09 - Alinne Nogueira

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Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana

Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o Moderno e o Contemporâneo


ISSN 1809 - 709 X

Você vai voltar ao consultório? Psicanálise e atendimento on-line

Alinne Nogueira Silva Coppus


Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4278-3707
Psicanalista
Doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Professora Associada do
Departamento de Psicologia da UFJF (Juiz de Fora, Brasil)
Coordenadora do CPA
E-mail: [email protected]

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Resumo: O presente artigo interroga as possíveis consequências extraídas da realização dos atendimentos
psicanalíticos na modalidade on-line como consequência da pandemia da Covid-19 que nos assolou em 2020.
Problematizam-se os efeitos dessa experiência a partir de três eixos: a retomada de aspectos fundamentais
da técnica psicanalítica, o conceito de transferência e a presença do analista bem como os significantes
recolhidos de pares psicanalistas por meio de um questionário que lhes interrogou a prática dos atendimentos
on-line.
Palavras-chave: Psicanálise; atendimento on-line; pandemia.

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Allez-vous retourner au cabinet? Psychanalyse et suivi en ligne. Le présent article questionne les
conséquences possibles, observées lors de la réalisation des consultations psychanalytiques en ligne, à la suite
de la pandémie de Covide-19 qui nous a ravagés en 2020. Les effets de cette expérience sont interrogés à
partir de trois axes: la reprise des aspects fondamentaux de la technique psychanalytique, le concept de
transfert et la présence de l'analyste, ainsi que les signifiants recueillis auprès de pairs de psychanalystes à
travers un questionnaire qui les interroge la pratique des suivis en ligne.
Mots-clés: Psychanalyse; consultation en ligne; pandémie.

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Are you going back to the office? Psychoanalysis and online care. This article questions the possible
consequences, observed during the realization of online psychoanalytic consultations, following the Covide-19
pandemic which devastated us in 2020. The effects of this experience are examined from three axes: the
resumption of fundamental aspects of psychoanalytic technique, the concept of transference and the presence
of the analyst, as well as the signifiers collected from peers of psychoanalysts through a questionnaire which
questions them on the practice of on-line care.
Keywords: psychoanalysis; online consultations; pandemic.

Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana. Rio de Janeiro, 15(29), 129-139, nov. 2019 a abr. 2020.
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Alinne Nogueira Silva Coppus
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ISSN 1809 - 709 X

Você vai voltar ao consultório? Psicanálise e atendimento on-line


Alinne Nogueira Silva Coppus
Discutindo algumas consequências sofridas em relação aos atendimentos psicanalíticos
como consequência da pandemia da Covid-19, que nos assolou neste ano de 2020, este artigo
detém-se nos possíveis efeitos na técnica psicanalítica em virtude dos atendimentos on-line. Como
guia para o recorte a partir dessa discussão, serão seguidos três eixos temáticos: a retomada de
aspectos fundamentais da técnica psicanalítica estabelecida por Freud (1912/1996b); o conceito de
transferência e a presença do analista trabalhados por Lacan (1964/1998b); e os significantes
recolhidos de pares psicanalistas por meio de um questionário que interrogou aos mesmos a
prática dos atendimentos on-line.
A pergunta que intitula este artigo – Você vai voltar ao consultório? – foi feita por uma
paciente a esta autora, após alguns meses de atendimentos realizados por telefone. Na verdade, o
que afligiu na pergunta não foi a subjacente interrogação “quando você vai voltar?”, mas outra
indagação, esta, sim, mais provocadora: “você vai mesmo voltar”. Essa indagação foi ouvida não
sem angústia, na medida em que, ao atentar para essa reação, passamos a interrogar sobre os
efeitos dessa modalidade de atendimento não só para os tratamentos e pacientes, mas também
para os analistas. Até aquele momento, era impensável abrir mão da presença dos corpos e dos
efeitos experimentados no atendimento presencial e, mais surpreendente ainda, um paciente
pensar que isso seria possível.
É inegável que tivemos perdas em relação a esse novo formato de encontro, como
também é inegável que constatamos avanços em algumas questões. Destacam-se, assim, alguns
efeitos a partir das mudanças sentidas, seja em relação à técnica psicanalítica, seja em relação à
formação dos psicanalistas, seja em relação ao retorno do questionamento, a que se referiu Lacan
(1953-1954/1979), na abertura do seu Seminário 1: O que se faz quando se faz uma análise?
Quanto às perdas, enumeram-se várias que, inegavelmente, interferem no processo
analítico: a) a da sala de espera – esta faz a relevante função de suspender o tempo cotidiano de
espera da figura do analista, introduzindo um intervalo, não raro, frutífero e marcando o início de
um tempo de fala, que diverge do tempo comum; b) a do caminho até o consultório – semelhante
à da sala de espera para o analisando, esse caminho talvez tenha para o analista a função de
suspensão; c) a da privacidade – que o consultório como território supostamente neutro
estabelece; d) a dos efeitos da visão recortada dos corpos (analista e analisando) e não mais seus
corpos entre outros objetos na cena analítica; e) a dos cortes efetuados pela interrupção da
internet; f) a gerada pelo uso do ícone de silenciar ou não uma ligação; g) a gerada pela presença
de objetos diversos na cena analítica.

