Georg

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Beto Ricardo/ISA

seriam resgatáveis. Deixo aos leito-

Georg Grünberg
res o julgamento disso e agradeço a
Thekla a tradução cuidadosa da mi-
nha tese.
A iniciativa para a publicação de um
“Livro Kaiabi”, incluindo este
testemunho histórico, veio dos
professores Kaiabi da Atix, do
Parque Indígena do Xingu, apoiada
pela equipe do Programa Xingu do
Georg Grünberg Georg Grünberg, 2003

Os KAIABI do Brasil Central - História e Etnografia


Instituto Socioambiental e
Este livro, na sua parte principal,
viabilizado com fundos da ONG
foi escrito por um estudante
austríaca DKA. Graças ao esforço
vienense de Antropologia que,
de todos eles posso devolver, enfim,
com apenas 23 anos, teve a sua
algumas palavras e observações
reunidas durante os oito meses de Os KAIABI do Brasil Central primeira experiência no mundo
dos índios. Conseguiu apresentar
convivência com meus amigos e
prezados professores kaiabi. História e Etnografia o texto escrito em alemão como
dissertação e ficou devendo,
durante quase quatro décadas,
Georg Grünberg a devolução da sua estória aos
mestres dele, os amigos Kaiabi.
São Paulo, outubro 2003
Tardou tanto porque a continuação
da pesquisa, planejada e preparada
para os anos 1971 e 1972, foi veta-
da pelo governo militar brasileiro
daquela época em conseqüência
das atividades do autor, já como
professor-assistente da Universi-
dade de Berna, a favor dos índios
e contra o SPI, organizando o I
Simpósio de Barbados que advo-
gou pela “libertação dos povos
indígenas”.
Quando a professora da USP,
Thekla Hartmann, amiga e
consciência crítica do autor,
revisou o texto, achou que os
capítulos sobre a etnohistória e
a cultura material, organizados
segundo o molde de Nimuendajú,
Os KAIABI do Brasil Central
História e Etnografia

junho, 2004
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Grünberg, Georg
Os Kaiabi do Brasil Central : História e Etnografia / Georg Grünberg ;
posfácio Klinton V. Senra, Geraldo Mosimann da Silva, Simone Ferreira de
Athayde ; [tradução Eugênio G. Wenzel ; tradução dos mitos João Dornstauder].
-- São Paulo : Instituto Socioambiental, 2004.

Título original : Beiträge zur Etnographie der Kayabi Zentralbrasiliens.


Bibliografia

ISBN 85-85994-27-4

1. Etnologia - Brasil - Pesquisa 2. Índios da América do Sul - Brasil -


Aspectos ambientais 3. Índios da América do Sul - Brasil - Cultura 4. Índios da
América do Sul - Brasil - História 5. Índios Kaiabi I. Senra, Klinton V.. II. Silva,
Geraldo Mosimann da. III. Athayde, Simone Ferreira de. IV. Título

04-2467 CDD-980.417
Índices para catálogo sistemático:
1. Índios Kaiabi : Brasil Central : Pesquisa etnográfica 980.417
Os Kaiabi do Brasil Central
História e Etnografia
Georg Grünberg

Posfácio

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais


Klinton V. Senra
Geraldo Mosimann da Silva
Simone Ferreira de Athayde
Título original: Beiträge zur Etnographie der Kayabi Zentralbrasiliens (1970)

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Os recursos resultantes da venda desta edição serão destinados ao povo Kaiabi por
intermédio da Associação Terra Indígena Xingu (Atix).

autor
Georg Grünberg
tradução
Eugênio G. Wenzel
tradução dos mitos
Padre João Dornstauder
revisão da tradução
Thekla Hartmann

Equipe ISA
edição e revisão
Klinton V. Senra, Marina Kahn, Simone Ferreira de Athayde
textos do posfácio
Klinton V. Senra, Geraldo Mosimann da Silva e Simone Ferreira de Athayde
revisão bibliográfica
Ângela Galvão
projeto gráfico/editoração
Vera Feitosa
editoração eletrônica
Ana Cristina Silveira

Apoio
“... Na ausência do Jorge tudo que acontecia a gen-
te
contava pra ele...”

Depoimento de Kupe´ap Kayabi, informante de Georg


Grünberg (o Jorge) na década de 60, no Rio dos Peixes.
Hoje, Kupe’ap mora na aldeia Capivara, dentro do Parque
do Xingu.

Na década de 60, na aldeia Tatuy no Rio dos Peixes, quando os Kaiabi come-
çaram a conhecer os brancos o primeiro contato foi com um padre, chamado padre
João (Donstauder). Através desse padre os Kaiabi foram conhecendo outros brancos,
como seringueiros, pessoal que tirava palmito, caçadores... Os Kaiabi na época lidavam
melhor com o padre João. Os índios consideravam ele uma pessoa importante, como
se fosse um chefe. Através desse padre nós conhecemos um branco chamado Jorge.
Esta pessoa foi muito importante na vida dos índios, uma vez que se dava muito bem
com os Kaiabi. Ele se dedicava muito em conhecer o artesanato e as coisas tradicio-
nais dos Kaiabi. E os índios faziam muito artesanato naquela época. Então o Jorge
juntava os Kaiabi para mostrar para ele as diferenças dos artesanatos, os desenhos
das peneiras... E também os Kaiabi traziam os cocares,
mostravam como faziam as armações utilizadas para
o início da grande cerimônia do Jawasi. Durante a
ausência do Jorge tudo o que acontecia depois a gente
contava para ele.
Nós Kaiabi também tínhamos diversas plantas
de roças. E ele viu como as índias preparavam as ca-
baças e faziam as cuias... o prato dos índios. O velho
Sabino (falecido no Xingu) andava com o Jorge e
mostrava como os Kaiabi produziam e faziam as roças.
Tudo isso, na época, o Jorge registrava. E também nós
organizamos uma grande festa para o padre João e para
o Jorge onde também demonstramos para esses dois
Kupe´ap, 1966
brancos a maneira como recebíamos um branco para ser homenageado e como era
para lembrar do passado. Então os índios começaram a pintar o padre e o Jorge e as
moças também dançaram. E o canto de cada cantor era uma lembrança. Lembrava dos
inimigos antigos de outros povos. Naquela festa demonstravam tudo isso para o Jorge.
Passavam urucum na barriga dele e aquele urucum era uma lembrança dos inimigos
do passado. Os Kaiabi gostavam muito do Jorge porque ele trabalhava em favor dos
índios e pela maneira que ele estava registrando todos os costumes tradicionais. Uma
vez mataram muito macaco com flecha para mostrar pra ele que podiam matar bicho
sem arma de fogo. E então botaram o Jorge pra carregar estes macacos e prepararam
mutap(*). Juntavam tudo e tiravam o caldo para ele tomar. E então perguntaram se
havia gostado e ele disse: gostei. Depois deram mutap e ele então aceitou a comida
do povo Kaiabi.
O Jorge lidava muito bem com os Kaiabi. Quando Cláudio Villas Bôas chegou
no Tatuy com a turma do Xingu para trazer os Kaiabi pra cá (PIX) o Jorge ficou muito
bravo. Inclusive o Jorge trouxe uma carta do padre João para o Cláudio, exatamente
por não aceitar levar os Kaiabi para o Xingu. Mas o Cláudio Villas Bôas falou para o
Jorge que ele não ia deixar o povo Kaiabi abandonado no Xingu. O Cláudio insistiu
em trazer o pessoal para cá. Então o Jorge foi junto com o povo até a picada de onde
pegou o avião para vir com o pessoal para o Xingu. Era assim que o Jorge convivia
com o povo Kaiabi lá no Tatuy. Os índios, quando o Jorge viajava para outra aldeia
ou para sua cidade, sentiam a falta dele. Mas quando chegava, todos os Kaiabi o
recebiam com o maior respeito. O Jorge foi uma pessoa muito importante, como se
fosse um cacique nosso. Porque só ele é que cuidava bem de nós. Quando os Kaiabi
vieram para cá ele veio junto porque não queria que o pessoal
viesse ao PIX, então ele veio ver. Padre João falou para ele:
“vai no Xingu e faz levantamento por lá, para conhecer como
é lá”. Então o Jorge veio com a gente. Depois ele retornou
para o Tatuy e nunca mais voltou. Ele era meu amigo. Então
eu queria ver tudo o que ele fez naquela época, as fotos dos
artesanatos, das festas... eu queria ver isso tudo. Talvez esse
livro possa servir pra nós no futuro. Esse livro pode ser muito
importante pra nós, pra nossas crianças. A gente está aqui
aguardando esse livro que vocês prometeram.

Depoimento colhido por Klinton V. Senra e traduzido por Ye-


fuká Kayabi (com adaptações dos editores)
Apresentação
A publicação deste livro nasceu do interesse do povo Kaiabi em acessar os re-
sultados de uma pesquisa acadêmica sobre a sua cultura tradicional, realizada na
década de 1960 pelo antropólogo Georg Grünberg. Do final dos anos 1990 para cá
os Kaiabi estão envolvidos em um processo de resgate de sua história, formando
um acervo de documentos no Parque do Xingu que poderá subsidiar tanto o trabalho
político da Associação Terra Indígena Xingu (Atix) quanto o das escolas indígenas do
PIX e das outras áreas onde existem representantes Kaiabi. Pessoas da equipe do
Programa Xingu do Instituto Socioambiental viabilizaram o contato entre os Kaiabi e
Georg Grünberg, mais de 30 anos depois que a sua tese foi concluída e publicada
em alemão, em Viena, Áustria. Desde então, circularam apenas algumas poucas
cópias datilografadas em versão traduzida pela dedicação de Thekla Hartmann e
Eugênio Wenzel.
A tradução do texto original da tese aparece aqui publicada integralmente, res-
peitando-se inclusive a grafia original do autor das palavras em Kaiabi e de outros
grupos indígenas. Exceção é o capítulo V, sobre Cultura Material, substituído pelo
próprio autor por uma outra versão maior e mais completa, publicada originalmente
por Friedl e Georg Grünberg em 1967* e traduzido para o português por Thekla
Hartmann em 1997.
Nesta edição foram feitas revisões e notas explicativas, e acrescidas figuras
e fotos originais do próprio Grünberg, tornando o material muito mais atraente e
completo. Na parte final do livro, a título de complementação e atualização, foram
incluídos textos de outros autores versando sobre alguns aspectos da vida e da situ-
ação atual dos Kaiabi, além de fotografias e figuras. Foram compiladas e anexadas
tabela com correções de nomes científicos de espécies vegetais e uma listagem
das referências bibliográficas mais significativas sobre os Kaiabi produzidas após a
publicação original da tese de Grünberg.
A publicação deste livro foi possível graças ao apoio da agência de cooperação
Dreikönigsaktion - DKA. (Beto Ricardo/ISA)

* Veja Grünberg, F. e Grünberg, G., 1967.


Sumário
Prefácio à versão original...........................................................................................15
Chave de transcrição fonética.....................................................................................17
I. Observações críticas relativas ao trabalho de campo
1. Cronologia...........................................................................................................19
2. Informantes..........................................................................................................20
3. A posição do autor entre os Kaiabi......................................................................23
4. A filiação lingüística e cultural dos Kaiabi..........................................................24
II. Fontes da etnografia dos Kaiabi
1. A exploração da área do Alto Tapajós no século XVIII.......................................29
2. Viagens no século XIX........................................................................................32
3. A frente de expansão brasileira nos rios Arinos e Teles Pires..............................44
4. A Comissão Rondon e o Serviço de Proteção aos Índios....................................53
5. A Fundação Brasil Central e o Parque Nacional do Xingu..................................62
6. A Prelazia de Diamantino....................................................................................65
III. Demografia e situação geográfica
1. Situação geográfica..............................................................................................75
2. Demografia
a) Os Kaiabi do Rio dos Peixes em agosto de 1955 e em
setembro de 1966.................................................................................................76
b) Os Kaiabi no Parque Nacional do Xingu em setembro de 1966.....................80
c) A situação demográfica dos Kaiabi em agosto de 1955
e outubro de 1966................................................................................................86
IV. Bases da economia
1. Aspectos gerais....................................................................................................89
2. Produção primária de alimentos
a) Cultivo da terra....................................................................................................89
b) Caça.....................................................................................................................92
c) Pesca....................................................................................................................97
d) Coleta...................................................................................................................98
3. Preparo dos alimentos
a) Produtos da roça................................................................................................100
b) Animais..............................................................................................................102
c) Frutas silvestres e mel........................................................................................103
4. Condimentos e estimulantes..............................................................................104
5. Manutenção e aproveitamento de animais.........................................................105
V. Equipamento material
1. Circulação e transporte
a) A construção de caminhos.............................................................................107
b) Transporte fluvial...........................................................................................108
2. Instrumentos de trabalho....................................................................................110
a) Machado de pedra.......................................................................................... 111
b) Lâminas de machados de pedra..................................................................... 111
c) Formão........................................................................................................... 111
d) Lâmina de faca de pedra................................................................................112
3. Armas e armadilhas............................................................................................112
a) Borduna.........................................................................................................113
b) Arco...............................................................................................................114
c) Flechas...........................................................................................................115
d) Ponta de flecha lítica.....................................................................................118
e) Nassa..............................................................................................................118
4. Produção de fogo
a) Paus ignígeros................................................................................................118
5. Arquitetura e construções..................................................................................119
6. Tralha doméstica
a) Banco.............................................................................................................123
b) Colher de pau................................................................................................123
c) Batedor de feijão............................................................................................123
d) Pilão e mão de pilão......................................................................................124
e) Suporte de cabaça..........................................................................................124
f) Cuia (i/’aoo)...................................................................................................125
g) Colher de cabaça...........................................................................................126
h) Metade de cuia ou cabaça..............................................................................126
i) Cuia (kanafu) . ...............................................................................................126
j) Cabaça............................................................................................................126
k) Recipiente para urucu....................................................................................127
l) Recipiente de entrecasca................................................................................127
m) Recipiente de folha de pacova......................................................................127
n) Cesto cargueiro..............................................................................................128
0) Cesto cargueiro..............................................................................................128
p) Cesto cargueiro..............................................................................................129
7. Trançados
a) Apás...............................................................................................................129
b) Peneira...........................................................................................................133
c) Cesto para transportar redes..........................................................................133
d) Tampa para cabaça de chicha........................................................................134
e) Abano.............................................................................................................134
f) Recipiente trançado........................................................................................135
g) Aro para penas...............................................................................................136
h) Peneira para farinha.......................................................................................136
8. Têxteis
a) Fuso...............................................................................................................137
b) Rede de dormir..............................................................................................137
c) Tipóia.............................................................................................................138
9. Cerâmica
a) Panelas de barro.............................................................................................139
b) Torrador.........................................................................................................141
10. Instrumentos musicais
a) Flauta reta......................................................................................................141
b) Flauta com bocal lateral e defletor interno....................................................141
c) Flautas de pã..................................................................................................142
d) Trompete transverso......................................................................................142
11. Ornamentação do corpo, adornos e vestuários
a) Tatuagem.......................................................................................................143
b) Pintura...........................................................................................................144
c) Enfeites e indumentárias................................................................................148
d) Adornos para as orelhas.................................................................................150
e) Adornos para o pescoço.................................................................................151
f) Adornos para os braços..................................................................................153
g) Adorno de cintura..........................................................................................154
h) Adorno plumário...........................................................................................154
i) Aro para penas................................................................................................156
j) Coifa de penas................................................................................................156
k) Troféu............................................................................................................157
12. Brinquedos
a) Arco infantil...................................................................................................157
b) Flechas infantis..............................................................................................157
c) Flecha silvadora.............................................................................................157
d) Pião silvador..................................................................................................158
e) Trompete transverso pequeno........................................................................158
f) Cítara de bambu.............................................................................................158
g) Esculturas de madeira....................................................................................159
h) Brinquedo de madeira...................................................................................159
i) Atiradeira de bambu.......................................................................................159
j) Konomi...........................................................................................................160
13. Pauzinhos de numeração..................................................................................160
VI. Organização social e política
1. Economia, aquisição de alimentos e atividades artesanais como
fatores sociais
a) Divisão do trabalho........................................................................................161
b) Propriedade e divisão de bens.......................................................................162
c) Intercâmbio e consumo de gêneros alimentícios...........................................164
2. Sistema de parentesco........................................................................................165
3. A família.............................................................................................................171
4. Classes de idade.................................................................................................173
5. Vida sexual.........................................................................................................175
6. Chefe e xamã.....................................................................................................176
7. A guerra..............................................................................................................177
8. Conflitos interétnicos.........................................................................................178
VII. Ciclo de vida
1. Gravidez e nascimento.......................................................................................183
2. Infância..............................................................................................................184
3. Puberdade e casamento......................................................................................185
4. Morte..................................................................................................................187
VIII. Normas de comportamento e fundamentos psicomentais
1. Formas de comunicação....................................................................................189
2. Movimentos.......................................................................................................191
3. Funções fisiológicas e higiene...........................................................................192
4. Expressões emocionais......................................................................................193
5. Hábitos alimentares...........................................................................................194
6. Fundamentos psicomentais
a) Modos de pensar............................................................................................195
b) Número e tempo............................................................................................196
c) Representações figurativas............................................................................196
IX. Crença e religião
1. Esferas de representações
a) Alma, morte, Além........................................................................................201
b) Espíritos e personificações............................................................................201
c) Seres-dema e heróis culturais........................................................................202
2. Xamanismo........................................................................................................202
a) Possessão e viagem ao Além.........................................................................203
b) Cura de doentes.............................................................................................203
3. Magia, feitiçaria, presságios..............................................................................207
4. Medicina............................................................................................................208
5. Representações do cosmo..................................................................................209
6. Marakã...............................................................................................................210
7. A festa Yawotsi...................................................................................................212
8. Mitos e narrações...............................................................................................218
a) Maimairi rouba o fogo....................................................................................219
b) Origem das plantas cultivadas.......................................................................220
c) Tuyararé.........................................................................................................221
d) Yurupanye......................................................................................................226
e) Õiw†, a senhora dos animais.........................................................................227
f) Panyéavi.........................................................................................................228
g) Como se originou a coruja............................................................................229
h) Porque os homens morrem............................................................................229
i) Porque os ombros são pretos..........................................................................229
j) A árvore cósmica............................................................................................230
l) Panyéavi e os gêmeos.....................................................................................230
m) Mé, a Lua.....................................................................................................230
n) Tupã...............................................................................................................233
o) Origem da menstruação.................................................................................233
p) Os Kaiabi e os civilizados.............................................................................233
Referências bibliográficas.........................................................................................237

Posfácio - Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais


Introdução..............................................................................................................251
As terras kaiabi hoje e suas reivindicações.......................................................251
A população kaiabi hoje....................................................................................256
O contraste entre ambientes...................................................................................257
Territorialidade......................................................................................................261
O sistema agrícola kaiabi.......................................................................................265
A cultura material: mudanças, comércio e resgate cultural...................................272
A cultura como instrumento...................................................................................289
Referências bibliográficas......................................................................................296

14 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Prefácio à versão original
O presente trabalho é o resultado da viagem de pesquisa que realizei durante
um período de estudos no Brasil, possibilitada por uma bolsa do Ministério de Rela-
ções Exteriores do Brasil, obtida através das recomendações do professor Haekel, de
Viena, e do professor Baldus, de São Paulo. Assim, tive a oportunidade de realizar,
sob a orientação do professor Baldus, pesquisa de campo entre os Kaiabi do Rio dos
Peixes, no noroeste do Mato Grosso, de dezembro de 1965 a novembro de 1966. Os
meus parcos recursos financeiros não me teriam permitido empresa de tal vulto, se
Harald Schultz, assistente de etnologia do Museu Paulista, falecido em 1966, não
colaborasse generosamente com o meu equipamento, e se o Pe. João Dornstauder
S.J. da Prelazia de Diamantino não me tivesse dado permissão de utilizar o depósito
de medicamentos e gêneros alimentícios do Posto Tatuí.
Guiado por suas informações e seus aconselhamentos, escolhi os Kaiabi como
objeto de estudo. Quero agradecer-lhe aqui todas as conversas que mantivemos e que
me levaram a melhor compreender a situação em que viviam os Kaiabi. Além disso,
permitiu-me ler seus diários e manuscritos (Dornstauder MSa-c, 1975).
Posso apenas mencionar algumas das muitas pessoas que apoiaram meu tra-
balho, mas gostaria de enfatizar que sempre tive consciência de que sem a paciente
ajuda dos Kaiabi e de muitos brasileiros, meus esforços teriam sido inúteis.
O meu venerado professor, doutor Herbert Baldus, encontrou solução para
todos os entraves burocráticos e encorajou-me a superar as inúmeras dificuldades que
surgiram. O Cônsul Geral da Áustria, senhor Otto Heller, adiantou-me grande parte da
bolsa mensal e participou com interesse de meus problemas. Durante os preparativos
para a viagem, fui auxiliado não apenas por Harald Schultz, mas por sua esposa Vilma
Chiara, por Thekla Hartmann, assistente da Cadeira de Antropologia, e pela família
Anatôl Baron von Behr, da Fazenda Amolar. Durante as viagens ajudaram-me Gui-
lherme Mayer e Fritz Tolksdorf em Porto dos Gaúchos, o senhor Marcelo Martins da
Cruz e seus funcionários em Cuiabá e, no Parque Nacional do Xingu, especialmente
Cláudio Villas Bôas. A estas pessoas, meus sinceros agradecimentos.
O professor Erhard Schlesier de Göttingen gentilmente permitiu-me o manuseio
dos diários de Fritz Tolksdorf (Tolksdorf MS). O trabalho foi aceito em 1969 como

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia 15


tese de doutoramento pela Faculdade de Filosofia de Viena e publicado em Archiv für
Völkerkunde, volume 24:21-186, Viena 1970, sob o título “Beiträge zur Etnographie
der Kayabi Zentralbrasiliens”.(1) 

Os Kaiabi do Rio dos Peixes


Neste nosso decênio(2) certamente não se pode exigir de nenhum etnólogo que
escreva monografias tribais com a consciência tranqüila. Ao propor-se tarefa dessa
ordem, ele o faz sabendo aspirar a algo impossível. Apesar disso, considero o presente
trabalho justificado, mesmo que encerre não apenas lacunas, mas também muitos
erros. Existe a possibilidade de apontar as origens das falhas e de distinguir aquelas
esferas em que a probabilidade de exatidão de minhas observações é maior ou menor.
Sirvo-me dessa possibilidade na parte introdutória de cada capítulo.
Todos os dados etnográficos sobre os Kaiabi baseados em minhas observações
referem-se, a rigor, ao grupo local Kaiabi do Rio dos Peixes. É difícil externar-me sobre
a aparência física desses índios, pois no convívio relativamente longo a impressão
pessoal de cada um sobrepujou a imagem conjunta típica, se é que algum dia existiu.
Por isso remeto o leitor às descrições mais ou menos exatas de Sousa (1916:76, 82)
e Schmidt (1942:17).
A grafia dos nomes tribais segue a Convenção elaborada pela Primeira Reunião
Brasileira de Antropologia(3) (Anônimo 1954). Preocupei-me particularmente com a
utilização exaustiva de todas as fontes históricas para a etnografia Kaiabi (capítulo
II), porque neste campo quase não existem trabalhos preliminares e porque o conhe-
cimento da situação histórica da tribo é pressuposto essencial para a compreensão de

1
Nota do tradutor: com a autorização do autor, alguns trechos não essenciais do alemão
foram suprimidos na presente tradução.
 2
Anos 60 (n.t.).
 3
Nota dos editores: decidimos manter a grafia dos nomes dos povos indígenas, dos
indivíduos mencionados e dos termos citados na língua Kaiabi conforme o texto original
de Grünberg.

16 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Chave da transcrição fonética
Por motivos técnicos, foi impossível realizar uma transcrição fonética precisa
das palavras kaiabi.
Não foram consideradas as oclusivas surdas implosivas finais, tendo sido trans-
critas da mesma maneira como as oclusivas surdas, e a vogal anterior não arredondada
aberta sonora foi transcrita como i.

p = oclusiva (implosiva) bilabial surda


t = oclusiva (implosiva) alveolar surda
k = oclusiva (implosiva) velar surda
f = fricativa bilabial surda
s = fricativa alveolar surda
x = fricativa velar surda
v = fricativa labiodental sonora
ts = africada alveolar homorgânica surda
m = nasal bilabial sonora
n = nasal alveolar sonora
= nasal velar sonora
r = vibrante alveolar sonora
´ = parada glótica
w = semivogal bilabial sonora
y = semivogal palatal sonora
i = vogal anterior não arredondada fechada (aberta) alta sonora
e = vogal anterior não arredondada fechada média sonora
é = vogal anterior arredondada aberta alta sonora
i = vogal central não arredondada fechada alta sonora
a = vogal central não arredondada fechada baixa sonora
u = vogal posterior arredondada fechada alta sonora
o = vogal posterior arredondada fechada média sonora
ó = vogal posterior arredondada aberta média sonora
†, Þ, †, ã, ‰, õ = nasalizadas
Vogal seguida de vogal transcrita no alto = ditongo
O acento recai na última sílaba.
O registro obedece às diretrizes do Summer Institute of Linguistics.

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia 17


capítulo I

OBSERVAÇÕES CRÍTICAS RELATIVAS AO TRABALHO DE CAMPO


1. Cronologia
No dia 27 de novembro de 1965 voei em um aparelho da FAB (Força Aérea
Brasileira) de São Paulo a Campo Grande, seguindo de ônibus até Cuiabá. Depois de
uma entrevista na 6ª Inspetoria do SPI (Serviço de Proteção aos Índios),(4) segui para
Diamantino. Com algumas interrupções, ali fiquei até 26 de dezembro na vã esperança
de poder participar de uma expedição da Prelazia para a pacificação dos “Beiços-de-
Pau” que acabou sendo frustrada (v. Pereira 1968:221-223). Informações e conselhos
do missionário pe. João Dornstauder SJ levaram-me a entrar em contato com uma
firma seringalista em Cuiabá, a fim de acompanhar um dos seus carregamentos rio
Arinos abaixo e desembarcar entre os Kaiabi do Rio dos Peixes para iniciar a pesquisa
entre estes índios pouco conhecidos.
De 09 a 19 de janeiro de 1966, viajei, num barco da firma Marcelo Martins da
Cruz e com alguns seringueiros, Arinos abaixo e rio dos Peixes acima até a primeira
aldeia Kaiabi, o Posto Tatuí, onde permaneci até 6 de março. Com alguns Kaiabi,
remei até a aldeia de Temeoni, ali permanecendo de 20 a 29 de março. De 30 de março
até 6 de abril, voltamos em direção ao Posto onde fiquei até 11 de abril. No dia 12 de
abril aproveitei-me do barco de um seringueiro para subir o Arinos até Porto dos
Gaúchos; a escassez de medicamentos e a situação incerta de minha bolsa de estudos
exigiam uma volta a São Paulo.
O regresso, feito de barco, caminhão e ônibus, durou de 12 de abril a 3 de maio
e apenas no dia 4 de junho de 1966 me foi possível viajar de ônibus de São Paulo para
Cuiabá. Por falta de condução, permaneci em Porto dos Gaúchos de 16 de junho a 7
de julho e apenas a 10 de julho cheguei com um barco de motor de popa alugado ao
Posto Tatuí, onde encontrei o Pe. Dornstauder. No dia 12 de julho remei, juntamente
com alguns Kaiabi, até a maloca de Temeoni, aonde chegamos a 22 de julho. Ali fica-
mos até 12 de agosto, tentando, entre 27 de julho e 3 de agosto, estabelecer contatos
amistosos com os Apiaká isolados. De 13 a 22 de agosto, rumamos novamente para o
Posto Tatuí onde fiquei até o dia 29 de setembro, voltando no dia seguinte para a
aldeia de Temeoni acompanhado de dois Kaiabi. No dia 6 de outubro, ao chegar,

4
Em 1967, o SPI foi extinto com a criação da Fundação Nacional do Índio - Funai. (n. ed.)

Observações críticas relativas ao trabalho de campo 19


encontramos a maloca vazia, pois todos os seus moradores haviam seguido para uma pista
provisória de aviões a 80 km a nordeste, de onde seriam transferidos para o Parque Naci-
onal do Xingu.(5) Para ainda alcançar este grupo, segui sozinho, a pé, no dia seguinte,
enquanto os Kaiabi que haviam viajado comigo esperavam por um outro grupo. Depois de
uma marcha de três dias cheguei na tarde de 9 de outubro ao acampamento da FAB nas
cabeceiras do córrego Coatá, voando no dia 12 de outubro, com a maior parte dos Kaiabi,
até Diauarum no PNX. Ali fiquei até 28 de outubro, realizando neste período um censo dos
Kaiabi habitantes do Parque Nacional, visitando todas as suas aldeias. De 28 de outubro a
4 de novembro visitei o Posto Leonardo mais ao sul e os Kaiabi que ali trabalhavam,
voltando a São Paulo com um avião da FAB no dia 5 de novembro de 1966.
Os dois períodos de permanência entre os Kaiabi totalizaram algo mais que oito
meses, durante os quais fui, com exceção de algumas semanas, o único não-Kaiabi a viver
em suas comunidades.

2. Informantes
Dos numerosos informantes mencionados no texto, salientaremos apenas os mais
importantes.
Moanyan/Joaquim - Viúvo relativamente jovem, havia perdido esposa e duas
crianças (provavelmente apenas em 1964) e voltara ao status de konomi’oo, ou seja, de
um jovem solteiro, embora seus conhecimentos e sua reputação como o melhor caça-
dor de todo o grupo o tornasse uma personalidade importante. Desde o primeiro dia
procurei imitá-lo em tudo e, felizmente, ele aceitou este comportamento, tornando-
se meu companheiro constante e meu principal informante, embora fosse pouco lo-
quaz. Mais tarde passou a chamar-me com leve ironia de “pequeno irmão”. Foi o
único a criticar meus erros e enganos de maneira franca, por vezes grosseira. Em
todas as viagens ele era o organizador ou, então, auxiliava-me na sua organização.
Mas sempre mantinha distância e nossas relações eram freqüentemente tensas, em-
bora amigáveis. Os demais homens tomavam seus conselhos muito a sério, mas na
presença de Temeoni – o chefe – ele mal abria a boca. Suas informações eram par-
cas, dadas, porém, com muita segurança e senso de responsabilidade. Ele negou-se
terminantemente a ensinar-me Kaiabi e quase só falava português comigo, língua que

5
A partir do início dos anos 70, com a promulgação do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001 de
1973) que criou a figura jurídica de Parque Indígena, o Parque Nacional do Xingu passou
a ser denominado Parque Indígena do Xingu. (n. ed.)

20 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


aprendera bastante bem nas viagens que fizera com Dornstauder. Aparentemente res-
sentia-se de não ter esposa e por isso foi o principal responsável pela viagem aos Apiaká,
“a fim de procurar uma esposa”.
Temeoni/Pitai (6) - Era o chefe de todos os Kaiabi e uma figura impressionante, o
que também Dornstauder 1955 e Tolksdorf 1957 confirmaram. Talvez fosse o único a ter
plena consciência da amplitude da catástrofe sofrida pelos Kaiabi desde seu contato com
os brasileiros. Ele se negava até a pronunciar uma única palavra em português. Em relação
a mim, mostrava-se muito amável, às vezes até alegre e carinhoso, freqüentemente fazendo-
me “preleções”, cujo conteúdo eram mitos, ensinamentos gerais, mas também experiências
pessoais, traduzidas por Piaká e Nawé a partir de gravações magnetofônicas. Sempre
ficava muito contente quando eu procurava falar Kaiabi, incentivando-me. Excelente anfitrião,
presenteava-me com freqüência e elogiava-me por me alimentar da comida Kaiabi e “dar-
me bem com ela”. Todos os Kaiabi, e também a maioria dos seringueiros, falavam dele
com respeito, e o seu bom caráter, sua grandeza e dignidade constituíam tema de muitas
histórias. Exclusivamente em consideração a ele, Ipepuri tomou todas as iniciativas possíveis
no Xingu, a fim de transferir o grupo de Temeoni do Rio dos Peixes para o Parque Nacional,
pois a presença de Temeoni e o seu prestígio legalizavam a migração, já realizada de fato,
da maioria dos Kaiabi para esta nova área. Estou convencido de que Temeoni constitui o
melhor fornecedor de informações abrangentes sobre a cultura Kaiabi, mas para assim
utilizá-lo, o domínio da língua é conditio sine qua non.
Yupari´up/Chico - Este homem jovem foi o guia do grupo de Kaiabi que se transfe-
riu em 1960 das malocas do alto rio dos Peixes para a área abaixo do Salto, a fim de entrar
em contato mais estreito com Dornstauder ou com os civilizados. E por isso ele gostava de
ser chamado “pequeno chefe”. Entre ele, Mairer‰ e o grupo conservador de Temeoni
existiam tensões bastante fortes. Falava bem o português, sempre sorria jovialmente e
enfatizava suas boas relações com os seringueiros. Conhecia bem a sede da missão, Utiariti,
e os medicamentos e outros bens armazenados no Posto Tatuí encontravam-se sob sua
guarda. Tratava-me como a um colega e procurava despertar a impressão de que tinha
mais em comum com os “padres” e comigo do que com os demais Kaiabi. Mesmo depois
de outubro de 1966 ele permaneceu no Posto Tatuí. Constituiu um bom informante, na
medida em que dissimulava a reserva tradicional de prestar informações sobre religião e
também sobre a vida sexual, embora seu conhecimento de temas religiosos fosse limitado.

6
Temeoni faleceu no Parque Indígena do Xingu em 1976. Ele era o cacique da aldeia
Capivara, que congregava a maior parte dos Kaiabi provenientes do Rio dos Peixes. (n. ed.)

Observações críticas relativas ao trabalho de campo 21


Algo semelhante ocorria com Tapa/Tukan que, como genro de Temeoni, pertencia
a este grupo conservador, mas que tendia fortemente para o Posto. Gozara originalmente
de muito prestígio por ser o único filho do “grande xam㔠falecido. Era o único que estivera
em Cuiabá – contra a vontade de seu pai e de Dornstauder – “conhecendo”, portanto, o “mun-
do dos civilizados”, e freqüentemente contava de suas experiências ali. Suas atitudes e o domí-
nio que tinha da língua portuguesa, denotavam um alto grau de inteligência, mas também um
caráter instável e ele, às vezes, recebia repreensões declaradas dos outros. Seu estado de
saúde era precário, principalmente devido a numerosas feridas nas costas, braços e per-
nas, provenientes de uma micose (aipira´ip) característica dos Kaiabi (ver pág. 209).
Mairer‰/José - Era um chefe de família mais idoso e muito idôneo que, além de
sua atividade política – fundou uma maloca própria –, também ocupava posição especial
como “pequeno xamã”. Ele vivera alguns anos entre brasileiros de Rosário Oeste, falava
fluentemente o português e, talvez por isso, mantinha uma atitude marcadamente conser-
vadora. Muito trabalhador, dominando a etiqueta frente aos brasileiros e contando com
o auxílio de Dornstauder – através da venda de peles de animais – havia alcançado certa
prosperidade: assim, ele possuía um rádio e sua mulher era dona da única máquina de
costura. Todas as suas ações eram premeditadas e, principalmente em face de Yupari´up,
assumia ares de superioridade, o que contribuía para aumentar a tensão entre ambos.
Suas informações sempre eram fundamentadas, embora às vezes propositalmente
falsificadas, a fim de preservar a distância necessária entre “nós” e “vocês”.
Ny‰kato - Genro de Temeoni, de quem sofria forte influência, falava muito mal o
português, aparentando ser pouco independente e um tanto inexpressivo. Ele era conside-
rado “bonito” e tinha uma criança ilegítima com Mariwa, uma filha de Temeoni e ulterior
esposa de Tapa. Era marcadamente conservador e participou decisivamente da expedição
de localização dos Apiaká, embora fosse casado – com outra filha de Temeoni – e tivesse
cinco filhos.
Timaka´i - Quase não falava português, era particularmente sensível e inteligente.
Era o único xam㠓verdadeiro”, mas ainda não “grande”, e aceitou-me como aprendiz
durante seus tratamentos de doentes. Embora pertencesse ao grupo do Posto Tatuí, pare-
cia não apreciar muito Dornstauder, talvez devido a sua posição de xamã.
Piaka/Canísio(7) e Nawé/Balduíno, dois homens jovens, vivos e fortes, haviam sido
educados em Utiariti durante vários anos. Falavam bem o português e serviam-me de

7
Canísio foi cacique da aldeia Capivara e há alguns anos retornou para o Rio dos Peixes
com parte de sua família. (n. ed.)

22 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


tradutores dos mitos e narrativas de Temeoni. Tinham voltado ao Posto em agosto de
1966, incorporando-se ao grupo que se transferiu para o Parque Nacional e estavam par-
ticularmente sujeitos às tensões aculturativas associadas à renovação da vivência na comu-
nidade de sua tribo. Logo após sua chegada ao Xingu, Nawé casou-se com uma moça
Suyá. Durante algum tempo ele fora criado por Timaka´i e por isso serviu principalmente
como informante na esfera do xamanismo.
A figura-chave para a compreensão da migração dos Kaiabi do Teles Pires para o
Xingu era Ipepuri/Antonio.(8) Provável mestiço de um mulato e uma Kaiabi do Alto Teles
Pires, aprendeu desde cedo a conhecer e a odiar a exploração de seus companheiros de
tribo pelos seringueiros. Depois de trabalhar durante algum tempo em Cuiabá como funci-
onário do SPI e de ser demitido devido a divergências de opinião, ele voltou para as
malocas do Teles Pires. Em 1950 travou conhecimento com Cláudio Villas Bôas, da Expedi-
ção Roncador-Xingu (ver pág. 64) que lhe facilitou a migração para o Xingu. Perseguido pelos
seringueiros – havia um prêmio por sua cabeça – ele percorreu nos anos seguintes todo o vale
do Teles Pires habitado pelos Kaiabi, convencendo-os a fugir de seus donos e a transferir-se
para o Parque Nacional, onde lhes era oferecida segurança. Durante esses anos, Ipepuri tor-
nou-se xamã, transformando-se num líder carismático, logo seguido pela maioria dos Kaiabi.
A última fase desse movimento migratório foi a transferência do chefe Temeoni com
seu grupo para o Xingu, seguido pelos restos de um grupo do Teles Pires. Como sua
mulher, Ipepuri falava muito bem o português, apresentava-se muito cônscio de si mesmo e
manifestava em relação a mim o comportamento típico de um brasileiro. Nem parecia
Kaiabi, com cabelos e barba densos e crespos. Respondia prontamente a todas as minhas
perguntas – também foi informante do professor Galvão – mas parecia adotar diversos
elementos dos brasileiros e dos Kamayurá, principalmente na narração de mitos, designan-
do-os de maneira sincrética como “realmente pertencentes aos Kaiabi”. Por isso suas in-
formações devem ser consideradas criticamente. Mutatis mutandis, o mesmo vale para o
seu filho Meau´ap/Chico que também falava bem português e que me acompanhou durante
o meu recenseamento no Xingu, sendo muito prestativo.
3. A posição do autor entre os Kaiabi
Inicialmente os Kaiabi consideraram-me um dos “padres”, pois minha aparência e
meu comportamento pareciam classificar-me nesta “tribo” (ver pág. 181).

8
Ipepuri (Prepori ou, mais corretamente, Jepepyri) faleceu em 2000 na aldeia Kwaruja no
Parque Indígena do Xingu. (n. ed.)

Observações críticas relativas ao trabalho de campo 23


Só depois de algumas semanas eles tentaram uma nova classificação de minha filiação
étnica, mas nesse meio tempo meu status já estava definido, ou seja, o de um homem jovem
e solteiro, um konomi’oo, dentro de seu sistema de classes de idade (ver pág. 173). Devi-
do a esse status, foi-me particularmente difícil obter informações. Minha loquacidade, con-
trária a toda expectativa de comportamento, deve ter indignado os Kaiabi. Só mesmo a
sua tolerância permitiu-me aprender aos poucos a desempenhar o meu papel relativamente
bem e tive a satisfação de perceber que me tornara um membro aceito, embora inteiramen-
te dispensável, de minha classe de idade.
Eu prestava assistência aos doentes e esta se tornou a minha atividade mais
importante durante todos aqueles meses, pois apenas ela justificava perante os Kaiabi
e perante mim mesmo a minha permanência entre os índios. Com isso, logo adquiri a
reputação de aprendiz de curandeiro, o que explicava meu grande interesse pelos tra-
tamentos do xamã, meu “professor”, assim como as viagens que eu fazia sozinho, sem
ser molestado, procurando manter boas relações com seringueiros e padres, com Apiaká
e Kaiabi. Além disso, esta “profissão” dava-me a possibilidade de cometer impune-
mente certos atos considerados “malucos” pelos Kaiabi. Não posso julgar se a minha
posição entre os Kaiabi ficou caracterizada por estas conjecturas. Seja como for, as
minhas atitudes distinguiam tanto das dos seringueiros, que fui considerado pelo me-
nos inofensivo e nunca abertamente hostilizado.
4. A filiação lingüística e cultural dos Kaiabi
A literatura sobre índios brasileiros é rica em tentativas de classificar as diferentes
tribos segundo critérios que variam desde a simples enumeração e localização (como Casal
1817) até a classificação em áreas culturais (a última sendo de Kietzman 1967).
A designação Kaiabi é conhecida pelo menos desde 1848 (“Cajabis”, Ferreira
1905:87) e foi publicada pela primeira vez em 1850 (“Cajahís”, Castelnau 1850:306),
não se encontrando, entretanto, na ampla e muito citada obra de Markham (1910).
A filiação lingüística dos Kaiabi provocou dificuldades, pois as primeiras notícias
fornecidas por Pyrineus de Souza (1916:74 e 92) sugeriam um parentesco com o Karib dos
Bakairi. Assim esta classificação lingüística errônea deu entrada na literatura através de Rivet
(1924) e ainda em 1940 (Guérios, p. 99) os “Cajabi” eram citados como Karib, embora
Schmidt já tivesse constatado em 1929 que “através dos 100 vocábulos e frases dos índios
Kaiabi... pode-se afirmar que os Kaiabi falam e compreendem bem um dialeto tupi” (1929:94).
Loukotka (1944) já havia tentado agrupar as línguas dos Apiaká, Makiri (mais tarde iden-
tificados como Kaiabi) e Kaiabi nas “línguas centrais da família lingüística Tupi” (p. 31), o
que foi aceito de forma semelhante por Mason (1950:240), McQuowen (1955:518) e Tax
24 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
(1960:436). Também a última das classificações puramente lingüísticas de Rodrigues não
apresenta modificações essenciais: o Kaiabi aparece, provido de um ponto de interroga-
ção, como nº 11 do Tupi-Guarani (1964:102).
Esta incerteza deveria ser eliminada através de um “Plano para Pesquisas nas
Línguas Tupi”, um projeto conjunto do Summer Institute of Linguistics (SIL) e o Museu
Nacional do Rio de Janeiro, em que se incluiria a língua kaiabi (Anônimo 1965:18).
Desde julho de 1966, duas lingüistas do SIL atuam no Parque Nacional do Xingu junto
aos Kaiabi e assim tem-se a perspectiva de uma classificação definitiva de sua língua.(9)
A importância da investigação do Kaiabi como cultura foi apontada pela pri-
meira vez por Darcy Ribeiro (1957) em seu trabalho, até hoje decisivo, sobre “Cultu-
ras e línguas indígenas no Brasil”:
“Outros grupos Tupi em estágio equivalente de integração são... os Kaiabi
que se estão transladando do vale do rio Teles Pires para afluentes do rio
Xingu, a fim de fugir às perseguições de frentes de economia extrativa que
invadem o seu antigo território e procurar o tipo de amparo que o S.P.I.
proporciona aos grupos xinguanos. O último grupo não foi até agora objeto
de uma pesquisa etnológica; trata-se, entretanto, da tribo Tupi cujo estudo
mais pode contribuir para o esclarecimento de alguns problemas básicos da
Etnologia Brasileira” (p. 54).
Apesar desta exortação urgente, o presente trabalho continua sendo o único sobre
a tribo e espero que ele corresponda, pelo menos em parte, às expectativas expressas.
Em termos de dados, Ribeiro apresenta uma estimativa inteiramente justa de uma
população de 250 a 500 indivíduos, assim como a informação da migração de uma parte
da tribo do rio Teles Pires para o Manitsauá Missu no curso superior do Xingu (p. 79).
Como Ribeiro, Gama Malcher obtém as notícias de seu catálogo “Índios” (1964)
dos arquivos do SPI:
“Kaiabi, contacto intermitente e alguns grupos ainda isolados, tupi. Diversas
aldeias no noroeste de Mato Grosso, no Rio dos Peixes, afluente direito do
Arinos, nos rios Verde e Teles Pires. Estão sendo compelidos a transferirem suas
aldeias, cujas terras foram vendidas pelo Estado de Mato Grosso a diversas
empresas imobiliárias. Recentemente um grupo está se localizando no Manitsauá,

9
Há algum tempo está bem estabelecido que a língua Kaiabi pertence à família tupi-guarani
(tronco Tupi). (n. ed.)

Observações críticas relativas ao trabalho de campo 25


afluente esquerdo do Xingu. No Estado do Pará, o S.P.I. tem um Posto de assis-
tência aos Kaiabi, margem direita do Teles Pires na Lat. 8º24´5 sul e Long.
57º38´5 W.-Gr.” (p. 100).
O já mencionado artigo de Dale Kietzman (1967) que, como diretor do Summer
Institute of Linguistics, tinha acesso a informações adicionais, deu aparentemente muito
pouca importância às notícias dos missionários católicos. A respeito dos Kaiabi ele diz o
seguinte:
“A rather large tribe, probably numbering in excess of 1,000, sometimes classified
as Kawahib, but probably not as closed related to groups 4-8 as they are to each
other. A series of four villages are located on the Rio dos Peixes, from25 to 90
miles from the mouth. A group, possibly decimated in recent years, is located
near the former site of an SPI post near the mouth of the Rio Verde. Some of
these Indians have migrated to village sites in the Xingu valley… Many Kayabí
are said to be living on the São Benedito River, and just below its junction with de
São Manoel. Although they seem to occupy a large territory, the groups Kayabí
contacted total only between 500-600. The Xingu group is very acculturated;
those of the Rio dos Peixes are quite peaceful, but seldom contacted; the other
groups still are somewhat hostile in contact situations” (p. 24).
As indicações de Kietzman sobre a população total de Kaiabi são exageradas, ao
meu ver, e a sua afirmação de que no rio São Benedito viveriam “muitos Kaiabi” contradiz
as informações que eu mesmo recebi no Rio dos Peixes e no Parque Nacional.
Ainda nos referiremos a duas tentativas de estabelecer áreas culturais no Brasil
depois da de Stweard (1949:884). Murdock (1951) filia os Apiaká na “primary division:
Mato Grosso” e constata que “this group includes the Apiaca, Cayabi and Tapanyuna
tribes, who speak languages of the Tupi-Guarani stock” (p. 83). Galvão reúne diversas
culturas em “áreas culturais” (1960), não obedecendo apenas a critérios lingüísticos:
“como critério dominante, demos ênfase à distribuição espacial contígua de elementos
culturais, tanto os de natureza ergológica como os de caráter sócio-cultural” (p. 15).
Na área IV – Tapajós-Madeira, Sub-área A – Kawahyb, Galvão inclui Parintintim,
Tupi-Kawahib e Kaiabi (p. 26). Como em 1959 se conhecia muito pouca coisa sobre
os Kaiabi, dispensamos a crítica das características culturais que ele considerou típicas
para esta região; poder-se-á manter também no futuro uma área cultural que compreenda
as mencionadas tribos.
Para finalizar, sejam ainda apresentados alguns dados antropométricos que, dado o
pouco material comparativo existente, não serão usados para fins classificatórios. Realizei

26 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


as mensurações no Posto Tatuí com o auxílio de um compasso curvo, amavelmente em-
prestado pelo professor Egon Schaden, e com uma fita métrica:
A partir dessa amostra da totalidade do grupo local (52 homens e 32 mulhe-
res), pode-se avaliar, com 95% de probabilidade, que a estatura média de todos os
52 homens Kaiabi se encontra entre 153,06 – 156,56 cm e entre 142,52 – 146,12 cm
para as mulheres.

