Cultura Política Nas Periferias WEB
Cultura Política Nas Periferias WEB
Cultura Política Nas Periferias WEB
POLÍTICA NAS
PERIFERIAS
estratégias de
reexistência
CULTURA
POLÍTICA NAS
PERIFERIAS
estratégias de reexistência
CULTURA
POLÍTICA NAS
PERIFERIAS
estratégias de reexistência
Organização
Ana Lucia Silva Souza
Fundação Perseu Abramo
Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.
Diretoria
Presidente
Aloizio Mercadante
Vice-presidenta
Vívian Farias
Elen Coutinho • Jéssica Italoema • Artur Henrique • Alberto Cantalice •
Carlos Henrique Árabe • Lindbergh Farias • Márcio Jardim • Valter Pomar
Apresentação.............................................................................................. 9
Introdução................................................................................................. 11
Sobre os autores......................................................................................417
Apresentação
Artur Henrique da Silva Santos e
Paulo César Ramos
das subalternizadas. O que significa que periferias vai dar abrigo para muitas
outras lutas e não apenas as que se travam nas margens das grandes cidades e
regiões metropolitanas. Isso nos é facultado não apenas porque a língua por-
tuguesa aceite. Na verdade, é o significado político que foi construído para o
termo periferia que abre caminho para essas associações. A luta de negros e
pobres por moradia, segurança, educação, trabalho e tantos outros direitos,
além da elaboração de uma gramática comum a partir das culturas periféricas,
em especial o hip-hop durante os anos 1990 e 2000, pavimentam um caminho
que faz a associação entre problemas locais e questões estruturais, fornecendo
uma carga cognitiva para que outras lutas surjam associadas entre si.
Entendida a ideia de periferias, podemos organizar a ampla gama de temas
que este conceito suscita. Desse modo, organizamos as contribuições em três
grandes temas: cultura, violência e trabalho. Sendo o primeiro, as manifes-
tações e expressões simbólicas de resistência política; a violência entendida
com as violações e agressões à integridade física e à vida, em especial aquelas
perpetradas pelo Estado; e o trabalho, como as formas de acesso e produ-
ção da riqueza produzidas nas periferias. Privilegiamos algumas questões mais
concretas, como o genocídio da juventude negra, o mundo do trabalho infor-
mal e o ativismo em cultura periférica. Sempre em nível nacional, temos um
grande mapeamento de organizações que atuam nas periferias, com pesquisas
inovadoras com trabalhadores informais e autônomos. Desse modo, temos
um banco de dados de chacinas e buscamos correlacionar as informações dos
homicídios com indicadores de desigualdades sociais nos municípios mais
violentos do Brasil.
Os resultados destes estudos agregaram conhecimento aos debates que têm
sido feitos no interior do projeto e se desdobrado nas produções da Funda-
ção Perseu Abramo e do PT, bem como têm sido ecoados pelos meios de
divulgação do projeto nas redes sociais. Mais que isso, essa produção de co-
nhecimentos fortalece o fundamento das lutas por direitos que os coletivos
que agregamos têm levado adiante. Por meio da relação entre produção do
conhecimento, discussão e organização política, este livro agora chega às mãos
de vocês para que nossa rede seja ampliada e nossos elos sejam fortalecidos.
Introdução
como uma prática social que transgride. É na insistência que Felipe Cortez,
Felipe Matos, Laiene Souza, Lucas Martins, Raissa Faria, William Nascimen-
to escolhem mostrar as vozes das juventudes não urbanasna participação de
movimentos coletivos como sujeitos em Comunicação, resistência e território.
Um breve relato sobre a experiência da rede de comunicadores populares do Vale
do Jequitinhonha. O manuscrito explicita as formas de se organizar e de criar
redes entre jovens e requer pensar as mídias como lócus de produção e circu-
lação de informações que interessam às juventudes. Prosseguindo, Kassandra
Muniz defende com veemência a vida da população negra que, até agora e
daqui para frente, requer a busca constante por brechas nos espaços de ser nas
periferias em que se vive. Espaços de criar, de contestar e de propor, tomando a
linguagem como forma de ação que age na mandinga, no ir e vir constante das
coisas, e funda modos de viver nas múltiplas periferias em que se vive, e que
são várias. Como no texto Criação e transcrição poética como forma de resistência
do negro-surdo brasileiro que junta pessoas ouvintes e surdas para mostrar as
performances da linguagem. Nele, Diléia Aparecida Martins, Edvaldo Carmo
dos Santos, Joyce Cristina de Souza e Wesley Nascimento Santos nos fazem
enxergar por meio de mãos negras amorosas o mundo pouco conhecido de
estratégias de resistência de pessoas negras surdas.
Em sucessão, Jordânia MarçalMachado, Kakra Mene (Mikaela Gabriele)
e Kwame Ankh, autoras de Reexistência: complexo matutado nas andanças do
Hip-hop, batalhas de rap e saraus, oferecem uma visão sobre o papel do hip-
-hop, especialmente a poesia do rap nas batalhas e nas apresentações de sarau,
defendendo que os modos singulares de uso da palavra tornam-se espaços
de práticas de reexistência cotidiana. Propondo reflexões densas, Érica Peça-
nha do Nascimento descreve de que maneira os saraus em São Paulo ganham
corpo e peso na escrita de Saraus nas periferias: escrevendo corpos, territórios e
ações coletivas na cidade e afirma como cada vez mais estes são responsáveis
pela reinscrição de corpos negros nas tantas periferias do Brasil. Na escrita de
Rimar letrando ou letrar rimando: os saraus literários da Periferia de São Paulo
como agências de letramento, Mariana Santos de Assis explícita de que forma
a população negra vem ressignificando espaços de aprender desde os núcle-
os familiares, na rua que também é escola, nas rodas de saraus literários nas
periferias.Francisco Cesar Rodrigues (Chico César), em Slam – Ocupação e
16 Cultura política nas periferias
1
Disponível em: <https://youtu.be/37I9gzZw3Mw>. Acesso em: 21 out. 2020.
2
Transcrições feitas por Gih Trajano
20 Cultura política nas periferias
adesão maciça e ansiedade aflorada para poder ver poesias servindo de forma
amplificada a uma causa tão grave e urgente, partimos para a produção em si.
Gravamos durante quatro dias, nas quebradas da zona oeste e leste de São Paulo
e também na região central, com um grupo de 20 poetas. O material foi para a
edição, batizamos o vídeo com a frase #PAREMDENOSMATAR, a princípio,
extraída do título do livro da autora Cidinha da Silva, porém também usada
em várias ações com a finalidade de colocar em pauta estes diversos crimes
cometidos contra a vida humana, e programamos o lançamento em dois mo-
mentos: 22 de novembro de 2019 na Assembleia Legislativa de São Paulo, com
apoio do núcleo SOS Racismo – para falar do Núcleo da própria Assembleia,
Fundação Perseu Abramo e Projeto Reconexão Periferias e, no dia 05 de de-
zembro, no Seminário Nacional do Projeto Reconexão Periferias 2019.
A partir de então, lançamos em várias redes sociais os links e temos busca-
do dar mais impulso e visibilidade ao material que, para além de ser um grito
de denúncia, deve servir didaticamente como provocador de debates, discus-
sões e reflexões nos mais diversos espaços acadêmicos e sociais.
22 Cultura política nas periferias
Patrícia Meira: Mulher, negra e resistente por amar outra mulher. Poeta, sla-
mer, atriz e cantora. Faz parte do Coletivo Alcova, que mexe com todas áreas
do cérebro e do corpo. Não se enganem com a baixa estatura deste mulherão
e naveguem na escrita riste e potente desta mulher.
Facebook: Patrícia Meira
Instagram: @patricia_meira01
CONTA
O meu cansaço é de falar da dor;
Mas o maior, é de sentir a dor;
Os seus já nascem aprendendo a curtir a vida;
Os meus já nascem ensaiando a despedida.
Deus, pensa direitinho antes de mandar Jesus preto de volta;
Pois aqui anda embaçado;
Se antes ele foi torturado e crucificado.
Hoje, pelos que dizem amá-lo, ele seria fuzilado.
Então, não me venha falar de empatia com esse teu olhinho azul;
Porque eu tô pronta pra te mandar tomar no cu.
#Parem de nos Matar! 23
BIBLIOTECA
A África é uma biblioteca e cada preto é um livro;
E quem não gosta de ler nos queima e nos mata;
Generalizaram o desinteresse por leitura e é por isso que até hoje;
Os racistas me julgam, pela capa;
Santos Drummond é suspeito pra falar de literatura;
Mas muito mais suspeito quando tromba a viatura;
É que eu sou retinto que retrata retrocessos;
Militar pra nós é verbo;
O resto é o que restou da ditadura.
24 Cultura política nas periferias
TRAFICANDO VERSOS
Ei “Negá”!
Ei “Negô”!
Essa porra de genocídio por encomenda, matando preto pra fazer renda;
Se é perdida, porque só acha “nois”?
80 tiros não só apertando uma vez;
Quando vocês falam que é pra acabar com pobreza, é desculpa pra “nois”
morrer na mão de vocês;
“Nois” tá ligado no corre, mas só corre quem sabe de onde tá vindo o tiro;
Se acham tão espertos, eu acho vocês covardes;
Apontando a arma pra quem nem sabe de onde tá vindo o gatilho. Se meu
verso fosse fácil, você não entenderia;
Então faço do meu verso o tráfico;
Pra agora fazer sentido você colocar a culpa no povo da periferia.
#Parem de nos Matar! 25
PANTERA NEGRA
Mais Fé.
Fé em quem para rodovias e em quem queima cadeias;
Fé em Deus e nas crianças da favela;
E nem precisa aplaudir, isso aqui é só nosso ensaio;
Mas se hoje “Nois” tá vivo, agradece as mães de maio;
Podia ser a minha mãe, óh que loucura;
E meio que era;
Morreu de tristeza, de banzo, de espera;
A cota agora é fazer virar o sonho da Dona Vera;
E de todas as mães que morreram esperando justiça.
Então, fica decretado:
NÃO MORRE MAIS NENHUM MENINO NOSSO NAS MÃOS DA
POLÍCIA.
26 Cultura política nas periferias
DENEGRINDO
No ambiente no sem cultura;
A violência é espetáculo;
No facebook é contra aborto;
Mas na favela mata favelado.
O sangue é Preto;
O corpo é Preto;
Morreu um Preto;
Terror de Preto.
E continuamos a luta;
Com o choro engasgado;
Liberdade ao povo preto; É o grito que nos salva.
#Parem de nos Matar! 27
ESSA NOITE
Olha só para mim, Preto, de dread,
Terror da tia branca;
Produto do homem branco;
O trauma da mulher preta;
O câncer do mundo dos humanos;
O ser sem consciência que carrega na pele a penitência de uma vaga lembrança
do que era quando criança;
Retrato das andanças da vida simples da Cohab;
Cheia de esperança e simples vivência.
É foda, né?
Foda mesmo foi esse último amor que vivi;
Amor não, só vivi...
Vivi os olhares, os sonhos, mais esse amor eu não senti;
Assim, transformei a doença do mundo em cura, no momento em que senti a
ruptura daquilo que existiu só para mim;
E no ápice curtido do que sou, eu descobri que era só mais um; E mesmo com
esse sol azul lindo, com essa manhã linda; crianças na rua, sem polícia, eu me
sinto pela metade;
Uma parte de mim vazia;
Não porque ela me completava;
Mas por que ela levou de mim uma parada que já... existia.
28 Cultura política nas periferias
Jamilê Kambami: Jamilê é uma jovem poeta de Guarulhos que migrou para
o centro da selva de pedra procurando espaços para soltar o grito preso na
garganta. Rapper, cantora, compositora e slamer, nada parece acalmar a fera
que habita a voz rouca e doce que dela entoa e nos inspira.
Facebook: Jamilè Kambami
FILHOS DO SOL
Pra que os meus não mais chorem, Eu...
Pra que os meus não mais chorem, Eu...
Pra que os meus não mais chorem !
Eu peço a Deus!
Não é de mim que vem o poder de estancar a ferida do povo
que vem a cantar;
Não é meu poder;
Mas que a palavra venha;
Dará pra respirar;
Pro povo que não morre;
Insistem em nos matar;
Em nos balear...
Filhos do Sol Nunca Morrem !!!
#Parem de nos Matar! 29
PIRATA AFRO
Tô preso no meu próprio quarto;
Pensando sobre a evolução dos “bolsonarco;”
Eu, preso no meu próprio quarto;
Percebi que o quarto é só um barco;
Que se eu abrir a porta eu sou fisgado, pescado ou afogado;
Relatos de um pirata Afro.
30 Cultura política nas periferias
CARTA BRANCA
Então quer dizer que vocês não aguenta ouvir mais um preto falando de ra-
cismo?
Vai, faz a busca e vai atrás dos dados estatísticos;
Os nossos estão morrendo, e vocês estão dizendo que essa porra é vitimismo;
A farda cinza de botas pretas transformou a vida de mais um inocente em
cinzas;
E os dias de mais uma família periférica serão nublados pelo resto da vida;
De sangue pobre e preto as ruas periféricas foram alagadas;
Pois na terra da garoa novamente teve chuva de balas;
Então para de passar pano;
Sai de cima do muro;
A carta sua é branca para matar gente preta;
Vocês deixaram claro que atiram no escuro.
32 Cultura política nas periferias
SINHÁ
Aos preto?
A sua Santíssima Trindade!
Aos preto a morte, a margem ou a grade;
Vocês vão tudo para o inferno;
E hoje eu vou fazer alarde;
Eu faço poesia em praça pública;
Grafito nas ruas a cor do meu pranto;
E ninguém vai dormir nessa cidade até Rafael Braga do meu bando ser cano-
nizado santo;
E se os preto se juntar;
Aí tu guarda teu colarzinho de pérolas ou de Swarosvski, sinhá;
Porque sua a cabeça hoje vai ser meu patuá.
#Parem de nos Matar! 33
23 SEGUNDOS
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Pois é;
Você já parou pra pensar?
Pra imaginar?
Quantos 23 segundos cabem dentro de 23 minutos?
Pois é, exatamente agora, mais uma morte!!!
36 Cultura política nas periferias
A DÚVIDA
“Nóis” queria era salvar o mundo né? Melhorar a quebrada;
Mais tem “Mic” que chiiiia e não diz nada;
Tem mano morrendo na quebrada;
E eles acho mesmo?
Que, “Nóis tava” higienizado;
Que,“Nóis tava” embranquecido;
Ocupar os espaços? Firmeza!
“Nóis” senta mais não se não se apaixona pela casa grande,
Nem pelo lustre em cima da mesa;
E já diria meu parça Dwennimme, outra fita;
Fogo no rabo não incendeia racista;
Presta atenção!
Nosso povo não se educa nos centros de educação;
Nosso povo se educa na rua;
Nos bate tambor;
E Eles achou memo, que “nóis” ia arrumar um emprego, subir pro ponto de
ônibus e ficar cego com o centro da cidade?
Porra nenhuma! Meu corre começou muito antes de julho;
Tenho 27, já tive 14, são 13 anos que é tudo no meu nome;
Água, luz, feijão, arroz e telefone;
É, “nóis” tem telefone!
Então vai, anota aí e salva como vida;
70 – 70 – 70 – 70;
E se você não chamar tiú,
60 e escuta, porque é espaço de fala;
Mais também é lugar de cura.
#Parem de nos Matar! 37
GUETO INFORMADO
Onde o conservadorismo marcha nas ruas;
Onde as atitudes têm mostrado que é uma nova ditadura;
Onde a carne preta é exposta nua;
Onde a chibatada ainda estrala, e isso não é vítima de censura;
João Cândido; há séculos carregamos essa dor;
Estigma de bandido e por aqui nada mudou;
Ainda somos alvos;
O Haiti é aqui;
Dá até pavor de pensar que poderia ser eu e você;
Tá na hora da gente fazer uma nova Revolução dos Malês.
38 Cultura política nas periferias
URURAÍ
Vem banho de chuva, e lava a alma da fumaça ignorância cinza racista de São
Paulo;
Molha a roupa velha desse moleque pés descalços;
Que como uma pipa, ganhou os céus e tem o direito de existir; Ícaro, em
Ururaí!
Se assina com suor e sangue os crimes que lhe acusam por aqui;
Que lhe forjam por aqui;
Pinho sol é aqui;
80 tiros são aqui;
Agatha e Marielle são aqui;
Aqui é Ururaí
40 Cultura política nas periferias
QUANTOS MAIS?
Mas calma preto, você vai achar uma saída;
Como, se a gente não consegue nem confiar na polícia?
Me fala como é ter eles pra proteger?
É que os meus sente medo, então eu queria muito saber.
Rafa Braga foi preso;
Babi Querino detida por conta do cabelo;
Maria Eduarda, João Vitor, Marcos Vinicius;
111 tiros em 5 meninos;
Sem respostas pra morte de Marielle;
Confusões policiais;
Aliás;
Guarda chuva e fuzil, é, iguais!
Me fala aí, quantos mais?
#Parem de nos Matar! 41
Introdução
A vivência de um jovem em uma Comunidade Tradicional de Matriz Africana
desde o seu nascimento, mesmo diante de uma juventude imersa na diversida-
de da sociedade atual, em meio às ferramentas tecnológicas, redes, conflitos e
pela vontade de se reconhecer e compartilhar no outro, fez com que este mes-
mo jovem aos 27 anos despertasse para a vontade de interagir com jovens de
outras comunidades, baseando-se nos encontros de jovens que proporcionam
a doutrina cristã. Consciente de que a trajetória e a tradição do cristianismo
no Brasil vêm de um processo colonizador e hegemônico, o qual constituiu
estruturas de poder organizadas a partir da ideologia eurocentrada e racista.
Por outro lado, existiram muitos movimentos de luta e combate ao racismo,
tornando a temática presente na Constituição Federal de 1988 e mais tarde,
com outros avanços conquistados, como no ano de 2007 com a criação do
Decreto 6040, o qual compreende a Política de Desenvolvimento Sustentável
de Comunidades Tradicionais, e mais tarde, no ano de 2013, o lançamento do
I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais de Matriz Africana. Diante disso, percebeu-se que era o momen-
to de mobilizar e dialogar com jovens de outras Comunidades Tradicionais de
Matriz Africana.
44 Cultura política nas periferias
Este artigo tem entre seus autores o jovem André Luis de Moraes, que
apresentou a proposta de realização do projeto. Na ocasião, ele atuava na
Casa de Cultura Fazenda Roseira, também sede do Centro de Referência do
Jongo do Sudeste, lugar onde se preserva e salvaguarda a comunidade Jon-
gueira “Jongo Dito Ribeiro” e que tem como liderança a neta de jongueiro,
a professora, mestra e doutora Alessandra Ribeiro, que acolheu, apoiou e
foi fundamental para a realização do projeto até a sua última edição em
janeiro de 2019.
Discussões e articulações já aconteciam por todo Brasil; foi necessário en-
tender a conjuntura, conceitos e definições para a produção do projeto que
se modificou bastante desde a proposta inicial. O artigo percorrerá, por uma
narração observada durante os seis anos do projeto, desde as mudanças neces-
sárias para adequar as reais demandas e necessidades desses jovens, o processo
de descobertas e reconhecimentos, as articulações estaduais e nacionais e os
impactos na participação social nas políticas de juventude em seus espaços
de discussões, as experiências de trocas com os mais velhos das tradições e
os desafios que surgiram durantes os encontros para a organização diante da
diversidade das comunidades tradicionais existentes no Brasil.
1
O movimento neopentecostal (pós-pentecostal, como usado aqui) é caracterizado pela expul-
são de demônios e pela mensagem de prosperidade aos fiéis. (SILVA, 2016, p. 38) – Definição
de neopentecostal pela Dissertação intitulada Neofundamentalismo no Brasil: a dominação
carismática na Igreja Mundial do poder de Deus, escrita por Saulo Inácio da Silva
46 Cultura política nas periferias
disputa dos espaços públicos e contribuir para que o jovem possa transformar-
-se num agente de defesa da sua comunidade na proteção dos seus rituais.
Não que tenha sido surpreendente o apontamento dessas problemáticas.
Os organizadores do evento estavam conscientes, pois também tinham vi-
venciado várias experiências semelhantes, mas não esperavam que todas essas
demandas surgissem de forma tão intensa, ao mesmo tempo, fazendo com
que repensassem um encontro mais formativo, mantendo o lúdico e o cultu-
ral, mas que para além do encontro, esses jovens precisassem ser munidos de
informação para a sobrevivência de sua tradição.
uma necessidade de que o encontro tivesse cada vez mais a cara deles, com as
temáticas que eles desejassem abordar. Foi bem desafiador, pois foi o encontro
que mais tiveram dificuldade em manter a estrutura, mas a parceria com a
Casa de Cultura Fazenda Roseira tornou o evento possível, juntamente com
outros parceiros. Este último contou com a presença de 50 jovens.
Os desafio da construção
A tradição das comunidades de matriz africana tem nas pessoas mais velhas,
o respeito e a obrigação de orientação, antes de qualquer ação. Sendo assim,
após o primeiro encontro, além dos sacerdotes que ajudaram na construção,
outros foram surgindo no decorrer dos anos e entre o primeiro e o segundo,
com a auto-organização de pessoas de várias comunidades, surgiu o “Coletivo
Saravaxé”, que, para além das orientações aos jovens na construção do en-
contro, passou a realizar importantes ações para promoção das comunidades
tradicionais de matriz africana. Foi um marco na região, pois o coletivo forta-
leceu comunidades, prestando auxílio social, cultural e jurídico em situações
de combate à intolerância religiosa e com cuidado aos patrimônios culturais
que contavam a história das comunidades. É importante ressaltar que todas
as edições tiveram um coletivo e conselho consultivo, que dava as melhores
diretrizes aos jovens antes, durante e após o encontro.
Outro desafio foi a alteração da idade dos participantes, pois isso se deu
após reflexões entre os jovens e os mais velhos. Após a realização do primeiro
encontro, observou-se que a maioria dos monitores tinha até 35 anos e em
vários momentos se colocavam mais como participantes do que como mo-
nitores. A maioria não tinha vivenciado essa experiência. Existiam sacerdotes
nesta faixa de idade, com o desejo de vivenciar a juventude, fazendo com que,
coletivamente, entendessem que a juventude sofria modificações por conta
das precoces responsabilidades nas comunidades. Assim, desde o segundo en-
contro, a faixa etária participante passou a ser 14 a 35 anos.
Os cincos primeiros encontros foram totalmente gratuitos aos participantes,
era solicitada a doação voluntária de produtos de limpeza para ajudar a Casa de
Cultura Fazenda Roseira, que sempre sediou os encontros. Dessa forma, a or-
ganização contava com a ajuda de sindicatos, governo federal, alguns mandatos
Juventude de terreiro da região metropolitana de Campinas 49
As crianças iniciadas e criadas nos terreiros, por vezes, desenvolvem funções espe-
cíficas e demonstram orgulho de sua religião, no entanto ‘na escola, essas crianças
e adolescentes são invisibilizadas e silenciadas’ (Caputo, 2012, p. 125)
2
São dois jovens que adquiriram estes nomes após o rito de iniciação no Candomblé.
Juventude de terreiro da região metropolitana de Campinas 51
Considerações finais
O coletivo articulador da Juventude de Terreiro RMC jamais imaginaria que
tantas demandas surgiriam e que o projeto pudesse contribuir para uma cons-
trução política em âmbito nacional. Isso remete ao Artigo 2º do Estatuto da
Juventude:
Art. 2º O disposto nesta Lei e as políticas públicas de juventude são regidos pelos
seguintes princípios:
I – promoção da autonomia e emancipação dos jovens;
II – valorização e promoção da participação social e política, de forma direta e por
meio de suas representações;
III – promoção da criatividade e da participação no desenvolvimento do país;
IV – reconhecimento do jovem como sujeito de direitos universais, geracionais e
singulares;
V – promoção do bem-estar, da experimentação e do desenvolvimento integral
do jovem;
VI – respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude;
Juventude de terreiro da região metropolitana de Campinas 55
Diante disso, vale refletir que os cuidados para compreender uma juventu-
de diversa, inclusiva e tradicional, passam pelo processo de uma escuta quali-
ficada até a efetivação de políticas públicas que garantam o acesso e a preser-
vação de uma tradição milenar.
Entender o recado ecoado pelos tambores, entender a cura que as folhas
proporcionam, suas vestimentas, suas línguas, suas comidas que resistem dé-
cadas. Esses jovens dialogam com a natureza, valorizam os rios, mares, terras e
compreendem neles os seus deuses. Usam o branco da luta ao luto, respeitam
e louvam a sua ancestralidade e seus segredos.
Como diz Mãe Beata de Yemonjá em sua obra Caroço de dendê – a sabedo-
ria dos terreiros: “A palavra é o nosso fogo. Nosso axé. Sem ela não somos nada.
Por isso é a oralidade que ensina. A oralidade é o fundamental, foi com ela
que chegamos até aqui. A vida inteira eu mantive meu axé através da palavra”.
(Yemonja apud Caputo; Passos, 1997, p. 105)
Mesmo com todo acesso tecnológico existente entre a juventude, a orali-
dade ainda é a forma de aprendizado e vivência. Foi preciso se permitir a in-
tegração com o mundo burocrático que as instâncias governamentais impõem
e conceituar a tradição para ela ser melhor compreendida, pois o processo
histórico fez com que uma tradição se tornasse religião para a sua própria
sobrevivência. No período escravocrata, os negros cultuavam os orixás através
da imagem do santo católico, gerando o sincretismo, estratégia necessária para
a sobrevivência, conforme aponta Reginaldo Prandi (2000, p. 58): “Adotaram
as imagens católicas e as cultuaram, mas, na verdade, sob as invocações dos
santos católicos, adoravam os representantes da divina corte africana”.
Assim, o encontro, no decorrer de sua execução, foi cumprindo a sua prin-
cipal função, que é permitir que os jovens sejam importantes pilares em suas
comunidades, auxiliando suas lideranças, cuidando dos processos burocráti-
cos, ocupando os espaços de discussões e decisões com o simples e ao mesmo
tempo complexo objetivo de manter a sua tradição. É viver a juventude com
a naturalidade que ela apresenta, se fortalecendo uns com os outros e tendo
amparo para tornar a sua tradição compreendida e respeitada.
56 Cultura política nas periferias
Referências
BRASIL. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Estatuto da juventude. Brasília. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12852.htm>. Acesso
em: 04 de nov. 2019.
BRASIL. Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 04 de nov. de 2019.
BRASIL. Decreto nº 6040 de 07 de Fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desen-
volvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm>. Acesso
em: 04 de nov. de 2019.
BRASIL. Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
de Matriz Africana. 1ª Edição. Brasília, 2013.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de
candomblé. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2012.
SILVA, Saulo Inácio da. Neofundamentalismo no Brasil: a dominação carismática na Igreja
Mundial do Poder de Deus. Campinas: PUC-Campinas, 2016.
YEMONJA, Mãe Beata. Caroço de dendê – a sabedoria dos terreiros – como Ìyálórisà e Babalórìsà
passam conhecimentos a seus filhos. Rio de Janeiro, 1997.
Movimento negro evangélico:
a disputa narrativa em meio ao
conservadorismo nas periferias
Marcelo Rocha
João Marcos Bigon
Introdução
O último processo eleitoral trouxe uma sensação de que existe um forte poder
político ligado aos evangélicos, em especial os grupos pentecostais e neopen-
tecostais, como um reflexo do crescimento dos adeptos dessa fé1. Fato que cria
repulsa por parte de muitos grupos políticos, que começam a afirmar e colocar
todos os evangélicos dentro de apenas uma leitura. E que por esse motivo,
também reforça vários estereótipos atribuídos hoje a um público principal,
que em sua maioria são negros, mulheres, periféricos e trabalhadores pobres.
Queremos, neste texto, trazer algumas provocações em torno de tais relações
da periferia com o protestantismo, principalmente enquanto resistência cul-
tural e social, entendendo a transformação da sociedade brasileira através do
avanço neopentecostal desde os anos 2000. Utilizando a experiência do Mo-
vimento Negro Evangélico brasileiro como um processo de resistência e de
combate ao racismo religioso dentro daquela que tem se tornado a principal
manifestação religiosa no Brasil, ou como afirma Marco Davi Oliveira:
1
Bolsonaro cresce por ‘coerção do voto evangélico’, não por ato das mulheres, diz organizado-
ra de protesto. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/bolsonaro-
-cresce-por-coercao-do-voto-evangelico-nao-por-ato-das-mulheres-diz-organizadora-de-
-protesto.shtml>. Acesso em: 03 nov. 2019.
58 Cultura política nas periferias
Se, por um lado, não podemos deixar de afirmar que os negros, em sua maioria,
são católicos, por outro não podemos ignorar que o pentecostalismo é a igreja
mais negra do Brasil, se levarmos em consideração questões como liturgia, canto,
aproximação do povo, linguagem, postura eclesiástica etc. – características não ob-
servadas na maioria das igrejas católicas, bem como nas igrejas do protestantismo
histórico (2015, p. 18)2.
2
OLIVEIRA, Marco Davi. A religião mais negra do Brasil: por que os negros fazem opção pelo
pentecostalismo? Viçosa: Editora Ultimato, 2015, p. 18.
Movimento negro evangélico 59
3
Disponível em: <http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,777871,00.html>.
Acesso em: 14 nov. 2019. Tradução: Bertone de Oliveira Sousa.
4
ENTREATOS – Lula a 30 dias do Poder. Direção de João Moreira Salles. Brasil, 2004, 117
min Documentário.
60 Cultura política nas periferias
5
GALLOWAY, Alexander. Qual o potencial de uma Rede? In: SILVEIRA, Sergio Amadeu (org.)
Cidadania e redes digitais, São Paulo: Comitê Gestor da Internet Brasil, 2010.
Movimento negro evangélico 61
6
Nelson Mandela, um ‘ícone mundial da reconciliação’. Disponível: <http://g1.globo.com/
mundo/noticia/2013/06/nelson-mandela-um-icone-mundial-da-reconciliacao.html>.
Acesso em: 03 nov. 2019.
Movimento negro evangélico 65
A educação [...] deveria ser o campo por excelência a construir muitas entradas
e saídas nas FRONTEIRAS que nos separam. Esse poderá ser o exercício episte-
mológico e político de uma pedagogia das ausências e das emergências enquanto
componentes da pedagogia da diversidade. (Gomes, 2018, p. 92)
7
Disponível em: <https://www.nexojornal.com.b/r/expresso/2018/11/11/As-propostas-da-
-bancada-evang%C3%A9lica-em-4-linhas-centrais>. Acesso em: 28 mar. 2020.
66 Cultura política nas periferias
Sojouner Truth
No contexto histórico internacional, podemos observar a história de Isabella
Baumfree, nascida em Nova Iorque (EUA), e que é conhecida como Sojour-
ner Truth, na tradução literal ‘Peregrina da Verdade’, nome recebido em uma
“visão espiritual” pelo Espírito Santo. Mais que uma ativista, Truth era uma
evangelista itinerante pentecostal, daquelas que facilmente seriam ridiculari-
zadas em uma roda de conversa da universidade. Imagina só, todo mundo ci-
tando suas várias referências bibliográficas “acadêmicas” e ela? Era uma mulher
iletrada, aprendeu o inglês em meio a agressões, enquanto escrava. Sua maior
teoria era Jesus e sua fé, daí provinha o seu ativismo8.
Isabella foi uma abolicionista importante na história dos Estados Unidos,
sendo a primeira mulher americana negra a levar – e vencer – um processo
legal contra um homem branco, chegando a recuperar a guarda de seu filho.
Empregada doméstica, trabalhava limpando casas para manter suas viagens
missionárias. Seu discurso mais famoso foi dentro de uma igreja, em um con-
gresso cristão. “E eu não sou uma mulher” foi escrito, traduzido em várias
línguas e se tornou referência para muitas intelectuais contemporâneas como
Djamila Ribeiro, Ângela Davis, Patricia Hill Collins e Silvia Federici.
Nat Turner
Outro exemplo de resistência negra fora do país foi do lendário pastor Nat
Turner. Nat é considerado como um dos maiores nomes da história dos ne-
gros nos Estados Unidos e foi extremamente importante, pois comandou
uma das maiores rebeliões de escravizados já vista no norte das Américas. Sua
trajetória marcada por uma profunda devoção a Deus e ao estudo bíblico fez
com que esse negro, na época um escravizado alfabetizado, pregasse palavras
8
Sojourner Truth. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/sojourner-truth/>. Acesso
em: 03 nov. 2019.