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Já quanto aos avanços, ressalta-se, sobretudo, a intensificação nos movimentos de


formação dos analistas, revisitando textos, retomando supervisões, participando da formação
analítica em outros estados e cidades que não o/a de origem, equivocando-se sobre sua prática e
o fazer psicanalítico. Esses efeitos positivos não foram constatados apenas em relação à formação
analítica. Foi igualmente positiva a constatação da possibilidade de continuação dos atendimentos
de forma remota bem como da efetividade mesmos.
Se, anteriormente à pandemia, havia certa cautela/certeza (certeza que surgia muitas
vezes separada da experiência clínica e impedia algumas experiências analíticas) sustentando a
impossibilidade de um tratamento analítico sem ser presencial, o encontro com o que é possível
neste momento de atravessamento do real gerou questionamentos quanto a essa cautela/certeza,
apesar da impossibilidade dos atendimentos para todos e das inevitáveis perdas. Se os
atendimentos tivessem começado presencialmente, ainda seria aceitável a realização de
atendimentos on-line, mas de forma pontual e ancorada na experiência transferencial anterior
(Ribeiro, Moura & Guerra, 2015). Entretanto, não essa situação vivida nos últimos meses.
É importante destacar como a necessidade de alteração no modo de fazer analítico pôde
trazer à tona a radicalidade do preceito psicanalítico de que a psicanálise é, a rigor, uma práxis
(Lacan, 1964/1998b) e de que as modificações bem como os avanços teóricos se dão, sobretudo,
a partir dos impasses que a experiência clínica nos impõe. Temos vivenciado frontalmente os
efeitos do novo em nossa escuta cotidiana, não sem indagar sobre como dar continuidade aos
trabalhos analíticos sem que percam sua efetividade. Em relação à receptividade da maioria dos
analisandos ao novo formato, cabe ressaltar o espanto presente na fala de muitos analistas. De
fato, pode-se dizer que foi possível continuar.
Um dos maiores receios quanto a esse novo formato, muitas vezes retomados da fala de
psicanalistas, é o de a psicanálise – quanto aos seus objetivos éticos, direcionamentos de
tratamento, relação psicoterapeuta/paciente – ser transformada em psicoterapia. Retomamos essa
questão problematizando o que Lacan (1964/1998b) nomeou como a presença do analista. Ou
seja, de que lugar precisamos acolher e trabalhar a fala do paciente para que o encontro seja
tomado como uma análise?
A primeira urgência se deu, então, no campo do analista. Assolados pelas notícias de um
vírus de cujos efeitos pouco se sabia, mas sobre cujo poder de contágio muito se divulgava, os
analistas foram instados a optar entre atender de forma remota ou não atender. A escolha forçada
se deu entre atender on-line ou não atender, com algumas variações. Desse impasse de uma
escolha forçada, irrompeu a seguinte indagação: como prosseguir com os atendimentos clínicos,
mantendo-os vivos e funcionando, mesmo nas múltiplas e fecundas diferenças entre as
singularidades dos pacientes e dos analistas? Nesse momento, deparamo-nos com um não saber
fazer que transigia invenções, arranjos, compromissos e mesmo rupturas.

