Chico Xavier - Pelo Espírito André Luiz - E A Vida Continua
Chico Xavier - Pelo Espírito André Luiz - E A Vida Continua
Chico Xavier - Pelo Espírito André Luiz - E A Vida Continua
E a vida continua...
Homenagem
1 - Encontro inesperado
2 - Na porta da intimidade
3 - Ajuste amigo
4 - Renovação
5 - Reencontro
6 - Entendimento fraternal
7 - Informações de Alzira
8 - Encontro de cultura
9 - Irmão Cláudio
10 - Evelina Serpa
11 - Ernesto Fantini
12 - Julgamento e amor
13 - Tarefas novas
14 - Novos rumos
15 - Momentos de análise
16 - Trabalho renovador
17 - Assuntos do coração
18 - O retorno
19 - Revisões da vida
20 - Trama desvendada
21 - Retorno ao passado
22 - Bases de novo porvir
23 - Ernesto em serviço
24 - Evelina em ação
25 - Nova diretriz
26 - E a vida continua...
E a vida continua...
Leitor amigo:
Nada te escrevemos, aqui, no intuito de apresentar ou recomendar
André Luiz, o amigo que se fez credor de nossa simpatia e
reconhecimento pelas páginas consoladoras e construtivas que vem
formulando do Mundo Espiritual para o Mundo Físico.
Entretanto, é razoável se te diga que neste volume, em matéria de
vida post mortem, ele expõe notícias diferentes daquelas que ele
próprio colheu em Nosso Lar1, estância a que aportou depois da
desencarnação.
Conquanto as personagens da história aqui relacionadas – todas
elas figuras autênticas, cujos nomes foram naturalmente
modificados para não ferir corações amigos na Terra – tenham tido,
como já dissemos, experiências muito diversas daquelas que
caracterizam as trilhas do próprio André Luiz, em seus primeiros
tempos na Espiritualidade, é justo considerar que os graus de
conhecimento e responsabilidade variam ao infinito.
Assim é que os planos de vivência para os habitantes do Além se
personalizam de múltiplos modos, e a vida para cada um se
especifica invariavelmente, segundo a condição mental em que se
coloque.
Compreensível que assim seja.
Quanto maior a cultura de um Espírito encarnado, mais dolorosos
se lhe mostrarão os resultados da perda de tempo. Quanto mais
rebelde a criatura perante a Verdade, mais aflitivas se lhe revelarão
as consequências da própria teimosia.
Emmanuel
Uberaba, 18 de abril de 1968.
Homenagem
Reverenciamos o primeiro centenário
de “A Gênese”, de Allan Kardec.
André Luiz
Uberaba, 18 de abril de 1968.
1
Encontro inesperado
O vento brincava com as folhas secas das árvores, quando Evelina Serpa, a senhora
Serpa, decidiu sentar-se no banco que, ali mesmo, parecia convidá-la ao repouso.
Na praça ajardinada, o silêncio da tarde morna.
Raros turistas na estância mineira, naquela segunda quinzena de outubro. E, entre
esses poucos, ali se achava ela, em companhia da governanta que ficara no hotel.
Afastara-se do bulício caseiro, sentindo fome de solidão.
Queria pensar. E, por isso, escondia-se sob a tolda verdejante, contemplando as
pequenas filas de azáleas desabrochadas, que timbravam em anunciar o tempo de
primavera.
Acomodada, rente à espessa ramaria, deu asas às próprias reflexões...
O médico amigo aconselhara-lhe revigoramento e descanso, ante a cirurgia que a
esperava. E, sopesando as vantagens e os riscos da operação em perspectiva, deixava que as
lembranças da curta existência lhe perpassassem o cérebro.
Casara-se, seis anos antes.
A princípio, tudo fora excursão em caravela dourada sobre correntes azuis. O esposo e
a felicidade. No segundo ano, após o enlace, veio a gravidez, carinhosamente esperada; no
entanto, com a gravidez, apareceu a doença. Descobrira-se-lhe o corpo deficitário.
Revelaram-se os rins incapazes de qualquer sobrecarga e o coração figurara-se motor
ameaçando falhar. Ginecologistas ouvidos opinaram pelo aborto terapêutico e, conquanto a
imensa mágoa do casal, o filhinho em formação foi arrancado ao claustro materno, à
maneira de ave tenra, escorraçada do ninho.
Desde então, a viagem da vida se lhe transformara em vereda de lágrimas. Caio, o
esposo, como que se metamorfoseara num simples amigo cortês, sem maior interesse
afetivo. Passara facilmente para o domínio de outra mulher, uma jovem solteira, cuja
inteligência e vivacidade podia aquilatar através dos bilhetes que o marido esquecia no
bolso, portadores de frases ardentes e beijos pintados no papel com os próprios lábios
úmidos de carmim.
O retiro e o desencanto que padecia em casa talvez fossem os fatores desencadeantes
das crises terríveis de opressão que experimentava, periodicamente, na área cardíaca.
Nessas ocasiões, sofria náuseas, dores cruciantes de cabeça com sensação de frio geral, que
se faziam acompanhar por impressões de queimadura nas extremidades e aumento sensível
da pressão arterial. No ápice da angústia, admitia-se prestes a morrer. Em seguida, as
melhoras, para cair, dias depois, na mesma condição crisíaca, bastando, para isso, que os
contratempos com o esposo se repetissem.
Arruinara-se-lhe a resistência, esvaíam-se-lhe as forças...
Por mais de dois anos, vagueara de consultório a consultório, sondando especialistas.
Finalmente, a sentença unânime. Tão somente uma delicada operação cirúrgica viria
recuperá-la.
No íntimo, algo lhe dizia ao campo intuitivo que o problema orgânico era grave, talvez
lhe impusesse a morte.
Quem poderia saber? – indagava-se.
Ouvia os pardais chilreantes, cujas vozes lhe serviam por música de fundo à meditação,
e passou, de repente, a calcular quanto ao proveito da própria existência, enumerando
aspirações e fracassos.
Valeria furtar-se aos perigos da cirurgia, que sabia difícil, para continuar doente, ao
lado de um homem que passara a desconsiderá-la no tálamo doméstico? E não seria
razoável aceitar o socorro que a ciência médica lhe oferecia, a fim de recobrar a saúde e
lutar por vida nova, caso o marido a abandonasse de todo? Contava apenas vinte e seis anos;
não seria justo aguardar novos caminhos para a felicidade, nos campos do tempo? Embora
sentisse profundas saudades do pai, que desencarnara ao tempo em que ela não passava de
frágil criança, havia crescido, na condição de filha única, sob a dedicação de carinhosa mãe,
que, por sua vez, lhe dera um padrasto atencioso e amigo; ambos, com o marido, lhe
constituíam a família, o lar da retaguarda.
Naquela hora, mergulhada nas virações do entardecer, mentalizava os entes queridos,
o esposo, a mãezinha e o padrasto distantes...
De súbito, lembrou o pai morto e o filhinho morto ao nascer. Era religiosa, católica
praticante e mantinha, com respeito à vida além da morte, as ideias que lhe eram infundidas
pela fé que abraçava.
“Onde estariam meu pai e meu filho?” – perguntava-se. Se viesse a morrer com a
moléstia de que se achava acometida, conseguiria, acaso, reencontrá-los? Onde? Não lhe era
lícito pensar nisso, já que a ideia da morte lhe visitava insistentemente a cabeça?
Atirara-se, avidamente, ao monólogo íntimo, quando alguém lhe surgiu à frente, um
cavalheiro maduro, cujo sorriso bonachão lhe infundiu, para logo, simpatia e curiosidade.
– A senhora Serpa? – perguntou ele, em tom respeitoso.
E a um aceno confirmativo da interpelada, que não lhe escondia a surpresa,
acrescentou:
– Perdoe-me a ousadia, mas soube que a senhora reside em São Paulo, onde moro
também, e, através de circunstâncias muito inesperadas para mim, fui informado, por
pessoa amiga, de que temos ambos um problema em comum.
– Estimo ouvi-lo – disse a jovem senhora, em lhe percebendo o constrangimento.
Ante a inflexão de bondade daquela voz, o homem apresentou-se:
– Nada receie, senhora Serpa. Sou Ernesto Fantini, um criado seu.
– Encantada em conhecê-lo – falou Evelina e, fitando aquela fisionomia enrugada, que a
doença abatia, acrescentou –, sente-se e descanse. Estamos numa praça enorme e, ao que
parece, somos agora os únicos interessados no refazimento que ela oferece.
Encorajado pela gentileza, acomodou-se Fantini em assento próximo e voltou a
expressar-se, avivando o diálogo que a atração mútua passou a presidir.
– A dona do hotel, onde nos achamos, fez-se amiga da governanta que lhe acompanha a
viagem e vim a saber, por ela, que a senhora enfrentará também uma cirurgia de caráter
difícil...
– Também?
– Sim, porque estou nas mesmas condições.
–?
– Tenho a pressão arterial destrambelhada, o corpo à matroca. Há quase três anos,
ouço os especialistas. Ultimamente, as radiografias me acusam. Tenho um tumor na
suprarrenal. Pressinto seja coisa grave.
– Compreendo... – Reticenciou Evelina, pálida. – Conheço tudo isso... O senhor não
precisa contar-me. De quando em quando, deve atravessar a crise. O peito a sufocar, o
coração descompassado, as dores no estômago e na cabeça, as veias a engrossarem no
pescoço, as sensações de gelo e fogo ao mesmo tempo e a ideia da morte perto...
– Isso mesmo...
– Em seguida, as melhoras de algum tempo para depois começar tudo de novo, a
qualquer aborrecimento.
– A senhora sabe.
– Infelizmente.
– O médico repetiu algumas vezes para mim o nome da moléstia de que sou portador.
Gostaria de saber se a senhora já ouviu a mesma informação a seu respeito.
Fantini sacou do bolso minúscula caderneta e leu, em voz alta, a palavra exata que lhe
definia o problema orgânico.
A senhora Serpa dissimulou a custo o desagrado que a enunciação daquele termo
científico lhe causava, mas, dominando-se, confirmou:
– Sim, meu marido, em nome do nosso médico, deu-me a saber este mesmo
diagnóstico, em se referindo ao meu caso.
O recém-chegado percebeu o aborrecimento da interlocutora e ensaiou bom humor:
– Deixe estar, senhora Serpa, que temos uma doença de nome raro e bonito...
– O que não impede tenhamos crises frequentes e feias – replicou ela, com graça.
Fantini contemplou o céu muito azul da tarde, como quem se propunha elevar a
palestra, no rumo de planos mais altos, e Evelina seguiu-lhe a pausa, em silêncio comovido,
entremostrando igualmente o propósito de alçar a conversação, sofrimento acima, sedenta
de refletir e filosofar.
2
Na porta da intimidade
Não longe surgiu pequeno carro de passeio. Vinha devagar, muito devagar.
Vendo o animal que se aproximava, a passo lento, o cavalheiro disse à dama:
– Compreendo-lhe a necessidade de repouso, mas se aceita uma excursão pelas
termas...
– Agradeço – respondeu –, contudo, não posso. Refazimento é agora minha maior
terapêutica.
– Efetivamente, nosso caso não comporta sacudidelas.
A pequena viatura passou rente ao sossegado retiro.
Os dois perceberam a razão da marcha morosa. O veículo fora decerto acidentado e
mostrava uma roda partida, avançando dificilmente; enquanto isso, o jovem boleeiro, a pé,
guiava o animal com extremado carinho, deixando-o quase livre.
A senhora Serpa e o improvisado amigo seguiram-nos com o olhar, até que
desaparecessem na esquina próxima.
Em seguida, Fantini fixou um grande sorriso e enunciou muito calmo:
– Senhora Serpa...
Ela, porém, cortou-lhe a frase com outro sorriso franco e corrigiu, jovial:
– Chame-me Evelina. Creio que, sendo nós irmãos numa doença rara, temos direito à
estima espontânea.
– Muito bem!... – acentuou o interlocutor e aduziu: – Doravante, sou também apenas
Ernesto, para a senhora.
Ele deixou cair a mão descorada no encosto do banco enorme e prosseguiu:
– Dona Evelina, a senhora já leu algo de espiritualismo?
– Não.
– Pois quero dizer-lhe que a charrete, ainda agora sob nossa observação, me fez
lembrar certos apontamentos que esquadrinhei, nos meus estudos de ontem. O interessante
escritor que venho compulsando, numa definição que ele mesmo considera superficial,
compreende a criatura humana como um ternário, semelhante ao carro, ao cavalo e ao
condutor, os três juntos em serviço...
– Como pode ser isso? – interrogou Evelina, sublinhando a palavra de surpresa e
gracejando com o olhar.
– O carro equivale ao corpo físico, o animal pode ser comparado ao corpo espiritual,
modelador e sustentador dos fenômenos que nos garantem a existência física, e o cocheiro
simboliza, em suma, o nosso próprio Espírito, isto é, nós mesmos, no governo mental da
vida que nos é própria. O carro avariado, qual o que vimos aqui, recorda um corpo doente, e,
quando um veículo assim se faz de todo imprestável, o condutor abandona-o à sucata da
natureza e prossegue em serviço, montando consequentemente o animal para continuarem
ambos, no curso de sua viagem para diante... Isso ocorreria, de maneira natural, na morte ou
na desencarnação. O corpo de carne, tornado inútil, é restituído à terra, enquanto que nosso
Espírito, envergando o envoltório de matéria sutil, que, aliás, lhe condiciona a existência
terrestre, passa a viver em outro plano, no qual a roupa de matéria mais densa para nada
mais lhe serve...
Evelina riu-se, sem perder embora o respeito que devia ao interlocutor, e alegou:
– Teoria engenhosa!... O senhor me fala da morte, e que me diz desse trio durante o
sono?
– Muito razoavelmente, no sono físico, há descanso para os três elementos, descanso
esse que varia de condutor para condutor, ou melhor, de Espírito para Espírito. Quando
dormimos, o veículo pesado ou corpo carnal repousa sempre, mas o comportamento do
Espírito difere infinitamente. Por exemplo, depois de copioso repasto para o condutor e o
cavalo, é justo se imobilizem ambos na inércia, tanto quanto o carro que carregam;
entretanto, se o boleeiro se caracteriza por hábitos de estudo e serviço, quando o veículo se
detém na oficina para reajuste ou reabastecimento, ei-lo que utiliza o animal para excursões
educativas ou tarefas nobilitantes. De outras vezes, se o condutor é ainda profundamente
inábil ou inexperiente, patenteando receio da viagem, sempre que o veículo exija
restauração, ei-lo que se oculta nas imediações do posto socorrista, esperando que o carro
se refaça, a fim de retomá-lo, à feição de armadura para a própria defesa.
Evelina estampou um gesto de incredulidade e obtemperou:
– Nada conheço de espiritualismo...
– É profitente de alguma religião particularizada?
– Sim, sou católica, sem fanatismo, mas francamente determinada a viver segundo os
preceitos de minha fé. Pratico as instruções dos sacerdotes, crendo neles.
– A senhora deve ser louvada por isso. Toda convicção pura é respeitável. Invejo-lhe a
confiança perfeita.
– Não é religioso, o senhor?
– Quisera ser. Sou um procurador da verdade, livre atirador no campo das ideias...
– E lê espiritualismo por desfastio?
– Por desfastio? Oh! não! Leio por necessidade. Dona Evelina, a senhora esqueceu?
Estamos na bica de uma cirurgia que nos pode ser fatal... Nossas malas talvez estejam
prontas para uma longa excursão!...
– Da qual ninguém volta.
– Quem pode saber?
– Entendo – ajuntou a dama, sorrindo –, estuda espiritualismo à maneira do viajante
que aspira a conhecer o dinheiro, a língua, os costumes e as modas do país estrangeiro que
tenciona visitar. Informações resumidas, cursos rápidos...
– Não nego. Tenho tido mais tempo ao meu dispor e desse tempo faço hoje os
investimentos que posso, nos domínios de tudo o que se relacione com as ciências da alma,
principalmente com aquilo que se refira à sobrevivência e à comunicação com os Espíritos,
supostos habitantes de outras esferas.
– E o senhor já encontrou a prova de semelhante intercâmbio? Conseguiu mensagens
diretas com algum de seus mortos queridos ?
– Ainda não.
– Isso, acaso, não lhe desencoraja a busca?
– De modo algum.
– Prefiro as minhas crenças tranquilas. A confiança sem dúvida, a oração sem tortura
mental...
– Será uma bênção o seu estado íntimo e acato, com todo o meu coração, a sua
felicidade religiosa; no entanto, e se houver uma outra vida à nossa espera e se a indagação
aparecer em sua alma?
– Como pode falar desse modo se ainda não obteve a suspirada demonstração da
sobrevivência?
– Não me é possível descrer do critério dos sábios e das pessoas de elevado caráter,
que a tiveram.
– Bem – explicou-se Evelina bem-humorada –, o senhor estará com os seus
pesquisadores, eu ficarei com os meus santos...
– Não faço qualquer objeção, quanto à excelência dos seus advogados – revidou Fantini
no mesmo tom –, mas não consigo furtar-me à sede de estudo. Antes da moléstia,
reconhecia-me seguro da vida. Comandava os acontecimentos, nem sabia, ao menos, da
existência desse ou daquele órgão no meu corpo. Entretanto, um tumor na suprarrenal não
é uma pedra no sapato. Tem qualquer coisa de um fantasma, anunciando contratempos e
obrigando-me a pensar, raciocinar, discernir...
– Tem medo da morte? – chasqueou a moça, com fina verve.
– Não tanto, e a senhora?
– Bem, eu não desejo morrer. Tenho meus pais, meu esposo, meus amigos. Adoro a
vida, mas...
– Mas?...
– Se Deus determinar a extinção dos meus dias, estarei conformada.
– Porventura, não tem problemas? Nunca sofreu a influência dos males que nos
atormentam o dia a dia?
– Não diga que me vai examinar a consciência; já tenho que dar contas de mim mesma
aos confessores.
E rindo-se, desembaraçadamente, reforçou:
– Admito os males que outros nos façam como parcelas do resgate de nossos pecados
perante Deus; no entanto, os males que fazemos são golpes que desferimos contra nós
mesmos. Supondo assim, procuro preservar-me, isto é, reconheço que não devo ferir a
ninguém. Em razão disso, busco na confissão um contraveneno que, de tempos a tempos,
me imunize, evitando a explosão de minhas próprias tendências inferiores.
– Admirável que uma inteligência, qual a sua, se acomode com tanto gosto e
sinceridade à confissão.
– Certamente preciso saber com que sacerdote me desinibo. Não quero comprar o Céu
com atitudes calculadas e sim agir em oposição aos defeitos que carrego e, por isso, não
seria correto abrir o coração diante de quem não me possa entender e nem ajudar.
– Compreendo...
Retomando o trato íntimo, à base de respeitosa confiança, a senhora Serpa considerou:
– Acredite que também eu, ante a enfermidade, tenho vivido mais cuidadosa. Até
mesmo na véspera de minha vinda para cá, harmonizei-me com os deveres religiosos.
Confessei-me. E das inquietações que confiei ao meu velho diretor, posso dizer-lhe a maior.
– Não, não!... Não me conceda tanto... – tartamudeou Fantini, espantado com a devoção
carinhosa em que Evelina se exprimia.
– Oh! por que não? Estamos aqui na ideia de que somos amigos de muito tempo. O
senhor me fala de suas preparações ante as probabilidades da morte e não me deixa tocar
nas minhas?
Desataram-se ambos em riso claro e, quando a pausa mais longa se intrometeu no
diálogo, entreolharam-se, de modo significativo. Um e outro fixaram no rosto inequívoca
nota de susto.
A mirada recíproca lhes fazia observar que haviam caminhado, a passos compridos,
para a intimidade profunda.
Onde vira antes aquela jovem senhora que a beleza e o raciocínio tanto favoreciam? –
pensava Ernesto, atordoado.
Em que lugar teria encontrado alguma vez aquele cavalheiro maduro e inteligente que
tão bem conjugava simpatia e compreensão? – refletia a senhora Serpa, incapaz de esconder
o agradável assombro que a dominava.
O intervalo consumiu segundos inquietantes para os dois, enquanto o crepúsculo, em
derredor, acumulava cores e sombras, anunciando a noite próxima.
3
Ajuste amigo
Fantini percebeu que a interlocutora havia sido sulcada mentalmente pelo olhar que
lhe endereçara e dispôs-se a tranquuilizá-la:
– Continuemos, Dona Evelina. Minha presença não lhe fará mal. Observe-me, não direi
com a sua gentileza, mas sim com o seu discernimento. Sou um velho enfermo que pode ser
seu pai e acredite que a vejo como filha...
A voz dele esmoreceu, de algum modo, entretanto cobrou ânimo e terminou:
– A filha que estimaria ter, em lugar da que possuo.
Evelina adivinhou o sofrimento moral que as palavras dele destilavam e reajustou a
posição emotiva, sentenciando:
– O senhor não se alegraria com uma filha doente qual estou. Mas... Voltemos ao meu
caso, o caso da confissão.
– Não me conte tristezas...
– Certo. Já não dispomos de muito tempo.
E continuou com um sorriso de mofa:
– Conversando com tanta franqueza, num lugar que talvez seja a antecâmara da morte
para um de nós dois, desejo dizer-lhe que só um fato me perturba. Tenho as desilusões
comuns a qualquer pessoa. Meu pai morreu, quando eu mal completara dois anos; minha
mãe, então viúva, deu-me um padrasto, algum tempo depois; ainda na infância, fui internada
num colégio de religiosas amigas e, depois disso tudo, casei-me para ter um marido
diferente daquele que eu sonhava... No meio do romance, uma tragédia... Um homem, um
rapaz digno, aniquilou-se por minha causa, seis meses antes do meu casamento. Precedendo
o ato que lhe impôs a morte, tentou o suicídio ao ver-se posto à margem. Compadeci-me.
Busquei reaproximar-me, ao menos para consolá-lo, e, quando meu sentimento balançava
entre o pobre moço e o homem que desposei, ei-lo que se despede da vida com um tiro no
coração... Desde aí, qualquer felicidade para mim é uma luz misturada de sombra. Embora o
imenso amor que consagro a meu marido, nem mesmo a condição de mãe consegui. Vivo
doente, frustrada, abatida...
– Ora, ora! – aventou Ernesto, diligenciando encontrar uma escapatória otimista – Não
se julgue culpada. Não fosse supostamente pela senhora e o moço agiria de igual modo por
outro móvel. O impulso suicida, tanto quanto o impulso criminoso...
A voz dele empalideceu de novo, qual se o íntimo recusasse certas reminiscências que
as palavras em curso lhe suscitavam à memória; contudo, dando a ideia de quem agia
fortemente contra si mesmo, prosseguiu:
– São incógnitas da alma. Talvez sejam ápices de doenças psíquicas, demoradamente
mantidas no espírito. O suicídio e o crime são de temer em qualquer de nós, porque são atos
de delírio, que fundos processos de corrosão mental determinam em qualquer um.
– O senhor procura apaziguar-me com a sua nobreza de coração – exclamou Evelina,
cismativa –, decerto não conheceu, até hoje, um problema assim agudo, a conturbar-lhe a
consciência.
– Eu? Eu? – gaguejou Fantini, desconcertado –, não me faça voltar ao passado, pelo
amor de Deus!... Já cometi muitos erros, sofri muitos enganos...
E, no objetivo de contornar a questão sem escalpelá-la, Ernesto sorriu à força, com a
maleabilidade das pessoas maduras, que sabem usar várias máscaras fisionômicas, para
determinados efeitos psicológicos, e aditou:
– Não conseguiu, porventura, esquecer o moço suicida, com apoio no confessionário? O
seu diretor espiritual não lhe sossegou o coração sensível e afetuoso?
– Repito que sempre encontrei na confissão de meus erros menores uma espécie de
vacina moral contra erros maiores; entretanto, no caso em apreço, não obtive a paz que
desejava. Admito que se não houvesse hesitado, tanto tempo, entre dois homens, teria
evitado o desastre. Basta me lembre de Túlio, o infeliz, para que o quadro da morte dele se
me reavive na lembrança e, com a lembrança, surja, de imediato, o complexo de culpa...
– Não se agaste. A senhora está muito jovem. Como acontece à mão que, a pouco e
pouco, se caleja no trabalho do campo, a sensibilidade também se enrijece com o sofrimento
na vida. Certamente, se escaparmos, com êxito, no salto que pretendemos dar para a saúde,
ainda veremos muitos suicídios, muitas decepções, muitas calamidades...
