro.

Nos fundos da sala castanho avermelhada os reposteiros se abriram.


Em pé, junto à soleira, Phade segurava os panos com as mã os
delicadas. Tinha o rosto pá lido, os olhos claros como opalina. Em voz
baixa comentou:

—A nave da morte. Veio buscar as almas.

Joaz dirigiu-lhe um olhar frio e, virando-se, retornou à s lâ minas


polidas de vidro.

—A nave está claramente visível.

Phade correu na direçã o dele, segurou-o pelo braço e fitou-o bem no


rosto.

—Vamos tentar fugir! Para as montanhas, para o Alto das Pedras.


Nã o vamos deixar que nos capturem assim.

—Ninguém a impede de agir - disse Joaz com indiferença.—Fuja


para onde quiser.

Phade olhou fixamente para ele, depois voltou a cabeça e observou a


lâ mina de vidro. A grande nave negra descia com uma deliberaçã o
sinistra; os discos na frente e atrá s brilhavam como madrepérola.
Phade olhou para Joaz, passou a língua nos lá bios e perguntou: 65

—Você nã o tem medo? Joaz sorriu de leve.


—De que adianta fugir? Os Batedores dos Bá sicos sã o mais rá pidos
do que nossos Assassinos, mais ferozes que as Megeras. Podem
farejar a presença de alguém a um quilô metro de distâ ncia, capturá -
lo no meio das Pedras.

Phade tremeu com um horror supersticioso. Murmurou:

—Que me levem morta, entã o. Viva nã o vã o conseguir me apanhar.

De repente Joaz praguejou:

—Veja onde estã o descendo. No melhor campo de bellegarde.

—Que diferença isso faz?

—Diferença? Vamos deixar de comer por que eles estã o nos


visitando?

Phade fitou-o espantada, sem compreender. Caiu lentamentede


joelhos no chã o e começou a fazer os gestos rituais do culto teú rgico:
levava as palmas das mã os para baixo, depois lentamente para cima,
até que as costas das mã os tocassem nas orelhas, enquanto estendia
a língua para fora.

Repetiu o ritual muitas e muitas vezes, com o olhar dirigido para o


vazio com uma intensidade faná tica.

Joaz ignorou as gesticulaçõ es até que Phade, com o rosto deformado


numa má scara fantá stica, começou a suspirar e a gemer; foi entã o
que ele atirou as abas do casado no rosto dela.

—Basta dessa loucura!


Phade caiu no chã o com um gemido; os lá bios de Joaz torceram-se
de aborrecimento.

Levantou-a com impaciência.

—Preste atençã o: os Bá sicos nã o sã o assombraçõ es nem anjos da


morte. Nã o passam de Megeras pá lidas, a raça bá sica dos nossos
dragõ es. É melhor você deixar dessa idiotice, ou vou mandar Rife
levá -la embora.

—Por que você nã o se prepara? Fica observando, mas nã o faz nada.

—Nã o há nada mais que se possa fazer.

Phade estremeceu, soltou um suspiro fundo e olhou estupidamente


para a lâ mina de vidro.

— Você nã o vai lutar contra eles?

— Claro que vou.

— E como vai poder enfrentar o poder milagroso deles?

—Vamos fazer o que for possível. Eles ainda nã o enfrentaram


nossos dragõ es.

A nave pousou num vinhedo verde e pú rpura do outro lado do vale,


perto da entrada da Fenda Clybourne. A porta abriu-se para trá s e
uma rampa rolou para a frente.

66
—Veja! — exclamou Joaz. — Ali estã o eles...

Phade olhou fixamente para as sombras pá lidas e estranhas que


desciam hesitantemente pela rampa.

—Parecem esquisitos e deformados, como brinquedos de armar das


crianças.

—Sã o os Bá sicos. Dos ovos deles nasceram nossos dragõ es. Fizeram
o mesmo com os homens. Veja, aquelas sã o as Tropas Pesadas.

Pela rampa, em fila de quatro, numa cadência exata, marchavam as


Tropas Pesadas; fizeram alto a uns cinqü enta metros à frente da
nave. Havia três esquadrõ es de vinte combatentes -

homens pequenos de ombros largos, pescoços grossos, rostos


insensíveis e duros. Usavam armaduras feitas de escamas
sobrepostas de metal negro e azul, um cinturã o largo onde levavam
as pistolas e espadas. Das dragonas negras que ultrapassavam o
tamanho dos ombros pendia uma pequena aba de pano preto, que
descia pelas costas e solenizava a indumentá ria; os capacetes
tinham uma crista de pontas afiadas e as botas altas eram armadas
com facas.

Em seguida apareceram alguns Bá sicos. Suas montarias, criaturas


que se pareciam vagamente com homens, corriam em cima das
mã os e dos pés, com as costas erguidas do chã o. As cabeças eram
compridas e sem cabelos, com lá bios soltos que tremiam. Os Bá sicos
os dominavam com chicotadas negligentes e, apó s desembarcarem,
deixavam que galopassem pelos canteiros de bellegarde. Enquanto
isso, um grupo de Tropas Pesadas desceu da nave empurrando um
veículo de três rodas pela rampa, e apontou a boca do complexo
aparelho para a aldeia.
—Eles nunca prepararam antes um ataque com tanto cuidado -
murmurou Joaz. —Ali vã o os Batedores. - Contou em voz alta. —
Somente duas dú zias? Talvez sejam difíceis de reproduzir. Os
homens se reproduzem lentamente, enquanto os dragõ es botam um
punhado de ovos todos os anos.

Os Batedores dirigiram-se para um lado e formaram um grupo


afastado e impaciente. Eram criaturas magras de dois metros de
altura, de olhos negros saltados, narizes bicudos, pequenas bocas
apertadas como para beijar. Dos ombros estreitos caíam braços
compridos que balançavam como cordas soltas. Enquanto
aguardavam, flexionavam os joelhos, olhando fixamente para um
lado e para o outro do vale, num movimento constante e irrequieto.
Em seguida apareceu um grupo de Atiradores - homens inalterados
que usavam tú nicas largas, e chapéus verdes e amarelos de pano.
Levavam dois outros veículos de três rodas que começaram
imediatamente a montar e a experimentar.

67

O grupo inteiro tornou-se quieto e tenso. As Tropas Pesadas deram


um passo à frente num movimento arrastado dos pés, enquanto
mantinham as mã os de prontidã o sobre as espadas e pistolas.

—Lá vem eles! - disse Joaz.

Phade calou um grito de desespero, ajoelhou-se no chã o e, mais uma


vez, começou as gesticulaçõ es teú rgicas. Joaz, aborrecido, mandou-a
embora do estú dio; dirigiu-se em seguida a um painel equipado com
um conjunto de seis aparelhos de comunicaçã o direta por meio de
fios, cuja construçã o ele acompanhara pessoalmente. Falou em três
dos telefones, certificando-se que suas defesas estavam de
prontidã o. Feito isto, retornou à s lâ minas de vidro polido.

As Tropas Pesadas atravessaram os campos de bellegarde; tinham


os rostos duros, vincados por rugas profundas. Nos flancos iam os
Atiradores, puxando os mecanismos de três rodas; os Batedores
tinham permanecido ao lado da nave. Uns doze Bá sicos cavalgavam
atrá s das Tropas Pesadas carregando armas volumosas nas costas.

A uns cem metros do portal da Alameda Kergan, fora do alcance dos


mosquetes de Banbeck, os invasores fizeram alto. Um dos Pesados
correu para uma das carroças dos Atiradores, enfiou os ombros por
baixo do arreio e ficou em pé. Puxava agora uma má quina cinzenta,
da qual saíam duas bolas negras. O Pesado deu uma corridinha em
direçã o à aldeia como um rato enorme; das bolas negras jorrava um
fluxo que tinha por finalidade atingir o sistema nervoso dos
defensores de Banbeck, imobilizando-os.

Ouviram-se detonaçõ es; rolos de fumaça saíram dos esconderijos e


pontos estratégicos no meio das rochas. Balas levantaram terra ao
lado do Pesado; vá rios ricochetearam na sua armadura.

Imediatamente, raios quentes foram lançados da nave contra as


encostas do penhasco. No interior do estú dio, Joaz sorriu. As nuvens
de fumaça eram uma cilada; os tiros reais vinham de outras partes.
O Pesado, negaceando e movendo-se com rapidez, evitou uma rajada
de balas e correu para baixo do portã o, em cima do qual dois
homens mantinham guarda. Atingidos pelo fluxo, estremeceram e
imobilizaram-se, nã o sem antes conseguirem lançar uma grande
pedra que atingiu o Pesado entre o pescoço e os ombros,
derrubando-o. O invasor agitou os braços e as pernas para cima,
rolou de um lado para o outro; logo pô s-se em pé de um salto,
correu de volta para o vale, dando grandes pulos, até que finalmente
tropeçou e tombou de cabeça no chã o, onde ficou estrebuchando.

