Chico Xavier - Pelo Espírito André Luiz - E A Vida Continua

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Sumário

E a vida continua...
Homenagem
1 - Encontro inesperado
2 - Na porta da intimidade
3 - Ajuste amigo
4 - Renovação
5 - Reencontro
6 - Entendimento fraternal
7 - Informações de Alzira
8 - Encontro de cultura
9 - Irmão Cláudio
10 - Evelina Serpa
11 - Ernesto Fantini
12 - Julgamento e amor
13 - Tarefas novas
14 - Novos rumos
15 - Momentos de análise
16 - Trabalho renovador
17 - Assuntos do coração
18 - O retorno
19 - Revisões da vida
20 - Trama desvendada
21 - Retorno ao passado
22 - Bases de novo porvir
23 - Ernesto em serviço
24 - Evelina em ação
25 - Nova diretriz
26 - E a vida continua...
E a vida continua...
Leitor amigo:
Nada te escrevemos, aqui, no intuito de apresentar ou recomendar
André Luiz, o amigo que se fez credor de nossa simpatia e
reconhecimento pelas páginas consoladoras e construtivas que vem
formulando do Mundo Espiritual para o Mundo Físico.
Entretanto, é razoável se te diga que neste volume, em matéria de
vida post mortem, ele expõe notícias diferentes daquelas que ele
próprio colheu em Nosso Lar1, estância a que aportou depois da
desencarnação.
Conquanto as personagens da história aqui relacionadas – todas
elas figuras autênticas, cujos nomes foram naturalmente
modificados para não ferir corações amigos na Terra – tenham tido,
como já dissemos, experiências muito diversas daquelas que
caracterizam as trilhas do próprio André Luiz, em seus primeiros
tempos na Espiritualidade, é justo considerar que os graus de
conhecimento e responsabilidade variam ao infinito.
Assim é que os planos de vivência para os habitantes do Além se
personalizam de múltiplos modos, e a vida para cada um se
especifica invariavelmente, segundo a condição mental em que se
coloque.
Compreensível que assim seja.
Quanto maior a cultura de um Espírito encarnado, mais dolorosos
se lhe mostrarão os resultados da perda de tempo. Quanto mais
rebelde a criatura perante a Verdade, mais aflitivas se lhe revelarão
as consequências da própria teimosia.

1 Nosso Lar, André Luiz. (Nota de Emmanuel.)


Além disso, temos a observar que a sociedade, para lá da morte,
carrega consigo os reflexos dos hábitos a que se afeiçoava no
mundo.
Os desencarnados de uma cidade asiática não encontram, de
imediato, os costumes e edificações de uma cidade ocidental e vice-
versa.
Nenhuma construção digna se efetua sem a cooperação do serviço e
do tempo, uma vez que a precipitação ou a violência não constam
dos Planos Divinos que supervisionam o Universo.
Para não nos alongarmos em apontamentos dispensáveis,
reafirmamos tão somente que, ainda aqui, encontraremos, depois da
grande renovação, o retrato espiritual de nós mesmos com as
situações que forjamos, a premiar-nos pelo bem que produzam ou a
exigir-nos corrigenda pelo mal que estabeleçam.
Leiamos, assim, o novo livro de André Luiz, na certeza de que nos
surpreenderemos em suas páginas com muitos pedaços de nossa
própria história, no tempo e no espaço, a solicitar-nos meditação e
autoexame, aprendendo que a vida continua plena de esperança e
trabalho, progresso e realização, em todos os distritos da vida
cósmica, ajustada às leis de Deus.

Emmanuel
Uberaba, 18 de abril de 1968.
Homenagem
Reverenciamos o primeiro centenário
de “A Gênese”, de Allan Kardec.