A senhora Serpa refletiu alguns momentos e, dando a impressão de quem se propunha
ganhar ensejo para balsamizar feridas íntimas, indagou com intenção:
– O senhor, que vem estudando as ciências da alma, acredita piamente que
reencontraremos as pessoas queridas, depois da morte?
Fantini estampou um gesto de complacência e divagou:
– Não sei por que, mas, à frente de sua inquirição, veio-me à cabeça aquele pensamento
do velho Shakespeare: “Os infelizes não possuem outro medicamento que não seja a
esperança.” Tenho boas razões para crer que nos reveremos uns aos outros, quando não
mais estivermos neste mundo; todavia, compreendo que a precariedade do meu estado
orgânico é o agente fixador de semelhante convicção. A senhora já notou que as ideias e as
palavras são filhas das circunstâncias? Imagine se nos víssemos hoje em plenitude da força
física, robustos e bem apessoados, num encontro social, num baile por exemplo... Qualquer
conceito, em torno dos assuntos que nos aproximam agora um do outro, seria
imediatamente banido de nossas cogitações.
– É verdade.
– A moléstia aflitiva nos dá direito de entretecer novos recursos e novas interpretações,
ao redor da vida e da morte, e, na esfera das novas conclusões que temos à frente, admito
que a existência não acaba no túmulo. Estamos intimados a recordar aquela antiga ilação
das novelas de amor, “o romance termina, mas a vida continua...”. O envoltório de carne
tombará consumido; todavia, o Espírito seguirá adiante, sempre adiante...
– O senhor costuma pensar em alguém que estimaria achar na outra vida?
Ele mostrou enigmático sorriso e zombeteou:
– Penso em alguém que estimaria não achar.
– Não consigo entender o trocadilho. Apesar disso, reconforta-me anotar a certeza com
que me fala, acerca do futuro.
– A senhora não pode e nem deve perder a confiança no porvir. Lembre-se de que é,
sobretudo, cristã, discípula de um Mestre que ressurgiu da campa, ao terceiro dia, depois da
morte.
A senhora Serpa não sorriu. O olhar divagou, além, nas nuvens róseas que refletiam o
Sol já distante, reconhecendo-se talvez sacudida nas forças profundas de sua fé por aquela
inesperada observação.
Findo o longo intervalo, voltou a fitar o interlocutor e preparou a despedida:
– Bem, senhor Fantini, se houver outra vida, além desta, e se for a vontade de Deus que
venhamos a sofrer, em breve, a grande mudança, creio que nos veremos de novo e seremos
lá bons amigos...
– Como não? Se conseguir adivinhar o fim de meu corpo, conservarei firme o
pensamento positivo do nosso reencontro.
– Também eu.
– Quando volta a São Paulo?
– Amanhã pela manhã.
– Tem ocasião marcada para o trabalho operatório?
– Meu marido decidirá isso com o médico; no entanto, creio que, na semana vindoura,
enfrentarei o problema. E o senhor?
– Não estou certo. Questão de mais alguns poucos dias. Não desejo retardar a
intervenção. Posso, acaso, saber o nome do seu hospital?
Evelina meditou, meditou... E concluiu:
– Senhor Fantini, somos ambos portadores da mesma doença, insidiosa e rara. Não será
isso o bastante para aproximar-nos um do outro? Esperemos o futuro sem aflição. Se
escaparmos do atoleiro, estou convencida de que Deus nos favorecerá com um novo
encontro aqui na Terra mesmo... Se a morte vier, a nossa amizade, em outro mundo, ficará
também subordinada aos desígnios da Providência.
Ernesto achou graça e ambos regressaram ao hotel, passo a passo, em comovido
silêncio.
4
Renovação
Evelina somente voltou a pensar na presença confortadora de Ernesto, o amigo
desconhecido, quando Dr. Caio Serpa, o esposo, a deixou naquele espaçoso apartamento de
hospital, na véspera da cirurgia, no qual se via, agora, ruminando estranhas reflexões.
Era por demais jovem e estava quase que absolutamente convencida, quanto à própria
recuperação, para demorar-se em quaisquer vaticínios menos felizes. Entretanto, ali, a sós,
aguardando a enfermeira, as alegações de Fantini lhe perpassavam o cérebro, escaldando-
lhe a imaginação.
Sim, meditava torturada, arrostaria grande risco. Talvez não regressasse à convivência
dos seus... Se morresse, para onde iria? Quando menina, acreditava, de boa-fé, na existência
dos lugares predeterminados de felicidade ou sofrimento, sobre os quais a antiga teologia
católica regulava a posição dos homens, para lá da morte. Agora, porém, com a ciência
explorando as vastidões cósmicas, era bastante inteligente para perceber o tato com que o
amadurecido confessor lhe falava das indispensáveis renovações que se impunham à esfera
religiosa. Aprendera com ele, generoso e culto amigo, a conservar, inalterável, a confiança
em Deus, no divino apostolado de Jesus Cristo e no ministério inefável dos santos; contudo,
decidira colocar à parte, no rumo da necessária revisão, todas as afirmativas da autoridade
humana sobre as coisas e causas da Providência divina. A ideia da morte assomou-lhe à
cabeça com mais força, mas repeliu-a. Queria a saúde, a euforia orgânica. Ansiava restaurar-
se, viver. Deteve-se, de súbito, a esquadrinhar os problemas domésticos. Evidentemente,
atravessava escabrosa fase nas relações conjugais; no entanto, tinha motivos para contar
com feliz reajuste. Admitia-se em plena floração dos ideais feminis. Carecia, tão só, de
reequilíbrio físico. Recuperando-se, diligenciaria remover a outra. Transfiguraria a área
afetiva e de tal modo se propunha aformoseá-la que o esposo, decerto, lhe tornaria ao
carinho, sem que fosse constrangida a usar azedume ou discussão. Além disso, reconhecia-
se útil. Devia querer a vida, disputá-la a todo preço, sentir-se prestante, não apenas para os
familiares, mas também para as criaturas menos felizes. Poderia, sem dúvida, diminuir a
penúria onde a penúria existisse...
A lembrança, com respeito aos necessitados, sensibilizou-a... Quantos respirariam, ali
mesmo, perto dela, isolados, uns dos outros, pelas fronteiras de alvenaria? Como não
pensara nisso antes?
Gastara a existência na condição de satélite de três pessoas, o marido, a genitora, o
padrasto... Por que não reaver as próprias forças, renovar-se, viver? Sim, recusaria todo
pensamento, acerca dos fenômenos da morte, e concentrar-se-ia, com todo o vigor de que se
sentia capaz, no propósito de retomar-se organicamente.
Lera muitos psicólogos e conhecera com eles a importância dos impulsos mentais.
Aspirava a sarar. Repetiria isso, tantas vezes quantas fosse possível, com todos os seus
potenciais de força emotiva, escolhendo as palavras carregadas de energia que lhe
pudessem definir com mais segurança os estados de alma.
Ah! – disse, pensando, de si para si – nesse sentido, oraria também!...
Formulada essa ideia, esbarrou, de chofre, com a imagem de Jesus Crucificado, a pender
de parede próxima, e arrancou-se para ela. Contemplou o rosto sublime que o artista
modelara com sentimento profundo e, cruzando as mãos sobre o peito, falou mais com a voz
do coração do que com os lábios:
– Senhor, compadece-te de mim!...
Nisso, porém, ao fitar aquela cabeça coroada de espinhos e aqueles braços pregados ao
lenho do sacrifício, pareceu-lhe que o Cristo estimava surgir na memória das criaturas
naquela figura de dor para lembrar-lhes a fatalidade da morte.
Fundo abalo moral convulsionou-lhe os nervos; não mais sabia se lhe era lícito optar
entre viver ou morrer e, escondendo o rosto entre as mãos, ajoelhou-se, humilde, à frente da
escultura delicada, junto da qual pranteou copiosamente.
Alguém despertou-a, de manso:
– Chorando por que, senhora?
Diligente enfermeira vinha requisitá-la ao serviço pré-operatório.
Evelina ergueu-se, enxugou as lágrimas, sorriu.
– Desculpe-me.
– Sou eu que a incomodo, senhora Serpa – rogou a jovem –, perdoe-me se lhe perturbo
as orações; no entanto, urge aprestar-se. Além disso, o esposo aguarda ocasião para entrar.
A doente obedeceu, ausentando-se do quarto, por algum tempo, e retornando, logo
após.
O marido esperava-a, folheando jornais do dia.
– Então – bisbilhotou ele, fingindo-se bem-humorado –, agora, o salão de beleza;
amanhã, o retorno à saúde.
A voz do Dr. Serpa evidenciava energia e brandura simultâneas. Advogado jovem, mas
experimentado em relações públicas, exibia maneiras estudadas, conquanto simpáticas.
Autêntico representante do tope social, não se lhe notava o menor desalinho. Justo, porém,
dizer que o moço causídico se trancava no imo do ser, esforçando-se por manter oculta a
feição enigmática da própria alma. Não estava ali, na estampa física, tal qual se mostrava por
dentro. Não era tão somente um homem natural, simplesmente um homem natural, em cujo
caráter o verniz acadêmico não conseguia extinguir, de todo, os resíduos da animalidade,
compreensíveis em todas as criaturas da Terra, ainda puramente naturais e humanas. Além
disso, aos nossos olhos espirituais, patenteava sombrias inquietações.
Depois das primeiras palavras, quentes de ternura, abeirou-se da esposa e osculou-lhe
os cabelos.
Ela não dissimulou a própria alegria e conversaram em suave transbordamento afetivo.
Evelina reafirmou com os lábios a certeza da recuperação próxima, enquanto ele dava
notícias. Os sogros, em seu sítio no sul, esperavam boas novas da operação e lhes viriam ao
encontro, oportunamente. Com certeza, não chegariam, de imediato, evitando alarme.
Queriam dar à filha querida a convicção de que se achavam tranquilos, quanto ao
tratamento em curso.
E Caio desdobrava outros informes.
Ouvira amigos médicos. Realizara interessantes estudos em torno da intervenção na
suprarrenal. Quanto ao caso dela, Evelina, o cirurgião estava otimista. Que lhes faltava
agora, senão o êxito, com a bênção de Deus?
Regozijou-se a enferma, ao registrar-lhe a expressão “bênção de Deus”. Algo de novo
estaria surgindo naquele estimado ateu de trinta anos? – monologava no íntimo. Caio se lhe
afigurava, ali, mais atencioso, diferente. Simples de coração, não percebia que ele disfarçava.
Serpa emitia comunicações imaginárias. O médico da família, tanto quanto o cirurgião, nada
garantiam além de uma operação exploratória, com reduzidas esperanças de êxito. O
próprio cardiologista, devidamente consultado, quase que desaconselhava o tentame, e só
não o fazia porque a moça avançava, a passos largos, para a morte. De que valeria obstar
uma providência que talvez a salvasse? O marido conhecia as preocupações em pauta;
contudo, fantasiava argumentos confortativos, mentia piedosamente, comentando os
exames, complementados de avisos francos, sobre a gravidade da situação.
O advogado pernoitou no próprio hospital, na condição de acompanhante da enferma.
Auxiliou a serviçal da noite, na administração de tranquilizantes precursores da anestesia.
Dispensou à doente carinhos e cuidados, qual se ela fosse uma criança e ele o pai zeloso.
No dia imediato, porém, finda a cirurgia, foi convidado a entendimento com o médico
operador e, pálido, colheu a sentença. Evelina, segundo os recursos da ciência humana,
dispunha tão somente de alguns dias mais. Que ele, o marido, tomasse as medidas que
julgasse convenientes, a fim de que não lhe faltasse o conforto possível.
O médico resumiu todas as suas impressões numa só frase:
– Ela parece uma rosa totalmente carcomida por agentes malignos.
Caio, embora o quisesse, nada mais ouviu das doutas observações expendidas sobre
neoplasmas, focos secundários, metástases e tumores que reincidiam depois da ablação.
Sentia-se petrificado. Lágrimas compridas perlaram-lhe a face.
Concluído o testemunho de solidariedade e ternura humanas com que foi amparado
pelo cirurgião amigo, correu para junto da companheira prostrada. E durante dias e noites
de paciência e ansiedade, foi-lhe o irmão e o pai, o tutor e o amigo.
Satisfazendo-lhe os apelos, os sogros vieram consolar a filha nos dias últimos. Dona
Brígida, a genitora, e o Sr. Amâncio Terra, o padrasto, proprietários de sítio próspero, no sul
paulista, compareceram desolados, buscando, no entanto, selecionar palavras de otimismo e
sustando o choro.
Embalada na rede do devotamento familiar, Evelina, aparentemente melhorada, voltou
ao mundo doméstico, recolhendo mimos que, desde muito tempo, não recebia,
concomitantemente com as crises periódicas de sufocação, que a deixavam inerme.
Apesar da posição melindrosa, acreditava nas opiniões lisonjeiras dos familiares e dos
amigos.
Aquilo passaria. Ninguém se forra às sequelas de uma operação, qual a que sofrera. Que
ela confiasse, orasse com fé.
Após duas semanas de calmaria e repiquetes, surgiram seis dias de contínuo bem-estar.
Não obstante extremamente magra e abatida, transferiu-se do leito para a
espreguiçadeira, alimentava-se quase que normalmente, conversava tranquila, obtinha o
conforto da religião através da cortesia de um sacerdote abnegado e, à noite, pedia ao
padrasto alguns minutos de leitura alegre e amena.
Ao entardecer do quinto dia de esperança, formulou uma solicitação inesperada.
Não poderia Serpa levá-la ao passeio predileto dos tempos de noivado?
– Morumbi à noite? – indagou a mãezinha, intrigada.
Evelina justificou-se. Queria ver a cidade faiscante de luzes ao longe, os olhos tinham
saudade do céu estrelado.
Caio telefonou ao médico e o médico acedeu.
Mais algum tempo, aflito por satisfazê-la, o marido arrancou o carro à garagem, para,
logo após, tomá-la de encontro ao peito, qual se carregasse leve menina. Acomodou-a ao
lado dele, prescindiu da companhia dos sogros, e partiram.
A enferma seguia, encantada. Reviu as ruas repletas e, depois, a paisagem do Morumbi
e arredores, no que ela possuía de mais natureza.
Ao vê-la falar, entusiasmada, o esposo enterneceu-se. Como que a reencontrava na
moldura de noiva querida, da noiva a quem amara desvairadamente, anos antes.
Experimentou remorsos, recordando a infidelidade conjugal em que se mantinha. Quis
suplicar-lhe perdão, confessar-se, mas reconheceu que aquele não era o momento
adequado.
Freou o carro, contemplou-a. Evelina parecia sutilizar-se, os olhos brilhavam aos
toques do luar, movia-se a cabeça como que nimbada de luz...
Caio tomou-a nos braços robustos, com a ansiedade de quem se propunha apoderar-se
de um tesouro e defendê-lo... Num transporte irresistível de carinho, beijou-a e beijou-a, até
que lhe sentiu o rosto frio molhado de lágrimas ardentes...
Evelina chorava de ventura.
Ao sentir-se liberta daqueles braços que adorava, deitou a cabeça ligeiramente para
fora e deteve-se na visão do firmamento que se lhe figurava agora um campo gigantesco,
ostentando flores de fogo e prata...
Buscou a destra do companheiro, apertou-a demoradamente e indagou:
– Caio, você acredita que nos encontraremos, depois da morte?
Ele desconversou, ligou o motor, exortou-a a trocar de assunto, proibiu-a, em tom
afetuoso, de reportar-se ao que nomeou como sendo coisas tristes, e regressaram.
Caminho afora, a enferma lembrou-se do entendimento fácil com Ernesto Fantini, o
improvisado amigo do balneário. Inexplicavelmente para ela mesma, tinha saudades
daquela presença que lhe fora suave e grata. Sentia sede de permuta espiritual. Aspirava a
falar nos segredos da vida eterna e ouvir alguém, no mesmo tema e no mesmo diapasão.
Naquele instante, porém, o esposo se lhe destacava na imaginação por estranho violino que
não se lhe adaptava agora às fibras do arco. As emoções sublimes lhe esmoreciam no peito,
à míngua de crescimento e repercussão. Preferiu, desse modo, escutar o marido, abençoá-lo,
aprová-lo.
Mais um dia sereno e, em seguida, Evelina amanheceu em crise. De angústia em
angústia, com anestésicos de permeio, a jovem senhora Serpa atingiu a derradeira noite no
mundo.
Ante a mágoa profunda do esposo e dos pais, que tudo fizeram para retê-la, Evelina,
fatigada, cerrou os olhos do corpo físico, na suprema libertação, justamente quando as
estrelas desmaiavam na antemanhã, sobrerrondando alvorada nova.
5
Reencontro
Evelina despertou num quarto espaçoso, com duas janelas deixando ver o céu.
Emergia de um sono profundo, pensou.
Diligenciou recordar-se, assentando contas da própria situação.
Como teria entrado na amnésia de que estava tornando agora à tona da consciência?
Desemperrou a custo os mecanismos da memória e passou a lembrar-se,
vagarosamente... A princípio, indescritível pesadelo lhe conturbara o repouso começante.
Sofrera, decerto, uma síncope inexplicável. Percebera-se movendo num mundo exótico de
imagens que a faziam regredir na estrada das próprias reminiscências. Recapitulara, não
sabia como, todas as fases de sua curta vida. Voltara no tempo. Reconstituíra todos os dias já
vividos, a ponto de rever o pai chegando morto ao lar, quando contava somente dois anos de
idade. Nesse filme que as energias ocultas da própria mente haviam exibido para ela, nos
quadros mais íntimos do ser, ouvira, de novo, os gritos maternos e enxergava, à frente, os
vizinhos espantados, sem compreender a tragédia que se lhe abatia sobre a casa...
Depois, registrara a impressão de tremendo choque.
Algo como que se lhe desabotoara no cérebro e vira-se flutuar sobre o próprio corpo
adormecido...
Logo após, o sono invencível.
De nada mais se apercebera.
Quantas horas gastara no torpor imprevisto? Estaria regressando a si, vencido o
colapso, por efeito de algum tratamento de exceção? Por que não via, ali, junto do leito,
algum familiar que lhe propiciasse as necessárias explicações?
Tentou sentar-se e o conseguiu, sem a menor dificuldade.
Inspecionou o ambiente, concluindo que o pouso se lhe trocara. Inferiu das primeiras
observações que, tombada em desmaio, fora reconduzida ao hospital e ocupava, agora, larga
dependência, que o verde-claro tornava repousante.
Em mesa próxima, viu rosas que lhe chamavam a atenção para o perfume.
Cortinas tênues bailavam, de manso, aos ritmos do vento, que penetrava as venezianas
diferentes, talhadas em substância semelhante ao cristal revestido de essência esmeraldina.
Em tudo, simplicidade e previsão, conforto e leveza.
Evelina bocejou, distendeu os braços e não se surpreendeu com qualquer dor.
Recuperara-se enfim, refletiu alegre.
Conhecia a presença da saúde e a testemunhava em si mesma. Nenhum sofrimento,
nenhum estorvo.
Se algo experimentava de menos agradável, era precisamente um sinal de robustez
orgânica: sentia fome.
Onde o marido? Onde os pais?
Desejava gritar de felicidade, comunicando-lhes que sarara. Aspirava a dizer-lhes que
os sacrifícios efetuados por ela não haviam sido inúteis. No íntimo, agradecia a Deus a
dádiva do próprio restabelecimento e ansiava estender a jubilosa gratidão aos seres
queridos.
Não mais lograva sopitar o coração embriagado de regozijo e, por isso, buscou a
campainha, rente a ela. Apertou o botão de chamada e uma senhora de semblante doce e
atraente apareceu, saudando-a com palavras de irradiante carinho.
Evelina aceitou com naturalidade a cooperação da desconhecida.
– Enfermeira – falou para a recém-chegada –, posso rogar-lhe o favor de chamar meu
marido?
– Tenho instruções para, antes de tudo, informar o médico sobre suas melhoras.
A senhora Serpa concordou, afirmando, no entanto, que sentia necessidade de
reencontrar os familiares, de maneira a repartir com eles o próprio júbilo.
– Compreendo... – redarguiu a serviçal, com inflexão de ternura.
– Tenho sede de entender-me com alguém – aditou a convalescente, animada –, como
se chama a senhora?
– Chame-me Irmã Isa.
– Decerto, a senhora me conhece. Sou Evelina Serpa e devo ter aqui minha ficha...
– Sim.
– Irmã Isa, que me sucedeu? Estou bem, mas num estado estranho que não sei definir...
– A senhora passou por longa cirurgia, precisa descansar, refazer-se...
Para Evelina, em verdade, nada havia de surpreendente naquelas palavras articuladas
em tom significativo. Sabia-se operada. Passara pela dolorosa ablação de um tumor.
Estivera em casa, melhorara tanto que obtivera um passeio com o marido pelas estradas do
Morumbi. Apesar de tudo, reconhecia-se novamente hospitalizada, sem poder ajuizar dos
motivos.
Enquanto alinhava indagações mudas, não viu que a atendente pressionava um ponto
cinza, em determinado recanto, comunicando-se com o médico de plantão.
Em dois minutos, um homem de branco entrou, calmo.
Cumprimentou a doente, examinou-a, sorriu satisfeito.
– Doutor... – começou dizendo, ansiosa por justificar-se.
E pediu informes. Desejava saber como e quando conseguiria rever o esposo e os pais.
Não seria justo dar aos seus a notícia do êxito com que o hospital a brindava?
O facultativo ouviu-a, paciente, e rogou-lhe conformidade. Retomaria aos parentes, mas
precisava reajustar-se.
Gesticulando carinhosamente, qual se sossegasse uma filha, aclarou:
– A senhora está melhor, muito melhor; entretanto, ainda sob rigorosa assistência de
ordem mental. Em se ligando a quaisquer agentes suscetíveis de induzi-la a recordações
muito ativas da moléstia que sofreu, é provável que todos os sintomas reapareçam. Pense
nisso. Não lhe convém, por agora, recolocar-se entre os seus.
E com um olhar ainda mais compreensivo, ajuntou:
– Coopere...
Evelina ouviu a observação, de olhos lacrimosos, mas resignou-se.
Afinal, concluiu intimamente, devia ser reconhecida aos que lhe haviam granjeado a
bênção da nova situação. Não lhe cabia interferir em providências, cujo significado era
incapaz de apreender. Adivinhando que o médico se dispunha a sair, solicitou com
humildade se lhe seria permitido ler e, se essa concessão lhe fosse feita, rogaria que a casa
lhe emprestasse algum volume em que pudesse colher ensinamentos de Cristo.
Sensibilizado, o médico lembrou o Novo Testamento e, a breves instantes, a atendente
trouxe o livro mencionado.
Restituída à solidão, Evelina começou a ler o Sermão da Montanha; todavia, a
advertência clínica se lhe intrometia na imaginação, insistentemente. Se estava restaurada,
qual se via, por que simples lembranças lhe imporiam retorno aos padecimentos de que se
acusava liberta? Por quê? Percebia-se na posse de inenarrável euforia. Deliciosa sensação
de leveza lhe mantinha a disposição para a alegria, como nunca sentira em toda a existência.
Tais recursos de equilíbrio orgânico seriam assim tão fáceis de perder?
Retirou a atenção do livro e engolfou-se em novas cogitações... E se reconstituísse em
espírito a presença de Caio e dos pais, com veemência? E se concentrasse os próprios
pensamentos nas dores que havia deixado à retaguarda?
Infelizmente para ela, confiou-se a semelhantes exercícios e, decorridos alguns
minutos, a crise revelou-se, agigantando-se-lhe no corpo em momentos rápidos. Regelavam-
se-lhe as extremidades, enquanto que mantinha a ideia de que um braseiro a requeimava
por dentro, com a dispneia afrontando-lhe o peito. Desencadeados os sintomas, quis reagir,
contrapor conceitos de saúde aos de doença; entretanto, era tarde. O sofrimento ganhou-lhe
as forças e passou a contorcer-se no suplício de que se admitira definitivamente
distanciada...
Atônita, premiu a campainha e a prestimosa atendente se desdobrou na tarefa
assistencial.
O médico reapareceu e administrou sedativos.
Ambos, nem ele nem a enfermeira, lhe endereçaram o mínimo reproche, mas a doente
lhes leu no olhar a convicção de que tudo haviam compreendido. Em silêncio, davam-lhe a
saber que não lhe ignoravam a teimosia e que, com toda a certeza, não se acomodando aos
avisos recebidos, quisera experimentar por si mesma o que vinha a ser um tipo de
mentalização inconveniente.
Conquanto a bondade de que dava mostras, o médico agiu com energia.