O exército dos Bá sicos observava a cena sem demonstrar o menor


interesse ou preocupaçã o.

68

Houve um momento de inatividade. Logo depois, surgiu da nave um


campo invisível de vibraçã o, que percorreu a face dos penhascos.
Onde o foco batia, rolos de poeira levantavam-se e as rochas soltas
ruíam. Um homem, agachado atrá s de uma saliência, deu um pulo,
dançando e contorcendo-se, e mergulhou de sessenta metros para a
morte. Ao passar por uma das vigias de Joaz Banbeck, a vibraçã o
penetrou no estú dio e produziu um ruído estridente. Atravessou o
penhasco de lado a lado. Joaz esfregou a cabeça dolorida.

Enquanto isso, os Atiradores descarregaram uma de suas armas:


primeiro, ouviram-se explosõ es abafadas; depois, uma esfera
cinzenta e oscilante descreveu uma curva no espaço.

Apontada com inexatidã o, atingiu o portal e produziu uma grande


emanaçã o de gá s amarelo e branco. Na segunda detonaçã o a bomba,
lançada com boa pontaria, foi bater na Alameda Kergan, que estava
completamente deserta, de sorte que o projétil nã o causou nenhum
dano.

Joaz aguardava preocupado e sombrio no estú dio o desenvolver dos


acontecimentos. Até ali os Bá sicos tinham adotado medidas
hesitantes, quase lú dicas; tentativas mais sérias iriam certamente
seguir-se.
O vento dispersou os gases; a situaçã o voltou a ser como antes. As
perdas até agora eram um membro do contingente dasTropas
Pesadas e um atirador de Banbeck.

A nave disparou em seguida como que uma rajada de violenta


chama vermelha, que fez a rocha junto ao portal voar empedaços; os
estilhaços zumbiam e giravam no ar; as Tropas Pesadas marcharam
para frente.

Joaz falou no telefone, aconselhou cautela aos capitã es, afim de nã o


contra-atacarem e caírem numa cilada, expondo-se a uma nova
bomba de gá s.

As Tropas Pesadas, no entanto, lançaram-se pela Alameda Kergan —


um ato de temeridade e desdenhosa confiança, na opiniã o de Joaz.
Deu uma ordem lacô nica; das passagens e das á reas vizinhas, os
dragõ es precipitaram-se contra os invasores — Monstros Azuis,
Demô nios, Megeras.

O esquadrã o dos Pesados foi tomado de assombro. Ali estavam


adversá rios inesperados. A Alameda Kergan se encheu de gritos e de
ordens dos chefes. Primeiro, os invasores recuaram, depois, com a
coragem do desespero, lutaram furiosamente. De um lado e do outro
da Alameda Kergan, a batalha foi travada com violência. Algumas
limitaçõ es logo tornaram-se evidentes. No desfiladeiro estreito, as
pistolas dos invasores e as bolas de aço dos Demô nios nã o podiam
ser empregadas com eficiência. As espadas curvas eram inú teis
contra as escamas dos dragõ es, enquanto as tenazes dos Monstros
Azuis, os punhais das Megeras, os machados, as espadas, as garras e
as unhas dos Demô nios causavamperdas tremendas entre as Tropas
Pesadas. Um invasor 69
isoladoera certamente um adversá rio à altura contra uma ú nica
Megera, se bem que o Pesado, agarrando o dragã o com seus braços
robustos, decepando-lhe os membros anteriores e partindo-lhe o
pescoço, vencesse mais vezes o combate que a Megera. Mas se
doisou três dragõ es enfrentavam um invasor isolado, este estava
perdido. No momento em que arremetia contra um deles, o outro
esmagava suas pernas, cegava-o ou degolava-o.

Por isso as Tropas Pesadas recuaram para o vale, deixando vinte de


seus companheiros mortos na Alameda Kergan. Os homens de
Banbeck tornaram a abrir fogo, mais uma vez com pequeno êxito.

Do estú dio, Joaz observava a luta, perguntando a si mesmo qual


seria a pró xima tá tica que os Bá sicos empregariam. Sua dú vida foi
logo esclarecida. As Tropas Pesadas reagruparam-se, ofegantes,
enquanto os Bá sicos cavalgavam de um lado para o outro,
recebendo informaçõ es, dando orientaçã o, incentivando e criticando
os combatentes.

Da nave negra saiu um jato de energia que atingiu o penhasco no


alto da Alameda Kergan; o estú dio tremeu com o abalo.

Joaz afastou-se das placas de visã o. O que aconteceria se um raio


atingisse uma das lentes? A energia podia se focalizar num ponto e
refletir diretamente em cima dele! Quando o estú dio foi abalado por
uma nova explosã o decidiu abandoná -lo.

Atravessou correndo uma passagem, desceu a escada e foidar numa


das galerias centrais onde encontrou uma confusã o generalizada.
Mulheres e crianças de rostos pá lidos, que se retiravam para o
interior das montanhas, passavam por dragõ es e homens em
armaduras de combate e penetravam num dos novos tú neis
construídos na rocha. Joaz observou a cena durante alguns instantes
para certificar-se de que a confusã o nã o se transformaria em pâ nico.
Reuniu-se em seguida aos seus guerreiros no tú nel que conduzia ao
norte.

Numa época remota, um lado inteiro do penhasco no alto do vale


havia desmoronado, criando um verdadeiro labirinto de
pedregulhos e de pedras amontoadas que era chamado as Pedras de
Banbeck. Ali, por uma nesga, abria-se o tú nel novo; e foi por ele que
Joaz entrou com os guerreiros. Atrá s deles, no vale embaixo,
ressoava o clangor das explosõ es, enquanto a nave negra demolia a
Aldeia Banbeck.

Protegido atrá s de uma pedra, Joaz viu grandes lascas de rocha


desprenderem-se do penhasco, o que o enfureceu. Mas sua raiva
transformou-se em perplexidade quando as tropas dos Bá sicos
começaram a receber reforços extraordiná rios. Avistou oito
Gigantes duas vezes mais altos que os homens comuns - monstros
de tó rax abaulado, braços e pernas tortos, olhos claros e com 70

tufos de cabelos alourados. Usavam armaduras marrons e


vermelhas com dragonas pretas, e estavam armados com espadas,
bastõ es e canhõ es de chamas, que conduziam em cima dos ombros.

Joaz refletiu. A presença dos Gigantes nã o era motivo suficiente para


alterar sua estratégia, a qual, de qualquer modo, era vaga e intuitiva.
Devia estar preparado para sofrer perdas sérias e sua ú nica
esperança era infligir perdas maiores ainda ao exército dos Bá sicos.
Mas que importâ ncia davam eles à vida de seus combatentes?
Menos ainda que Joaz dava à vida dos dragõ es. Se destruíssem a
Aldeia Banbeck, devastassem o vale - de que maneira poderia
revidar? Olhou por cima dos ombros para os altos penhascos
brancos, indagando consigo mesmo qual seria a posiçã o exata do
salã o subterrâ neo dos sacerdotes. Agora tinha que agir; chegara o
momento. Fez sinal para um dos meninos, um de seus filhos, que
tomou fô lego, desceu correndo do abrigo nas rochas e atravessou
precipitadamente o vale, seguido por sua mã e que, num instante, o
apanhou e voltou à toda para as Pedras.

—Fez bem - murmurou Joaz. —Muito bem.

Com toda cautela, tornou a olhar por entre à s pedras do morro. Os


Bá sicos estavam olhando atentamente na sua direçã o.

Durante um longo momento, enquanto Joaz aguardava ansioso,


parecia que o inimigo ignorara seu estratagema. Os Bá sicos
conferenciaram e pareceram chegar a uma conclusã o, pois em
seguida ativaram as montarias, chicoteando suas ancas cobertas
decouro. As criaturas deram um salto para o lado e depois saíram
correndo em direçã o à parte norte do vale. Os Batedores iam atrá s,
seguidos pelas Tropas Pesadas, que caminhavam com passadas
ligeiras e saltitantes. Em seguida marchavam os Atiradores,
trazendo os veículos de três rodas; na retaguarda iam os oito
Gigantes, arrastando os canhõ es pesados. Os invasores
atravessaram os campos de bellegarde, de ervilhaca, passaram por
cima dos vinhedos, das cercas, dos canteiros de morangos e das
plantaçõ es de hortaliças, destruindo tudo com uma certa satisfaçã o
indolente.