Homens Mulheres
Total de indivíduos 18 14
Estatura média 154,81 cm 144,32 cm
com desvio padrão s = 4,54 cm 4,45 cm
Comprimento máximo da cabeça 18,16 cm 17,21 cm
s= 0,53 cm 0,35 cm
Largura máxima da cabeça 14,50 cm 14,22 cm
s= 0,33 cm 0,32 cm
Índice comprimento/largura 79,90 82,68

Observações críticas relativas ao trabalho de campo 27


capítulo II

FONTES DA ETNOGRAFIA DOS KAIABI


1. A exploração da área do Alto Tapajós no século XVIII
No começo do século XVIII numerosas expedições partiram das áreas costeiras
do Brasil em direção ao interior. Eram todas de iniciativa privada, organizavam-se em
oposição às leis do poder oficial e eram chamadas “entradas” (Blanco 1966:311 e ss). O
mais importante móvel destas instituições paramilitares era a escravidão de parcelas de
populações indígenas para fins comerciais. Sua organização tática orientava-se de acordo
com as subdivisões de tropas regulares e assim se originou o termo “bandeira”, derivado
inicialmente da nomenclatura militar oficial.
A bandeira de Antonio Pires de Campos deparou-se em 1718 no rio Coxipó,
não apenas com índios, mas com lavras de ouro, e no mesmo ano fundou-se um acam-
pamento num local de nome Cuyabá que a 1º de janeiro de 1727 foi elevado à catego-
ria de vila. Pires de Campos investigava entretanto as redondezas de Cuiabá e deixou
na sua “Breve notícia...”, depois de 1727, não só a primeira descrição dos Paresi,
como também uma menção aos Bacayris, dizendo em seguida: “...e d´ahi se seguem
várias nações de gentio, que tenho por notícia, são aldeias infinitas e todo o gentio mui
guerreiro e senhores de suas armas” (1862:448). Pouco podemos tirar desta passagem
para a identificação de uma determinada etnia, mas é de supor que esta constatação se
baseie em informações dos Bakairi que sabiam da existência de numerosos índios aguer-
ridos ao norte da área que ocupavam no curso médio do Teles Pires.
Em 1739, uma bandeira de Cuiabá, sob a direção de Antonio Pinheiro de Faria,
deparou com o “rio dos Arinos” onde, em vez dos esperados índios, encontrou ouro
(Fonseca 1868:367). Esta novidade foi inicialmente ocultada, mas logo surgiram boatos
em Cuiabá e Vila Bela de Mato Grosso sobre as novas lavras de ouro, e numerosas
bandeiras partiram no ano seguinte, entre as quais a de Antonio de Almeida Falcão,
que obteve o maior êxito. Em 1745, no curso superior do rio Arinos, acompanhado de
30 homens, ele encontrou ouro, fundando as minas de Santa Izabel. Segundo A.
Leverger (= Melgaço 1884:331), esse povoado, abandonado desde 1747, encontra-se à
margem esquerda, 17 km abaixo da foz do Rio dos Patos. Esta localidade, também cha-
mada “arraial velho”, formou, embora por poucos anos, a primeira concentração de
população brasileira na área do Alto Tapajós, devendo ter exercido grande influência
sobre os grupos indígenas circundantes. Pois foi a partir dessa época que tomaram
conhecimento da intrusão dessa nova e desconhecida “tribo” que lhes era tecnologica-
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 29
mente superior e cuja estrutura social lhes era incompreensível. Apenas duas fontes
secundárias permitem concluir pelo contato direto dos brasileiros ou portugueses com
os índios das cercanias. Um religioso, o pe. Agostinho Lourenço, relatava em 1752 ao
capitão-geral de Mato Grosso sobre o povoado do Arinos, que já deixara de existir
havia alguns anos, comparando-o com Babilônia pela depravação de seus habitantes e
pela sua súbita decadência. Ele culpava os mineradores de terem movido guerra con-
tra os índios “... sem outro motivo ou outro direito que não o da ganância” (apud
Melgaço 1949:233).
“Armavam-se 50 ou 100 homens, e, deixando guardas no arraial, se lançavam ao
sertão, e investindo com a primeira aldeia de índios que encontravam, matavam a
todos os que pegavam nos arcos para a sua justa defesa, e aos que não escaparam
fugindo metiam em correntes e gargalheiras, destruíam ou queimavam as casas,
arrasavam as searas, matavam as criações e voltavam triunfantes para a sua Ilha
Comprida, onde se repartiam os vencidos pelos vencedores e dêstes passavam em
contrato de venda a Cuiabá e Mato Grosso (...) Muitos índios acabarão aqui como
rezes ao corte do machado, ou sendo alvo de flexas e a fogo outros e de mau trato
e enfermidades uma grande multidão. As mulheres pelo mesmo teor padeciam nas
vidas e honestidade”.
Num relatório elaborado em 1799, Ricardo Franco de Almeida Serra apresenta
como causa do abandono das minas de Santa Izabel, além da parca descoberta de
ouro, a falta de gêneros alimentícios e o conflito de jurisdição entre dois religiosos
(cfr. Sá 1901:45 e Fonseca 1868:378-379).
“... mas a valente e temível nação Apiassá, que habita aquelles terrenos, e
carestia dos mantimentos e generos precisos para a dispendiosa extracção
do ouro, as poucas forças do Cuyabá no 20º anno da sua creação em villa, e
finalmente a descoberta dos diamantes e ouro do Paraguay, tudo foi causa
urgente para se abandonarem as minas de S. Izabel, perdendo-se ainda a
positiva certeza do logar da sua antiga existência” (Serra 1847:11).
Dois anos antes (1797), o mesmo autor mencionava pela primeira vez os Apiaká
como tribo de língua tupi que habitava a confluência do Juruena com o Arinos (Serra
1844:195). Por isso persiste a suspeita de que aqueles índios que hostilizavam os ga-
rimpeiros em 1749 no Alto Arinos apenas foram posteriormente identificados com os
Apiaká por este autor.
A notícia de descobertas auríferas ao sul do Tapajós ainda desencadeou duas
outras empresas significativas. No início de maio de 1742, quatro homens sob a
30 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
chefia de Leonardo de Oliveira partiram da Vila Bela, cruzaram a Serra dos Parecis,
construíram pequenos barcos e, por primeiro, desceram o Juruena e o Tapajós até a sua
foz no Amazonas, onde chegaram em agosto. Num manuscrito, até agora inédito, da
Biblioteca Pública de Évora, o missionário pe. Manoel Ferreyra dá notícia do decurso
dessa bandeira (MS 1751). Sem provocar conflitos armados, ela teve contatos com
diversas tribos que na área do Juruena em especial, povoavam densamente as duas mar-
gens do rio:
“... faz barra o Rio dos Arinos, povoado de m.to gentio... (...) Como trez dias de
viagem asima dos Arinos, entra no Rio Topajos o grande rio da Gente de Lingoa
Geral /diversa da dos Topinambàs/ povoado the as cabeceyras de m.ta gente, e
por isso lhe chamaõ = Reyno da Gente de Lingoa G.al.”
Essas informações sobre a área do Rio do Sangue e a embocadura do Arinos no
Juruena são confirmadas pela segunda fonte sobre a situação dos índios antes do início
da exploração sistemática da via de ligação de Mato Grosso com o Pará.
João de Sousa Azevedo que viajava entre São Paulo e Cuiabá comerciando nos
rios Tietê e Paraguai, trasladou-se em 1746 com suas seis canoas do Alto Paraguai
para o rio Sumidouro, chegando assim ao Arinos, onde encontrou abrigo no acampa-
mento das minas de S. Izabel e lá vendia utensílios de ferro (Fonseca 1868:369). No
fim do mesmo ano, ele embarcou Arinos abaixo, acompanhado apenas de seus escra-
vos e sem dizer exatamente para onde pretendia viajar. Em 1747, ele chegou a Belém
do Pará, no rio Amazonas, falando de minas de ouro na embocadura de um afluente do
Baixo Juruena chamado de “Rio das Três Barras”. Desta primeira navegação do rio
Arinos até sua foz existia um “roteiro” circunstanciado que só foi publicado numa
cópia posterior (apud Fonseca 1880:68-72). Ele contradiz em diversos pontos um
escrito de Azevedo, que ele elaborara em Belém em agosto de 1747 e em que procu-
rava justificar ao governador sua travessia ilegal do Brasil Central. Azevedo mencio-
nava um “Reino dos Apiacás” no Baixo Arinos, com os quais a comunicação era pos-
sível e, no Baixo Juruena, um afluente em que “... faz o gentio grande assistencia a
pescar e tirar pedras para os seus machados que os tem excellentes” (apud Fonseca
1880:68-72). Num relatório de 1752 ele novamente menciona o lugar onde encontrara
ouro: “Achei hum seu braço com ouro com alguma conta, que não pude examinar, por
quanto os barbaros erão muitos” (Azevedo 1943:186).
Em 1748, criou-se a Capitania de Mato Grosso com sede em Vila Bela de Mato
Grosso, numa clara expressão do constante declínio da produção de ouro de Cuiabá e
da sua perda de importância econômica. A “Notícia da situação de Mato Grosso e
Cuiabᔠelaborada por José Gonçalves da Fonseca provavelmente logo depois de 1750,
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 31
aponta as conexões entre esta situação e a abertura da mineração no Arinos: “e finalmente
resultou da empreza dos Arinos uma universal ruina aos moradores d´aquella comarca, de
que ainda se não acham restabelecidos” (1868:373).
Os conhecimentos sobre os cursos dos afluentes do Tapajós não foram muitos
ampliados nesse século. Em duas cartas de 30 de março e 25 de abril de 1771, a
Câmara de Cuiabá respondia ao pedido de informação do Capitão General em Vila
Bela sobre o curso do rio chamado Paranatinga, ao norte de Cuiabá (apud Leverger
1862:347ss.). Nesta época apenas se sabia que no alto curso do mencionado rio ha-
bitavam, de ambos os lados, “Baccayris” e que o Arinos e o Paranatinga corriam
paralelos por um trecho bastante grande. A embocadura do último era totalmente des-
conhecida e o rio não era associado ao “Três Barras”, cuja foz Azevedo descobrira no
Baixo Juruena.
No fim do século XVIII temos, segundo o relatório de Serra datado de 1797
(1844:156-196, também apud Castelnau 1851:93ss) o seguinte quadro: Cuiabá, como
centro econômico reativado, com foros de cidade e 18.000 habitantes nas adjacências.
No norte, a região de densas florestas do Tapajós com seus dois afluentes, Arinos e
Juruena. As comunicações com o Amazonas e o Pará faziam-se exclusivamente pelo
Guaporé e Madeira, dada a sua maior facilidade de navegação. Nessas áreas supunha-
se a existência de um grande número de tribos inimigas. Entre estas encontram-se,
plenamente identificados, os quase extintos “Parecis” (Serra observa com toda razão:
“... devendo esta nação a sua ruína ao seu valor e pacifica conduta” [p. 195]). E a leste
da Serra dos Parecis, ao lado de onze designações tribais não identificáveis, os Apiacás,
Cabaibas e Bacuris, além de Caiapó e Chavantes (Melgaço 1949:302).
2. Viagens no século XIX
A segunda navegação pelo Arinos no ano de 1805 foi, ao mesmo tempo, a pri-
meira oficial. Por ordem do capitão general e governador Manoel Abreu de Menezes,
Manoel Gomes dos Santos desceu o Arinos. Pode-se depreender o motivo dessa viagem
nos Anais do Arquivo da cidade de Cuiabá que Joaquim da Costa Siqueira utilizou como
documentação para seu “Compêndio... das notícias do Cuyabᔠ(1850:5-124).
“Por ordem do Exmo. General se apromptou uma expedição, que se devia
dirigir aguas abaixo do rio dos Arinos... a explorar se este rio é susceptivel
de navigação para gyrar o negocio d´estas minas para a cidade do Pará, e
com effeito se verificou esta diligencia nos primeiros dias de Julho; e como
chegada a cidade do Pará se recolheu pela navigação que dirige a capital, o
chefe da diligencia ahí deu conta de sua commissão” (p. 53).
32 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
Infelizmente, este relatório permaneceu inédito. Alguns trechos publicados por Castro
e França (1868:114ss) e a compilação, em geral fidedigna, feita por Castelnau (3:1851:93-
110) que manuseara o original em 1844, permitem inferir o conteúdo desse documento.
Gomes e seus companheiros foram atacados logo abaixo da foz do rio dos Peixes por
Apiaká, mas chegaram, apesar disso, com o grosso dos homens ao Pará (Castro e França
1868:114ss). A atitude hostil dos Apiaká é de interesse porque todos os relatos posterio-
res enfatizam a índole pacífica desses índios, tanto que eles são mais tarde citados como
exemplo de êxito da “educação” de indígenas.
Em 1812, o capitão general João Carlos Augusto d´Oeynhausen ordenou uma
outra expedição para a navegação da nova rota para o Pará que foi realizada com a
utilização do relatório de Gomes dos Santos, sob o comando de Miguel João de Cas-
tro e Antonio Thomé de França; o seu diário de viagem foi publicado (Castro e França
1868:107-160). Essa expedição consistia de oito barcos com 72 homens, sendo oito
brancos e o resto soldados e remadores escravos, pois contava-se com ataque dos
índios. À altura da antiga Minas de S. Izabel já se depararam com os primeiros sinais
de índios – sinais de fogos e armadilhas para peixes – e logo em seguida com um pouso
abandonado, com sete redes, utensílios domésticos e uma canoa de casca (p. 112). No
dia seguinte foram observados na margem numerosos índios e todos se rejubilaram
com o seu inesperado comportamento pacífico:
“... e por se ter conhecido que elles haviam mudado do systema hostil que
praticaram na expedição que desceu em 1805, deixamos n´aquelle porto um
machado, 2 facões, alguns maços de missangas, facas e espelhos” (p. 115).
O rio dos Peixes foi denominado rio de São Francisco de Assis e, a jusante,
muito depois da embocadura do Arinos no Juruena, verificava-se denso povoamento
por índios, cuja descrição não deixa dúvidas de que se tratava daqueles que nos anos
seguintes seriam chamados de Apiaká.
O êxito dessa expedição e a crescente urgência em tornar o comércio cuiabano
independente do comércio do Paraguai e do Prata que estavam em mãos inimigas,
estimulou um grande número de viagens nos anos seguintes. Esta tendência foi apoia-
da por uma Carta Régia de dom João VI que, desde 1808, residia no Rio de Janeiro;
datada de 14 de setembro de 1815, ela liberava o comércio entre o Pará e Mato Grosso
via rio Arinos de todos os impostos nos dez anos subseqüentes (Guimarães 1844:297).
Desde então e até a primeira década do século XX, houve no mínimo uma navegação
anual do rio, com poucas interrupções. O autor anônimo da “Memória da nova nave-
gação do rio Arinos”, elaborada entre 1817 e 1822, fala de 17 viagens durante os cinco
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 33
anos seguintes à expedição de Castro e França (Anônimo 1856:112), todas, porém, resul-
tando em prejuízo.
Sem indicar cada uma das viagens individuais, darei uma pequena caracterização
das fontes primárias e das secundárias mais importantes em ordem cronológica.
Em 1818, Antonio Peixoto de Azevedo, vindo do Pará, subiu o Juruena e con-
venceu sete moços Apiaká a acompanhá-lo até Cuiabá. O bom tratamento que recebe-
ram de Azevedo e a amável acolhida em Cuiabá deram origem a uma nova viagem, por
iniciativa de um chefe Apiaká, com 14 pessoas de ambos os sexos até Cuiabá, onde
todos foram acolhidos e alimentados pelos cofres públicos. Servia-lhes de intérprete
um brasileiro chamado Braz Antonio que quisera viajar de Barcelos (Rio Negro) a
Cuiabá em 1816, mas que se estabelecera na aldeia do mencionado chefe. A espetaculosa
recepção do grupo pelo capitão general despertou grande atenção entre os cidadãos
cuiabanos, chegando-se à redação da fonte etnográfica mais importante sobre os Apiaká,
de autoria do cônego José da Silva Guimarães (1844:297-317) que procurou desco-
brir seus “usos e costumes” através de conversas sistemáticas.
“Por frequentes conversações que com elles tive, por meio do intérprete,
eu pude haver as noticias dos seus usos e costumes, e do vastissimo sertão
que elles trilham; e tudo escrevi, para que com o auxilio de taes noticias, e
com o socorro desses selvagens, se possa alcançar um dia a civilização
d´esta Nação...” (p. 298).
Ele acrescentou à sua “Memória”, publicada apenas em 1844, um vocabulário
de 113 palavras. Koch-Grünberg (1902:350) escreveu um resumo de todos os dados
sobre os Apiaká. Particularmente interessantes são os primeiros relatos sobre os habi-
tantes do Rio dos Peixes – denominados pelos Apiaká de Itamiamy e regularmente
visitados por eles a fim de obter as pedras para a confecção de machados. Nestas
ocasiões, eles tinham que lutar com três tribos diferentes:
“Recebe o Itamiamy muitos outros ribeirões pelo oriente, e em um d´elles,
que está acima do salto feito por um grande morro, que atravessa o Rio,
existe uma populosa aldêa da nação Tapanhóna. Estes Índios costumam a
pôr estrepes, e fazer fojos em roda de seus alojamentos. São altos, corpu-
lentos, intrepidos e porfiosos guerreiros: usam de arco e frecha, e furam as
orelhas, que enfeitam com penas de arára, e gavião real... Deste logar tem os
Appiacás marchado até os territórios das duas outras nações Tapanhónaúhúm
e Timaoanas, que tem aldêas fóra das margens do Itamiamy. O
Tapanhónaúhúm usa de arco e frecha e porrete: é gentio valeroso na guerra,
34 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
costuma pintar a cara com tres circulos pretos, e furar as orelhas, que enfeita
com pennas de diversas córes. E os Timáoanas, ultimos povoadores do Itamiámy,
são de estatura ordinária, anthropophagos, feios, porque desfiguram o semblante
com largas pinturas da testa até o pescoço: usam também de arcos e frecha e
porrete, e enfeitam as orelhas com ouro de que as mulheres formam os seus
collares” (p. 309 ss).
Um documento da mesma época (Anônimo 1856:99-118) confirma as informa-
ções de Guimarães:
“Dizem os índios que pelo dito rio sóbem elles com o projecto de trazerem
pedras para fazerem os seus machados, sendo-lhes preciso baterem-se com
outra nação de indios aos quais chamam Tapaúma, habitantes nas fontes do
dito rio do Peixe” (p. 100).
O ano de 1819 também é para Cuiabá a data do descobrimento de uma nova e
promissora rota de comércio para o norte. O mencionado Antonio Peixoto de Azeve-
do foi encarregado pelo capitão general de descer o Paranatinga até verificar se ele
desembocava no Tapajós ou no Xingu. O seu relatório de 1820 ficou desaparecido
durante muito tempo (Melgaço 1884:441). Francis de Castelnau (3;1851:110ss), du-
rante sua permanência em Cuiabá em 1844, pode obter de um membro da expedição –
Joaquim Ferreira Nandu – algumas informações que, entretanto, divergem bastante do
relatório de Azevedo publicado em 1885.
A expedição constava de 50 soldados, um piloto do Pará que dominava a lín-
gua geral e de três Munduruku (3; Castelnau 1851:110ss e Azevedo 1885:25). Isso
também explica a designação Munduruku Paribitata (= Mururá) para os índios que ataca-
vam da margem direita e que falavam uma “língua geral bastante viciada” (p. 30). Seus
domínios começavam acima da confluência do rio Verde, estendendo-se até o rio Peixoto
de Azevedo (“rio São Veríssimo”). É surpreendente a seguinte observação:
“... se encontram muitos portos de índios, e em cada um d´elles immensos páos
encostados à margem do rio, os quaes lhes servem para facilitar a passagem a
nado de um para outro lado, por não usarem de canôas ”(p. 31).
Mais adiante (p. 34), Azevedo menciona jangadas, mas não esclarece se se trata da-
queles simples troncos de árvores para atravessar rios ou de verdadeiras jangadas. A uns 50 km
acima da confluência do Peixoto, ele encontrou à margem esquerda duas canoas abandonadas
“as quaes mostravam ter sido feitas com ferramenta portugueza” (p. 34).
“Os índios Mundurucús, que me acompanhavam, certificaram-me serem as ditas
canoas dos seus parentes habitantes na campina do rio Tapajós, os quaes tinham
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 35
de costume vir conquistar os indios, que deixamos atráz, denominados pelos
ditos Mundurucús – gentios Paribitatᔠ(p. 35).
Rio abaixo até a foz, ele não teve mais contato com os índios. Como resultado
dessa expedição, Azevedo constatou que os rios Três Barras, São Manoel e Paranatinga
eram idênticos. Embora essa nova rota de comércio fosse mais curta que a anterior, ela
nunca foi utilizada, e apenas em 1889 foi percorrida pela segunda vez. As razões
para isso foram as atitudes hostis dos índios, a falta de um porto adequado e,
particularmente, as inúmeras corredeiras.
À procura das famosas minas de ouro dos Martírios, partiu de Cuiabá em
junho de 1820 uma bandeira de 42 homens chefiada pelo padre Francisco Lopes de
Sá. Subiram inicialmente o rio dos Peixes, sendo ali ameaçados provavelmente por
500 Tapanhunas e forçados a retroceder. Não existem anotações de Lopes de Sá e é
impossível verificar as diversas fontes secundárias (Guimarães 1844:310; Florence
1948:275; Melgaço 1949:325; von den Steinen 1894:388 e Mendonça 1919:304). O
historiógrafo cuiabano Estevão de Mendonça é o mais minucioso em “Datas
Matogrossenses”:
“Neste ponto (na Barra do Rio dos Peixes) se detiveram por espaço de uma
semana, em explorações e pesquizas minerais, prosseguindo depois a mon-
tante até próximo do aldeiamento dos índios tapanhunas. Prudente, mas de-
cidido a levar avante a sua empresa, o padre Lopes de Sá, apenas acompa-
nhado por dous escravos avançou em serviço de reconhecimento muito além
do seu acampamento, regressando no dia seguinte com a notícia de que no
aldeiamento dos tapanhunas sómente se encontravam mulheres e crianças.
Afim de evitar um encontro provavel com aquelles índios, os expedicionarios
desceram pelo rio dos Peixes, e deixando as canôas no logar que denomina-
ram Barranco Vermelho, sob a guarda de cinco homens, contornaram por
terra em busca das cabeceiras do mesmo rio.
No segundo dia de marcha, ao clarear, sahiram ao encontro da reduzida
comitiva cerca de quinhentos índios daquella nação, vedando o prossegui-
mento dos expedicionarios e recusando os brindes oferecidos.
Julgando-se impotente para uma luta, em que seriam esmagados pelo nume-
ro, o padre Lopes de Sá e seus companheiros resolveram abandonar o
emprehendimento, e tornaram ao Barranco Vermelho, de onde voltaram ao
rio Preto e depois a Diamantino” (1;1919:304).
Um oficial que elaborou em 1828 um trabalho estatístico-topográfico sobre
Mato Grosso, e que possivelmente conheceu Lopes de Sá, reproduz uma conversa
36 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
que alguns Tapanhunas mantiveram com Sá. Quanto à forma, é idealizada, mas o conteúdo
parece fidedigno:
“Tapanhoúna (...): ha poucos annos responderão ao Interprete do Padre Fran-
cisco Lopes, que penetrou aquelles sertoes: – `Nossos pais vierão para aqui dei-
xando muitas terras, porque os brancos as querião, e estão de posse dellas; e tratão
destruir tudo para abrirem nova guerra comnosco, e nos levarem escravos, e virem-
se assentar neste terreno; mas nós ensinamos a nossos filhos, que não temos para
onde ir, e que quando, matando os brancos, estes nos acabarem, nossos filhos, e
nossas mulheres morão todos´. A estas palavras começarão a atirar flexas...”
(D´Alincourt 1880:106).
Em março de 1828, a expedição do barão Georg Heinrich Von Langsdorff – então
cônsul russo no Brasil – iniciada no Rio de Janeiro em 1825, partiu de Diamantino e embar-
cou no Alto Arinos. O francês Hercules Florence acompanhava a expedição na qualidade
de pintor. Devemos a ele um relato de viagem muito crítico, descoberto apenas em 1874,
e diversas aquarelas e desenhos muito precisos, cujo valor etnográfico mal pode ser su-
plantado (Florence 1948). Uma pequena parte desses esboços foi publicada por Karl von
den Steinen (1899), outros esboços e figuras por Taunay (Florence 1948) e Xprintsin
(Manizer 1967). Segundo as descrições de Florence, as aldeias Apiaká se excediam em
hospitalidade e ele nos transmite a impressão de uma atmosfera invejavelmente aconche-
gante, não mencionando, porém, qualquer tribo inimiga dos Apiaká. Em 1837, no discurso
de abertura da Câmara Legislativa Provincial em Cuiabá – capital da província de Mato
Grosso desde 1820 – o seu presidente, dr. José Antonio Pimenta Bueno (1840:170-174)
tocou também nos problemas relacionados aos índios. Em primeiro lugar encontram-se
considerações de ordem econômica. Das 53 tribos conhecidas, apenas dez estavam “do-
mesticadas”, embora outras tantas estivessem prestes a sê-lo, entre as quais também os
Apiaká: “A bôa índole e serviços dos Apiacás promettem-nos igualmente interesses na
navegação do Juruena para o Parᔠ(p. 170). E ainda constatava: “Desconhecemos todo o
terreno que medêa entre o Rio S. Manoel denominado também Tapajós, e seus numerosos
confluentes” (p. 170).
Em 1844, o viajante francês Francis de Castelnau demorou-se em Diamantino,
onde encontrou diversos Apiaká, entrevistando um deles que falava um pouco de por-
tuguês (1850:314-317). Entre as tribos inimigas, ele mencionou os Parabitatas (p.
316). Castelnau relatou também de outro informante que percorrera muito aquela re-
gião dos
“... Bacchayris, qui habitent les sources de l´Arinos, sont des moeurs très douces;
...; ils sont em guerre avec les Cajahis. Les Tapanhunas, tribu hostile, sont établis sur
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 37
une rivière de même nom qu´eux, qui est um brás de l´Arinos; ils parlent la même langue que
les précédents; ils se teignent entièrement en noir” (p. 306ss).
Este trecho menciona pela primeira vez a designação tribal Kaiabi na forma Cajahi
(talvez um dos freqüentes erros tipográficos de substituição de b por h) em conexão com
os Bakairi. Isto parece denotar que se trata de uma designação transmitida por estes últi-
mos. No terceiro volume de sua obra, numa compilação de sete fontes diversas, Castelnau
novamente menciona os Tapanhuna:
“Vers la moitié de la distance qui sépare, d´environ soixante-dix lieues, le
confluant du Sumidouro de celui du Juruena, habitent, sur les deux rives de
l´Arinos, les Indiens Tapanhunas, enemis des Bacuris leurs voisins. Les
Tapanhunas s´étendent, dit-on, sur la rive gauche, jusqu´à une dizaine de
lieues du Juruena et, sur la rive droite, jusqu´en face de son embouchure”
(1851:97).
Em 1846, o presidente da província de Mato Grosso, Ricardo José Gomes
Jardim, batia-se com êxito pela fundação de uma “Diretoria dos Índios”. Num ofício
ao governo imperial, ele mencionava a aldeia fiscalizada dos Apiaká no Salto Augusto
(Arinos):
“... nação pacífica e numerosa, que habita entre o dito rio e o Juruena, a qual tem
por si mesma procurado a civilização. Em 1843 mandou-se para alli um inspector
e alguns soldados de 1ª linha com o fim de fixar-se e augmentar-se o aldeamento,
e proporcionar aos Índios a necessaria ferramenta e sementes para plantações;
mas o inspector nomeado falleceu em Janeiro de 1845 sem ter dado adianta-
mento algum a aquella povoação, apezar dos sacrifícios feitos pela fazenda pro-
vincial” (p. 550).
Em 1848, Joaquim Alves Ferreira, nomeado dois anos antes para o cargo de Dire-
tor Geral dos Índios da Província de Matto Grosso, recolhia informações sobre 33 tribos;
Karl von den Steinen teve a oportunidade de vê-las no Arquivo da Diretoria dos Índios
em Cuiabá, publicando em 1894 alguns trechos em língua alemã (1894:389, 548-
552). No original (Ferreira 1905), os Kaiabi são mencionados laconicamente: “Tudo o
que se sabe dos Cajabís é que são bravios e indomitos e habitão a margem do Paranatinga
acima do salto. São inimigos dos Bacahiris” (p. 87). Numa lista, seu número é dado
como desconhecido e seu habitat as “Cabeceiras do Paranatinga” (p. 80). Na mesma
lista fala-se de duas outras tribos: “Tapanhumas – 800 – Ribeirão do Tapanhuma, Conflu-
ente do Arinos; Nambiquaras – 600 – Rio do Peixe, Confluente do Arinos” (p. 81). E,
mais adiante:

38 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


“Nambiquaras: Conhece-se huma horda de huns 600 desses selvagens que habi-
tão as vizinhanças da confluencia do rio do Peixe com o Arinos. Sustentão-se da
caça, da pesca, e de alguns fructos da terra que cultivão com instrumentos de
páo e pedra. Vivem em estado habitual de guerra com os outros índios, e
particularmente com os Apiacás, a quem fazem todo o mal que pódem. Fo-
gem de ter relação comnosco e costumão fazer emboscadas para atacar as
nossas canôas que se empregão na navegação da Villa de Diamantino para o
Pará, porém temem-se muito das nossas armas e não appóem rezistencia
aberta.
Tapanhunas: Esta nação tem os mesmos costumes, uzos e indole que os
Nambiquaras. Contão-se 800 individuos, habitão as immediações da
confluencia do rio dos Tapanhunas com o Arinos” (p. 88ss).
E o relatório sobre os Bakairi conclui: “O aldeamento e a civilização dos
Bacahiris facilitará a dos Cajabis” (p. 94). É muito difícil avaliar o valor dessa fonte.
Como quer que seja, procurava-se em 1848 inicialmente obter, com auxílio das fontes
oficiais, um quadro abrangente do número, localização e grau de “civilização” dos
indígenas de Mato Grosso.
Em 1845, João Baptista Prudêncio, cidadão de Diamantino, redigiu um relató-
rio sobre a precária situação econômica desse município antes rico, e também abordou
a “catechese e civilização dos índios”. Considerava essencial que os Apiaká fossem
auxiliados contra os constantes ataques dos Munduruku:
“... antes algum auxílio de gente tem sido prestado a elles, pela forte e guer-
reira nação Mundurucú que tem obstado a completa extincção dos Apiacás,
ainda assim estão reduzidos a menos da quarta parte do número que tinha
quando abriu-se esta navegação, segundo affirmão alguns dos primeiros
navegantes” (p. 7).
Muito esclarecedora é a indicação da proveniência dos índios que importuna-
vam os Bakairi. Como se depreende das fontes acima citadas, tratava-se sobretudo
dos Kaiabi.
“Bacarahy... tem ella também diminuido muito de população pelos repetidos
ataques das tribus selvagens, que habitão o rio dos Peixes, e seus confluen-
tes, e ainda no anno passado soffrerão grande damno delles, surprehendendo-
os a noite e destruirão suas plantações, pelo que algumas familias, que fica-
rão sem roças descerão os Arinos, e se achão situadas logo abaixo do novo
porto, em que se abriu varadouro ás canôas para Cuyabᔠ(p. 7).

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 39


As relações hostis entre Bakairi e Kaiabi também são confirmadas no relatório de
1858 do novo Diretor Geral dos Índios, João Baptista de Oliveira, que assim se refere aos
Bakairi localizados no Paranatinga e no Alto Arinos: “São de condições eminentemente pa-
cifica, e até timidos, porque a fuga é o único meio a que recorrem para subtrahir-se nos ataques
dos seus inimigos Tapanhumas, Nambiquaras e Cajabis” (p. 137).
Só dispomos de outro relato de viagem no ano de 1861. O geógrafo inglês Chandless
viajou de Diamantino a Santarém e, numa conferência de 12 de maio de 1862, apresentou
à Royal Geographic Society o primeiro levantamento do Arinos (1862:268-280). Em mapa
anexo ele indica os Bakairi nas cabeceiras do Arinos, “a small and very timid tribe of
Indians, used to be met with; but owing to the attacks of stronger tribes, they have latterly
withdrawn more towards the head-waters of the Arinos” (p. 270). Um dia de viagem
abaixo do rio Sumidouro: “… one is in the country of hostile Indians, the Tapanhonas and
Nambiguaras, who frequent both banks of the river, but chiefly the right bank. These Indians
have frequently attacked passing canoes, and seem to reject all attempts at intercourse” (p.
271). O Rio dos Peixes, o maior afluente do Arinos, nunca fora explorado (p. 272). “The
Apiacares are a small tribe...: it is said, that a larger portion of the tribe, not wishing to hold
intercourse with the whites, broke off and settled on the Rio S. Manoel” (p. 273). Na
embocadura do Teles Pires (S. Manoel), Chandless encontrou seringueiros pela primeira
vez, os primeiros mencionados para esta região.
No ano seguinte, em 1862, um aventureiro espanhol chamado Bartolomé Bossi
(1863) partiu com um grupo heterogêneo de 40 cuiabanos para descobrir as minas de ouro
que o padre Lopes procurara em vão em 1820. Logo após seu embarque no Arinos,
entretanto, a tripulação amotinou-se e, sem entrar em contato com índios, Bossi foi obriga-
do a voltar. Ele observou, entre Diamantino e Porto Esperança (abaixo da desembocadura
do rio Preto no Arinos), numerosas seringueiras, mas nenhum extrator (p. 86). Sobre os
índios ele assim se manifesta: “Uma tribu feroz que se llama Tapañuna, domina el desierto
desde el rio de los Patos hasta las inmediaciones del salto Augusto, y esos Indios atacan
com frecuencia las canoas” (p. 90). Acrescentou uma litografia de um guerreiro Apiaká
que, comparada com os desenhos de Florence, é totalmente inverossímil. Mas parece que
esta figura foi usada, durante a Exposição Anthropológica Brazileira, realizada em 1882 no
Rio de Janeiro, como modelo para apresentar um “cacique dos Apiaká”. E Josef von
Siemiradzki (1898:150) passou a gravura da Exposição para um artigo seu publicado em
Viena.
Vindo do rio Amazonas, o botânico brasileiro João Barbosa Rodrigues (1875)
subiu o Tapajós e narra, tal como Chandless, a fuga dos Apiaká, Teles Pires acima, onde
viviam como Parabiteté (p. 117). “Os Appiacás e Parabitetés, que são irmãos, oriundos do

40 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


mesmo tronco, usam... um risco negro circundando os labios; ... os Parauaritis são pintados
quasi como os Appiacás” (p. 133). Rodrigues recebeu estas informações de Apiaká “civiliza-
dos” do Alto Tapajós.
Pouco tempo depois, no ano de 1875, um outro estudioso brasileiro, o engenheiro
Antonio Manoel Gonçalves Tocantins, visitou o Alto Tapajós e especialmente as aldeias
Munduruku do Cururu. Seu relatório sobre esta tribo (1877) tornou-se um dos clássicos
da etnografia brasileira. Inclui também alguns dados sobre outras tribos da área do Tapajós
do ponto de vista dos Munduruku:
“Tupaiunas – Pintam-se de negro.
Paribitat – Habitam campos na direcção de Cuyabá.
Paribitêtê – Habitantes das cabeceiras do rio D. Manoel, affluente do Tapajoz”
(p. 97).
Os dois últimos nomes designam os mesmos grupos de índios que haviam atacado
Peixoto de Azevedo em 1819 (1885:35) e que foram identificados por Barbosa Rodrigues
como um grupo Apiaká emigrado (1875:117).
Em 1884 e 1887 realizaram-se, sob a direção de Karl von den Steinen, as duas
primeiras expedições alemãs no Xingu que determinaram toda uma era das pesquisas entre
índios no Brasil. Seus relatórios de viagem também trazem as primeiras notícias seguras
sobre os Kaiabi (1886:122 “Cajabí”, 1894:203ss, designados por “Kayabi”) que ele havia
obtido entre os Bakairi do Alto Teles Pires (Paranatinga). Na segunda aldeia Bakairi do
Alto Paranatinga viviam duas mulheres Kaiabi, aprisionadas ainda crianças, quando de um
ataque dos Bakairi. Não mais falavam sua língua quando von den Steinen as encontrou em
1884 (1886:122). Ele calculou que tivessem 18 e 22 anos de idade e nelas realizou mensurações
antropológicas (1886:364ss). Depois de sua segunda expedição, ele relatava:
“... nesta região (Paranatinga) os Kayabi tinham o monopólio dos machados de
pedra; os Bakairi vizinhos deviam adquiri-los deles, posteriormente seus inimigos
mortais” (p. 203).
“Os inimigos principais dos Bakairi ocidentais, e que provavelmente na medida
em que é possível dar crédito à tradição, já o eram dos Bakairi unidos, são os
Kayabi.
“Selvagens indômitos da proximidade do Salto”, é o que reza o relatório da
Diretoria dos Índios. O que sôbre êles pouco consegui saber dos Bakairí é o
seguinte. Os Kayabí dão a si próprios o nome de Paruá, sendo pela língua – o
que entretanto carece de confirmação – parentes dos Kamayurá do Kulisehu, o
que quer dizer que seriam uma tribu tupi. São homens robustos e, como também

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 41


a tribu próxima dos Apiaká, do grupo tupi, amigos da antropofagia. Plantam
mandioca, milho, batatas, mandubi, etc. do mesmo modo como as outras tribos.
Possuem maças bem trabalhadas de madeira bacaiuva e que são envolvidas por
trançados, medem cêrca de metro e meio, têm forma de varas chatas e são
carregadas ao braço numa corda. Também quanto a isso concordariam com os
Kamayurá. As flechas são de cana cambaiúva, como as dos Yuruna, mas meno-
res. Não possuem propulsores, o que constitue uma importante diferença em
relação aos Kamayurá.
Os Kayabí moram no Rio Verde, cujas nascentes ficam entre a aldeia Bakairi do
Rio Novo e a do Paranatinga: é um afluente da margem direita dêste último,
entrando nêle abaixo do célebre Salto. A referida tribu é, portanto, muito vizinha
sem dúvida dos Bakairi. A inimizade que reina entre as duas já vem de tempos
antiquíssimos. Só bem no princípio houve concórdia: os Kayabí, informaram-
nos, apareceram na zona dos Bakairi para morar com êles, estabelecendo-se
junto dum ribeirão próximo; pouco depois nasceram as contendas. Lembro dos
Kayabí da lenda de Keri. Os antigos Bakairí desceram o Paranatinga até abaixo
do Rio Verde, voltando, porém, de medo dos Kayabí; êstes eram senhores dos
machados de pedra, o que deu motivo às desavenças.
Quanto a lutas havidas em tempos mais recentes, obtive informações mais preci-
sas. Os Kayabí mataram o pai de Felipe, fizeram o assalto de noite e levaram
também uma criança. O avô, o pai e o tio de Antônio avançaram até a emboca-
dura do Rio Verde, onde os Kayabí estavam caçando e procurando conchas. Os
Bakairí chegaram de tarde ficando cautelosamente retraídos, mas de manhã bem
cedo, quando os Kayabí ainda jaziam nas suas rêdes, fizeram o assalto, matando
dois, enquanto os outros fugiram. Os Kayabí tinham o corpo untado com óleo de
almíscar (de um cipó) e urucú, e fediam como o diabo. Levavam consigo cuias,
uma outra espécie de urucú, arcos e flechas. Na aldeia do Paranatinga encontra-
mos, em 1884, duas mulheres kayabí, Maria e Luiza Kayabí que infelizmente não
sabiam mais palavra alguma de seu idioma materno. A excursão contra os Kayabí
fôra empreendida por uns vinte Bakairí, prendendo as duas meninas, ainda pe-
quenas, além de uma irmã de Luiza, a qual, porém, mordia tão furiosamente em
torno de si que teve que ser morta” (1940:501s).
Ao invés de fazer aqui uma crítica de texto, remeto o leitor para a parte etnográfica
deste trabalho, dividida por assunto.
Um integrante brasileiro da primeira expedição ao Xingu, o oficial Manoel de Sou-
za Gomes, estabeleceu-se aparentemente entre os Bakairi e viveu com eles durante vários
42 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
anos. Voltando à “civilização”, trouxe um colar que ele teria tirado de um chefe por ocasião
de um ataque aos Kaiabi, doando-o ao Museu Nacional do Rio de Janeiro (Rego 1899:178).
De grande importância foi uma expedição dos oficiais Lourenço Telles Pires e Os-
car de Oliveira Miranda que se realizou em 1889 com o apoio da Sociedade de Geographia
do Rio de Janeiro, a fim de proceder à mensuração do rio Teles Pires (naquela ocasião
ainda conhecido pelos nomes de S. Manoel, Paranatinga e rio das Três Barras). Acompa-
nhados de 28 homens, entre os quais alguns Bakairi, eles embarcaram em agosto no Alto
Paranatinga pretendendo chegar em dezembro ao Pará. Sem ter entrado em contato com
os Kaiabi, a expedição malogrou, naufragando numa cachoeira um pouco ao norte de 10º
de latitude sul; apenas Miranda e cinco companheiros conseguiram sobreviver (Miranda
1890:149). Por sugestão do então coronel Rondon (1916:219s), deu-se ao rio o nome do
malogrado chefe da expedição, nome que até hoje ele mantém. Miranda relata:
“... encontramos um pequeno rancho de índios, cujas madeiras tinham sido cor-
tadas a machado de pedra; estava deserto; batemos os arredores e nada encon-
tramos. Já nos causava estranheza e despeito não encontrarmos habitantes. Os
dias subsequentes foram empregados em passar grandes cachoeiras... e neste
trecho encontramos duas novas cabanas de índios com diversos instrumentos e
armas, que trocamos por facas, machados, espelhos, sem consentimento porém
dos donos, que não encontramos por mais que procurassemos; estes ranchos
estavam dentro de duas roças de mandioca, amendoim, batatas doces, pecegos;
estas roças eram assás grandes e admiramos o trabalho de as fazer, dispondo
para a derrubada apenas de machado de pedra. Tudo parecia indicar que taés
ranchos serviam apenas para as épocas da plantação e da colheita, retirando-se
depois os donos para suas aldeias; onde estavam estas é que não nos foi possível
descobrir; deviam ser muito pelo interior das terras, mas os caminhos para alli
estavam perfeitamente dissimulados; julgamos poder attribuir o facto dos índios
occultarem assim suas moradias à necessidade de se esconderem afim de evita-
rem as correrias das outras tribos; pois que é sabido que por este rio os bellicosos
Mundurucús, habitantes do Tapajós, faziam excursões de guerra até o território
de Matto-Grosso. O facto é que não vimos nenhum desses índios que o Felippe
dizia serem Cajabis, o que bastante nos aborreceu” (p. 146s).
O mencionado Felipe era um chefe Bakairi, não se podendo duvidar, portanto, do
seu julgamento. Esta extrema reserva que os Kaiabi demonstravam uma década antes da
invasão dos seringueiros em seu território tribal é mais um indício de que a sua agressividade,
freqüentemente enfatizada, nada mais seria que a reação aos atos de violência dos serin-
gueiros, atos para eles incompreensíveis.
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 43
Em 1895 o francês Henri Coudreau viajou Tapajós acima até o Salto Augusto no
Baixo Juruena. Seu relatório (1897) é pouco crítico quanto aos dados relacionados com os
índios e deve ser utilizado com cuidado. Seus informantes eram Munduruku e Apiaká
“civilizados”, além de seringueiros.
“Les CAJABIS bravos s´étendraient du Alto Tapajoz au São Manoel et au Xingu
nord des Bakairis bravos, des Tapanhunas aux Parintintins” (p. 93).
“Les TAPANHUNAS vivent dans les campos du Rio dos Tapanhunas. Ces cam-
pos se prolongent vers l´est dans la direction des Paranatinga et vers le nord dans
la direction du São Manoel, mais il n´est pas à croire qu´ils s´étendent sans
interruption jusqu´aux campos de ces deux rivières; de profondes masses de
fôrêts vierges occuperaient, d´après les Mundurucús, tout le pays entre les cam-
pos de Tapanhunas et du Paranatinga et la Cachoeira das Sete Quédas. Les
Tapanhunas sont, paraît-il, de lingua geral, les Apiacás auraient, disent-ils,
parfaitement compris leur langue dans les recontres d´ailleurs forts rares qu´ils
ont eues avec eux depuis la migration des Apiacás vers le nord. La tactique de
guerre des Tapanhunas ne dénote pas de la part de ces Indiens une bien grande
valeur militaire ni morale: c´est tout bonnement l´assassinat par trahison. Ils attendent
les voyageurs qui s´en vont passant par la rivière. Les Tapanhunas sont là sur
quelque plage, sur quelque berge, à um angle autant que possible pour que les
voyageurs soient forcés à agir de suite sans avoir trop le temps de réfléchir. Ils
surgissent ainsi tout à coup du paysage sans arc ni flèches, riant, parlant fort, et
faisant à ceux qui viennent force signes d´amitiés pour les inviter à accoster.
Que les imprudents voyageurs s´approchent à portée des flèches et soudain
nos Tapanhunas font pleuvoir leurs “tacuaras” sur leurs confiantes
victimes. En quinze années de voyage chez les Indiens je suis arrivé à me
faire cette conviction que les Indiens “bravos” sont purement et simplement
des bandits héréditaires et professionels à l´endroit desquels la philantropie
est un leurre” (p. 90ss).
Por rio dos Tapanhunas devemos entender aqui o rio dos Peixes. Coudreau tam-
bém apresenta a figura de um machado encabado e de duas lâminas dos Tapanhunas, que
muito se parecem com as dos Kaiabi e dos Apiaká (p. 91).
3. A frente de expansão brasileira nos rios Arinos e Teles Pires
Enquanto as viagens do século XIX significaram, com pequenas exceções, apenas
contatos curtos e irregulares entre os índios e os representantes da civilização européia,
esta situação mudou por volta do início do século.

44 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


No seu trabalho pioneiro, Darcy Ribeiro (1957) mostrou como o destino dos
índios depende do tipo econômico de expansão brasileira com que se estabelece o pri-
meiro contato. Conforme se tratasse de representantes de economia extrativa (borracha,
minerais, ipecacuanha, mate, castanha-do-pará etc), de criação de gado ou de agricultu-
ra, alteravam-se também as formas possíveis de integrar lucrativamente os índios ao
sistema econômico ou, então, de expulsá-los e mesmo exterminá-los. Para a região em
questão, por razões climáticas, interessava apenas a exploração de minérios, como ouro
e diamantes, e a extração da borracha. A primeira limitou-se à iniciativa privada de
alguns aventureiros. Independia das oscilações da economia mundial e não teve significa-
do de vulto, excetuando-se a descoberta do garimpo “Paranatinga” em fins de 1963, que
concentrou por pouco tempo cerca de 6.000 garimpeiros de diamante no afluente do
curso superior do Teles Pires (Azevedo 1966:85).
O sistema econômico que se tornou característico para os afluentes do rio Tapajós
é o da extração de borracha, especialmente das seringueiras (Hevea brasiliensis) (cfr.
Ribeiro 1975:23) encontradas nas margens dos rios. Em 1861, Chandless (1861:275)
observou os primeiros seringueiros na embocadura do rio Teles Pires, no Juruena. Por
volta de 1884, eles avançaram para o noroeste, a partir de Diamantino, em direção aos
seringais das encostas da Serra dos Parecis (Campos 1960:204).
Depois da primeira Constituição Republicana de 1891, as províncias do antigo
Império passaram a Estados e reuniram-se na Federação dos Estados Unidos do Brasil. O
direito de tributar a extração da borracha passou à competência dos respectivos Estados e
já em 1895 foi enviado, Arinos abaixo, o primeiro coletor estadual de Mato Grosso, que
foi atacado na embocadura do Juruena e mortalmente ferido por “Tapanhunas” (Nimuendajú
1948:311).
Em 1898 um empresário brasileiro, o dr. Passini, viajou Arinos abaixo para exami-
nar as possibilidades de exploração da borracha. Dois Apiaká lhes serviram de remadores
(Koch-Grünberg 1902:355).
No ano seguinte Theodor Koch-Grünberg, que acompanhava H. Meyer na sua
segunda expedição ao Xingu, encontrou esses dois Apiaká em Cuiabá. Provinham da al-
deia de Salto Augusto. Koch-Grünberg obteve deles algumas informações e um vocabulá-
rio, publicado em 1902.
“As tribos dos formadores do Tapajós ainda são mal conhecidas e é provável
que se encontrem entre elas parentes próximos ou até membros da tribo dos
Apiaká.
Os Nambiquara e Tapanyuna, habitantes da região do Arinos e que, segundo
informes do Apiaká Alfredo, possuem grandes casas de palha e flechas de
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 45
cambayuva com pontas de bambú, são há muito inimigos declarados tanto dos
Apiaká como dos Mundurukú.
Pouco conhecidos também, embora se trate sem dúvida de tribos Tupi, são os
Parintintin e os Aipo-Sissi, que habitam a margem esquerda abaixo dos
Nambiquara. Estes Aipo-Sissi destacam-se, segundo meus amigos Apiaká, pelo
tamanho do membro viril que aparentemente chega até o joelho. Teriam arcos de
madeira da palmeira seriba e flechas de bambu, usando o cabelo comprido atrás”
(1902:357s).
A respeito dos Kaiabi, o autor repete aquilo que era conhecido pelos Bakairi e que
também está reproduzido em von den Steinen (1894:392s e p. 359).
Em 1872, foi enviada a Paris, para controle de qualidade, a primeira borracha
nativa explorada em Mato Grosso. Procedia dos seringais ao longo do rio Preto, um
pequeno tributário do Alto Arinos (2; Mendonça 1919:345). Dois anos depois tam-
bém foi iniciada a exploração da borracha do rio Novo, um afluente mais ocidental do
Arinos (p. 85-87). Em 1898 malogrou uma grande expedição para exploração da bor-
racha no Alto Arinos, pois uma parte dos 130 homens – dos quais mais da metade
Borôro “pacificados” – morreu de malária e inanição (1; 1919:345s).
Depois de 1900, foi aberto mais um seringal no rio Claro (rio Sumidouro), um
afluente ocidental do Alto Arinos. Os seringueiros tiveram contatos hostis com os
chamados índios “Tapanhunas” e, num massacre, foram mortos 20-30 índios, ocasião
em que foi utilizada uma metralhadora refrigerada a água (informação verbal de Mar-
celo Martins da Cruz, de Cuiabá).
Em 1902, foi fundada na embocadura do Teles Pires e Juruena, a Collectoria de
Rendas do Estado do Mato Grosso, criada por decreto em 1891. Seu primeiro coman-
dante, Thomaz Carneiro, começou de imediato, junto com seu irmão Ernesto, uma
campanha de extermínio dos homens Apiaká desta região, a fim de se apoderar de suas
mulheres. Ambos foram mortos a tiros por dois Apiaká. O novo coletor de rendas,
Fábio Freira, sob pretexto de vingar a morte de seu antecessor, junto com aproximada-
mente 100 seringueiros e empregados, matou, num ataque à aldeia Apiaká, toda sua popu-
lação, incluindo mulheres e crianças. Dizem que o resto dos Apiaká se retirou para a região
do Médio Teles Pires. Em 1912 existiam ainda, sob um novo comandante, 32 índios na
referida coletoria, dos quais 16 mulheres prostituídas, sete homens e nove crianças (Costa
Pinheiro apud Rondon 1916:217s e Hoehne apud Rondon 1915:168).
Duas décadas depois, Murilo de Campos publicou o livro em que se ocupou minu-
ciosamente das causas do declínio dos Apiaká, registrando na coletoria do Teles Pires, em
1912, apenas 20 índios (1936:177-81).