Movimento negro evangélico 67
9
Nat Turner. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/nat-turner/>. Acesso em: 03 nov.
2019.
68 Cultura política nas periferias
uma obra que enalteceu a Ku Klux Klan e suas práticas de extrema violên-
cia contra os afro-americanos. Parker foi duramente criticado, mas como o
filme foi lançado no período dos protestos Oscar’s so White, quando diversas
personalidades negras de Hollywood protestaram contra a falta de representa-
Figura 7: Nat Turner, interpretado por Nate Parker, pregando em O nascimento de uma
nação (2016). Disponível em: <https://www.minhavisaodocinema.com.br/2017/01/critica-o-
nascimento-de-uma-nacao-2016.html>. Acesso em: 03 nov. 2019.
Movimento negro evangélico 69
Figura 8: O líder religioso Dalai Lama em momento descontraído com o arcebispo Desmond
Tutu. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/apos-pressao-da-china-dalai-lama-
fica-sem-visto-cancela-viagem-africa-do-sul-2744606>. Acesso em: 03 nov. 2019.
10
Desmond Tutu – Biografias. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/biografias/des-
mond-tutu.htm>. Acesso em: 03 nov. 2019.
70 Cultura política nas periferias
Considerações finais
Poderíamos fazer outros textos voltados para a exemplificação de referenciais
negros e negras, dentro e fora das Américas, que contribuíram por meio da fé
cristã com a luta por justiça e igualdade em diversos aspectos. Da mesma for-
ma, poderíamos discorrer sobre quais são os motivos que levaram os negros no
Brasil a fazerem opção por uma tradição religiosa que historicamente foi res-
ponsável pela alienação e até a opressão da população negra. A questão é que
num mundo que foi atropelado pela violência da colonização os motivos são
sempre muito entrecruzados por camadas e mais camadas de complexidade. O
que é fato, é que a presença de negros e negras nas igrejas e nas comunidades
evangélicas é uma resposta consciente ou inconsciente aos danos do colonia-
lismo e até do capitalismo. Ou seja, as experiências negras invariavelmente
são respostas ao trauma colonial, seja numa perspectiva da resistência, seja
na perspectiva da resiliência. Talvez negros tenham assimilado a religião do
opressor para preservarem sua sobrevivência, talvez tenham se identificado por
questões ancestrais não identificadas. É difícil responder, pois a comunidade
negra é diversa, rica e profunda na sua complexidade. E é sobre isso que trata
esse texto, também é sobre isso o Movimento Negro Evangélico em toda a
sua trajetória. É sobre a capacidade da identidade negra ser múltipla, diversa,
transversal e rica em complexidade, foi para e por isso que os ancestrais luta-
ram e é para que se respeite a liberdade de todo negro e toda negra dizer “eu
sou” que os Movimentos Negros lutam até hoje, pois a diversidade e subjeti-
vidade múltipla é um traço do humano e é a luta por essa humanização que a
comunidade negra trava há tantos séculos.
Sobre kilombos e Lanceiras:
construção, coletividade e
reexistência
Jéssica Teixeira Eugênio
1
A expressão black power (poder negro) foi criada por Stockley Carmichael, militante
radical do movimento negro nos Estados Unidos, após sua 27ª detenção, em 1966. O
movimento Black Power surgiu nos Estados Unidos durante as grandes mobilizações
da população afrodescendente pela igualdade de direitos civis nos anos 1960 e teve
forte influência sobre as populações negras da América Latina e do Caribe nas dé-
cadas seguintes. PINHO, Osmundo. Black Power. Enciclopédia Latino-Americana.
Disponível em: <http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/b/black-power.> Acesso em:
27 nov. 2019.
2
O hip-hop é um movimento cultural que surgiu nos Estados Unidos nos anos 1970, no
Bronx de Nova York, resultado dos confrontos e trocas culturais entre negros norte-ame-
ricanos, jamaicanos e porto-riquenhos. Significou dessa forma a organização espontânea
de uma conversa intercultural de jovens marginalizados no interior da grande cidade
norte-americana.
Sobre kilombos e Lanceiras 73
3
Coletivo que inicia produzindo festas em 2014 em Salvador, e atualmente é lido como um
movimento em diversas regiões do Brasil.
4
Palavra muito utilizada para dizer quantos corpos negros foram mortos nas favelas por poli-
ciais que é ressignificada com a ideia de afronta a partir da estética.
Sobre kilombos e Lanceiras 75
Tais práticas de letramentos estão voltadas para a concretude da vida dos ativistas,
relacionando-se às quação e questões culturais e políticas e visando, de alguma ma-
neira, ampliar suas possibilidades de inserção em um lugar de crítica, constestação
e de subversão, no qual, como sujeitos de direitos e produtores de conhecimentos,
possam forjar espaços e atuar dentro e fora da comunidade em que vivem. Inserir-
-se nesses lugares provoca a inscrição em uma complexa rede de relações sociais,
na qual, por meio de discursos, negociam-se a ocupação e a sustentação de formas
de participação social compromissadas com as transformadas das relações sociais
e raciais. (2011, p.17)
76 Cultura política nas periferias
Isso quer dizer que é na prática, na própria vida, seja na estética ou na baga-
gem que carregamos que encontramos a força, a sagacidade para construir nos-
sas metodologias de se pensar enquanto coletivo e nossa atuação a partir disso.
Chegamos nos espaços educacionais, e aqui pensando mais amplamente, sejam
eles acadêmicos ou escolares, com toda essa visão de mundo que por vezes é
deslegitimada e menosprezada. Há então um processo de negociação desde a
linguagem na comunicação oral até os hábitos culturais. Por negociação, não
negamos nada do que é nosso, mas utilizamos como ferramenta para o processo
reeducativo e de transcendência às violências desse lugares em que estivermos.
Foi negociando na Ocupação que Lanceiras e Lanceiros se coletivizaram e
se construíram enquanto coletivo. Na Universidade Federal da Fronteira Sul, os
cinco campi se organizaram enquanto movimento denominado como OCU-
PA UFFS – sendo dividido nos respectivos campi com nomes das cidades:
Cerro Largo (PR); Laranjeiras do Sul (PR); Chapecó (SC), onde também fica
a Reitoria; Erechim (RS); e Passo Fundo (RS). Localizada na mesorregião5 da
Grande Fronteira do Mercosul, a UFFS existe desde 2009 e é conhecida na
região como a Universidade dos Movimentos Sociais pela luta desses Movi-
mentos para conquistar a construção da universidade na região. Ela é uma
Universidade ocupada por mais de 90% de alunos oriundos de escolas públi-
cas, agricultores, lideranças e assentados do Movimento dos Sem Terra (MST),
mulheres do Movimento de Mulheres Campesinas (MMC), da juventude do
Partido dos Trabalhadores (PT) e da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Contudo, uma parcela da sociedade local composta por autoridades e políticos
conservadores a enxerga como uma universidade intrusa e pobre criando uma
atmosfera de intolerância à Instituição e aos estudantes da mesma.
Para entender o contexto de surgimento do coletivo, é importante con-
textualizar e destacar que o conservadorismo é intenso nessa mesorregião,
pois ela é entrecruzada por conflitos de ordem socioeconômica, cultural e
política. A presença da população indígena, sobretudo os povos guarani,
kaingang e xokleng sofre cotidianamente com a incompreensão de sua cul-
tura; há também a identidade do caboclo como tentativa insistente de em-
branquecimento da população negra ali presente; e ainda, com a chegada
5
Espaço territorial com características singulares, sejam elas físicas, econômico-sociais, políti-
cas, mas em nível não tão amplo quanto o das macrorregiões.
Sobre kilombos e Lanceiras 77
Por mais que a história dos negros do Sul do Brasil seja constantemente
invisibilisada, os Movimentos Negros retomam a história para enegrece-la por
6
A Batalha de Porongos foi a suposta “última” batalha dos Lanceiros. A Batalha em que foram
colocados em uma enrascada e traídos por seus comandantes.
80 Cultura política nas periferias
7
O clipe da música traz muito dessa tomada e ressignificação através do simbolismo em
torno da história da Revolução Farroupilha e dos Lanceiros. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=YkHY4A14Gg8>. Acesso em: 22 out. 2020.
Sobre kilombos e Lanceiras 81
8
Núcleo de Estudos afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal da Fronteira Sul,
que surge atendendo uma demanda de vários professores que desde 2011 trabalham com as
temáticas afro-brasileiras e indígenas.
Sobre kilombos e Lanceiras 83
Figura 6: Resultado da
experimentação de Grafite
na Escola Olga Travi –
Guatambú – SC.
centro da discussão, foram exibidos os filmes 13ª Emenda, Django Livre, 12 Anos
de Escravidão, Estrelas Além do Tempo, Mundo Deserto de Almas Negras, dentre
outros. As exibições foram feitas nos finais de semana no auditório da Reitoria
da UFFS com divulgação prévia. Para além da Universidade, o coletivo também
realizou uma exibição de dois minidocumentários sobre o 25 de Julho – Dia
Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. O primeiro foi
autoral, produzido pelo próprio coletivo, falando das experiências de suas arti-
vistas; o segundo foi o 25 de julho, filme que aborda o feminismo negro contado
em primeira pessoa e produzido pela Morro Produções9.
9
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=J6ev2V-Ee3U>. Acesso em: 22 out.
2020.
84 Cultura política nas periferias
Maloka Sul 1
Filho, vai estudar, você é feio, preto e pobre
Desde a infância pra não dizer que era negro me chamavam de queimado de sol
Mas embaixo do sol eu procurava emprego e jogava futebol
Diziam que o problema de ser negro tinha uma solução
Sairia com um bom banho, mas não deram um banho com água e sabão
Me deram banho com racismo, preconceito, sequelas da escravidão
Mas neguinho não pode parar
Olha onde estou e onde eles estão
Mas lutar pelo meu povo preto eu faço questão
Faço questão por que ouso honrar
Ouso honrar aquelas e aqueles que foram e são rainhas e reis
Não o senhor da casa grande
Você sabe o que ele fez? Já ouviu falar disso?
Eu não ouvi nem na escola, na tv, nos jornais, nem no rádio, nem nos livros
Guerreiras e guerreiros PRETES
Dandara, Zumbi, Anastácia, Sabotage, Marielle, Jesus Cristo
Lembra, que eu não posso parar
Então continuo seguindo
86 Cultura política nas periferias
Por isso, consideramos que, antes de tudo, os coletivos são um espaço se-
guro de autoproteção para estudantes negras e negros. Em segundo lugar, esse
espiral de segurança não se isola, tensiona o espaço em que está e assim vai se
expandindo e produzindo conhecimento por meio de suas próprias práticas.
As experiências descritas acima também podem refletir de que maneira
estudantes negres estão ocupando as Universidades, o Ensino Superior, de que
maneira estão presentes e o que fazem para continuar nesse espaço interagindo
com a sociedade sem precisar abrir mão de seus conhecimentos para isso, mas
sim torná-los legítimos. O que mencionamos repetidas vezes no texto como
estratégias de sobrevivência pode ser inteligentemente substituído por “reexis-
tência”. Os coletivos negros têm se tornado quilombos intelectuais, epistêmi-
cos, lugar de acolhimento e afeto para estudantes negros de diversos grupos e
regiões do Brasil. Além disso, também são o espaço de conflito que desvelam
as contradições políticas, institucionais e sociais dentro do espaço acadêmico.
Também podemos refletir o quanto se torna necessária a exigência do
cumprimento da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as dire-
trizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede
de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira
e Indígena”, porque a escola também é um espaço de disputa de discurso e
positivação crucial para a a transcendência de cenários de racismo. Da mesma
forma que potencializar a capacidade interdisciplinar com a mesma temática,
em todos os cursos de graduação universitários poderia fazer com que profes-
sores e professoras tenham opções discursivas entre uma formação colonizada
ou decolonizada.
Concluímos que durante a atuação com oficinas sobre combate ao racismo
e hip-hop nas escolas para fazer isso é sempre preciso refletir sobre novas e
outras práticas para a promoção de uma educação decolonizada e contra-hege-
mônica. Essa é uma prática urgente, pois discursos conservadores de ódio, xe-
nofobia entrecruzados ao racismo e etnia vêm ganhando força e popularidade
nos últimos tempos, então é essencial ocupar espaços para ressignificar alguns
símbolos de imaginário social, com informações e outros tipos de intervenção
artística e discussões políticas.
Também constatamos que é urgente multiplicar, por meio da produção,
nosso conhecimento como formas objetivas e concretas de combate e dimi-
88 Cultura política nas periferias
Referências
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de Reexistência: poesia, grafite, música, dança: hip-hop.
São Paulo: Parábola Editorial, 2011.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: Saberes construídos nas lutas por emanci-
pação. Petropólis: Editora Vozes, 2017.
CARRION, Raul. Os Lanceiros Negros na Revolução Farroupilha. 2 ed. Porto Alegre: Gabinete
do Vereador Raul Carrion, 2005
MUNANGA, Kabengele. Negritude usos e sentidos. 3ª edição ampliada e revista pelo autor. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: <https://www.dropbox.com/s/0zegrj5jbqa9iku/
MUNANGA_Negritude%20Usos%20Sentidos.pdf?dl=0>. Acesso em: 15 out. 2019.
MOREIRA, Mariana. Irmandade de luta – A ação dos coletivos negros nas universidades. In:
Afreaka, 2019. Disponível em: <http://www.afreaka.com.br/notas/irmandade-de-luta-acao-
-dos-coletivos--negros-nas-universidades/>. Acesso em: 30 out. 2019.
PINHO, Osmundo. Black power. In: Enciclopédia Latino-americana. Boitempo. Disponível
em: <http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/b/black-power>. Acesso em: 27 nov. 2019.
OLIVEIRA, Dennis. Redes e coletivos ganham força na luta contra o racismo. Disponível em:<
https://www.geledes.org.br/redes-e-coletivos-ganham-forca-na-luta-contra-o-racismo/>.
Acesso em>: 27 nov. 2019
10
Entendemos aquilombar como potente ato de proteção, acolhimento de(s)colonial e afeto.
Sobre kilombos e Lanceiras 89
JARDIM, Renata. Conceito de juventude – O que é ser jovem hoje? In: EMDiálogo. Set. 2014.
Disponível em: <http://www.emdialogo.uff .br/content/conceito-de-juventude-o-que-e-ser-
-jovem-hoje>. Acesso em: 27 nov. 2019.
NABOR Jr. A arte negra contemporânea na era do pós Hip-hop. In: Omenelick 2o. ato. Mar. 2013.
Disponível em: <http://www.omenelick2ato.com/artes-plasticas/a-arte-negra-contemporanea-
-na-era-do-pos-hip-hop>. Acesso: 24 out. 2020.O rap ainda é a CNN negra? Alma preta.
https://www.almapreta.com/editorias/o-quilombo/rap-ainda-cnn-negra
G1 SC. Suspeito de matar menino indígena diz à polícia que matou por religião. Jan. 2016.
Disponível em: <http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2016/01/suspeito-de-matar-
-menino-indigena--diz-policia-que-matou-por-religiao.html>. Acesso: 24 out. 2020.
ESTADO de S. PAULO, O. Pela 1a. vez, negros são maioria nas universidades públicas, diz
IBGE. Disponível em: <não consegui acessar o link>. Acesso:
Reexistência sapatona:
Uma experiência de ativismo
negra, lésbica e periférica
em Salvador
Bruna Bastos
mente um projeto educativo gerado pelas lutas e que constitui novos atores
políticos com novas perspectivas, contribuindo para que a sociedade em geral
agregue esses conhecimentos enriquecendo seu conjunto.
Há de se entender que o Movimento Negro apresenta-se, assim, como ele-
mento propulsor de mudanças que envolvem desde o exercício da cidadania
a construção de uma nova cultura política, ultrapassando os mecanismos co-
muns de participação popular, superando a ideia inicial de ser um movimento
de resistência ou movimento marginal apenas.
É possível afirmar que o movimento negro é responsável direto por essas
construções de ativismos dissidentes, pois há uma ampliação de construção
crítica a partir das provocações e atuação deste.
Não obstante, quando pensamos essa trajetória de lutas e transformações
buscando a voz e o lugar da mulher negra no ativismo, nos deparamos com
racismo e sexismo que ainda tentam abafar diversas narrativas. Adentrando o
feminismo, este sendo branco, o questionamento é o mesmo, o porquê mes-
mo sendo as mulheres negras pioneiras do feminismo e sempre presentes e
produtoras de conhecimento, ainda assim, tiveram suas vozes invisibilizadas
por tanto tempo no processo histórico do feminismo e demoraram tanto para
serem escutadas.
Emerge a importância de visibilizar e colocar as mulheres negras no local
de sujeito ativo, que sempre foi capaz de analisar e elaborar as reexistências.
Mulheres negras falando em primeira pessoa (Ribeiro, 2017).
Da mesma forma que pensamos as especificidades de mulheres negras em
relação aos homens negros no movimento negro, e em relação às mulheres
brancas no feminismo hegemônico, devemos analisar as especificidades exis-
tentes entre lésbicas e mulheres heterossexuais. A opressão sofrida por lésbicas
e mulheres bissexuais, a lesbofobia se caracteriza por ódio, repulsa e discrimi-
nação contra a existência lésbica
O ódio às lésbicas existe como parte integrante do patriarcado uma vez que elas
são consideradas mulheres que não se submetem às normas heterossexuais que
recorrentemente possibilitam a dominação masculina sobre as mulheres heteros-
sexuais. A constatação de que as lésbicas não estão sujeitas a certos poderes exclu-
sivos dos homens e que permeiam a relação deles com a maior parte das mulheres
94 Cultura política nas periferias
também pode ser motivadora de lesbocídios. Nestes casos, lésbicas são vistas como
indomáveis e, portanto, perigosas. (Peres, Soares & Dias, 2018, p. 21)
Se não nomeamos as realidades elas sequer serão pensadas, pois não pre-
cisamos analisar o que segue invisível, e essa insistência em falar de mulheres
como universais não marcando as diferenças existentes, faz com que somente
parte dessas mulheres sejam vistas.
Devemos atentar para as heterogeneidades que circundam a categoria mu-
lher negra, gerando um entroncamento de opressões. Aqui me direciono às
lésbicas negras enquanto sapatonas, pensando em abarcar este entroncamento
das opressões de raça, gênero, classe e sexualidade no sentido de novos letra-
mentos de reexistência, reapropriando o termo usado nas comunidades negras
e periféricas para significar lésbicas negras.
A lesbianidade é uma categoria que repensa toda a organização social e
apropriação das mulheres, sendo uma postura política e não uma mera orien-
tação sexual. O lesbofeminismo nos assessora nessa concordia, aqui definido
como o movimento feminista político teorizado por lésbicas que oferece o es-
paço necessário para criar valores feministas lésbicos e a expressão do seu amor
pelas mulheres sem perder o foco da análise do racismo, a heterossexualidade
obrigatória e o classismo, regimes que se reforçam entre si para construir uma
matriz de opressão. Portanto, não podem ser analisados separadamente, por-
que em nossas realidades eles se manifestam juntos, coexistem.
As especificidades das sapatonas negras não são entendidas como deman-
das da comunidade, porém sapatonas estão em sua maioria lidando com as
convergências políticas do movimento, muitas vezes sob o jugo da invisibili-
zação de uma parte de quem são para a garantia da legitimidade da fala sem
estereotipização.
É possível afirmar que as sapatonas organizadas têm lutado diariamente
para assegurar que suas demandas políticas não sejam usurpadas e deturpadas
pelas estruturas patriarcais, racistas e colonialistas que organizam nossa socie-
dade. Mas onde estão essas construções políticas em torno da lesbianidade na
ideia de superação dessa característica como marcador apenas afetivo-sexual?
Reexistência sapatona 95
Muitas vezes penso que preciso dizer as coisas que me parecem mais importan-
tes, verbalizá-las, compartilhá-las, mesmo correndo o risco de que sejam rejeita-
das ou mal-entendidas. Mais além do que qualquer outro efeito, o fato de dizê-
-las me faz bem. Eu estou aqui como poeta negra lésbica e sobre o significado
de tudo isso repousa o fato de ainda estar viva, coisa que poderia não ter sido
(2019, p. 44).
Considerações finais
Há uma necessidade pungente de nos construirmos, de podermos pensar
e repensar a identidade da mulher negra fora do viés hetero patriarcal branco.
Urge o fomento de visibilidade às pessoas e narrativas dissidentes e autogestio-
nadas, como a Brejo que redireciona toda a minha ação de vida.
Nós integramos, geramos sobrevivência e mobilizamos jovens negras pe-
riféricas, proporcionando a troca de experiências de luta e combate contra
a LBTQIfobia e racismo e em busca do bem viver destas mulheres com a
construção de um novo olhar, pois quando nos sabemos sujeitas de direitos
podemos lutar de forma mais digna e direta contra a negação dos mesmos de
forma individual e coletiva. As organizações sociopolíticas lésbicas e bissexuais
autogestionadas sobrevivem, ultrapassando as barreiras de alcance.
Por intermédio de parceiros, dispostos a ceder espaços como a Casa La Fri-
da Salvador e Espaço Mídia Étnica, expandimos nossas atividades para outros
Reexistência sapatona 101
Referências
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A
construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese
(Doutorado em Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.
Reexistência sapatona 103
COLETIVA do Rio Combahee (Combahee River Colective), Uma Declaração Negra Feminista.
Boston, 1977.
FERREIRA, Verônica et al. O Patriarcado Desvendado, Teoria de Três feministas materialistas:
Collete Guillaumin, Paola Tabet e Nicole Claude. Recife: Edições SOS Corpo, 2014.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
Petrópolis: Vozes, 2017.
LORDE, Audre. Trad. Stephanie Borges, 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019
PERES, Milena Cristina; SOARES, Suane Felippe e DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre Lesbocídio
no Brasil de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Editora Autoral, 2018.
RIBEIRO, Djamila. O
que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.
SOUZA, A. L. Letramento da Reexistência. Poesia, Grafite, Música, Dança: Hip-Hop. São
Paulo: Parábola, 2011.
Cartas para além das fronteiras
de travestis periféricas
Ana Vitória Pontes, Dandara Rocha, Erika
França, Mathu Capistrano e Pietra Azevedo
Sobrevivi a multilações
Sobrevivi a erros cirúrgicos que deformaram para sempre meu
rosto
Sobrevivi a litros de silicone industrial que necrosaram todo o
meu corpo
Sobrevivi a doenças sexualmente transmissíveis
Sobrevivi a apedrejamentos
Sobrevivi a assassinatos de 15 homens
Sobrevivi ao machismo
Sobrevivi ao racismo, xenofobia, transfobia, gordofobia
Me silenciaram
Não me ensinaram a ler
Sobrevivi à escola brasileira de torturas psicológicas e físicas
Sobrevivi à casa dos meus pais de torturas psicológicas e físicas
Sobrevivi a minha expectativa de vida medieval
Sobrevivi a falta de um emprego formal
Sobrevivi a homens que me comeram depois me assassinaram
Já fui roubada, já roubei, bati, matei
Sobrevivi aos presídios masculinos sendo uma figura feminina
Sobrevivi
Pode ter certeza que se não desapareci ainda
É porque tenho uma missão a ser cumprida
Eu me chamo TRAVESTI
Minha resposta a tudo isso é permanecer
essa cultura
viva
Tertuliana Lustosa
Carta I
Onde é possível ser travesti?
travesti nordestina periférica
camponesa:
sou corpo e mente
que planta e colhe na agricultura familiar
sementes contra as dominações
Dandara Rocha
tuição ainda atinge uma grande porcentagem de nós, mas hoje já consegui-
mos ocupar outros espaços. Estamos “dançando” cada vez menos nas “ruas”,
e mais nos “palácios”, nos “sertões”, nas “aldeias”, nos “quilombos” e nos mais
diversos lugares. Compreender isto é assegurar que podemos ser travestis em
variados territórios, nos construindo com múltiplas influências ao passo que
moldamos onde estamos. Cada uma resistindo em seu cotidiano conflituoso
e, como diria Linn da Quebrada, “batalhando conquistar o seu direito de vi-
ver, brilhar e arrasar”.
Carta II
Travestis nas universidades e nos palanques?
ainda que violentada,
quero florescer:
não me permito ser triste,
embora louca
desejando ser má
Dandara Rocha
Carta III
Onde trabalham as travestis?
Senhor das contradições,
o cistema que nos mata
é o mesmo que lucra com nosso corpo;
nos quer morcegas
mas somos águias
prontas para voos em águas profundas
de produção, criação
e reconhecimento
Dandara Rocha
1
Essa dicotomia existente entre homens e mulheres já foi analisada por Engels em sua obra A
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 2016.
Cartas para além das fronteiras de travestis periféricas 117
que vocês compreendam que nossos corpos são incompatíveis com a estrutura
da sociedade burguesa, cisnormativa e racista e que, portanto, não conseguem
se encaixar no mercado de trabalho formal; afinal, este não foi feito para nós.
Assim, a patética crença da meritocracia cai por terra porque nós a pisamos.
Agora, pensem conosco: será que essa disputa seria justa se fossemos invisí-
veis ao crivo cisgênero e pudéssemos concorrer despercebidas? Se a nossa ima-
gem não fosse uma bandeira, conseguiríamos estar no mercado de trabalho
formal com dignidade? Infelizmente, acreditamos que não! Como disputar
qualquer coisa de maneira justa, especialmente uma vaga no mercado laboral,
quando sequer temos nossos direitos fundamentais garantidos? Ou quando
permanecemos invisíveis aos olhos da sociedade civil e do Estado? Talvez vocês
não saibam, mas nós travestis ainda não temos direito a nome, autodetermi-
nação, núcleo familiar seguro, terapias hormonais seguras, sistema educativo
não violento e inclusivo, e até mesmo o de fazer xixi sem sermos violentadas e
constrangidas. Mona, como concorrer em pé de igualdade quando se está na
margem, na periferia?
Outro fator que deve ser levado em consideração é a exclusão escolar de
nós travestis. Consoante a tese da primeira travesti doutora do Brasil, Luma
de Andrade (2012, p. 6),
Carta IV
Travestis, quem nos ama?
é sobre
não estar na esquina
dos sentimentos;
na periferia
dos corações
Dandara Rocha
“amigos” que possuíamos. É possível ter essa dimensão quando paramos para
refletir quais ambientes ocupamos, como ocupamos e quem está do nosso
lado. Quem realmente quer ter uma travesti como amiga? Quem queremos
ter como amigas/os? Onde é possível circular o afeto da amizade quando se é
travesti? Nessa dimensão, somos relegadas à solidão de forma avassaladora, o
que nos torna depressivas, agressivas e incompreensíveis.
Em outro âmbito a discussão da afetividade é complexificada quando esta
envolve homens cisgêneros, principalmente heterossexuais (que são “comple-
xos” em si, convenhamos. “Complexos” para não utilizarmos de termo de-
preciativo). Eles, com os quais muitas de nós construímos relações afetivas
e sexuais, não nos veem no plano afetivo, mas apenas no plano sexual. Este
processo evidencia a hipersexualização e objetificação que socioculturalmente
somos acometidas. Não somos “mulheres para casar”, somos “mulheres para
sexo”, “putas”. Não é à toa que estamos próximas, somos submetidas e cons-
truímos o contexto da prostituição.
Embora existam exceções de homens cis-héteros que queiram produzir afe-
tividades para/com nós, no geral experienciamos a “periferia” do afeto deles
em contraposição à centralidade que as mulheres cisgêneros possuem. Afinal,
será mesmo que não somos dignas de sermos amadas? E se somos, por que
não estão nos amando? Como estão nos amando? A angústia dessas pergun-
tas é vivenciada nestes versos da travesti Liniker e os Caramelows, na música
‘Goela’: “Fica com ela, respeita ela, que ela é mulher e você tem que amar...
Porque ela quer carinho”.
Por todos esses processos de exclusão e assujeitamento de nossas construções
afetivas, é impossível tratar sobre esta temática de nossas vivências sem nos reme-
termos a algo que todas compartilhamos, independente de nossas realidades – a
solidão. Talvez essa seja a esfera de nossas vivências que mais nos afeta e impede
que possamos desfrutar do direito de amar sem construirmos barreiras e receios
quanto a hipersexualização de nossos corpos. É uma solidão que atravessa todos
os âmbitos, seja na família, na escola, na universidade, com amigas/os, no amor,
no trabalho etc. sendo que esta ganha nuances diferentes quando pensamos
em outros atravessamentos, como: qual nossa raça/etnia? Qual nosso modo de
sobrevivência? Quantos anos de idade possuímos? qual nosso nível de “passabi-
lidade”? Qual o nosso nível de escolaridade? Qual território construímos?
Cartas para além das fronteiras de travestis periféricas 123
A solidão travesti está para além da ideia de estar sozinha, mas reside na inse-
gurança de não se sentir completa o bastante para alguém. É sobre não se sentir
capaz ou interessante; é sobre ser admirada nas festinhas LGBTs, mas nunca ser
alvo de uma paquera e terminar a noite sozinha; é sobre procurar prazeres efê-
meros nos lugares mais obscuros e com pessoas que talvez não fizessem o menor
sentido se não estivéssemos abaladas emocionalmente; é sobre sabotar a nossa
própria consciência por migalhas e fazer delas grandes vitórias; é sobre amar o/a
outro/a e ainda se preocupar, porque tememos, antes de tudo, por ele/a.
As relações afetivas sempre nos foram delicadas. Por vezes, produzem um
medo que impede relacionacionamentos sem blindagem para possíveis situ-
ações inconvenientes, conversas fantasiosas e futuras desilusões amorosas. O
receio de sermos rejeitadas nos coloca em uma condição onde sempre nos
sentimos inferiores. Cobramos de nós mesmas a melhor versão possível para
agradar e garantir uma “passabilidade” que nos camufle de olhares e julgamen-
tos, nos assujeitando a diversos procedimentos que são dolorosos.
Tudo isso porque idealizamos uma vida para compartilhar com outras pesso-
as nossos risos, nossas dores, nossas angústias, nossos desejos, nossas conquistas e
nossos medos. Não mais ordinário, mas para nós segue sendo extraordinário. E
mesmo que acreditemos que não precisamos de ninguém para garantir nossa fe-
licidade e tentemos reforçar essa ideia com “unhas e dentes”, é impossível negar
a falta que faz a sensação de se sentir importante para alguém. Parafraseando a
música “Balada de Gisberta” de Pedro Abrunhosa, interpretada na voz de Maria
Bethânia, para nós travestis “O amor é tão longe/ E a dor é tão perto”.
Entretanto, diante desses processos de negação de afeto com família, ami-
gos/as e parceiros/as, é possível pensar em como nos fortalecemos em outros
âmbitos. Entre nós, por mais que historicamente tenha sido alimentada uma
rivalidade travesti, muito em decorrência do contexto da prostituição, em que
há disputas de território, beleza e clientes, é possível construir afetos e solida-
riedades. E assim pensar em uma “sororidade travesti” na produção de afetos
de e para nós, já que através da lógica cisnormativa não conseguimos acessar a
afetividade, como se ela fosse, literalmente, uma coisa de difícil acesso (como
um diamante). Por isso, nos submetemos a homens casados em busca de “aven-
tura”, desde que “não conte a ninguém”, que nos buscam em lugares ermos,
longe dos olhares alheios; são as migalhas do afeto que ainda nos alimentam.
124 Cultura política nas periferias
Referências
ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem norma-
tiva. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa
de Pós-Graduação em Educação, Fortaleza, 2012.
ANTUNES, Leda. Por que o número de candidaturas de pessoas trans aumentou em 2018.
HuffPost Brasil, 2018. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/2018/09/25/por-
-que-o-numero-de-candidaturas-de-pessoas-trans-aumentou-em-2018_a_23541532/>.
Acesso em: 07 jan. 2020.
AZEVEDO, Pietra. “Travesti não é bagunça”: etnografia da performance identitária das travestis
no contexto urbano mossoroense. Monografia (Graduação em Ciências Sociais – Bacharelado).
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Mossoró/RN, 2017.
BENEVIDES, Bruna. Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2017. Associação
Nacional de Travestis e Transexuais, 2018. Disponível em: <https://antrabrasil.files.wordpress.
com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf>. Acesso em: 09 jan. 2020.
BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio
de Janeiro: Garamond, 2006.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 2016.
BRASIL. Nota da Reitoria. Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira,
2019. Disponível em: <http://www.unilab.edu.br/noticias/2019/07/16/nota-da-reitoria-3/>.
Acesso em: 08 jan. 2020.
126 Cultura política nas periferias
1
Agradeço a Mariana Andrade Fausto pela atenção, carinho e disponibilidade de conceder a
entrevista. Certamente sua história poderá contribuir com as trajetórias de muitas mulheres.