Os Bá sicos se detiveram prudentemente diante das Pedras de


Banbeck, enquanto os Batedores avançavam como cã es amestrados;
subiam nas pedras, farejavam o ar em volta, esmiuçando, ouvindo,
apontando e cochichando nervosamente uns com os outros. As
tropas Pesadas marchavam cuidadosamente e a proximidade delas
incentivava os Batedores. Alguns abandonando toda cautela,
saltaram bem no meio das Pedras. Seus gritos de pavor, porém,
feriram o ar quando uma dú zia de Monstros Azuis caiu subitamente
no meio deles. Os animais se apoderaram das armas térmicas,
queimando, na sua excitaçã o, aliados e inimigos ao mesmo 71

tempo. Com voluptuosa ferocidade, os Monstros Azuis


despedaçaram os invasores, enquanto estes gritavam por socorro,
debatiam-se, desferiam golpes e pancadas; aqueles que ainda
tinham chance recuavam tã o precipitadamente quanto tinham
avançado. Somente doze dos vinte e quatro assaltantes conseguiram
retornar, e corriam dando gritos de alívio por se sentirem livres da
morte, quando foram atacados por um esquadrã o de Assassinos de
Chifres Compridos. Assim os Batedores restantes foram derrubados,
massacrados, despedaçados.

As Tropas Pesadas investiram entã o - entre gritos terríveis -


apontando as pistolas, brandindo as espadas, mas os Assassinos
retiraram-se para os abrigos nas pedras.

No interior das Pedras, os homens de Banbeck capturaram as armas


térmicas abandonadas pelos Batedores e, avançando com cautela,
tentaram usá -las contra os Bá sicos. Entretanto, inexperientes no uso
dessas armas, nã o sabiam focalizar ou concentrar as chamas, de
maneira que os Bá sicos, apenas levemente atingidos, chicotearam
rapidamente suas montarias para longe do alcance dos jatos.
Estacionadas uns trinta metros adiante das Pedras, as Tropas
Pesadas aproveitam a ocasiã o para lançar uma saraivada de
granadas, que atingiu dois homens de Banbeck matando-os, e forçou
a retirada dos outros.

A uma distâ ncia razoá vel dali, os Bá sicos avaliavam a situaçã o. Os


Atiradores aproximaram-se do local e, enquanto aguardavam as
instruçõ es, conversavam em Voz baixa com as montarias. Um dos
Atiradores foi chamado para receber ordens. Apó s ouvir as
instruçõ es, largou todas as armas que trazia e, com as mã os vazias
levantadas no alto, caminhou em direçã o à s Pedras. Escolheu um
vã o entre duas rochas de três metros de altura e penetrou
resolutamente no labirinto.

Um cavaleiro de Banbeck escoltou-o até a presença de Joaz. Ali, por


acaso, havia também meia dú zia de Megeras. O Atirador parou
indeciso, fez uma readaptaçã o mental e aproximou-se delas.
Inclinando respeitosamente a cabeça, começou a falar. As Megeras o
ouviram sem o menor interesse, até que o cavaleiro o dirigiu à
presença de Joaz.

—Os dragõ es nã o governam os homens em Aerlith - disseJoaz com


rispidez. —Qual é sua mensagem?

O Atirador olhou, ainda em dú vida, para onde estavam as Megeras, e


depois, sombriamente, para Joaz.

—O senhor tem autoridade para agir em nome da populaçã o? -


Falava lentamente, com a voz seca e suave, escolhendo as palavras
com todo cuidado.

Joaz repetiu brevemente:

—Qual é sua mensagem?

72

—Eu trago uma integraçã o dos meus senhores.

—"Integraçã o"? Nã o entendo o que isso quer dizer.


—Uma integraçã o dos vetores instantâ neos do destino. Uma
interpretaçã o do futuro. Eles desejam que o sentido lhe seja
transmitido nos seguintes termos: "Nã o desperdice vidas, tanto
suasquanto nossas. O senhor é valioso para nó s e receberá um
tratamento de acordo com este valor. Renda-se à Regra. Cesse a
destruiçã o inú til da empresa."

Joaz franziu a testa.

—"Destruiçã o da empresa"?

—A referência diz respeito ao conteú do dos seus genes. A


mensagem é essa. Aconselho-o a aceitar. Por que desperdiçar seu
sangue, por que destruir mais homens? Venha comigo agora; tudo
sairá melhor.

Joaz riu, sarcá stico.

—Você é um escravo. Como pode julgar o que é melhor para nó s?

O Atirador piscou.

—Que outra escolha existe? Todos os nichos residuais da vida


desorganizada vã o ser extintos.

O caminho mais fá cil é o melhor. - Inclinou a cabeça


respeitosamente em direçã o à s Megeras. —Se tem dú vidas, consulte
seus Venerados. Eles o aconselharã o.

—Nã o existem Venerados aqui - disse Joaz. —Os dragõ es lutam por
nó s e conosco; sã o nossos guerreiros. Mas eu tenho uma proposta a
fazer. Por que você e seus companheiros nã o se unem a nó s?
Abandonem a escravidã o, voltem de novo à condiçã o de homens
livres! Assaltaremos a nave e partiremos em busca dos mundos
antigos dos homens.

O Atirador demonstrou apenas um interesse educado.

—Mundos dos homens? Nã o existem mais estes mundos. Alguns


poucos elementos residuais, como é o seu caso, habitam regiõ es
desoladas. Todos vã o ser aniquilados. Nã o prefere servir à Regra?

—Você nã o prefere ser um homem livre?

O rosto do Atirador demonstrou uma surpresa moderada.

—O senhor nã o me entende. Se escolher...

—Ouça com atençã o - interrompeu Joaz; você e seus companheiros


podem ser seus pró prios senhores, viver entre outros homens.

O Atirador franziu a testa.

—Quem gostaria de ser um selvagem? Quem vos imporia lei,


controle, direçã o, ordem?

73

Joaz ergueu as mã os para o alto, tomado de desâ nimo, mas fez uma
ú ltima tentativa.

—Eu cuido de tudo isso. Assumo essa responsabilidade. Volte para


os seus, mate os Bá sicos -
os Venerados, como você os chama. Estas sã o minhas primeiras
ordens.

—Matá -los? - A voz do Atirador era trêmula de horror.

—Mate-os - repetiu Joaz como se dirigisse a uma criança. —Aí


entraremos na posse da nave espacial. Vamos procurar os mundos
onde os homens sã o poderosos...

—Nã o existem mais estes mundos.

—Ah, têm que existir! Houve uma época em que os homens


visitavam todas as estrelas do céu.

—Nã o é mais assim.

—E o É den?

—Nada sei a esse respeito.

Joaz sacudiu as mã os, desalentado.

—Você vai juntar-se a nó s?

—Qual seria o significado desse ato? — indagou o Atirador com


delicadeza.

—Vamos, deponha as armas, submeta-se à Regra. Lançou um olhar


hesitante em direçã o aos dragõ es.

—Seus Venerados receberã o um tratamento adequado, pode ficar


tranquilo.
—Seu louco! Estes "Venerados" sã o escravos, da mesma forma que
vocês sã o escravos dos Bá sicos! Foram criados para nos servir, do
mesmo modo como vocês sã o cruzados! Tenha pelo menos a
gentileza de reconhecer sua pró pria degradaçã o.

O Atirador piscou os olhos.

—Nã o entendo perfeitamente os termos de suas palavras. Nã o


pretende entregar-se, entã o?

—Nã o. Vamos matar todos vocês, se nossas forças nos permitirem.

O Atirador inclinou a cabeça, voltou-se e desceu pelas rochas. Joaz


seguiu-o e olhou em direçã o ao vale.

O Atirador transmitiu a mensagem aos Bá sicos, que a ouviram com


um desinteresse característico. Deram uma ordem e as Tropas
Pesadas, espalhando-se em linha de combate, avançaram
lentamente em direçã o à s montanhas. Atrá s iam os Gigantes, com as
armas apontadas para a frente, e cerca de vinte batedores, os
sobreviventes do primeiro encontro. As Tropas Pesadas
aproximaram-se das rochas e examinaram o local. Os Batedores
subiram ao alto das pedras, à procura de emboscadas; como nã o
encontraram nenhum vestígio, fizeram sinal para os 74

que vinham atrá s. Com grande cautela, as Tropas Pesadas


penetraram nas Pedras, rompendo necessariamente a formaçã o.
Avançaram seis metros, vinte metros, trinta metros, até que,
tomados de coragem, os vingativos Batedores saltaram sobre as
rochas. Do alto surgiram as Megeras.
Gritando e praguejando, os Batedores recuaram em debandada,
perseguidos pelos dragõ es.