André Luiz
Uberaba, 18 de abril de 1968.
1
Encontro inesperado
O vento brincava com as folhas secas das árvores, quando Evelina Serpa, a senhora
Serpa, decidiu sentar-se no banco que, ali mesmo, parecia convidá-la ao repouso.
Na praça ajardinada, o silêncio da tarde morna.
Raros turistas na estância mineira, naquela segunda quinzena de outubro. E, entre
esses poucos, ali se achava ela, em companhia da governanta que ficara no hotel.
Afastara-se do bulício caseiro, sentindo fome de solidão.
Queria pensar. E, por isso, escondia-se sob a tolda verdejante, contemplando as
pequenas filas de azáleas desabrochadas, que timbravam em anunciar o tempo de
primavera.
Acomodada, rente à espessa ramaria, deu asas às próprias reflexões...
O médico amigo aconselhara-lhe revigoramento e descanso, ante a cirurgia que a
esperava. E, sopesando as vantagens e os riscos da operação em perspectiva, deixava que as
lembranças da curta existência lhe perpassassem o cérebro.
Casara-se, seis anos antes.
A princípio, tudo fora excursão em caravela dourada sobre correntes azuis. O esposo e
a felicidade. No segundo ano, após o enlace, veio a gravidez, carinhosamente esperada; no
entanto, com a gravidez, apareceu a doença. Descobrira-se-lhe o corpo deficitário.
Revelaram-se os rins incapazes de qualquer sobrecarga e o coração figurara-se motor
ameaçando falhar. Ginecologistas ouvidos opinaram pelo aborto terapêutico e, conquanto a
imensa mágoa do casal, o filhinho em formação foi arrancado ao claustro materno, à
maneira de ave tenra, escorraçada do ninho.
Desde então, a viagem da vida se lhe transformara em vereda de lágrimas. Caio, o
esposo, como que se metamorfoseara num simples amigo cortês, sem maior interesse
afetivo. Passara facilmente para o domínio de outra mulher, uma jovem solteira, cuja
inteligência e vivacidade podia aquilatar através dos bilhetes que o marido esquecia no
bolso, portadores de frases ardentes e beijos pintados no papel com os próprios lábios
úmidos de carmim.
O retiro e o desencanto que padecia em casa talvez fossem os fatores desencadeantes
das crises terríveis de opressão que experimentava, periodicamente, na área cardíaca.
Nessas ocasiões, sofria náuseas, dores cruciantes de cabeça com sensação de frio geral, que
se faziam acompanhar por impressões de queimadura nas extremidades e aumento sensível
da pressão arterial. No ápice da angústia, admitia-se prestes a morrer. Em seguida, as
melhoras, para cair, dias depois, na mesma condição crisíaca, bastando, para isso, que os
contratempos com o esposo se repetissem.
Arruinara-se-lhe a resistência, esvaíam-se-lhe as forças...
Por mais de dois anos, vagueara de consultório a consultório, sondando especialistas.
Finalmente, a sentença unânime. Tão somente uma delicada operação cirúrgica viria
recuperá-la.
No íntimo, algo lhe dizia ao campo intuitivo que o problema orgânico era grave, talvez
lhe impusesse a morte.
Quem poderia saber? – indagava-se.
Ouvia os pardais chilreantes, cujas vozes lhe serviam por música de fundo à meditação,
e passou, de repente, a calcular quanto ao proveito da própria existência, enumerando
aspirações e fracassos.
Valeria furtar-se aos perigos da cirurgia, que sabia difícil, para continuar doente, ao
lado de um homem que passara a desconsiderá-la no tálamo doméstico? E não seria
razoável aceitar o socorro que a ciência médica lhe oferecia, a fim de recobrar a saúde e
lutar por vida nova, caso o marido a abandonasse de todo? Contava apenas vinte e seis anos;
não seria justo aguardar novos caminhos para a felicidade, nos campos do tempo? Embora
sentisse profundas saudades do pai, que desencarnara ao tempo em que ela não passava de
frágil criança, havia crescido, na condição de filha única, sob a dedicação de carinhosa mãe,
que, por sua vez, lhe dera um padrasto atencioso e amigo; ambos, com o marido, lhe
constituíam a família, o lar da retaguarda.
Naquela hora, mergulhada nas virações do entardecer, mentalizava os entes queridos,
o esposo, a mãezinha e o padrasto distantes...
De súbito, lembrou o pai morto e o filhinho morto ao nascer. Era religiosa, católica
praticante e mantinha, com respeito à vida além da morte, as ideias que lhe eram infundidas
pela fé que abraçava.
“Onde estariam meu pai e meu filho?” – perguntava-se. Se viesse a morrer com a
moléstia de que se achava acometida, conseguiria, acaso, reencontrá-los? Onde? Não lhe era
lícito pensar nisso, já que a ideia da morte lhe visitava insistentemente a cabeça?
Atirara-se, avidamente, ao monólogo íntimo, quando alguém lhe surgiu à frente, um
cavalheiro maduro, cujo sorriso bonachão lhe infundiu, para logo, simpatia e curiosidade.
– A senhora Serpa? – perguntou ele, em tom respeitoso.
E a um aceno confirmativo da interpelada, que não lhe escondia a surpresa,
acrescentou:
– Perdoe-me a ousadia, mas soube que a senhora reside em São Paulo, onde moro
também, e, através de circunstâncias muito inesperadas para mim, fui informado, por
pessoa amiga, de que temos ambos um problema em comum.
– Estimo ouvi-lo – disse a jovem senhora, em lhe percebendo o constrangimento.
Ante a inflexão de bondade daquela voz, o homem apresentou-se:
– Nada receie, senhora Serpa. Sou Ernesto Fantini, um criado seu.
– Encantada em conhecê-lo – falou Evelina e, fitando aquela fisionomia enrugada, que a
doença abatia, acrescentou –, sente-se e descanse. Estamos numa praça enorme e, ao que
parece, somos agora os únicos interessados no refazimento que ela oferece.
Encorajado pela gentileza, acomodou-se Fantini em assento próximo e voltou a
expressar-se, avivando o diálogo que a atração mútua passou a presidir.
– A dona do hotel, onde nos achamos, fez-se amiga da governanta que lhe acompanha a
viagem e vim a saber, por ela, que a senhora enfrentará também uma cirurgia de caráter
difícil...
– Também?
– Sim, porque estou nas mesmas condições.
–?
– Tenho a pressão arterial destrambelhada, o corpo à matroca. Há quase três anos,
ouço os especialistas. Ultimamente, as radiografias me acusam. Tenho um tumor na
suprarrenal. Pressinto seja coisa grave.
– Compreendo... – Reticenciou Evelina, pálida. – Conheço tudo isso... O senhor não
precisa contar-me. De quando em quando, deve atravessar a crise. O peito a sufocar, o
coração descompassado, as dores no estômago e na cabeça, as veias a engrossarem no
pescoço, as sensações de gelo e fogo ao mesmo tempo e a ideia da morte perto...
– Isso mesmo...
– Em seguida, as melhoras de algum tempo para depois começar tudo de novo, a
qualquer aborrecimento.
– A senhora sabe.
– Infelizmente.
– O médico repetiu algumas vezes para mim o nome da moléstia de que sou portador.
Gostaria de saber se a senhora já ouviu a mesma informação a seu respeito.
Fantini sacou do bolso minúscula caderneta e leu, em voz alta, a palavra exata que lhe
definia o problema orgânico.
A senhora Serpa dissimulou a custo o desagrado que a enunciação daquele termo
científico lhe causava, mas, dominando-se, confirmou:
– Sim, meu marido, em nome do nosso médico, deu-me a saber este mesmo
diagnóstico, em se referindo ao meu caso.
O recém-chegado percebeu o aborrecimento da interlocutora e ensaiou bom humor:
– Deixe estar, senhora Serpa, que temos uma doença de nome raro e bonito...
– O que não impede tenhamos crises frequentes e feias – replicou ela, com graça.
Fantini contemplou o céu muito azul da tarde, como quem se propunha elevar a
palestra, no rumo de planos mais altos, e Evelina seguiu-lhe a pausa, em silêncio comovido,
entremostrando igualmente o propósito de alçar a conversação, sofrimento acima, sedenta
de refletir e filosofar.
2
Na porta da intimidade
Não longe surgiu pequeno carro de passeio. Vinha devagar, muito devagar.
Vendo o animal que se aproximava, a passo lento, o cavalheiro disse à dama:
– Compreendo-lhe a necessidade de repouso, mas se aceita uma excursão pelas
termas...
– Agradeço – respondeu –, contudo, não posso. Refazimento é agora minha maior
terapêutica.
– Efetivamente, nosso caso não comporta sacudidelas.
A pequena viatura passou rente ao sossegado retiro.
Os dois perceberam a razão da marcha morosa. O veículo fora decerto acidentado e
mostrava uma roda partida, avançando dificilmente; enquanto isso, o jovem boleeiro, a pé,
guiava o animal com extremado carinho, deixando-o quase livre.
A senhora Serpa e o improvisado amigo seguiram-nos com o olhar, até que
desaparecessem na esquina próxima.
Em seguida, Fantini fixou um grande sorriso e enunciou muito calmo:
– Senhora Serpa...
Ela, porém, cortou-lhe a frase com outro sorriso franco e corrigiu, jovial:
– Chame-me Evelina. Creio que, sendo nós irmãos numa doença rara, temos direito à
estima espontânea.
– Muito bem!... – acentuou o interlocutor e aduziu: – Doravante, sou também apenas
Ernesto, para a senhora.
Ele deixou cair a mão descorada no encosto do banco enorme e prosseguiu:
– Dona Evelina, a senhora já leu algo de espiritualismo?
– Não.
– Pois quero dizer-lhe que a charrete, ainda agora sob nossa observação, me fez
lembrar certos apontamentos que esquadrinhei, nos meus estudos de ontem. O interessante
escritor que venho compulsando, numa definição que ele mesmo considera superficial,
compreende a criatura humana como um ternário, semelhante ao carro, ao cavalo e ao
condutor, os três juntos em serviço...
– Como pode ser isso? – interrogou Evelina, sublinhando a palavra de surpresa e
gracejando com o olhar.
– O carro equivale ao corpo físico, o animal pode ser comparado ao corpo espiritual,
modelador e sustentador dos fenômenos que nos garantem a existência física, e o cocheiro
simboliza, em suma, o nosso próprio Espírito, isto é, nós mesmos, no governo mental da
vida que nos é própria. O carro avariado, qual o que vimos aqui, recorda um corpo doente, e,
quando um veículo assim se faz de todo imprestável, o condutor abandona-o à sucata da
natureza e prossegue em serviço, montando consequentemente o animal para continuarem
ambos, no curso de sua viagem para diante... Isso ocorreria, de maneira natural, na morte ou
na desencarnação. O corpo de carne, tornado inútil, é restituído à terra, enquanto que nosso
Espírito, envergando o envoltório de matéria sutil, que, aliás, lhe condiciona a existência
terrestre, passa a viver em outro plano, no qual a roupa de matéria mais densa para nada
mais lhe serve...
Evelina riu-se, sem perder embora o respeito que devia ao interlocutor, e alegou:
– Teoria engenhosa!... O senhor me fala da morte, e que me diz desse trio durante o
sono?
– Muito razoavelmente, no sono físico, há descanso para os três elementos, descanso
esse que varia de condutor para condutor, ou melhor, de Espírito para Espírito. Quando
dormimos, o veículo pesado ou corpo carnal repousa sempre, mas o comportamento do
Espírito difere infinitamente. Por exemplo, depois de copioso repasto para o condutor e o
cavalo, é justo se imobilizem ambos na inércia, tanto quanto o carro que carregam;
entretanto, se o boleeiro se caracteriza por hábitos de estudo e serviço, quando o veículo se
detém na oficina para reajuste ou reabastecimento, ei-lo que utiliza o animal para excursões
educativas ou tarefas nobilitantes. De outras vezes, se o condutor é ainda profundamente
inábil ou inexperiente, patenteando receio da viagem, sempre que o veículo exija
restauração, ei-lo que se oculta nas imediações do posto socorrista, esperando que o carro
se refaça, a fim de retomá-lo, à feição de armadura para a própria defesa.
Evelina estampou um gesto de incredulidade e obtemperou:
– Nada conheço de espiritualismo...
– É profitente de alguma religião particularizada?
– Sim, sou católica, sem fanatismo, mas francamente determinada a viver segundo os
preceitos de minha fé. Pratico as instruções dos sacerdotes, crendo neles.
– A senhora deve ser louvada por isso. Toda convicção pura é respeitável. Invejo-lhe a
confiança perfeita.
– Não é religioso, o senhor?
– Quisera ser. Sou um procurador da verdade, livre atirador no campo das ideias...
– E lê espiritualismo por desfastio?
– Por desfastio? Oh! não! Leio por necessidade. Dona Evelina, a senhora esqueceu?
Estamos na bica de uma cirurgia que nos pode ser fatal... Nossas malas talvez estejam
prontas para uma longa excursão!...
– Da qual ninguém volta.
– Quem pode saber?
– Entendo – ajuntou a dama, sorrindo –, estuda espiritualismo à maneira do viajante
que aspira a conhecer o dinheiro, a língua, os costumes e as modas do país estrangeiro que
tenciona visitar. Informações resumidas, cursos rápidos...
– Não nego. Tenho tido mais tempo ao meu dispor e desse tempo faço hoje os
investimentos que posso, nos domínios de tudo o que se relacione com as ciências da alma,
principalmente com aquilo que se refira à sobrevivência e à comunicação com os Espíritos,
supostos habitantes de outras esferas.
– E o senhor já encontrou a prova de semelhante intercâmbio? Conseguiu mensagens
diretas com algum de seus mortos queridos ?
– Ainda não.
– Isso, acaso, não lhe desencoraja a busca?
– De modo algum.
– Prefiro as minhas crenças tranquilas. A confiança sem dúvida, a oração sem tortura
mental...
– Será uma bênção o seu estado íntimo e acato, com todo o meu coração, a sua
felicidade religiosa; no entanto, e se houver uma outra vida à nossa espera e se a indagação
aparecer em sua alma?
– Como pode falar desse modo se ainda não obteve a suspirada demonstração da
sobrevivência?
– Não me é possível descrer do critério dos sábios e das pessoas de elevado caráter,
que a tiveram.
– Bem – explicou-se Evelina bem-humorada –, o senhor estará com os seus
pesquisadores, eu ficarei com os meus santos...
– Não faço qualquer objeção, quanto à excelência dos seus advogados – revidou Fantini
no mesmo tom –, mas não consigo furtar-me à sede de estudo. Antes da moléstia,
reconhecia-me seguro da vida. Comandava os acontecimentos, nem sabia, ao menos, da
existência desse ou daquele órgão no meu corpo. Entretanto, um tumor na suprarrenal não
é uma pedra no sapato. Tem qualquer coisa de um fantasma, anunciando contratempos e
obrigando-me a pensar, raciocinar, discernir...
– Tem medo da morte? – chasqueou a moça, com fina verve.
– Não tanto, e a senhora?
– Bem, eu não desejo morrer. Tenho meus pais, meu esposo, meus amigos. Adoro a
vida, mas...
– Mas?...
– Se Deus determinar a extinção dos meus dias, estarei conformada.
– Porventura, não tem problemas? Nunca sofreu a influência dos males que nos
atormentam o dia a dia?
– Não diga que me vai examinar a consciência; já tenho que dar contas de mim mesma
aos confessores.
E rindo-se, desembaraçadamente, reforçou:
– Admito os males que outros nos façam como parcelas do resgate de nossos pecados
perante Deus; no entanto, os males que fazemos são golpes que desferimos contra nós
mesmos. Supondo assim, procuro preservar-me, isto é, reconheço que não devo ferir a
ninguém. Em razão disso, busco na confissão um contraveneno que, de tempos a tempos,
me imunize, evitando a explosão de minhas próprias tendências inferiores.
– Admirável que uma inteligência, qual a sua, se acomode com tanto gosto e
sinceridade à confissão.
– Certamente preciso saber com que sacerdote me desinibo. Não quero comprar o Céu
com atitudes calculadas e sim agir em oposição aos defeitos que carrego e, por isso, não
seria correto abrir o coração diante de quem não me possa entender e nem ajudar.
– Compreendo...
Retomando o trato íntimo, à base de respeitosa confiança, a senhora Serpa considerou:
– Acredite que também eu, ante a enfermidade, tenho vivido mais cuidadosa. Até
mesmo na véspera de minha vinda para cá, harmonizei-me com os deveres religiosos.
Confessei-me. E das inquietações que confiei ao meu velho diretor, posso dizer-lhe a maior.
– Não, não!... Não me conceda tanto... – tartamudeou Fantini, espantado com a devoção
carinhosa em que Evelina se exprimia.
– Oh! por que não? Estamos aqui na ideia de que somos amigos de muito tempo. O
senhor me fala de suas preparações ante as probabilidades da morte e não me deixa tocar
nas minhas?
Desataram-se ambos em riso claro e, quando a pausa mais longa se intrometeu no
diálogo, entreolharam-se, de modo significativo. Um e outro fixaram no rosto inequívoca
nota de susto.
A mirada recíproca lhes fazia observar que haviam caminhado, a passos compridos,
para a intimidade profunda.
Onde vira antes aquela jovem senhora que a beleza e o raciocínio tanto favoreciam? –
pensava Ernesto, atordoado.
Em que lugar teria encontrado alguma vez aquele cavalheiro maduro e inteligente que
tão bem conjugava simpatia e compreensão? – refletia a senhora Serpa, incapaz de esconder
o agradável assombro que a dominava.
O intervalo consumiu segundos inquietantes para os dois, enquanto o crepúsculo, em
derredor, acumulava cores e sombras, anunciando a noite próxima.
3
Ajuste amigo
Fantini percebeu que a interlocutora havia sido sulcada mentalmente pelo olhar que
lhe endereçara e dispôs-se a tranquuilizá-la:
– Continuemos, Dona Evelina. Minha presença não lhe fará mal. Observe-me, não direi
com a sua gentileza, mas sim com o seu discernimento. Sou um velho enfermo que pode ser
seu pai e acredite que a vejo como filha...
A voz dele esmoreceu, de algum modo, entretanto cobrou ânimo e terminou:
– A filha que estimaria ter, em lugar da que possuo.
Evelina adivinhou o sofrimento moral que as palavras dele destilavam e reajustou a
posição emotiva, sentenciando:
– O senhor não se alegraria com uma filha doente qual estou. Mas... Voltemos ao meu
caso, o caso da confissão.
– Não me conte tristezas...
– Certo. Já não dispomos de muito tempo.
E continuou com um sorriso de mofa:
– Conversando com tanta franqueza, num lugar que talvez seja a antecâmara da morte
para um de nós dois, desejo dizer-lhe que só um fato me perturba. Tenho as desilusões
comuns a qualquer pessoa. Meu pai morreu, quando eu mal completara dois anos; minha
mãe, então viúva, deu-me um padrasto, algum tempo depois; ainda na infância, fui internada
num colégio de religiosas amigas e, depois disso tudo, casei-me para ter um marido
diferente daquele que eu sonhava... No meio do romance, uma tragédia... Um homem, um
rapaz digno, aniquilou-se por minha causa, seis meses antes do meu casamento. Precedendo
o ato que lhe impôs a morte, tentou o suicídio ao ver-se posto à margem. Compadeci-me.
Busquei reaproximar-me, ao menos para consolá-lo, e, quando meu sentimento balançava
entre o pobre moço e o homem que desposei, ei-lo que se despede da vida com um tiro no
coração... Desde aí, qualquer felicidade para mim é uma luz misturada de sombra. Embora o
imenso amor que consagro a meu marido, nem mesmo a condição de mãe consegui. Vivo
doente, frustrada, abatida...
– Ora, ora! – aventou Ernesto, diligenciando encontrar uma escapatória otimista – Não
se julgue culpada. Não fosse supostamente pela senhora e o moço agiria de igual modo por
outro móvel. O impulso suicida, tanto quanto o impulso criminoso...
A voz dele empalideceu de novo, qual se o íntimo recusasse certas reminiscências que
as palavras em curso lhe suscitavam à memória; contudo, dando a ideia de quem agia
fortemente contra si mesmo, prosseguiu:
– São incógnitas da alma. Talvez sejam ápices de doenças psíquicas, demoradamente
mantidas no espírito. O suicídio e o crime são de temer em qualquer de nós, porque são atos
de delírio, que fundos processos de corrosão mental determinam em qualquer um.
– O senhor procura apaziguar-me com a sua nobreza de coração – exclamou Evelina,
cismativa –, decerto não conheceu, até hoje, um problema assim agudo, a conturbar-lhe a
consciência.
– Eu? Eu? – gaguejou Fantini, desconcertado –, não me faça voltar ao passado, pelo
amor de Deus!... Já cometi muitos erros, sofri muitos enganos...
E, no objetivo de contornar a questão sem escalpelá-la, Ernesto sorriu à força, com a
maleabilidade das pessoas maduras, que sabem usar várias máscaras fisionômicas, para
determinados efeitos psicológicos, e aditou:
– Não conseguiu, porventura, esquecer o moço suicida, com apoio no confessionário? O
seu diretor espiritual não lhe sossegou o coração sensível e afetuoso?
– Repito que sempre encontrei na confissão de meus erros menores uma espécie de
vacina moral contra erros maiores; entretanto, no caso em apreço, não obtive a paz que
desejava. Admito que se não houvesse hesitado, tanto tempo, entre dois homens, teria
evitado o desastre. Basta me lembre de Túlio, o infeliz, para que o quadro da morte dele se
me reavive na lembrança e, com a lembrança, surja, de imediato, o complexo de culpa...
– Não se agaste. A senhora está muito jovem. Como acontece à mão que, a pouco e
pouco, se caleja no trabalho do campo, a sensibilidade também se enrijece com o sofrimento
na vida. Certamente, se escaparmos, com êxito, no salto que pretendemos dar para a saúde,
ainda veremos muitos suicídios, muitas decepções, muitas calamidades...
A senhora Serpa refletiu alguns momentos e, dando a impressão de quem se propunha
ganhar ensejo para balsamizar feridas íntimas, indagou com intenção:
– O senhor, que vem estudando as ciências da alma, acredita piamente que
reencontraremos as pessoas queridas, depois da morte?
Fantini estampou um gesto de complacência e divagou:
– Não sei por que, mas, à frente de sua inquirição, veio-me à cabeça aquele pensamento
do velho Shakespeare: “Os infelizes não possuem outro medicamento que não seja a
esperança.” Tenho boas razões para crer que nos reveremos uns aos outros, quando não
mais estivermos neste mundo; todavia, compreendo que a precariedade do meu estado
orgânico é o agente fixador de semelhante convicção. A senhora já notou que as ideias e as
palavras são filhas das circunstâncias? Imagine se nos víssemos hoje em plenitude da força
física, robustos e bem apessoados, num encontro social, num baile por exemplo... Qualquer
conceito, em torno dos assuntos que nos aproximam agora um do outro, seria
imediatamente banido de nossas cogitações.
– É verdade.
– A moléstia aflitiva nos dá direito de entretecer novos recursos e novas interpretações,
ao redor da vida e da morte, e, na esfera das novas conclusões que temos à frente, admito
que a existência não acaba no túmulo. Estamos intimados a recordar aquela antiga ilação
das novelas de amor, “o romance termina, mas a vida continua...”. O envoltório de carne
tombará consumido; todavia, o Espírito seguirá adiante, sempre adiante...
– O senhor costuma pensar em alguém que estimaria achar na outra vida?
Ele mostrou enigmático sorriso e zombeteou:
– Penso em alguém que estimaria não achar.
– Não consigo entender o trocadilho. Apesar disso, reconforta-me anotar a certeza com
que me fala, acerca do futuro.
– A senhora não pode e nem deve perder a confiança no porvir. Lembre-se de que é,
sobretudo, cristã, discípula de um Mestre que ressurgiu da campa, ao terceiro dia, depois da
morte.
A senhora Serpa não sorriu. O olhar divagou, além, nas nuvens róseas que refletiam o
Sol já distante, reconhecendo-se talvez sacudida nas forças profundas de sua fé por aquela
inesperada observação.
Findo o longo intervalo, voltou a fitar o interlocutor e preparou a despedida:
– Bem, senhor Fantini, se houver outra vida, além desta, e se for a vontade de Deus que
venhamos a sofrer, em breve, a grande mudança, creio que nos veremos de novo e seremos
lá bons amigos...
– Como não? Se conseguir adivinhar o fim de meu corpo, conservarei firme o
pensamento positivo do nosso reencontro.
– Também eu.
– Quando volta a São Paulo?
– Amanhã pela manhã.
– Tem ocasião marcada para o trabalho operatório?
– Meu marido decidirá isso com o médico; no entanto, creio que, na semana vindoura,
enfrentarei o problema. E o senhor?
– Não estou certo. Questão de mais alguns poucos dias. Não desejo retardar a
intervenção. Posso, acaso, saber o nome do seu hospital?
Evelina meditou, meditou... E concluiu:
– Senhor Fantini, somos ambos portadores da mesma doença, insidiosa e rara. Não será
isso o bastante para aproximar-nos um do outro? Esperemos o futuro sem aflição. Se
escaparmos do atoleiro, estou convencida de que Deus nos favorecerá com um novo
encontro aqui na Terra mesmo... Se a morte vier, a nossa amizade, em outro mundo, ficará
também subordinada aos desígnios da Providência.
Ernesto achou graça e ambos regressaram ao hotel, passo a passo, em comovido
silêncio.
4
Renovação
Evelina somente voltou a pensar na presença confortadora de Ernesto, o amigo
desconhecido, quando Dr. Caio Serpa, o esposo, a deixou naquele espaçoso apartamento de
hospital, na véspera da cirurgia, no qual se via, agora, ruminando estranhas reflexões.
Era por demais jovem e estava quase que absolutamente convencida, quanto à própria
recuperação, para demorar-se em quaisquer vaticínios menos felizes. Entretanto, ali, a sós,
aguardando a enfermeira, as alegações de Fantini lhe perpassavam o cérebro, escaldando-
lhe a imaginação.
Sim, meditava torturada, arrostaria grande risco. Talvez não regressasse à convivência
dos seus... Se morresse, para onde iria? Quando menina, acreditava, de boa-fé, na existência
dos lugares predeterminados de felicidade ou sofrimento, sobre os quais a antiga teologia
católica regulava a posição dos homens, para lá da morte. Agora, porém, com a ciência
explorando as vastidões cósmicas, era bastante inteligente para perceber o tato com que o
amadurecido confessor lhe falava das indispensáveis renovações que se impunham à esfera
religiosa. Aprendera com ele, generoso e culto amigo, a conservar, inalterável, a confiança
em Deus, no divino apostolado de Jesus Cristo e no ministério inefável dos santos; contudo,
decidira colocar à parte, no rumo da necessária revisão, todas as afirmativas da autoridade
humana sobre as coisas e causas da Providência divina. A ideia da morte assomou-lhe à
cabeça com mais força, mas repeliu-a. Queria a saúde, a euforia orgânica. Ansiava restaurar-
se, viver. Deteve-se, de súbito, a esquadrinhar os problemas domésticos. Evidentemente,
atravessava escabrosa fase nas relações conjugais; no entanto, tinha motivos para contar
com feliz reajuste. Admitia-se em plena floração dos ideais feminis. Carecia, tão só, de
reequilíbrio físico. Recuperando-se, diligenciaria remover a outra. Transfiguraria a área
afetiva e de tal modo se propunha aformoseá-la que o esposo, decerto, lhe tornaria ao
carinho, sem que fosse constrangida a usar azedume ou discussão. Além disso, reconhecia-
se útil. Devia querer a vida, disputá-la a todo preço, sentir-se prestante, não apenas para os
familiares, mas também para as criaturas menos felizes. Poderia, sem dúvida, diminuir a
penúria onde a penúria existisse...
A lembrança, com respeito aos necessitados, sensibilizou-a... Quantos respirariam, ali
mesmo, perto dela, isolados, uns dos outros, pelas fronteiras de alvenaria? Como não
pensara nisso antes?
Gastara a existência na condição de satélite de três pessoas, o marido, a genitora, o
padrasto... Por que não reaver as próprias forças, renovar-se, viver? Sim, recusaria todo
pensamento, acerca dos fenômenos da morte, e concentrar-se-ia, com todo o vigor de que se
sentia capaz, no propósito de retomar-se organicamente.
Lera muitos psicólogos e conhecera com eles a importância dos impulsos mentais.
Aspirava a sarar. Repetiria isso, tantas vezes quantas fosse possível, com todos os seus
potenciais de força emotiva, escolhendo as palavras carregadas de energia que lhe
pudessem definir com mais segurança os estados de alma.
Ah! – disse, pensando, de si para si – nesse sentido, oraria também!...
Formulada essa ideia, esbarrou, de chofre, com a imagem de Jesus Crucificado, a pender
de parede próxima, e arrancou-se para ela. Contemplou o rosto sublime que o artista
modelara com sentimento profundo e, cruzando as mãos sobre o peito, falou mais com a voz
do coração do que com os lábios:
– Senhor, compadece-te de mim!...
Nisso, porém, ao fitar aquela cabeça coroada de espinhos e aqueles braços pregados ao
lenho do sacrifício, pareceu-lhe que o Cristo estimava surgir na memória das criaturas
naquela figura de dor para lembrar-lhes a fatalidade da morte.
Fundo abalo moral convulsionou-lhe os nervos; não mais sabia se lhe era lícito optar
entre viver ou morrer e, escondendo o rosto entre as mãos, ajoelhou-se, humilde, à frente da
escultura delicada, junto da qual pranteou copiosamente.
Alguém despertou-a, de manso:
– Chorando por que, senhora?
Diligente enfermeira vinha requisitá-la ao serviço pré-operatório.
Evelina ergueu-se, enxugou as lágrimas, sorriu.
– Desculpe-me.
– Sou eu que a incomodo, senhora Serpa – rogou a jovem –, perdoe-me se lhe perturbo
as orações; no entanto, urge aprestar-se. Além disso, o esposo aguarda ocasião para entrar.
A doente obedeceu, ausentando-se do quarto, por algum tempo, e retornando, logo
após.
O marido esperava-a, folheando jornais do dia.
– Então – bisbilhotou ele, fingindo-se bem-humorado –, agora, o salão de beleza;
amanhã, o retorno à saúde.
A voz do Dr. Serpa evidenciava energia e brandura simultâneas. Advogado jovem, mas
experimentado em relações públicas, exibia maneiras estudadas, conquanto simpáticas.
Autêntico representante do tope social, não se lhe notava o menor desalinho. Justo, porém,
dizer que o moço causídico se trancava no imo do ser, esforçando-se por manter oculta a
feição enigmática da própria alma. Não estava ali, na estampa física, tal qual se mostrava por
dentro. Não era tão somente um homem natural, simplesmente um homem natural, em cujo
caráter o verniz acadêmico não conseguia extinguir, de todo, os resíduos da animalidade,
compreensíveis em todas as criaturas da Terra, ainda puramente naturais e humanas. Além
disso, aos nossos olhos espirituais, patenteava sombrias inquietações.
Depois das primeiras palavras, quentes de ternura, abeirou-se da esposa e osculou-lhe
os cabelos.
Ela não dissimulou a própria alegria e conversaram em suave transbordamento afetivo.
Evelina reafirmou com os lábios a certeza da recuperação próxima, enquanto ele dava
notícias. Os sogros, em seu sítio no sul, esperavam boas novas da operação e lhes viriam ao
encontro, oportunamente. Com certeza, não chegariam, de imediato, evitando alarme.
Queriam dar à filha querida a convicção de que se achavam tranquilos, quanto ao
tratamento em curso.
E Caio desdobrava outros informes.
Ouvira amigos médicos. Realizara interessantes estudos em torno da intervenção na
suprarrenal. Quanto ao caso dela, Evelina, o cirurgião estava otimista. Que lhes faltava
agora, senão o êxito, com a bênção de Deus?
Regozijou-se a enferma, ao registrar-lhe a expressão “bênção de Deus”. Algo de novo
estaria surgindo naquele estimado ateu de trinta anos? – monologava no íntimo. Caio se lhe
afigurava, ali, mais atencioso, diferente. Simples de coração, não percebia que ele disfarçava.
Serpa emitia comunicações imaginárias. O médico da família, tanto quanto o cirurgião, nada
garantiam além de uma operação exploratória, com reduzidas esperanças de êxito. O
próprio cardiologista, devidamente consultado, quase que desaconselhava o tentame, e só
não o fazia porque a moça avançava, a passos largos, para a morte. De que valeria obstar
uma providência que talvez a salvasse? O marido conhecia as preocupações em pauta;
contudo, fantasiava argumentos confortativos, mentia piedosamente, comentando os
exames, complementados de avisos francos, sobre a gravidade da situação.
O advogado pernoitou no próprio hospital, na condição de acompanhante da enferma.
Auxiliou a serviçal da noite, na administração de tranquilizantes precursores da anestesia.
Dispensou à doente carinhos e cuidados, qual se ela fosse uma criança e ele o pai zeloso.
No dia imediato, porém, finda a cirurgia, foi convidado a entendimento com o médico
operador e, pálido, colheu a sentença. Evelina, segundo os recursos da ciência humana,
dispunha tão somente de alguns dias mais. Que ele, o marido, tomasse as medidas que
julgasse convenientes, a fim de que não lhe faltasse o conforto possível.
O médico resumiu todas as suas impressões numa só frase:
– Ela parece uma rosa totalmente carcomida por agentes malignos.
Caio, embora o quisesse, nada mais ouviu das doutas observações expendidas sobre
neoplasmas, focos secundários, metástases e tumores que reincidiam depois da ablação.
Sentia-se petrificado. Lágrimas compridas perlaram-lhe a face.
Concluído o testemunho de solidariedade e ternura humanas com que foi amparado
pelo cirurgião amigo, correu para junto da companheira prostrada. E durante dias e noites
de paciência e ansiedade, foi-lhe o irmão e o pai, o tutor e o amigo.
Satisfazendo-lhe os apelos, os sogros vieram consolar a filha nos dias últimos. Dona
Brígida, a genitora, e o Sr. Amâncio Terra, o padrasto, proprietários de sítio próspero, no sul
paulista, compareceram desolados, buscando, no entanto, selecionar palavras de otimismo e
sustando o choro.
Embalada na rede do devotamento familiar, Evelina, aparentemente melhorada, voltou
ao mundo doméstico, recolhendo mimos que, desde muito tempo, não recebia,
concomitantemente com as crises periódicas de sufocação, que a deixavam inerme.
Apesar da posição melindrosa, acreditava nas opiniões lisonjeiras dos familiares e dos
amigos.
Aquilo passaria. Ninguém se forra às sequelas de uma operação, qual a que sofrera. Que
ela confiasse, orasse com fé.
Após duas semanas de calmaria e repiquetes, surgiram seis dias de contínuo bem-estar.
Não obstante extremamente magra e abatida, transferiu-se do leito para a
espreguiçadeira, alimentava-se quase que normalmente, conversava tranquila, obtinha o
conforto da religião através da cortesia de um sacerdote abnegado e, à noite, pedia ao
padrasto alguns minutos de leitura alegre e amena.
Ao entardecer do quinto dia de esperança, formulou uma solicitação inesperada.
Não poderia Serpa levá-la ao passeio predileto dos tempos de noivado?
– Morumbi à noite? – indagou a mãezinha, intrigada.
Evelina justificou-se. Queria ver a cidade faiscante de luzes ao longe, os olhos tinham
saudade do céu estrelado.
Caio telefonou ao médico e o médico acedeu.
Mais algum tempo, aflito por satisfazê-la, o marido arrancou o carro à garagem, para,
logo após, tomá-la de encontro ao peito, qual se carregasse leve menina. Acomodou-a ao
lado dele, prescindiu da companhia dos sogros, e partiram.
A enferma seguia, encantada. Reviu as ruas repletas e, depois, a paisagem do Morumbi
e arredores, no que ela possuía de mais natureza.
Ao vê-la falar, entusiasmada, o esposo enterneceu-se. Como que a reencontrava na
moldura de noiva querida, da noiva a quem amara desvairadamente, anos antes.
Experimentou remorsos, recordando a infidelidade conjugal em que se mantinha. Quis
suplicar-lhe perdão, confessar-se, mas reconheceu que aquele não era o momento
adequado.
Freou o carro, contemplou-a. Evelina parecia sutilizar-se, os olhos brilhavam aos
toques do luar, movia-se a cabeça como que nimbada de luz...
Caio tomou-a nos braços robustos, com a ansiedade de quem se propunha apoderar-se
de um tesouro e defendê-lo... Num transporte irresistível de carinho, beijou-a e beijou-a, até
que lhe sentiu o rosto frio molhado de lágrimas ardentes...
Evelina chorava de ventura.
Ao sentir-se liberta daqueles braços que adorava, deitou a cabeça ligeiramente para
fora e deteve-se na visão do firmamento que se lhe figurava agora um campo gigantesco,
ostentando flores de fogo e prata...
Buscou a destra do companheiro, apertou-a demoradamente e indagou:
– Caio, você acredita que nos encontraremos, depois da morte?
Ele desconversou, ligou o motor, exortou-a a trocar de assunto, proibiu-a, em tom
afetuoso, de reportar-se ao que nomeou como sendo coisas tristes, e regressaram.
Caminho afora, a enferma lembrou-se do entendimento fácil com Ernesto Fantini, o
improvisado amigo do balneário. Inexplicavelmente para ela mesma, tinha saudades
daquela presença que lhe fora suave e grata. Sentia sede de permuta espiritual. Aspirava a
falar nos segredos da vida eterna e ouvir alguém, no mesmo tema e no mesmo diapasão.
Naquele instante, porém, o esposo se lhe destacava na imaginação por estranho violino que
não se lhe adaptava agora às fibras do arco. As emoções sublimes lhe esmoreciam no peito,
à míngua de crescimento e repercussão. Preferiu, desse modo, escutar o marido, abençoá-lo,
aprová-lo.
Mais um dia sereno e, em seguida, Evelina amanheceu em crise. De angústia em
angústia, com anestésicos de permeio, a jovem senhora Serpa atingiu a derradeira noite no
mundo.
Ante a mágoa profunda do esposo e dos pais, que tudo fizeram para retê-la, Evelina,
fatigada, cerrou os olhos do corpo físico, na suprema libertação, justamente quando as
estrelas desmaiavam na antemanhã, sobrerrondando alvorada nova.
5
Reencontro
Evelina despertou num quarto espaçoso, com duas janelas deixando ver o céu.
Emergia de um sono profundo, pensou.
Diligenciou recordar-se, assentando contas da própria situação.
Como teria entrado na amnésia de que estava tornando agora à tona da consciência?
Desemperrou a custo os mecanismos da memória e passou a lembrar-se,
vagarosamente... A princípio, indescritível pesadelo lhe conturbara o repouso começante.
Sofrera, decerto, uma síncope inexplicável. Percebera-se movendo num mundo exótico de
imagens que a faziam regredir na estrada das próprias reminiscências. Recapitulara, não
sabia como, todas as fases de sua curta vida. Voltara no tempo. Reconstituíra todos os dias já
vividos, a ponto de rever o pai chegando morto ao lar, quando contava somente dois anos de
idade. Nesse filme que as energias ocultas da própria mente haviam exibido para ela, nos
quadros mais íntimos do ser, ouvira, de novo, os gritos maternos e enxergava, à frente, os
vizinhos espantados, sem compreender a tragédia que se lhe abatia sobre a casa...
Depois, registrara a impressão de tremendo choque.
Algo como que se lhe desabotoara no cérebro e vira-se flutuar sobre o próprio corpo
adormecido...
Logo após, o sono invencível.
De nada mais se apercebera.
Quantas horas gastara no torpor imprevisto? Estaria regressando a si, vencido o
colapso, por efeito de algum tratamento de exceção? Por que não via, ali, junto do leito,
algum familiar que lhe propiciasse as necessárias explicações?
Tentou sentar-se e o conseguiu, sem a menor dificuldade.
Inspecionou o ambiente, concluindo que o pouso se lhe trocara. Inferiu das primeiras
observações que, tombada em desmaio, fora reconduzida ao hospital e ocupava, agora, larga
dependência, que o verde-claro tornava repousante.
Em mesa próxima, viu rosas que lhe chamavam a atenção para o perfume.
Cortinas tênues bailavam, de manso, aos ritmos do vento, que penetrava as venezianas
diferentes, talhadas em substância semelhante ao cristal revestido de essência esmeraldina.
Em tudo, simplicidade e previsão, conforto e leveza.
Evelina bocejou, distendeu os braços e não se surpreendeu com qualquer dor.
Recuperara-se enfim, refletiu alegre.
Conhecia a presença da saúde e a testemunhava em si mesma. Nenhum sofrimento,
nenhum estorvo.
Se algo experimentava de menos agradável, era precisamente um sinal de robustez
orgânica: sentia fome.
Onde o marido? Onde os pais?
Desejava gritar de felicidade, comunicando-lhes que sarara. Aspirava a dizer-lhes que
os sacrifícios efetuados por ela não haviam sido inúteis. No íntimo, agradecia a Deus a
dádiva do próprio restabelecimento e ansiava estender a jubilosa gratidão aos seres
queridos.
Não mais lograva sopitar o coração embriagado de regozijo e, por isso, buscou a
campainha, rente a ela. Apertou o botão de chamada e uma senhora de semblante doce e
atraente apareceu, saudando-a com palavras de irradiante carinho.
Evelina aceitou com naturalidade a cooperação da desconhecida.
– Enfermeira – falou para a recém-chegada –, posso rogar-lhe o favor de chamar meu
marido?
– Tenho instruções para, antes de tudo, informar o médico sobre suas melhoras.
A senhora Serpa concordou, afirmando, no entanto, que sentia necessidade de
reencontrar os familiares, de maneira a repartir com eles o próprio júbilo.
– Compreendo... – redarguiu a serviçal, com inflexão de ternura.
– Tenho sede de entender-me com alguém – aditou a convalescente, animada –, como
se chama a senhora?
– Chame-me Irmã Isa.
– Decerto, a senhora me conhece. Sou Evelina Serpa e devo ter aqui minha ficha...
– Sim.
– Irmã Isa, que me sucedeu? Estou bem, mas num estado estranho que não sei definir...
– A senhora passou por longa cirurgia, precisa descansar, refazer-se...
Para Evelina, em verdade, nada havia de surpreendente naquelas palavras articuladas
em tom significativo. Sabia-se operada. Passara pela dolorosa ablação de um tumor.
Estivera em casa, melhorara tanto que obtivera um passeio com o marido pelas estradas do
Morumbi. Apesar de tudo, reconhecia-se novamente hospitalizada, sem poder ajuizar dos
motivos.
Enquanto alinhava indagações mudas, não viu que a atendente pressionava um ponto
cinza, em determinado recanto, comunicando-se com o médico de plantão.
Em dois minutos, um homem de branco entrou, calmo.
Cumprimentou a doente, examinou-a, sorriu satisfeito.
– Doutor... – começou dizendo, ansiosa por justificar-se.
E pediu informes. Desejava saber como e quando conseguiria rever o esposo e os pais.
Não seria justo dar aos seus a notícia do êxito com que o hospital a brindava?
O facultativo ouviu-a, paciente, e rogou-lhe conformidade. Retomaria aos parentes, mas
precisava reajustar-se.
Gesticulando carinhosamente, qual se sossegasse uma filha, aclarou:
– A senhora está melhor, muito melhor; entretanto, ainda sob rigorosa assistência de
ordem mental. Em se ligando a quaisquer agentes suscetíveis de induzi-la a recordações
muito ativas da moléstia que sofreu, é provável que todos os sintomas reapareçam. Pense
nisso. Não lhe convém, por agora, recolocar-se entre os seus.
E com um olhar ainda mais compreensivo, ajuntou:
– Coopere...
Evelina ouviu a observação, de olhos lacrimosos, mas resignou-se.
Afinal, concluiu intimamente, devia ser reconhecida aos que lhe haviam granjeado a
bênção da nova situação. Não lhe cabia interferir em providências, cujo significado era
incapaz de apreender. Adivinhando que o médico se dispunha a sair, solicitou com
humildade se lhe seria permitido ler e, se essa concessão lhe fosse feita, rogaria que a casa
lhe emprestasse algum volume em que pudesse colher ensinamentos de Cristo.
Sensibilizado, o médico lembrou o Novo Testamento e, a breves instantes, a atendente
trouxe o livro mencionado.
Restituída à solidão, Evelina começou a ler o Sermão da Montanha; todavia, a
advertência clínica se lhe intrometia na imaginação, insistentemente. Se estava restaurada,
qual se via, por que simples lembranças lhe imporiam retorno aos padecimentos de que se
acusava liberta? Por quê? Percebia-se na posse de inenarrável euforia. Deliciosa sensação
de leveza lhe mantinha a disposição para a alegria, como nunca sentira em toda a existência.
Tais recursos de equilíbrio orgânico seriam assim tão fáceis de perder?
Retirou a atenção do livro e engolfou-se em novas cogitações... E se reconstituísse em
espírito a presença de Caio e dos pais, com veemência? E se concentrasse os próprios
pensamentos nas dores que havia deixado à retaguarda?
Infelizmente para ela, confiou-se a semelhantes exercícios e, decorridos alguns
minutos, a crise revelou-se, agigantando-se-lhe no corpo em momentos rápidos. Regelavam-
se-lhe as extremidades, enquanto que mantinha a ideia de que um braseiro a requeimava
por dentro, com a dispneia afrontando-lhe o peito. Desencadeados os sintomas, quis reagir,
contrapor conceitos de saúde aos de doença; entretanto, era tarde. O sofrimento ganhou-lhe
as forças e passou a contorcer-se no suplício de que se admitira definitivamente
distanciada...
Atônita, premiu a campainha e a prestimosa atendente se desdobrou na tarefa
assistencial.
O médico reapareceu e administrou sedativos.
Ambos, nem ele nem a enfermeira, lhe endereçaram o mínimo reproche, mas a doente
lhes leu no olhar a convicção de que tudo haviam compreendido. Em silêncio, davam-lhe a
saber que não lhe ignoravam a teimosia e que, com toda a certeza, não se acomodando aos
avisos recebidos, quisera experimentar por si mesma o que vinha a ser um tipo de
mentalização inconveniente.
Conquanto a bondade de que dava mostras, o médico agiu com energia.
Forneceu instruções severas à companheira de serviço, depois da injeção calmante que
ele próprio aplicou à senhora Serpa, em determinada região da cabeça, e recomendou
medidas especiais para que ela dormisse. Aconselhável obrigá-la a repousar mais tempo,
controlada por anestésicos. A doente não podia e nem devia entregar-se a ideias fixas, sob
pena de voltar a sofrer sem necessidade.
Evelina registrou as observações dele, em franca modorra. Depois, abismou-se em
pesado sono, do qual despertou muitas horas após, consciente de que lhe competia cuidar-
se, evitando novo pânico. Mostrou o desejo de alimentar-se e foi imediatamente atendida
com caldo quente e reconfortante, que lhe calhou gostosamente ao paladar, à feição de
néctar.
Refez-se, vigilante. Reconhecia-se sob uma espécie de assistência cuja eficácia e poder
não lhe cabia agora subestimar.
Finda uma semana em descanso absoluto, com entretenimentos de leitura escolhida
pelas autoridades que a cercavam, passou a caminhar no recinto do quarto.
Ao retomar a verticalidade, assinalava em si mesma inequívocas diferenças. Os pés se
lhe patenteavam leves, qual se o corpo houvesse diminuído de peso, intensivamente, e,
sobretudo, no cérebro, as ideias lhe nasciam em torrente, vigorosas e belas, quase a se lhe
materializarem diante dos olhos.
Numa tarde em que se via mais amplamente estimulada a reaver os movimentos
normais, abeirou-se da janela que dava para um pátio enorme e, do alto do terceiro andar
que a hospedava, contemplou dezenas de pessoas que conversavam alegremente, muitas
delas sentadas em torno de irisada fonte que se erigia em centro de florido e extenso jardim.
Aquela sociedade serena atraiu-a.
Tinha sede de convivência, atreita que se achava a austeras disciplinas. À vista disso,
consultou a enfermeira se lhe era concedido descer, travar conhecimento com alguém.
Afinal, sugeriu com otimismo, uma casa de saúde não deixa de assemelhar-se a um navio,
em cujo bojo as criaturas se interessam umas pelas outras, estendendo-se as mãos.
A serviçal achou graça e escorou-a nos braços, para a descida.
Poderia, sim, divertir-se ali. O ambiente lhe faria bem, ao mesmo tempo que lhe seria
lícito granjear uma que outra amizade.
Deixada a sós, fitou ansiosamente os rostos que a rodeavam. Figurou-se-lhe estar no
seio de vasta família de pessoas afins pelo coração, mas quase todas desconhecidas entre si,
qual acontece num balneário.
Todos os circunstantes acusavam-se na posição de convalescentes, adivinhando-se-
lhes, sem dificuldade, os vestígios das enfermidades de que haviam conseguido evadir-se.
Evelina interrogava-se, quanto ao melhor processo de estabelecer contato com alguém,
quando viu um homem, não longe, que a fitava, evidentemente assombrado. Oh! não era
aquele cavalheiro, exatamente Ernesto Fantini, o improvisado amigo das termas? O coração
bateu-lhe agitado e ela estendeu, na direção dele, os dois braços, dando-lhe a certeza de que
o aguardava, de alma aberta.
Fantini, pois era ele mesmo, ergueu-se da poltrona em que se guardava e avançou para
ela, a passos rápidos.
– Evelina!... Dona Evelina!... Estarei realmente vendo a senhora?
– Eu mesma! – respondeu a moça, chorando de alegria.
O recém-chegado não foi estranho à emotividade daquele minuto inesquecível.
Lágrimas lhe rolaram no rosto simpático e sisudo, lágrimas que ele buscava enxugar,
embaraçado, procurando sorrir.
6
Entendimento fraternal
– Há quantos dias aqui?
– Positivamente, não sei – adiantou Ernesto, denotando fome de conversação.
E completou:
– Tenho matutado bastante naquele nosso entendimento de Poços de Caldas,
acalentando sempre a esperança de revê-la...
– Gentileza de sua parte.
Evelina confidenciou a perplexidade em que vivia. Despertara naquela instituição de
saúde que desconhecia de todo, obviamente transferida de casa por imposição da família,
porquanto o único fato de que se recordava com clareza era justamente o desmaio em que
descambara no tope de uma crise das piores que havia atravessado.
E salientou, sorrindo, que tivera a impressão de morrer...
Quanto tempo desacordada? Ignorava.
Retomara-se apenas quando viera a si do sono profundo e sem sonhos, ali mesmo, no
quarto do terceiro andar.
Desde então, andava intrigada com o mistério que a administração fazia, em torno dela
própria, de vez que não obtivera permissão para telefonar ao marido.
Fantini escutava, atencioso, sem articular palavra.
Em derredor, algumas pessoas se mantinham sentadas ou caminhavam com
naturalidade, lendo ou palestrando, aqui e ali.
Rosas, miosótis, jasmins, cravinas, begônias e outras flores, sob árvores recordando
amendoeiras, fícus e magnólias, embalsamavam o ar, extremamente diáfano, com perfume
delicioso.
Alongados os comentários que anotava, curioso, Fantini mostrou estranho brilho no
olhar e concordou com Evelina.
Declarou achar-se em brasas. Revelou que também sofrera esquisita fuga de si mesmo,
com a diferença de que isso lhe ocorrera, logo após a cirurgia, quando voltava para o leito,
segundo acreditava. E registrara aquele mesmo fenômeno de retrospecção, a que se
reportava a senhora Serpa em seus apontamentos confidenciais, no qual se vira
repentinamente devolvido ao pretérito, desde os primeiros momentos de espanto até os
dias primeiros da infância...
Depois, dormira pesadamente.
Incapaz de explicar-se, quanto ao tempo exato em que se demorara obtuso,
inconsciente, tomara acordo de si próprio naquele nosocômio, dez dias antes.
Conservava, igualmente, a mesma estupefação, perante as normas de serviço ali
regulamentadas, porque não conseguira o mínimo contato com a esposa ou a filha, das quais
se despedira na cela hospitalar, horas antes do trabalho operatório a que se submetera.
Achava-se, por isso, inquieto.
Ela, Evelina, experimentara o enigmático desmaio, no círculo doméstico, ao pé dos
entes queridos. Ele, porém, deixara a família em meio de agoniada expectativa, sem que lhe
fosse facultado qualquer recurso de comunicação com os parentes. Reconhecia que o
estabelecimento de saúde a que se abrigava agora não era o mesmo onde se internara para
o tratamento. Chegava a duvidar de que estivesse realmente em São Paulo. O firmamento
parecia-lhe um tanto diverso à noite e a piscina de que se servira continha água tenuíssima,
embora fosse compreensível tivesse aquela casa filtros e engenhos especiais para a
medicação da água comum.
E Ernesto acabou o relatório, indagando:
– A senhora já foi às termas?
– Ainda não.
– Verificará minha surpresa quando for até lá.
– E admite que irei? – retorquiu Evelina com o ar brejeiro de quem se via um tanto mais
consolada.
– Perfeitamente. Já ouvi dizer que a hidroterapia aqui é obrigatória.
Fantini sorriu significativamente e enunciou, carregando cada palavra de recôndita
inquietação:
– Sabe da hipótese mais razoável? Desconfio de que nos achamos, com autorização de
nossos familiares, numa organização psiquiátrica. Nada sei de medicina; no entanto, estou
supondo que os problemas da suprarrenal nos transtornaram a cabeça. Teremos talvez
enlouquecido, entrando pelas raias da absoluta alienação mental e, com certeza, a
segregação terá sido a providência aconselhável...
– Por que pensa assim? – Volveu a senhora Serpa, muito pálida.
– Dona Evelina...
– Não me chame “dona”... Insisto em que somos amigos e agora mais irmãos...
– Seja – aquiesceu Fantini.
E continuou:
– Evelina, você verá os aparelhos engraçados com que nos aplicam raios à cabeça, antes
do banho medicinal. E creia que todos os doentes acusam melhoras gradativas. Desde
anteontem, quando fui à imersão pela primeira vez, sinto-me mais lúcido e mais leve,
sempre mais leve...
– Acaso não se vê em boa posição mental, desde que despertou?
– Não tanto. Aflito por notícias dos meus, voltei a sentir agudas crises. Bastava lembrar
a mulher e a filha, concomitantemente com a intervenção cirúrgica, e via-me, quase que de
imediato, sob asfixia terrível, a desfalecer de sofrimento.
Evelina rememorou a própria experiência, mas silenciou. Sentia-se cada vez mais
inquieta.
– Através do cuidado com que as autoridades me respondem às interpelações –
estendeu-se Fantini –, entendo que se esforçam por manter-nos em harmonia e
tranquilidade. Admito que teremos passado por algum trauma psíquico e que nos achamos
presentemente na reconquista do próprio equilíbrio, o que vamos obtendo, muito a pouco e
pouco. Segundo creio, fomos colocados sob terapêutica puramente mental. Ainda ontem,
renovei a reclamação de sempre, solicitando comunicação com meu pessoal e sabe o que a
enfermeira de plantão me respondeu, perfeitamente senhora de si?
–?
– “Irmão Fantini, esteja tranquilo. Seus familiares estão informados de sua ausência.”
Mas não querem conversar comigo? Nem me chamam ao telefone? – indaguei. E a assistente
respondeu: “Sua senhora e sua filha sabem que não podem aguardar tão cedo a sua
presença em casa”. Porque eu recalcitrasse, exigindo providências, a moça declarou: “por
enquanto isso é tudo o que lhe posso dizer”.
– Que deduz de suas próprias observações?
– Concluo, salvo melhor juízo, que estivemos, claramente sem o sabermos, na condição
de alienados mentais – sugeriu Fantini, quase novamente bem-humorado –, e decerto
emergimos, agora, com muito vagar das trevas psíquicas para o estado normal de
consciência. Os médicos e enfermeiros que nos rodeiam estão plenamente justificados,
quanto ao propósito de resguardar-nos contra quaisquer tipos de preocupação com a vida
exterior. O menor vinco de aflição na tela mental de nossas impressões do momento, assim
penso, nos traria talvez grande prejuízo às emoções e ideias, qual ocorre à pequena
distorção que desfigura a simetria das ondas elétricas.
– É possível.
Expressiva pausa caiu entre os dois.
Após fundo mergulho no mundo de si mesmo, Ernesto rompeu o intervalo:
– Evelina, quando você entrou na crise terrível de que me fala, ter-se-á confessado
antes? Que lhe teria dito o sacerdote? Recebeu dele quaisquer conselhos?
A interlocutora assustou-se, perante a angústia com que semelhantes inquirições eram
moduladas e contraindagou:
– Oh! por quê? Por que, meu amigo? Confessei-me antes do desmaio, sempre que
pude... Mas, por que procura saber? Para chasquear?
Fantini, porém, não brincava. Os olhos dele entremostravam indisfarçável mal-estar.
– Não se amofine. Pergunto por perguntar – devaneou ele, tamborilando os dedos da
mão esquerda sobre o tripé que se erguia à frente –; numa conjuntura perigosa, qual a que
atravessamos, toda a assistência é pouca... Lembrei-me de que você tem uma religião e de
que ainda sou um homem sem fé...
Ernesto ainda não rematara de todo a última frase, quando uma jovem, num grupo de
três que caminhavam a curta distância, se rojou ao chão, como quem fora subitamente
acometida por violento acesso de histeria, gritando em meio de manifesta agonia mental:
– Não!... Não posso mais!... Quero minha casa, quero os meus!... Minha mãe?!... Onde está
minha mãe? Abram as portas!... Bandoleiros! Quem é bastante corajoso aqui para derrubar
comigo estes muros? A polícia!... Chamem a polícia!...
Tratava-se, inquestionavelmente, de um caso de loucura, mas havia tanto sofrimento
naquela voz que os circunstantes mais próximos se levantaram, espantadiços.
Uma senhora, irradiando paciência e bondade, exibindo na blusa as insígnias de
enfermeira da casa, surgiu de chofre, abriu caminho no grupo de curiosos que começava a
adensar-se e inclinou-se, abraçando, maternalmente, a menina revoltada. Sem o mínimo
impulso à repreensão, soergueu-a, notificando com inexcedível brandura:
– Filha, quem lhe disse que não voltará a sua casa? Que não reverá sua mãe? Nossas
portas jazem abertas... Venha comigo!...
– Ah! irmã – suspirou a jovem repentinamente asserenada por aquelas mãos fortes e
boas que a enlaçavam –, perdoe-me!... Perdoe-me! Não tenho razão de queixa, mas estou
com saudades de minha mãe, sinto falta de casa! Há quanto tempo estou aqui, sem qualquer
dos meus? Sei que sou doente, recebendo o benefício da cura, mas por que não tenho
notícias?!...
A assistente ouviu calma e apenas prometeu:
– Você as terá...
Passando-lhe, em seguida, o braço carinhoso acima dos ombros, concluiu:
– Por agora, vamos ao repouso!...
A menina, como quem surpreendera na benfeitora alguma recordação do calor
materno de que sentia exacerbada carência, encostou a loura cabeça ao peito que lhe era
ofertado e retirou-se, soluçando...
Evelina e Ernesto, que haviam acorrido para o auxílio possível, contemplaram o
quadro, entre aflitos e magoados.
Em ambos, a sede de esclarecimento.
Que ilação recolher da súplica chorosa da doentinha atribulada pela ausência do ninho
doméstico? Que hospital era aquele? Um pronto-socorro para alienados mentais? Um
nosocômio destinado à recuperação de desmemoriados?
Num impulso de curiosidade que não mais pôde sopitar, abeirou-se Evelina de uma
senhora simpática que acompanhara a cena, denotando aguda atenção, e cujos cabelos
grisalhos lhe recordavam a cabeleira materna, e assuntou com discrição:
– Desculpe-me, senhora. Não nos conhecemos, mas a aflição em comum nos torna
familiares uns aos outros. A senhora pode dar alguma informação acerca da pobre menina
perturbada?
– Eu? Eu? – redarguiu a interpelada.
E advertiu:
– Minha filha, eu aqui, praticamente, não sei da vida de ninguém.
– Mas escute, por favor. Sabe onde estamos? Em que instituto?
A matrona achegou-se mais para perto de Evelina que, a seu turno, recuou para junto
de Fantini, e cochichou:
– A senhora não sabe?
Ante o assombro indisfarçável da senhora Serpa, dirigiu o olhar penetrante para
Ernesto e aduziu:
– E o senhor?
– Nada sabemos – comunicou Fantini, cortês.
– Pois alguém já me disse que estamos todos mortos, que já não somos habitantes da
Terra...
Fantini sacou o lenço do bolso para enxugar o suor que passou a escorrer-lhe
abundantemente da testa, enquanto Evelina cambaleou, prestes a desfalecer.
A desconhecida estendeu os braços à companheira e recomendou, preocupada:
– Minha filha, contenha-se. Temos aqui dura disciplina. Se mostrar qualquer sinal de
fraqueza ou rebeldia, não sei quando voltará a este pátio...
– Repousemos – interveio Ernesto.
E dando o braço a Evelina, ao passo que a dama prestimosa ajudava a escorá-la,
rumaram os três para largo assento próximo, sob grande fícus, onde passaram a descansar.
7
Informações de Alzira
– Conversemos – convidou a nova amiga.
Receosa, ante os serviços de vigilância, manifestava a intenção de despistar. Dispunha-
se a todo custo demonstrar naturalidade, temendo que alguém pudesse haver assinalado o
choque da companheira.
Fantini compreendeu e esmerou-se a coadjuvá-la.
Pretendendo ignorar a lividez com que a senhora Serpa os ouvia, fez as apresentações
com aparente serenidade.
– Sou Alzira Campos – identificou-se a matrona, recém-chegada ao grupo –, e moro em
São Paulo.
Deu o endereço, reportou-se à família, caracterizou o bairro em que residia e adiantou:
– Desde que caí em casa, trouxeram-me desacordada para este hospital e, pelas contas
que faço, há quase dois meses espero alta.
Estabeleceu-se o diálogo entre ela e Ernesto, enquanto Evelina se reasserenava,
lentamente.
– A senhora já se sente restabelecida?
– Completamente.
– Já travou relações com alguma autoridade que lhe possa orientar com indicações
precisas, quanto ao futuro?
– Sim. A Irmã Letícia, que me assistiu, de início, nos banhos medicinais, avisou-me
anteontem que não está longe o dia em que me será possível decidir, relativamente a
permanecer aqui ou não...
– Que terá ela desejado dizer com esse permanecer aqui ou não?
– Realmente, sabendo-se quanto anseio voltar a casa, muito me encabulei ao receber-
lhe esse apontamento.
– Nada mais indagou?
– Sim. Roguei mais claras instruções, pedi minudências. Ela, contudo, apenas me disse,
gentil: “Você compreenderá melhor, mais tarde”.
– Dona Alzira – sussurrou Ernesto, com firmeza –, a senhora não acredita que estamos
numa organização de saúde mental, num asilo de loucos?
A matrona relanceou o olhar em derredor, à feição de doente amedrontada com a
vigilância de guardas severos, e opinou:
– Se vamos examinar assuntos graves, não nos convém isolar a companheira. Nossa
amiga Evelina pode acelerar o próprio refazimento. Peçamos para ela um tônico adequado.
Conjugando ação à palavra, premiu diminuto botão que se incrustava à mesa e surgiu
um rapaz de serviço, diligenciando saber em que lhes poderia ser útil.
Alzira encomendou refresco para três.
– Qual o sabor?
– Maçã.
Num átimo, o portador trazia três taças com róseo líquido aromatizado em safirina
bandeja.
– Este, a meu ver, é o melhor refrigerante que encontrei aqui, até agora, porque tem
pretensões a sedativo – avisou a dama quando se viram, de novo, a sós.
Evelina sorveu um gole, avidamente, com a impressão de haver bebido um néctar, mais
vaporoso que líquido.
O inesperado reconstituinte revigorava-lhe as forças, ao mesmo tempo em que lhe
reacomodava os pensamentos.
– Estou melhor – notificou de súbito –, graças a Deus!...
Alzira sorriu e confirmou a disposição de palestrar, dando aos amigos todos os
esclarecimentos que se lhe fizessem possíveis.
Fantini segredou:
– Voltando ao assunto, não considera a senhora que nos achamos sob assistência
especializada, do ponto de vista da mente?
– A princípio – aclarou Alzira –, também pensei assim. Notem que nos sentimos aqui de
pensamento mais leve e cabeça sempre mais clara por dentro. As ideias fluem com tanta
ligeireza e espontaneidade que parecem tomar corpo, junto de nós. Concordo em que nos
encontramos num tipo de vida espiritual diferente, muito diferente daquela em que
vivíamos, até a nossa vinda para cá. Apesar disso, porém, não creio estejamos nós num
manicômio. Certamente já sabem que estamos rodeados por vida citadina muito intensa.
Residências, escolas, instituições, templos, indústrias, veículos, entretenimentos públicos...
– Quê?... – disseram Evelina e Ernesto a um só tempo.
– É como lhes digo. Isto aqui é uma cidade relativamente grande. Nada menos de cem
mil habitantes e, ao que dizem, com administração das melhores.
– A senhora já conseguiu alguma experiência lá fora? Já se afastou alguma vez destes
muros? – interrogou Ernesto, a desfazer-se em curiosidade.
– Sim; na semana finda, obtive permissão para visitar uma família que não conhecia,
acompanhando duas amigas. Até agora, essa foi a única vez em que me ausentei do hospital.
E posso afirmar que a excursão foi realmente deliciosa, conquanto o pasmo de que me vi
tomada, ao fim do passeio...
– Que viu e a quem viu? – sondou Ernesto.
– Não se aflijam. Vocês conhecerão tudo a seu tempo. A cidade é linda. Uma espécie de
vale de edifícios, como que talhados em jade, cristal e lápis-lazúli. Arquitetura original,
praças encantadoras recamadas de jardins. Creiam vocês que caminhei, fascinada, de rua
em rua. O Irmão Nicomedes, pois assim se chama o dono da casa, acolheu-nos com muita
gentileza. Apresentou-me a filha Corina, uma bela jovem, com quem para logo simpatizei.
Íntima de uma das amigas que eu seguia e com a qual entraria em combinação sobre
assuntos de serviço, salientou a alegria festiva do lar, falando-nos de esperados júbilos
domésticos. Mostrou-nos os lustres novos, as telas e os vasos soberbos... Tudo seguia num
crescendo de doces surpresas para mim, quando surgiu a bomba... Achávamo-nos no
terraço, admirando um canteiro de jasmins suspensos, quando ouvimos o “Sonho de Amor”,
de Liszt, tocado ao piano. Corina informou-nos de que o pai dedilhava o instrumento com
grande mestria. Enterneci-me de tal modo que manifestei o desejo de ouvi-lo, mais de perto.
A nossa anfitriã conduziu-nos, de imediato, à sala de música. E foi um deslumbramento. O
Irmão Nicomedes, absorto, revelava-se num mundo de alegrias profundas, que se lhe
irradiavam da vida interior, em forma de melodias, das notáveis melodias que se sucediam
umas às outras. Em dado momento, apontei: “Ele parece mergulhado num longo êxtase, toca
como quem ora”, ao que a filha respondeu: “Estamos efetivamente muito felizes; minha
mãe, ao que sabemos, deverá chegar nesta semana”. “Ela está de viagem?” perguntei. Com a
maior naturalidade, a moça esclareceu: “Minha mãe virá da Terra”. Quando ouvi isso,
experimentei horrível choque, como se acabasse de receber uma punhalada no peito.
Faltou-me o ar; entrei, desprevenida, numa terrível crise de angústia... A simples ideia de
que nos situávamos em lugar fora do mundo que sempre conheci me fazia voltar às dores
anginosas que, desde muito tempo, não registrava. Corina me entendeu sem palavras e
trouxe um calmante. Meu estado de perturbação, ao que observei, se comunicou a todo o
ambiente, porque o dono da casa interrompeu-se, de improviso, quando executava um belo
noturno... Via-me prestes a desmaiar. O pequeno grupo congregou atenções junto de mim e
fui levada para o ar livre. Sentaram-me numa poltrona de pedra, semelhante ao mármore.
Tateei com força o respaldar da curiosa cadeira e, ao verificar a dureza do material sob
minhas mãos, comecei a tranquilizar-me... Em seguida, olhei para o céu e vi a lua cheia,
fulgindo com tanta beleza que me asserenei de todo. Percebi a sem-razão do meu susto. E
refleti, de mim para comigo: “Por que não existirá uma cidade, uma vila, um lugarejo
qualquer de nome Terra?” O quadro que me cercava era positivamente um recanto do
mundo... Indiscutivelmente, a esposa de Nicomedes estaria sendo esperada de alguma
aldeia anônima... Ruminava minhas conclusões, quando o chefe do lar indagou,
compadecido: “Há quanto tempo nossa Irmã Alzira está conosco?” “Pouco mais de dois
meses”, participou uma de minhas guardiãs. Nada mais se comentou a meu respeito. A visita
foi encerrada. De retorno ao hospital, as irmãs a quem seguira, por sinal duas excelentes
enfermeiras, não fizeram a mínima referência ao meu sobressalto...
– Não tem trocado ideias com mais ninguém? – objetou Fantini, interessado.
– Apenas durante os banhos, ouço uma que outra companheira. Em cada uma, encontro
a dúvida, pairando... A maioria supõe que nos vemos defrontados por outra vida...
– Nenhuma delas tem certeza absoluta? – interveio a senhora Serpa.
– Unicamente a senhora Tamburini se mostra plenamente convencida de que não mais
nos situamos no domicílio terrestre. Contou-me que vem frequentando um gabinete de
estudos magnéticos, aqui mesmo em nossa organização hospitalar, e sujeitou-se a testes
que lhe deram a confirmação de que não está de posse do corpo físico. Escutei-a com
atenção e ela acabou convidando-me para algumas experiências, mas agradeci a gentileza,
sem aceitá-la. Essas histórias de clarividências e reencarnações não se afinam com a minha fé
católica.
– Ah! a senhora é católica? – interrompeu-a Evelina.
– Oh! sim...
– E, já que respiramos no clima de grande cidade, não temos aqui sacerdotes?
– Sim, temos.
– Já se entendeu com algum deles?
– Estou convidada para visitar uma igreja e farei isso, logo obtenha permissão. Devo,
porém, dizer-lhe que, segundo informações de boa fonte, os padres são muito diferentes
nestas paragens...
– Em que sentido?
– Dizem que são sacerdotes médicos, professores, cientistas e operários e não se
restringem aos serviço da fé. Prestam socorro espiritual, eficiente e positivo, em nome de
Jesus.
Fantini observou que o pátio esvaziava.
Todos os doentes se recolhiam.
Alzira, a nova amiga, apalavrou novo encontro para depois, enquanto cumprimentava
às despedidas. Logo após, Ernesto e Evelina regressaram aos aposentos, na expectativa de
se reverem no dia seguinte.
8
Encontro de cultura
Ernesto Fantini e a senhora Serpa usufruíam horas e horas de confortadora intimidade
no pátio, mantendo interessantes conversações.
Mais de quinze dias haviam transcorrido sobre o primeiro reencontro. Evelina, tanto
quanto o amigo, já se familiarizara com os banhos terapêuticos e ambos já haviam entrado
em contato com a senhora Tamburini, que Alzira indicava como sendo a pessoa mais culta
de suas relações. Essa prestimosa criatura lhes hipotecara a promessa de conduzi-los, tão
logo possível, ao Instituto de Ciências do Espírito, que funcionava ali mesmo, num dos
recantos do grande jardim.
Sem qualquer dúvida, para os dois, as considerações da senhora Tamburini eram, até
então, as mais esclarecedoras que tinham ouvido. No tête-à-tête quase diário, solicitava-lhes
maior reflexão em torno da matéria, a escalonar-se em diversos graus de condensação, e
mais amplo exame das percepções da mente, a se alterarem, conforme os princípios de
relatividade; noutros lances dos repetidos entendimentos, rogava-lhes estudar neles
próprios a extrema leveza de que se viam possuídos, a agilidade do corpo sutil que
envergavam agora e a maneira singular em que exprimiam o pensamento, como se as ideias
se lhes esguichassem do cérebro, em forma de imagens, acima das suas possibilidades
habituais de contensão. Que se detivessem também a perquirir naquele novo clima de vida
as ocorrências telepáticas, a se erigirem, ali, em fenômeno corriqueiro, apesar de não
prescindirem da linguagem articulada. Bastava maior grau de afinidade, entre as pessoas,
para que se entendessem harmoniosamente, em derredor dos assuntos mais complexos,
com o mínimo de palavras.
Acolhiam satisfeitos as judiciosas apreciações da senhora Tamburini, que aceitava
plenamente a convicção de serem criaturas desencarnadas em algum departamento do
Mundo Espiritual; entretanto, não obstante o respeito que lhes mereciam, não logravam
admiti-las por verdade inconteste.
Evelina, sentada no chão relvoso, ao pé de Fantini que se acomodava num pequeno
escabelo, iniciou o diálogo, avaliando, cismarenta:
– De fato, a cada dia me sinto mais leve, sempre mais leve. E, com isso, vou perdendo o
controle de mim mesma. Noto que os meus sentimentos sobem do coração para o cérebro, à
maneira das águas de um manancial profundo ao jorro da fonte... Na cabeça, observo que as
emoções se transfiguram em pensamentos que me escorrem imediatamente para os lábios
em forma de palavras, a partirem de mim, quais as correntes líquidas que se estendem, para
além do nascedouro, terra adiante...
– Bem lembrado. Você definiu com precisão meu próprio estado de espírito.
– Mas, escute, Ernesto – advertiu a moça, tocando a base de árvore robusta –, que vê
aqui?
– Um tronco.
– E ali, no canteiro mais próximo?
– Cravos.
– Seria este o Mundo Espiritual se a matéria e a natureza estão presentes em tudo,
segundo as conhecemos?
– Concordo em que para nós dois, que não possuímos estudos claros, com referência às
nossas atuais condições, tudo isto aqui é absurdo, alucinante, mas...
– Mas?!...
– Sim, nada podemos afiançar, de afogadilho.
– Você está influenciado pelas ideias da Tamburini?
– Não tanto. Faço minhas próprias ilações.
– Ouça, Ernesto. Se estamos mortos para os entes que amamos, por que não nos vieram
ainda buscar os seres queridos de nossas famílias, aqueles que nos precederam na vida
nova? Nossos avós, por exemplo, e os amigos íntimos que todos vimos morrer?!...
– E quem disse a você que eles já não terão vindo?
– Como justificar esta alegação?
– Recorde, Evelina, as lições elementares de casa. Um televisor capta imagens que não
vemos e no-las transmite com absoluta lealdade. Um rádio mirim assinala mensagens que
não escutamos e no-las entrega com a maior clareza. É muito provável estejamos sendo
vistos e ouvidos, sem que tenhamos, até agora, despertado a faculdade precisa de escutar e
enxergar neste plano.
– Ernesto, e as orações? Se somos Espíritos libertos do chamado corpo carnal, alguém
no mundo ter-se-á lembrado de nós em prece... Sua senhora, sua filha, meus pais, meu
esposo...
– Não conhecemos o mecanismo das relações espirituais, nem temos qualquer estudo
de ciências da alma. Quem afirmará que não estaremos ambos sendo sustentados pela força
das orações daqueles que amamos ou daqueles outros... Que ainda nos amem...
– Que quer dizer?
– Que contas já nos foram apresentadas neste hospital? A que e a quem devemos os
cuidados e gentilezas que nos são dispensados, diariamente? Não compramos as nossas
roupas novas e nem as utilidades que usufruímos... Você, tanto quanto eu, já endereçamos a
alguma enfermeira aquela conhecida pergunta: “Quem paga”?
