Drama e A Visão de Mundo Africana - Soynka

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DRAMA E A VISÃO DE MUNDO AFRICANA 1

POR WOLE SOYINKA


TRADUÇÃO DE FEVA OMO IYANU2

[...] Vamos, como exemplo paradigmático, adotar um tema comum no drama de


máscara tradicional (mask-drama): uma luta simbólica com presenças ctónicas, cujo
objetivo do conflito é uma resolução harmoniosa da plenitude e do bem-estar da
comunidade. Qualquer pessoa dentro da “audiência” sabe que não deve acrescentar sua
voz arbitrariamente, mesmo nas passagens mais sedutoras de uma canção invocatória,
ou contribuir com um refrão à sequência familiar de trocas litúrgicas entre os
protagonistas. O momento da participação do coro é bem definido, mas isso não implica
que até esse momento, a participação cesse. O chamado público é ele próprio parte
integrante da arena de conflito; ele contribui com a força espiritual para o protagonista
através de sua realidade de coro que, primeiro, deve ser conjurada e estabelecida,
definindo e investindo a arena através de oferendas e encantamentos. O drama seria
inexistente, exceto dentro e contra essa representação simbólica da terra e do cosmos,
exceto dentro desse pacto comunitário cuja essência do coro fornece a energia coletiva
para o desafiante dos domínios ctónicos. A participação aberta, quando se trata, é
canalizada através de um repertório formalizado de gestos e respostas litúrgicas. Os
participantes "espontâneos" de dentro da plateia não se permitem desabafar um impulso
ou euforia que possa trazê-lo à tona como uma entidade dissociada de dentro da massa
do coro. Se isso acontecer, como é claro que pode, o evento é uma aberração que pode
pôr em risco os objetivos eudaemônicos dessa representação. O interjetor - cujo
equilíbrio mental é considerado temporariamente perturbado - é logo conduzido para
fora, e os feitiços apropriados (geralmente discretos) são lançados para combater os
riscos do evento anormal.
Eu gostaria de me aprofundar um pouco mais nesse sentido ritualístico do
espaço, uma vez que este está intimamente ligado à compreensão de visão-de-mundo da
sociedade que o deu à luz. Inicialmente, devemos tratá-lo como um meio no sentido
comunicativo e, como qualquer outro meio, é um que é melhor definido através do