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A escolha forçada salientada por Lacan (1964/1998b), em seu seminário sobre os


conceitos fundamentais, seria um modo lógico de relação em que o sujeito é forçado a,
necessariamente, escolher uma posição em detrimento de outra. Seu exemplo maior é a expressão
“a bolsa ou a vida”: se o sujeito escolhe a bolsa, perde a vida; se escolhe a vida, tem uma vida
sem a bolsa, uma vida "decepada" (1964/1998b, p. 200). Estávamos, portanto, diante de uma
decisão ética e política.
Tomemos a afirmação de Lacan (1958/1998b, p. 596), em A Direção do Tratamento e os
Princípios do seu Poder, segundo o qual a política da psicanálise determina os fins da ação do
psicanalista e do tratamento analítico. Em outras palavras, trata-se de qualificar de políticos os
raciocínios e a argumentação que concernem à finalidade do tratamento analítico, que é
determinada pela política psicanalítica e à qual o analista não deve ceder. Nesse sentido, optar por
atender foi uma decisão ética e política, a despeito dos riscos e das consequências que
enfrentaríamos, na relação transferencial e nos direcionamentos dos casos. Não recuar. Não recuar
diante dos pedidos de continuidade dos trabalhos e diante do desejo de sustentar o espaço clínico,
retornando-nos aos fundamentos da técnica psicanalítica. Por outro lado, há algo dessa passagem
que permita não pensar em “retorno”? Ainda não é possível dizer.
Vemos, cada vez mais, corpos retidos, e mais ainda, corpos expostos, numa incômoda
estranheza pairando no ar. Para a psicanálise, trata-se do real sem lei, que foge a qualquer
ordenamento e, desordenado, age por si só, surpreende e faz vacilar os semblantes. Apesar de
peremptório, é preciso contar com esse real, e contar com ele significa conceber que há um real
para cada um. Isso implica tocar no mais íntimo do falasser, naquilo que, por mais estranho que
pareça, retorna como familiar: a presença do vizinho, o silenciamento de microfones, as oscilações
da internet, os ruídos.
Retomando, então, os familiares textos freudianos sobre a técnica, iniciamos nosso
percurso, concentrando nossos pontos de investigação na atenção flutuante, na associação livre,
na transferência e no setting analítico.

Recortes sobre a técnica psicanalítica em Freud


Estamos em guerra? Segundo a antropóloga Lilia Schwarcz (cit. por Castro, 2020), talvez
se possa dizer que a pandemia esteja para o século XXI como o final da Primeira Guerra Mundial,
em 1918, esteve para o início do século XX: estarrecidos pelo poder de destruição proporcionado
pelas novas tecnologias ao alcance dos exércitos, os soldados que retornavam do front com vida,
para expressarem o indizível horror vivido naquele período, só tinham o silêncio. Como Freud viveu
as consequências de se presenciar uma guerra, compreendeu que, nas ações, cotidianas e
políticas, temos um discurso que vai da denegação da tragédia que estamos vivendo até a sua
elevação à última potência, de forma que nosso vocabulário é invadido por significantes como
defesa, ataque, trincheiras, batalha, terror. Com efeito, ao ouvir pacientes que retornaram da