46 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Em 1910 foi fundada nas proximidades desta coletoria, na outra margem do Juruena,
a Collectoria de Fiscalização do Estado do Pará. Nela trabalhavam, em 1901, 80-100
seringueiros (Savage-Landor 1913:272).
Henry A. Savage-Landor, um viajante inglês pouco sério, desceu o Arinos em 1911
e referiu-se a seringueiros nas cercanias de Porto Velho, no Alto Arinos. Eles lhe contaram
da existência de “... Indians of the Cayapó tribe...”, que se encontrariam nas proximidades
(Savage-Landor 1913:13). Nessa ocasião não se encontrava mais nenhum Apiaká no Sal-
to Augusto (Costa Pinheiro apud Rondon 1915:75).
Em 1915/16 o etnógrafo William Curtis Farabee viajou Tapajós acima até a embo-
cadura do Teles Pires:
“Here we visited the last remnants of the Apiacás, once a large and ferocious
tribe, speaking the dialect of the Tupi language… Today they wear clothing only
when they go among the rubber gatherers” (1917:126).
Baseado na aparência dos índios, ele deduziu uma forte miscigenação com negros.
Resumindo, podemos constatar que o primeiro “boom” da borracha concentrou várias
centenas de seringueiros na região Arinos-Juruena, particularmente no Baixo Juruena, e
resultou na extinção dos Apiaká como tribo. Até 1910, uma parte deles retraiu-se para o
sudeste, na região do Médio Teles Pires. Os Kaiabi não são mencionados, registrando-se,
porém, muitos ataques de “Tapanhunas” que, numa ocasião, foram identificados como
Kayapó.
A segunda área de penetração de seringueiros foi o Alto Teles Pires com suas duas
ramificações, o Paranatinga e o rio Verde, com seus afluentes.
Em agosto de 1873, brasileiros conduzidos por Bakairi investigaram pela primeira
vez o Alto Paranatinga, em busca de borracha. Chegando próximo ao paralelo 14 de
latitude sul, sem contato hostil com os Kaiabi, eles voltaram a Cuiabá via rios Novo e
Arinos. A mesma rota foi seguida, no ano seguinte, por outras expedições, cujos membros
fundaram a primeira feitoria no rio Novo (2; Mendonça 1919:85-87). Em 1878 e 1884
foram enviadas duas expedições por uma companhia de Cuiabá, que se propusera à des-
coberta da “mina dos Martyrios”, das quais a primeira alcançou o Paranatinga (2; 1919:211),
enquanto a segunda não ultrapassou a região do Arinos e, na sua volta, foi atacada por
Kaiabi (1; 1919:99).
Em 1899, os seringueiros avançaram sistematicamente em direção norte, ao longo
das matas ribeirinhas do Alto Paranatinga e do Rio Verde. Os Kaiabi resistiram encarniça-
damente, mataram os seringueiros e levaram as cabeças degoladas para suas aldeias (Cojazzi
1932:75). Numa palestra sobre sua expedição ao Xingu, Hermann Meyer refere-se ao
mesmo ano:
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 47
“Durante a viagem recebemos uma notícia interessante: os índios Kayabi haviam
irrompido de suas florestas no Paranatinga, realizado tropelias em diversos po-
voados da Serra Trombador, matando vários moradores. Era a primeira vez que
esses índios se aventuravam na zona de ocupação brasileira. Provavelmente, os
diversos roubos dessas tribos até agora desconhecidas, que aprenderam a co-
nhecer instrumentos de ferro e outros produtos da civilização através dos conta-
tos com seringueiros, nelas despertou o desejo de mais, e é de temer que eles se
tornem um flagelo tão grande para toda a região como eram antigamente os
Borôro, se o Governo não proceder racionalmente à pacificação. Saindo de
Cuyabá segui seus rastros por vários dias pelas montanhas, mas não pude mais
encontrá-los; já se haviam retirado para suas matas” (1900:122-128).
Em 1900, o comerciante cuiabano José Benedito Gomes Pedroso empreendeu
uma expedição à região do Alto Teles Pires, destinada principalmente à pacificação dos
Kaiabi (2; Mendonça 1919:9s). Dela faziam parte 18 pessoas, entre elas o padre salesiano
italiano D. Bálzola, que se tornara conhecido como missionário Borôro e cujas notas auto-
biográficas foram publicadas em Turim, em 1932, por seu irmão de hábito D. Antonio
Cojazzi. Infelizmente, os dados etnográficos desta primeira fonte sobre os Kaiabi são bas-
tante superficiais. A três de julho de 1900, a expedição partiu do Alto Paranatinga (Porto
da Mulateira) em três barcos grandes e dois menores. A 13, encontraram o primeiro Kaiabi,
postado na margem esquerda:
“Batteva le mani e ci faceva cenno di ritornare indietro con segni che volevano
dire:
- Più in giù vi sono molti indi e vi attendono le loro frecce. Ritornati al posto di
partenza e presi diversi oggetti, li presentammo da lontano.
Allora si placò alquanto la sua ferocia. Appena entrati nella piccola barca per
portarglieli, egli indicò il luogo dove li dovevamo mettere e fuggí nel bosco. Deposti
gli oggetti e ritirata la barca, l´indio ritornò con un altro. Si gettarono con gioia sui
regali e poi fuggirono. Ci fermammo tutta la gionarta, aspettando che ritornasseró
con altri, ma non comparvero più” (p. 80s).
Essas cenas se repetiram ainda diversas vezes e quando os presentes rarearam,
também os índios começaram a aceitar menos amigavelmente a penetração dos estranhos,
de modo que a expedição, talvez até antes de ter alcançado a boca do rio Verde, fugiu
novamente rio acima com visível temor: “Continuamente pensávamo: - Da un momento
all´altro ci verranno sopra e faranno di noi un massacro” (p. 86). Mais de uma vez a tripu-
lação quis fazer uso das armas para defender-se das flechas “envenenadas” (p. 82 e 85)

48 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


que foram atiradas em sua direção como advertência. A respeito dos Kaiabi só ficamos
sabendo o seguinte: num lugar da margem esquerda encontraram um grupo de 150 índios,
entre os quais apenas duas mulheres (p. 84); a 23 de julho foi observada uma canoa com
sete Kaiabi, que tinham grandes arcos (p. 83), temiam um aparelho fotográfico (p. 84) e as
espingardas (p. 87). A 30 de julho viram os últimos índios que os haviam seguido por onze
dias e, a 7 de agosto, todos alcançavam, incólumes, o Porto da Mulateira (p. 88).
Em 1901, uma expedição semelhante teve um final infeliz:
“L´anno seguente, 1901, un altro esploratore con una comitiva volle tentare quel
viaggio. Assaliti dai Kayabi, si difesero con le carabine e ne massacrarono un
gran numero. Però gli esploratori a stento e dopo un mese di faticosissimo viaggio,
poterono mettersi in salvo” (p. 88s).
Tratava-se provavelmente da expedição de um tal Bodstein, que viajou a encargo
da firma Orlando, Bruno & Cia, de Rosário para a boca do rio Verde e que escreveu a
respeito um relatório para a Gazeta Official do Estado de Mato Grosso (Bodstein 1903).
Max Schmidt resume este artigo:
“Nos três últimos dias da viagem pelo rio Verde até sua embocadura no
Paranatinga são encontrados sinais da presença de índios. Inicialmente, um ran-
cho abandonado na margem do rio Branco. A 11 de agosto os vestígios de
índios se tornam mais freqüentes, vendo-se, à margem esquerda do rio, uma
roça dos Kayabí, assim como um porto para suas canoas. Vê-se a fumaça de
suas fogueiras; depois uma canoa de casca de jatobá, um pequeno rancho e
finalmente um homem e uma criança que logo fogem para a mata. O primeiro
encontro com os Kayabí dá-se no dia seguinte, 12 de agosto, quando cerca de
30 índios aparecem na margem do rio oferecendo ´coroas, brincos e ador-
nos de plumas de pássaros´, ou seja, enfeites de penas, a título de presentes.
Todos têm o corpo pintado de vermelho com urucu. A estes índios se reú-
nem outros, logo depois da entrada no Paranatinga, dos quais alguns vinham
subindo do Baixo Paranatinga e outros, ao contrário, desciam do alto curso do
rio” (1904:467).
“Infelizmente não foi possível ao Sr. Bodstein obter mais particularidades sobre a
tribo em questão, pois a harmonia inicial entre os membros da expedição e os
índios foi rompida logo depois do primeiro encontro, por um ataque por parte
desses últimos” (p. 468).
No mesmo ano, 1901, houve um desentendimento entre Kaiabi e alguns Bakairi,
que já se encontravam a serviço de um seringalista:

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 49


“En la fecha de mi estada en la estancia de Corrego Fundo los Kayabí habían
penetrado en los montes sobre el Rio Paranatinga hasta unas 6 leguas distante de
Corrego Fundo y saltado al cacique Antonio que allí busco con su gente caucho
para señor Jange Soares, el proprietário de la estancia. Pero Antonio los había
rechazado con su gente armada y matado en esa ocasión a un Kayabí.” (Schmidt
1947:21).
Em 1910, os Kaiabi mataram o gerente de um seringal, M. F. Valois Velho, e uma
subseqüente expedição punitiva matou muitos Kaiabi e raptou seus filhos (Nimuendajú
1948:307).
Em 1915, a maioria dos Bakairi trabalhava no rio Novo e no Paranatinga, no serin-
gal da firma Orlando e Irmãos, que se estendia por todo o rio Beijaflor e no Teles Pires até
o ribeirão Morocó, em cujas proximidades se encontrava o último barracão (Sousa 1916:37,
40 e 71). A primeira feitoria de seringueiros do Pará, no Baixo Teles Pires, encontrava-se
na margem direita, 1.100 metros abaixo da cachoeira Apiacá, pouco ao sul do paralelo 9
(p. 51s).
Os Kaiabi mantiveram sua atitude de resistência ativa pelo menos até 1927, o que
teve como conseqüência a sua dizimação, mas preservou a tribo como um todo fechado.
Como se disse acima, a política mundial estimulou novamente, em 1942, a exploração da
borracha na região amazônica.
Ao final do mesmo ano, Benedito Bruno Lemes Ferreira, de Cuiabá, estabeleceu
um seringal na Cachoeira do Pau, no Alto Arinos, e expandiu-o sistematicamente nos anos
seguintes. A reativação dessa atividade econômica abandonada na região mesmo antes de
1920, também provocou uma nova onda de contatos dos brasileiros com os nativos.
Em 1946, a exploração da borracha expandiu-se para a região do rio Claro (rio
Sumidouro). Em 1950 inicia-se a exploração do Arinos e, em 1951, alcançou-se pela
primeira vez a embocadura do rio dos Peixes, onde se deu, em 1953, o primeiro contato
pacífico com os Kaiabi que viviam nas cabeceiras deste rio.
Em 1955 foram fundadas diversas feitorias no rio dos Peixes até o Salto, com
aproximadamente 14 pessoas entre as quais também alguns garimpeiros (Dornstauder MSa).
No ano seguinte foi fundado um barracão junto ao Salto (Santa Maria), expandindo-se a
exploração no curso superior do rio dos Peixes sem, contudo, alcançar o território dos
Kaiabi. Em novembro de 1957, quatro Kaiabi já trabalhavam no seringal (Tolksdorf MS).
Depois da morte de Leme Ferreira, Marcelo Martins da Cruz assumiu o seringal
até que este foi abandonado – talvez, temporariamente – em 1966. A ele agradeço as
informações correspondentes. Que na sua administração não se chegasse a conflitos demora-
dos entre os Kaiabi do Rio dos Peixes e os seringueiros, deve-se à intervenção pessoal do
50 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
missionário jesuíta pe. João Evangelista Dornstauder SJ, cuja atuação será examinada mais
de perto no item 5.
A partir de 1955, um novo fator econômico entrou em cena. A Companhia Colo-
nizadora Noroeste Mato-Grossense Ltda. (Conomali), dirigida pelo industrial Guilherme
Mayer, do Rio Grande do Sul, começou, no início de 1955, os trabalhos de medição e
derrubada na margem direita do Médio Arinos. Na chamada Gleba Arinos surgiu a locali-
dade de Porto dos Gaúchos, onde chegaram as primeiras famílias do Rio Grande do Sul,
em abril de 1956. Eram típicas famílias de agricultores, em geral de descendência alemã,
que plantavam café, arroz, mandioca etc. e que introduziram na região plantações de serin-
gueiras que, em 1965, deram os primeiros rendimentos. A bem organizada colônia teve
rápido impulso nos dois primeiros anos e, em 1958, já contava com 677 habitantes (Cam-
pos 1960:206). No início dos anos 60 surgiram dificuldades e uma parte dos colonos foi
embora. Em fins de 1965, no entanto, a situação se estabilizara.
A 1º de maio de 1965, a colônia foi desmembrada da administração de Diamantino
e elevada a município independente de Porto dos Gaúchos, sendo Guilherme Mayer seu
primeiro prefeito. Seus limites são a oeste o Arinos, até a embocadura do Juruena, ao norte
o município de Aripuan㠖 mais ou menos 10º e 20’ de latitude sul –, a leste o divisor de
águas da Serra dos Caiabis e, ao sul, o rio Souza de Azevedo. Deste modo, o município
(10)
inclui o rio dos Peixes e o território habitado pelos Kaiabi.
Para os índios das redondezas, especialmente os Kaiabi e os “Beiços-de-Pau”,
esta primeira ocupação estável em seu território provocou grandes mudanças. Já em abril
de 1956, o primeiro grupo de Kaiabi chegou a pé à Gleba Arinos, sendo ali amigavelmente
recebido. Desde então verificaram-se outras visitas que nunca levaram a conflitos.
As coisas foram diferentes com os assim chamados “Beiços-de-Pau” (Grünberg
1966:147s) que, pela primeira vez em 1951, e especialmente desde 1955, atacaram
com flechas, de ambas as margens do Médio Arinos, os barcos dos seringueiros e da
Conomali que ali passavam, o que era respondido com armas de fogo. Só esporadicamen-
te verificavam-se ferimentos nas duas partes. De dezembro de 1958 a fevereiro de 1959,
um grupo dirigido pelo pe. João Dornstauder tentou inutilmente, com o apoio do órgão de
proteção aos índios e da Gleba Arinos, a pacificação desta tribo. Em 1963 – e, de acordo
com Pereira (1968:218) também em 1953 – foram distribuídos aos índios, aparentemente
com o conhecimento do SPI, arroz e açúcar envenenados. Em 1964, 1966 e 1967 falha-

10
Atualmente a terra indígena habitada pelos Kaiabi no Rio dos Peixes encontra-se
no município de Juara que foi desmembrado de Porto dos Gaúchos. (n. ed.)

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 51


ram outras tentativas dos missionários jesuítas – pe. Adalberto Holanda Pereira e pe. An-
tonio Iasi – de pacificar esta tribo (Dornstauder MSb, Iasi 1967 e Pereira 1968). A 30 de
setembro de 1967 o piloto do barco da Conomali, um Apiaká “civilizado”, trocou presen-
tes com os “Beiços-de-Pau”, estabelecendo o primeiro contato pacífico.
Na região do Alto Teles Pires a exploração da borracha expandira-se até os anos
20, pois Max Schmidt escreve em seu relatório de 1927:
“En esa fecha los ´siringueros´ o caucheros ya habían penetrado, varias veces en
el territorio de los Kayabí y los índios toleraban estas penetraciones hasta un
cierto punto, durante la estación seca, sin cometer hostilidades. Pero, todavía
antes del tiempo de las lluvias, acostumbraban sembrar flechas en el camino,
para intimar el salir de su territorio y los siringueros solían respetar esta intimación
para evitar las hostilidades de los Kayabí las que habían de prover en el caso
contrário” (1942:7). “... partimos del camino principal, frecuentado en tiempos
anteriores por los siringueros que iban a los gomales al Rio Paranatinga pero, en
esta fecha, poco frecuentado, y proseguimos el viaje en un camino todavía más
estrecho el que más bien parecía a una senda de índios pero era también transi-
tado, antes, por los siringueros.” (1942:10s).
Em 1943, estabeleceram-se novamente dez seringais na margem direita do alto
curso do Teles Pires que se estendiam até 13º de latitude sul (Veloso 1952:380). Em 1951,
todos estes arrendamentos do Estado estavam em mãos da Empresa Rio Novo Ltda.
(Erion) dos irmãos Mário e Renato Spinelli, que desde 1946 é a maior produtora de bor-
racha nativa do Mato Grosso. Em julho de 1951, a geógrafa brasileira Marília Gosling
Veloso visitou esta firma em plena expansão e nos forneceu uma imagem precisa da orga-
nização da exploração da borracha no curso superior do Teles Pires (1952:377-406). Esta
estendia-se desde o rio Novo até o Paranatinga, alcançava ao norte o paralelo 12 e come-
çava a expandir-se pelo rio Verde. Cerca de 180 feitorias e seis barracões empregavam
248 seringueiros e demais mão de obra de apoio, com apenas 45 mulheres e 29 crianças
(p. 385 e 389). Entre as 322 pessoas encontravam-se certamente alguns Kaiabi, sobre os
quais, no entanto, não possuímos dados.
Em fins de 1953, foi fundada uma feitoria no Médio Teles Pires, 373 km abaixo do
Posto José Bezerra do SPI e, portanto, já no centro da região ocupada pelos Kaiabi junto
à aldeia Purutaí (Dornstauder MSa).
Daí em diante já não era mais possível aos Kaiabi um recuo maior rio abaixo,
restando-lhes duas alternativas: a integração passiva no seringal ou uma resistência ativa e
fuga para um novo território. Devido a certas circunstâncias, esta segunda solução foi inclu-
sive favorecida por uma instituição brasileira (ver p. 63).
52 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
Na região do Teles Pires a expansão brasileira das últimas décadas desenvolveu-se
na sua forma mais violenta, não podendo ser em nada atenuada pelo Serviço de Proteção
aos Índios que ali atua desde 1922. Perdura até a suspeita de que este órgão participou
ativamente na expulsão dos Kaiabi e em sua integração forçada nos seringais (Las-Casas
1964:11-4).
4. A Comissão Rondon e o Serviço de Proteção aos Índios
Pelo Tratado de La Paz, a região do Acre, que era da Bolívia até 1899, passou em
1903 para o Brasil que, além de pagar uma indenização financeira, responsabilizou-se pela
construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Para ligar esta região, geograficamente
muito exposta, situada no Alto Juruá e Purus, com o governo central no Rio de Janeiro, o
presidente da época, Afonso Moreira Pena, encarregou um oficial de serviço técnico, qua-
lificado por seus trabalhos no sul de Mato Grosso, o major Cândido Mariano da Silva
Rondon, de executar o projeto de construção de uma linha telegráfica entre Santo Antonio
do Madeira e Cuiabá. Esta “Comissão de Linhas Telegráphicas Estratégicas de Mato Grosso
ao Amazonas”, chamada “Comissão Rondon” devido ao seu chefe, realizou entre 1907 e
1915 todas as tarefas de que fora incumbida e investigou, através de numerosas expedi-
ções, o noroeste de Mato Grosso e o Território de Rondônia (antes de 1956, Guaporé),
desmembrado daquele Estado desde 1942, que leva o nome de seu desbravador. A Co-
missão publicou cerca de 100 relatórios sobre Geografia, Etnografia, Zoologia e Botânica.
Desta empresa, que chamou a atenção de toda a população brasileira, resultou também
uma nova atitude face aos indígenas.
A 20 de julho de 1910 foi criado, por decreto, o Serviço de Proteção aos Índios
(SPI), que Rondon dirigiu desde o começo. Numa época em que em muitas partes do
Brasil, facilmente acessíveis em um ou dois dias de viagem das principais cidades, guer-
ras sangrentas com índios interrompiam as atividades econômicas e tribos inteiras eram
exterminadas, este oficial lutava por uma atitude humanística e protecionista em relação aos
“selvagens” (Ribeiro 1962:7ss). Na ordem do dia de 20/07/1908 que Rondon dirigiu aos
127 homens que iniciavam a marcha através da região habitada pelos Nambikwára, encon-
tra-se o seguinte: se alguém fosse ferido por estes habitantes do Juruena, não haveria represá-
lia contra eles que defendiam com pleno direito sua terra e suas famílias. “Sejamos fortes
contra os nossos sentimentos de vingança e tenhamos abnegação bastante para resistir à
tentação do orgulho, que é a perdição da humanidade” (Anônimo 1916:118s). Sua divisa,
que foi adotada pelo Serviço de Proteção aos Índios, soava: “Morrer se preciso for, matar,
nunca”. Para alguns de seus colaboradores, esta não foi uma simples frase (Baldus 1958:293).
Outros princípios eram o reconhecimento das tribos indígenas como povos independentes, a

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 53


garantia da terra por eles habitada (Artigo 216 da Constituição) e a responsabilidade direta
do Estado pelos índios.
Nas duas primeiras décadas após a criação do SPI, Rondon dispunha da experi-
mentada equipe de construção da linha telegráfica, cujo idealismo muitas vezes compensou
a freqüente falta de recursos financeiros. Os êxitos convincentes na pacificação de dezenas
de tribos indígenas lhe deram suficiente respaldo político para se opor a autoridades locais
e, em 1930, funcionavam 97 postos em quase todos os Estados brasileiros (Ribeiro
1962:31s).
A Constituição e as leis de proteção aos índios foram elaboradas nas regiões litorâ-
neas e, na medida em que o SPI se esforçava por sua concretização na gigantesca hinterlândia,
esta instituição foi se tornando politicamente incômoda, pois a empatia romântica do habi-
tante da cidade pelo índio não contara com o alcance da política protecionista. Assim, a
situação do SPI tornou-se dependente do prestígio do então marechal Rondon e curtos
períodos de intensa atividade eram seguidos por longos períodos de estagnação. Subordi-
nado inicialmente ao Ministério da Guerra, o Serviço passou para o Ministério do Traba-
lho, voltou ao primeiro, foi subordinado em 1940 ao Ministério da Agricultura e, em 1957,
declarado “órgão de interesse militar”, cuja direção podia ser transferida para oficiais da
ativa. A baixa remuneração costumeira dos funcionários e a crescente burocratização difi-
cultaram todo o trabalho dentro do Serviço; de 1950 a 1957, etnólogos foram postos pela
primeira vez na chefia dos setores mais importantes e, sob a direção de José Maria da
Gama Malcher, desenvolveu-se uma atividade científicamente orientada e muito promisso-
ra. Nestes anos, parecia que o SPI se tornaria, pela segunda vez neste século, o modelo
para um serviço de proteção eficaz ao indígena. Em 1958, morreu Rondon e daí em diante
a direção foi confiada exclusivamente a militares, com uma interrupção de seis meses no
ano de 1964, em que o dr. Noel Nutels, médico do SPI, ocupou a direção. Com sua
demissão, o governo militar afastou, em 1964, o último acadêmico do SPI. No final de
1967 foram denunciadas atividades criminosas do SPI, o que conduziu à sua dissolução.Uma
comissão de inquérito do Ministério do Interior constatou, em 1968, que houve numerosos
crimes contra os índios sob a direção de Moacir Ribeiro Coelho (1962/63) e especialmente sob
a de Luís Vinhas Neves (1964/66), crimes que iam desde desvios de incontáveis verbas
oficiais até a participação em assassinatos. Dos quase 700 empregados do SPI, 134 foram
acusados e mais de 200 exonerados, mas até 1969 ninguém sofrera condenação.
Em 1962 Baldus mostrou, numa comunicação sobre os métodos e resultados da
proteção ao indígena do Brasil perante o 35º Congresso de Americanistas no México, o
quanto a evolução do SPI após a morte de Rondon contradizia as intenções originais deste
(Baldus 1962:29ss).

54 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


“A despeito dos esforços do Serviço de Proteção aos Índios e das missões
religiosas no sentido de proteger o índio contra os espoliadores e chacinadores
há, ainda, no Brasil, bastantes tribos isoladas, indefesas e ameaçadas de extermínio...
Estão eles, agora, encurralados numa selva na qual avançam, de todos os lados,
os colonos, sem que o Serviço de Proteção aos Índios entre em ação” (p. 37).
Baseado na sua amarga experiência entre os Tapirapé e Karajá, Baldus já registra-
ra o mal em 1948 e propusera uma reforma:
“Todos os esforços do Serviço de Proteção aos Índios estavam dirigidos, até
agora, unilateral e exclusivamente para aproximar da nossa cultura as tribos do
Brasil, pacificando as hostis e acaboclando as outras” (1948:162).
“Quase todos eles parecem-se com cirurgiões que nunca ouviram falar em ana-
tomia e nunca tiveram bisturi na mão. Ignoram corpo e alma de seus ´protegidos´
por não serem médicos nem etnólogos. Não tendo aprendido a vencer os pró-
prios preconceitos etnocêntricos, fecham-se num complexo de superioridade que,
no melhor dos casos, os deixa considerar os índios, à moda dos missionários,
como ´crianças´” (p. 167s).
“A finalidade principal do Serviço de Proteção aos Índios deve ser, porém, a
defesa contra todos os agressores que vêm de fora, sejam eles brancos ou tribos
vizinhas. Entre os brancos cuja aproximação tem de ser impedida figuram não só
os ladrões de terra, mascates, turistas e caçadores, mas também os jornalistas e
cinematografistas do tipo daqueles que retratam as mulheres completamente despi-
das numa tribo cuja cultura exige que elas cubram certas partes do corpo” (p. 167).
Deve-se constatar, entretanto, que o SPI foi a instituição de proteção ao índio mais
importante até a década de 60 e que, sem sua intervenção, a maior parte das tribos por nós
conhecidas e ainda existentes teriam sido dizimadas pelo extermínio ou integração forçada
no proletariado rural.
Na região dos afluentes do Tapajós, Rondon organizou quatro expedições, das
quais a primeira foi empreendida e comandada pelo capitão Manoel Theophilo Costa Pi-
nheiro entre dezembro de 1911 e março de 1912. O médico dr. Murillo de Campos e o
botânico Frederico Hoehne o acompanharam. Apenas no Baixo Juruena, na embocadura
do Teles Pires, depararam com Apiaká (Pinheiro apud Rondon 1915:75-77 e 1916:217-
219) e também com Munduruku. Das duas nações, Hoehne (apud Rondon 1915:175-
177) e Campos (1936:182-202) recolheram respectivamente um vocabulário.
De outubro de 1914 a fevereiro de 1915, um outro grupo, sob o comando do
tenente Júlio Caetano Horta Barbosa, realizou uma expedição para a medição do Arinos.

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 55


Dela participaram o médico dr. João Meira e o botânico amador João Geraldo Kuhlmann
(Barbosa apud Rondon 1916:236-246). Notaram rastros de índios desde as cabecei-
ras até a embocadura do Marapó (São Cosme), possivelmente dos Bakairi (p. 240). Na
margem esquerda do Médio Arinos e na região da embocadura do rio dos Peixes não
encontraram sinais de outros índios.
No mesmo ano também foi explorada e mensurada a região do rio do Sangue, o
afluente mais importante do Alto Juruena, através de uma expedição dirigida pelo tenente
Vicente de Paulo Vasconcellos (Rondon 1916:223-234).
A última das expedições empreendidas pela Comissão Rondon para a exploração
do Alto Tapajós deveria retomar a tentativa de levantamento topográfico do Teles Pires,
fracassada em 1889.
Em fevereiro de 1915, um grupo partiu de Tapirapoã, junto à linha telegráfica. Era
constituído por seis homens, o médico dr. Alberto Moore, o zoólogo Antenor Pires e seu
comandante, o tenente Antonio Pyrineus de Sousa. A este devemos um relatório minucioso
(Sousa 1916) sobre a expedição, com os primeiros dados etnográficos relativos aos Kaiabi,
que vão além de simples referências. Como todos os oficiais da Comissão Rondon, Pyrineus
de Sousa fora treinado para o relacionamento com os índios e era, além disso, um extraor-
dinário observador, de tal modo que sua descrição representou, até o presente trabalho, a
principal fonte etnográfica sobre os Kaiabi. Por isso tratarei das referências específicas
desta fonte na parte etnográfica e aqui apenas esboçarei o transcurso da viagem.
A 8 de maio de 1915, os participantes da expedição encontraram, a mais ou menos
20 km acima da embocadura do rio Verde no Teles Pires, um barco de casca com quatro
homens Kaiabi que subiam o rio. Eles se assustaram e fugiram para a margem mais próxi-
ma, enquanto gritavam: “caiabí, apinacó, apinin, muié” etc. Sabiamente, a expedição
apenas desembarcou um bom trecho abaixo, na mesma margem, atraindo com sinais e
chamados a atenção dos Kaiabi, que logo a seguiram de canoa gritando, sempre a uma
distância segura, “Caiabí apinacó? Caiabí apinin? Akilí ” (p. 73s). Dessas palavras, akilí
é certamente Bakairi; caiabi, apinacó e apinin, provavelmente, também o são. Só muié
poderia ser Kaiabi (“eu pego”): isto conduziu à errônea ordenação lingüística dos Kaiabi
junto aos Karib, como foi mostrado no capítulo I/4.
Os expedicionários mostraram machados, facões e contas de vidro aos Kaiabi e
três deles aceitaram os presentes com muito receio, enquanto o quarto, escondido no
mato, garantia a volta com arco e flecha. Deu-se assim o primeiro contato e, à noite, os
participantes da expedição postaram uma sentinela a fim de se prevenir de surpresas. Esta
medida de cautela foi mantida durante todo o tempo em que viajaram pela região dos
Kaiabi.
56 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
A 9 de maio, eles passaram a embocadura do rio Verde, encontrando outros índios
e numerosos sinais de um denso povoamento. No dia seguinte, um pouco abaixo, aguarda-
va-os, na margem do rio, uma turma de mais de 100 homens, mulheres e crianças que
ostentavam ornamentos festivos e prazerosamente trocaram presentes. Pyrineus de Sousa
lamentou não ter levado machados e facões em número suficiente. Nos dias seguintes, esta
circunstância levou a situações perigosas, já que a 12 de maio, num encontro com aproxi-
madamente 200 índios, não havia mais o que presentear além de contas. Na tarde desse
mesmo dia, encontraram-se com um outro grupo, igualmente numeroso, na margem direita.
O ambiente piorava a olhos vistos, pois os índios suspeitavam que ainda existissem presen-
tes não destinados a eles pelos estranhos. A 13 de maio deu-se a primeira advertência,
através de um índio velho pintado de preto, enfeitado com penas, que dançou e cantou à
vista dos brasileiros. Ao mesmo tempo, foram atiradas diversas flechas sobre os barcos da
expedição, sem que houvesse feridos. Isso era uma declaração formal de guerra e assim foi
interpretada pelo experimentado oficial. No dia 14, foram perseguidos por 17 barcos Kaiabi
e falharam as tentativas de afugentá-los com dinamite. Na madrugada do dia 15, os Kaiabi
assaltaram o acampamento que a expedição abandonara silenciosamente, antes da meia
noite. Nenhum dos nove brasileiros teria escapado com vida se o comandante não tivesse
interpretado tão corretamente a atitude dos índios. A fuga teve êxito e, na noite de 17 a 18 de
maio, notaram pela última vez os Kaiabi, que passaram remando à procura da expedição.
“Foi a última vez que vimos Caiabi. É uma tribo bastante numerosa, forte, sadia,
dispersa por diferentes agrupamentos. Tivéssemos bastante apinacó e apinin,
não seríamos hostilizados” (p. 91).
Esta é a última referência aos Kaiabi deste autor, que realmente correu perigo de
vida, mas não viu os índios como inimigos. Creio que no caso deste oficial da Comissão
Rondon pode-se falar de ética profissional.
Em 1920 o SPI fundou, através da 6ª Inspetoria Regional em Cuiabá, o Posto
Indígena Simões Lopes, que inicialmente se localizava entre o Paranatinga e o Colisevo.
Em 1924 foi transferido para a margem direita do Alto Paranatinga e destinado ao atendi-
mento dos Bakairi (Galvão/Simões 1964:132 e Schmidt 1947:26).
Em 1922, foi fundado um Posto com o nome de Pedro Dantas, no rio Verde,
destinado à pacificação dos Kaiabi. Dois anos depois, era totalmente destruído por ataque
maciço dos Kaiabi, no qual dois funcionários morreram. Em meados de 1925, este Posto
foi novamente estabelecido, mais ao sul, na margem esquerda do Teles Pires, a cerca de
180 km acima da embocadura do rio Verde (Simões 1963:81 e Schmidt 1929:89). Ali
chegou, em 1926, o primeiro grupo de Kaiabi. No início de 1927 mataram mais um em-
pregado do Posto.
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 57
Em 1927, Max Schmidt viajou com uma tropa do SPI para o Posto Pedro Dantas
onde ficou de 19 de março a 16 de maio. Como primeiro etnólogo, tentou estudar os
Kaiabi, mas não conseguiu chegar a resultados satisfatórios devido a diversas circunstânci-
as infelizes. Imediatamente após a expedição, publicou em língua alemã os dados então
colhidos (1929:88-96) e, mais tarde, mais minuciosamente, em espanhol (1942). A atitude
extremamente agressiva dos Kaiabi, e as crises cada vez mais fortes de malária, impediram
um trabalho intensivo.
“No período seguinte minha doença assumiu formas cada vez mais sérias, de
modo que em alguns dias eu não nutria mais a esperança de voltar a ter força
suficiente para iniciar a difícil viagem de volta” (1929:92).
Por motivos de segurança, a visita dos índios ao Posto era muito limitada:
“Entre outras, vigorava a norma de que os empregados só podiam afastar-se das
proximidades imediatas do Posto em grupos de dois e, fora dele, sempre arma-
dos de espingardas.
Para evitar um eventual ataque, os índios só podiam aproximar-se desarmados
do Posto, pela margem oposta do rio, sendo então transportados em grandes
canoas por empregados armados.
Quando da aproximação dos índios, logo dava-se sinais para reunir todos os
empregados, mesmo os que se encontravam na roça do outro lado do rio, perto
da sede.
Justamente um pouco antes de nossa chegada, os índios haviam se mostrado
descontentes com o pequeno número, a seu ver, de machados e facões com que
tinham sido presenteados e, ao contrário do que acontecera antes, haviam se
mantido longe do Posto por um período relativamente longo” (p. 89).
Nos dois meses, Schmidt só teve contato com os Kaiabi em oito dias e mesmo
assim apenas no Posto ou imediações, junto ao pessoal armado do SPI.
“Diante da enorme desconfiança dos índios, que aos poucos se transformava em
mau humor, não se podia naturalmente fazer nada com eles durante essas visitas,
em especial porque demonstravam absoluta recusa em revelar qualquer coisa de
sua língua...” (p. 89s).
Tanto mais assombroso é o fato de Max Schmidt ter registrado 18 vocábulos no
seu primeiro artigo (1929:95), todos corretos, e que possibilitaram a classificação dos
Kaiabi como Tupi. No seu trabalho posterior, acrescentou 13 vocábulos colhidos por ele
mesmo, além de 75 palavras e frases que provinham do encarregado do Posto, entre as
quais se notam, entretanto, numerosos equívocos e confusões (1942:31-34). A atitude de
58 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
Schmidt para com os Kaiabi parece ter sido eivada de desconfiança, pois, a respeito de um
jovem “cacique” que o visitava freqüentemente, ele escreve:
“... este cacique miraba, no sé la causa, a matarme de cualquer manera. Un dia él
mandó a su hermano a pedirme a visitarle en lo rozado del puesto. Naturalmente no
accepté la amable invitación porque yá estuve prevenido. Otra vez, cuando yo
tenía un fuerte aceso de paludismo e estuve acostado, solo, por dentro del rancho
que estaba situado bastante lejos de los demás ranchos, un empleado del puesto
encontró a este cacique rodando mi casa pero impedióle entrar en ésta porque
conocía suas intenciones malas” (1942:13).
Algumas fotografias retratam bem a aparência e o vestuário dos Kaiabi (1929:fig 2-
4 e 1942: fig 2-15). Schmidt faz uma observação interessante sobre a visita de supostos
Apiaká:
“Pude fotografar ainda uma horda de índios que chegara por essa época ao
Posto e na qual também se encontravam aparentemente índios Apiaká bravos.
Esses índios Apiaká, difíceis de distinguir dos Kayabi dado o seu exterior seme-
lhante, aparecem com freqüência no Posto junto com os Kayabi, em relação aos
quais parecem exercer uma função de senhores. Atribui-se lhes em geral uma
influência má sobre os Kayabi” (1929:92).
“Los empleados del puesto me dijeron que, muchas veces, llegasen, también,
con los Kayabís, Apiakás, pero como los índios no acusaban nada en lo que
respectaba a su origen étnico y estos Apiakás mostraban un porte completamen-
te igual a aquel de los Kayabís era difícil diferenciárles de éstos, de modo que no
podía constatar si estuviesen talvez entre éstos algunos individuos Apiakás. Por lo
común se imputa a los Apiakás una influencia mala sobre los Kayabís” (1942:12).
Esta é a única notícia a respeito dos Apiaká no Alto Teles Pires, mas combina com
as informações dadas pelos Kaiabi, que obtive em 1966 no Rio dos Peixes. A partida de
Schmidt, gravemente enfermo, fora fixada para o dia 12 de maio, mas teve de ser adiada.
Os Kaiabi tinham roubado os três barcos do Posto no dia 11, “... a fim de pilhar com toda
a calma as roças prontas para a colheita...” (1929:93).
Assim, Schmidt só pode partir a 16 de maio, chegando a Cuiabá a 16 de junho. As
notícias de Schmidt sobre a cultura material dos Kaiabi são críticas e precisas; serão opor-
tunamente mencionadas nos próximos capítulos. Lamentavelmente, ele não pode estudar
outros aspectos da cultura e assim os Kaiabi permaneceram, até o presente, uma tribo
quase desconhecida do ponto de vista etnográfico, já que nenhum etnólogo permaneceu
naquele seu território.
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 59
Em junho do mesmo ano (1927), uma tropa do Posto foi surpreendida e desbara-
tada pelos Kaiabi: quatro brasileiros morreram e suas cabeças foram levadas para as aldei-
as (Schmidt 1942:10). Provavelmente devido a este fato, o Posto foi suprimido, sendo
restabelecido em 1929 num lugar mais favorável, 10 km mais ao sul, com o nome de José
Bezerra. De uma carta de 20 de julho de 1943 do encarregado deste Posto à direção no
Rio de Janeiro, extraímos o seguinte:
“Acaba de regressar a este Posto um grupo de “Cajabís” que aqui residiu de
1929 a 1934, trazendo em sua companhia um menor branco, civilizado, de 12
anos presumíveis, que fora por eles aprisionado no Baixo Tapajós após uma luta
com os civilizados e da qual saíram vitoriosos. Fiquei com o menor sob os cuida-
dos desta administração até ulterior decisão dessa diretoria” (Ribeiro 1943:26).
Tratava-se, pois, de Kaiabi que avançaram para o norte até o Tapajós e dos quais
Nimuendajú, que tinha acesso aos arquivos da 2ª Inspetoria Regional em Belém do Pará,
relata:
“After 1936, the Cayabí, at first under the name of Makiri, began to appear
peaceably at the mouth of the São Manoel-Paranatinga River. The missionary,
Father Albert Kruse, took a short vocabulary from those who stopped at the
Mundurucu mission of Cururu” (1948:308).
Este “Vocabulário da língua Makiri” data de 1936 e se encontrava com Kruse em
Santarém como manuscrito inédito (Loukotka 1944:46). Um outro vocabulário, não data-
do, destes “Makiri” foi publicado em 1936 (Lyra apud Loukotka 1964:184). Procede de
uma brasileira que esteve no Posto do SPI Teles Pires, fundado em 1941, e destinado à
pacificação dos Kaiabi que se haviam mudado para o sul. Este Posto estava localizado na
margem direita do Baixo Teles Pires, a 8 graus e 55 minutos de latitude sul. Das 37 palavras
do vocabulário, consegui identificar 35 com palavras do mesmo significado dos Kaiabi do
Rio dos Peixes. A respeito da fundação do Posto Teles Pires (mais tarde denominado
Posto Caiabi), um etnólogo do Museu Goeldi relata o seguinte:
“Com o recesso sofrido pelo SPI após 1930, alguns grupos Kayabi foram des-
cendo o Teles Pires, localizando-se um desses bandos à margem esquerda desse
rio, um pouco acima da cachoeira Sete Quedas. Dali partiam para atacar barra-
cões e seringais, determinando reclamações e farto noticiário em Belém e no Rio.
Em 1941, reorganizado o SPI, foi mandado fundar o Posto Kayabí, à margem
direita do Teles Pires, um pouco abaixo da cachoeira São José. Ainda naquele
ano começaram os Kayabi a freqüentar o Posto e, em 1942, um grupo desses
índios se transferia para sua proximidade” (Schmidt 1936:81).

60 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Nimuendajú fornece números mais exatos a respeito destes índios:
“According to the reports of the Arquivos da Inspetoria de Indios of Pará, 90
Indians appeared at the post in 1941, and 42 in 1942 and settled down
somewhat above the post. Meanwhile, the mortality among these newcomers
was very great” (1948:308).
Existe um relatório não publicado, de Luiz C. Tenan, datado do ano de 1943 (1943
MS), que está guardado no arquivo do SPI do Pará e de cujo conteúdo apenas encontra-
mos estas duas referências em Nimuendajú:
“Two wide parallel strips tattooed with genipa at the mouth level for men, and a
single strip on the cheek with vertical lines around the mouth for women, is perhaps
a tribal characteristic, according to L. Tenan... According to L. Tenan, they
decapitated a slain enemy and cooked the head, eating the meat and making a
trophy and musical instruments of the skull. In their attacks against civilized people,
they sometimes took children captives” (1948:309).
Estes dados, apenas parcialmente corretos, indicam um contato muito superficial
de Tenan com os Kaiabi do Baixo Teles Pires.
Em 1953 e 1954 este Posto ainda existia e era freqüentado exclusivamente por
Kaiabi (Brasil 1953:119 e 1955:12).
Em 1959/60 um jovem etnólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi percorreu a
área do Alto Tapajós, escrevendo o seguinte sobre a situação nesta região:
“Os Kayabi, que se encontram hoje já bastante reduzidos, estão principalmente
concentrados num Posto indígena do SPI no rio S. Manuel, embora existam
alguns integrados no seringal” (Las-Casas 1964:7).
O mesmo autor fornece um quadro exato do total alheamento do Posto em relação
a suas finalidades, apontando também os motivos da desorganização:
“Era flagrante o processo de reformulação dos objetivos do SPI por parte de
seus agentes locais. Isto parecia decorrer de duas razões básicas: total ausência
de recursos para uma correta aplicação da política oficial da instituição; má pre-
paração do pessoal recrutado para servir nos postos e sua deficiente remunera-
ção” (p. 12).
“Passavam a tratar o índio não como um protegido e sim como um aviado” (p. 13).
“Diversos informantes mencionaram ter havido desde um caso de índios amarra-
dos para não saírem do Posto, até um assassinato cometido por um encarregado
do Posto. Em decorrência desta situação, freqüentemente os índios preferem mu-

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 61


dar de “patrão”, isto é, passar do Posto para o seringal e, quando fora do Posto,
fogem à simples aproximação de agentes do SPI. Dentro do Posto convivem
índios provenientes de diferentes grupos, às vezes rivais, o que contribui para
diminuir a eficiência do Posto como emprêsa e como agência de unificação de
seus “fregueses”. Em face de desorganização, um Posto “fornece” seus funcio-
nários ao seringal que os recruta, passando assim o SPI a funcionar como
preparador de pessoal para o seringalista” (p. 14).
Nessas circunstâncias, os Kaiabi restantes preferiram migrar, em fins de 1966, para
o Parque Nacional do Xingu.
Na área de influência do Posto José Bezerra a situação dos Kaiabi do Alto Teles
Pires era semelhante. O já citado pe. Dornstauder SJ visitou-o em meados de 1954 e, a
respeito dos 54 Kaiabi ali presentes, relatou:
“Há pouco tempo, três que tinham vindo em visita do Rio dos Peixes morreram
de pneumonia e de uma infecção intestinal. Ao Posto falta tudo que é necessário,
sobretudo medicamentos. Os índios têm de dormir no chão. O kaiabi ´Capitão
Sabino´ (Ya´wat) queixa-se de que jamais alguém do SPI visitou os índios em
sua aldeia, contando que a primeira maloca se encontra a quase 400 km rio
abaixo” (Dornstauder MSb).
O mesmo índio relatou-me, a 29 de outubro de 1966, no Posto Leonardo, PNX,
suas experiências com o SPI:
“Eu trabalhava em Rosário e fui depois para o SPI em Cuiabá, onde também
trabalhava Ipepuri (um outro Kayabi). Mas lá eles queriam que fosse para o
Posto José Bezerra e eu fui. Mas o pessoal de lá brigava muito comigo e queria
mandar-me de castigo ao ´Posto de punição´ no São Lourenço. Então eu desci
o Teles Pires com minha mulher...”
No início de 1956, Dornstauder novamente demorou-se por mais de uma semana
no Posto, e informou sobre uma grave gripe epidêmica que sacrificou diversos índios (MSb).
Em 1956, o Posto José Bezerra foi extinto oficialmente e os poucos Kaiabi que
nele permaneciam foram transferidos para o Posto Simões Lopes, na margem direita do
Alto Teles Pires.

5. A Fundação Brasil Central e o Parque Nacional do Xingu


A 4 de outubro de 1943, foi criada a Fundação Brasil Central (FBC) que tinha por
objetivo a colonização planejada da região dos cursos superiores do Araguaia, Xingu e
Tapajós. No mesmo ano, pôs-se em marcha, sob a divisa “desbravamento-exploração-

62 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


aproveitamento”, a Expedição Roncador-Xingu. Esta “frente avançada da civilização” de-
via percorrer pela primeira vez o Brasil Central de sudeste a noroeste – seguindo mais ou
menos a linha Rio de Janeiro-Manaus – e assim criar as bases para um planejamento mais
exato. A expedição começou em Aragarças, em 1943. Em fevereiro de 1944 fundou
Chavantina, no rio das Mortes, e penetrou na região do alto Xingu até março de 1947,
onde construiu, no Jacaré, um grande campo de pouso para a Força Aérea Brasileira
(FAB). Os experimentados sertanistas Leonardo, Orlando e Cláudio Villas Bôas assumi-
ram a direção da expedição no norte de Mato Grosso (Sick 1957a:71-74). Foram criadas
diversas estações e postos, entre os quais também Diauarum, e a facilidade de acesso por
via aérea pela FAB e FBC trouxe uma série de cientistas (especialmente do Museu Naci-
onal do Rio de Janeiro), empresas cinematográficas e jornalistas a esta região, de tal modo
que já em 1952 apresentava-se ao Congresso um anteprojeto para a criação de uma
reserva para os indígenas (Galvão/Simões 1964:134).
A expedição avançou do Xingu na direção do Teles Pires, alcançando-o via
Manitsaua-Missu em outubro de 1949 (Sick 1957:74). Ao mesmo tempo, um enge-
nheiro da FBC, Frederico Hoepken, reconheceu por avião a região entre os paralelos
8 e 12, à procura das pistas de pouso (Soares 1953:10). A mais ou menos 12 km terra
adentro da margem direita do Teles Pires, na proximidade da embocadura do Peixoto de
Azevedo, foi descoberto um lugar de campo aberto, onde se construiu uma pista utilizada
até setembro de 1950.
Na mesma época encontrou-se outro sítio limpo, cerca de 100 km a sudoeste,
nas cabeceiras do Coatá, um afluente do rio dos Peixes, e nele foi preparado um
campo de pouso provisório para assistência à expedição. Parece que ele só foi
aproveitado algumas vezes e logo abandonado. Por isso, não se chegou a um contato
direto com o grupo Kaiabi, situado aproximadamente 80 km para o sul. Este campo foi
limpo pela segunda vez no começo de setembro de 1966 por pára-quedistas da Para-
Sar, divisão especializada da FAB, e em cooperação com o PNX iniciou-se a “Opera-
ção Cayabí”, que objetivou a transferência do principal grupo de Kaiabi do Rio dos Pei-
xes para o Parque Nacional do Xingu (Azevedo 1966b:41).
No Teles Pires, em 1949, três Kaiabi inicialmente se juntaram à expedição,
sobre os quais Helmut Sick, um zoólogo da expedição, escreve o seguinte:
“Os homens Kaiabim são tatuados com duas linhas que correm do canto da
boca para a orelha e, além disso, com uma linha que contorna a boca. A
cultura material desses nativos está num nível bastante baixo. Não fazem redes
elaboradas como seus vizinhos do Xingu, mas no máximo de raízes amarradas;

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 63


deitam-se em geral sobre giraus rústicos ou simplesmente no chão. Os Kaiabim
possuem um senso de pudor muito pronunciado e nunca aparecem sem alguns
trapos. Para ocasiões especiais confeccionam grandes aventais de penas de
mutum. Nossos três Kaiabim, entre eles o cacique Avassiú, vestiam-se como os
trabalhadores brasileiros da expedição. Além desses nossos constantes compa-
nheiros, mal tivemos contato com outros representantes dos Kaiabim. Suas al-
deias ficavam muito distantes, a oeste” (1957b:192).
Tratava-se, portanto, de índios que já haviam trabalhado no seringal e, por isso,
foram julgados erroneamente e de forma depreciativa. Mas os irmãos Villas Bôas também
tinham notícias de um grupo Kaiabi “bravo” no Rio dos Peixes (Tatuí):
“... além dos Kayabi já pacificados que ali trabalhavam, era também o acampa-
mento visitado, segundo informa Orlando Villas-Bôas, por Kayabi bravos deno-
minados por seus irmãos ‘mansos’– Tatuê” (Simões 1963:81).
Alguns Kaiabi do Teles Pires, entre eles Ipepuri, encontraram por parte dos irmãos
Villas Bôas uma compreensão inesperada para sua situação opressiva e aceitaram a ajuda
oferecida e, em parte, também o convite para mudar para o Xingu. Em 1950 já se falava de
um Kaiabi participando da pacificação dos Txukaramãi no Alto Xingu, empreendida com
êxito pelos Villas Bôas (Brasil 1955:83). Em 1954 adoeceram, na mesma região, quinze
Kaiabi numa epidemia de sarampo. Dois morreram (Brasil 1955:139). Em 1955 chegaram
outros 40 Kaiabi do Teles Pires, que se estabeleceram na margem esquerda do rio Arraias,
próximo da sua embocadura no Manitsauá-Missu (Simões 1963:81). Em 1961/62, a
maior parte dos índios do Alto e Médio Teles Pires já se encontrava no Alto Xingu, onde
os Kaiabi, graças aos conhecimentos de português e certa familiaridade com a civilização
brasileira, tornavam-se indispensáveis na administração do Parque Nacional do Xingu,
fundado em 1961. Esta reserva indígena, com uma extensão de 22 mil km2, foi criada
“... entre outras atribuições, com a finalidade de assegurar às tribos xinguanas a posse da
terra que ocupam, garantindo-lhes, em princípio, assistência médica, social e educacional,
indispensáveis para assegurar sua sobrevivência, ao mesmo tempo que a preservação de
seus padrões culturais” (Galvão/Simões 1966:134). Apesar disso, o maior grupo de índios
que habita o PNX desde cerca de 1964 é o dos Kaiabi, que não apresentam nenhuma
conexão cultural mais próxima com as tribos xinguanas (Vide cap. III, 2 e IX).
“Dado o longo contacto mantido com as frentes pioneiras do Tapajós, eles co-
meçaram a introduzir na área alto-xinguana alguns elementos culturais modernos,
cuja difusão vem sendo facilitada pelo fato de já terem sido “traduzidos” em
termos de uma cultura indígena” (Galvão/Simões 1966:48).