Forneceu instruções severas à companheira de serviço, depois da injeção calmante que
ele próprio aplicou à senhora Serpa, em determinada região da cabeça, e recomendou
medidas especiais para que ela dormisse. Aconselhável obrigá-la a repousar mais tempo,
controlada por anestésicos. A doente não podia e nem devia entregar-se a ideias fixas, sob
pena de voltar a sofrer sem necessidade.
Evelina registrou as observações dele, em franca modorra. Depois, abismou-se em
pesado sono, do qual despertou muitas horas após, consciente de que lhe competia cuidar-
se, evitando novo pânico. Mostrou o desejo de alimentar-se e foi imediatamente atendida
com caldo quente e reconfortante, que lhe calhou gostosamente ao paladar, à feição de
néctar.
Refez-se, vigilante. Reconhecia-se sob uma espécie de assistência cuja eficácia e poder
não lhe cabia agora subestimar.
Finda uma semana em descanso absoluto, com entretenimentos de leitura escolhida
pelas autoridades que a cercavam, passou a caminhar no recinto do quarto.
Ao retomar a verticalidade, assinalava em si mesma inequívocas diferenças. Os pés se
lhe patenteavam leves, qual se o corpo houvesse diminuído de peso, intensivamente, e,
sobretudo, no cérebro, as ideias lhe nasciam em torrente, vigorosas e belas, quase a se lhe
materializarem diante dos olhos.
Numa tarde em que se via mais amplamente estimulada a reaver os movimentos
normais, abeirou-se da janela que dava para um pátio enorme e, do alto do terceiro andar
que a hospedava, contemplou dezenas de pessoas que conversavam alegremente, muitas
delas sentadas em torno de irisada fonte que se erigia em centro de florido e extenso jardim.
Aquela sociedade serena atraiu-a.
Tinha sede de convivência, atreita que se achava a austeras disciplinas. À vista disso,
consultou a enfermeira se lhe era concedido descer, travar conhecimento com alguém.
Afinal, sugeriu com otimismo, uma casa de saúde não deixa de assemelhar-se a um navio,
em cujo bojo as criaturas se interessam umas pelas outras, estendendo-se as mãos.
A serviçal achou graça e escorou-a nos braços, para a descida.
Poderia, sim, divertir-se ali. O ambiente lhe faria bem, ao mesmo tempo que lhe seria
lícito granjear uma que outra amizade.
Deixada a sós, fitou ansiosamente os rostos que a rodeavam. Figurou-se-lhe estar no
seio de vasta família de pessoas afins pelo coração, mas quase todas desconhecidas entre si,
qual acontece num balneário.
Todos os circunstantes acusavam-se na posição de convalescentes, adivinhando-se-
lhes, sem dificuldade, os vestígios das enfermidades de que haviam conseguido evadir-se.
Evelina interrogava-se, quanto ao melhor processo de estabelecer contato com alguém,
quando viu um homem, não longe, que a fitava, evidentemente assombrado. Oh! não era
aquele cavalheiro, exatamente Ernesto Fantini, o improvisado amigo das termas? O coração
bateu-lhe agitado e ela estendeu, na direção dele, os dois braços, dando-lhe a certeza de que
o aguardava, de alma aberta.
Fantini, pois era ele mesmo, ergueu-se da poltrona em que se guardava e avançou para
ela, a passos rápidos.
– Evelina!... Dona Evelina!... Estarei realmente vendo a senhora?
– Eu mesma! – respondeu a moça, chorando de alegria.
O recém-chegado não foi estranho à emotividade daquele minuto inesquecível.
Lágrimas lhe rolaram no rosto simpático e sisudo, lágrimas que ele buscava enxugar,
embaraçado, procurando sorrir.
6
Entendimento fraternal
– Há quantos dias aqui?
– Positivamente, não sei – adiantou Ernesto, denotando fome de conversação.
E completou:
– Tenho matutado bastante naquele nosso entendimento de Poços de Caldas,
acalentando sempre a esperança de revê-la...
– Gentileza de sua parte.
Evelina confidenciou a perplexidade em que vivia. Despertara naquela instituição de
saúde que desconhecia de todo, obviamente transferida de casa por imposição da família,
porquanto o único fato de que se recordava com clareza era justamente o desmaio em que
descambara no tope de uma crise das piores que havia atravessado.
E salientou, sorrindo, que tivera a impressão de morrer...
Quanto tempo desacordada? Ignorava.
Retomara-se apenas quando viera a si do sono profundo e sem sonhos, ali mesmo, no
quarto do terceiro andar.
Desde então, andava intrigada com o mistério que a administração fazia, em torno dela
própria, de vez que não obtivera permissão para telefonar ao marido.
Fantini escutava, atencioso, sem articular palavra.
Em derredor, algumas pessoas se mantinham sentadas ou caminhavam com
naturalidade, lendo ou palestrando, aqui e ali.
Rosas, miosótis, jasmins, cravinas, begônias e outras flores, sob árvores recordando
amendoeiras, fícus e magnólias, embalsamavam o ar, extremamente diáfano, com perfume
delicioso.
Alongados os comentários que anotava, curioso, Fantini mostrou estranho brilho no
olhar e concordou com Evelina.
Declarou achar-se em brasas. Revelou que também sofrera esquisita fuga de si mesmo,
com a diferença de que isso lhe ocorrera, logo após a cirurgia, quando voltava para o leito,
segundo acreditava. E registrara aquele mesmo fenômeno de retrospecção, a que se
reportava a senhora Serpa em seus apontamentos confidenciais, no qual se vira
repentinamente devolvido ao pretérito, desde os primeiros momentos de espanto até os
dias primeiros da infância...
Depois, dormira pesadamente.
Incapaz de explicar-se, quanto ao tempo exato em que se demorara obtuso,
inconsciente, tomara acordo de si próprio naquele nosocômio, dez dias antes.
Conservava, igualmente, a mesma estupefação, perante as normas de serviço ali
regulamentadas, porque não conseguira o mínimo contato com a esposa ou a filha, das quais
se despedira na cela hospitalar, horas antes do trabalho operatório a que se submetera.
Achava-se, por isso, inquieto.
Ela, Evelina, experimentara o enigmático desmaio, no círculo doméstico, ao pé dos
entes queridos. Ele, porém, deixara a família em meio de agoniada expectativa, sem que lhe
fosse facultado qualquer recurso de comunicação com os parentes. Reconhecia que o
estabelecimento de saúde a que se abrigava agora não era o mesmo onde se internara para
o tratamento. Chegava a duvidar de que estivesse realmente em São Paulo. O firmamento
parecia-lhe um tanto diverso à noite e a piscina de que se servira continha água tenuíssima,
embora fosse compreensível tivesse aquela casa filtros e engenhos especiais para a
medicação da água comum.
E Ernesto acabou o relatório, indagando:
– A senhora já foi às termas?
– Ainda não.
– Verificará minha surpresa quando for até lá.
– E admite que irei? – retorquiu Evelina com o ar brejeiro de quem se via um tanto mais
consolada.
– Perfeitamente. Já ouvi dizer que a hidroterapia aqui é obrigatória.
Fantini sorriu significativamente e enunciou, carregando cada palavra de recôndita
inquietação:
– Sabe da hipótese mais razoável? Desconfio de que nos achamos, com autorização de
nossos familiares, numa organização psiquiátrica. Nada sei de medicina; no entanto, estou
supondo que os problemas da suprarrenal nos transtornaram a cabeça. Teremos talvez
enlouquecido, entrando pelas raias da absoluta alienação mental e, com certeza, a
segregação terá sido a providência aconselhável...
– Por que pensa assim? – Volveu a senhora Serpa, muito pálida.
– Dona Evelina...
– Não me chame “dona”... Insisto em que somos amigos e agora mais irmãos...
– Seja – aquiesceu Fantini.
E continuou:
– Evelina, você verá os aparelhos engraçados com que nos aplicam raios à cabeça, antes
do banho medicinal. E creia que todos os doentes acusam melhoras gradativas. Desde
anteontem, quando fui à imersão pela primeira vez, sinto-me mais lúcido e mais leve,
sempre mais leve...
– Acaso não se vê em boa posição mental, desde que despertou?
– Não tanto. Aflito por notícias dos meus, voltei a sentir agudas crises. Bastava lembrar
a mulher e a filha, concomitantemente com a intervenção cirúrgica, e via-me, quase que de
imediato, sob asfixia terrível, a desfalecer de sofrimento.
Evelina rememorou a própria experiência, mas silenciou. Sentia-se cada vez mais
inquieta.
– Através do cuidado com que as autoridades me respondem às interpelações –
estendeu-se Fantini –, entendo que se esforçam por manter-nos em harmonia e
tranquilidade. Admito que teremos passado por algum trauma psíquico e que nos achamos
presentemente na reconquista do próprio equilíbrio, o que vamos obtendo, muito a pouco e
pouco. Segundo creio, fomos colocados sob terapêutica puramente mental. Ainda ontem,
renovei a reclamação de sempre, solicitando comunicação com meu pessoal e sabe o que a
enfermeira de plantão me respondeu, perfeitamente senhora de si?
–?
– “Irmão Fantini, esteja tranquilo. Seus familiares estão informados de sua ausência.”
Mas não querem conversar comigo? Nem me chamam ao telefone? – indaguei. E a assistente
respondeu: “Sua senhora e sua filha sabem que não podem aguardar tão cedo a sua
presença em casa”. Porque eu recalcitrasse, exigindo providências, a moça declarou: “por
enquanto isso é tudo o que lhe posso dizer”.
– Que deduz de suas próprias observações?
– Concluo, salvo melhor juízo, que estivemos, claramente sem o sabermos, na condição
de alienados mentais – sugeriu Fantini, quase novamente bem-humorado –, e decerto
emergimos, agora, com muito vagar das trevas psíquicas para o estado normal de
consciência. Os médicos e enfermeiros que nos rodeiam estão plenamente justificados,
quanto ao propósito de resguardar-nos contra quaisquer tipos de preocupação com a vida
exterior. O menor vinco de aflição na tela mental de nossas impressões do momento, assim
penso, nos traria talvez grande prejuízo às emoções e ideias, qual ocorre à pequena
distorção que desfigura a simetria das ondas elétricas.
– É possível.
Expressiva pausa caiu entre os dois.
Após fundo mergulho no mundo de si mesmo, Ernesto rompeu o intervalo:
– Evelina, quando você entrou na crise terrível de que me fala, ter-se-á confessado
antes? Que lhe teria dito o sacerdote? Recebeu dele quaisquer conselhos?
A interlocutora assustou-se, perante a angústia com que semelhantes inquirições eram
moduladas e contraindagou:
– Oh! por quê? Por que, meu amigo? Confessei-me antes do desmaio, sempre que
pude... Mas, por que procura saber? Para chasquear?
Fantini, porém, não brincava. Os olhos dele entremostravam indisfarçável mal-estar.
– Não se amofine. Pergunto por perguntar – devaneou ele, tamborilando os dedos da
mão esquerda sobre o tripé que se erguia à frente –; numa conjuntura perigosa, qual a que
atravessamos, toda a assistência é pouca... Lembrei-me de que você tem uma religião e de
que ainda sou um homem sem fé...
Ernesto ainda não rematara de todo a última frase, quando uma jovem, num grupo de
três que caminhavam a curta distância, se rojou ao chão, como quem fora subitamente
acometida por violento acesso de histeria, gritando em meio de manifesta agonia mental:
– Não!... Não posso mais!... Quero minha casa, quero os meus!... Minha mãe?!... Onde está
minha mãe? Abram as portas!... Bandoleiros! Quem é bastante corajoso aqui para derrubar
comigo estes muros? A polícia!... Chamem a polícia!...
Tratava-se, inquestionavelmente, de um caso de loucura, mas havia tanto sofrimento
naquela voz que os circunstantes mais próximos se levantaram, espantadiços.
Uma senhora, irradiando paciência e bondade, exibindo na blusa as insígnias de
enfermeira da casa, surgiu de chofre, abriu caminho no grupo de curiosos que começava a
adensar-se e inclinou-se, abraçando, maternalmente, a menina revoltada. Sem o mínimo
impulso à repreensão, soergueu-a, notificando com inexcedível brandura:
– Filha, quem lhe disse que não voltará a sua casa? Que não reverá sua mãe? Nossas
portas jazem abertas... Venha comigo!...
– Ah! irmã – suspirou a jovem repentinamente asserenada por aquelas mãos fortes e
boas que a enlaçavam –, perdoe-me!... Perdoe-me! Não tenho razão de queixa, mas estou
com saudades de minha mãe, sinto falta de casa! Há quanto tempo estou aqui, sem qualquer
dos meus? Sei que sou doente, recebendo o benefício da cura, mas por que não tenho
notícias?!...
A assistente ouviu calma e apenas prometeu:
– Você as terá...
Passando-lhe, em seguida, o braço carinhoso acima dos ombros, concluiu:
– Por agora, vamos ao repouso!...
A menina, como quem surpreendera na benfeitora alguma recordação do calor
materno de que sentia exacerbada carência, encostou a loura cabeça ao peito que lhe era
ofertado e retirou-se, soluçando...
Evelina e Ernesto, que haviam acorrido para o auxílio possível, contemplaram o
quadro, entre aflitos e magoados.
Em ambos, a sede de esclarecimento.
Que ilação recolher da súplica chorosa da doentinha atribulada pela ausência do ninho
doméstico? Que hospital era aquele? Um pronto-socorro para alienados mentais? Um
nosocômio destinado à recuperação de desmemoriados?
Num impulso de curiosidade que não mais pôde sopitar, abeirou-se Evelina de uma
senhora simpática que acompanhara a cena, denotando aguda atenção, e cujos cabelos
grisalhos lhe recordavam a cabeleira materna, e assuntou com discrição:
– Desculpe-me, senhora. Não nos conhecemos, mas a aflição em comum nos torna
familiares uns aos outros. A senhora pode dar alguma informação acerca da pobre menina
perturbada?
– Eu? Eu? – redarguiu a interpelada.
E advertiu:
– Minha filha, eu aqui, praticamente, não sei da vida de ninguém.
– Mas escute, por favor. Sabe onde estamos? Em que instituto?
A matrona achegou-se mais para perto de Evelina que, a seu turno, recuou para junto
de Fantini, e cochichou:
– A senhora não sabe?
Ante o assombro indisfarçável da senhora Serpa, dirigiu o olhar penetrante para
Ernesto e aduziu:
– E o senhor?
– Nada sabemos – comunicou Fantini, cortês.
– Pois alguém já me disse que estamos todos mortos, que já não somos habitantes da
Terra...
Fantini sacou o lenço do bolso para enxugar o suor que passou a escorrer-lhe
abundantemente da testa, enquanto Evelina cambaleou, prestes a desfalecer.
A desconhecida estendeu os braços à companheira e recomendou, preocupada:
– Minha filha, contenha-se. Temos aqui dura disciplina. Se mostrar qualquer sinal de
fraqueza ou rebeldia, não sei quando voltará a este pátio...
– Repousemos – interveio Ernesto.
E dando o braço a Evelina, ao passo que a dama prestimosa ajudava a escorá-la,
rumaram os três para largo assento próximo, sob grande fícus, onde passaram a descansar.
7
Informações de Alzira
– Conversemos – convidou a nova amiga.
Receosa, ante os serviços de vigilância, manifestava a intenção de despistar. Dispunha-
se a todo custo demonstrar naturalidade, temendo que alguém pudesse haver assinalado o
choque da companheira.
Fantini compreendeu e esmerou-se a coadjuvá-la.
Pretendendo ignorar a lividez com que a senhora Serpa os ouvia, fez as apresentações
com aparente serenidade.
– Sou Alzira Campos – identificou-se a matrona, recém-chegada ao grupo –, e moro em
São Paulo.
Deu o endereço, reportou-se à família, caracterizou o bairro em que residia e adiantou:
– Desde que caí em casa, trouxeram-me desacordada para este hospital e, pelas contas
que faço, há quase dois meses espero alta.
Estabeleceu-se o diálogo entre ela e Ernesto, enquanto Evelina se reasserenava,
lentamente.
– A senhora já se sente restabelecida?
– Completamente.
– Já travou relações com alguma autoridade que lhe possa orientar com indicações
precisas, quanto ao futuro?
– Sim. A Irmã Letícia, que me assistiu, de início, nos banhos medicinais, avisou-me
anteontem que não está longe o dia em que me será possível decidir, relativamente a
permanecer aqui ou não...
– Que terá ela desejado dizer com esse permanecer aqui ou não?
– Realmente, sabendo-se quanto anseio voltar a casa, muito me encabulei ao receber-
lhe esse apontamento.
– Nada mais indagou?
– Sim. Roguei mais claras instruções, pedi minudências. Ela, contudo, apenas me disse,
gentil: “Você compreenderá melhor, mais tarde”.
– Dona Alzira – sussurrou Ernesto, com firmeza –, a senhora não acredita que estamos
numa organização de saúde mental, num asilo de loucos?
A matrona relanceou o olhar em derredor, à feição de doente amedrontada com a
vigilância de guardas severos, e opinou:
– Se vamos examinar assuntos graves, não nos convém isolar a companheira. Nossa
amiga Evelina pode acelerar o próprio refazimento. Peçamos para ela um tônico adequado.
Conjugando ação à palavra, premiu diminuto botão que se incrustava à mesa e surgiu
um rapaz de serviço, diligenciando saber em que lhes poderia ser útil.
Alzira encomendou refresco para três.
– Qual o sabor?
– Maçã.
Num átimo, o portador trazia três taças com róseo líquido aromatizado em safirina
bandeja.
– Este, a meu ver, é o melhor refrigerante que encontrei aqui, até agora, porque tem
pretensões a sedativo – avisou a dama quando se viram, de novo, a sós.
Evelina sorveu um gole, avidamente, com a impressão de haver bebido um néctar, mais
vaporoso que líquido.
O inesperado reconstituinte revigorava-lhe as forças, ao mesmo tempo em que lhe
reacomodava os pensamentos.
– Estou melhor – notificou de súbito –, graças a Deus!...
Alzira sorriu e confirmou a disposição de palestrar, dando aos amigos todos os
esclarecimentos que se lhe fizessem possíveis.
Fantini segredou:
– Voltando ao assunto, não considera a senhora que nos achamos sob assistência
especializada, do ponto de vista da mente?
– A princípio – aclarou Alzira –, também pensei assim. Notem que nos sentimos aqui de
pensamento mais leve e cabeça sempre mais clara por dentro. As ideias fluem com tanta
ligeireza e espontaneidade que parecem tomar corpo, junto de nós. Concordo em que nos
encontramos num tipo de vida espiritual diferente, muito diferente daquela em que
vivíamos, até a nossa vinda para cá. Apesar disso, porém, não creio estejamos nós num
manicômio. Certamente já sabem que estamos rodeados por vida citadina muito intensa.
Residências, escolas, instituições, templos, indústrias, veículos, entretenimentos públicos...
– Quê?... – disseram Evelina e Ernesto a um só tempo.
– É como lhes digo. Isto aqui é uma cidade relativamente grande. Nada menos de cem
mil habitantes e, ao que dizem, com administração das melhores.
– A senhora já conseguiu alguma experiência lá fora? Já se afastou alguma vez destes
muros? – interrogou Ernesto, a desfazer-se em curiosidade.
– Sim; na semana finda, obtive permissão para visitar uma família que não conhecia,
acompanhando duas amigas. Até agora, essa foi a única vez em que me ausentei do hospital.
E posso afirmar que a excursão foi realmente deliciosa, conquanto o pasmo de que me vi
tomada, ao fim do passeio...
– Que viu e a quem viu? – sondou Ernesto.
– Não se aflijam. Vocês conhecerão tudo a seu tempo. A cidade é linda. Uma espécie de
vale de edifícios, como que talhados em jade, cristal e lápis-lazúli. Arquitetura original,
praças encantadoras recamadas de jardins. Creiam vocês que caminhei, fascinada, de rua
em rua. O Irmão Nicomedes, pois assim se chama o dono da casa, acolheu-nos com muita
gentileza. Apresentou-me a filha Corina, uma bela jovem, com quem para logo simpatizei.
Íntima de uma das amigas que eu seguia e com a qual entraria em combinação sobre
assuntos de serviço, salientou a alegria festiva do lar, falando-nos de esperados júbilos
domésticos. Mostrou-nos os lustres novos, as telas e os vasos soberbos... Tudo seguia num
crescendo de doces surpresas para mim, quando surgiu a bomba... Achávamo-nos no
terraço, admirando um canteiro de jasmins suspensos, quando ouvimos o “Sonho de Amor”,
de Liszt, tocado ao piano. Corina informou-nos de que o pai dedilhava o instrumento com
grande mestria. Enterneci-me de tal modo que manifestei o desejo de ouvi-lo, mais de perto.
A nossa anfitriã conduziu-nos, de imediato, à sala de música. E foi um deslumbramento. O
Irmão Nicomedes, absorto, revelava-se num mundo de alegrias profundas, que se lhe
irradiavam da vida interior, em forma de melodias, das notáveis melodias que se sucediam
umas às outras. Em dado momento, apontei: “Ele parece mergulhado num longo êxtase, toca
como quem ora”, ao que a filha respondeu: “Estamos efetivamente muito felizes; minha
mãe, ao que sabemos, deverá chegar nesta semana”. “Ela está de viagem?” perguntei. Com a
maior naturalidade, a moça esclareceu: “Minha mãe virá da Terra”. Quando ouvi isso,
experimentei horrível choque, como se acabasse de receber uma punhalada no peito.
Faltou-me o ar; entrei, desprevenida, numa terrível crise de angústia... A simples ideia de
que nos situávamos em lugar fora do mundo que sempre conheci me fazia voltar às dores
anginosas que, desde muito tempo, não registrava. Corina me entendeu sem palavras e
trouxe um calmante. Meu estado de perturbação, ao que observei, se comunicou a todo o
ambiente, porque o dono da casa interrompeu-se, de improviso, quando executava um belo
noturno... Via-me prestes a desmaiar. O pequeno grupo congregou atenções junto de mim e
fui levada para o ar livre. Sentaram-me numa poltrona de pedra, semelhante ao mármore.
Tateei com força o respaldar da curiosa cadeira e, ao verificar a dureza do material sob
minhas mãos, comecei a tranquilizar-me... Em seguida, olhei para o céu e vi a lua cheia,
fulgindo com tanta beleza que me asserenei de todo. Percebi a sem-razão do meu susto. E
refleti, de mim para comigo: “Por que não existirá uma cidade, uma vila, um lugarejo
qualquer de nome Terra?” O quadro que me cercava era positivamente um recanto do
mundo... Indiscutivelmente, a esposa de Nicomedes estaria sendo esperada de alguma
aldeia anônima... Ruminava minhas conclusões, quando o chefe do lar indagou,
compadecido: “Há quanto tempo nossa Irmã Alzira está conosco?” “Pouco mais de dois
meses”, participou uma de minhas guardiãs. Nada mais se comentou a meu respeito. A visita
foi encerrada. De retorno ao hospital, as irmãs a quem seguira, por sinal duas excelentes
enfermeiras, não fizeram a mínima referência ao meu sobressalto...
– Não tem trocado ideias com mais ninguém? – objetou Fantini, interessado.
– Apenas durante os banhos, ouço uma que outra companheira. Em cada uma, encontro
a dúvida, pairando... A maioria supõe que nos vemos defrontados por outra vida...
– Nenhuma delas tem certeza absoluta? – interveio a senhora Serpa.
– Unicamente a senhora Tamburini se mostra plenamente convencida de que não mais
nos situamos no domicílio terrestre. Contou-me que vem frequentando um gabinete de
estudos magnéticos, aqui mesmo em nossa organização hospitalar, e sujeitou-se a testes
que lhe deram a confirmação de que não está de posse do corpo físico. Escutei-a com
atenção e ela acabou convidando-me para algumas experiências, mas agradeci a gentileza,
sem aceitá-la. Essas histórias de clarividências e reencarnações não se afinam com a minha fé
católica.
– Ah! a senhora é católica? – interrompeu-a Evelina.
– Oh! sim...
– E, já que respiramos no clima de grande cidade, não temos aqui sacerdotes?
– Sim, temos.
– Já se entendeu com algum deles?
– Estou convidada para visitar uma igreja e farei isso, logo obtenha permissão. Devo,
porém, dizer-lhe que, segundo informações de boa fonte, os padres são muito diferentes
nestas paragens...
– Em que sentido?
– Dizem que são sacerdotes médicos, professores, cientistas e operários e não se
restringem aos serviço da fé. Prestam socorro espiritual, eficiente e positivo, em nome de
Jesus.