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Guerra, Freud tirou dessas escutas – pesadelos, sonhos de guerra – experiências decisivas para a
psicanálise, entre as quais o início da formulação da pulsão de morte.
Embora, talvez, possamos dizer que analista e paciente estejam no mesmo front de
guerra, com certa equidade nos lugares, esse novo front em que os efeitos do real, recolhidos a
partir dessa ameaça invisível e capazes de alterar mercados, rotinas e laços, convoca o analista a
introduzir, ainda mais, uma diferença em relação aos lugares ocupados por cada um deles no
tratamento analítico. Uma diferença que resgata a importância da abstinência e do acolhimento do
analista, mesmo em momentos difíceis.
Os trabalhos mais consistentes de Sigmund Freud dedicados à técnica psicanalítica foram
publicados no período de 1912 a 1915. Nesses trabalhos, Freud apresentou algumas indicações de
como fazer e do que não fazer nos atendimentos psicanalíticos. Ganhou destaque a regra
fundamental –associação livre e atenção flutuante –, além de algumas indicações, como a
abstinência e a neutralidade do analista, o não estabelecimento de um tempo para o tratamento, a
importância do pagamento, o trabalho com a transferência.
Retrocedemos a dois artigos anteriores aos de 1912 – “O método psicanalítico de Freud”
(1904/1996a) e “Sobre a psicoterapia” (1905/1996b) – nos quais Freud revelou os germes das
suas ideias a respeito da técnica. No primeiro, o autor relata brevemente o percurso da psicanálise,
desde “o método catártico”, praticado em 1895, até “o singular método psicoterápico” (Freud,
1904/1996a, p. 233), designado psicanálise. Primeiramente, relata que o procedimento catártico
pressupõe que o paciente seja hipnotizado para que sua consciência seja ampliada. O método
consistia em levar o paciente a retroceder ao estado psíquico em que o sintoma surgira pela
primeira vez com o intuito de trazer à superfície lembranças, ideias e impulsos que se encontravam
até então excluídos da sua consciência.
No segundo artigo, que foi uma conferência pronunciada no Colégio Médico de Viena, em
12 de dezembro de 1904, Freud estabeleceu a diferença entre a psicanálise (conduzida pela
técnica analítica) e as outras psicoterapias que existiam em sua época (conduzidas pela técnica da
sugestão). Para ilustrar o seu argumento, ele se baseou no modelo pelo qual Leonardo da Vinci
diferenciou as artes: segundo o pintor, certas artes operam per via di porre – como a pintura, em
que o pintor deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não existiam –, enquanto
outras operam per via di levare – como a escultura, em que o escultor retira da pedra tudo o que
encobre a superfície da estátua (Freud, 1905/1996b, p. 244). Nessa analogia, identificou as
psicoterapias com o primeiro caso (a pintura), e a psicanálise com o segundo caso (a escultura),
em que a busca pela relação entre os sintomas e o inconsciente do paciente, através da
transferência, permite a queda do sentido satisfatório, que sustenta, muitas vezes, as
manifestações sintomáticas dos pacientes.
Já em “A dinâmica da transferência” (1912/1996a), Freud chegou a uma compreensão
mais ampliada do mecanismo da neurose, de modo que os fenômenos da transferência e da