– Já indaguei...
– Qual foi a resposta?
– “Aqueles que vos amam”.
– Quem são esses, no seu modo de ver?
– Em meu caso, meu esposo e meus pais...
– Tenho minhas dúvidas. De início, supus estivéssemos em recuperação num instituto
de saúde mental; entretanto, cada dia que passa nos surpreende em nível mais alto de
consciência, no que diz respeito aos nossos raciocínios. Se nos demorássemos num hospício,
depois de algum colapso nervoso, a nossa restauração não se faria assim tão rápida...
Quebrou-se, porém, o fio da interessante conversação.
A senhora Tamburini abordou-os, à pressa, a fim de avisar que o encontro de cultura
espiritual estava marcado para a noite que se avizinhava e urgia se aprestassem.
Munidos do necessário consentimento, ei-los que se dirigem para a organização, às sete
da noite, junto da amiga, que os recomenda à estima do mentor em serviço, o Irmão Cláudio.
Acolhidos com simpatia no recinto, onde se instalavam vinte e três pessoas, notaram a
presença de enorme globo que, decerto, se prestaria como ponto de partida para valioso
aprendizado.
O orientador principiou a reunião, notificando que a turma estaria em aula dialogada e
que não era, ali, senão um companheiro dos demais, com erros, hipóteses, aproximações e
acertos, em tudo aquilo que viesse a dizer.
– Qual é o tema, professor? – sindicou senhora distinta.
– “Da existência na Terra”.
Em seguida ao esclarecimento, o diretor do grupo teceu preciosos comentários, em
torno das funções do orbe terrestre na economia cósmica, e prosseguiu:
– Reflitamos, meus amigos. Quem de nós, na atualidade de nossos conhecimentos
incompletos, conseguirá deitar sabedoria, no campo da inteligência, tão só pelo testemunho
das impressões pessoais? Não ignoramos que a Terra é um gigantesco engenho no Espaço,
transportando consigo quase três bilhões de pessoas físicas, conduzindo-as pelas vias do
Universo, sem que saibamos, ainda, ao certo, em que base de força se dependura,
informando-nos unicamente de que semelhante colosso realiza, ao redor do Sol, uma órbita
elíptica com a velocidade média de 108.000 quilômetros por hora; enquanto certas regiões
do planeta se encontram aprumadas perante o zênite, em outras, as criaturas se acham de
cabeça para baixo, diante do nadir, sem que ninguém dê por isso; até ontem, qualquer
pessoa asseverava que a matéria densa de uma paisagem se constituía de elementos sólidos
em repouso; hoje, porém, qualquer jovem estudante sabe que essas impressões são
imaginárias, uma vez que a matéria, em toda parte, se dissolve num misto de elétrons,
prótons, nêutrons e dêuterons, encerrando-se em energia e luz; qualquer homem reside
num corpo do qual se faz inquilino, respira e atende aos impositivos da nutrição, sem maior
esforço de sua parte. De que maneira dogmatizar afirmativas sobre causas, processos,
acrisolamento e finalidade de nossa existência terrestre pelos acanhados recursos dos
sentidos comuns?
Estabelecendo-se comprida pausa, aventou um cavalheiro:
– Professor, com estas deduções, o senhor quer dizer...
– Que a vida na Terra deve ser interpretada como um trabalho especial para o Espírito.
Cada qual nasce para determinada tarefa, com possibilidades de evolver para outras,
sempre mais importantes, e que, por isso mesmo, não será possível arrebatar às criaturas os
princípios religiosos de que dispõem, sem prejuízos calamitosos para elas próprias. A
ciência avançará, desvendando segredos do Universo, resolvendo problemas e suscitando
desafios novos à sua capacidade de investigação; no entanto, a fé sustentará o homem nas
realizações e provas que é chamado a atravessar. O Espírito renasce no mundo físico, tantas
vezes quantas se façam necessárias para utilizar-se, aperfeiçoar-se, lucificar-se; e, à medida
que se aprimora, vai percebendo que a existência carnal é um ofício ou missão a
desempenhar, de que dará ele a conta certa ao término da empreitada.
O explicador revelava tamanha altura cultural, através da exposição em andamento,
que raros apartes se fizeram ouvir.
Sem desviar, por isso, a espinha dorsal da preleção que pretendia, indubitavelmente,
preparar os ouvintes para a aceitação pacífica do novo estado espiritual a que se haviam
transferido, comentou:
– Se as leis do Senhor se manifestam claras e magnânimas, em todos os departamentos
da experiência física, estaríamos, acaso, desprezados por Deus, quando ultrapassamos as
fronteiras da morte? Referimo-nos, aterrados, ao aniquilamento das vidas humanas, quando
as guerras varrem a face do planeta; entretanto, que concluir acerca dessas mesmas vidas
humanas, a se extinguirem, metodicamente, nas épocas de paz? Conservar-se-ia o Senhor
indiferente aos nossos destinos, em algum lugar do Universo? Ele, que inspira a graduação
do alimento para a criança e para o adulto, relegaria ao abandono a criatura desencarnada,
quando a criatura vestida de agentes físicos vive e age numa esfera de ação, na qual os
fatores de previsão e proteção oferecem, todos os dias, os mais belos espetáculos de
grandeza?
Ninguém, ali, penetrava, a fundo, o caráter sibilino daquelas alegações. Os
circunstantes, pelo menos em maioria, não se apercebiam de que estavam sendo
adestrados, delicadamente, a fim de admitirem a realidade espiritual, sem barulho.
Surgindo mais ampla quota de silêncio, em virtude de achar-se o professor interessado
em averiguar posições geográficas, no globo à vista, Evelina cobrou ânimo e perguntou:
– Irmão Cláudio, todas as pessoas registrarão sensações iguais entre si, depois da
morte?
– Não. Cada qual de nós é um mundo por si e, em razão disso, cada individualidade,
após largar o carro físico, encontrará emoções, lugares, pessoas, afinidades e oportunidades,
conforme desempenhou o ofício, ou melhor, os deveres que lhe competiam durante a
existência, na Terra. Ninguém pode conhecer o que não estuda, nem reter qualidades que
não adquiriu.
Cláudio entreteceu, ainda, apontamentos ricos de beleza e de lógica e, ao término da
brilhante tertúlia, Ernesto e Evelina estavam reconfortados e felizes, ao modo de viajantes,
sedentos de valores da alma, depois de se abeberarem numa fonte de luz.
9
Irmão Cláudio
Finda a aula e, recomendados pela senhora Tamburini, que não pudera acompanhar a
reunião, Fantini e senhora Serpa se demoraram em companhia do Irmão Cláudio, que os
recebeu carinhosamente na intimidade.
Não residia ali, explicou.
O Instituto desdobrava serviços em todo o prédio, ocupando-lhe as dependências.
Ainda assim, que os amigos se sentissem convidados para alguns dedos de prosa, em casa,
onde, junto da esposa, teria prazer em recebê-los. Já que a senhora Tamburini o indicara,
como sendo um explicador capaz de prestar-lhes informes, em torno de problemas que
reputavam importantes, punha-se-lhes à disposição para atender no que lhe fosse possível,
conquanto se reconhecesse inabilitado a satisfazer como desejaria.
Tudo isso era dito, cortesmente, em recinto enluarado, no jardim da instituição, onde
pequenos grupos de estudantes se espalhavam, aqui e além.
Ladeando mesa fixa, conversava o trio, animadamente. Tão grande e tão manifesta a
familiaridade em pauta, que nada faria supor estivesse integrando um quadro que não fosse
essencialmente terrestre. Em razão disso, não obstante a fisionomia cismativa de Ernesto,
exprimindo incerteza e ansiedade, via-se Evelina senhora de si, absolutamente convencida
de que se achava num recanto autêntico do mundo que sempre lhe fora habitual.
– Compreendo que se proponham a saber algo da nova residência – expôs Irmão
Cláudio, imperturbável –, porquanto a Irmã Celusa Tamburini notificou que estão ambos
despertos no hospital, de alguns dias para cá.
– Sim, é bem isso – confirmou Ernesto –, e somos gratos pela atenção que nos dispensa.
– Professor – interveio a senhora Serpa, confiante –, são tantos os comentários
absurdos que já ouvimos, em nossos poucos dias de contato com o novo meio, que, de
minha parte, estimaria estar informada se dispomos da liberdade de perguntar ao senhor
tudo, tudo o que nos causa espécie...
– Oh! claramente. Indaguem tudo, embora não me veja capaz de a tudo responder.
Convocado a exprimir-se pelo olhar percuciente do amigo, volveu Ernesto à palavra:
– Evelina, quanto me ocorre, tem o espírito dominado por uma questão capital. Isso lhe
parecerá, talvez, uma criancice de doentes mentais, que, às vezes, temos ambos a impressão
de ser, mas temos escutado, em circunstâncias diversas, a afirmativa de que somos mortos
em recuperação num ambiente que não mais pertence aos homens de carne e osso... A
princípio, rimo-nos francamente, categorizando isso à conta de grossa tolice; entretanto, as
opiniões se avolumam. A própria senhora Tamburini está certa de que já cruzamos as
fronteiras da morte, como quem vara uma noite de sono... Que nos diz a isso, professor?
Irmão Cláudio esboçou significativa expressão facial, em que a admiração se misturava
à piedade e obtemperou, sem cerimônia:
– Estarão vocês em condições de acreditar em minha palavra, se lhes ratificar a notícia
de que respiramos em plena Esfera Espiritual?
– Mas, professor... – clamou Evelina, lívida.
– Entendo – certificou-a, sorrindo –, a senhora, muito mais que o nosso Irmão Ernesto,
opõe firme recusa mental à verdade, à vista de suas convicções religiosas, louváveis mas
provisórias, convicções que jazem solidamente estruturadas em seu espírito... Apesar de
tudo, porém, tenho a obrigação de assegurar-lhes que não mais pisamos a Terra que nos era
comum e sim um departamento da vida espiritual.
E ela:
– Meu Deus, como pode ser isso?
– Irmã Evelina, trabalhe com a própria mente. Se não abordássemos a crosta planetária
pelo regaço materno, com o período da infância, logo após, constrangendo-nos a longos
serviços de readaptação, não seria a mesma coisa?
– Mas, a Terra... Eu conheço.
– Puro engano. Classificamos a paisagem terrestre e os pertences que lhe dizem
respeito, submetidos aos conceitos de quantos estiveram nela antes de nós, ocorrendo
análogas circunstâncias no ambiente a que nos acolhemos agora, e onde contamos com
geólogos e geógrafos eméritos... Na realidade, porém, tanto lá quanto aqui, conhecemos, na
essência, muito pouco acerca do meio em que vivemos. Em suma, analisamos e
reanalisamos coisas e princípios que já encontramos feitos...
– Entretanto, no mundo, como entendemos o mundo, guardamos a certeza de
permanecer sobre bases de matéria sólida...
– Irmã Evelina, quem lhe disse que não moramos lá, na arena terrestre, detidos
igualmente num certo grau da escala de impressão do nosso Espírito eterno? Qualquer
aprendiz de ciência elementar, no planeta, não desconhece que a chamada matéria densa
não é senão a energia radiante condensada. Em última análise, chegaremos a saber que a
matéria é luz coagulada, substância divina, que nos sugere a onipresença de Deus.
– O senhor quer afirmar mesmo que não estamos agora domiciliados no plano físico? –
voltou Fantini a manifestar-se.
– Chame-se a este mundo em que existimos, neste momento, “outra vida”, “outro lado”,
“região extrafísica” ou “esfera do Espírito”; estamos num centro de atividade tão material
quanto aquele em que se movimentam os homens, nossos irmãos ainda encarnados,
condicionados ao tipo de impressões que ainda lhes governam, quase que de todo, os
recursos sensoriais. O mundo terrestre é aquilo que o pensamento do homem faz dele. Aqui,
é a mesma coisa. A matéria se resume a energia. Cá e lá, o que se vê é a projeção temporária
de nossas criações mentais...
– Então, morrer?!... Qual a novidade em torno disso? Qual o maior interesse em nos
reconhecermos redivivos?
– As incógnitas da vida exterior, com os desafios delas resultantes, são as mesmas;
entretanto, se a criatura aspira efetivamente a realizar uma tomada de contas encontra
neste novo mundo surpresas, muito fascinantes, no estudo e redescoberta de si mesma.
Somos, cada um de nós, um astro de inteligência a perquirir... E a aperfeiçoar por nós
próprios.
Ernesto sustentou o interrogatório:
– Todos os mortos estarão em todos os lugares da Terra, em condições idênticas às
nossas?
– Impossível. Revejamos, superficialmente, a Humanidade encarnada em si e
perceberemos algo do assunto. Contamos na Terra, de onde somos egressos, milhões de
pessoas sensatas e espiritualmente desequilibradas, sadias e enfermas, instruídas e
ignorantes, relativamente sublimadas e outras tantas ainda excessivamente animalizadas,
confiantes e descrentes, amadurecidas na evolução ou iniciantes nela. Impraticável
categorizá-las, depois da morte, segundo um critério exclusivo. Cada qual estará em seu
grupo e cada grupo em sua comunidade ou faixa de afinidades. Nada fácil padronizar as
situações dos Espíritos desencarnados. Basta recordar que 150.000 pessoas,
aproximadamente, por dia, saem da circulação do ambiente físico, na média flutuante de
100 por minuto, largando afetos, realizações, compromissos, problemas... Ora, todos são
filhos de Deus e recebem de Deus atenções e providências, análogas do ponto de vista do
amor com que somos envolvidos na Criação, embora diversas nos modos múltiplos em que
se exprimem. Razoável reconhecer que por muito se enfeitem, externamente, com as honras
que lhes são prestadas pelos entes queridos, quando se despedem do mundo, os homens,
quaisquer que sejam, chegam aqui como são... Porque hajam desencarnado, o louco não
adquire o juízo, de um dia para outro, e nem o ignorante obtém a sabedoria por osmose.
Depois da morte, somos o que fizemos de nós, na realidade interna, e colocamo-nos em
lugar compatível com as possibilidades de recuperação ou com as oportunidades de serviço
que venhamos a demonstrar.
– Estamos diante de trabalho imenso... – anotou Fantini, espantado.
– Sim; no mundo dos homens, uma criatura não se modifica, de improviso, por haver
atravessado o oceano, de um continente para outro... Acontece o mesmo, nos domínios do
espírito.
– Há tempos – sublinhou Ernesto – li mensagens de entidades desencarnadas,
merecedoras de crédito, relacionando os sofrimentos e conflitos que experimentaram em
regiões inferiores, individualidades, aliás, que me pareceram senhorear largo patrimônio de
recursos intelectuais.
– Nada de admirar. Por imposição de nossas necessidades, nós mesmos estamos
residindo em zona dessas, na vizinhança das criaturas encarnadas.
– Refiro-me às regiões tenebrosas ou infelizes, relativamente às quais ouvi tantas
dissertações e onde se desarvoram tantos irmãos nossos...
– Fantini, precisamos certificar-nos – clareou o mentor – de que esses lugares não são
infelizes, de vez que infortunados são os irmãos que os povoam... Os jardins e pomares que
enriqueçam um manicômio deixarão de ser jardins e pomares porque existam enfermos a
desfrutar-lhes as emanações nutrientes?
– ?...
– Pois é, meu caro, as áreas do espaço, às vezes enormes, ocupadas por legiões de
criaturas padecentes ou desequilibradas, estão circunscritas e policiadas, por maiores que
sejam, funcionando à maneira dos sítios terrestres, utilizados por grandes instituições para
a recuperação dos enfermos da mente. Você não ignora que existem doentes da alma,
consumindo larga faixa da existência nos hospícios acolhedores da Terra. Isso acontece aqui
também. Ladeando o nosso vilarejo, temos vasto território, empregado no asilo a irmãos
desajustados, aos milhares, mantidos e vigiados por muitas organizações de beneficência,
que trabalham no socorro fraternal.
Evelina, que não acreditava no que ouvia, objurgou, insatisfeita:
– Mas... Se nos achamos num plano espiritual, que dizer das construções sólidas,
vinculadas à arquitetura terrestre, com que somos defrontados?
– Nenhum espanto, quando ponderarmos que os edifícios no mundo dos homens
nascem do pensamento que os esculpe e da matéria que obedece aos projetos elaborados.
Aqui verificamos o mesmo processo, diferindo apenas as condições da matéria, que se
evidencia mais intensivamente maleável à influência da ideia dominante. Reflitamos no
progresso da indústria de plásticos, na atualidade do plano físico de onde viemos e
perceberemos, com mais segurança, as possibilidades imensas para as edificações delicadas
e complexas em nosso domicílio de agora. Naturalmente, também aqui estamos
subordinados ainda às técnicas, às vocações, às competências pessoais e às criações
estilísticas, no círculo das conquistas espirituais de cada um. O arquiteto que planeia uma
casa e o obreiro que lhe cumpre as ordens não servirão, de imediato, em lugar do diretor da
manufatura de tecidos e do operário que lhe atende as determinações. Ainda aqui, o escritor
não faz a obra do músico, em ação de improviso. Somos criaturas em evolução, sem
havermos atingido ainda a posição dos gênios polimorfos, apesar de esses gênios existirem
igualmente aqui.
A senhora Serpa não conseguia ocultar a incredulidade.
– Tudo parece inverossímil – asseverou.
– Nada se nos afigura mais inverossímil que a verdade – objetou Irmão Cláudio –; no
entanto, porque prefiramos, por muito tempo, a ilusão em lugar dela, a realidade não deixa
de ser o que é.
O professor discorreu, ainda, por dilatados minutos, referentemente à vida e às
condições da estância em que se demoravam; mas, por fim, Evelina se viu entontecida,
fatigada, provisoriamente inabilitada a mais amplas ilações, e, moça de fé profunda, valeu-se
de um intervalo na conversação, procurando saber:
– Irmão Cláudio, não posso duvidar de suas afirmações, embora me custe a crer que
estamos na posição de pessoas desencarnadas, conforme as suas expressões. Esteja certo de
que não desejo perder, de modo algum, a sua orientação; contudo, gostaria de tomar
contato com um sacerdote, um padre católico, por exemplo... Ficaria feliz se pudesse
entregar-me à prática da confissão, permutar ideias livremente com um diretor da fé que
me formou o caráter, sem qualquer constrangimento da vida social...
O amigo bondoso sorriu compreensivo e esclareceu:
– A Igreja aqui está positivamente renovada, posto que possamos encontrar
representantes de todas as religiões terrestres, aferrados a dogmas, concepções estreitas,
preconceitos e tiranias diversas do fanatismo, nas áreas vizinhas em que se congregam
milhares e milhares de inteligências rebeldes e perturbadas. Aqui, propriamente, os
sacerdotes não a ouviriam em confissão de natureza religiosa. Enviá-la-iam a um dos nossos
institutos de psiquiatria protetora, em que a irmã pode e deve ter a sua ficha para receber a
assistência necessária...
– Para tratamento? – aparteou Fantini.
– Tratamento e auxílio. Uma carteira de identificação para serviços de amparo e
análise, numa casa de supervisão espiritual das que me refiro, é valioso documento para
que não estejamos aqui, nos primeiros tempos de adaptação, num lugar intermediário entre
planos inferiores e superiores, sem a assistência justa. É indispensável nos poupemos, tanto
quanto possível, a dissabores desnecessários.
– Oh! – exclamou Ernesto, entusiasmado –, esse tipo de confissão me interessa... Se
estamos mortos...
– O seu se – obtemperou o mentor bem-humorado – demonstra que você e Evelina me
consideram um contador de histórias inverídicas... Vocês ambos estão desencarnados com
raízes pregadas no chão da Terra; todavia, isto é natural. Aguardemos o tempo.
Em meio de puras vibrações de confiança e simpatia, a senhora Serpa e o amigo
solicitaram o apoio do mentor, a fim de que pudessem realizar contatos com alguma das
instituições psiquiátricas da cidade, ficando estabelecido que atenderiam a isso, tão logo a
administração do hospital o consentisse.
10
Evelina Serpa
Devidamente credenciados, Evelina e Ernesto, após ligeiro trajeto pelas ruas da cidade
que se lhes figurou encantadora, alcançaram o Instituto de Proteção Espiritual.
Acolhidos carinhosamente pelo Instrutor Ribas, dedicado à clínica psiquiátrica, no
departamento assistencial que lhe dizia respeito, sentiam-se tão à vontade, do ponto de
vista do habitual, como se estivessem visitando moderno consultório terrestre. Em tudo,
simplicidade, conforto, segurança. Atendentes à vista. Fichários. Aparelhos diversos para
registro do pensamento.
Depois das apresentações, o instrutor-médico entrou no assunto:
– Estamos informados de que se ficharão aqui em nosso gabinete e podemos começar
por nossa irmã.
Ato contínuo, acenou para um funcionário a quem nomeou por Irmão Telmo, e,
obedecido pelo auxiliar, designou Ernesto a ele, anunciando:
– Ficarão juntos, enquanto ouço a Irmã Evelina...
E para Fantini, bem impressionado:
– Nada tema. Toda conversação em nosso Instituto está subordinada ao encorajamento
e à saúde. Nada de pensamentos negativos. Tão logo termine o entendimento inicial com a
nossa amiga, teremos nosso encontro.
Revestia-se aquele quadro íntimo de tamanha espontaneidade, que os dois recém-
chegados não conseguiram atinar com a verdadeira situação.
Estariam no mundo espiritual ou na Terra mesmo, na Terra que lhes era familiar, em
algum sítio desconhecido, onde se lhes falava do espírito libertado com alguma finalidade
terapêutica? – pensavam os dois. E chegavam quase a admitir que talvez tivessem estado
loucos, achando-se agora em recuperação.
Acalentando semelhantes dúvidas, Evelina acompanhou, docilmente, o médico, e,
chegados a uma sala, mobilada com distinção e singeleza, assentou-se na poltrona que ele
lhe indicou, explicando, atencioso:
– Esteja tranquila. Nosso Instituto se consagra à proteção e ao tratamento de seus
tutelados. Primeiro, a cobertura socorrista, depois, o reajustamento, se necessário. Em
razão disso, teremos tão só um entendimento fraternal. Nada de cerimônias.
Conversaremos simplesmente e todos os seus informes serão gravados para estudos
posteriores. A bem dizer, funciono aqui quase que apenas na condição de introdutor dos
clientes, de vez que os nossos analisados possuem vasta coleção de amigos na retaguarda,
amigos que lhes examinarão as palavras e reações, de modo a saber em que sentido e até
que ponto lhes prestarão o auxílio de que se mostrem carecedores.
Diante de Evelina admirada, a um gesto do mentor grande espelho se fez visível, junto à
poltrona, dando a ideia de que a peça fora ligada ao sistema elétrico, por disposições
especiais.
– Nossa palestra será filmada. Simples recurso para que os seus contatos com a nossa
casa sejam seguidos com segurança, no capítulo da assistência de que não prescindirá em
seus primeiros tempos de vida espiritual. Tranquilize-se, compreendendo, porém, que todas
as suas perguntas e respostas se revestem da maior importância para seu benefício. Por
suas indagações, a autoridade do Instituto identificará a sua posição no conhecimento e, por
suas respostas, saberá o montante de suas necessidades. Conversemos.
Perante aquele olhar, brando e enérgico ao mesmo tempo, reconheceu-se Evelina qual
criança de letras primárias, ante examinador experiente, e, concluindo que não lhe seria
lícito recusar a prova, perguntou com respeitosa coragem:
– Instrutor Ribas, conquanto o senhor tenha feito referências a meus primeiros tempos
de vida espiritual, é verdade que somos Espíritos desencarnados, pessoas que não mais
habitam a Terra?
– Perfeitamente, embora a irmã não consiga ainda certificar-se disso.
– Por que semelhante inadaptação?
– Falta de preparo na vida física. De modo geral, a sua posição de surpresa é comum à
maioria das criaturas terrestres, em virtude da ausência de integração real com as
experiências religiosas a que se afeiçoam.
– Se estamos efetivamente mortos, acredita o senhor que eu, na condição de católica,
devo apresentar ou deveria apresentar um índice mais completo de comunhão com a
verdade espiritual que não estou conseguindo entender?
– Claramente.
– Como assim?
– Se a irmã, durante a sua existência no corpo denso, pensasse firmemente nos ensinos
de Jesus, o divino Mestre que se reergueu do túmulo para a demonstração da vida eterna, se
meditasse na essência dos ofícios religiosos de sua fé, todos eles dirigidos a Deus e, depois
de Deus, aos mortos sublimes, como sejam Nosso Senhor Jesus Cristo, sua Augusta Mãe e
aos Espíritos heroicos que veneramos por santos da vida cristã, decerto não experimentaria
o assombro que, até agora, lhe insensibiliza os centros de força, apesar da elevação e da
delicadeza de suas aspirações.
Viu-se Evelina, de repente, transportada pelas molas mágicas da imaginação, ao seu
velho templo religioso... Recordou as preces, os cânticos, as novenas e os rituais litúrgicos
de que partilhara, como se unicamente ali, naquele gabinete de análise espiritual, pudesse
penetrar-lhes o sentido. Como não se inclinara a interpretá-los, antes, por invocações ao
mundo espiritual? Como não lhes percebera, até aquela hora, a função de canais de
comunicação com as forças divinas?...
Em pensamento, aspirava a rever-se em São Paulo, caminhar para o recinto de sua
devoção religiosa e saudar na própria crença o ponto mais alto da vida, aquele, através do
qual, lograva entregar-se à proteção do Todo-Misericordioso, com as suas dores e alegrias,
aflições e ânsias mais íntimas... Lembrou-se de Jesus, fosse nas esculturas ou nos painéis,
nas pregações e conversações, como sendo um Espírito divino a bater-lhe, debalde, às
portas do coração, tentando ensinar-lhe a viver e a compreender...
E, ao refletir no Mestre de paciência infinita, a cuja magnanimidade recorria em todas
as dificuldades e tribulações, sem se dar ao trabalho de perquirir-lhe as lições e
acompanhar-lhe os exemplos, entrou em crise de lágrimas, qual se a fé cristã, excelsa e
piedosa, se lhe transfigurasse em juiz nos recessos da alma, exprobrando-lhe o
comportamento.
– Oh! Meu Deus!... – inferia em pranto – por que precisei morrer para compreender?
Por que, Senhor? Por quê?!...
Ali comparecia para retratar-se moralmente, falar de si própria, prestar contas;
entretanto, que trazia na própria bagagem senão o vazio de uma existência que lhe parecia
então inútil? Tinha a ideia de que as trancas mentais que a isolavam das realidades eternas
se haviam rompido, de chofre, na leveza de pensamento que passara a desfrutar, e aquele
Jesus que adorara por fora lhe ganhava agora a intimidade do coração e lhe perguntava com
infinita doçura: “Evelina, que fizeste de mim?”
A senhora Serpa, algo descontrolada, chorou convulsivamente diante do Instrutor que
a seguia, paternal.
O generoso amigo deixou que ela mesma estancasse a fonte das lágrimas e, ao vê-la
asserenar-se, falou, comovido:
– A depressão momentânea lhe faz bem. A dor moral nos mede a noção de
responsabilidade. Seu sofrimento de espírito, ao recordar-se do Senhor Jesus, evidencia a
sua confiança nele.
Em tom mais afetuoso, o Instrutor imprimiu novos rumos à análise em andamento,
participando à jovem senhora que, praticamente, a sua ficha de identificação estava pronta,
uma vez que, antes de sua vinda, o estabelecimento de saúde, através do qual ingressara na
cidade, fora consultado sobre a sua procedência e filiação na Terra.
Ainda assim, acrescentou:
– O seu depoimento aqui, porém, será valioso, porquanto, de posse dele, estaremos
mais amplamente informados quanto à nossa tarefa de auxílio.
– Posso saber que auxílio será esse?
– Sim; por seus apontamentos, ser-nos-á possível aquilatar o tipo de amparo que lhe
será ministrado.
– Entretanto, Instrutor, não serei conhecida no mundo espiritual? Não temos, acaso,
todos nós, guardiães na existência terrestre?
– Perfeitamente. E todos aqueles que nos conhecem possuem determinada versão de
nossas experiências para uso deles próprios. Em nossos estudos, todavia, a sua versão
pessoal é muito importante, considerando-se que as suas anotações autobiográficas se lhe
jorrarão da própria consciência. Há que promovermos um autoencontro, no plano das
realidades da alma, para o balanço preciso de nossas necessidades imediatas. Certamente,
em outros lugares, a irmã comparecerá nas citações de muitos companheiros, retratada nas
impressões que lhes terá causado; no entanto, em nosso instituto, recolheremos a sua
projeção individual, intransferível.
Logo após, ante a expectação da cliente espantada, o benfeitor solicitou-lhe
rememorasse, de viva voz, alguns traços da própria história, a começar das reminiscências
mais antigas. Que evitasse um relatório exaustivo e sim procurasse sumariar notícias e
lembranças, tanto quanto possível.
A senhora Serpa narrou, humilde:
– Minhas memórias principiam, confusamente, ao perder meu pai. Era uma criança
tenra, quando escutei os gritos de minha mãe, agarrando-se a mim, a dizer-me que eu
estava órfã... Pouco tempo decorrido, minha mãe deu-me um padrasto bom e amigo.
Realizado o segundo matrimônio, ela e meu segundo pai resolveram abandonar a região em
que morávamos, decerto no intuito de fugir a recordações indesejáveis. Apesar da ternura
do homem que passara a chefiar nossa casa, sentia falta instintiva de meu pai; entretanto, a
respeito dele, as notícias foram para mim sempre escassas. Acerca do seu falecimento, nada
mais pude colher de minha mãe, em matéria de esclarecimento, senão que ele morrera de
modo repentino, quando se achava num passeio... Mais crescida, compreendi que ela
reprimia comentários, em torno do pretérito, esquivando-se a conflitos possíveis com o
marido que, seja dito em louvor da verdade, lhe dedica, até hoje, enternecido afeto... Aos
doze anos de idade, fui internada num educandário católico, no qual me diplomei para o
magistério, sem exercê-lo em tempo algum, porque, desde o baile de formatura, me vi
requestada por dois rapazes, ao mesmo tempo, Túlio Mancini e Caio Serpa. Confesso que,
muito moça e muito irresponsável ainda, deixei que o meu coração balançasse, entre os
dois, prometendo fidelidade a ambos, simultaneamente. Quando admiti minha escolha
definitiva na pessoa de Caio, que veio a ser meu esposo, Túlio tentou o suicídio e, ao vê-lo
salvo, pensei no sacrifício a que se dera por minha causa e, de novo, me inclinei para ele...
Quando me dispunha a requisitar de meu noivo a exoneração de qualquer compromisso,
Túlio matou-se com um tiro no coração... Depois da terrível ocorrência, casei-me... Caio e eu
fomos felizes, por alguns meses, até que vimos frustrado o anseio de possuir um filhinho...
Abortei, logo ao engravidar-me. Em seguida, caí em deperecimento orgânico progressivo.
Talvez em virtude da enfermidade que me acometeu sem pausa, Caio procurou nova
companheira, uma jovem solteira, com quem passou a conviver, simulando vida conjugal na
cidade grande... A vexatória situação em que me achei passou a me arrasar. As humilhações
incessantes a que me vi exposta, dentro de casa, amargaram-me a existência... Desde então,
nada mais tenho a confessar senão sofrimento moral e desânimo de viver, com a
enfermidade de que me vejo em tratamento até hoje...
O Instrutor fitou-a, comovido, e perguntou:
– A irmã chegou a desculpar o esposo infiel e a compadecer-se da rival?
A senhora Serpa refletiu alguns momentos e intercalou com amargura:
– De modo nenhum. Estou numa confissão em que tomo a Jesus por minha testemunha
e não posso mentir. Nunca pude perdoar a meu marido pela deslealdade com que me
afronta e nem tolerar a presença da outra em nosso caminho.
O benfeitor, longe de alterar-se, interpôs, afetuoso:
– Compreendemos os seus sentimentos humanos e podemos encerrar a sessão de hoje.
A irmã tem problemas difíceis a enfrentar e o nosso Instituto verificará até que ponto
conseguirá propiciar-lhe a devida cobertura. Permaneceremos em contato e
prosseguiremos conversando em futuras reuniões.
Evelina retirou-se, sendo substituída por Fantini, cujo exame ia começar.
11
Ernesto Fantini
Chegada a vez de Ernesto, que tomou a poltrona de analisando algo desconcertado, o
Instrutor formulou as explicações anteriores, solicitou-lhe articular perguntas e acendeu o
espelho de gravação.
Fantini, um tanto mais à vontade, iniciou o interrogatório:
– Posso falar, como se estivesse realmente morto, como me fazem crer?
O mentor sorriu, ao escutar aquela frase de materialista inteligente, e objurgou sem
aspereza:
– Fale tudo o que deseje, na convicção de que a teoria do como se está longe agora de
nós. Estamos efetivamente desencarnados, encontrando a nós mesmos...
– Instrutor, se deixei meu corpo na Terra, sem lembrar-me disso, não é o caso de ter
voltado ao ambiente natural do Espírito, com a obrigação de retomar a memória do tempo
em que vivia, na condição de Espírito livre, antes de envergar, entre os homens, o corpo de
que me desfiz? Por que motivo isso não acontece?
– A existência no carro físico, além de ser um estágio para aprendizagem ou cura,
resgate ou tarefa específica, é igualmente um longo mergulho no condicionamento
magnético, em que agimos, no mundo, induzidos ao que nos cabe fazer. O livre-arbítrio, na
esfera da consciência, permanece vivo e intocado, porquanto, em quaisquer posições, a
criatura encarnada é independente para escolher os próprios rumos; no entanto, as demais
potências da alma, no período da encarnação, jazem orientadas na direção desse ou daquele
trabalho, segundo os propósitos que tenha assumido ou que tenha sido constrangida a
assumir.
Isso determina o obscurecimento das memórias pregressas que, aliás, não é senão um
fenômeno temporário, mais ou menos curto ou longo, conforme o grau de evolução que
tenhamos atingido.
– Teríamos sofrido, enquanto no plano físico, uma dilatada hipnose?
– Até certo ponto, sim. A passagem pelo claustro materno, o novo nome escolhido pelos
familiares, os sete anos de semi-inconsciência no ambiente fluídico dos pais, a recapitulação
da meninice, o retorno à juventude e os problemas da madureza, com as responsabilidades
e compromissos consequentes, estruturam em nós – a individualidade eterna – uma
personalidade nova que incorporamos ao nosso patrimônio de experiências. É
compreensível que no espaço de tempo, que se nos sucede, imediatamente à desencarnação,
a memória profunda esteja ainda hermeticamente trancada nos porões do ser. Isso, porém,
é francamente transitório. Gradativamente, reaveremos o domínio de nossas
reminiscências...
– O senhor quer explicar que, nesta cidade, sou ainda Ernesto Fantini, a personalidade
humana com o nome que me foi imposto na existência que deixei, largando o estudo de
minhas memórias anteriores para depois?
– Perfeitamente. Cada um de nós permanece aqui, em núcleos de trabalho e renovação,
na vizinhança do plano físico, sob a mesma ficha de identificação, através da qual éramos
conhecidos nela. Até que nos promovamos por merecimento próprio a círculos mais altos
de sublimação, quedar-nos-emos entre a Espiritualidade superior e o estágio físico,
operando no aperfeiçoamento pessoal, da internação no berço à liberação para a vida
espiritual e regressando da liberdade na vida espiritual à nova segregação no berço.
Entendeu?
– Aqui somos então examinados pelo que fomos, nas ações praticadas, no tempo de
retaguarda mais próximo de nós...
– Isto.
– Somos como éramos, na ficha individual, até...
– Até que as circunstâncias nos indiquem nova imersão no corpo carnal, como recurso
inevitável aos objetivos de burilamento a que todos visamos, nas lides da vida eterna.
– Somos quais éramos, em tudo, até mesmo na sinalização morfológica?
– Não tanto. Quaisquer sinais morfológicos se modificam na pauta das ordenações
mentais. Isso ocorre, habitualmente, na própria Terra dos homens, quando a ciência, sem
maiores dificuldades, modifica os implementos da máquina genésica da criatura, de acordo
com os impulsos psicológicos que a criatura apresente, harmonizando o binômio corpo-
alma. Além disso, não nos será lícito esquecer os serviços multiformes da plástica cirúrgica,
que consegue efetuar prodígios no envoltório carnal das pessoas, quando essas pessoas
mereçam as melhoras com que a ciência terrestre lhes acena, generosa e otimista.
Fantini se mostrava agradavelmente surpreendido pela destreza mental com que o
Instrutor sabia colocar-lhe os esclarecimentos precisos na cabeça faminta de luz.
– Caro amigo – tornou ele à inquirição. – Embora o assunto de que vou tratar já tenha
sido objeto de consideração na palestra que mantive com o Irmão Cláudio, estimaria
recolher-lhe os avisos no mesmo tema... Acontece que ouvi falar de mortos, e de mortos
cultos, que atravessaram anos e anos atormentados em zonas inferiores, antes de
reconquistarem lucidez e tranquilidade; por que não me ocorreu isso, se estou efetivamente
desencarnado e se sou um homem consciente das culpas que carrega?
– O estado de tribulação a que se refere é pertinente ao espírito e não ao lugar. Muitos
de nós, os desencarnados, suportamos tempos difíceis, em paisagens determinadas que nos
refletem as próprias perturbações íntimas. Essa anomalia pode perdurar por muito tempo,
de conformidade com as nossas inclinações e esforço indispensável para que nos aceitemos,
imperfeitos como ainda somos, conquanto não ignoremos a necessidade de burilamento
que as leis da vida nos estabelecem. Somos, por agora, consciências endividadas ou
expoentes de evolução deficitária, ante a vida maior, carregando o dever de podar os nossos
defeitos em trabalho digno e incessante. Enquanto estejamos em desequilíbrio, após a
desencarnação, desequilíbrio que é sempre agravado pela nossa inconformidade ou
rebeldia, orgulho ou desespero, ameaçando a segurança dos outros, permaneceremos
compreensivelmente internados ou segregados em faixas de espaço, junto de quantos
evidenciem perturbações ou conflitos semelhantes aos nossos, à maneira de doentes
mentais, afastados do convívio doméstico para tratamento justo.
– Então, as ideias do castigo de Deus...
– Razoável que as abracemos, até que aprendamos que a divina Providência nos
governa através de leis sábias e imparciais. Cada um de nós pune a si mesmo, nos artigos
dos estatutos excelsos que haja infringido. A Justiça eterna funciona no foro íntimo de cada
criatura, determinando que a responsabilidade seja graduada no tamanho do
conhecimento...
– Instrutor Ribas, como definir, desse modo, o inferno engenhado pelas religiões no
planeta?
– Reportemo-nos a isso com o respeito que o assunto nos reclama, porque para
milhões de almas o desconforto mental a que se entregam, ao lado de outras nas mesmas
condições, é perfeitamente comparável ao sofrimento do inferno teológico, imaginado pelas
crenças humanas. A rigor, porém, e atentos à realidade de que Deus jamais nos abandona, o
inferno deve ser interpretado na categoria de hospício, onde amargamos as consequências
de faltas, no fundo, cometidas contra nós mesmos. Fácil perceber que a área de espaço em
que nos demoremos nessa desoladora situação venha a retratar os quadros mentais
infelizes que criamos e projetamos, ao redor de nós.
– Ouso aprofundar-me em tantas inquirições, por achar-me convencido de que,
positivamente, não mereço a generosidade com que me acolhem... Tenho desfrutado aqui
uma tranquilidade que não esperava, porquanto transporto comigo doloroso problema de
consciência...
– Uma das funções de nosso Instituto é precisamente apoiar os irmãos desencarnados
que surgem aqui, sem qualquer prejuízo na própria integridade moral, mas carreando
consigo complexos de culpa, suscetíveis de arrojá-los em alterações de maior vulto. O
socorro de nossa casa faz-se tanto mais eficaz quanto mais força de fé patenteie a criatura
na possibilidade de superação das fraquezas que nos são peculiares. A sua estrutura
psicológica imunizou-o contra os delírios de muita gente boa e digna que, às vezes, se obriga
a muito tempo nas aflições purgativas dos grandes manicômios a que nos referimos,
sanando os desequilíbrios a que se despenham, em muitos casos por haverem dado
orientação falsa ao amor de que se nutriam.
Entregou-se Ribas a ligeira pausa, sorriu e alegou:
– Ainda assim, apesar do seu índice admirável de resistência, o irmão não está seguro
contra os resultados de seus próprios atos e deve aprestar-se a fim de ser defrontado por
eles.
– Esclareça-me, por favor.
– Queremos dizer que você necessita revestir-se de calma para comparecer diante
daqueles que deixou no mundo, de modo a compreender-se e compreendê-los... Na esfera
física, muitas vezes ouvimos a afirmativa de que é preciso coragem para ver os mortos e
ouvi-los!... A situação aqui não é diferente, em relação aos chamados vivos. De maneira
geral, todos nós, imediatamente depois da desencarnação, somos levados a cursos
preparatórios de entendimento, para ganhar o ânimo indispensável, a fim de rever os vivos
e escutá-los de novo, sem danos para eles e para nós...
Os olhos de Ernesto fizeram-se esbugalhados nas órbitas ao assinalar aquelas
advertências. Lágrimas grossas deslizaram-lhe na face, enquanto que, como se sofresse a
pressão de molas invisíveis, constrangendo-o a lançar para fora de si as ideias de culpa, que
remoía nos recessos da alma, ajoelhou-se à frente do benfeitor, qual criança atemorizada e
gritou:
– Instrutor, segundo creio, meu delito é um só; entretanto, é suficiente para criar
muitos infernos em meu espírito. Matei um amigo, há mais de vinte anos, e nunca mais tive
paz... Sabia-o no encalço de minha esposa com intenções menos dignas, a espreitar-lhe os
passos e atitudes...Via-o sondar minha casa, em minha ausência... Algumas vezes, registrei
frases inconvenientes da parte dele para com aquela que me partilhava o nome... Um dia,
tive a impressão de surpreender nos olhos da companheira certa inclinação afetiva para
com o inimigo de minha tranquilidade e, muito antes que minhas suposições se
confirmassem, aproveitei o momento que se me figurou oportuno e alvejei-o durante uma
caçada a codornas... Atirei para acertar e, satisfeito o meu intento, ocultei-me na folhagem,
até que o outro companheiro, pois éramos três homens no entretenimento, deu alarme ao
esbarrar com o cadáver... A vítima, porém, caíra ao solo em condições tais que a versão de
um acidente senhoreou a convicção de todos os circunstantes... Aterrado perante o meu
crime, qual me achava, aceitei, aliviado, a falsa interpretação... Jamais, no entanto, recuperei
o sossego íntimo... Ele, o homem que eliminei, era casado, tanto quanto eu mesmo, e não
mais tive coragem de procurar-lhe a família, que, para logo, abandonou a região do terrível
acontecido, sequiosa de esquecimento... Esse esquecimento, contudo, não veio para mim... A
morte que provoquei, como que me trouxe o temido desafeto para dentro de casa... Desde a
ocorrência dolorosa, passei a sentir-lhe a presença no lar, à feição de sombra invariável que
me ironiza e me insulta sem que os outros percebam... Em meu círculo doméstico,
reconheço-me algemado a ele, como se o infeliz estivesse mais vivo e mais forte, a cada dia...
Rara a noite em que não lutava com ele em sonho, antes da cirurgia que motivou minha
vinda para cá... Então, acordava, como se houvéssemos travado um duelo mortal, para
continuar a vê-lo, com os olhos da imaginação, compartilhando-me a vida cotidiana!... Oh!
Instrutor Ribas! Instrutor Ribas!... Diga-me, por Deus, se há remédio para mim!... Esperava
encontrar, depois da morte, um lugar de punição onde as potências infernais cobrassem de
mim a falta que ocultei à justiça da Terra; entretanto, estou usufruindo uma proteção
exterior que me agrava o tormento íntimo!... Oh!... Meu amigo, meu amigo, que será então de
mim, que não mais consigo suportar a mim mesmo?
Assim dizendo, Fantini abraçou-se ao mentor, soluçando qual menino desamparado,
suplicando refúgio.
O Instrutor acolheu-o no regaço paternal e consolou-o:
– Asserena-te, meu filho!... Somos espíritos eternos e Deus, nosso Pai, não nos deixará
sem arrimo.
Os olhos de Ribas mostravam lágrimas que não chegavam a cair. Dir-se-ia que ele, o
competente orientador, conhecia por si semelhante martírio da consciência, porque, longe
de repreender, afagou-lhe a cabeça fatigada, que se lhe abrigara sobre os joelhos, e rematou
simplesmente:
– A justiça de Deus não vem sem apoio na misericórdia. Confiemos!...
E sem maior delonga, o amigo espiritual ergueu-se, sensibilizado, apagou o espelho de
serviço e encerrou a sessão.
12
Julgamento e amor
Transcorridas algumas semanas, Ernesto e Evelina achavam-se menos bisonhos no
ambiente.
Conquanto as afeições que prosseguiam entesourando, sentiam-se cada vez mais
vinculados um ao outro. Sensivelmente melhorados, demoravam-se ainda no hospital, mas
domiciliados em pavilhões de convalescentes, cada qual no departamento próprio, de vez
que as referidas construções abrigavam homens e mulheres, em vasta agremiação de lares-
apartamentos para uso individual. Desfrutavam a devida permissão para se movimentarem
na cidade, como quisessem, apenas com a observação de que somente lhes seria lícito
visitar os arredores, onde se acomodavam milhares de Espíritos infelizes, com assistência
adequada.
Efetivamente os dois começavam a experimentar necessidade de serviço disciplinado e
regular, mas, se pediam trabalho ou qualquer atividade no antigo lar terrestre que ainda
não haviam logrado rever, as respostas da autoridade competente eram ainda invariáveis.
Que aguardassem mais tempo, que seria justo atender à imprescindível preparação. À vista
disso, frequentavam bibliotecas, jardins, instituições e entretenimentos diversos, figurando-
se-lhes a vida, ali, uma fase longa de repouso mental em tranquila colônia de férias. Chegara,
porém, o dia em que Evelina realizaria um dos seus maiores anelos naquele ninho de
bênçãos. Fantini prometera conduzi-la, com o preciso consentimento dos benfeitores, a um
templo religioso para assistirem ao ofício da noite que se constituiria de uma pregação sob
o título “Julgamento e Amor”, previamente anunciada. Ambos ardiam em curiosidade,
porquanto ansiavam conhecer de perto como se processavam as criações religiosas,
naquele mundo para eles extremamente belo e novo.
À noitinha, puseram-se em marcha.
A senhora Serpa recordava em caminho as visitas de outro tempo ao santuário de sua
fé e albergava no coração as mais doces reminiscências...
Sensibilizada, monologava intimamente: “Como perdera o convívio dos entes mais
caros e por que se apoiava, ali, no braço de um homem que vira na Terra tão somente uma
vez?”
Em torno, o vento brando carreava o perfume de jardins e praças em flor.
A Lua, a erguer-se do horizonte, era o mesmo espetáculo de majestade e beleza a que se
acostumara no mundo...
De quando em quando, permutava com Fantini uma que outra frase, observando que
outros ranchos simpáticos caminhavam na mesma direção.
Transcorridos alguns minutos de alegre peregrinar, ei-los diante do templo que
primava pela simplicidade, figurando-se enorme pombal edificado com franjas de neve
translúcida, defendido, aqui e ali, por densas faixas de arvoredo.
No interior, tudo espontaneidade e harmonia.
A fila extensa de bancos deixava ver o púlpito à frente, que assumia a feição de enorme
liliácea, esculpida em mármore alvíssimo.
Na parede muito branca, diante da assistência, sob as legendas “Templo da Nova
Revelação”, “Casa Consagrada ao Culto de Nosso Senhor Jesus Cristo”, em vez de quaisquer
símbolos ou esculturas, jazia apenas uma tela, recordando o semblante presumível do
divino Mestre, cujos olhos na excelsa pintura pareciam falar de vida e onipresença.
Sentada com Fantini, lado a lado, a senhora Serpa fitou os rostos, serenos uns e
ansiosos outros, que os cercavam em profundo silêncio, e mergulhou o coração em prece
muda.
Em dado instante, qual se materializasse inesperadamente na tribuna ou até ali fosse
ter, através de porta oculta à observação do auditório, um homem, envergando túnica lirial,
surgiu e saudou a assembleia, reverente.
Logo após, dirigiu-se para o Alto e, em oração comovedora, rogou as bênçãos de Jesus
para os ouvintes expectantes.
De seguida, aproximou-se de grande exemplar do Novo Testamento, aberto sobre
delicado porta-livro, e leu os versículos números 1 a 4, do capítulo sete do Evangelho do
apóstolo Mateus:
“Não julgueis para não serdes julgados, pois, com o critério com que julgardes, sereis
julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também.
Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, sem notares, porém, a trave que está no
teu próprio? Ou, como dirás a teu irmão: ‘Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens
a trave no teu?’.
Terminada a leitura, deteve-se o ministro em dilatada concentração, qual se buscasse
inspiração nas profundezas da própria alma.
Ernesto e Evelina, porém, viram surpresos, que, ao revés, o pensamento dele se
exteriorizava, em forma de larga auréola de luz, que se lhe alteava da cabeça, à maneira de
chama, elevando-se cada vez mais...
A curto espaço de segundos, clarões jorravam de cima, lembrando as chamadas línguas
de fogo do dia de Pentecostes, e o sacerdote simpático iniciou a pregação de que
respigaremos apenas alguns trechos que lhe definem a tessitura de sabedoria e beleza:
– Irmãos, até ontem éramos parte integrante da coletividade humana – a nossa bendita
família da retaguarda – e acreditávamos no poder de julgar-nos uns aos outros.
Encastelados nas ideias religiosas que supúnhamos escravizar a serviço de nossas paixões,
imaginávamos adversários e transviados quantos não pensassem por nossos princípios.
Interpretávamos os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, conforme o nosso
arbítrio, exigindo que o Senhor da Vida se nos fizesse rebaixado servidor, na estrada
sombria e tortuosa que não nos cansávamos de palmilhar; entretanto, despojados hoje do
corpo de matéria mais densa que nos acalentava as ilusões, aprendemos que todos somos
consciências deficitárias perante a Lei. E compreendemos agora, para felicidade nossa, que
apenas o Senhor dispõe de recursos para avaliar-nos consideradamente, porque, em
verdade, ser-nos-á possível tão somente examinar a nós próprios.
O que tenhamos sido no imo do sentimento, enquanto na existência do corpo terrestre,
somos aqui.
Neste pouso de luz que o Senhor nos faculta por moradia temporária, percebemos, sem
qualquer constrangimento de ordem exterior, que todos os petrechos mantenedores das
aparências que nos disfarçavam no mundo, para o desempenho do papel que nos cabia na
ribalta humana, nos foram retirados, a fim de que sejamos aqui, na esfera da realidade
espiritual, quem nos propusemos ser, com tudo o que tenhamos ajuntado em nós de bem ou
de mal, durante o estágio na escola física!...
Muitos de vós outros carregais ainda hábitos e enganos da experiência carnal que,
gradativamente, perdereis por não encontrarem neste meio qualquer significação...
Vossos palácios ou casebres, títulos convencionais ou qualificações pejorativas,
privilégios ou cativeiros, honras familiares ou desconsiderações públicas, vantagens ou
prejuízos de superfície, todos os condicionamentos mentais que vos centralizavam na ideia
de direitos supostos ou imaginárias reclamações, com o abandono dos deveres naturais de
aperfeiçoamento espiritual para a vida eterna, desapareceram no dia em que os homens,
por força da desencarnação, vos impuseram ao nome um atestado de óbito no planeta,
senhoreando-vos os patrimônios e analisando-vos os atos, para, ao depois, muitos deles,
varrer-vos do pensamento, com a falsa convicção de que vos podem desterrar da memória
para sempre!...
Quantos de vós viestes escutar aqui as vozes da verdade para as quais tantas vezes
selastes os ouvidos do corpo terreno?
A divina Providência não pergunta o que fostes, porque nos conhece a cada um em
qualquer tempo... Entretanto, é justo investigue sobre o que fizestes dos tesouros do tempo,
concedido a nós todos em parcelas iguais...
Sábios, em que aplicastes os dotes do conhecimento superior? Ignorantes, onde
colocáveis o talento das horas? Ricos, em que trabalho dignificastes o dinheiro? Irmãos
destituídos de reservas douradas, mas tanta vez detentores de bênçãos maiores, que
realizastes com as oportunidades de paciência e serviço, compreensão e humildade na
esfera da obediência? Jovens, que operastes com a força? Companheiros encanecidos na
marcha do cotidiano, em que boas obras convertestes o clarão de vosso entendimento?
Não vos iludais!...
Qual ocorreu a nós outros, os que habitamos atualmente o plano espiritual desde
longas décadas, trouxestes para cá o que efetuastes de vós mesmos... Aprendestes o que
estudastes, mostrais o que fizestes, entesourais o que distribuístes!...
Em suma, atravessada a Grande Fronteira, somos simplesmente o que somos!
Reconhecereis, assim, no curso do dia a dia, neste domicílio das realidades excelsas,
que todos os disfarces que nos encobriam a individualidade real no mundo se extinguem
naturalmente, expondo-nos à vista a esfera íntima.
Fora das constrições carnais, cada Espírito se revela por si.
Mecanicamente, na residência ancestral da alma, estampamos nas atitudes e palavras
os sentimentos e pensamentos que nos são peculiares, sem que nos seja mais possível
qualquer recurso à simulação.
Patenteando de todo o que somos e o que temos, nos recessos do ser, terá chegado para
cada um de nós a hora do julgamento, porquanto a divina Misericórdia do Senhor nos
oferece ainda, aqui como em tantas outras estâncias da Espiritualidade, esta cidade-lar,
como sendo antecâmara de estudo e serviço, possibilitando-nos valiosos aprestos para a
ascensão à vida maior, em cujas províncias nos aplicaremos à conquista de dons inefáveis,
na continuação da luta bendita pelo aperfeiçoamento próprio.
Quantos, porém, desprezarem as sublimes oportunidades do tempo, no clima de
recomposição a que nos acolhemos agora, decerto que, por eles mesmos, recuarão para os
distritos vizinhos, onde se afinam os agentes da perturbação e das trevas – doentes
voluntários, seviciando-se, em lamentável regime de reciprocidade – até que, fatigados de
rebeldia, roguem à piedade das Leis eternas a preciosa dádiva das reencarnações de
sofrimento regenerativo para o retorno a estes sítios, Deus sabe quando!...
Não aspiramos a dizer com as nossas afirmativas que o renascimento no campo físico
seja sempre cadinho de reparação aos delitos que praticamos, pois milhares de
companheiros, depois de longo e honesto esforço pela própria corrigenda, entre nós, com
larga quota de tempo em nossa colônia de trabalho e reforma, volvem ao corpo carnal,
honrados com tarefas de abnegação e heroísmo obscuro, junto de alguém ou ao lado de
grupos afins, granjeando, em louvável anonimato, concessões e vitórias dignas de apreço
que, apesar de permanecerem quase sempre ignoradas pelos homens, se lhes erigem, aqui,
em passaportes de libertação e acrisolamento para as esferas superiores!...
Ante a pausa que surgiu espontânea nos lábios do orador que se aureolava de intensa
luz, Evelina e Ernesto se entreolharam e, em seguida, através de ligeira mirada sobre os
circunstantes, notaram que dezenas de rostos se banhavam de lágrimas.
– Irmãos – continuou o ministro –, não vos sintais num tribunal de justiça, quando nos
achamos numa casa de fé!... Mãe amorosa dos nossos impulsos de melhoria e sublimação,
diz-nos a fé, neste recanto operoso e tranquilo, que não obstante desencarnados é preciso
reconhecermos que as nossas ocasiões de trabalho e progresso, retificação e aprendizagem
não chegaram a termo!...
Aceitemo-nos quais somos, reconheçamos o montante de nossas dívidas e coloquemos
mãos fiéis no arado do serviço ao próximo, sem olhar para trás... A cidade que nos reúne
está repleta de instituições beneméritas com as portas descerradas ao voluntariado de
quantos queiram colaborar no socorro aos que chegam até nós, em posição de angústia ou
necessidade, todos os dias... Na crosta planetária, onde as criaturas irmãs da retaguarda
travam dura batalha de evolução, entes queridos, ainda encarnados, exigem-nos os mais
entranhados testemunhos de ternura humana, através do concurso espiritual que lhes
possamos administrar, nos domínios da compreensão e do amor, a fim de que continuem a
viver na experiência terrestre que lhes é necessária, tranquilos e felizes, sem nós... Todo um
apostolado de renúncia construtiva, abnegação, carinho e entendimento se descortina para
a maioria de vós outros, no lar terrestre, onde quase todos estais ainda vinculados de
pensamento e coração!...
Além disso, estamos cercados, através de quase todos os flancos, por multidões de
companheiros dementados, a nos pedirem amor e paciência para que se refaçam!... Na arena
física, multiplicávamos apelos a que se pusessem mesas dedicadas aos famintos e se
acumulassem agasalhos para o socorro à nudez... Aqui, somos desafiados à formação e
sustentação do devotamento e da tolerância, para que a harmonia e a compreensão se
estabeleçam na alma sofrida e conturbada dos nossos irmãos tresmalhados nas sombras de
espírito.
Caridade, meus irmãos!... Amor para com o próximo!...
Muitas vezes, o serviço de alguns dias pode endossar-nos valioso empréstimo de
energias e meios para as empresas de recuperação e elevação que nos requisitam o esforço
de muitos anos.
Oremos, suplicando ao Senhor nos inspire, a fim de que venhamos a escolher
decididamente a estrada de purificação em novos e benditos avatares na estância física, ou a
vereda ascendente para a vida maior!...
Calou-se o sacerdote em prece muda.
Do teto pendiam estrias de safirina luz, quais pétalas minúsculas que se desfaziam ao
tocar a cabeça dos presentes, ou desapareciam, de leve, atingindo o chão.
Dir-se-ia que no peito do ministro, em profunda concentração mental, se inflamara uma
estrela de prata translúcida, de cujo centro se irradiava, docemente, toda uma chuva de
raios liriais, inundando o salão.
Fantini estava comovido, mas Evelina, qual sucedia a muitos dos companheiros ali
congregados, não conseguia jugular o pranto que lhe vinha em onda crescente do coração
aos olhos.
A senhora Serpa não saberia explicar a razão da emotividade que lhe assaltara os
recessos do espírito, extremamente sensibilizada como se achava, ignorando se devia
aquelas abençoadas lágrimas às aspirações para o Céu ou às saudades da Terra... Não mais
ouviu as derradeiras palavras do ministro, ao encerrar o ofício da noite. Sabia apenas que se
amparava agora de maneira total no braço do amigo, junto de quem se retirou do recinto,
soluçando...
13
Tarefas novas
Profundamente sensibilizados com as apreciações ouvidas no templo, Evelina e
Ernesto solicitaram admissão à caravana socorrista que o Irmão Cláudio presidia, em visita
semanal à região dos companheiros perturbados e sofredores.
Aquele mesmo amigo do Instituto de Ciências do Espírito atendeu-lhes o pedido com
simpatia e benevolência e, mais alguns dias passados, vamos encontrar os dois amigos
integrando operoso conjunto de serviço, que passava, então, ao número de oito pessoas,
cinco homens e três mulheres, entre as quais se achava a Irmã Celusa Tamburini.
Na peregrinação de fraternidade, a equipe descia na direção de vale extensíssimo,
destinando-se especialmente naquele dia ao culto do Evangelho no lar de Ambrósio e
Priscila, casal que desempenhava o encargo de guardiães, dentre os muitos sediados na
fronteira que assinala os pontos iniciais da zona conflagrada pelas projeções mentais dos
irmãos em desequilíbrio.
Tão logo se lhes descortinou mais ampla faixa da paisagem, Ernesto e Evelina não
conseguiam sopitar as expressões de assombro. Densa névoa, a patentear-se por diversas
tonalidades de cinza, barrava a província em toda a linha divisória. Pela primeira vez,
enxergaram nos céus máquinas voadoras que se dirigiam da cidade para o território
sombrio, semelhantes a grandes borboletas silenciosas refletindo o sol que lhes punha à
mostra as asas, como que estruturadas em pedaços de arco-íris.
Fantini desfechou para logo uma indagação, a que Cláudio respondeu, satisfeito:
– São aparelhos volantes, em que viajam comissões de trabalho, em tarefas de
identificação e assistência.
– A região é tão grande assim?
– Imagine um deserto planetário, com muitas sesmarias de área, marginadas por
cidades ordeiras e prósperas, e terá a exata noção do que nos ocorre aqui.
– E esses viajantes, através do ar, desencarnados como estão, acaso não lograriam
seguir adiante, sem esses engenhos, usando o poder de volitação que lhes é próprio?
O chefe sorriu e ponderou:
– Tudo na vida se rege por leis. Um pássaro terrestre possui asas e foge do campo
incendiado, por não suportar-lhe a cortina de fumo. Um bombeiro, a fim de penetrar numa
casa invadida de fogo, veste roupa defensiva.
E aditou:
– Achamo-nos à frente de perigosa extensão de espaço, habitada por milhares de
criaturas rebeldes que constroem, à custa dos próprios pensamentos em desvario, o
ambiente desolado que se nos impõe à vista. Aí, nesse mundo diferente, somos defrontados
pelas mais estranhas edificações, todas elas caricaturas dos abrigos domésticos de que os
donos abusaram na experiência física, uma verdadeira floresta de fluidos condensados,
retratando as ideias e manias, ambições e caprichos, remorsos e penitências dos moradores.
Temos aí, nessa faixa umbralina, todo um estado anárquico, em que o individualismo se
desborda na hipertrofia da liberdade, sem os constrangimentos benéficos da disciplina, que
nos faz realmente livres pela voluntária sujeição de nossa parte aos dispositivos das Leis de
Deus.
– E por que Deus permite a formação desses quistos gigantescos de perturbação e
desordem? – inquiriu Ernesto, num rasgo de lógica humana.
– Ah! meu amigo – obtemperou o Irmão Cláudio –, sempre que indagamos de nossos
Maiores por que não interfere a divina Providência no campo da inteligência corrompida no
mal, a resposta invariável é que o Criador exige sejam as criaturas deixadas livres para
escolherem o caminho de evolução que melhor lhes pareça, seja uma avenida de estrelas ou
uma vereda de lama. Deus quer que todos os seus filhos tenham a própria individualidade,
creiam nele como possam, conservem as inclinações e gostos mais consentâneos com o seu
modo de ser, trabalhem como e quanto desejem e habitem onde quiserem. Somente exige –
e exige com rigor – que a justiça seja cumprida e respeitada. “A cada um será dado segundo
as suas obras”. Todos receberemos, nas Leis da Vida, o que fizermos, pelo que fizermos,
quanto fizermos e como fizermos. De conformidade com os preceitos divinos, podemos
viver e conviver uns com os outros consoante os padrões de escolha e afetividade que
elejamos; entretanto, em qualquer plano de consciência, do mais inferior ao mais sublime, o
prejuízo ao próximo, a ofensa aos outros, a criminalidade e a ingratidão colhem dolorosos e
inevitáveis reajustes, na pauta dos princípios de causa e efeito que impõem amargas penas
aos infratores. Somos livres para desenvolver as nossas tendências, cultivá-las e aperfeiçoá-
las, mas devemos concordar com os estatutos do bem eterno, cujos artigos e parágrafos
estabelecem sejam feitas e mantidas, no bem de todos e no amparo desinteressado aos
outros, as garantias de nosso próprio bem.
Atingindo a orla escura da esquisita povoação, que começava, aqui e além surgiam
criaturas andrajosas e alheadas.
Não se podia afirmar fossem criaturas análogas aos mendigos, de alguma praça
terrena, em penúria. Esse ou aquele habitante do imenso arrabalde davam a ideia de
pessoas que o orgulho ou a indiferença tornavam espiritualmente distantes. De par com
esse gênero de transeuntes, outros apareciam entremostrando ironia e desprezo na mímica
escarnecedora com que apontavam os viajantes ou a estes se dirigiam. Quase todos exibiam
roupas estranhas, cada qual obedecendo às condições e dignidades a que supunham
pertencer.
A uma pergunta desfechada por Fantini – pois Evelina e ele eram os únicos adventícios
na equipe socorrista – Cláudio observou:
– De modo geral, os milhares de irmãos que se abrigam nestas paragens não se aceitam
como são. Habituaram-se de tal maneira às simulações – aliás, muitas vezes, necessárias –
da experiência física, que se declaram ofendidos pela verdade. Viveram, anos e anos, na
esfera carnal, desfrutando essa ou aquela consideração pelos valores de superfície que
exibiam, enfatuados, e não se conformam com a supressão dos enganos e privilégios
imaginários de que se alimentavam... Narcisos fixados à própria imagem na retaguarda...
Muitos se transferiram diretamente da vida física para a região nebulosa sob nossa vista, e
outros muitos habitaram, logo após a desencarnação, cidades de recuperação e
adestramento, semelhantes à nossa; entretanto, à medida que se evidenciavam, tais quais
ainda são na realidade, absolutamente sem quaisquer simulacros dos muitos de que se
valiam na estância terrestre para encobrirem o “eu” verdadeiro, rebelaram-se contra a luz
do mundo espiritual que nos expõe à mostra a natureza autêntica, uns diante dos outros, e
fugiram de nossas coletividades, asilando-se no vale de sombras geradas por eles mesmos.
Aí, na penumbra criada pela força mental que lhes é própria, com o objetivo de se
esconderem, dão pasto, em maior ou menor grau, às manifestações da paranoia a que todos
se afeiçoam, entregando-se igualmente, em muitos casos, a lastimáveis paixões que
procuram debalde saciar, até as raias da loucura.
– Irmão Cláudio – lembrou Evelina –, o senhor já penetrou nesses sítios, atingindo
algum ponto distanciado da orla?
– Já acompanhei diversas caravanas de fraternidade e socorro, utilizando veículos
diversos, alcançando praças estabelecidas muito longe de nós...
– E o que viu?
– Cidades, vilarejos, povoações e aldeamentos vários, em cujo seio Espíritos de
inteligência cultivada e vigorosa, mas profundamente pervertidos, dominam enormes
comunidades de Espíritos menos hábeis no comando das situações; contudo, tão
pervertidos, por via de regra, quanto eles mesmos.
Cláudio sorriu e ressalvou:
– Quando digo a palavra “pervertidos”, não me proponho a julgar os nossos irmãos
transitoriamente encastelados na sombra. Desejo apenas qualificar, para a compreensão de
quem chegou recentemente da vida física, a posição desses amigos doentes. Aliás,
consideramo-los tão enfermos quanto os nossos irmãos alienados mentais de qualquer
hospício da crosta planetária, credores de nosso melhor carinho. E saibamos, com
entranhado respeito, que numerosos pais e mães, esposos e esposas, filhos e pessoas
amadas de muitos dos companheiros transviados nessas regiões sombrias aí residem, por
mero devotamento, na situação de heróis obscuros, em admiráveis apostolados de amor e
renúncia, a benefício dos que se enrijecem no erro, de modo a reconduzi-los ao reequilíbrio
necessário, preparando-se para as novas reencarnações que os esperam. Esses paladinos da
bondade e da paciência parecem escravizados aos infelizes que amam; no entanto, pela
cátedra do sacrifício da humildade que esposam, acabam conseguindo prodígios pela força
irresistível do exemplo.
A casa singela de Ambrósio já se debuxava a distância, quando Fantini, como quem não
desejava perder o fio dos raciocínios em andamento, inquiriu ainda:
– Irmão Cláudio, são geralmente muitos os que são resgatados pela dedicação afetiva
daqueles que os tutelam nestes lugares?
– Sem dúvida. Todos os dias, chegam às nossas casas de reajuste pequenos ou grandes
magotes dos que aspiram a renovar-se.
– E permanecem na cidade, indefinidamente?
– Isso não. Com poucas variantes, demoram-se conosco apenas o tempo preciso ao
exame da nova reencarnação, em que regressam aos disfarces da carne, sem os quais,
segundo acreditam, não conseguem seguir à frente, nas veredas da regeneração. Entre o
cansaço da erraticidade nas sombras da mente e o terror da luz espiritual que confessam
não suportar sem longa preparação, suplicam o socorro da Providência divina, e a divina
Providência lhes permite a nova internação na armadura física, na qual se reocultam,
lutando pela própria corrigenda e pelo burilamento próprio, encobertos transitoriamente
no engenho carnal, que, pouco a pouco, se desgasta, pondo de novo, à mostra, o bem ou o
mal que fizeram a si mesmos, no período da encarnação. Obtido o empréstimo do novo
corpo, por via de regra junto daqueles que se lhes fizeram cúmplices nos desvarios do
pretérito ou que se lhes afinam com o tipo de débitos e resgates consequentes, esses
candidatos à recapitulação expiatória do passado imploram medidas contra eles mesmos,
seja na escolha de ambiente doméstico em desacordo com os seus ideais ou na formação do
futuro corpo de que farão uso, corpo esse que, muitas vezes, desejam seja bloqueado em
determinadas funções, prevenindo-se prudentemente contra as tendências inferiores que,
em outro tempo, lhes facilitaram a queda.
– Isso quer dizer que pedem certas cassações em desfavor deles mesmos? – interpôs
Fantini com a sua habitual agudeza de raciocínio.
– Sim, cassações. Em vista disso, encontramos na Terra, a cada passo, grandes talentos
frustrados para a direção que anelariam imprimir aos próprios destinos... Inteligências
vigorosas, desde cedo, barradas na obtenção de quaisquer louros acadêmicos e, por essa
razão, detidas em artesanatos obscuros ou encargos singelos, em longa e dolorosa
subalternidade, nos quais entesouram humildade e equilíbrio, paz e moderação; artistas
contrariados nas mais altas aspirações, arrastando defeitos físicos e inibições outras que
lhes obstam temporariamente as manifestações e sob as quais adquirem a reeducação dos
próprios impulsos com o respeito necessário para com os sentimentos do próximo;
mulheres de profunda capacidade afetiva jungidas a corpos que lhes deprimem a
apresentação, aprendendo em terríveis conflitos da alma quanto dói a deserção do lar e o
menosprezo aos compromissos da maternidade; homens hábeis e enérgicos, carregando
frustrações insidiosas e ocultas que lhes proíbem a euforia orgânica, no estágio físico, de
modo a edificarem o espírito de entendimento e caridade, no âmago de si próprios...
A palestra admirável, que valera por aula inesquecível no ânimo dos ouvintes, foi
repentinamente interrompida pelo abraço de Ambrósio e Priscila, que aguardavam os
peregrinos fora das portas.
Saudações, bênçãos, votos, alegrias.
O serviço religioso no lar se revestiu das características do Evangelho em casa, nos
domicílios cristãos da Terra.
Havia, porém, ali, naquela tenda simples, valioso trabalho de extensão do apoio
espiritual aos amigos sofredores da vizinhança.
Vinte e duas entidades, das quais vinte mulheres e dois homens, tinham vindo do
grande nevoeiro próximo, a fim de ouvirem a palavra do Irmão Cláudio, entremostrando
anseios de tranquilidade e transformação.
Desdobraram-se as tarefas nos moldes das reuniões evangélicas do mundo,
suplementadas pela conhecida orientação espírita-cristã, portadora da interpretação
respeitosa, mas livre, dos ensinamentos do Senhor.
Na fase terminal, passes de reconforto e mensagens de esclarecimento, advertência e
ternura.
Ocasiões de serviços repontaram do quadro para Ernesto e Evelina, que, por
designação do orientador, suavizaram os padecimentos de duas das irmãs visitantes, a se
cobrirem de lágrimas, depois dos comentários ouvidos.
Toda a equipe se dedicava a conversação edificante, às despedidas, acompanhando os
frequentadores humildes da sementeira evangélica, fora da casa, quando, emergindo da
névoa, compacto grupo de Espíritos zombeteiros e dementados apareceu.
Explodiram impropérios, entremeados de vaias e ditos chulos.
Prevenindo, especialmente aos dois recrutas, Cláudio avisou:
– Não se aflijam. A ocorrência é normal...
– Patifes! Sumam, sumam daqui!2 – rugiu um dos atacantes de vozeirão descomunal. –
Não queremos sermões, nem encomendamos conselhos.
Amainando a saraivada de insultos, Cláudio tomou a palavra e falou alto, sem alterar-
se:
– Irmãos!... Para aqueles de vós que desejais vida nova com Jesus, somos companheiros
mais íntimos desde agora!... Vinde à verdadeira libertação! Unamo-nos em Cristo!...
– Hipócritas!... – reagiu a mesma voz troante, seguida pelas gargalhadas irônicas de
muitos – nada temos com Jesus!... Mascarados! Vocês todos são iguais a nós, vestidos na
capa de santarrões!... Nós é que podemos chamar vocês para a liberdade!... Larguem as asas
de barro!... Anjos cotós! Cães enfeitados!... Vocês são tão humanos, quanto nós mesmos!... Se
são corajosos, deixem de ser burros velhos no freio da disciplina e venham ser livres como
somos!...
Dito isso, a malta avançou sobre o grupo fraterno, mas Cláudio, evidentemente em
oração, ergueu a destra e um fio de luz cortou o pequeno espaço que isolava os agressores.