1
De Wole Soyinka, Mito, Literatura e o mundo africano. Cambridge University Press, 1976.
2
Formado em Letras Vernáculas e Língua Inglesa pela Universidade Federal da Bahia, é Mestre em
Teorias Críticas da Literatura e da Cultura pela mesma instituição. Membro do Grupo Traduzindo No
Atlântico Negro, coordenado pela professora, doutora Denise Carrascosa (UFBA), atualmente, é
doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (UFBA).
processo de interrupção. Em termos teatrais, essa interrupção é causada principalmente
pelo aparato humano. Som, luz, movimento e até olfato podem ser usados com a
mesma validade para definir o espaço, e o teatro ritual usa todos esses instrumentos de
definição para controlar e tornar concreto, para paralelizar (talvez essa seja a melhor
descrição do processo) as experiências das intuições da humanidade naquele ambiente
muito mais perturbador que ela define como oco, vazio ou infinito. A preocupação do
teatro ritual nesse processo de definição espacial que precede, como descobriremos, a
encenação real deve, portanto, ser vista como parte integrante dos esforços constantes
da humanidade para dominar a imensidão do cosmos com seu minúsculo eu. Os eventos
reais que compõem a encenação são eles próprios, no teatro ritual, uma materialização
dessa aventura básica do eu metafísico da humanidade.
O teatro é então uma arena, uma das mais antigas que conhecemos, que a
humanidade tentou entender com o fenômeno espacial de seu ser. Mais uma vez, ao
falar do espaço, vamos reconhecer, antes de tudo, que, com o avanço da tecnologia e da
evolução - alguns preferem chamar de contra evolução - da sensibilidade técnica, a
visão espacial do teatro tornou-se firmemente contraída em, puramente, áreas físicas de
atuação num palco, em oposição a uma arena simbólica para disputas metafísicas. O
início pagão do Teatro Grego manteve sua validade simbólica aos dramaturgistas por
séculos após o evento, de modo que as posições relativas de suplicante, tirano ou deus
ex machina, bem como o ofertório ou altar, eram constantemente impressos em seu
público e criavam, imediatamente, conotações emocionais tanto quando foram usadas
quanto por seu próprio ato de serem. (Para o propósito deste ensaio, não pretendo
debater se a fixação dessas posições não contrastava com a abordagem fluída do espaço
ritual africano, diminuía a experiência das relações cósmicas da plateia) O Teatro
Medieval Europeu, por sua vez, correspondendo à mitologia religiosa de sua época,
criou um micricosmos constante por suas correspondências espaciais de bem e mal,
anjos e demônios, paraíso, purgatório e inferno. Os protagonistas da terra, do céu e do
inferno encenaram suas várias provações e conflitos em relação a essas posições
tradicionais, e o reconhecimento automático de três situações hierárquicas da
humanidade criou ansiedades e esperanças espirituais nos seios da plateia. Mas observe:
o território apreendido da humanidade já começou a se contrair! A representação
cósmica encolheu-se numa moral pura, uma soma em termos de penalidades e
recompensas. O processo continuou por períodos sucessivos de explorações parciais
europeias do que antes era um meio da totalidade, alcançando uma aberração analítica
como nesta amostra de compartimentalização que afirma que a ala direita (do ator) do
palco é mais forte que a esquerda. Não encontraremos nenhuma prova dessa afirmação
ridícula no começo do teatro, grego ou africano. O teatro ritual, lembre-se, estabelece o
meio espacial não apenas como uma área física para eventos simulados, mas como uma
contração gerenciável do envelope cósmico dentro do qual o ser humano - não importa
quão profundamente enterrada essa consciência tenha se tornado ultimamente –
temerosamente existe. E essa tentativa de administrar a imensidão de sua consciência
espacial torna manifestadamente, no teatro ritual, um paradigma para a condição
humana cósmica. Existem paralelos transitórios, breves momentos visuais dessa
experiência no teatro europeu moderno. O espetáculo de uma figura humana solitária
sob um holofote em um palco escuro é, ao contrário de uma pintura, um exemplo
respiratório, vivo, pulsante, ameaçadoramente frágil desse paradigma. É ameaçador
porque, diferentemente de uma parábola ou tela semelhante, sua fragilidade é
experimentada tanto no nível de seu simbolismo quanto em termos de preocupação
solidária (sympathetic concern) com o bem-estar desse meio humano imediato.
Digamos que ele seja um personagem trágico: ao primeiro sinal de um cheque no
momento de uma declamação trágica, seu público fica nervoso por ele, imaginando - ele