Fantini observou que o pátio esvaziava.
Todos os doentes se recolhiam.
Alzira, a nova amiga, apalavrou novo encontro para depois, enquanto cumprimentava
às despedidas. Logo após, Ernesto e Evelina regressaram aos aposentos, na expectativa de
se reverem no dia seguinte.
8
Encontro de cultura
Ernesto Fantini e a senhora Serpa usufruíam horas e horas de confortadora intimidade
no pátio, mantendo interessantes conversações.
Mais de quinze dias haviam transcorrido sobre o primeiro reencontro. Evelina, tanto
quanto o amigo, já se familiarizara com os banhos terapêuticos e ambos já haviam entrado
em contato com a senhora Tamburini, que Alzira indicava como sendo a pessoa mais culta
de suas relações. Essa prestimosa criatura lhes hipotecara a promessa de conduzi-los, tão
logo possível, ao Instituto de Ciências do Espírito, que funcionava ali mesmo, num dos
recantos do grande jardim.
Sem qualquer dúvida, para os dois, as considerações da senhora Tamburini eram, até
então, as mais esclarecedoras que tinham ouvido. No tête-à-tête quase diário, solicitava-lhes
maior reflexão em torno da matéria, a escalonar-se em diversos graus de condensação, e
mais amplo exame das percepções da mente, a se alterarem, conforme os princípios de
relatividade; noutros lances dos repetidos entendimentos, rogava-lhes estudar neles
próprios a extrema leveza de que se viam possuídos, a agilidade do corpo sutil que
envergavam agora e a maneira singular em que exprimiam o pensamento, como se as ideias
se lhes esguichassem do cérebro, em forma de imagens, acima das suas possibilidades
habituais de contensão. Que se detivessem também a perquirir naquele novo clima de vida
as ocorrências telepáticas, a se erigirem, ali, em fenômeno corriqueiro, apesar de não
prescindirem da linguagem articulada. Bastava maior grau de afinidade, entre as pessoas,
para que se entendessem harmoniosamente, em derredor dos assuntos mais complexos,
com o mínimo de palavras.
Acolhiam satisfeitos as judiciosas apreciações da senhora Tamburini, que aceitava
plenamente a convicção de serem criaturas desencarnadas em algum departamento do
Mundo Espiritual; entretanto, não obstante o respeito que lhes mereciam, não logravam
admiti-las por verdade inconteste.
Evelina, sentada no chão relvoso, ao pé de Fantini que se acomodava num pequeno
escabelo, iniciou o diálogo, avaliando, cismarenta:
– De fato, a cada dia me sinto mais leve, sempre mais leve. E, com isso, vou perdendo o
controle de mim mesma. Noto que os meus sentimentos sobem do coração para o cérebro, à
maneira das águas de um manancial profundo ao jorro da fonte... Na cabeça, observo que as
emoções se transfiguram em pensamentos que me escorrem imediatamente para os lábios
em forma de palavras, a partirem de mim, quais as correntes líquidas que se estendem, para
além do nascedouro, terra adiante...
– Bem lembrado. Você definiu com precisão meu próprio estado de espírito.
– Mas, escute, Ernesto – advertiu a moça, tocando a base de árvore robusta –, que vê
aqui?
– Um tronco.
– E ali, no canteiro mais próximo?
– Cravos.
– Seria este o Mundo Espiritual se a matéria e a natureza estão presentes em tudo,
segundo as conhecemos?
– Concordo em que para nós dois, que não possuímos estudos claros, com referência às
nossas atuais condições, tudo isto aqui é absurdo, alucinante, mas...
– Mas?!...
– Sim, nada podemos afiançar, de afogadilho.
– Você está influenciado pelas ideias da Tamburini?
– Não tanto. Faço minhas próprias ilações.
– Ouça, Ernesto. Se estamos mortos para os entes que amamos, por que não nos vieram
ainda buscar os seres queridos de nossas famílias, aqueles que nos precederam na vida
nova? Nossos avós, por exemplo, e os amigos íntimos que todos vimos morrer?!...
– E quem disse a você que eles já não terão vindo?
– Como justificar esta alegação?
– Recorde, Evelina, as lições elementares de casa. Um televisor capta imagens que não
vemos e no-las transmite com absoluta lealdade. Um rádio mirim assinala mensagens que
não escutamos e no-las entrega com a maior clareza. É muito provável estejamos sendo
vistos e ouvidos, sem que tenhamos, até agora, despertado a faculdade precisa de escutar e
enxergar neste plano.
– Ernesto, e as orações? Se somos Espíritos libertos do chamado corpo carnal, alguém
no mundo ter-se-á lembrado de nós em prece... Sua senhora, sua filha, meus pais, meu
esposo...
– Não conhecemos o mecanismo das relações espirituais, nem temos qualquer estudo
de ciências da alma. Quem afirmará que não estaremos ambos sendo sustentados pela força
das orações daqueles que amamos ou daqueles outros... Que ainda nos amem...
– Que quer dizer?
– Que contas já nos foram apresentadas neste hospital? A que e a quem devemos os
cuidados e gentilezas que nos são dispensados, diariamente? Não compramos as nossas
roupas novas e nem as utilidades que usufruímos... Você, tanto quanto eu, já endereçamos a
alguma enfermeira aquela conhecida pergunta: “Quem paga”?
– Já indaguei...
– Qual foi a resposta?
– “Aqueles que vos amam”.
– Quem são esses, no seu modo de ver?
– Em meu caso, meu esposo e meus pais...
– Tenho minhas dúvidas. De início, supus estivéssemos em recuperação num instituto
de saúde mental; entretanto, cada dia que passa nos surpreende em nível mais alto de
consciência, no que diz respeito aos nossos raciocínios. Se nos demorássemos num hospício,
depois de algum colapso nervoso, a nossa restauração não se faria assim tão rápida...
Quebrou-se, porém, o fio da interessante conversação.
A senhora Tamburini abordou-os, à pressa, a fim de avisar que o encontro de cultura
espiritual estava marcado para a noite que se avizinhava e urgia se aprestassem.
Munidos do necessário consentimento, ei-los que se dirigem para a organização, às sete
da noite, junto da amiga, que os recomenda à estima do mentor em serviço, o Irmão Cláudio.
Acolhidos com simpatia no recinto, onde se instalavam vinte e três pessoas, notaram a
presença de enorme globo que, decerto, se prestaria como ponto de partida para valioso
aprendizado.
O orientador principiou a reunião, notificando que a turma estaria em aula dialogada e
que não era, ali, senão um companheiro dos demais, com erros, hipóteses, aproximações e
acertos, em tudo aquilo que viesse a dizer.
– Qual é o tema, professor? – sindicou senhora distinta.
– “Da existência na Terra”.
Em seguida ao esclarecimento, o diretor do grupo teceu preciosos comentários, em
torno das funções do orbe terrestre na economia cósmica, e prosseguiu:
– Reflitamos, meus amigos. Quem de nós, na atualidade de nossos conhecimentos
incompletos, conseguirá deitar sabedoria, no campo da inteligência, tão só pelo testemunho
das impressões pessoais? Não ignoramos que a Terra é um gigantesco engenho no Espaço,
transportando consigo quase três bilhões de pessoas físicas, conduzindo-as pelas vias do
Universo, sem que saibamos, ainda, ao certo, em que base de força se dependura,
informando-nos unicamente de que semelhante colosso realiza, ao redor do Sol, uma órbita
elíptica com a velocidade média de 108.000 quilômetros por hora; enquanto certas regiões
do planeta se encontram aprumadas perante o zênite, em outras, as criaturas se acham de
cabeça para baixo, diante do nadir, sem que ninguém dê por isso; até ontem, qualquer
pessoa asseverava que a matéria densa de uma paisagem se constituía de elementos sólidos
em repouso; hoje, porém, qualquer jovem estudante sabe que essas impressões são
imaginárias, uma vez que a matéria, em toda parte, se dissolve num misto de elétrons,
prótons, nêutrons e dêuterons, encerrando-se em energia e luz; qualquer homem reside
num corpo do qual se faz inquilino, respira e atende aos impositivos da nutrição, sem maior
esforço de sua parte. De que maneira dogmatizar afirmativas sobre causas, processos,
acrisolamento e finalidade de nossa existência terrestre pelos acanhados recursos dos
sentidos comuns?
Estabelecendo-se comprida pausa, aventou um cavalheiro:
– Professor, com estas deduções, o senhor quer dizer...
– Que a vida na Terra deve ser interpretada como um trabalho especial para o Espírito.
Cada qual nasce para determinada tarefa, com possibilidades de evolver para outras,
sempre mais importantes, e que, por isso mesmo, não será possível arrebatar às criaturas os
princípios religiosos de que dispõem, sem prejuízos calamitosos para elas próprias. A
ciência avançará, desvendando segredos do Universo, resolvendo problemas e suscitando
desafios novos à sua capacidade de investigação; no entanto, a fé sustentará o homem nas
realizações e provas que é chamado a atravessar. O Espírito renasce no mundo físico, tantas
vezes quantas se façam necessárias para utilizar-se, aperfeiçoar-se, lucificar-se; e, à medida
que se aprimora, vai percebendo que a existência carnal é um ofício ou missão a
desempenhar, de que dará ele a conta certa ao término da empreitada.
O explicador revelava tamanha altura cultural, através da exposição em andamento,
que raros apartes se fizeram ouvir.
Sem desviar, por isso, a espinha dorsal da preleção que pretendia, indubitavelmente,
preparar os ouvintes para a aceitação pacífica do novo estado espiritual a que se haviam
transferido, comentou:
– Se as leis do Senhor se manifestam claras e magnânimas, em todos os departamentos
da experiência física, estaríamos, acaso, desprezados por Deus, quando ultrapassamos as
fronteiras da morte? Referimo-nos, aterrados, ao aniquilamento das vidas humanas, quando
as guerras varrem a face do planeta; entretanto, que concluir acerca dessas mesmas vidas
humanas, a se extinguirem, metodicamente, nas épocas de paz? Conservar-se-ia o Senhor
indiferente aos nossos destinos, em algum lugar do Universo? Ele, que inspira a graduação
do alimento para a criança e para o adulto, relegaria ao abandono a criatura desencarnada,
quando a criatura vestida de agentes físicos vive e age numa esfera de ação, na qual os
fatores de previsão e proteção oferecem, todos os dias, os mais belos espetáculos de
grandeza?
Ninguém, ali, penetrava, a fundo, o caráter sibilino daquelas alegações. Os
circunstantes, pelo menos em maioria, não se apercebiam de que estavam sendo
adestrados, delicadamente, a fim de admitirem a realidade espiritual, sem barulho.
Surgindo mais ampla quota de silêncio, em virtude de achar-se o professor interessado
em averiguar posições geográficas, no globo à vista, Evelina cobrou ânimo e perguntou:
– Irmão Cláudio, todas as pessoas registrarão sensações iguais entre si, depois da
morte?
– Não. Cada qual de nós é um mundo por si e, em razão disso, cada individualidade,
após largar o carro físico, encontrará emoções, lugares, pessoas, afinidades e oportunidades,
conforme desempenhou o ofício, ou melhor, os deveres que lhe competiam durante a
existência, na Terra. Ninguém pode conhecer o que não estuda, nem reter qualidades que
não adquiriu.
Cláudio entreteceu, ainda, apontamentos ricos de beleza e de lógica e, ao término da
brilhante tertúlia, Ernesto e Evelina estavam reconfortados e felizes, ao modo de viajantes,
sedentos de valores da alma, depois de se abeberarem numa fonte de luz.
9
Irmão Cláudio
Finda a aula e, recomendados pela senhora Tamburini, que não pudera acompanhar a
reunião, Fantini e senhora Serpa se demoraram em companhia do Irmão Cláudio, que os
recebeu carinhosamente na intimidade.
Não residia ali, explicou.
O Instituto desdobrava serviços em todo o prédio, ocupando-lhe as dependências.
Ainda assim, que os amigos se sentissem convidados para alguns dedos de prosa, em casa,
onde, junto da esposa, teria prazer em recebê-los. Já que a senhora Tamburini o indicara,
como sendo um explicador capaz de prestar-lhes informes, em torno de problemas que
reputavam importantes, punha-se-lhes à disposição para atender no que lhe fosse possível,
conquanto se reconhecesse inabilitado a satisfazer como desejaria.
Tudo isso era dito, cortesmente, em recinto enluarado, no jardim da instituição, onde
pequenos grupos de estudantes se espalhavam, aqui e além.
Ladeando mesa fixa, conversava o trio, animadamente. Tão grande e tão manifesta a
familiaridade em pauta, que nada faria supor estivesse integrando um quadro que não fosse
essencialmente terrestre. Em razão disso, não obstante a fisionomia cismativa de Ernesto,
exprimindo incerteza e ansiedade, via-se Evelina senhora de si, absolutamente convencida
de que se achava num recanto autêntico do mundo que sempre lhe fora habitual.
– Compreendo que se proponham a saber algo da nova residência – expôs Irmão
Cláudio, imperturbável –, porquanto a Irmã Celusa Tamburini notificou que estão ambos
despertos no hospital, de alguns dias para cá.
– Sim, é bem isso – confirmou Ernesto –, e somos gratos pela atenção que nos dispensa.
– Professor – interveio a senhora Serpa, confiante –, são tantos os comentários
absurdos que já ouvimos, em nossos poucos dias de contato com o novo meio, que, de
minha parte, estimaria estar informada se dispomos da liberdade de perguntar ao senhor
tudo, tudo o que nos causa espécie...
– Oh! claramente. Indaguem tudo, embora não me veja capaz de a tudo responder.
Convocado a exprimir-se pelo olhar percuciente do amigo, volveu Ernesto à palavra:
– Evelina, quanto me ocorre, tem o espírito dominado por uma questão capital. Isso lhe
parecerá, talvez, uma criancice de doentes mentais, que, às vezes, temos ambos a impressão
de ser, mas temos escutado, em circunstâncias diversas, a afirmativa de que somos mortos
em recuperação num ambiente que não mais pertence aos homens de carne e osso... A
princípio, rimo-nos francamente, categorizando isso à conta de grossa tolice; entretanto, as
opiniões se avolumam. A própria senhora Tamburini está certa de que já cruzamos as
fronteiras da morte, como quem vara uma noite de sono... Que nos diz a isso, professor?
Irmão Cláudio esboçou significativa expressão facial, em que a admiração se misturava
à piedade e obtemperou, sem cerimônia:
– Estarão vocês em condições de acreditar em minha palavra, se lhes ratificar a notícia
de que respiramos em plena Esfera Espiritual?
– Mas, professor... – clamou Evelina, lívida.
– Entendo – certificou-a, sorrindo –, a senhora, muito mais que o nosso Irmão Ernesto,
opõe firme recusa mental à verdade, à vista de suas convicções religiosas, louváveis mas
provisórias, convicções que jazem solidamente estruturadas em seu espírito... Apesar de
tudo, porém, tenho a obrigação de assegurar-lhes que não mais pisamos a Terra que nos era
comum e sim um departamento da vida espiritual.
E ela:
– Meu Deus, como pode ser isso?
– Irmã Evelina, trabalhe com a própria mente. Se não abordássemos a crosta planetária
pelo regaço materno, com o período da infância, logo após, constrangendo-nos a longos
serviços de readaptação, não seria a mesma coisa?
– Mas, a Terra... Eu conheço.
– Puro engano. Classificamos a paisagem terrestre e os pertences que lhe dizem
respeito, submetidos aos conceitos de quantos estiveram nela antes de nós, ocorrendo
análogas circunstâncias no ambiente a que nos acolhemos agora, e onde contamos com
geólogos e geógrafos eméritos... Na realidade, porém, tanto lá quanto aqui, conhecemos, na
essência, muito pouco acerca do meio em que vivemos. Em suma, analisamos e
reanalisamos coisas e princípios que já encontramos feitos...
– Entretanto, no mundo, como entendemos o mundo, guardamos a certeza de
permanecer sobre bases de matéria sólida...
– Irmã Evelina, quem lhe disse que não moramos lá, na arena terrestre, detidos
igualmente num certo grau da escala de impressão do nosso Espírito eterno? Qualquer
aprendiz de ciência elementar, no planeta, não desconhece que a chamada matéria densa
não é senão a energia radiante condensada. Em última análise, chegaremos a saber que a
matéria é luz coagulada, substância divina, que nos sugere a onipresença de Deus.
– O senhor quer afirmar mesmo que não estamos agora domiciliados no plano físico? –
voltou Fantini a manifestar-se.
– Chame-se a este mundo em que existimos, neste momento, “outra vida”, “outro lado”,
“região extrafísica” ou “esfera do Espírito”; estamos num centro de atividade tão material
quanto aquele em que se movimentam os homens, nossos irmãos ainda encarnados,
condicionados ao tipo de impressões que ainda lhes governam, quase que de todo, os
recursos sensoriais. O mundo terrestre é aquilo que o pensamento do homem faz dele. Aqui,
é a mesma coisa. A matéria se resume a energia. Cá e lá, o que se vê é a projeção temporária
de nossas criações mentais...
– Então, morrer?!... Qual a novidade em torno disso? Qual o maior interesse em nos
reconhecermos redivivos?
– As incógnitas da vida exterior, com os desafios delas resultantes, são as mesmas;
entretanto, se a criatura aspira efetivamente a realizar uma tomada de contas encontra
neste novo mundo surpresas, muito fascinantes, no estudo e redescoberta de si mesma.
Somos, cada um de nós, um astro de inteligência a perquirir... E a aperfeiçoar por nós
próprios.
Ernesto sustentou o interrogatório:
– Todos os mortos estarão em todos os lugares da Terra, em condições idênticas às
nossas?
– Impossível. Revejamos, superficialmente, a Humanidade encarnada em si e
perceberemos algo do assunto. Contamos na Terra, de onde somos egressos, milhões de
pessoas sensatas e espiritualmente desequilibradas, sadias e enfermas, instruídas e
ignorantes, relativamente sublimadas e outras tantas ainda excessivamente animalizadas,
confiantes e descrentes, amadurecidas na evolução ou iniciantes nela. Impraticável
categorizá-las, depois da morte, segundo um critério exclusivo. Cada qual estará em seu
grupo e cada grupo em sua comunidade ou faixa de afinidades. Nada fácil padronizar as
situações dos Espíritos desencarnados. Basta recordar que 150.000 pessoas,
aproximadamente, por dia, saem da circulação do ambiente físico, na média flutuante de
100 por minuto, largando afetos, realizações, compromissos, problemas... Ora, todos são
filhos de Deus e recebem de Deus atenções e providências, análogas do ponto de vista do
amor com que somos envolvidos na Criação, embora diversas nos modos múltiplos em que
se exprimem. Razoável reconhecer que por muito se enfeitem, externamente, com as honras
que lhes são prestadas pelos entes queridos, quando se despedem do mundo, os homens,
quaisquer que sejam, chegam aqui como são... Porque hajam desencarnado, o louco não
adquire o juízo, de um dia para outro, e nem o ignorante obtém a sabedoria por osmose.
Depois da morte, somos o que fizemos de nós, na realidade interna, e colocamo-nos em
lugar compatível com as possibilidades de recuperação ou com as oportunidades de serviço
que venhamos a demonstrar.
– Estamos diante de trabalho imenso... – anotou Fantini, espantado.
– Sim; no mundo dos homens, uma criatura não se modifica, de improviso, por haver
atravessado o oceano, de um continente para outro... Acontece o mesmo, nos domínios do
espírito.
– Há tempos – sublinhou Ernesto – li mensagens de entidades desencarnadas,
merecedoras de crédito, relacionando os sofrimentos e conflitos que experimentaram em
regiões inferiores, individualidades, aliás, que me pareceram senhorear largo patrimônio de
recursos intelectuais.
– Nada de admirar. Por imposição de nossas necessidades, nós mesmos estamos
residindo em zona dessas, na vizinhança das criaturas encarnadas.
– Refiro-me às regiões tenebrosas ou infelizes, relativamente às quais ouvi tantas
dissertações e onde se desarvoram tantos irmãos nossos...
– Fantini, precisamos certificar-nos – clareou o mentor – de que esses lugares não são
infelizes, de vez que infortunados são os irmãos que os povoam... Os jardins e pomares que
enriqueçam um manicômio deixarão de ser jardins e pomares porque existam enfermos a
desfrutar-lhes as emanações nutrientes?
– ?...
– Pois é, meu caro, as áreas do espaço, às vezes enormes, ocupadas por legiões de
criaturas padecentes ou desequilibradas, estão circunscritas e policiadas, por maiores que
sejam, funcionando à maneira dos sítios terrestres, utilizados por grandes instituições para
a recuperação dos enfermos da mente. Você não ignora que existem doentes da alma,
consumindo larga faixa da existência nos hospícios acolhedores da Terra. Isso acontece aqui
também. Ladeando o nosso vilarejo, temos vasto território, empregado no asilo a irmãos
desajustados, aos milhares, mantidos e vigiados por muitas organizações de beneficência,
que trabalham no socorro fraternal.
Evelina, que não acreditava no que ouvia, objurgou, insatisfeita:
– Mas... Se nos achamos num plano espiritual, que dizer das construções sólidas,
vinculadas à arquitetura terrestre, com que somos defrontados?
– Nenhum espanto, quando ponderarmos que os edifícios no mundo dos homens
nascem do pensamento que os esculpe e da matéria que obedece aos projetos elaborados.
Aqui verificamos o mesmo processo, diferindo apenas as condições da matéria, que se
evidencia mais intensivamente maleável à influência da ideia dominante. Reflitamos no
progresso da indústria de plásticos, na atualidade do plano físico de onde viemos e
perceberemos, com mais segurança, as possibilidades imensas para as edificações delicadas
e complexas em nosso domicílio de agora. Naturalmente, também aqui estamos
subordinados ainda às técnicas, às vocações, às competências pessoais e às criações
estilísticas, no círculo das conquistas espirituais de cada um. O arquiteto que planeia uma
casa e o obreiro que lhe cumpre as ordens não servirão, de imediato, em lugar do diretor da
manufatura de tecidos e do operário que lhe atende as determinações. Ainda aqui, o escritor
não faz a obra do músico, em ação de improviso. Somos criaturas em evolução, sem
havermos atingido ainda a posição dos gênios polimorfos, apesar de esses gênios existirem
igualmente aqui.
A senhora Serpa não conseguia ocultar a incredulidade.
– Tudo parece inverossímil – asseverou.
– Nada se nos afigura mais inverossímil que a verdade – objetou Irmão Cláudio –; no
entanto, porque prefiramos, por muito tempo, a ilusão em lugar dela, a realidade não deixa
de ser o que é.
O professor discorreu, ainda, por dilatados minutos, referentemente à vida e às
condições da estância em que se demoravam; mas, por fim, Evelina se viu entontecida,
fatigada, provisoriamente inabilitada a mais amplas ilações, e, moça de fé profunda, valeu-se
de um intervalo na conversação, procurando saber:
– Irmão Cláudio, não posso duvidar de suas afirmações, embora me custe a crer que
estamos na posição de pessoas desencarnadas, conforme as suas expressões. Esteja certo de
que não desejo perder, de modo algum, a sua orientação; contudo, gostaria de tomar
contato com um sacerdote, um padre católico, por exemplo... Ficaria feliz se pudesse
entregar-me à prática da confissão, permutar ideias livremente com um diretor da fé que
me formou o caráter, sem qualquer constrangimento da vida social...
O amigo bondoso sorriu compreensivo e esclareceu:
– A Igreja aqui está positivamente renovada, posto que possamos encontrar
representantes de todas as religiões terrestres, aferrados a dogmas, concepções estreitas,
preconceitos e tiranias diversas do fanatismo, nas áreas vizinhas em que se congregam
milhares e milhares de inteligências rebeldes e perturbadas. Aqui, propriamente, os
sacerdotes não a ouviriam em confissão de natureza religiosa. Enviá-la-iam a um dos nossos
institutos de psiquiatria protetora, em que a irmã pode e deve ter a sua ficha para receber a
assistência necessária...
– Para tratamento? – aparteou Fantini.
– Tratamento e auxílio. Uma carteira de identificação para serviços de amparo e
análise, numa casa de supervisão espiritual das que me refiro, é valioso documento para
que não estejamos aqui, nos primeiros tempos de adaptação, num lugar intermediário entre
planos inferiores e superiores, sem a assistência justa. É indispensável nos poupemos, tanto
quanto possível, a dissabores desnecessários.
– Oh! – exclamou Ernesto, entusiasmado –, esse tipo de confissão me interessa... Se
estamos mortos...