Agradeço também Cilene Silva Fernandes por realizar a transcrição da entrevista e leitura.
2
Cabe destacar que antes da realização da entrevista acordamos a escrita do artigo, de que
seria desenvolvida de forma inclusiva de gênero, pois acreditamos que essa escolha dialoga
diretamente com a proposta do livro intitulado: Livro: Cultura e política nas periferias:
estratégias de reexistência. Para outras informações, acessar:https://blogueirasfeministas.
com/2013/08/16/linguagem-inclusiva-de-genero-em-trabalho-academico/.
3
Trecho extraído da entrevista realizada com Mariana Andrade Fausto realizada no dia 28 de
novembro de 2019.
4
O Instituto Terre des hommes Brasil é uma organização de sociedade civil que tem a missão
de promover, garantir e defender os direitos de crianças e adolescentes em situação de vulne-
rabilidade social. A instituição integra o movimento internacional Terre des hommes, cuja
sede global é em Lausanne, na Suíça.
128 Cultura política nas periferias
Bahia por parte de mãe e Minas por parte de pai, porém seus pais já nascem em
São Paulo. Mariana, conectada ao futebol, desde pequena expressa sua paixão
pelos esportes em modo geral. Além disso, tem a sua trajetória muito próxima
da maioria das histórias que conhecemos de meninas e mulheres que tentaram
jogar futebol profissionalmente. Jogou profissionalmente por dois anos e sempre
apresenta em sua fala as dificuldades que sofreu por ser uma mulher, negra e
lésbica. Desde pequena sempre teve seu lado questionador e crítico para olhar as
questões que estavam à sua volta, inquietações também compartilhadas por sua
família, em especial sua irmã Shirley que trabalhou com projetos sociais.
Mari, como costuma ser chamada pelas amigas e amigos, diz que seu clube
do coração é o Corinthians Sport Club, e assim como a maioria das pessoas,
são heranças trazidas pelos homens da família, em seu caso, seu pai e seu avô.
No entanto, Mariana destaca que hoje não é só isso e essa conexão tomou ou-
tras proporções, diz ter orgulho do seu clube pela história que ele carrega: “É
um time construído pela luta e de muitos movimentos. É muito interessante
hoje ter essa compreensão. O time que eu faço parte é um time com essa his-
tória e construção. E assim, me sinto representada por ele”
Carolina: Primeiramente, gostaria de agradecer a sua disponibilidade em con-
ceder essa entrevista. Gostaria que você falasse como o futebol entrou na sua
vida e do sonho de se tornar jogadora de futebol profissional.
Mariana: Comecei desde cedo, com seis anos eu jogava praticamente so-
zinha “eu e uma bola no quintal de casa”, e aos finais de semana eu jogava
com os meninos na comunidade onde morava. Em 2012, quando eu tinha
16 anos joguei alguns meses no Centro Olímpico5, através da peneira que
eu fiz nessa época. Após o COTP e alguns problemas familiares, voltei a
jogar Asape6 e foi quando Emily Lima7era técnica do sub 17 e foi ver um
amistoso nosso para “quem sabe” fazer uma convocação. Foi muito interes-
sante pois ela teve um olhar para a periferia, ela foi até a zona leste assistir as
5
Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa Marechal Mário Ary Pires (COTP).
6
Associação Atlética Pró Esporte.
7
Emily Lima foi jogadora de futebol, chegou a treinar a seleção brasileira de futebol por ape-
nas dez meses. E recentemente, após pedir demissão do Santos Esporte Clube, foi convidada
pela seleção do Equador. Para maiores informações, acessar: < https://dibradoras.blogosfera.
uol.com.br/2019/12/02/ex-tecnica-do-brasil-emily-lima-assume-selecao-equatoriana/>.
Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 129
meninas jogando e isso foi muito inspirador. Foi para mim, Amanda Bispo
pelo sub-17 e a Drielle Jesus pelo sub-15. A Drielle8 ainda teve a chance de
ir fazer o treinamento na Granja Comary9, mas nesse período Emily subiu
de cargo e virou técnica da seleção principal e assim entrou uma outra
equipe no sub-17 com outros nomes de jogadoras e, assim, acabamos não
ganhando essa chance.
É por isso que digo que o futebol para mulheres é muito complicado por-
que você trabalha por contratação, é muito diferente do futebol jogado por
homens. Então, eu acabei não optando por seguir nessa carreira. Falo de cora-
ção, penso que eu poderia estar jogando profissionalmente com toda a certeza,
só que a precariedade acabou me tirando esse sonho. Digo isso, porque se você
não for jogadora de um time de ponta como o Corinthians10, que recentemen-
te foi campeão11 você não consegue ascensão. Para conseguir seguir nessa car-
reira você tem que ser a Marta12 ou a Cristiane13, ou seja, as melhores. Assim,
porque por mais que eu acreditasse no meu potencial sempre ponderava que
poderia não acontecer.
Por exemplo, muitas meninas trabalham recebendo salário mínimo e a
maioria não recebe. Foi assim que acabei colocando em uma balança a minha
paixão com o futebol e a necessidade de condições para sobreviver.
Carolina: E hoje você faz parte de um time? Joga com regularidade?
Mariana: Sim, eu faço parte de um time que se chama Asape, tem uma trei-
nadora que também é bem conhecida, Ita Maia Reis14, que já participou de
8
Para maiores informações sobre a convocação, acessar: <https://www.cbf.com.br/selecao-
-brasileira/noticias/selecao-base-feminina/emily-lima-convoca-sub-15-para-treinamento-
-em-pinheiral>.
9
A Granja Comary é um centro de treinamento da Seleção Brasileira de Futebol.
10
Sport Club Corinthians Paulista.
11
O Sport Club Corinthians Paulista venceu as duas competições em 2019: Copa Libertado-
res da América e do Campeonato Paulista.
12
Atualmente jogadora do Orlando Price, dos Estados Unidos, Marta Vieira da Silva já foi
escolhida como melhor jogadora por seis vezes.
13
Jogadora do São Paulo Futebol Clube, Cristiane Rozeira de Souza Silva atua como atacante.
Em 2012, tornou-se a maior artilheira do futebol feminino da história dos Jogos Olímpicos.
14
Para outras informações, acessar: <http://futebolfeminino.museudofutebol.org.br/teste/?p=226>.
130 Cultura política nas periferias
15
Para outras informações, acessar: <https://www.museudofutebol.org.br/>.
16
Os Centros Educacionais Unificados são equipamentos públicos de educação que estão lo-
calizados nas regiões periféricas da cidade de São Paulo.
17
Os treinamentos ocorrem terça-feira, quinta-feira e sábado. Terça-feira e quinta-feira, das
19h às 21h e no sábado, das 10h às 12h.
18
Para outras informações, acessar: <https://dibradoras.blogosfera.uol.com.br/2019/09/10/
varzea-resgata-futebol-raiz-mulheres-tambem-sao-protagonistas-no-terrao/>.
Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 131
Porque é um projeto que tem meninas que já sofreram diversas violações. Tem
muita menina lá, desde os oito anos até os 40, 50 anos, abrange todo mundo.
A gente participa dos campeonatos, e tenta se autossustentar. É bem com-
plicado também, porque não existe esse olhar para a gente, então tentamos
buscar várias formas de nos manter.
Carolina: Você pensou que o caminho para o profissionalismo seria difícil?
Mariana: Exato. E a impressão que eu tinha era que só seria possível construir
uma carreira fora do Brasil. E assim, vivenciei uma das grandes questões, não
apenas para mim, mas também para muitas meninas. Como para as mulheres
é mais difícil ingressar na carreira, caso você não tenha sucesso, fica tarde de-
mais para pensar na construção de uma carreira profissional. Acho que para
mulher é mais complicado nesse aspecto do que para os homens.
Carolina: Existe idade certa para jogar futebol profissionalmente para as mu-
lheres?
Mariana: Acredito que não, porque não existem critérios, depende muito de
como você joga. No caso dos homens você tem categorias de base (sub-11,
sub-12, sub-13, sub-14) e desde cedo é possível fazer parte de uma estrutura
e processos. No caso das meninas, não existem categorias de base, isso difi-
culta bastante.
Carolina: Como funciona o processo de uma peneira para as mulheres? As
jogadoras jogam sem receber?
Mariana: Por exemplo, em 2017 fiz uma peneira na Portuguesa19 para jogar
no Campeonato Paulista, se você pensar é um campeonato importante, po-
rém, veja como é complicado: eu vou lá e faço a peneira se eu sou aprovada
eu faço um contrato específico para jogar esse campeonato. E se você perde o
campeonato a chance de o clube rever o seu contrato para permanecer é míni-
mo. Ou seja, a sensação é de eterno recomeço, como se nós tivéssemos prazos
de validade20. Às vezes as pessoas podem até achar bacana que uma mulher
19
Associação Portuguesa de Desportos.
20
Para saber outras informações sobre o relato feito por Mariana, acesse <https://www.nexo-
jornal.com.br/reportagem/2017/05/28/No-pa%C3%ADs-do-futebol-as-mulheres-jogam-
-com-menos-falta-sal%C3%A1rio-p%C3%BAblico-e-estrutura>.
132 Cultura política nas periferias
21
Utilizaremos a terminologia Futebol de Rua, compreendendo que está mais próxima das
praticantes e mediadoras no Brasil. Para maiores informações consultar o artigo: VAROT-
TO, Nathan Raphael; LEMOS, Fábio Ricardo Mizuno; FÁBIS, Lúcio de Castro. Percepções
de mediadores/as de Fútbol Callejero sobre a sistematização da formação para a mediação:
do Fútbol Callejero ao Futebol de Rua. In: Coloquio de pesquisa qualitativa em motricidade
humana e interculturalidade e colloquium on qualitative research humammotricity: motri-
city and interculturality / colóquio de investigación cualitativa em motricidade humana mo-
tricidade y interculturalidad, 8., 2019, Maputo, Moçambique. Anais... / Annals... / Anales...
São Carlos: SPQMH, 2019. p. 59-65.
Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 133
Mariana: Isso foi em 2015, portanto, nesse ano as jovens que participavam
do projeto estavam se organizando para montar uma equipe para participar
de um campeonato na Argentina e tudo estava sendo organizado pela insti-
tuição Ação Educativa22. Eu chego nesse momento, começo a participar do
projeto como jogadora e sou convidada a fazer parte da Delegação Brasileira
para participar da Copa América. A partir disso, a instituição Ação Educativa
organizou uma estrutura para que pudéssemos participar, com treinamentos,
propostas formativas e dialogadas. E com a possibilidade de treinamentos,
conseguimos avançar na prática da mediação (terceiro tempo), além de jogar.
Carolina: Uma das coisas que mais me chama a atenção nessa metodologia é
o fato de ser um jogo misto. Qual a potência dessa opção?
Mariana: Eu penso que se essa metodologia não fosse jogada com meninos e
meninas juntas, seria excludente. Do jeito que é, é revolucionária. O futebol
de rua é uma prática que tem uma potência enorme para o diálogo, são nesses
momentos que você tem a participação de mulheres, pessoas LGBTQ e idades
diversas e quem mais quiser participar, porque de fato é um futebol diverso e isso
é revelar o poder do diálogo e quando você faz isso você entende as demandas dos
outros e assim aprende a lidar com elas. E por isso, quando você coloca meninos e
meninas para jogarem juntas, eles e elas vão discutir sobre relação de coletividade.
Carolina: O que é essa coletividade?
Mariana: Por exemplo, o menino sempre aparece enquanto protagonista do
futebol, e aí começamos a pensar. Porque ele não pode passar essa bola para
menina? Porque a menina não pode participar efetivamente disso? Então, você
pode falar só da metodologia, mas ela também abre espaço para diversos ou-
tros temas, como já vimos acontecer de ter uma mulher trans em um dos
times e esse time foi questionado sobre ser misto ou não, ou seja, nos dá essa
possibilidade de ter esse tipo de conversa, e assim aprendemos a construir em
conjunto através dos três tempos.
Carolina: Em 2015 eu trabalhava na organização Ação Educativa, na coor-
denação dos projetos ligados ao futebol de rua e, por isso, participei de toda
22
Fundada em 1994, a organização Ação Educativa atua nas áreas da educação, cultura e
juventude. Para outras informações, acessar: <http://acaoeducativa.org.br/>.
Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 135
23
Para outras informações, acessar: <http://movimientodefutbolcallejero.org/copa-ameri-
ca-2015-brasil-campeon/>.
24
Para outras informações, acessar: <https://www.buenosaires.gob.ar/noticias/buenos-aires-
-sede-la-copa-america-de-futbol-callejero-2015>.
136 Cultura política nas periferias
25
Nesse momento outros polos também faziam parte: Movimento Nacional da População de
Rua, Cedeca Sapopemba, Clube Municipal CEE Raul Tabajara, Capão Cidadão, Projeto
Meninos e Meninas de Rua SBC, Sindicato dos Metalúrgicos de São Carlos.
26
União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região.
27
Heliópolis é um bairro localizado na Zona Sul da cidade de São Paulo. A comunidade de
Heliópolis, conhecida por sua luta e também por sua magnitude, teve no final dos anos
1970 uma comissão de moradores que lutou intensamente pelo direito à moradia. A partir
desse movimento, surge a Unas que atua com projetos sociais no bairro até os dias de hoje.
Foi a partir de 2006 que a favela de Heliópolis adquiriu o estatuto de bairro.
Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 137
Carolina: Você poderia falar sobre a sua trajetória a partir de seu trabalho na
comunidade de Heliópolis como mediadora e de sua participação na Copa
América?
Mariana: Gostaria de destacar o lançamento da Rede Paulista de Futebol de
Rua28 em um evento chamado Estéticas das Periferias29. A partir desse lan-
çamento da Rede e também de nossa participação na Copa Regional Cachu
Rodrigues em 201630 é que mais uma vez voltamos campeãs, sem perder
nenhum ponto no terceiro tempo. Foi um processo muito interessante, com
diversos países participando. Também fui como jogadora. Mas, nesse evento,
já consegui participar de algumas coisas como mediadora porque existia um
processo de formação de mediação. Retornamos, me mantive no polo de
Heliópolis. Com o meu trabalho e o passar do tempo, fui convidada para
participar das reuniões da TDH31 que é um dos apoiadores da Rede Pau-
lista e Ação Educativa. Comecei a participar das reuniões no momento em
que aconteceria uma eleição para representante do Brasil para participar da
conferência que haveria, na sequência, na cidade de Lima, no Peru. Eu me
candidatei e acabei ganhando, ou seja, fui eleita representante do futebol. A
TDH funciona da seguinte forma: existe uma prioridade na participação,
não apenas de coordenadoras, mas também dessa coparticipação de jovens.
A Conferência das Três Vozes conta com a coparticipação de jovens, dos co-
ordenadores e da Orla32, que são as pessoas que fazem essa articulação por
países. Fui para a conferência no Peru. Nessa conferência teve uma votação
para se eleger uma das jovens como representante da América do Sul, para
participar da conferência na Alemanha 2018. Eu acabei me candidatando
e, mais uma vez, fui eleita. Só que agora no Peru, para ser representante da
América do Sul, e a Maria Fernanda, que era da Nicarágua, foi eleita repre-
28
Para outras informações, acessar: <http://acaoeducativa.org.br/blog/2015/07/31/entidades-
-criam-rede-paulista-de-futebol-de-rua-e-revelam-o-potencial-de-transformacao-social-do-
-futebol/>.
29
Para outras informações, acessar <https://www.facebook.com/esteticasdasperiferias/>.
30
Para outras informações, acessar: <https://movimientodefutbolcallejero.org/copa-regional-
-cachu-rodriguez-2016-2/>.
31
Terre Des Hommes.
32
Oficina Regional para Latinoamérica (Orla).
138 Cultura política nas periferias
33
Para outras informações, acessar: <http://tdh-latinoamerica.de/?p=4034>.
Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 139
mim, esse projeto de futebol de rua tem uma potência comunitária, se for
feito de forma correta, se for feito de uma forma que valorize os processos da
jovem. Acho que uma coisa interessante é que as mediadoras são jovens, então,
é uma linguagem direta, e esse trabalho em conjunto, a jovem falando com
outra jovem, com poder de transformação, sem que tenha alguém mandando,
ela mesmo vai refletir sobre o que está fazendo, sobre os seus atos, como me-
lhorar, isso tudo a faz crescer, faz dela a protagonista do seu próprio processo.
Carolina: Você acredita na potência do futebol?
Mariana: Eu acho que a gente tem que parar de pensar no futebol como al-
gum coisa ruim, e pensar em alternativas. Pessoas que estão ou, que não estão
contentes, elas não criticam, elas acham soluções, se você realmente quer fazer
a transformação, você tem que propor uma solução, algo alternativo, que é o
que acontece com o futebol de rua. Eu acho que a gente tem que pensar no fu-
tebol como uma ferramenta de transformação real, através dessa metodologia
[do futebol de rua] você consegue ter esse viés, de reflexão dos seus atos. E hoje
eu sinto que isso não acontece muito sabe? Hoje em dia é tudo muito banal!
Olha que coisa bacana que essa metodologia proporciona, por exemplo, como
já aconteceu nas oficinas em Heliópolis, de ver uma mãe jogar com o filho,
ver os dois jogarem juntos! Uma mulher e o filho, automaticamente, a gente
pensa no pai da criança, mas a metodologia abre caminhos para que você crie
esses diálogos, como a gente já fez um jogo de pessoas em situações de rua com
policiais34, olha o poder de articulação, o poder de conversa.
Carolina: Se não fosse o futebol esse jogo não aconteceria?
Mariana: Jamais. O futebol tem disso, eu acho que ele é, principalmente, nes-
sa metodologia, acolhimento. Nessa metodologia, você tem que estar aberto
ao diálogo, seja um policial ou um morador de rua. Os dois têm o mesmo
nível de poder de fala. A educadora que aplica o futebol de rua, não é quem
manda, ela é uma mediadora, ela é uma facilitadora da conversa, não decide
nada, quem decide são as pessoas que estão participando. A educadora de hoje
em dia tem essa dificuldade porque acha que mandando é que se mantém o
34
Para outras informações, acessar: <http://acaoeducativa.org.br/blog/2013/12/20/dezembro-
-marca-o-inicio-das-atividades-preparatorias-para-o-mundial-de-futebol-de-rua-em-sao-
-paulo/>.
Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 143
controle, ela é, exatamente, o apito, o árbitro. Para mim foi difícil entender
que não podia opinar, que era um processo, a jovem da periferia de hoje em
dia dificilmente consegue manter um diálogo. Ela se sente coagida porque
não tem esse poder de fala e aí se ela está num espaço e sabe do tema, mesmo
assim, não vai falar porque muitas vezes não sabe como falar, como se colocar
e com isso perde oportunidades. Por isso, o futebol de rua é uma proposta
que, estimula a pensar diferente. Por exemplo, em relação a competividade
que sempre é uma questão nos jogos. Mas o que a gente fala é que ou você
ganha, ou você ganha, ou você ganha o jogo, ou você ganha aprendizagem, os
dois estão ganhando.
Carolina: Mari, para encerrar, gostaria que você falasse sobre os impactos de
ser uma mulher, negra, lésbica e jogadora de futebol que atravessa o Atlântico?
Mariana: A experiência na Alemanha foi muito especial, pois além de parti-
cipar da StanCon, também tive a possibilidade de visitar espaços muito em-
blemáticos, como uma formação que dei de futebol de rua na galeria Olga
Benário35, podendo conhecer a sua história e todo o contexto em que ela
viveu, também pude ir ao campo de concentração em Weimar [Alemanha]
isso significou muito, pensando nos contextos históricos que aconteceram no
Brasil, como a época da ditatura e o quanto é assustadora a capacidade do ser
humano de se sentir superior ao outro, por conta da sua cor da pele, entre
outras coisas sem sentido algum, de forma doentia. Ser uma mulher, negra,
lésbica, que gosta de jogar futebol, e, também, periférica, é resistir o tempo
inteiro! Porque no futebol tudo passa por um falso moralismo, sabe? Se você é
tudo isso, mas joga muito bem, o resto fica escondido. Se você for uma educa-
dora, por exemplo, assim como eu, que vivo um momento muito interessante,
com as pessoas que trabalho eu consigo falar abertamente sobre diversidade
sexual, algo que você não consegue falar, principalmente, na periferia. Então,
essa questão da homossexualidade é bem complicada, mas eu consigo con-
versar com minhas alunas abertamente sobre gênero. Mas também sei que
saindo daquela oficina, independentemente de ser uma representante de “algo
35
Olga Benário foi uma militante comunista alemã e foi enviada ao Brasil em 1934 para
apoiar o Partido Comunista Brasileiro junto com Luís Carlos Prestes que, posteriormente,
tornou-se seu companheiro. Olga viveu clandestinamente por anos, no entanto, em 1942,
com 34 anos de idade, foi morta na câmara de gás com outras mulheres.
144 Cultura política nas periferias
Referências
BELMONTE, Maurício Mendes. Fútbol Callejero: processos educativos decorrentes de uma
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Uma voz da periferia que atravessa o Atlântico 145
Introdução
Os quilombos ou “comunidades remanescentes de quilombos” no Brasil,
como reconhece a Constituição Federal de 1988 por meio do Art. 68 do Ato
das Disposições Constituições Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
O reconhecimento dos quilombos como sujeitos de direitos é fruto de uma
longa história de resistência dos africanos escravizados no Brasil e suas des-
cendências. Forjados como movimento de resistência ao sistema escravista e
em busca de liberdade, os quilombos representam a luta dos negros contra a
opressão e violência impostos por meio da escravidão.
Ao reconhecer os quilombos como sujeito de direitos, a Constituição Fede-
ral do Brasil reconhece também seus territórios, suas práticas e características.
Porém, o pensamento colonial que perpassa por todas as instituições, públicas
e privadas, tem dificultado o acesso dos quilombos aos direitos constitucio-
nais. A definição de quilombo e terras quilombolas para o Estado brasileiro,
pela Constituição Federal de 1988, diz que:
1
Outras informações estão disponíveis em: www.conaq.org.br e www.terradedireitos.org.br.
150 Cultura política nas periferias
O quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de línguas bantu (ki-
lombo, aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu significado no Brasil têm a
ver com alguns ramos desses povos bantu, cujos membros foram trazidos e escra-
Um olhar cruzado pelo “ser quilombola” 151
vizados nesta terra. Trata-se dos grupos lunda, ovimbundu, mbundu, kongo, im-
bangala etc., cujos territórios se dividem entre Angola e Zaire. Embora o quilombo
(kilombo) seja uma palavra de língua umbundu, de acordo com Joseph C. Miller
(Munanga), seu conteúdo enquanto instituição sociopolítica e militar é resultado de
uma longa história envolvendo regiões e povos aos quais já me referi. É uma história
de conflitos pelo poder, de cisão dos grupos, de migrações em busca de novos ter-
ritórios e de alianças políticas entre grupos alheios (Munanga, 1995/1996, p. 58).
Importa dizer que a esfera cultural adquire, desde aí, seu ponto de inflexão, afinal
a identidade coletiva de uma comunidade política de cidadãos é referência de uma
territorialidade simbolicamente específica de um estilo e modo de ser que se quer
reconhecível, universalmente, pela sua diferencialidade (Farias, 2012, p.68).
Aqui, vou me ater apenas a dois dos tipos de feminismos que a autora nos
apresentou: negro e branco. Considerando o que já afirmou Carneiro (2003,
p. 118), numa convocação para “enegrecer o feminismo” e Werneck (2005),
ao afirmar que as lutas das mulheres negras não estão circunscritas nas bases do
feminismo branco, pois elas nascem de outras bases. Eu diria que as mulheres
quilombolas não estão presentes nem no feminismo branco ou clássico pelas
suas especificidades e suas relações com elementos simbólicos, por exemplo, os
territórios, a cura, a relação com o meio ambiente, principalmente por lugares,
regiões geográficas, relação com a religião e aspectos culturais de forma mais
ampla, algo a ser alcançado pelo feminismo negro. Esses aspectos ajudam e
somam na construção de uma identidade racial e de gênero e ordenam as ban-
deiras de lutas, bem como as estratégias de enfrentamento para determinadas
questões e por que não dizer? De todas elas.
Quais são os significados das lutas de gênero ou de um feminismo para
uma mulher urbana? E para uma mulher negra, urbana e quilombola? Teria a
mesma lógica? A vida no meio rural acontece do mesmo jeito que no meio ur-
bano? Que valores urbanos são comuns ao mundo rural? Não estou afirmando
que as mulheres quilombolas urbanas tenham perdido o seu sentido do ser,
nem que as mulheres negras em geral não tenham pautas comuns às mulheres
quilombolas. Apenas refletindo sobre esses dois mundos, rural e urbano e as
perspectivas de gênero, que por si só se dividem e levam consigo ou constroem
para si seus próprios significados. Mesmo no meio rural, existem várias rura-
lidades, assim como existem várias urbanidades, ou seja, formas diferentes de
viver esses dois mundos.
Portanto, pensar esses mundos, rural e urbano, dialogando com as mulhe-
res, a partir de única teoria é cair na armadilha do pensamento totalizante e
hegemônico, vistos apenas por aqueles(as) que olham para o “outro (a)” e o
(a) comparam a partir de sua visão de mundo, cultura, crença, região, possibi-
lidades de acessos aos bens materiais e imateriais, aspectos religiosos e deixam
para traz parte importantes desses coletivos, por exemplo, onde vivem, como
vivem, suas identidades e culturas.
Para Arguedas (2017, p. 72), “o conceito de território oferece muitas possi-
bilidades teóricas e políticas para compreender esses complexos processos de re-
organização social que estão em curso no mundo todo”. Buscar caminhos que
Um olhar cruzado pelo “ser quilombola” 155
2
Angios planta terrestre ou saxícola( Neoglazioviavariegata ), da fam. das bromeliáceas, nativa
do Brasil (NE), de poucas folhas lineares e acuminadas, dispostas em roseta, inflorescência
158 Cultura política nas periferias
luta e resistências são representadas por elas, é algo a se analisar como luta an-
tirracista e antimachista. Sendo assim, as bonecas falam, tem rostos e corpos.
As 11 bonecas (Mendencha Ferreira, Maria Emília, Josefa, Antônia, Ana Belo,
Lourdinha, Júlia, Madrinha Lourdes, Generosa, Mãe Magá e Valdeci) cada
uma delas traz para o presente a história de luta das mulheres quilombolas
fundadoras do quilombo e da herança crioula e a continuidade da luta por
emancipação naquele território.
Mas, as bonecas não contam apenas as histórias. Elas reivindicam lugares
de fala, de representações e se posicionam politicamente. Esse é o verdadeiro
sentido da existência e reexistência dos quilombos, dos quilombolas e, sobre-
tudo, das mulheres quilombolas no Brasil. Compreender essas vozes e res-
peitar esses espaços, os quilombos, é recompor com o silêncio da história do
Brasil, em relação ao povo negro, para recontá-la de forma que permita que
não fique ninguém para traz. A história dos quilombos e das mulheres qui-
lombolas precisa sair da margem e da invisibilidade. O exemplo das bonecas
de Conceição das Crioulas pode ser uma boa estratégia a ser seguida.
Parafraseando Viveiros de Castro (1996, p.117), “os animais são gente, ou
se veem como pessoas”, eu diria: as bonecas crioulas são vidas, são as histórias
de resistência e existência das mulheres. Elas são produtos de vários conheci-
mentos construídos a partir das muitas identidades. Elas são produtos de uma
ciência que, para chegar ao estágio de bonecas aprenderam a falar, contar suas
histórias, afirmar suas identidades. Elas também aprenderam a lutar para per-
manecer em seu território, para reaver o território invadido por fazendeiros, e
nele/com ele plantar e celebrar o bem viver. As bonecas nos apresentam esse
território, o quilombo de Conceição das Crioulas com seus rostos, vozes, sig-
nificados e corpos, reinventando e reconstruindo a história e suas identidades.
Quando Lima (1999, p.54) fala das cosmologias juruna e afirma: “as almas
dos mortos, por sua vez, se pensam como vivos”, eu diria: as bonecas crioulas
pensadas sem vidas perdem seu maior potencial que é de contar a história,
construir identidades e conhecimentos e de se afirmarem enquanto sujeitos de
laxa com 25 cm de comprimento e com até 60 flores, de sépalas vermelhas e pétalas pur-
púreas; as folhas fornecem longas fibras, de grande resistência e durabilidade; carauá, caruá,
coroá, coroatá, crauá, croá, gravatá.
Um olhar cruzado pelo “ser quilombola” 159
Considerações finais
Certamente muitas lacunas ficaram em aberto e algumas questões foram tra-
tadas ainda sem a devida profundidade. No entanto, o objetivo desse texto
era provocar, refletir e trazer para esse campo, o campo sociológico, questões
consideradas periféricas que considero relevantes e ainda carecem de discus-
sões mais aprofundas, como a forma como as os quilombos lidam com suas
identidades e a partir delas lutam contra o racismo e dominação e pelo direito
às políticas públicas. Se, cumprimos essa tarefa, cumpriu-se também a nossa
intenção, pelo menos de imediato, requerendo um tempo maior para amadu-
recer tais questões.
Contudo, registra-se a importância desses temas para que com eles e a partir
deles, possamos contribuir para visualizar territórios, culturas, corpos e, ouvir
vozes que historicamente foram silenciadas e subalternizadas. Nesse campo, as
vozes das mulheres negras e quilombolas sempre foram as mais afetadas. Esse
movimento poderá fazer com que esses corpos, mentes e vozes façam seus pró-
prios anúncios, utilizando-se de suas próprias características e agências.
Referências
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Negros e territórios: Clubes
negros e identidades em Ponta
Grossa e Tibagi
Merylin Ricieli dos Santos
Ione da Silva Jovino
Em 2009, foi feito o pedido de registro dos Clubes Sociais Negros como Patrimônio
Cultural Imaterial do Brasil para o Iphan, na categoria “Lugar”. No Paraná fo-
ram mapeados seis clubes, cuja permanência propõe leituras sobre a escravidão
e pós-abolição, segregação, racismo e invisibilidade dos negros. A resistência dos
clubes e suas configurações atuais desafiam a noção de “lugar” como categoria
do patrimônio imaterial, ampliam e dissolvem conceitos, produzindo o real por
meio da memória, significações e afetos. As memórias têm lugar, mapas e imagens
presentes na oralidade(...) A existência dos clubes propõe outra produção cultural
do real, desafia a construção social da história local, na qual os negros foram invi-
sibilizados e branqueados. (p.6)
Negros (des)territorializados
A região Sul do Brasil possui quantidade significativa de clubes negros, sendo
o Rio Grande do Sul o estado com o maior número em seus limites urbanos.
Além de haver uma expressiva produção historiográfica acerca deles no respec-
tivo Estado. Segundo Escobar (2010), a Prefeitura de Santa Maria e a Secreta-
ria de Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) financiaram uma in-
vestigação que chegou a destacar 43 (quarenta e três) clubes sociais negros no
Rio Grande do Sul em 2009. A pesquisadora afirmou que, além dessa busca,
outras entidades foram registradas futuramente, chegando a contabilizar 55
(cinquenta e cinco) espaços deste perfil, mapeados pelo Museu Treze de Maio.
Já no estado de Santa Catarina, “O clube Cruz e Sousa, de Lages, fundado
em 1901, é um dos mais antigos em atividade. Há outras associações ativas em
Tubarão, Florianópolis, Criciúma, Laguna, Tijucas, Joinville e Itajaí.” (Arau-
jo, 2017, p. 1).
Partido da região Sul e tendo o Rio Grande do Sul como parâmetro quan-
titativo, podemos afirmar que o Paraná, o estado mais negro dentre os três que
compõem a região, conta com uma quantidade modesta de clubes negros em
seu território.
No ano de 2014, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
(Iphan), por intermédio dos pesquisadores Geslline Giovana Braga e Juliano
Martins Doberstein, realizou um mapeamento1 dos clubes sociais negros no
Paraná. Por meio de análises, pesquisas e questionários, foram registradas seis
instituições: Clube Recreativo Campos Gerais, localizado na cidade de Castro;
Sociedade Operária Beneficente Treze de Maio, situada em Curitiba; Clu-
be Rio Branco, fundado na cidade de Guarapuava; Associação de Recreação
Operária, de Londrina; Clube Literário e Recreativo Treze de Maio, constru-
ído em Ponta Grossa; Clube Recreativo e Cultural Estrela da manhã, no mu-
nicípio de Tibagi (Iphan, 2010). Sendo os dois últimos, os territórios negros
aqui problematizados.