2 Nota do Autor espiritual: Compreendemos a inconveniência das citações pejorativas; entretanto,

embora esmaecidas, acreditamos que as reações dos companheiros menos felizes, internados em regiões
hospitalares ou purgatoriais, devem comparecer no presente relato, de modo a não fugirmos do encontro
com a verdade.
A chusma de infelizes estacou, aterrada. Alguns deles caíram no solo, como que
traumatizados por força incoercível, outros resistiram vomitando injúrias, ao passo que
outros ainda fugiam em disparada... Todavia, dentre aqueles que se mantinham de pé, um
deles, muito jovem, bradou com acento inesquecível:
– Evelina!... Evelina!... É você aqui?... Oh! estou vivo, estamos vivos!... Quero Jesus!
Jesus!... Socorro! Socorro!... Quero Jesus!...
Cláudio aquiesceu, compadecido:
– Vinde!... Vinde!...
O moço arrancou-se da quadrilha, seguiu na direção que Cláudio lhe indicava e, em
poucos momentos, a senhora Serpa, trêmula e consternada, tinha diante de si Túlio Mancini,
aquele mesmo rapaz a quem amara noutro tempo e que, segundo estava convencida, havia
descambado nas trevas do suicídio por sua causa.
14
Novos rumos
A senhora Serpa, extática, não conseguiu articular palavra.
– Evelina!... Evelina!... – gritava o moço como que dementado de júbilo. – Agora!... Agora
que vi você, reconheço que estou vivo... Vivo!...
Cláudio considerou a delicadeza do momento e recomendou medidas para que o rapaz
fosse abrigado no lar de Ambrósio, até que se lhe providenciasse hospitalização
conveniente, de modo a se adaptar ao meio como se impunha.
Depois de passes reconfortantes em que se lhe sossegaram as emoções, Túlio Mancini
foi conduzido à residência dos modestos amigos que o acolheram alegremente, enquanto o
grupo socorrista retornava ao campo doméstico.
Distinto psicólogo, Irmão Cláudio se absteve de quaisquer alusões pessoais, a não ser
nas frases ligeiras com que notificou a Fantini e à senhora Serpa a possibilidade de reverem
o amigo reencontrado no dia seguinte, se o desejassem, prometendo indicar-lhes o
endereço preciso, uma vez que esperava situá-lo em dependência de reajuste e descanso,
tão logo pudesse avistar alguma das autoridades a cuja orientação se lhe vinculava a obra
assistencial.
Ernesto, a seu turno, estimaria ouvir a companheira com respeito ao suicida que lhes
fora objeto de tantos comentários, desde a conversação primeira; no entanto, calava-se,
observando-a francamente aparvalhada e apoiando-se-lhe ao braço em fundo silêncio. Na
cabeça dele, Fantini, pensamentos contraditórios se embaralhavam, sugerindo inquirições
sem resposta.
Não era Túlio um suicida? – perguntava-se. Lera bastante material informativo sobre
suicidas, além da morte, e acreditava estivessem eles comumente agoniados nas duras
penalidades a que se impunham pelo desacato às Leis de Deus.
Por que motivo escapara Mancini às corrigendas a que fazia jus, pervagando à vontade
na província de alienados mentais, entre Espíritos rebeldes e vagabundos?
Homem educado, porém, buscou emudecer considerações e perguntas para
unicamente reverenciar a perplexidade da amiga que, desde muito, lhe ganhara o coração.
Passo a passo e diálogo a diálogo, a equipe dispersou-se entre saudações de
fraternidade e votos de paz.
A sós com Evelina, entretanto, o generoso amigo, para dissipar os pensamentos
constrangedores de que a via cercada, sorriu e falou com excelente humor, infundindo-lhe
calma e otimismo:
– Excelentíssima senhora Serpa, se alguma dúvida nos restava sobre a morte de nossos
corpos físicos que já devem ter desaparecido no bojo da terra, já não nos é possível
doravante qualquer incerteza.
Ela diligenciou, em vão, sorrir. Sentia-se esmagada, abatida...
Ernesto redobrou esforços por chamá-la ao reequilíbrio e, depois de larga série de
alegações construtivas, rematou:
– Acaso, não temos nós solicitado trabalho? Quem dirá não tenhamos sido induzidos,
sem perceber, pelas autoridades daqui, ao achado de hoje? Esse Túlio que lhe foi, um dia,
companheiro de sonhos, será talvez para nós o começo de novos rumos... Uma nova
ocupação, um caminho de acesso à elevação espiritual a que nos cabe dar início... Você
concordará em que o vemos necessitado de tudo... Aquela voz atormentada, aqueles olhos
de doente não nos enganariam. Estamos diante de alguém que solicita atenções imediatas e,
a rigor, sendo pessoa de suas relações, é nosso parente próximo. Somos agora os únicos
familiares que ele possui.
Porque a amiga se referisse, de leve, à dor misturada de assombro que a descoberta lhe
causara, Fantini voltou ao bom humor do princípio e gracejou, de braços abertos:
– Que esperaria de melhor a senhora Serpa, a fim de trabalhar?
Cravou as mãos na cintura, num gesto que lhe era peculiar, e sublinhou:
– Quanto ao mais, minha querida amiga, lembro aqui a declaração filosófica de um
velho companheiro: “Convivei e purificai-vos”. Estamos desencarnados e precisamos, como
nunca, de burilamento moral. Se a presença de Túlio nos chama ao serviço que nos testará a
capacidade de amor ao próximo, não hesitemos abraçar as novas obrigações.
Dias transcorreram até que os dois amigos conseguissem reavistar o rapaz, então
suficientemente melhorado, depois dos cuidados recebidos.
Ernesto fitava-o, curioso, no primeiro tête-à-tête, mas Evelina sentia-se tomada de
surpresa e inquietação.
Aquele era Túlio Mancini, mas um Túlio Mancini diferente. Os olhos penetrantes,
quando pousados nela, denunciavam sentimentos estranhos. Nem a ela, nem a Fantini
passavam despercebidos os propósitos enfermiços a lhe nascerem, ali mesmo, à frente dos
dois, sem que o moço se soubesse intimamente visto e analisado.
Sem qualquer impulso intencional, Ernesto e Evelina permutavam impressões,
telepaticamente, reconhecendo com mais clareza que lhes era possível conversar pelo
idioma do pensamento, de modo espontâneo, principalmente ali, diante de um companheiro
que não lhes comungava o mesmo nível de ideias e emoções. Naquele momento, guardavam
a convicção de ler na alma de Túlio, como num livro aberto.
Registrando as afirmações entusiásticas do rapaz, a imaginar-se vivo no mundo físico
pelo fato de haver reencontrado a ex-noiva, os dois amigos não se animavam a desmanchar-
lhe, de pronto, a ilusão.
– O que mais me espanta é ter aguentado isso aqui, tanto tempo, com o flagelo da
dúvida... – suspirou Mancini, aliviado.
A senhora Serpa diligenciou modificar-lhe o curso dos raciocínios, no evidente intuito
de prepará-lo para a verdade, e interpôs com bondade:
– De minha parte, o que mais lamentei foi a sua atitude, atirando contra você mesmo,
num ato de loucura...
– Eu? Eu?!... Pois você não soube? – redarguiu o moço, admirado. – Nunca fiz isso!...
Tive, é verdade, a fraqueza de pensar, um dia, em matar-me pelo veneno por sua causa, mas,
depois, reconheci que você não me desprezava e eu queria, a todo preço, reconquistar a sua
afeição. Sucede, porém, que no anseio de colocar-me fora de campo, Caio foi procurar-me,
solicitando-me ir com ele ao meu escritório, para consultarmos juntos um livro de Direito
Internacional. Porque alegasse urgência, não vacilei em prestar-lhe o favor. Era um feriado e
as salas próximas jaziam fechadas. A sós comigo, abandonou os assuntos da profissão, e
passou a acusar-me. Disse que a minha covardia, recorrendo ao veneno, abalara o amor que
existia entre ele e você... Tentei justificar-me... Quando me detinha a considerar a pureza de
meu afeto, aquele brutamontes vomitou insultos que não consigo olvidar e, sacando um
revólver, me alvejou no peito... Caí no piso e nada mais vi... Acordei, não sei quando, num
quarto de hospital e, desde então, vivo enfermo e revoltado, buscando reaver a saúde para
ensinar àquele biltre quanto vale a minha vingança...
Um raio que caísse, ali, sobre os três, não teria arrasado o ânimo da senhora Serpa
quanto aquela revelação terrível.
Num átimo, percebeu que Túlio não largara o corpo em arrancada suicida, mas sim
constrangido pela arma daquele a quem desposara no mundo, ao mesmo tempo que Fantini,
estupefato, concluía que o rapaz fora vítima de um crime desconhecido entre os homens; e
fosse porque aflitivos pensamentos de culpa lhe azorragassem o cérebro ou porque notava
no moço o anseio indisfarçado de ficar a sós com Evelina, rogou telepaticamente a ela não
fizesse o mínimo esforço por trazer Mancini à realidade e sim tivesse paciência, até que
pudessem estabelecer planos de socorro ao moço infeliz.
A senhora Serpa entendeu e Ernesto pediu licença para afastar-se.
Queria pensar, repousar...
Ao demais, informou, era natural que os dois tivessem confidências, de coração para
coração.
Mais tarde se reencontrariam.
Embora contrafeita, Evelina aquiesceu.
Quando se voltou, porém, para o ex-noivo, sentiu-se algo desamparada, qual se
renteasse com perigos ocultos.
Mancini convidou-a a pequeno passeio pelo parque da instituição que o albergava e, em
poucos instantes, ei-los, um ao lado do outro, a passo vagaroso, entre sebes floridas e
árvores protetoras, aspirando o vento embalsamado de nutrientes perfumes.
– Evelina – recomeçou ele –, quem é este velho que você está trazendo a tiracolo?
A interpelada mostrou-se penosamente impressionada com a frase agressiva,
pronunciada em tom de sarcasmo; no entanto, respondeu, gentil:
– Trata-se de amigo distinto, a quem devo inestimáveis favores.
Ele chasqueou:
– Compreenda que sofri muito para achar você... Agora, não cedo sua companhia a
homem algum, mesmo que esse homem fosse seu pai...
Ela se dispunha a revidar, solicitando moderação; todavia, Mancini prosseguiu,
eufórico:
– Evelina, tenho um mundo de coisas a saber, a perguntar e a ouvir de você... Não sei,
realmente, se tenho estado louco. Onde estamos? Que fazemos?... Entretanto, prefiro falar
de você e de mim, unicamente de nós dois...
Nessa altura do diálogo, esbarraram com bonito e pequeno caramanchão, totalmente
envolto de trepadeiras.
Túlio, em voz suplicante, implorou fizessem ali uma parada de refazimento. Sentia
dores, quando se movimentava em demasia, alegou. Desde o tiro sofrido, não se reconhecia
o mesmo. Evelina obedeceu maquinalmente impulsionada pela compaixão.
Acomodaram-se ambos num dos bancos existentes no recinto doce e agreste.
O moço relanceou os olhos, por todos os lados, como a certificar-se de que se viam
absolutamente sozinhos e, em seguida, cerrou a única porta da peça, que passou a receber
luz e ar através das altas e estreitas janelas que quase se comunicavam com o teto. Em se
voltando para a companheira, patenteava no semblante tamanha expressão de sensualidade
que a senhora estremeceu.
– Evelina!... Evelina!... – rogou ele, apaixonadamente – você sabe que tenho esperado
por este momento de felicidade, em todos estes anos de angústia... Você e eu, juntos!...
Ela não foi totalmente insensível ao apelo afetivo daquele homem jovem a quem amara,
e enterneceu-se. Relembrou as noites de cochichada ternura, nos parques e nos cinemas,
antes de comprometer-se com Serpa. Sim!... Aquele era Mancini, o rapaz que a
impressionara tanto! A mesma simpatia e a mesma voz de enamorado, acenando-lhe com a
renovação do destino. Instintivamente, rememorou as infidelidades do marido, o escárnio
revestido de belas palavras que recebera dele tantas vezes em casa e, por um momento,
balançou-se-lhe outra vez o coração, entre os dois, qual ocorrera nos tempos do noivado...
Túlio estava, agora, diante dela, prometendo-lhe, de novo, um amor ardente e tranquilo...
Achou-se como que inebriada pelas considerações que ouvia, mas a consciência vigilante
impeliu-a a reajustar-se. Via-se dominada por estranho sentimento que a induzia para ele;
no entanto, ao mesmo tempo, algo em Mancini, naquele instante, lhe impunha medo e certa
repugnância. Não era ele mais o cavalheiro de outra época. Mostrava-se imponderado,
desabrido. Moralmente refeita, Evelina confessava a si mesma que não lhe cabia o direito de
ceder a quaisquer sugestões incompatíveis com a sua dignidade feminina. Casara-se. Devia
ao esposo lealdade e acatamento. A consciência controlou a sensibilidade. A noção dos
compromissos assumidos guardou-lhe a alma nobre e sincera. Impôs-se fortaleza e
serenidade, resolvendo permanecer a cavaleiro de emoções que não se justificavam.
Enquanto semelhantes reflexões lhe escaldavam a cabeça, Mancini continuava:
– Deixe-me recostar em seu colo, um momento só!... Evelina, quero sentir o calor de seu
coracão... Tenho necessidade de você, qual o sedento quando se aproxima da fonte!
Compadeça-se de mim!...
Observando os gestos de desconsideração que ele passara a assumir, a moça tentou
recuar e replicou, valorosa:
– Túlio, contenha-se! Não sabe você que desposei Caio, que tenho a responsabilidade de
um lar?
– Oh! o infame!... Compreendo que a minha ausência longa terá levado você a desposar
aquele canalha, mas isso não fica assim, não...
E, depois de pausar, alguns instantes, prosseguiu para a companheira estarrecida:
– Evelina, sei que você não é indiferente ao que sinto! Vamos!... Diga que me atende!...
Ato contínuo, intentou beijá-la.
Embora possuída de assombro e temor, ela ganhou ânimo e, retrocedendo, reagiu
indignada:
– Túlio, que é isto? Estará você louco?
– Tenho pensado em você, dia e noite... Desde que tomei o balaço daquele patife que
levarei à cadeia, não tenho mais ninguém na imaginação!... Não se compadece você de mim?
O entono comovedor daquela voz feria-lhe fundo a alma; no entanto, a senhora Serpa
objetou, firme:
– Compreendo a sua estima e agradeço a lembrança, mas julga você justo atacar-me
assim, desrespeitosamente, quando já lhe falei que tenho um marido e, por isso mesmo,
contas a prestar?
Mancini silenciou por momentos; em seguida, exibiu nos olhos esgazeados a
perturbação que lhe passou a senhorear os mecanismos da mente, transfigurou o pranto em
escárnio e desfez-se numa gargalhada terrível.
– Um marido!... Um marido, aquele crápula!... – zombou. – O povo de onde venho agora,
o povo da terra da liberdade, tem toda a razão... Entendo, você agora faz parte dos santos,
mas eu não sou mascarado. Sou o que sou, um homem com as funções que me são próprias...
Quero você e isso a escandaliza? Boa piada!... Você é uma mulher como as outras, você não é
melhor do que todas aquelas que conheço na terra da liberdade, apenas com a diferença de
que você se oculta na capa andrajosa da disciplina...
– Sim – suspirou Evelina, magoada –, não nego a minha fragilidade humana... Não
acredita você, porém, que a disciplina é a melhor maneira de educar-nos e dignificar os
nossos sentimentos?
– Ah! Ah! Ah!... – galhofou ele – obediência é a camisa de força em que os hipócritas
metem os simples, mas você mudará de ideia...
A moça agoniada confiava-se à oração muda, implorando socorro aos poderes da Vida
maior.
Enquanto isso, o companheiro avançava, mofando:
– Olhe para dentro de você mesma e verificará seu disfarce... Você é um anjo de pé de
chumbo, igual aos outros macacos fantasiados que andam por aí. Largue mão disso... Todos
somos livres!... Livres filhos da Natureza para fazer o que quisermos!... Proclame a sua
independência se não deseja acabar na senzala dos tartufos da sujeição!...
Mancini investiu para ela e estava prestes a agarrá-la, quando alguém
providencialmente bateu à porta.
Constrangido embora, Túlio refez-se, de imediato, e foi atender.
O mensageiro declinou para logo a sua condição. Tratava-se de auxiliar do Instrutor
Ribas e vinha da parte dele, a fim de conduzir a irmã Evelina Serpa ao Instituto de Proteção
Espiritual, para a solução de assunto urgente.
A senhora respirou aliviada e percebeu que fora ouvida na silenciosa petição e,
enquanto agradecia, em pensamento, o amparo salvador, Túlio, seguido igualmente de
perto pelo emissário, voltou à casa de reajuste, onde foi recolhido à cela especial, destinada
a serviço de segregação e tratamento.
15
Momentos de análise
Atendendo à solicitação de Ernesto e Evelina, que ansiavam por esclarecimento no
embaraço que a presença de Túlio lhes impunha à cabeça, o Instrutor Ribas marcou-lhes
encontro, de que se valeram pontualmente.
No ambiente acolhedor do Instituto, o amigo lhes ouviu pacientemente as arguições.
Que significa a perturbação do rapaz? Como lograriam os dois, notadamente Evelina,
auxiliá-lo corretamente? Ser-lhes-ia lícito rogar ao Instituto alguma informação, quanto às
acusações de Mancini contra Caio Serpa? Estariam ambos capazes de assumir
responsabilidades para ajudar ao moço infeliz?
Após ouvi-los, o orientador repartiu com eles um olhar de brandura e advertiu:
– Vocês já reiteraram diversos pedidos de acesso ao trabalho espiritual; não estranhem
se chegou a hora de começar.
Depois de uma pausa, transformada em sorriso:
– Túlio Mancini é o marco de início da obra redentora que abraçam. Investiguem os
próprios corações, especialmente nossa irmã Evelina, e verifiquem a pena que as
dificuldades dele lhes causam. Onde o amor respira equilíbrio, não há dor de consciência e
não existe dor de consciência sem culpa.
– Oh! Instrutor – clamou a senhora Serpa –, diga, por gentileza, tudo o que devo fazer!
– Falar-lhes-ei como a filhos, porque entre pais e filhos não prevalecem
suscetibilidades...
Mudando de tom:
– Irmã Evelina, que sensações foram as suas, em se vendo a sós com o amigo recém-
visto?
A moça, que formulara o íntimo propósito de arrostar a verdade, fossem quais fossem
as consequências, admitiu:
– Sim, ao rever-me a sós com ele, sem ninguém a observar-nos, como que me detive nas
lembranças do passado, quando supunha haver achado nele o homem de minha preferência.
Senti-me transportada à juventude, e então...
– E então – o mentor benevolente completou a frase reticenciosa – as suas próprias
vibrações lhe encorajaram a agressividade afetiva.
– Entretanto, recordei, às súbitas, os meus compromissos conjugais e contive-me.
– Fez muito bem – contrapesou Ribas –, ainda assim, o seu coração falou sem palavras,
provocando novas sequências do desajuste emocional de que Mancini foi vítima, na
experiência terrestre, em grande parte motivado por suas promessas não cumpridas.
– Oh! Meu Deus!...
– Não se aflija. Somos Espíritos endividados, perante as Leis divinas, e estamos
situados na faixa de expressiva transição, a transição do amor narcisista para o amor
desinteressado. Temos teorias de santificação para o sentimento, mas, na essência, somos,
na prática, simples iniciantes. Na esfera dos pensamentos nobres, assimilamos o influxo dos
planos gloriosos; todavia, no campo dos impulsos inferiores, carregamos ainda o imenso
fardo de desejos deprimentes, que se constituem de vigorosos apelos à retaguarda.
Impressionado, Fantini aparteou:
– Quer dizer que o homem terrestre...
– É um ser de inteligência refinada pelos poderes que adquiriu na caminhada evolutiva
em que se empenha, desde muitos séculos, mas ainda oscilante, de modo geral, entre
animalidade e humanização, conquanto os casos particulares de criaturas que já se
encaminham da humanidade para a angelitude. A maioria de nós outros, os Espíritos
capitulados na escola da Terra, nos achamos em trânsito da poligamia para a monogamia,
com referência à devoção sexual. Decorre daí o impositivo de vigilância sobre nós mesmos,
sabendo-se que o sexo é faculdade criativa, nos domínios do corpo e da alma.
Denotando, porém, o propósito de não se afastar do problema específico de Evelina:
– Compreensível, minha irmã, que você houvesse registrado o fenômeno da atração de
que dá notícia e muitíssimo justa a continência a que se determinou, exortando o raciocínio
claro e responsável a frenar o coração imaturo. Ninguém atingirá o porto da dignidade
espontânea, sem viajar, por longo tempo, nas correntes da vida, aprendendo a manejar o
leme da disciplina. Embora isso, porém, saibamos debitar a nós próprios os erros que
perpetramos, no tocante aos valores afetivos, a fim de saná-los ou resgatá-los em momento
oportuno.
– Devo reconhecer minha dívida para com Mancini, hipotecando-lhe noutro tempo
tantos votos de felicidade que deixei para ele absolutamente vazios... – suspirou a senhora
Serpa, desconsolada.
– Isso mesmo. Túlio terá cometido muitos disparates, até agora; no entanto, a sua
consciência de mulher não se eximirá, com certeza, aos compromissos que lhe cabem no
assunto.
– E de que modo apagar o meu débito?
– Auxiliando-o a limpar as próprias emoções, como se purificam as águas de um poço
barrento.
Diante da inquietude que passou a desassossegar a jovem senhora:
– Nada de precipitação, nem de violência. Forçoso aceitar-nos tais quais somos e facear
os problemas que nos advenham dos próprios desacertos. Não estudamos para chorar. A
irmã está consciente de que cooperou no desastre moral do amigo em análise. Vejamos
serenamente o que lhe será possível fazer agora, de maneira a que se reponha na estrada
certa.
– Pequenina quanto sou, que conseguiria realizar? – suplicou a moça, humilde.
Ribas recorreu a largo móvel em que se adivinhava complicada peça de arquivo e,
sacando uma ficha, explicou que ali jaziam sumariados todos os informes que Evelina
prestara em seu primeiro contato com o Instituto. Em seguida, elucidou que, de posse da
versão doada por ela mesma, acerca dos acontecimentos que lhe haviam atormentado a
existência, ele, Ribas, providenciara a obtenção de conhecimentos complementares, alusivos
à senda que ela escolhera trilhar. Viera, assim, a saber que Mancini efetivamente perdera o
corpo físico pela ação delituosa de Serpa, que lograra ilaquear as autoridades humanas com
um crime perfeito, no qual compusera com habilidade a tese de suicídio. Vítima da
desencarnação prematura, perambulara o rapaz, algum tempo, à feição de sonâmbulo, na
paisagem terrena que lhe servira de fundo à tragédia, sendo, mais tarde, recolhido, ali
mesmo, na cidade de regeneração e refazimento em que lhe pesquisavam agora a situação.
Aí convalescera por alguns meses; no entanto, a paixão que Evelina lhe insuflara
levianamente na alma lhe fixara nela e em torno dela os pensamentos. À vista disso,
tornara-se arredio ao próprio reerguimento, acabando por fugir no rumo do tenebroso
distrito da inteligência desenfreada, onde se relegara, nos últimos anos, a desvarios
diversos. Vinculado à moça que lhe acalentara em vão tantos sonhos de ventura e de afeto,
viciara-se no território da sombra, desconsiderando a própria respeitabilidade. Retornando
àquele pouso de consolação e reequilíbrio, por efeito do reencontro com a criatura que lhe
permanecia na mente por eleita inesquecível, fora agraciado com novo ensejo de
autorreeducação.
A senhora Serpa e Ernesto assinalavam, atônitos, a exposição que primava por lógica
irretorquível.
Às agoniadas inquirições da interessada, quanto ao comportamento que lhe competia
adotar, Ribas aclarou:
– Podemos dizer-lhe, minha irmã, que, por seus méritos indiscutíveis, benfeitores e
amigos de que dispõe na Espiritualidade Maior rogaram aos agentes da divina Justiça não
lhe permitissem a desencarnação sem começar o processo de sua reabilitação espiritual na
Terra mesmo... Assim é que, através da onda mental dos remorsos que lhe ficaram, à face do
suposto suicídio de Mancini, você atraiu para o próprio claustro materno o Espírito sofredor
de um irmão suicida, sentenciado pela própria consciência a experimentar a provação de
um corpo frustrado, de modo a valorizar com mais respeito o divino empréstimo da
existência física. Como é fácil de ver, as angústias da maternidade malograda lhe foram
extremamente úteis na Terra, por lhe haverem proporcionado ensejo a preciosas
reparações.
– Entretanto – mencionou Fantini –, informamo-nos de que Mancini não caiu por si
próprio e sim pela arma do rival.
– Apesar disso – consertou Ribas –, não olvidemos que o moço empreendeu, antes, a
lamentável tentativa, impulsionado pela ação da própria Evelina, dando a Serpa o molde do
crime.
Esboçando sorriso benevolente:
– Estamos examinando, entre amigos, a lei de causa e efeito. Compreendamos que a
justiça funciona em nós mesmos.
– Mas...
Fantini, admirado, iniciou debalde a tréplica vacilante. Ignorava como entretecer novas
dúvidas, ante a conceituação racional que o mentor tranquilamente patenteava.
Foi o próprio Ribas quem retomou o fio das justificações, anotando:
– Somos mecanicamente impelidos para pessoas e circunstâncias que se afinem
conosco ou com os nossos problemas. Suscitando ideias de autodestruição na mente de um
homem cujas atenções granjeara, Evelina transportou-se da irreflexão para o
arrependimento, depois de verificar-lhe a derrocada moral numa empresa gorada de
suicídio, procurada conscientemente. Apenas aí, coagida pela compunção, nossa irmã
percebeu que agira em prejuízo do rapaz de quem obtivera integral confiança, lesando, em
consequência, a si própria. Lastimando Mancini, deplorava a si mesma e, nesse estado de
emoções negativas, fez-se vaso de uma entidade nas condições em que supunha haver
precipitado o moço menos feliz. À vista disso, converteu-se automaticamente em
desventurada mãe de um companheiro suicida, no anseio de expiar a própria falta.
Endereçando afetuoso olhar para a senhora Serpa:
– Enunciando inconscientemente o desejo de exculpar-se, o seu propósito alcançou o
coração de amigos e benfeitores, no mundo espiritual, que lhe advogaram a concessão da
bênção a que já nos referimos. Você padeceu, pois, antes da desencarnação, a pena de que se
julgava merecedora, sequiosa que se achava de propiciar a Mancini a supressão do mal que
lhe havia causado. Você não pagou em Túlio o débito em que se viu incursa, mas resgatou
essa conta, junto a suicida anônimo, tão filho de Deus quanto nós, redimindo-se no foro
íntimo, segundo a lei que rege a tranquilidade de consciência. E o irmão desconhecido, ao
mesmo tempo que amargou a provação do berço prematuramente inutilizado, começou a
ressarcir a dívida que assumira para consigo mesmo, aprendendo quanto custa e como
custa o tesouro de um corpo físico, utensílio de aperfeiçoamento e progresso.
Ernesto e Evelina escutavam, surpresos.
– Cumpre-se a eterna Justiça no mundo de cada um de nós – rematou o professor. –
Deus não nos condena nem nos absolve. O Amor universal está sempre pronto a soerguer-
nos, instruir-nos, burilar-nos, elevar-nos, santificar-nos. O destino é a soma de nossos
próprios atos, com resultados certos. Devemos sempre a nós mesmos as situações em que
se nos enquadra a existência, porquanto recolhemos da vida exatamente o que lhe damos de
nós.
– E agora? – interrogou Evelina, espantada.
– As circunstâncias trouxeram-lhe o credor ao ambiente pessoal, porque você, minha
irmã, está felizmente em posição de prosseguir no trabalho restaurador.
– Que fazer, meu amigo?
– Se você está realmente disposta a renovar o caminho, chegou o momento de ajudar
Mancini a desvencilhar-se das ideias enfermiças que a sua conduta de moça menos
responsável lhe instalou na cabeça, tornando-se presentemente para ele em devotada
preceptora, a reformular-lhe a visão da vida, no plano espiritual.
– Não posso desempenhar, junto dele, o papel de companheira...
Ribas acarinhou-lhe a mão com ternura paterna e apontou:
– Se os erros da mulher não foram perpetrados, na categoria de parceira da vida sexual
de um homem, ela não tem a obrigação de ser-lhe a esposa, tão só porque lhe deva essa ou
aquela indenização no reino do Espírito, sucedendo o mesmo ao homem, referentemente à
mulher. Não obstante esse princípio, a lei de amor deve efetivar-se, independentemente das
formas em que o amor se expresse.
E num tom de enternecimento profundo:
– Aqui mesmo, você pode regenerar o campo emotivo de Túlio e sublimar os seus
próprios sentimentos em relação a ele, amparando-o e instruindo-o no grau de mentora
maternal. Quase sempre, a recuperação de alguém é uma planta sublime da alma que
somente vinga porque a abnegação de outro alguém se dispõe a adubá-la com a proteção da
ternura e com o orvalho das lágrimas...
Identificava-se Evelina banhada de esperança; Fantini mergulhou em alta meditação
acerca das realidades eternas e Ribas, pressionado pelo horário que lhe convocava a
presença em outros setores, prometeu continuar a esclarecedora conversação, logo lhes
surgisse a desejada oportunidade, em momentos seguintes.
16
Trabalho renovador
Vida nova começou para Evelina e Ernesto, especialmente para Evelina.
Indispensável auxiliar Túlio, abençoá-lo, renová-lo.
Para isso, os dois amigos se matricularam em colégio de estudos preparatórios de mais
altas ciências do espírito. Radiantes de esperança e entusiasmo, adquiriam conhecimentos
em torno de evangelização, reforma íntima, sintonia mental, afeição, agressividade,
autocontrole, obsessão, reencarnação.
A fim de conversar construtivamente com aquele que se lhe extraviara à conta pessoal,
a senhora Serpa munia-se de instruções com que lhe pudesse ganhar o raciocínio.
Competia-lhe o esforço mais grave, desfazer-lhe na mente o quisto de ilusões que ela
própria criara. Fantini, contudo, que se compadecera profundamente do rapaz menos feliz,
de acordo com avisos do Instituto de Proteção, poderia acompanhá-la a pequena distância,
com a obrigação de intervir quando necessário.
No dia marcado para início da tarefa, a subdividir-se em visitas de esclarecimento e
enfermagem três vezes por semana, Ribas seguiu em pessoa os dois obreiros para o refúgio
de saúde mental em que os novos deveres se lhes impunham.
Integrando diminuta comunidade de enfermos da alma, o jovem Mancini se achava
recluso em solitária dependência que o Instrutor informou estar erguida à base de material
isolante contra o impacto de vibrações suscetíveis de agravar-lhe a sede de companhias
menos recomendáveis.
O orientador apresentou ambos os companheiros às autoridades e auxiliares do pouso
de reajuste e, tanto Evelina quanto Ernesto, sob o beneplácito da simpatia geral, puseram
mãos à obra.
Túlio acolheu, encantado, a presença da moça e, de começo, reafirmava-lhe os
protestos de devoção afetiva em ditirambos de lealdade e ternura.
A senhora Serpa, no entanto, redobrou cautelas emolduradas de carinho, suplicando a
inspiração da vida maior, para não falhar na missão que abraçara.
Os diálogos terapêuticos prosseguiam, pontualmente. Apesar disso, Mancini não se
desfixava da paixão que o absorvia, lembrando um barco chumbado ao solo, incapaz de
afastar-se do cais.
Principiasse Evelina a preparar clima adequado às lições e ele choramingava, à maneira
de criança doente. Declarava-se indisposto e inabilitado para o estudo, desconsiderado,
ofendido nos brios próprios. Asseverava-se infenso a qualquer ponderação filosófica,
alegando não sentir inclinação para assuntos de fé. Insistia em reconhecer-se unicamente
um homem-homem, na definição dele mesmo, e, nessa condição, não queria uma enfermeira
ou preceptora, mesmo solícita quanto a moça se revelava, e sim uma companheira, a mulher
dos seus sonhos.
Evelina ouvia pacientemente os remoques e lamentações incessantes, aparando-lhe os
golpes e podando-lhe as impressões destrutivas, sempre assistida por Ernesto, que lhe
supervisionava os esforços com generosa atenção. Imbuída das responsabilidades que lhe
assinalavam agora a vida e sendo criatura profundamente emotiva, a senhora Serpa
concentrava-se, de modo constante, no esposo, nele investindo toda a carga de seus
potenciais afetivos. Para sentir-se na posição de tutora maternal de Mancini, experimentava
a necessidade de ser mais entranhadamente a mulher de Caio. Por essa razão, mentalizava-
lhe a imagem, a cada passo, endereçando-lhe em silêncio os seus mais belos pensamentos
de amor. É verdade que Serpa não lhe havia sido o consorte ideal. Além disso, sabia-o agora
homicida, com refinados recursos de inteligência para ocultar-se. Evelina, porém, humana
quanto qualquer ser humano, ponderava, de si para consigo, que ele se fizera criminoso por
amá-la. Eliminara a existência de Túlio para disputar-lhe o coração, em agoniado lance
afetivo. Aspirava a revê-lo em pessoa, haurir-lhe o calor da presença, a fim de revigorar-se
para os embates morais a que se confiava; entretanto, por mais solicitassem permissão para
visitar a família terrena, Fantini e ela obtinham regularmente a mesma resposta dos
mentores: “Muito cedo”.
Reconfortavam-se, por isso, com estudo e trabalho.
De vez em vez, o tête-à-tête entre ambos. As confidências.
Ernesto falava enternecidamente da esposa Elisa e da filha Celina. Sensibilizado,
entretecia no mágico painel da saudade a imagem das duas por espelhos cristalinos de
amor, em que se comprazia mirar-se, conquanto a filha o tratasse, muitas vezes, com
rebeldia cruel... Decerto que a viúva e a jovem não arrostavam dificuldades materiais de
vulto maior. Legara-lhes renda expressiva. Boa casa. Algum dinheiro em mãos honestas a
fornecer-lhes pensão sólida e os seguros em que montara a defensiva doméstica.
Mas... E a ausência? Indagava-se, constantemente, junto da amiga que se lhe
transformara em irmã de todas as horas. A ausência, a distância!...
Perdiam-se os dois em conjeturas, prelibando alegrias de reencontro. Achavam-se
suficientemente informados de que, entre eles e os amados do mundo, se levantava agora o
muro das vibrações diferentes. Em vista disso mesmo, não mais lhes seria possível retomar-
lhes a atenção como quem volta de uma viagem. Competia-lhes a obrigação da
conformidade, perante quaisquer transformações a que se lançassem. Nesse sentido, até ali,
haviam registrado as mais diversas narrações de mortos que procediam da Terra,
desacoroçoados e tristes, ante a impossibilidade de serem vistos, ouvidos, assinalados,
tocados pelos parentes. Muitos voltavam consolados e esperançosos, como que libertos de
laços e algemas que lhes fossem pesados aos corações, mas outros muitos regressavam
desencantados e sorumbáticos, evidenciando pouca disposição para conversar. Referiam-se
a amigos e a mudanças radicais na vida caseira, mencionavam desastres e falências na
ordem afetiva de almas inolvidáveis. Eles dois, porém, se identificavam otimistas,
confiantes. Evelina entusiasmava-se, derramando-se em nobres impressões, diante de
Ernesto, atento. Caio, na opinião dela, caíra em deslizes; todavia, reabilitara-se-lhe no
conceito de esposa pelo alto gabarito de ternura e abnegação a que se elevara, durante os
dias últimos da enfermidade que lhe fora fatal ao corpo físico. Em verdade, podia ter sido
desleal, durante algum tempo, lá isso podia. Era um homem com as exigências naturais da
vida comum e obviamente se distraía, enquanto lhe aguardava a cura e o refazimento; mas à
frente da morte, diante da longa separação!... Modificara-se, parecia haver recuperado a
condição do noivo, amoroso, terno... E Evelina, ao contemplá-lo com os olhos da imaginação,
supunha-o agoniado e infeliz, no anseio de livrar-se da carne, a fim de reacolhê-la nos
braços. Antecipava opiniões, enquanto Fantini lhe guardava, com interesse, a doce
expectativa. Solenizando alegações, asseverava que Serpa cometera até mesmo a loucura de
eliminar a presença de Túlio, no intuito de desposá-la. Fora isso terrível calamidade, fora.
No fundo, porém, Evelina mostrava traços inequívocos da vaidade de sentir-se querida.
Declarava, resoluta, que tal qual se esforçava por Mancini, desvelar-se-ia, mais tarde, por
Serpa. Esmerar-se-ia em ajudá-lo em qualquer reparação que se fizesse precisa.
Ernesto volvia, então, a biografar-se, contando histórias do lar. Amava a esposa,
entranhadamente, e confessava que praticara muitos disparates, quando mais moço, de
maneira a preservar a tranquilidade doméstica. E a filha? Celina era uma bênção que lhe
acalentara o coração na madureza. Sempre terna, compreensiva, devotada. Sonhara para ela
um marido bom, amigo; no entanto, deixara-a aos vinte e dois anos de idade sem casamento
à vista. Conquanto a dor de pai, distanciado de casa, depunha na filha a maior confiança. Não
lhe temia o futuro. Além de provida com mesada apreciável, lecionava Inglês com mestria.
Ganhava dinheiro e sabia guardar.
Mantinham-se, desse modo, sucessivas conversações entre os dois. Sentimentais.
Saudosistas.
Passados seis meses de atenção e doutrinação, a benefício de Túlio, Ribas veio
examiná-lo em pessoa, segundo promessa havida.
Após verificar a pontualidade e a eficiência de Evelina, através de anotações
referendadas pelas autoridades orientadoras da casa, penetrou o aposento do enfermo,
categorizado para ele como médico em acurada inspeção. Ao primeiro olhar, porém,
reconheceu que Mancini apresentava escasso proveito com as lições recebidas.
Apático, denunciava na mente uma ideia central: Evelina. E com Evelina no miolo das
mais profundas cogitações, vinham as ideias-satélites: o anseio de transformá-la em objeto
de posse única, o tiro de Caio, o desejo de vingança e as escuras alusões da autopiedade.
Ribas não descobria a mais ligeira fresta, naquele coração pesado de angústia, para
filtrar um só raio de otimismo e esperança.
Às primeiras manifestações do inquérito afetivo, respondeu ao Instrutor, com a tristeza
de um doente que se sabe sem cura:
– Qual, doutor, sem Evelina comigo, nada consigo entender. Se ouço Evangelho, penso
que ela – ela só – é o anjo capaz de salvar-me; se anoto ensinamentos, acerca de
autocontrole, vejo-a no pensamento, como sendo a única alavanca, bastante forte para
governar-me; se escuto exortações à fé, acabo querendo-a para meu reconforto exclusivo; se
recebo esclarecimentos em torno de obsessão, termino a aula confessando a mim mesmo
que, se pudesse, largaria este hospital a fim de persegui-la e tomá-la em meus braços, ainda
que para isso devesse caminhar até os derradeiros confins do mundo!...
O mentor sorriu, paternal, e aconselhou calma, equilíbrio.
– Reflitamos, meu filho, que somos espíritos eternos. Urge conservar serenidade,
paciência... Felicidade é obra do tempo, com a bênção de Deus.
O rapaz revidou ácido, irreverente. Não pedira, não aceitava conselhos.
Hábil psicólogo, Ribas despediu-se.
À noite, esteve com os amigos e elogiou o trabalho de Evelina.
A empresa de reeducação fora efetuada com segurança. Túlio, entretanto, não reagira
construtivamente. Mostrava-se abúlico, embutido nas fantasias que estabelecera em
prejuízo próprio.
E terminou dizendo para Fantini e a senhora Serpa que o ouviam, atentos:
– Não vejo qualquer interesse para Mancini na permanência aqui. Forçoso envidarmos
esforços para que aceite, voluntariamente, a miniaturização.3
– Renascer? – redarguiu Evelina, assustada. – Será preciso tanto?
E Ribas:
– Nosso amigo está mentalmente enfermo, profundamente enfermo, traumatizado,
angustiado, fixado... O remédio será começar de novo... Ainda assim, terá dificuldades e
desajustes pela frente.
O benévolo mentor não traçou advertências, nem articulou qualquer sugestão. E tanto
Ernesto quanto Evelina, enfronhados agora nos imperativos e provas da reencarnação,
silenciaram de chofre, pensando, pensando...