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resistência também passaram a ser mais detalhados. Nesse artigo, propondo-se a resolver dois
problemas – a origem e a função da transferência no tratamento psicanalítico –, ele dispôs que a
origem da transferência deve ser buscada em certos modelos de conduta na vida erótica ou em
estereótipos constantemente repetidos, frutos da disposição inata e das experiências dos primeiros
anos de vida.
No mesmo ano, Freud publicou “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”
(1912/1996b), em que apresentou advertências técnicas oriundas de sua experiência com o
objetivo de poupar os médicos que exerciam a psicanálise de esforços desnecessários e de
resguardá-los. Para isso, de forma sucinta, tocou em diversos pontos passíveis de se tornarem
impasses, tais como o receio de se esquecer dos detalhes que cada paciente comunica no decurso
de meses e anos de tratamento, assim como a atitude do analista de tomar notas durante a
sessão. Nesse artigo, além de buscar apaziguar essas preocupações, uma vez que esse dispêndio
de energia apenas prejudicaria a regra fundamental para o analista, a saber, a contrapartida à
associação livre do paciente, a atenção uniformemente suspensa, ele também sublinhou a
importância da abstinência do analista em relação a suas questões e preconceitos como via de
primar para que o espaço analítico permita o destaque da fala e dos pontos de impasse do
analisando.
Para finalizar, vale lembrar que, ao sugerir o uso do divã no encontro com o analista,
Freud concebe quão importante é retirar o corpo da cena visual, seja o do analista seja o do
analisando, permitindo ao último falar mais livremente. Liberto das expressões do analista, o
analisando perde do campo visual, o que serviria como referência para sua fala; como
consequência dessa perda, o objeto voz ganha outro estatuto. Sem entrarmos na importante
problematização da função e do uso do divã, (Quinet, 2002), destacamos que, com essa sugestão,
Sigmund Freud ressalta que a presença do corpo, ou sua ausência, no encontro analítico, traz
consequências para o próprio processo. Essa discussão permeia também a atualidade dos
atendimentos on-line.
Quais seriam as consequências dessa retirada dos corpos, antes materialmente presentes,
para os atendimentos? E em relação à regra básica – associação livre e atenção flutuante –,
estamos sofrendo interferências em relação à dinâmica transferencial?

A presença do analista
No Seminário 11, ao abordar a transferência como um dos conceitos fundamentais,
Lacan usa uma expressão que nos foi cara na construção deste artigo: a presença do analista. No
referido seminário, Lacan define o conceito de transferência como determinado pela função que
tem numa práxis: o modo de tratar os pacientes comanda o conceito de transferência (Lacan,
1964/1998b, p. 120).

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Lacan articulou a presença do analista à própria manifestação do inconsciente (Lacan,


1964/1998b, p. 121), ou seja, é preciso haver o lugar do analista para creditar a existência bem
como as consequências de se estar submetido ao inconsciente. Este é definido nesse momento
como a soma dos efeitos da fala sobre um sujeito, nesse nível em que o sujeito se constitui pelos
efeitos do significante (Lacan, 1964/1998b, p. 122). Para que o analista, então, faça presença ou
sustente um lugar analítico, é necessário que ele, além de tomar a fala do paciente em sua
articulação com o significante, seja testemunha de uma perda, ou de sentido, ou de gozo, ou a
perda presente no próprio encontro, sempre faltoso com o analisando (Lacan, 1964/1998b, p.
123).
Apresentado como uma borda que se abre e se fecha durante a própria sessão, o
inconsciente passa a ser incluído em um movimento pulsional, em que a presença do analista
intervém diretamente para que esse circuito se dê (voltaremos a esse ponto no final do artigo. A
questão é: como fazer para essa presença do analista operar no atendimento on-line? Uma
presença sobre um fundo de ausência, algo que rompe e que se faz presente pela
descontinuidade?
Podemos articular a presença do analista com o que Freud chamou de abstinência? Que
atualidade esse enunciado teria para nós nestes tempos de atendimento on-line? O termo
“abstinência”, a princípio, situa-se em relação a dois extremos: abstinência do enlace de corpos – o
ato sexual – e abstinência em relação aos atos de fala – abster-se de dizer algo que implique a
subjetividade do analista (Costa & Rinaldi, 2007).
No trabalho analítico, é preciso ressaltar a dimensão que não se situa numa regra, mas
na operação com o impossível. Nesse trabalho, é constituído um impossível muito preciso,
circunscrito à singularidade de um trabalho de transferência. Assim, precisa-se destacar como
princípio que o ordenador do lugar do analista é o impossível, o que situa condições muito precisas
no que diz respeito ao seu desejo. A operação com o desejo do analista reposiciona o impossível,
tornando-o jogo de linguagem, enigmas de um dizer a meias, num semi-dizer possível.
A singularidade do termo presença – nas colocações lacanianas – implica condições de
inscrição e registro de uma falta que sempre acontece em presença (Costa & Rinaldi, 2007), seja
ela virtual ou não. A presença exige, então, um certo exílio.
O trabalho que se realiza em análise é o do sujeito que emerge na fala do analisando,
nas sucessivas vezes em que revisita os momentos traumáticos, linguageiros e que o fundam como
sujeito. A experiência analítica, contudo, também convoca o analista ao trabalho, quando, diante
do real da clínica, do indizível, do silêncio do analisando, faz de seu próprio silêncio ou de suas
palavras uma abertura de espaço para que o sujeito possa retomar a palavra.