1
Parte deste mapeamento fora fornecido por membros do Iphan (PR) ao Núcleo de Relações
Étnico-Raciais, de Gênero e Sexualidade da UEPG para que o projeto de extensão tratado
neste artigo pudesse ter mais informações sobre os clubes negros da região.
Negros e territórios 165
Apesar dos negros estarem presentes nos mais diversos espaços, haviam espaços que
eram característicos da população negra, seja pela concentração de negros residentes,
pelo uso frequente para o trabalho ou para a realização de práticas culturais. Esses
espaços acabaram marcados na memória da cidade como territórios negros, devido
à concentração de negros e ao uso singular e frequente. (p.15)
166 Cultura política nas periferias
Metodologia
O projeto de extensão que deu origem a este artigo teve como foco evidenciar
as narrativas orais de sujeitos frequentadores dos dois clubes negros já men-
cionados e com base em seus discursos orais construir um acervo digital com
as entrevistas e suas respectivas transcrições. Assim, ao longo de doze meses de
vigência do projeto, buscou-se entrevistar homens e mulheres, em maioria ne-
gros, que tiveram em algum momento de suas vidas uma participação efetiva
nos territórios negros aqui abordados.
Contabilizando as narrativas dos dois clubes o projeto realizou dezeno-
ve entrevistas com o auxílio de seus bolsistas graduandos e recém-formados,
nas áreas de história e jornalismo, que trabalharam na perspectiva da história
oral considerando-a como uma arte da escuta (Portelli, 2016). As entrevistas
foram em número semelhante2, sendo dez em Ponta Grossa, sobre o Clube
Literário e Recreativo Treze de Maio e, nove entrevistas realizadas na cidade
de Tibagi, com sujeitos que tiveram ou têm, vínculos com o Clube Recreativo
e Cultural Estrela da manhã.
Quando falamos em história oral, entretanto, também nos referimos a algo mais
específico. Mais do que uma ferramenta adicional, por vezes secundária, na panó-
plia do historiador, as fontes orais são utilizadas como eixo de um outro tipo de
trabalho histórico, no qual questões ligadas a memória, narrativa, subjetividade e
diálogo moldam a própria agenda do historiador. (Portelli, 2016, p.10)
2
Ainda que dezenove entrevistas tenham sido realizadas, apenas trechos de algumas serão
analisados.
168 Cultura política nas periferias
das narrativas que pode vir a contribuir para pesquisas futuras que tenham tais
formas de sociabilidade como objetos de estudos e análises.
Resultados e discussões
Em uma narrativa cronológica, iniciamos apresentando o histórico do Clu-
be Literário e Recreativo Treze de Maio, que é um dos mais antigos do
Estado. Fundado na cidade de Ponta Grossa no pós-abolição, passou por
quatro endereços até fixar-se no endereço que se encontra na atualidade.
A fundação ocorreu no dia Treze de Maio de 1890, mas com base em pes-
quisas anteriores, consideramos a hipótese de que desde 1888 já havia uma
movimentação de idealização desde espaço, porém em estatuto a instituição
é datada de 1890 “e teria sido encabeçada por Cassemiro Cardoso, Firmino
Souza, Lúcio Alves da Silva, Pedro Souza, Tristão Santos e outros negros
intelectuais de renome na cidade” (Santos, 2014, p.228). Quanto à com-
posição racial da cidade de Ponta Grossa, com base em pesquisas anteriores,
concluímos que:
3 – O Clube Treze de Maio era data comemorativa. Então criaram aquele Clube
Recreativo Treze de Maio, mas aquilo era muito bom. É porque era tradição das
pessoas de cor que criou ali o Clube Treze de Maio. (Bueno, 2017, Entrevista –
grifos meus).
4 – Nós negros não éramos bem-vindos, porque quando você chegava num clube
que você não era sócio, mesmo que você pagasse para entrar, você não era bem
recebido. Infelizmente era assim. Mas no treze de maio você se sentia em casa,
por que? Já pelo clube, pelo nome, pelas pessoas que eram da diretoria. (Pereira,
2017, Entrevista – grifos meus).
Há uma série de aspectos e signos que poderiam ser explorados nos enun-
ciados apresentados, todavia o foco é compreender como tais entrevistas ex-
ploram elementos que (re)tratem, ainda que de modo indireto, o histórico e as
Negros e territórios 171
1 – Lá era muita valsa e... E samba, (né)? Samba. (Bueno, 2017, Entrevista – gri-
fos meus).
2 – [...] lá você podia dançar de tudo, desde o soul (né), a música negra americana,
até um pagode, até um samba de raiz, desde Clara Nunes até onde você quisesse.
(Pereira, 2017, Entrevista – grifos meus).
1 – Bom, o clube sempre esteve muito, muito falado. Além de ser o clube dos
negros, o clube do samba. Tudo que era melhor sambista era do 13 de Maio[...].
(Manoel, 2017, Entrevista – grifos meus).
172 Cultura política nas periferias
2 – Eu gostaria que tivesse alguém que fizesse o Treze de Maio funcionar como era
antigamente (né). Pense bem, a raça negra não tem um clube hoje famoso como
era o Treze de Maio. Tinha que ter (né), você não acha que tinha? Tinha que ter
um clube bem bonito, bem famoso como era o Treze de Maio e fazer o samba não
morrer, tocar samba mesmo lá (né). Ah! Que devagarinho, devagarinho o samba está
morrendo. Vocês não notaram isso? (Madureira, 2017, Entrevista – grifos meus).
3 – Ah! Eu via o clube como um lugar de negritude mesmo, era aquela ali a essên-
cia do negro, do samba, o que infelizmente se perdeu, mas quando eu fui lá era
isso mesmo. (Ramos, 2017, Entrevista – grifos meus).
Este território negro foi fundado na primeira metade do século XX, dife-
rente do Clube Literário e Recreativo Treze de Maio, aqui apresentado, que é
datado de 1890 e da Sociedade Operária Beneficente Treze de Maio de Curiti-
ba que é datada de 1888, ambos final do século XIX. E a cidade-sede do Clube
Recreativo e Cultural Estrela da Manhã dispõe de uma predominância negra,
Dito isso, e com base nos discursos orais dos participantes e ex-partici-
pantes da então forma de sociabilidade, tem-se os seguintes relatos sobre seu
histórico:
1 – Eu vou falar do que eu lembro (né). Porque no início o pessoal negro não tinha
onde dançar. Eles dançavam, faziam seus carnavais, seus bailes, Como dizer(?) na-
quela época não diziam lanchonete e sim nos bares (né). Tinha o bar Ouro verde,
ali o bar do Nelso hoje bar já não é mais. [...] Com o tempo foram se organizando
melhor e resolveram construir o clube Estrela. E foi com muito sacrifício, muita
ajuda, muita colaboração das pessoas e conseguindo montar uma diretoria. (Si-
queira, 2017, Entrevista – grifos meus).
2 – O Clube Estrela da Manhã foi uma associação fundada em 1934 e nesse início
desses associados e amigos da associação, eles faziam os bailes em diversos locais
aqui do centro da cidade e, só no ano de 1955 que eles conseguiram na realidade
construir uma sede, que hoje é onde que é o atual Clube Estrela da Manhã (né).
Então essa inauguração foi feita com muita festa e o primeiro presidente, Seu
José, José Ribeiro Pinto, Seu Zé Biné, ele organizou toda uma festa junto com os
membros da diretoria (né) e fizeram uma festa o dia todo, toda voltada para essa
bela inauguração, que foi na data de 25 de Setembro de 1955. (Assunção, 2017,
Entrevista – grifos meus).
3 – [...] o Clube Estrela da manhã é conhecido pra nós como o clube dos pretos
(né) e isso é uma coisa muito bonita porque quando você fala em estrela da ma-
nhã clube dos pretos você está pensando na tua gente (né), no teu povo, naquelas
174 Cultura política nas periferias
pessoas que você conheceu e que participaram sempre (...). (Navarro, 2017, En-
trevista – grifos meus).
Um clube dos pretos, fundado por negros e para negros em 1934, mas só
vem adquirir sua sede própria 21 anos depois. Os enunciados apresentados
trazem a priori que a iniciativa de criação da instituição é marcada pela ne-
cessidade de socialização dos afrodescendentes tibagianos que vivenciaram os
mais diferentes modos de exclusão social que caracterizou o pós-abolição. As-
sim, o clube se constitui não apenas como uma alternativa para interação de
sujeitos negros, mas como uma representação do caráter ativo destes indiví-
duos que não se acomodaram diante das práticas discriminatórias e fundaram
seu próprio território.
O Clube Recreativo e Cultural Estrela da Manhã se assemelha ao Clube
Literário e Recreativo Treze de Maio em vários aspectos de seu processo de
fundação, visto que ambas as entidades foram criadas por sujeitos negros e
para atender as necessidades destes cidadãos. A transitoriedade dos endereços
destas instituições até fixarem-se em suas próprias sedes também é um aspecto
comum entre elas, além da presença do samba como um dos gêneros musicais
que tocavam no clube, sobre isso os entrevistados e frequentadores do Clube
Estrela da Manhã verbalizaram que:
1 – Quando tocava um samba não tinha ninguém. Naquela época era comum
dançarmos todos juntos (né) assim de par, mas quando tocava Samba a roda se
formava ali no meio do clube e não tinha, não tinha pra ninguém. Todo mundo
dançando Samba que é a nossa característica (né), a nossa dança (né). O Samba
é.. O Samba é do nosso clube (Então não tinha). Muito bom! (Navarro, 2017,
Entrevista – grifos meus).
2 – Mas geralmente era música lenta assim (né) e muito samba né que tem/tinha
que ser (né), pois nós somos todos descendentes de negros que adoramos samba
né. (Taques, 2017, Entrevista – grifos meus).
3 – Era um estilo variado. Músicas para dançar, para os casais dançarem, músicas
da época mesmo (né). E as músicas de carnaval, essas eram/são as que eu mais
me recordo. São as músicas mesmo de carnaval. (Ribeiro, 2017, Entrevista –
grifos meus).
Negros e territórios 175
1 – Então o que mais movimentava mesmo era o carnaval, né, porque na época
não tinha os carnaval da tenda, que surgiu no ano 2000, então movimento carna-
valesco era no Clube Tibagiano e o Clube Estrela, né, que tinha concorrência das
escolhas da rainha e todo o festejo das cinco noites. (Assunção, 2017, Entrevista
– grifos meus).
2 – Gostava mais do carnaval mesmo, toquei por vários anos no carnaval, que eu
tinha conjunto também, tinha conjunto que era Os Diamantes, de Tibagi, que é
lembrado até hoje pelo pessoal. Então que eu lembro assim da frequência do car-
naval, os carnavais davam muito bonito, um tanto de gente assim. (De Assunção,
2017, Entrevista – grifos meus).
3 – E fizeram vários eventos ali no clube e os carnavais eram muito, muito ani-
mados, o melhor carnaval da cidade. E o pessoal participava mesmo. (Siqueira,
2017, Entrevista – grifos meus).
1 – Eu gostava muito do Carnaval de lá. Era o melhor Carnaval que tinha pra
gente naquela época. (Pereira, 2017, Entrevista – grifos meus).
2 – Nossa, era super Carnaval. Muito bom... Com todo o respeito o pessoal pu-
lava, a moçada (né). Tinha matinê, os matinês, e de noite, depois das dez horas
era o baile, baile carnavalesco...Nossa senhora! Como era bom! (Bueno, 2017,
Entrevista – grifos meus).
176 Cultura política nas periferias
3 – Se falava Treze de Maio, o Carnaval era o Treze de Maio. (De Paula, 2017,
Entrevista – grifos meus).
Considerações finais
Considerando que um clube foi fundado logo após a abolição da escravatu-
ra (Clube Literário e Recreativo Treze de Maio, de Ponta Grossa) e o outro
fora criado quase cinquenta anos após este feito (Clube Recreativo e Cultural
Estrela da Manhã, de Tibagi), pode-se dizer que as diferenças mais notáveis
estão no contexto histórico em que se constituíram e no perfil sociorracial das
cidades em que foram fundados.
Ambos são territórios negros, mas talvez possamos pensar em dois pontos
principais que os diferenciam. Primeiro: Um clube foi fundado como Literá-
rio e o outro como Recreativo e Cultural. O que faz pensar na hipótese de que
as interdições que cercavam o primeiro foram motivos de sobra para que seus
idealizadores os registrassem como um espaço formativo e “desconectado” das
práticas culturais negras, visto que as práticas de leitura não eram um traço
característico destes indivíduos em 1890.
O segundo ponto refere-se ao perfil racial da cidade de Tibagi. De predo-
minância negra, é possível que tal realidade demográfica tenha colaborado
para que o clube conseguisse consolidar-se sem muitos embates. Nesse senti-
do, levando em conta também o período de fundação de cada entidade, talvez
possamos pensar o Clube Treze de Maio como um ambiente demarcador da
resistência da população negra pontagrossense e o Clube Estrela da Manhã
como um marcador de existência da população negra Tibagiana, mas atual-
mente, se assemelham, já que ambos re-existem (Souza, 2010) a partir de suas
singularidades e dinâmicas próprias.
Negros e territórios 177
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178 Cultura política nas periferias
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Santos. Tibagi, 2017. 1 arquivo. Mp3 (tempo em 20:28 min/s).
Culturas tradicionais e
territórios de autoinscrição:
memória e resistência negra
Janja Araújo
1
Termo visa apresentar uma comunidade de praticantes da capoeira, hoje não mais um es-
paço exclusivo de homens negros, africanos ou descendentes destes no Brasil. O termo se
atualiza numa comunidade transnacional e em trânsito, com praticantes em todos os conti-
nentes em cerca de 160 países.
2
Estas podiam ser alugadas a outros para prestação de serviços em que especializassem
(costura, bordado, culinária etc.), ou ainda comercializar produtos diversos, sobretudos
alimentícios.
182 Cultura política nas periferias
3
Ver: ALBUQUERQUE, Wlamyra, 2006
4
Espécie de sociedades secretas formadas de capoeiristas, presentes em muitos bairros de vá-
rias cidades brasileiras, sobretudo durante o século XIX, por ocasião das lutas abolicionistas
e republicanas.
5
O mesmo fenômeno pode ser observado nas religiões de matrizes africanas (candomblé e
umbanda), e outras expressões culturais negras, como jongo, maracatu, congadas, sobretudo
nos grandes centros urbanos.
6
Sobre as formas como eram tratadas as mulheres valentes, sobretudo aquelas envolvidas na
capoeiragem, ver Oliveira Leal, 2009.
Culturas tradicionais e territórios de autoinscrição 183
7
Termo comumente usado nas comunidades-terreiro para referir-se ao lugar em que são ins-
talados objetos rituais, sendo este uma espécie de altar das divindades.
184 Cultura política nas periferias
8
Ver FARIAS, Eny K. V. – Maria Felipa de Oliveira: heroína da independência da Bahia
(2010).
186 Cultura política nas periferias
9
Forma como capoeiristas se referem à sociedade mais ampla, sendo a pequena roda os espa-
ços dos elementos de aprendizagem das práticas especificas da capoeira.
188 Cultura política nas periferias
10
Referência à soberana africana Nzinga Mbandi Ngola (1583-1663).
Culturas tradicionais e territórios de autoinscrição 191
11
Resultado de sua tese de doutoramento sob a orientação do professor Florestan Fernandes,
na Universidade de São Paulo.
Culturas tradicionais e territórios de autoinscrição 193
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carru-
agens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar
onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a
saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não
sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e
juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não
sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer ho-
mem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também!
E não sou uma mulher? Eu pari 3 treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a
escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus
me ouviu! E não sou uma mulher? (Davis, 1981, p. 71)
12
Sojouner Truth nasceu escrava em Nova Iorque, sob o nome de Isabella Van Wagenen, em
1797; foi tornada livre em 1787, em função da Northwest Ordinance, que aboliu a escravi-
dão nos Territórios do Norte dos Estados Unidos (ao norte do rio Ohio). Fonte: geledes.org.
br. Acessado em: 10 jul. 2019.
194 Cultura política nas periferias
13
Nos referimos à ação de Combahee River, liderado pela abolicionista Harriet Tubman
(1822-1913).
Culturas tradicionais e territórios de autoinscrição 195
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Samba, dissembas e
massembas: os caminhos
grafados dos Sambas Escritos
Maitê Freitas
Q uando eu tinha uns 13 anos, fui flagrada ouvindo Cartola. Meu pai
havia saído para trabalhar e retornou para pegar algo que esqueceu. Ao
voltar, me flagrou a plenos pulmões cantando O mundo é um moinho1. Ele
não disse nada. No outro dia, enquanto ele ouvia um disco de samba, eu
desdenhei e pedi que trocasse para rock. Minha mãe me alertou: “eu e seu pai
sabemos que você gosta de Cartola, Maitê”. Fiquei desajeitada.
Tratava o meu gosto por samba e pagode como algo secreto que jamais
poderia ser revelado aos meus amigos de adolescência. O único espaço onde
eu compartilhava tal gosto musical era nas reuniões de família com os meus
primos e primas. Na casa das minhas tias, ouvir samba era algo que fazia parte
de nossos ritos afetivos. Recordo-me dos domingos em que amanhecia na casa
da minha tia Margarida e ela ouvia o disco do Jamelão, cantarolava enquanto
cozinhava e eu a observava reger os temperos.
Lembro que uma das minhas primeiras saídas sem a presença dos meus
pais foi para ver o grupo Katinguelê 2 no Sesc Interlagos com os meus primos;
1
CARTOLA. O mundo é um moinho. In: CARTOLA. Rio de Janeiro: Discos Marcus Perei-
ra, 1976. Faixa A1. LP.
2
Grupo de pagode fundado em 1983 na zona sul de São Paulo. O show citado no texto
aconteceu no ano de 1997, no programa Bem Brasil (TV Cultura).
198 Cultura política nas periferias
eles eram mais velhos e me levaram para ver o show. Era um mar de gente
preta, todo mundo cantava em coro os refrãos. Foi uma catarse, eu não podia
ficar para trás, cantei em voz alta, fiz as coreografias com todos. Como eu sabia
cantar aquelas canções que não eram apreciadas em casa? O vizinho ouvia, um
carro passava com a caixa de som bem alto e não havia uma pessoa que não
escutasse aquelas canções de amor.
Muitos anos se passaram para que eu entendesse a potência de ter passa-
do uma manhã de domingo cantando pagode. Levei anos para compreender
e reconhecer a força daquele dia, o quanto eu me sentia pertencente, forte
e acolhida por aquelas músicas, por aquele coro de pessoas pretas cantando
samba. Negar o samba era uma estratégia de afirmação da identidade de uma
adolescente nascida e criada na periferia, que estudou em escola pública, mas
que sempre teve amigos brancos cujo gosto pela música popular brasileira era
visto como chacota.
Passados mais de 17 anos, durante a prova teórica para o concurso de pós-
-graduação em Estudos Culturais, ao pensar o tema da redação e o diálogo
com as proposições teóricas, recordo que iniciei um texto falando sobre as
rodas de samba como espaços identitários, políticos e ancestrais. O que fiz a
certa altura do texto? Rasguei. Como eu poderia me atrever a escrever sobre
samba em uma prova para entrar no mestrado de uma das maiores instituições
de ensino do país?
Para validar a minha intenção de entrar para uma pós-graduação eu não
poderia lançar mão daquilo que o racismo estereotipou como sendo “assunto
de preto” e falar de samba. Seria melhor e mais erudito tratar de assuntos mais
palatáveis à construção e aceitação científica. Inicialmente, este projeto nasceu
da vontade de compreender os aspectos do feminismo negro na literatura de
autoras negras. Como a construção das personagens, as trajetórias ficcionali-
zadas, apresentavam aspectos caros e presentes no ativismo de mulheres negras
no Brasil? Esta era a pergunta central.
Como pesquisadora, eu era movida por minha atuação e diálogo cotidiano
com o movimento das mulheres negras na produção cultural. Portanto, a certa
altura deste estudo, a minha atuação sociocultural atravessou o projeto inicial
e, desse atravessamento, trouxe uma nova proposição: incorporar a minha atu-
ação no samba dentro desta pesquisa. Levei muito tempo para aceitar que seria
Samba, dissembas e massembas 199
uma pesquisadora negra falando sobre o samba. Aceitar que a minha atuação
social também estaria presente na minha atuação acadêmica foi um longo pro-
cesso, mas que, ao me deparar com as narrativas das mulheres negras no samba,
em especial àquelas da Coleção Sambas Escritos, tive a compreensão de que
o tal distanciamento tão preconizado no fazer acadêmico não era algo com o
qual eu compactuava; uma vez que, como sujeito histórico, político e social, a
minha atuação poderia ser a principal fonte de pesquisa e elaboração teórica.
Muitas vozes falam através da minha. Na minha escrita, as escritas, as nar-
rativas e as vozes que foram emudecidas, esquecidas, marginalizadas, esvazia-
das e minorizadas, se imprimem através deste fazer científico. Portanto, deixar
que o samba se incorporasse a este estudo possibilitou que ele se mantivesse
vivo, aquecido e respeitado.
Bell Hooks em seu livro Ensinando a Transgredir (2013), no capítulo Estu-
do Feminista, narra a sua chegada na academia e a surpresa ao perceber que os
estudos de gênero não incluíam as narrativas de mulheres negras; e os estudos
sobre raça tinham como foco o homem negro. As mulheres negras não exis-
tiam para o mundo acadêmico. Nas palavras da autora:
O que aconteceu paulatinamente a seguir não foi o afastamento radical das mu-
lheres negras do mundo do samba, e sim, basicamente, o apagamento proposital
de suas marcas, de sua presença protagônica.
muitas das experiências que as mulheres negras enfrentam não são classificadas
dentro das fronteiras tradicionais da raça ou discriminação de gênero, uma vez
que essas fronteiras são atualmente compreendidas e que a intersecção do racismo
e do sexismo afeta as vidas das mulheres negras de maneiras que não podem ser
capturadas completamente examinando as dimensões de raça ou gênero dessas
experiências separadamente (Crenshaw, 1991, p. 1244, tradução nossa).
3
BATATINHA. Direito de sambar. In: SAMBA DA BAHIA. Rio de Janeiro: Fontana, 1975.
Faixa B4. LP.
202 Cultura política nas periferias
4
Disponível em: <https://issuu.com/sambasampa/docs/revista_sampa_samba>. Acesso em:
28 set. 2019.
204 Cultura política nas periferias
5
Coletivo de produção audiovisual com sede na zona sul de São Paulo, na região do M’ Boi
Mirim.
6
Coletivo de produção audiovisual com sede na zona norte de São Paulo, na Brasilândia.
7
Disponível em: <https://www.youtube.com/user/sambasampa9>. Acesso em: 30 Set. 2019.
8
Todos os vídeos estão disponíveis na internet via canal Youtube.
206 Cultura política nas periferias
como os das baianas Xênia França e Luedji Luna ganharam destaque e proje-
ção no mercado. No entanto, o mesmo não aconteceu com as cantoras negras
de samba. Mesmo nomes como Fabiana Cozza e Teresa Cristina, que recebem
“louros” sazonais no mercado fonográfico e que atendem a um determinado
nicho de público, não têm suas carreiras alavancadas em indicações a prêmios
e participações em festivais internacionais.
Ao longo da história, poucas mulheres negras no samba alcançaram pro-
jeção. Atualmente, as rodas de samba têm exercido um papel importante no
resgate da memória de sambistas negros. Cantoras como Bernadete, Geovana,
Tia Cida e Raquel Thobias são reverenciadas entre suas pares, poucas con-
seguem gravar discos, fazem shows e integram a roda composta por jovens
preocupadas e atentas em honrar essas presenças em vida.
Os grupos formados por mulheres negras ou não negras, como Samba de
Dandara, Sambadas, Samba Delas, Amigas do Samba, Pura Raça, Samba das
Pretas ou Samba Negras em Marcha, desempenham um papel fundamen-
tal no protagonismo das mulheres no samba em São Paulo. Ao se reunir em
praças, bares, institutos culturais e outros espaços, esses grupos possibilitam
que cantoras da “velha-guarda” do samba não sejam esquecidas e tenham seus
trabalhos reconhecidos.
Pensar a memória e o resgate dessas presenças femininas negras no sam-
ba, e dar a elas o espaço de protagonismo devido, me faz recordar do dia
em que conheci a cantora Geovana, a quem eu prestarei uma homenagem
nesta dissertação. Era uma quarta-feira de agosto, quando o radialista e
pesquisador Moisés da Rocha9 bradou: “Vocês conhecem Geovana?”, no
auditório da Galeria Olido. “Venha aqui, Geovana. Para quem não conhe-
ce, ela é uma grande compositora. Martinho da Vila gravou seus sambas.
Vocês conhecem Geovana”. Em meio ao evento, levantou-se uma senhora
negra, de cabelo avermelhado e camiseta branca. Tímida, ela entoou: “pisa
nesse chão com força, ô Sinhá”. Seus pés pulsavam o que o canto evocava.
No dia anterior, enquanto a exposição Clementina de Jesus – uma trajetória
fotobiográfica era montada, uma mulher negra de cabelos vermelhos passou
pelo corredor da galeria e, despretensiosamente, nos apresentou as histórias
9
Moisés da Rocha é apresentador do programa de rádio “O Samba pede passagem”.
208 Cultura política nas periferias
e personagens daquelas fotos de Quelé. Aquela senhora passou por nós, nos
contou histórias e seguiu.
Com uma voz grave, um pé que pulsava uma força vinda de muito longe,
ali estava Geovana diante de mim. Isso aconteceu em agosto de 2012. Desde
então, sempre que assistia ao vídeo desse encontro eu me perguntava: “onde
está Geovana?”. Levei seis anos para reencontrá-la. Quando a reencontrei,
meu único desejo era estar perto dela e ouvir suas histórias. Não hesitei em
chamá-la para participar da intervenção que aconteceria na roda de samba
Pagode na Disciplina para falar sobre as narrativas de mulheres negras e o sam-
ba. A primeira resposta que tive foi negativa. Dias antes desse meu primeiro
contato, Marielle Franco10 era assassinada.
Geovana não poderia estar conosco. E agora? Eu estava no Rio de Janeiro,
pensando em alternativas, quando o telefone tocou e mais uma vez aquela
voz forte se tornava presença: “Maitê, é o seguinte: eu vou nesse encontro. Eu
estou muito triste com o que aconteceu com a Marielle. Lembrei-me de uma
grande amiga, Beatriz Nascimento. O momento é para estarmos juntas, entre
as minhas. Eu vou”.
A voz e a presença certeiras de Geovana me fizeram tremer e chorar. Nos
encontramos em um domingo e almoçamos juntas com várias mulheres ne-
gras que atuam no samba, na política e na comunidade. Diante de Geovana,
nos olhamos como quem não acreditava que ela estava ali, entre nós.
No retorno para casa, Geovana, muito feliz, me contava sobre a grava-
ção do seu novo CD e das comemorações de seus 70 anos. Diante dela, me
perguntei: quanto tempo levamos para conhecer e reconhecer o talento de
mulheres como Geovana? Lembrei de Clementina e Jovelina, mulheres negras
retintas que alcançaram algum apogeu já senhoras.
Nos bailes de samba-rock e nas rodas de samba não há um corpo que fique
parado diante das composições de Geovana. São gerações de homens e mulhe-
res, em sua maioria pretos periféricos, que ouviram e cantaram “gosto de fazer
amor, quem tem carinho me leva”11.
10
O crime foi executado no dia 14 de março de 2018, no Estácio, região central da cidade do
Rio de Janeiro.
11
GEOVANA. Quem tem carinho me leva. In: QUEM TEM CARINHO ME LEVA. Rio de
Janeiro: SME, 1975. Faixa A1. LP.
Samba, dissembas e massembas 209
quem escreve nas próximas páginas são outras mulheres negras, contemporâneas,
que enxergam o legado ancestral como movimento de significantes e significados
profundos, unindo passado / presente / futuro, tais como as folhas (o conhecimen-
to) herdadas pelas velhas tias baianas [sic]. Nomes que têm protagonizado novos
espaços do dizer e do pensar, transpondo barreiras raciais e de gênero. Ao aceitar
o convite para apresentar este trabalho me peguei refletindo sobre o presente e
o passado do samba, ao qual também fui levada por meu ainda criança. Minha
memória traz uma voz, um semblante feminino.
Embora este episódio com Fabiana Cozza não esteja no centro do que
este trabalho pretende discutir, é importante explicar que o colorismo é algo
caro e que aquece os debates sobre negritude e efeitos do racismo no Brasil.
O termo foi cunhado pela escritora Alice Walker no ensaio If the Present Looks
Like the Past, What Does the Future Look Like? (1982). Walker fala sobre a hie-
210 Cultura política nas periferias
12
Discurso de Angela Davis durante a conferência de abertura da Escola de Pensamento Femi-
nista Negro, em 17 de julho de 2017, na cidade de Cachoeira-BA.
13
SANTANA, Bianca. In: Inovação Ancestral de Mulheres Negras: táticas e políticas do coti-
diano. Oralituras (2018). São Paulo. p.17
Samba, dissembas e massembas 211
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Rodas, terreiros e
comunidades periféricas do
samba de São Paulo
Tadeu Augusto Mateus (Tadeu Kaçula)
Introdução
As discussões acerca da importância das contribuições culturais a partir de
algumas iniciativas organizadas pela sociedade civil como a preservação histó-
rico-musical, oralidade e transmissão do notório saber e das práticas cotidia-
nas tendo como foco inicial a valorização do samba na cidade de São Paulo,
buscam evidenciar este gênero musical popularmente conhecido através do
resgate, promoção, divulgação, preservação e reconhecimento de todos aque-
les que lutaram, lutam e continuarão lutando pela sua existência.
Há uma movimentação cultural nas regiões periféricas de São Paulo que
se autodenominam projetos e comunidade de samba e, segundo uma pré-pes-
quisa que realizei em contato com algumas dessas iniciativas, essas comunida-
des, terreiros e projetos de samba constituem ações de caráter sociocultural de
resgate, promoção e divulgação da história e da memória do samba como uma
das principais tradições culturais do Brasil e realizam um conjunto de ações
comunitárias tentando, com isso, propiciar aos seus pares, amantes, admira-
dores, simpatizantes do samba, um contato – o mais próximo possível – com
uma parte relevante das nossas raízes culturais.
Essas comunidades e projetos de samba, que se organizam nas regiões
periféricas da cidade de São Paulo, criam uma identificação regional a partir
216 Cultura política nas periferias
de sua relação com o espaço social na qual elas se estabelecem. Para entender
essa relação com o espaço social onde essas iniciativas culturais estão esta-
belecidas, procurarei fazer uma análise tendo como um dos marcos teóricos
o texto de Milton Santos Técnica, espaço e tempo, no qual o autor faz uma
importante análise sobre a identificação com o tempo e com o espaço que
os indivíduos adquirem a partir do convívio social no território onde ele se
relaciona socialmente. Outro importante intelectual a ser consultado como
marco teórico é o professor Clóvis Moura que, entre diversas pesquisas, in-
vestigou os Quilombos como espaços de resistência e organização étnico
social no texto Quilombos, resistência ao racismo – 1989, em que o autor
debate as inúmeras rebeliões de escravizados e sociabilidade dessa população
nos territórios quilombolas.
Dentre esses diversos matizes que formam a estrutura social brasileira, a
cultura constitui uma referência fundamental. Na Constituição Federal, em
seu Artigo 215, é abordada a questão do pleno exercício dos direitos culturais
e do acesso às fontes da cultura nacional, da valorização e difusão das manifes-
tações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras, assim como a de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos ressalta, como um direito
a ser promovido por todos os povos e todas as nações, em seu Artigo 27,
que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios”.
Por sua vez a “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural” procla-
ma que “os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que
são universais, indissociáveis e interdependentes”. Toda pessoa deve, assim,
poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em par-
ticular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma
formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda
pessoa deve poder participar da vida cultural que escolha e exercer suas pró-
prias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais.
Em outras palavras, a Constituição e as diversas Declarações citadas colo-
cam a cultura como um bem que está aí para ser preservado e fruído. Cultura
Rodas, terreiros e comunidades periféricas do samba de São Paulo 217
região central da cidade, que posteriormente seria o circuito dos cordões car-
navalescos de São Paulo.
À época, o então prefeito da cidade de São Paulo, o Faria Lima, achava o
modelo do carnaval em São Paulo um tanto desorganizado e, pensando nisso,
determinou que os organizadores do evento adequassem algum regulamento
para dar o caráter de competitividade e organização dos desfiles que os cordões
realizavam na Avenida São João e vale do Anhangabaú.