As Tropas Pesadas retrocederam, depois apontaram as armas,


dispararam e atingiram duas Megeras embaixo das axilas, o ponto
mais vulnerá vel do corpo dos dragõ es. Gritando de dor, as criaturas
despencaram pelas pedras abaixo. Outras, alucinadas, saltaram
diretamente no meio das Tropas Pesadas. Houve uma confusã o de
bramidos, ruídos de choques, uivos de dor. Os Gigantes avançaram
pesadamente e, de dentes arreganhados, foram agarrando os
dragõ es, torcendo suas cabeças e atirando-os por cima das rochas.
Alguns, porém, conseguiram escapar, apó s terem ferido uma meia
dú zia de membros das Tropas Pesadas, deixando dois com a
garganta aberta.

De novo as Tropas Pesadas avançaram, enquanto os Batedores


reconheciam o terreno, com maior cautela desta vez. De repente, os
Batedores imobilizaram-se, gritaram uma advertência, as Tropas
Pesadas fizeram alto, chamando uns aos outros, brandindo as armas
com nervosismo. Logo estavam descendo aos saltos de seus postos
de observaçã o pois tinham avistado uma dezena de Demô nios e de
Monstros Azuis que investiam, subindo e metendo-se pelo meio das
pedras. As Tropas Pesadas, os rostos contorcidos, numa careta
sinistra, dispararam as pistolas e o ar se encheu do cheiro enjoativo
de escamas queimadas, de vísceras expostas. Os dragõ es lançaram-
se sobre os atacantes; começou, entã o, um combate terrível por
entre as rochas, uma vez que as pistolas, os bastõ es e até mesmo as
espadas eram inú teis por falta de espaço. Os Gigantes avançaram
pesadamente e, por seu turno, foram atacados pelos Demô nios.
Atô nitos, os sorrisos idiotas sumiram de seus rostos; saltavam
desajeitadamente para fugir dos golpes das caudas armadas, embora
entre as rochas os Demô nios também levassem desvantagem: as
bolas de aço que traziam na ponta da cauda chocavam-se mais
freqü entemente contra as pedras do que contra o corpo do inimigo.

Recuperando-se, os Gigantes descarregaram os projetores de mã o


em meio à confusã o: Demô nios foram despedaçados, de mistura
com Monstros Azuis e elementos das Tropas Pesadas; os Gigantes
nã o faziam distinçã o entre as vítimas.

Por entre as pedras, surgiu uma nova onda de dragõ es - Monstros


Azuis. Escorregavam sobre as cabeças dos Gigantes, enfiando-lhes as
garras, acutilando-os, rasgando-os. Tomados de fú ria 75

frenética, os Gigantes arrancavam os dragõ es de cima de si,


lançando-os ao chã o e pisoteando-os; logo as Tropas Pesadas os
queimavam com suas pistolas.

De repente, sem nenhuma razã o, houve uma calmaria. Durante dez


segundos, vinte segundos, nã o se ouvia ruído a nã o ser os gemidos e
grunhidos de dragõ es e homens feridos.

Pairava no ar a expectativa de algo iminente. E foi entã o que os


Moloques surgiram pelas passagens entre as rochas. Durante alguns
instantes, Gigantes e Moloques se encararam face a face. Os Gigantes
empunharam seus projetores de calor, enquanto os Monstros Azuis
tornaram a investir, agarrando os braços dos Gigantes. Os Moloques
avançaram rapidamente sobre o inimigo. Os membros anteriores
dos dragõ es agarravam os braços dos Gigantes; as maças cortavam o
ar, as armaduras de dragõ es e de homens se chocavam e
esmigalhavam. Homem e dragã o rolavam pelo chã o, ignorando a
dor, os golpes, as mutilaçõ es.
A luta acalmou. Soluços e lamentos substituíram os urros do
combate. Oito Moloques, superiores em força física e em armas
naturais, afastaram-se do terreno, onde havia oito Gigantes
tombados.

Enquanto isso, as Tropas Pesadas se haviam reagrupado, dorso


contra dorso, em blocos cerrados. Passo a passo, queimando com os
feixes de calor, Monstros Azuis, Megeras e Demô niosque os
perseguiam as. Tropas Pesadas foram-se retirando para o vale, onde
se viram finalmente em campo livre. Os Demô nios que vinham atrá s,
ansiosos para lutar em campo aberto, saltaram sobre os inimigos,
enquanto que dos flancos surgiam Assassinos de Chifres Compridos
e Assassinos Galopantes.

Tomados de um entusiasmo temerá rio, uns doze homens montados


em Aranhas, arrastando os canhõ es térmicos que haviam tomado
dos Gigantes, investiram contra os Bá sicos e os Atiradores que
estavam parados nas proximidades das armas de três rodas. Os
Bá sicos, sem a menor cerimô nia, manobraram as montarias
humanas e fugiram para a nave espacial. Os Atiradores giraram os
mecanismos, apontaram, descarregaram jatos de energia. Um
homem caiu, dois homens, três — logo em seguida os demais
estavam sobre os Atiradores, que foram massacrados, inclusive o
indivíduo persuasivo que servira de mensageiro.

Alguns dos homens, aos gritos, partiram atrá s dos Bá sicos, mas as
montarias humanas, saltando como lebres monstruosas, conduziam
os Bá sicos tã o velozmente quanto as Aranhas transportavam os
homens. Das Pedras veio um sinal de trompa; os homens montados
fizeram alto e retrocederam. A tropa inteira de Banbeck recuou e
refugiou-se rapidamente no meio das Pedras.

76
As Tropas Pesadas deram alguns passos desconfiados naquela
direçã o, mas logo pararam, esgotadas. Dos primitivos três
esquadrõ es, nã o havia mais homens suficientes para formar um
ú nico. Os oito Gigantes tinham perecido, todos os Atiradores e quase
o grupo inteiro dos Batedores também.

As forças de Banbeck ganharam as Pedras no instante exato. Da


nave negra partiu uma rajada de granadas que despedaçou as
rochas no lugar onde os homens de Banbeck tinham estado poucos
segundos antes.

Ervis Carcolo e Bast Givven acompanharam a batalha do alto de uma


rocha polida pelo vento.

As pedras ocultavam a maior parte do combate; os gritos e clamores


chegavam ali fracamente, como zumbidos de insetos. Havia os
fulgores das escamas dos dragõ es, visõ es breves de homens
correndo, a sombra e o clarã o do movimento, mas foi somente
quando as forças dos Bá sicos se retiraram em destroços que o
resultadoda batalha se tornou visível. Carcolo balançou a cabeça,
tomado de amarga admiraçã o.

—Como este diabo de Joaz Banbeck é esperto! Conseguiu rechaçá -


los.... destruir a maior parte das tropas inimigas!

—Pelo visto - comentou Bast Givven - dragõ es armados de garras,


de espadas e de bolas de aço sã o mais eficientes do que homens com
pistolas e raios térmicos... pelo menos nesta regiã o.

Carcolo murmurou:
—Eu também teria conseguido, em condiçõ es favorá veis, dirigiu a
Bast Givven um olhar ferino.

— Nã o concorda?

—Certamente. Sem dú vida alguma.

—Claro... Nã o tive a vantagem dos preparativos. Os Bá sicos me


pegaram desprevenido; Joaz Banbeck nã o teve esta desvantagem. -
Olhou em direçã o ao Vale Banbeck, onde a navedos Bá sicos
bombardeava as Pedras fazendo as rochas voarem empedaços. —
Será que eles pretendem arrastar as Pedras? Neste caso,
naturalmente, Joaz Banbeck nã o terá outro refú gio. A estratégia
deles é clara. E como eu suspeitava: forças de reserva!

Neste momento outro grupo de Tropas Pesadas, composto de trinta


elementos, vinha descendo pela rampa, e aguardou e mordem no
campo pisado diante da nave.

Carcolo deu um soco na palma da mã o.

77

—Bast Givven, preste atençã o! Temos a oportunidade de realizar


um grande feito; de inverter nossa sorte! Olhe a Fenda Clybourne...
vê como ela se abre diretamente sobre o vale, bem atrá s da nave dos
Bá sicos?

—Sua ambiçã o vai ainda nos custar a vida Carcolo deu uma risada.