Significantes entre pares

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Com o objetivo de recolher de um grupo de analistas suas impressões sobre este tempo
de atendimento on-line que ilustram, a partir da prática clínica, os impasses e questionamentos
propostos por este artigo, foi-lhes enviado um formulário com perguntas sobre o atendimento on-
line e um campo aberto para as respostas. Das mais de quarenta respostas recebidas, destacamos
alguns pontos que nos chamaram a atenção, seja pela repetição dos mesmos, seja pela sua
importância para as discussões quanto à técnica psicanalítica.
Em relação à primeira pergunta – O que mais lhe estranhou em relação aos
atendimentos on-line? –, ressalta-se a presença do cansaço nas respostas, relacionado à
necessidade de sustentar o olhar na tela, além da dificuldade de se fazer presente na escuta.
Muitos disseram que o corpo do analista é “exigido” de uma forma diferente, com a necessidade
de intervenções mais precisas (pontuações e silêncios) para que o atendimento não vire um bate-
papo e os efeitos clínicos apareçam. Tão presente quanto o cansaço foi a surpresa com a
receptividade dos pacientes, bem como a sensação de certa intimidade criada com os mesmos (o
que nos faz pensar no fato de ambos estarem submetidos ao real da pandemia).
À segunda pergunta ao analista – Como tem sido essa experiência? –, sobressaíram
respostas como cansaço, surpresa, constatação de perdas, pedido de invenção, impulso para o
estudo e a formação.
Quanto à terceira pergunta – Houve alguma situação que lhe chamou atenção e que
poderia ser creditada ao fato de o atendimento estar acontecendo on-line? –, vale destacar nos
depoimentos o aumento dos sonhos e da necessidade de falar deles, a mudança na posição
subjetiva indicando a mudança para o divã, a desatenção dos analistas – atenção flutuante (?) – e
dos próprios pacientes, as interferências de outros sons (interfone, voz de familiar, telefone que
toca) na fala dos pacientes. Em relação ao atendimento clínico com criança e adolescente, muitos
destacaram que esse formato tem permitido que o analisando fale mais, talvez, inclusive, pela falta
do corpo (do próprio sujeito e do analista) ali presente. Outros destacaram que o lugar da criança
se desvela para os pais.
À quarta pergunta – Em que pontos você percebe uma diferença em relação ao
atendimento presencial? –, percebemos maior facilidade para verbalizar, de forma que alguns
apontaram afrouxamento do recalque, produção maior de sonhos, diminuição das faltas, silêncios
mais curtos, alteração no tempo das pausas entre as falas.
À quinta pergunta – O uso da imagem ou da voz implica alguma diferença? –, a resposta
foi afirmativa para todos. Foi destacado que os pacientes pediam a imagem do analista como uma
espécie de testemunho do que ocorre no processo analítico. Já os pacientes de divã preferiam as
sessões por ligação telefônica. Questões que surgiram: muitos evidenciaram receio quanto à
distração por parte dos pacientes durante o atendimento (associação livre) além de dificuldade em
usar só a voz: ”A voz perde um pouco sua potência de intervenção sem o suporte do corpo
enquanto encontro real?”; “A imagem recortada ganha maior evidência?”. Entendemos que o