– O seu se – obtemperou o mentor bem-humorado – demonstra que você e Evelina me
consideram um contador de histórias inverídicas... Vocês ambos estão desencarnados com
raízes pregadas no chão da Terra; todavia, isto é natural. Aguardemos o tempo.
Em meio de puras vibrações de confiança e simpatia, a senhora Serpa e o amigo
solicitaram o apoio do mentor, a fim de que pudessem realizar contatos com alguma das
instituições psiquiátricas da cidade, ficando estabelecido que atenderiam a isso, tão logo a
administração do hospital o consentisse.
10
Evelina Serpa
Devidamente credenciados, Evelina e Ernesto, após ligeiro trajeto pelas ruas da cidade
que se lhes figurou encantadora, alcançaram o Instituto de Proteção Espiritual.
Acolhidos carinhosamente pelo Instrutor Ribas, dedicado à clínica psiquiátrica, no
departamento assistencial que lhe dizia respeito, sentiam-se tão à vontade, do ponto de
vista do habitual, como se estivessem visitando moderno consultório terrestre. Em tudo,
simplicidade, conforto, segurança. Atendentes à vista. Fichários. Aparelhos diversos para
registro do pensamento.
Depois das apresentações, o instrutor-médico entrou no assunto:
– Estamos informados de que se ficharão aqui em nosso gabinete e podemos começar
por nossa irmã.
Ato contínuo, acenou para um funcionário a quem nomeou por Irmão Telmo, e,
obedecido pelo auxiliar, designou Ernesto a ele, anunciando:
– Ficarão juntos, enquanto ouço a Irmã Evelina...
E para Fantini, bem impressionado:
– Nada tema. Toda conversação em nosso Instituto está subordinada ao encorajamento
e à saúde. Nada de pensamentos negativos. Tão logo termine o entendimento inicial com a
nossa amiga, teremos nosso encontro.
Revestia-se aquele quadro íntimo de tamanha espontaneidade, que os dois recém-
chegados não conseguiram atinar com a verdadeira situação.
Estariam no mundo espiritual ou na Terra mesmo, na Terra que lhes era familiar, em
algum sítio desconhecido, onde se lhes falava do espírito libertado com alguma finalidade
terapêutica? – pensavam os dois. E chegavam quase a admitir que talvez tivessem estado
loucos, achando-se agora em recuperação.
Acalentando semelhantes dúvidas, Evelina acompanhou, docilmente, o médico, e,
chegados a uma sala, mobilada com distinção e singeleza, assentou-se na poltrona que ele
lhe indicou, explicando, atencioso:
– Esteja tranquila. Nosso Instituto se consagra à proteção e ao tratamento de seus
tutelados. Primeiro, a cobertura socorrista, depois, o reajustamento, se necessário. Em
razão disso, teremos tão só um entendimento fraternal. Nada de cerimônias.
Conversaremos simplesmente e todos os seus informes serão gravados para estudos
posteriores. A bem dizer, funciono aqui quase que apenas na condição de introdutor dos
clientes, de vez que os nossos analisados possuem vasta coleção de amigos na retaguarda,
amigos que lhes examinarão as palavras e reações, de modo a saber em que sentido e até
que ponto lhes prestarão o auxílio de que se mostrem carecedores.
Diante de Evelina admirada, a um gesto do mentor grande espelho se fez visível, junto à
poltrona, dando a ideia de que a peça fora ligada ao sistema elétrico, por disposições
especiais.
– Nossa palestra será filmada. Simples recurso para que os seus contatos com a nossa
casa sejam seguidos com segurança, no capítulo da assistência de que não prescindirá em
seus primeiros tempos de vida espiritual. Tranquilize-se, compreendendo, porém, que todas
as suas perguntas e respostas se revestem da maior importância para seu benefício. Por
suas indagações, a autoridade do Instituto identificará a sua posição no conhecimento e, por
suas respostas, saberá o montante de suas necessidades. Conversemos.
Perante aquele olhar, brando e enérgico ao mesmo tempo, reconheceu-se Evelina qual
criança de letras primárias, ante examinador experiente, e, concluindo que não lhe seria
lícito recusar a prova, perguntou com respeitosa coragem:
– Instrutor Ribas, conquanto o senhor tenha feito referências a meus primeiros tempos
de vida espiritual, é verdade que somos Espíritos desencarnados, pessoas que não mais
habitam a Terra?
– Perfeitamente, embora a irmã não consiga ainda certificar-se disso.
– Por que semelhante inadaptação?
– Falta de preparo na vida física. De modo geral, a sua posição de surpresa é comum à
maioria das criaturas terrestres, em virtude da ausência de integração real com as
experiências religiosas a que se afeiçoam.
– Se estamos efetivamente mortos, acredita o senhor que eu, na condição de católica,
devo apresentar ou deveria apresentar um índice mais completo de comunhão com a
verdade espiritual que não estou conseguindo entender?
– Claramente.
– Como assim?
– Se a irmã, durante a sua existência no corpo denso, pensasse firmemente nos ensinos
de Jesus, o divino Mestre que se reergueu do túmulo para a demonstração da vida eterna, se
meditasse na essência dos ofícios religiosos de sua fé, todos eles dirigidos a Deus e, depois
de Deus, aos mortos sublimes, como sejam Nosso Senhor Jesus Cristo, sua Augusta Mãe e
aos Espíritos heroicos que veneramos por santos da vida cristã, decerto não experimentaria
o assombro que, até agora, lhe insensibiliza os centros de força, apesar da elevação e da
delicadeza de suas aspirações.
Viu-se Evelina, de repente, transportada pelas molas mágicas da imaginação, ao seu
velho templo religioso... Recordou as preces, os cânticos, as novenas e os rituais litúrgicos
de que partilhara, como se unicamente ali, naquele gabinete de análise espiritual, pudesse
penetrar-lhes o sentido. Como não se inclinara a interpretá-los, antes, por invocações ao
mundo espiritual? Como não lhes percebera, até aquela hora, a função de canais de
comunicação com as forças divinas?...
Em pensamento, aspirava a rever-se em São Paulo, caminhar para o recinto de sua
devoção religiosa e saudar na própria crença o ponto mais alto da vida, aquele, através do
qual, lograva entregar-se à proteção do Todo-Misericordioso, com as suas dores e alegrias,
aflições e ânsias mais íntimas... Lembrou-se de Jesus, fosse nas esculturas ou nos painéis,
nas pregações e conversações, como sendo um Espírito divino a bater-lhe, debalde, às
portas do coração, tentando ensinar-lhe a viver e a compreender...
E, ao refletir no Mestre de paciência infinita, a cuja magnanimidade recorria em todas
as dificuldades e tribulações, sem se dar ao trabalho de perquirir-lhe as lições e
acompanhar-lhe os exemplos, entrou em crise de lágrimas, qual se a fé cristã, excelsa e
piedosa, se lhe transfigurasse em juiz nos recessos da alma, exprobrando-lhe o
comportamento.
– Oh! Meu Deus!... – inferia em pranto – por que precisei morrer para compreender?
Por que, Senhor? Por quê?!...
Ali comparecia para retratar-se moralmente, falar de si própria, prestar contas;
entretanto, que trazia na própria bagagem senão o vazio de uma existência que lhe parecia
então inútil? Tinha a ideia de que as trancas mentais que a isolavam das realidades eternas
se haviam rompido, de chofre, na leveza de pensamento que passara a desfrutar, e aquele
Jesus que adorara por fora lhe ganhava agora a intimidade do coração e lhe perguntava com
infinita doçura: “Evelina, que fizeste de mim?”
A senhora Serpa, algo descontrolada, chorou convulsivamente diante do Instrutor que
a seguia, paternal.
O generoso amigo deixou que ela mesma estancasse a fonte das lágrimas e, ao vê-la
asserenar-se, falou, comovido:
– A depressão momentânea lhe faz bem. A dor moral nos mede a noção de
responsabilidade. Seu sofrimento de espírito, ao recordar-se do Senhor Jesus, evidencia a
sua confiança nele.
Em tom mais afetuoso, o Instrutor imprimiu novos rumos à análise em andamento,
participando à jovem senhora que, praticamente, a sua ficha de identificação estava pronta,
uma vez que, antes de sua vinda, o estabelecimento de saúde, através do qual ingressara na
cidade, fora consultado sobre a sua procedência e filiação na Terra.
Ainda assim, acrescentou:
– O seu depoimento aqui, porém, será valioso, porquanto, de posse dele, estaremos
mais amplamente informados quanto à nossa tarefa de auxílio.
– Posso saber que auxílio será esse?
– Sim; por seus apontamentos, ser-nos-á possível aquilatar o tipo de amparo que lhe
será ministrado.
– Entretanto, Instrutor, não serei conhecida no mundo espiritual? Não temos, acaso,
todos nós, guardiães na existência terrestre?
– Perfeitamente. E todos aqueles que nos conhecem possuem determinada versão de
nossas experiências para uso deles próprios. Em nossos estudos, todavia, a sua versão
pessoal é muito importante, considerando-se que as suas anotações autobiográficas se lhe
jorrarão da própria consciência. Há que promovermos um autoencontro, no plano das
realidades da alma, para o balanço preciso de nossas necessidades imediatas. Certamente,
em outros lugares, a irmã comparecerá nas citações de muitos companheiros, retratada nas
impressões que lhes terá causado; no entanto, em nosso instituto, recolheremos a sua
projeção individual, intransferível.
Logo após, ante a expectação da cliente espantada, o benfeitor solicitou-lhe
rememorasse, de viva voz, alguns traços da própria história, a começar das reminiscências
mais antigas. Que evitasse um relatório exaustivo e sim procurasse sumariar notícias e
lembranças, tanto quanto possível.
A senhora Serpa narrou, humilde:
– Minhas memórias principiam, confusamente, ao perder meu pai. Era uma criança
tenra, quando escutei os gritos de minha mãe, agarrando-se a mim, a dizer-me que eu
estava órfã... Pouco tempo decorrido, minha mãe deu-me um padrasto bom e amigo.
Realizado o segundo matrimônio, ela e meu segundo pai resolveram abandonar a região em
que morávamos, decerto no intuito de fugir a recordações indesejáveis. Apesar da ternura
do homem que passara a chefiar nossa casa, sentia falta instintiva de meu pai; entretanto, a
respeito dele, as notícias foram para mim sempre escassas. Acerca do seu falecimento, nada
mais pude colher de minha mãe, em matéria de esclarecimento, senão que ele morrera de
modo repentino, quando se achava num passeio... Mais crescida, compreendi que ela
reprimia comentários, em torno do pretérito, esquivando-se a conflitos possíveis com o
marido que, seja dito em louvor da verdade, lhe dedica, até hoje, enternecido afeto... Aos
doze anos de idade, fui internada num educandário católico, no qual me diplomei para o
magistério, sem exercê-lo em tempo algum, porque, desde o baile de formatura, me vi
requestada por dois rapazes, ao mesmo tempo, Túlio Mancini e Caio Serpa. Confesso que,
muito moça e muito irresponsável ainda, deixei que o meu coração balançasse, entre os
dois, prometendo fidelidade a ambos, simultaneamente. Quando admiti minha escolha
definitiva na pessoa de Caio, que veio a ser meu esposo, Túlio tentou o suicídio e, ao vê-lo
salvo, pensei no sacrifício a que se dera por minha causa e, de novo, me inclinei para ele...
Quando me dispunha a requisitar de meu noivo a exoneração de qualquer compromisso,
Túlio matou-se com um tiro no coração... Depois da terrível ocorrência, casei-me... Caio e eu
fomos felizes, por alguns meses, até que vimos frustrado o anseio de possuir um filhinho...
Abortei, logo ao engravidar-me. Em seguida, caí em deperecimento orgânico progressivo.
Talvez em virtude da enfermidade que me acometeu sem pausa, Caio procurou nova
companheira, uma jovem solteira, com quem passou a conviver, simulando vida conjugal na
cidade grande... A vexatória situação em que me achei passou a me arrasar. As humilhações
incessantes a que me vi exposta, dentro de casa, amargaram-me a existência... Desde então,
nada mais tenho a confessar senão sofrimento moral e desânimo de viver, com a
enfermidade de que me vejo em tratamento até hoje...
O Instrutor fitou-a, comovido, e perguntou:
– A irmã chegou a desculpar o esposo infiel e a compadecer-se da rival?
A senhora Serpa refletiu alguns momentos e intercalou com amargura:
– De modo nenhum. Estou numa confissão em que tomo a Jesus por minha testemunha
e não posso mentir. Nunca pude perdoar a meu marido pela deslealdade com que me
afronta e nem tolerar a presença da outra em nosso caminho.
O benfeitor, longe de alterar-se, interpôs, afetuoso:
– Compreendemos os seus sentimentos humanos e podemos encerrar a sessão de hoje.
A irmã tem problemas difíceis a enfrentar e o nosso Instituto verificará até que ponto
conseguirá propiciar-lhe a devida cobertura. Permaneceremos em contato e
prosseguiremos conversando em futuras reuniões.
Evelina retirou-se, sendo substituída por Fantini, cujo exame ia começar.
11
Ernesto Fantini
Chegada a vez de Ernesto, que tomou a poltrona de analisando algo desconcertado, o
Instrutor formulou as explicações anteriores, solicitou-lhe articular perguntas e acendeu o
espelho de gravação.
Fantini, um tanto mais à vontade, iniciou o interrogatório:
– Posso falar, como se estivesse realmente morto, como me fazem crer?
O mentor sorriu, ao escutar aquela frase de materialista inteligente, e objurgou sem
aspereza:
– Fale tudo o que deseje, na convicção de que a teoria do como se está longe agora de
nós. Estamos efetivamente desencarnados, encontrando a nós mesmos...
– Instrutor, se deixei meu corpo na Terra, sem lembrar-me disso, não é o caso de ter
voltado ao ambiente natural do Espírito, com a obrigação de retomar a memória do tempo
em que vivia, na condição de Espírito livre, antes de envergar, entre os homens, o corpo de
que me desfiz? Por que motivo isso não acontece?
– A existência no carro físico, além de ser um estágio para aprendizagem ou cura,
resgate ou tarefa específica, é igualmente um longo mergulho no condicionamento
magnético, em que agimos, no mundo, induzidos ao que nos cabe fazer. O livre-arbítrio, na
esfera da consciência, permanece vivo e intocado, porquanto, em quaisquer posições, a
criatura encarnada é independente para escolher os próprios rumos; no entanto, as demais
potências da alma, no período da encarnação, jazem orientadas na direção desse ou daquele
trabalho, segundo os propósitos que tenha assumido ou que tenha sido constrangida a
assumir.
Isso determina o obscurecimento das memórias pregressas que, aliás, não é senão um
fenômeno temporário, mais ou menos curto ou longo, conforme o grau de evolução que
tenhamos atingido.
– Teríamos sofrido, enquanto no plano físico, uma dilatada hipnose?
– Até certo ponto, sim. A passagem pelo claustro materno, o novo nome escolhido pelos
familiares, os sete anos de semi-inconsciência no ambiente fluídico dos pais, a recapitulação
da meninice, o retorno à juventude e os problemas da madureza, com as responsabilidades
e compromissos consequentes, estruturam em nós – a individualidade eterna – uma
personalidade nova que incorporamos ao nosso patrimônio de experiências. É
compreensível que no espaço de tempo, que se nos sucede, imediatamente à desencarnação,
a memória profunda esteja ainda hermeticamente trancada nos porões do ser. Isso, porém,
é francamente transitório. Gradativamente, reaveremos o domínio de nossas
reminiscências...
– O senhor quer explicar que, nesta cidade, sou ainda Ernesto Fantini, a personalidade
humana com o nome que me foi imposto na existência que deixei, largando o estudo de
minhas memórias anteriores para depois?
– Perfeitamente. Cada um de nós permanece aqui, em núcleos de trabalho e renovação,
na vizinhança do plano físico, sob a mesma ficha de identificação, através da qual éramos
conhecidos nela. Até que nos promovamos por merecimento próprio a círculos mais altos
de sublimação, quedar-nos-emos entre a Espiritualidade superior e o estágio físico,
operando no aperfeiçoamento pessoal, da internação no berço à liberação para a vida
espiritual e regressando da liberdade na vida espiritual à nova segregação no berço.
Entendeu?
– Aqui somos então examinados pelo que fomos, nas ações praticadas, no tempo de
retaguarda mais próximo de nós...
– Isto.
– Somos como éramos, na ficha individual, até...
– Até que as circunstâncias nos indiquem nova imersão no corpo carnal, como recurso
inevitável aos objetivos de burilamento a que todos visamos, nas lides da vida eterna.
– Somos quais éramos, em tudo, até mesmo na sinalização morfológica?
– Não tanto. Quaisquer sinais morfológicos se modificam na pauta das ordenações
mentais. Isso ocorre, habitualmente, na própria Terra dos homens, quando a ciência, sem
maiores dificuldades, modifica os implementos da máquina genésica da criatura, de acordo
com os impulsos psicológicos que a criatura apresente, harmonizando o binômio corpo-
alma. Além disso, não nos será lícito esquecer os serviços multiformes da plástica cirúrgica,
que consegue efetuar prodígios no envoltório carnal das pessoas, quando essas pessoas
mereçam as melhoras com que a ciência terrestre lhes acena, generosa e otimista.
Fantini se mostrava agradavelmente surpreendido pela destreza mental com que o
Instrutor sabia colocar-lhe os esclarecimentos precisos na cabeça faminta de luz.
– Caro amigo – tornou ele à inquirição. – Embora o assunto de que vou tratar já tenha
sido objeto de consideração na palestra que mantive com o Irmão Cláudio, estimaria
recolher-lhe os avisos no mesmo tema... Acontece que ouvi falar de mortos, e de mortos
cultos, que atravessaram anos e anos atormentados em zonas inferiores, antes de
reconquistarem lucidez e tranquilidade; por que não me ocorreu isso, se estou efetivamente
desencarnado e se sou um homem consciente das culpas que carrega?
– O estado de tribulação a que se refere é pertinente ao espírito e não ao lugar. Muitos
de nós, os desencarnados, suportamos tempos difíceis, em paisagens determinadas que nos
refletem as próprias perturbações íntimas. Essa anomalia pode perdurar por muito tempo,
de conformidade com as nossas inclinações e esforço indispensável para que nos aceitemos,
imperfeitos como ainda somos, conquanto não ignoremos a necessidade de burilamento
que as leis da vida nos estabelecem. Somos, por agora, consciências endividadas ou
expoentes de evolução deficitária, ante a vida maior, carregando o dever de podar os nossos
defeitos em trabalho digno e incessante. Enquanto estejamos em desequilíbrio, após a
desencarnação, desequilíbrio que é sempre agravado pela nossa inconformidade ou
rebeldia, orgulho ou desespero, ameaçando a segurança dos outros, permaneceremos
compreensivelmente internados ou segregados em faixas de espaço, junto de quantos
evidenciem perturbações ou conflitos semelhantes aos nossos, à maneira de doentes
mentais, afastados do convívio doméstico para tratamento justo.
– Então, as ideias do castigo de Deus...
– Razoável que as abracemos, até que aprendamos que a divina Providência nos
governa através de leis sábias e imparciais. Cada um de nós pune a si mesmo, nos artigos
dos estatutos excelsos que haja infringido. A Justiça eterna funciona no foro íntimo de cada
criatura, determinando que a responsabilidade seja graduada no tamanho do
conhecimento...
– Instrutor Ribas, como definir, desse modo, o inferno engenhado pelas religiões no
planeta?
– Reportemo-nos a isso com o respeito que o assunto nos reclama, porque para
milhões de almas o desconforto mental a que se entregam, ao lado de outras nas mesmas
condições, é perfeitamente comparável ao sofrimento do inferno teológico, imaginado pelas
crenças humanas. A rigor, porém, e atentos à realidade de que Deus jamais nos abandona, o
inferno deve ser interpretado na categoria de hospício, onde amargamos as consequências
de faltas, no fundo, cometidas contra nós mesmos. Fácil perceber que a área de espaço em
que nos demoremos nessa desoladora situação venha a retratar os quadros mentais
infelizes que criamos e projetamos, ao redor de nós.
– Ouso aprofundar-me em tantas inquirições, por achar-me convencido de que,
positivamente, não mereço a generosidade com que me acolhem... Tenho desfrutado aqui
uma tranquilidade que não esperava, porquanto transporto comigo doloroso problema de
consciência...
– Uma das funções de nosso Instituto é precisamente apoiar os irmãos desencarnados
que surgem aqui, sem qualquer prejuízo na própria integridade moral, mas carreando
consigo complexos de culpa, suscetíveis de arrojá-los em alterações de maior vulto. O
socorro de nossa casa faz-se tanto mais eficaz quanto mais força de fé patenteie a criatura
na possibilidade de superação das fraquezas que nos são peculiares. A sua estrutura
psicológica imunizou-o contra os delírios de muita gente boa e digna que, às vezes, se obriga
a muito tempo nas aflições purgativas dos grandes manicômios a que nos referimos,
sanando os desequilíbrios a que se despenham, em muitos casos por haverem dado
orientação falsa ao amor de que se nutriam.
Entregou-se Ribas a ligeira pausa, sorriu e alegou:
– Ainda assim, apesar do seu índice admirável de resistência, o irmão não está seguro
contra os resultados de seus próprios atos e deve aprestar-se a fim de ser defrontado por
eles.
– Esclareça-me, por favor.
– Queremos dizer que você necessita revestir-se de calma para comparecer diante
daqueles que deixou no mundo, de modo a compreender-se e compreendê-los... Na esfera
física, muitas vezes ouvimos a afirmativa de que é preciso coragem para ver os mortos e
ouvi-los!... A situação aqui não é diferente, em relação aos chamados vivos. De maneira
geral, todos nós, imediatamente depois da desencarnação, somos levados a cursos
preparatórios de entendimento, para ganhar o ânimo indispensável, a fim de rever os vivos
e escutá-los de novo, sem danos para eles e para nós...
Os olhos de Ernesto fizeram-se esbugalhados nas órbitas ao assinalar aquelas
advertências. Lágrimas grossas deslizaram-lhe na face, enquanto que, como se sofresse a
pressão de molas invisíveis, constrangendo-o a lançar para fora de si as ideias de culpa, que
remoía nos recessos da alma, ajoelhou-se à frente do benfeitor, qual criança atemorizada e
gritou:
– Instrutor, segundo creio, meu delito é um só; entretanto, é suficiente para criar
muitos infernos em meu espírito. Matei um amigo, há mais de vinte anos, e nunca mais tive
paz... Sabia-o no encalço de minha esposa com intenções menos dignas, a espreitar-lhe os
passos e atitudes...Via-o sondar minha casa, em minha ausência... Algumas vezes, registrei
frases inconvenientes da parte dele para com aquela que me partilhava o nome... Um dia,
tive a impressão de surpreender nos olhos da companheira certa inclinação afetiva para
com o inimigo de minha tranquilidade e, muito antes que minhas suposições se
confirmassem, aproveitei o momento que se me figurou oportuno e alvejei-o durante uma
caçada a codornas... Atirei para acertar e, satisfeito o meu intento, ocultei-me na folhagem,
até que o outro companheiro, pois éramos três homens no entretenimento, deu alarme ao
esbarrar com o cadáver... A vítima, porém, caíra ao solo em condições tais que a versão de
um acidente senhoreou a convicção de todos os circunstantes... Aterrado perante o meu
crime, qual me achava, aceitei, aliviado, a falsa interpretação... Jamais, no entanto, recuperei
o sossego íntimo... Ele, o homem que eliminei, era casado, tanto quanto eu mesmo, e não
mais tive coragem de procurar-lhe a família, que, para logo, abandonou a região do terrível
acontecido, sequiosa de esquecimento... Esse esquecimento, contudo, não veio para mim... A
morte que provoquei, como que me trouxe o temido desafeto para dentro de casa... Desde a
ocorrência dolorosa, passei a sentir-lhe a presença no lar, à feição de sombra invariável que
me ironiza e me insulta sem que os outros percebam... Em meu círculo doméstico,
reconheço-me algemado a ele, como se o infeliz estivesse mais vivo e mais forte, a cada dia...
Rara a noite em que não lutava com ele em sonho, antes da cirurgia que motivou minha
vinda para cá... Então, acordava, como se houvéssemos travado um duelo mortal, para
continuar a vê-lo, com os olhos da imaginação, compartilhando-me a vida cotidiana!... Oh!