—Escuta, Givven, quantas vezes o homem morre? Existe melhor


maneira de perder a vida do que buscando a gló ria?
Bast Givven voltou-se e observou os magros remanescentes do
exército do Vale Feliz.

—Podíamos conquistar a gló ria espancando alguns sacerdotes. Nã o


há necessidade de lançar-nos ao assalto da nave dos Bá sicos.

—Pois é isto exatamente o que vamos fazer - disse Carcolo. —Eu vou
na frente. Você reú ne as forças e me segue. Vamos nos encontrar na
Fenda Clybourne, no lado oeste do vale!

78

CAPÍTULO 11

Ervis Carcolo batia os pés e praguejava de nervosismo enquanto


aguardava na entrada da Fenda Clybourne. O insucesso da difícil
empresa que se propusera passou por sua imaginaçã o numa série de
lances. Os Bá sicos em face das dificuldades do Vale Banbeck iriam
embora. Joaz atacaria em campo aberto para salvar a Aldeia
Banbeck e seria destroçado. Bast Givven seria incapaz de controlar
os homens abatidos e os dragõ es amotinados do Vale Feliz. Qualquer
uma dessas situaçõ es podia realmente ocorrer; qualquer uma delas
aniquilaria os sonhos de gló ria de Carcolo, o que o deixaria arrasado.
Tentando se acalmar andava de um lado para o outro do rochedo de
granito; a cada instante, dirigia o olhar para o Vale Banbeck; a cada
instante, voltava-se e percorria com a vista a linha desolada do
horizonte, à procura das formas negras dos dragõ es, das silhuetas
mais altas dos homens.

Ao lado da nave dos Bá sicos havia dois esquadrõ es reduzidos de


Tropas Pesadas - os sobreviventes do primeiro ataque e as reservas.
Agachados, em grupos silenciosos, observavam a lenta destruiçã o da
Aldeia Banbeck. Fragmento por fragmento, ruíam as edificaçõ es
mais altas torres e penhascos que haviam alojado povo de Banbeck,
ficando em seu lugar apenas um monte crescente de destroços. Um
bombardeio ainda mais pesado era dirigido contra as Pedras. Estas
se partiam como ovos; as lascas das rochas rolavam pela encosta
abaixo.

Passou-se meia hora. Ervis Carcolo sentou-se acabrunhado em cima


de uma pedra.

Tilintar de metais, tropel de passos. Carcolo levantou-se num pulo.


Serpenteando pelo horizonte, vinham os restos alquebrados de suas
tropas, os homens sem â nimo, as Megeras irritadiças e difíceis de
conter, um triste resto de Demô nios, de Monstros Azuis, de
Assassinos.

Os ombros de Carcolo afundaram. O que podia conseguir com uma


tropa tã o insignificante?

Mostre um rosto decidido, homem! Nunca diga que é o fim! Compô s


sua melhor aparência.

Avançou em direçã o aos homens e gritou:

—Homens, dragõ es! Hoje conhecemos a derrota, mas o dia nã o


chegou ao fim. O momento da redençã o está pró ximo; vamos nos
vingar tanto dos Bá sicos quanto de Joaz Banbeck! - Examinou a
fisionomia dos homens, esperando encontrar um sinal
deentusiasmo. Todos olhavam para ele 79

sem o menor interesse. Os dragõ es, que entendiam ainda menos a


situaçã o, roncavam, silvavam, sussurravam.

— Homens e dragõ es! - berrou Carcolo.

—Vocês me perguntam, como vamos alcançar essas gló rias? Eu


respondo, sigam-me ao combate! Lutem onde eu lutar! O que
significa a morte para nó s, depois que nosso vale foi destruído?

Passou a tropa em revista novamente mas ainda desta vez


encontrou unicamente apatia e indiferença. Teve que abafar o urro
de frustraçã o que lhe subia pela garganta e afastou-se alguns passos.

—Em marcha! - exclamou rispidamente por cima do ombro. Montou


na Aranha fatigada e rumou em direçã o à Fenda Clybourne.

A nave dos Bá sicos atacava com igual violência a Aldeia Banbeck e


as Pedras. De um ponto situado na encosta oeste do vale, Joaz
Banbeck acompanhava a destruiçã o dos corredores familiares, um
apó s outro. Apartamentos e salõ es laboriosamente cavados nas
rochas, esculpidos, trabalhados, polidos durante geraçõ es e
geraçõ es, foram todos arrasados, reduzidos a pó . Agora o alvo era a
parte superior das construçõ es, onde estavam os apartamentos
particulares de Joaz Banbeck, seu estú dio, o quarto de trabalho e o
relicá rio da família Banbeck. Joaz apertava e abria nervosamente os
punhos, furioso ante sua pró pria impotência. O objetivo dos Bá sicos
era evidente.
Pretendiam destruir o Vale Banbeck, exterminar completamente os
homens de Aerlith. E quem podia impedi-los? Joaz examinou as
Pedras. O antigo talus tinha sido quase completamente arrancado
da face do penhasco. Onde estava a abertura que dava para o Grande
Salã o dos sacerdotes? Suas hipó teses mais otimistas estavam se
reduzindo a nada. Se o bombardeio durasse mais uma hora, seria a
devastaçã o completa da Aldeia Banbeck.

Joaz tentou controlar a angustiante sensaçã o de decepçã o. Como


podia fazer cessar o ataque destruidor? Fez um cá lculo nervoso.
Claro, uma investida através do vale equivaleria a um suicídio.

Mas atrá s da nave negra abria-se uma ravina semelhante à quela


onde se encontrava agora escondido: a Fenda Cybourne. O acesso à
nave estava livre; somente alguns indivíduos das Tropas Pesadas
continuavam agachados por ali em atitude displicente. Joaz balançou
a cabeça numa careta amarga. Era inconcebível que os Bá sicos
negligenciassem uma ameaça tã o evidente.

Mesmo assim... havia uma possibilidade de que, em sua arrogâ ncia,


desprezassem a possibilidade de uma açã o tã o audaciosa quanto
aquela?

80

Enquanto pensava a respeito, indeciso, ouviu uma saraivada de


granadas, que despedaçou a parte superior da torre que abrigava
seus apartamentos. O relicá rio, o antigo tesouro da família Banbeck,
ia ser destruído em questã o de minutos. Joaz fez um gesto de raiva,
ficou em pé de um salto e chamou o mestre dos dragõ es em quem
depositava maior confiança.
—Reú na os Assassinos, três esquadrõ es de Megeras, duas dú zias de
Monstros Azuis, dez Demô nios e todos os cavaleiros. Vamos subir a
Beira Banbeck, descer a Fenda Clybourne e atacar a nave dos
Bá sicos.

O mestre dos dragõ es partiu; Joaz entregou-se a uma contemplaçã o


melancó lica. Se os Bá sicos pretendiam atraí-lo a uma cilada, iriam
certamente ser bem sucedidos.

O mestre dos dragõ es voltou.

—As forças estã o reunidas.

—Vamos em frente.

Homens e dragõ es galgaram a ravina, indo surgir na Beira Banbeck.


Tomaram a direçã o do sul e foram sair na entrada da Fenda
Clybourne. O cavaleiro que marchava à frente da coluna deu,
repentinamente, sinal de alto. Quando Joaz se aproximou, o homem
apontou para as pegadas no solo da fenda.

—Dragõ es e homens passaram recentemente por aqui. Joaz


observou atentamente as pegadas.

—Descendo em direçã o à fenda.

—Exatamente.

Joaz despachou um grupo de batedores, que voltou pouco depois a


todo galope.

—Ervis Carcolo, com homens e dragõ es, está atacando a nave!


Joaz virou a Aranha e mergulhou na passagem obscura, seguido por
todo o exército.

Ouviram exclamaçõ es e gritos de combate ao se aproximaremda


entrada da fenda. Quando desembocou no vale, Joaz teve diante de si
uma cena de chacina furiosa: dragõ es e Tropas Pesadas trocavam
golpes, cutiladas, em meio a explosõ es e chamas. Onde estava Ervis
Carcolo? Joaz cavalgou corajosamente em direçã o à porta da nave,
que estava escancarada. Ervis Carcolo, pelo visto, penetrara à força
no seu interior. Teria sido uma cilada ou ele tinha realizado o plano
de Joaz de apoderar-se da nave? E as Tropas Pesadas? Os Bá sicos
iriam sacrificar quarenta guerreiros para capturar um punhado de
homens? Era um absurdo – se bem que agora as tropas Pesadas
estavam defendendo o terreno. Tinha formado uma falange e
concentravam toda a energia das armas sobre os dragõ es que
investiam. Se fosse uma armadilha, estava sendo posta em prá tica
naquele 81

momento a menos que Ervis Carcolo já houvesse capturado a nave.