Prefeito Faria Lima na entrega de troféus do carnaval em 1969 (foto acervo Instituto Samba
Autêntico)
uma organização social que lutasse contra a falta de estrutura das famílias negras que
viviam nas zonas periféricas. Essa organização resultou em entidades como a Frente
Negra Brasileira. Após o processo de transição do poder nacional para o então Pre-
sidente Getúlio Vargas, houve uma importante e pertinente mobilização acerca da
importância de se lutar por direitos civis, questões de gênero, sociais e étnico-raciais,
e, uma das mais importantes organizações do movimento negro desse período foi
Frente Negra Brasileira, criada em São Paulo no ano de 1931 e que chegou a agluti-
nar milhares de negras e negros em todo o país. (Matheus, 2020, p. 33)
Pois bem, o samba, gênero musical, sempre foi um tronco forte e uma
das principais referências da música popular brasileira, entretanto, esse gênero
musical ainda hoje é marginalizado e não legitimado por parte da indústria
cultural como uma música legitimamente representativa na cena mundial.
Leandro Leart, Crigor, Bello, Anderson Leonardo e Netinho de Paula (foto: reprodução internet)
Para realizar as entrevistas, fiz uma visita aos locais periféricos onde algu-
mas rodas são realizadas com o intuito de mapear as lideranças que realizam as
atividades culturais voltadas à temática do samba.
No dia 03 de novembro fui ao Samba da Tenda, em São Miguel Paulista,
zona Leste de São Paulo, onde a roda de samba acontece em um espaço que,
aparentemente, é um centro comunitário e acompanhei as atividades desde
o início para tentar compreender de que forma eles se organizavam e de que
maneira conduziam seus trabalhos musicais.
Ao chegar, encontrei com Nei Ribeiro, que é um dos organizadores do
samba e que gentilmente cedeu a entrevista. Na sequência chegou a Juliana
Vidal, toda feliz por estar no grupo musical da comunidade vestindo uma
camiseta com a logo do projeto e carregando um instrumento de percussão
semelhante a uma maracá.
musical que ela portava. Em meio a um papo e outro, resolvi aplicar o ques-
tionário para deixá-la à vontade e se dedicar à organização da roda. Quando
iniciei a entrevista, Fernanda estava bastante segura e tranquila, mostrando que
a mulher tem papel fundamental na organização do samba desde que o samba
é samba. Levamos cerca de 12 minutos até que, ao terminar a entrevista, os de-
mais componentes já estavam prontos para dar início às atividades sociocultu-
rais da comunidade. Fiquei até próximo do final e me retirei sem que ninguém
percebesse para não prejudicar o encerramento tradicional da roda de samba.
pois ele alegava que as perguntas que estavam sendo colocadas tinham muito
a ver com a realidade da maior parte das comunidades de samba que desen-
volvem suas atividades na cidade de São Paulo. Entre uma pergunta e outra,
cerveja para refrescar os ânimos do sambista. A todo o momento ele era inter-
rompido pelas fãs que queriam tirar fotos com ele.
Ao término da entrevista com o sambista Adilson Almeida, que se esten-
deu por mais de 30 minutos, iniciei um bate-papo com o outro entrevistado,
Emerson Felix, que já estava por ali meio que na conversa participando de
forma tímida.
A argumentação colocada pelo sambista Emerson Felix, acerca do rotei-
ro de perguntas que preparei para a entrevista, foram muito direcionadas ao
fato discutido. Ele respondia convicto de que as comunidades passavam pelos
mesmos problemas estruturais, que já estava na hora dessa realidade mudar
em favor dos sambistas e das comunidades que trabalham com a temática do
samba em São Paulo.
samba na zona norte. De forma bastante tranquila e educada, ele disse que
não poderia, pois estava terminando de dar uma entrevista e depois veria a
possibilidade de encontrá-las no local. Voltamos à entrevista e, sem mais in-
terrupções, concluímos o roteiro e a entrevista em meio a um clima nostálgico
por conta da energia muito boa que rondava o ambiente onde, horas depois,
os demais sambistas se misturaram com o público e com os amigos que ali
estavam celebrando mais uma roda do projeto Rua do Samba Paulista.
Rua do Samba Paulista no Boulevar da Av. São João no centro da capital paulista (foto: acervo
Instituto Samba Autêntico)
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Linguagens e resistências
na formação de professores:
formando professores críticos a
partir dos estudos de letramento
Rosivaldo Gomes
Lílian Latties
Introdução
O presente trabalho é fruto de algumas reflexões desenvolvidas em nossos
grupos de estudos/pesquisa envolvendo a temática em questão e do nosso
compromisso sociopolítico enquanto pesquisadores negros que investigam e
desenvolvem propostas didáticas no campo da Linguística Aplicada, tendo
como foco processos de ensino-aprendizagem de línguas à luz dos novos le-
tramentos. Entretanto, a exemplo do que discutiremos sobre letramento de
reexistência, nos questionamos até que ponto eles são tão “novos”, se conside-
rarmos que a resistência de grupos marginalizados/subalternizados, como os
negros, é uma prática antiga que já acontece há anos com o intuito de garantir
sua existência na sociedade brasileira, mas que ainda não é mediada, como
deveria ser, por instituições como a escola e a universidade.
Por isso, entendemos que discussões como essa ainda demandam reflexões
tanto no que diz respeito ao ensino quanto à formação de professores de lín-
guas e, portanto, precisam ser objeto de estudo da linguística aplicada através
da mobilização e (re)construção de conceitos para a compreensão dos proble-
mas socioculturais que envolvam questões étnico-racial, de gênero, luta de
classes, sexualidade, identidade e linguagem, tendo esse mosaico de problemá-
ticas como espaço de conflito e de criação para o novo modelo de (inter)ação
238 Cultura política nas periferias
Os estudos de letramento
Desde a constituição das discussões iniciais sobre os estudos do letramento,
nas décadas de 1970-1980, inúmeros debates intensificaram-se a respeito do
quão complexo e multifacetado esse termo é. No contexto brasileiro, em uma
obra seminal sobre esse tema1 lançada em meados da década de 1990, Klei-
man (2001[1995]) destaca que as pesquisas a respeito desse tema estavam ao
mesmo tempo incipientes e extremamente vigorosas, configurando-se como
uma vertente de pesquisa que se concretizaria a união dos interesses teóricos,
na busca de descrições e explicações sobre fenômenos da interação social, cujas
respostas possam vir a promover uma transformação de uma realidade tão
preocupante como o é a crescente marginalização de grupos sociais que não
conhecem a escrita ou cuja escrita não é tida como um modelo privilegiado.
No entanto, passados mais de 20 anos após essa declaração de Kleiman –
vemos que do amplo conjunto teórico de estudos realizados, incluindo os estu-
dos e pesquisas brasileiras visando compreender os impactos sociocognitivos e
socioculturais, principalmente no que se refere às práticas de escrita e leitura –,
os NEL têm contribuído e colaborado para a ampliação das discussões do
ponto de vista teórico e prático sobre os usos sociais da escrita e da leitura. Para
tanto, pesquisadores como Street (1984), Gee (1996) e Heath, (1983) focam
seus estudos muito mais na perspectiva social e, portanto, aproximando-se
mais da etnográfica das práticas sociais da escrita e leitura, abrindo caminhos
para outras formas de compreender o complexo processo de uso da escrita e da
leitura nas práticas contemporâneas, desmistificando, assim, a ideia, até então
forte nos estudos da linguagem, da existência de uma supremacia cognitiva da
escrita sobre a oralidade.
1
Referimo-nos à obra Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática
social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
240 Cultura política nas periferias
a partir de suas marcas sociohistóricas ainda que certos traços identitários sejam
suspensos em algumas práticas discursivas ou em alguns posicionamentos intera-
cionais em uma mesma prática discursiva ou que possam se tornar mais relevantes
em algumas práticas ou em certos posicionamentos interacionais.
2
Não prolongaremos a discussão sobre os sufixos “de” ou “des” com o termo “colonialidade”,
essa discussão pode ser encontrada em Mignolo e Gómez (2015). Todavia, destacamos que
usaremos o termo “decolonialidade” para além da oposição ao termo “colonialidade”, mas
como uma epistemologia que nos permite pensar o futuro, reconstruindo a estrutura social,
econômica e política dos povos que foram historicamente colonizados, uma vez que mesmo
com o fim da colonização, o pensamento e o modelo social e econômico de opressão perma-
necem nessas sociedades através da chamada colonialidade.
242 Cultura política nas periferias
3
Ver Quijano (2009).
Linguagens e resistências na formação de professores 243
Por isso, ignorar variantes ou estabelecer hierarquias entre elas é tentar ho-
mogeneizar falas, vozes e, consequentemente, realidades sociais em contextos
historicamente desiguais, apagando as formas de opressão construídas também
pela/na linguagem, ocultando e invisibilizando assim as formas de resistências,
igualmente, na linguagem. Do mesmo jeito, quando nos fazem acreditar, pelo
processo de ensino, que há hierarquia entre as variantes e línguas, estamos
aprendendo a reproduzir opressões pela(s) linguagem e/ou línguas.
Além disso, tais singularidades do letramento de reexistência encontram-
-se presentes nas “microrresistências cotidianas”, (re)significadas em práticas
sociais que vão muito além das práticas de letramento relacionadas à leitura
e escrita, estando também presentes nos gestos, nas vestimentas, na religio-
sidade, no corpo/cabelo e nas mais variadas manifestações artísticas (Souza,
2011) e modos de ser e estar no mundo. Dessa forma, compreendemos que
as práticas de resistência precisam ser inseridas no ensino formal de línguas,
devendo estar aliadas às ideias de lutas de classe, ou seja, ao letramento críti-
co, já que este
Por outro lado, Hooks (2013) destaca que as palavras são ações. Logo, o
exercício de pensar e discutir letramentos relacionados à raça e gênero (Souza,
2011) precisa, a nosso ver, incluir discussões de classe para auxiliar na compre-
ensão e ressignificação da realidade situada em um contexto sócio-histórico,
que necessita dialogar com outros períodos históricos da mesma sociedade a
fim de construir seu próprio modelo para formação dos sujeitos com base nas
lutas sociais travadas naquela sociedade e de modo a considerar as linguagens
como o palco onde se dão as relações de poder e as formas de resistências. No
entanto, no ensino formal,
Linguagens e resistências na formação de professores 245
mais que uma simples ação cognitiva de um texto, é avançar no texto apesar das
dificuldades com as quais o leitor se depara, é fazer perguntas complexas sobre o
que está lendo, é ler o texto em todas as suas dimensões – nas entrelinhas, no que
está por detrás do texto e no que está além dele, buscando entender como o texto
estabelece o poder e como utiliza o poder sobre nós, sobre os outros, em nome de
quem e em nome de quais interesses. (p. 01).
4
Compreendemos a perspectiva de letramento funcional de Becker (2014) a partir da classi-
ficação de proposta por Street (2014) de letramento autônomo (o qual se refere aos aspectos
técnicos da língua como a funcionalidade desta, sobretudo, em contextos formais de uso e
248 Cultura política nas periferias
balho, e limitar (ou não trabalhar) as práticas de letramento para a ação cidadã
crítica e reflexiva, o que nos leva a questionar se tal realidade de formação já
não se dá desde o processo de formação inicial de professores de línguas, uma
vez que
desconsiderando elementos sociais). Por outro lado, o mesmo autor assinala o letramento
ideológico (a partir do qual se compreende como os sujeitos interagem nos contextos sócio
e historicamente situados, mobilizando práticas de linguagem relacionadas a fatores cul-
turais). Assim sendo, a discussão proposta neste texto vai além do letramento autônomo,
propomos uma perspectiva de letramento ideológico.
Linguagens e resistências na formação de professores 249
e capacitado por esse processo. Esse fortalecimento não ocorrerá se nos recusarmos
a nos abrir ao mesmo tempo em que encorajamos os alunos a correr riscos. Os
professores que esperam que os alunos partilhem narrativas confessionais mas não
estão eles mesmos dispostos a partilharem as suas exercem o poder de maneira po-
tencialmente coercitiva. [...] Quando os professores levam narrativas de sua própria
experiência para a discussão em sala de aula, elimina-se a possibilidade de atuarem
como inquisidores oniscientes e silenciosos. (Hooks, 2013, p. 35)
Diante do exposto, nos deparamos com autores que também são profes-
sores formadores preocupados tanto com o processo de ensino-aprendizagem
de línguas quanto com o processo de formação de professores, seja discutindo
elementos que a formação de professores precisa (re)articular num projeto de
formação crítica ou com experiências de resistências pessoais e de grupos so-
ciais, bem como através de ações que oportunizem aos professores em forma-
ção experienciarem a elaboração e o desenvolvimento de práticas didáticas que
vão de encontro aos modelos de ensino-aprendizagem neocoloniais. Por essa
razão, na seção seguinte propomos caminhos para se pensar a decolonialidade
na formação inicial de professores de línguas.
Linguagens e resistências na formação de professores 251
Dessa maneira, tanto alunos quanto professores devem ser vistos como
protagonistas no desenvolvimento de processos de construção de sentidos,
tornando-se capazes de “ler, se lendo”, de observar-se enquanto constru-
tores e atribuidores de sentidos às coisas (Menezes de Souza, 2011, p.
296). Ainda conforme Menezes de Souza (2011), o letramento crítico ob-
jetiva atentar para a relação social entre texto e leitor, pois tanto o autor
quanto o leitor são produtores de textos e construtores de significação
através de linguagens, ler a partir da perspectiva do letramento crítico
implica, portanto,
desempenhar pelo menos dois atos simultâneos e inseparáveis: (1) perceber não
apenas como o autor produziu determinados significados que tem origem em seu
contexto e seu pertencimento sócio-histórico, mas ao mesmo tempo, (2) perceber
como, enquanto leitores, a nossa percepção desses significados e de seu contexto
sócio-histórico está inseparável de nosso próprio contexto sócio-histórico e os sig-
nificados que dele adquirimos (p.132).
Considerações finais
Ao longo da discussão proposta no presente artigo, buscamos, a partir dos es-
tudos de letramento, situar a linguagem como prática social, refletindo sobre
como inserir práticas de letramento crítico e de reexistência num projeto de
formação de professores de línguas. Para tanto, contextualizamos como tais
letramentos se opõem ao modelo de pensamento e comportamento socioeco-
254 Cultura política nas periferias
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Criação e transcriação poética
como forma de resistência do
negro-surdo brasileiro
Diléia Aparecida Martins
Edvaldo Carmo dos Santos
Joyce Cristina Souza
Wesley Nascimento Santos
Introdução
As estratégias de reexistência têm se constituído uma alternativa cultural e
política nas periferias dos grandes centros urbanos, tais como São Paulo, Ca-
pital. Com vista a propor um diálogo sobre as identidades singulares que se
destacam nesse cenário é que surge esse texto tecido pelos olhares e posições
discursivas de seus autores, a partir da escrevivência de mulheres afro-brasilei-
ras, ouvintes e proficientes em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e de dois
homens afro-brasileiros, surdos sinalizantes, isto é, que se comunicam pela
Libras, constituindo assim a dupla identidade negro-surdo.
A resistência nos é genuína, artefato necessário para sobrevivência na so-
ciedade brasileira cuja herança colonialista nos expõem ao risco eminente de
apagamento identitário e linguístico. Como uma forma coletiva de enfren-
tamento da opressão cultural e linguística, o movimento surdo tem exigido
da esfera estatal a criação e aplicação das leis. O reconhecimento dos direitos
linguísticos, individuais e coletivos é imprescindível para o desenvolvimento
da língua (Unesco, 1996).
Nesse cenário se situa a Libras e com a ascensão de seu status como forma
de comunicação e expressão das comunidades surdas (Brasil, 2005), novos
modos de manifestação artística se tornaram representativas dos marcadores
258 Cultura política nas periferias
1
Slam é uma palavra da língua inglesa e quer dizer na sua literalidade “batida”. No Brasil,
o slam se concretizou como um grito e atitude de reexistência por meio de competições de
poesía, e representa um grande movimento social, poético, artístico e cultural. Em uma
batalha de slam, poetas apresentam suas composições à plateia e jurados. No final, são ava-
liados e premiados.
Criação e transcriação poética como forma de resistência do negro-surdo brasileiro 259
Aportes teóricos
Diante disso, Segundo Gessner (2016, p 149),
adulta e a suposta velhice. Seria ele sempre o dito “mudinho”. Edinho cresceu
no distrito da Cidade Ademar, que se situa na periferia da zona sul de São
Paulo. Na adolescência conviveu com a abordagem da polícia, os induzindo a
conhecerem os sinais para se comunicar. Cedo aprendeu que a surdez não seria
uma barreira para o racismo que assola os negros de todo o país, nas atividades
do cotidiano criou um estilo artístico singular e por isso suas obras são quase
autobiográficas.
O poema
O corpus de análise é o poema Atlântica, escrito por James Bantu e a transcria-
ção para Libras proposta pelo negro-surdo Edinho Santos, ambos brasileiros e
negros. O texto, na íntegra, será apresentado a seguir:
Atlântica
Líquida a típica romântica atlântica derretida
Sólida cosmopolita aquática semântica contraída
Yabasse a cólica católica resista busque as ervas tome um chá
Liquefez e pressentia que ia evaporar
Liquefez e pressentia que ia evaporar
Herdeira da sangoma na esteira sente o chão
Oráculo visiona do conga traz legião
Ciata é semente que correte nunca quis
Só fez libertar mente embaixadora imperatriz
Liquefez e pressentia que ia evaporar
Liquefez e pressentia que ia evaporar
Pra que ser tão sólida pra que ser tão solidão
Um ventre uma escolha uma vida começa uma nação
Lembra a vó mais antiga ela sentia a emoção
Antes da serra e dá barriga já tinha feito um coração
Liquefez e pressentia que ia evaporar
Liquefez e pressentia que ia evaporar
Criação e transcriação poética como forma de resistência do negro-surdo brasileiro 261
Nesse trecho, o eu lírico dirige-se ao que pode ser identificado como estado
da água, predominantemente líquido e gasoso. Essas condições remetem ao
que é fluido ou que não possui uma forma própria. O signo Yabasse representa
a figura da mulher responsável pelos alimentos sagrados no candomblé, na
umbanda é a guardiã da comida.
Na sociedade Yoruba, Yabasse é a pessoa escolhida por Olodumaré para ter o
poder de criar e tudo transformar por ser a “grande mãe” revelando toda a força
do ancestral feminino. Nos terreiros, a preservação da saúde está relacionada à
comida e à bebida, sendo que os chás feitos com ervas diversas na tradição atual
mente são reconhecidos pela Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra, mas por muito tempo foram desvalorizados pela medicina ocidental.
No texto, transcriado em língua de sinais, nota-se a sensibilidade do autor
surdo, que optou por trazer o conceito de Yabasse, explorando os recursos
visuais da língua, vindo a contemplar de maneira satisfatória o termo, não
apenas por meio de um sinal, conforme é possível observar na figura abaixo.
Pra que ser tão sólida pra que ser tão solidão
Um ventre uma escolha uma vida começa uma nação
Lembra a vó mais antiga ela sentia a emoção
Antes da serra e dá barriga já tinha feito um coração
no que seria chamado de tradução para a Libras, mas que mediante a deman-
da criativa para a expressão do real significado do trecho adquiriu uma nova
forma discursiva.
Nesse sentido, a tradução da poesia criada em português se torna um outro
produto concedendo ao tradutor autenticidade autoral. Observe que o sinal
de diáspora pode ser reproduzido com movimentos dos dedos semelhantes
ao usados no sinal evaporar escolhido pelo transcriador, como será ilustrado
a seguir:
Considerações finais
A análise apresentada nesse trabalho teve como objetivo indagar a criação e
transcriação poética como forma de resistência e enfrentamento por parte do
negro-surdo brasileiro da opressão cultural e linguística. A poesia “Atlântica”
forneceu elementos linguísticos e culturais imprescindíveis para a realização
desse estudo.
As formas de expressão em Libras representam uma ruptura com padrão de
comunicação oral-auditivo e, por isso, as criações poéticas quando sinalizadas
compõem o discurso de enfrentamento da opressão linguística e cultural.
Amparados nos conceitos de intersemiótica e multimodalidade foi possível
aferir que a transcriação envolve um sistema de signos estranho ao sistema ori-
ginal. O registro em vídeo da poesia e os aspectos visuais gramaticais denotam
a multimodalidade como necessária para as manifestações do Deaflore.
O modo de olhar do negro-surdo tem sido conhecido por meio do slam
em Libras, que nos presenteia com novas produções artísticas. Tais expressões
e manifestações culturais têm permitido que a difusão das tradições africanas e
afro-brasileiras se consolide de modo acessível tanto ao surdo quanto ao ouvinte.
Essa é uma legítima forma de resistência e enfrentamento do racismo na
atualidade, tendo em vista as diferenças linguísticas, étnicas e sociais dos sujei-
tos da diáspora. O folclore surdo tem expandido sua manifestação, chegando
às camadas populares e periféricas anteriormente excluídas socialmente. Cabe
aprofundar o estudo desses elementos por meio de outras poesias afro-brasi-
leiras, tendo como referência os autores, criadores, tradutores e transcriadores.
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Criação e transcriação poética como forma de resistência do negro-surdo brasileiro 271
https://www.facebook.com/mitologiayoruba/
Solicitei à minha filha que fosse anotando meus insights sobre linguagem e man-
dinga enquanto eu dirigia. Após uma série de frases, falei: “As mulheres negras
usam de mandinga para proteger seus filhos”. A pequena respondeu: “Sabia que
você ia dizer isso”!
Desde que entendemos que somos gente preta no mundo nos fazemos
essas perguntas. Nada de Ser ou não Ser. Sabemos quem somos. O danado é
desenrolar a costura da vida em um país que nos aniquila. Como desenrolar?
Como tecer o fio da vida? Mandinga! Mas ainda falta gente nessas referências
antes de trazer mandinga. Muitas mesmo. Estou celebrando as mulheres que
têm me ajudado a desenrolar essa linha e construindo um fio diaspórico que
tem me permitido mandingar epistemologicamente. É um texto de agradeci-
mento à Exu e aos Orixás, e para elas que com suas “escrevivências” têm me
feito entender o poder da linguagem para quem sempre foi silenciado. Con-
ceição Evaristo ao afirmar que para nós, mulheres negras, é impossível não
escrever a partir também e sempre de nossas experiências e do que nos toca,
traz a potência do conceito de escrevivência e humaniza a literatura. Corpori-
fica a literatura. Traduz a linguagem em corpo. Dá sentido a quem nós somos,
ao que lemos e escrevemos. Escrever na/apesar/mesmo na/com a dor Carolina
Maria de Jesus já tinha nos ensinado. Entendo que as mulheres trazidas acima
e muitas outras que veem seus filhos morrerem em chacinas protagonizadas
pelo Estado, por exemplo, apreendem a dor como algo que não necessaria-
mente nos paralisa. O tempo de luto é tempo de luta geralmente. Chora hoje.
Levanta cedo amanhã. Isso marca nossas vidas e escritas. E quem vai escrever
nossas escrevivências da dor senão nós:
Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que
me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito
de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita
compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo,
coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus
apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo,
para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais
íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me,
alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma
pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho
para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreve-
rei, sem me importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito,
sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente,
276 Cultura política nas periferias
escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escre-
ver (Anzaldúa, 2000, p. 232).
É pois nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais desenvol-
vida, mas também a ligação entre o homem e a palavra é mais forte. Lá onde não
existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido
por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A
própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. (...) Não
faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio
indivíduo? Os primeiros arquivos e bibliotecas do mundo foram os cérebros dos
homens. Antes de colocar seu pensamento no papel, o escritor ou o estudioso
mantém um diálogo secreto consigo mesmo. (Hampté BÂ, 1982)
Vem daí, acredito, a dificuldade que muitos de nós temos como esse tempo
apressado das escritas acadêmicas, por exemplo. Precisamos de Tempo para
ruminar ideias, conceitos, vida. Ao mesmo tempo, escrever tem sido uma es-
tratégia (Muniz, 2009) poderosa da população negra para subverter o projeto
278 Cultura política nas periferias
colonial sobre nossos corpos-mente. Mas não é qualquer escrita que nos cabe.
Abdicar de nossas tradições orais e dos ensinamentos calcados nas bibliotecas
vivas que são nossos mais velhos e velhas não é opção.
por meio dos seus corpos. Você tem mulheres negras gordas de biquíni, com
roupa sexy, sendo vistas pelo mercado capitalista entre outras possibilidade de
“Bem Viver” (marcha das Mulheres Negras pelo Bem Viver). Quando pensa-
mos a engenhosidade dessas mulheres que transformam um corpo renegado
e humilhado, por ser gordo e negro, em um corpo que a sociedade considera
que também pode ser amado, sabendo que dentro desse mercado afetivo-se-
xual as mulheres negras estão na base. Para mim, significa pensar a partir de
um lugar que não é o ocidente nem a colonialidade que vai nos dar. É a partir
de um outro lugar de linguagem e desses caminhos abertos por elas mesmas.
Você tem um campo completamente minado que te bate, ou pelo machismo,
ou pelo racismo, ou pela classe e você reinventa, cria, possibilita a partir desse
campo. Ana Lúcia Silva Souza pensa o conceito de ‘reexistência’ utilizando
essa sabedoria ancestral de pensar a partir do lugar de encruzilhada que não
é só resistir, é criar. Tenho pensando esse movimento como uma forma de a
gente entender o corpo como uma inscrição performática no mundo. O cor-
po já nos diz, já perfomatiza, por exemplo, as possibilidades de reexistência
dentro de um padrão que diz que os nossos corpos não são bem-vindos. Foi
a partir de toda essa engenharia africanizada que mostrei, nessas primeiras
páginas, que a ideia de linguagem como mandinga germina e brota, dizendo
sobre mim e sobre nós.
Mandinga, para mim, é uma teoria. É um conceito negro-epistemológico.
A mandinga tem a ver com estilo, ginga, com as feitiçarias do corpo quando se
pensa, por exemplo, o jogo da capoeira. Cordeiro (2019) discorre sobre ato de
fala mandinguero. Para mim, mandinga é a própria linguagem corporificada
nas reexistências da população negra. A engenhosidade como usamos a lingua-
gem de forma estratégica (Muniz, 2009) para sobreviver enquanto população
constantemente aniquilada. Saber quando você dá um golpe ou desvia; saber
também o momento de ficar firme e rebater o golpe. Foi observando essa prá-
tica durante anos como parte de minha identidade negra pernambucana que
também me aguçou pensar essa linguagem como mandinga. Assim também
os afoxés, maracatus e caboclinhos. Como essas negras culturas existem até
hoje? Isso sempre me instigou e encantou. Para mim, a mandinga explica o
fato de em um país racista como o nosso, a população negra continuar pro-
duzindo, revivendo, recriando, repensando e deslocando a própria ideia de
282 Cultura política nas periferias
tes ou como professoras/res. Quando você quer, pensa e acha que pode se
encaixar dentro da universidade ela dá um jeito de te mostrar que não é
o seu lugar. Então, a gente pode, pensando a partir da encruzilhada, fa-
zer alguns movimentos. Podemos sucumbir e alguns têm sucumbido. Os
números de suicídios de pessoas negras é altíssimo e o numero de pessoas
negras com doenças emocionais também. Tem esse outro caminho que é,
mesmo doente, olhar para outras possibilidades, porque ao invés de você
fechar os caminhos, vai achar uma forma de abrir. Quando estudamos os
conceitos emergentes e potentes no campo da linguagem, vemos que vêm
sendo produzidos por mulheres negras, algumas já citadas na introdução. Esse
deslocamento, esse trânsito, essas interseccionalidades do movimento que
não quer “apenas” resistir, mas criar, está para além de todas as teorias de-
coloniais. Antes de verbalizar mandinga, eu denominava esses movimentos
de ação linguajeira como decoloniais. Não é que não o sejam, mas a popu-
lação negra vem praticando a decolonialidade há muito tempo por meio
de intelectuais que são referências e que ainda são pouco conhecidas pelo
mainstream, tais como Beatriz Nascimento e Lélia Gonzáles que já pensa-
vam a partir desse lugar da encruzilhada e produziam, com isso, a teoria
decolonial, nesse sentido que as pessoas usam hoje. Para mim, a produção
dessas mulheres tem a ver com a linguagem sendo pensada como mandin-
ga. A vida sendo vivida como mandinga.
Ao lado dessas grandes mulheres eu coloco também a minha vó, com a
sabedoria que eu acho que todos os povos têm. Mas só posso falar a partir
do meu povo, ensinado que quando estamos em um ambiente que não nos é
favorável, precisamos usar dessa nossa inteligência que todas nós tivemos que
usar desde que o mundo colonial nos aprisionou como sujeitas cativas. Então,
essa sabedoria de saber a hora de gritar, de bater, mas também de se afastar e
calar. Recuar aqui não é estar parado e muito menos submisso. É estudar a
hora de agir e de como fazer isso. Pura epistemologia preta de Dona Carmen.
Pura mandinga. Por isso, quando me vejo alquebrada, minha mãe puxa minha
orelha com o seguinte ato de fala: “Deixa disso menina! Você é neta de sua
avó”! É isso! Somos netas de nossas avós e isso engendrou toda nossa forma de
existir, reexistir, mandingar sendo mulher negra periférica neste mundo. Asè!
284 Cultura política nas periferias
Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever pa-
rece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar este ato – esvazio
o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: Quem sou eu, uma
pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever? Como foi
que me atrevi a tornar-me escritora enquanto me agachava nas plantações de
tomate, curvando-me sob o sol escaldante, entorpecida numa letargia animal
pelo calor, mãos inchadas e calejadas, inadequadas para segurar a pena? Como é
difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras, muito mais
sentir e acreditar que podemos! O que temos para contribuir, para dar? Nossas
próprias expectativas nos condicionam. Não nos dizem a nossa classe, a nossa
cultura e também o homem branco, que escrever não é para mulheres como nós?
[...] O problema é focalizar, é se concentrar. O corpo se distrai, faz sabotagem
com centenas de subterfúgios, uma xícara de café, lápis para apontar. O recurso
é ancorar o corpo em um cigarro ou algum outro ritual. E quem tem tempo
ou energia para escrever, depois de cuidar do marido ou amante, crianças, e
muitas vezes do trabalho fora de casa? Os problemas parecem insuperáveis, e
são, mas deixam de ser quando decidimos que, mesmo casadas ou com filhos
ou trabalhando fora, iremos achar um tempo para escrever. Esqueça o quarto só
para si – escreva na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no ônibus ou na
fila da previdência social, no trabalho ou durante as refeições, entre o dormir e
o acordar. Eu escrevo sentada no vaso. Não se demore na máquina de escrever,
exceto se você for saudável ou tiver um patrocinador – você pode mesmo nem
possuir uma máquina de escrever. Enquanto lava o chão, ou as roupas, escute as
palavras ecoando em seu corpo. Quando estiver deprimida, brava, machucada,
quando for possuída por compaixão e amor. Quando não tiver outra saída senão
escrever (Anzaldúa, 2000, p. 233).
Linguagem como mandinga 285
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288 Cultura política nas periferias
Introdução
Este artigo tem como objetivo relatar um pouco da história da Rede de Comu-
nicadores do Vale do Jequitinhonha, que surge em uma plenária do Encontro
de Comunicadores do Vale do Jequitinhonha – evento promovido pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG) através do Programa Polo Jequi-
tinhonha1 – a partir da necessidade de fomentar as narrativas desse território
e dar amplitude às vozes locais. Lideranças, jovens ativistas e universitários do
Vale, que durante muitos anos foi conhecido como ‘Vale da pobreza’, viram
a necessidade da construção de uma rede que pudesse contar sua história de
maneira autônoma e mais justa. De forma muito antagônica ao que se via
veiculado nas grandes mídias, apresentar as riquezas culturais, sociais e físicas
incalculáveis da região, gerando conteúdo mais diverso e ético.
A Rede de Comunicadores é hoje um movimento juvenil, autônomo, au-
togestionado e que articula e forma comunicadores na região, além de atuar
pela democratização dos meios de comunicação em nível local e construir
espaços alternativos de expressão e visibilidade para as produções locais. For-
ça de resistência contra as tentativas sistemáticas de apagamento e homoge-
1
Disponível em: <https://www.ufmg.br/polojequitinhonha/>. Acesso em: 25 out. 2020.