Instrutor Ribas! Instrutor Ribas!... Diga-me, por Deus, se há remédio para mim!... Esperava
encontrar, depois da morte, um lugar de punição onde as potências infernais cobrassem de
mim a falta que ocultei à justiça da Terra; entretanto, estou usufruindo uma proteção
exterior que me agrava o tormento íntimo!... Oh!... Meu amigo, meu amigo, que será então de
mim, que não mais consigo suportar a mim mesmo?
Assim dizendo, Fantini abraçou-se ao mentor, soluçando qual menino desamparado,
suplicando refúgio.
O Instrutor acolheu-o no regaço paternal e consolou-o:
– Asserena-te, meu filho!... Somos espíritos eternos e Deus, nosso Pai, não nos deixará
sem arrimo.
Os olhos de Ribas mostravam lágrimas que não chegavam a cair. Dir-se-ia que ele, o
competente orientador, conhecia por si semelhante martírio da consciência, porque, longe
de repreender, afagou-lhe a cabeça fatigada, que se lhe abrigara sobre os joelhos, e rematou
simplesmente:
– A justiça de Deus não vem sem apoio na misericórdia. Confiemos!...
E sem maior delonga, o amigo espiritual ergueu-se, sensibilizado, apagou o espelho de
serviço e encerrou a sessão.
12
Julgamento e amor
Transcorridas algumas semanas, Ernesto e Evelina achavam-se menos bisonhos no
ambiente.
Conquanto as afeições que prosseguiam entesourando, sentiam-se cada vez mais
vinculados um ao outro. Sensivelmente melhorados, demoravam-se ainda no hospital, mas
domiciliados em pavilhões de convalescentes, cada qual no departamento próprio, de vez
que as referidas construções abrigavam homens e mulheres, em vasta agremiação de lares-
apartamentos para uso individual. Desfrutavam a devida permissão para se movimentarem
na cidade, como quisessem, apenas com a observação de que somente lhes seria lícito
visitar os arredores, onde se acomodavam milhares de Espíritos infelizes, com assistência
adequada.
Efetivamente os dois começavam a experimentar necessidade de serviço disciplinado e
regular, mas, se pediam trabalho ou qualquer atividade no antigo lar terrestre que ainda
não haviam logrado rever, as respostas da autoridade competente eram ainda invariáveis.
Que aguardassem mais tempo, que seria justo atender à imprescindível preparação. À vista
disso, frequentavam bibliotecas, jardins, instituições e entretenimentos diversos, figurando-
se-lhes a vida, ali, uma fase longa de repouso mental em tranquila colônia de férias. Chegara,
porém, o dia em que Evelina realizaria um dos seus maiores anelos naquele ninho de
bênçãos. Fantini prometera conduzi-la, com o preciso consentimento dos benfeitores, a um
templo religioso para assistirem ao ofício da noite que se constituiria de uma pregação sob
o título “Julgamento e Amor”, previamente anunciada. Ambos ardiam em curiosidade,
porquanto ansiavam conhecer de perto como se processavam as criações religiosas,
naquele mundo para eles extremamente belo e novo.
À noitinha, puseram-se em marcha.
A senhora Serpa recordava em caminho as visitas de outro tempo ao santuário de sua
fé e albergava no coração as mais doces reminiscências...
Sensibilizada, monologava intimamente: “Como perdera o convívio dos entes mais
caros e por que se apoiava, ali, no braço de um homem que vira na Terra tão somente uma
vez?”
Em torno, o vento brando carreava o perfume de jardins e praças em flor.
A Lua, a erguer-se do horizonte, era o mesmo espetáculo de majestade e beleza a que se
acostumara no mundo...
De quando em quando, permutava com Fantini uma que outra frase, observando que
outros ranchos simpáticos caminhavam na mesma direção.
Transcorridos alguns minutos de alegre peregrinar, ei-los diante do templo que
primava pela simplicidade, figurando-se enorme pombal edificado com franjas de neve
translúcida, defendido, aqui e ali, por densas faixas de arvoredo.
No interior, tudo espontaneidade e harmonia.
A fila extensa de bancos deixava ver o púlpito à frente, que assumia a feição de enorme
liliácea, esculpida em mármore alvíssimo.
Na parede muito branca, diante da assistência, sob as legendas “Templo da Nova
Revelação”, “Casa Consagrada ao Culto de Nosso Senhor Jesus Cristo”, em vez de quaisquer
símbolos ou esculturas, jazia apenas uma tela, recordando o semblante presumível do
divino Mestre, cujos olhos na excelsa pintura pareciam falar de vida e onipresença.
Sentada com Fantini, lado a lado, a senhora Serpa fitou os rostos, serenos uns e
ansiosos outros, que os cercavam em profundo silêncio, e mergulhou o coração em prece
muda.
Em dado instante, qual se materializasse inesperadamente na tribuna ou até ali fosse
ter, através de porta oculta à observação do auditório, um homem, envergando túnica lirial,
surgiu e saudou a assembleia, reverente.
Logo após, dirigiu-se para o Alto e, em oração comovedora, rogou as bênçãos de Jesus
para os ouvintes expectantes.
De seguida, aproximou-se de grande exemplar do Novo Testamento, aberto sobre
delicado porta-livro, e leu os versículos números 1 a 4, do capítulo sete do Evangelho do
apóstolo Mateus:
“Não julgueis para não serdes julgados, pois, com o critério com que julgardes, sereis
julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também.
Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, sem notares, porém, a trave que está no
teu próprio? Ou, como dirás a teu irmão: ‘Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens
a trave no teu?’.
Terminada a leitura, deteve-se o ministro em dilatada concentração, qual se buscasse
inspiração nas profundezas da própria alma.
Ernesto e Evelina, porém, viram surpresos, que, ao revés, o pensamento dele se
exteriorizava, em forma de larga auréola de luz, que se lhe alteava da cabeça, à maneira de
chama, elevando-se cada vez mais...
A curto espaço de segundos, clarões jorravam de cima, lembrando as chamadas línguas
de fogo do dia de Pentecostes, e o sacerdote simpático iniciou a pregação de que
respigaremos apenas alguns trechos que lhe definem a tessitura de sabedoria e beleza:
– Irmãos, até ontem éramos parte integrante da coletividade humana – a nossa bendita
família da retaguarda – e acreditávamos no poder de julgar-nos uns aos outros.
Encastelados nas ideias religiosas que supúnhamos escravizar a serviço de nossas paixões,
imaginávamos adversários e transviados quantos não pensassem por nossos princípios.
Interpretávamos os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, conforme o nosso
arbítrio, exigindo que o Senhor da Vida se nos fizesse rebaixado servidor, na estrada
sombria e tortuosa que não nos cansávamos de palmilhar; entretanto, despojados hoje do
corpo de matéria mais densa que nos acalentava as ilusões, aprendemos que todos somos
consciências deficitárias perante a Lei. E compreendemos agora, para felicidade nossa, que
apenas o Senhor dispõe de recursos para avaliar-nos consideradamente, porque, em
verdade, ser-nos-á possível tão somente examinar a nós próprios.
O que tenhamos sido no imo do sentimento, enquanto na existência do corpo terrestre,
somos aqui.
Neste pouso de luz que o Senhor nos faculta por moradia temporária, percebemos, sem
qualquer constrangimento de ordem exterior, que todos os petrechos mantenedores das
aparências que nos disfarçavam no mundo, para o desempenho do papel que nos cabia na
ribalta humana, nos foram retirados, a fim de que sejamos aqui, na esfera da realidade
espiritual, quem nos propusemos ser, com tudo o que tenhamos ajuntado em nós de bem ou
de mal, durante o estágio na escola física!...
Muitos de vós outros carregais ainda hábitos e enganos da experiência carnal que,
gradativamente, perdereis por não encontrarem neste meio qualquer significação...
Vossos palácios ou casebres, títulos convencionais ou qualificações pejorativas,
privilégios ou cativeiros, honras familiares ou desconsiderações públicas, vantagens ou
prejuízos de superfície, todos os condicionamentos mentais que vos centralizavam na ideia
de direitos supostos ou imaginárias reclamações, com o abandono dos deveres naturais de
aperfeiçoamento espiritual para a vida eterna, desapareceram no dia em que os homens,
por força da desencarnação, vos impuseram ao nome um atestado de óbito no planeta,
senhoreando-vos os patrimônios e analisando-vos os atos, para, ao depois, muitos deles,
varrer-vos do pensamento, com a falsa convicção de que vos podem desterrar da memória
para sempre!...
Quantos de vós viestes escutar aqui as vozes da verdade para as quais tantas vezes
selastes os ouvidos do corpo terreno?
A divina Providência não pergunta o que fostes, porque nos conhece a cada um em
qualquer tempo... Entretanto, é justo investigue sobre o que fizestes dos tesouros do tempo,
concedido a nós todos em parcelas iguais...
Sábios, em que aplicastes os dotes do conhecimento superior? Ignorantes, onde
colocáveis o talento das horas? Ricos, em que trabalho dignificastes o dinheiro? Irmãos
destituídos de reservas douradas, mas tanta vez detentores de bênçãos maiores, que
realizastes com as oportunidades de paciência e serviço, compreensão e humildade na
esfera da obediência? Jovens, que operastes com a força? Companheiros encanecidos na
marcha do cotidiano, em que boas obras convertestes o clarão de vosso entendimento?
Não vos iludais!...
Qual ocorreu a nós outros, os que habitamos atualmente o plano espiritual desde
longas décadas, trouxestes para cá o que efetuastes de vós mesmos... Aprendestes o que
estudastes, mostrais o que fizestes, entesourais o que distribuístes!...
Em suma, atravessada a Grande Fronteira, somos simplesmente o que somos!
Reconhecereis, assim, no curso do dia a dia, neste domicílio das realidades excelsas,
que todos os disfarces que nos encobriam a individualidade real no mundo se extinguem
naturalmente, expondo-nos à vista a esfera íntima.
Fora das constrições carnais, cada Espírito se revela por si.
Mecanicamente, na residência ancestral da alma, estampamos nas atitudes e palavras
os sentimentos e pensamentos que nos são peculiares, sem que nos seja mais possível
qualquer recurso à simulação.
Patenteando de todo o que somos e o que temos, nos recessos do ser, terá chegado para
cada um de nós a hora do julgamento, porquanto a divina Misericórdia do Senhor nos
oferece ainda, aqui como em tantas outras estâncias da Espiritualidade, esta cidade-lar,
como sendo antecâmara de estudo e serviço, possibilitando-nos valiosos aprestos para a
ascensão à vida maior, em cujas províncias nos aplicaremos à conquista de dons inefáveis,
na continuação da luta bendita pelo aperfeiçoamento próprio.
Quantos, porém, desprezarem as sublimes oportunidades do tempo, no clima de
recomposição a que nos acolhemos agora, decerto que, por eles mesmos, recuarão para os
distritos vizinhos, onde se afinam os agentes da perturbação e das trevas – doentes
voluntários, seviciando-se, em lamentável regime de reciprocidade – até que, fatigados de
rebeldia, roguem à piedade das Leis eternas a preciosa dádiva das reencarnações de
sofrimento regenerativo para o retorno a estes sítios, Deus sabe quando!...
Não aspiramos a dizer com as nossas afirmativas que o renascimento no campo físico
seja sempre cadinho de reparação aos delitos que praticamos, pois milhares de
companheiros, depois de longo e honesto esforço pela própria corrigenda, entre nós, com
larga quota de tempo em nossa colônia de trabalho e reforma, volvem ao corpo carnal,
honrados com tarefas de abnegação e heroísmo obscuro, junto de alguém ou ao lado de
grupos afins, granjeando, em louvável anonimato, concessões e vitórias dignas de apreço
que, apesar de permanecerem quase sempre ignoradas pelos homens, se lhes erigem, aqui,
em passaportes de libertação e acrisolamento para as esferas superiores!...
Ante a pausa que surgiu espontânea nos lábios do orador que se aureolava de intensa
luz, Evelina e Ernesto se entreolharam e, em seguida, através de ligeira mirada sobre os
circunstantes, notaram que dezenas de rostos se banhavam de lágrimas.
– Irmãos – continuou o ministro –, não vos sintais num tribunal de justiça, quando nos
achamos numa casa de fé!... Mãe amorosa dos nossos impulsos de melhoria e sublimação,
diz-nos a fé, neste recanto operoso e tranquilo, que não obstante desencarnados é preciso
reconhecermos que as nossas ocasiões de trabalho e progresso, retificação e aprendizagem
não chegaram a termo!...
Aceitemo-nos quais somos, reconheçamos o montante de nossas dívidas e coloquemos
mãos fiéis no arado do serviço ao próximo, sem olhar para trás... A cidade que nos reúne
está repleta de instituições beneméritas com as portas descerradas ao voluntariado de
quantos queiram colaborar no socorro aos que chegam até nós, em posição de angústia ou
necessidade, todos os dias... Na crosta planetária, onde as criaturas irmãs da retaguarda
travam dura batalha de evolução, entes queridos, ainda encarnados, exigem-nos os mais
entranhados testemunhos de ternura humana, através do concurso espiritual que lhes
possamos administrar, nos domínios da compreensão e do amor, a fim de que continuem a
viver na experiência terrestre que lhes é necessária, tranquilos e felizes, sem nós... Todo um
apostolado de renúncia construtiva, abnegação, carinho e entendimento se descortina para
a maioria de vós outros, no lar terrestre, onde quase todos estais ainda vinculados de
pensamento e coração!...
Além disso, estamos cercados, através de quase todos os flancos, por multidões de
companheiros dementados, a nos pedirem amor e paciência para que se refaçam!... Na arena
física, multiplicávamos apelos a que se pusessem mesas dedicadas aos famintos e se
acumulassem agasalhos para o socorro à nudez... Aqui, somos desafiados à formação e
sustentação do devotamento e da tolerância, para que a harmonia e a compreensão se
estabeleçam na alma sofrida e conturbada dos nossos irmãos tresmalhados nas sombras de
espírito.
Caridade, meus irmãos!... Amor para com o próximo!...
Muitas vezes, o serviço de alguns dias pode endossar-nos valioso empréstimo de
energias e meios para as empresas de recuperação e elevação que nos requisitam o esforço
de muitos anos.
Oremos, suplicando ao Senhor nos inspire, a fim de que venhamos a escolher
decididamente a estrada de purificação em novos e benditos avatares na estância física, ou a
vereda ascendente para a vida maior!...
Calou-se o sacerdote em prece muda.
Do teto pendiam estrias de safirina luz, quais pétalas minúsculas que se desfaziam ao
tocar a cabeça dos presentes, ou desapareciam, de leve, atingindo o chão.
Dir-se-ia que no peito do ministro, em profunda concentração mental, se inflamara uma
estrela de prata translúcida, de cujo centro se irradiava, docemente, toda uma chuva de
raios liriais, inundando o salão.
Fantini estava comovido, mas Evelina, qual sucedia a muitos dos companheiros ali
congregados, não conseguia jugular o pranto que lhe vinha em onda crescente do coração
aos olhos.
A senhora Serpa não saberia explicar a razão da emotividade que lhe assaltara os
recessos do espírito, extremamente sensibilizada como se achava, ignorando se devia
aquelas abençoadas lágrimas às aspirações para o Céu ou às saudades da Terra... Não mais
ouviu as derradeiras palavras do ministro, ao encerrar o ofício da noite. Sabia apenas que se
amparava agora de maneira total no braço do amigo, junto de quem se retirou do recinto,
soluçando...
13
Tarefas novas
Profundamente sensibilizados com as apreciações ouvidas no templo, Evelina e
Ernesto solicitaram admissão à caravana socorrista que o Irmão Cláudio presidia, em visita
semanal à região dos companheiros perturbados e sofredores.
Aquele mesmo amigo do Instituto de Ciências do Espírito atendeu-lhes o pedido com
simpatia e benevolência e, mais alguns dias passados, vamos encontrar os dois amigos
integrando operoso conjunto de serviço, que passava, então, ao número de oito pessoas,
cinco homens e três mulheres, entre as quais se achava a Irmã Celusa Tamburini.
Na peregrinação de fraternidade, a equipe descia na direção de vale extensíssimo,
destinando-se especialmente naquele dia ao culto do Evangelho no lar de Ambrósio e
Priscila, casal que desempenhava o encargo de guardiães, dentre os muitos sediados na
fronteira que assinala os pontos iniciais da zona conflagrada pelas projeções mentais dos
irmãos em desequilíbrio.
Tão logo se lhes descortinou mais ampla faixa da paisagem, Ernesto e Evelina não
conseguiam sopitar as expressões de assombro. Densa névoa, a patentear-se por diversas
tonalidades de cinza, barrava a província em toda a linha divisória. Pela primeira vez,
enxergaram nos céus máquinas voadoras que se dirigiam da cidade para o território
sombrio, semelhantes a grandes borboletas silenciosas refletindo o sol que lhes punha à
mostra as asas, como que estruturadas em pedaços de arco-íris.
Fantini desfechou para logo uma indagação, a que Cláudio respondeu, satisfeito:
– São aparelhos volantes, em que viajam comissões de trabalho, em tarefas de
identificação e assistência.
– A região é tão grande assim?
– Imagine um deserto planetário, com muitas sesmarias de área, marginadas por
cidades ordeiras e prósperas, e terá a exata noção do que nos ocorre aqui.
– E esses viajantes, através do ar, desencarnados como estão, acaso não lograriam
seguir adiante, sem esses engenhos, usando o poder de volitação que lhes é próprio?
O chefe sorriu e ponderou:
– Tudo na vida se rege por leis. Um pássaro terrestre possui asas e foge do campo
incendiado, por não suportar-lhe a cortina de fumo. Um bombeiro, a fim de penetrar numa
casa invadida de fogo, veste roupa defensiva.
E aditou:
– Achamo-nos à frente de perigosa extensão de espaço, habitada por milhares de
criaturas rebeldes que constroem, à custa dos próprios pensamentos em desvario, o
ambiente desolado que se nos impõe à vista. Aí, nesse mundo diferente, somos defrontados
pelas mais estranhas edificações, todas elas caricaturas dos abrigos domésticos de que os
donos abusaram na experiência física, uma verdadeira floresta de fluidos condensados,
retratando as ideias e manias, ambições e caprichos, remorsos e penitências dos moradores.
Temos aí, nessa faixa umbralina, todo um estado anárquico, em que o individualismo se
desborda na hipertrofia da liberdade, sem os constrangimentos benéficos da disciplina, que
nos faz realmente livres pela voluntária sujeição de nossa parte aos dispositivos das Leis de
Deus.
– E por que Deus permite a formação desses quistos gigantescos de perturbação e
desordem? – inquiriu Ernesto, num rasgo de lógica humana.
– Ah! meu amigo – obtemperou o Irmão Cláudio –, sempre que indagamos de nossos
Maiores por que não interfere a divina Providência no campo da inteligência corrompida no
mal, a resposta invariável é que o Criador exige sejam as criaturas deixadas livres para
escolherem o caminho de evolução que melhor lhes pareça, seja uma avenida de estrelas ou
uma vereda de lama. Deus quer que todos os seus filhos tenham a própria individualidade,
creiam nele como possam, conservem as inclinações e gostos mais consentâneos com o seu
modo de ser, trabalhem como e quanto desejem e habitem onde quiserem. Somente exige –
e exige com rigor – que a justiça seja cumprida e respeitada. “A cada um será dado segundo
as suas obras”. Todos receberemos, nas Leis da Vida, o que fizermos, pelo que fizermos,
quanto fizermos e como fizermos. De conformidade com os preceitos divinos, podemos
viver e conviver uns com os outros consoante os padrões de escolha e afetividade que
elejamos; entretanto, em qualquer plano de consciência, do mais inferior ao mais sublime, o
prejuízo ao próximo, a ofensa aos outros, a criminalidade e a ingratidão colhem dolorosos e
inevitáveis reajustes, na pauta dos princípios de causa e efeito que impõem amargas penas
aos infratores. Somos livres para desenvolver as nossas tendências, cultivá-las e aperfeiçoá-
las, mas devemos concordar com os estatutos do bem eterno, cujos artigos e parágrafos
estabelecem sejam feitas e mantidas, no bem de todos e no amparo desinteressado aos
outros, as garantias de nosso próprio bem.
Atingindo a orla escura da esquisita povoação, que começava, aqui e além surgiam
criaturas andrajosas e alheadas.
Não se podia afirmar fossem criaturas análogas aos mendigos, de alguma praça
terrena, em penúria. Esse ou aquele habitante do imenso arrabalde davam a ideia de
pessoas que o orgulho ou a indiferença tornavam espiritualmente distantes. De par com
esse gênero de transeuntes, outros apareciam entremostrando ironia e desprezo na mímica
escarnecedora com que apontavam os viajantes ou a estes se dirigiam. Quase todos exibiam
roupas estranhas, cada qual obedecendo às condições e dignidades a que supunham
pertencer.
A uma pergunta desfechada por Fantini – pois Evelina e ele eram os únicos adventícios
na equipe socorrista – Cláudio observou:
– De modo geral, os milhares de irmãos que se abrigam nestas paragens não se aceitam
como são. Habituaram-se de tal maneira às simulações – aliás, muitas vezes, necessárias –
da experiência física, que se declaram ofendidos pela verdade. Viveram, anos e anos, na
esfera carnal, desfrutando essa ou aquela consideração pelos valores de superfície que
exibiam, enfatuados, e não se conformam com a supressão dos enganos e privilégios
imaginários de que se alimentavam... Narcisos fixados à própria imagem na retaguarda...
Muitos se transferiram diretamente da vida física para a região nebulosa sob nossa vista, e
outros muitos habitaram, logo após a desencarnação, cidades de recuperação e
adestramento, semelhantes à nossa; entretanto, à medida que se evidenciavam, tais quais
ainda são na realidade, absolutamente sem quaisquer simulacros dos muitos de que se
valiam na estância terrestre para encobrirem o “eu” verdadeiro, rebelaram-se contra a luz
do mundo espiritual que nos expõe à mostra a natureza autêntica, uns diante dos outros, e
fugiram de nossas coletividades, asilando-se no vale de sombras geradas por eles mesmos.
Aí, na penumbra criada pela força mental que lhes é própria, com o objetivo de se
esconderem, dão pasto, em maior ou menor grau, às manifestações da paranoia a que todos
se afeiçoam, entregando-se igualmente, em muitos casos, a lastimáveis paixões que
procuram debalde saciar, até as raias da loucura.
– Irmão Cláudio – lembrou Evelina –, o senhor já penetrou nesses sítios, atingindo
algum ponto distanciado da orla?
– Já acompanhei diversas caravanas de fraternidade e socorro, utilizando veículos
diversos, alcançando praças estabelecidas muito longe de nós...
– E o que viu?
– Cidades, vilarejos, povoações e aldeamentos vários, em cujo seio Espíritos de
inteligência cultivada e vigorosa, mas profundamente pervertidos, dominam enormes
comunidades de Espíritos menos hábeis no comando das situações; contudo, tão
pervertidos, por via de regra, quanto eles mesmos.
Cláudio sorriu e ressalvou:
– Quando digo a palavra “pervertidos”, não me proponho a julgar os nossos irmãos
transitoriamente encastelados na sombra. Desejo apenas qualificar, para a compreensão de
quem chegou recentemente da vida física, a posição desses amigos doentes. Aliás,
consideramo-los tão enfermos quanto os nossos irmãos alienados mentais de qualquer
hospício da crosta planetária, credores de nosso melhor carinho. E saibamos, com
entranhado respeito, que numerosos pais e mães, esposos e esposas, filhos e pessoas
amadas de muitos dos companheiros transviados nessas regiões sombrias aí residem, por
mero devotamento, na situação de heróis obscuros, em admiráveis apostolados de amor e
renúncia, a benefício dos que se enrijecem no erro, de modo a reconduzi-los ao reequilíbrio
necessário, preparando-se para as novas reencarnações que os esperam. Esses paladinos da
bondade e da paciência parecem escravizados aos infelizes que amam; no entanto, pela
cátedra do sacrifício da humildade que esposam, acabam conseguindo prodígios pela força
irresistível do exemplo.
A casa singela de Ambrósio já se debuxava a distância, quando Fantini, como quem não
desejava perder o fio dos raciocínios em andamento, inquiriu ainda:
– Irmão Cláudio, são geralmente muitos os que são resgatados pela dedicação afetiva
daqueles que os tutelam nestes lugares?
– Sem dúvida. Todos os dias, chegam às nossas casas de reajuste pequenos ou grandes
magotes dos que aspiram a renovar-se.
– E permanecem na cidade, indefinidamente?