esqueceu sua fala? Ele deu um branco? Ou no caso da ópera - ela vai conseguir atingir a
nota mais alta? Bem, o teatro ritual tem uma ansiedade adicional muito mais
fundamental. De fato, é correto dizer que a ansiedade técnica mesmo onde existe -
afinal, existe; o elemento da forma criativa nunca está ausente, mesmo na famigerada
consciência primitiva - portanto, onde existe, nunca está tão profundamente envolvido
como com uma manifestação moderna. O verdadeiro medo não expresso é: esse
protagonista sobreviverá ao confronto com forças que existem dentro da área perigosa
de transformação? Entrar nesse microcosmo envolve uma perda de individuação, uma
auto submersão na essência universal. É um ato realizado em nome da comunidade, e o
bem-estar do protagonista é inseparável do da comunidade total.
Esse entendimento ritual é essencial para uma participação profunda em um
processo catártico (cathoric) das grandes tragédias. Para tentar torná-lo ainda mais
nítido, gostaria de me referir, mais uma vez, à pintura, essa arte essencialmente
individualista. Para superar o desafio do espaço e do cosmos, um Turner, um Wyeth ou
um Van Gogh utiliza infinitas permutações de cores, formas e linhas para extrair uma
declaração metafísica verdadeiramente angustiante ou consoladora dos fenômenos
naturais. Contudo, não há envolvimento da experiência comunitária neste meio em
particular. A transmissão é individual. Não é menos essencial à soma da experiência
humana, mas é, mesmo quando visto por milhares de pessoas simultaneamente, uma
mera soma de experiências fragmentadas, individuais e vicárias. A singularidade do
teatro é sua simultaneidade na criação de uma única experiência humana - no seu maior
sucesso. O fato de que geralmente não é bem-sucedido é bem verdadeiro, mas isso não
invalida a verdade de que, nas próprias raízes do fenômeno dramático, essa afirmação
do eu comunitário era o objetivo da experiência. A busca, até pelos dramaturgos
europeus modernos, de raízes ritualistas para extrair visões da experiência moderna, é
uma pista da profunda necessidade do homem criativo de recuperar essa consciência
arquetípica nas origens do meio dramático.
O teatro ritual, visto da perspectiva espacial, visa refletir, através de meios
físicos e simbólicos, a luta arquetípica do ser mortal contra forças exteriores. Uma visão
trágica do teatro vai além e sugere que mesmo o chamado drama realista ou literário
pode ser interpretado como um reflexo mundano da luta essencial. O drama poético, em
especial, pode ser considerado um repositório desses aspectos essenciais do teatro;
sendo amplamente metafórico, expande o significado e a ação imediata dos
protagonistas para um mundo de forças da natureza e concepções metafísicas. Ou, dito
de outra maneira, influências naturais ou cósmicas poderosas são internalizadas dentro
do protagonista, e esse fator implosivo cria a escala titânica de suas paixões, mesmo
quando a base do conflito dificilmente o justifica. (O Rei Lear, de Shakepeare, é o maior
exemplo disso.) De fato, essa visão do teatro vê o palco como um campo de batalha
constante para forças maiores do que as pequenas infrações às normas comuns da
comunidade ou padrões de relacionamentos e expectativas humanos, além das
distorções e incidentes de ação reais e suas resoluções. O palco é criado para esse
propósito daquela presença comunitária que apenas o define (e este é o conceito de
definição fundamental, de que o palco torna-se ser a partir de uma presença
comunitária); então, para esse fim, o palco se torna o meio eficaz, racional e intuitivo da
experiência comunitária total, histórica, formativa da raça (race-formative),
cosmogônica. Onde esse teatro é encontrado em sua forma mais pura, não como
metáforas recriadas para o estágio trágico posterior, nós não encontraremos pontos de
bússola, nem definições horizontais ou verticais. Não há espaço reservado para os
protagonistas, pois seu próprio ato de ser representacional é definido, por sua vez, por
nada menos que o infinito cosmos no qual a origem da comunidade, sua experiência
contemporânea de ser, está firmemente embutida. O drama, no entanto, existe nos
quadros; no espaço improvisado entre barracas no mercado deserto ou fervilhante, na
plataforma elevada de uma escola ou salão comunitário, nos recantos secretos de um
santuário cercado pela natureza, entre os botões do palco europeu moderno ou seu
equivalente na África - aquelas monstruosidades elegantes criadas para consagrar o
espírito de prestígio equivocado. É necessário sempre procurar a essência do jogo entre
esses telhados e espaços, não confiná-lo ao texto impresso como uma entidade
autônoma. [...]