290 Cultura política nas periferias
Conhecendo o Vale
O Vale do Jequitinhonha está situado no nordeste de Minas Gerais e é uma
das 12 mesorregiões do estado. Se subdivide em três regiões: Baixo Jequitinho-
nha (corresponde à parte ao norte, próximo a Bahia), Médio Jequitinhonha
(região de Araçuaí) e Alto Jequitinhonha (mais próximo à Região Metropoli-
tana de Belo Horizonte). É composto por 59 municípios, totalizando mais de
770 mil habitantes2, dos quais quase dois terços vivem na zona rural e têm na
agricultura familiar e pecuária os principais meios de subsistência3.
O Vale é cortado pelo Rio Jequitinhonha, de onde se origina seu nome,
que deságua no mar do sul da Bahia. O rio é fonte de subsistência, tradições e
histórias de moradores locais. Na região, conta-se que Jequitinhonha, significa
“rio largo e cheio de peixes” no dialeto Maxacali. Mais ao norte, já próximo ao
estado baiano, há quem diga que o nome vem da junção da expressão “jequi
tem onha” usada pelos índios Botocudos, do tronco-macro-jê, para contar que
na armadilha de pesca tinha peixe. A região é um misto de espaços, tradições
e ancestralidade. Aranãs, Pankararus e Pataxós são alguns dos povos indígenas
que habitam a região4 ao lado dos quilombolas Gravatá, Cruzinha, Catitu do
Meio, Rosário e Mumbuca.
2
Dados coletados do Plano de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha, da Fundação
João Pinheiro (2017). Disponível em: <http://fjp.mg.gov.br/index.php?option=com_content
&view=article&id=4004e>. Acesso em: 25 out. 2020.
3
Dados coletadas do Censo Demográfico 2010 do IBGE. Disponível em: <https://cen-
so2010.ibge.gov.br/>. Acesso em: 25 out. 2020.
4
Dados coletados do Censo Demográfico 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia Estatísti-
ca (IBGE). O estado de Minas Gerais é a 12° Unidade Federativa com maior quantidade de
pessoas autodeclaradas indígenas do país. Disponível em:< https://indigenas.ibge.gov.br/>.
Acesso em: 25 out. 2020.
Comunicação, resistência e território 291
5
SERVILHA, 2012.
292 Cultura política nas periferias
6
SANTOS et al., 2018.
7
Dados coletados do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Disponível em: <http://
www.atlasbrasil.org.br/>. Acesso em: 25 out. 2020.
8
Artesanato do Vale do Jequitinhonha se torna patrimônio imaterial de Minas. Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/12/20/interna_gerais,1014883/
artesanato-do-vale-do-jequitinhonha-se-torna-patrimonio-imaterial.shtml>. Acesso em: 25
out. 2020.
Comunicação, resistência e território 293
de possibilidades que eu nunca pensei que existiam. Depois do primeiro não parei
de participar mais. No ano seguinte o encontro que aconteceu aqui em Taiobei-
ras, o que foi maravilhoso e uma experiência muito rica. (Depoimento de Felipe
Cortez, um dos integrantes da comissão gestora da Rede de Comunicadores do
Vale do Jequitinhonha).
as redes sociais e eu sempre tive um amor muito grande pela produção cine-
matográfica. Motivado pelo sonho de fazer um filme, escrevi um roteiro que
se chama ‘A princesa do Sertão’ – na época, passávamos por uma forte crise
hídrica na região. Depois desse veio o ‘Mariana, o desastre somos nós’ que
é um curta-protesto. Para o meu espanto, ele foi selecionado para algumas
mostras de cinema que eu nem sabia que existiam, como a Mostra Ipê Brasil
– mostra itinerante que roda o país inteiro, Mostra Latino-Americana – Cine
Amazônia e foi selecionado ainda, com honra ao mérito, para a Mostra Pequi
de Audiovisual de Montes Claros.
Mas minha primeira formação na área da comunicação foi no 36° Festivale
– Festival de Cultura do Vale do Jequitinhonha, na cidade de Jequitinhonha,
em 2016, em que eu tive algum contato com a fotografia, participando indi-
retamente das ações realizadas na assessoria de comunicação colaborativa do
evento, e no Levante Popular da Juventude onde tínhamos algumas formações
para criação de conteúdo para fotografia e vídeo para internet.
Depois disso, eu participei do meu primeiro Encontro de Comunicado-
res do Vale do Jequitinhonha em Cachoeira do Pajeú (2017) e não parei de
participar mais. Durante o Encontro, que foi realizado na cidade de Taiobei-
ras, tivemos uma roda de conversa chamada ‘Diversidade e os desafios para a
Comunicação’ que englobava as questões das lutas LGBTQI+, das mulheres,
dos indígenas, negros e negras e outras minorias representativas no âmbito da
comunicação. A partir desta roda de conversa, criei o Coletivo Iris de Minas,
que tem como objetivo informar e empoderar todas essas classes de luta, in-
clusive na comunicação. No mesmo ano, fomos um dos três selecionados em
Minas Gerais para participar do SaferLab, um laboratório de ideias produzido
pelo SaferNet em parceria com o Facebook e a Unicef. O projeto capacitou
coletivos e grupos do Brasil inteiro para o combate ao ódio na internet, através
de contranarrativas, palestras, rodas de conversa, atividades de produção de
materiais de comunicação, entre outras. Em 2019, fui ao ECVJ em Almenara
e lá aconteceu a eleição para formar a Comissão Gestora do Encontro. Algu-
mas pessoas me indicaram e quiseram que eu participasse.
Para mim, o trabalho que procuramos desenvolver com a Rede de Co-
municadores é muito bonito. Como morador do interior de Minas Gerais,
ter acesso a um movimento que me dá oportunidade de ter informação atu-
Comunicação, resistência e território 299
A primeira coisa que chamou minha atenção nesse movimento foi a ques-
tão da imagem do Vale do Jequitinhonha. Tirar o estigma de Vale da Pobreza
era algo que me parecia muito importante. Mas depois que eu entrei, percebi
também a potência que era dar voz para as juventudes do Vale. A gente tem
muita coisa legal aqui e muitos jovens que querem ter voz e produzir e que
não têm oportunidade. Eu mesmo, quando eu era mais novo, se tivesse essa
oportunidade de ter um coletivo, um núcleo de comunicação em Araçuaí, que
eu pudesse ter acesso a equipamentos e a profissionais para me tutorar, e não
só isso, mas ter o incentivo de ter pessoas para trabalhar junto, eu acho seria
muito diferente a minha trajetória. Não demoraria tanto assim para entrar na
comunicação e atuar na minha cidade como eu demorei. Eu, particularmente,
tenho muito essa questão do empreendedorismo e de formas alternativas de
se rentabilizar e eu acho que a comunicação é uma forma do jovem entrar no
mercado de trabalho mais cedo e conseguir uma fonte de renda para ajudar a
sua família. Dentro do núcleo de comunicação de Araçuaí eu trabalho muito
essa questão do jovem se capacitar para que ele mesmo possa realizar trabalhos
e ajudar de alguma forma seu desenvolvimento.
9
http://oficinadeimagens.org.br/
10
https://redeglobo.globo.com/criancaesperanca/
302 Cultura política nas periferias
Mobilizar recursos
A estrutura e o acesso a recur-
sos que garantam a perenidade
da Rede também são um gran-
de desafio. Para que ela efetive
toda potência que tem, muito
trabalho e dedicação precisam
ser despendidos. Para expandir
o trabalho por todo o Vale, ga-
rantindo espaços de formação, Foto de Lucas Martins
estrutura para a produção de conteúdo e promovendo espaços de distribuição
e visibilidade do que é produzido, é preciso acessar recursos. O caminho hoje
tem sido estabelecer parcerias constantemente com as prefeituras locais, com
outras associações e grupos socioculturais das cidades, com universidades e até
com os comércios locais. Os recursos nem sempre são financeiros. Há muita
304 Cultura política nas periferias
e geração de renda para essas juventudes que, em muitos casos, têm poucas
perspectivas de trabalho em seus municípios.
Considerações finais
No artigo Participación Política, Manifestaciones Culturales y Mecanismos de
Resistencia, os doutores em psicologia Elio Parisi e Marina Pagnone fazem uma
análise histórica a respeito dos tipos de participação política abordando os
conceitos culturais que implicam nessa participação, com o objetivo de ana-
lisar alguns movimentos sociais na América Latina. Segundo os autores, Cas-
tells (1999) classifica a identidade em três níveis: legitimadoras, de resistência
e identidades projetos. Essas identidades são instrumentos de poder quanto à
306 Cultura política nas periferias
Referências
Todo mundo tem um mapa/ Todo mapa tem um mundo: redes juvenis e as diversas urbanidades.
Associação Imagem Comunitária, Centro Juvenil de Ciência e Cultura de Barreiras, Ensina
Brasil Polo Mato Grosso do Sul. Belo Horizonte: Associação Imagem Comunitária, 2019.
BOURDIN, Alain. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A Editores, 2001.
308 Cultura política nas periferias
Dá licença, aê
Macumbas nos movem. Mais ainda, elas nos afetam e promovem algo da or-
dem do ser. Algo sobre estar nesse louco mundão em meio a camadas e mais ca-
madas de experiências. Nessas linhas transpiradas, apostamos em experiências
que nos falam. São encruzas que nos limites ampliam mundos. Nos deparar
com o hip-hop e batalhas de rap é algo que precisamos cada dia mais nos apro-
fundar quanto aquele jogo de corpos que engendram músculos, hálito, transpi-
ração e crença. Crença firmada nos pactos experienciados. Para cada mil trutas,
mil tretas. Para cada mil tretas, mil trutas 1 2. No fecho temos a ponta e na ponta
do fecho, o começo. Recomeçamos quantas vezes for necessário sem perder o
fio da meada. Somos um ao outro no meio desse quiproquó todo.
1
No desenrolar das linhas que seguem estas escritas usaremos diversas letras de músicas que
são, para nós, conhecimento ancestral, forças palavreadas. Queremos dizer com isso, que elas
são fonte inesgotável de conhecimento e que nos ensinam como se colocar diante o mundo e
experimentar o cotidiano. Em suma: como lidar com o dia a dia sem a separação dicotômica
do pensar e fazer, mas sim fazer-pensando. Importante se faz, sempre que possível, escutar as
mesmas para alcance da dimensão proposta.
2
1000 trutas, 1000 tretas é um álbum dos Racionais MC’s de 2006. Momento ímpar onde
fazem um show na Zona Leste de São Paulo, uma das maiores quebradas da referida cidade,
trazendo para o palco Jorge Ben na abertura e um composto de músicas dos álbuns Sobrevi-
vendo no Inferno (1997) e Nada como um dia após o outro dia (2002).
310 Cultura política nas periferias
3
Leda Maria Martins, em Afrografias da Memória (1997), ao colocar no papel sua imersão
experiencial no Reinado, cria o conceito de oralitura. Defende que as/os pertencentes do
Reinado grafam, com o registro oral ritualizado, seu território e nação. Rasuram a linguagem
e alteram significantes afirmando a diferença e a alteridade dos sujeitos, conduzindo neste
ínterim cultura e mundo simbólico próprio. Para nós, as mina, os mano e as mona também
estão nessa condição no que tange o mundo do hip-hop, batalhas e dos saraus.
4
Expressão informal muito utilizada para a troca de informações cotidianas via oralidade
advinda das africanas e dos africanos nas condições de escravizadas/escravizados e que pos-
sibilitou muitas organizações transgressoras nos últimos séculos. Tal expressão foi escolhida
como nome de um veículo de comunicação em 2008, o Portal Correio Nagô, que pode ser
acessado em correionago.com.br.
5
Podemos entender colonialidade, a grosso modo, como uma economia que nos autoriza
formas de experimentar o mundo, por exemplo, a razão como unívoca maneira para se
compreender o real. Logo, cria-se um modelo que condiciona a revelação da verdade única
de como ser e, assim, agirmos dentro dessa lógica para operar padrões de vida, como apenas
a sistematização em livros, em larga medida, para obter conhecimento. Enfim, colonialidade
pode ser entendida como um grande empobrecimento existencial em meio à modernidade
(Sodré, 2017; Mbembe, 2018; Simas, Rufino, 2018; Ani, 1994; Fanon, 2018; hooks,
2015).
Reexistência 311
Das parças e dos parças. Das vida loka, dos vida loka. Do se liga no som que
o rap é du bom6. Da ida no Manos e Minas7. Dos corpos mais ágeis que já vi
se dibuiando no chão. Dos live painting8 mais coloridos, rasurando paredes
amordaçadas pelo cinza. Nas decifrações pesadas que fazíamos nos arranha-céu
dos pixo. Sabíamos quem tinha passado por lá. Da casa de rap diademense
(Andrade, 1999) onde o bicho pegava e os ladrão tudo em cena. No certo
pelo certo. Do testar a escrita na adolescência ouvindo Nada como um dia após
o outro dia9 e copiando as palavras encaracoladas no caderno e que a professora
não entendia era nada. Aliás, com quantas letras mesmo construímos mundos?
A pergunta é cabulosa, não? Que tira a gente do bate-pronto. Da resposta fácil
e ligeira. Pra tudo isso nada mais interessante que o rastilho do cotidiano, dos
alegres ódios lavados no sereno deflagradas em nossas trocas, do porvir que se
anuncia nas primeiras pancadas dos beats10 e a gente já vai sentindo a atmosfera
6
Música de Rappin› Hood, intitulada Rap do Bom, lançada em 2001 em seu álbum Sujeito
Homem.
7
Programa incrível da TV Cultura desde de 2008 com apresentadoras/es do movimento hip-
-hop. Tem rap, samba, slam, grafitti, break. De fato lá encontramos de tudo da cultura
urbana.
8
Técnica de grafite onde as pessoas em ação vão compondo sua arte ao vivo. Podendo ser
coletivamente com outras grafiteiras/grafiteiros.
9
Nome do terceiro álbum do grupo de rap Racionais MC’s lançado em 2002.
10
Beats são as batidas utilizadas nas músicas de rap que quando sincronizadas vão dando ritmo
para a/o rapper cantar. Para sentir a pegada escute a música Unity de Queen Latifah ou Da
ponte pra cá dos Racionais MC’s.
312 Cultura política nas periferias
que vai se criando, se fazendo. As memórias diante das escritas do agora me faz
soltar um sorriso pela beira da boca. Que fita! É... o rap é compromisso, não é
viagem. Ouso parafrasear Sabota11 e dizer que o hip-hop é compromisso.
As linhas para reexistir, entendidas como práticas sociais dessas/es agentes
que recriam valores e linguagens num dado ambiente coletivo escamoteadas
na economia mundo do capitalismo financeiro, vão criando contornos que fa-
zem do negro drama12 o nascer do lixão flores dos mais diversos odores e, quem
pra sabe degustar, sabores. Me parece que as discussões sobre a constituição do
hip-hop por um bom tempo se fechou em categorias estanques que vão de mo-
vimento político ao cultural e/ou muitas vezes como entretenimento (Félix,
2018; Souza, 2011; Weller, 2011). Porém, perspectivando o estado da coisa
acho que tem mais caroço nesse angu. Trocando ideia com minha avó, certa
vez, ela me contou as peripécias que eram feitas para dar cabo de momentos
complicados da vida. Levantar o barraco de madeira e segurar o mesmo fir-
me e forte pra não cair nas chuvas de verão. Do cozer que afetava a família
toda num domingo de muito frango assado com farofa e macarrão. Vinha a
vizinha, o vizinho. Cachorro ligeiro, na espreita, pra pegar o que moscar na
cozinha. O samba, forró e bebida comendo solto para nos refazer em alegria
pro dia seguinte, dia de preto era iniciado toda segunda.
Tá aí, então, quantos não foram os momentos de partilha que a família
hip-hop também nos proporcionou? Eles são dos mais diversos. Naquela mão
com a Nenê Surreal, mulher preta, avó, mãe, lésbica a mais antiga grafiteira
de São Paulo, ganhadora do prêmio Sabotage13 em 2016, onde colo geral e
fez do CÉU Caminho Do Mar no Jabaquara, em São Paulo, tremer e virar
o inferno lotado de neguinha atrevida como diria Lélia Gonzalez14. Naquela
11
Sabotage é um dos expoentes rappers que compõe a história do hip-hop no Brasil. Nascido
na favela do Canão, zona sul de São Paulo. No ano de 2000, intelectual imenso que era, faz
um provérbio do que é o rap para muitas pessoas até os dias contemporâneos. Ver: www.
youtube.com/watch?v=rC9vmpQRR40.
12
Música composta pelos Racionais MC’s no álbum Nada como um dia após o utro dia de
2002. Ver: https://vimeo.com/48476472.
13
O prêmio Sabotage tem o objetivo de premiar e destacar no cenário do hip-hop as pessoas
que tecem a continuidade desse movimento. Estas pessoas podem ser premiadas nos mais
diversos elementos como Mestre de Cerimônia, Graffite, Break e DJ.
14
“Racismo e sexismo na cultura brasileira” (1983), apresentado na Reunião do Grupo de
Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, IV Encontro Anual da Asso-
Reexistência 313
outra mão, quando fechamos uma produção coletiva pique nois por nois
pra gravar o show de Beto Criolo15 no Teatro Clara Nunes em Diadema.
Muita gente. Organização autônoma total. Autodeterminação. Um filho pa-
rido chamado Sou porque Somos16. Cada músculo, suor e saliva direcionada
pela vontade incessante da comunidade (Mbembe, 2014). Essa vontade a
qual nos referimos está alocada aos pressupostos vivos que os afro-brasileiros
muito conhecem por força vital/asè. Essa potencialidade do fazer acontecer
embasado de valores civilizatórios de matrizes africanas17 mantido por uma
singela, embora robusta ética, que alimenta esse coletivo de pessoas. Esse
fazer acontecer coletivo que emana em meio às adversidades propagadas pela
colonialidade.
Nada do que escorregadiamente teçamos nessas páginas são ímpares,
em outras palavras, nada é exceção. Na real mesmo, é a regra. O hip-hop se
prolifera em meio, chamado por Muniz Sodré, de corporeidade. Mas o que
seria essa corporeidade? Com Sodré, estamos pensando o corpo “dotado de
seleções e assimilações da ordem social e cultural em que o indivíduo está
imerso. A corporeidade seria uma espécie de máquina possibilitadora de cone-
xão das intensidades de um dado grupo gerando uma coleção de atributos de
potência e ação” (Sodré, 2017). Reveja novamente como os corpos no vídeo
da música negro drama estão se complementando e como agem ao sentirem o
primeiro segundo do beat da música. É uma reação alocada pela materialidade
experiencial desses corpos. O corpo em si-mesmo fazendo-pensando. Temos
nesse traquejo suburbano as manhas e condições que estão bem alocadas ao
que chamaremos neste ensaio de sujeitas/os de fronteira. Aquelas e aqueles
18
Rapper oriunda dos becos e vielas mineiros com estilo hábil de escorregar nas rimas, aden-
trar sua mente e quando vemos, já foi. Confira o álbum dela chamado “Anônima” (2016):
https://www.youtube.com/watch?v=MdwL12os3Yo&list=PLteM58ZFkVwe0nMdf0honx
1XrDQ8Of7i7.
19
Flávio Renegado, da comunidade do Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, desponta no
cenário do rap a partir de inquietudes e referências musicais perante as diversas temáticas
que atravessam sua relação individual-coletiva. Trabalho lançado em 2018, Suíte Massai,
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WgIDrV4VgIc
20
Djonga, também do cenário belorizontino, forjado nas mais diversas rinhas de MC’s, ten-
ciona diretamente aquilo que o cerca na coletividade da população negra. Último trabalho
dele lançado esse ano foi “Histórias da minha área”. Disponível em:: https://www.youtube.
com/watch?v=doRcD6DlgsM&list=PLEE-L5Au_Xzdqbmn9zyIWh0e3NBEE-FkH.
Reexistência 315
21
“Anônima”, música de Tamara Franklin.
22
“Esquimó”, música de Djonga.
23
Pode-se encontrar mais sobre tais povos nos livros de História Geral da África produzido
pela Unesco. disponível em: https://www.ufrgs.br/blogdabc/colecao-unesco-de-historia-
-geral-da-africa-em-portugues-e-disponivel-para-download/
24
Cf. MUDIMBE, V. A invensão de África: Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento.
Trad. Ana Medeiros. Portugal: Pedago, 2013.
25
Um falar tão baixo e entredentes.
316 Cultura política nas periferias
panaceia de abraços e beijos diria Renato Noguera26, mas sim o se colocar pra
jogo, o se deslocar em prol da não supressão existencial do outro diria Helena
Theodoro. É por isso que temos, por mais indigesto que seja pra cada mina, a
cobrança olhando na bolinha do olho27 de cada mano o seu comportamento.
Com sorriso no rosto e fineza na caneta, de fresta, Tamara Franklin responde
Péricles28. E se as mina larga o freio?
Nesse sentido, entendemos que o transe de corpos em suas diferenças se
complementam e, indigestamente, se refazem com o propósito primeiro e
único de manter a comunidade em sua plena continuidade e expansão. O
hip-hop nos parece muito conversar com tais condições de moldar o ser em
co-pertença. É tudo isso e mais um pouco. Que aproveitemos e sejamos por
ele, porque ele é pela gente.
26
Fala proferida numa das aulas na UFRRJ.
27
Expressão utilizada no cotidiano.
28
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=I9MM_wT29nI
29
Ver: http://www.pmmariana.com.br/noticia_categoria/destaques/tradicao-marca-festa-do-
-divino-em-mariana
Reexistência 317
30
https://sites.ufop.br/lamparina/news/pluralidade-acad%C3%AAmica-%C3%A2nsia-por-
-pesquisas-que-representem-negros-e-lgbts
Reexistência 319
batalhas de rap. Das brincadas necessidades que vão nos caminhos moldando
vivências, afrografando31 memórias e rituais. Está também no mesmo solo que
a Batalha das Gerais, o Sarau Invasor32. Onde se conversam? Em que entre-
meios? Veremos um pouco mais nas próximas sonoras vibrações.
À luta, à voz
Rogério Coelho
31
Como ressaltou Leda Maria Martins em Afrografias das Memória (1997), a ritmada cons-
trução social das experiências negras possibilitam, diante das mais diversas linguagens, cons-
truções simbólicas massificadas no corpo da memória. Grafa-se aí a história vivida diaria-
mente por tais sujeitos. Ver sobre a afrografia na Batalha das Gerais em: <https://www.
youtube.com/watch?v=PnVYqzF4W9g>.
32
Sarau Invasor, depois modificado o nome para Sarau Poesia de Quebrada, pode ser visuali-
zado em: <https://www.facebook.com/invasoresgerais/>.
33
Linguagem aqui é entendida como meio por excelência através das quais as coisas são “repre-
sentadas” (HALL, 2003, p.279).
34
O Coletivoz é um sarau de periferia que promove encontros entre artistas, Rappers, e comu-
nidade em torno com intuito de ler e ouvir poesias no bar. Disponível em: <http://coletivoz.
blogspot.com/p/o-que-e.html>. Acesso em: 30 mar. 2020.
35
O Sarau Vira Lata, a grosso modo, é um movimento itinerante que atua nos espaços pú-
blicos da capital mineira, Belo Horizonte, para difundir a poesia. Disponível em: <https://
www.facebook.com/sarauviralata>. Acesso em: 30 mar. 2020.
320 Cultura política nas periferias
36
Entende-se aqui como literatura de rua um movimento que rompe com a ideia canônica
literária. Vai pensar em várias práticas sociais do cotidiano para entender e significar a lin-
guagem, através de uma perspectiva decolonial, que se faz presente nas periferias. O grupo
de rap Gueto em Grande Estilo soube muito em traduzir. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=twUGCMi9FP0>. Acesso em: 30 mar. 2020.
37
O termo Palavração que propomos aqui é entendido pelo que Rogério Coelho chama de
o caminho que está entre a palavra oralizada – por quem se propõe a falar/recitar nesses
“lugares” – e o corpo que a veicula. Ver mais em sua tese a “A palavração: atos políticos-
-performativos no Coletivoz Sarau de Periferia e Poetry Slam Clube da luta” (Coelho, 2017,
145 p.)
Reexistência 321
38
A autora acrescenta ainda que é por essas e outras é que se entende por que os grupos de
mulheres negras se organizaram e se organizam no interior do movimento negro, não no do
movimento de mulheres (NASCIMENTO, 2008, p.41).
322 Cultura política nas periferias
39
Mestranda em História na Universidade Federal de Ouro Preto, produtora cultural e criado-
ra da empresa Nossa Firma de Preta.
40
Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestranda em Comu-
nicação Social pela mesma instituição.
41
Entrevista realizada com Raquel Satto através do WhatsApp no dia 16/06/2019.
42
É preciso entender que a voz libertadora irá necessariamente confrontar, incomodar, exigir
que ouvintes até modifiquem as maneiras de ouvir e ser (hooks, 2019, p.53).
Reexistência 323
43
Veja mais em <http://coletivoz.blogspot.com/p/o-que-e.html>. Acesso em: 26 out. 2020.
324 Cultura política nas periferias
tem pouco a dizer sobre o mundo objetivo (Mbembe, 2018). A questão a ser
pensada é sobre como usamos a língua para que nossas ações linguisticamente
tenham impactos significativos para as nossas famílias e nossa comunidade? As
mulheres usam os movimentos negros, como os saraus, para se refazerem e se
existencializarem, criando um país possível de pertença.
Assim, Carolina não só utilizou-se da literatura canônica, mas recriou-a,
criou formas de sobreviver dentro da favela através de uma nova literatura:
uma literatura de reexistência, pois em suas práticas de escritas se questiona e
questiona outros sobre o problema ético da linguagem e a leitura política de
realidade. E são as raízes dessa literatura que encontramos presente nos mais
diversos saraus de todo o país.
Portanto, numerosas foram as formas de resistência que o negro mante-
ve ou incorporou na luta árdua pela manutenção de sua identidade pessoal
e histórica (Nascimento, 2008) e uma delas foram os movimentos negros:
os saraus. Pensar nesse espaço de disputa com um recorte literário significa
refletir sobre como o cânone se constrói em cima de privilégios europeus e,
haja vista, impactam a historiografia da literatura brasileira, ou seja, tudo que
não é considerado canônico está do lado de fora, está em um entre-lugar. Para
Homi K. Bhabha, a ideia de entre-lugar fornece momentos ou processos que
são produzidos na articulação de diferenças culturais. E nesse limiar do ‘entre’
e do ‘lugar’ está o sujeito que fala, que sente, que escreve, que está por um triz
de descobrir como o campo da linguagem dá conta de preencher esse vácuo do
“não pertencimento”. Esse sujeito, por fim, tem raça, gênero e classe.
44
Trecho da música “Racistas otários” dos Racionais MC’s, álbum Holocausto Urbanode
1990. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2nLLihbYNFs>. Acesso em: 26
out. 2020.
Reexistência 325
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Cultura Africana. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 95-136.
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FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008.
45
Trecho da música “Principia” de Emicida, álbum AmarElo de 2019. Disponível em: <ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=kjggvv0xM8Q>. Acesso em: 26 out. 2020.
46
Trecho da música “Eu não te pertenço” de Ba Kimbuta, álbum Universo Preto Paralelo de
2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=E3WzPYZHyHs>. Acesso em:
26 out. 2020.
326 Cultura política nas periferias
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Saraus nas periferias:
escrevendo corpos, territórios e
ações coletivas na cidade
Érica Peçanha do Nascimento
Introdução
A história da literatura brasileira registra inúmeros casos isolados de pobres,
operários, negros, presidiários e ex-presidiários, moradores de favelas e perife-
rias que publicaram livros. Além disso, especialmente no contexto contempo-
râneo, a literatura produzida no Brasil é notadamente urbana e marcada pela
ficcionalização de experiências pessoais, da violência, do cotidiano de favelas
e periferias e também da estetização da pobreza (Nascimento, 2019). No en-
tanto, o fenômeno abordado aqui, além de reunir essas características, é pecu-
liar na medida em que se refere à projeção coletiva de moradores de periferias
e favelas que, por meio de narrativas ficcionais e (auto)biográficas, trouxeram
para o campo literário, temas, termos, personagens e linguajares que refletem
os territórios periféricos das cidades.
Alguns livros autorais e ações de difusão cultural de escritores periféricos
foram organizados, de forma espaçada, entre os anos 1980 e 19901. Mas
1
Sérgio Vaz, por exemplo, publicou seu primeiro livro em 1988, Subindo a ladeira mora a
noite, em coautoria com Adriana Muciolo (edição dos autores), depois lançou, também de
forma independente, A margem do vento (em 1991) e Pensamentos vadios (em 1999). O
poeta Binho (Robinson Padial) promovia já em 1995 a chamada “Noite da Vela”, reunindo
interessados em ouvir música e recitar poesias a luz de velas, em um bar de sua propriedade,
328 Cultura política nas periferias
considero que foi somente com a publicação dos três números das revistas
Caros Amigos/Literatura Marginal que foi possível pensar na configuração
de um movimento literário das periferias, a partir das contribuições estéti-
cas ali apresentadas.
Essas revistas foram publicadas nos anos de 2001, 2002 e 2004, e reuniram
48 autores, majoritariamente moradores de São Paulo (apenas 12 eram resi-
dentes em outros estados). Reuniram 80 textos, entre crônicas, contos, letras
de rap e, principalmente, poemas. Considero essas revistas um marco para se
pensar a produção literária das periferias, primeiramente, porque foi a partir
da publicação delas que se difundiu o uso de uma expressão específica para
classificar a produção dos escritores de periferia (“literatura marginal”); tam-
bém porque foram a primeira oportunidade de publicação de boa parte dos
autores ou de circulação dos textos de muitos deles em nível nacional; e mais
importante, porque como uma publicação coletiva, foi a primeira tentativa de
reunir autores de diferentes perfis sociológicos em torno de um projeto literá-
rio comum de retratar sujeitos e espaços marginais e marginalizados, especial-
mente com relação às periferias urbanas (Nascimento, 2009).
Para além daqueles que se valem da expressão da literatura marginal para
classificar suas produções, outros escritores preferem utilizar designação litera-
tura periférica, a fim de ressaltar o pertencimento ao lugar de onde e em nome
do qual falam em seus textos. Outras expressões, como literatura divergente,
literatura suburbana e litera-rua também ganharam ecos entre os autores, bem
como os termos literatura hip-hop, literatura engajada e literatura da violência
nomeiam a interpretação de alguns estudiosos. Mas cabe considerar que es-
sas diferentes expressões podem ser tomadas como algumas das classificações
possíveis dos perfis desses escritores ou das características de suas produções
literárias, em um esforço de marcar a posição no cenário cultural e também
refletir sobre o fenômeno em curso que aparece como grande novidade dos
últimos tempos: a produção literária com a marca da periferia.
Nesse contexto, não se pode desconsiderar o papel fundamental que os
saraus literários organizados em territórios periféricos assumiram para a ex-
pansão e consolidação de uma movimentação cultural em torno da literatura.
na periferia de São Paulo. Ferréz estreou na literatura com Fortaleza da desilusão em 1997;
mesmo ano em que Paulo Lins lançou Cidade de Deus.
Saraus nas periferias 329
2
Sarau da Brasa, Sarau do Binho e Versos em Versos são alguns dos recitais que acontecem
na cidade de São Paulo. Sarau da Onça e Enegrescência, em Salvador; Sopapo Poético, em
Porto Alegre; Coletivoz e Sarau Comum, em Belo Horizonte; Poesia de Esquina, no Rio de
Janeiro são outros recitais organizados em territórios periféricos de outras cidades do Brasil.
Mais recentemente, somaram-se a esses saraus as batalhas de rima e poesia, das quais se des-
tacam os slams: tradição criada nos guetos norte-americanos de competição de poesia, com
regras pré-estabelecidas e um júri para atribuir notas às performances apresentadas.
330 Cultura política nas periferias
3
A descrição do histórico e da dinâmica do Sarau da Cooperifa aqui apresentada é uma versão
sintetizada da minha pesquisa de doutorado sobre a primeira década de atuação desse cole-
tivo. Ver Nascimento (2011).
Saraus nas periferias 331
4
Vale lembrar a observação de Cláudia Fonseca (2005) sobre a noção de família formulada
por Luiz Fernando Duarte: “Segundo ele, o valor ‘família’ tem grande peso em todas as ca-
madas da população brasileira. No entanto, significa coisas diferentes dependendo da cate-
goria social [...] Para os grupos populares o conceito de família está ancorado nas atividades
domésticas do dia a dia e nas redes de ajuda mútua” (p.51).