64 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Nos quadros de uma pesquisa sobre as relações interétnicas das tribos do Parque
Nacional, Eduardo Galvão, do Museu Goeldi, estudou também, conforme me comunicou
por carta, os Kaiabi das imediações do Posto Diauarum, no verão de 1966. Além disso, o
Harvard-Central Brazil Research Project conveniado entre o Museu Nacional e a Univer-
sidade de Harvard para análise de estruturas sociais e definido em 1963, planejou a inclu-
são dos Kaiabi no PNX (Anônimo 1964:133). Em julho de 1966, uma equipe do Summer
Institute of Linguistics (Helga Weiss e Rose Dobson) iniciou o estudo da língua Kaiabi.
Diversos fatores provocaram a migração dos Kaiabi para o leste, da área do Alto
Tapajós para o Alto Xingu, que possivelmente se encerrou em outubro de 1966 com 31
índios do Rio dos Peixes e 13 do Baixo Teles Pires:
1. a forte pressão étnica no seu próprio habitat, exercida por seringueiros e que
apenas se efetivou dada a falta – ou ao não funcionamento – das instituições de
proteção aos índios;
2. a disposição cultural prévia dos Kaiabi de mudarem-se para uma nova área;
3. a personalidade de Ipepuri do lado dos Kaiabi, que uniu a tribo como chefe
carismático e, principalmente, a de Cláudio Villas Bôas do lado brasileiro, que estabele-
ceu as bases organizatórias para a migração dentro da ordem jurídica e social nacional.
6. A Prelazia de Diamantino
A praelatura nullius de Cuiabá, fundada em 1745, foi elevada a bispado em 1826
e a arcebispado em 1910. A 22 de março de 1929, pela bula “Cura Universae Eclesiae”,
de Pio XI, foi desmembrada de seu domínio a praelatura nullius Adamantes, com sede
em Diamantino, sendo confiada aos jesuítas da província meridional como Missio
Adamantea Mato Grossensis. D. Alonso Silveira de Mello SJ, o prelado nomeado admi-
nistrador apostólico desde 1949, foi elevado, a 21 de agosto de 1955, a bispo titular de
Nasaí, tornando-se, assim, o único bispo da Societas Jesu no Brasil (Anônimo 1960:105,
964 e Anônimo 1966).
A Prelazia de Diamantino abrange a maior parte do norte de Mato Grosso, uma
2
área de mais de 350 mil km , que inclui os cursos superiores dos rios Xingu, Teles
Pires, Arinos e Juruena, estendendo-se até as povoações do Alto Paraguay, onde se
encontra a região de maior densidade populacional relativa dentro da Missão.
Desde a fundação da Prelazia, também atuam em seu território missionários
protestantes norte-americanos. Em 1926 foi fundado um posto missionário da Isamu
(Inland South-American Missionary Union) no Juruena, junto à linha telegráfica, na qual
dois homens e duas mulheres dedicavam-se à catequese dos Nambikwára (Grubb 1927:29).
Em outubro de 1930, um dos dois missionários, sua filha e quatro empregados brasileiros

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 65


foram mortos por estes índios (Oberg 1953:87). Ao mesmo tempo, a missão católica no
Posto Juruena fez a tentativa de cuidar dos Paresi e Nambikwára. O pe. Dréneuf (1940)
publicou um trabalho relativo a esta época ao qual, infelizmente, não tive acesso. Lévi-
Strauss, que estudava os Nambikwára desta região em 1938, criticou este missionário
francês e seus co-irmãos de maneira bem sarcástica (1960:148, 217, 230 ss), sem, contu-
do, se ater rigorosamente aos fatos. Em 1940, a Missão Anchieta transferiu-se mais para
leste, para Utiariti – que também se encontra junto à linha telegráfica – e tentou influenciar
os Nambikwára, especialmente desde 1945/46, concorrendo sem grande êxito com uma
missão protestante norte-americana estabelecida no mesmo local (Oberg 1953:84s e 98;
Boglár 1962:621ss). Desde então, também atuava em Utiariti o missionário austríaco pe.
João Evangelista (Hans) Dornstauder SJ, que de forma crescente passou a estender a ação
missionária a outras tribos indígenas e, como extraordinário conhecedor de índios, colocou
a assistência social em primeiro plano.
Em 1953 ele visitou sistematicamente todas as aldeias dos Irántxe (Pereira 1964:106)
e também os 23 Kaiabi junto ao Posto José Bezerra. Em julho do ano seguinte visitou
novamente este Posto e soube, por Puruta´i e pelo “Capitão Sabino”, que um grupo maior
de Kaiabi bravios vivia no Rio dos Peixes (Tatuí). Decidiu localizá-los na estação seca
seguinte, junto com Sabino.
A 18 de abril de 1955, Dornstauder partiu de Diamantino, encontrou-se em maio
no Posto José Bezerra com os Kaiabi que iam acompanhá-lo e visitou, durante a viagem,
as cinco outras aldeias junto ao Teles Pires que somavam 103 Kaiabi. A 6 de junho iniciou
a travessia rumo ao rio dos Peixes, subindo o rio Jaguaru (Javari). Estabeleceu pacifica-
mente um primeiro contato com os 110 Kaiabi do curso superior do rio dos Peixes
distribuídos em cinco malocas. Permaneceu como hóspede deles de 19 de maio a 17
de junho. Nessa ocasião, Dornstauder realizou um censo demográfico e fez muitas
anotações, tendo Sabino como intérprete. O relacionamento deve ter sido muito cordi-
al, pois os Kaiabi, dos quais apenas poucos tinham visto brancos no Posto do SPI, ofere-
ceram a Dornstauder um roçado para plantar mandioca e milho, além de quererem torná-
lo membro do grupo. É interessante observar que já havia no Tatuí alguns instrumentos de
ferro (machados e facões), além de bananas e cachorros. Os índios andavam nus e, em
1966, Sabino divertiu-se contando-me da consternação dos moradores da maloca Temeoni
face ao seu vestuário, quando viram, em 1955, um membro da tribo vestido à brasileira
pela primeira vez.
Na viagem de volta, descendo o rio dos Peixes, Dornstauder encontrou, pouco
abaixo do Salto, os primeiros seringueiros (ver p. 50) e, junto ao Arinos, a nova roça da
Conomali (ver p. 51).

66 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


De fins de 1955 a fevereiro de 1956, Dornstauder visitou novamente o Posto José
Bezerra, despendendo ali assistência por uma semana, por ter irrompido uma gripe epidê-
mica. Na mesma época, foi construído pelo seringalista Lemes Ferreira um barracão pou-
co abaixo da embocadura do rio dos Peixes no Arinos (mais tarde Posto Santa Rosa).
Enquanto isso, um outro problema se apresentava a Dornstauder. Os encontros
hostis com uma tribo de índios desconhecida, a que os seringueiros denominavam
“Canoeiros”, aumentavam com tal freqüência na área do Alto e Baixo Juruena e seus aflu-
entes, que se tornou duvidosa a possibilidade de exploração da borracha, iniciada nesta
região em 1952. Até 1956 pelo menos oito seringueiros foram mortos por eles, que haviam
atacado e parcialmente destruído quatro barracões e seis feitorias. Não foi possível avaliar
suas próprias baixas. Como já nesta época não se podia contar com uma ação do SPI, o
pe. João Dornstauder encarregou-se da pacificação, realizada em circunstâncias as mais
difíceis e sendo coroada de êxito em 1959 (Dornstauder 1960 e MSc; Saake 1967).
Devido a esta atividade, que lhe garantiu inclusive o apoio dos seringalistas no futuro,
Dornstauder foi desviado temporariamente dos Kaiabi.
Em abril de 1956, por iniciativa própria, um grupo de Kaiabi viajou por terra até a
Gleba Arinos, recém fundada. Até junho, três grupos chegaram ao Salto, alcançando por
duas vezes o barracão Santa Maria, há pouco reconstruído, onde ofereceram seus servi-
ços aos seringueiros.
De 22 de julho a 5 de agosto de 1957, dois Kaiabi, Mairer‰/José e Masi´a/
Sebastião, acompanharam Dornstauder na sua expedição de pacificação Juruena acima
(1960:576).
A 1º de outubro de 1957, Dornstauder partiu de Porto dos Gaúchos para penetrar
pela segunda vez na região dos Kaiabi, subindo desta vez o rio dos Peixes (Dornstauder
1975:94-96). Acompanhavam-no Mairer‰/José, Frederico (um Paresi), Lino (um Irántxe)
e Fritz Tolksdorf, um alemão que vivia no Brasil e que entrara em contato com Dornstauder
através da Gleba Arinos, para colher experiências no relacionamento com os índios. Base-
ado em seus diários, Tolksdorf redigiu, em março de 1958, uma descrição pormenorizada
da viagem, que foi conservada como manuscrito no Instituto de Etnologia da Universidade
de Göttingen e ali examinada por mim.
A caminho, a expedição topou com um grupo de seringueiros nas margens do
Arinos, entre os quais já se encontravam dois Kaiabi. A 5 de outubro aportaram no
barracão do sr. José Rosa, onde um outro Kaiabi, “Armando”, se reuniu a eles. A 7 de
outubro começaram a subir o rio dos Peixes encontrando no dia seguinte, na última
feitoria, logo abaixo do Salto, dois outros Kaiabi, que também se uniram a eles. Depois
de contornar penosamente o Salto, alcançaram a primeira maloca na tarde de 16, e meia

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 67


hora depois o porto da grande maloca de Temeoni, situada 100 metros terra adentro. De
17 a 20 de outubro permaneceram nesta maloca, iniciando em seguida a viagem de volta,
dificultada pela escassez de alimentos e gasolina, por uma infecção gripal entre os Kaiabi
e pela forte malária de Tolksdorf. A dois de novembro, chegaram ao barracão do sr.
Rosa, e Tolksdorf subiu novamente até a Gleba no dia 8, enquanto Dornstauder empre-
endia outra viagem ao Juruena. Os valiosos dados de Tolksdorf, e também aqueles que
obtive dele pessoalmente em 1966, serão tratados na parte etnográfica.
No início de 1958, Dornstauder assumiu o barracão do sr. Rosa, transformando-o
no Posto Santa Rosa de assistência aos Aripaktsá (Erigpactsá, Canoeiros). Em abril do
mesmo ano, ali chegaram os primeiros Kaiabi para trabalhar em troca de presentes. Em
pouco tempo assumiram a direção, o que levou a desentendimentos com os Aripaktsá. No
decorrer do ano de 1959 chegaram mais Kaiabi, de tal modo que a 10 de janeiro de 1960
existiam 22 Kaiabi e apenas 21 Aripaktsá no Posto. Dornstauder reconheceu que assim o
trabalho seria pouco produtivo e os limitados recursos de auxílio se esgotariam rapidamente,
sem que se alcançasse êxito real na assistência social. Ele decidiu reservar o Posto exclusiva-
mente para os Aripaktsá, com exceção de dois ou três Kaiabi que ficariam ajudando, e prome-
teu aos Kaiabi fundar um posto próprio em local adequado, da escolha deles, desde que
participassem ativamente da iniciativa. Justificava esta decisão com a forte tendência dos
Kaiabi, manifesta há quatro anos, de entrar em contato com os “civilizados” e mudar das
cabeceiras para o curso inferior, e com a crescente mortalidade causada pelas doenças
introduzidas pelos seringueiros. Só se poderia dar assistência aos Kaiabi se eles se estabe-
lecessem num lugar acessível a barco a motor, ou seja, abaixo do Salto (MSb).
Em fevereiro e março do mesmo ano (1960), Wilhelm Saake SVD, partindo de
Utiariti, visitou a região do Juruena, às vezes em companhia de Dornstauder, interessando-
se especialmente pelos Aripaktsá já pacificados, sobre os quais trouxe as primeiras
notícias etnográficas relevantes (Saake 1962). Durante a visita ao Posto Santa Rosa, en-
controu-se com alguns Kaiabi:
“Ao lado dos Kayabi largos, musculosos, atarracados, robustos e pesadões, os
Canoeiro fazem figura quase graciosa com seu tipo esguio e magro” (p. 135).
E sobre as tarefas urgentes de investigação, ele escreve:
“Um trabalho de pesquisa particularmente interessante se oferece entre os vizi-
nhos dos Canoeiro, os Kayabi, que têm hoje suas moradias no Rio dos Peixes,
um afluente do Arinos. Esta tribo tupi há dez anos era ainda tão arisca e distante
da civilização moderna como há pouco ainda os Canoeiro. Já alcançaram hoje
um grau de aculturação bastante elevado que, entretanto, deixou intactos im-

68 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


portantes bens culturais, particularmente a alma índia, como por exemplo festas,
cantos, danças, além de muito da cultura material. Um grupo de jovens apresen-
tou-me suas canções durante toda uma hora. Um deles conduzia o canto, ao
narrar cantando um acontecimento. Os outros acompanhavam cantando o bardo
de maneira muito impressionante. As canções constituem o que de mais impres-
sionante ouvi entre índios. Seria relativamente fácil reunir todo o grupo de índios
e realizar um levantamento. Pode-se falar, de outro lado, de um periculum in
mora, pois a ligação com os tempos antigos se torna cada vez mais frouxa com a
morte de membros mais velhos” (p. 138s).
De 11 a 13 de abril de 1960, os Kaiabi do Posto Santa Rosa foram levados de
volta para o Rio dos Peixes e Dornstauder esclarece: “Se a maioria dos índios mudar para
baixo, e fazer aldeia, eu farei aí um Posto” (MSb). A 9 de setembro foi fundado o Posto
Tatuí (ou Posto Reus), na margem esquerda do rio dos Peixes, cerca de 40 km abaixo do
Salto, num local escolhido pelos Kaiabi. Ali estavam aproximadamente 30 Kaiabi, especi-
almente famílias jovens, que faziam parte do “círculo progressista” em torno de Yupari´up/
Chico, em certa oposição ao chefe Temeoni, que ficou morando no antigo local. O Posto
consistia de uma cabana de madeira, que continha um depósito de gêneros alimentícios,
instrumentos de trabalho e medicamentos, e das choças circunvizinhas dos Kaiabi, erigidas
conforme o modelo das feitorias brasileiras. Em 1959 e 1960, morrinha e gripe provoca-
ram muitas mortes entre os Kaiabi, de modo que a assistência médica tornou-se o proble-
ma predominante. Mas ficou sem solução, pois as outras visitas de Dornstauder, de apenas
alguns dias, que até 1966 só eram possíveis no máximo a cada três meses, não bastavam
para um tratamento contínuo. Dornstauder primeiro levou quatro Kaiabi a Utiariti, para a
sede da Missão. Esta tendência de afastar da tribo especialmente as crianças e os jovens
acentuou-se nos anos seguintes. Em dezembro de 1961, havia 36 Kaiabi junto ao Posto Tatuí,
11 estavam ocupados no Posto Santa Rosa e quatro adultos e seis crianças em Utiariti ou a
serviço da Missão. No antigo local de habitação permaneceram apenas 26 pessoas, na maloca
de Temeoni. A população total reduziu-se, portanto, de 27 pessoas (um quarto, mais ou
menos) no decorrer de seis anos. Com a ausência de muitos adultos e da maior parte dos
jovens em idade púbere, o cerimonial foi radicalmente reduzido e não se realizaram mais
iniciações. O prestígio pessoal de Dornstauder entre os seringueiros evitava, por outro
lado, conflitos mais graves com os Kaiabi, já que tudo o que tinha a ver com eles, na
perspectiva dos seringueiros, era “negócio de padre”, sendo por isso respeitado.
Com sua atitude constantemente mediadora e sem proteger demais os índios, este
missionário conseguiu uma situação relativamente pacífica no Rio dos Peixes, que não pode
ser alcançada em todo o resto do noroeste de Mato Grosso. Apesar disso, já em 1959 um

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 69


Kaiabi mais idoso foi morto por um seringueiro em circunstâncias não esclarecidas e, em
janeiro de 1962, eclodiu um conflito junto ao Posto Santa Rosa, que mais tarde foi descrito
pelo Kaiabi Yuroni:
“Às 5 horas da manhã chegaram Bentão, Nêu, Ditão (três seringueiros). Eu dei
café, Bentão foi buscar cachaça na canoa. Ele bebeu. – “Você também quer?” –
“Não, eu não bebo isso”. – “Então tome um pouco”. Eu bebi um pouco. Eu gritei
muito. Eu penso: “Eu tenho faca, o seringueiro tem um revólver”. Ele atirou com
o revólver no posto. Eu perguntei: – “Você quer minha mulher?” – “Não, não a
sua. Eu quero qualquer uma”. Nêu disse: – “Eu pago. Eu te dou uma camisa”.
Ditão pegou a mulher de A (um Kayabi). Ele chamou-a para fora, ela veio. Ele
tomou ela. A. estava na cozinha e tinha medo. Eu digo para minha mulher: –
“Você fica. Você não vai. Você fica deitada aqui (na rede)”. Ela não foi. Depois
A. bateu na sua mulher. Quase matou ela. Eu falei com ele. No Posto ele bateu
nela novamente e a matou (semanas depois). Negrão disse: – “Eu gosto da tua
mulher. Eu quero ela”. Eu disse: – “Não. Eu não posso te dar minha mulher”. Ele
brigou. Ele pegou o revólver. Eu peguei a mão dele e apertei para baixo. Ela
quase entrou no meu pé (a bala). Eu disse: – “O que é isso? Você quer morrer?”
Ele foi embora. Ele não tinha mais cartuchos” (Dornstauder MSb).
Em 1964 os Kaiabi mataram, perto da aldeia Temeoni, dois seringueiros que ti-
nham forçado algumas mulheres ao intercurso sexual. Em 1966 a jovem esposa de Temeoni,
Noi, foi violentada por um seringueiro e ele foi surrado. Tais casos, porém, eram esporádi-
cos e nunca alteraram fundamentalmente a atitude formal entre os dois grupos étnicos, que
inclusive permitia, em alguns casos, trabalhos conjuntos.
De julho a outubro de 1962, o assistente do Museu Paulista, Harald Schultz,
visitou uma aldeia dos Aripaktsá nas proximidades do Salto Augusto no Baixo Juruena
e, por ocasião de seu regresso, aportou no Posto Santa Rosa, que pouco depois foi
abandonado.
“Informaram os Cajabí (Juracy, mulher e filhos) que há diversas malocas de sua
tribo no Rio dos Peixes, afluente do Arinos, inclusive malocas de Cajabí arre-
dios, num dos afluentes muitos dias de marcha mata adentro, a partir das mar-
gens do curso superior daquele rio” (1964:218).
“Por ocasião da minha passagem em outubro este Posto, situado em terras fér-
teis, estava quase totalmente abandonado, estando ali apenas a família Cajabi do
índio Juracy. O abandono do Posto de assistência aos índios por parte de sua dire-
ção, dava motivos a críticas por parte da população civilizada residente na região,

70 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


que comentava ´ser errado tirar os índios das suas malocas, acostumá-los à vida
num Posto, para depois devolvê-los a seu estado primitivo´, e acrescentavam:
´mais pobres do que antes!´. A verdade, entretanto, parece ser a seguinte: esgo-
tando-se os recursos, imprevisíveis, para a manutenção do Posto, uma parte dos
índios foi levada para Utiarity, sede da missão católica, onde está sendo educada,
enquanto que outros preferiram voltar a sua vida na selva” (p. 222).
Possivelmente tal constatação fosse exata para alguns Aripaktsá; dos Kaiabi do
Rio dos Peixes, contudo, 30 se encontravam na aldeia Temeoni, 40 no Posto Tatuí e 15 em
Utiariti.
Em 1965/66 era o seguinte o quadro da Prelazia de Diamantino e de sua Missão
Anchieta (Dornstauder 1965 e Anônimo 1966):
Em Diamantino encontram-se o bispo e superior da Missão, pe. Henrique Froehlich,
a quem estão adjudicados sete padres e diversos irmãos, que se ocupam na paróquia, no
seminário e na administração da Missão. Nas circunvizinhanças de Diamantino encontram-
se quatro paróquias com cinco padres e dois irmãos: Alto Paraguai, Arenápolis, Nortelândia
e a paróquia da igreja do Rosário, de Cuiabá.
Utiariti é o centro de educação e catequese dos índios, sendo também uma paró-
quia. Aqui se encontram quatro padres e cinco irmãos. Há uma escola e um hospital ainda
não provido de um médico residente e cuidado por irmãs religiosas que também dirigem a
educação das meninas índias. Ligação por rádio e uma estrada para caminhão até a BR-29
possibilitam boa comunicação com Diamantino, que fica a uma distância de 420 km apro-
ximadamente. Em dezembro de 1965 encontravam-se 23 Kaiabi em Utiariti, dos quais
nove moços e sete moças, separados de suas famílias, e duas famílias. A escola da Missão
era freqüentada, em dezembro de 1965, por 69 Apiaká, 14 Paresi, 12 Kaiabi, oito Irántxe
e dois Nambikwára, todos jovens. Os resultados da aprendizagem, realizada exclusiva-
mente em português, e da catequese católica são satisfatórios do ponto de vista da Prelazia.
A região missionária propriamente dita divide-se em cinco setores, nos quais atuam apenas
três a quatro padres e nenhum irmão.
• setor 1 - Missão do Divisor: ela compreende os Xavante, Paresi e Bakairi “civili-
zados” com os dois postos do SPI, Simão Lopes e Batovi, e com os dois postos da missão
protestante Isamu. Oficialmente, os Nambikwára não estão incluídos e a missão Paresi foi
suspensa de fato em 1963, porque estes índios foram classificados como “estragados e
irredutíveis” (Grünberg 1966:149s). O padre competente, José Moura, é, ao mesmo tem-
po, vigário da paróquia de Nortelândia.
• setor 2 - Barranco Vermelho (Santo Inácio): neste setor são atendidos, num
posto homônimo da Missão, os Aripaktsá do Alto Juruena, especialmente do Rio do San-
Fontes da Etnografia dos Kaiabi 71
gue. Ligado a ele está o Posto Japoira, mais abaixo no Juruena, que só é procurado espo-
radicamente, também para missionar Aripaktsá. Os “Cinta-Larga” nominalmente também
pertencem à circunscrição deste setor, que foi confiado ao padre Antonio Iasi e/ou ao
padre Isidoro Schneider.
• setor 3 - Missão Volante: é este o setor do pe. João Dornstauder, a quem com-
pete a assistência social, as comunicações e o reforço em toda a área fluvial da Missão, não
apenas junto às tribos como também às populações marginais dos “civilizados” e à Gleba
Arinos. Em barco com motor de popa e com alguns índios que constantemente se revezam
como ajudantes, ele viaja a maior parte do ano do porto Anchieta em Utiariti até o Salto
Augusto, passando por Barranco Vermelho, Japoira e o Tatuí e até Porto dos Gaúchos
junto ao Arinos, e depois Juruena abaixo, voltando em seguida. Trata-se de um trecho de
mais de dois mil quilômetros, interrompido por numerosas corredeiras. No Baixo Juruena,
Dornstauder assiste a outro grupo de Aripaktsá. Este grupo é atendido principalmente por
um posto permanente de uma missão evangélica luterana, dirigida em 1961/64 pelo pastor
alemão Richter e posteriormente por Fritz Tolksdorf. Na prática, a colaboração mostrou-
se viável e até propícia, apesar das dificuldades que, por causa disso, a Prelazia criava para
Dornstauder. Também o SIL atua lá desde 1966. Este setor ficou encarregado da assistên-
cia e catequese dos Kaiabi do Rio dos Peixes e do atendimento religioso aos poucos
moradores católicos de Porto dos Gaúchos, entre os quais há também alguns Munduruku
e Apiaká “civilizados” que, originários do Baixo Juruena, trabalham como seringueiros e
pilotos de barco. Em 1966, Dornstauder conseguiu introduzir na jurisdição da Missão
um tirolês perito em desenvolvimento, Gerhard Stemberger, posto à disposição por um
ano por uma congregação mariana austríaca. Além de Diamantino e Utiariti, Stemberger
também atendeu o Posto Tatuí de junho a agosto, onde dispensou cuidados médicos aos
Kaiabi presentes, distribuiu gêneros alimentícios e deu aulas de língua portuguesa.
• setor 4 - “Beiços-de-Pau” e setor 5 - Xingu: em ambos os setores, que de fato
estão conjugados, trabalha o padre Adalberto Holanda Pereira. Em 1958/59, 1964, 1966
e 1967 foi inutilmente tentada a pacificação dos chamados “Beiços-de-Pau” do Médio
Arinos (Iasi 1967, César 1969 e Pereira 1968) e, devido à criação do Parque Nacional do
Xingu, que proibiu qualquer tipo de trabalho missionário, operações no setor 5 não são
possíveis.
Os etnólogos fizeram numerosas críticas, muitas vezes justificadas, aos métodos da
missão cristã entre os índios. Tanto quanto ao SPI, faltam-lhe, de modo geral, meios de
ajuda técnica e científica, assim como organização (Baldus 1962:29). A pretensão de cum-
prir a vontade de Deus, na opinião de muitos missionários, dispensa-os da obrigação de
utilizar o conhecimento humano, de modo que rejeitam tanto a cooperação com outras
72 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
missões cristãs como com especialistas técnicos e científicos. Princípios importantes, como
o da transferência para os índios das terras por eles habitadas, prevista na Constituição,
quase nunca foram concretizados; ambas as margens do rio dos Peixes, por exemplo, já
foram demarcadas, loteadas e nominalmente vendidas pelo Estado do Mato Grosso em
1961, sem que a Prelazia de Diamantino interviesse. Prática geral é registrar no nome das
missões as áreas habitadas por índios, para assim se poder exercer um controle melhor, o
que teve, em alguns casos, conseqüências catastróficas para os índios (Ribeiro 1962:103ss).
No caso específico da Prelazia de Diamantino constatamos o seguinte:
Dos 20 padres, apenas três ou quatro se dedicam ativamente à missão e assistência
na região ocupada pelos índios; outros quatro atuam no centro educacional de Utiariti. A
missão efetiva abrange os Aripaktsá do Alto Juruena e rio do Sangue, pequenos grupos
fortemente aculturados de Paresi, Irántxe e Nambikwára em Utiariti e, na região do Rio
dos Peixes, uma parte dos Kaiabi. Com a transferência de 31 Kaiabi do Rio dos Peixes
para o Parque Nacional do Xingu em outubro de 1966, realizada sem prévios entendimen-
tos e contra a vontade da Prelazia, toda a ala conservadora de Temeoni e um terço dos
Kaiabi do Posto Tatuí foram subtraídos à influência da Missão, de modo que os poucos
índios restantes no Posto muito provavelmente serão transferidos para Utiariti, o que
corresponde a seus anseios. Com este grupo, os últimos Kaiabi deixarão o seu habitat
original.
A maioria relativa e absoluta de pessoal, bem como os recursos da Prelazia e da
missão destinam-se à catequese entre os brasileiros das paróquias de Diamantino, Cuiabá,
Nortelândia e Alto Paraguai. Mostra-se aqui uma tendência a restringir a assistência traba-
lhosa e aparentemente infrutífera aos índios em favor de uma catequese bem sucedida à
população brasileira. Não raro, esta tendência leva, principalmente entre as missões cató-
licas, a um alheamento dos objetivos desta instituição. Por outro lado, a pouca ajuda des-
tinada a índios e a brasileiros nesta imensa região do Alto Tapajós, provém quase exclusi-
vamente da Missão em Diamantino; a atuação do Dornstauder, em particular, deve ser
considerada modelar também no que se refere à colaboração com as missões protestantes,
com o SPI e com etnólogos, sendo geralmente rejeitada pela direção. Para um melhor
funcionamento da assistência médica, social e espiritual neste âmbito da missão, considero
necessário recrutar especialistas em economia, medicina e etnologia para elaborar um pla-
no objetivo e crítico que deveria abranger todos os grupos étnicos e que pudesse ser
executado com suficientes recursos financeiros.

Fontes da Etnografia dos Kaiabi 73


figura 1: MAPA DO NORTE DE MATO GROSSO, 1965-1966

74 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


capítulo III

DEMOGRAFIA E SITUAÇÃO GEOGRÁFICA


1. Situação geográfica
O noroeste de Mato Grosso é a parte menos conhecida do Brasil do ponto de vista
geográfico. Daí a dificuldade de classificar esta zona de transição entre o Planalto Central
do Brasil com suas formações gramíneas e arbustivas e a Hiléia da bacia do Amazonas
(Neef 1966:439ss).
Acima de 13º30´ de latitude sul, a região dos rios Teles Pires e dos Peixes,
habitada pelos Kaiabi, encaixa-se nitidamente na zona de florestas tropicais úmidas e o
clima, na escala de Köppen, é do tipo Amw, apresentando uma temperatura média
acima de 18º C no mês mais frio e uma estação seca bem pronunciada (Kuhlmann
1954:79ss). A temperatura média anual alcança pouco mais de 24º C com valores
mínimos em junho/julho e máximos em outubro/novembro/dezembro; a amplitude é
mínima e, além disso, inferior à oscilação da média das temperaturas diárias (Brasil
1960:fig 36 e 71ss). Exceção é a assim chamada friagem, a chegada súbita de massa polar,
que pode ocorrer nos meses de junho/julho e nunca dura mais que três dias, atingindo, às
vezes, o ponto de congelamento.
A umidade relativa do ar é alta (acima de 80%) e mais da metade de precipita-
ção anual, superior a 2.000 mm, cai sob a forma de torrenciais chuvas vespertinas,
acompanhadas de trovoadas, nos meses de janeiro, fevereiro e março, ou seja, no meio
do período chuvoso que se estende de outubro a abril. Na estação seca que se segue,
há três meses sem chuva alguma.
Espécies características da mata são a seringueira (Hevea sp) e a castanheira
(Bertholletia excelsa), árvores altas com poucas epífitas, que crescem em solos areno-
sos próximos às margens dos cursos d´água. Ocorrem também grandes e numerosas
manchas de vegetação semelhante à savana – talvez devido à propriedade de certos
solos de não reterem umidade – que são geograficamente descritas como “áreas cam-
pestres inclusas”, mas aparecem muitas vezes em mapas erroneamente como “serras”.
Soares (1953:25) sugere que esses campos abertos são formas de degradação, provin-
das da queimada anual da vegetação provocada pelos índios. Em todo caso, trata-se
de uma formação sui generis que ainda não foi analisada cientificamente e que tem
grande significado para a vida dos Kaiabi. Animais, plantas e também fenômenos natu-
rais que só podem ser observados nos campos, como o granizo, ocupam um lugar nos
seus relatos e são conhecidos nos menores detalhes, embora estes índios habitem ape-
Demografia e situação geográfica 75
nas a região de mata próxima aos rios. De seu comportamento era fácil deduzir que nas
viagens preferiam a floresta ao campo e, mesmo que tivessem que fazer desvios, andavam
ao longo de córregos nas densas matas-galeria.
A designação kaiabi para o rio dos Peixes é tatu´i, o que Temeoni esclareceu da
seguinte maneira: originalmente os Apiaká localizavam-se neste rio e lhe deram o nome
de iniatatu´i, água, ou, rio do peixe iniatatu (cascudinho). Mais tarde os Kaiabi passa-
ram a dizer simplesmente tatu´i.

2. Demografia(11)
a) Os Kaiabi do Rio dos Peixes em agosto de 1955 e em setembro de 1966
Os dados de Dornstauder registram a situação demográfica dos Kaiabi do Rio dos
Peixes em agosto de 1955 (MSa 1955). Cento e oito indivíduos viviam na margem esquer-
da do alto Tatuí em cinco malocas, distantes 4 a 7 km uma da outra, sendo a distância
máxima entre a superior e a inferior, portanto, de 33 km. Estavam assim distribuídos:
Maloca de Temeoni = 33 pessoas
Maloca de Kwasiari = 31 pessoas
Maloca de Yuruna´i = 19 pessoas
Maloca de Yurupanyé = 14 pessoas
Maloca de Mia´oo = 11 pessoas
TOTAL = 108 pessoas
A estrutura etária de toda a população encontra-se na Fig. 3.
Em setembro de 1966 subsistiam apenas 84 indivíduos do mesmo grupo local,
dos quais 51 viviam nos três sítios junto ao rio dos Peixes, enquanto 22 se encontra-
vam no centro da missão de Utiariti e 11, completamente desintegrados, no Juruena e
seus afluentes.
A pirâmide etária (Fig. 3) também mostra claramente uma perturbação no equi-
líbrio populacional. Há apenas uma pessoa (Temeoni) acima de 45 anos e a falta de
mulheres é particularmente acentuada.
Na consciência dos Kaiabi, a ausência de grande parte dos jovens desempenha
um papel importante. Sempre que eu perguntava porque diversas festas e ritos não
mais se realizavam, recebia a seguinte resposta: “Faltam as meninas e os rapazes estão

11
Pagliaro (2002) realizou recentemente um detalhado estudo demográfico dos Kaiabi para
o período de 1970 a 1999 (cf. bibliografia complementar). Dados demográficos atualizados
também podem ser consultados na seção final desta publicação. (n. ed.)

76 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Figura 2: KAIABI NO RIO DOS PEIXES, 1955 E 1966

Demografia e situação geográfica 77


Figura 3: PIRÂMIDES DE IDADE U em Utiariti

D desintegrados
Kaiabi 1955
` 60
55
a no Rio dos Peixes
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5

Kaiabi 1966
` 70
65
a
60
55
50
45
40
U
35
30
D D D D U
25
D D D D D
20
D U U U U U U U D
15
U U U U U U U U
10
U U
5
U U U

todos em Utiariti”. Realmente, em setembro de 1966 encontravam-se em Utiariti onze


rapazes (38% de todos os homens abaixo de 20 anos) e oito meninas (35% de todas as
mulheres abaixo de 20 anos). Às vezes, a proporção de jovens que viviam em Utiariti
e no Tatuí era muito mais desfavorável, mas mesmo assim ainda se trata de uma
constatação muito grave. Nunca verifiquei na maloca de Temeoni, onde o abastecimento
78 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
de gêneros alimentícios era mais precário, os sintomas de depressão ou falta de disposição
para qualquer atividade que, por vezes, reinavam no posto. A presença de todos os jovens
e crianças parecia estimular sobretudo as atividades religiosas e daí resultava, novamente,
um aumento de vitalidade que se manifestava em todos os domínios da cultura.
Também a depopulação dos últimos dez anos, de que os Kaiabi têm aguda consci-
ência, levava-os muitas vezes a considerações profundamente pessimistas. Temeoni disse-
me: “Quando as pessoas ficam velhas não podem mais carregar flechas. Mas agora não
chega mais a acontecer que envelheçam, pois quando vieram os civilizados, morreu tanta
gente. Também as mulheres, elas antigamente ficavam com a barriga frouxa; agora apenas
dá moças, pois elas não ficarão velhas”.
Realmente, o primeiro contato em 1955 foi seguido por moléstias epidêmicas das
vias respiratórias, certamente gripe (Dornstauder MSa 1955), o mesmo ocorrendo em
1957 (Tolksdorf MS 1958). Nos anos subseqüentes repetiram-se infecções com outras
doenças, anteriormente desconhecidas para os Kaiabi, como coqueluche e morrinha, con-
tra as quais apresentavam pouca resistência. Ainda em 1954 houve uma epidemia de sa-
rampo que sacrificou mais de dez vidas, manifestando-se mortalidade mais elevada entre
as mulheres. A assistência médica dispensada por Dornstauder e pela Missão de Diamantino
foi inoperante, vista em conjunto, pois os intervalos entre o adoecimento e o tratamento
eram demasiado longos. A dizimação dos índios por doenças introduzidas na primeira
década do contato só pode ser evitada através de uma assistência médica ininterrupta. No
caso dos Kaiabi, espera-se que eles já tenham superado o período crítico e alcançado
alguma resistência, de modo que um aumento populacional se torna novamente possível,
desde que não irrompam epidemias mais fortes.
Os Kaiabi residentes no Rio dos Peixes, em dezembro de 1966, distribuíam-se
da seguinte maneira:
(convenções: m. = masculino; f. = feminino; + = casado; : = filhos)
Posto Tatuí (5 casas, 25 pessoas)
– Timaka´i + Morerãu = m. Ta ato
– Kwaban/Simão + K‰ya´été = f. Kriawi; m. (sem nome)
– Masi´a/Sebastião + Yuvé´ai = m. Tapats/Pedro; f. Te´akato´i/Anita; m. Piã†/
José Carlo
– Yuray´ok/Maró + Katayu´i = f. (sem nome)
– Kwasiari/Tukuma´wapé/Frederico + Tipi = m. Tasirawé (adotado)
– Yupari´up/Chico + Moneyu´i/Maria Lurdes = m. Tsirãi; m. (sem nome); m.
Moanyan/Joaquim; m. Auwasio/Mané; m. Kawé
Demografia e situação geográfica 79
Maloca Mairer‰ (1 casa, 7 pessoas)
– Mairer‰/José + Yeupit/Anna = m. Kawãiwi (adotado); f. Yawat/Maria
– Purikato/Luiz + Morekato (Paulina) = f. (sem nome)
Maloca Temeoni (2 casas, 19 pessoas)
– Temeoni/Pitai + Moi = m. Kupeani/Antonio
– Ny‰kato/Domingo + K‰yakato = m. Masi; m. Kupi´a; m. Tsirawi; f.
More´ai; f. Arawi
– Kupe´ap/Mariano = m. Pan; f. Tanyum; m. Pކ
– Tapa + Krima´it/Mariwa/Maria = f. Deareyop; m. Péró/Paulo; m. (sem nome).
Designações geográficas e etnográficas dos Kaiabi:
Rio dos Peixes = Tatui: tatu´i
Arinos = ipitan
Juruena = ia´ip
Rio do Sangue = anéraup
Paranatinga = Teles Pires: wuiratsi i
Xingu = paranapep, yakaré, wuiwa´i
Kaiabi = iputunõõ, iputana a
Apiaká = tapi´ii´itsi
Aripaktsá
acima da confluência do Arinos com o Juruena e
no Rio do Sangue = yimamik;
abaixo da confluência, no rio Juruena = kawa´ip
Beiços-de-Pau = ipé´oo
Kayapó (?) (a oeste do Teles Pires) = ipéwi
Munduruku = uira´ip
Bakairí (?) (a nordeste do rio dos Peixes) = timaua
Brasileiros (= civilizados) = tapi´ii´ipyat; (os claros): pioai; (os escuros):
pionõõ
b) Os Kaiabi no PNX em setembro de 1966 (Fig. 4)
Como já se disse na parte histórica deste trabalho, a maior parte dos Kaiabi
emigrou no início dos anos sessenta para a região do Alto Xingu que, do ponto de
vista ecológico, se diferencia nitidamente do vale do Teles Pires.
Em setembro de 1966, os Kaiabi distribuíam-se em sete malocas e em ambos os
centros administrativos do PNX.
80 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
OS KAIABI DO RIO DOS PEIXES

Max Schmidt
Primeiro grupo Kaiabi
a chegar ao PI Pedro
Dantas, Rio Verde
(1926)
F. Tolksdorf

Maloca de Temeoni, Alto Rio dos Peixes (1959/60?)

Os Kaiabi do Rio dos Peixes


fotos: Georg Grünberg

Chefe Temeoni, maloca Temeoni (1966)

Pe. João Dornstauder SJ


(conduzindo o motor) com
índios Kaiabi e seringuei-
ros no Rio Tatuí (1966?)

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


fotos: Georg Grünberg, 1966
Moanyan Tapa

Ny‰kato (Ni‰gatu)
Masi’a (Masi)

Kuapan Georg Grünberg fotografado por um menino Kaiabi,


Rio dos Peixes (1966)

Os Kaiabi do Rio dos Peixes


fotos: Georg Grünberg, 1966

Apá com motivo kwatsiat

Kwasiari, Rio dos Peixes

U’i/wi/r‰, recipiente de entrecasca

Detalhe da vista frontal da maloca com


revestimento de folhas de inajá

Panak‰, cesto para transportar rede

K‰yakato esfarelando mandioca. À esquerda, um


Canoa monóxila apá e à direita, uma cuia

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Figura 4: KAIABI NO PNX, 1966

Demografia e situação geográfica 85


Maloca Homens Mulheres Crianças com Total
menos de 15 anos
Ipepuri 6 6 10 22
Wuirakato 4 4 8 16
Aukipiat 4 3 4 11
Meaui 2 3 2 7
Minan 4 2 8 14
Kupé 5 4 6 15
Moérupã 7 7 14 28
P. Diauarum 3 – – 3
P. Leonardo 11 1 5 17
Casados com
mulheres Juruna 2 – – 2
Total 48 30 34 135

c) A situação demográfica dos Kaiabi em agosto de 1955 e outubro de 1966


Com a transferência de 31 Kaiabi do grupo Tatuí para o Alto Xingu em outubro de
1966 e com a chegada de 13 Kaiabi da região do Teles Pires obtém-se um novo quadro da
distribuição geográfica de toda a tribo que deve ser comparado com os dados recolhidos
por Dornstauder em 1955 (Fig. 5). Em relação aos dados disponíveis para outras tribos
brasileiras em situação semelhante, o decréscimo de um terço da população global num
período de uma década ainda pode ser considerado tolerável (Dobyns 1966:413ss).
Agosto de 1955 Outubro de 1966
Teles Pires: P. José Bezerra = 45 P. N. Xingu = 179
Maloca Puruta´i = 47 Rio dos Peixes = 20
Maloca Sabá = 12 Utiariti = 21
Maloca Cuiabano = 12 Juruena/Arinos = aprox. 12
Maloca Cap. Luiz Tarari = 20 Teles Pires = aprox. 10
Maloca Purukatu = 12 total aproximado = 242
total = 148
Rio dos Peixes: cinco malocas = 108
Posto SPI Caiabi = aproximadamente 45
Alto Xingu = aprox. 40
total aproximado = 341

86 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Figura 5: SITUAÇÃO DEMOGRÁFICA DOS KAIABI, 1955 E 1966 (NORTE DO MATO GROSSO)

Demografia e situação geográfica 87


capítulo IV

AS BASES DA ECONOMIA
1. Aspectos gerais
É muito difícil distinguir os aspectos econômicos dos da organização social, princi-
palmente quando se trata de uma “sociedade fechada” em que quase todo indivíduo tem
relação de parentesco com outro. Deste ponto de vista, toda atividade econômica abrange
também uma atividade social, podendo-se incluir aquela nas considerações sobre a organi-
zação social. Parece-me, contudo, mais correto do ponto de vista metodológico, reunir
num único capítulo aqueles aspectos da economia menos dependentes de uma interpreta-
ção do contexto cultural global, a fim de obter, com esta distinção, maior margem para uma
avaliação crítica. Pois para perceber os fundamentos de uma economia basta ao investiga-
dor realizar observações sobre determinados processos, que podem ser testados com as
suas próprias categorias de pensamento culturalmente moldadas. Os aspectos sociais, en-
tretanto, apenas são observáveis quando se encontra o acesso às categorias êmicas cor-
respondentes da cultura.
A economia dos Kaiabi baseia-se no cultivo de tubérculos e numa coleta
diversificada. A manutenção de animais silvestres não domesticados desempenha
papel ínfimo.
No que diz respeito à agricultura no Brasil tropical, há algumas pesquisas re-
centes a que darei destaque especial (Galvão 1963; Carneiro 1961; Frikel 1959). A
nomenclatura botânica segue Mansfeld (1961) e a zoológica se orienta principalmente
por Carvalho (1951).

2. Produção primária de alimentos


a) Cultivo da terra(12)
O primeiro passo consiste na escolha do terreno para a roça, que não deve ser
ameaçado por enchentes, mas localizar-se próximo ao rio, para permitir um transporte
econômico da colheita, e apresentar solos de determinada qualidade. Depois disso
estabelece-se o tamanho de uma roça aproximadamente retangular, o que depende do
número de membros da família e da qualidade da terra. A roça nova de Ny‰kato, de

12
Na seção complementar ao final desta publicação podem ser obtidas mais informações
sobre a prática agrícola Kaiabi. (n. ed.)

As bases da economia 89
setembro de 1966, media apenas uns 400 m2, embora ele fosse responsável pelo sustento
de sete pessoas. A roça de Mairer‰, feita na mesma época e prevista para dez pessoas,
abrangia mais ou menos 5 mil m2, e duas roças velhas de Temeoni mediam aproximada-
mente 1.200 e 2.500 m2. De acordo com os Kaiabi, todas são “pequenas” ou “muito
pequenas”. Nenhuma roça é usada por mais de três anos, mas como anualmente é
aberta outra, a cada ano resulta uma superfície correspondentemente maior, destinada
ao cultivo.
Logo que se determinam a localização e o tamanho da roça, cortam-se arvoretas,
cipós e arbustos com auxílio de facão e, eventualmente, com a foice. Em seguida as
árvores são derrubadas à altura do peito com o machado, trabalho que deve ser encer-
rado em julho, para que a roça seque nos meses subseqüentes de seca. No começo da
estação chuvosa, em fins de setembro ou começo de outubro, costuma soprar um
vento forte por vários dias, sinal para o início da queimada.Tomam-se palmas secas
dos telhados das choças, assim como tições resinosos de boa combustão e ateia-se
fogo a diversos pontos da roça ao mesmo tempo. A direção do vento é essencial, pois
o primeiro fogo deve queimar a maior parte possível da madeira com chama viva,
evitando produção muito forte de fumaça. No dia seguinte, enquanto ainda fumegam
os troncos maiores, inicia-se a segunda queimada. Partes de galhos e troncos mal
queimados são amontoados em torno da raizama fumegante e o fogo é novamente
atiçado. Ao mesmo tempo, os desníveis do solo que se originaram da queima de raízes
e cupins são aplainados com varas, nivelados, e a lenha carbonizada é esmigalhada e
socada no chão. Procura-se deixar apenas troncos meio queimados naquela parte da
roça mais próxima da casa, prevendo seu uso futuro como lenha. Os trabalhos da
coivara podem prolongar-se por muitos dias, encerrando-se com as primeiras chuvas.
Freqüentemente começa a chover durante a queimada, por uma a duas horas, o que
não chega a atrapalhar. Os trabalhos da queimada são difíceis e perigosos. Ferimentos
devido à queda de galhos e queimaduras são freqüentes. Antigamente os Kaiabi utili-
zavam o machado de pedra no lugar de facão e foice.
Fim de setembro e início de outubro é tempo de plantio, para o que os Kaiabi se
servem da enxada; em raros casos também usam um pedaço de pau com ponta aguçada
que antigamente era o único instrumento de plantio. Com a enxada é feita uma peque-
na cova no solo. Quando se usa o pau-de-plantar, ele é fincado no chão no sentido
oblíquo e depois levado para a posição vertical, formando-se assim uma cova de for-
mato cônico. Então, deita-se a semente, o fruto ou talo, e o solo é novamente alisado
com o pé direito. Para o plantio da mandioca, os talos são cortados em pedaços de
aproximadamente 20 cm, colocando-se três deles em cada cova, dois lado a lado e o
90 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
terceiro sobreposto, de modo a resultar a figura de um H ou A. No plantio do milho, três
grãos são geralmente jogados na cova.
(13)
Em quantidade maior, os Kaiabi plantam regularmente o seguinte.
1. Mandioca (Manihot esculenta)
maniwété: mandioca brava
(Manihot dulcis aipi) mani´akap: mandioca doce
mais raramente: mani´atata: mandioca mansa, recebida dos seringueiros
2. Milho (Zea mays)
awatsiwété: milho mole
awatsi´un: milho preto
mais raramente: awatsi´ux: milho duro, recebido dos seringueiros
3. Inhame (Dioscorea sp)
kara´oo: cará grande
kara´un: cará preto
kara´ita ou karasí: cará branco
mais raramente: karawi: cará pequeno, recebido dos seringueiros
4. Batata (Ipomoea batatas)
yetik: batata doce
5. Feijão (Phaseolus sp)
kumanaté: feijão fofo
6. Amendoim (Arachis hypogaea)
monowi: amendoim
7. Tajá (Xanthosoma sp ?)
tawa´oo: tajá grande
tawarasí: tajá branco
8. Mangarito (Xanthosoma sp ?)
namo´a: mangarito amarelo
9. Banana (Musa paradisiaca ?)
baku´aoo: banana

13
Uma atualização dos nomes científicos e da grafia na língua indígena para as espécies
vegetais utilizadas pelos Kaiabi pode ser encontrada em tabela apresentada na seção
complementar ao final desta publicação. (n. ed.)