Joaz levantou-se na sela e fez sinal para sua companhia.

—Atacar!

As Tropas Pesadas estavam perdidas. Assassinos Galopantes


precipitaram-se do alto enquanto Assassinos de Chifres Compridos
investiram de baixo. Os Monstros Azuis arrancavam pedaços,
cortavam, esquartejavam os inimigos. A batalha estava ganha
quando Joaz, com homens e Megeras, investiu rampa acima. Do
interior da nave vinham zumbidos e pulsaçõ es de energia, além de
sons humanos - gritos e urros de fú ria.
Joaz ficou perplexo com o tamanho colossal do engenho; parou
repentinamente e olhou indeciso para o interior. Atrá s dele, os
homens aguardavam suas ordens, murmurando em voz baixa. Os
pensamentos giravam em sua cabeça. Indagou a si mesmo: "Sou tã o
corajoso quanto Ervis Carcolo? O que é a coragem, no fundo? A
verdade é que estou terrivelmente assustado. Aqui estou eu sem
saber se entro ou nã o na nave." Deixando de lado, porém, todo
receio, correu em frente, seguido pelos homens e por um bando de
Megeras.

No mesmo instante em que Joaz entrou na nave, percebeu que Ervis


Carcolo nã o fora bem sucedido; em torno dele, as armas ainda
cantavam e sibilavam. Os apartamentos de Joaz voavam em pedaços.
Logo uma tremenda rajada destruiu as Pedras pondo a nu a rocha
lisa do penhasco e o que estava oculto até entã o — a soleira de uma
grande abertura.

Joaz, avançando pelo interior da nave, foi dar numa antecâ mara. A
porta interior estava fechada. Aproximou-se dela e avistou, através
de um visor retangular, o que parecia ser um hall ou sala de
concentraçã o. Ervis Carcolo e seus cavaleiros estavam agachados
junto à parede oposta, vigiados por vinte Atiradores. Um grupo de
Bá sicos descansava num aposento ao lado, tranquilos, silenciosos,
numa atitude contemplativa.

Carcolo e seus homens nã o estavam completamente vencidos; no


instante em que Joaz observava a cena, Carcolo tentou uma furiosa
investida, rechaçada imediatamente por uma descarga rubra de
energia, que o atirou de volta contra a parede.

Um dos Bá sicos que estava num compartimento ao lado, ao espiar


através do aposento, constatou a presença de Joaz Banbeck. Deu
uma pancadinha com o membro anterior e tocou numa barra.
Imediatamente soou um alarme e a porta exterior da nave fechou-
se. Uma armadilha? Um sistema de emergência? Tanto fazia. Joaz fez
sinal para quatro homens que levavam uma arma pesada nas costas.
Os quatro se aproximaram, ajoelharam-se e colocaram no chã o o
canhã o que os 82

Gigantes tinham levado para as Pedras. Joaz ergueu o braço e


acionou o canhã o; o metal rangeu, derreteu, odores azedos
inundaram a peça, mas ele nã o funcionou. A boca era pequena
demais.

—De novo!

Dessa vez o canhã o detonou: a porta desapareceu. Os Atiradores


saltaram pela abertura, disparando suas pistolas de energia. O fogo
pú rpura atingia as fileiras de Banbeck. Os homens dobravam-se,
contorciam-se, caíam no chã o, de mã os crispadas e rostos
contorcidos. Antes que o canhã o pudesse responder, formas de
escamas vermelhas se lançaram à frente. Megeras, sibilando e
grunhindo, investiram contra os Atiradores, espalharam-se pelo
salã o. Pararam repentinamente diante do aposento ocupado pelos
Bá sicos, como se tomadas de espanto. Os homens que se
amontoavam atrá s ficaram em silêncio; até mesmo Carcolo
observava a cena fascinado. As raças de Bá sicos observavam seus
derivados, cada qual vendo no outro sua pró pria caricatura. As
Megeras se moveram finalmente, com uma deliberaçã o sinistra:
osBá sicos balançavam os membros anteriores, silvando. As Megeras
continuaram avançando para dentro do aposento. Ouviu-se o ruído
horrendo de corpos derrubados. Joaz, tomado de invencível ná usea,
desviou o olhar. A luta foi breve; logo se fez silêncio no aposento.
Joaz voltou-se a fim de examinar Ervis Carcolo, que o encarou por
sua vez, sem poder proferir uma palavra, mudo de raiva,
humilhaçã o, dor e medo.

Recuperando finalmente a voz, Carcolo fez um gesto desajeitado de


ameaça e fú ria.

—Retire-se daqui - grunhiu. —Eu tomei esta nave. A menos que


você queira banhar-se no pró prio sangue, deixe-me em paz com
minha conquista!

Joaz teve um sorriso de desprezo e voltou as costas a Carcolo; este


engoliu em seco e, com uma imprecaçã o entre dentes, partiu contra
Joaz. Bast Givven segurou-o, obrigando-o a recuar.

Carcolo ainda lutou; Givven procurou demovê-lo e Carcolo


finalmente cedeu, quase chorando.

Enquanto isso, Joaz examinava a peça. As paredes eram desbotadas,


cinzentas; o piso era coberto com uma espuma preta elá stica. Nã o
havia nenhuma iluminaçã o visível, mas havia luz em toda parte,
emanando das paredes. O ar era frio e tinha um cheiro
desagradavelmente acre. Havia um odor no ambiente que Joaz nã o
percebera antes. Tossiu, os tímpanos começaram a zumbir.

Uma suspeita assutadora tornou-se certeza; com as pernas pesadas,


caminhou com dificuldade para a porta, fazendo sinal para as tropas.

—Para fora, eles estã o nos envenenando!

Desceu cambaleando pela rampa e respirou com sofreguidã oo ar


puro. Atrá s vinham os homens e as Megeras; depois, numa correria,
apareceram Carcolo e seus comandados. O grupo 83
respirava ofegante sob o casco da grande nave negra; alguns mal se
podiam manter de pé, com os olhos nadando em lá grimas.

Por cima deles, esquecidos ou indiferentes à presença dos inimigos,


os canhõ es da nave dispararam novamente. A torre que abrigava os
apartamentos de Joaz estremeceu e veio abaixo; as Pedras nã o eram
mais do que um monte de lascas que resvalaram para uma abertura
em forma de arco. No interior da abertura, Joaz distinguiu uma
forma escura, um lampejo, um brilho, uma estrutura... Nesse
instante, teve sua atençã o despertada por um ruído assustador à s
suas costas. Da porta situada na outra extremidade da nave
desceram reforços de Tropas Pesadas — três esquadrõ es de vinte
homens, seguidos de dez Atiradores com quatro projetores de rodas.

Joaz sentiu um frio no coraçã o. Olhou para suas tropas: nã o estavam


em condiçõ es de atacar nem de se defender. Só havia uma ú nica
alternativa: fugir.

—Corram para a Fenda Clybourne! - gritou.

Trô pegos, vacilantes, os remanescentes dos dois exércitos fugiram


por baixo da grande nave negra. Atrá s dele as Tropas Pesadas
marchavam firmemente, mas sem pressa.

Ao contornar a nave, Joaz parou de chofre. À entrada da Fenda


Clybourne um quarto esquadrã o de Tropas Pesadas esperava-os,
com outro Atirador armado.

Joaz olhou em todas as direçõ es procurando opçõ es. Em que direçã o


correr, para onde fugir?
Para as Pedras? Nã o existiam mais. Um movimento lento e pesado,
na abertura que as rochas até ali escondiam, chamou sua atençã o.
Um objeto escuro avançou; abriu-se uma portinhola, um disco
brilhante surgiu. Quase instantaneamente um filete luminescentes
azul-leitoso foi lançado em direçã o ao disco posterior da nave dos
Bá sicos. No interior desta o mecanismo, torturado, gemeu,
simultaneamente acima e abaixo da escala, até tornar-se inaudível. O
brilho dos discos posteriores foi desaparecendo e eles se tornaram
aos poucos cinzentos, opacos; o sussurro de energia e de vida que
antes banhava a nave deu lugar a um silêncio mortal; a pró pria nave
estava morta e sua massa, subitamente sem apoio, esmagou-se
contra o chã o num gemido.

As Tropas Pesadas olhavam consternadas para a nave que as levara


a Aerlith. Joaz, tirando partido da indecisã o, ordenou:

—Retirada! Para o norte... para o vale!