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pedido pela presença ou não da imagem, bem como a modulação da voz, sejam instrumentos que
permitem ouvir o singular de cada caso, não só transferencialmente, mas também a relação do
paciente com o próprio corpo.
A respeito do atendimento infantil, investigamos se o analista percebeu alguma diferença
quanto ao atendimento on-line. Ganhou destaque a dificuldade em relação à privacidade da
criança e à maior necessidade de manejo com os pais. Muitas crianças conseguem transpor o
brincar para os encontros virtuais, tornando possível a análise. Foi citada maior ludicidade nos
atendimentos: o paciente pega o celular com a imagem da analista e brinca com ele, faz a imagem
voar, coloca-o em um lugar alto, direciona a visão da analista para onde acha interessante; ou não
permite que ele veja ou ouça, desligando a câmera ou o áudio. Uma analista relatou que,
inicialmente, optou por não atender às crianças on-line. Com o tempo, recebeu mensagens de voz
das crianças pedindo pelo retorno do “nosso horário” por chamadas de vídeo. Dessa forma,
chegaram por demanda própria, formulada por elas, não mais pelos pais, o que também gerou um
impacto positivo no tratamento.

Corpo vivo
Atendendo a um pedido de uma paciente de realizar um atendimento presencial, esta
autora sente os efeitos de uma estranheza, do infamiliar. No entanto, seguindo Freud, a autora sai
da terceira pessoa e faz o relato em primeira.
Após cinco meses de atendimentos exclusivamente on-line, tive a experiência de atender
a uma paciente presencialmente. Não sem me estranhar, não sem me surpreender: tive a
sensação de estar diante de muitos corpos, ou diante de muito do corpo. Apesar de a paciente
estar há alguns anos no divã, ela pediu para, naquele dia, sentar-se de frente. O que não vejo
motivo para não acolher. Não sem questionamento… Pensei: esse longo tempo de atendimento
on-line, em que usamos apenas a voz, trará alguma consequência ao uso do divã? Seria esse
movimento de busca do olhar da analista uma tentativa de compensar, recuperar algo do objeto
olhar?
Ela me olha nos olhos e começa a falar. Há um certo desconforto. Ela olha minha boca,
minhas expressões. Estava sem máscara. Isso tem efeito sobre ela. Meu corpo na cena diante do
dela gera efeitos. Estranho o tempo das intervenções: parece um pouco mais lento. Retomando a
definição do inconsciente, de Lacan, de que o inconsciente é uma borda que se abre e que se
fecha, destacamos a indissociabilidade entre inconsciente e corpo. Sendo assim, cabe indagarmos:
a presença dos corpos na sessão permitiria um outro tempo para a abertura e o fechamento do
inconsciente? A presença dos corpos permitiria um movimento pulsional específico, um circuito
pulsional, não sem perdas?
Finalizo esse artigo com essas perguntas que restam, até o momento, de toda esta
experiência. Resta também o entusiasmo dos efeitos desta aposta que permitiu – e tem permitido

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– que continuem as análises, os estudos e os laços. As mudanças que estamos experimentando no


fazer analítico serão recolhidas em um segundo tempo, sem muitas expectativas de que
retornaremos ao tempo anterior. Os efeitos desta experiência são vistos nos analistas e nos
analisandos. Neste túnel que estamos atravessando, ainda sem ver o final, estamos recolhendo o
que tem ficado deste trajeto de escuta.

Referências Bibliográficas
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Você vai voltar ao consultório? Psicanálise e atendimento on-line 138
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Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o Moderno e o Contemporâneo
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Citação/Citation: N. Silva Coppus, A. (nov. 2019 a abr. 2020). Você vai voltar ao consultório?
Psicanálise e atendimento on-line. Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana, 15(29), 129-139.
Disponível em www.isepol.com/asephallus. Doi: 10.17852/1809-709x.2020v15n29p129-139
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 10/03/2019 / 03/10/2019.
Aceito/Accepted: 10/20/2019 / 20/10/2019.
Copyright: © 2019 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é
um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde
que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use,
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