Psicossomatica de Hipocrates A Psicanalise

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RESENHA

DE LIVROS

Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., IV, 4, 153-157

Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise


Rubens Marcelo Volich
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001
Coleção Clínica Psicanalítica

Psicossomática:
de Hipócrates à psicanálise

Patrícia Lacerda Bellodi

Por que comigo? Por que agora? Por que desse modo?
Para quem cuida de pessoas que adoeceram (e ao cuidar escuta...)
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questionamentos como esses não são incomuns.
Saber a resposta, uma resposta, saber o porquê.
Destino? Caminhos...
O livro Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise não apresenta
respostas prontas e definitivas a essas questões tão difíceis e sofridas.
Apresenta sim, e vem disto seu grande valor, de forma clara, completa
e didática, a todos aqueles que se interessam pelas relações corpo-mente – na
doença e na saúde – que destino e caminhos tomaram, ao longo do tempo,
essas perguntas que marcam o homem desde épocas “imemoriais”...

O caminho histórico da compreensão do adoecer

Em seu 1o capítulo, o autor apresenta a evolução histórica das concep-


ções sobre o adoecer. Mostra o homem – seja ele feiticeiro, sacerdote, filó-
sofo ou cientista – procurando compreender os mistérios do funcionamento
de seu corpo e a relação deste com aquilo que pode ser chamado de alma,
espírito ou mente...
O papel dos curandeiros na Antiguidade convida a pensar nas escolhas
atuais pela medicina: uma raiz “histórica” na magia que ainda “encanta”
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futuros médicos no presente... Outra raiz, a “mitológica”, também convida a refletir


sobre a busca de características “tanatolíticas” por muitos daqueles que a exercem.
Esculápio mostra os perigos da onipotência na função terapêutica: morre também
aquele que cuida, se não cuidar de seus próprios desejos...
Nada mais antigo e mais moderno do que Hipócrates e sua concepção do ato
médico indissociado da parceria com o paciente: “... é necessário que o médico ajude
o doente a combater a doença”. O homem passa a ser visto como responsável por
sua doença e, por isso mesmo, tendo uma história a contar para quem dele vai cuidar.
Preconiza Hipócrates que o cuidador deve, necessariamente, aliar ao conheci-
mento científico uma visão humanística. Modelo de médico este que, atualmente, faz
escolas de medicina se preocuparem em incluir em seu currículo conteúdos de base
humanística! Mostra bem o autor, ao longo do capítulo, como as concepções de Hi-
pócrates têm sido esquecidas e resgatadas em “ondas” através do tempo...
Sem dúvida, Descartes é apresentado como figura histórica fundamental (século
XVII) ao instaurar a concepção dualista (cisão) entre corpo e alma. Reforçada depois
pela física newtoniana (século XVIII), a doença passa a ser considerada como um
fenômeno da natureza passível de ser equacionado por meio de padrões objetivos.
Entretanto, ao lado dos avanços científicos da biologia do século XIX (especialmente
da patologia), a preocupação com o subjetivo e o individual também persistia.
154 Empregando como recurso terapêutico o hipnotismo e a sugestão, Charcot, em Paris,
cuidava de suas pacientes histéricas que apresentavam sintomas somáticos. E
“esperava” Freud, sem “esperar”, contudo, a revolução de suas idéias – tema do
capítulo seguinte.

O caminho de Freud: da neurologia à clínica das neuroses

Neste 2o capítulo, Volich relata o caminho de Freud de médico/pesquisador da


neurologia à clínica das neuroses. Ao intuir que não havia correspondência entre os
sintomas histéricos e a estrutura dos órgãos anatômicos, este desenvolve uma teoria,
um método de investigação e uma clínica que passam a marcar a concepção das
relações entre o psíquico e o somático de forma fundamental.
A psicanálise inaugura uma “anatomia imaginária” e coloca o inconsciente e a
sexualidade como estruturantes do sujeito – sexualidade esta apoiada no corpo e na
relação deste corpo com um outro humano significante. O próprio conceito de pulsão
é, segundo Freud, um “conceito-limite” entre o somático e o psíquico, e compreender
os destinos e vicissitudes desta energia libidinal foi essencial para o entendimento do
funcionamento psicossomático.
A noção de trauma, ou seja, de quantidades elevadas de excitação (derivadas de
eventos reais ou imaginários) frente às quais os recursos do sujeito não dão conta,
ajuda a entender o adoecer e o papel do cuidador junto ao paciente na administração
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desse “excesso”. Quem nunca observou pacientes “atordoados/traumatizados” ao