– Isso não. Com poucas variantes, demoram-se conosco apenas o tempo preciso ao
exame da nova reencarnação, em que regressam aos disfarces da carne, sem os quais,
segundo acreditam, não conseguem seguir à frente, nas veredas da regeneração. Entre o
cansaço da erraticidade nas sombras da mente e o terror da luz espiritual que confessam
não suportar sem longa preparação, suplicam o socorro da Providência divina, e a divina
Providência lhes permite a nova internação na armadura física, na qual se reocultam,
lutando pela própria corrigenda e pelo burilamento próprio, encobertos transitoriamente
no engenho carnal, que, pouco a pouco, se desgasta, pondo de novo, à mostra, o bem ou o
mal que fizeram a si mesmos, no período da encarnação. Obtido o empréstimo do novo
corpo, por via de regra junto daqueles que se lhes fizeram cúmplices nos desvarios do
pretérito ou que se lhes afinam com o tipo de débitos e resgates consequentes, esses
candidatos à recapitulação expiatória do passado imploram medidas contra eles mesmos,
seja na escolha de ambiente doméstico em desacordo com os seus ideais ou na formação do
futuro corpo de que farão uso, corpo esse que, muitas vezes, desejam seja bloqueado em
determinadas funções, prevenindo-se prudentemente contra as tendências inferiores que,
em outro tempo, lhes facilitaram a queda.
– Isso quer dizer que pedem certas cassações em desfavor deles mesmos? – interpôs
Fantini com a sua habitual agudeza de raciocínio.
– Sim, cassações. Em vista disso, encontramos na Terra, a cada passo, grandes talentos
frustrados para a direção que anelariam imprimir aos próprios destinos... Inteligências
vigorosas, desde cedo, barradas na obtenção de quaisquer louros acadêmicos e, por essa
razão, detidas em artesanatos obscuros ou encargos singelos, em longa e dolorosa
subalternidade, nos quais entesouram humildade e equilíbrio, paz e moderação; artistas
contrariados nas mais altas aspirações, arrastando defeitos físicos e inibições outras que
lhes obstam temporariamente as manifestações e sob as quais adquirem a reeducação dos
próprios impulsos com o respeito necessário para com os sentimentos do próximo;
mulheres de profunda capacidade afetiva jungidas a corpos que lhes deprimem a
apresentação, aprendendo em terríveis conflitos da alma quanto dói a deserção do lar e o
menosprezo aos compromissos da maternidade; homens hábeis e enérgicos, carregando
frustrações insidiosas e ocultas que lhes proíbem a euforia orgânica, no estágio físico, de
modo a edificarem o espírito de entendimento e caridade, no âmago de si próprios...
A palestra admirável, que valera por aula inesquecível no ânimo dos ouvintes, foi
repentinamente interrompida pelo abraço de Ambrósio e Priscila, que aguardavam os
peregrinos fora das portas.
Saudações, bênçãos, votos, alegrias.
O serviço religioso no lar se revestiu das características do Evangelho em casa, nos
domicílios cristãos da Terra.
Havia, porém, ali, naquela tenda simples, valioso trabalho de extensão do apoio
espiritual aos amigos sofredores da vizinhança.
Vinte e duas entidades, das quais vinte mulheres e dois homens, tinham vindo do
grande nevoeiro próximo, a fim de ouvirem a palavra do Irmão Cláudio, entremostrando
anseios de tranquilidade e transformação.
Desdobraram-se as tarefas nos moldes das reuniões evangélicas do mundo,
suplementadas pela conhecida orientação espírita-cristã, portadora da interpretação
respeitosa, mas livre, dos ensinamentos do Senhor.
Na fase terminal, passes de reconforto e mensagens de esclarecimento, advertência e
ternura.
Ocasiões de serviços repontaram do quadro para Ernesto e Evelina, que, por
designação do orientador, suavizaram os padecimentos de duas das irmãs visitantes, a se
cobrirem de lágrimas, depois dos comentários ouvidos.
Toda a equipe se dedicava a conversação edificante, às despedidas, acompanhando os
frequentadores humildes da sementeira evangélica, fora da casa, quando, emergindo da
névoa, compacto grupo de Espíritos zombeteiros e dementados apareceu.
Explodiram impropérios, entremeados de vaias e ditos chulos.
Prevenindo, especialmente aos dois recrutas, Cláudio avisou:
– Não se aflijam. A ocorrência é normal...
– Patifes! Sumam, sumam daqui!2 – rugiu um dos atacantes de vozeirão descomunal. –
Não queremos sermões, nem encomendamos conselhos.
Amainando a saraivada de insultos, Cláudio tomou a palavra e falou alto, sem alterar-
se:
– Irmãos!... Para aqueles de vós que desejais vida nova com Jesus, somos companheiros
mais íntimos desde agora!... Vinde à verdadeira libertação! Unamo-nos em Cristo!...
– Hipócritas!... – reagiu a mesma voz troante, seguida pelas gargalhadas irônicas de
muitos – nada temos com Jesus!... Mascarados! Vocês todos são iguais a nós, vestidos na
capa de santarrões!... Nós é que podemos chamar vocês para a liberdade!... Larguem as asas
de barro!... Anjos cotós! Cães enfeitados!... Vocês são tão humanos, quanto nós mesmos!... Se
são corajosos, deixem de ser burros velhos no freio da disciplina e venham ser livres como
somos!...
Dito isso, a malta avançou sobre o grupo fraterno, mas Cláudio, evidentemente em
oração, ergueu a destra e um fio de luz cortou o pequeno espaço que isolava os agressores.
embora esmaecidas, acreditamos que as reações dos companheiros menos felizes, internados em regiões
hospitalares ou purgatoriais, devem comparecer no presente relato, de modo a não fugirmos do encontro
com a verdade.
A chusma de infelizes estacou, aterrada. Alguns deles caíram no solo, como que
traumatizados por força incoercível, outros resistiram vomitando injúrias, ao passo que
outros ainda fugiam em disparada... Todavia, dentre aqueles que se mantinham de pé, um
deles, muito jovem, bradou com acento inesquecível:
– Evelina!... Evelina!... É você aqui?... Oh! estou vivo, estamos vivos!... Quero Jesus!
Jesus!... Socorro! Socorro!... Quero Jesus!...
Cláudio aquiesceu, compadecido:
– Vinde!... Vinde!...
O moço arrancou-se da quadrilha, seguiu na direção que Cláudio lhe indicava e, em
poucos momentos, a senhora Serpa, trêmula e consternada, tinha diante de si Túlio Mancini,
aquele mesmo rapaz a quem amara noutro tempo e que, segundo estava convencida, havia
descambado nas trevas do suicídio por sua causa.
14
Novos rumos
A senhora Serpa, extática, não conseguiu articular palavra.
– Evelina!... Evelina!... – gritava o moço como que dementado de júbilo. – Agora!... Agora
que vi você, reconheço que estou vivo... Vivo!...
Cláudio considerou a delicadeza do momento e recomendou medidas para que o rapaz
fosse abrigado no lar de Ambrósio, até que se lhe providenciasse hospitalização
conveniente, de modo a se adaptar ao meio como se impunha.
Depois de passes reconfortantes em que se lhe sossegaram as emoções, Túlio Mancini
foi conduzido à residência dos modestos amigos que o acolheram alegremente, enquanto o
grupo socorrista retornava ao campo doméstico.
Distinto psicólogo, Irmão Cláudio se absteve de quaisquer alusões pessoais, a não ser
nas frases ligeiras com que notificou a Fantini e à senhora Serpa a possibilidade de reverem
o amigo reencontrado no dia seguinte, se o desejassem, prometendo indicar-lhes o
endereço preciso, uma vez que esperava situá-lo em dependência de reajuste e descanso,
tão logo pudesse avistar alguma das autoridades a cuja orientação se lhe vinculava a obra
assistencial.
Ernesto, a seu turno, estimaria ouvir a companheira com respeito ao suicida que lhes
fora objeto de tantos comentários, desde a conversação primeira; no entanto, calava-se,
observando-a francamente aparvalhada e apoiando-se-lhe ao braço em fundo silêncio. Na
cabeça dele, Fantini, pensamentos contraditórios se embaralhavam, sugerindo inquirições
sem resposta.
Não era Túlio um suicida? – perguntava-se. Lera bastante material informativo sobre
suicidas, além da morte, e acreditava estivessem eles comumente agoniados nas duras
penalidades a que se impunham pelo desacato às Leis de Deus.
Por que motivo escapara Mancini às corrigendas a que fazia jus, pervagando à vontade
na província de alienados mentais, entre Espíritos rebeldes e vagabundos?
Homem educado, porém, buscou emudecer considerações e perguntas para
unicamente reverenciar a perplexidade da amiga que, desde muito, lhe ganhara o coração.
Passo a passo e diálogo a diálogo, a equipe dispersou-se entre saudações de
fraternidade e votos de paz.
A sós com Evelina, entretanto, o generoso amigo, para dissipar os pensamentos
constrangedores de que a via cercada, sorriu e falou com excelente humor, infundindo-lhe
calma e otimismo:
– Excelentíssima senhora Serpa, se alguma dúvida nos restava sobre a morte de nossos
corpos físicos que já devem ter desaparecido no bojo da terra, já não nos é possível
doravante qualquer incerteza.
Ela diligenciou, em vão, sorrir. Sentia-se esmagada, abatida...
Ernesto redobrou esforços por chamá-la ao reequilíbrio e, depois de larga série de
alegações construtivas, rematou:
– Acaso, não temos nós solicitado trabalho? Quem dirá não tenhamos sido induzidos,
sem perceber, pelas autoridades daqui, ao achado de hoje? Esse Túlio que lhe foi, um dia,
companheiro de sonhos, será talvez para nós o começo de novos rumos... Uma nova
ocupação, um caminho de acesso à elevação espiritual a que nos cabe dar início... Você
concordará em que o vemos necessitado de tudo... Aquela voz atormentada, aqueles olhos
de doente não nos enganariam. Estamos diante de alguém que solicita atenções imediatas e,
a rigor, sendo pessoa de suas relações, é nosso parente próximo. Somos agora os únicos
familiares que ele possui.
Porque a amiga se referisse, de leve, à dor misturada de assombro que a descoberta lhe
causara, Fantini voltou ao bom humor do princípio e gracejou, de braços abertos:
– Que esperaria de melhor a senhora Serpa, a fim de trabalhar?
Cravou as mãos na cintura, num gesto que lhe era peculiar, e sublinhou:
– Quanto ao mais, minha querida amiga, lembro aqui a declaração filosófica de um
velho companheiro: “Convivei e purificai-vos”. Estamos desencarnados e precisamos, como
nunca, de burilamento moral. Se a presença de Túlio nos chama ao serviço que nos testará a
capacidade de amor ao próximo, não hesitemos abraçar as novas obrigações.
Dias transcorreram até que os dois amigos conseguissem reavistar o rapaz, então
suficientemente melhorado, depois dos cuidados recebidos.
Ernesto fitava-o, curioso, no primeiro tête-à-tête, mas Evelina sentia-se tomada de
surpresa e inquietação.
Aquele era Túlio Mancini, mas um Túlio Mancini diferente. Os olhos penetrantes,
quando pousados nela, denunciavam sentimentos estranhos. Nem a ela, nem a Fantini
passavam despercebidos os propósitos enfermiços a lhe nascerem, ali mesmo, à frente dos
dois, sem que o moço se soubesse intimamente visto e analisado.
Sem qualquer impulso intencional, Ernesto e Evelina permutavam impressões,
telepaticamente, reconhecendo com mais clareza que lhes era possível conversar pelo
idioma do pensamento, de modo espontâneo, principalmente ali, diante de um companheiro
que não lhes comungava o mesmo nível de ideias e emoções. Naquele momento, guardavam
a convicção de ler na alma de Túlio, como num livro aberto.
Registrando as afirmações entusiásticas do rapaz, a imaginar-se vivo no mundo físico
pelo fato de haver reencontrado a ex-noiva, os dois amigos não se animavam a desmanchar-
lhe, de pronto, a ilusão.
– O que mais me espanta é ter aguentado isso aqui, tanto tempo, com o flagelo da
dúvida... – suspirou Mancini, aliviado.
A senhora Serpa diligenciou modificar-lhe o curso dos raciocínios, no evidente intuito
de prepará-lo para a verdade, e interpôs com bondade:
– De minha parte, o que mais lamentei foi a sua atitude, atirando contra você mesmo,
num ato de loucura...
– Eu? Eu?!... Pois você não soube? – redarguiu o moço, admirado. – Nunca fiz isso!...
Tive, é verdade, a fraqueza de pensar, um dia, em matar-me pelo veneno por sua causa, mas,
depois, reconheci que você não me desprezava e eu queria, a todo preço, reconquistar a sua
afeição. Sucede, porém, que no anseio de colocar-me fora de campo, Caio foi procurar-me,
solicitando-me ir com ele ao meu escritório, para consultarmos juntos um livro de Direito
Internacional. Porque alegasse urgência, não vacilei em prestar-lhe o favor. Era um feriado e
as salas próximas jaziam fechadas. A sós comigo, abandonou os assuntos da profissão, e
passou a acusar-me. Disse que a minha covardia, recorrendo ao veneno, abalara o amor que
existia entre ele e você... Tentei justificar-me... Quando me detinha a considerar a pureza de
meu afeto, aquele brutamontes vomitou insultos que não consigo olvidar e, sacando um
revólver, me alvejou no peito... Caí no piso e nada mais vi... Acordei, não sei quando, num
quarto de hospital e, desde então, vivo enfermo e revoltado, buscando reaver a saúde para
ensinar àquele biltre quanto vale a minha vingança...
Um raio que caísse, ali, sobre os três, não teria arrasado o ânimo da senhora Serpa
quanto aquela revelação terrível.
Num átimo, percebeu que Túlio não largara o corpo em arrancada suicida, mas sim
constrangido pela arma daquele a quem desposara no mundo, ao mesmo tempo que Fantini,
estupefato, concluía que o rapaz fora vítima de um crime desconhecido entre os homens; e
fosse porque aflitivos pensamentos de culpa lhe azorragassem o cérebro ou porque notava
no moço o anseio indisfarçado de ficar a sós com Evelina, rogou telepaticamente a ela não
fizesse o mínimo esforço por trazer Mancini à realidade e sim tivesse paciência, até que
pudessem estabelecer planos de socorro ao moço infeliz.
A senhora Serpa entendeu e Ernesto pediu licença para afastar-se.
Queria pensar, repousar...
Ao demais, informou, era natural que os dois tivessem confidências, de coração para
coração.
Mais tarde se reencontrariam.
Embora contrafeita, Evelina aquiesceu.
Quando se voltou, porém, para o ex-noivo, sentiu-se algo desamparada, qual se
renteasse com perigos ocultos.
Mancini convidou-a a pequeno passeio pelo parque da instituição que o albergava e, em
poucos instantes, ei-los, um ao lado do outro, a passo vagaroso, entre sebes floridas e
árvores protetoras, aspirando o vento embalsamado de nutrientes perfumes.
– Evelina – recomeçou ele –, quem é este velho que você está trazendo a tiracolo?
A interpelada mostrou-se penosamente impressionada com a frase agressiva,
pronunciada em tom de sarcasmo; no entanto, respondeu, gentil:
– Trata-se de amigo distinto, a quem devo inestimáveis favores.
Ele chasqueou:
– Compreenda que sofri muito para achar você... Agora, não cedo sua companhia a
homem algum, mesmo que esse homem fosse seu pai...
Ela se dispunha a revidar, solicitando moderação; todavia, Mancini prosseguiu,
eufórico:
– Evelina, tenho um mundo de coisas a saber, a perguntar e a ouvir de você... Não sei,
realmente, se tenho estado louco. Onde estamos? Que fazemos?... Entretanto, prefiro falar
de você e de mim, unicamente de nós dois...
Nessa altura do diálogo, esbarraram com bonito e pequeno caramanchão, totalmente
envolto de trepadeiras.
Túlio, em voz suplicante, implorou fizessem ali uma parada de refazimento. Sentia
dores, quando se movimentava em demasia, alegou. Desde o tiro sofrido, não se reconhecia
o mesmo. Evelina obedeceu maquinalmente impulsionada pela compaixão.
Acomodaram-se ambos num dos bancos existentes no recinto doce e agreste.
O moço relanceou os olhos, por todos os lados, como a certificar-se de que se viam
absolutamente sozinhos e, em seguida, cerrou a única porta da peça, que passou a receber
luz e ar através das altas e estreitas janelas que quase se comunicavam com o teto. Em se
voltando para a companheira, patenteava no semblante tamanha expressão de sensualidade
que a senhora estremeceu.
– Evelina!... Evelina!... – rogou ele, apaixonadamente – você sabe que tenho esperado
por este momento de felicidade, em todos estes anos de angústia... Você e eu, juntos!...
Ela não foi totalmente insensível ao apelo afetivo daquele homem jovem a quem amara,
e enterneceu-se. Relembrou as noites de cochichada ternura, nos parques e nos cinemas,
antes de comprometer-se com Serpa. Sim!... Aquele era Mancini, o rapaz que a
impressionara tanto! A mesma simpatia e a mesma voz de enamorado, acenando-lhe com a
renovação do destino. Instintivamente, rememorou as infidelidades do marido, o escárnio
revestido de belas palavras que recebera dele tantas vezes em casa e, por um momento,
balançou-se-lhe outra vez o coração, entre os dois, qual ocorrera nos tempos do noivado...
Túlio estava, agora, diante dela, prometendo-lhe, de novo, um amor ardente e tranquilo...
Achou-se como que inebriada pelas considerações que ouvia, mas a consciência vigilante
impeliu-a a reajustar-se. Via-se dominada por estranho sentimento que a induzia para ele;
no entanto, ao mesmo tempo, algo em Mancini, naquele instante, lhe impunha medo e certa
repugnância. Não era ele mais o cavalheiro de outra época. Mostrava-se imponderado,
desabrido. Moralmente refeita, Evelina confessava a si mesma que não lhe cabia o direito de
ceder a quaisquer sugestões incompatíveis com a sua dignidade feminina. Casara-se. Devia
ao esposo lealdade e acatamento. A consciência controlou a sensibilidade. A noção dos
compromissos assumidos guardou-lhe a alma nobre e sincera. Impôs-se fortaleza e
serenidade, resolvendo permanecer a cavaleiro de emoções que não se justificavam.
Enquanto semelhantes reflexões lhe escaldavam a cabeça, Mancini continuava:
– Deixe-me recostar em seu colo, um momento só!... Evelina, quero sentir o calor de seu
coracão... Tenho necessidade de você, qual o sedento quando se aproxima da fonte!
Compadeça-se de mim!...
Observando os gestos de desconsideração que ele passara a assumir, a moça tentou
recuar e replicou, valorosa:
– Túlio, contenha-se! Não sabe você que desposei Caio, que tenho a responsabilidade de
um lar?
– Oh! o infame!... Compreendo que a minha ausência longa terá levado você a desposar
aquele canalha, mas isso não fica assim, não...
E, depois de pausar, alguns instantes, prosseguiu para a companheira estarrecida:
– Evelina, sei que você não é indiferente ao que sinto! Vamos!... Diga que me atende!...
Ato contínuo, intentou beijá-la.
Embora possuída de assombro e temor, ela ganhou ânimo e, retrocedendo, reagiu
indignada:
– Túlio, que é isto? Estará você louco?
– Tenho pensado em você, dia e noite... Desde que tomei o balaço daquele patife que
levarei à cadeia, não tenho mais ninguém na imaginação!... Não se compadece você de mim?
O entono comovedor daquela voz feria-lhe fundo a alma; no entanto, a senhora Serpa
objetou, firme:
– Compreendo a sua estima e agradeço a lembrança, mas julga você justo atacar-me
assim, desrespeitosamente, quando já lhe falei que tenho um marido e, por isso mesmo,
contas a prestar?
Mancini silenciou por momentos; em seguida, exibiu nos olhos esgazeados a
perturbação que lhe passou a senhorear os mecanismos da mente, transfigurou o pranto em
escárnio e desfez-se numa gargalhada terrível.
– Um marido!... Um marido, aquele crápula!... – zombou. – O povo de onde venho agora,
o povo da terra da liberdade, tem toda a razão... Entendo, você agora faz parte dos santos,
mas eu não sou mascarado. Sou o que sou, um homem com as funções que me são próprias...
Quero você e isso a escandaliza? Boa piada!... Você é uma mulher como as outras, você não é
melhor do que todas aquelas que conheço na terra da liberdade, apenas com a diferença de
que você se oculta na capa andrajosa da disciplina...
– Sim – suspirou Evelina, magoada –, não nego a minha fragilidade humana... Não
acredita você, porém, que a disciplina é a melhor maneira de educar-nos e dignificar os
nossos sentimentos?
– Ah! Ah! Ah!... – galhofou ele – obediência é a camisa de força em que os hipócritas
metem os simples, mas você mudará de ideia...
A moça agoniada confiava-se à oração muda, implorando socorro aos poderes da Vida
maior.
Enquanto isso, o companheiro avançava, mofando:
– Olhe para dentro de você mesma e verificará seu disfarce... Você é um anjo de pé de
chumbo, igual aos outros macacos fantasiados que andam por aí. Largue mão disso... Todos
somos livres!... Livres filhos da Natureza para fazer o que quisermos!... Proclame a sua
independência se não deseja acabar na senzala dos tartufos da sujeição!...
Mancini investiu para ela e estava prestes a agarrá-la, quando alguém
providencialmente bateu à porta.
Constrangido embora, Túlio refez-se, de imediato, e foi atender.
O mensageiro declinou para logo a sua condição. Tratava-se de auxiliar do Instrutor
Ribas e vinha da parte dele, a fim de conduzir a irmã Evelina Serpa ao Instituto de Proteção
Espiritual, para a solução de assunto urgente.
A senhora respirou aliviada e percebeu que fora ouvida na silenciosa petição e,
enquanto agradecia, em pensamento, o amparo salvador, Túlio, seguido igualmente de
perto pelo emissário, voltou à casa de reajuste, onde foi recolhido à cela especial, destinada
a serviço de segregação e tratamento.
15
Momentos de análise
Atendendo à solicitação de Ernesto e Evelina, que ansiavam por esclarecimento no
embaraço que a presença de Túlio lhes impunha à cabeça, o Instrutor Ribas marcou-lhes
encontro, de que se valeram pontualmente.
No ambiente acolhedor do Instituto, o amigo lhes ouviu pacientemente as arguições.
Que significa a perturbação do rapaz? Como lograriam os dois, notadamente Evelina,
auxiliá-lo corretamente? Ser-lhes-ia lícito rogar ao Instituto alguma informação, quanto às
acusações de Mancini contra Caio Serpa? Estariam ambos capazes de assumir
responsabilidades para ajudar ao moço infeliz?
Após ouvi-los, o orientador repartiu com eles um olhar de brandura e advertiu:
– Vocês já reiteraram diversos pedidos de acesso ao trabalho espiritual; não estranhem
se chegou a hora de começar.
Depois de uma pausa, transformada em sorriso:
– Túlio Mancini é o marco de início da obra redentora que abraçam. Investiguem os
próprios corações, especialmente nossa irmã Evelina, e verifiquem a pena que as
dificuldades dele lhes causam. Onde o amor respira equilíbrio, não há dor de consciência e
não existe dor de consciência sem culpa.
– Oh! Instrutor – clamou a senhora Serpa –, diga, por gentileza, tudo o que devo fazer!
– Falar-lhes-ei como a filhos, porque entre pais e filhos não prevalecem
suscetibilidades...
Mudando de tom:
– Irmã Evelina, que sensações foram as suas, em se vendo a sós com o amigo recém-
visto?
A moça, que formulara o íntimo propósito de arrostar a verdade, fossem quais fossem
as consequências, admitiu:
– Sim, ao rever-me a sós com ele, sem ninguém a observar-nos, como que me detive nas
lembranças do passado, quando supunha haver achado nele o homem de minha preferência.
Senti-me transportada à juventude, e então...
– E então – o mentor benevolente completou a frase reticenciosa – as suas próprias
vibrações lhe encorajaram a agressividade afetiva.
– Entretanto, recordei, às súbitas, os meus compromissos conjugais e contive-me.
– Fez muito bem – contrapesou Ribas –, ainda assim, o seu coração falou sem palavras,
provocando novas sequências do desajuste emocional de que Mancini foi vítima, na
experiência terrestre, em grande parte motivado por suas promessas não cumpridas.
– Oh! Meu Deus!...
– Não se aflija. Somos Espíritos endividados, perante as Leis divinas, e estamos
situados na faixa de expressiva transição, a transição do amor narcisista para o amor
desinteressado. Temos teorias de santificação para o sentimento, mas, na essência, somos,
na prática, simples iniciantes. Na esfera dos pensamentos nobres, assimilamos o influxo dos
planos gloriosos; todavia, no campo dos impulsos inferiores, carregamos ainda o imenso
fardo de desejos deprimentes, que se constituem de vigorosos apelos à retaguarda.