3Nota do Autor espiritual: Miniaturização ou restringimento, no plano espiritual, significa estágio


preparatório para nova reencarnação.
17
Assuntos do coração
Esvaíram-se dez meses sobre a tarefa assistencial de Evelina e Fantini, ao pé de Túlio
necessitado, quando os dois solicitaram entendimento com o Instrutor Ribas, ao redor de
problemas que lhes escaldavam o pensamento.
Aspiravam, sobretudo, a rever os parentes no plano físico.
Convertera-se Ernesto num poço de memórias sobre a esposa e a filha; a senhora Serpa
não mais suportava as saudades do marido e dos pais. Porque ansiassem pelo retorno,
ardiam na sede de informes e explicações.
O orientador acolheu-os com a lhaneza habitual e, após registrar-lhes o pedido de bons
ofícios para que lhes fosse obtida a concessão, acentuou, simples:
– Creio que vocês já estejam em condições satisfatórias para a execução do
empreendimento. Dedicam-se pontualmente ao trabalho, conhecem agora o que seja
reencarnação, autodisciplina, burilamento próprio...
E evidenciando entranhado carinho:
– Algum motivo particular, mais intimamente particular, na petição?
Adiantou-se a moça, acanhada:
– Instrutor, venho experimentando desoladoramente a falta de Caio...
– Esposos que se amam – interferiu Ernesto –, quando distanciados um do outro,
fazem-se noivos outra vez... Por que não confessar que também eu ando aflito por abraçar
minha velha?
– Caro amigo – aventurou-se Evelina, fixando o mentor de maneira expressiva –, em
nos reportando à ligação conjugal, arriscaria uma consulta...
– Diga, filha...
– O senhor não ignora que, em meu primeiro reencontro com Mancini, senti-me, por
momentos, a jovem menos responsável que fui, observando-me fortemente atraída para ele.
Depois, reagindo, vi-me, de novo, recuando mentalmente para o domínio de Caio, o marido
que ficou no plano físico, dando a mim mesma a impressão de que sou um satélite,
gravitando entre os dois... Passei a esforçar-me em auxílio de Túlio e, aos poucos, venho
reconhecendo que ele não é, absolutamente, o homem que eu desejaria para companheiro...
Entretanto, para ajudá-lo e tolerá-lo, presentemente, sinto necessidade de um estímulo...
– O amor a Deus.
– Compreendo hoje que todos respiramos na própria essência de Deus; contudo, o
mistério para mim está nisso... Sei que nada conseguimos sem Deus, mas, entre Deus e a
obrigação que me cabe cumprir, preciso de alguém que me escore o espírito, que se me erija
em apoio, na movimentação do cotidiano, em busca daquele estado de alma que apelidamos
por paz interior, euforia ou mesmo felicidade... Esta fome espiritual que me faz pensar dia e
noite na reintegração com Caio significará que ele, meu esposo, é realmente o meu amor
absoluto? Aquele espírito que será o sol de bênçãos a envolver-me para sempre, quando
chegarmos à perfeição?
Ribas sorriu e filosofou:
– Todos nos destinamos ao amor eterno e no entanto, para alcançar o objetivo
supremo, cada qual de nós possui um caminho próprio. Para a maioria das criaturas, o
encontro do amor ideal assemelha-se, de algum modo, à procura do ouro nas minas ou de
diamante nas catas. É indispensável peneirar o cascalho ou mergulhar as mãos no barro do
mundo, a fim de encontrá-lo. Sempre que amamos profundamente alguém, transformamos
esse alguém no espelho de nossos próprios sonhos... Passamos a ver-nos na pessoa que se
nos transforma em objeto da afeição. Se essa criatura efetivamente nos reflete a alma, o
carinho mútuo cresce cada vez mais, assegurando-nos o clima de encorajamento e alegria
para a viagem nem sempre fácil da evolução. Nessa hipótese, teremos obtido apoio seguro
para a subida do acrisolamento moral... Em caso contrário, a pessoa a que particularmente
nos devotamos acaba devolvendo-nos os próprios reflexos, à maneira de um banco que nos
restituísse ou estragasse os investimentos por desistência ou incapacidade de zelar por
nossos interesses. Então, surgem para nós aquelas posições espirituais que nomeamos por
mágoa, desencanto, indiferença, desilusão...
– O senhor desejará talvez afirmar – recordou Fantini – que caminhamos na existência
pelas vias da afinidade, de afeição em afeição, até achar aquela afeição inesquecível que se
nos levante na vida por chama de amor eterno?
– Sim, mas entendendo-se o conceito de afeição, sem a estreiteza do sexo, uma vez que
a ligação esponsalícia, embora sublime, é apenas uma das manifestações do amor em si.
Determinado homem ou determinada mulher podem confirmar na esposa ou no esposo a
presença do seu tipo ideal; entretanto, talvez prossigam, após o casamento, mais
intimamente vinculados ao coração materno ou ao espírito paternal... E, às vezes, somente
encontrarão o laço de eleição num dos filhos. Em amor, a afinidade é o que conta...
– Instrutor – enunciou Evelina, impressionada –, e as uniões de suplício, os casamentos
infelizes?!...
– Sim, a reencarnação é também recapitulação. Muitos casais no mundo se constituem
de espíritos que se reencontram para a consecução de afazeres determinados. A princípio,
os sentimentos se lhes justapõem, no setor da afinidade, como as crenas de duas rodas que
se completam para fazer funcionar o engenho do matrimônio... Depois, percebem que é
imperioso burilar outras peças dessa máquina viva, a fim de que ela produza as bênçãos
esperadas. Isso exige compreensão, respeito mútuo, trabalho constante, espírito de
sacrifício. Se uma das partes ou ambas as partes se confiam a desentendimento, a obra
encetada ou reencetada vem a cair...
– Então? – a pergunta de Evelina pairou no ar, revestida de imensa curiosidade.
– Então, aquele dos cônjuges que lesou o ajuste, ou ambos, conforme as raízes da
desunião, devem esperar pela obtenção de novas oportunidades no tempo para a
reconstrução do amor que dilapidaram.
– Instrutor, permita-me uma pergunta. A união conjugal de duas criaturas que se
amam, quando interrompida pela morte no mundo, pode ser reatada aqui?
Ribas, expressivo:
– Perfeitamente, se os cônjuges realmente se amam...
Fantini aparteou:
– E quando isso não acontece?
– Aquele que ama sinceramente continua trabalhando, neste lado da vida, pelo outro
que não lhe guarda na Terra a mesma altura de sentimento, aprimorando a obra do amor
em outros aspectos, que não o da afetividade esponsalícia.
A senhora Serpa mostrou o semblante iluminado por bonito sorriso e asseverou,
segura de si:
– Isso não me ocorrerá. Tenho hoje motivos para confiar em Caio tanto quanto confio
em mim mesma.
– Sua fé – volveu o Instrutor – é um retrato de sua sinceridade.
Ernesto fitou demoradamente a companheira e admirou-lhe a ternura da alma boa e
ingênua. Desde muito, passara a nutrir por ela entranhado carinho. Nunca a apanhara em
qualquer deslize. Sempre compassiva, abnegada. Muitas vezes, surpreendia-se ligado a ela
por encantadora atração. Sob que prisma a estimava? Filha, companheira, mãe, irmã? Não
conseguiria dizer.
Temendo o mergulho em mais longas divagações, ele, o bom amigo, chasqueou, no
intuito claro de desviar o curso dos próprios pensamentos:
– Instrutor Ribas, qual se verifica no caso de nossa irmã, também estou persuadido de
que minha esposa espera por mim... Entretanto, se isso não sucede?...
– Se isso não ocorre – e o mentor frisou as palavras com paternal inflexão de bom
humor –, você, Fantini, desfrutará, sem dúvida, a possibilidade de auxiliá-la na condição de
um amigo fraternal.
– E, nessa hipótese, caber-me-ia o direito de eleger uma nova companheira na vida
nova?
– As leis humanas, tanto no plano terrestre quanto aqui, são princípios suscetíveis de
alteração e, na essência, não afetam as Leis divinas. Na moradia dos homens, não existe
obrigatoriedade para o estado de viuvez. Conservam-se órfãos de companhia no lar aqueles
corações que o desejam. Rompidos os compromissos do casamento com a morte do corpo, o
homem ou a mulher permanecem sozinhos quando possuem motivos para isso. Natural
aconteça aqui o mesmo. O homem ou a mulher desencarnados guardam insulamento ou
não, conforme os propósitos íntimos que alimentem, entendendo-se, porém, que em
qualquer posição dispomos de recursos para honorificar o trabalho da edificação do amor
puro que acabará imperando, de maneira definitiva, em nossas relações uns com os outros.
Evelina, denotando preocupação no olhar, diligenciou colher maiores conhecimentos:
– Instrutor amigo, o senhor conhece companheiros que não conseguiram consorciar-se
aqui?
– Eu sou um deles.
– Alguma razão especial? – esmerilou Fantini.
– Acontece que o amor conjugal, quando se exprime em bases do amor puro, continua
vibrando no mesmo diapasão entre dois mundos, sem que a permuta de energias de um
cônjuge para outro venha a sofrer solução de continuidade. Minha esposa e eu sempre
fomos profundamente unidos. Bastávamo-nos na Terra um ao outro, em matéria de
alimento afetivo. Sobrevindo a minha desencarnação, percebi logo que ela e eu
continuávamos em plena vinculação mútua, qual se fôssemos partes integrantes de um
circuito de forças. Na dedicação espiritual dela, colho meios de continuar em meu
aprendizado do amor a todos, ocorrendo-lhe o mesmo.
– Ligação ideal!... Regozijou-se Evelina, extática.
Patenteando a ansiedade de que se via presa, no sentido de se reintegrar na ternura do
marido distante, comentou, reverente:
– Instrutor, noto que há sempre reserva em nossos amigos mais experientes daqui,
quando se diz algo sobre a possível desencarnação de pessoas queridas que deixamos na
retaguarda... Chego a pensar que isso é assunto proibido entre nós, será mesmo assim?
– Não tanto. À medida que se nos desenvolve a noção de responsabilidade,
compreendemos a reencarnação como período de escola. Cada existência está
supervisionada por deliberações superiores, muitas vezes insondáveis para nós.
A interlocutora, denunciando aspirações íntimas, profundas, arriscou:
– Caro amigo, suponhamos que eu venha a reencontrar o esposo mergulhado em
saudades iguais às minhas, atormentado, triste... Não me será cabível, nem de leve, encorajá-
lo na certeza de que seremos novamente felizes aqui, prometendo-lhe a ventura renovada
para além da morte? Digo isso, porquanto não lhe deixei filhos para entreter-lhe a coragem
de sofrer, de esperar...
– Fuja de refletir assim. Não temos instrumentos para medir a fidelidade daqueles que
amamos, e, ainda que seu marido estivesse agoniado, em tremendo desajuste, por motivo de
sua ausência, não saberíamos se a desencarnação lhe traria o remédio adequado. Quem nos
dirá que a mais longa demora dele, no corpo físico, não seria a providência desejável, a fim
de que se lhe revele com mais segurança? Martelar-lhe na cabeça a ideia da morte
significaria, provavelmente, ajudá-lo a reduzir tempo na experiência material; e quem nos
afirmará com certeza que ele se sentirá feliz, regressando à vida do espírito, por imposição
nossa e não por determinação da natureza, sempre sábia, por refletir os desígnios do
Eterno?
– Oh! Meu Deus! – e a senhora Serpa deixou escapar um suspiro de aflição – como agir
em auxílio do coração que vive no meu?
Ribas respondeu, afetuoso:
– Em muitas ocasiões, quando dizemos que o coração de alguém pulsa em nós, seria
mais justo declarar que o nosso coração é que pulsa nesse alguém...
E com inflexão mais carinhosa:
– Dentro de breves dias, você e Fantini poderão viajar, de visita ao ninho doméstico.
Evelina e o companheiro agradeceram, felizes. Doce alegria banhou-lhes a alma, de
improviso, como se o sentimento se lhes deslocasse das brumas da saudade para brilhar ao
sol da esperança, em novo alvorecer.
18
O retorno
Enfim, a volta.
Ambos, Evelina e Fantini, manifestavam o contentamento de crianças em festa.
A primeira vinda ao lar, após dois anos.
Às despedidas, antes de se incorporarem à reduzida equipe de companheiros que
tornariam ao domicílio terrestre em condições iguais às deles, recolheram de Ribas a
recomendação:
– Vocês representam nossa cidade, nossos costumes e princípios, portem-se na base do
novo entendimento. Se precisarem de auxílio, comuniquem-se conosco pelo fio mental. Um
abraço e os votos de felicidade para a viagem.
Quando o veículo pousou rente à Via Anchieta4, no ponto em que a estrada se bifurca,
descerrando caminho para São Bernardo, o pequeno grupo dispersou-se.
Cada excursionista era um anseio itinerante, cada qual um mundo vivo de saudades.
O dirigente da caravana e responsável pela viatura marcou regresso para o dia
seguinte. Que os viajantes se reunissem, ali mesmo, esgotado o prazo de vinte horas.
Nossos amigos respiraram, maravilhados, o vento brando que os saudava. Surpresos.
Felizes. Custavam a crer estivessem na entrada de São Paulo.
Embevecidos, contemplaram o céu lavado e imensamente azul do entardecer de maio.
Em torno, rajadas de frio neles fixavam recordações de tempos idos. Caminhavam sob
fascinante júbilo a lhes povoar o coração.
Era, sim, a cidade para eles familiar, a terra que amavam... Inalavam sofregamente o
aroma das flores e sorriam para os ocupantes dos carros que, naquele fim de sábado,
desciam para Santos.
Evelina, que trazia a mente e o coração absorvidos pela imagem do esposo, em certo
trecho do caminho perfilou-se diante de Ernesto, qual se buscasse nele um grande espelho,
e indagou com ternura ingênua que opinião era a dele, na posição de homem, quanto à
apresentação dela. Queria estar nas mesmas características de simplicidade e bom gosto,
com que o marido estimava encontrá-la no refúgio doméstico. Sabia que a situação era
outra. Serpa não lhe identificaria a presença, do ponto de vista material, tanto quanto
lograria vê-lo; no entanto, ouvira dizer que as pessoas saudosas enxergavam os amados
distantes com os olhos da alma, qual se trouxessem um televisor no pensamento. Se Caio
tivesse emoções e ideias concentrados nela, certamente lhe registraria os afagos, ainda que
para ele tudo não passasse de simples memória.

4 Nota do Autor espiritual: Rodovia entre as cidades de Santos e São Paulo.


Ernesto riu-se ao ouvi-la e elogiou-lhe a perspicácia.
Fitou-lhe o penteado e o rosto, pediu reajuste nas dobras do vestido e aprovou os
sapatos, à feição de um pai, encorajando a filha para a exibição num baile de debutantes.
Depois, acusou-a com graça, asseverando que não lhe toava bem tão alta demonstração de
coquetismo.
A senhora justificou-se, assegurando-se convencida, quanto às preferências do esposo.
Ambos, em suave tête-à-tête, já pisavam o bairro do Ipiranga, onde Evelina esperava
encontrar o companheiro na mesma casa que lhe fora teatro à ventura. De chofre, eis que se
lhe transfere a alegria para a inquietação. À medida que se avizinhava do ninho antigo,
oprimia-se-lhe o peito. Mesclava-se-lhe o regozijo com imprevista angústia. E se Caio não
estivesse na altura em que ela o situava, amoroso e fiel? A dúvida cravou-se-lhe no espírito,
como estilete envenenado que lhe varasse as entranhas.
– Ernesto, você tem alguma intuição, quanto ao que nos espera? Imagine você que,
justamente agora, estou amedrontada, tenho as pernas bambas...
– Emoção.
– Que mais?
Fantini deitou um olhar de funda gravidade para a companheira e glosou:
– Evelina, você recorda nossas lições para Mancini?
– Como não? Mas, que tem isso a ver com o nosso problema?
– Meditemos. Por meses e meses, temos falado a Túlio, você de modo especial,
relativamente às coisas da alma... Abnegação, compreensão, serenidade, paciência...
Ensinamentos dados e recapitulados, ilações e repetições...
– Sim...
– Você não admite que o Instrutor Ribas, com tantas explicações sobre amor e
casamento, serviço e espiritualidade, para nós dois, não terá feito o mesmo, a nosso
benefício? Não acredita que ele, o dedicado amigo, conversando, às vezes de maneira
exaustiva, não estaria sendo para nós um professor, enxergando longe?
– É... É...
– Estejamos preparados para mudanças...
A senhora desconversou. Mudou de assunto. Asseverou-se receosa, algo fatigada. Se
possível, aceitaria algum descanso. Não desejava acercar-se do marido com qualquer indício
de mal-estar.
Ernesto propôs alguns minutos de repouso nos jardins do Museu.5
Rumaram para lá, acolhendo-se ao pé de fonte amiga, cujas águas pareciam guardar o
poder de asserenar-lhes os pensamentos.