As Tropas Pesadas marcharam com obstinaçã o atrá s dos fugitivos,


mas os Atiradores deram ordem de parar. Colocaram as armas no
chã o e apontaram para a caverna atrá s das Pedras. No interior da
abertura, sombras nuas moviam-se com uma rapidez frenética;
houve uma mudança lenta de má quinas pesadas, uma alteraçã o de
luzes e de sombras, e o feixe brilhante azul-leitoso 84

tornou a disparar. Brilhou rente ao chã o: Atiradores, armas e dois


terços das Tropas Pesadas desapareceram como mariposas numa
fornalha. Os sobreviventes das Tropas Pesadas pararam e recuaram
indecisos em direçã o à nave. À entrada da Fenda Clybourne estava
estacionado o ú ltimo esquadrã o das Tropas Pesadas. O ú nico
Atirador estava debruçado sobre seu mecanismo de três rodas. Com
extremo cuidado fez o ajuste da mira; no interior da abertura escura
os sacerdotes nus trabalhavam furiosamente; o esforço dos
mú sculos, dos coraçõ es e das mentes comunicava-se a todos os
homens do vale. O feixe de luz azul-leitoso jorrou novamente, porém
cedo demais, indo atingir e derretendo a rocha a uns cem metros ao
sul da Fenda Clybourne. E entã o, da arma do Atirador isolado, saiu
uma chama laranja-esverdeada. Segundos mais tarde a entrada da
caverna dos sacerdotes explodiu. Rochas, corpos, fragmentos de
metal, de vidro e de borracha voaram pelos ares.

O estrondo da explosã o repercutiu pelo vale. E o objeto escuro na


caverna agora nã o era mais do que um amontoado informe de
metais.

Joaz respirou três vezes profundamente, neutralizando os efeitos do


gá s narcó tico quase que por pura força de vontade. Fez sinal para os
Assassinos.

—Ataquem, matem!

Os Assassinos saltaram para frente; as Tropas Pesadas jogaram-se


ao chã o, apontaram as armas, mas foram massacradas. O derradeiro
esquadrã o de Tropas Pesadas, abandonando a entrada da Fenda
Clybourne, investiu desesperadamente, mas foi atacado no mesmo
instante por Megeras e Monstros Azuis, que se tinham esgueirado
por cima do penhasco. O Atirador solitá rio foi retalhado por um
Assassino; nã o havia mais resistência no vale e a nave negra jazia,
indefesa, à disposiçã o dos atacantes.

Joaz marchou na frente a caminho da rampa, atravessou aporta e


penetrou no saguã o, que estava agora à s escuras. O canhã o que fora
capturado dos Gigantes se achava no mesmo lugar onde os homens
de Joaz o tinham deixado.
A peça tinha três portais, que foram destruídos com o canhã o. O
primeiro dava para uma rampa em caracol; o segundo para um
corredor comprido e vazio, com fileiras de beliches laterais; o
terceiro para um corredor semelhante, cujos beliches estavam
ocupados. Rostos pá lidos olhavam dos leitos, mã os lívidas tremiam.
De um lado para outro, no corredor central, velhas que andavam
agachadas pareciam tomar conta dos prisioneiros. Ervis Carcolo
entrou correndo, empurrou as velhas, espiou para dentro dos
beliches.

85

—Todos para fora — gritou. - Vocês estã o salvos, estã o fora de


perigo. Saiam todos rapidamente, enquanto é tempo.

Houve apenas uma débil resistência por parte de meia dú zia de


Atiradores e Batedores, mas nenhum dos vinte Mecâ nicos - homens
pequenos e magros com traços salientes e cabelos escuros -

resistiu. Da mesma forma que os dezesseis ú ltimos Bá sicos, foram


levados para fora da nave como prisioneiros sem dificuldade.

86

CAPÍTULO 12
A tranquilidade cobria agora todo o vale: o silêncio da exaustã o.
Homens e dragõ es erravam pelos campos devastados; os cativos
formavam um ajuntamento desalentado ao lado da nave. Vez por
outra, um ruído isolado acentuava o silêncio - os estalos dos metais
que esfriavam dentro da nave, a queda de uma pedra soltados
penhascos destruídos, o murmú rio ocasional da populaçã o livre do
Vale Feliz, que formava um grupo à parte dos guerreiros
sobreviventes.

Somente Ervis Carcolo parecia inquieto. Durante algum tempo


manteve-se de costas para Joaz, batendo na perna com a borlada
bainha de sua espada. Contemplava o céu onde Skene, um á tomo
brilhante, pairava sobre os penhascos ocidentais; voltou-se em
seguida e examinou a abertura destruída ao norte do vale, coberta
pelos restos retorcidos da construçã o dos sacerdotes.

Deu uma ú ltima batida na perna, olhou para Joaz Banbeck, voltou-se
e caminhou por entre os grupos de gente do Vale Feliz, fazendo
movimentos bruscos sem sentido aparente, parando aqui e ali para
dizer algumas palavras ou elogiar os homens, procurando,
certamente, instilar â nimo no povo vencido. Mas nã o foi bem
sucedido no seu propó sito; finalmente, deu meia-volta e avançou
pelo campo em direçã o ao local onde Joaz Banbeck estava deitado ao
comprido. Carcolo olhou para baixo.

—Muito bem - disse com cordialidade. A batalha terminou, a nave


foi conquistada.

Joaz levantou meio corpo, apoiando-se no cotovelo.

—Pois é.
—Vamos deixar um ponto bem claro. A nave e seu conteú do sã o
meus. Uma regra antiga define os direitos do que atacou primeiro.
Recorro agora a esta lei.

Joaz olhou para cima surpreso, com um meio-sorriso nos lá bios.

—Por uma regra ainda mais antiga, já tomei posse de tudo.

—Discordo desta afirmaçã o - disse Carcolo com veemência. —


Quem...

Joaz levantou a mã o com ar cansado.

—Cale-se, Carcolo! Você está vivo apenas porque já estou cansado


de sangue e de violência.

Nã o abuse de minha paciência!

87

Carcolo afastou-se, torcendo a borla da bainha com uma fú ria


controlada. Olhou para o vale e tornou a encarar Joaz.

—Lá vêm os sacerdotes. Foram eles, de fato, que destruíram a nave.


Torno a lembrar-lhe de meu propó sito, graças ao qual podíamos ter
evitado esta destruiçã o, e esta terrível matança.

Joaz sorriu.

—Foi somente há dois dias atrá s que você fez sua proposta. Além
disso, os sacerdotes nã o possuem armas.
Carcolo encarou Joaz como se este tivesse perdido o juízo.

—De que maneira, entã o, eles destruíram a nave?

—Só posso fazer conjecturas.

Carcolo indagou com ironia:

—E que "conjecturas" sã o essas?

—Suspeito que construíram a fuselagem de uma nave espacial e que


dirigiram o raio de propulsã o contra a nave dos Bá sicos.

Carcolo franziu os lá bios na dú vida.

—Por que motivo os sacerdotes iriam construir uma nave espacial?

—O Demie está se aproximando. Por que nã o pergunta diretamente


a ele?

—É o que vou fazer - disse Carcolo com dignidade.

O Demie, no entanto, acompanhado por quatro sacerdotes jovens e


caminhando com o ar de quem anda nas nuvens, passou por eles
sem dizer nada. Joaz começou a levantar-se observando o sacerdote.
O Demie, pelo visto, parecia ter a intençã o de subir a rampa da nave
e penetrar em seu interior. Completando este pensamento, ergueu-
se de um pulo e impediu que o sacerdote penetrasse na nave para, a
seguir, indagar polidamente:

—O que está procurando, Demie?

—Procuro entrar na nave.


—Com que objetivo? Pergunto, naturalmente, por simples
curiosidade.

O Demie fitou-o um instante sem responder. O rosto estava fatigado


e contraído, os olhos brilhavam como estrelas geladas. Respondeu
finalmente, com a voz conturbada de emoçã o.

—Desejo verificar se a nave pode ser recuperada.

Joaz refletiu um momento. E respondeu, com a voz delicada da


razã o:

—A informaçã o talvez seja de pequeno interesse para vocês. Os


sacerdotes concordariam em se submeter inteiramente ao meu
comando?

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—Nã o obedecemos a ninguém.

—Neste caso, nã o posso levá -los comigo quando partir.

O Demie fez meia-volta e por um momento, deu a impressã ode que


iria se afastar dali.

Avistou, porém, a abertura destruída na extremidade do vale e


voltou atrá s.