5
Tal como aponta Camargos (2000), os saraus tiveram grande importância na história cultu-
ral da cidade de São Paulo, entre os anos 1900 e 1930, e podem ser vistos como representa-
tivos da chamada Belle Époque paulistana. A referência para as considerações da autora foi
o Villa Kyrial, um salão senhorial onde se promoviam saraus literários, audições musicais,
banquetes e conferências que aglutinaram artistas, políticos e escritores, considerados repre-
sentantes da oligarquia paulista e da elite econômica do período. De acordo com Carmar-
332 Cultura política nas periferias
dor quando se trata de apresentar o sarau como atividade cultural que promo-
ve a interação entre sujeitos de variados perfis socioeconômicos, ainda que o
público-alvo seja os moradores de periferia e membros das camadas populares.
Não há nenhum tipo de censura prévia ou negociação do conteúdo do que
é apresentado. A declamação poética é o tipo de performance mais comum,
ainda que haja espaço para esquetes de teatro, exibições de vídeos e apre-
sentações musicais. Temas relacionados às desigualdades sociais e econômicas
são recorrentes (pobreza, falta de bens e serviços, diversas formas de violência
etc.), assim como o cotidiano das periferias e favelas a partir das suas formas
de solidariedade, lutas e resiliências. Os saraus servem, ainda, à divulgação de
debates sobre assuntos de interesse geral (como luta por moradias, eleições
para cargos públicos etc.), pautas de movimentos sociais (dos sem-teto, sem-
-terra, por educação, entre outros) ou até como espaço para denúncias diversas
(como casos de racismo e homofobia em situações cotidianas).
Esses saraus que dão novo sentido à literatura associada às periferias acon-
tecem regularmente sem financiamento ou vínculo com instituições6. O co-
merciante José Cláudio Rosa, o Zé Batidão, é tido como o “mecenas” do sarau
porque cede seu bar para que as apresentações aconteçam. Ao longo de mais
de quase duas décadas de atuação, a Cooperifa já recebeu apoio financeiro de
organizações nacionais e internacionais, além de recursos do poder público via
concorrência em editais ou contratação para apresentações em equipamentos
culturais. O que sinaliza que, para além das conexões ativas com os movimen-
tos sociais e culturais populares, a circulação dos produtos e ideias com a voz
gos, o Villa Kyrial foi um núcleo cultural que influenciou todo o cenário artístico por ter
se voltado, sobretudo, para o consumo das novidades da cultura parisiense (expressão, na
época, do progresso e refinamento em contraposição ao atraso social e cultural brasileiro) e
chegou a contar com as participações de personalidades como Lasar Segall, Guilherme de
Almeida, Oswald e Mário de Andrade.
6
Um apoiador constante da Cooperifa é o Instituto Itaú Cultural, que já patrocinou o livro
O rastilho da pólvora: antologia poética da Cooperifa, em 2004, o CD de poesias “Sarau da
Cooperifa”, em 2006, a Revista Cooperifa, em 2009 e várias edições da mostra anual que o
coletivo organiza desde 2008 (Nascimento, 2011). Pode-se citar, ainda, a Ação Educativa,
organização da sociedade com foco em educação, juventude e cultura, o Centro Cultural da
Espanha, a Oxfam Internacional. Editoras como a Global e a Cia. das Letras também con-
tribuem, ocasionalmente, com a doação de livros para serem distribuídos em eventos como
a Chuva de Livros (um sarau em que há distribuição gratuita de publicações) e o Natal com
Livros (ação específica no final do ano para distribuição de livros).
Saraus nas periferias 333
7
A descrição do Sarau Elo da Corrente e do histórico do Coletivo Mesquiteiros se apoiam no
trabalho de campo e na realização de entrevistas realizadas no âmbito do pós-doutorado que
fiz na área de educação.
8
Além da participação em diversas antologias de literatura negra e periférica, a escritora tem
três livros publicados: no gênero poético lançou Duas gerações sobrevivendo no gueto (2008),
em coautoria com Soninha Mazzo, e Sagrado sopro (2014); além dos Contos de Yõnu (2019),
todos pela Elo da Corrente Edições.
9
Autor do livro de contos Desencontros (Edição do autor, 2007); da coletânea de poemas
Acorde um verso (Elo da Corrente Edições, 2012); de Crônicas de um Peladeiro (Elo da
Corrente Edições, 2014) e do romance Amanhã quero ser vento (11 Editora, 2018). Co-
-organizador da antologia bilíngue on-line Letras e Becos – Literatura das periferias de São
Paulo (2017).
334 Cultura política nas periferias
10
Para outras informações sobre os bailes black e o hip-hop como manifestações políticos-cul-
turais de socialização, resistência e expressão do orgulho das populações negras brasileiras,
ver o trabalho de Félix (2005), entre outros. Já sobre as relações entre o movimento punk e
seu papel na conformação de um estilo específico de atuação de jovens de periferia na cena
pública, vale a leitura de Abramo (1994).
Saraus nas periferias 335
ao mesmo tempo que demonstra que o adjetivo periférico assumido por esses
escritores, mais do que uma relação afetiva com o espaço geográfico da perife-
ria, remonta historicidades e identidades de grupos sociais específicos.
Tal como acontece em outros recitais periféricos realizados em bares, a
presença de homens é predominante entre os artistas e frequentadores, pos-
sivelmente como um efeito da estrutura machista que estigmatiza mulheres
frequentadoras de botecos e que reduz sua participação em movimentos cultu-
rais. O diferencial é que a atuação de Raquel Almeida como liderança do Elo
da Corrente gera problematizações durante os recitais e algumas atividades
específicas (como eventos com foco na discussão de gênero) que ajudam a
ampliar a participação feminina nesse contexto cultural.
Desde o início, a ideia dos idealizadores era reproduzir onde moravam o
projeto coletivo que identificavam nos saraus que os inspiraram: o estímulo
à produção literária entre os moradores da região, a fruição e o consumo de
produções populares e a intervenção político-cultural no próprio bairro, a par-
tir dos eixos de atuação do coletivo. No caso do Elo da Corrente, tal projeto
manifesta-se na pequena biblioteca comunitária criada no Bar do Santista, na
organização de recitais e formação para professores nas escolas públicas, na
editora voltada para publicar autores locais, em mostras artísticas, festa para
as crianças (com brincadeiras, distribuição de doces e atrações artísticas) e
eventos (oficinas e cursos) no espaço cultural próprio, localizado ao lado do
Bar do Santista.
Como ocorre com outros coletivos artísticos organizados em territórios pe-
riféricos, o Elo da Corrente possibilitou que suas lideranças e frequentadores
assíduos se formassem como ativistas culturais, poetas, escritores e arte-educa-
dores, ampliando a construção de projetos de vida para a profissionalização e
atuação de moradores da periferia na área da cultura. Os coletivos periféricos
podem ser vistos, nesse sentido, como um primeiro suporte para a transforma-
ção de moradores de periferias em produtores e/ou ativistas culturais, tendo
em vista que impactam no modo como eles pensam a si mesmos, as suas rela-
ções com seus bairros de origem e a cena político-cultural na qual passam a ser
projetados. O engajamento possibilita, assim, que elaborem outros sentidos
para suas biografias e novos projetos de vida (Nascimento, 2017).
336 Cultura política nas periferias
11
Inspirado no título do romance de Alexandre Dumas, Os três mosqueteiros, e no nome da
escola estadual onde o sarau foi gestado, Jornalista Francisco Mesquista.
12
Autor de Te pego lá fora (Edições Toró, 2007), 100 mágoas (Um por todos, 2011), Vendo pó...
esia (Um por todos, 2014) e do infantil Menino moleque poeta serelepe (Editora Nós, 2018).
Saraus nas periferias 337
13
Algumas pesquisas acadêmicas abordam, especificamente, a relação entre literatura da pe-
riferia e educação, problematizando a inserção desse tipo de literatura nos ensinos funda-
mental e médio, as dimensões emancipatórias e pedagógicas dos saraus. Ver, por exemplo,
os trabalhos de Soares (2009) e Eble (2013).
338 Cultura política nas periferias
Considerações finais
Ainda que estudos realizados nos últimos 20 anos relativizem a persistência
de padrões socioespaciais homogêneos nas cidades e revejam criticamente o
modelo dicotômico centro-periferia, o uso do termo periferia ainda parece
pertinente para se referir a territórios que concentram a população marginali-
14
Assim como o Elo da Corrente, o coletivo Mesquiteiros foi contemplado por políticas e pro-
gramas da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, como o Programa Valorização das
Iniciativas Culturais (VAI), a Lei de Fomento à Periferia e o Programa Veia e Ventania nas
bibliotecas, além de ter sido convidado para se apresentar em bibliotecas públicas e eventos
como a Virada Cultural. Para uma compreensão das especificidades dessas iniciativas recen-
tes, ver os trabalhos de Vilutis (2009), Abreu (2010) e Raimundo (2016).
Saraus nas periferias 339
zada econômica, racial e socialmente. Além disso, periferia mantém sua legiti-
midade interpretativa e operacional quando se observa o discurso construído
por sujeitos que articulam sua atuação político-cultural a esse tipo de território
no cenário contemporâneo, no sentido de ressaltar pertencimento e formas
específicas de representar e intervir nas cidades, tais como os movimentos hip-
-hop, funk e de literatura periférica.
A projeção de escritores e coletivos literários associados ao território da
periferia sinaliza uma mudança simbólica importante, que os coloca como
sujeitos da representação e produtores de uma estética específica. Para além
disso, a atuação dos escritores, poetas e ativistas periféricos não se esgota em
livros, mas se espraia para uma série de produtos, práticas e intervenções que,
embora heterogêneas, ajudam a ressignificar corpos e territórios, e apontam
para novas formas de ação coletiva nas cidades.
Esses saraus, do modo como vêm sendo realizados nas últimas duas déca-
das, vão muito além do recital poético: são encontros comunitários para tro-
ca de ideias, discussão da experiência dos moradores da periferia, elaboração
de novas perspectivas educacionais e profissionais. Nesse sentido, colocam-se
como opções de lazer, produção, fruição e participação político-cultural, con-
tribuindo para afirmar que a periferia é também um lugar onde se produz e se
consome “cultura”.
Entretanto, não se identifica nos coletivos periféricos um discurso que des-
considera a importância do Estado como indutor de políticas, pelo contrário.
Esses coletivos têm sido responsáveis por organizar agendas ligadas à capa-
citação, produção, circulação e consumo na área cultural, apresentando-se
também como sujeitos políticos que visibilizam para o poder público outras
demandas que não aquelas tradicionalmente associadas às populações das pe-
riferias (relacionadas à educação, saúde e moradia, por exemplo). Os saraus
podem ser vistos como soluções criativas para viabilizar a produção e a fruição
cultural, ou mesmo, para atenuar a carência de espaços para esses fins em ter-
ritórios periféricos, mas não deixam de engajar seus participantes na luta por
políticas e equipamentos voltados para a cultura.
Além disso, os saraus constituíram-se como espaços de incentivo para que
sujeitos de variadas faixas etárias, não necessariamente relacionados às ativida-
des intelectuais ou artísticas, passassem a assumir a identidade de poetas, mes-
340 Cultura política nas periferias
Referências
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Saraus nas periferias 341
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de São Paulo, 2009.
Rimar letrando ou letrar
rimando: os saraus literários da
periferia de São Paulo como
agências de letramento
Mariana Santos de Assis
Introdução
A escola ainda é uma das principais agências de letramentos da sociedade,
além de agregar uma imensa diversidade étnica, social, cultural e de gênero
(Kleiman, 1995). Diante disso, é cada dia mais importante questionar os
currículos e práticas pedagógicas desenvolvidas nesse espaço, pois ainda iden-
tificamos posturas conservadoras, as quais não dialogam com a realidade dos
estudantes e comunidades nas quais está inserida, tampouco com as necessi-
dades de práticas de letramentos e multiletramentos fundamentais para uma
atuação efetiva na sociedade contemporânea.
Nesse contexto, os questionamentos sobre o currículo escolar, que se for-
talecem quanto mais se intensificam, organizam e articulam as lutas dos mo-
vimentos contra opressão – movimentos negro, feministas e LGBTQIA+ –,
ganham cada vez mais importância no processo de mudança das práticas es-
colares e, consequentemente, da própria inserção e atuação das/os futuras/os
cidadãs/ãos formadas/os nesses espaços.
Historicamente a escola resiste em aceitar os saberes produzidos e de in-
teresse por parte de seus alunos e das comunidades em que está inserida. Tal
postura não apenas prejudica o processo de formação de cidadãs/ãos atuantes
e críticas/os, como também vem impedindo até mesmo sua atuação mais con-
344 Cultura política nas periferias
de seu lugar na sociedade. Ao nos questionarmos sobre essa voz narrativa local,
precisamos pensar qual é esse local quando tratamos de sujeitos negros dester-
ritorializados, cujos vínculos culturais e nacionalistas foram construídos sob a
égide da escravidão, marcada pela exclusão social e reificação inerentes a ela.
Pensar na literatura desses povos a partir de uma perspectiva unicamente na-
cionalista, por exemplo, seria reduzir a relevância de uma história, a qual o colo-
nizador tentou durante séculos apagar, mas permanece viva e crescendo através
do Atlântico, como propõe Gilroy (2012). Segundo o autor, o Atlântico Negro
representaria uma alternativa às posturas teóricas mais recorrentes no que se refe-
re ao debate sobre as produções culturais, sociabilidades e subjetividades negras.
Nesse sentido, é no âmago da escravidão, junto aos horrores do cárcere
que surgem as principais características da cultura de um povo forçado a re-
construir suas raízes através de um oceano de opressão, que não foi capaz de
romper os laços que os unem e tornam um só, sem perder suas particularida-
des e subjetividades. É importante levar em consideração essa ideia de uma
certa dialética entre as muitas misturas culturais, inevitáveis de um processo
de diáspora, e a manutenção de subjetividades constantemente negadas. Tal
cuidado é necessário para não cairmos nas armadilhas de leituras romantizadas
dos processos de hibridismo cultural, as quais beiram os delírios do mito da
democracia racial, ao apagar ou relativizar as relações de poder envolvidas na
assimilação de culturas subalternas pelas culturas dominantes (Hall, 2009).
Além disso, também evitaremos os exageros do absolutismo étnico, o qual
pode tentar retomar um discurso de pureza étnica pouco convincente quando
analisadas as produções e características culturais de povos negros em diferen-
tes pontos do trânsito atlântico, as quais se alimentam dos legados de negros e
negras em diferentes pontos da diáspora.
Nesse sentido, podemos dizer ainda que a necessidade de afirmar uma
identidade nacional ou étnica pouco ou nada fala à história do povo negro na
diáspora. Hooks (2013) apresenta um exemplo interessante ao tratar do modo
como os negros norte-americanos se apropriaram e ressignificaram o inglês
padrão, a partir de um processo de resistência e identificação
Penso nos negros encontrando uns aos outros num espaço distante das diversas
culturas e línguas que os distinguiam uns dos outros, obrigados pelas circuns-
348 Cultura política nas periferias
tâncias a achar maneiras de falar entre si num “mundo novo” onde a negritude
ou a cor escura da pele, e não a língua, se tornariam o espaço da formação de
laços (p. 225).
Considerações finais
Podemos dizer que, embora permaneça uma importante agência de letramen-
to, a escola não possui, há tempos, o monopólio da formação da população
periférica. A constante rejeição aos saberes, posturas e ideologias da instituição
tem aumentado a evasão e a frustração, sobretudo da população negra, mas
a resposta a isso não vem na forma de uma indigência cultural, ao contrário,
vemos surgir alternativas para garantir possibilidades de construção e fortale-
cimento identitário.
Nesse sentido, o movimento cultural hip-hop e os saraus literários da pe-
riferia, bem como toda a produção da literatura negra e marginal/periférica,
surgem como protagonistas no processo de formação e empoderamento da
população negra e pobre, ocupando um lugar historicamente negligenciado
pelas instâncias legitimadas de conhecimento.
352 Cultura política nas periferias
Referências
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saraus literários da periferia de São Paulo. 2014. 154f. dissertação (Mestrado em Linguís-
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SOUZA, A. L. S. Letramentos de (re)existência: poesia, grafite, música, dança: hip-hop. São Paulo:
Parábola Editorial, 2011.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Slam: Ocupação e Resistência
Francisco César Rodrigues (Chico César)
pessoas uniformizadas com a camiseta do slam que mais tarde vim saber que
se tratavam do Emerson Alcalde e Cristina Assumção, os dois MCs do slam,
e o matemático que computava as notas, Uilian Chapéu. Mais adiante conto
um pouco deles, pois merecem um capítulo à parte. Havia uma prévia que
parecia ser o momento de confraternização, reencontros, colocar os papos
em dias, uma desorganização organizada. De repente uma voz mais impo-
nente pela acústica do microfone chama a atenção da galera para dar início
à batalha de poesias. De uma forma muito harmoniosa, demonstrando total
sintonia com o grupo, num formato de jogral, dá-se início ao evento com seu
tradicional manifesto.
Guilhermanos e Guilherminas;
Guilher MANOS, Guilher MINAS (coro)
Guilher MANOS, Guilher MINAS (coro)
Guilher MANOS, Guilher MINAS (coro)
Guilhermanos e Guilherminas;
Quem vencer esta noite será nomeado Slampião ou Slampiã;
Porém, não levarás para casa a Maria Bonita;
Vem, pode chegar, sob a luz da lamparina, celebrando a poesia;
No slam mais roots da América Latina;
Ocupando a praça muito além da fumaça;
Não duvide da fé;
Porque Guilhermina é;
Esperança;
Somos o Bando do Lampíão;
E o nosso cangaço?
É Cangaiba nosso Pedaço;
Ermelino Matarazzo;
Da Guilhermina à São Bento, é só uma questão de tempo;
Somos o Bando do Lampião;
Praticando slam como num rachão de domingo;
Só que pra gente também é balada;
É resistência! É celebração! É convívio!
Guilher MANOS, Guilher MINAS (coro)
358 Cultura política nas periferias
Ei Ei Ei, é um convite;
É um convite pra se pensar educação;
É um convite pra se pensar a juventude;
Educação no Brasil anda perdida;
Tem uns anos que ela tem sido sucateada;
Tem uns anos aqui no Brasil que ela tem sido manipulada;
Onde já se viu professor compartilhado?
Um corpo, dois espaços ao mesmo tempo;
Só aqui no Brasil onde a cada momento fecham-se salas de aula e vagas de
emprego;
...Escola, educação, emprego, renda;
São quatro elementos dessa equação;
Entenda;
Educação é estar no mundo, mas também expansão de consciência;
A nossa carreira não cabe dentre dessas entrevistas de emprego;
A vida não cabe dentro desses processos seletivos;
A educação de um ser humano não cabe em um vestibular;
Então qual o objetivo?
Se escola, educação, emprego e renda são direitos, porque selecionar?
A educação no Brasil, ela realmente anda perdida;
Mas tem uns professor-poeta-louco tentando encontrar;
E não tem como fugir desse assunto na minha poesia;
E me desculpa qualquer grosseria;
Mas sabe esse papo de meritocracia?
Amassa bem e devolve lá pra burguesia;
Porque essa palhaçada mal-intencionada tem que acabar.
Essa Poesia é pela educação e pelo fim do vestibular;
É o hype caraio!
*Kauê Recsi (poeta)
Ainda com a ideia na cabeça, mas disposto a botá-la no papel, fui discu-
tir com quem era responsável pelas atividades culturais dentro da Fundação
CASA. Não houve resistência ou discordância sobre o resultado positivo que
oficinas de slam teriam junto à população dos Centros. No entanto, o projeto
não teve continuidade por falta de recursos financeiros necessários para desen-
volver as oficinas. Como o universo conspira, a oportunidade surgiu por meio
de um edital de Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
para trabalhar com adolescentes e jovens em liberdade assistida. Convidei os
amigos e educadores sociais Valéria Pássaro, Max Dante e Emerson Alcalde,
poeta e organizador do Slam da Guilhermina, para desenvolvermos este pro-
jeto. Aguardamos o resultado da avaliação do edital e se tudo der certo, ini-
ciaremos este projeto com boas expectativas de resultado com esses meninos e
meninas, acreditando poder, por meio da poesia, despertar novas perspectivas
para suas vidas, por meio do empoderamento e fortalecimento de sua autoes-
tima. Torçamos para todos e todas!
Para fechar esta minha participação neste livro, gostaria de deixar aqui uma
das poesias que mais me toca e emociona, é uma poesia feita por um jovem
que respeito e admiro, e que decidiu homenagear uma categoria que é invi-
sibilizada, discriminada e marginalizada, como tantas outras que povoam as
periferias do país, mas que levantam os alicerces das nossas cidades e, que por
meio dessa poesia, alicerçam a nossa humanidade.
Vinte peão trampando numa obra mano, quase todos são pretos, um só é branco,
e advinha quem é o engenheiro?
Sem erro!
Engraçado é que nem sempre quem sabe mesmo é quem ganha mais;
Os tios miliano de obra fazendo história e quem ganha medalha de honra ao
mérito é um boy que cursou cinco ano de teoria bancado pelos pais;
Sem novidade!
Massa que vai, concreto que vem, encarregado que puxa saco de patrão, na mão
dos peão se torna refém;
A cachaça escondida é o remédio que ameniza as dores do corpo;
Mas também é um biotômico pra abrir o apetite na hora do almoço;
Esquenta a boia, senta no chão, pega a coxa de frango coma mão, garfo não;
Eles gostam de comer de colher;
Lambe os beiços, bucho cheio, trinta minutos pra tirar um cochilo e antes de
voltar, pra despertar, um copinho de café;
E é café mesmo que eles servem pra poder continuar, pois ainda é uma da tarde e
até às cinco tem chão ó, muito chão pra quebrar;
Marretada dada, suor pinga na calçada, experiência de peão não se comprova
com carteira assinada;
Mas sim nas mãos calejadas;
O cigarro é tão essencial quanto a ferramenta de trampo;
Às vezes nego véio nem é fumante;
Mas mata dez minutos no descanso fumando;
Mete o loco mesmo pra cima dos patrões e das grandes empreiteiras;
O que é atrasar alguns meses de obra cujo o dono contribuiu pro atraso de sua
vida inteira, mano?
Tá de brincadeira?!
Mãos à obra, lá na obra ninguém tem nome mas tem vulgo;
É o Ceará, o Bahia, o Maranhão, o Pernambuco, vai dizer que nordestino é
preguiçoso mano?!
Isso é até um insulto!
Eu não julgo!
As mina passa, os peão comenta, eu vou fazer o que mano?
Slam: Ocupação e Resistência 373
Como eu vou explicar o machismo pra quem o estado não fez nem questão de
ensinar escrever mano?
Peraí tio;
Faz favor mano;
Tem que gosta de fuder o oprimido que já tá fudido, mas não vejo um nada
contra os opressor;
Tem que ver direitinho mano;
Tem que tá vendo;
Vou cobrar sim, da minha geração, começando por mim memo;
Valeu Zé, valeu João, valeu Chico, valeu Raimundo;
Criam seus netos, sustentam seus lares, cheios de orgulho;
Já dei um salve nas crianças poetas da rua;
Hoje o meu salve é pros tiozinhos da vila;
Que entre o cimento, o sorriso e o lamento, nunca deixou de lutar pela sua família.
*Beká (poeta)
Referências
GOMES, Mel, poesia. Nascimento 1999. Poesia – Tu pisa ligeiro. Slam da Guilhermina 2017.
GUILHERMINA, Slam. O coletivo nasceu em 2012, na praça anexa à estação Guilhermina/
Esperança do metrô linha vermelha, e consiste em um campeonato de poesias faladas (spoken
word) e acontece toda última sexta-feira de cada mês. Facebook: @slamdaguilhermina. You-
Tube: Slam da Guilhermina
FERNANDO, Kleber. Nascimento 1991. Poeta Slammer da Praia Grande (litoral paulista). Poe-
sia – Um Poema Chamado José. facebook: kleber Fernando. Instagram: @kleberfernando_3c
RECSKI, Kauê Tavano. Nascimento 1994.Orientador e Assistente Pedagógico na CEPAC –
Barueri. Poeta no Slam OZ no município de Osasco. Instagram: kauetavano. Blog: www.
kauetavano.blogspot.com.br. Facebook: Kauê Tavano Recski
SANTOS, Cinthya. Nome artístico Kimani. Nascimento 1993, Poeta Slammer e Cantora –
Poema Cidade de Deus – A Primeira. https:/ @cinthya.santos57. Instagram: @Kimani_sp
MARQUES, Humberto. Nascimento 1992. Poeta Slammer e Cantor – Poesia Homenagem aos
tiozinhos da Vila. @poetabeka
Slam na Escola – Uma reflexão
docente sobre o quanto
aprender com os estudantes
revela da cultura escolar
Patrícia Cerqueira dos Santos
Eula Cristina da Silva
Introdução
Somos professoras da Educação Básica. Atuamos em uma escola da rede mu-
nicipal na periferia da zona sul da Cidade de São Paulo. Lecionamos para
crianças e jovens do 6o ao 9o Ano as disciplinas de Língua Portuguesa e Histó-
ria. No replanejamento do ano letivo de 2019, juntas, resolvemos apresentar
aos estudantes o slam. Nosso objetivo inicial foi o de abrir espaço de fala
e de escuta das experiências vividas pelos estudantes tendo a poesia como
prática da liberdade de expressão. Também vislumbrávamos como intenção
que o projeto revelasse participantes/representantes para o slam Interescolar.
Entendemos a/o estudante como um ser humano de direito, completo e em
formação, que se depara com uma necessidade de expressar-se que é inerente
ao ser humano. Há uma ânsia pelo espaço de falar e desabafar. A escola, na
contemporaneidade, pode ser lida como um lugar de acolhimento e de escuta
dessas falas e desabafos.
O processo de construção do slam com as e os estudantes, bem como o dia
da apresentação pública das produções elaboradas possibilitaram aprendizagens
significativas para os diferentes sujeitos envolvidos nessa prática. E as reações pos-
teriores, protagonizadas por estudantes e um trio formado por um professor e
duas professoras, apontaram alguns desafios da e para a educação no século XXI.
376 Cultura política nas periferias
Conhecemos poesia como forma elitizada de arte que nem sempre enten-
demos, que parece difícil demais, distante demais de nós, que não chega na
periferia e nem nos nossos estudantes. Já o slam, marcado pela cultura de rua,
pelo hip-hop e rap tem um canal de acesso à juventude que está praticamente
inacessível à poesia clássica com suas formas complexas e muitas vezes rígidas.
Há nessa modalidade um significado histórico e social importantíssimo de
resistência através da cultura periférica.
1
Batalha das Palavras: Convida Maga Slam. Fábrica de Cultura do Capão Redondo – Pro-
gramação de Julho de 2019. Fonte: <https://www.flipsnack.com/barbaraleite/revista_f-rias.
html>. Acesso em: 14 dez. 2019.
2
GARCIA, Carolina Lopes. Fala PUC! MESQUISTA, Maira. O slam nas escolas: para além
das manifestações urbanas. Disponível em: <https://falauniversidades.com.br/slam-nas-
-escolas-manifestacao-urbana/>. Acesso em: 05 dez. 2019.
Slam na Escola 379
mãe relatou que a filha havia ouvido na apresentação do slam que Exu não era
demônio. Elas são evangélicas e a colega-mãe perguntou, “E aí como é que
fica?”, em relação à proposta de realizar um slam na escola. Assim, a reação já
se iniciou durante o processo de organização de nosso slam escolar.
De volta à sala de aula, conversamos com estudantes, procurando ouvir o
que haviam sentido, ou seja, o que cada um reteve da experiência. Não nos
surpreendemos com a avaliação vinda deles e delas. De modo geral, adoraram
sair da escola, ter um dia diferente, circular em outro ambiente. Para alguns,
essa foi a primeira visita à Fabrica de Cultura, um equipamento cultural, pú-
blico, gratuito, que oferece diversas atividades durante a semana e nos finais
de semana, localizado no bairro onde vivem. Uma estudante fez referência ao
uso de “palavrões” e a menção a “Exu”, uma observação confirmada por outras
três ou quatro estudantes.
Nesse momento, procuramos fazer uma intervenção com relação ao uso
de “palavrões”. Explicamos que é possível usar “palavrões” em poemas, rea-
firmando a liberdade de expressão da arte e a licença poética que a prática
possibilita. Para além disso, era importante pensarmos que aquela fala trazia
revoltas, trazia problemas da vida real, e que escolhemos a melhor forma de
expressar nossos sentimentos, que, por vezes, não será aceito socialmente. Ar-
gumentamos que temos que aprender a lidar com isso.
Sobre Exu, resgatamos alguns diálogos que tivemos nas aulas de história
sobre a importância do respeito ao direito das pessoas de escolherem sua
crença, professarem sua fé, optarem por uma religião, bem como, não admi-
tir nenhuma crença. Para estudantes do 6o ano, retomamos brevemente os
estudos sobre cultura, nos quais a religião é elemento constitutivo da produ-
ção cultural da humanidade, como havíamos visto em definições de cultura
das festividades religiosas, como o Círio de Nazeré do Estado do Pará e o
Tambor de Crioula do Estado de Maranhão. Também falamos do patrimô-
nio cultural imaterial da humanidade como é considerada pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). E,
para estudantes do 7o ano, relembramos brevemente nossos estudos sobre
a presença da cultura dos povos Bantos e Iorubás na construção da cultura
brasileira e pelo povo indígena kariri – xocó, na produção de artesanato des-
tinado ao consumo dos não indígenas. Apontamos que essa abordagem foi
380 Cultura política nas periferias
Slam na Escola
A poesia que costuma aparecer nos Slams, embora não tenha nenhum pa-
drão pré-definido, tem a característica comum de ser extremamente pessoal.
Não propusemos um tema; assim, cada estudante ficou livre para falar do que
quisesse. Durante a apresentação, fomos observando que os poemas eviden-
ciaram diferentes formas de depressão. Destacamos aqui três declamações do
tema. São oriundas da experiência de morar na rua e os abusos sofridos; das
dificuldades na fala que provocaram bullying e da perturbação estimulada pela
depressão de parentes.
Uma das slammers, fazendo referência à depressão e suas consequências,
declamou:
3
JÚNIOR, Alfredo Boulos. Coleção: História, sociedade e cidadania, 6o Ano (p. 29 e 32) e
7o Ano (p. 80, 82-83). 3a ed. – São Paulo: FTD, 2015. Livro didático adotado pela escola
através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD – 2017-2019).
Slam na Escola 381
4
CARNEIRO, Silvio. Vivendo ou aprendendo... A “ideologia de aprendizagem” contra a
vida escolar. Em: Educação Contra Barbárie: Por Escolas Democráticas e Pela Liberdade de
Ensinar. Ed. Boitempo, 2019.p.46.
5
GARCIA, Carolina Lopes. Fala PUC! MESQUISTA, Maira. O slam nas escolas: para além
das manifestações urbanas. https://falauniversidades.com.br/slam-nas-escolas-manifestacao-
-urbana/. Acesso em 05 dez. 2019.
6
_____________. Idem.
382 Cultura política nas periferias
saber conhecer e cuidar de seu corpo, sua mente, suas emoções, suas aspirações
e seu bem-estar e ter autocrítica; para reconhecer limites, potencias e interesses
pessoais, apreciar suas próprias qualidades, a fim de estabelecer objetivos de vida,
evitar situações de risco, adotar hábitos saudáveis, gerir suas emoções e comporta-
mentos, dosar impulsos e saber lidar com a influência do grupo7.
7
São Paulo (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da
Cidade: Ensino Fundamental: História. São Paulo: SME/Coped, 2017. p.34.
8
Rodrigo Ratier, em 2017 escreveu um artigo para a Revista Nova Escola intitulado “Precisa-
mos sentir mais raiva”. Em 2019, Ratier, refletindo sobre a repercussão desse artigo, escreve
um novo artigo, agora com o título de “Escola e afetos: elogio da raiva e da revolta” publica-
do no livro Educação Contra Barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar.
Ed. Boitempo, 2019.
Slam na Escola 383
ainda, que “nós não temos pernas para lidar com o problema que o abertura
do microfone causou”. Contudo, os estudantes pareciam extremamente satis-
feitos por terem sido ouvidos.