As bases da economia 91
Nas orlas da roça ou nas proximidades da casa são plantadas outras espécies:
10. Abacaxi (Ananas comosus ?)
yuparapat: abacaxi
11. Pimenta (Capsicum sp)
iku´ui´été: pimenta cajabi
12. Urucu (Bixa orellana)
uruk‰: urucu
13. Cabaças (Crescentia cujete e Lagenaria sp)
i´akit: cuia, cabaça
14. Algodão (Gossipium sp)
amuneyo: algodão
15. Tabaco (Nicotiana sp)
putém: tabaco
16. Caju (Anacardium occidentale)
akayu: caju
17. Cana de açúcar (Saccharum officinarum)
kana: cana
18. Mamão (Carica papaya)
mamõ: mamão
Caju, cana de açúcar e mamão foram introduzidos por Dornstauder após 1955.
A ordem das plantas alimentícias acima corresponde aproximadamente à sua
importância; as variedades mais usadas estão grifadas.
Ocorrem como plantas cultivadas todas aquelas registradas no Alto Teles Pires
por Miranda (1890:146), von den Steinen (1894:392), Sousa (1916:79) e Schmidt
(1942:24): mandioca, milho, batata, amendoim e inhame. Além disso, Tolksdorf (MS
1958) menciona para o Rio dos Peixes: inhame, mangarito, banana e algodão. É inte-
ressante que dois anos antes Dornstauder já encontrara, para sua surpresa, plantações
de banana (MSa 1955).
b) Caça
Do ponto de vista da produção alimentar primária, a caça entre os Kaiabi,
juntamente com a pesca, fornece aproximadamente um terço das calorias da produção
total. Mas, de acordo com a avaliação subjetiva, principalmente por parte dos homens
e em vista das possibilidades de aquisição de prestígio, a imagem se inverte. Em sua
autoconcepção, o Kaiabi é, antes de tudo, um caçador, e as atividades venatórias es-
92 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
tão, juntamente com a guerra, em primeiro lugar na escala de valores. Que a primeira
manifestação amistosa em relação a mim tenha se verificado apenas na tarde em que
abati o primeiro animal, caracteriza bem esta atitude.
Como animais de caça, têm significado especial:
Mamíferos
Macaco prego (Cebus macrocephalus): kai´été
Queixada (Tayassu pecari): taya´oo
Caitetu (Tayassu tajacu): téitetu
Veado (Mazama americana): kérupam
Aves
Mutum (Mitu mitu): muit‰
Macuco (Tinamus sp): inamu
Pomba (Columba sp): pika´oo
Anfíbios e répteis
Sapo (?): kutap
Sapinho (?): girinos
Tracajá grande (?): yawatsi´oo
Jabuti (?) (Testudo tabulata): yawatsipép
Insetos
Saúva (?) (Atta sp): iya
Esta acentuada limitação da “boa” caça é muito característica, mas desde o contato
com os brasileiros ela foi relaxada. Moanyan observou:
“Só os civilizados comem bichos repugnantes; nós e principalmente o velho (o
chefe Temeoni) não os comemos. Mas agora nós já começamos a comê-los
também”.
A caça aos macacos, especialmente importante do ponto de vista econômico, é em
geral empreendida por diversos homens em conjunto: um deles atua como líder, escolhendo
a direção a seguir e abrindo o caminho com o facão. Os outros o seguem, um atrás do outro, a
uma distância de dois a três metros, e estacam quando o primeiro se detém para escutar.
Localizado um bando de macacos, os homens, imitando os gritos dos animais, correm
formando uma corrente que procura impelir a caça numa direção predeterminada de fuga.
Enquanto a comunicação entre os caçadores é mantida através de chamados curtos, eles
tentam ultrapassar no chão os macacos que fogem pelas copas das árvores, para poder
emboscá-los pela frente. Assim diversos macacos podem ser abatidos um atrás do outro, com
o arco ou com a espingarda, pois os animais continuam a fugir sempre na mesma direção.
As bases da economia 93
Queixadas podem ser encontradas em manadas de mais de cem ao longo das mar-
gens do rio dos Peixes, denunciando-se por sua forte catinga. Ao viajar de canoa pelo rio,
os Kaiabi as percebiam, encostavam e iniciavam a caçada, procurando cercar a manada.
Localizados, os animais debandavam numa direção, enquanto os índios tentavam ultrapassá-
los pelos lados e abater quantos pudessem.
Caitetu e veado são capturados em caçada individual.
As aves manifestam-se em geral ao amanhecer e pouco antes do pôr do sol,
podendo, assim, serem facilmente identificadas e caçadas. Geralmente sozinho, o
caçador aproxima-se vagarosamente do mutum, enquanto imita seu pio característi-
co. Outras aves, como o tucano, são abatidas a partir do rio. Ovos de pássaros são
considerados repugnantes e não comestíveis.
Uma determinada espécie de sapos é regularmente apanhada quando se sai de
canoa. Tais sapos assentam-se de preferência em galhos e troncos de árvores que
pendem na água. Como sua coloração se adapta ao fundo, são difíceis de ver. Girinos,
tal como peixes bem pequenos, são ocasionalmente apreendidos com peneiras por
homens e mulheres.
Tracajás raramente são caçados, sendo abatidos apenas em ocasiões
especiais.(14) Seus ovos são considerados comestíveis, embora não se lhes atribua nenhum
valor específico.
Também a saúva alada é objeto de coleta, quando das revoadas em determina-
das épocas do ano.
Quando falam dos animais repugnantes, mencionados acima, os Kaiabi refe-
rem-se àquela segunda categoria de caça que é usada para a alimentação com reservas
e que é considerada imprópria por implicar em perigos físicos e espirituais:
Mamíferos
Coatá (Ateles sp): ka´ioo
Bugio (Alouatta sp): akiki
Cotia (Dasyprocta aguti): akutsi
Coati (Nasua narica): kwatsi
Paca (Cuniculus paca): pakoo
Capivara (Hydrochoerus hydrochoerus): kapiwat
Anta (Tapirus terrestris): tapi´it
Tatu (Dasypus sp): tatu´

14
No PIX são bastante caçados pelos Kaiabi que os apreciam grandemente. (n. ed.)

94 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Aves
Jaó (Crypturellus sp): yania´oo
Jacu (Penelope sp): yakupémoo
Jacutinga (Pipiles sp): yakupéts†
Jacamim (Psophia sp): wuiraoo
A partir do contato com os brasileiros, também a galinha, o peru e o porco perten-
cem aos animais comestíveis, sob determinadas condições. O próprio Temeoni comeu
galinha pela primeira vez em 1965.
A anta, o maior animal da região amazônica, geralmente é reconhecida quando
atravessa um rio e os índios disparam contra ela quando chega à margem. Muitas vezes ela
escapa, já que tem pele muito grossa e grande resistência. Os lugares de travessia da anta
também se reconhecem pela quantidade incomum de mutucas.
Sem poder fornecer uma classificação completa, acrescento mais uma lista de
animais considerados absolutamente não comestíveis pelos Kaiabi: todos os felinos
(onça, onça parda, jaguatirica), lontras, cachorros, tamanduás, preguiças, aves de ra-
pina, papagaios, tucanos, cobras, jacarés, moluscos, gafanhotos.
Contudo, caçam-se animais com outros objetivos que não a alimentação e dos
quais quero mencionar os mais importantes. Como prova de coragem pessoal e para
conquistar prestígio, os homens mais jovens caçam os grandes felinos:
Onça pintada (Felis onca): yawa´pinim
Onça preta (Felis onca): yawarum
Onça parda (Felis concolor): yawapira
Jaguatirica (Felis pardalis): mirakayat
Apenas se apossavam das presas como troféu de caça e de algum osso tubular
para confeccionar flautas de bocal, sem orifícios laterais. Somente a partir do contato
com os brasileiros é que alguns Kaiabi passaram a caçar a jaguatirica através de arma-
dilha de cepo, para trocar sua pele por bens de consumo brasileiros. Sua atitude ambí-
gua em relação a esta técnica de caça evidenciava-se claramente quando verificavam,
com satisfação e alegria, que uma jaguatirica havia escapado da armadilha.
Dentes de diferentes tipos de macacos são usados em colares, e dos ossos tubula-
res do coatá são confeccionados pentes. Os dentes de cutia são transformados em lâminas
para facas de entalhe e em enfeites auriculares. Dentes de ariranha (Pteronura brasiliensis):
takapéoo, formam colares. Ariranha e lontra (Lutra platensis): takapé í, além disso, são
caçadas por causa da pele desde o contato com os brasileiros.
Da carapaça do tatu, provavelmente do tatu-galinha (Dasypus novemcinctus):
tatu´i, são feitos braceletes para as meninas.
As bases da economia 95
Por causa das penas, diversas aves constituem caça apreciada. Além do gavião
real (Harpya harpya): kwan‰‰, que é mantido numa gaiola, são caçados, principalmente,
o tucano (Rhamphastos sp): tukan, necessário para confecção de brincos para meninas e
dos ornatos da empenação das flechas; arara (Ara ararauna): kaniné´été, arara azul
(Anodorhynchus hyacinthinus): araraoo, e arara amarela: kaninéwi; ambos os mutuns
(Mitu mitu): mit‰ e mutum carijó (Crax fasciolata): muit‰map; a garça branca
(Casmerodius albus): wuira´tsini; o papagaio amazônico (Amazona sp): aiyruoo, e o
socó (Trigrisoma lineatum ?): akópinim. Todas estas aves fornecem penas para enfeites
de pescoço, cintura e cabeça, e para emplumação das flechas. Fazem agulhas dos tendões
do jacumim, utilizadas para a costura da raque das penas na haste de flechas. A carapaça
peitoral do jabuti é material para tortuais de fusos e diversas conchas são usadas como
cortadores e enfeites.
Os cachorros nunca são aproveitados nas caçadas e, quando viajam nas canoas,
são geralmente amarrados, antes que os índios desçam em terra. Quando farejam algo,
ficam inquietos e latem, sendo então repreendidos pelos Kaiabi e também surrados.
Se numa viagem ou num caminho próximo à maloca os Kaiabi topam com uma
caça ou um simples sinal dela, de pronto concentram nela toda sua atenção, e outros
planos tornam-se secundários. Se mulheres e crianças estão presentes, elas esperam no
caminho ou voltam para a aldeia. Conforme a distância, pelo menos um homem per-
manece com elas.
Em janeiro de 1966, um grupo de homens, mulheres e crianças a caminho de
uma fruteira carregada, espantou um caitetu que, grunhindo, procurou fugir. Todos os
homens o perseguiram por várias dezenas de metros em desabalada corrida, até que o
caitetu se enfiou em um buraco debaixo de um tronco de mais de 2 metros de grossura,
de onde se ouviam seus grunhidos. Inicialmente procurou-se espantar o animal com
folhas compridas de palmeira pinada, Em seguida, fincaram-se galhos retos de 5 a 10
cm de grossura e com altura aproximada de um homem, em semicírculo ao redor do
buraco, amarrando-os com cipó para formar uma cerca.Uma estaca pontuda de uns 2
metros de comprimento foi então batida no chão, em movimentos verticais rítmicos,
no lugar onde se supunha o oco do buraco em que o animal se escondia. Atingiram a
cova, mas nem por isso o caitetu se perturbou. Aí, um Kaiabi trançou, com ramos e
cipós, um cesto de forma cônica, emborcando-o firme em cima do novo buraco. Com
muito custo acendeu-se então um fogo, tentando por mais de meia hora soprar a fumaça para
dentro de uma das aberturas. Conseguiram-no em parte, mas sem o resultado desejado. De-
pois de três horas de trabalho, ainda se escutava o grunhir do caitetu debaixo das raízes do
tronco. Um tanto irritados e mais tarde achando graça, os homens voltaram para a aldeia.
96 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
No dia seguinte, após o nascer do sol, um homem tentou inutilmente tirar o bicho de seu
esconderijo.
Este exemplo mostra que, justamente nas caçadas, a perspectiva econômica
pode ser relegada a segundo plano e que, entre os Kaiabi, ela abrange componentes
pronunciadamente lúdicos.
Diversas vezes observei casos de falta de rentabilidade econômica na caça.
Atirando da canoa, Moanyan abateu um veado e duas queixadas numa só seqüência,
mesmo sabendo que a presa era demais para nós, quatro pessoas: abandonou o veado.
Em abril, um seringueiro presenteou Moanyan e a mim com metade de uma queixada,
o bastante para sustentar-nos durante dois dias de nossa viagem de canoa. Naquela
noite choveu e, embora eu propusesse proteger a carne da água debaixo da rede,
Moanyan deixou-a lá fora. No dia seguinte ela já estava estragada e ao meio dia tive-
mos que jogá-la fora, pois começava a feder. Numa outra vez, Moanyan, com outros
dois Kaiabi e comigo, surpreendeu um bando de macacos. Abatemos três. Moanyan
teria abatido mais bichos sem hesitar, embora três fossem mais do que suficiente.
c) Pesca
Como o seu nome indica, o rio dos Peixes é piscoso e a pesca, ao lado da agricul-
tura e da caça, pertence às bases de subsistência dos Kaiabi. Mas há uma diferença rela-
tivamente grande entre as espécies acima e abaixo do Salto, pois para as espécies maiores
como o jaú, matrinchã e o rubafo, este trecho é inacessível devido às cachoeiras do Salto.
Pescam-se sobretudo os seguintes peixes:
Curimatá (Prochilodus sp): uwuya
Jaú (Paulicea sp): yania´oo
Matrinchã (Characinus sp): piau´oo
Pacu (Myteles sp): baku´oo
Peixe-cachorro (Raphidon sp): iaikãn
Cascudinho (?): iniatatú
Peixe-agulha (?): ipirafukuoo
Piava (Leporinus sp): pia´wi
Pintado (Pseudoplatystoma sp): uruwi
Rubafo (Xiphostoma sp ?): pira´oo
Tucunaré (Cichla sp): tukunaré
Traíra (Hoplias sp): téré´it
Grande parte destes peixes pode ser flechada de barcos próximos da margem,
particularmente no tempo da seca, quando se formam poças rasas de água onde estão os
peixes. Para isso o arco é muitas vezes mantido na horizontal e, quando disponível, empre-
As bases da economia 97
ga-se uma flecha especial para pesca, provida de diversas pontas. Na estação chuvosa
caminha-se pelo mato inundado próximo às margens, com o arco levemente armado, para
poder flechar imediatamente um peixe em fuga. Nestas águas rasas e lamacentas surpreen-
demos, em fevereiro de 1966, durante uma excursão de caça, um cardume de peixes
pequenos. Ele denunciou-se por um zunido estranho, permeado por sons metálicos muito
límpidos. Imediatamente os homens tomaram suas facas e perseguiram os peixes,
transpassando-os com lances certeiros. Em questão de cinco minutos capturamos de 2 a 3
quilos de peixe. Uma outra técnica praticada na estação seca é o envenenamento de peixes
com timbó (Paulinea sp ?). Esta espécie de cipó é cortada em pedaços de aproximada-
mente 50 cm de comprimento, enfeixados e batidos com paus ou com remos em águas
paradas, até que a seiva leitosa atordoe os peixes numa determinada área. Mulheres e
crianças também ajudam a recolher os peixes. Segundo informações dos Kaiabi, pequenas
frutas redondas e vermelhas de uma árvore também são usadas como veneno de pesca.
Nos córregos próximos do rio dos Peixes, os Kaiabi costumam construir barreiras
de ramos e folhas de palmeira pinada, que conduzem os peixes que sobem os riachos a
uma armadilha cilíndrica feita com cipó e raques de palmas. Estas nassas são controladas e
esvaziadas diariamente ou cada dois dias.
No rio, próximo da aldeia, também se pegam peixes pequenos com peneira: ela é
afundada junto à margem, os peixes são atraídos com restos de comida ou com farinha de
mandioca e, em seguida, levanta-se a peneira de chofre. Só as mulheres pescam assim, por
conta própria, o produto limitando-se a peixinhos e girinos. Com muita destreza, podem
ser capturados peixes de até 20 cm de comprimento.
A partir do contato com seringueiros, a pesca com anzóis e fio de náilon passou a
ter crescente importância, já que é a única maneira de pescar no rio fundo na estação
chuvosa. Assim se pegam peixes grandes, sendo anzóis e linhas de pescar objetos de troca
muito apreciados. Segundo informações dos Kaiabi, não havia antigamente método seme-
lhante de pesca.
Quero ainda mencionar o peixe elétrico (Gimnotus electricus): arapóo, que talvez
não se encontre no rio dos Peixes. Mas ele é capturado pelos Kaiabi em suas excursões
maiores pela região do Teles Pires e Juruena, já que seu otólito é usado na confecção de
pequenas figuras antropomorfas.
d) Coleta
Frutas silvestres fazem parte da alimentação normal dos Kaiabi, sendo particular-
mente abundantes na época das chuvas. Se durante a caçada um Kaiabi topa com uma
árvore carregada de frutas, ele anota sua posição, abre uma picada em linha reta até a
aldeia e pede à família, e às vezes também a outros moradores da aldeia, para irem juntos
98 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
buscar as frutas. A árvore é derrubada à altura do peito, apanham-se as frutas maduras que
são carregadas em cestos para a aldeia, em geral pelas mulheres ajudadas por crianças.
Durante a atividade, todos comem dos frutos. Com raras exceções, não me foi possível
classificar estas árvores:(15)
ka´a´iwa: cacau (Theobroma cacao)
i´wapirã: ?
yutawa´i: ?
reitranaoo: ?
i´wapiruru: ?
i a´yowoo: ingá (Inga sp)
akutsikanaf‰: ?
Acrescentam-se ainda as frutas de uma espécie de cipó (yawarémo´a) e de um
arbusto que cresce junto ao rio (takamo). No campo ocorrem os frutos do pequizeiro
(Caryocar sp): kawasini´wa, e os da palmeira inajá (Maximiliana regia): inataip.
O fruto economicamente mais importante é a castanha-do-pará (i´waoo) da casta-
nheira (Bertholletia excelsa): i´waooip. Esta é a árvore mais importante das florestas do
Rio dos Peixes, encontrando-se em grande quantidade em alguns lugares do rio. Nunca é
derrubada durante as expedições de coleta. Homens e mulheres procuram sistematica-
mente pelo chão os ouriços caídos e, depois de partir a casca muito dura com o facão,
recolhem as castanhas em grandes cestos de transporte. As castanhas-do-pará são arma-
zenadas por diversos meses e representam a principal garantia nos tempos de escassez.(16)
Certos tipos de cogumelos são coletados para pessoas que estejam correndo al-
gum perigo físico ou espiritual.
Mel é a única substância doce colhida pelos Kaiabi, sendo extraordinariamente
apreciado. Os Kaiabi distinguem pelo menos quatro tipos de mel:(17)
- de abelhas, em ocos de árvore:
tapé´wa
yawa´kan‰

15
Os nomes destas e de outras espécies frutíferas conhecidas pelos Kaiabi podem ser con-
sultados em tabela apresentada na seção complementar ao final desta publicação. (n. ed.)
16
Esta espécie, de grande importância para os Kaiabi, praticamente não ocorre na área
do PIX. (n. ed.)
17
Estudos posteriores indicam a existência de mais de 40 espécies de abelhas e tipos de mel
conhecidos pelos Kaiabi. (n. ed.)

As bases da economia 99
- de abelhas, do lado de fora da árvore:
iwa´oo
- de térmitas:
gupi´ait
O mel tapé´wa é o mais valorizado pelos Kaiabi. Se descoberta uma colméia du-
rante uma expedição de caça, seu mel constitui propriedade do homem que primeiro per-
cebeu a árvore. Se a saída se encontrar muito alto no tronco, derruba-se a árvore, que é
aberta com o machado a mais ou menos 1,5 m abaixo daquele orifício, expondo os favos,
dos quais pinga o mel amarelo claro. Os favos são espremidos com a mão em folhas de
pacova que, dobradas para cima, servem de recipientes. Nesta ocasião as abelhas atacam,
tornando-se necessário grande domínio e concentração para não esparramar o mel com
gestos descontrolados. Ao fim do trabalho, o homem corre para o rio próximo, lava-se
cuidadosamente, livrando-se das abelhas e dos restos de mel. Em geral o mel é transporta-
do em recipientes para a aldeia; os favos são mastigados nas proximidades da árvore e
cospe-se a cera, que é amassada em forma de roletes. Ela serve para a fabricação de
material adesivo.
As quantidades de mel obtidas variam entre 0,5 e 5 litros. Se a saída das abelhas
estiver muito alta ou se a árvore for demasiado grossa, os Kaiabi constróem um andaime
com pequenas árvores, ramos e cipós, e abrem o tronco em cerrada luta com as abelhas.
Nunca observei a técnica de defumação para afastar as abelhas. A coleta de mel de térmitas,
menos valorizado, é pouco popular, pois as ferroadas dos animais são muito dolorosas.(18)

3. Preparo dos alimentos


a) Produtos da roça
Mandioca brava: as ramas de 2-3 m de altura são cortadas um pouco acima do
chão, com um facão, as raízes arrancadas, catadas à mão e amontoadas. Em seguida o
homem, com a ajuda da mulher, leva-as em um cesto até o rio, onde as raízes são postas de
molho numa canoa cheia de água ou numa aguada separada com folhas de palmeira. De-
pois de três dias, são retiradas pela mulher, descascadas à mão, espremidas numa cabaça
com água e prensadas em bolas do tamanho de dois punhos. Uma parte das bolas é logo
passada em peneira e socada no pilão, enquanto as restantes são colocadas num jirau para

18
Atualmente os Kaiabi do PIX estão empenhados na produção de mel a partir da criação de
abelhas nativas e de Apis melífera dentro de um projeto de Alternativas Econômicas realiza-
do pela Atix em parceria com o ISA. (n. ed.)

100 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


secar ao sol ou perto do fogo, folhas de pacova servindo de base. Os flocos, finamente
socados e peneirados, são colocados em cima de um torrador quente, espalhados com a
mão e constantemente revirados e mexidos com uma metade de cabaça de forma alongada,
para evitar que se queimem. Os flocos torrados são novamente peneirados e a farinha
pronta, u´i, é guardada em cabaças. Ela constitui o alimento básico mais importante dos
Kaiabi. De 60 a 80 quilos de mandioca, uma mulher consegue fazer cerca de 50 litros de
farinha em 5-6 dias.
A massa úmida de mandioca peneirada pode também ser transformada em beijus:
com o fundo de uma cabaça, ela é prensada sobre uma chapa de torrar bem aquecida,
formando um bolo achatado de aproximadamente 0,5 cm de grossura e 30 a 50 cm de
diâmetro. Este mani´ókó´ó ou meiyu não é virado, sendo retirado da chapa com o abanador
de fogo quando a parte inferior apresenta cor marrom-clara. Esses beijus têm uma con-
sistência pastosa, não são temperados e permanecem comestíveis por vários dias.
Outra alternativa consiste em misturar a massa de mandioca com castanha-do-
pará bem socada, fazer uma bola grande e deitá-la na cinza: mani´okanapé. Forma-se
assim uma crosta dura, que exala um cheiro delicioso. Ela é quebrada com as mãos e
comida. A bola volta para junto do fogo até uma nova crosta se formar.
Mandioca doce: em ocasiões especiais são arrancadas as raízes dessa espécie
de mandioca, trazidas à maloca e raladas com um pedaço espinhoso da raiz-mestra de
palmeira paxiúba, de modo que os flocos úmidos caiam com algum sumo numa canoa
de casca (pote de chicha). O ralador de paxiúba é amarrado na canoa com um cipó, de
tal modo que a mulher pode trabalhar com as duas mãos simultaneamente. Os flocos
são espremidos e mais tarde jogados fora. O sumo espesso vai ao fogo em grandes
panelas e, sempre mexido, é aquecido lentamente até que se forme espuma. A chicha
quente e pastosa, kamiakut, assim obtida tem sabor muito doce; ela se liquefaz entre-
tanto nas 24 horas seguintes, sendo então fartamente consumida como mani´akawi. É
a bebida de festa dos Kaiabi.
Mandioca mansa (sem veneno): considerada apenas uma curiosidade pelos Kaiabi,
é preparada de maneira habitual na presença de seringueiros por razões de prestígio. Os
índios acham-na “muito pequena e dura”.
O milho é usado principalmente para o preparo de uma bebida: kaw† . As espigas
de milho verde são trazidas para a maloca, debulhadas e os grãos são socados em pilões
por mulheres, geralmente em grupos de duas ou três. A massa úmida é posta numa peneira
e espremida com as mãos em uma cabaça cheia de água; o que resta na peneira é despe-
jado novamente no pilão. Meia cabaça pequena de farinha de mandioca é mastigada por
algumas crianças, sendo acrescentada como minó´ó no mingau de milho, que é posto

As bases da economia 101


sobre o fogo em grandes panelas. Para melhorar esta chicha também se acrescenta
freqüentemente castanha-do-pará e amendoim bem moídos. O mingau kaw†yuk, grosso e
quente, esfria durante a noite e, no dia seguinte, tem sabor extraordinariamente refrescante
e cada vez mais ácido; o açucaramento pela ptialina provocado pela mastigação da farinha
de mandioca promove a fermentação, da qual resulta uma “cerveja” de baixo teor alcoóli-
co (Hartmann 1960:36).
No tempo da seca, as espigas de milho são armazenadas numa choça-celeiro ou
então na própria maloca; as espigas de milho seco são debulhadas e os grãos socados. A
farinha resultante é misturada com água fria; o restante do processo da confecção de chicha
obedece à descrição acima.
Também se pode fazer farinha (awatsiku´i) dos grãos de milho socados, subme-
tendo-os à torragem e ao peneiramento. Esta farinha só se produz em pequenas quantida-
des e é considerada um petisco. Espigas de milho novo também são tostadas diretamen-
te sobre o fogo ou, então, depois de debulhados, os grãos são aquecidos sobre o tor-
rador até ficarem bem tostados e cor de ouro. Finalmente, do milho também são feitos
beijus: mistura-se o milho bem socado com água, de modo a se obter uma massa úmida,
semelhante à semolina, que é torrada em bolos parecidos com os beijus de mandioca: é a
meyus†. O milho preto, uma variedade com grãos negros, é utilizado por ocasião dos ritos
pubertários.
O milho duro recebido dos seringueiros é tratado tal como a mandioca mansa.
O preparo de todas as variedades de inhame, batata-doce, tajá e mangarito é o
mesmo: os tubérculos feculosos são tostados na cinza quente, próximo ao fogo, e são
comidos descascados. Além disso, de batata-doce se faz uma outra chicha: elas são cozi-
das, amassadas e misturadas com água. Resulta daí uma bebida quente, doce, saciante e
não fermentada: yétiki.
As grandes folhas de tajá são cozidas e comidas sem outros ingredientes. As va-
gens de feijão também são preparadas assim. Amendoim se come cru junto com farinha ou
então misturado à chicha do milho depois de bem socado.
Os Kaiabi comem as bananas cruas, armazenando-as, eventualmente, em celeiros
subterrâneos para o amadurecimento.
b) Animais
Os macacos são primeiramente abertos na barriga e destripados; põem-se na bra-
sa o fígado, coração e os intestinos esvaziados com a pressão de dois dedos; são petiscos
especiais. O pelo é chamuscado no fogo, raspando-se depois os pelos chamuscados com
um pedaço de madeira chanfrada. Então é cortado o rabo, igualmente posto na brasa, pois

102 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


assim fica logo pronto para ser comido na hora. O animal é moqueado numa grelha qua-
drada de ramos verdes, sob a qual o fogo arde vivamente. As partes musculosas do corpo
e o miolo têm preferência.
Praticamente todos os outros mamíferos são preparados de modo semelhante.
Mamíferos muito pequenos e aves são cozidos na maioria das vezes. Assim, por
exemplo, o mutum é depenado e lhe cortam as asas e as pernas; depois ele é destripado
pelas costas e o corpo dividido em duas porções iguais e cozidas numa panela. Cabeça e
garras nunca são removidas.
Pyrineus de Souza (1916:91) escreve que no Teles Pires lhe foi presenteado um
pato moqueado com penas e tripas e, mais tarde, uma carne de veado mal moqueada,
já podre, que estava cuidadosamente embrulhada em folhas de pacova (p. 79).
Da carne de mamíferos e aves prepara-se com freqüência o mutap: carne cozida e
socada com os ossos no pilão e misturada com farinha de mandioca, formando um pirão,
do qual se fazem pequenas bolotas com a mão. Elas são passadas na farinha de mandioca
e enfiadas na boca. O mutap é fortemente temperado com pimenta e ingerido quente. O
caldo de carne, téfét, principalmente de macaco, é um alimento forte muito apreciado. É
bem condimentado e bebido quente.
Carne desfiada e tostada é bem socada e peneirada, podendo ser armazenada por
muito tempo em cabaças como farinha de carne, um alimento de alto valor nutritivo.
Semelhante é o preparo dos peixes maiores: são moqueados numa grelha, cozidos
e misturados com farinha de mandioca, formando o imiramutap; a farinha de peixe é ipirakui.
Peixes menores são entalados numa vareta partida e postos sobre o fogo. Peixes muito
pequenos e girinos podem ser embrulhados em folhas de pacova, amarrados com cipó e
colocados na brasa. Os sapos também são entalados em varetas e tostados, comendo-se
suas coxas. Também pode ser preparar mutap com girinos cozidos.
Tartarugas são emborcadas e assadas dentro da carapaça; depois elas são abertas
no peito e comidas. Os ovos crus são chupados, sendo acompanhados de farinha de man-
dioca.
Arrancam os abdomens das saúvas que, depois de tostados, são misturados à
farinha e ao beiju.
c) Frutas silvestres e mel
Frutas com polpa são consumidas sem qualquer preparo; cocos da palmeira
inajá são cozidos em água e comidos em seguida,(19) a fina polpa desses frutos também

19
Atualmente os Kaiabi praticamente não comem o coco de inajá. (n. ed.)

As bases da economia 103


pode ser raspada e bebida com água. Particularmente importantes são as castanhas-
do-pará, consumidas junto com farinha de mandioca ou então piladas e acrescidas à
chicha ou combinadas com pratos à base de mel.
Se o mel não for consumido no local da coleta, ele é misturado com água e bebido:
eiri. Quando em excursões mais demoradas, o principal alimento dos Kaiabi consiste de
farinha de mandioca, transportada em recipientes de entrecasca ou em cabaças, e de
hidromel, preparado a cada refeição, rico em carboidratos, ele constitui a parte mais im-
portante da alimentação.
Em resumo, pode-se se dizer que os Kaiabi contam com uma alimentação mui-
to diferenciada e, a título de exemplo de uma refeição, apresento a seguir o cardápio
da tarde de 25/02/1966: milho fresco assado; castanhas-do-pará com farinha de man-
dioca, acompanhadas de chicha de milho; mutap de cogumelos com farinha da mandi-
oca, acompanhado de hidromel; cocos de inajá cozidos e descascados.
Em um outro dia, 03/08/1966, ocupamo-nos, em três pessoas, a consumir uma
grande queixada, obra de 12 horas.

4. Condimentos e estimulantes
Infelizmente não tive oportunidade de observar entre os Kaiabi o preparo de um
equivalente do sal, pois ele já fora suplantado na ocasião pelo sal grosso dos seringueiros
que, contudo, era raramente usado. Entretanto, o substituto tinha importância secundária
no preparo de alimentos, especialmente quando comparado com a indispensável pimenta.
De acordo com as informações, os homens jovens coletavam antigamente para toda a
aldeia, os brotos de palmeira inajá, entregando-os às mulheres idosas que os queimavam
em trabalho conjunto, socavam bem a cinza e a distribuíam a todas as mulheres. Cada
família nuclear possuía esse sal – yukró´oo – em solução aquosa, para temperar sobretudo
caldos de carne.
Já se disse que a pimenta é o principal condimento entre os Kaiabi. Ela é con-
servada seca e cozida com os alimentos. Seu sabor extraordinariamente picante lembra
o de pimentões.
Souza (1961:81) diz que os Kaiabi não fumavam e cuspiam com desdém os cigar-
ros oferecidos. No Rio dos Peixes, porém, eles fumavam sempre que podiam e só obti-
nham o fumo através de trocas com os seringueiros. Segundo Moanyan, não havia fumo
antes da chegada dos civilizados, mas Tapa achava que antigamente o xamã preparava e
fumava em sessões de cura pequenos rolos semelhantes a cigarros. Hoje, o tabaco é usado
como estimulante por homens, mulheres e também por crianças, além de ser medicamento
prescrito pelo xamã.

104 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


5. Manutenção e aproveitamento de animais
Como na maioria das tribos indígenas das florestas tropicais, há também entre os
Kaiabi uma predileção por xerimbabos e a cada grupo doméstico pertencem alguns ani-
mais que, sem serem em geral de proveito econômico direto, participam da convivência
humana. Filhotes de macacos e pássaros, cujos pais foram mortos na caçada, são trazidos
para a choça, amarrados e alimentados. Pequenos mamíferos e répteis, em especial jabutis,
também são mantidos durante meses e comidos ocasionalmente. Nunca tive a impressão,
contudo, de que esses animais fossem mantidos para fins utilitários. Talvez constituam esto-
que para períodos de escassez de carne.
A arara multicor – kaniné´été – desempenha um papel especial e é caçada com
considerável dispêndio de energia. A um dia de viagem rio abaixo, Mairer‰ descobriu uma
grande árvore em cujo tronco, bem no alto, uma família de araras fizera seu ninho. Vários
meses depois, em meados de fevereiro, procurou-a novamente com um outro Kaiabi e
comigo, para derrubá-la e capturar os filhotes. Devido às muitas raízes tubulares, foi neces-
sário construir um andaime com estacas e cipós e derrubar a árvore na altura de 4 metros.
Dos dois filhotes de arara, um morreu na queda e o outro foi cuidadosamente retirado.
Mairer‰ tratou-o com mingau de farinha de mandioca, que ele tomava entre os lábios. O
casal de araras, muito agitado, voava constantemente em torno do local onde estivera a
árvore. Eu abati um dos pássaros e o outro fugiu. Este filhote de arara foi criado com
grande cuidado e, após meio ano, já era completamente manso.
Quase cada família possuía uma arara, que em geral se movimentava livremente e
nunca era presa em gaiolas.
Só a harpia é mantida numa gaiola resistente. Considera-se impossível amansá-la e
mesmo os adultos temem suas garras. Cada maloca possui uma grande gaiola cúbica apoi-
ada sobre quatro postes de aproximadamente um metro de altura, que se encontra na
periferia do terreiro limpo.
Pássaros não consumidos pelos Kaiabi são regularmente abatidos para a grande
ave de rapina. Quando necessário, tiram-se as penas dela. Com a ajuda de uma flecha,
uma corda de arco solto é colocada em forma de laço em torno de suas patas; puxada de
um golpe, ela imobiliza o animal contra um lado da gaiola. Coloca-se um pedaço de madei-
ra curto entre suas garras, à guisa de garrote, soltam-se em seguida duas barras da gaiola e,
enquanto um homem força para baixo a cabeça da ave, um outro amarra as garras no
garrote de madeira. Só então é retirado o pássaro da gaiola, cuidadosamente seguro, en-
quanto um outro índio dobra os canhões das rêmiges rente ao corpo da ave, cortando-os
na dobra com uma faca. Deixam-se as rêmiges primárias e as retrizes na harpia. Depois de
retiradas, por exemplo, dezesseis penas, a ave é novamente engaiolada.

As bases da economia 105


Desde 1960, aproximadamente, os Kaiabi tiveram, através de Dornstauder, aces-
so aos animais domésticos brasileiros comuns na região. Perceberam logo o valor das gali-
nhas, mas ainda não utilizavam seus ovos nem as alimentavam regularmente. Em ocasiões
especiais, abate-se alguma com flechas, sendo preparada como se fosse caça.
Um peru foi considerado uma grande curiosidade, mas a maioria dos Kaiabi irritou-
se com o gorgolejar e seu comportamento “estranho”. Além disso, as crianças tinham
medo dele e o animal foi morto. Um casal de patos mansos, ao contrário, era muito estima-
do, embora não se multiplicasse: eram tratados como animais de estimação.
A criação de porcos escuros foi introduzida com muito trabalho por Dornstauder e
teve êxito. São mantidos em um grande cercado no Posto Tatuí. Embora sofressem muito
com o ataque de morcegos (vampiros) à noite, eles se multiplicaram. Os leitõezinhos eram
freqüentemente soltos a fim de dar aos meninos de 6 a 12 anos a oportunidades de exerci-
tar-se nas caçadas. Sob os olhares benevolentes dos homens adultos e acompanhados
pelos seus comentários, os meninos praticavam técnicas de aproximação, a colocação de
armadilhas e o uso de arco e flechas, cujas pontas eram cobertas por sabugos de milho.
O cachorro também é um animal importante. Embora não seja usado na caçada e,
comparado com os demais xerimbabos, muito maltratado, todo homem faz questão de
possuir pelo menos um. O prestígio associado a esse bem parece aumentar com o tamanho
do cachorro e, eventualmente, também com sua agressividade. Já em 1955, Dornstauder
observara cachorros no alto curso do rio dos Peixes, e Tolksdorf observa (MS 1958):
“Como de costume, o índio procura prover-se, sempre que pode, de um ca-
chorro. E assim sempre havia alguns cães presentes em cada maloca”.
Em 1966, Kwaban possuía cinco cachorros, que são designados pela palavra por-
tuguesa de kasóró. Os animais recebem nomes que em alguns casos também são usados
para seres humanos, e filhotes recém nascidos são distribuídos como presentes.
Jiraus, um pouco mais baixos do que aqueles usados para a guarda de provisões,
são usados como “casa de cachorro” e os animais ali ficam amarrados durante o dia.
Apenas os filhotes ficam soltos, sendo tratados e acarinhados.

106 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


capítulo V

EQUIPAMENTO MATERIAL(20)

1. Circulação e transporte
a) A construção de caminhos
Da maloca partem picadas em todas as direções, elas recebem o nome dos donos
das roças a que se dirigem. Tais caminhos continuam floresta adentro e podem estender-se
em alguns casos até a uma distância de dois dias de marcha. Todas as características locais
são observadas nos seus traçados: nas clareiras abertas pela queda de árvores caminha-se,
sempre que possível, sobre os troncos caídos; brejos e maciços de bambu são contorna-
dos; na proximidade de rios, aproveitam-se as travessias de porcos-do-mato e antas, as-
sim como os vaus usados por esses animais para varar rios. A picada é aberta a partir do
centro do caminho de modo que os golpes de facão se alternam para a direita e para a
esquerda e os galhos talhados são vergados para o lado. Quando há mudança de direção,

20
Na tradução deste capítulo foram incorporadas as informações constantes de um artigo
anterior sobre a cultura material dos Kaiabi, publicado por Friedl e Georg Grünberg em 1967.
Para elaborar aquele trabalho, os autores analisaram as duas coleções etnográficas, respecti-
vamente de 106 e 55 objetos, recolhidas por G. Grünberg em 1966 e que hoje encontram-
se, a primeira, no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e, a se-
gunda, no Museum für Völkerkunde und Schweizerisches Museum für Volkskunde Basel,
na Suíça. Para fins comparativos, os autores ainda se utilizaram dos materiais etnográficos
trazidos do rio dos Peixes em 1957 e 1959/60 por Fritz Tolksdorf, hoje guardados no Insti-
tuto de Etnologia de Göttingen e no Museu de Etnologia e Pré-História de Hamburgo, na
Alemanha. Havia ainda uma pequena coleção de artefatos Kaiabi no Museu de Etnologia de
Berlim, reunidos em 1927 por Max Schmidt no Posto Pedro Dantas do rio Teles Pires
(Schmidt 1942) mas, de acordo com uma informação pessoal do dr. Günther Hartmann,
daquela instituição, ela foi em grande parte destruída durante a Segunda Guerra Mundial.
Os autores do citado artigo organizaram-se de acordo com o trabalho modelar de Gerhard
Baer (1960), baseando-se os termos técnicos em Hirschberg/Janata (1966) e, na área das téc-
nicas têxteis, principalmente em Bühler-Oppenheim (1948). Os trabalho de tradução também
se utilizaram do Dicionário do artesanato indígena, de Berta G. Ribeiro. As citações extraí-
das da escassa bibliografia sobre os Kaiabi têm função confirmatória e, para a identificação
da fauna, usou-se o trabalho de Carvalho (1951). Aqui, na tradução, o esquema descritivo
original de cada item do equipamento material dos Kaiabi não foi obedecido, a fim de ade-
quar-se o conteúdo ao formato da monografia. (n. t.)

Equipamento material 107


as indicações são mais precisas, quebra-se um número maior de galhos ou, então, arranca-
se parte da casca de uma árvore. O caminho, às vezes, passa dentro da água, o que não é
considerado desvantajoso, desde que ela não passe acima do joelho. Como os Kaiabi
sempre andam em fila indiana, sem exceção, mesmo os caminhos mais freqüentados apre-
sentam, no máximo, dois metros e, em geral, 50 centímetros de largura.
b) Transporte fluvial
Todas as viagens dos Kaiabi são feitas por via fluvial, apenas durante as caçadas e
na passagem de divisores de água é que andam a pé.
Meio de transporte é a canoa de casca e, desde o contato com os brasileiros, a
canoa monóxila. Já em 1955, Dornstauder observara na aldeia Temeoni uma canoa
monóxila que dava a impressão, entretanto, de ser pouco estável e de haver sido imi-
tada com grande esforço. Em 1966, as canoas de casca eram confeccionadas apenas
em emergências.
No caso da canoa monóxila, o impulso é dado com remos, os homens sentados um
atrás do outro remam alternadamente à esquerda e à direita, com batidas de pá curtas e
fortes, enquanto o embate dos cabos dos remos na borda da canoa marca a cadência. O
último homem pilota, torcendo o cabo do seu remo e, se necessário – em corredeiras, por
exemplo – ele também rema. Depois de 20 a 40 batidas, numa freqüência de 20 a 25 por
minuto, fazem uma pequena pausa, o que, por ocasião da subida de um rio, leva invariavel-
mente à completa cessação do movimento. Nas corredeiras a freqüência é elevada para 45
batidas por minuto, perfazendo um total de 200 sem pausa, o que acarreta perda do fôlego
e forte transpiração. Não conseguindo transpor a corredeira, os homens deixam-se levar
para águas paradas próximas, a fim de descansar e tomar novo impulso. Na estação seca
sobem o rio levando a canoa em varas que medem até quatro metros. É comum terem de
desembarcar e, com água até a cintura, levantarem a canoa até passarem as pedras. Rio
abaixo, usam os remos apenas para governar a canoa e, sobretudo na estação seca, são
necessários enorme destreza e bom conhecimento da topografia para encontrarem os ca-
nais mais convenientes nas corredeiras.
Para dar uma idéia da capacidade de uma canoa monóxila, basta mencionar que
aquela em que viajamos para a aldeia Temeoni, em março de 1966, levava seis adultos, cinco
crianças, três cachorros, alguns xerimbabos, e víveres para duas semanas. Nas maiores ca-
noas de casca costumava-se transportar, antigamente, cargas semelhantes.
b.1.) Canoa de casca (i/at)
Feitas por homens com yutai/p, jatupeiro (Hymenea sp.), casca de jatobá. Na sua
falta i/´waooi/p, castanha (Bertholletia excelsa), casca da castanheira-do-pará.

108 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Medidas: comprimento 3-6 m; largura 60-120 cm; profundidade, mais de 30 cm;
grossura da casca 2-3 cm.
Feitura: com o facão corta-se uma tira estreita de casca de uma árvore apropriada
a uma altura de 1 metro do chão. Se a casca for suficientemente grossa, ergue-se junto à
árvore um andaime simples de troncos e cipós de 2 m de largura por 6 m de altura, e que
apresenta três a quatro plataformas de galhos a intervalos regulares. Com o machado ta-
lha-se então no tronco um grande retângulo de cantos arredondados, nas dimensões dese-
jadas (de acordo com o tamanho da canoa), levantando-se ligeiramente as suas bordas
com alguns golpes de machado. Em seguida aplicam-se cunhas entre o cerne e a casca a
intervalos de cerca de 50 cm, que são aprofundado de modo uniforme em todos os lados.
Esta é a parte mais difícil do trabalho, uma vez que a casca pode romper-se. Estando a
casca quase solta, acende-se uma fogueira ao pé do tronco para torná-la mais flexível,
descolando-se toda em seguida. Os dois lados correspondentes à curvatura do tronco,
com formato de tonel, são alisados por fora e, a golpes de machado, tornados elásticos.
Por fim são vergados com os pés, formando-se um cocho em que proa e popa apresentam
uma parede dobrada para dentro com borda voltada para fora. A fim de evitar que a casca
ainda elástica volte ao estado original, as quatro pontas vergadas são respectivamente
fixadas com um laço de cipó torcido, que passa por dois orifícios laterais. A superfície
inferior da canoa não é trabalhada.
Dados complementares: por não terem linhas aerodinâmicas, as canoas só permi-
tem velocidade limitada. São acionadas por remos e, na estação seca, por varas de madei-
ra ou bambu para viagens rio acima. A capacidade, conforme o tamanho da canoa, alcança
até sete pessoas com bagagem e provisões. As canoas pequenas são guardadas no interior
das casas e também servem de cochos de chicha, kaw†rÞr‰.
Documentação: Schmidt (1904:467) apud Bostein (1903): “... vi duas canoas de
casca de jatobᔠ. Sousa (1916:83): “A canoa caiabi é um verdadeiro cocho com as extre-
midades egualmente levantadas e amarradas com cipó. a prôa alongada ou em ponta,
como a pêpi (a canoa de casca do Bakairi), dificilmente rompem a corrente das águas, só
servindo para navegar rio abaixo. A casca do cajueiro, apesar de grossa, é muito flexível,
não tendo a mesma consistência e firmeza da pêpi feita de casca de jatobá. O caiabi rema
em pé, muito ligeiro, e quando se cansa, passa o remo a outro indio. Não tem piloto; o
mesmo remador dá direção à canoa que, não tendo prôa nem pôpa, avança
indifferentemente com uma ou outra extremidade para frente”. Nimuendajú (1948:309)
incorporou esta descrição de Sousa. De acordo com os Kaiabi, eles hoje não empregam a
casca do cajueiro para as suas canoas. A afirmação de que remam em pé deve basear-se
em erro de observação.
Equipamento material 109
b.2.) Canoa monóxila
Feita por homens com a madeira de i/wi/ni/p, árvore tabuinha (?).
Medidas: comprimento 4-8 m; largura 50-90 cm; profundidade 40-60 cm.
Feitura: a árvore cortada é trabalhada com um formão até atingir a forma desejada
e, pronta a canoa, ela é empurrada para o rio sobre troncos roliços. Tem a forma típica da
canoa brasileira, servindo de bancos, na proa e na popa, os reforços talhados na madeira
maciça. A canoa monóxila passou a ser usada depois do contato com os seringueiros,
sendo preferida à de casca pela sua maior facilidade de manejo e resistência.
b.3.) Remo (i/atpi/woa p)
Construído por homens e meninos mais velhos da madeira de i/p ro´wi/p,
cuarantã(21), (?) uma árvore com raízes tubulares. Usado pelos homens.
Medidas: comprimento 130-140 cm; largura da empunhadeira, aproximadamente
10 cm; largura da pá 25-30 cm.
Feitura: com o machado tira-se uma lasca da parte inferior da mencionada árvore,
continuando-se a trabalhá-la com o facão. Cabo e punho são polidos com folhas siliciosas.
A pá do remo tem forma aproximadamente rombóide, com ângulos arredondados. O pu-
nho engrossado junto à extremidade proximal reta, apresenta-se um tanto torcido para a
esquerda. Um remo recém feito é de coloração amarelo clara e afunda na água. Após
alguns meses, assume uma coloração avermelhada, fica mais leve e flutua. O punho torcido
para a esquerda possibilita, pelo menos a indivíduos destros, a máxima utilização do efeito
alavanca.

2. Instrumentos de trabalho
Segundo informações dos Kaiabi, eles obtinham material lítico para seus instrumen-
tos de trabalho no yu´nap (córrego Machado), um afluente da margem direita do rio dos
Peixes, dois dias e meio de viagem abaixo da aldeia Temeoni. Isto corresponde aos infor-
mes de Guimarães (1844:309) e do Anônimo da Nova Navegação (1856:100), explican-
do também a notícia de von den Steinen (1886:203) de que os Kaiabi detinham o monopó-
lio dos machados de pedra na área do Teles Pires. Naturalmente não me foi possível ob-
servar a confecção das lâminas de facas, machados e pontas de flecha, pois instrumentos
líticos não eram mais utilizados em 1965.

21
Trata-se da peroba (iperom’yp), Aspidosperma sp, família Apocynaceae. (n. ed.)

110 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


a) Machado de pedra (ytayi/p) (figura 1)
Empregado antigamente para trabalhos em madeira, tinha a forma achatada com
talão redondo. Era feito e usado exclusivamente por homens.
Medidas: cabo com comprimento de 45 cm, diâmetro de 3 cm e espessura
uniforme; lâmina com largura, no gume, de 6,3 cm, espessura 2 cm, largura no lado
oposto 4 cm com 1 cm de espessura; comprimento 10,4 cm.
Feitura: de um galho reto preparava-se o cabo e o orifício de fixação com o
facão. A lâmina era talhada com outras pedras e depois polida e afiada com areia e
água, sendo finalmente ajustada no orifício do cabo e presa com uma mistura de resina
de árvore e cera de abelhas. O exemplar assim descrito foi confeccionado como mode-
lo para o pesquisador.
Documentação: Schmidt (1929:95): “... dois machados de pedra com cabos de
madeira e uma lâmina de machado. A lâmina é ajustada, sem outra amarração, a um
orifício que atravessa toda a parte dianteira do cabo, tal como se fazia antigamente na
região dos formadores do Xingu. O cabo do machado maior, com lâmina lítica polida,
apresenta uma forma de borduna simples que lembra a dos machados Guayaki, en-
quanto o outro machado, extremamente pequeno, sugere, pela forma, os da região do Alto
Xingu”. Schmidt (1942, lâmina XI, Fig. 26: ilustração dos mencionados machados de
pedra).

Figura 1: MACHADO DE PEDRA

b) Lâminas de machados de pedra


As três lâminas, encontradas por um Kaiabi ao trabalhar na roça do Tatuí, têm
formato achatado com talão redondo, estando uma quebrada ao meio.
Medidas: um exemplar com 9 cm de comprimento e 10 cm de largura; outro
com comprimento de 12 cm e largura de 6,5 cm.
Feitura: vide 2a.
c) Formão (paratsi) (figura 2)
Hoje em desuso, era feito por homens e por eles usado para trabalhar madeira e
penas, em especial durante a confecção de flechas.
Equipamento material 111
Medidas: um exemplar com 12,5 cm de comprimento e outro com 11 cm.
Materiais: cabo de madeira; akutsi, cutia (Dasyprocta aguti), dente de cutia; enro-
lamento com fio de algodão.
Feitura: na extremidade ligeiramente curva de uma varinha de madeira prende-
se o incisivo de uma cutia, de tal modo que a sua superfície cortante forme um prolon-
gamento da haste de madeira. A raiz do dente emerge em forma de meia lua, servindo
de contraforte para a mão. A amarração é feita com fino fio de algodão que envolve em
numerosas voltas cruzadas o dente e a haste. Num dos espécimes recolhidos, a raiz do
dente foi enrolada em fio de algodão e recoberta com resina, provavelmente para
evitar o estilhaçamento.

Figura 2: FORMÃO

d) Lâmina de faca de pedra (itayi/p)


Não mais usada hoje em dia, foi encontrada a dois dias e meio de viagem abaixo da
aldeia Temeoni, no córrego Machado. Tem o formato de um triângulo equilátero que vai se
afinando para um retângulo estreito em direção a uma extremidade, metade da qual está
quebrada. De acordo com os Kaiabi, essas lâminas eram entaladas em cabos de madeira
e usadas como “facas”. Sua feitura e uso eram do domínio dos homens.
Medidas: 6 cm de comprimento e 5 cm de largura.
3. Armas e armadilhas
Os Kaiabi empregam, exclusivamente para a guerra, uns cacetes chatos provi-
dos de empunhaduras retas que se alargam nas extremidades, e de folha ampla que
termina em ponta pouco aguçada, de secção côncavo-convexa. Arco e flecha são
usados para guerra, caça, pesca e fins cerimoniais. As pontas das flechas, entretanto,
e em parte também as suas hastes, são adaptadas ao fim específico a que se destinam.
No ano de 1966, a maioria dos homens possuía, além disso, cartucheiras brasileiras e
alguns também tinham espingardas de pequeno calibre (calibre 22) e revólveres (calibres
32-38).