Apêndice

[...] A tragédia, no drama tradicional iorubano, é a angústia dessa separação, a


fragmentação da essência do eu. Sua música é o grito agudo da alma cega da
humanidade, enquanto ela treme no vazio e cai no profundo abismo da espiritualidade e
da rejeição cósmica. A música trágica é um eco desse vazio; o celebrante fala, canta e
dança em autênticas imagens arquetípicas do interior do abismo. Todos compreendem e
respondem, pois é a língua do mundo.
É necessário enfatizar que os deuses estavam descendo para se reunir com o
homem, pois sem isso a tragédia não poderia existir, a angústia da separação não
alcançaria proporções tão trágicas, se a posição dos deuses na terra (ou seja, na
concepção da humanidade) fosse para ser um afastamento divino. Isso é novamente
testemunhado pela forma de adoração, que é marcada pela camaradagem e irreverência,
assim como a partida para a ancestralidade é marcada pela ousadia (bawdiness) no meio
da dor. A origem antropomórfica de incontáveis divindades é mais um nivelador da
consciência da classe divina, mas é a humanidade inata dos próprios deuses, seu vínculo
com o homem através de uma relação animista comum com a natureza e os fenômenos.
A continuidade para as comunidades iorubanas opera tanto através do conceito cíclico
de tempo quanto da interfusão animista de toda matéria e consciência.
Esse primeiro ator - pois liderou os outros - foi Ogun, primeira divindade
sofredora, primeira energia criativa, o primeiro desafiante e o conquistador da transição.
E dele, a primeira arte, foi trágica, pois o drama complementar do sucessor sincrético de
Orisa-nla, a peça "Paixão" de Obatala, é a única resolução plástica do trágico
envolvimento de Ogun. As metafísicas iorubanas de acomodação e resolução só
poderiam surgir após a passagem dos deuses através do golfo de transição, após o gosto
demoníaco da vontade própria de Ogum, o deus explorador no caldeirão criativo dos
poderes cósmicos. Somente após esse teste o mundo iorubano harmonioso pôde nascer,
uma vontade harmoniosa que acomoda todo material alienígena ou fenômeno abstrato
dentro de sua espiritualidade infinitamente acentuada (stressed). O artefato da conquista
de separação de Ogun, o "fetiche" era minério de ferro, símbolo das energias do útero
da terra, inteligente e soldador da vida. Ogun, através de sua ação redentora, tornou-se o
primeiro símbolo da aliança de disparidades quando, da própria terra, ele extraiu
elementos para a subjugação do caos ctónico. Na consciência trágica, a psique do
adepto (votary) vai além do domínio do nada (ou caos espiritual) que é potencialmente
destrutivo da consciência humana, através de áreas de terror e energias cegas, para uma
empatia ritual com os deuses, a presença eterna, que uma vez precedeu a humanidade
em consciência paralela de sua própria incompletude. A angústia ritual é, portanto,
experimentada como a transmissão primordial do desespero dos deuses - vasta,
numinosa sempre incompreensível. Em vão, procuramos capturá-la em palavras; a
certeza da experiência desse abismo existe apenas para o protagonista - a vítima trágica
mergulha nele, apesar da ligação ritualística, e é redimida apenas pela ação. Sem agir, e
apesar disso, ela está perdida para sempre no flagrante da tirania trágica.
Atuar é, portanto, uma contradição do espírito trágico, mas também é seu
complemento natural. Para agir, o instinto Prometeano de rebelião canaliza a angústia
para um propósito criativo que libera o ser humano de um desespero totalmente
destrutivo, realizando de dentro dele as invenções mais enérgicas e profundamente
combativas que, sem usurpar o território do golfo infernal, o conecta, o golfo, com
esperanças visionárias. Somente a batalha da vontade é, portanto, primariamente
criativa; do seu estresse espiritual nasce o grito desesperado da alma, que prova seu
próprio consolo, que por si só, reverberando dentro das abóbadas cósmicas, usurpa (pelo
menos e por um breve período) o poder do abismo. Nos momentos climáticos
carregados dos rituais trágicos, entendemos como a música se tornou a única arte da
qual pode conter a realidade trágica.
O adepto é liderado por nenhum outro guia para o coração pristino da tragédia.
A música como personificação do espírito trágico tem sido mais do que
perceptivamente esgotada na filosofia da Europa; há pouco a acrescentar, muito a
qualificar. E a função e natureza da música na tragédia iorubana é particularmente
reveladora das deficiências de conclusões, há muito tempo, aceitas da intuição europeia
[…]

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