Pensando em tudo isso, foi possível entender que os colegas não estão
errados. Realmente o corpo docente não está preparado para lidar com a di-
versidade existente em nossas escolas. Inclusive essa reação dos colegas pode
ser lida como demonstração de compromisso dos mesmos para com o bem-es-
tar dos estudantes. Mas, precisamos escutar os estudantes de forma respeitosa
e acolhedora. Inclusive, no documento Currículo da Cidade para o ensino
fundamental das escolas municipais da cidade de São Paulo, as referências que
orientam a matriz de saberes recomendam “abordagens pedagógicas que dão
voz aos estudantes, que reconheçam e valorizem suas ideias, opiniões e expe-
riências de vida, além de permitir que façam escolhas e participem ativamente
das decisões tomadas na escola e na sala de aula”. 9
Por outro lado, o momento político em que vivemos nos coloca diante
de situações contraditórias que exigem de nós estratégias de luta para que
possamos reexistir. A professora Eula foi procurada por um dos professores
que muito preocupado com a integridade intelectual e profissional da colega
a alertou dizendo que “a professora Patrícia era perigosa e o que ela fazia não
era educação”.
Quando fui comunicada pela professora Eula do ocorrido, procurei o cole-
ga para uma conversa em particular, sem sucesso. Foi a partir daí que procurei
a coordenação pedagógica e a direção da escola e relatei o ocorrido. Minha
intenção foi a de dialogar coletivamente sobre aquela situação. A mensagem
parece sugerir que a professora Eula deveria se afastar dessa “má influência”.
Mas afinal, o que o incomodou na união dessas duas professoras? O que a
maturidade de uma (perigo) e a juventude da outra (inocência) poderiam
provocar?
Desde quando é perigoso estimular a fala e se dispor à escuta acolhedora
das questões trazidas pelos estudantes, ajudar a organizar saídas pedagógicas
a espaços culturais no território onde estudantes vivem para aprender com
os outros, exercitar a fala e a escuta atenta e solidária de outras vozes que por
9
São Paulo (SP). Secretaria Municipal de Educaçao. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da
Cidade: Ensino Fundamental: História. São Paulo: SME/COPED, 2017.p. 29.
384 Cultura política nas periferias
Considerações Finais
Por Eula Cristina
A experiência com slam mudou minha forma de entender educação, alterou a
maneira de enxergar os estudantes. Fiquei extremamente feliz com a produção
dos estudantes, impressionada com a capacidade de escrita, coragem de apre-
sentar em público falando de sentimentos tão íntimos. Quando ouvimos um
estudante falar do quão mal ele se sente em sua própria pele ou do quanto sua
história é vazia de felicidades, a realidade dá um banho de água fria em nossas
expectativas.
Essa experiência reafirmou a importância do que fazemos enquanto pro-
fissionais da educação.
Aprendi mais sobre meus estudantes individualmente do que sobre os
meus pares. Embora não esperasse opiniões tão extremadas, já sabia que mui-
tas vezes o que diverge da norma e desafia o senso comum e o status quo pro-
voca reações violentas.
É sempre possível aprender mesmo sobre as coisas que já se sabia e ressig-
nificar aprendizagens. Em seu livro Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire diz
que “o educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática
docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua in-
submissão”. E é justamente sob esta perspectiva que exercemos nossa prática
pedagógica, ou seja, buscando sempre educar para liberdade, educar insub-
missos, rebeldes e inconformados. E a insubmissão e a liberdade sempre gerará
respostas geralmente violentas e intensas daqueles que detêm e detiveram o
poder por tanto tempo.
Grã-Bretanha e EUA com a sociedade, lembra que estes sabem “lidar com as
complexidades do mundo que os cerca, entendê-las e sobre elas desenvolver
opiniões ponderadas”, os nossos jovens, sobre a sociedade brasileira, sabiam
fazer tudo isso e ainda apresentavam publicamente suas reflexões e de forma
rimada, construindo ferramentas de reexistência, que também me ajudaram a
reexistir aos ataques dos colegas.
A pergunta da mãe e professora: “E agora como fica?”, se não foi respon-
dida diretamente a ela, foi respondida para a filha e aos demais estudantes da
escola à medida que fomos desenvolvendo o trabalho e os estudantes foram
entrando em contato com diferentes ideias e opiniões sobre temas ainda polê-
micos em nossa sociedade.
Em nossa concepção, o slam na escola foi mais uma oportunidade de co-
nhecer melhor quem são os estudantes para e com os quais construímos pro-
jetos de ensino, quem nós somos, reafirmando nossos compromissos com uma
educação que ajude na formação humana e cidadã.
Outra leitura possível do slam em nossa experiência é a de que ele também
ajudou a revelar as polêmicas da vida escolar, os desafios de construir ações
coletivas, a ausência de discussões sobre o que seja trabalho em grupo, entre
outras questões que convergem para uma possível análise sobre a construção
coletiva do trabalho docente na escola, do papel da gestão escolar (coordena-
ção pedagógica e direção) na mediação do trabalho e dos conflitos no ambien-
te escolar.
Referências
CARNEIRO, Silvio. Vivendo ou aprendendo... “A ideologia da aprendizagem” contra a vida
escolar. In: CASSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas
e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019, p.41-46.
CAVALLEIRO, Eliane. Educação antirracista: compromisso indispensável para um mundo
melhor. In: CAVALLEIRO, Eliane (org.). Racismo e antirracismo na educação: repensando
nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. p.141-160.
GARCIA, Carolina Lopes. O slam nas escolas: Para além da manifestação urbana. Disponível
em: <https://falauniversidades.com.br/slam-nas-escolas-manifestacao-urbana/>. Acesso em:
05 dez. 2019.
HARGREAVES, Andy; EARL, Lorna; RYAN, Jim. Educação Para Mudança: Recriando a escola
para adolescentes. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.
Slam na Escola 387
RATIER, Rodrigo. Escola e afetos: um elogio da raiva e da revolta. In: CASSIO, Fernando
(org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São
Paulo: Boitempo, 2019. p.151-157.
SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da
Cidade: Ensino Fundamental: História. São Paulo: SME/Coped, 2017.p. 29.
SOUZA, Ana Lúcia Sila. Negritude, letramento e uso social da oralidade. In: CAVALLEIRO,
Eliane (org.). Racismo e antirracismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo
Negro, 2001. p.179-194.
UniGraja: por uma quebrada
educadora autônoma
Thiago Borges, da Periferia em Movimento
Colaborações: Agência Cresce, Casa Ecoativa,
Cooperpac, Graja na Cena, Imargem e
Salve Selva
Chão e identidade
Maria Vilani diz: “Grajaú é meu país”. Mas que país é esse, afinal? O geógrafo
Milton Santos nos ensina que “território” é o chão mais a identidade, ou seja:
não é só o chão em que a gente pisa, mas o conjunto das relações sociais, eco-
nômicas, artísticas, afetivas que estabelecemos a cada passo que damos.
E quais identidades fazem morada no Grajaú? Do teatro na beira da
represa ao cinema na garagem, da literatura no boteco às vielas de onde
ecoam o samba, o rap, o funk. Os campos de futebol, cortejo, culto e ocu-
pação são algumas peças que formam esse quebra-cabeça. Nessa porção de
terra de 92,53 quilômetros quadrados, margeada pelas águas da represa
Billings e pelo verde da Mata Atlântica, vivem mais de 360 mil moradores
(censo 2010 do IBGE).
As linhas imaginárias que delimitam o “país” Grajaú, distrito mais popu-
loso da cidade de São Paulo, são nosso ponto de partida. Por isso, é preciso
viajar no tempo para entender o percurso que abre caminhos para a existência
da UniGraja.
Nas últimas cinco décadas, Grajaú foi ocupado por migrantes de outras
regiões brasileiras e seus descendentes. A população urbana saltou de 12,8
milhões em 1940 para 80,5 milhões em 1980. A expulsão do campo e o êxodo
rural nos trouxeram até aqui, como lembrou Darcy Ribeiro. No subdesenvol-
vimento desindustrializado, encontramos nesse chão espaço pra construir a
casa própria – fator primordial de sobrevivência e estabilidade, como recordou
392 Cultura política nas periferias
Lucio Kowarick. Sem dinheiro, foi nas regiões mais distantes do centro das
grandes cidades (como o Grajaú) que nossos antepassados se fixaram.
Em 1950, as periferias de São Paulo já abrigavam quase 40% dos morado-
res da cidade. De 1960 a 1970, a população da capital paulista aumentou em
mais de 2 milhões de habitantes, quando mais de 430 mil domicílios foram
construídos, a maior parte em loteamentos clandestinos. O preço da terra
subiu 150% entre 1950 e 1980, o transporte ficou mais caro, o desemprego
cresceu e não tinha dinheiro para financiar casa própria: muitos moradores
vieram para favelas ou regiões onde não se poderia construir, como as áreas de
proteção aos mananciais.
É assim que se “inventa” o Grajaú dos dias atuais.
Antes aqui era só um local ermo, utilizado por indígenas guarani mbya
como passagem entre o litoral e o planalto paulista, com vias terrestres e flu-
viais que ligavam as aldeias de Ibirapuera e Itanhaém, além de pequenos al-
deamentos na região de Marsilac. Uma das rotas seguia pela antiga Estrada
do Bororé – atual avenida Dona Belmira Marin, via com 7 quilômetros de
extensão que corta o distrito de ponta a ponta.
Em 1829, a região começou a ser efetivamente ocupada com a chegada de
229 colonos alemães onde hoje fica o bairro de Colônia Paulista (Parelheiros),
e a posterior chegada de imigrantes japoneses, italianos e portugueses. A partir
da década de 1960, a população negra, migrante principalmente do interior do
estado de São Paulo, de Minas Gerais e do Nordeste, chegou para trabalhar nas
roças, olarias de tijolos de barro e carvoarias. A construção das represas Guara-
piranga (1907) e Billings (1926) pela companhia Light impulsionou o desen-
volvimento industrial décadas depois, com a instalação de fábricas no polo de
Santo Amaro, atraindo milhares de migrantes de outros estados para a região.
Para tentar frear a ocupação na “caixa d’água” de São Paulo, responsável
por abastecer as torneiras de um terço da população da região metropolitana,
em 1976 o governo do estado publicou a Lei de Proteção aos Mananciais.
Com objetivo de impedir a comercialização de terras nas bacias hidrográficas
dos dois reservatórios, a lei teve efeito contrário: derrubou o preço das ter-
ras. Sem fiscalização, proprietários e grileiros lotearam os terrenos e venderam
muito barato a milhares de trabalhadores que chegavam de outras localidades
do Brasil para construir São Paulo.
UniGraja 393
1
Disponível em: <http://periferiaemmovimento.com.br/tag/matriarcas/>. Acesso em: 26 out.
2020.
394 Cultura política nas periferias
Foi no contato com Adélia que Maria Vilani se encontrou em seu atual
“país”. Nascida em 1950 em Fortaleza, ela estava grávida do primeiro filho
quando se mudou para São Paulo com o marido Cleon, em 1972. Ele, que
tinha formação de metalúrgico, conseguiu emprego. E ela, sem ter onde deixar
a criança, ficou como dona de casa. Moraram em várias quebradas e, final-
mente, em 1982 conseguiram comprar uma casa no Grajaú. E foi a partir
da necessidade de tirar suas dúvidas na lição de casa dos filhos que ela voltou
para a sala de aula. Aos 39 anos, matriculou-se na mesma escola e estudou na
mesma sala do filho Kleber Gomes. A sede de conhecimento de Maria Vilani
adubou ainda mais esse solo. Em 1990, a partir da mobilização de 36 artesãos
e 28 poetas, ela fundou o Centro de Arte e Promoção Social do Grajaú – o
Caps Artes, em uma época em que muito faltava e a cultura era relegada a
segundo plano.
Essas lutas travadas e protagonizadas por nossas matriarcas, mães, avós, vi-
zinhas, professoras fazem até hoje brotar muitos frutos. Às margens da represa
e do direito à cidade, no trajeto diário de 3h30 no ônibus ou trem lotado,
sobreviver já é um ato de resistência. E isso reverbera nas ações culturais pelo
território: do Pagode da 27, uma roda de samba criada há 14 anos numa rua
que hoje é símbolo de convivência; ao A Bordar, um espaço de cuidados de
saúde mental aberto em 2018 por e para mulheres periféricas.
A intensa cena do rap e do graffiti colocam o Grajaú no mapa do movi-
mento hip-hop, com referências como Niggaz2 ou Xemalami3. O abraço às
políticas públicas culturais, como o Programa Vocacional da Secretaria Muni-
cipal de Cultura, faz surgir dezenas de grupos de dança e teatro que têm nas
ruas a fonte de suas histórias, o espaço de ensaio e palco para apresentações.
Em 2015, o mapeamento “Cultura ao Extremo” identificou ao menos
168 agentes culturais atuando no extremo sul de São Paulo, em diferentes
linguagens e pautando questões como direitos humanos, culturas populares,
educação e negritude. Na época, mais da metade mantinha essas ações com
2
Disponível em: <http://periferiaemmovimento.com.br/dez-anos-de-encontro-niggaz-o-maior-
evento-de-graffiti-de-sao-paulo/>. Acesso em: 25 out. 2020.
3
Disponível em: <http://periferiaemmovimento.com.br/xemalami-lanca-vaquinha-on-line-pra-
bancar-novo-disco-independente/>. Acesso em: 25 out. 2020.
UniGraja 395
Pedagogia da rua
Salloma Salomão nos alerta que “universidade” é um conceito eurocêntrico,
para formar a elite dominante. Nesse ponto, está a ousadia de chamar um pro-
jeto que visa nossa própria liberdade enquanto povo. E se não temos próprios
conceitos e modos de fazer escritos, escrevemos enquanto vamos fazendo.
Nesse sentido, no final de 2017 coletivos e organizações locais que já de-
senvolviam práticas educadoras na quebrada se uniram para planejar ações
conjuntas, mais efetivas e representativas para o território. A partir das expe-
riências acumuladas pelos coletivos, os conteúdos foram organizados em “asas
curriculares”. Navegamos por terra e água, entre muros e margens, para fazer
um reconhecimento do território e entender o que forma nossa identidade e
porquê estamos aqui.
Alçamos voo em cinco asas curriculares: nas vivências de permacultura,
compreendemos como podemos viver causando menor impacto socioambien-
tal; aprendemos e colocamos em prática os cinco elementos do hip-hop; deba-
temos e experimentamos diferentes ferramentas e linguagens informativas nos
encontros de comunicação; discutimos como criar e desenvolver autonomia
econômica nas vivências de empreendedorismo; e a partir dos encontros de
gestão cultural, organizamos e produzimos a Feira UniGraja para expor os pro-
dutos criados no processo, apresentações artísticas, vivências náuticas e ciclísti-
cas e celebrar o encerramento de um ciclo com a participação da comunidade.
Em 2018, mais de 230 jovens e adolescentes do Grajaú participaram de
64 vivências, além de uma celebração para mais de 2 mil pessoas. Pelas mí-
dias sociais e na articulação presencial no território, dialogamos com cerca
de 50 mil pessoas.
UniGraja 397
Mas só isso não basta. Entendemos que enfrentamos uma série de proble-
mas estruturais e também oportunidades socioculturais e ambientais. Dessa
forma, a UniGraja busca articular e fortalecer uma rede para: sistematizar co-
nhecimentos empíricos e acadêmicos produzidos na quebrada, como saberes
formais, tradicionais e populares; potencializar ações para diminuição das de-
sigualdades e valorizar as diversidades do território.
Ao longo de 2019, mergulhamos num processo de pesquisa interna e ar-
ticulação intensa no território, com vivências autoformativas sobre susten-
tabilidade ambiental e institucional; construção de narrativas periféricas; e
territórios educadores. Também promovemos encontros inspiracionais com
educadores formais e não formais e participamos de intervenções no território
com outras redes, com mutirões de requalificação de praças e parques, ações
com associações de moradores, contra o racismo e pela saúde mental.
Na busca pelo desemparedamento do conhecimento, ocupamos e provo-
camos outros agentes a pisar nesse território de conflitos e, assim, construir
em rede essa quebrada educadora autônoma. A margem é o centro, o centro
está na margem.
Agência Cresce
Criada em 2016 com a ideia de auxiliar na comunicação visual e virtual de cole-
tivos e iniciativas da região do Grajaú, no fim de 2017 o foco da Agência Cresce
passou a ser o fomento do desenvolvimento econômico e tecnológico da região.
Consideramos que o território tem grandes potenciais econômicos e fornece
boas oportunidades para desenvolvimentos tecnológicos de tipos variados.
Quando se olha para o território, podemos pensar em como se pode mu-
dar a dinâmica de trabalho que envolve sair do bairro para ir para o centro
e regiões afins para conseguir produzir e desenvolver carreiras. Com pessoas
com vários saberes e fazeres, é possível desenvolvê-los no território sem neces-
sariamente migrar cotidianamente para outros lugares.
Nesse âmbito, a Agência Cresce já realizou palestras em escolas sobre temas
tecnológicos, fez formações relativas a economias e empreendedorismos, e já
formou aproximadamente 100 pessoas, com o propósito de contribuir para
que o compartilhamento desses saberes chegue a mais pessoas.
398 Cultura política nas periferias
Casa Ecoativa
Localizada na Ilha do Bororé, APA – Área de Proteção Ambiental Bororé Co-
lônia, às margens da Represa Billings, no extremo sul de São Paulo, a Casa
Ecoativa está na divisa da mancha urbana com a mancha rural, onde a traves-
sia da balsa parece um portal de entrada para a mancha verde da cidade.
É um espaço onde artistas, educadores, pedagogos e permacultores, tanto
individuais como de coletivos diversos, se reúnem e promovem ações cultu-
rais e socioambientais de diferentes formatos e linguagens. Atividades com
escolas locais, desenvolvendo processos de desemparedamento da infância e
aprendizagem em meio à natureza, hortas pedagógicas, mutirões de plantio,
incubação de tecnologias permaculturais, como técnicas de tratamento de es-
goto e captação de água da chuva, eventos de alimentação saudável, artísticos,
turismo de base comunitária e preservação da memória.
O imóvel ocupado pela Ecoativa foi cedido à comunidade local no final
da década de 1990 pela Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae)
para estabelecer uma gestão ambiental participativa, num convênio entre a
Secretaria do Verde e Meio Ambiente (SVMA) e a Associação dos Moradores
da Ilha do Bororé (Amib). O nome Ecoativa foi escolhido num concurso entre
os alunos da escola da comunidade, Escola Estadual Adrião Bernardes
Nessa época, o espaço era ocupado com atividades como capoeira, shows
e movimentos culturais, como a cultura hip-hop entre outras atividades. Esse
espaço ficou desativado em meados de 2004, diante de muitas problemáticas
de gestão e legalização com a prefeitura. No ano seguinte, 2005, o Instituto
Pólis elaborou um projeto de mobilização de atores sociais que impulsionou
a cultura hip-hop no Grajaú, organizando eventos como saraus e outras ações
culturais no espaço Casa Ecoativa.
Em 2006 nasceu o Movimento Imargem, que passou a fazer atividades
eventuais no espaço, em parceria com outros atores culturais da região. Ainda
assim, o espaço da casa Ecoativa ficou inativo de 2006 até 2013, com exceção
de algumas atividades pontuais desenvolvidas pelo próprio coletivo Imargem,
Cedeca Interlagos e o Conselho Gestor da APA Bororé-Colônia.
Em 2014, a convite do Imargem, organizou uma programação na Virada
Sustentável, envolvendo vários coletivos e atores culturais, que realizaram um
UniGraja 399
Graja Na Cena
O coletivo foi criado em 2013 com o intuito de fortalecer a produção cultural
do hip-hop no Grajaú a partir de ações que ampliem os meios de criação e de
difusão audiovisual de grupos de rap. Por um lado, a proposta é impulsionar
a produção cultural, social e econômica local pelo audiovisual; e, por outro,
instrumentalizando jovens que já atuam na construção de videoclipes de for-
ma amadora, funcionando como um laboratório relacionado à produção de
vídeos e ampliando sua possibilidade de ação.
Atualmente, o Graja Na Cena atua como produtora local, produzindo ví-
deos de vários segmentos, dentro e fora da quebrada. O audiovisual foi esco-
lhido pela potência como meio de comunicação, disseminação e ampliação da
visibilidade de grupos e coletivos do extremo sul de São Paulo, criando assim
mais referências para os jovens residentes do distrito e outros bairros.
UniGraja 401
Menin@s da Billings
A história do Menin@s da Billings começou em 2009 através da realização de
projetos educacionais e, em 2014, as atividades educacionais náuticas foram
iniciadas. O espaço é aberto e colaborativo trazendo cursos e vivências de
diversas áreas: música, carpintaria, marcenaria, náutica, reaproveitamento de
resíduos para criação de velas artesanais e outras atividades.
O projeto também realiza passeios para grupos, o chamado turismo de
base comunitária. Um turismo diferenciado, onde todo território é explorado
com visitação terrestre ou náutica, através de rotas em parceria com coletivos,
escolas e propriedades que desenvolvem projetos em diversas áreas (educação,
agroecologia, grafite e esportes náuticos como vela e remo).
Periferia em Movimento
A Periferia em Movimento é uma produtora independente de jornalismo de
Quebrada que gera e distribui informação dos extremos ao centro. Fundada
em 2009 por jovens jornalistas que moram em periferias da zona sul de São
Paulo, a Periferia em Movimento tem como missão fazer um jornalismo sobre,
para e a partir das periferias, em nossa complexidade, para ocupar espaços que
sempre nos negaram e garantir o acesso a direitos. Dessa forma, buscamos
construir um projeto de poder popular a partir das margens para formar uma
sociedade livre de racismo, machismo, lgbtfobia e qualquer forma de opressão.
Atuamos a partir do extremo sul de São Paulo até os centros de poder nas
frentes de conteúdo e articulação. Com a podução de conteúdo jornalístico
de dentro para dentro, pautando a cidade a partir da visibilidade de histórias
de quem está nas frentes de luta pela garantia de direitos pela cultura, saú-
de, educação, mobilidade, moradia, preservação ambiental, trabalho e renda,
com questões de gênero, raça e classe de forma transversal. Produzimos mais
de 300 conteúdos jornalísticos em diferentes formatos (texto, foto, vídeo,
meme, stopmotion e mapa) e alcançamos um público médio de 120 mil pes-
soas via internet.
Por meio da articulação, buscamos aproximar, representar e incidir poli-
ticamente dentro e fora dos territórios de atuação na busca pela garantia de
direitos a partir da discussão sobre jornalismo, periferias e direitos humanos,
404 Cultura política nas periferias
Salve Selva
O Salve Selva é um coletivo de artistas educadores do distrito do Grajaú, gra-
duados em artes visuais, que desde 2011 atua com multilinguagens artísticas
e por meio do empreendedorismo com vestuário. Já foram realizadas diversas
ações na comunidade onde está inserido e nas adjacências, em parceria com
outros grupos, desde projetos contemplados pelo Programa VAI como Graja
Groove, assim como exposições de arte.
Em fase de expansão, o Salve Selva está ampliando possibilidades ao prestar
serviços para empresas e organizações sociais com o objetivo de sensibilizar
colaboradores e usuários sobre temas e questões como motivação; valorização
das relações interpessoais; despertar do pensamento criativo; fazer, pensar e
apreciar arte; trabalhar em comunidade; geração de renda e impacto social.
Dessa forma, esperamos despertar nos participantes das atividades a curiosi-
dade de se conhecerem. Também consideramos importante que conheçam os
próprios meios sociais, por meio das linguagens artísticas, fornecendo subsí-
dios acessíveis para intervenção e expressão em suas comunidades.
O contato com novas linguagens e conteúdos serve como base para a amplia-
ção do repertório pessoal. Além de potencializar o jovem, que pode ampliar os
conhecimentos que já possui, esse meio busca trazer reflexões e novos meios de
aprender e empreender com ferramentas de expressão disponíveis no contexto
periférico e que os estimulam como cocriadores por meio de suas habilidades.
Por meio de rodas de conversa, a proposta é gerar temas e reflexões que
são base para o conteúdo dos encontros, e com isso estimular os jovens por
meio do contato com multilinguagens artísticas, de forma a gerar inspiração,
perspectivas e construção de valores. Para além do graffiti convencional, das
UniGraja 405
https://www.unigraja.com/
https://www.facebook.com/unigraja/
@unigraja
Por outros rolês na Baixada
Fluminense: Construção
coletiva de práticas
educacionais antirracistas
Grupo Pet Conexões Baixada Fluminense e
Fernanda Felisberto
1
Corpyright© Grupo PET CONEXÕES Interagindo com Múltiplas Realidades e Saberes
na Baixada Fluminense
2
Lei 10.639/2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.
htm>. Acesso em: 25 out. 2020.
3
Nilceia Freire foi ministra-chefe de Políticas para as Mulheres no governo Lula. Médica, pro-
fessora e pesquisadora, ela foi também reitora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj). Nilceia lutava contra um câncer no sistema nervoso e faleceu no dia 28 de dezembro
de 2019.
Por outros rolês na Baixada Fluminense 409
mação na universidade brasileira, que não retrocede mais, uma juventude negra
potente e, principalmente, preocupada em permitir as gerações seguintes cons-
truir outras memórias do período escolar com afeto e uma educação antirracista.
Eu sou um corpo
Um ser
Um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar
Eu sou a minha própria embarcação
Sou minha própria sorte
Luedji Luna
4
Este título nasce de uma das oficinas elaboradas pelo grupo, que aconteceu no dia 26 de
novembro de 2019, no município de Mesquita, região Metropolitana do Rio de Janeiro, no
Colégio Estadual Dom Pedro I, com um grupo de estudantes de EJA.
410 Cultura política nas periferias
hooks, que contribuiu bastante para a ideia de criar novas formas de traba-
lhar o modo como as questões de raça perpassam as relações sociais de nosso
cotidiano. A obra nos levou a questionar quais são os hábitos cristalizados no
imaginário social que ajudam a institucionalizar o racismo. A partir disso,
percebemos a necessidade de abordar aspectos multiculturais, que não são
discutidos com frequência nas instituições de ensino, e seus desdobramentos,
como no âmbito linguístico.
Depois de observarmos quantas expressões de cunho racista ainda estão
presentes em nosso dia a dia, surgiu a ideia de criar um Minimanual Antirra-
cista a fim de levar reflexões onde a academia não chega.
Decidimos desenvolver o Minimanual pensando primeiramente em uma
intervenção linguística, por percebermos a evidência de que a língua forja o
imaginário social. Tendo em vista que o Brasil foi o último país do mundo a
abolir a escravização, podemos considerar que o vocabulário brasileiro carrega,
ainda, muitas expressões que tiveram origem durante o período escravocrata.
Geraldi (2002) aponta que a língua é ferramenta de interação humana, de
construção de identidades, constituição de relações sociais e produtora de in-
formações entre os indivíduos que são sujeitos da ação.
Para a elaboração do material, foram selecionados, pelos petianos, expres-
sões e palavras de origem racista, com as quais tivemos contato em nosso
convívio diário. Os termos foram apresentados, discutidos e analisados em
reuniões, levando em consideração pesquisas feitas individualmente por cada
integrante do grupo. A escolha de um “mini” manual se deu por ser mais aces-
sível ao público, que pode carregá-lo com facilidade e por ser prático, uma vez
que seu conteúdo não é extenso e possui uma linguagem objetiva. Trabalhamos
a naturalização de algumas expressões e vocábulos utilizados para legalizar os
maus tratos às pessoas escravizadas e moldar sua identidade na visão colonial,
justificando através de estereótipos a posição de subalternidade, não assumi-
da, mas imposta à população negra brasileira ao longo do tempo. Um desses
termos é “mulato”, que não só associa os mestiços ao animal híbrido, mula,
como também é usado para amenizar o tom de pele da população negra. Ou-
tra palavra que tem esta mesma função é “morena”, utilizada frequentemente
por pessoas que acreditam que chamar alguém de negro é um ato ofensivo. Há
também “preto de alma branca”, expressão reproduzida como forma de elogio,
Por outros rolês na Baixada Fluminense 411
pois subentende-se que tudo o que é branco é sinônimo de bom e o que é ne-
gro está relacionado ao que é mau, assim como infere-se que este sempre está
destinado aos espaços subalternizados, pois quando um negro ocupa um lugar
considerado de prestígio, seja um cargo ou um curso, ele automaticamente é
associado à branquitude. Outro discurso racista que é disfarçado de elogio é
“você é um negro bonito”, pois ressaltar a raça o torna uma exceção, como se
dentre toda a população negra, só determinada pessoa se destacasse pelos seus
traços, comportamentos, entre outros. Expressões como “cabelo ruim”, “hu-
mor negro” e “você está com cecê” aparecem com suas definições e logo abaixo
delas há um espaço vazio para que haja substituição por termos equivalentes,
sem teor racista. Essa substituição deve ser feita por quem detém o manual.
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas
Conceição Evaristo
5
V Congresso Nacional de Letras do Instituto Multidisciplinar, que ocorreu na Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (campus Nova Iguaçu) em outubro de 2019.
412 Cultura política nas periferias
6
Evento organizado pelo PET Conexões Baixada, que ocorreu na Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (Campus Nova Iguaçu) em novembro de 2019.
7
Educação de Jovens e Adultos.
Por outros rolês na Baixada Fluminense 413
Considerações finais
É de grande urgência que haja uma reparação no aparato linguístico, já que a
língua é indissociável da sociedade e da cultura, como um todo, carregando
consigo todas as impressões e estigmas que têm os indivíduos que a praticam
e/ou estão permeadas por ela. E isso pode ser iniciado de várias formas, a
pequenos passos, como um minimanual em que se faça a substituição de ex-
pressões ofensivas por outras que estabeleçam o mesmo sentido sem agredir a
nenhum grupo ou pessoa.
Com apenas essas aplicações, já foi possível observar como o racismo
atua de forma tenebrosa e é reproduzido inconscientemente. Trocar essas
experiências foi importantíssimo para percebermos o quanto promover uma
educação crítica e antirracista é importante. O diálogo apresenta-se, dessa for-
ma, como essência da educação e prática de liberdade.
414 Cultura política nas periferias
O minimanual antirracista
Por outros rolês na Baixada Fluminense 415
8
Esta foto é de parte da formação atual, de 2019, do Grupo Pet Conexões Baixada Fluminense
1. Juliana da Silva Gomes (Graduanda em História)
2. Camila da Silva Rodrigues de Morais (Graduanda em Letras – Português/Literaturas)
3. Nathália Meneses Rodrigues (Graduanda em Geografia)
4. Luan De Paula da Silva (Graduando em Letras – Português/Literaturas)
5. Bruno Peçanha Romualdo de Souza (Graduando em Letras – Português/Literaturas)
6. Douglas de Matos Paulo (Graduando em Letras – Português/Literaturas)
7. Otávio Manoel de Camargo Ferreira (Graduando em Geografia)
8. Selma Cristina Raymundo Pontes (Graduanda em Letras – Português/Literaturas)
9. Fernanda Felisberto (Professora doutora em Literatura Comparada e Tutora do PET Co-
nexões Baixada)
10. Fernanda da Silva (Graduanda em Letras – Português/Literaturas)
416 Cultura política nas periferias
Referências
EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e outros movimentos/Conceição Evaristo. Rio
de Janeiro: Malê, 2017.
GERALDI, J.W. et al. (org.) O texto na sala de aula. São Paulo: Atica, 2002. (p. 39-46).
GOMES, Nilma. Relações Étnico-Raciais, Educação E Descolonização Dos Currículos. Disponível
em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/11/curr%C3%ADculo-
-e-rela%C3%A7%C3%B5es-raciais-nilma-lino-gomes.pdf>. Acesso em: 25 out. 2020.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade; tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013
LUNA, Luedji. São Paulo: YB Music, 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=V-G7LC6QzTA>. Acesso em: 26 dez. 2019.
Racionais MC’s. Sobrevivendo no inferno / Racionais MC’s. São Paulo: Companhia das Letras,
2018.
ROSA, Allan da. Pedagoginga: autonomia e mocambagem. São Paulo: Polén, 2019.
11. Caroline de Paula Gonzaga (Graduanda em Letras – Português/Literaturas)
12. Matheus da Silva Fortunato (Graduando em Pedagogia)
13. Victória Cristina Gonçalves Villanova (Graduada em Letras – Português/Espanhol)
14. Luma dos Santos Assis Caetano (Graduanda em Geografia)
15. Thayná Barros Soares (Graduada em Letras – Português/Espanhol)
16. Adeilda do Nascimento Oliveira (Graduanda em Letras – Português/Literaturas)
17. Rebeca Síntique Nunes da Silva Porciúncula (Graduanda em História)
18. Jéssica Barbosa de Lima e Silva (Graduanda em Letras – Português/Literaturas)
19. Rodrigo Monteiro dos Santos (Graduando em Letras – Português/Literaturas)
Sobre os autores
ISBN 978-65-5626-012-9
9 786556 260129