112 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


a) Borduna (moa p) (figura 3)
(22)
Feita pelos homens da madeira da palmeira tsi/ri/p, siriva (Syagrus speciosa ?),
é de uso masculino, como arma de guerra.
Medidas: comprimento total 51 cm; comprimento do punho 27 cm; largura do
punho 4,5 cm; comprimento da lâmina 24 cm; largura da lâmina 10 cm.
Feitura: de uma palmeira derrubada destaca-se um pedaço da dura madeira, lim-
pando-o do miolo esponjoso. O facão talha a borduna no seu formato típico, achatada,
com um punho reto que se alarga na extremidade e se espalma em direção à ponta pouco
aguçada. A curvatura do tronco da palmeira resulta numa lâmina ligeiramente côncava. O
acabamento é o seu polimento com uma pedra ou um caco de vidro.
Dados complementares: encontrei entre os Kaiabi outras bordunas desse for-
mato e com as seguintes dimensões: 93 cm X 15 cm; 73 cm X 13 cm; e aproximada-
mente 90 cm X 15 cm, tendo esta um aspecto rombóide. A borduna acima descrita é,
portanto, um exemplar relativamente pequeno.

Figura 3: BORDUNA

Documentação: von den Steinen (1894:392): “Possuem bordunas bem traba-


lhadas de madeira da palmeira bacayuva, envolvidas em trançado, com cerca de 1
metro de comprimento e na forma de varas achatadas. Carregam-nas presas por uma
corda ao braço”. Essa informação, provavelmente errônea, fornecida pelos Bakairi,
foi incorporada por Nimuendajú (1948:309). Todas as bordunas que conheço eram
feitas de siriva, medindo menos de 1 metro de comprimento. A borduna aparentemente
maior dos Kaiabi (97,5 cm de comprimento) pertencia ao chefe Temeoni e encontra-se
hoje no Museu de Göttingen, sob o número Am 3559.

22
A siriva foi identificada recentemente a partir de uma coleta realizada no Rio dos Peixes em
1999. Trata-se da espécie Bactris macana, da família das palmeiras Arecaceae. (n. ed.)

Equipamento material 113


b) Arco (wi/rapat) (figura 4a)
Confeccionado e usado por homens, é uma arma de caça, mas também usada para
a pesca. Feito com tsi/ri/p, siriva, e tendo corda de algodão, seu formato é de uma ripa
ligeiramente curva, de secção transversal circular nas pontas e achatada nas faces interna e
externa na altura de empunhadeira.
Medidas: comprimento 208 cm; maior diâmetro 3 cm.
Feitura: corta-se uma grande palmeira siriva, de preferência rente ao chão, lim-
pando-a dos espinhos até uma altura aproximada de 3 metros. Essa parte é cortada,
dividida ao meio e de uma das metades desbastam-se ripas de uns 10 cm de largura,
conforme o número de arcos a serem preparados. Limpas do resto dos espinhos e do
miolo, as ripas são aparelhadas com o facão. Para o acabamento, o arco é entalado
entre o dedão e o segundo dedo do pé e trabalhado à faca para adquirir um formato
arredondado que se afina em direção às extremidades e achatado nas faces interna e
externa na altura da empunhadura. Nas duas pontas recorta-se um ombro contínuo e,
finalmente, todo o arco é alisado com as folhas siliciosas de um cipó. Quatro fios de
algodão, respectivamente torcidos em Z e, em seguida, reunidos em torção S, formam a
corda do arco, que ainda é impregnada com a seiva vermelha da árvore muiwai/p (?). A
corda é presa por um nó ao ombro da ponta inferior do arco, na ponta oposta por um laço
duplo, voltando pela face externa até pouco acima da empunhadura onde é enrolada (figu-
ra 4b).

Figura 4a

Figura 4b

Para armar o arco, apóia-se a sua ponta inferior no chão, segurando a oposta com
as duas mãos. A empunhadura é vergada para baixo com o joelho e a corda, assim afrou-
xada, é presa e esticada na ponta superior com uma nova laçada.
Carrega-se o arco debaixo do braço esquerdo, ficando o cotovelo um tanto afas-
tado do corpo, e com a corda voltada para cima. As flechas, com as pontas voltadas para
frente, repousam sobre a face interior do arco. Para disparar, segura-se o arco na vertical.
114 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
Quando se pesca de canoa, ele também pode ser mantido horizontalmente. A flecha en-
costa no lado esquerdo do arco, entre o dedo médio e o indicador da mão esquerda,
enquanto os entre os três dedos médios da direita retesam a corda e o indicador e o dedo
médio seguram a extremidade da flecha. Às vezes, o dedo mínimo também é usado.
Para proteger o punho esquerdo do retrocesso da corda, o pulso é envolvido com
um grosso cordel na extensão de uns 10-15 cm.
Documentação: Schmidt (1929:96): “No antebraço, logo acima da mão, os ho-
mens usavam um largo anel formado pelo enrolamento em espiral de uma longa corda
grossa”. Certamente não se tratava de um enfeite, como Schmidt supunha, mas do protetor
de pulso mencionado acima.
c) Flechas
Na estação seca os Kaiabi cortam hastes retas de camaiúva e levam-nas em gran-
des feixes para a aldeia. Atadas entre si pelas extremidades com fios de algodão, elas ficam
secando ao sol. Leves curvaturas das hastes são corrigidas sobre o fogo. O preparo das
flechas e o seu uso são reservados aos homens.
c.1.) Flechas para fins cerimoniais no Yawotsi (oi/p). (figura 7)
Os exemplares nºs 2-12, 14 e 15 foram recolhidos no Tatuí e o de nº 13 na aldeia
Temeoni. Em todos a haste era de kama´yi/p, camaiúva (Guadua sp.), usando-se
enrolamento de embira, fibra torcida de tucumã, tucum (Astrocarium sp.), algodão finamente
fiado, mistura de cera e resina e, no entalhe, plumas vermelhas e amarelas de tukan, tucano
(Ramphastos sp.). Quanto à emplumação, os exemplares do Tatuí constavam de penas de
kanine´ete, arara (Ara chloroptera) e muit‰, mutum (Mitu mitu). As penas do exemplar
13 eram de kanine´ete, arara (Ara chloroptera) e kwan‰‰, gavião real (Harpyia harpyia).
O exemplar 2 tinha ponta de madeira clara, o de nº 13, ponta de tsi/ri/p, siriva, e os demais
de madeira marrom.
Medidas:
nº 2: comprimento total 151 cm; da ponta, 18,5 cm;
nº 3: comprimento total 152 cm; da ponta, 19 cm;
nº 4: comprimento total 152 cm; da ponta, 18 cm;
nº 5: comprimento total 152 cm; da ponta, 17 cm;
nº 6: comprimento total 152 cm; da ponta, 18 cm;
nº 7: comprimento total 152,5 cm; da ponta, 17 cm;
nº 8: comprimento total 151,5 cm; da ponta, 18 cm;
nº 9: comprimento total 151,5 cm; da ponta, 18 cm;
nº 10: comprimento total 151 cm; da ponta, 14 cm;

Equipamento material 115


nº 11: comprimento total 152 cm; da ponta, 18 cm;
nº 12: comprimento total 152 cm; da ponta, 12,5 cm;
nº 13: comprimento total 131,5 cm; da ponta, -;
nº 14: comprimento total 152 cm; da ponta, 18 cm;
nº 15: comprimento total 151,5 cm; da ponta, 17,5 cm;
Feitura: entalha-se primeiro a haste de camaiúva na extremidade junto ao nó,
prendendo ali, com uma mistura de resina e cera, quatro plumas amarelas e vermelhas
do peito do tucano, as quais ainda são atadas com um fio de algodão torcido formando
um padrão decorativo. As duas pontas desse fio terminam em nó e ficam soltas em um
comprimento de uns 3 cm. O atilho do fio ainda é reforçado com dois laços de embira.
Rêmiges pretas de mutum e vermelhas de arara são cortadas ao meio, ao longo
das raques, aguçadas e liberadas das barbas. Na haste de camaiúva furam-se seis a dez
orifícios com um prego encabado ou um formão de incisivos de cutia. Prendem-se
provisoriamente as pontas das raques à haste com um cordel de algodão e, em seguida,
costura-se com uma agulha de tendão de wuiraoo, jacamim (Psophia viridis) e uma
fibra de tucum as meias-penas à haste, dando-lhes uma ligeira torção. A emplumação
adquire sua forma definitiva quando se chamusca a beirada das meias-penas com um
pedaço de casca da árvore itaki/pe´i/p (?) em brasa. O fio de algodão nas pontas das
raques é substituído por anéis de embira que, provavelmente, têm valor decorativo
(figuras 5b e 6 b).
De um galho reto recorta-se com o facão uma ponta que é introduzida na haste
de maneira a apoiar-se no nó (figura 5a). A ponta da flecha nº 2 foi provida de quatro
farpas retas, lateralmente alternadas (figura 6a).

6a 6b

Figura 5a: PONTA LISA


Figura 5b: EMPLUMAÇÃO
Figura 6a: PONTA COM FARPAS
Figura 6b: EMPLUMAÇÃO

5a 5b

116 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


c.2.) Flechas de caça (oi/p)
Sempre providas de vareta, ou seja, de uma peça intermediária entre a haste e a
ponta perfuradora da flecha. Nos dois exemplares recolhidos no Tatuí, a vareta era de i/wi/
raiwa´i/p (?), a ponta de ferro e a emplumação de penas de muit‰, mutum (Mitu mitu) e
ak pinim, socó (Tigrisoma lineatum ?).
Medidas: em um dos exemplares, o comprimento total é de 172 cm, o da vareta 26,5
cm e o da ponta 7 cm; no outro, as medidas correspondentes são 169,5 cm, 26 cm e 8 cm.
Feitura: para o preparo da haste e da emplumação ver 3.c.1. A vareta é talhada
com o facão e sua extremidade superior tem um corte oblíquo. Corta-se a cabeça de um
prego grosso de ferro, aguçando essa ponta, enquanto a outra é dobrada em um ângulo de
uns 30 graus. Ajusta-se então a ponta à extremidade oblíqua da vareta de tal forma que a
extremidade dobrada forme uma fisga, sendo a junção enrolada com fibra de tucum. Este
enrolamento, em seguida, é betumado com resina e cera e pintado de preto com carvão.
Dados complementares: originalmente e, às vezes até hoje, a forma da ponta era
trabalhada em osso de macaco. As duas penas da emplumação nunca têm o mesmo tamanho
e são sempre de duas espécies diferentes de aves. No momento do tiro, a pena maior ip p o
está sempre voltada para cima, enquanto a menor aponta para baixo. Sempre se preparam,
simultaneamente, duas flechas iguais que, durante a caçada, também são disparadas uma logo
após a outra. Os Kaiabi as designam por “companheiras”.
Documentação: Schmidt (1904:468): “... na ilustração ao lado” (que representa a
ponta de osso, a emplumação e a amarração da vareta) “da flecha que procede da expe-
dição Bodstein e que me foi amavelmente presenteada por um companheiro na viagem de
vapor Paraguai abaixo, a haste é de cambayuva, tal como me diziam os Bakairi. A ponta de
osso da flecha de 1,60 m de comprimento é presa com resina e um enrolamento de cordel
de fina fibra vegetal. A ligação da vareta com a haste é reforçada com um enrolamento de
casca de waimbé (Philodendron). As duas meias-penas que formam a emplumação na
extremidade inferior são costuradas através de orifícios feitos na haste e amarradas em
cima e em baixo com um pedaço de fio ou de cipó. O entalhe na haste fica paralelo às
penas, não se acrescentando tampões a ele. Pluminhas decorativas emergem do enrolamento
existente junto ao entalhe.”
c.3.) Flecha de caça com ponta de bambu
A confecção da haste, da emplumação e da vareta seguem a descrição anterior.
Para o preparo da ponta, corta-se um pedaço de uns 20 cm de bambu, um pouco acima
do nó, dele separando uma lasca de aproximadamente 3 cm de largura que é aguçada
acima do nó. Em direção à extremidade oposta, essa lasca primeiro se alarga um pouco

Equipamento material 117


para depois estreitar-se até formar uma lingüeta que é então amarrada na vareta e colada
com resina.
c.4.) Flecha de pesca
O preparo da haste, da emplumação e da vareta seguem a descrição de c.2. À
guisa de ponta, amarram-se na vareta quatro arames de uns 15 cm de comprimento, atra-
vés de um atilho de cordel de algodão, de modo a ficarem um tanto extrovertidos.
Usava-se, antigamente, a madeira de inatai/p, inajá (Maximiliana regia) para a
confecção da ponta.
d) Ponta de flecha lítica
Encontrada no córrego Machado, a dois dias e meio de viagem a jusante da aldeia
Temeoni, essa ponta tinha o formato de um triângulo equilátero com 4 cm de lado. Os
Kaiabi nada souberam dizer sobre a confecção e função do objeto.
e) Nassa (itsi´a)
Feitas e instaladas pelos homens, as nassas são usadas para pegar peixes. Colo-
cam-se essas armadilhas em barragens feitas de galhos e folhas de palmeira, com a boca
virada rio abaixo. São feitas de nervuras de i/wi/ka uí/p, uma palmeira, e cipó. O
exemplar aqui descrito mede cerca de 1,5 m de comprimento, apresentando um diâ-
metro de 40 cm.
Feitura: as nervuras de 1,5-2 cm de largura são atadas, a intervalos regulares, com
cipó a um anel do mesmo material, de modo a formar-se um cilindro. Uma das extremida-
des é amarrada com cipó formando um cone, enquanto as nervuras que ultrapassam o anel
são dobradas para dentro, dando origem a um funil com pequena abertura central. Para
evitar que as nervuras saiam do lugar, elas ainda são atadas entre si, também com cipó, em
quatro ou cinco pontos do objeto. Para retirar os peixes aprisionados, a amarração de cipó
é desfeita numa das extremidades e refeita em seguida para a reutilização da nassa.
4. Produção de fogo
Antigamente, os Kaiabi só produziam fogo com paus ignígeros, técnica ainda hoje
utilizada de vez em quando. Em excursões de caça e viagens os fósforos são muito apreci-
ados. Alguns Kaiabi também conseguiram obter isqueiros através de troca, usando-os,
porém, mais por questões de prestígio.
a) Paus ignígeros
Para obter fogo, o bastão-base é colocado no chão e seguro com o pé direito. O
outro bastão é apoiado numa das concavidades do primeiro e girado, entre as palmas das
mãos, em um movimento constante de cima para baixo. A serragem quente, acumulada
118 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
pela fricção, desce pelo entalhe da concavidade formando um montículo preto e fumegante
que ateia a isca de folhas. O processo todo leva uns três minutos. São sempre os homens
que preparam e usam o aparelho ignígero. Os dois bastões utilizados são de madeira de
uruk‰, urucu (Bixa orellana).
Medidas: comprimento do bastão-base, 110 cm; comprimento do bastão ativo,
101 cm.
Feitura: cortam-se dois bastões retos do arbusto de urucu que são descascados e
postos ao sol para secar. São sempre guardados nas proximidades do fogo a fim de mantê-
los secos. Começando numa das extremidades, esculpem-se no bastão-base concavidades
redondas providas de um entalhe estreito junto à borda. O bastão ativo é aguçado na
extremidade de uso. Ambos bastões têm a grossura aproximada de um dedo.
5. Arquitetura e construções
A maloca de duas águas (´ koo), de planta baixa retangular, é sempre construída
por homens e habitada por uma família extensa.
Materiais: esteios e revestimento das paredes, madeira de patsii/p, paxiúba
(Iriartea exorrhiza); cobertura de folhas de inatai/p, inajá (Maximiliana regia); caibros
e ripas de longos troncos roliços; amarrações de cipó.
Medidas: 10-12 m de comprimento; 8-10 m de largura; 4,5 m de altura.
Feitura: seis postes aguçados numa extremidade e entalhados na outra, com um
diâmetro aproximado de 25 cm e uma altura de 3,5-4 m, são fincados no chão, com
movimentos rítmicos, em duas fileiras. Fincam-se mais quatro esteios, de 1,5 m de altura
por 15 cm de diâmetro, ao lado e paralelos a estas fileiras. Cada fileira é unida por caibros
que repousam no entalhe superior dos esteios, formando-se assim o suporte para as ripas
(figura 7a). Estas são unidas aos caibros por amarrações de cipó a intervalos regulares.
Só então insere-se, ao longo da cumeeira, um caibro fino, sem função de sustentação,
que se amarra às pontas das ripas com cipó. As folhas da palmeira inajá são dobradas
ao longo da nervura central, de modo que os folíolos ficam sobrepostos. Cobre-se o
madeirame com essas folhas à maneira de telhas, começando de baixo para cima (fi-
gura 7b). Frente e fundos da casa são revestidos com uma fileira de tábuas estreitas de
paxiúba, deixando-se livre uma entrada retangular de 1,60 m de altura por 60 cm de largu-
ra (figura 7c).
Entrando na maloca, reconhece-se de imediato a severa tripartição do espaço,
também visível na planta baixa: no centro, uma superfície retangular totalmente livre
que se estende da frente até os fundos e serve de passagem e local de danças. À direita
e à esquerda, encontram-se os compartimentos de habitação, cada qual provido de um

Equipamento material 119


7a 7b

Figura 7a: PLANTA BAIXA – Figura 7b: TETO – RIPAS COM


ESTEIOS E CABOS FOLHAS DE PALMEIRA

7c

Figura 7c: VISTA DA FRENTE

fogo central, em torno do qual se dispõem, em um polígono bastante regular, as redes,


amarradas respectivamente na viga mestre e no revestimento lateral da casa. No ângulo
formado pelo teto e o chão batido, guarda-se uma pequena canoa de casca que serve de
tacho para chicha. Nas folhas de palmeira da cobertura, estão enfiadas flechas, paus
ignígeros e, segundo o relatório de Tolksdorf, feixes de finas aparas de madeira usadas
como tochas, hoje substituídas por lampiões de querosene raramente usados. Arcos
acham-se encostados ao lado e, às vezes, também se encontram jiraus de varas atadas
com lianas sobre os quais são guardados diversos cestos, panelas e gêneros alimentícios.
De construção semelhante são as camas de cachorro e plataformas para todos os tipos de
xerimbabos.
Nas proximidades do fogo, encontram-se panelas, cabaças colocadas sobre supor-
tes, colheres para mexer a comida e abanos. Embaixo das redes ficam banquinhos e pacotes
de entrecasca amarrada que também serve de banco. Ao lado dos esteios estão os pilões e
mãos de pilões. Grandes recipientes de entrecasca pendem do teto, presos por maxilares
inferiores de porcos-do-mato. As bordunas são amarradas com entrecasca nos esteios. Os
utensílios de trançado das mulheres, quando não em uso, são armazenados sobre jiraus ou

120 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


pendurados no teto, assim como latas contendo chumbo, pólvora e espoletas. O sal, obtido
através de troca com os brasileiros, e o óleo de tucum para o trato dos cabelos encontram-se
dentro de cabaças ou em garrafas arrolhadas com sabugo de milho, dependuradas no teto
com cordéis de algodão. Ocasionalmente, folhas de palmeira ou cachos de cocos são usados
para varrer o interior da maloca.
O relatório de Fritz Tolksdorf (MS 1958) proporciona uma boa impressão do
interior de uma casa Kaiabi:
“Dentro da maloca impera a confusão. Por todos os lados vêem-se redes em
volta de pequenos fogos e panelas espalhadas; as vigas e do teto pendem espi-
gas de milho, cestos trançados que armazenam amendoim, recipientes que guar-
dam penas..., flechas e arcos estão encostados até onde o homem estendeu sua
rede, enquanto os instrumentos de fiação estão no chão ou pendurados do lado
da mulher. Acima da rede da mulher geralmente ainda se encontra a de uma
criança. Vêem-se teares, as mais das vezes ocupados por uma mulher a tecer
qualquer coisa. Num dos cantos confeccionam-se panelas e por todos os lados
papagaios e outras aves domésticas fazem barulho.”
Próxima a toda maloca, observa-se uma choça construída da mesma maneira, em-
bora bem menor, dando a impressão de inacabada, pois falta-lhe o revestimento lateral e o
teto é apenas ligeiramente coberto de folhas de palmeira. Esta choça – oni´i (?) – não é
habitada, destinando-se ao sepultamento e lamentação dos mortos o que, entretanto, foi
negado para mim pela maioria dos Kaiabi. Assim, Tapa afirmou até o fim que se tratava
meramente da maloca inacabada de um Kaiabi que havia viajado.
Uma outra choça não destinada à moradia é a mairók, usada pelo xamã como lugar
de culto. Folhas de palmeira inajá, espetadas em círculo no chão, formam a estrutura de
uma choça tipo colméia, completamente fechada que, no exemplar por mim observado,
encostava-se em duas árvores. Ela se encontrava na mata, a uns 30 m da maloca. Seu
diâmetro era de 145 cm e a altura de 260 cm. Penetrava-se nela afastando duas folhas de
pacova que constituíam o revestimento. Do lado de dentro, verificavam-se nas folhas algu-
mas aberturas à guisa de janelas. Timaka´i, seu dono e construtor, identificou-a inicialmente
como cabana de caça.
Para o armazenamento do milho encontra-se um celeiro de mourões, awatsi´ók, de
aproximadamente 2 m de altura. Como a maloca, apresenta planta retangular e teto de
duas águas, tendo entretanto a uma altura que corresponde à dos ombros, um piso de
varas. No rio dos Peixes, só Mairer‰ tinha tal celeiro, distanciado alguns metros de sua
maloca. Mairer‰ enfatizava que, antigamente, “tudo estava cheio desses celeiros, mas hoje
tudo está vazio”.
Equipamento material 121
Na aldeia Temeoni usava-se um celeiro subterrâneo para bananas: um buraco cir-
cular com diâmetro aproximado de 50 cm e profundidade de 50-60 cm, revestido de
folhas de pacova. Alternava-se uma camada de bananas ainda não maduras e folhas de
pacova com outra de madeira cuidadosamente recoberta de terra.
Quando se torna necessária a passagem sobre um rio pequeno, corta-se uma árvo-
re próxima à margem, de tal modo que ela possa servir de ponte. Se por ela devem ser
transportadas cargas maiores, como frutas, ou se for utilizada por mulheres e crianças,
estendem-se ao longo da ponte alguns cipós à guisa de corrimão.
No caminho muito freqüentado entre o Posto Tatuí e a casa de Mairer‰, Moanyan
e eu fizemos, em fevereiro de 1966, uma ponte, tal como era construída antigamente: dois
postes de uns três metros de comprimento, pontiagudos em baixo e bifurcados no alto,
foram enterrados com movimentos rítmicos ascendentes e descendentes no meio rio, a
uma distância de 2,5 m um do outro. Os postes foram ligados por uma viga pesada que se
apoiava nas forquilhas, em sentido paralelo ao das margens do rio. Em seguida, três tron-
cos compridos e relativamente finos foram apoiados lado a lado, apontando para as duas
margens, sobre este esteio. Os troncos não foram unidos por nenhuma amarração de cipó.
Consumimos cerca de seis horas para realizar todo o trabalho.
Durante viagens e expedições de caça, os Kaiabi se protegem da chuva construin-
do para-ventos provisórios de folhas de pacova. Para pernoites durante a estação das
chuvas, eles fazem a seguinte construção: a partir de um tronco de árvore e formando um
quadrado, espetam no chão três paus pontiagudos, providos de forquilhas na extremidade
superior, unindo-os com galhos, o que dá origem a um teto coberto de folhas de pacova,
ligeiramente inclinado, que mal tem a altura de um homem e mede cerca de 2 m por 2 m.
Não demolem a estrutura, poupando-a para uma próxima ocasião.
Finalidade diferente tem uma pequena choça de duas águas, yervay-moók, com-
pletamente revestida de folhas de palmeira inajá, de 2,5 m por 3 m e 2 m de altura,
situada a uns 50 m da maloca. A entrada é uma pequena abertura retangular, fechada
por uma esteira trançada de folhas de palmeira. O interior é completamente escuro e
os mosquitos nela não penetram devido ao seu cerrado revestimento. E por isso, na-
queles meses em que abundam os mosquitos, esta construção é usada por uma família
nuclear para dormir à noite. Nela não se constata fogo nem qualquer tipo de mobiliá-
rio. Só vi essa moradia sazonal na aldeia Temeoni, reconstruída por Ny‰kato e usada
apenas por sua família. Segundo informações dele, todas as famílias com filhos peque-
nos tinham tal choça no passado e essa proteção deixou de ser tão necessária a partir
da adoção das roupas. Em 1955, Dornstauder ainda observou diversas dessas cho-
ças.
122 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
6. Tralha doméstica
a) Banco (kanawa), feito e usado por homens.
Medidas: comprimento aproximado de 25 cm; largura de cerca de 12 cm; altura
aproximada de 10 cm.
Feitura: talhado de um só bloco de madeira com o facão, o banco é retangular com
um assento ligeiramente côncavo. Os trilhos são paralelos à largura (figura 8b) ou ao com-
primento (figura 8c) e, neste caso, podem ser entalhados simetricamente de modo que o
banco tenha o formato de um H deitado (figura 8a).

8a Figura 8a: TRILHOS ENTALHADOS E


PARALELOS AO COMPRIMENTO

8b Figura 8b: PARALELOS À LARGURA

8c Figura 8c: PARALELOS AO COMPRIMENTO

b) Colher de pau (kaw†pi/woa p), feita por homens e usada pelas mulheres tanto
para mexer a chicha quanto a título de separador na confecção das tipóias de algodão (vide
8.c.). Cuidadosamente entalhada e polida, a colher tem o formato de uma tabuinha alongada,
achatada, terminando na extremidade superior com uma largura um pouco maior em forma
de lingüeta.
Medidas: 47 cm de comprimento; 3 cm de largura no punho; 4,2 cm de largura na
extremidade superior.
c) Batedor de feijão (figura 9)
Feito por homens, o batedor é usado exclusivamente para trabalhar o feijão que os
Kaiabi conhecem desde o seu contato com os seringueiros. Dada a semelhança de forma
do batedor entre uns e outros, é provável que os índios tenham obtido o artefato da mesma
fonte.
Medidas: 61 cm de comprimento; 5,5 cm de diâmetro na parte mais grossa e
3,2 cm na parte mais fina.
Equipamento material 123
Feitura: talhado com o facão em um pedaço de madeira e alisado, o batedor é um
bastão reto, mais grosso na parte central. Uma das extremidades é grossa e cilíndrica,
enquanto a outra, cônica, é mais estreita.

Figura 9: BATEDOR DE FEIJÃO

d) Pilão e mão de pilão (i o´a) (i/wi/ra)


Feito pelos homens para as mulheres pilarem mandioca, milho, amendoim, peixe
etc., tem formato cilíndrico. Um pedaço apropriado de um tronco de árvore é cortado com
o facão e escavado numa das extremidades com o auxílio de fogo. A mão de pilão é um
tronco fino de árvore aparelhado com o facão.
Medidas: altura do pilão, cerca de 75 cm; diâmetro, 30-40 cm; profundidade
da cavidade, cerca de 30 cm. A mão tem 2 m de comprimento por 10 cm de diâmetro.
Dados complementares: para as meninas preparam-se pilões menores. Devido
ao seu peso, os grandes pilões não podem ser transportados nas canoas, assim é o
único objeto que é deixado na maloca quando das andanças periódicas dos Kaiabi.
e) Suporte de cabaça (tapawia) (figura 10a)
Usado por mulheres e confeccionado pelos homens com roletes de kama´yi/p,
camaiúva (Guadua sp.) e fio de algodão.
Medidas: 17 cm de diâmetro; 10 cm de altura; diâmetro menor, no centro, 12,5 cm.
Feitura: numerosos brotos de camaiúva são cortados em tamanhos iguais. Dois
roletes por vez são atados em “X” com um cordel contínuo até que se forme um círculo em

Figura 10a: SUPORTE COM CABAÇA

Figura 10b: AMARRAÇÃO DOS ROLETES

124 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


que os roletes externos ficam inclinados para a direita e os internos para a esquerda, num
ângulo de 45 graus. Em seguida, ambas as extremidades dos roletes ainda são enroladas
com um fio de algodão que enlaça sucessivamente dois roletes opostos e, na segunda volta,
forma um nó simples na face externa do objeto (figura 10b).
f) Cuia (i/’aoo) (figura 10a)
Para armazenar alimentos, as cuias são feitas do fruto de Crescentia cuiete e im-
pregnadas com a casca de i/wiyup i/p, árvore água-preto(23)(?). De uso feminino, sua
confecção cabe aos homens, mas a fase final de impregnação é obra das mulheres.
Medidas: em dois exemplares, 28,3 cm de diâmetro por 21 cm, com altura de 16
cm; 14 cm de diâmetro por 13 cm, com altura de 7,5 cm.
Feitura: colhe-se o fruto ainda verde, aperta-se um cordel em torno de sua maior
circunferência, cortando então o fruto ao meio ao longo dessa linha e alisando a superfí-
cie do corte. Tira-se o miolo da cuia, deixando-a em seguida por uma ou duas semanas
mergulhada no rio para que os restos da polpa apodreçam e a casca fique mole. Depois
de seca, ela é impregnada da seguinte maneira: cascas da árvore i/wiyup i/p são tritura-
das manualmente, misturadas com água e esfregadas no interior da cuia. Queima-se então
uma bola de seiva seca de seringueira (Hevea sp.) por baixo de uma panela de barro emborcada
para que a fumaça cubra o seu interior com uma finíssima fuligem. Esta é misturada com a
calda de i/wiyup i/p e passada no interior da cuia. O procedimento repete-se diversas vezes
e, nos intervalos, a cuia é posta para secar sobre o fogo.
O interior da cuia fica assim recoberto por uma camada preta, homogênea e
impermeável à água. As cuias são guardadas num cesto cargueiro (vide 6o) sob o teto,
acima do fogão, e adquirem, através do calor, e talvez também pela fumaça, a sua colora-
ção externa marrom-avermelhada. Uma das cuias recolhidas não foi guardada dessa ma-
neira e ficou com sua cor amarela clara natural.
Dados complementares: as cuieiras são propriedade comum da aldeia. Seus frutos
são colhidos uma vez por ano por uma família, ao fim da estação seca. As cuias são prepa-
radas e distribuídas pelas mulheres da aldeia.
Documentação: Schmidt (1929:96): “Da produção artística dos Kayabi mencio-
nem-se as belas figuras incisas em duas cuias que adquiri. Trata-se principalmente de figu-
ras de diversos animais como macacos, jacarés, aves etc., executadas de maneira muito

23
Atualmente, no Parque do Xingu, os Kaiabi utilizam a tinta da casca da mirtácea Myrcia
deflexa para a impregnação de cuias. (n. ed.)

Equipamento material 125


original, contribuindo muito para a avaliação dos dotes artísticos de seus autores. Figuras
humanas também são representadas, além de ornamentos”. As mencionadas figuras incisas
podem ser vistas em Schmidt (1942), lâmina XVI, fig. 39, 40; lâmina XVII, fig. 41; lâmina
XVIII, fig. 42.
g) Colher de cabaça (†/ãpi)
Feita por homens até o momento da impregnação, é usada pelas mulheres para
servir comida e bebida e também, em exemplares menores, como brinquedo das meninas.
O material usado é a cabaça i/’aki/ t (Lagenaria sp.). Para a impregnação, vide 6f.
Medidas: diâmetro com cabo, 10 cm; sem cabo, 8,2 cm; altura, 4 cm. No exemplar que
serve de brinquedo: diâmetro com cabo, 5,5 cm; sem cabo, 3,8 cm; altura 1,5 cm.
Dados complementares: os Kaiabi atribuem maior valor a esse tipo, sem que saiba-
mos a razão.
h) Metade de cuia ou cabaça (ki/ip p)
Comprida, oval, achatada, ela é usada pelas mulheres para alisar a farinha de man-
dioca que está sendo torrada.
Medidas: 23 cm de comprimento; 6 cm de altura; 8 cm de largura.
Feitura: vide 6f.
i) Cuia (kanafu)
Preparada pelos homens do fruto de Crescentia cuiete, i/’aki/t, é usada pelas
mulheres para guardar gêneros secos como farinha de mandioca, de peixe, milho, fru-
tos secos etc.
Medidas: 17,5 cm de altura e 21 cm de diâmetro.
Feitura: abre-se um orifício redondo, de 8,5 cm de diâmetro, junto ao cabo do fruto
recém colhido, retirando a polpa. Depois de ficar de uma a duas semanas mergulhado no
rio, o recipiente é limpo novamente, sendo então “defumado”, mas não impregnado.
j) Cabaça (i/’a)
Para guardar pedras, dentes, cascas de frutos e assemelhados, esse recipiente é
preparado pelos homens usando i/’aki/ t (Lagenaria sp.) e fios de algodão. É utilizada
por indivíduos de ambos os sexos.
Medidas: diâmetro de 10-15 cm.
Feitura: no fruto recém colhido, abre-se um orifício redondo, de 6-10 cm de diâ-
metro, na parte superior. Retira-se a polpa e pendura-se o recipiente acima do fogo para
secar. Um pequeno anel de fios de algodão é aplicado ao fundo da cabaça e um outro, um
pouco maior, logo abaixo do orifício. Os dois anéis são unidos por fios de algodão parale-

126 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


los, numa distância de 2-3 cm um do outro. A dois pontos opostos ata-se um cordel que
permite pendurar a cabaça.
Documentação: Em Rondon (1953:56) encontram-se duas ilustrações dessas ca-
baças (figs. 584 e 585). Das seis cabaças reproduzidas, duas estão envolvidas com fios de
algodão que correm em zigue-zague e duas são decoradas com incisões. Schmidt (1942),
lâmina XII, fig. 28, também ilustra uma cabaça desse tipo.
k) Recipiente para urucu
Para guardar as sementes de urucu, os homens usam e fazem um recipiente de
i/’aki/ t (Lagenaria sp.). Colhido o fruto, faz-se um pequeno furo junto ao cabo e outro, um
pouco maior, oposto a ele. Depois a cabaça é deixada na água durante algum tempo. Para
retirar a polpa amolecida, enche-se a cabaça com seixos e areia, sacudindo-a então. De-
pois de seca, passa-se um cordel torcido pelos dois furos e, enchida a cabaça com semen-
tes de urucu, fecha-se o orifício maior com uma rolha de sabugo de milho. Guarda-se a
cabaça pendurada no teto.
Medidas: 10 cm de diâmetro e 10 cm de altura.
l) Recipiente de entrecasca (u´i/wi/r‰)
Usado pelos homens para guardar penas, adornos plumários, colares e assemelha-
dos, é feito por eles da entrecasca da árvore u´i/wi/ri/p (?) com reforço de cipó.
Medidas: em dois exemplares, 37 cm de comprimento por 13 cm de diâmetro; 36
cm de comprimento por 14 cm de diâmetro.
Feitura: corta-se um pedaço reto e liso do tronco da árvore mencionada, prenden-
do-se uma cinta de entrecasca perto de uma das extremidades. Com um pedaço de pau,
bate-se a entrecasca sobressalente até ela tornar-se flexível, sempre deslocando a cinta em
direção ao meio do pedaço de tronco. O mesmo se faz na extremidade oposta. O restante
da entrecasca é depois igualmente batido. Introduzem-se, então, cunhas entre ela e o cerne,
o que permite soltá-la por inteiro. O cilindro de entrecasca assim obtido é reforçado com
dois a três aros de cipó e sapecado sobre o fogo para livrá-lo das felpas. Amarram-se, em
seguida, as duas extremidades da entrecasca macia com fibra de embira, fechando-se
assim o receptáculo.
Dados complementares: tais recipientes são confeccionados em diversos tamanhos.
Os menores têm as medidas dadas acima, nos maiores cabem até flechas.
m) Recipiente de folha de pacova (figura 11)
Feito por homens de uma folha de paku’a (Heliconia sp.) e cipó. Serve para guar-
dar frutas e tem o formato de uma caixa aberta de plano retangular.
Medidas: 20 cm de comprimento; 10 cm de largura; 12 cm de altura.

Equipamento material 127


Feitura: recorta-se um pedaço retangular de uma folha de pacova. Seus quatro
cantos são dobrados em forma de triângulo e dobrados para cima. Com um pauzinho,
fazem-se dois furos no lado dobrado, passando um pedaço de cipó por eles que se
arremata com um nó.

Figura 11: RECIPIENTE DE FOLHA DE PACOVA

Dados complementares: esses recipientes são descartados após serem utilizados


umas poucas vezes.
Documentação: Schmidt (1942:27): “Una pequeña cesta, formada de una hoja está
representada en la figura 29. Ella tiene 25 cm de largo por 13 cm de ancho y 11 cm de alto”
(Lâmina XII, fig. 29). Rondon (1953:56) ilustra dois recipientes de folha de pacova na
figura 584.
n) Cesto cargueiro (panakuawet)
Usado para o transporte de frutas, é feito pelos homens de duas folhas de inatai/p,
inajá (Maximiliana regia) e amarrações de cipó.
Medidas: 20 cm de comprimento; 15 cm de largura; 50 cm de altura.
Feitura: duas folhas pinuladas da palmeira são sobrepostas e as raques dobradas
no formato de um retângulo (60 cm X 20 cm) aberto em cima. Os folíolos próximos,
trançados entre si, dão origem ao lado que se apoiará nas costas do portador, enquanto os
folíolos restantes são dobrados para frente e unidos numa trança para formar os lados e o
fundo do cesto. A frente aberta do cesto é atada com um pedaço de embira em zigue-
zague. Quando em uso, o cesto é forrado com folhas de pacova para evitar que as frutas
caiam. Os cestos são carregados nas costas, presos por uma faixa de embira que passa
pela testa do portador.
o) Cesto cargueiro (panakuawet)
Destinado ao transporte de mandioca, milho, inhame e batatas doces, este cesto
feito pelos homens de ramos flexíveis, cipó e embira também serve para guardar cabaças
que não estão sendo usadas. Pouco resistente, homens e mulheres usam-no algumas vezes
e o jogam fora.

128 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Medidas: 30 cm de comprimento; 35 cm de largura; 65 cm de altura.
Feitura: quatro amarrações ovais de ramos flexíveis são respectivamente envolvi-
das em zigue-zague com uma faixa de cipó em que se enrolam, em seguida, em sentido
vertical, três outras fitas do mesmo material, formando um trançado grosso. As quatro
armações são unidas entre si de maneira a formar um cesto aberto em cima e na frente o
qual, uma vez cheio, é fechado com embira. É carregado às costas, seguro por uma faixa
de entrecasca que passa pela testa do portador. O formato do cesto é de três superfícies
longo-ovaladas e uma circular que constitui a sua base.
p) Cesto cargueiro (i/r‰)
Feito pelos homens com fibras da palmeira i/wi/ka ui/p (?) e embira, é por eles
usado para o transporte e a armazenagem de castanhas-do-pará.
Medidas: aproximadamente 30 cm de diâmetro por 100 cm de altura.
Feitura: a confecção deste cesto, de formato quase cilíndrico e de fundo quadrado,
parte de 40 a 50 fibras de mais de 2 metros de comprimento e de 5-10 mm de largura. Elas
são reunidas em feixes de 2-3 fibras e trançadas entre si em ângulo reto até formarem uma
superfície de 20 X 20 cm. Esta superfície é reforçada com uma fita de entrecasca que
enlaça cada uma das fibras. As pontas sobressalentes das fibras são dobradas para cima e
fixadas a intervalos regulares com embira, que as enlaça dos dois lados. Também este
cesto é carregado às costas e preso à testa.
Documentação: Schmidt (1929:95): “... um deles (cesto) é confeccionado com o
trançado de fio duplo, tal como as nassas da região dos formadores do Xingu...”. Schmidt
(1942:25): “Esta banasta está formada en la manera de que el hilo doble, torcido, en este
caso, a la izquierda, pasa los palitos verticales de la pared de la banasta en espiral”. Ilustra-
ção na lâmina XII, fig. 27.

7. Trançados(24)
a) Apás (araaoo)
Usados para guardar por pouco tempo gêneros alimentícios, os apás são trança-
dos de uru’i/p, taquarinha(25) (Arundinaria sp.), cipó e fios de algodão. Seu trançado

24
Uma análise dos significados dos padrões de desenhos dos trançados kaiabi pode ser
encontrada em Ribeiro (1987; cf. bibliografia complementar). (n. ed.)
25
As plantas mais utilizadas para as peneiras kaiabi, tanto no Rio dos Peixes como no
Parque do Xingu, pertencem ao gênero Ischnosiphon, da família Marantaceae. Recebem
o nome geral de arumã na língua portuguesa. (n. ed.)

Equipamento material 129


é do tipo cruzado em diagonal, ostentando diversos motivos decorativos que representam
figuras estilizadas, animais e outros. Os homens confeccionam os apás para o uso de toda
a família.
Medidas, em seis exemplares:
1 – 37,5 cm de diâmetro e 12,5 cm de altura;
2 – 39 cm de diâmetro e 13 cm de altura;
3 – 37 cm de diâmetro e 14,5 cm de altura;
4 – 51,5 cm de diâmetro e 16 cm de altura;
5 – 34,5 cm de diâmetro e 12 cm de altura;
6 – 19,5 cm de diâmetro e 6,8 cm de altura.
Feitura: com a unha do polegar racham-se as taquarinhas que são colocadas a secar ao
sol até que seu miolo branco e esponjoso possa ser removido com facilidade. Depois, dividem-
se os colmos em fasquias do mesmo comprimento e com cerca de 2 mm de largura. O trabalho
de trançado é feito por um ou dois homens, acocorados no chão.
Quando pronto, o quadrado assim trançado é vergado para cima e entalado entre
dois aros de cipó. Cada duas talas são dobradas sobre um fio de algodão, que envolve os
dois aros, e enroladas pelo fio seguinte formando assim o arremate da borda.
Arranca-se a casca da árvore yimarei/p, jaquetipá(26) (?), retirando com o facão a
grossa entrecasca felpuda e de cor vermelho escura. Diversas dessas faixas de entrecasca
são espremidas sobre um recipiente de folha de pacova (vide 6m). Passa-se tal líquido em
ambos os lados do apá, deixando-o secar em seguida. Esse processo é repetido de cinco
a dez vezes até o objeto ficar recoberto por uma camada vermelho escuro uniforme. De-
pois de secar por 1-2 dias, essa camada é raspada com a unha do polegar, a tinta solta-se
sem dificuldade no lado externo e liso das talas, mas o seu verso, mais áspero, continua
impregnado. Emerge assim o motivo decorativo, o mesmo no interior e no exterior da
cesta, porque as talas são sempre trançadas numa direção com o seu lado áspero para
cima e, na outra direção, num ângulo reto, com o seu lado liso para cima.
Dados complementares: trançar apás é considerado um trabalho importante por-
que “é bonito” e as pessoas sentem orgulho por tê-lo confeccionado. Padrões decorativos
difíceis são dominados por poucos indivíduos. Além disso, o apá é o item mais importante
do presente de noiva. Parece que o padrão ta a chegou aos Kaiabi através dos tapi/i/†tsi ,
Apiaká.

26
Trata-se de uma espécie de jequitibá, Cariniana sp, família Lecythidaceae. (n. ed.)

130 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Exemplar 1: AO CENTRO, TRÊS SAPOS kururu, CADA UM COM QUATRO ‘ea, OLHOS; EM CADA LADO,
DUAS FILEIRAS DE i/wirapu†, CIPÓ.

Exemplar 2: AO CENTRO, ta ak‰ya, MULHER-TANGA (ta a É UMA PESSOA MÍTICA) COM DUAS
CRIANÇAS ta ata’i/ t E MUITOS ‘ea. NUM LADO, UMA FAIXA DE i/wirapu†, CIPÓ.

Exemplar 3: kwatsiarapat, BRAÇOS (?).

Exemplar 4: AO CENTRO, ta ak‰ya, QUATRO ta a’ koo, HOMENS-TANGA (?) INCOMPLETOS E, NOS


CANTOS, OITO ta ata’i/ t E MUITOS ‘ea.

Equipamento material 131


Exemplar 5: TRINTA E SEIS kururu, CADA QUAL EM UM QUADRADO COM QUATRO awatsi´a†,
GRÃOS DE MILHO

Exemplar 6: NÃO PINTADO; yowiteran (?)

Documentação: Rondon (1953:56), fig. 584, representa um apá tingido com moti-
vo de k atsiarapat.
w
Alguns apás foram desenhados a partir de fotografias de G. Grünberg:

APÁ COM MOTIVOS APÁ COM VARIANTE DE APÁ COM MOTIVO


kururu E ‘ea inim ’ ta inim ’ ta

APÁ COM MOTIVOS APÁ COM MOTIVO APÁ COM MOTIVOS


kururu E ‘ea kwatsiat ifa ´ok E ‘ea

132 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


APÁ COM MOTIVOS APÁ COM MOTIVO APÁ COM MOTIVOS
inim ’ ta E i/wirapu† i/wirapu† i/wirapu†,
awatsi’a† E kururu

b) Peneira (i/rupem)
Usada para peneirar farinha de mandioca e de milho, também serve para apanhar
pequenos peixes e girinos. Os homens as fazem de uru’i/p, taquarinha (Arundinaria sp.),
cipó e fios de algodão, em um processo semelhante ao dos apás, apenas o trançado é mais
frouxo. É usada pelas mulheres.
Medidas: aproximadamente 35 cm de diâmetro e cerca de 15 cm de altura.
c) Cesto para transportar a rede durante as viagens (panak‰) (figura 12)
Usado pelos homens, o cesto é feito por eles de uru’i/p, taquarinha (Arundinaria
sp.), uma armação de madeira e amarrilhos de fios de algodão. Para o processo de
tingimento, vide 7a.
Medidas: 22 cm X 22 cm de base e 47 cm de altura.
Feitura: o cesto é composto de quatro partes, cada uma confeccionada indepen-
dentemente da outra. A base quadrada, as costas retangulares e as laterais ovaladas na
parte superior são trançadas em diagonal, trabalhadas e tingidas da mesma maneira que os
apás. As bordas de cada parte trançada são entaladas entre duas varas de madeira e nelas
se prendem as talas sobressalentes com fios de algodão. A base apresenta um arremate em
forma de trança.
As diversas partes são unidas com fios de algodão, reforçando-se as laterais
com uma a duas varetas de bambu e fechando a abertura da frente com um cordel de
algodão em zigue-zague.
Motivos decorativos no trançado: o do fundo do cesto chama-se inim ’ ta, “mui-
tos fios”; na extremidade superior das laterais, kwatsiarapat, braços (?); nas laterais pro-
priamente ditas, uma variante de kwatsiarapat, ifa ’ k, “dedos estendidos”, garras. O
motivo representa quatro animais com braços, garras e ‘ea.
Dados complementares: em 1965/66 existiam no rio dos Peixes dois cestos
cargueiros diferentes, um consta da coleção Grünberg e o outro ficou em poder do
Equipamento material 133
chefe, tendo sido, porém, fortemente danificado numa viagem em fins de 1966. É provável
que tais artefatos não sejam mais produzidos.

Figura 12: CESTO PARA TRANSPORTAR REDE DE DORMIR

d) Tampa para cabaça de chicha (kaw†oya p)


Medindo cerca de 40 cm X 30 cm, essas tampas são feitas de uru’i/p, taquarinha
(Arundinaria sp.), algodão e madeira, na técnica do trançado diagonal, tal como des-
crito no item 7a, relativo aos apás. Também são tingidos como aqueles. Os homens
fazem essas tampas para evitar que detritos caiam na chicha.
e) Abano (tap kwa p) (figura 13)
Os abanos são usados tanto para atiçar o fogo como para retirar os beijus prontos
do torrador. São feitos pelos homens para uso das mulheres, empregando-se brotos de
tukumã, tucum (Astrocarium sp.), kama’yi/p, camaiúva (Guadua sp.) e fios de algodão.
Medidas em três exemplares:
1 – 30 cm de comprimento e 23,5 cm de largura;
2 – 27,5 cm de comprimento e 22 cm de largura;
3 – 33 cm de comprimento e 22 cm de largura.
Para usá-lo, segura-se o abano entre quatro dedos e o polegar, este apontando
para baixo.
Feitura: cortam-se os brotos da palmeira tucum e separam-se os seus folíolos. Tira-
se a nervura central de cada folíolo com a unha do polegar e as fitas de folhas são postas ao
sol para secar. Acocorado no chão, o homem forma com os folíolos secos, agora amare-
los, um trançado diagonal de forma quase trapezóide, com ângulos superiores arredonda-
dos. O sobressalente dos folíolos na parte superior é entalado entre as metades de uma
134 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
haste de camaiúva e o conjunto preso por um enrolamento de fio de algodão, que forma a
empunhadura do abano.
Além do motivo do gancho duplo, os abanos também se apresentam lisos ou
com motivo de duplos meandros.
Documentação: Schmidt (1929:95): “Entre os trançados da coleção encontra-se
um abano que, quanto à forma, corresponde aos abanos dos formadores do Xingu, apre-
sentando, porém, motivos decorativos de ganchos de meandros”. Schmidt (1942), lâmina
XIII, fig. 31 com a ilustração do mencionado abano.

Figura 13: ABANO COM MOTIVO DE GANCHO DUPLO

f) Recipiente trançado (u’i/wiruf‰kooo) (figura 14)


Usado para guardar pedras, bolas de cera, dentes, plumas do peito de tucano,
conchas etc., esse cesto é feito pelos homens para uso geral. Apresenta-se em diversos
tamanhos, possuindo base quadrada e secção transversa circular.
Medidas: cerca de 15 cm de altura por cerca de 8 cm de diâmetro.
Feitura: com os brotos de tukumã, palmeira tucum (Astrocarium sp.) prepara-se
um trançado diagonal com formato tubular, passando pela extremidade superior um peda-
ço de cipó ou um cordel de fio de algodão para fechar a cestinha.