5 Nota do Autor espiritual: Museu do Ipiranga, em São Paulo.


Como que contagiado pelos temores da companheira, Fantini, de repente, acusou-se
amuado. No exato instante em que se abeirava da mulher e da filha, esmorecia-lhe o
entusiasmo que a romagem lhe causava. Ensimesmou-se. Evelina percebeu e passou a falar
de alegria e esperança, encarecendo o mérito das ideias positivas. Assinalava ele as frases
de vigorosa confiança a se derramarem no verbo da moça que se lhe fizera irmã e amiga,
incapaz de alhear-se da taciturnidade que o acometera de súbito.
A senhora Serpa, discreta, silenciou e, por fim, declarou-se disposta ao trecho final da
viagem.
Cavalheiroso, Fantini prometeu assisti-la, em seu primeiro contato com o lar. Que ela
verificasse o ambiente doméstico. Se tudo lhe respondesse à expectativa otimista, viesse até
ele que lhe aguardaria, nos arredores, o aviso conveniente e, então, deixá-la-ia com o
esposo, até o dia imediato, enquanto que, ao mesmo tempo, se arrancaria para a Vila
Mariana, onde contava rever a família.
Evelina concordou; não lhe aprazia ficar a sós, nem lhe prescindia do apoio.
Seis horas da tarde. A moça não mais via o céu paulistano, nem o casario, nem os
transeuntes. Coração aos pulos, aproximou-se do lar. Atravessou o pátio de acesso e tateou
a porta de entrada que lhe facilitou a passagem. Algo lhe dizia no íntimo que Serpa estava
em casa e seguiu à frente. Tremia, assustada. Inspecionou a peça em torno. A sala era a
mesma, com pequenas alterações no mobiliário do seu tempo. Ao lado, o estreito escritório
do esposo, entremostrando as cortinas abertas. Penetrou aí com a unção de quem avança,
passo a passo, pelos recantos de um santuário. Os livros em ordem. De inopino, surgiu-lhe à
observação, atalaiada por diminuto vaso de flores, uma foto de mulher. Vasculhou as
paredes, buscando o retrato dela própria, segundo velhas lembranças, mas não viu nem
sinal. Acusou-se apunhalada por impressões negativas. Turvou-se-lhe o raciocínio. Fora
substituída, decerto. Sentia a cólera prestes a explodir-se em crise violenta de lágrimas; no
entanto, ganhou forças para rearticular nos próprios ouvidos as palavras do Instrutor:
“Portem-se na base do novo entendimento”.
Contrafeita, alcançou o interior, surpreendendo pequeno jardim de inverno, que ela
mesma instalara junto à copa, e o quadro de amor com que não contava: Serpa e a jovem da
fotografia que examinara momentos antes.
Caio acariciava a destra da moça entre as mãos, num gesto de ternura que ela, Evelina,
conhecia à saciedade.
Entre revolta e pesar, ensaiou movimento de recuo. Terríveis calafrios lhe agitavam as
fibras da alma, qual se estranha lipotimia a subjugasse de todo, anunciando-lhe nova morte.
Quis correr e denunciar-se, ao mesmo tempo, gritar e afastar-se, para esconder a imensa
dor no peito de Fantini, mas não pôde. Sem ser percebida pelos dois namorados, não teve
outro remédio senão se acomodar em cadeira próxima, intentando refazer-se. Inquirições
contraditórias lhe subiam à cabeça.
Quem era a desconhecida? A mesma que lhe torturara o espírito, com os bilhetes
endereçados a Serpa, adornados com beijos coloridos a carmim? Caio protestara-lhe amor
eterno, durante os últimos dias da sua permanência no lar e a que título rompera os votos
que ela mantinha por relíquias do coração? A que laços novos ter-se-ia entregue o
companheiro? Estaria casado ou se conservava menos responsável, à maneira do homem
que brinca com os sentimentos alheios, menosprezando a vida? Que lhe reservava o futuro?
Fitou ambos os circunstantes, francamente assombrada com a indiferença que
revelavam diante dela. Pela primeira vez, depois da grande libertação, verificava que os
sentidos físicos se enquadravam a limites rigidamente determinados, porquanto Caio e a
companheira, muitas vezes, pousavam nela o olhar sem que a vissem; era, no entanto,
obrigada a enxergá-los e ouvi-los, como qualquer pessoa terrestre comum, desde que não se
arredasse dali.
A senhora Serpa agoniava-se. Apesar do anseio de omitir-se, desertar, a emoção como
que lhe interceptava os movimentos.
De alma ferida, notou que o marido dirigia à outra aqueles mesmos olhares de carinho
envolvente que lhe haviam pertencido. E mais. Reconheceu o fio de pérolas que lhe fora
presente de noivado, oferecido por ele mesmo, enfeitando o colo da rival. Chorou, irritada.
Evelina, no entanto, embora trouxesse os pensamentos conflagrados, não mais lograva
desfazer-se da sutil vinculação com ensinamentos da cidade espiritual que passara a se lhe
erguer em residência. Por isso mesmo, percebia-se analisada no aproveitamento das lições
que aprendera ao contato de Ribas e de outros amigos da vida maior. Lembrou-se de Túlio,
a quem tão repetidamente ensinara o desapego afetivo, e admitiu-se em condições de
egoísmo e inconformidade, talvez muito piores que as dele. Recorreu à prece, diligenciou
humilhar-se, lutou contra si própria, concluindo que Caio desfrutava o direito de ser feliz
como desejasse. Aos poucos, muito aos poucos, conseguiu acalmar-se, de algum modo, e
começou a escutar o diálogo que se desdobrava, ativo, rente a ela.
– Você, Vera – blasonava o advogado, risonho –, achou em mim um homem pacato e
sincero, deve orgulhar-se disso.
– E como explica você o caso daquela dama indesejável no escritório?
– Não me venha com ciúmes. Um causídico não seleciona clientes à porta, sou um
homem do povo e não posso negar-me.
– Quer dizer que não tenho o direito de zelar por nossas relações...
– Quem falou isso?
– O telefonema que recebi dessa lambisgoia me deixou arrasada; o que ela me disse de
você...
– Se dermos atenção a tudo o que se comenta a nosso respeito, a vida seria
impraticável.
– Mas eu não estou aguentando mais.
– Ora, ora, aguentando o quê?
A jovem que Serpa designava por Vera caiu em pranto. Ele atraiu-a de encontro ao
peito, sob os olhos espantados de Evelina, e sussurrou-lhe aos ouvidos, depois de beijá-la,
várias vezes, na face:
– Tolinha! A felicidade não é flor que se adube com lágrimas. Anime-se! Sou seu e você
é minha... E daí?
– Se ao menos estivéssemos casados, se ao menos pudesse usar seu nome, saberia
como proceder com essas mulheres que infernizam a nossa vida...
– Bobagem!... Você exagera tudo, já disse que caso com você; não sou homem sem
palavra...
– Há quanto tempo espero!
– E há quanto tempo, também eu, aguardo solução ao problema de sua casa? Você não
há de querer que eu viva carregando uma sogra louca!...
– Minha mãe é uma infeliz, não podemos desampará-la...
– Já falei. Meta essa velha no hospício, que ela já aproveitou a vida dela, agora temos de
viver a nossa... Hoje, iremos ao Guarujá, quero ver o negócio por mim mesmo.
A jovem chorava copiosamente por resposta. Enquanto Serpa lhe acarinhava os
cabelos, tentando consolá-la, Evelina cobrou ânimo e arrastou-se para fora. Tinha sede da
presença de Ernesto, ansiava retomar-lhe a companhia. Impossível demorar-se no lar que
reconhecia haver perdido, para sempre.
Balda de autocrítica, à face da superexcitação de que se via possuída, tão logo se viu na
rua clamou pelo amigo em voz estentórica, e, quando Fantini repontou à frente, atirou-se-
lhe aos braços, qual criança desarvorada.
– Ah! Ernesto, Ernesto!... Não suporto mais!...
O companheiro conduziu-a discretamente para um banco do pátio, compelindo-a a
voltar caminho andado e, sentando-a junto dele, escutou a narração de toda a ocorrência
que a senhora, amarrotada, fazia entre soluços.
Fantini compadeceu-se, procurando olvidar as próprias apreensões. Não atinava com
as razões da ternura que o levava irresistivelmente para a senhora Serpa; no entanto,
aquele tempo de graves experiências, vividas por ambos em comum, convertera-o, para ela,
num amigo incondicional. Ouvindo-a, compartia-lhe a dor, tomava-lhe o partido. Esquecia-
se. Enternecido, esforçou-se por asserená-la, expondo, conselheiral:
– Justo que assim seja, Evelina. Caio é jovem. Você e ele não formavam um casal de
velhos, qual me acontece com Elisa. Admito que ele terá um lugar no coração,
particularmente reservado para você, mas decerto experimenta as necessidades do homem
comum...
– Mas a moça que está com ele é a mesma Vera que lhe escrevia os bilhetes de meu
conhecimento... A mesma!... Isso mostra que ele era infiel antes de nossa separação e
prossegue infiel até hoje...
Ernesto, afagando-lhe a cabeça num gesto paternal:
– Tenho pensado... Pensado... Não acredita você que a morte nos entregou a nós
mesmos e que Deus nos concedeu benfeitores abnegados, e estes nos ampararam e
esclareceram a fim de podermos enfrentar as verdades que hoje estamos vivendo? Que
teremos feito da existência no mundo? Um curso de egoísmo ou um aprendizado de
abnegação?
A voz dele estava encharcada de pranto íntimo.
– Teria você um esposo para amar ou para converter num objeto de enfeite? Falamos
tanto em devotamento, quando jungidos ao corpo terrestre!... Não será depois da morte o
tempo mais propício à demonstração de nossas juras? Não haverá chegado o instante em
que Serpa mais necessita de consideração e carinho?
Não tanto pelas palavras, mas pelo tom em que foram ditas, viu-se a moça inclinada à
piedade.
Na tela da imaginação, começou a julgar o marido sob novo prisma. Caio era um
homem jovem e os desígnios do Senhor mantinham-no vinculado ao envoltório físico. De
que modo reclamar-lhe um roteiro de austeridade afetiva para o qual se achava ainda tão
longe? Estivera reclusa, no mundo espiritual, por dois anos, sem revê-lo sequer. Como
criticar-lhe a conduta? E por que hostilizar a menina que o seguia? Não lhe vira as lágrimas
de sofrimento, em registrando os sarcasmos do esposo irrefletido e volúvel? Acaso, não
conseguia enxergá-la, ocupando-lhe o lugar junto dele, recolhendo-lhe a dedicação
incompleta e herdando as aflições que ela própria atravessara?!...
Fantini desfez a pausa e arrancou-a da ligeira elucubração, justificando, sensato:
– Evocando as lições de Ribas, concluo de mim para comigo que os nossos instrutores
impeliram você, à excursão corrente, para que você aprenda a perdoar e... quem sabe?
Talvez que essa moça...
– Talvez o quê? – objetou Evelina, ante as desmaiadas reticências.
– Talvez essa moça seja a pessoa a quem você deva implorar a graça de ser nova mãe
para Túlio. Temos estudado temas complexos de paixão e reequilíbrio, culpa e
reencarnação, induzindo-nos a pensar e pensar... Por outro lado, Ribas mostrou-nos as
necessidades de Mancini, sem oferecer-nos quaisquer sugestões; no entanto, sabemos que o
rapaz está por nossa conta, na presente fase de reajuste, depois de haver perdido o corpo
físico pelo tiro de Serpa... Não admite você que Caio deve restituir-lhe a experiência terrena
com a devoção e a ternura de um pai? E que melhor ocasião encontrará você, além da de
agora, para exercitar os ensinamentos de Jesus, amando aquela que considera inimiga e
transformando-a em instrumento de auxílio, a benefício do homem endividado que você
ama?
A companheira compreendeu o alcance de semelhantes ponderações e caiu nos braços
do amigo, em copioso pranto, exclamando:
– Oh! Ernesto!... Ernesto!...
Alguns instantes mais e um carro despontou da garagem, conduzindo o casal.
Sustando os soluços, Evelina informou ter ouvido que os dois se dirigiriam ao Guarujá.
Enquanto o moço causídico deixava a direção do veículo para atender ao fechamento
da casa, Fantini contemplou-lhe a jovem parceira e fez-se lívido. Então, mais profundamente
chocado talvez que a senhora Serpa, gaguejou, arrasado de angústia:
– Evelina, Evelina, escute!... Esta moça... Esta moça é Vera Celina, minha filha!...
19
Revisões da vida
Os dois amigos desencarnados ignoravam como definir a estupefação que os
empolgara.
Fantini, desarvorado, recordou-se, num átimo, da casa rústica que possuía na praia, e,
sem pestanejar, convidou Evelina a tomarem juntos o carro acolhedor, na poltrona traseira.
Amargas conclusões passaram a dominá-lo.
Então, aquela era a jovem a que tanta vez se reportara a senhora Serpa!... Vera Celina!
Sua própria filha!...
O auto começou a deslizar e lágrimas grossas lhe molhavam a face.
A companheira, como a reconfortá-lo sem palavras, segurou-lhe a mão num gesto de
carinho. Percebia-lhe a dor de pai. Ele fitou-a pelo véu de pranto e disse apenas:
– Entende como sofro?
– Acalme-se – sussurrou Evelina, compassiva –, somos agora mais irmãos.
Transcorridos alguns momentos sobre a arrancada, os ocupantes da frente iniciaram a
troca de impressões quanto a banalidades da marcha, até que um e outro assinalaram
mentalmente a influência dos acompanhantes invisíveis.
Lembrando-se, às súbitas, de Evelina, a rival arriscou uma alegação:
– Caio, às vezes cismo indagando de mim mesma se você não é um apaixonado pela
memória de sua esposa...
– Eu? Era o que faltava...
– Sempre ouço, em torno dela, as melhores referências.
– Não era má.
– E você não tem saudades, não a sente no coração?
Caio riu-se e mofou:
– Não tenho vocação para conviver com os mortos.
– Não digo isso. Quero falar de sua mágoa natural ao perdê-la.
– Você sabe que Evelina estava morta para mim, muito antes que o médico lhe
atestasse o óbito...
– Em muitas ocasiões, surpreendo-me, ao analisar-lhe o retrato... Aquela fisionomia
doce, aqueles olhos grandes e tristes... Impossível que você não houvesse casado por
amor!...
– Sim, casei-me por amor; no entanto, a vida tem as suas sequências. Primeiro, a paixão
e, muitas vezes, depois... O desinteresse.
– Mas, você pode precisar o motivo pelo qual se desencantou?
– Você quer saber?
– Sim.
– Bem, guardava a ambição de ser pai; Evelina, porém, era fraca, doente. Creio que
carregava taras de família. Enquanto não abortou, não lhe vi os defeitos... Entretanto, depois
que se revelou enferma e incapaz, o laço do casamento se fez para mim pesado demais... Nos
últimos tempos da vida, era mulher rezadeira e chorona...
Ao fim de risada franca:
– O remédio era inventar viagens para estar com você...
A senhora desencarnada apoiava-se mais fortemente em Ernesto, buscando escora
para suportar com denodo semelhantes irreverências.
Vera, dando a ideia de quem não desejava descambar para o desrespeito, desviou o
rumo da conversação, perguntando:
– Caio, não poderemos, por nossa vez, sonhar com uma casa enriquecida de filhos?
Ele lançou-lhe rápido mas expressivo olhar, furtado ao volante, e contestou:
– Depende...
– Depende de quê?
– Quanto a casar, sei que nos casaremos, mas pense, Vera. Negócio de criar filhos não é
brincadeira. A saúde de sua mãe não me encoraja, aquelas manias, aquelas crises...
Qual se fora sacudido pelos pensamentos do sogro desencarnado a se lhe projetarem
na mente, partindo da retaguarda, Serpa contrapôs:
– Que me diz de seu pai?
A jovem perspicaz lembrou-se imediatamente de que o genitor encontrara a morte em
condições idênticas às da senhora Serpa, mas, temendo falar nisso, mentiu com intenção,
asseverando:
– Meu pai era homem robusto, de saúde impecável, sempre moço; passava, para muita
gente, como sendo meu irmão...
– Que lhe teria marcado o fim?
– Operou-se de umas verrugas sem importância e não teve o cuidado preciso. Antes da
cicatrização perfeita, começou a cavoucar no jardim, cortou-se e adquiriu a infecção que o
levou...
– Tétano?
– Isso mesmo.
– Psiquicamente, como era ele?
– Um homem muito inteligente e, às vezes, folgazão qual você mesmo, embora tomasse
a vida muito a sério...
– Compreendo que ele terá tido por você uma afeição toda especial. Filha única!...
– Engana-se. Meu pai decerto que me estimava, mas era corretor de muitas atividades,
ocupadíssimo, quase sem tempo para a casa... A não ser a criatura providencial, do ponto de
vista econômico, que se esmerava para que o dinheiro não nos faltasse, como pai não me
lembro de algum dia em que se sentasse ao meu lado para ouvir-me ou aconselhar-me em
assuntos do coração... E nos meus casos de menina, bem que necessitei, mas...
– Não dispunha de uma hora ou outra para isso?
– Pelo menos, era o que dizia, nunca pude contar-lhe nem mesmo os meus problemas
de colégio...
Fantini escutava, acusando-se humilhado, abatido, a confessar para si próprio que daria
quanto lhe fosse possível, a fim de voltar atrás, de modo a ser para a filha o pai afetuoso e
vigilante que não buscara ser.
O diálogo, porém, prosseguia:
– Certamente, em compensação, você contou com o carinho materno...
– Também não. Desde cedo, percebi que minha mãe é irritadiça, desanimada. Gosta de
estar só e, conquanto não me negue atenção, até hoje manda que eu me decida, em tudo, por
mim mesma.
– Ela e seu pai viviam bem?
– Nada disso. Minha mãe, aos meus olhos, sempre pareceu tolerar meu pai, sem amá-lo,
embora se esforçasse, diante dele, para mostrar o contrário.
– O infeliz chegava a perceber? – tornou Caio, galhofando.
– Acredito que não.
– Como explica você a perturbação da velha, depois que ele se foi? Não será isso a dor
de perdê-lo?
– Duvido... Assim que meu pai morreu, ela foi tomada de terrível transformação, como
se o odiasse às ocultas. Queimou-lhe os objetos de estima, quebrou-lhe o relógio de bolso,
rasgou-lhe os retratos... Imagine!... Nem orações quis por ele... E foi piorando, piorando...
Agora, é como sabemos, recusa tratamento, isola-se, fala sozinha, ri, chora, lamenta-se e
ameaça o silêncio e a sombra, julgando ver e ouvir os mortos...
– Estranha situação!...
Embora reconfortado pela simpatia de Evelina, Ernesto dava curso às lágrimas.
Guardava os apontamentos da filha, qual se a desconhecesse até então. Verdade que não
fora homem de explosões afetivas; entretanto, nem de leve supunha fosse detestado no lar.
Teria a jovem razão? Por que se teriam alterado as faculdades mentais de Elisa? Que haveria
ocorrido naquele longo pedaço de ausência?
Enquanto os dois desencarnados se identificavam sob rigorosa análise naquele
retrospecto, esvaiu-se o tempo e o carro fez parada no ponto terminal: a casa singela,
docemente iluminada dentro da noite.
Excitado, mas cauteloso, Fantini instalou Evelina em sítio vizinho, uma vez que, assim
como sucedera com ela própria, expressou o desejo de consultar, a sós, o ambiente
doméstico. Depois disso, decidiria quanto à viabilidade de colocá-la na rota familiar. A
posição de Vera, junto de Serpa, não lhes encorajava, de imediato, um avanço a dois.
Evelina concordou. Aproveitaria o ensejo para orar, refletir...
Fantini, emocionado, penetrou o reduto que lhe falava tão alto à memória.
Na sala, tudo como deixara. A mesa e as cadeiras surradas que ele mesmo trouxera da
residência de Vila Mariana, os apetrechos de pesca, o armário de louça velha, os quadros
humildes a penderem das paredes... Registrou, em pranto de comoção, o calor de outro
tempo... A pequena distância, enxergava o dormitório da filha, em que ela e o advogado se
entregavam a animada conversação, mas, ali, a dois passos, rente a ele, quase tateava o
aposento em que tantas vezes repousara, ao lado da companheira, aspirando as aragens
marinhas...
O relógio marcava alguns minutos, além das nove da noite. Que surpreenderia por trás
da porta cerrada? – indagava-se, inquieto. – Elisa doente? Desanimada?
Rememorou as lições recolhidas de amigos, na moradia espiritual de que chegava
refeito para facear quaisquer surpresas, e orou. Pediu forças à divina Providência. Queria
rever a esposa, com distinção e dignidade. As alegações da filha, no automóvel, ditavam-lhe
prudência, atenção. Achava-se ali, não para queixar-se e sim para agradecer, ajudar, querer
bem. Ansiava servir.
Com essa disposição, transpôs o limiar e encontrou-se dentro da câmara, que conhecia
em todos os escaninhos.
Jamais faria ideia do quadro que se lhe abriu, de imediato, à visão.
Elisa descansava... O corpo magro, o rosto mais profusamente vincado de rugas e os
cabelos mais grisalhos... No entanto, junto dela, estirava-se um homem desencarnado,
aquele mesmo sobre o qual atirara, tantos anos antes, ao desvairar-se pelo ciúme!... Estacou,
aterrado... Num átimo, recordou a última caçada que empreendera, integrando uma equipe
de três companheiros, e na qual adquirira o remorso e o sofrimento que lhe haviam
acompanhado grande parte da vida... Sim, aquele homem sem corpo físico era Dedé, o
colega de sua meninice, ou melhor, Desidério dos Santos, o assassinado, cuja sombra
supunha ele haver removido para sempre da própria casa. Acusou-se ralado de
arrependimento, transido de angústia... Como arrostar o adversário, a injuriá-lo no próprio
tálamo?
Fantini chorava para dentro de si, ralado de desespero. Motivos ponderosos tinha
Ribas, o instrutor, delongando-lhe a volta. Horas antes descobrira na filha a rival de Evelina,
e ali, diante dele, ao pé de Elisa, se estendia o inimigo triunfante, dominador...
Aguentaria com êxito os desafios que a vida lhe propunha, depois da morte? Decerto
rentearia, por fim, com o homem que não suportava. Ambos desencarnados se defrontariam
agora, quais estavam, tais quais eram.
Diligenciou Fantini asserenar-se e estugou um passo adiante.
O antagonista, em silêncio, deitou-lhe um olhar sarcástico, ostentando a tranquilidade
de quem se sabia num momento esperado, mas, com estupefação para ele, Ernesto, a esposa
anotou-lhe a presença e desferiu grito terrível:
– Maldito!... Maldito!... Rugiu ela, positivamente obsidiada, na penumbra do quarto, que
o luar filtrado pela vidraça fracamente alumiava – fora daqui, Tinhoso!... Fora daqui,
assassino!... Assassino!... Socorro, Dedé!... Socorro, Dedé! Leva este infame para fora! Sai,
Ernesto! Sai! Matador!... Matador!...
Entrementes, Caio e Vera invadiram a peça, terrificados.
Fez-se luz forte.
A jovem acercou-se da genitora que bradava impropérios, segurando a própria cabeça
entre as mãos, num esgar de espanto, e tentou consolá-la:
– Mãezinha, que há? Estamos aqui, não precisa temer...
– Ah! Minha filha!... Minha filha! – a enferma soluçou – é seu pai, aquele infeliz!...
Agarrou-se à moça, qual criança assustada, e esticou o clamor, dando a Serpa a
impressão de uma alienada mental, no mais fundo desequilíbrio.
– Seu pai está aqui, aquele canalha! Não quero vê-lo!... Defenda-me, pelo amor de Deus!
Voltemos para São Paulo, hoje mesmo!... Tire-me daqui!...
Dos olhos tristes de Ernesto, o pranto jorrou em maré de angústia. Tantas vezes
acariciara projetos de reencontro!... Tantas vezes imaginara-se pássaro distante do ninho,
faminto de repouso na úsnea tépida!... Entretanto, chegava até ali, na condição do hóspede
indesejável, abominado pelos seus...
– Elisa! – implorou.
A conturbada esposa, que trazia as faculdades psíquicas desordenadas, não lhe
lobrigava a figura espiritual, depois que a luz mais viva se derramou no ambiente; no
entanto, assinalava-lhe a voz comovida e firme, a repetir, suplicante:
– Elisa! Elisa, ouve!... Eu sempre te amei...
Estabeleceu-se a conversação entre os dois, sem que a filha e o namorado
conseguissem ouvir senão metade.
– Cala-te, infame! Recuso uma afeição que sempre detestei.
– Por que te alteraste assim?
– Sou hoje livre para dizer o que me vem à cabeça.
– Mas, quando juntos...
– Eu era a escrava algemada ao senhor...
– Entretanto, sempre afirmaste que me querias bem.
– Sempre te desprezei, isto sim...
– Oh! Meu Deus!...
– Quem fala em Deus? Um assassino...
– Por que tanta crueldade?
– Dedé me falou que não passas de um matador!
Nessa altura do diálogo, profundamente estranho para os dois ouvintes reencarnados
que o acompanhavam pelo meio, Serpa inquietou-se e, confessando-se incomodado ante o
delírio da enferma, passou a esquadrinhar a casa, em busca de medicação que lhe sedasse os
nervos.
O entendimento, contudo, entre a obsidiada e o marido, prosseguiu, sem pausa.
– Ouve, Elisa! – mendigou Fantini, em pranto – não nego haver cometido grandes erros,
mas invariavelmente por tua causa, pelo extremado apego ao teu carinho!...
– Balela! – gargalhou a interlocutora, entre a ironia e a demência – desde que arrasaste
Dedé, passei a gostar dele... A qualquer momento a que vinhas em casa, isso acontecia
sempre para infelicidade nossa, porque vivíamos juntos aqui, antes de tua morte, e vivemos
juntos depois... Olha este quarto! Dedé está no lugar onde sempre esteve!...
Semelhantes declarações foram suplementadas de informes, sobre os quais pede a
caridade se faça silêncio.
Ernesto chorava, ao passo que, defronte dele, o adversário desencarnado sorria,
escarnecedor.
Nesse ínterim, o advogado surgiu trazendo a injeção calmante com que Vera socorreu a
doente agitada.
Daí a instantes, a senhora Fantini atirou-se ao travesseiro, desfigurada, abatida.
E justamente quando Ernesto transpunha a porta em retirada, Desidério dos Santos, o
inimigo, saltou do leito em que jazia parado e tomou-lhe a frente, desferindo brados
terríveis...
20
Trama desvendada
– Patife!... Celerado!... – vociferou o agressor – você não se afastará sem contas!...
Plantou-se à frente de Ernesto e, barrando-lhe o passo:
– Você acreditava que era só acabar comigo, hein? Fique sabendo que, intentando
privar-me do corpo, não obteve outra coisa senão colocar-me em sua própria casa... Vivo
aqui, moro aqui e sua mulher me pertence!...
Fantini, de sentimento apurado, qual se achava, depois de tantas refregas, implorou:
– Oh! Desidério! Estou arrependido, perdoe-me!...
– Perdoar? Isso nunca. Estou longe do fim. Vocês me pagarão, ceitil por ceitil...
Miseráveis!... Vocês ocultam aí na Terra o sangue do crime na capa do arrependimento e
julgam que conseguem lavá-lo com lágrimas falsas...
Zombeteando:
– Ninguém morre. Vocês, bandidos, que burlam a justiça do mundo, serão punidos pela
Justiça divina!... E a Justiça divina, em meu caso, sou eu mesmo... Espírito vingador, sim...
Sou... E quem me contestará esse direito?
A superexcitação do desventurado provocava nele mesmo o corrompido pranto do
ódio, e era igualmente chorando que profligava:
– Cretinos delinquentes!... Perdi a existência, meu lar, minha esposa, minha filha... E
vocês esperam de mim um prêmio à crueldade com que me aniquilaram!... Então, vocês
exterminam um homem e exigem que esse homem lhes beije as mãos? Abusam da
impunidade com que a terra do sepulcro lhes cobre os atos perversos e ainda reclamam o
louvor das vítimas tombadas indefesas?!...
Ernesto soluçava...
Ajoelhou-se, de mãos postas, diante do vencido de outro tempo, em sinal de
humildade... Ah! se soubesse que amargas provações lhe combaliriam a alma, nunca teria
empreendido o retorno a casa. Saberia tolerar as cruciantes saudades da esposa e da filha,
acomodando-se a outros climas de luta!... Entretanto, em dois anos de meditação e de
estudo, aprendera que cada espírito recebe da vida, nas Leis de Deus, segundo as próprias
obras. Certificara-se de que criatura alguma logra desertar da própria consciência e que
chega invariavelmente para o culpado o dia da expiação e do reajuste. À face disso, recorria,
intimamente, ao apoio da prece, suplicando a Jesus lhe revigorasse os ombros para carregar
a cruz que ele mesmo talhara com os próprios erros.
À medida que ele se mantinha de joelhos, flectidos na areia da entrada, fitando o céu
fulgente de estrelas, Desidério continuava:
– Covarde!... Levante-se para enfrentar as consequências de sua falta... Somos agora
dois homens, nas mesmas condições, sem a máscara do corpo, qual você me quis, há mais de
vinte anos!... Onde estão agora sua prosápia, seu sorriso de mentira, sua arma frouxa?
– Oh! Desidério, eu não sabia!...
– Pois saiba, canalha matador, que estou vivo!...
– Sim, sei... – gemeu Fantini, com estertoroso esgar – e rogo a Deus me perdoe pelo mal
que lhe fiz...
– Se Deus existe, estará de meu lado... Você não pode invocar o nome de Deus para
acobertar-se...
– Reconheço... Mas imploro a você, Desidério...
A frase, porém, desfaleceu na garganta que a dor sufocava.
– Implora o quê?
– Perdoe-me pelo amor que você tem a Elisa e que Elisa lhe tem!... Ignorava que minha
esposa o amasse tanto!... Sou um réprobo, bem o sinto... Entretanto, fiz-me criminoso por
muito amar a esposa que o Céu me tinha dado!...
O frio interlocutor pareceu comover-se, diante daquele testemunho de abnegação e
humildade, mas, retornando à dureza em que se caracterizava:
– Por que não escolheu outro processo para remover-me do caminho? Adotando a
violência, nada mais conseguiu senão atirar-me mais intensivamente para os braços de sua
mulher... E, enquanto você viveu nesta casa, após acreditar-me morto, partilhei sua mesa e
sua vida... Você supunha surpreender-me com os olhos da imaginação, na tela do remorso,
mas via realmente a mim, a mim mesmo, Desidério dos Santos, com os olhos da mente, no
espelho da consciência... Hoje, chamam-me os amigos, sem corpo terrestre, de Espírito
obsessor... Que mais posso ser? Sou quem sou, o homem ultrajado, o empreiteiro de minha
própria vingança!...
– Oh! Deus de Misericórdia – lamentou-se Ernesto –, sou o culpado, o único
responsável...
Nesse trecho do diálogo, o amargurado perseguidor desferiu ruidosa gargalhada e
refutou:
– Não, não!... Você não é o único... Você fez a ideia e o modelo do crime que me arredou
da existência física, mas o verdadeiro homicida, aquele que se valeu de sua maldade para
destruir-me, foi outro... Ignoro a razão, mas tenho o destino entre verdugos!... Você disparou
o tiro contra mim, no intuito de afastar-me de sua esposa, e Amâncio, aquele canalha,
observando que você errara o alvo, aproveitou a ocasião a fim de eliminar-me e apossar-se
da minha esposa!... Amigos tenebrosos, companheiros satânicos, quem os reuniu naquela
terrível manhã, à feição de dois monstros, para liquidarem comigo?!...
Recolhendo a revelação, não obstante o sofrimento que lhe revolvia as entranhas da
alma, Ernesto rememorou o dia funesto em que ele e os dois companheiros se entregaram à
busca de codornas. Desidério, alegre e confiante, Amâncio preocupado com os dois cães
especializados na descoberta e no levantamento das presas, e ele, Fantini, ensimesmado,
arquitetando o delito. Recordou que Amâncio se esmerava em conduzir os cachorros,
absolutamente entretido com os possíveis resultados da empresa... Depois de algumas
pequenas incursões pela mataria, com balázios infrutíferos, Desidério escalara um tronco de
árvore velha e cravara-se entre galhos robustos, de espingarda na mira das aves em voo...
Amâncio, de um lado, e ele, Ernesto, de outro, com reduzidas distâncias entre si. Ao ver
Desidério, sondando atentamente um dos pássaros que planava ainda longe, disparara
contra ele e recuara espavorido, a ocultar-se no mundo verde, esperando os efeitos do gesto
infeliz. Não percebera qualquer grito, mas sim outros tiros que atribuiu, como era óbvio, à
arma de Amâncio em ação de caça. Decorridos nada mais que dois a três minutos, escutara
os brados do companheiro, clamando por socorro... Alarmara-se, agoniara-se; todavia,
arrastou-se quase até ao local em que o corpo de Desidério se retorcia no fim...
Transtornado, não conseguia mentalizar coisa alguma que não fosse o próprio terror, diante
do erro cometido e, por isso, aceitou com alívio a versão imediata do amigo que anunciava
em alta voz: “Acidente horrível!... Acidente horrível!...”. Acidente!... Não era aquela a
suposição ideal para inocentar-se? O parceiro caçador dirigiu-lhe estranho olhar, como
quem o responsabilizava sem palavras pela ocorrência, ao mesmo tempo que lhe propiciava
mostras de compreensão e simpatia... De chofre, lembrou-se de como a chumbada lograra
penetrar sob a mandíbula, ganhando a região cerebral, o que lhe causara enorme
estranheza; no entanto, as circunstâncias não lhe permitiam quaisquer averiguações...
Aprovara a confusão que o favorecia e como que suavizara a dor da própria consciência ao
ver que populares amigos compareciam junto dele, em pequenos grupos, admitindo a tese
de desastre casual para o calamitoso acontecimento. Omitira deliberadamente todas as
dúvidas suscetíveis de impeli-lo à confissão do próprio delito. E, de alma opressa, recordou-
se de que, após o enterro da vítima, desligara-se para sempre de Amâncio, a pretexto de
desgosto, e se empenhara, com todas as forças de que dispunha, a olvidar a esposa e a filha
pequenina do assassinado cujos gritos, no dia inesquecível, lhe haviam conturbado o
coração, convencido qual se achava de que fora ele o réu único...
Transido de assombro, Ernesto verificava que todas as cenas da tragédia se lhe
reconstituíam na delicada película da memória, em apenas segundos, e Desidério, como
quem o via nos lances mais íntimos daquela desesperada retrospecção, insistia, implacável:
– Lembre-se, miserável!... Lembre-se de como vocês dois, cínicos matadores, me
eliminaram... Como afastar-me do corpo inerte, sem detestá-los? Enlouquecido de
sofrimento e revolta, recusei, enojado, os braços piedosos de enfermeiros que me buscaram
para que outras terras, não sei... Já que outra vida me surpreendia, depois da morte, não a
desejava se não para a desforra... Ainda assim, você não me encontra mais na furiosa
aversão dos primeiros tempos, conquanto meu ódio ainda tenha suficientes reservas de
fogo e fel para despejar-lhe no Espírito!... Avalanchas de provação se abateram sobre mim;
entretanto, você, o suposto homem de bem, receberá agora, no tribunal da sua consciência,
por minha vingança máxima, o peso inexorável de minhas acusações!...
Prosseguindo, num misto de crueldade e pranto, nojo e dor:
– Pense no martírio com que me reaproximei, desencarnado, da esposa jovem e da filha
ainda tenra, para ver Amâncio, o assassino, senhorear-lhes a existência... Ah! Fantini,
acredita você que, a princípio, eu quisesse tanto a sua mulher? Não!... Eu era um homem
sem qualquer princípio religioso e, por este motivo, sem qualquer orientação definida.
Possuía uma esposa e uma filha que adorava e punha meus olhos sobre Elisa, à maneira de
um tolo entusiasmado por ver-se distinguido pelas atenções de tão devotada e distinta
mulher... Contudo, em vez de uma palavra franca de companheiro, capaz de impor-me o
lugar justo, você, ralado de ciúme, tentou abater-me como alimária no campo... Com isto,
você, Ernesto, me transfigurou numa fera sem a jaula dos ossos. Abominando o invasor de
meu lar, pois Amâncio deu-se pressa em desposar Brígida, a moça que eu deixara viúva e
inexperiente, eu sentia em meu antigo refúgio caseiro a presença de um inferno que me
expulsava... Batido à maneira de um cão escorraçado e sem dono, sem a companheira que
me retirou da lembrança e sem a filha que devia beijar meu algoz por segundo pai, vagueei
pelas estradas de ninguém, entre as maltas das trevas, até que me instalei definitivamente
ao pé de Elisa, sua mulher, cuja silenciosa ternura me chamava, insistentemente... Aos
poucos, do ponto de vista do espírito, ajustei-me a ela, como o pé ao sapato, e passei a amá-
la com ardor, porque era ela a única criatura da Terra que me guardava na memória e no
coração...
Ante a pausa de Desidério, que se impunha a curto silêncio para repouso, Ernesto quis
implorar piedade, mas não pôde; o verbo esmorecera-lhe na garganta asfixiada de
desespero, enquanto lhe tremiam todas as fibras da alma, qual condenado ouvindo o
próprio libelo, sem possibilidade de qualquer defensiva.
O adversário refizera-se e investia:
– Tudo isso por quê? Porque o remorso deformou a sua vida mental de homem... Você,
desde a empreitada ominosa em que perdi meu corpo, andou buscando incessantemente
uma fuga impossível... Mergulhou o espírito em negócios e rendas, compromissos e
corretagens, viajando e viajando, sem procurar saber se a esposa e a sua própria filha eram
almas necessitadas de assistência e carinho! Tudo isso fez de minha afeição por Elisa mais
que afeição terrestre!... Obsessor, oh! sim... Sou... Mas sou também servidor incondicional de
quem leva seu nome e aguentou sua frieza de coração... Aprendi com sua mulher a paciência
e o silêncio para esperar e esperar... Você soube, algum dia, das enfermidades de sua filha na
infância? Conheceu-lhe as duras tentações nos dias primeiros da juventude? Sabe que
rapazes insensíveis lhe abusaram da confiança? Por acaso enxergou, alguma vez, as
lágrimas ardentes que lhe queimaram o rosto, depois dos pontapés daqueles mesmos
jovens desalmados que lhe prometiam lealdade e ternura? Ah! Fantini, Fantini!... Você nunca
desceu à faixa de suplícios do seu mundo doméstico, mas eu sei que calvários foram
transpostos pela mulher que envelheceu gemendo e pela outra que se desenvolveu
chorando!... A que títulos retornou a esta casa? Colher um amor que não plantou? Pedir
contas?
Ernesto, quebrado de aflição ante o libelo doloroso, conseguiu balbuciar:
– Oh! Desidério!... Compreendo agora... Perdoe-me!...
O antagonista, cada vez mais excitado pelo martírio moral que patenteava em cada
frase, retomou o ímpeto:
– Padeci por sua filha e pela outra, a pequenina que a morte me constrangera a largar...
Ilaqueada na boa-fé pelo patife que lhe absorvera a atenção, Brígida concordou em
descartar-se de nossa filhinha, situando-a muito cedo em estabelecimentos de ensino, onde,
se é verdade que recebeu educação esmerada, curtiu a falta dos pais, qual se fosse enjeitada
no berço... O que sofri, Fantini, o que sofri!... Entretanto, minhas agonias não pararam nesses
cuidados... Minha infortunada filha, que cresceu triste e moralmente quase desamparada, à
míngua da assistência paternal que você e Amâncio lhe furtaram, encontrou a morte, há
precisamente dois anos... Impelida pelo padrasto, interessado em livrar-se da
responsabilidade de tê-la em custódia, casou-se muito cedo com um celerado que lhe
destruiu todos os sonhos... Oh! como trabalhei para evitar-lhe a comunhão com esse homem
covarde!... Caminhava incessantemente entre os seus e os meus, esmagado de desespero,
dedicando-me a conjurar a tragédia que, afinal, se consumou... Quando fui vê-la morta, junto
de companheiros desencarnados, tão sofredores e tão desvalidos quanto eu mesmo,
ajoelhei, diante do corpo imóvel que ainda lhe conservava o derradeiro sorriso, e jurei que
me vingaria dos três mascarados que a rodeavam, Amâncio, o matador, Brígida, a ingrata, e
o detestado genro, cuja presença me enoja!... Em lágrimas, roguei a Deus a graça de ver
minha filha libertada do sofrimento físico, a felicidade de ouvir-lhe a voz; entretanto,
piedosos enfermeiros espirituais me informaram que ela fora conduzida a estâncias de
repouso e que somente me será concedido reencontrá-la quando sanar as chagas de revolta
que trago dentro de mim, como se me fosse possível apagar o incêndio de mágoas que me
calcina a mente infeliz!... Pobre filha!... Desposou um criminoso, qual se devesse
compartilhar o meu destino de Espírito, extraviado... Ah! como extinguir as labaredas da
inconformação que me devora? Impossível!...
Ernesto soluçava...
Dando a ideia de quem se propusesse despejar, de uma só vez, todo o fel que portava
na alma ulcerada, sobre o desditoso amigo, Desidério prosseguiu:
– Mas é preciso que você saiba ainda... Ao notar minha filha abatida e enferma pelos
desgostos do lar, o marido lançou-se a novas aventuras e veio a conhecer Vera Celina, sua
filha, de cuja afeição se apoderou... Então, dominou-a, escravizou-a...
E, articulando gesto expressivo com o dedo indicador, apontou para o interior da casa,
acrescentando:
– Este bandido está aí dentro... É Caio Serpa... Ah!... Evelina! Minha filha!... Minha filha!...
Nisso, quando Fantini percebeu toda a trama desvendada, com a enunciação dos nomes
de Evelina e do esposo, sentiu como se o cérebro lhe estalasse de angústia. Deslocou-se de
um salto e, embora suplicasse a bênção de Jesus e a proteção de Ribas, correu para matagal
próximo, entre gritos dificilmente abafados, e rojou-se no solo arenoso da ilha, à maneira de
um cão espancado, ganindo de dor.
21
Retorno ao passado
As advertências de Ribas e a presença de Evelina, a curta distância, foram argumentos
que constrangeram Fantini a revigorar no autocontrole.
Finda a longa crise de lágrimas, ante a surpresa que situava a senhora Serpa, em nova
posição, no mundo de sua alma, reconhecia-se outro. Sofrera modificações nos mais
recônditos mecanismos da mente. A exposição de Desidério, franca e livre, sacudindo-o para
reconhecer a extensão de suas próprias fraquezas, abatera-lhe o orgulho; no entanto,
clareava-lhe as entranhas do coração para buscar vida nova. Não obstante algo atordoado,
soergueu-se do chão e arrastou-se até ao local em que a moça o esperava.
Entretinha-se Evelina em amistosa conversação com desencarnados doentes, que
visitavam o sítio, sob a vigilância de enfermeiros atentos, em busca das emanações
nutrientes do mar. Avistando, porém, o amigo que se aproximava, cambaleante, pôs-se-lhe
correndo ao encontro.
– Oh! Ernesto, por que fatigado assim? – Exclamou inquieta, ao mesmo tempo que o
auxiliava a sentar-se na areia.
Ele não relutou em recolher-lhe o apoio e, tão logo a viu acomodar-se rente, colocou a
cabeça entre as mãos, num gesto de quem sentia dificuldade para carregar o pensamento
em fogo e tartamudeou, chorando:
– Ah! Evelina, Evelina!... Concordo agora em que somos dos mortos que não tiveram as
orações dos vivos... Ai de mim!... Os corações que eu mais amava se fecharam para sempre
com a pedra que decerto me selou os restos físicos... Torno de minha casa, como um
réprobo!... Oh! Meu Deus!... Meu Deus!...
Empenhou-se a companheira a reconfortá-lo, rememorando a sua própria experiência
de horas antes, mas o desolado amigo contraditou em profundo abatimento:
– Não, não!... Você foi vítima de ingratidão, ao passo que recebi a condenação que
mereci... Você ganhou o insulto, a mim coube o castigo!...
Ernesto ansiava rebentar-se em notícias do sucedido, confiar-lhe as revelações que
passara a senhorear; todavia, escasseavam-lhe as forças. Apenas o pranto a deslizar-lhe em
ondas...
Em poucos momentos, no entanto, a perplexidade e a aflição de ambos se viram
atenuadas com a vinda do carro voador, que se transportara da Via Anchieta à Praia do Mar
Casado6, onde se achavam, a fim de conduzi-los a São Paulo.