Impressionado, Fantini aparteou:
– Quer dizer que o homem terrestre...
– É um ser de inteligência refinada pelos poderes que adquiriu na caminhada evolutiva
em que se empenha, desde muitos séculos, mas ainda oscilante, de modo geral, entre
animalidade e humanização, conquanto os casos particulares de criaturas que já se
encaminham da humanidade para a angelitude. A maioria de nós outros, os Espíritos
capitulados na escola da Terra, nos achamos em trânsito da poligamia para a monogamia,
com referência à devoção sexual. Decorre daí o impositivo de vigilância sobre nós mesmos,
sabendo-se que o sexo é faculdade criativa, nos domínios do corpo e da alma.
Denotando, porém, o propósito de não se afastar do problema específico de Evelina:
– Compreensível, minha irmã, que você houvesse registrado o fenômeno da atração de
que dá notícia e muitíssimo justa a continência a que se determinou, exortando o raciocínio
claro e responsável a frenar o coração imaturo. Ninguém atingirá o porto da dignidade
espontânea, sem viajar, por longo tempo, nas correntes da vida, aprendendo a manejar o
leme da disciplina. Embora isso, porém, saibamos debitar a nós próprios os erros que
perpetramos, no tocante aos valores afetivos, a fim de saná-los ou resgatá-los em momento
oportuno.
– Devo reconhecer minha dívida para com Mancini, hipotecando-lhe noutro tempo
tantos votos de felicidade que deixei para ele absolutamente vazios... – suspirou a senhora
Serpa, desconsolada.
– Isso mesmo. Túlio terá cometido muitos disparates, até agora; no entanto, a sua
consciência de mulher não se eximirá, com certeza, aos compromissos que lhe cabem no
assunto.
– E de que modo apagar o meu débito?
– Auxiliando-o a limpar as próprias emoções, como se purificam as águas de um poço
barrento.
Diante da inquietude que passou a desassossegar a jovem senhora:
– Nada de precipitação, nem de violência. Forçoso aceitar-nos tais quais somos e facear
os problemas que nos advenham dos próprios desacertos. Não estudamos para chorar. A
irmã está consciente de que cooperou no desastre moral do amigo em análise. Vejamos
serenamente o que lhe será possível fazer agora, de maneira a que se reponha na estrada
certa.
– Pequenina quanto sou, que conseguiria realizar? – suplicou a moça, humilde.
Ribas recorreu a largo móvel em que se adivinhava complicada peça de arquivo e,
sacando uma ficha, explicou que ali jaziam sumariados todos os informes que Evelina
prestara em seu primeiro contato com o Instituto. Em seguida, elucidou que, de posse da
versão doada por ela mesma, acerca dos acontecimentos que lhe haviam atormentado a
existência, ele, Ribas, providenciara a obtenção de conhecimentos complementares, alusivos
à senda que ela escolhera trilhar. Viera, assim, a saber que Mancini efetivamente perdera o
corpo físico pela ação delituosa de Serpa, que lograra ilaquear as autoridades humanas com
um crime perfeito, no qual compusera com habilidade a tese de suicídio. Vítima da
desencarnação prematura, perambulara o rapaz, algum tempo, à feição de sonâmbulo, na
paisagem terrena que lhe servira de fundo à tragédia, sendo, mais tarde, recolhido, ali
mesmo, na cidade de regeneração e refazimento em que lhe pesquisavam agora a situação.
Aí convalescera por alguns meses; no entanto, a paixão que Evelina lhe insuflara
levianamente na alma lhe fixara nela e em torno dela os pensamentos. À vista disso,
tornara-se arredio ao próprio reerguimento, acabando por fugir no rumo do tenebroso
distrito da inteligência desenfreada, onde se relegara, nos últimos anos, a desvarios
diversos. Vinculado à moça que lhe acalentara em vão tantos sonhos de ventura e de afeto,
viciara-se no território da sombra, desconsiderando a própria respeitabilidade. Retornando
àquele pouso de consolação e reequilíbrio, por efeito do reencontro com a criatura que lhe
permanecia na mente por eleita inesquecível, fora agraciado com novo ensejo de
autorreeducação.
A senhora Serpa e Ernesto assinalavam, atônitos, a exposição que primava por lógica
irretorquível.
Às agoniadas inquirições da interessada, quanto ao comportamento que lhe competia
adotar, Ribas aclarou:
– Podemos dizer-lhe, minha irmã, que, por seus méritos indiscutíveis, benfeitores e
amigos de que dispõe na Espiritualidade Maior rogaram aos agentes da divina Justiça não
lhe permitissem a desencarnação sem começar o processo de sua reabilitação espiritual na
Terra mesmo... Assim é que, através da onda mental dos remorsos que lhe ficaram, à face do
suposto suicídio de Mancini, você atraiu para o próprio claustro materno o Espírito sofredor
de um irmão suicida, sentenciado pela própria consciência a experimentar a provação de
um corpo frustrado, de modo a valorizar com mais respeito o divino empréstimo da
existência física. Como é fácil de ver, as angústias da maternidade malograda lhe foram
extremamente úteis na Terra, por lhe haverem proporcionado ensejo a preciosas
reparações.
– Entretanto – mencionou Fantini –, informamo-nos de que Mancini não caiu por si
próprio e sim pela arma do rival.
– Apesar disso – consertou Ribas –, não olvidemos que o moço empreendeu, antes, a
lamentável tentativa, impulsionado pela ação da própria Evelina, dando a Serpa o molde do
crime.
Esboçando sorriso benevolente:
– Estamos examinando, entre amigos, a lei de causa e efeito. Compreendamos que a
justiça funciona em nós mesmos.
– Mas...
Fantini, admirado, iniciou debalde a tréplica vacilante. Ignorava como entretecer novas
dúvidas, ante a conceituação racional que o mentor tranquilamente patenteava.
Foi o próprio Ribas quem retomou o fio das justificações, anotando:
– Somos mecanicamente impelidos para pessoas e circunstâncias que se afinem
conosco ou com os nossos problemas. Suscitando ideias de autodestruição na mente de um
homem cujas atenções granjeara, Evelina transportou-se da irreflexão para o
arrependimento, depois de verificar-lhe a derrocada moral numa empresa gorada de
suicídio, procurada conscientemente. Apenas aí, coagida pela compunção, nossa irmã
percebeu que agira em prejuízo do rapaz de quem obtivera integral confiança, lesando, em
consequência, a si própria. Lastimando Mancini, deplorava a si mesma e, nesse estado de
emoções negativas, fez-se vaso de uma entidade nas condições em que supunha haver
precipitado o moço menos feliz. À vista disso, converteu-se automaticamente em
desventurada mãe de um companheiro suicida, no anseio de expiar a própria falta.
Endereçando afetuoso olhar para a senhora Serpa:
– Enunciando inconscientemente o desejo de exculpar-se, o seu propósito alcançou o
coração de amigos e benfeitores, no mundo espiritual, que lhe advogaram a concessão da
bênção a que já nos referimos. Você padeceu, pois, antes da desencarnação, a pena de que se
julgava merecedora, sequiosa que se achava de propiciar a Mancini a supressão do mal que
lhe havia causado. Você não pagou em Túlio o débito em que se viu incursa, mas resgatou
essa conta, junto a suicida anônimo, tão filho de Deus quanto nós, redimindo-se no foro
íntimo, segundo a lei que rege a tranquilidade de consciência. E o irmão desconhecido, ao
mesmo tempo que amargou a provação do berço prematuramente inutilizado, começou a
ressarcir a dívida que assumira para consigo mesmo, aprendendo quanto custa e como
custa o tesouro de um corpo físico, utensílio de aperfeiçoamento e progresso.
Ernesto e Evelina escutavam, surpresos.
– Cumpre-se a eterna Justiça no mundo de cada um de nós – rematou o professor. –
Deus não nos condena nem nos absolve. O Amor universal está sempre pronto a soerguer-
nos, instruir-nos, burilar-nos, elevar-nos, santificar-nos. O destino é a soma de nossos
próprios atos, com resultados certos. Devemos sempre a nós mesmos as situações em que
se nos enquadra a existência, porquanto recolhemos da vida exatamente o que lhe damos de
nós.
– E agora? – interrogou Evelina, espantada.
– As circunstâncias trouxeram-lhe o credor ao ambiente pessoal, porque você, minha
irmã, está felizmente em posição de prosseguir no trabalho restaurador.
– Que fazer, meu amigo?
– Se você está realmente disposta a renovar o caminho, chegou o momento de ajudar
Mancini a desvencilhar-se das ideias enfermiças que a sua conduta de moça menos
responsável lhe instalou na cabeça, tornando-se presentemente para ele em devotada
preceptora, a reformular-lhe a visão da vida, no plano espiritual.
– Não posso desempenhar, junto dele, o papel de companheira...
Ribas acarinhou-lhe a mão com ternura paterna e apontou:
– Se os erros da mulher não foram perpetrados, na categoria de parceira da vida sexual
de um homem, ela não tem a obrigação de ser-lhe a esposa, tão só porque lhe deva essa ou
aquela indenização no reino do Espírito, sucedendo o mesmo ao homem, referentemente à
mulher. Não obstante esse princípio, a lei de amor deve efetivar-se, independentemente das
formas em que o amor se expresse.
E num tom de enternecimento profundo:
– Aqui mesmo, você pode regenerar o campo emotivo de Túlio e sublimar os seus
próprios sentimentos em relação a ele, amparando-o e instruindo-o no grau de mentora
maternal. Quase sempre, a recuperação de alguém é uma planta sublime da alma que
somente vinga porque a abnegação de outro alguém se dispõe a adubá-la com a proteção da
ternura e com o orvalho das lágrimas...
Identificava-se Evelina banhada de esperança; Fantini mergulhou em alta meditação
acerca das realidades eternas e Ribas, pressionado pelo horário que lhe convocava a
presença em outros setores, prometeu continuar a esclarecedora conversação, logo lhes
surgisse a desejada oportunidade, em momentos seguintes.
16
Trabalho renovador
Vida nova começou para Evelina e Ernesto, especialmente para Evelina.
Indispensável auxiliar Túlio, abençoá-lo, renová-lo.
Para isso, os dois amigos se matricularam em colégio de estudos preparatórios de mais
altas ciências do espírito. Radiantes de esperança e entusiasmo, adquiriam conhecimentos
em torno de evangelização, reforma íntima, sintonia mental, afeição, agressividade,
autocontrole, obsessão, reencarnação.
A fim de conversar construtivamente com aquele que se lhe extraviara à conta pessoal,
a senhora Serpa munia-se de instruções com que lhe pudesse ganhar o raciocínio.
Competia-lhe o esforço mais grave, desfazer-lhe na mente o quisto de ilusões que ela
própria criara. Fantini, contudo, que se compadecera profundamente do rapaz menos feliz,
de acordo com avisos do Instituto de Proteção, poderia acompanhá-la a pequena distância,
com a obrigação de intervir quando necessário.
No dia marcado para início da tarefa, a subdividir-se em visitas de esclarecimento e
enfermagem três vezes por semana, Ribas seguiu em pessoa os dois obreiros para o refúgio
de saúde mental em que os novos deveres se lhes impunham.
Integrando diminuta comunidade de enfermos da alma, o jovem Mancini se achava
recluso em solitária dependência que o Instrutor informou estar erguida à base de material
isolante contra o impacto de vibrações suscetíveis de agravar-lhe a sede de companhias
menos recomendáveis.
O orientador apresentou ambos os companheiros às autoridades e auxiliares do pouso
de reajuste e, tanto Evelina quanto Ernesto, sob o beneplácito da simpatia geral, puseram
mãos à obra.
Túlio acolheu, encantado, a presença da moça e, de começo, reafirmava-lhe os
protestos de devoção afetiva em ditirambos de lealdade e ternura.
A senhora Serpa, no entanto, redobrou cautelas emolduradas de carinho, suplicando a
inspiração da vida maior, para não falhar na missão que abraçara.
Os diálogos terapêuticos prosseguiam, pontualmente. Apesar disso, Mancini não se
desfixava da paixão que o absorvia, lembrando um barco chumbado ao solo, incapaz de
afastar-se do cais.
Principiasse Evelina a preparar clima adequado às lições e ele choramingava, à maneira
de criança doente. Declarava-se indisposto e inabilitado para o estudo, desconsiderado,
ofendido nos brios próprios. Asseverava-se infenso a qualquer ponderação filosófica,
alegando não sentir inclinação para assuntos de fé. Insistia em reconhecer-se unicamente
um homem-homem, na definição dele mesmo, e, nessa condição, não queria uma enfermeira
ou preceptora, mesmo solícita quanto a moça se revelava, e sim uma companheira, a mulher
dos seus sonhos.
Evelina ouvia pacientemente os remoques e lamentações incessantes, aparando-lhe os
golpes e podando-lhe as impressões destrutivas, sempre assistida por Ernesto, que lhe
supervisionava os esforços com generosa atenção. Imbuída das responsabilidades que lhe
assinalavam agora a vida e sendo criatura profundamente emotiva, a senhora Serpa
concentrava-se, de modo constante, no esposo, nele investindo toda a carga de seus
potenciais afetivos. Para sentir-se na posição de tutora maternal de Mancini, experimentava
a necessidade de ser mais entranhadamente a mulher de Caio. Por essa razão, mentalizava-
lhe a imagem, a cada passo, endereçando-lhe em silêncio os seus mais belos pensamentos
de amor. É verdade que Serpa não lhe havia sido o consorte ideal. Além disso, sabia-o agora
homicida, com refinados recursos de inteligência para ocultar-se. Evelina, porém, humana
quanto qualquer ser humano, ponderava, de si para consigo, que ele se fizera criminoso por
amá-la. Eliminara a existência de Túlio para disputar-lhe o coração, em agoniado lance
afetivo. Aspirava a revê-lo em pessoa, haurir-lhe o calor da presença, a fim de revigorar-se
para os embates morais a que se confiava; entretanto, por mais solicitassem permissão para
visitar a família terrena, Fantini e ela obtinham regularmente a mesma resposta dos
mentores: “Muito cedo”.
Reconfortavam-se, por isso, com estudo e trabalho.
De vez em vez, o tête-à-tête entre ambos. As confidências.
Ernesto falava enternecidamente da esposa Elisa e da filha Celina. Sensibilizado,
entretecia no mágico painel da saudade a imagem das duas por espelhos cristalinos de
amor, em que se comprazia mirar-se, conquanto a filha o tratasse, muitas vezes, com
rebeldia cruel... Decerto que a viúva e a jovem não arrostavam dificuldades materiais de
vulto maior. Legara-lhes renda expressiva. Boa casa. Algum dinheiro em mãos honestas a
fornecer-lhes pensão sólida e os seguros em que montara a defensiva doméstica.
Mas... E a ausência? Indagava-se, constantemente, junto da amiga que se lhe
transformara em irmã de todas as horas. A ausência, a distância!...
Perdiam-se os dois em conjeturas, prelibando alegrias de reencontro. Achavam-se
suficientemente informados de que, entre eles e os amados do mundo, se levantava agora o
muro das vibrações diferentes. Em vista disso mesmo, não mais lhes seria possível retomar-
lhes a atenção como quem volta de uma viagem. Competia-lhes a obrigação da
conformidade, perante quaisquer transformações a que se lançassem. Nesse sentido, até ali,
haviam registrado as mais diversas narrações de mortos que procediam da Terra,
desacoroçoados e tristes, ante a impossibilidade de serem vistos, ouvidos, assinalados,
tocados pelos parentes. Muitos voltavam consolados e esperançosos, como que libertos de
laços e algemas que lhes fossem pesados aos corações, mas outros muitos regressavam
desencantados e sorumbáticos, evidenciando pouca disposição para conversar. Referiam-se
a amigos e a mudanças radicais na vida caseira, mencionavam desastres e falências na
ordem afetiva de almas inolvidáveis. Eles dois, porém, se identificavam otimistas,
confiantes. Evelina entusiasmava-se, derramando-se em nobres impressões, diante de
Ernesto, atento. Caio, na opinião dela, caíra em deslizes; todavia, reabilitara-se-lhe no
conceito de esposa pelo alto gabarito de ternura e abnegação a que se elevara, durante os
dias últimos da enfermidade que lhe fora fatal ao corpo físico. Em verdade, podia ter sido
desleal, durante algum tempo, lá isso podia. Era um homem com as exigências naturais da
vida comum e obviamente se distraía, enquanto lhe aguardava a cura e o refazimento; mas à
frente da morte, diante da longa separação!... Modificara-se, parecia haver recuperado a
condição do noivo, amoroso, terno... E Evelina, ao contemplá-lo com os olhos da imaginação,
supunha-o agoniado e infeliz, no anseio de livrar-se da carne, a fim de reacolhê-la nos
braços. Antecipava opiniões, enquanto Fantini lhe guardava, com interesse, a doce
expectativa. Solenizando alegações, asseverava que Serpa cometera até mesmo a loucura de
eliminar a presença de Túlio, no intuito de desposá-la. Fora isso terrível calamidade, fora.
No fundo, porém, Evelina mostrava traços inequívocos da vaidade de sentir-se querida.
Declarava, resoluta, que tal qual se esforçava por Mancini, desvelar-se-ia, mais tarde, por
Serpa. Esmerar-se-ia em ajudá-lo em qualquer reparação que se fizesse precisa.
Ernesto volvia, então, a biografar-se, contando histórias do lar. Amava a esposa,
entranhadamente, e confessava que praticara muitos disparates, quando mais moço, de
maneira a preservar a tranquilidade doméstica. E a filha? Celina era uma bênção que lhe
acalentara o coração na madureza. Sempre terna, compreensiva, devotada. Sonhara para ela
um marido bom, amigo; no entanto, deixara-a aos vinte e dois anos de idade sem casamento
à vista. Conquanto a dor de pai, distanciado de casa, depunha na filha a maior confiança. Não
lhe temia o futuro. Além de provida com mesada apreciável, lecionava Inglês com mestria.
Ganhava dinheiro e sabia guardar.
Mantinham-se, desse modo, sucessivas conversações entre os dois. Sentimentais.
Saudosistas.
Passados seis meses de atenção e doutrinação, a benefício de Túlio, Ribas veio
examiná-lo em pessoa, segundo promessa havida.
Após verificar a pontualidade e a eficiência de Evelina, através de anotações
referendadas pelas autoridades orientadoras da casa, penetrou o aposento do enfermo,
categorizado para ele como médico em acurada inspeção. Ao primeiro olhar, porém,
reconheceu que Mancini apresentava escasso proveito com as lições recebidas.
Apático, denunciava na mente uma ideia central: Evelina. E com Evelina no miolo das
mais profundas cogitações, vinham as ideias-satélites: o anseio de transformá-la em objeto
de posse única, o tiro de Caio, o desejo de vingança e as escuras alusões da autopiedade.
Ribas não descobria a mais ligeira fresta, naquele coração pesado de angústia, para
filtrar um só raio de otimismo e esperança.
Às primeiras manifestações do inquérito afetivo, respondeu ao Instrutor, com a tristeza
de um doente que se sabe sem cura:
– Qual, doutor, sem Evelina comigo, nada consigo entender. Se ouço Evangelho, penso
que ela – ela só – é o anjo capaz de salvar-me; se anoto ensinamentos, acerca de
autocontrole, vejo-a no pensamento, como sendo a única alavanca, bastante forte para
governar-me; se escuto exortações à fé, acabo querendo-a para meu reconforto exclusivo; se
recebo esclarecimentos em torno de obsessão, termino a aula confessando a mim mesmo
que, se pudesse, largaria este hospital a fim de persegui-la e tomá-la em meus braços, ainda
que para isso devesse caminhar até os derradeiros confins do mundo!...
O mentor sorriu, paternal, e aconselhou calma, equilíbrio.
– Reflitamos, meu filho, que somos espíritos eternos. Urge conservar serenidade,
paciência... Felicidade é obra do tempo, com a bênção de Deus.
O rapaz revidou ácido, irreverente. Não pedira, não aceitava conselhos.
Hábil psicólogo, Ribas despediu-se.
À noite, esteve com os amigos e elogiou o trabalho de Evelina.
A empresa de reeducação fora efetuada com segurança. Túlio, entretanto, não reagira
construtivamente. Mostrava-se abúlico, embutido nas fantasias que estabelecera em
prejuízo próprio.
E terminou dizendo para Fantini e a senhora Serpa que o ouviam, atentos:
– Não vejo qualquer interesse para Mancini na permanência aqui. Forçoso envidarmos
esforços para que aceite, voluntariamente, a miniaturização.3
– Renascer? – redarguiu Evelina, assustada. – Será preciso tanto?
E Ribas:
– Nosso amigo está mentalmente enfermo, profundamente enfermo, traumatizado,
angustiado, fixado... O remédio será começar de novo... Ainda assim, terá dificuldades e
desajustes pela frente.
O benévolo mentor não traçou advertências, nem articulou qualquer sugestão. E tanto
Ernesto quanto Evelina, enfronhados agora nos imperativos e provas da reencarnação,
silenciaram de chofre, pensando, pensando...
***
Alguém acompanhara discretamente conosco todo o diálogo. Era o Instrutor Ribas que
viera, de surpresa, ao lar de Vila Mariana, a fim de encorajar, em prece, a pupila do Instituto
de Proteção Espiritual, no testemunho inesquecível... Assim que a viu, ajudando a carregar o
genitor, em sublimada metamorfose, o venerado orientador, talvez rememorando
acontecimentos de sua própria vida, afastou-se, em silêncio, com os olhos marejados de
pranto que não chegava a se desprender das pálpebras molhadas.
Quanto a nós, de novo em plena rua, limitamo-nos pessoalmente a contemplar o
firmamento, onde a aurora purpúrea, anunciando perpétua renovação, nos sugeria louvar a
ilimitada Misericórdia de Deus... E oramos, sem conseguir articular palavra.
25
Nova diretriz
Após internarem Desidério e Elisa em organização hospitalar, sob assistência afetuosa,
Ernesto e Evelina retornaram, na tarde do mesmo dia, a São Paulo, desejosos que se
achavam de consultar a posição íntima de Vera, ante a nova situação. Esclarecidos quanto
ao futuro, em que a presença e a colaboração dela lhes seriam sobremaneira importantes à
própria tranquilidade, identificavam-se no dever de ampará-la com mais calor de ternura.
A rendição de Desidério aos ideais renovadores que alentavam era igualmente um
ponto fundamental no programa de trabalho a cumprir-se e esperavam reajustar as atitudes
de Caio para que se lhes assegurasse mais ampla área de ação.
Encontraram Vera Celina marcada de lágrimas, apoiando-se em parentes e amigos.
Caio, taciturno, orientava o leme doméstico, dava ordens.
Estabelecido o cortejo fúnebre, os dois visitantes desencarnados, além de outros
muitos amigos da espiritualidade maior, se instalaram no carro familiar, junto de Vera;
entretanto, na chegada ao campo-santo, Ernesto escorou a filha, ao mesmo tempo que
Evelina seguiu o ex-esposo, que se figurava distrair-se em quadra próxima àquela em que os
restos da viúva Fantini descansariam.
Serpa fugia, intencionalmente. Não queria ver a inumação.
Colhido em cheio pela influência da companheira que ele, antes, pouco mais de dois
anos, levara ao sepulcro, pensava nela e, sem querer, lhe via mentalmente o semblante na
tela da memória.
Não longe dele, Vera chorava nos braços dos amigos, enquanto ele mesmo,
sorumbático, refletia, refletia...
Lembrava-se de quando deixara a mulher morta em outro cemitério, o da Quarta
Parada7, rememorava-lhe a partida, revisava na imaginação os incidentes havidos...
Era crepúsculo, qual ocorria ali, em Vila Mariana. E as mesmas inquirições lhe vinham à
cabeça...
A vida terminaria em montões de pedra e cinza? Para onde se transfeririam os mortos,
na hipótese de continuação da existência? Onde estariam os pais que ele vira partir, nos dias
da juventude? Em que região andaria Evelina, a esposa que amara, desmedidamente, na
primeira mocidade, e de quem a enfermidade e a morte o haviam separado? Recordando-a,
sentiu-se ligado a outra penosa reminiscência: Túlio Mancini... O coração se lhe arrochava e
passou a indagar de si mesmo por que motivo se confiara à loucura de assassinar
estupidamente o colega... O delito aflorou-lhe à memória com todas as minudências...
***
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Diego Henrique Oliveira