Figura 14: RECIPIENTE TRANÇADO

Equipamento material 135


g) Aro para penas, vide 11i.
h) Peneira para farinha (i/rupemeaoo) (figura 15a)
Feita por homens para uso das mulheres, suas matérias-primas são os brotos de
tukumã, tucum (Astrocarium sp.), fio de algodão ou cipó.
Medidas: da peça toda, 45,5 cm X 49 cm; do quadrado trançado, 26,5 cm X 25 cm.
Feitura: para o preparo das fasquias vide 7a. As fasquias são trançadas de maneira
a formar um quadrado e os quatro lados entalados respectivamente entre duas varetas
roliças da grossura de um dedo mínimo. As pontas das fasquias são dobradas ao longo das
varetas e envolvidas com fio de algodão. (figura 15d)
A parte central da peneira, um trançado reticular aberto, forma-se com fasquias
colocadas em quatro direções diferentes. Em um ângulo de 90 graus, trançam-se respec-
tivamente duas fasquias, introduzindo-se em 45 graus uma fasquia à direita e outra à
esquerda que, por sua vez, ficam perpendiculares entre si. Como os espaços da primeira
unidade de trançado são maiores, formam-se vãos octogonais (figura 15b). Em direção às
bordas, as fasquias introduzidas diagonalmente são dobradas sobre as demais, continuan-
do o trabalho como trançado cruzado, as fasquias correndo, portanto, em duas direções
(figura 15c).
Dados complementares: essa técnica difícil de trançado é dominada apenas por
alguns homens.

15b
15a

15c

Figura 15a: PENEIRA DE MANDIOCA 15d


Figura 15b: TRANÇADO DE CRIVO ABERTO
Figura 15c: TRANÇADO PARALELO DAS BORDAS
Figura 15d: ARREMATE DA PENEIRA

136 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


8. Têxteis
a) Fuso ( ’im)
Para as mulheres, os homens fazem fusos em que a vareta é de tsi/ri/p, siriva e o
tortual de carapaça peitoral de uma tartaruga fluvial (27) (?).
Medidas em dois exemplares:
1 – Vareta, 27 cm de comprimento; tortual, 4,5 cm de diâmetro;
2 – Vareta, 29 cm de comprimento; tortual, 5 cm de diâmetro.
Feitura: com o facão, corta-se a vareta para o fuso de um pedaço de siriva,
provendo-a de um entalhe circular na ponta superior. A vareta então é polida. Com
uma pedra tira-se um pedaço arredondado da carapaça de tartaruga que é alisado
numa pedra com água e areia; por fim, perfura-se o centro.
Dados complementares: em geral a mulher fia acomodada na rede. Imprime com a
mão espalmada uma rotação à direita do fio, da perna em direção ao corpo. Ela segura o
tufo de algodão com a mão esquerda e, logo que o fio gira adequadamente, ela regula sua
grossura resvalando o polegar e o indicador da mesma mão ao longo do fio. A parte fiada
é embobinada na vareta.
b) Rede de dormir (taiti/)
Usada como leito e como assento, a rede Kaiabi é feita de fios de algodão, sendo
a corda de suspensão de fibra de palmeira (?). Todos os adultos possuem sua rede, bem
como as crianças a partir dos cinco anos aproximadamente. Sua confecção compete às
mulheres, auxiliadas por homens na armação do urdimento.

Figura 16: TECIDO DA REDE

27
Denominada jowosipep na língua kaiabi, trata-se do tracajá (Podocnemys cf expansa).
(n. ed.)

Equipamento material 137


Medidas: 178 cm de comprimento e 139 cm de largura.
Feitura: a uma distância de uns 2 metros de um dos esteios da casa, finca-se um outro
e, entre os dois, começando em baixo, enlaça-se o fio contínuo do urdimento. Os fios usados
para a confecção de redes são fiados em fusos particularmente grandes (com cerca de 65 cm
de comprimento) e torcidos dois a dois em sentido horário (torção em Z). Dois fios mais finos
são torcidos em Z e, dois a dois, utilizados para a entramação.
Inicialmente, aplica-se no começo, no meio e no fim da urdidura respectivamente
uma entramação de dois fios. Retira-se depois o urdume dos esteios, juntando as alças de
cada lado com um cordel de fibra de palmeira. A tecelã pendura, em seguida, a futura rede
no interior da casa e, sentando-se nela, continua a aplicar as entramações, partindo do
centro em direção à borda. A intervalos de 4-6 mm ela aplica uma entramação de dois fios,
dando origem a um tecido compacto.(28)
c) Tipóia (tupai)
Com fios de algodão torcidos, as mulheres elaboram essas tipóias para carregar
crianças de até quatro anos de idade.
Medidas em dois exemplares:
1 – 116 cm de comprimento e 18,5 cm de largura;
2 – 142 cm de comprimento e 25 cm de largura.
Feitura: dois esteios mais altos que um homem são fincados no interior da casa a
uma distância de 1-1,5 metros um do outro. Na altura do peito, prende-se uma vara fina e,
50-90 cm mais abaixo, uma outra, ambas ligadas aos esteios com um cipó. A vara superior
fica de fato amarrada aos esteios, enquanto a outra só se liga por uma laçada simples a um
deles.
Dois fios grossos de algodão são torcidos em sentido horário (Z) e enrolados em
novelo. Destinam-se ao urdume. Para o trabalho de trama, torcem-se no mesmo sentido
(Z) dois outros fios mais finos. O fio do urdume é enlaçado nas duas varas horizontais e
preso por um nó. O fio contínuo do novelo prossegue enlaçando as duas varas, da direita
para a esquerda, em um movimento espiral, sempre prendendo-se por um nó na laçada
anterior. Junto às duas bordas desse urdume, coloca-se respectivamente uma laçada for-
mada por dois fios torcidos em Z que, por sua vez, foram novamente torcidos dois a dois,
três a três em sentido anti-horário (torção S). Para manter o urdume seguro ainda se intro-

28
No Xingu, as mulheres kaiabi passaram a empregar também técnicas de confecção de
têxteis aprendidas com os Yudjá (Juruna).

138 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


duz um fio duplo que se entrama respectivamente com dois fios do urdume; pronta a tipóia,
ele pode ser removido.
Começa agora o processo de entramação. Duas ou mais colheres (vide 6b) são
usadas como separadores e enfiadas entre os fios do urdume segundo a fórmula “um
por cima, um por baixo”. O fio para a trama, enrolado em um bastão roliço, é passado
sob o separador que o comprime para baixo. O separador é retirado e a volta do fio se
dá por baixo do separador seguinte, repetindo-se os movimentos a partir daí.

Figura 17: TECIDO DA TIPÓIA

Documentação: Sousa (1916:79): “... as mulheres só carregavam os filhos ainda de


peito, trazendo-os em largas faixas de algodão a tiracollo...”.

9. Cerâmica (29)
a) Panelas de barro (yap p ) (figura 18)
São as mulheres que fazem e usam essas panelas, destinadas ao preparo da chicha
e à cocção de carne, peixe, feijão, cogumelos e diversos outros gêneros alimentícios. A
oleira emprega argila branca, carvão obtido da queima da casca da árvore takup i/p (?) e
a seiva da casca de m rii/p, simaneiro (?).
Medidas em três exemplares:
1 – 10,8 cm de altura e 12 cm de diâmetro;
2 – 13 cm de altura e 16 cm de diâmetro;
3 – 18 cm de altura e 25 cm de diâmetro.
Feitura: na estação seca os homens tiram argila do rio, a três dias de viagem acima
da aldeia Temeoni, e os torrões são guardados dentro da casa. Ao iniciar sua atividade, a

29
Há muitos anos os Kaiabi não fabricam mais utensílios de cerâmica, mas recentemente
algumas mulheres têm tentado recuperar esta técnica. (n. ed.)

Equipamento material 139


oleira tritura o torrão seco em um pilão, acrescentando-lhe um pouco de água. Queima em
seguida as cascas da árvore takup i/p, esfarelando e peneirando o carvão obtido que,
misturado com água à argila, resulta em uma massa preta. O suporte para o trabalho de
modelagem é uma terra laterítica, seca e peneirada. A oleira modela a base da panela no forma-
to de uma tigelinha; forma na mão roletes relativamente curtos de argila que são sobrepostos
a essa base, dando origem à parede do recipiente que finalmente é alisado com uma con-
cha fluvial (Unio sp.). Segue-se o polimento com uma pedra-sabão (saponite) lisa. A oleira
trabalha ao sol, colocando as peças prontas primeiro numa sombra e, depois de algumas
horas, novamente ao sol. As peças secas, agora de coloração cinza escuro, são enchidas
até ¼ de sua altura com cinzas incandescentes e deixadas na proximidade do fogo.
Para queimar as peças, elas são colocadas bem juntas, mas sem se tocarem, sobre
pedras ou pedaços de cupinzeiros. Novamente recheadas de cinzas, são cobertas com
cascas de takup i/p que forma um cone sobre a cerâmica. Folhas secas de palmeira,
tiradas da cobertura da casa, são introduzidas no alto do cone, incendiando-se nas cinzas
quentes do interior das panelas. As cascas queimam uniformemente de cima para baixo
durante cerca de meia hora, ficando a cerâmica em brasa.
As panelas queimadas e frias apresentam coloração preta com manchas vermelho-
marrom. Para torná-las impermeáveis, elas são untadas por dentro e por fora com a seiva
do simaneiro.
Dados complementares: durante a queima é proibido falar, urinar e defecar a
fim de não quebrar a cerâmica.
Documentação: Schmidt (1929:95): “Na coleção que eu trouxe, duas panelas sim-
ples de barro representam a sua cerâmica bastante primitiva”. Schmidt (1942), lâmina XI,
fig. 25: ilustração da mencionada cerâmica.

Figura 18: PANELA DE ARGILA QUEIMADA

140 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


b) Torrador (yam p)
Mulheres preparam esta peça para o seu uso, ou seja, para torrar a farinha de
mandioca e assar os beijus. Trata-se de uma tigela muito rasa, provida de uma borda
levemente elevada.
Medidas: cerca de 70 cm de diâmetro por 10 cm de altura.
Feitura: vide 9a.

10. Instrumentos musicais


a) Flauta reta (awawa) (figura 19)
Os homens, individualmente ou em conjunto, tocam-na em momentos de lazer.
Sentado ou deitado na rede, o Kaiabi segura a flauta com ambas as mãos, de tal modo
que o dedo médio e o indicador da mão esquerda cubram os orifícios superiores e os
mesmos dedos da mão direita ficam sobre os inferiores. Para soprar a flauta, o lábio
inferior é colocado rente ao gume, de maneira que a abertura superior do instrumento
quase desaparece sob o queixo do músico.
Medidas em dois exemplares:
1 – 36,6 cm de comprimento e 4 cm de diâmetro;
2 – 56 cm de comprimento e 2,7 cm de diâmetro.
Feitura: corta-se um pedaço de bambu sem nós e entalha-se um gume circular
numa das extremidades. No terço central da flauta cavam-se quatro orifícios, sem
localização exata, com uma acha de lenha em brasa. Se a seqüência tonal não agrada
ao artesão, ele prepara outra flauta.
Dados complementares: de acordo com um Kaiabi, essa flauta não existia antiga-
mente, os Kaiabi a teriam recebido de outros índios “do poente”.

Figura 19: FLAUTA RETA

Documentação: Schmidt (1942:28): “Fuera de estas flautas de hueso yo adquirí una


flauta de caña, representada en la figura 44a. Ella tiene tres agujeros para hacer variar el
sonido y su largor asciende a 15,2 cm”. Lâmina XIX, fig. 44a.
b) Flauta com bocal lateral e defletor interno (ya’wakan) (figura 20)
Essa flauta, feita pelo xamã de um osso tubular de onça, yawat (Panthera onca), é
usada exclusivamente por ele para o tratamento de doentes. Ele toca a flauta para expulsar
Equipamento material 141
o mama’e, espírito, que provoca a doença e que pode apresentar-se sob a forma de
pedrinhas, de um prego, de pedacinhos de osso etc. O defletor interno é feito com uma
mistura de cera e resina.
Medidas: 9,4 cm de comprimento.

Figura 20: FLAUTA ya’wakan

Dados complementares: trata-se de um dos apetrechos mais importantes do xamã.


Documentação: Schmidt (1942:28): “De instrumentos de música los Kayabís
utilizan pequeñas flautas de hueso de las cuales algunos ejemplares están reproducidos
en la figura 44b-e, y de las cuales la mayór tiene 17,5 cm de largo y el menór 8 cm de largo.
Por lo común estas flautas están provistas de un cordón de algodón para llevarlas al pescuezo".
Lâmina XIX, fig. 44b-e.
c) Flautas de pã (yumia'o) (figura 21)
São construídas pelos homens para o seu uso durante a festa do Yawotsi.
Medidas em dois exemplares:
1 - 30,3 cm a 26,5 cm de comprimento; 7,5 cm de largura; 1,2 a 1,5 cm de diâme-
tro.
2 - 40 cm a 35 cm de comprimento; 8 cm de largura; 1,2 a 1,5 cm de diâmetro.
Feitura: cinco ou seis tubos de taquara que terminam em nó são cortados em com-
primentos diversos, agrupados de acordo com esse comprimento e unidos entre si com
amarrações de fio de algodão nas duas extremidades.
Dados complementares: as flautas de pã nunca são tocadas com finalidade lúdica,
sendo as mais valorizadas entre os instrumentos de sopro.

Figura 21: FLAUTA DE PÃ

d) Trompete transverso (i/reruyumi'a) (figura 22)


Feito e usado pelos homens, talvez na festa Yawotsi, o trompete não deve ser toca-
do no fim da tarde ou de noite, pois o seu som parece atrair o porco-do-mato e a onça.

142 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Medidas em dois exemplares:
1 - 45,7 cm de comprimento e 5 cm de diâmetro;
2 - 47,5 cm de comprimento e 4,2 cm de diâmetro.

Figura 22: TROMPETE TRANSVERSO

Feitura: corta-se um segmento de taquara de maneira a manter o nó numa das


extremidades do tubo. A uns 5 cm desse nó, entalha-se um orifício retangular que serve de
abertura de soprar.
Para tocar o trompete, segura-se o instrumento com as duas mãos, transversal-
mente ao corpo e um tanto virado para cima. Com a vibração dos lábios junto à aber-
tura de sopro, obtém-se um som semelhante ao esturro da onça.
Dados complementares: um trompete transverso menor é usado como brinquedo
dos meninos (vide 12e).

11. Ornamentação do corpo, adornos e vestuário


a) Tatuagem(30)
O que mais chama a atenção na aparência dos Kaiabi é a sua tatuagem facial carac-
terística, a que Sousa assim se refere:
"Na altura da boca tinham duas listras negras, parallelas, largas, feitas com tinta
de genipapo." (1916:76)
Schmidt também registrou sua impressão de que se tratava apenas de pintura cor-
poral com jenipapo, embora com restrições:
"A pintura corporal é particularmente habitual no rosto, tratando-se aparente-
mente de uma pintura preta com genipapo que desperta a impressão de tatua-
gem. Não me foi possível verificar se as linhas isoladas eram tatuadas; as diver-
sas figuras que os homens geralmente ostentam no peito e muitas vezes nos bra-
ços e que pareciam ter caráter de insígnias tribais são provavelmente tatuagens."
(1919:95ss)

30
Recentemente, alguns Kaiabi voltaram a fazer as tatuagens faciais. (n. ed.)

Equipamento material 143


Contata-se, de fato, que entre os Kaiabi podemos distinguir com bastante precisão:
1 - a tatuagem facial que também serve de insígnia tribal;
2 - as tatuagens individuais, associadas a determinados nomes;
3 - a pintura corporal que, por seu lado, desempenha diversas funções.
No desenho da figura 23.1. vê-se a tatuagem facial de todos os homens adultos.
Apenas o chefe Temeoni ainda apresentava uma grossa linha preto-azulada em torno da boca.
A figura 23.2. mostra a tatuagem correspondente das mulheres que, tal como a dos
homens, é parte integrante dos ritos de iniciação e aqui será considerada apenas enquanto
marca exterior.
Com um longo espinho da palmeira tucum, são feitos na pele pequenos furos, próxi-
mos uns dos outros. Com auxílio do espinho é introduzida na pele a borracha queimada da
seringueira que, misturada à seiva da árvore ipau'ip, adquire uma consistência pegajosa.
Estes dados baseiam-se em informações de Tapa e Mairer‰, pois a última tatuagem havia
sido feita vários anos antes da minha permanência entre os Kaiabi.
As figuras 23.3-9 mostram tatuagens associadas a nomes obtidos em sonhos e a
que só os homens mais velhos têm direito; são aplicadas em braços e nas pernas.
As pranchas de Schmidt evidenciam uma concordância dos menores detalhes entre
as tatuagens (por ele chamadas pinturas) dos Kaiabi do Teles Pires de 1927 e as do grupo
local do rio dos Peixes, quarenta anos depois (1942: lâmina XIV, figura 34 e lâmina XV, figura
37a-f). Também a interessante informação dada a Schmidt e a mim pelos Kaiabi de que os
Apiaká usavam a mesma tatuagem é confirmada pela notícia de Guimarães em 1819:
"Pintam a cara, trazendo três linhas de uma orelha a outra... fazem... com piques
pequenos, feitos com espinho de tocûm." (1844:303ss)
As figuras de Florence do ano de 1828 são ainda mais impressionantes por mostra-
rem homens e mulheres com tatuagens idênticas às dos Kaiabi de 1966 (1948:277 e 273;
cfr. Koch -Grünberg 1902:358).
b) Pintura
Os Kaiabi pintam o corpo com urucu, o que também foi constatado por Sousa
(1916:76) e Dornstauder (MSa 1955). Entretanto, à medida que vão adotando as roupas
dos brasileiros, renunciam à pintura a fim de não manchar de vermelho os tecidos claros. O
urucu tem um cheiro agradável, mantém longe os mosquitos e ainda protege a pele através
das substâncias oleosas que encerra, provocando um sensação de bem-estar geral, ex-
pressa nas seguintes frases: "torna os homens fortes" e "permite reconhecer melhor os
animais durante a caçada". Talvez se encontrem aqui também aspectos mágicos que não
serão abordados no presente.

144 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Figura 23: TATUAGEM (1-9) E PINTURA CORPORAL (10-11)

23.1 23.2

23.3 23.4

23.5 23.6 23.7

23.9

23.8 23.10 23.11

Equipamento material 145


Sousa nos fala de um outro tipo de pintura corporal: "Pouco antes do ataque surgiu
na margem um velho Kaiabi com o corpo pintado de preto, que dançava e cantava,
envergando apenas na cabeça um enfeite de penas brancas" (1916:86). Para essa pintura
ritual de guerra os Kaiabi provavelmente usavam a seiva de jenipapo, que se torna azul
escura ao contato com o ar e, à distância, dá a impressão de cor preta.
As figuras 23.10-11 mostram uma outra pintura cerimonial com jenipapo, que Tapa
executou em mim com o auxílio de Moanyan e Kwasiari. O ponto de partida para esta
operação, vista como divertida, foram as minhas perguntas sobre o preparo do jenipapo e
seu emprego. Quando sugeri que me mostrassem como se fazia "antigamente", aceitaram a
idéia e começaram a pintar-me com uma fina mistura de fuligem de carvão vegetal e jenipapo,
usando os dedos como pincel. Enquanto pintavam a tartaruga sobre as minhas costas, riam
com freqüência e, mais tarde, me chamaram pelo nome do animal – yawatsipép – sempre
em tom nitidamente irônico ou divertido. Das observações mordazes, conclui que me da-
vam este "nome" porque na mata eu também me movimentava "tão devagar" quanto uma
tartaruga. Tais pinturas eram aplicadas principalmente durante a festa Yawotsi.
b.a.) Jenipapo (yenipa p)
Os frutos carnudos do jenipapeiro (Genipa americana) são ralados na casca espi-
nhosa da palmeira paxiúba e a massa espremida. O sumo, ligeiramente amarelado, é apli-
cado com a mão sobre o corpo e logo se transforma em um preto azulado. São os homens
que preparam a tinta e apenas eles a usam, pintando uns aos outros.
Documentação: Schmidt (1942:20): "Para aplicar pinturas en negro emplean la savia
del árbol genipapo (Genipapa Genipa Brasiliensis)".
b.b.) Urucu (uruk‰)
Preparado pelas mulheres dos frutos do arbusto uruk‰'ip, urucu (Bixa orellana), é
usado por ambos os sexos para a pintura corporal e para passar nos cabelos.
As sementes são retiradas de suas cápsulas e guardadas, depois de secas, em uma
cabaça. Quando necessário, são esfregadas entre as mãos, de modo que a polpa se solta
e pode ser lambuzada no corpo.
Outra modalidade de preparo consiste em misturar as sementes com água numa
cabaça, mexendo por muito tempo até que se possa retirar as sementes que bóiam na
superfície. Põe-se então a cabaça ao sol até a água evaporar, deixando uma massa quebra-
diça no fundo do recipiente. Misturada nas mãos com óleo de cocos da palmeira tucum, ela
se torna uma pasta vermelha e é passada nos cabelos.
Dados complementares: cada vez menos, o urucu está sendo usado para a pintura
corporal.

146 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Documentação: Schmidt (1904:467) de acordo com Bodstein (1903): "Todos têm
o corpo pintado de vermelho com urucu...". Sousa (1916:76, 78): "O corpo estava pintado
com urucum...". "Os cabellos... quasi sempre se acham untados de urucum".
b.c.) Óleo de coco de palmeira (yani/)
Para passar nos cabelos, as mulheres preparam esse óleo com os frutos da palmei-
ra tukumã (Astrocarium sp.). Libertam os cocos recém colhidos de sua casca e raspam
sua polpa que é cuidadosamente triturada no pilão, onde fica em repouso durante uns três
dias. Aí então pode-se retirar o óleo que bóia à superfície. O óleo é absorvido por chumaços
de algodão que são guardados em cabaças e garrafas fechadas. Quando necessário, es-
preme-se o chumaço entre as duas mãos, passando o óleo nos cabelos.
No passado, homens e mulheres usavam cabelo longo que lhes chegava até a cin-
tura; dividiam-no ao meio e amarravam-no bem apertado na base da cabeça com um
cordel de algodão. Moças e mulheres, às vezes, deixavam os cabelos soltos. Assim foram
vistos por Sousa (1916:78) e Schmidt (1929:96), ainda por Dornstauder e, ocasionalmen-
te, por Tolksdorf em 1957. Durante minha estada, todos os homens já haviam cortado o
cabelo e só os meninos pequenos podiam deixá-lo crescer.
Sousa também relata que algumas mulheres depilavam sobrancelhas, cílios e pêlos
púbicos, o que não pude mais constatar em 1966.
Entre meninas pequenas observei o seguinte penteado: os cabelos eram repartidos
no occipício e feitas duas tranças cruzadas fortemente formando um semicírculo, que eram
presas com um cordel de algodão junto às têmporas. Em uma outra menina, fizeram duas
pequenas tranças atrás e uma na testa. Puxam às vezes a cabeleira dos meninos pequenos
para o alto da testa, formando ali um novelo apertado em forma de botão. Sousa (1916:
81) descreve o penteado de uma índia:
"... tinha o cabello aparado um pouco grande, de modo a tapar as orelhas, fazen-
do na testa uma pastinha...".
Consideram muito importante cuidar dos cabelos, penteando-os, untando-os com
óleo de tucum a que, antigamente, acrescentavam urucu.
b.d.) Pente (ki/wa p) (figura 24)
Os homens preparam, para uso geral, pentes da madeira de inatai/p, inajá
(Maximiliana regia), ossos tubulares de ka'ioo, coatá (Ateles sp.) e fios de algodão.
Medidas em dois exemplares:
1 - 7,5 cm de comprimento por 6,5 cm de altura;
2 - 6,5 cm de comprimento por 6,5 cm de altura.

Equipamento material 147


Figura 24: PENTE

Feitura: uns 30 pauzinhos afilados são colocados lado a lado e entalados no centro
de duas talas transversais. Um fio de algodão enlaça, em movimento cruzado, cada pauzinho
e as talas. Em seguida, e até a extremidade superior, os dentes são envolvidos dois a dois
por um fino fio duplo de algodão. Entalha-se uma fenda ao longo de quase todo o compri-
mento de um osso de macaco, à qual se ajusta a extremidade superior dos dentes. Dois
dentes de cada lado do pente são enfiados no osso e suas extremidades sobressalentes são
enroladas em um fio de algodão recoberto de resina.
Documentação: Schmidt (1929:95): "Um pequeno pente apresenta o formato co-
mum de pauzinhos com dentes de um lado só". Schmidt (1942:21): "... para peinarlos
sirven pequeños peines formados de palitos, de los cuales un ejemplar de 75, cm de
largo y de 6 cm de ancho está representado en la figura 16a. Los palitos de los cuales los
más largos salen, a cada un lado, al borde de la manija del peine, están ligados con un
trenzado de hilo de algodón, el que llena toda la parte de la manija, a los listones transversales
que los afirman". Lâmina VIII, fig. 16a.
c) Enfeites e indumentárias
É difícil distinguir enfeites e vestuário entre os Kaiabi, pois eles partem da premissa
necessária de que qualquer ser classificado como "humano" deve estar "enfeitado" e, por-
tanto, "vestido". Totalmente nu vi apenas um rapaz débil, de uns 14 anos, que não aprende-
ra falar e que, embora precariamente sustentado, era considerado membro da comunidade
com reservas. Seu nome era Kupi'a – térmita – alusivo à nudez e à ausência de qualquer
proteção.
Os ricos enfeites dos Kaiabi causaram grande impressão em Sousa (1916:passim).
Para os homens, ele menciona protetores de pulso, cinta de cordéis e joelheiras de algodão
que, para as mulheres, eram de contas de coco, diversos adornos de orelhas, diademas e
coifas de penas. O trabalho com penas desempenha um papel preponderante na sensibili-
dade artística e estética dos Kaiabi. Justifica-se inteiramente falar de um estilo de arte
próprio dos Kaiabi, associados aos estilos de outras tribos Tupi ao sul do Amazonas,
como os Munduruku, Apiaká e Urubú (Ribeiro, D. e B., 1957:17ss).
148 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
Os gorros de pele de animais mencionados por Sousa (1916:79) constituem um
problema:
"Alguns índios traziam chapéus de pelles de animaes (onça, macaco e coati).
Parece-nos que estes enfeites são usados pelos homens em dia de festa".
Estes gorros também são mencionados por Roquette-Pinto (1935:278 e 306), que
reproduz um barrete de pele de onça confeccionado pelos Nambikwara (p.237), seme-
lhante, segundo o autor, ao dos Kaiabi. Como o curioso adorno só era conhecido por estas
duas tribos, além dos Guaiaki, Roquette-Pinto concluiu que os Nambikwara provavelmen-
te o haviam obtido de seus vizinhos Kaiabi (p.306). Enquanto, porém, este tipo de adorno
de guerra pertence ao inventário cultural estável dos Nambikwara, e eu o observei apenas
uma vez entre os Kaiabi, a conclusão inversa é a mais provável, ou seja, a de que se tratava
somente de despojo Nambikwara em mãos dos Kaiabi.
Schmidt (1929:96) completa estas observações sobre os enfeites dos Kaiabi com
alguns detalhes e com a menção a colares feitos de conchas.
Sousa e Schmidt confirmam o atamento do pênis. Entre os homens, o prepúcio é
amarrado com um cordel de algodão junto ao escroto e a glande empurrada para dentro
dele, o que lhe dá um aspecto roliço com três saliências, enquanto o prepúcio fica ligeira-
mente dirigido para cima . No ato de urinar, o cordel tem que ser removido, mas logo é
atado outra vez.
O quadro do vestuário masculino incluía a cinta de cordéis enfiados com contas de
coco tucum, o cordel peniano e, no braço esquerdo, um enrolamento de fio de algodão
para proteger o pulso (ver pág. 115)
Em ocasiões especiais, acrescentam-se pauzinhos auriculares, colares de dentes de
animais e de humanos, joelheiras e adornos plumários para a cabeça, o pescoço e os
quadris; adornos para a guerra eram coifas de penas. Antes da puberdade, meninos e
meninas usam, de acordo com o sexo, diversos tipos de pauzinhos auriculares, colares de
matéria vegetal, braceletes, cordéis nos quadris e nos joelhos. As mulheres não usam penas
em seus enfeites, excetuando-se os brincos, mas os adornos para as ancas e joelhos são
particularmente ricos. O púbis não é coberto.
Estes dados correspondem às representações que os Kaiabi têm de ornamentos e
vestuário, mas elas raramente foram concretizadas durante a minha permanência. Já em 1955,
Dornstauder observara no alto rio dos Peixes alguns tecidos brasileiros com que os Kaiabi
completavam a sua indumentária. Das mulheres, Tolksdorf escreveu o seguinte, em 1958:
"Vestem-se só de tanga, isto é, um trapo pendurado na frente e, às vêzes, tam-
bém atrás, ou então andam nuas. Quando chegamos, várias delas haviam posto

Equipamento material 149


vestidos que obtiveram em algum lugar. Os tecidos estavam todos da cor do
urucu, tal como as redes."
Hoje todos os Kaiabi adultos têm pelo menos uma peça de vestuário que eles usam
quando em contato com brasileiros. Alguns usam constantemente roupas iguais às dos
seringueiros.
d) Adornos para as orelhas
d.a.) Adorno auricular para meninas (neipi/pyat) (figura 25a)
Para uso das meninas, os homens confeccionam um adorno feito com haste de
kama'yi/p, camaiúva (Guadua sp.), um pequeno dente de cutia ou mesmo de cachorro, as
penas amarelas e vermelhas do peito do tukan, tucano (Rhamphastos sp.), além de fios de
algodão e fibras de embira.
Medidas: 13,5 cm de comprimento.
Feitura: o dente é metido dentro da haste de camaiúva e densamente envolvido com
um fino fio de algodão. O terço superior da haste é lambuzado com uma mistura de resina e
cera, nela se aplicando primeiro as peninhas vermelhas e depois as amarelas em anel. Elas
ainda são presas com um atilho de fio de algodão e um enrolamento de embira.
Figura 25a: ADORNO AURICULAR PARA MENINAS

Figura 25b: VISTO DE FRENTE

Documentação: Sousa (1916:78). Rondon (1953:54), fig. 580. Schmidt (1942),


lâmina VIII, fig. 17, ilustra tal peça e a designa de "adorno de oreja para hombres".
d.b.) Adorno auricular para rapazes (neipi/pyat) (figura 26)
Medidas: 20,5 cm de comprimento.
Feitura: os homens enfiam dois incisivos de akutsi, cutia (Dasyprocta aguti) em
uma haste de kama'yi/p, camaiúva (Guadua sp.) e o vão entre os dentes é preenchido com
uma mistura de resina e cera. A parte superior da haste é envolvida com embira e, no
encaixe dos dentes, o adorno é enfeitado com um chumaço de algodão não fiado.
Dados complementares: a haste é enfiada no furo do lóbulo da orelha de tal modo
que os dentes apontam para cima.

150 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Documentação: Sousa (1916;78): "Tanto os homens como as mulheres furam as
orelhas, onde collocam brincos interessantes; feitas com pontas de chifre de veado ou com
taquarinha – de 8 a 10 centímetros de comprimento – tendo engastado na parte da frente
um pennacho de pennas de periquito ou de passarinho, cujas cores sejam vivas. Usam
tambem um simples pedaço de pau mettido na orelha". Rondon (1953:54), fig. 580. Schmidt
(1929:96): "Hastes auriculares mais curtas ou mais compridas eram usadas pelos homens
nos lóbulos das orelhas; frequentemente elas são providas na parte da frente de um dente
de roedor, um tufo de plumas ou então um pendente de penas". Schmidt (1942), lâmina
VIII, fig. 16b-e traz a ilustração do mencionado adorno. Mas a figura 18 ele designa como
"adorno de oreja para mozas".

Figura 26: ADORNO AURICULAR PARA RAPAZES

e) Adornos para o pescoço


e.a.) Colar de cocos de inajá (mo'i/t) (figura 27)
Para uso das crianças, os homens preparam colares de anéis recortados a facão
das cascas de coco da palmeira inatai/p, inajá (Maximiliana regia). Cada anel tem
cerca de 0,5 cm de largura e é polido com areia úmida. Esses anéis são enfiados num
cordel de algodão e um segundo cordel contínuo envolve individualmente cada anel em
forma de trança.
Medidas de dois exemplares:
1 - comprimento 63 cm;
2 - comprimento 39 cm.

Figura 27: COLAR DE COCOS DE INAJÁ

Equipamento material 151


Dados complementares: todos os anéis são circulares e apresentam a mesma medida,
um diâmetro de 2 cm, e só nas extremidades do colar ficam um pouco menores.
e.b.) Colares de sementes
Também para as crianças, os homens fazem colares de sementes de leguminosas,
com fios de algodão e linha de origem industrial.
Medidas: 63 cm de comprimento.

Figura 28a: DETALHE DA AMARRAÇÃO, VISTA DE FORA

Figura 28b: DETALHE DA AMARRAÇÃO, VISTA DE


DENTRO

Feitura: as sementes são perfuradas em sua extremidade mais estreita e enfia-


das em um fino fio de algodão. Um segundo fio corre paralelamente ao primeiro,
sendo envolvido por um terceiro em movimento espiral. Finalmente, um quarto fio enlaça
em cruz cada semente individual junto com os três fios já trabalhados.
Documentação: Rondon (1953:55), na figura 582/83 constam dez colares de
material vegetal não identificável. Schmidt (1929:96): "Como colares destacavam-
se enfiadas de conchas que se prendiam individualmente ou em pencas num cordel
que envolvia o pescoço". Schmidt (1942), lâmina IX, fig. 19, 20, 20 ilustra o menci-
onado colar.

Figura 29: COLAR DE DOIS TIPOS DE


SEMENTES
Figura 30: COLAR DE ANÉIS DE COCOS
DE TUCUM

152 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


e.c.) Colares de dentes de animais (figura 31a)
Feitos pelos homens, são usados por eles em ocasiões festivas. O exemplar aqui
descrito tem 77 cm de comprimento.
Feitura: as raízes de presas de mirakayat, jaguatirica (Felis pardalis) são per-
furadas e enfiadas em um cordel de algodão. Um segundo cordel, muito grosso, é
colocado ao longo do primeiro e um terceiro fio enrola-se nos precedentes, passando
2-3 vezes entre cada um dos dentes (figura 31b).
Dados complementares: os dentes são enfiados de acordo com seu tamanho, fican-
do os maiores ao centro e os menores nas extremidades do colar. Dentes de takapeoo,
ariranha (Pteronura brasiliensis) e de macaco (figura 32) também são usados.

Figura 31a: COLAR FESTIVO DE


PRESAS DE JAGUATIRICA

Figura 31b: DETALHE DA AMARRAÇÃO,


VISTA DO LADO DE DENTRO

Figura 32: COLAR


FESTIVO DE DENTES DE
MACACO

e.d.) Colares de dentes humanos


Esse único exemplar, pertencente ao chefe Temeoni, era cuidadosamente guardado
e apenas usado em ocasiões especiais.
Medidas: 2,5 m de comprimento, aproximadamente.
Feitura: os dentes são perfurados na raiz e enfiados a cada 6-10 cm em um
colar de contas de coco de tucum.
f) Adornos para os braços
Constam da coleção:
- um bracelete de cascas escuras e semilunares de frutos;

Equipamento material 153


- um bracelete de quatro aros atados, dois dos quais são de carapaça de tatu'i,
tatu-galinha (?) (Dasypus novemcinctus), e dois de cascas de frutas (figura 33). De
acordo com informações de Tolksdorf, os aros de tatu foram objeto de trocas com os
Erigpactsa;
- dois braceletes com dez e onze aros, respectivamente, de uma casca de fruta
preto-pardacenta (siriva?), atados por um fio de algodão;
- um bracelete de dez aros (sete de siriva?) ligados entre si por um fio de algodão;
- um bracelete de 16 conchas de caramujos, perfuradas e enfiadas em um cordel de
algodão.

Figura 33: ADORNO DOS BRAÇOS

g) Adorno de cintura (tuk‰mãpe' mo'i/t)


Trata-se de um adorno usado por adultos e crianças, mas especialmente pelas me-
ninas. É feito pelos homens, mas as mulheres às vezes participam da confecção.
Medidas: até 6 m de comprimento, as contas tendo um diâmetro de 6 a 8 mm.
Feitura: as cascas duras e escuras de cocos de tucum são quebradas em pedaci-
nhos com uma pedra e perfuradas com um prego de ferro. Com o polegar, aperta-se cada
pedacinho contra uma base dura e, com a faca, retiram-se as arestas. Enfiados em um cordel de
algodão, são polidos sobre uma pedra até assumirem formato de contas redondas.
Documentação: Sousa (1916:79): "As mulheres amarram um cordão, dando muitas
voltas apertadas e unidas, na perna, abaixo do joelho, e apertam a barriga com uma com-
prida cinta de contas de coco, dando inúmeras voltas, bem juntas". Rondon (1953:50, 53,
55), figs. 575, 579, 583. Schmidt (1929:96): "Homens e mulheres usavam na cintura lon-
gas enfiadas de pequenas sementes pretas, em diversas voltas. Não foi possível convencer
as mulheres e as moças a tirar esses cordões de cintura, de modo que na minha coleção só
se encontram os de homens". Schmidt (1942), lâmina IX, fig. 21 ilustra um desses cordões
de cintura.
h) Adorno plumário (ipepo)
Uma fieira de penas de muit‰ma p, mutum carijó (Crax fasciolata) montada sobre
um aro, é usada pelos homens, que também confeccionam a peça, na festa Yawotsi. Segu-

154 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


ram-na então na mão. Mas ela também pode ser envergada como diadema ou como um
adorno para pescoço ou cintura. Conforme sua função, o tamanho das penas utilizadas e
sua diversidade variam, mas a partir desses critérios apenas, não se pode classificar as
peças.
Medidas: comprimento de 95 cm; comprimento das penas, 28 cm.
Feitura: as grandes rêmiges do mutum carijó são dobradas ao pé do cálamo e
colocadas rente umas às outras envolvidas por um fio de algodão (figura 34a, b). A uma
altura de cerca de 5 cm, as penas são novamente envolvidas individualmente por uma fibra
torcida da palmeira tucum.

Figura 34a: DETALHE INTERNO DA AMARRAÇÃO

Figura 34b: DETALHE EXTERNO DA AMARRAÇÃO

Documentação: Sousa (1916:76-79): "... os indios... em numero superior a cem,


entre homens e crianças, todos bizarramente enfeitados e com vistosos chapéos e diademas
de penna de gavião, de garça branca, de arara, de mutum e de jacamin. (...) Os chapéos
como os diademas, são feitos de um tecido grosso, aberto, de algodão, sobre o qual
prendem as pennas ou pennachos, que ao vento... eram de grande belleza. Alguns indios
traziam chapeos de pelles (?) de animaes (onça, macaco e coati). Parece-nos que estes
enfeites são usados pelos homens em dia de festa". Rondon (1953:54), fig. 580/1, repro-
duz adornos plumários. Schmidt (1929:96): "Nesses diademas plumários que são atados
em volta desses gorros (?) as penas são unidas entre si com o mesmo atilho usado para atar
as penas nos conhecidos mantos plumários dos Tupi do Brasil oriental". Schmidt (1942:21):
"La diadema (compare la figura 30) consta de plumas de papagayo y de una especie de ave
de rapiña. La manera de que estas plumas están colocadas en hilera por medio de un
enlazamiento especial, de hilo...". Schmidt (1942:26): "... yo he examinado exactamente la
manera en que las plumas están armadas la una al lado de la otra. Como lo muestra el
dibujo representado en la figura 36, los extremos inferiores de los cañones de plumas están
doblados sobre un cordón y asegurados en esa posición por una ligazón com hilo la que
está demostrada, de los dos lados, por el esquema". Lâmina XIII, fig. 36. Malcher (1964:111)

Equipamento material 155


publica uma foto de F. Tolksdorf em que um Kaiabi ostenta um enfeite de penas na cabeça,
outro no pescoço e um duplo à cintura.
i) Aro para penas (akanatairita)
Nesse aro são montadas duas a três fileiras de penas. É usado pelos homens duran-
te as danças, quando abanam o enfeite ritmicamente para cima e para baixo.
Medidas: 30 cm de diâmetro; 5,5 cm de altura e 4 cm de largura.
Feitura: com uru'i/p, taquarinha (Arundinaria sp.) os homens preparam um
aro circular de secção transversal em forma de U, ampliando sua circunferência exter-
na através de um trançado de fio de algodão de 5 cm de largura. Numa das superfícies
esse trançado é interrompido a uns 15 cm e, através de um enrolamento de fios de
algodão, forma-se uma grossa empunhadura.
j) Coifa de penas (wanifuam) (figura 35a)
Trata-se de um adorno para a guerra, feito e usado pelos homens.
Medidas: 21 cm de diâmetro e 16 cm de altura.
Feitura: com auxílio de um aro de cipó de uns 10 cm de diâmetro, prepara-se,
através de enlace sem enodação de um fio de algodão, um tecido de malha redondo.
Em seguida, e sem o auxílio do aro, o fio é conduzido pela mesma técnica em forma
espiral até se formar uma touca (figura 35b). Dois terços dessa touca são recobertos com
plumas diversas.

Figura 35a: COIFA DE PENAS

Figura 35b: TECIDO DE MALHA DA TOUCA

Documentação: Rondon (1953:54-56), lâminas 580, 582, 585. Schmidt (1929:96):


"Dentre os adornos deve-se mencionar inicialmente as toucas de penas, onde as penas de
diversas aves, como a garça branca, são presas pelas extremidades dos canhões num

156 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


barrete trabalhado em rede". Schmidt (1942:21): "Aquellas tienen una base fabricada en la
técnica especial de red que es llamada en alemán "Schlingtechnik" enlazándose el hilo por
lazos y sin uso de nudos. Mientras de la gorra representada en la figura 24 está guarnecida
de plumas de diferentes colores están elegidas para la gorra representada en la figura 23
solamente plumas blancas de la garza y algunas plumas negras". Lâmina X, figs. 23, 24.
"Esquemas de la fabricación de las gorras", lâmina XIV, figs. 32, 33. Murphy-Quain
(1955:37): "... another headdress, a feather topknot tied to a cotton headnet, was captured
in warfare with the Cayabi" (pelos Trumai).
k) Troféu (ya'warãi)
Trata-se de um troféu de caça usado pelos homens em torno do pescoço nas oca-
siões festivas. Duas grandes presas de ya'wapinim, onça pintada (Felis onca), perfuradas
com um prego fino nas raízes, são enfiadas em um cordel preto e ali atadas. O matador da
onça tem o direito de envergá-lo e, no caso em pauta, fora o filho do chefe que abatera o
animal em 1964.
12. Brinquedos
a) Arco infantil (wi/rapai'i)
O pai ou o irmão materno do menino prepara-lhe um arco para ele exercitar-se e
para caçar pequenos mamíferos, aves e peixes.
Medidas: 143 cm de comprimento.
Feitura: em tudo semelhante aos arcos para adultos (vide 3b)
b) Flechas infantis (oi/wi'i)
Homens e meninos preparam essas flechas a título de brinquedo, mas também para
caçar pequenas aves e peixes.
Medidas: variam entre 75 cm e 105,5 cm de comprimento.
Feitura: corta-se um pedaço de bambu em tiras de 0,5 cm de grossura – para
flechas de fisga, com grossura de 1,5 cm – dando-lhes corte reto numa extremidade e
aguçando-as na outra. Para a emplumação, as penas são atadas à extremidade distal da
haste e depois viradas para o outro lado com uma torção de 90 graus e os canhões presos
por um atilho. A emplumação espiralada leva a uma rotação da flecha o que contribui para
a estabilidade do vôo.
c) Flecha silvadora
Os homens fabricam a flecha como no item anterior e enfiam, a uns 15 cm abaixo
da ponta, um coquinho provido de dois orifícios. Ao ser disparada pelos meninos ela emite
um assobio. Seu comprimento em geral é de uns 105 cm.

Equipamento material 157


d) Pião silvador (figura 36)
Homens e rapazes divertem-se com esse pilão feito com uma i/'aki/ t, cabaça
(Lagenaria sp.) que apresenta uma pequena abertura superior em que se enfia uma vareta
de uns 13 cm de comprimento, prendendo-a com uma mistura de resina e cola. Dois
orifícios são feitos em pontos opostos da parte dilatada da cabaça. Um cordel de algodão
é enrolado em voltas densas em torno da vareta, passado por uma tabuinha em forma de
lança e enodado na extremidade.
Medidas: 15 cm de altura, incluindo a vareta; diâmetro da cabaça, 9,5 cm.
Dados complementares: para rodar o pião, a tabuinha é segura com a mão
esquerda, ficando o indicador e o polegar junto à vareta. Puxa-se com a mão direita o
cordel, deixando-se cair o pião em rotação.

Figura 36: PIÃO SILVADOR

e) Trompete transverso pequeno


Construído pelos homens com os mesmos materiais e a mesma técnica do trompete
para adultos (vide 10d), este brinquedo para meninos tem um comprimento de 24 cm e um
diâmetro de 1,7 cm.
f) Cítara de bambu (ikwat) (figura 37)
Este brinquedo para meninos, construído pelos homens, consiste de um gomo de
bambu provido de nós nas duas extremidades, com uma abertura circular no centro sobre
a qual passam três a cinco fasquias do próprio internódio, levantadas e apoiadas sobre dois
pedacinhos de madeira entalhados que servem de cavalete.
Medidas em dois exemplares:
1 - 59 cm de comprimento e 3,5 cm de diâmetro;
2 - 53 cm de comprimento e 3 cm de diâmetro.

Figura 37: CÍTARA DE BAMBU

158 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Dados complementares: os Kaiabi designam este objeto de "guitarra" em portugu-
ês, mas não o consideram um instrumento de música. A sua confecção, provavelmente,
deriva do contato com os seringueiros.
g) Esculturas de madeira (figura 38a, b)
Os homens entalham pedaços de madeira com o facão, dando-lhes formato de
tamanduá (tamanao) e coati (kwatsi), para as crianças brincarem (só os meninos?).
Medidas em dois exemplares:
1 - tamanduá, 30 cm de comprimento por 7,5 cm de altura;
2 - coati, 34 cm de comprimento por 9 cm de altura.

Figura 38a: COATI Figura 38b: TAMANDUÁ

h) Brinquedo de madeira (i/'waki/ tan)


São peças de madeira de uns 10 cm de comprimento talhadas em diferentes forma-
tos: um cilindro oco, fechado numa extremidade e com formato de cogumelo; um cone
truncado maciço, arredondado em baixo e com formato de cogumelo em cima. São os
homens que fazem essas peças e, de acordo com os Kaiabi, elas não representam seres
humanos ou animais.
i) Atiradeira de bambu (figura 39)
Meninos e homens sabem preparar esse brinquedo de uns 20 a 30 cm de compri-
mento e 3 cm de diâmetro, com que os meninos se divertem. Perfuram um segmento de
bambu em dois pontos opostos do seu primeiro terço, ampliando um dos orifícios para um
formato retangular. No último terço, também abrem dois furos, mas de tal maneira que o
orifício de cima fica um pouco mais para frente em relação ao de baixo. Por estas duas
aberturas enfiam uma das pontas de uma vareta flexível de bambu, enquanto a outra ponta
passa pelas perfurações da frente. Introduzem uma semente, uma pedrinha ou qualquer
outro objeto duro na boca do tubo de bambu. No momento em que a vareta flexível é
empurrada com o dedo para fora do orifício inferior, ela salta para frente até o limite de
abertura retangular e impele o projétil para fora do tubo. Com nova "munição", pode-se
repetir o processo indefinidamente.

Equipamento material 159


Figura 39: ATIRADEIRA DE BAMBU

Dados complementares: Nordenskiöld (1920, fig. 34) mostra uma atiradeira ("bean-
shooter") dos Chané que parece idêntica a esta.
j) Konomi
É necessário mencionar ainda, embora sem certeza de trata-se de um brinquedo,
uma boneca antropomorfa feita de um otólito de arap oo, peixe elétrico (Gymnotus
electricus) enrolado com cordéis de algodão. Ela é atada à rede de uma mulher grávida,
sendo feita por homens. Disseram-me tratar-se de uma "boneca", no sentido de brinquedo.

13. Pauzinhos de numeração


Quando Mairer‰ visitou a localidade recém fundada de Porto dos Gaúchos, no
Arinos, em 1957, recebeu do diretor daquela colônia o encargo de procurar o campo
aberto mais próximo do lugarejo. Depois de várias semanas, ele voltou e descreveu
sua viagem com o auxílio de um pauzinho entalhado, de 19 cm de comprimento, em
que cada talho correspondia a um pouso noturno. Este recurso mnemônico encontra-
se em mãos do sr. Guilherme Mayer, de quem obtive a informação.
Max Schmidt reproduz um pauzinho de numeração semelhante, obtido entre os
Bakairi do Posto Simões Lopes (1947), lâmina XIV, figura 31a, "tablita entallada para
acordar numeros", e diz a respeito:
"Como tales tablitas, destinadas, verosimilmente, para acordar numeros, no se
encuentram de los Bakairi de los afluentes del Alto Xingu, hemos de suponer
que se trata en este caso del producto de una influencia ajena de tiempos pos-
teriores".
Esta constatação poderia indicar que se trata de um objeto recebido dos Kaiabi.