saber que estão gravemente doentes e a palavra do outro, médico, amigo ou familiar,
auxiliando em sua continência e compreensão?
Também os polêmicos postulados de Freud, a respeito da pulsão de vida e,
especialmente, da pulsão de morte, auxiliam a pensar (compreender? aceitar?) “como
alguém programado a usufruir a vida encaminha-se, às vezes precocemente, para a
destruição de si mesmo e do outro”. As dificuldades frente à aderência ao tratamento
(quando as barreiras educacionais e sociais estão descartadas) talvez possam ser, com
o auxílio deste conceito, menos (ou mais) difíceis de se tolerar pela equipe de saúde...

O caminho da histeria de conversão às doenças orgânicas em geral

No 3o capítulo, o autor apresenta, então, as correntes modernas da psicosso-


mática, originárias quase todas do modelo psicanalítico discutido nas páginas
anteriores. Relata a história do interesse de alguns dos primeiros psicanalistas bus-
cando compreender as diferentes doenças orgânicas e não mais apenas a histeria de
conversão.
Ferenczi defende, já em 1926, a consideração das descobertas psicanalíticas no
tratamento de toda e qualquer doença... Groddeck assinala que a expressão
psicossomática remete não a um estado, mas à própria essência do ser humano. Mais 155
uma vez Hipócrates é resgatado quando este último aponta que “não deveríamos
esquecer que não é o médico que derrota a doença, mas o doente”.
Outros psicanalistas também se destacam na “aventura psicossomática”. Félix
Deutsch e Franz Alexander buscando, na Escola de Psicossomática de Chicago,
estabelecer relações entre estruturas de personalidade e tipos de doenças somáticas.
Esforços estes que “marcaram” a psicossomática durante muito tempo com a idéia
de especificidade. Os pioneiros da psicossomática no Brasil, como Perestrello,
Capisano, José Fernandes Pontes e Miller de Paiva foram “alunos” aplicados da escola
americana e poderiam estar, sem dúvida, presentes neste capítulo!
Por fim, também não são esquecidas pelo autor as contribuições fundamentais
das vertentes psicofisiológicas com a noção de estresse e a relação doença-depressão-
imunidade dando origem às pesquisas em psiconeuroimunologia.

A infância e o caminho da organização psicossomática

Inicia o autor, no 4o capítulo, especificamente a discussão sobre a Psicossomá-


tica Psicanalítica. Um conceito-chave a ser desenvolvido neste capítulo é a idéia de
que representar é fundamental para “metabolizar” estímulos e assim não adoecer...
“Metabolização” esta que se inicia na infância quando a mãe busca proteger seu
bebê contra estímulos, organiza seus comportamentos e interpreta suas reações. Fica
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claro o quanto os destinos da economia psicossomática dependem de uma “gerên-