6 Nota do Autor espiritual: Praia do Guarujá.


Ribas escutara as súplicas do pupilo torturado e expedira ordens de caráter urgente
para que os dois tutelados do Instituto de Proteção obtivessem imediata cobertura.
Evelina escorou o companheiro e instalou-o no veículo que se alçou a grande altura.
Por mais tentasse palestra, não colhia dele senão monossílabos. Fantini silenciara,
evidenciando, porém, através do olhar triste e esgazeado, o vulcão de sentimentos
contraditórios que lhe explodia no peito.
Alguns minutos de voo e, atendendo-se a instruções de Ribas, foram os dois viajores
internados, em departamento de repouso de uma das casas espíritas cristãs, que
honorificam a vida paulistana, onde Ernesto começou a receber os cuidados precisos, a fim
de desvencilhar-se do trauma de que fora acometido.
Convenientemente amparado, através de recursos magnéticos, em círculo de oração,
acalmou-se para refazimento, sob a assistência da companheira e, então, rearmonizadas as
energias, perguntou ele à amiga, com inflexão de infinita amargura:
– Evelina, seu pai tinha o nome de Desidério dos Santos e seu padrasto é Amâncio
Terra?
– Sim. Meu nome inteiro é Evelina dos Santos Serpa.
Ernesto não vacilou. Compreendeu que devia à jovem senhora uma confissão integral
da própria vida e transferiu-se da ideia à ação, começando pelas memórias do casamento
com Elisa. E, à frente do espanto da companheira, embora pinceladas a traços ligeiros, as
cenas do pretérito se desdobraram, uma por uma... A aproximação com Desidério, desde a
meninice; o conhecimento superficial com Brígida, com quem se avistara poucas vezes; a
amizade com Amâncio, que sempre teimara em se conservar solteiro; as visitas frequentes
de Desidério ao seu lar, que ele, Fantini, não retribuía; a atração que o visitante exercia
sobre Elisa, a esposa que amara ardentemente; os ciúmes com que os via se abeirarem um
do outro; o plano de liquidar o amigo, a quem passara a detestar; o despeito silencioso, que
lhe envenenara os sentimentos; a caçada funesta, o tiro intencional que disparara e as
outras detonações que ouvira; a morte de Dedé e os remorsos da existência inteira... E, por
fim, descreveu, passo a passo, as ocorrências do retorno ao lar, desde o instante em que
registrara as afrontas da esposa obsessa até à última declaração de Desidério, que o deixara
aniquilado...
Evelina vasculhava inutilmente a cabeça, procurando expressões que lhe patenteassem
o assombro. Não que a narrativa a afastasse do amigo, a quem consagrava respeitoso e
enternecido amor. Estranhava, sim, o drama complexo de que eram protagonistas, sem
saber. Surpreendia-se com os meandros da peça que o grupo representava. A par disso,
acusava-se absorvida por extremada compaixão, perante os conflitos íntimos de todos os
seus aliados de tragédia familiar, sentindo-se, aliás, dentre eles, a menos atingida pela dor.
Contemplou Ernesto e chorou...
Ao vê-la em silêncio, curtindo dignamente as dolorosas impressões que lhe
azorragavam a alma, inquiriu ele, ansioso:
– Você também me acusa?
– Oh! Ernesto, estimamo-nos sempre mais... Sou eu, sua irmã, quem lhe pede perdão
por meu pai que tomou sua casa, indevidamente...
E Fantini, mais comovido:
– Não, ele nada furtou... Protegeu a mulher e a filha que desprezei... E se falamos de
escusas, sou eu quem roga tolerância para minha filha que se lhe apossou do marido...
– Não, não!... – foi a vez da interlocutora justificar a jovem – estou compreendendo que
Vera chegou ao meu caminho por benfeitora, ela propiciou a Caio a segurança que não lhe
pude dar...
– Evelina – acentuou o companheiro, um tanto aliviado –, tenho hoje a ideia de que só
pela vida depois da morte logramos desmanchar os enganos terríveis que acalentamos na
existência terrena.
Ela aprovou e mantiveram-se em doce tête-à-tête, quando, por fim, Ernesto conseguiu
conciliar o sono, dando-lhe oportunidade para retirar-se, em busca de ligeiro descanso.
Amanhecia...
No horário estabelecido para a volta, o veículo recolheu-os, de retorno.
A senhora Serpa ardia em desejos de rever o pai; no entanto, o amigo julgava prudente
não viesse a fazê-lo sem maior preparação. Ambos se reconheciam melhorados, quase
refeitos, tanto assim que em viagem, qual ocorria com os demais passageiros, debatiam
temas fundamentais da existência, quais sejam o amor, a reencarnação, o lar, o imperativo
do sofrimento...
Reinstalados na estância em que se domiciliavam, continuaram sonhando o futuro.
Juntos conversavam. Juntos planeavam.
Não seria mais que desejável o renascimento de Túlio, entre Caio e Vera, cujo
matrimônio lhes competia favorecer? Generosa, lembrava-se Evelina do pai sofredor e
acentuava, que se pudesse e se as circunstâncias permitissem, estimaria trabalhar
igualmente para que o genitor revoltado aceitasse a reencarnação, a fim de esquecer,
esquecer...
Ela e Fantini maravilhavam-se agora de como queriam tempo e mais tempo para os
entes amados no mundo. Orariam por eles. Suplicariam a Deus lhes prolongasse a existência
no mundo físico, no interesse da equipe familiar e deles mesmos. A senhora Serpa já
imaginava contemplar Mancini, no ambiente de Caio, para que se reconciliassem, e Ernesto
concordava em que se fazia senhor analisar a conveniência de uma aproximação, entre
Amâncio e Desidério, a fim de que lhes fosse concedido transfigurar aversão em simpatia e
discórdia em união. Sonhavam, sonhavam.
Decorridos dez dias sobre o primeiro regresso a São Paulo, quando ambos já se
admitiam plenamente refeitos, solicitaram audiência com Ribas, de modo a expor-lhe as
ideias novas e comentar os acontecimentos havidos.
O mentor acolheu-os com a lhaneza de hábito, ouviu-lhes atenciosamente os projetos;
entretanto, com surpresa para os dois visitantes, sintetizou as respostas que ambos
preferiam fossem mais longas:
– Meus caros, quando as súplicas de nosso Fantini chegaram até nós, não somente
promovemos o socorro preciso como também solicitamos anotações de todos os eventos
familiares de que se veem partícipes. Sabemos agora, em documentação adequada, tudo
aquilo de que se informaram. Quanto aos nossos deveres de ordem moral, já nos
entendemos aqui suficientemente em dilatadas entrevistas. Orientação, possuímos. Como é
fácil de entender, alcançamos a faixa da ação plena no trabalho espiritual, que vocês, aliás,
reclamaram, por reiteradas vezes.
– Será justo continuar agindo, em favor dos nossos? – indagou Ernesto, no sincero
propósito de acertar.
– Obrigação, meu amigo, isto é nossa obrigação – declarou Ribas –, os que conhecem
precisam auxiliar os que ignoram e não apenas auxiliar simplesmente, mas auxiliar com
muito amor.
– Acaso, ser-nos-á lícito mentalizar reencarnações para Mancini e meu pai, em futuro
próximo? – abalançou-se a dizer Evelina, tímida.
– Como não, minha filha? Para isso, contudo, é indispensável estabelecer dados
concretos, com planejamento exato. Sem dúvida, somos uma família só, perante a divina
Providência, e estamos todos interligados, com o dever da assistência mútua. A evolução é a
nossa lenta caminhada de retorno para Deus. Os que mais amam vão à frente, traçando
caminho aos seus irmãos.
– Estimaríamos alguma indicação, algum conselho para começar – aventou Fantini,
evidenciando a preocupação de quem não desejava ser importuno.
O orientador resumiu:
– Estamos com esclarecimentos de dez dias passados. Enviarei observador imparcial
ainda hoje a São Paulo, para conhecer as condições gerais dos irmãos implicados no
assunto, ao passo que vocês dois, amanhã mesmo, poderão visitar o sul paulista, buscando o
necessário contato com os familiares que ainda não puderam rever. De volta, amanhã à
noite, entraremos em estudos produtivos, uma vez que disporemos de elementos
esclarecedores, atuais e corretos.
O entendimento foi encerrado.
No dia seguinte, em condução regular da cidade espiritual para o mundo físico, os dois
amigos atingiram a cidade, em cujos arredores Amâncio edificara o ninho doméstico.
Seguida por aquele que se lhe fizera irmão e benfeitor inseparável, Evelina transpôs os
umbrais da antiga residência.
E foi um doce voltar aos dias da meninice... Parecia-lhe estar regressando sequiosa de
afeto ao domicílio solarengo, como nos tempos da juventude, quando se lhe abriam as férias
escolares. Além, o pomar farto; aqui, a porteira vestida de trepadeiras silvestres... Mais
alguns passos, o pátio enorme, espraiando-se na direção dos largos terreiros de tratamento
do café... Apoiando-se no braço do amigo, a moça caminhou até a porta de entrada, sob o
império das reminiscências que lhe senhoreavam a alma... Atravessou-a com o
enternecimento de quem penetra um local profundamente sagrado ao coração... O mesmo
ambiente revestido de paz; a sala de visitas com o velho mobiliário que lhe falava tão alto à
lembrança; o relógio de parede que a genitora se orgulhava de haver recebido dos avós; os
tapetes em peles dos bracaiás que Amâncio abatera, nos seus áureos tempos de caçador,
quando de várias incursões em Mato Grosso; o lustre de cinco lâmpadas a penderem do teto
e o piano em que tantas vezes acompanhara, extasiada, os ágeis dedos maternos, nas
interpretações de Chopin...
Uma surpresa banhou-a de júbilo. Na parte superior do instrumento, ao lado de
esquecidas composições musicais, jazia uma foto que a retratava na juventude e, junto a
essa recordação de família, uma rosa desbotada lhe comunicava a ternura materna.
A moça correu para a varanda lateral, em que Amâncio e a esposa costumavam
descansar, após as refeições, e ali os encontrou em serena palestra, cada qual em sua
poltrona. Então, dominada por indizível emoção, ajoelhou-se diante da genitora, em cujo
rosto descobria mais rugas, emolduradas por mais amplas faixas de cabelos brancos, e
depondo a cabeça em seus joelhos, chorou convulsivamente como o fazia nas
contrariedades e caprichos da infância.
Dona Brígida não lhe registrou a presença, em sentido direto; entretanto, parou o olhar
cismarento no arvoredo próximo, sentindo, de súbito, intraduzíveis saudades da filha.
Represaram-se-lhe lágrimas que não chegavam a cair... “Que vontade de rever minha
querida Evelina!...” E esta, que lhe captava os pensamentos, respondia: “Mamãe! Mãezinha,
eu estou aqui!...”.
Escoados alguns minutos de silêncio, o dono da casa, que ainda se achava sob a curiosa
observação de Ernesto a examinar nele os estragos do tempo, endereçou expressivo olhar à
companheira e indagou:
– Por que parou a conversa, meu bem? Pensando em quê?...
Carregava-se-lhe a voz da gentileza característica do homem que não se permite
deteriorar a devoção pela mulher depois do casamento, surpreendendo Fantini pela
delicadeza com que se vazava.
– Não sei explicar, Amâncio – anotou Brígida –, mas venho sentindo imensas saudades
de nossa filha... Dois anos de ausência...
E mais concentrada:
– Por que haveria de partir, assim tão cedo?!...
– Tolinha! – objetou o marido com admirável desvelo – o irremediável pede
esquecimento, o passado não volta...
– Creio, porém, que haverá outra vida, na qual se encontrarão os que muito se amaram
neste mundo...
– Os filósofos dizem isso, mas os homens práticos afirmam, e com razão, que nada se
conhece dos finados, além da certidão de óbito...
Nesse momento, Ernesto tateou-lhe a cabeça com uma das mãos, como a pesquisar-lhe
as elucubrações imanifestas, e identificou-lhe cravadas na memória as cenas vivas do
assassínio de Desidério, profundamente bloqueadas nos escaninhos da mente; no entanto,
algo lhe dizia no íntimo que lhe não era lícito convocar o espírito do companheiro a
qualquer estado negativo, absolutamente inútil, quando tudo lhe fazia crer que Amâncio se
transformara num esteio de trabalho respeitável para famílias numerosas.
Via-o, ali, não somente devotado e terno para com a mulher que lhe fora vítima,
porquanto era fácil adivinhar-lhe igualmente a condição de administrador estimado e digno,
através dos empregados tranquilos e felizes que se lhe aglomeravam, em derredor da casa.
Além disso, pensava, por que haveria de acusá-lo, se ele, Ernesto, apenas não
exterminara Desidério por falta de pontaria? Perante Deus e a própria consciência não seria
tão criminoso quanto o amigo que tivera a infelicidade de atingir o alvo?
Semelhantes reflexões escaldavam-lhe a cabeça, quando escutou Evelina que se
queixava, em pranto, para o coração materno:
– Oh! mãezinha, sei agora que meu pai erra nas sombras da alma!... Transformou-se
num Espírito empedernido no ódio... Que poderemos fazer nós duas para ajudá-lo?
Até aí, a mente de Brígida, profundamente distanciada de qualquer preocupação com o
primeiro esposo, nada pôde registrar em sentido direto, senão doloroso e vago impulso de
retorno ao passado, sem permitir que a imagem de Desidério se lhe imiscuísse na
lembrança, mas a filha insistiu:
– Auxilie, mãezinha, auxilie meu pai para que volte à vida terrestre!... Quem sabe? A
senhora e meu pai Amâncio vivem quase sós nesta casa!... Um menino! Um filho do
coração!...
Nesse trecho da súplica filial, a genitora deixou-se empolgar pela ideia de que estavam,
ela e o segundo esposo, envelhecendo no corpo físico, sem qualquer descendente, e que uma
criança perfilhada por eles seria talvez um apoio para o futuro.
Ao contato das palavras de Evelina, cresceram-lhe os pensamentos nessa direção e
passou a refletir, refletir... Um menino!... Alguém que lhes povoasse a existência de
esperanças novas, alguém que lhes continuasse a sustentação dos ideais de trabalho
naquele diminuto recanto de solo!...
Movida pelo entusiasmo da filha que lhe assimilava os pensamentos de adesão ao tema
fundamental da mensagem de alma para alma, Brígida sondou o companheiro:
– Amâncio, muitas vezes penso em nossa velhice solitária, com tantas possibilidades
em mão... Não concordaria você em que tomássemos um garoto para ser o filho que não
temos?
– Que ideia! Em nossa idade?
– Não somos tão velhos...
– Ora, Brígida, era o que faltava! Você não acha esquisito terminarmos a vida fazendo
mamadeira para criança?
– E se for o contrário? Deus poderá conceder-nos dilatado tempo ainda na Terra... E se
deixássemos aqui um bravo rapaz, que nos administrasse a fazenda, dando continuidade à
nossa organização?
– Não tenho o seu otimismo – apontou o marido, com generosidade e carinho a lhe
transbordarem da voz –, mas sempre admirei os seus caprichos. Não me oponho aos seus
desejos, mas exijo que seja um homenzinho, que venha para cá ao nascer, sem que os pais
nos incomodem e que chore pouco... Tudo isso, desde que você nada reclame da
trabalheira...
– Oh!... Amâncio, que alegria!...
Ante o júbilo da esposa que se transfigurara, feliz, o interlocutor sentiu misteriosa
ventura acariciando-lhe as entranhas do ser. Levantara-se Evelina e avançara para ele,
osculando-lhe os cabelos agrisalhados, ao mesmo tempo em que lhe estendia a destra sobre
o tórax, qual se lhe afagasse o coração.
22
Bases de novo porvir
No dia imediato, a conferência com Ribas.
Ernesto e Evelina confiaram-lhe sucinto relatório da visita realizada na véspera, a que o
mentor deu ouvidos atentos.
Esmerando-se no aproveitamento das horas, o sábio amigo requisitou um grupo de
fichas, alinhadas em arquivo próximo, e iniciou o trabalho mais importante da entrevista,
analisando a situação de Túlio Mancini. Considerou que o jovem realmente evidenciava
reduzido progresso; entretanto, isso não invalidava o compromisso da senhora Serpa, cujo
auxílio junto dele não devia esmorecer, organizando-se-lhe o renascimento próximo.
Estabelecendo bases para o futuro, ele, Ribas, traçara um programa de ação imediata e
mais claramente definida para os dois amigos, em cujo desempenho se lhes aplicassem as
forças com a eficiência precisa. Evelina permaneceria, a sós, ao pé de Mancini, continuando
a presidir-lhe, quanto possível, a renovação mental, ao passo que Ernesto se encaminharia
diariamente ao plano físico, de maneira a colaborar, no limite de seus recursos, a benefício
de Desidério e de Elisa, carecedores de urgente e fraternal socorro.
Entendera-se com diversos diretores de serviço, domiciliados em esferas superiores, e
granjeara autoridade suficiente para funcionar na solução dos problemas alusivos aos
renascimentos que se fizessem necessários, em favor do reequilíbrio do grupo.
A moça, porém, no registrar-lhe as instruções, raciocinou, pesarosa:
– Instrutor Ribas, não me será concedido, então, visitar meu pai e abraçá-lo agora? O
senhor compreende as minhas saudades...
– Entendo, sim, mas a condição atual de Desidério não nos aconselha espontaneidade
nas atitudes. Para ajudá-lo com segurança, é imperioso examinar previamente as nossas
menores manifestações.
– Mesmo as minhas?
– Até mesmo as suas maneiras de filha entram em linha de conta. Aquele rebelde e
nobre coração que lhe serviu de pai possui qualidades notáveis, que serão desentranhadas
em momento oportuno. Convém, filha, não venhamos a estragar as oportunidades.
Paciência...
– Como assim?
– Ele deve reencontrá-la em momento de mais alta compreensão. Fantini assisti-lo-á,
diariamente, através da palavra edificante, em tarefa idêntica ao apostolado doméstico que
a sua dedicação desenvolve no amparo a Mancini, empenhando-se a despertá-lo para as
alegrias da espiritualidade maior, ao mesmo tempo em que, nesse mister, ambos
aprenderão a readquirir o respeito e o afeto mútuos...
Depois de um sorriso amistoso:
– Não é isso mesmo que sucede a você, em relação a Túlio?
Evelina aquiesceu, compreensiva.
– Isso, entretanto – prolongou-se o mentor –, não obstará sua intervenção nos
acontecimentos, quando as circunstâncias no-la sugiram. Você pode e deve efetivamente
rever seu pai terrestre; no entanto, a sua influência filial, a nosso ver, precisa ser usada em
favor dele mesmo...
A senhora calou-se e Fantini aparteou:
– Instrutor, se não sou importuno, estimaria saber se o mensageiro de sua confiança
inspecionou a situação de nossos companheiros na residência do Guarujá...
– Sim, mas não foram achados ali. Estão em São Paulo.
– Na casa de Vila Mariana?
– Caio e Vera, sim...
– E Elisa?
– Há precisamente seis dias foi internada para tratamento numa clínica de saúde
mental.
– Meu Deus!... Como as coisas se modificam!...
Instada por Serpa, a filha assumiu responsabilidades e a doente não pôde resistir. As
notícias recebidas, no entanto, destacam enorme gravidade nos prognósticos, quanto à nova
posição orgânica de Elisa. Sou constrangido a comunicar-lhes que a enferma piorou muito,
quanto ao processo obsessivo de que é vítima, e, à face dos recursos circulatórios precários,
surgiu-lhe uma trombose cerebral progressiva, indicando desencarnação próxima. Tudo
isso, após terrível desgosto...
– Que desgosto? – interpelou Fantini, atônito.
O instrutor, imperturbável:
– Averiguamos que Serpa, de algumas semanas para cá, pressionou Vera para que se
retirasse da genitora a faculdade de dirigir os próprios negócios. Advogado de muitas
relações, muniu-se de influências diversas e, assim que convenceu a futura sogra a
hospitalizar-se para tratamento, assegurando não passaria de dois a três dias, obteve, com
as certidões devidas, o despacho da autoridade competente, favorável aos seus propósitos.
E apresentou esses propósitos aos amigos, em todas as providências, como sendo da jovem
a quem promete desposar. Claro que o choque para Elisa foi algo de muito doloroso, ao
reconhecer, na instituição de saúde em que se encontra, a impossibilidade de mobilizar os
seus recursos econômicos. Isso porque, apesar de obsessa, está perfeitamente lúcida. Para
nós, é a criatura de mediunidade torturada, com fenômenos psíquicos por agora
incompreensíveis a quantos lhe desfrutam a convivência... Para Serpa e Vera, é um caso de
senilidade precoce...
– Caio, então... Agora...
A frase hesitante de Ernesto esmoreceu-lhe na boca.
Ribas, no entanto, completou-a:
– É o procurador de nossa doente e da filha, com poderes legais para manejar-lhes
todos os bens...
Ante os dois interlocutores, espantados:
– À vista dos fatos e admitindo o imperativo de nosso entendimento tão arejado quanto
possível, é forçoso informar você, Fantini, de que os seus terrenos em Santos já foram
vendidos, anteontem, conforme resoluções de Serpa, que se investiu na posse de alguns
milhões de cruzeiros, a título de corretagem. Não digo isso como quem julga o
comportamento menos feliz de um companheiro, mas sim porque necessitamos planejar o
futuro, com a obrigação de nos determos em minudências mesmo indesejáveis...
– Que ladrão!... – o grito acusativo de Ernesto vibrou, insopitado.
– Meu Deus!... Mais uma vez, Caio, malfeitor?!
Ribas fixou um gesto de paternal benevolência e opôs a contradita:
– Evitemos a crueldade, fujamos de qualquer violência. Indispensável envolver Serpa e
Vera em ondas de nossa melhor simpatia.
– Por quê? – bradou Fantini, desolado.
– Vocês não devem esquecer que os dois, na equipe doméstica, são amigos
providenciais. Se vocês operarem com segurança, no apoio afetivo de que Caio não
prescinde, esposará Vera e será o pai de Mancini na existência próxima. Sem dúvida, agindo
assim, resgatará o débito que lhe é próprio, porquanto, havendo subtraído Túlio à vida
física, é obrigado a restituir-lhe esse mesmo patrimônio, segundo os princípios de causa e
efeito. Além disso, porém, tranquilizará Evelina, encarregando-se no mundo da reeducação
de um Espírito, cujo destrambelho emotivo tanto trabalho vem custando à nossa amiga.
– Entendo tudo isso, mas... – abalançava-se Fantini a interpor argumento menos
favorável, que Ribas cortou, esclarecendo:
– Sei, Fantini, o que você pensa. Você, apegado ainda à família consanguínea que o
Senhor lhe emprestou na Terra, reconhece que Serpa começou a apoderar-se daquilo que
foi sua razoável fortuna. Você, indiscutivelmente, não se deve iludir. Assim como já
negociou os lotes que lhe pertenciam em Santos, disporá talvez de todo o material que você
aprecia ainda como sendo os seus apartamentos de aluguel em São Paulo, a sua residência
de Guarujá, as suas apólices, as suas joias, os seus depósitos bancários e até mesmo o seu
pequeno mundo doméstico de Vila Mariana... Aceite a realidade, meu amigo. Todas as suas
propriedades no campo físico, mediante a desencarnação, passaram ao domínio de outras
vontades e ao controle de outras mãos. A vida reclama o que nos empresta, dando-nos em
troca, seja onde seja, o que fazemos dela, junto dos outros... Todas as transformações a que
nos referimos virão, na certa, logo Caio consiga fazer de sua filha a esposa legítima.
Entretanto, abstenhamo-nos de classificá-lo por ladrão e malfeitor. Ele é, sim, um filho de
Deus, tanto quanto nós, sacando no futuro. Toma hoje, por empréstimo, à sua viúva e à sua
filha os recursos que você lhes deixou, por fruto de uma existência imensamente laboriosa,
julgando que realiza brilhante proeza de inteligência... Entretanto, a pessoa enganada é ele
mesmo, o nosso pobre amigo...
– Mas, como?
O mentor, sereno, clareou o assunto:
– Supondo senhorear largos créditos, Caio apenas assume largas dívidas, perante as
divinas Leis. Retendo os patrimônios materiais de Elisa e Vera, experimentará,
instintivamente, a fome de ação para enriquecer-se cada vez mais. Apaixonar-se-á pelo
dinheiro e tão cedo se sentirá saciado. Ao invés de aproveitar as alegrias da vida simples,
andará distante da verdadeira felicidade, escravizado que ficará, por muito tempo, à
ambição de ganhar e ganhar, amontoar e amontoar... E isso tudo, no fim, será revertido em
benefício... Sabe de quem?
– Estimaria saber... – apontou Ernesto, estomagado.
– Dos seus familiares, meu caro, e principalmente de Elisa, a quem ele presentemente
impele à desencarnação prematura, com apontamentos insensatos, sequioso de lhe
governar as vantagens econômicas em regime de ilusória impunidade.
– Oh! explique-nos!... – solicitou Ernesto, ansioso.
Ribas apanhou pequeno mapa, dentre os papéis que compulsava, e elucidou, indicando
figurações aqui e ali:
– A desencarnação de Elisa está prevista para breves dias, mas o renascimento dela,
depois de reequilíbrio seguro em nossa estância, poderá ocorrer, conforme nosso esquema,
dentro de cinco a seis anos. Com a permissão de nossos Maiores, será ela filha de Serpa e
Vera, se vocês trabalharem no socorro a ambos, com muito amor... Renascerá depois de
Mancini, que lhes será o primogênito... Como é fácil de perceber, daqui a trinta anos, mais ou
menos, ocasião considerada provável para o retorno de Caio à Vida Espiritual, devolverá ele
à sogra espoliada – então sua filha – tanto quanto a Vera Celina, na condição de viúva, todos
os patrimônios de que hoje se apropria. E restituí-los-á positivamente aumentados,
acrescidos de grandes rendimentos, ao mesmo tempo em que terá trabalhado o bastante
para legar a Túlio, na existência nova, uma situação material invejável...
Diante de Evelina e Ernesto estupefatos com a segurança das Leis de Deus, Ribas
pareceu encerrar os estudos, advertindo:
– Longe de nós a intenção de categorizar Serpa à conta de larápio ou delinquente; ele é
nosso aliado, nosso amigo. O que nos compete fazer, de imediato, é rogar ao Senhor
fortalecê-lo com a bênção da saúde física e da euforia espiritual, a fim de que viva tranquilo,
no casulo terreste, por muitos e muitos anos...
E, sorrindo:
– Chegará o tempo em que vocês dois se aprestarão, quanto possível, a fim de
resguardar-lhe as garantias pessoais e ampliar-lhe os lucros dignos, de maneira a proteger o
futuro dos entes caros. Imploremos a Deus faça dele um homem rico e bondoso, diligente e
realizador. Precisamos dele e, consequentemente, Caio precisa de nós.
Notando a senhora Serpa que a conversação descambava para o término, apressou-se a
dizer:
– Instrutor, e meu pai? Venho sonhando para ele o regresso ao berço terreno...
– Isso igualmente já consta de nosso esquema. Sabíamos, Evelina, que você, filha
dedicada e amorosa, cogitaria de ajudá-lo... Fomos informados de que você ontem já lançou
no coração materno a ideia-semente que frutificará com o amparo divino, suplicando à
nossa irmã Brígida o recolha, no lar, como menino perfilhado. Seu apelo foi muito feliz e,
com semelhante medida, Amâncio Terra, seu padrasto, receberá o socorro merecido. Em
verdade, ele exterminou o corpo de Desidério, seu pai, alucinado na paixão que lhe
enceguecia o espírito, e apossou-se-lhe da casa e dos recursos... É um homem ateu e
evidentemente criminoso, mas profundamente humano e caritativo. Recolheu os bens de
seu pai; no entanto, ao dilatá-los, com administração judiciosa e profícua, fez-se o esteio
econômico para mais de duzentos Espíritos reencarnados, os seus servidores e rendeiros,
com os descendentes respectivos... Há mais de vinte anos, a todos protege, com a vigilância
de um pai atento e bom. Nunca abandonou os que enfermassem, nunca desprezou os caídos
em prova, nunca deixou crianças ao desamparo... Sim!... Ele assassinou Desidério, seu pai, e
responderá por essa falta, nos tribunais da vida, mas escravizou-se a Brígida, sua genitora,
de quem procura satisfazer os menores desejos na posição de marido honesto e fiel... Tantas
preces sobem do mundo, a favor dele, para a infinita misericórdia de Deus, pelas
consolações e alegrias que espalha, que chegou a merecer mais amplas atenções de nossos
Maiores... Fomos recomendados ontem para que a sua filial rogativa seja atendida no
momento oportuno... E quanto a seu pai, segundo a sua petição, retornará, com a bênção do
Senhor, ao convívio do homem que ainda odeia, mas aprenderá a ver-lhe as qualidades
nobres e amá-lo-á enternecidamente, como a um pai verdadeiro, de quem receberá
abnegação e ternura, apoio e bons exemplos.
Ribas silenciou por momentos e, em seguida, acentuou, qual se estivesse respondendo
a certas dúvidas dos ouvintes:
– É inegável que Amâncio possui apenas mais dez anos de permanência no corpo físico,
de acordo com os dados esclarecedores que nos foram enviados, com objetivos de estudo;
no entanto, para um homem com os serviços prestados que ele tem, não nos será difícil
obter, junto aos poderes superiores, moratória de quinze a vinte anos a mais, prolongando-
se-lhe o tempo na existência atual... À face de tudo isso, esperamos possa ele realmente
conquistar do Senhor a felicidade de receber Desidério por filho – através do concurso de
um casal humilde –, a fim de conferir-lhe vida nova e devolver-lhe, no porvir, todos os bens
de que foi, um dia, despojado... Esteja certa, Evelina, de que seu pai, reorientado pelo
verdugo de outro tempo, hoje transfigurado em obreiro do bem, na escola do trabalho, será
um homem equilibrado e com todos os recursos para ser feliz .
Ribas pausou, de novo, alguns instantes e, logo após, anunciou:
– Nosso esquema inclui um acontecimento importante... Nos dias que virão, seremos
chamados a aproximar os lares de Serpa e Amâncio, porquanto Desidério e Elisa,
reencarnados, realizarão venturoso matrimônio em plena juventude... Envidaremos esforço
máximo, para que Desidério se despeça de nós, em breve tempo, na direção da vida física...
Evelina chorava de jubilosa emoção, meditando na justiça perfeita de Deus, e Ernesto
refletia, empolgado de assombro, ante a lógica do plano estabelecido.
Sopitando a comoção encharcada de lágrimas, a senhora Serpa articulou nova
pergunta:
– E minha mãe?
– Sua mãezinha – aclarou o mentor – acompanhará os destinos de Amâncio... Seu pai
desposou-a, mas não a amava... Tanto assim que, nas anotações e relatórios de que
dispomos, você ainda estava no berço terrestre e ele já gravitava para outros campos
sentimentais.
– Tantos projetos! – especulou Fantini. – Transformar figuras em obras exige trabalho e
trabalho... Quem se responsabilizará pela execução de semelhantes planificações?
O mentor lançou-lhe benevolente olhar e falou para ambos:
– Vocês já ouviram falar em guias espirituais?
Ernesto e a companheira esboçaram silencioso gesto de estranheza.
E Ribas:
– Pois é... Vocês dois serão os encarregados do serviço em perspectiva, com todas as
tarefas-satélites que lhe forem consequentes. Esforçar-se-ão para que Serpa e Vera se
consorciem; para que Elisa se recupere após a desencarnação, no menor prazo possível;
para que Desidério volte ao renascimento físico, nas condições desejáveis, e auxiliarão,
ainda, a Elisa, no retorno à Terra, com o dever de amparar-lhes o berço e a meninice, além
de que estarão colaborando não só para que a futura genitora de Desidério conquiste
recursos adequados a acolhê-lo no claustro materno, como também para que o nosso amigo,
a reencarnar, venha a sentir-se convenientemente instalado, na posição de filho adotivo... E
nada de esquecer nosso Mancini, que prossegue requerendo atenções especiais; o
encaminhamento dele no futuro, o enlace de Elisa e Desidério, mais tarde, depois das
providências com que nos empenharemos a reaproximar as famílias Terra e Serpa...
Num gesto marcante de bom humor:
– Trabalho para trinta anos, meus amigos! Para início de ajuste, considerem-se
vinculados à nossa cidade, em serviço, no mínimo de trinta anos pela frente!...
Ernesto contemplou Evelina, tomado de profundo enternecimento. E pensava que ela e
ele haviam sido rechaçados da memória dos que mais amavam, quase que totalmente
esquecidos, recusados, afastados, substituídos. A ex-senhora Serpa – pois que a moça se
reconhecia francamente liberada pelas atitudes de Caio, quanto ao prosseguimento de
qualquer compromisso de natureza afetiva – fixava Ernesto e sintonizava-se-lhe com a onda
de ideias e emoções. Estavam os dois com a paz de consciência e a sós um com o outro, na
empresa que os chamava. Fantini pareceu-lhe mais espiritualizado pelos sofrimentos dos
dias últimos, qual se a fogueira de aflições ocultas lhe houvesse remodelado a forma e
retocado o semblante. Entreolharam-se e compreenderam-se. Todos os entes queridos, da
Terra, à exceção de Brígida que ainda mantinha pensamentos de ternura e saudade para a
filha distante, dispensavam-lhes a presença e o concurso. Entretanto, necessitavam agir e
construir, a favor deles mesmos. E ao modo de aliados que se reencontram para veneráveis
misteres, no campo da vida, se prometeram, sem palavras, irmanar os corações,
transferindo um para o outro os sagrados tesouros afetivos que se lhes devolviam da Terra,
convencidos de que precisavam da escora recíproca para a longa jornada que se lhes
descerrava aos anseios de redenção.
23
Ernesto em serviço
A obra de assistência espiritual por parte de Fantini e Evelina avançava com segurança,
entre as melhoras de Túlio e os tentames de reaproximação com Desidério, que não se
desvinculava de Elisa, então relegada às próprias reflexões no sanatório a que fora
conduzida.
O trabalho para Ernesto se fazia, porém, cada vez mais difícil, porquanto o adversário
não perdia ocasião de arrancar-se contra ele, através de acusações e achincalhes. Por outro
lado, as condições orgânicas de Elisa pioravam, de dia para dia, e os seus esforços, no
sentido de abeirar-se dela, redundavam quase nulos. Preocupado com o rumo da situação,
procurou Ribas, a quem expôs o problema, inquirindo por que motivo um Espírito sofredor
e enrijecido nas ideias de vingança adquirira tamanho poder de penetração, a ponto de
apontar-lhe as mínimas falhas de caráter.
– Ah! meu amigo, meu amigo!... Confessou o Instrutor – nossos irmãos atrelados ao
desespero e à revolta encontram razões para censurar-nos, sempre que preferimos
desempenhar na Terra a função de personalidades-legendas.
– Como assim?
– Muita vez, somos no mundo titulares desses ou daqueles encargos, sem que
venhamos a executá-los de modo efetivo. Costumamos ser maridos-legendas, pais-legendas,
filhos-legendas, administradores-legendas... Usamos rótulos, sem atender às obrigações que
eles nos indicam. Entendeu? Igualmente, já fui esposo-legenda na Terra, isto é, casei-me,
abracei compromissos de família, mas acreditei que as minhas responsabilidades se
limitassem a ostentar a chefia da casa e a pagar as contas de fim de mês. A rigor, jamais
compartilhei as inquietações da companheira, na educação íntima dos filhos e, que eu me
lembre, nunca me sentei, junto de qualquer deles, para sondar-lhes as dificuldades e os
sonhos, conquanto lhes exigisse conduta que me honrasse o nome.
Assinalando a delicada objurgação, Fantini viu-se mais uma vez espicaçado pela
própria consciência.
Concluía, sinceramente, de si para consigo, que não fora o esposo e o pai que deveria
ter sido. Somente ali, naquela estância espiritual, depois da morte do corpo físico, percebia,
nas duras refregas da autocorrigenda, que o dinheiro não faz o serviço do coração.
Sentindo-se rebaixado, triste, absteve-se de quaisquer divagações nos temas da consulta, ao
passo que o mentor, risonho, deteve-se a confortá-lo nas despedidas:
– Nada de desânimo!... Ouçamos os opositores nas críticas que assaquem contra nós,
buscando aproveitá-las com humildade no que mostrem de verdadeiro e de útil. Usemos
essa chave, Fantini – a humildade –... Ela funcionará com acerto na solução dos maiores
enigmas. Sejamos cristãos autênticos, amando, servindo, desculpando...
Atento às lições constantes do amigo, consagrava-se Ernesto, cada vez mais, aos
misteres da fraternidade legítima, fosse tolerando as diatribes da mulher debilitada pelo
sofrimento, ou suportando, com resignação heroica, os baldões do irmão infeliz, sempre
disposto ao espancamento verbal.
Depois de vinte e seis dias de frequência correta ao clima de serviço, verificou,
surpreso, que Serpa, pela primeira vez, vinha ao encontro da futura sogra.
Muito bem apessoado, postou-se o causídico à frente da enferma, em sala particular,
com o beneplácito da administração do instituto, pois, segundo anunciou, desejava colher
impressões claras e pessoais, com alusão à doente, a fim de prestar informes positivos à
noiva.
Em derredor de ambos, apenas os dois acompanhantes desencarnados, Desidério e
Fantini, ambos ansiosos pelos resultados da entrevista.
Quando se acharam a sós, Elisa expôs, com palavras serenas de mãe, o desejo de
abraçar a filha, a fim de que ela lhe testemunhasse a sanidade mental e lhe patrocinasse o
regresso para a casa, sensibilizando tanto a Fantini quanto a Desidério, pela atitude humilde
em que vazava as súplicas de mulher derrotada pelas circunstâncias.
Serpa, no entanto, contrariou-a, inflexível:
– Absolutamente, a senhora não terá alta, assim como pretende, pois os prognósticos a
seu respeito não ajudam...
– Por quê?
– As informações relativas ao seu comportamento não nos autorizam a retirá-la.
– Comportamento? Que comportamento?
– Continua chorando sem propósito, conversa sozinha, interpela sombras...
– Simplesmente não sou compreendida; o que vejo, vejo...
– Vera telefona diariamente e os enfermeiros são concordes em declarar que as suas
perturbações não diminuíram.
– Serpa – admoestou Elisa, carregando a voz de mal-estar –, apesar de tudo, insisto com
o seu cavalheirismo, a fim de que me traga Vera...
– Para quê? Para traumatizá-la com as suas fantasias? Não acredita que sua filha já
sofreu o bastante com os seus choros e noites em claro?
– Oh! Serpa!...
– A senhora sabe que já sou quase seu genro, tenho direito a interferir...
– Não sei quem teria o direito de interferir entre as mães e os filhos – reivindicou a
enferma, agora suplementando cada palavra com inflexão de funda tristeza. – Não reclamo
contra a sua ingerência nos negócios de minha casa, a ponto de me achar interditada, no
tocante a emitir um simples cheque...
– Não se lamurie – atalhou Caio, agressivo –, aceitei o papel de seu procurador, por
exigências de sua filha. Tenho serviço que me baste e não disputaria a condição de seu
empregado...
– Não lamento e conto com a sua honestidade para proteger os interesses de minha
filha... Quanto a mim...
– Que quer dizer?
– Quanto a mim, vocês dois não se afligirão por muito tempo. Alguns palmos de terra...
– Por que fala nisso? Que há de mais? A morte é o fim de nós todos, e, se a senhora se
expressa dessa forma para comover-me, está muito enganada...
– Oh! Meu Deus, só desejava ver minha filha!...
– Pois enquanto não se normalizar, enquanto não puder recebê-la sem causar-lhe
impressões negativas, não conseguirá.
– Mas por que me impõe essa recusa, se sempre recebi você em minha casa, como se
fosse meu próprio filho?
– Mentira! A senhora me detesta... Não me expulsou porque Vera não permitiu, porque
sou o homem que ela escolheu para lhe dirigir o futuro...
E ante a penosa estupefação da doente:
– E saiba que tanto ela quanto eu estamos fartos de saber que a senhora já viveu sua
vida e que precisamos viver a nossa... Não será uma sogra velha que frustrará nossos planos.
Inopinada revolta anuviou o cérebro de Elisa, que se aprestou para a reação,
exclamando, frenética:
– Infame!...
Surgida a indignação, Desidério – o desencarnado que, a rigor, lhe controlava todas as
faculdades – senhoreou-lhe a mente, de forma espetacular, e a crise se desencadeou
dominadora, terrível...
Elisa, possessa, investiu sobre o visitante, buscando asfixiá-lo, a meio de impropérios
que se lhe estranhavam na boca.
Serpa recuou, sob indisfarçável espanto, dando lugar à paciente enfermeira que
imobilizou a viúva, ao mesmo tempo que, de outro lado, Ernesto, a pulso, impedia os
movimentos desordenados do companheiro.
Restabeleceu-se a ordem.
A moça de serviço reconduziu a doente para o quarto, apoiada no concurso de duas
auxiliares, e voltou para as escusas.
– Não se aflija, doutor. Foi uma crise como tantas... Isso passará.
– Compreendo – revidou Caio, gentil. – Dona Elisa sempre me tratou com carinhos de
mãe. Pobre amiga! Tem os nervos positivamente destrambelhados.
Enquanto a conversa prosseguia, Fantini segurava Desidério, amistosamente,
coadjuvado por outros tarefeiros desencarnados, em atividade no sanatório.
Um deles solicitava prisão para o agitado agressor, ao passo que os demais informavam
que, desde a entrada de Elisa no estabelecimento, era ele um prestativo e pacato
acompanhante da enferma, que encontrava nele um amparo e um amigo.
Ouvindo alusões a encarceramento provável, o pai de Evelina percebeu que se achava
diante da possibilidade de perder-se da criatura querida, e asserenou-se.
Valeu-se Ernesto da circunstância e o apresentou como sendo para ele um irmão
caríssimo, no intuito de sossegar as sentinelas, acentuando que o pobre se desmandara
ligeiramente, à vista de certas provações de família. Entretanto, ele, Fantini, estava ali
justamente a fim de ajudá-lo a se desvencilhar de quaisquer lembranças destrutivas.
Dispersaram-se os guardas.
Depois disso, Ernesto convidou o rival a segui-lo, no que foi atendido, sentando-se
ambos em espaçoso banco de jardim próximo.
Desidério chorava, colérico, impedido que se vira de surrar o advogado como desejara.
– Você viu que crápula? – Explodiu, encarando Fantini com expressão menos cruel –
não sei por que ainda não aniquilei esse pulha de Serpa!... Primeiro, assassinou um colega, o
advogado Túlio Mancini, depois matou minha filha aos poucos, e agora quer arrasar Elisa,
após furtá-la, descaradamente...
O amigo fitou-o com bondade e ajuntou:
– Desidério, perdoe-nos por todo o mal que já lhe fizemos e escute-me!... Acalme-se, por
amor de Deus! Não lhe peço isto por nós, mas por Elisa, a quem você ama tanto...
Presentemente, nada mais disputo senão a paz entre nós. Tranquilize-se, para arrostarmos
a realidade; posso informar a você que a nossa enferma está no fim da resistência física!...
– Tenho alguma ideia disso – replicou Desidério menos hostil, patenteando intenções
de acordo e entendimento, pela primeira vez –, mas lutarei como um touro para defendê-la.
Darei a ela as minhas forças, minha vida. Minha alma é a dela, assim como o corpo em que
ela respira é o meu corpo... Habitamos a mesma cela de carne, pensamos pela mesma
cabeça!...
– Graças a Deus – concordou Fantini com humildade – compreendi que assim é e que
assim deve ser...
Demonstrando o elevado grau da despersonalização que ia adquirindo:
– Desde que você me falou com clareza fraterna, em nosso primeiro reencontro,
reconheci que Elisa descobriu em você a sustentação de que necessitava, e creia que, se
atualmente algo aspiro em relação a ela, anseio vê-la feliz ao seu lado... Estou convencido de
que a nossa doente não perseverará mais por muitos dias no corpo terrestre e o choque de
hoje, com certeza, pesará na balança...
– Ah! Esse Caio, esse miserável...
– Não, Desidério! Assim, não... Suplico a você paciência e tolerância... Acaso, não
estaremos cansados de rebeldia e de ódio? Ante a minha falta, no propósito de suprimir
você, amarguei a existência terrena, perdendo em remorso e fuga incessante de mim mesmo
os melhores tempos da vida no mundo dos homens, e você, meu caro, por não haver
desculpado a mim e ao nosso Amâncio, tem estado na selva das provações, que se reservam
aos Espíritos impenitentes e sofredores... O leito das lágrimas de Elisa não poderia ser o
ponto terminal de nossos disparates? O santo lugar de apaziguamento? Elisa se libertará
dos suplícios corpóreos, e nós, meu amigo? Que será de nós, se, largado o corpo de matéria
pesada, continuamos de espírito atormentado nas ideias de culpa e condenação, crime e
castigo? Ela partirá...
Desidério, porém, transtornado pelos argumentos que lhe anunciavam separação,
bradou, impulsivo:
– Elisa não partirá de meus braços, não me abandonará!... Não a deixarei!...
– Inúteis, Desidério, quaisquer protestos nossos contra as forças da vida. As leis de
Deus se cumprirão. Elisa sustenta-se em você, mas igualmente ama a filha, e, sabendo-se
irremediavelmente afastada da ternura filial, inconscientemente aspira à morte e há de tê-la
mais depressa, depois que se certificou das atitudes menos felizes de Serpa... Com toda a
certeza, a pobrezinha se deterá no pensamento da desencarnação, supondo-se no rumo
direto de sua companhia; no entanto, verificar-se-á o imprevisto... A morte vai situá-la em
polo oposto ao seu... Ela não tem a sua estrutura mental, nem a sua disposição para
demorar-se nestes sítios... Ressentida hoje contra o genro, amanhã saberá absolvê-lo e
patrociná-lo, acomodando-se com os mensageiros da vida maior, através da oração... Apesar
do temperamento irritadiço que lhe conhecemos, não odeia a ninguém e nunca demonstrou
vocação para a vingança.
Desidério abaixou-se para o solo, agarrou a cabeça entre as mãos e desfez-se a prantear
com maior desespero.
– Perdoe, meu amigo!... Perdoe a nós todos, incluindo Caio em sua compaixão!...
– Nunca, nunca!...
– Sou eu quem reconhece as injustiças que perpetramos contra você, sou eu quem lhe
observa a nobreza de coração... Revele-me e ouça!... Agradeço o seu devotamento à mulher
que eu não soube fazer feliz e a ternura pela filha, para a qual você se transformou em
abnegado zelador... Por tudo isso, peço-lhe ainda para que estenda até nós, os seus
carrascos, as vibrações de sua piedade e de sua simpatia...
– Ah! Fantini, Fantini!... – rugiu o interlocutor, como a guerrear-se para não se render à
emoção – por que me tenta assim a uma conciliação impossível? Que razões para tanto
empenho em modificar-me?
– Desidério, no mundo físico, trabalhamos particularmente com a matéria pesada e
transfiguramos pedras, metais, glebas, fontes... Aqui na Espiritualidade, lidamos, de modo
especial, com as forças do espírito e renovamos almas e consciências, a começar de nós
mesmos... Atenda-me!... Lembre-se de que Elisa possui muitos amigos para requisitá-la aos
planos superiores, como os teve a sua querida Evelina!... Por amor de Evelina, que você
guarda na memória, à feição de um gênio tutelar, não quererá você sublimar atitudes,
principiando pelo perdão que imploramos e carecemos?!...
– Evelina!... Evelina, minha filha!... – suspirou o desventurado em lágrimas copiosas –
não, não posso imiscuí-la em nossa conversação!... Evelina deve habitar na casa dos anjos!...
Que eu padeça no inferno, acalentado por mim mesmo, que eu me debata no lameiro que
mereci, mas que a felicidade abençoe minha filha nos Céus!...
– E se ela própria vier, um dia, ao seu encontro para advogar nossa causa, amparar-nos,
rogar a sua misericórdia de credor para nós outros, os seus devedores?
Desidério esforçava-se para falar, rompendo a barreira de dor que lhe comburia o
âmago da alma; no entanto, compassivo assistente espiritual da instituição veio até aos dois
para notificar-lhes o inesperado. Finda a crise violenta de angústia, caíra Elisa em funda
prostração, ante a ruptura de delicado vaso cerebral, prenunciando-se-lhe a desencarnação
para breves horas.
Esqueceram-se ambos, para o socorro preciso.
Através de telefonemas à pressa, Vera e Serpa, alarmados, cientificaram-se quanto ao
novo rumo que se imprimira à situação e, juntos, demandaram o estabelecimento,
encontrando Elisa agonizante, em ambiente de tranquilidade e carinho.
O médico amigo, não obstante expender argumentos de consolo e esperança, foi claro
no aviso: “Nada mais a fazer, senão aguardar.”
Vera Celina, em soluços, ajoelhou aos pés daquela cuja boca não mais se abriria para
abençoá-la com os recursos do corpo terrestre.
Caio, evidentemente contrafeito, contemplava a cena, fumando cigarros sucessivos.
Enfermeiras iam e vinham, no afã de se fazerem mais úteis, e auxiliares espirituais
formavam cadeias magnéticas de apoio à viúva Fantini, a fim de que o trânsito de um
mundo para outro lhe fosse mais rápido e menos intranquilo.
Ernesto demandou a residência da Espiritualidade, a fim de colher as instruções de
Ribas, diante da emergência, e Desidério se plantou à cabeceira, imerso em revolta e
desesperação.
Durante oito horas consecutivas, o coração ainda sustentou o corpo tombado inerte.
Sobrevindo a madrugada, Elisa abriu as pálpebras, desmesuradamente, e tentou fixar
os olhos na filha para endereçar-lhe a inexpressável despedida; no entanto, descortinou a
presença de Serpa, que a fitava, rente ao leito, e, não obstante incapaz de nutrir quaisquer
resquícios de ódio no âmago da alma, cerrou o coração em densa nuvem de mágoa, pedindo
mentalmente a Desidério que a resguardasse e defendesse. Bastou essa deliberação
irrefletida e, qual se lhe agarrasse, ávido, os pensamentos que lhe seriam os derradeiros, no
envoltório carnal, o acompanhante colou-se a ela, dando a ideia de quem lhe sorvia todas as
forças...
Vera pressentiu que a genitora se rendia, por fim, ao grande repouso e, ansiosa,
procurou debalde reanimar-lhe a vida orgânica, suplicando:
– Mãe! Mãe!... Minha Mãe!...
Da boca hirta, contudo, não surgiu qualquer resposta.
Elisa Fantini pendeu a cabeça nos travesseiros, enquanto o corpo se lhe imobilizava
para sempre.
Na enfermaria do sanatório, caía o pano da morte sobre aquela existência, fértil de
tribulações e problemas, na ribalta do mundo; todavia, por trás dos bastidores, na esfera
espiritual, o drama não terminara. Jungido à morta pela força dos últimos desejos que ela
mesma enunciara, Desidério, inflamado em labaredas de ódio, retivera-lhe uma das mãos na
destra rude, impedindo-lhe a retirada... Elisa, embora semi-inconsciente, percebeu que se
achava presa a ele e algemada ao cadáver, ouvindo o desventurado companheiro a repisar e
repisar que jamais a deixaria...

***

Irmãos da Terra, em meio às vicissitudes da experiência humana, aprendei a tolerar e


perdoar!... Por mais se vos fira ou calunie, injurie ou amaldiçoe, olvidai o mal, fazendo o
bem!... Vós que tivestes a confiança traída ou o espírito dilacerado nas armadilhas da
sombra, acendei a luz do amor onde estiverdes!... Companheiros que fostes vilipendiados ou
insultados em vossas intenções mais sublimes, apagai as ofensas recebidas e bendizei os
ultrajes que vos burilam o coração para a vida maior!... Irmãs que padecestes indescritíveis
agravos na própria carne, desprezadas pelos carrascos risonhos que vos enlouqueceram de
angústia, depois de vos acenarem com mentirosas promessas, abençoai aqueles que vos
destruíram os sonhos!... Mães solteiras que fostes banidas do lar e batidas até a queda na
prostituição, por haverdes tido suficiente coragem de não assassinar no próprio ventre os
filhos de vossa desventura, com a insânia do aborto provocado, mães agoniadas às quais
tantas vezes se nega até mesmo o direito de defesa, conferido aos nossos irmãos criminosos
nas cadeias públicas, perdoai os vossos algozes!... Pais que trazeis nos ombros escalavrados
de sofrimento a carga dolorosa dos filhos ingratos, filhos que aguentais na carne e na alma o
despotismo e a brutalidade de pais insensíveis e cônjuges flechados entre as paredes
domésticas pelos estiletes da incompreensão e da crueldade, absolvei-vos uns aos outros!...
Obsidiados de todos os climas, tecei véus de piedade e esperança sobre os seres infelizes,
encarnados ou desencarnados, que vos torturam as horas! Criaturas prejudicadas ou
perseguidas de todos os recantos do mundo, perdoai a quantos se fizeram instrumentos de
vossas aflições e de vossas lágrimas!... Quando sentirdes a tentação de revidar, lembrai-vos
daquele que nos concitou a “amar os inimigos” e a “orar pelos que nos perseguem e
caluniam”! Recordai o Cristo de Deus, preferindo ser condenado, a condenar, porque, em
verdade, quantos praticam o mal não sabem o que fazem!... Convencei-vos de que as leis da
morte não excetuam ninguém e não vos esqueçais de que, no dia do vosso grande adeus aos
que ficarem na estância das provas, somente pela bênção da paz e do amor na consciência
tranquila é que podereis alcançar a suspirada libertação!...
24
Evelina em ação
Antes que o Sol reaparecesse, Ernesto, Evelina e alguns amigos do Instituto de Proteção
Espiritual – dentre os quais se destacava o Irmão Plotino que, a pedido do Instrutor Ribas,
chefiava a diminuta caravana socorrista – abordaram São Paulo, no intuito de cooperarem
com os assistentes espirituais, empenhados na libertação de Elisa, encerrada na prisão dos
próprios restos.
Informados de que a filha determinara a remoção da morta para casa, demandaram
Vila Mariana.
Evelina trazia o coração ensôfrego. Veria o pai pela primeira vez. Acariciava na
memória a imagem dele, colhida em retratos de família. Ansiava compreendê-lo, ampará-lo.
Ernesto encorajava-a.
Quase no limiar da residência, Plotino recomendou parada à equipe e comunicou que,
primeiramente, ganharia o interior, desacompanhado, de maneira a efetuar ligeira inspeção,
examinando o serviço a fazer.
Sob as atenções da filha que se apoiava em Serpa e em alguns amigos da vizinhança,
tanto quanto guardada pela vigilância de vários benfeitores espirituais, Elisa, semidesperta,
jazia no impasse. Agarrada por Desidério por uma das mãos e alentada pelas forças dele,
que lhe invadiam a alma, parecia comprazer-se com a estranha hipnose.
Às primeiras inquirições de Plotino, o piedoso enfermeiro desencarnado que se
encarregaria do apoio magnético para exonerar a viúva dos despojos a que se imanizara,
confessou o receio de que se via acometido; se constrangesse a senhora Fantini a largar o
carro físico inutilizado, não lograria violentar-lhe o pensamento perfeitamente lúcido.
Forçar-lhe-ia a retirada, mas não dispunha de meios para isolá-la mentalmente do
acompanhante rebelde, a cujo patrocínio ela mesma se confiara.
Imprescindível a intervenção de alguém com suficiente poder de persuasão para
compelir Desidério a mudar de atitude.
Irmão Plotino abeirou-se dele com delicadeza fraternal e suplicou-lhe o concurso para
que Elisa fosse liberada e conduzida a mansões de refazimento.
Acomodado ao pé da morta, o interpelado se achegou ainda mais para ela e
simplesmente rugiu em voz selvagem:
– Palhaços!... Não me tirarão daqui... Que querem nesta casa? Ela é minha mulher...
Ninguém me demoverá com petitórios e ladainhas. Tenho experiência! Conheço os que não
se separam nas furnas tenebrosas que recebemos por moradias... Ninguém, mas
efetivamente ninguém, me arrancará desta sala!...
– Alguém fará isso, irmão Desidério – enunciou Plotino sem alterar-se.
– Quem?... Diga quem!...
O emissário sorriu paciente e murmurou apenas:
– Deus.
O inconformado amigo trovejou blasfêmia terrível e Plotino voltou sobre os passos
percorridos, pondo-se ao encontro dos companheiros. Explicou-lhes o que se passava e
imaginou as providências cabíveis. Aquele era o momento para a intervenção pessoal de
Evelina. Todo o grupo persistiria em oração, a fim de apoiá-la, porquanto a companheira
deveria entrar a sós, no refúgio doméstico, de modo a tentar a renovação do pai, que,
decerto, não hesitaria em obedecer-lhe.
Viu-se, para logo, o prodígio dos pensamentos congregados em um só objetivo.
Sem qualquer indução à teatralidade, mas sim fundidos no só intuito, profundo e
sincero, de projetar as energias do amor na obra socorrista, aqueles corações em prece
lançaram vasto lençol de safirina luz sobre a porta de entrada, credenciando a companheira
para a abençoada missão que se lhe delegara. Espiritualmente ligada aos amigos que se lhe
haviam metamorfoseado em base de equilíbrio e sustentação, Evelina penetrou o recinto,
qual se fora uma estrela repentinamente transfigurada em mulher.
Desidério, aterrado, fixou a aparição e caiu de joelhos!... Era ela, sim – pensou –, a sua
filha, a sua amada filha que jamais lhe escapara da lembrança, mesmo quando se
mergulhara em aventuras nas trevas mais densas!...
À medida que Evelina o fitava, entremostrando radiante e doce ternura, o infortunado
genitor contemplou-se no suave clarão que a mensageira irradiava... Viu-se na penúria de
um sentenciado que persistisse, por anos e anos, no fundo de um cárcere, sem o menor
cuidado para consigo mesmo. Qualificou-se por monstro, à frente de um anjo, e, à maneira
de um cão batido e aviltado, intentou arrastar-se para fugir...
A moça adivinhou-lhe o propósito e falou, simples:
– Meu pai!...
Desidério sentiu que aquela voz lhe alcançava as entranhas... Sim, aquelas duas
palavras lhe vinham daquela alma querida que ele julgara nunca descesse do Céu para
interpelá-lo... Tornando a fletir os joelhos trêmulos, o assombro se lhe rebentou no peito,
numa explosão de lágrimas:
– Pois é você, minha filha, é você a quem Deus manda para me pedir o impossível?
Evelina abeirou-se dele, colocou-lhe a destra na fronte padecente, e o diálogo
prosseguiu.
– Meu pai, decerto que Deus abençoa esta hora de reencontro, mas somos nós mesmos,
o senhor e eu, os promotores, não do impossível, mas de nossa reaproximação, em nome
dele mesmo, nosso Criador e Pai de Misericórdia...
– Que quer você de mim?!...
– Venho convidá-lo a estar comigo... Admitiria o senhor que o tempo desaparecesse,
sem que eu sonhasse com este momento? Atravessei a infância e a juventude, namorando
seus retratos, casei-me, um dia, na Terra, rogando a sua bênção nas minhas orações e,
quando os desígnios divinos me retiraram do corpo físico, formei o ideal de reecontrá-lo!...
O infortunado esboçou um gesto de autocompaixão, e gemeu:
– Veja, minha filha, o que fizeram de mim, os criminosos que nos destruíram...
– Oh! Meu pai, não acuse!... O senhor terá sofrido, mas a dor é sempre bendita perante
Deus, o senhor terá suportado provas difíceis; no entanto, aprendemos, presentemente, que
todo dia é ocasião de renovar e partir para destinos mais altos!...
– Com certeza, nas moradas divinas, que você mereceu, ficou sabendo que não perdi
meu corpo em acidente algum...
– Sim, conheço hoje toda a verdade a nosso respeito...
– Não pode, então, ignorar que os meus verdugos são igualmente os seus, nós dois
fomos esbulhados pelos mesmos bandidos!... Se no Céu não existe memória para o mal, é
preciso recordar a você que Amâncio Terra, o celerado que se arvorou em seu padrasto...
Porque os soluços o compelissem a compridas reticências, Evelina aclarou com
humildade:
– O senhor não se agastará comigo se disser que ele me quis bem e me respeitou
sempre como sua própria filha... Se é inegável que cometeu falta grave para com o senhor,
diante das Leis divinas, creio que o arrependimento que ele carrega, há mais de vinte anos,
fala pela regeneração que fez dele um homem de bem...
– Você não pode esquecer que ele exilou você de casa, ainda em tenra idade...
– Enviou-me para a escola, meu pai. Deu-me disciplinas que me livraram de tentações,
nas quais eu teria sucumbido em muitos erros, durante a permanência no mundo; nunca me
regateou assistência e nem me contrariou os impulsos para o matrimônio; em minha
meninice, encorajava-me nos estudos, interessava-se por minhas notas, premiava a minha
boa vontade com brindes e carinhos que somente o senhor me poderia dar... É verdade que
meu padrasto nunca substituiu o senhor em meu coração, meu pai, mas sua filha não deve
ser ingrata a quem lhe deu tanto!... Em casa, foi sempre um protetor de nossa felicidade...
Nunca lhe vi o mínimo gesto de desconsideração para com minha mãe...
– Ah! Não me fale de Brígida, aquela infame!...
– Oh! Pai de meu coração, por que condenar aquela que nos uniu? Que conseguiria
fazer minha mãe ainda tão moça, a carregar-me nos braços, não fosse o apoio de um
companheiro? Aceitando a colaboração de Amâncio, ela não acolhia deliberadamente o
desditoso caçador que lhe impusera a desencarnação, mas sim o amigo que o senhor
mesmo, um dia, levou para a nossa casa, segundo as confidências de mãezinha, em suas
horas de saudade e desolação... Saiba que minha mãe sempre me ensinou a reverenciar a
sua memória e a enobrecer o seu nome...
Ante a compreensão superior que a filha punha em evidência, Desidério chorava com
mais força, em suas manifestações de autopiedade, dando a impressão de quem se
propunha buscar, de qualquer modo, novas razões para ser infeliz.
– Você talvez não desconheça que me acho aqui, ao pé da família de outro inimigo que
não posso exculpar, Ernesto Fantini, o traidor que intentou matar-me dando a seu padrasto
o figurino pelo qual me aniquilou... Esta mulher cadaverizada, mas viva em minhas mãos, foi
a esposa dele, pela qual, consumido de ciúmes, pretendeu ele assassinar-me, nada fazendo
com isso, senão aproximar-me dela, já que o comportamento de Brígida me bania do lar...
Pense no doloroso destino de seu pai!... Expulso de minha casa, depois da morte do corpo, à
face da influência de um perseguidor, tive de asilar-me em casa de outro, porque no
pensamento da companheira, hoje morta para o mundo, encontrava o meu sustento!...
– Quem penetrará os desígnios de Deus, meu pai? Não estaremos todos numa rede de
testemunhos de amor, em vista de faltas e compromissos nas existências passadas? Peço à
Providência divina abençoe nossa irmã Elisa e a recompense pelo bem que nos tem feito...
Quanto a Ernesto Fantini, a quem o senhor se refere, é forçoso lhe diga que ele tem sido
para sua filha um devotado amigo na vida espiritual... Muito antes de saber-me vinculada ao
seu coração, rodeava-me de cuidados, restaurando-me as energias. Em todos os lances da
estrada nova, vem sendo para mim um apoio, um irmão...
– Você, querida filha, terá adquirido a visão dos anjos para enxergar benfeitores nesses
canalhas, mas eu não consigo reconhecer as criaturas humanas com retinas celestes. Sou um
homem, simplesmente um homem infeliz!... Apesar de tudo, não acredito que você possa
guardar a mesma benevolência para com aquele que lhe foi carrasco, entre as paredes
domésticas, este criminoso foragido do cárcere, que se apresenta mascarado, aqui mesmo,
diante de nós... Caio Serpa...
– Que diz, meu pai ?
E Evelina fez a voz mais compassiva:
– Caio foi para mim um guia generoso, auxiliando-me a entender a vida com mais
segurança... Nos dias da mocidade, propiciou-me sonhos de ventura que me ajudaram a
viver... Com ele imaginei o paraíso na Terra... E, se na condição de esposo esperou de mim a
felicidade que não lhe pude dar, será isso motivo para que venhamos a condená-lo?
Indiscutivelmente, assumiu compromisso para com Mancini que, decerto, resgatará em
momento justo; entretanto, por que desprezar os que se fazem objeto de nosso amor,
quando nos certificamos de que não são tão felizes quanto supúnhamos? Admite o senhor
que os nossos irmãos delinquentes não são enfermos, carecedores de atenção? Por que não
manifestar piedade, à frente das vítimas da loucura, qual o fazemos diante dos acidentados
nos desastres que lhes furtam a existência? Serão os mutilados de espírito diferentes dos
mutilados do corpo?
Os lamentos do genitor inconformado se patentearam mais tristes:
– Ai de mim, que não sei perdoar!... O carro da vida me esmaga por farrapo inútil!...
– Meu pai, não lhe ocorre que todos somos filhos de Deus, dependentes uns dos outros?
– Não posso!... Não posso compreender como devo abraçar os que me espancam!...
– Não deseja caminhar adiante? Ser livre e feliz?
– Oh! sim!...
– Então, olvide todo mal. Nunca refletiu no poder do tempo? O tempo nos auxilia a
descobrir a fonte do amor que nos lava todas as culpas...
– O tempo, filha? Para os Espíritos de minha espécie, o relógio é máquina de
enlouquecer... Anteontem, ontem e hoje padeço por abominar três lobos, Amâncio, Ernesto
e Serpa, e sofro para defender três ovelhas, Elisa, você e Vera, já que arredei Brígida para
longe de mim!... Você não ignora que Vera se deixou magnetizar pelo tratante que foi seu
marido!...
– Piedade, meu pai!... Pensemos em Vera e Caio com os melhores sentimentos de que
sejamos capazes!... Reflitamos no futuro... Amanhã, ser-nos-ão eles preciosos amigos,
devotados protetores!...
– Você apenas enxerga o bem, eu vejo o mal que vence o bem...
– Não é isso. O senhor se julga perfeitamente são de espírito, quando, na realidade,
como acontece ainda comigo, precisa de assistência e reajuste. Eu também, meu pai, de
princípio, admiti-me espoliada pela vida!... Aceitava mãezinha e meu padrasto, em muitas
ocasiões, por adversários que me haviam desterrado propositadamente de casa, para que
eu não lhes estorvasse a felicidade, mas na estância de recuperação a que me conduziram,
por misericórdia de Deus, passei a abraçá-los por nossos reais amigos, de quem recebi todo
o amparo que me foi possível assimilar... Até nos dias últimos, quando reencontrei Caio mais
fortemente encadeado a Vera Celina, esbati-me em mágoas arrasadoras, interpretando
aquele que me foi o esposo terrestre por modelo acabado de ingratidão, ao mesmo tempo
em que censurava Celina, por intrusa e ladra de meu tesouro afetivo; entretanto, o orvalho
da bondade infinita de Deus visitou a ressequida plantação de meus sentimentos pobres,
através das lições de instrutores abnegados – médicos e enfermeiros da compaixão divina –,
e reequilibrei-me, concluindo que Caio e Vera são nossos irmãos da alma... Eles são como
são, enquanto que somos como somos e Deus espera que nos amemos, assim como nos
permite ser!... Indispensável, meu pai, entender-nos, ajudar-nos reciprocamente e caminhar
adiante!... Caminhar sempre, resgatando os compromissos de ontem para que o amanhã seja
melhor... O Todo-Misericordioso semeou flores e bênçãos em todos os sítios da estrada a
perlustrar... Compreender é buscar a frente, auxiliar os outros será garantir-nos! O amor
não falha e Deus nos criou para o amor sem lindes!...
Desidério chorava, impossibilitado de emitir qualquer observação.
E Evelina:
– Analise com o seu próprio raciocínio. Naturalmente que o nosso Irmão Ernesto, não
obstante os conflitos íntimos que o afastavam espiritualmente do lar, consagra à nossa Elisa
a afeição do homem de bem, e, por isso mesmo, com o discernimento que hoje possui, ter-
lhe-á entregue, de todo o coração, o título de companheiro que tem sido e será para ela,
perante Deus. Por que não deveremos, de nosso lado, conferir a Caio o direito de dar-se a
Vera, conquistando a felicidade que lhe não pude proporcionar, nem mesmo quando me
achava no mundo físico?
– Ah! querida filha – alarmou-se o genitor –, semelhante renúncia não significará
destruir-nos em suicídio moral?
– Não, meu pai. O amor verdadeiro eleva-se de nível... Hoje entendo que as afeições
transviadas podem ser corrigidas no santo instituto da família, através da reencarnação...
Deus nos permite abraçar, como filhos, aquelas mesmas criaturas que não soubemos amar
em outras posições sentimentais!... Os nossos pensamentos de ternura, uns para os outros,
um dia serão livres e puros, quais as fontes cristalinas que se irmanam no chão empedrado
do planeta ou como as irradiações dos astros, que se enlaçam sem perder grandeza e
originalidade, nas imensas vias do Céu...
Depois de longa pausa, seguida pelo silencioso respeito dos amigos desencarnados, ali
presentes:
– Se nuvens de mágoa lhe anuviam ainda o coração, lance-as fora e sigamos para a
frente, aspirando à paz!... Por agora, deixe que a nossa Elisa se distancie de quaisquer
lembranças desagradáveis! Liberte-a e verá que a mulher escolhida lhe pertencerá com
mais força!... Ajude-a para a ascensão a novos caminhos e ela voltará ao seu encontro!... Não
enclausure na masmorra de carne putrescível aquela que lhe merece a mais sagrada
dedicação! Elisa ser-lhe-á grata e, de nossa parte, prometemos solenemente ao senhor,
perante a infinita misericórdia de Deus, que a reverá, em nossa própria moradia, onde se
prepararão ambos, com o nosso carinho, para uma nova existência juntos, novamente
juntos e mais felizes!... Aceite meus rogos, pai querido!...
– Não, não!... – trovejou ele, em mais violenta crise de desespero – sou um réprobo, não
posso fingir!...
Viu-se, então, o ponto mais alto e mais enternecedor do reencontro.
De mãos pousadas na cabeça do genitor, Evelina lançou os olhos para o Alto e exorou:
– Oh! Deus de Bondade!... Meu pai e eu somos dois remanescentes ainda unidos de
grande família espiritual, presentemente dispersa!... Concede, ó Todo-Misericordioso, se é
de tua vontade, que perseveremos em sintonia, no mesmo anseio de redenção!...
A voz, porém, esmorecera-lhe na garganta, asfixiada de dor, e, ao inclinar-se para a
fronte paterna, as lágrimas que lhe perolavam a face, quais gotas de bálsamo divino, se
precipitaram sobre o desventurado amigo, transfigurando-lhe o coração.
Tangido por energias recônditas, Desidério desferiu doloroso gemido e largou, de
imediato, a mão da morta... Abraçando os pés da filha, bradou com veemência:
– Ah! Evelina, Evelina!... Minha filha, minha filha, leve-me para onde quiser!... Confio em
você!... Apague a fogueira de meu espírito que tem sabido tão somente odiar!... Socorro, meu
Deus!... Socorro, meu Deus!...
A moça, suplementada de força pelos companheiros que oravam, reergueu-o
facilmente, como se tomasse de encontro ao peito uma criança abatida.
Acorreram enfermeiros desencarnados, desentranhando Elisa do corpo inerte, a
lembrarem uma equipe de técnicos que operassem, rapidamente, para retirá-la de um
vestido imprestável, e o irmão Plotino, seguido pelos colaboradores, entrou em ação,
acomodando Desidério, semi-inconsciente, na ambulância que o transportaria para o novo
domicílio espiritual.
***