—Tudo isto aconteceu por culpa sua! - exclamou numa explosã o de


fú ria, numa voz que nã o demonstrava a tradicional serenidade dos
sacerdotes. —Você se julga inteligente e cheio de recursos. Você nos
obrigou a agir e, através disso, a violar nosso voto de consagraçã o.

Joaz assentiu com a cabeça, um sorriso sem graça nos lá bios.

—Eu sabia que a abertura devia estar situada atrá s das Pedras. Mas
tinha minhas dú vidas se vocês estavam ou nã o construindo a nave
espacial. Esperava que tivessem condiçõ es de se defender dos
Bá sicos. Dessa forma é claro que estariam servindo a meus
propó sitos. Admito suas acusaçõ es. Usei sua gente e sua construçã o
como uma arma para salvar meu povo e a mim mesmo.

Fiz mal?

—Certo ou errado... quem pode avaliar? Você desperdiçou o esforço


de nosso povo, o resultado de um trabalho acumulado durante mais
de oitocentos anos em Aerlith. Você destruiu muito mais do que
jamais poderá construir.

—Eu nã o destruí nada, Demie. Foram os Bá sicos que destruíram sua


nave espacial. Se vocês tivessem cooperado na defesa do Vale
Banbeck, este desastre nã o teria ocorrido. Vocês escolheram a
neutralidade, julgaram-se imunes à nossa dor e ao nosso sofrimento.
Mas, no fim, nã o foi isto o que aconteceu, como se pode ver.

—Enquanto isso, nosso trabalho de oitocentos anos e doze meses foi


desperdiçado inutilmente.

Joaz indagou com fingida inocência:

—Por que necessitavam de uma nave espacial? Para onde


pretendiam viajar?
Os olhos do Demie arderam tã o intensamente quanto as chamas de
Skene.

—Quando a raça dos homens desaparecer, entã o embarcaremos.


Viajaremos pela galá xia, repovoaremos os terríveis mundos antigos,
e a nova Histó ria Universal principiará a partir deste dia; o passado
será apagado como se nunca houvesse existido. Se os grefos
destruírem vocês, o que significa isto para nó s? Aguardamos apenas
a morte do ú ltimo homem no Universo.

—Vocês nã o se consideram homens?

—Estamos acima dos homens, como vocês bem sabem. Atrá s de Joaz
alguém caiu na gargalhada. Joaz voltou a cabeça e viu Ervis Carcolo.

89

—Acima dos homens? - zombou Carcolo. —Pobres gênios nus das


cavernas. E qual a prova dessa sua superioridade?

A boca do Demie descaiu, as linhas do rosto esmaeceram.

—Temos nossos tands. Temos nosso conhecimento. Temos nossa


força Carcolo afastou-se com outra gargalhada grosseira. Joaz disse
em voz baixa:

—Sinto mais piedade de vocês do que vocês jamais sentiram de nó s.

Carcolo aproximou-se de novo.


—E onde vocês aprenderam a construir a nave espacial? Por seus
pró prios recursos? Ou foi a partir do trabalho dos homens, dos
homens de antigamente?

—Nó s somos os homens supremos - disse o Demie. —Sabemos tudo


que os homens já pensaram, falaram ou inventaram. Somos os
ú ltimos e os primeiros. Quando os sub-homens desaparecerem,
renovaremos o cosmo, que será tã o inocente e limpo como a chuva.

—Os homens nunca desapareceram e nunca desaparecerã o - falou


Joaz. —Que houve um retrocesso, admito. Mas o Universo nã o é
imenso? Em alguma parte estã o os mundos dos homens.

Com a ajuda dos Bá sicos e dos Mecâ nicos vou recuperar a nave e
partirei para estes mundos.

—Irá procurá -los em vã o - disse o Demie.

—Esses mundos nã o existem?

—O Império Humano foi dissolvido; os homens existem apenas em


pequenos grupos.

—E o É den, o antigo É den?

—É um mito, nada mais.

—E meu globo de má rmore, o que significa entã o?

—Um brinquedo, uma construçã o da fantasia.

—Como pode ter certeza? - indagou Joaz, perturbado a despeito de


si mesmo.
—Nã o disse antes que conhecemos toda a histó ria? Podemos
contemplar nossos tands e enxergar as profundezas do passado,
onde as recordaçõ es se tornam obscuras e confusas, e nunca nos
lembramos do planeta É den.

Joaz balançou a cabeça com obstinaçã o.

—Tem que haver um mundo primeiro no qual os homens tiveram


origem. Chame-o de Terra, de Tempe ou de É den - em alguma parte
ele existe.

O Demie fez mençã o de falar, mas calou-se demonstrando uma


indecisã o pouco habitual.

—Talvez você tenha razã o - disse Joaz. —Talvez sejamos os ú ltimos


homens. Mas vou partir para comprovar assim mesmo.

90

—Eu também vou com você - disse Ervis Carcolo.

—Você pode se considerar um homem de sorte se estiver vivo


amanhã .

—Nã o recuse com tanta indiferença meu direito à nave - retrucou


Carcolo com firmeza.

Joaz tentou em vã o encontrar uma resposta. O que podia fazer com o


desleal Carcolo? Nã o era suficientemente inflexível para fazer o que
devia ser feito. Contemporizou, voltando as costas a Carcolo.
—Agora você conhece meus projetos - disse ao Demie. —Se nã o
interferir comigo, nã o vou me intrometer nos assuntos de seu povo.

O Demie afastou-se lentamente.

—Vá entã o. Somos uma raça passiva. Desprezamo-nos pelo que


fizemos hoje. Talvez tenha sido um grande erro. Mas vá assim
mesmo, procure seu mundo perdido. Você vai simplesmente perecer
nessa busca entre as estrelas. Vamos continuar aguardando como
aguardamos até agora.

O Demie fez meia-volta e afastou-se dali, acompanhado pelos quatro


sacerdotes jovens, que tinham permanecido todo o tempo em
silêncio ao lado dele.

Joaz gritou para ele:

—E se os Bá sicos voltarem? Lutará conosco ou contra nó s? O Demie


nã o respondeu; tomou a direçã o norte e foi caminhando, os longos
cabelos ondulando sobre os ombros.

Joaz observou-o um instante, contemplou toda a extensã o do vale


arruinado, balançou a cabeça tomado de admiraçã o e de espanto;
depois voltou-se para examinar a grande nave negra.

Skene banhava os morros do ocidente; houve uma sú bita diminuiçã o


da luz, um frio repentino. Carcolo aproximou-se dele.

—Esta noite vou alojar meu povo no Vale Banbeck emandá -lo de
volta para casa amanhã .

Enquanto isso, sugiro que entremos os dois na nave e façamos as


primeiras investigaçõ es.
Joaz deu um suspiro fundo. Por que as coisas nã o podiam ser mais
fá ceis para ele? Carcolo ameaçara duas vezes sua vida e, se as
posiçõ es fossem inversas agora, tinha certeza de que ele nã o para
consigo mesmo, para com seu povo e para com seu objetivo final era
claro.

Chamou os cavaleiros que tinham capturado as armas térmicas. Eles


se aproximaram.

—Levem Carcolo à Fenda Clybourne. Executem-no. Sem demora.

Carcolo foi arrastado entre gritos e protestos. Joaz afastou-se com o


coraçã o pesado e procurou Bast Givven.

—Eu o considero um homem sensato.

—Também me considero assim.

91

—Você ficará encarregado do Vale Feliz. Leve seu povo para lá antes
que escureça puseram a caminho e partiram do Vale Banbeck.

Joaz atravessou o leito do vale até o monte de destroços que


obstruía a passagem pela Alameda Kergan. O espetá culo da
destruiçã o encheu-o de fú ria. Por um breve instante, quase mudou
de decisã o. Nã o seria preferível voar na nave negra para Coralyne e
vingar-se dos Bá sicos?
Caminhou até embaixo da flecha que abrigara seus apartamentos e,
por uma coincidência estranha, encontrou um fragmento redondo
de má rmore amarelo.

Levantou-o na palma da mã o e olhou para o céu, em direçã o ao


ponto onde piscava a luz vermelha de Coralyne. Depois procurou
pô r em ordem seus pensamentos.

O povo de Banbeck saía dos tú neis profundos na rocha. Phade, a


jovem trovadora, foi ao seu encontro.

—Que dia terrível - murmurou. —Que acontecimentos horríveis e


que grande vitó ria.

Joaz atirou o pedacinho de má rmore amarelo no monte de


destroços.

—Sou da mesma opiniã o. E como tudo isso vai terminar, eu mesmo


nã o sei 92

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