cia materna” equilibrada: é apoiado nas lembranças das experiências de satisfação de
suas necessidades pela mãe, que o bebê, ao repeti-las por intermédio da fantasia, inau-
gura sua vida psíquica.
Temos, neste capítulo, a apresentação das idéias fundamentais de Pierre Marty
e do Instituto de Psicossomática de Pais quanto à relação entre a mentalização e a
somatização.
A 1a tópica do aparelho psíquico é fundamental para essas idéias: o pré-
consciente, ao permitir a ligação do afeto a uma representação é fundamental para o
equilíbrio psicossomático. Afeto livre, ou desligado de representações, é afeto que
busca descarga por meio de comportamentos ou de funções somáticas, e pode
adoecer o sujeito.
O conceito de mentalização diz respeito à atividade do sonho, da fantasia e
criatividade, operações de representação e simbolização por meio das quais o aparelho
psíquico busca regular as energias pulsionais e instintivas. Se há falhas na constituição
deste aparelho ou experiências de vida traumáticas e desorganizadoras, essas
deficiências levam à utilização pelo organismo de recursos mais rudimentares como
os motores ou os orgânicos.
156 Há na Psicossomática Psicanalítica a apresentação de uma proposta diagnóstica,
prognóstica e terapêutica. Partindo de informações médicas e mentais, especialmente
dos recursos de mentalização e do funcionamento do pré-consciente do paciente, este
pode ser compreendido/diagnosticado em relação a quatro estruturas fundamentais:
a neurose de caráter bem mentalizado, a de mentalização incerta, a mal mentalizada
e a neurose de comportamento. Fica, entretanto, um pouco obscuro o lugar da
psicose nesta proposta de classificação. É difícil compreender (aceitar?) o psicótico
como um “indivíduo bem estruturado no plano mental...”
Mas, assinala Volich: é preciso evitar simplificações, pois é possível encontrarmos
momentos de manifestações neuróticas e outros momentos somáticos no mesmo
sujeito...
Conclui o capítulo com uma colocação fundamental: “... a tentativa de privile-
giar (o somático ou o psíquico) é estranha tanto à natureza quanto à própria experiên-
cia do sujeito” e um desdobramento também fundamental: a necessidade de “um convite
para uma verdadeira comunhão entre pesquisadores de diferentes campos do saber”.

Os caminhos do encontro terapêutico

Virginie e a pasta folheada junto ao terapeuta/autor do livro: uma excelente


maneira encontrada por Volich para discutir os desdobramentos terapêuticos da teoria
descrita até esse momento do livro.
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O relato consegue expressar o desafio do cuidar, difícil para o paciente e para


o cuidador, pois resgata inevitavelmente a mais primordial e difícil experiência: sentir-
se desamparado e necessitar de um outro para sua superação...
Depender, confiar, acreditar, colaborar: tarefas difíceis para quem adoece.
Amparar, compreender, ser terapêutico: tarefas difíceis para quem escolhe cuidar.
Difíceis porque, bem mostra a psicanálise, são permeadas pela dimensão
transferencial-contratransferencial, isto é, “contaminadas” por sentimentos, afetos,
angústias, expectativas, nem sempre conscientes.
Destaca-se fundamentalmente a importante tarefa do terapeuta em propiciar
recursos ao paciente que permitam pensar e elaborar o sofrimento. Um terapeuta que,
como a mãe (já que o adoecer remete ao desamparo inicial da vida), protege o paciente
temporariamente diante de situações difíceis de suportar: a doença – momento de vida
ameaçado pela morte.
Porém, como bem aponta o autor, há vários obstáculos nesse caminho: resis-
tências narcísicas inconscientes (tanto do médico quanto do psicanalista, desejando
assumir isoladamente a tarefa de cuidar), a urgência dos sintomas orgânicos, as re-
sistências do próprio paciente a um tratamento não médico, que pode ser represen-
tado como desvalorização de seu problema.
Trabalhar junto a esses obstáculos tem sido tarefa não apenas do psicólogo
clínico que atua em instituições de saúde, mas também de médicos sensíveis ao 157
sofrimento psíquico de seus pacientes (um dever ético, na verdade) e de profissionais
de ambas as áreas dedicados à psicologia médica e também (fundamental!) ao próprio
ensino médico.

Um caminho para o leitor estrangeiro...

Sem dúvida, ao final do livro, o leitor tem uma visão panorâmica e temporal das
diferentes, históricas e atuais compreensões da relação mente-corpo. Consegue com-
preender bem a construção dos conceitos da Psicossomática Psicanalítica – cabe dizer,
através de uma prévia e didática introdução da psicanálise em si – e de suas propostas.
Mas, sugiro, especialmente, que este leitor volte ao trecho selecionado por
Volich como epígrafe para seu livro.
Neste, “ouvimos” um médico, depois de refletir de forma angustiada sobre o
saber e a impotência frente à morte, perguntar com raiva a um interlocutor “distante”
e, por isso, “estrangeiro” (nós todos?):
“Compreendeis tudo isso? Vós compreendeis?”.

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