Alguém acompanhara discretamente conosco todo o diálogo. Era o Instrutor Ribas que
viera, de surpresa, ao lar de Vila Mariana, a fim de encorajar, em prece, a pupila do Instituto
de Proteção Espiritual, no testemunho inesquecível... Assim que a viu, ajudando a carregar o
genitor, em sublimada metamorfose, o venerado orientador, talvez rememorando
acontecimentos de sua própria vida, afastou-se, em silêncio, com os olhos marejados de
pranto que não chegava a se desprender das pálpebras molhadas.
Quanto a nós, de novo em plena rua, limitamo-nos pessoalmente a contemplar o
firmamento, onde a aurora purpúrea, anunciando perpétua renovação, nos sugeria louvar a
ilimitada Misericórdia de Deus... E oramos, sem conseguir articular palavra.
25
Nova diretriz
Após internarem Desidério e Elisa em organização hospitalar, sob assistência afetuosa,
Ernesto e Evelina retornaram, na tarde do mesmo dia, a São Paulo, desejosos que se
achavam de consultar a posição íntima de Vera, ante a nova situação. Esclarecidos quanto
ao futuro, em que a presença e a colaboração dela lhes seriam sobremaneira importantes à
própria tranquilidade, identificavam-se no dever de ampará-la com mais calor de ternura.
A rendição de Desidério aos ideais renovadores que alentavam era igualmente um
ponto fundamental no programa de trabalho a cumprir-se e esperavam reajustar as atitudes
de Caio para que se lhes assegurasse mais ampla área de ação.
Encontraram Vera Celina marcada de lágrimas, apoiando-se em parentes e amigos.
Caio, taciturno, orientava o leme doméstico, dava ordens.
Estabelecido o cortejo fúnebre, os dois visitantes desencarnados, além de outros
muitos amigos da espiritualidade maior, se instalaram no carro familiar, junto de Vera;
entretanto, na chegada ao campo-santo, Ernesto escorou a filha, ao mesmo tempo que
Evelina seguiu o ex-esposo, que se figurava distrair-se em quadra próxima àquela em que os
restos da viúva Fantini descansariam.
Serpa fugia, intencionalmente. Não queria ver a inumação.
Colhido em cheio pela influência da companheira que ele, antes, pouco mais de dois
anos, levara ao sepulcro, pensava nela e, sem querer, lhe via mentalmente o semblante na
tela da memória.
Não longe dele, Vera chorava nos braços dos amigos, enquanto ele mesmo,
sorumbático, refletia, refletia...
Lembrava-se de quando deixara a mulher morta em outro cemitério, o da Quarta
Parada7, rememorava-lhe a partida, revisava na imaginação os incidentes havidos...
Era crepúsculo, qual ocorria ali, em Vila Mariana. E as mesmas inquirições lhe vinham à
cabeça...
A vida terminaria em montões de pedra e cinza? Para onde se transfeririam os mortos,
na hipótese de continuação da existência? Onde estariam os pais que ele vira partir, nos dias
da juventude? Em que região andaria Evelina, a esposa que amara, desmedidamente, na
primeira mocidade, e de quem a enfermidade e a morte o haviam separado? Recordando-a,
sentiu-se ligado a outra penosa reminiscência: Túlio Mancini... O coração se lhe arrochava e
passou a indagar de si mesmo por que motivo se confiara à loucura de assassinar
estupidamente o colega... O delito aflorou-lhe à memória com todas as minudências...

7 Nota do Autor espiritual: Cemitério da capital paulista.


Propôs-se alijar as reflexões que lhe assomavam ao cérebro; no entanto, sentia-se
incompreensivelmente fisgado ao pretérito.
Não podia perceber que Evelina, em Espírito, ali estava, rente a ele, diligenciando
acordá-lo para a verdade.
– Caio, que fazes da vida? – ela perguntou, docemente.
O advogado não registrou a indagação com os tímpanos corpóreos, mas ouviu-a na
acústica da alma e julgou monologar: “Caio, que fazes da vida?!” Repetiu,
inconscientemente, as palavras da companheira desencarnada, no ádito da própria
consciência, e passou a considerar que o tempo fugia sem que se desse conta de si mesmo...
Em que valores permutara o patrimônio das horas? Em que recursos convertia a saúde e o
dinheiro? Que bênçãos já teria espalhado com o título acadêmico que ostentava? Na
condição de amigo, exterminara um companheiro, na posição de esposo, não tivera coragem
de ser bom para a mulher, quando sitiada pela doença!...
O olhar se lhe esbarrou, sem querer, no ritual do sepultamento de Elisa e inquiriu, de si
mesmo, o que teria representado para a morta... Sinceramente, não se sentia bem consigo
próprio, realinhando na imaginação a impaciência e a dureza com que sempre a tratara,
preocupado em arrebatar-lhe a ternura da filha...
Avaliando as péssimas notas que a consciência lhe conferia no educandário da
existência, embora de longe, fixou Vera, a esquadrinhar-lhe o íntimo, através do semblante.
– Caio – assoprou-lhe Evelina aos ouvidos da alma –, pense nos teus compromissos... É
tempo de legalizar a situação da jovem que se entregou a ti sem qualquer restrição...
Convencido de que conversava de si para consigo, Serpa reproduziu a interpelação, no
campo mental, em silêncio, sem perceber que a esposa desencarnada lhe colhia as
respostas. Supondo desenvolver tão somente um processo de autocrítica, monologou sem
palavras: “Legalizar a situação com Vera? Casar-me? Por quê?”.
Sim, aprovava, prometera-lhe matrimônio, mas não se resignava a aceitar a medida
sem maior observação. Já fora homem preso a obrigações de marido e não se propunha a
retomar afeição recheada a constrangimentos. Além disso, matutava, dava-se por homem
robustecido na experiência do mundo. Escutara em sociedade muitas referências
desprimorosas, ao redor da filha de Elisa, que não a recomendavam para esposa. De rapazes
diversos, obtivera apontamentos que lhe enodoavam a ficha de mulher. Por que entregar
seu nome a uma criatura tida por inconstante?
– Caio, quem és tu para julgar?
A interrogação de Evelina percutiu na alma dele em forma de ideia fulgurante que o
enterneceu e assustou...
E qual se pensasse em voz alta, a falar espiritualmente para si próprio, recebia novas
exortações, semelhando impactos da verdade a lhe atingirem o ádito do próprio ser:
– Caio, quem és tu para julgar? Não és igualmente de ti mesmo, alguém onerado com
débitos escabrosos perante a Lei? A que título condenar sumariamente uma jovem,
prejudicada pelos enganos da sua condição de menina moralmente desamparada?!...
Na base das advertências que lhe eram endereçadas, prosseguia indagando-se... Seria
justo abusar dela, agora que se via praticamente só no mundo? Se a desprezasse, para onde
iria? E quem era ele, Caio Serpa, senão um homem no rumo da madureza, reclamando a
dedicação de alguém para que o comboio da vida se não lhe descarrilasse? Conhecia ele
toda a escala dos prazeres físicos e que lucrara finalmente com isso, se levava toda
manifestação afetiva para o terreno da irresponsabilidade e do abuso? Que recolhera senão
cansaço e desilusão das noitadas barulhentas, cheias de vozes e vazias de sentido? Até ali,
que lembrasse, nunca ajudara a ninguém. Sabia ser afável até o ponto em que as
circunstâncias não o descontentassem. Bastava, porém, um ponto, um leve ponto a
contrariá-lo, em quaisquer acontecimentos, para que se internasse nessa ou naquela
escapatória, no claro intuito de não se incomodar. Não teria chegado o momento de auxiliar
a outrem, agir a favor de alguém? De começo, empenhado à conquista, cumulara Vera de
gentilezas, carinhos. Enredara-lhe as atenções. Depois, o fastio daqueles que não mais
sabem amar, quando a chama do desejo se lhes extingue na candeia da forma. Entretanto,
não lhe era lícito negar que a moça lhe dera os mais altos testemunhos de confiança. Vera
Celina se lhe entregara, de todo. E, por fim, não vacilara humilhar a própria genitora, a fim
de colocar-lhe nas mãos todos os bens...
Serpa registrava todos os argumentos da companheira desencarnada, à feição de uma
lâmpada que se julgasse fonte da luz de que se beneficia, a ignorar que a recolhe da usina.
E opunha contraditas:
– Consorciar-me? Prender-me? Por quê? Não tenho toda a satisfação do homem casado,
sem as peias do matrimônio?
E a voz de Evelina a ressoar-lhe novamente no espírito:
– Sim, és o elemento-comando da união; entretanto, como não te garantires contra as
tentações do futuro, como não te imunizares contra as tuas próprias inclinações para a
aventura, doando a ela – o elemento-obediência – a tranquilidade de que carece para servir-
te? Acaso te julgas livre das tendências à leviandade que te assinalam o campo afetivo? Não
será recomendável lhe assegures a paz, preservando a paz de ti mesmo, pela submissão às
disciplinas justas da vida? Pensa! Imagina-te à frente de tua própria mãezinha, já que quase
todo homem procura na esposa, acima de tudo, o apoio maternal que a madureza furtou da
infância... Estimarias que um homem, na hipótese o teu próprio pai, lhe espancasse os mais
puros anseios do coração? Porventura não se tornaria ela mais digna do teu amparo e do
teu carinho, se a visses brutalizada, desamparada, esquecida por aquele mesmo a quem se
rendeu, confiante? Por que alegares sofrimentos passados para menoscabar a criatura que
amas, se semelhantes provações fazem dela alguém com mais acentuada necessidade de tua
proteção e entendimento?!...
Das admoestações propriamente consideradas, a ex-senhora Serpa se transferiu para
reflexões de otimismo e esperança:
– Caio, medita!... Vera não te confiou parcos recursos materiais à administração!
Dispões de patrimônio apreciável para organizar uma família... Pondera quanto às bênçãos
do futuro! Escuta! Creias ou não em Deus e na sobrevivência do espírito, além da morte,
carregas contigo um doloroso problema, até agora inarredável da mente: o remorso pelo
homicídio praticado, a lembrança de Túlio Mancini, abatido por tuas mãos! Escapas, no
rumo de prazeres que não te diminuem a mágoa, e tentas, em vão, bloquear reminiscências
amargas que te assediam constantemente... Ser pai, cuidar de filhos queridos, não te será na
Terra a mais elevada compensação? O matrimônio com Vera te investirá legalmente na
posse de recursos a serem valorizados e aumentados, garantindo, aos filhinhos vindouros,
segurança e conforto, alegria e educação!... Um lar, Caio!... Um lar, onde possas descansar,
renovar-te, esquecer!... Filhos em que te revejas e o convívio de Vera, cuja presença te
lembrará o refúgio maternal!...
Diante daquelas santas evocações de paz e ventura que jamais experimentara, pela
primeira vez, depois de muitos anos, Serpa chorou...
Evelina continuava:
– Sim, Caio, lava o coração na corrente das lágrimas!... Chora de esperança, de júbilo!
Confiemos em Deus e na vida!... O Sol que hoje se põe, voltará amanhã! Contempla estas
lousas, fita os sepulcros à frente! De todos os lados, explodem verdura e flor, a dizerem que
a morte é ilusão, que a vida triunfa, bela e eterna!... De um outro mundo, os que te amam
regozijar-se-ão com os teus gestos de entendimento! Túlio te perdoará, Elisa há de
abençoar-te!... Coragem, coragem!...
O causídico, surpreso, incapaz de identificar-se visitado pelo espírito da companheira
de outros tempos, reconhecia-se subitamente consolado e eufórico, tangido por suave
renovação, nos recônditos do ser.
À maneira de um doente que encontrara o remédio providencial e a ele se agarrasse, na
sede da própria cura, instintivamente decidiu-se a não perder o precioso momento de
exaltação construtiva em que entrara.
– Vamos!... – insistiu Evelina – concede agora, mas claramente agora, a nossa Vera a
certeza de que a protegerás num casamento digno!...
Sucedeu o inesperado.
Habitualmente agressivo e rebelde, Caio Serpa arrancou-se, humilde, do lugar em que
se plantara, avançou sempre abraçado pelo Espírito da ex-esposa, na direção do grupo em
que a jovem se apoiava... Ali, de pensamento conjugado ao da mensageira espiritual,
observou a moça sob novo prisma. Pareceu-lhe que começava a amá-la de maneira diversa.
Viu-a mais cativante na dor que demonstrava, percebeu-lhe a solidão e a sede justa de
companhia. Às súbitas, reconheceu-se também só, a requisitar-lhe mais intensivamente a
dedicação e o carinho para viver.
Já não sabia, naquele inolvidável instante, se a queria com a impertinência de um
homem ou com a ternura de um pai...
Abordando-a, tomou-lhe o braço, de leve, e comunicou-lhe, em voz alta, no propósito de
alicerçar a própria declaração com o testemunho dos amigos presentes:
– Vera, não chore mais... Você não está sozinha! Amanhã mesmo, cogitaremos de
organizar a documentação precisa para casar-nos tão breve quanto possível!...
A interpelada lançou-lhe um olhar significativo e agradecido... E enquanto ambos se
escoravam um no outro para o retorno a casa, Evelina e Ernesto, com os amigos
desencarnados atentos às derradeiras homenagens à viúva Fantini, entraram em prece,
agradecendo ao Senhor a bênção daquela transformação.
Mais um passo importante estava articulado para o futuro melhor...
Caio e Vera levantariam um lar com o amparo divino. Túlio Mancini ressurgiria para a
Terra, no tronco daquele mesmo que lhe subtraíra a existência, satisfazendo a Lei do Amor
que determina sejam o ódio e a vingança para sempre banidos da obra de Deus!... Mais
tarde, Elisa se lhes reuniria por filha bem-amada!... Caio se reconfortaria e certamente seria
outro homem, ao ver-se continuado na posteridade feliz, sob o olhar carinhoso de Vera, que
o amava ardentemente...
Evelina cismava em tudo isso, incapaz de sofrear o pranto de júbilo... Continuava
amando o ex-esposo, porém, noutro nível, e, com toda a alma, agradecia ao Senhor a
existência de Vera Celina, a quem passara a reverenciar e querer bem, na condição de
protetora, cujos serviços se manteriam para ela irresgatáveis.
Em transporte de alegria, correu ao encontro dos noivos e, antes que Serpa se
aboletasse no automóvel, junto da companheira, abraçou-o, reconhecida, e, pela primeira
vez, bradou-lhe ao coração com a celeste emotividade do amor purificado a labaredas de
sofrimento:
– Caio, meu filho! Meu filho!... Sê feliz e que Deus te abençoe!...
Em seguida, inclinou-se para Vera e beijou-lhe a mão com enternecimento indescritível.
O auto rodou, de volta.
Evelina e Ernesto, por longo tempo, ainda se demoraram em oração, no tranquilo
santuário da morte, transfigurado ali para os dois em pouso de reconhecimento e alegria,
ante as primeiras estrelas que começavam a luzir na selva da noite, quais lanternas de fogo
e prata, clareando o caminho para Deus, a pleno céu azul.
26
E a vida continua...
O matrimônio de Caio e Vera trouxe a Ernesto e Evelina nova fonte de incentivo ao
trabalho.
Túlio, algo melhor ante as promessas de futura assistência por parte daquela a quem
amava tanto, concordou em matricular-se voluntariamente no Instituto de Serviço para a
Reencarnação 8 , internando-se, de pronto, num dos gabinetes de restringimento,
entregando-se aos aprestos necessários.
Antecedendo, porém, a medida, certa noite, em que Serpa se ausentara do lar, foi
levado à presença de Vera, para familiarizar-se, de algum modo, com aquela que o receberia
nos braços de mãe.
Ao vê-la na costura, em sua casa de Vila Mariana, o moço, de imediato, simpatizou com
ela. Viu-lhe o semblante meigo, os olhos serenos de criatura sofrida, as mãos ágeis na tarefa,
e respirou-lhe, encantado, o ambiente tranquilo.
Recomendou-lhe Evelina para que a abraçasse, nela venerando a protetora que o
abençoaria por filho, em nome de Deus... Mancini não apenas se confiou ao amplexo
carinhoso, como também lhe osculou a fronte, enternecidamente.
A filha de Ernesto não percebeu aquela manifestação afetiva, em sentido direto; no
entanto, por alguns momentos, deixou que o cérebro divagasse, feliz.
“Como desejava obter um filhinho!...” – pensou. – “Quanto anelava ser mãe!...”
Aguardava essa bênção do Todo-Misericordioso que, decerto, não a esqueceria!... Por outro
lado, não ignorava que o esposo ansiava acolher um herdeiro para o futuro e, por isso, nos
sonhos que entremostrava, desperta, rogava conscientemente a Deus um menino!...
À medida que as doces prefigurações da maternidade se lhe esboçavam no imo da
alma, sintonizava, mais intensamente, com Túlio, na mesma onda de esperança e regozijo,
ambos experimentando santo prelúdio de inenarráveis alegrias...
Ao separar-se dela, às despedidas, formulou ele a pergunta esperada: quem lhe seria o
genitor? A quem chamaria por pai?
Evelina, porém, deu-se pressa em explicar que o dono da casa se achava distante e que
ele, Mancini, o conheceria em momento oportuno.
Na base da verdade prometida, Túlio renasceria de Caio Serpa, absolutamente
magnetizado pelo devotamento materno, a fim de se reaproximar do antigo adversário e
metamorfosear ressentimento em amor, pela terapêutica do esquecimento.

8 Nota do Autor espiritual: Organização do Plano Espiritual.


Ante as realizações em processo, o tempo para Fantini e a companheira jazia repleto de
obrigações agradáveis e belas. Auxílio constante a Mancini, Caio e Vera, na formação do
novo porvir, e amparo infatigável a Elisa e Desidério, convenientemente hospitalizados.
Ernesto, renovado pelo sofrimento, como que remoçara, enquanto que Evelina,
modificada pelas novas experiências, parecia haver amadurecido, qual se os dois
houvessem combinado operar um reajuste da forma, com vistas à harmonização em nível
de idade semelhante de um para o outro. Comungavam as mesmas ideias, partilhavam os
mesmos serviços.
Impressionado com aquela conciliação gradativa, a surgir mecanicamente da
associação sempre mais ampla e mais íntima dos dois, na obra da própria edificação
espiritual, Ernesto procurou o Instrutor Ribas, inquirindo, respeitoso, se lhe seria cabível
conhecer o passado, sem mais delongas, reavendo a memória de outras existências, ao que o
mentor informou, sensato:
– Não, Fantini. Desaconselhável a providência, conquanto possível. Você e Evelina estão
abraçando longa empresa de serviço em nosso plano. Terão muitos problemas a resolver,
muito trabalho a realizar... Desidério, Elisa, Amâncio, Brígida, Caio, Vera, Túlio, Evelina e
você formam uma equipe de corações comprometidos uns com os outros, perante as Leis de
Deus, há muitos séculos... Todos reciprocamente enlaçados no clima da provação,
lembrando elementos químicos em cadinho fervente para o acrisolamento indispensável!...
Outros componentes do grupo chegarão com o tempo para a vitória geral sobre os alicerces
do amor que ainda vem muito ao longe!... Integramos, eu também com vocês, uma grande
família... E num sorriso amistoso:
– Somos aqui milhares de criaturas nas mesmas condições, trabalhando e batalhando
por nossa redenção, começando pelo aperfeiçoamento de nós mesmos, nos recessos do
mundo individual.
– Na Terra, não formulamos ideia do volume de obrigações que nos espera depois da
morte...
– Sem dúvida. Toda construção nobre há que ser dirigida. Primeiro, o projeto; em
seguida, a execução... No plano físico, idealiza-se a continuação da vida, no mundo
espiritual... No mundo espiritual, idealizam-se a correção, o reajuste, a melhoria e o
polimento dessa mesma vida, no plano físico. Somos viajores do berço para o túmulo e do
túmulo para o berço, renascendo na Terra e na Espiritualidade, tantas vezes quantas se
fizerem precisas, aprendendo, renovando, retificando e progredindo sempre, conforme as
Leis do Universo, até alcançarmos a perfeição, nosso destino comum...
– Isso quer dizer que, de futuro, talvez Evelina e eu venhamos a renascer, entre os
homens, daqueles mesmos Espíritos, em cuja aproximação estamos colaborando...
– Quem sabe? Isso é mais que possível, por obviamente natural...
O orientador ainda não havia articulado o esclarecimento, de todo, quando Ernesto
aventou, tímido, qual jovem que estivesse abrindo o coração, diante da autoridade paternal:
– Instrutor Ribas, Evelina e eu temos refletido, refletido...
Fantini, receoso, não conseguiu terminar o enunciado. Foi o próprio Ribas que lhe
completou a exposição, carregando as palavras de bom humor:
– Já sabemos, Fantini, vocês dois pensam num casamento compreensível e digno,
conscientes agora da imensa obra de transformação e burilamento que estarão dirigindo,
por muito tempo, no grupo espiritual a que se vinculam.
– O senhor vê algum impedimento?
– Absolutamente nenhum, uma vez que, tanto Elisa quanto Caio já dispensaram vocês
de qualquer compromisso afetivo...
Fantini, acanhado, se dispunha a prosseguir, mas um auxiliar do Instituto veio chamá-
lo, com urgência, para custodiar Evelina, de viagem para a esfera física, em ação de
assistência a Vera, já em avançado processo de gravidez.
Despedindo-se, o mentor afirmou-lhe, satisfeito:
– Esteja tranquilo, Ernesto. Pensaremos no assunto.
Os dias de Fantini e da companheira rodavam em plenitude de serviço. Pouco a pouco,
percebiam quantos deveres precisavam aceitar para assegurarem um renascimento
relativamente tranquilo a um Espírito enfermo, qual Mancini, que requisitava cuidado
incessante, para que o aborto não repontasse em prejuízo geral. Observavam que em
milhares de outros casos não cabiam preocupações assim tantas. Entidades acomodadas ao
mundo carnal ajustavam-se ao processo reencarnatório, com a simplicidade da mão,
quando se adapta a uma luva. Noutras situações, as criaturas de regresso à esfera física,
dispunham de tanta elevação que a presença delas, só por si, não apenas estabelecia
distância aos Espíritos infelizes, como também bastava para propiciar sossego à mente
materna... Túlio, porém, não estava entre aquelas criaturas que tão somente tocam, de leve,
as forças do espírito para se refestelarem, de modo quase que absoluto, nos prazeres e
mecanismos do mundo físico, e nem alcançara, ainda, a condição daquelas outras que
simplesmente tocam na matéria grosseira tão só buscando energia para se sustentarem,
acima de tudo, nas tarefas e operações do mundo espiritual. Nem pisava o início do monte
de elevação, nem lhe atingira os degraus mais altos. Era um homem de cultura e virtude
medianas, com aguçada sensibilidade à mostra, em função de sua própria necessidade de
burilamento, à vista de débitos contraídos em outras existências.
Quaisquer choques no ambiente materno induziam-no à irritabilidade e quaisquer
dificuldades pequeninas impediam-no a indisposições lamentáveis.
Certamente que se demorava em sono terapêutico no laborioso tratamento para a volta
criteriosamente vigiada ao campo terrestre, a que na arena dos homens se dá sumariamente
o nome de gravidez, como se gravidez, em definição tão rápida e simplista, fosse
acontecimento insignificante e igual para todos os reencarnandos, com repercussões
análogas para as mães que os hospedam; importa reconhecer, porém, que o sono
terapêutico do Espírito, conjugado ao desenvolvimento fetal, se caracteriza por graus
diversos e, por isso, nem sempre raia pela inconsciência total.
Empreendimentos e obrigações se avolumaram, a benefício de Mancini, até o dia em
que lhe ouviram os primeiros vagidos no berço, entre êxtase de Vera e a emoção de Caio,
maravilhados com o filhinho...
Túlio varara a grande barreira entre os dois mundos e, daí em diante, reclamaria
cuidados de outro tipo.
Reconfortados e felizes com a execução gradual do programa estabelecido, Fantini e a
companheira se acharam de espírito voltado para questão que se lhes impunha, de
imediato: o retorno de Desidério à experiência carnal.
Era necessário instalá-lo no sul paulista, em casa de Amâncio, segundo o esquema do
Instituto.
Os dois amigos passaram às entrevistas preparatórias. Proposições e debates.
Desidério dos Santos pedia, exigia, queixava-se... E, no fundo, não se lhe podia dar, de
pronto, a extensão total da verdade, quanto ao porvir próximo, para que não a desacatasse
com dúvidas injustificáveis ou desconsiderações prematuras. Cabia-lhe saber que era
forçoso retomar o corpo terrestre e prometia-se-lhe a ida de Elisa, algum tempo depois dele,
a fim de que se reencontrassem no domicílio dos homens, mas, no roteiro traçado, se lhe
proibia a antecipação de informes, acerca do refúgio doméstico em que se lhe outorgaria a
nova oportunidade. Merecia a bênção da reencarnação; contudo, não lhe era lícito complicar
ou desprimorar as situações, em que as autoridades do plano superior, sempre sábias e
generosas, lhe assegurariam a concessão. Competia-lhe, sobretudo, defrontar-se com
Amâncio e Brígida, tanto quanto os dois, já amadurecidos nas lides humanas, deveriam
arrostá-lo em casa, para adquirirem a luz do amor recíproco, em regime de esquecimento
do passado, de maneira a consolidarem os méritos que já possuíam perante a Lei.
Desidério, no entanto, não era fácil de contentar. Interpunha recursos e alegava
direitos, nas questiúnculas intercorrentes, que a filha, assessorada por Ernesto, se esmerava
em aprovar, tanto quanto possível, angariando-lhe apreço, aceitação, cobertura e carinho.
Quando o tempo marcou precisamente um ano sobre a desencarnação da viúva Fantini
e quando Túlio Mancini, em novo renascimento, orçava aproximadamente dois meses de
idade, Desidério deu por terminadas as exigências para o regresso pacífico ao mundo
carnal, com exceção de uma só: queria rever Elisa e conversar com ela, inteiramente a sós,
de modo a entretecerem projetos para o futuro.
Encaminhada a solicitação ao exame de Ribas, o Instrutor aprovou o requerimento e,
conduzido o peticionário às dependências onde Elisa, agora lúcida, se demorava
convalescente e tranquila, puseram-se os dois em palestra íntima, plenamente isolados,
num tête-à-tête que perdurou por dez horas consecutivas.
Nada transpirou do que ambos confidenciaram, entre si, naquele primeiro e último
encontro, no mundo espiritual, antes da reencarnação; no entanto, algo ocorreu de
inesquecível. Desidério voltou às instalações que lhe eram próprias, tocado de novo brilho
no olhar. Desapareceram nele os ressentimentos e as interrogações. Mostrou-se, desde
então, paciente e respeitador.
Concomitantemente, a ex-senhora Fantini rogou o amparo de Evelina para internar-se
em algum educandário, a fim de estudar os problemas da alma e reeducar-se, quanto lhe
fosse possível, antes de retomar o envoltório terrestre. Informada de que partiria para a
existência vindoura, daí a três anos, para reencontrar Desidério no mundo, sob a proteção
dos benfeitores que ali os acolhiam, ansiava aprender, preparar-se e melhorar-se, ciente
qual se achava de que todos os valores conquistados na espiritualidade maior se
transformam em mais dilatados recursos de apoio e colaboração, para aqueles que os
evidenciem, seja onde seja.
Evelina anuiu, satisfeita.
Nos três anos que lhe antecederiam o retorno ao próprio lar terreno, na condição de
filha do casal Serpa, Elisa estaria internada em colégio adequado às suas necessidades, sob
custódia e responsabilidade da filha de Desidério, cujos créditos e méritos aumentavam
sempre no Instituto a que soubera dedicar-se e servir.
Quem poderá medir a força colocada por Deus nos prodígios do amor?
Recolhido Desidério aos gabinetes de restringimento para a reencarnação, concluíram
as autoridades que não lhe seria proveitoso o conhecimento prévio do lar em que lhe cabia
renascer, porquanto a condição de enjeitado haveria de compeli-lo a mergulho mais
profundo no passado para a revisão de existências outras, em que fizera jus à prova em
perspectiva, e não seria útil imergi-lo em avançados processos de memorização.
Felizmente, após a entrevista com Elisa, patenteava-se calmo, confiante, aceitando
todas as promessas que se lhe formulavam.
Por outro lado, Ribas e os companheiros categorizavam-lhe a volta ao convívio de
Amâncio e Brígida, sem que os antigos associados de luta precisassem esperar por ele em
futura reencarnação, por valioso ganho de tempo, com o amparo da Providência divina.
Situava-se, desse modo, nos serviços de introdução ao renascimento no plano carnal,
quando o Instrutor Ribas convidou Fantini e a companheira para tomarem contato com a
senhora humilde e simples que seria para Desidério a benemérita genitora. Competia-lhes
assisti-la e auxiliá-la quanto possível, na gravidez próxima, e orientar o encaminhamento do
amigo renascido ao lar dos Terra, já que entre as colaboradoras e obreiras do Instituto,
reencarnadas nas vizinhanças de Brígida, fora ela quem aceitara a incumbência de recebê-lo
nos braços maternais, não obstante a penúria que lhe marcava a existência.
Evelina e Fantini apanharam informes rápidos em torno daquela a quem passariam
tanto a dever.
Tratava-se de mulher jovem, esposa de um lavrador que a tuberculose devorava, e mãe
de quatro filhinhos em constrangedoras necessidades. Ela mesma, Dona Mariana, como era
conhecida, já se achava em condições orgânicas deficitárias, sentenciada a contrair a
moléstia, embora a tuberculose não assuma, na atualidade, entre os homens, a
periculosidade que se lhe atribuía em outros tempos. Sucede, porém, que tanto o esposo
quanto ela própria estavam encerrando valioso ciclo de provas regeneradoras no mundo e
não conseguiriam sustentar-se, na frágil armadura de carne, por muito tempo. Desidério
ser-lhes-ia o rebento derradeiro, antes da desencarnação, e aos dois amigos espirituais,
erigidos ao encargo de guardiães, caberia o santo dever de criar as circunstâncias pelas
quais o recém-nado entrasse no lar do velho casal Terra, na posição de filho adotivo.
Noite alta no plano físico...
Mariana, em desdobramento espiritual através do sono comum, penetrou a sala em que
Ribas e os amigos a esperavam.
Escoltada carinhosamente por um mensageiro, a recém-chegada não poderia
apresentar-se de maneira mais simples.
Ao defrontar-se com os benfeitores, deteve-se perante Ribas, com a lucidez que lhe era
possível, e, magnetizada talvez por aquele olhar brando e sábio, ajoelhou e pediu-lhe a
bênção.
O mentor, recalcando a emoção de que fora tangido, afagou-lhe a fronte, rogou a Jesus
para que a protegesse e recomendou:
– Levante-se, Mariana, temos algo a conversar...
Ao vê-la convenientemente sentada, o orientador apresentou-lhe Evelina e Ernesto,
demorando-se, todavia, a salientar Evelina, a fim de que ela lhe guardasse mais vivamente a
figura na tela da memória, quando tornasse ao corpo denso:
– Esta é a irmã que velará por você, na próxima gravidez. Por favor, Mariana, esforce-se
para retê-la na lembrança!...
A interpelada fitou-a com simpatia e implorou:
– Anjo de Deus, compadecei-vos de mim!...
A filha de Brígida, emocionada, retificou, de olhos úmidos:
– Mariana, não sou um anjo, sou apenas sua irmã.
A jovem mãe, cujo corpo descansava no mundo de matéria grosseira, como que
espiritualmente muito distante da formosa paisagem doméstica, a que se acolhia, para
deter-se tão só na alegria de ser útil, voltou-se para Ribas, com quem já tivera
entendimentos anteriores, e notificou, tomada de apreço filial:
– Meu pai, cumprirei a vontade de Deus, recebendo mais um filho, e aguardo a vossa
proteção. Joaquim, meu esposo, está mais fraco, mais doente... Lavo e passo, trabalho quanto
posso, mas ganho pouco... Quatro filhos pequenos!... Ignoro se já sabeis, mas nosso barraco
não está resistindo às chuvas... Quando o vento atravessa as paredes rachadas, Joaquim
piora, tosse muito!... Não estou a queixar-me, meu pai, mas peço o vosso auxílio!...
– Oh! Mariana – respondeu o mentor, sensibilizado –, não tema! Deus não nos
abandona! Seus filhinhos serão sustentados e, muito em breve, você e Joaquim estarão
numa casa grande...
– Confio em Deus e em vós!...
Não sabia a devotada criatura que o Instrutor se reportava à próxima desencarnação
do casal, quando, por merecimento genuíno, teriam os dois cônjuges novo domicílio na vida
maior.
Mariana voltou, agora custodiada também por Evelina e Fantini, à rústica habitação
que o vento castigava e, em retomando o corpo, o coração bateu-lhe descompassado, ante o
júbilo que se lhe represava no peito, e acordou o marido:
– Joaquim!... Joaquim!...
E, enquanto ele, estremunhado, articulava monossílabos:
– No sonho, acabei de encontrar o velho que já vi outras vezes... Ele disse que vamos ter
mais um filho!...
– Que mais?
– Disse que nós dois vamos ter uma casa grande...
Ele riu-se e aditou, ignorando que abordava a realidade:
– Ah! minha mulher!... Casa grande? Só se for no outro mundo!...
Os visitantes desencarnados sorriram...
Evelina, emocionada, compreendeu que Joaquim não se deteria muito tempo na Terra
e, em prece ao Senhor, a rogar-lhe forças multiplicadas, prometeu a si mesma não repousar,
enquanto não ligasse Mariana a Brígida, sua querida genitora, para que os derradeiros dias
daquele pouso de sofrimento fossem lenificados pelo sol da beneficência.
Transcorridos dois dias sobre o singular contato, a enteada de Amâncio, amparada em
Fantini e com permissão das autoridades superiores, sediou-se na mansão do padrasto e
pôs-se a influenciar o coração materno, com vistas à realização esperada. Deu-lhe sonhos
com o pequenino que lhe chegaria aos braços, povoou-lhe as reflexões com ideais de
caridade e esperança, sugeriu-lhe leituras renovadoras, inspirou-lhe conversações com o
marido, quanto ao futuro que Deus iluminaria com a presença de um filhinho adotivo e, pela
primeira vez, na casa senhoril, apareceu o hábito regular da prece, porquanto Brígida, ante a
doce atuação da filha, conseguiu que o esposo lhe compartilhasse as orações, todas as
noites, no preparo do sono, ao que Amâncio aquiesceu com bonomia e estranheza.
Espantado, anotava ele o fervor da mulher, a inflamar-se de amor ao próximo, e, porque
fosse, de si mesmo, devotado à prática da solidariedade humana, encorajava-lhe os rasgos
de altruísmo.
Planeavam, planeavam...
Se Deus lhes enviasse um filhinho adotivo, tratá-lo-iam com todas as reservas de amor
que conservavam no coração, procurariam analisar-lhe as inclinações para lhe propiciarem
trabalho digno e, quando crescesse, realizariam um sonho de muito tempo: transfeririam
residência para São Paulo, uma vez que assim lograriam educá-lo com esmero...
Solicitariam, para isso, a cooperação de Caio, o genro de outro tempo que se casara em
segundas núpcias e que continuava amigo, conquanto lhes escrevesse apenas em ocasiões
especiais... Se obtivessem um filhinho... E os projetos repontavam, sempre mais vivos e mais
belos, daqueles dois corações amadurecidos na experiência.
Quatro meses haviam transcorrido sobre a nova situação, quando, numa ensolarada
manhã, em que os velhos cônjuges haviam palestrado com ênfase acerca de assistência às
mães desvalidas, eis que Mariana, cuja residência se erguia a quatro quilômetros, trazida
espiritualmente por Evelina, bateu à porta...
Por solicitação de prestimosa servidora, Brígida veio atender.
Enlaçada, de imediato, pela filha, a fazendeira ouviu a recém-chegada, com simpatia.
Mariana implorava trabalho. E relacionou em voz triste alguns pedaços da própria
história. Engravidara-se de novo, embora já tivesse quatro filhinhos... Achava-se, porém,
sem recursos, com o marido muito doente...
Sem explicar-se, quanto ao motivo de tanta e tão súbita compaixão, a senhora Terra
deu-lhe algum dinheiro e prometeu visitá-la em pessoa, naquele mesmo dia, logo que o
esposo voltasse do serviço para o descanso caseiro.
Evelina exultava de alegria e confiança.
Amâncio não regateou atenções ao pedido da companheira e, ao crepúsculo, ei-los
juntos na habitação paupérrima. Condoídos ambos, providenciaram a remoção da família
em penúria para estreito mas confortável domicílio, na gleba que cultivavam.
Qual se houvesse encontrado, por fim, todo o socorro a que mais aspirava, antes que o
quinto filhinho viesse à luz, Joaquim demandou a Espiritualidade, louvando os benfeitores...
Mariana, desde muito enfraquecida, adoeceu gravemente. Viúva, agora, apelou para a
cooperação de familiares humildes e entregou-lhes os quatro órfãos na previsão da morte
próxima...
Brígida, atônita, ante a crise que se agravava, a identificar-se cada vez mais ligada à
pobre irmã em penúria, transferiu-a para a própria casa, onde Desidério, reencarnado,
abriu, por fim, os olhos, de novo, para a existência terrestre.
Na íntima convicção de que se houvera desencarregado de seu último e sagrado dever,
Mariana colocou nos braços dos protetores a criancinha ansiosamente esperada e
desencarnou cinco dias depois!...
Benfeitores desencarnados acolheram a piedosa mãe, ao mesmo tempo que osculavam
o pequenino... Misturavam-se ali, na mansão cercada de flores, o adeus e a chegada, a
tristeza da morte e a alegria da vida!... A fazendeira chorava e ria, Amâncio meditava, tocado
de emoções e ideias renovadoras... Ernesto e Evelina, em preces de jubilosa gratidão,
perante a misericórdia da Providência, notavam, surpresos, que tanto para Mariana, no
esquife, quanto para Desidério, no berço, enviava Deus a bênção de novo dia!...

***

À noite, pequena carruagem voadora, em forma de estrela irisada, depunha Fantini e a


companheira na cidade que lhes servia de residência.
Aí chegados, demandaram o Instituto de Proteção Espiritual, em cujas dependências
almas carinhosas e amigas atiravam-lhes flores. Lampadários inflamados de luz policrômica
cercavam todos os edifícios, assinalando-lhes as filigranas de arquitetura a jorros de beleza.
A casa festejava os dois obreiros que haviam sabido vencer, com devotamento e
humildade, os tropeços iniciais do levantamento de bem-aventurado futuro!...
Rodeado de assessores, Ribas saudou-os no limiar e, tomando-os nos braços, como a
filhos queridos, ergueu os olhos para o Alto e rogou, comovidamente:
– Senhor Jesus, abençoa os teus servos que se consagram hoje um ao outro em sublime
união!... Ilumina-lhes, cada vez mais, os anseios transfigurados para o teu reino, através da
abnegação com que souberam esquecer dificuldades e agravos para se deterem tão somente
no auxílio aos companheiros de caminhada, ainda mesmo quando esses companheiros lhes
apunhalassem os corações!... Ensina-lhes, oh! Mestre, que a felicidade é uma obra de
construção progressiva no tempo e que o matrimônio deve ser realizado, de novo, todos os
dias, na intimidade do lar, de maneira que os nossos defeitos se extingam, nas fontes da
tolerância recíproca, a fim de que as nossas almas encontrem a perfeita fusão, diante de ti,
aos clarões do amor eterno!...
Silenciou o Instrutor, enquanto Ernesto contemplava o rosto da companheira marejado
de lágrimas...
Do alto, choviam pequeninas grinaldas azuis, lembrando safiras que se eterizassem,
radiosas, propiciando ao casal venturoso a certeza de que os planos superiores lhe
endossavam os compromissos, e de ângulos ocultos da paisagem vinham melodias de
ternura, emoldurando palavras de confiança, em que a sabedoria do Universo confirmava a
perpetuidade da Misericórdia de Deus na vida que, em toda parte, continua sempre mais
bela, plena de grandeza, a santificar-se pelo trabalho e a inundar-se de luz.
Conselho Editorial:
Nestor João Masotti – Presidente

Coordenação Editorial:
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Projeto Gráfico e Diagramação:


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