160 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


capítulo VI

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA


Como já indiquei no Capítulo IV, a observação dos aspectos sociais e políticos de
uma cultura exige acesso às categorias cognitivas correspondentes, que garantem aos res-
pectivos portadores um acervo comum de valores, representações e comportamento. O
pré-requisito para a participação nessa classificação culturalmente determinada de todos
os fenômenos é o domínio do idioma. Ou seja, o processo de aprendizagem da língua inclui
implicitamente a assimilação daquelas categorias de pensamento que permitem o uso cor-
reto da língua. Como eu não aprendi a língua dos Kaiabi nos oito meses de minha perma-
nência entre eles, não pude testar as características êmicas da presente cultura, descrita
neste e nos demais capítulos que, assim, serão apresentadas nos involuntários moldes
etnocêntricos das etnografias tradicionais. Seria perigoso ignorar ou minimizar esta falha,
pois descrição já é teoria por ser atividade interpretativa.
Da rica literatura sobre a problemática da descrição de estruturas sociais, apenas
menciono uma única obra, que me esclareceu muitos aspectos, antes ininteligíveis, da orga-
nização social dos Kaiabi; fato tanto mais notável por tratar-se de uma reconstrução social
dos Tupinambá baseada apenas em relatos dos séculos XVI e XVII (Fernandes 1963;
complementar 1952 e 1964).
1. Economia, aquisição de alimentos e atividades artesanais
como fatores sociais
a) Divisão do trabalho
Ela obedece ao esquema freqüentemente observado entre índios da floresta tropi-
cal: roçar e plantar, caçar, pescar e fabricar utensílios ligados a estas atividades, a constru-
ção de canoas, a arquitetura e os trabalhos de trançado, assim como a busca e o transporte
de lenha, fazer fogo, a coleta do mel e, finalmente, a elaboração de enfeites e a lavagem de
roupas adquiridas dos brasileiros – estas são as tarefas dos homens.
As mulheres colhem e transportam os produtos da roça, preparam o alimento, fiam
algodão para a confecção de faixas para carregar crianças e redes de dormir, e são res-
ponsáveis por todas as técnicas cerâmicas.
O transporte de cargas, o plantio, a colheita e coleta de frutas, porém, são em geral
executados por homens e mulheres em conjunto.
Embora a faixa de carregar criança seja um atributo fundamentalmente feminino,
não se tornam ridículos os homens que a envergam ao cair da tarde, carregando seus filhos,

Organização social e política 161


por horas, a passear. De modo geral, ocupar-se de crianças pequenas e animais de esti-
mação representa o passatempo predileto tanto de homens como de mulheres.
Que entre os Kaiabi não só as mulheres servissem como “animais de carga” tam-
bém chamou a atenção de Sousa (1916:79):
“Parece-nos que as mulheres caiabis são melhor tratadas, não servindo de ‘car-
gueiro’, como geralmente acontece entre outros índios. Vimos muitos homens
carregando cestos de matula e os filhos que principiavam a caminhar, enquanto
que as mulheres só carregavam os filhos ainda de peito, trazendo-os em largas
faixas de algodão...”
“Trabalhar muito” é considerado virtude. Grande prestígio e idade avançada não
constituem razões para trabalhar menos que os outros. Temeoni ia diariamente à roça
buscar lenha, rachando-a em seguida, embora todos os membros masculinos da família
estivessem em condições de lhe poupar esse trabalho pesado. Em princípio, não havia
nenhuma especialização de indivíduos isolados em determinados trabalhos, mas dotes ar-
tísticos eram reconhecidos em sua individualidade, e muito apreciados. Só Temeoni e
Kwasiari sabiam trançar desenhos complicados nos balaios, enquanto as redes de Yeupit
e as flechas de Moanyan eram consideradas as “mais bonitas” etc. Nunca se verificou,
entretanto, um intercâmbio regular destes produtos.
b) Propriedade e divisão de bens
Quando cheguei pela primeira vez ao Posto Tatuí, a 20 de janeiro de 1966, todos
os Kaiabi ajudaram a descarregar minha bagagem, empilharam-na na maloca e dividiram
entre si todos os gêneros alimentícios no correr do dia seguinte. Hesitaram, inicialmente,
aguardando minha reação, mas como eu não protestei, aceitaram como certo meu com-
portamento e prosseguiram tranqüilamente na distribuição de um saco de arroz, um de
feijão e outro de açúcar. Cada chefe de família pegava sua parte e todos os moradores da
aldeia comeram comigo durante uma semana a minha provisão prevista para três meses.
Com a mesma naturalidade, fui sustentado o resto do tempo dentro do grupo dos homens
não casados, que não precisam preparar seu próprio alimento. Esse comportamento ca-
racteriza o conceito de propriedade dos Kaiabi: não como propriedade ligada insepara-
velmente a uma pessoa, mas como um bem que, de acordo com as necessidades respec-
tivas do grupo, é administrado pessoalmente. Assim pode-se conceber a maloca como
propriedade do chefe da família extensa, e cada uma das áreas de cultivo dentro da roça
como posse de uma família nuclear, cujo nome também a distingue. Peças de mobiliário
pertencem àquele que as usa, e à pergunta a quem “pertence” a gaiola do gavião, obtive
como resposta “ao gavião”, embora a maioria dos objetos “pertença” a pessoas. Mas não

162 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


se expressa com isso um relacionamento essencialmente diferente daquele que citei acima
sobre a ave.
Por ocasião de uma de suas numerosas visitas a parentes numa outra maloca (no
Posto, em outra choça), os Kaiabi voltam carregados de presentes. Além de receber os
obrigatórios alimentos, eles podem “adquirir”, como presentes, certos objetos – cestos,
animais de estimação ou armas – desde que elogiem veladamente estes itens. E até esco-
lhem os de sua preferência, levando-os consigo na presença do verdadeiro dono sem
suscitar nenhum comentário. Pressuposto evidente para esta transação é a consciência de
que o indivíduo que leva um presente conhece o seu valor e que oportunamente mostrar-
se-á reconhecido na medida correspondente.
Este comportamento é uma troca convencional de bens, socialmente motivada, mas
não representa uma transação no sentido europeu. A total incompreensão deste comporta-
mento por parte dos seringueiros teve conseqüências trágicas em algumas ocasiões. Um
Kaiabi, por exemplo, que queria “levar” um facão na presença dos dois proprietários de uma
feitoria, foi imediatamente tido por ladrão por ambos e morto a tiros.
No início eu também interpretei erroneamente semelhantes situações: de uma por-
ção maior de contas de vidro que eu havia levado para fins de troca, distribuí apenas uma
parte, relativamente pequena, para não esgotar antes do tempo todas as reservas de pre-
sentes. Diversos Kaiabi disseram-me que eram “muito poucas” as contas, ao que não dei
maior atenção. No dia seguinte, faltava a maior parte das contas do saco, e sendo Moanyan
o único que poderia tê-las tomado, perguntei-lhe por que havia feito isso. Ele ficou extraor-
dinariamente excitado e indignado, desmentiu que tivesse feito tal coisa e acentuou diversas
vezes que eu “não sabia” e que ele “não tinha medo”. Convocou todos os homens e exigiu
de mim, com voz ainda agitada, uma tomada de posição. Repeti minha pergunta, “por que
haviam tomado as contas”, acrescentando que as teria cedido com gosto se eles as tives-
sem pedido. A reunião se desfez silenciosamente, mas a situação continuou muito tensa,
ameaçadora mesmo. Meses depois, as conversas com Moanyan tornaram claro o motivo
da sua indignação comigo. Eles haviam corrigido discretamente um ato errado meu, e quando
eu o percebi, inculpara Moanyan em vez de mostrar-me grato por sua ajuda.
O roubo dentro do grupo é, portanto, impossível; mas pode haver violação da
obrigação de reciprocidade dos presentes dentro da ordem de valores vigente. O que,
entretanto, também varia de acordo com a disponibilidade, num dado momento, da quan-
tidade de objetos correspondentes. Um facão corresponde inteiramente a um belo ces-
to; mas se há 50 facões armazenados num barracão, então não se dará nenhum cesto
por unidade, considerando-se errado e condenável este acúmulo de bens que não estão
em uso.

Organização social e política 163


Em alguns casos, esta perspectiva deu origem a fenômenos semelhantes ao “cargo-
cult”, como, por exemplo, o saque coletivo do barracão Santa Maria no dia 16 de agosto
de 1966, em que apenas alguns Kaiabi tinham consciência de um procedimento incorreto.
Quando os Kaiabi perdem objetos emprestados de outras pessoas, comunicam-no de
forma jocosa e incidental, e não mais se referem ao fato até que encontrem um substituto
que oferecem sem comentário.
Assim quando o pequeno filho de Kupe´ap jogou minha caneca da canoa na água
todos riram gostosamente. Kupe´ap esforçou-se inutilmente para achá-la por meio de mer-
gulhos, mas não disse uma palavra a respeito. Mais de uma semana depois, estendeu-me
uma cafeteira trocada com os seringueiros e esperou que a recebesse em compensação.
De modo bem parecido se comportou Moanyan ao perder uma linha de pesca de náilon
que pertencia a Tapa. Rindo, comunicou o fato a ele, que prosseguiu na sua ocupação sem
nenhuma reação perceptível, embora se tratasse, no caso, da perda de um objeto realmen-
te valioso. Não pude observar junto aos Kaiabi comércio interno ou externo no verdadeiro
sentido do termo, pois a recente troca regular de peles de animais por bens de civilização
foi concebida pelos índios na ótica acima exposta e, só muito devagar, começaram a com-
preender o sistema de valor e contravalor de um produto dos seringueiros.
c) Intercâmbio e consumo de gêneros alimentícios
Pode-se observar que os Kaiabi trocam entre si a maior parte dos gêneros alimen-
tícios disponíveis no momento, mas aparentemente de acordo com regras bastante rigoro-
sas, de tal modo que até se poderia falar de uma cerimônia de troca entre as diferentes
famílias nucleares que habitam a maloca. Por detrás desse comportamento, encontra-se a
convicção de que todos os membros do grupo estão em dependência mútua e são respon-
sáveis uns pelos outros, atitude que também vale em relação aos hóspedes. Depois que os
Kaiabi decidiram receber-me entre eles – em sentido paradigmático evidentemente –, tam-
bém assumiram responsabilidade por minha alimentação. Nunca fui prejudicado na distri-
buição de alimentos, embora eu fosse muito “improdutivo”, sobretudo nos primeiros me-
ses, no que se refere à caça e à pesca. Até que ponto chega essa tendência para a distribui-
ção do alimento, pode ser ilustrado pelo seguinte caso: na época das chuvas, depois de um
período de vários dias em que nada fora caçado, Kwaban abateu uma pomba silvestre. Ela
foi depenada, cozida, socada e misturada com farinha de mandioca, e cada habitante da
aldeia recebeu uma minúscula parte da pomba.
A maior parte da caça e da pesca é obtida pelo grupo de moços solteiros, a quem
cabe, como uma das principais responsabilidades, prover as famílias com carne fresca.
Quando voltavam à maloca, deitavam a presa ao lado da entrada, sem dizer uma palavra,

164 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


e iam para a rede. A mulher, ou mulheres, a quem cabia o preparo, levava-a para junto de
seu fogo onde um homem estripava e esquartejava a presa.
Quero ilustrar o processo diário de distribuição e consumo de alimentos com um
exemplo: um dia, Moanyan e Ny‰kato caçaram dois macacos e trouxeram-nos à maloca
de Temeoni, onde sua mulher Moi e K‰yakato, com eles cozinharam um mutap. Pronto o
prato, Moi encheu três grandes cabaças e Temeoni levou uma para Moanyan, uma para
Ny‰kato e outra para mim. Em seguida, foi com sua própria cabaça de homem em homem
e deixou que cada um experimentasse uma ponta de dedo de mutap, inclusive aqueles a
quem já tinha levado uma cabaça especial. Moanyan e Ny‰kato repetiram pouco depois o
mesmo processo.
Este distribuir e provar de alimentos repetia-se diariamente, com leves variações,
mas apenas entre os homens e só com comida Kaiabi “pura”, como o mutap, beiju de
mandioca e todos os tipos de chicha. A atitude é sempre séria e são usadas as mesmas
palavras. Os mesmos alimentos, porém, podem ser comidos pelas mesmas pessoas sem
qualquer solenidade, como nas viagens.
Não pude obter, contudo, nenhuma informação sobre as regras desta cerimônia.
Minhas tentativas de prever a forma da refeição a ser selecionada, apenas pela observação
da situação, não tiveram êxito.
2. Sistema de parentesco
A família dos Kaiabi consiste geralmente de uma extensa família uxorilocal com
patripotestas. As filhas ficam morando com os seus pais e os homens se transferem para
junto de suas esposas, onde são incumbidos de tarefas econômicas pelo pai da esposa.
Este domina, por toda a vida, interesses do convívio social. Após sua morte, oferece-se ao
homem que entrou na família pelo casamento a possibilidade de formar uma nova família
extensa com os próprios filhos e irmãos solteiros de sua esposa. Uma família extensa pode,
pois, incluir tantas gerações quantas permite a duração da vida individual do “patriarca”.
Exceções à residência uxorilocal verificam-se nos casos em que os pais da mulher são
falecidos e ela, por exemplo, foi criada pela família do irmão da mãe; então ela se transfere
para a família do marido. Em outras exceções da norma descrita, verifica-se que, em ques-
tões de residência marital, o prestígio do marido ou de seu pai pode ser decisivo. Assim
pode-se constituir uma família extensa bilocal com a duração de três gerações (cfr. F.
Grünberg 1970).
A composição pessoal da parentela decorre do princípio do parentesco consan-
güíneo bilinear dentro de um grupo bilateral, isto é, a descendência é traçada a partir dos
pais tanto para os filhos como para as filhas.

Organização social e política 165


Para esclarecer melhor as conseqüências disso, apóio-me no que se segue em
Schmitz (1964). Em princípio, o parentesco consangüíneo bilinear incluiria toda a humani-
dade, do que naturalmente não resultaria nenhuma função social. Impõe-se, pois, uma
limitação desse cone imaginário de descendência, de extensão infinita. Esta limitação pode
ser instituída por regras de casamento prescritas ou por determinadas regras de residência,
dando origem a pelo menos três segmentos, que derivam todos do mesmo par original, do
qual, entretanto, o segmento central se considera mais próximo e por isso apresenta o
maior status. Sociedades com essa estrutura de parentesco carregam, pois, em si, des-
de o início, o germe da formação de status e, ao contrário dos sistemas unilineares,
jamais se apresentam como série de linhas igualitárias. A supervalorização do status,
entretanto, pode levar novamente a grupos unilineares: no caso dos Kaiabi, para a heredi-
tariedade patrilinear da chefia. Esta estratificação de um grupo oferece pressupostos
favoráveis para unidades grandes e diferenciadas, que poderiam ser chamadas de Esta-
dos, à semelhança dos grupos locais dos Tupinambá na segunda metade do século XVI
(Fernandes 1963:68ss).

Figura 7: PARENTES CONSANGÜÍNEOS

= =
14 15 14 15

=
13 12 12 8 9 10 10 11

17 18 2 4 1 2 EGO 4 3 2 4 17 18

19 20 19 20 5 6 7 7 5 6 5 6 7 7 5 6 7 7 19 20 19 20

16

Como se disse, sistemas bilineares requerem uma limitação. Entre os Kaiabi ela se
encontra predominantemente no casamento preferencial e simétrico de primos cruzados,
cujo princípio estrutural pode ser estendido para a primeira geração ascendente ou des-

166 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Ego = ` Ego = a
1. irmão mais velho yireki´it yikiwit
2. irmão mais novo yirevirit yikiwit
3. irmã mais velha yirekit yikipi´it
4. irmã mais nova yirenit iwu i yakinã
5. filho yira´it yira´urakyã
6. filha yirayet yira´urakinã
7. sobrinho/sobrinha yirekayat yepen
8. pai yirip como Ego = `
9. mãe ye´i como Ego = `
10. irmã da mãe ye´it como Ego = `
11. irmão da mãe yetitit como Ego = `
12. irmão do pai yeruwit como Ego = `
13. irmã do pai yeyaye como Ego = `
14. avô yiramã i como Ego = `
15. avó yiyar† como Ego = `
16. neto yiramemumin‰ yiramearir‰
17. primo yirami´uramet yeremi´urakyã
18. prima yirami´urayet yeremi´urakinã
19. sobrinho neto yiremurame ara´it yeremi´urame arakyã
20. sobrinha neta yiremurame arayet yeremi´urame arakinã

cendente, para a FaSi, FaSiSoDa e FaSiDaDa, respectivamente MoBrSoDa e MoBrDaDa,


sendo Ego masculino.(31)
Wagley e Galvão (1946) tentaram pela primeira vez construir um sistema de paren-
tesco Tupi e para tanto se basearam em seus próprios dados, obtidos entre os Tenetehára
e Tapirapé, e sobre notícias de V. Watson (1944) a respeito dos Kaiwá. A estreita con-
cordância da terminologia destas tribos geograficamente tão distantes entre si e algu-

31
Fa = father, pai; Si = sister, irmã; So = son, irmão; Da = daugther, filha; Mo = mother,
mãe; Br = brother, irmão. (n. ed.)

Organização social e política 167


mas fontes históricas sobre a população do litoral brasileiro do século XVI levaram os
autores a supor que:
“The Tupi-Guarani tribes share a common kinship system – a bilateral system of
a type found widespread in North America and which is generally correlated in
both South and North America with the bilateral family and a lack of unilateral
exogamous divisions of the tribe” (Wagley e Galvão 1946:24).
Os autores referiam-se ao sistema Dakota, do qual o sistema Tupi se distingue
apenas pela designação de primos e primas cruzados como irmãos e irmãs.
Ainda no mesmo ano, J. Philipson (1946) criticou esta noção de um sistema de
parentesco comum através da interpretação de dados lingüísticos. Embora nos anos se-
guintes surgisse muito material novo, só F. MacDonald retomou este problema e demons-
trou, com os dados de outras oito tribos Tupi, a inconsistência do sistema proposto por
Wagley e Galvão. Deu, entretanto, diretrizes para um “... new revised Tupi-Guarani system
which seems plausible in most instances” (1965:16). Como característico ele indica:
1. terminologia “bifucarte merging” na primeira geração ascendente, descendente e
na de Ego;
2. casamento preferencial de primos cruzados, simétrico ou não, e avunculado;
3. descendência bilinear ou patrilinear;
4. residência patrilocal ou uxoripatrilocal;
5. ausência de grupos exógamos, unilineares.
Dispondo os dados dos Kaiabi, de acordo com este sistema, resulta o seguinte
esquema:
1. terminologia na geração Ego: tipo Iroquois
a) geração ascendente: “bifucarte collateral”;
b) geração descendente: “bifucarte merging”;
2. casamento preferencial: casamento simétrico de primos cruzados (extensivo a
tias cruzadas e MoBrSoDa / MoBrDaDa);
3. descendência: bilinear;
4. residência: uxorilocal (“matrilocal”);
5. grupo de parentesco: família extensa.
Na terminologia da geração de Ego, os Kaiabi divergem, portanto, do sistema
apresentado na mesma medida que as tribos xinguanas vizinhas, os Kamayurá e Aweti, e
também dos Munduruku que vivem mais ao norte. Os termos para a primeira geração
ascendente, de outro lado, revelam um paralelismo com os Kaiwá, e a residência “matrilocal”
dos Kaiabi encontra correspondência entre os Sirionó e Tapirapé (MacDonald 1965:6).

168 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Verifica-se que cada elemento isolado das regras de parentesco dos Kaiabi tam-
bém ocorre em outra tribo Tupi, mas não combina em seu conjunto com nenhuma tribo
descrita até o momento. Essa realidade parece dar razão à opinião de Philipson:
“... de que não existe ‘o’ parentesco tupi-guarani, mas sistemas diversos em
grupos diversos” (1946:17).

Figura 8: PARENTES AFINS, EGO = `

= = = = =
15 14 12 13
=
10 11

= = = =
7 6 5 1 2 3 4

= =
8 9

1. esposa yeremirik, kari


2. irmã mais nova da esposa nekipi’i
3. irmã mais velha da esposa nerekivin
4. irmão da esposa nekiwit
5. esposa do irmão mais novo yirevireyati
6. esposa do irmão mais velho yireki’irati
7. marido da irmã yiraiya’it
8. esposa do filho yira’itati
9. marido da filha yirayemen
10. sogro nerip
11. sogra ne’i
12. marido da irmã da mãe ye’imen
13. esposa do irmão da mãe yetitirati
14. esposa do irmão do pai yiru’irati
15. marido da irmã do pai yeyayemen

Organização social e política 169


O problema da residência marital, principalmente, ainda merece um comentário críti-
co. É bem possível que, devido à pequena população Kaiabi no Tatuí, uma residência
matripatrilocal original se apresentasse apenas matrilocalmente. Pois no caso concreto
das duas aldeias, a única família extensa intacta coincide com a família do chefe que,
através de seu grande prestígio, pode ligar a família do filho mais velho à sua maloca.

Figura 9: PARENTES AFINS, EGO = a

= = = = =
15 14 12 13
=
10 11

= = = =
4 3 2 1 5 6 7

= =
8 9

1. marido yemen, nyã


2. irmã do marido ye’oki’i
3. irmão mais novo do marido yemeneviret
4. irmão mais velho do marido yemeneki’it
5. marido da irmã mais nova yekupi’iven
6. marido da irmã mais velha yirekimen
7. esposa do irmão ye’iki’i
8. esposa do filho como Ego = `
9. marido da filha como Ego = `
10. sogro yemenip
11. sogra yemeni
12. marido da irmã da mãe como Ego = `
13. esposa do irmão da mãe como Ego = `
14. esposa do irmão do pai como Ego = `
15. marido da irmã do pai como Ego = `
170 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
Muito depende, portanto, da interpretação do testemunho dos Kaiabi, que certamente
seria diversa para diferentes pesquisadores. E Galvão (1953: 33ss) deparou-se com um
problema semelhante na área do Alto Xingu, onde cada tribo só é representada por uma
única aldeia, o que levou a uma pronunciada dilatação do emprego de termos de paren-
tesco restritos e a um acúmulo de cargos por parte dos chefes.
Dada a situação demográfica desfavorável e o tabu de mencionar nominalmente os
mortos, minha tentativa de elaborar uma genealogia abrangente dos Kaiabi foi infrutífera.
Poliginia sororal e levirato são permitidos, segundo informações dos Kaiabi; contu-
do, não são praticados por causa da grande falta de mulheres. Dornstauder (MSa 1955)
observou dois casos de poliginia: tratava-se de homens idosos de grande prestígio que
estavam respectivamente casados com duas mulheres jovens, provavelmente irmãs.
Os Kaiabi designam o conjunto dos parentes e, portanto, toda a tribo, de iputunoo
ou iputanana, o que se traduz em português por “muita gente” ou “pessoal nosso”. Esta
autodenominação dos Kaiabi baseia-se tão fortemente sobre o sistema de parentesco que
eles aplicam o mesmo conceito também aos caitetus, quando querem caracterizá-los como
conjunto, ou seja, como um “povo”. Por outro lado, yinané´iputunoo, “eu não sou Kaiabi”,
nega a filiação à parentela.
O termo “Paruᔠcom que os Kaiabi se autodenominariam, segundo von den
Steinen (1894:391) e seus informantes Bakairi, era desconhecido no Rio dos Peixes,
tratando-se possivelmente de palavra Bakairi.
3. A família
Como indicado, a família extensa uxorilocal constitui a unidade básica dos sistemas
social, econômico e, sob muitos aspectos, político dos Kaiabi. Isto vale, sem nenhuma
restrição, para a situação que Dornstauder encontrou em 1955. Os moradores das diversas
malocas só se encontravam por ocasiões de expedições de guerra ou da festa Yawotsi, abs-
traindo-se as numerosas visitas a parentes e as consultas aos xamãs em casos de doenças.
Dez anos mais tarde, ainda se mantinha ficticiamente essa regra, manifestando-se,
contudo, uma forte tendência para a divisão da família extensa em famílias nucleares patrilocais
muito autônomas economicamente, que seguiam o modelo dos seringueiros morando em
choças independentes, bem próximas umas das outras, numa roça comum. Esta situação
verificou-se em 1960 por própria iniciativa dos Kaiabi, nela influindo um motivo importante
de natureza política. Não havia ninguém com autoridade suficientemente grande para funci-
onar como chefe da maloca, e essa circunstância levou, em anos seguintes, a mais uma
cisão. Mairer‰ desaviera-se com Xico/Yupari´up, que se apresentava como “pequeno capitão”
ao missionário e aos seringueiros. Mairer‰ mudou-se com sua família e a de Purikato alguns

Organização social e política 171


quilômetros rio abaixo onde abriu uma grande roça e construiu uma maloca para ambas as
famílias. Yupari´up tentou dar-me a impressão de que se tratava de uma “filial” temporária do
Posto, enquanto Mairer‰ não deixava dúvidas de que era uma verdadeira maloca – e sua.
Essa crescente emancipação da família nuclear evidenciava-se também na mudan-
ça de comportamento de cada um dos membros da família que, graças à pequena coesão,
tinham mais liberdade individual, mas menos apoio do grupo. Isto constituía um entrave a
qualquer tipo de cooperação, atuando, portanto, sobre toda a produção de gêneros ali-
mentícios e sobre as atividades religiosas.
Como homem solteiro, era-me quase impossível observar a vida de família. Pare-
cia-me, contudo, que decisões importantes eram apenas tomadas depois de uma rápida
troca de impressões entre os cônjuges e a atitude mansa, mas autoconsciente das mulheres
nessas ocasiões, permitia entrever uma forte influência de sua opinião sobre os atos do
marido. Viagens, em particular, pequenas expedições de caça e os preparativos para festas
dependem muito de sua atitude. Dois exemplos de desavenças conjugais podem ilustrar
essa situação. Num pouso, quando da viagem à maloca de Temeoni, Tapa abateu um
macaco e, sem que eu compreendesse a razão, teve logo depois uma violenta discussão em
voz baixa com sua mulher. Após algumas frases curtas, interrompeu-se a mímica de ambos,
a mulher preparou como sempre a comida, sem entretanto dela participar, enquanto Tapa
se distanciava ostensivamente do fogo e comia. Então Mariwa e nós outros carregamos a
bagagem e fomos para a canoa pretendendo seguir adiante. Tapa veio por último, vagaroso
e hesitante, e não falou uma só palavra com sua mulher no dia seguinte. Muito mais tarde,
quando remávamos de novo por aqueles lugares, obtive de Moanyan a explicação da
briga. Tapa não queria dar à sua mulher os intestinos torrados do macaco – considerados uma
especialidade – e por causa disso, ela passou a rejeitar qualquer alimento. Ele ameaçou voltar,
do que ela não tomou conhecimento, ela dirigindo-se à canoa para seguir viagem. Tapa teve
de conformar-se. Com toda naturalidade, Moanyan tomou o partido de Mariwa, explican-
do que nesses casos sempre se deve fazer o que a mulher quer, e que Tapa era “ruim”.
Durante uma excursão mais longa, Kupe´ap, sem dizer palavra, jogou repentina-
mente sua rede de dormir num riacho e continuou a andar. Os Kaiabi e eu, que seguíamos
atrás, observamos o fato, mas ninguém fez qualquer comentário a respeito e nem recolheu
a valiosa rede. Dois meses depois, quando voltamos a passar pelo mesmo riacho e vimos
nele a rede meio apodrecida, alguns Kaiabi encetaram uma conversa animada a respeito,
da qual pude participar. Kupe´ap protestava na ocasião contra sua mulher que, no seu
parecer, o fazia transportar muita carga, inclusive a rede de dormir dela. Ele não atirou fora
esta rede, mas a própria. A mulher teve que lhe fazer uma nova nos meses seguintes, mas
infelizmente não conseguiu aprontá-la porque morreu de pneumonia.

172 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Tais exemplos não devem despertar a impressão de que esses casamentos fossem
orientados fortemente para o lado da mulher. Na realidade, sua forma ideal consiste numa
relação equilibrada de parceiros entre marido e esposa, o que, dada a forte tendência
generalizada entre os Kaiabi de abafar todas as manifestações emocionais, provoca uma
impressão formal e reservada.
De modo semelhante, o pronunciado amor dos pais pelos filhos só se manifesta
abertamente em relação aos bebês e infantes. Assim, por exemplo, quando após uma
ausência de mais de um ano, um Kaiabi de aproximadamente 20 anos de idade voltou da
região do Juruena para sua maloca e se deitou na rede sem dizer palavra, só se podia
perceber no leve tremor da mão de sua mãe – que após alguns minutos lhe trouxe uma
cabaça de chicha – o quanto ela estava alegre.
Crianças de seis a oito anos têm atitude de muito respeito para com seus pais,
enquanto o tio materno era tratado, pelo menos num caso, mais como camarada. Só entre
cunhados observei relações declaradamente jocosas.
4. Classes de idade
Tomei consciência da estratificação social segundo classes de idade logo após mi-
nha chegada, quando me esforçava para desempenhar o papel que correspondia à minha
idade e, conseqüentemente, ao meu status. De fato, já no primeiro dia eu recebera o status
de homem jovem não casado, ou seja, de um konomi´oo.
Segue-se um esquema para esclarecer a ordenação das seis classes de idade:
1. konomi´akut k‰yatai (k‰yate´ii ?)
crianças de peito crianças de peito
2. konomi´i k‰yamuku´ii
meninos pequenos, 2 a 6 anos meninas pequenas, até 4 anos pelo menos
3. konomi k‰yamuku
moços até 15 anos moças até 14 anos aproximadamente
4. konomi´oo k‰yamuku´oo
homens jovens até 25 anos mulheres jovens até 20 anos aprox.
5. kuima´e (aikui ?) k‰ya
homens de até pelo menos 45 anos mulheres de até pelo menos 40 anos
6. sa u a´é õiw†
homens velhos, acima de 45 anos mulheres velhas, acima de 40 anos

Konomi´akut e k‰yatai são carregados na tipóia e preenchem passivamente uma


função social. Um konomi´ii já é aceito como um verdadeiro e ativo membro do grupo,
mas permanece ainda muito preso à mãe, tal como a k‰yamuku´ii. Como konomi ele

Organização social e política 173


acompanha primeiramente o pai ou o irmão da mãe nas caçadas, aprende a remar, é extra-
ordinariamente móvel e tem a máxima liberdade de movimento, não se lhe exigindo nenhum
trabalho regular. Pode fazer quantas perguntas quiser e é muito espontâneo no trato com
adultos.
Com a puberdade e os ritos a ela associados, ele alcança o status de um konomi´oo
e seu comportamento muda radicalmente. Muito calado e retraído, nunca faz perguntas,
mas escuta freqüentemente a conversa dos outros. Sobre ele recai o peso principal do
provimento de alimentos: sem ser intimado, vai diariamente à caça e entrega a presa à sua
família. Em todas as viagens, é ele quem rema e abastece a canoa, arca com as cargas mais
pesadas nos transportes e atua como “capataz” nas roças e na construção da casa. Não
pendura mais sua rede na repartição dos pais, mas em outra, que ele divide com todos os
outros konomi´oo e também com os viúvos. A comida é trazida a esse grupo de homens
jovens pela mulher do dono da maloca e é raro vê-los em companhia de sua própria
família. Demonstra em relação a ela um comportamento quase acanhado e obedece ao pai
sem dizer uma palavra. Masi, loquaz comigo durante as excursões, era tão calado dentro
da maloca que comecei a contar os minutos que ele falava numa semana, e certamente
foram menos de vinte. Ao mesmo tempo, era o ouvinte mais atento das narrações de
Temeoni, que diversas vezes contava mitos e ministrava ensinamentos gerais ao nosso gru-
po durante horas, nunca sendo interrompido por qualquer aparte.
Quase não obtive informação sobre os grupos etários correspondentes às meninas,
as k‰yamuku e as k‰yamuku´oo, pois como konomi´oo não tive possibilidade de con-
versar com elas, com exceção das educadas em Utiariti, que imitavam o comportamento
das adolescentes brasileiras ou se refugiavam assustadas junto a sua parentela feminina.
Elas já podem casar, estão constantemente na companhia de outras mulheres e são intima-
mente ligadas aos trabalhos de preparação dos alimentos. Durante o Yawotsi, elas consti-
tuem o grupo de cantoras. A passagem de k‰yamuku para k‰yamuku´oo dá-se também
em conexão com os ritos de puberdade.
O homem adulto, kuima´é é pai de família, sendo consultado pelo chefe para todas
as decisões significativas de caráter político e econômico. Ele é um guerreiro, organiza
expedições de caça e viagens e, no caso de possuir grande prestígio pessoal, pode fundar
uma maloca própria e presidi-la.
Com idade mais avançada ele se torna saua´é, o que corresponde a um status ainda
mais elevado. Em 1966 só havia um no Tatuí: Temeoni, que não pode servir de exemplo
por ser possuidor de direito hereditário à chefia.
Entre as mulheres é a k‰ya a responsável pela educação das crianças, constituindo
o centro da família nuclear. Em posição consolidada, ela demonstra o comportamento

174 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


essencialmente mais livre de uma matrona, algo como k‰ya´été e yeupit, que eram as
únicas mulheres que podiam conversar por vezes e brevemente comigo, sem com isso ferir
o decoro.
Não havia oiw† no Rio dos Peixes. Contudo, ela deve “falar muito” e “fazer
tudo”, ou seja, pôr em prática a organização da casa com base em sua experiência.
5. Vida sexual
Devido ao meu status de homem solteiro, não pude fazer nenhuma observação
direta e devia contentar-me com as informações de alguns homens.
Mostrou-se claramente que os Kaiabi não dão nenhum valor à virgindade, e Tapa
disse que todas as moças se deixam deflorar por homens adultos antes do casamento,
preferencialmente no mato ou na festa Yawotsi. Um homem que casa “não precisa mais
deflorar sua mulher”, disse ele com ares de superioridade, quando lhe descrevi os “nossos”
costumes de casamento (portugueses).
O homem só tem direitos sexuais sobre sua esposa e, enquanto solteiro, também
sobre a esposa de seu irmão. Relações sexuais extramaritais, contudo, não parecem raras,
conforme me esclareceu Meau´ap: se um homem quer dormir com uma outra mulher, vai a
ela e a chama diante da choça. A mulher, então, pergunta: “O que é que há?”. E ele diz: “Eu
queria ter relações contigo”. Ela vai embora ou então diz: “Pois bem”, e vão juntos ao
mato.
Para não ter mais filhos durante o longo período de amamentação, os Kaiabi, de
acordo com Tapa, empregam um anticoncepcional preparado com raízes raladas de uma
planta: kaféréawi (?). Abortos não são provocados.
Tão logo uma mulher engravida, ela não deve mais manter relações sexuais até a
criança alcançar a idade de 2-3 anos (Meau´ap). Durante todos esses meses em que vivi
com os Kaiabi não observei nenhuma brincadeira ou gesto de cunho sexual entre adultos,
e nenhum ruído durante a noite indicava intercurso sexual. Suponho, pois, que ele se realize
em total retraimento no mato, para onde a família se dirige diariamente à noitinha para fins
de higiene.
As crianças não devem observar os pais no coito, senão elas ficam “muito bravas”,
segundo me contou Yupari´up.
Este comportamento quase recatado também se manifesta na educação, quando se
proíbe às crianças brincar com os órgãos genitais. Só em relação a mamíferos mortos obser-
vei gestos alusivos e observações jocosas que se referiam aos órgãos genitais.
A ocorrência de homossexualidade foi negada e eu mesmo não pude observar
nada que confirmasse sua existência.

Organização social e política 175


6. Chefe e xamã
As posições mais elevadas dentro da hierarquia social da tribo são ocupadas pelo
líder político e único possuidor da dignidade de chefe, o uriat, e pelos em princípio
numerosos funcionários do culto, os panyé, legitimados por uma experiência vocacional
particular.
Os Kaiabi vêem a sociedade ideal dirigida por um chefe velho e aguerrido, que só
pode exercer com toda plenitude sua função puramente política e coordenadora quando
muitos xamãs bons garantem a todos membros do grupo a assistência transcendental.(32)
Assim, chefe e xamã correspondem à imagem ideal de uma personalidade, mas a força de
um xamã atua independentemente do chefe, enquanto, ao contrário, o chefe não pode
preencher sua função sem xamãs.
Chefes também podem ser xamãs e, inversamente, Ipepuri, um xam㠓menor”, por
exemplo, possui hoje sobretudo funções políticas como líder do movimento de migração
dos Kaiabi situados no Teles Pires para o Parque Nacional do Xingu.
Também aqui parece haver um sistema equilibrado de interdependências sociais
que permite a alguns xamãs o mais elevado prestígio possível, sem tornar supérflua a insti-
tuição política da chefia. No caso específico dos Kaiabi do Rio dos Peixes, não era possí-
vel separar os diversos status que Temeoni detinha como o mais velho, como chefe e como
avô. Era tratado com respeito especial e falava-se muito dele e de suas decisões no passa-
do, mas faltava qualquer indício de submissão ou mesmo obediência declarada.
Antigamente, disse Meau´ap, havia uriat muito grandes, que eram severos e com
freqüência falavam durante um dia e uma noite. Todos vinham e escutavam, não recebiam
nenhuma comida, passavam fome, mas ouviam quietos. Quando duas pessoas brigavam,
vinha o uriat e falava com elas que então não diziam mais uma palavra, o que já não
acontece agora.
Depois da morte do pai de Tapa, que fora um “grande” xamã, houve ainda um
“pequeno”, ou seja, Timaka´i, que realizava suas tarefas como qualquer outro chefe de
família e que no trato diário não se distinguia em nada dos outros homens. Mas se ele
atuava como panyé no tratamento de doentes, então a expressão fisionômica e os gestos
dele e dos presentes se transformavam, tornando-se intensamente perceptível a função
séria e cheia de significados que devia exercer nesse momento.

32
Atualmente há muitos caciques de aldeias kaiabi bastante jovens que operam com mais
desenvoltura a intermediação com o mundo dos brancos. (n. ed.)

176 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Resumindo, confirma-se entre os Kaiabi a observação de Schaden (1959:119) de
que entre as tribos Tupi a imagem ideal de uma personalidade corresponde mais à do
poderoso xamã do que à do grande guerreiro.
7. A guerra
Esta instituição é importante para diversas esferas da vida social e religiosa dos
Kaiabi, já que ela:
1) dá oportunidade aos homens de conquistar prestígio, o que é pré-requisito para
a fundação de uma nova maloca e encontra sua expressão num novo nome;
2) porque os crânios-troféus apreendidos na guerra possibilitam em sua verdadeira
forma o Yawotsi, complexa festa religiosa em que religião e sociedade se interpenetram.
Parece que motivos econômicos ou pessoais são fatores secundários para provo-
car uma guerra, embora Temeoni desse como razão para a última expedição guerreira
contra os Apiaká o fato destes terem raptado um Kaiabi.
No início de uma expedição de guerra escolhe-se um líder especial, o
amuyukawuyao, pois o chefe e seus filhos permanecem em sua maloca (segundo Tapa).
Geralmente à noite, os homens adultos partem sob a direção do líder, armados com bordunas
e arcos, até a proximidade da maloca inimiga.
O mencionado ataque aos Apiaká ocorreu de dia. Aos gritos, os Kaiabi invadiram
a casa, mataram todos os homens e mulheres, cortaram-lhes as cabeças e levaram-nas,
assim como as crianças, para sua maloca (de acordo com Tapa e Moanyan). Segundo
Moerupã, braços e pernas também são levados. Nenhum dos informantes estivera presen-
te naquela ocasião.
Datam de 1964 notícias de pessoas diretamente implicadas em atividades bélicas.
Nesse ano chegaram dois seringueiros fugidos do Teles Pires – um deles um negro grande,
o outro um mulato pequeno, bastante claro – à maloca de Temeoni e exigiram mulheres.
Depois de mantidas relações sexuais ao menos com uma, continuaram a descer o rio dos
Peixes. Na noite seguinte, enquanto dormiam em suas redes, foram mortos por Kaiabi. Os
cadáveres foram despidos e abandonados, “para que os urubus os comessem”. Após
alguns dias, os crânios foram trazidos para Temeoni que convocou todos os Kaiabi para o
último grande Yawotsi.
De acordo com Yupari´up, o homem que matou o inimigo deve retirar pele e carne
da cabeça, pois só o crânio é levado para a maloca. No decorrer do Yawotsi, os crânios
são enfeitados com fios de algodão e carregados nos ombros pelos homens (Tapa). Se-
gundo o testemunho de todos os informantes, quando partem o crânio em pedaços peque-
nos, estes são distribuídos primeiro aos homens e depois às mulheres. Mais tarde, são

Organização social e política 177


jogados fora, e apenas com os dentes se fabricam colares. Quem matou um inimigo recebe
um novo nome (Yupari´up). Todos os Kaiabi negam a antropofagia, mas esta assertiva é
compreensível em vistas das acusações estereotipadas dos seringueiros de que “todos os
índios são comedores de gente”, e certamente corresponde apenas à situação atual (cfr.
von den Steinen 1894:392).
As expedições de guerra dos Kaiabi têm grande extensão. Ainda em 1965 su-
punha-se que os agressivos índios Txikão,(33) entre Jatobá e Batovi, na região do Alto
Xingu, fossem realmente “Kaiabi bravos”, já que estes tinham penetrado mais vezes nessa
área (Galvão/Simões 1965:5, 17). Murphy/Quain (1955:37) mencionam um cocar de pe-
nas que os Trumai apreenderam numa expedição guerreira dos Kaiabi. O que combina
bem com a seguinte notícia de Tolksdorf a respeito dos Kaiabi do Rio dos Peixes (MS
1957):
“Suas viagens são às vezes muito extensas, já tendo eles estado até na região dos
formadores do Xingu, quando, segundo suas histórias, um deles foi devorado
pelos Meinacos (= Mehinaku)”.
Sousa fornece algumas observações muito interessantes a respeito de uma “decla-
ração de guerra” formal dos Kaiabi aos participantes da expedição, em que uma dança e
gestos ameaçadores constituíam a parte principal (1916:86s).
Especulações interessantes poderiam ser associadas a esses dados sobre a caça
às cabeças entre os Kaiabi; a meu ver, entretanto, elas seriam prematuras e só poderão
justificar-se depois de uma nova investigação.

8. Conflitos interétnicos(34)
Os Kaiabi tiveram problemas sobretudo para classificar os representantes das tri-
bos com que entraram em contato dentro de seu sistema de preconceitos étnicos. Trata-se,
segundo Ianni (1966:62) de um processo social formado por determinados componentes
ideológicos de relações sociais entre grupos, que se consideram pertencentes a etnias dife-
rentes.

33
Os Txikão (autodenominados como Ikpeng) também acabaram sendo transferidos para o
interior do PIX e hoje são vizinhos dos Kaiabi. (n. ed.)
34
Sob este título procurei chamar a atenção, numa comunicação ao 38º Congresso de
Americanistas, para problemas advindos do contato intensivo dos Kaiabi com etnias que até
o momento lhes eram desconhecidas. Eu a reproduzo aqui, com modificações (Grünberg
1969). (nota do autor)

178 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Essa formulação não diz respeito, entretanto, aos Apiaká, pois embora os Kaiabi os
atacassem a intervalos quase regulares, eles classificam os tapiiitsin como “parentes”, que
“são como nós”, falam a mesma língua, usam a mesma tatuagem e “são dos nossos”. Na
consciência dos Kaiabi, os Apiaká não constituem uma etnia estranha, mas um grupo local,
com o qual entram temporariamente em conflito. Isso não exclui a possibilidade de visitas
pacíficas, pois, fora do próprio grupo, as mulheres Apiaká são consideradas cônjuges prefe-
renciais. No verão de 1966, Timaka´i, Ny‰kato, Masi, Moanyan e eu tentamos inutilmente
estabelecer um contato pacífico com eles, após uma interrupção das relações por aproxima-
damente dez anos. Durante nossa marcha de vários dias, os quatro homens se comportavam
alternadamente como por ocasião de uma visita a parentes ou como numa expedição de
guerra, dependendo dos comentários induzidos pelas pegadas no território dos Apiaká.(35)
Estavam convencidos de que podiam interpretar o comportamento daqueles índios a partir
de suas próprias normas.
Isso não ocorria em relação às duas outras tribos com as quais se relacionavam
nas últimas décadas. O território de caça dos Aripaktsá (Erigpactsá ou “Canoeiros”) –
yimamik ou kava´ip – se estende do Juruena e Rio do Sangue até o Baixo Arinos e Baixo
Rio dos Peixes. De 1958 a 1960 alguns Kaiabi conviveram com Aripaktsá no Posto Santa
Rosa, tendo assim oportunidade para rever seus preconceitos étnicos elaborados antes de
1955 em expedições de guerra contra esses índios. Contudo, parece que sua atitude per-
maneceu a mesma. Os Kaiabi se julgam mais adiantados espiritual e socialmente que os
Aripaktsá, como também em termos tecnológicos. Eles fazem troça de seus discos auriculares
de madeira e dos penachos de plumas que eles prendem aos lóbulos. Sabendo que os
“civilizados” abominam a antropofagia, não perdem ocasião para apregoar em tom irônico
que “os Canoeiro gostam de comer gente”. Não observei nenhum Kaiabi adulto que tives-
se mostrado o mínimo sinal de insegurança perante os Aripaktsá. Mas, por outro lado, eles
também não esperavam nenhum comportamento “racional” ou mesmo “normal” em em-
preendimentos conjuntos. Os Kaiabi sabem que os Aripaktsá “não são como nós” e dizem
“boas são suas cabeças para nossa festa, e também suas mulheres”.
Os assim chamados Beiços-de-Pau da margem esquerda do Alto Arinos constitu-
em uma tribo ainda não pacificada, cujos homens se caracterizam pelo uso de discos de
madeira no lábio inferior, sendo chamado pelo Kaiabi de ipé´oo (lábios grandes). Talvez

35
Atualmente os Kaiabi e os Apiaká ocupam conjuntamente, junto com alguns Munduruku,
a Terra Indígena Apiaká-Kaiabi no município de Juara-MT. (n. ed.)

Organização social e política 179


devam ser classificados como Kayapó(36) (César 1969). Seus territórios estendem-se pela
margem direita do Arinos ao norte, até o curso superior do rio dos Peixes, o que levou os
Kaiabi a algumas rixas armadas com eles. Sempre falavam deles com muita seriedade e
medo perceptível, e a imagem do inimigo perigoso condicionava suas descrições. Acentu-
avam que os Beiços-de-Pau sequer possuíam redes e dormiam no chão, e que eram muito
grandes e feios, inclusive as mulheres. Os curtos encontros hostis com os Beiços-de-Pau
não exigiram nenhuma configuração racional da representação desses índios, pois a situa-
ção definia o comportamento mutuamente inamistoso sem permitir uma alternativa.
Em maio de 1955, os Kaiabi encontraram em Dornstauder o primeiro civilizado junto
ao rio dos Peixes. Seria errôneo supor que através desse primeiro contato direto, o precon-
ceito étnico já existente contra os “civilizados” se tivesse modificado. Os Kaiabi acreditam
que os “civilizados”, tapi´iiipyat, desceram à terra do lugar onde vivem os xamãs falecidos, o
iwap, e que eles “também são como os xamãs”. Por isso possuem tantos gêneros alimentíci-
os que os Kaiabi não conhecem (mandioca doce, feijão pequeno, batatinha, sal), e de lá
também trouxeram suas facas, machados e armas. Eles teriam descido para viver aqui. “E
porque eles vieram, morrem tantos de nós e não ficam velhos. Eles são maus conosco e
quando chegaram pela primeira vez ao Teles Pires mataram um Kaiabi, comeram-no e espe-
taram sua cabeça num poste”. Como quase todos os seringueiros desta região são mulatos,
os Kaiabi atribuem uma pigmentação escura aos “civilizado”. Por não contarem com muitas
mulheres, cobiçavam as dos Kaiabi, sem assumir as responsabilidades advindas de tais uni-
ões. Também não sabiam como viver no mato, procurando apenas a seiva da seringueira, que
os próprios Kaiabi empregam em pequena quantidade, e somente para impregnar cabaças.
O pe. Dornstauder, contudo, não correspondia a essa imagem, embora falasse
“civilizado”; mas tinha uma cor de pele bem clara, usava óculos e tinha barba, não se
interessava por mulheres, não procurava seringueiras e acentuava sua ligação com os xamãs
do Além. Não era, portanto, um verdadeiro “civilizado”, e sim um autêntico xamã, um
“padre” ou ma´it.
Quando os Kaiabi, logo após, se encontraram com seringueiros, viram todos os
seus preconceitos confirmados, percebendo cada vez mais claramente a oposição entre

36
Os Beiços-de-Pau ou Tapayuna foram posteriormente identificados como um grupo Suyá
que se separou daqueles que migraram para a região do Xingu há cerca de 2 séculos. Após
serem praticamente dizimados pelos brancos, um pequeno grupo também foi levado para o
Xingu onde foi absorvido pelos Suyá. (n. ed.)

180 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


seringueiros e “padres” e, com a ajuda destes, esperavam manter os seringueiros sob con-
trole. Depois que alguns visitaram também o centro da Missão em Utiariti, encontraram
explicação para todas as questões relacionadas com o habitat e a estrutura social dessa
“tribo”: os “padres” moram em Utiariti, onde também se encontram suas mulheres (referên-
cia às religiosas que lá trabalhavam) e seu chefe. São mais poderosos e possuem mais bens
que os “civilizados”, e ali também falam sua própria língua (ou seja, alemão, pois a maioria
dos padres são teuto-brasileiros que muitas vezes falam alemão entre si).
Por razões semelhantes, os Kaiabi consideravam-me inicialmente um “padre”.
Depois de alguns meses, reformularam parcialmente esta opinião, passando a atribuir-
me a uma etnia muito próxima da dos padres, que mora mais longe e é muito menos
poderosa.
Sempre que os Kaiabi se encontravam com “civilizados” em minha compa-
nhia, procuravam usar o padre e também a mim contra eles; quando um seringueiro
se gabava de seu rádio transistorizado, explicavam que os padres possuíam uns bem
maiores e mais potentes, e se os Kaiabi os quisessem, o padre traria um para cada
índio. Também em relação a armas de fogo procuravam sempre simular um conhecimen-
to superior da mecânica e da utilização e me apresentavam como autoridade no assunto.
A idéia dos Kaiabi de que os “padres” e “civilizados” constituíam duas etnias dife-
rentes, das quais a primeira os ajudava a defender-se dos segundos, e a prudente atitude
de Dornstauder, endossando na prática essa opinião, levaram a um precário equilíbrio na
situação de fricção interétnica no Rio dos Peixes. Tudo o que dissesse respeito aos Kaiabi,
os seringueiros consideravam “coisa dos padres” e raramente estendiam seus estereótipos
depreciativos sobre os índios aos Kaiabi. No Rio dos Peixes, assim, ao contrário do que
ocorria no noroeste mato-grossense, verificaram-se poucos conflitos entre as duas etnias,
dadas a predisposição cultural dos Kaiabi para o contato e a postura pessoal de Dornstauder.
Graças à sua intervenção, nenhum Kaiabi foi empregado, a partir de 1960, nos seringais do
Rio dos Peixes, embora persistisse a sua tendência de entrar em contato freqüente com os
seringueiros. Mas, a partir do momento em que faltar a função de Dornstauder de repre-
sentar os interesses dos índios e de protegê-los, garantia do status quo étnico, só restará
aos Kaiabi uma solução: a integração na camada mais baixa do proletariado rural brasilei-
ro. Os problemas interétnicos depressa se transformariam em problemas de classe. Os
Kaiabi, contudo, não se submeteriam espontaneamente a esse processo, já que não há
para eles nenhum estímulo para se adaptar social e religiosamente aos “civilizados”: neste
particular, os Kaiabi os consideram “muito piores”. “Melhores” os “civilizados” só são
propriamente no campo da tecnologia; pois o êxito visivelmente maior na cura de determi-
nadas doenças não é atribuído aos “civilizados” mas aos “padres”. Toda a tragédia da

Organização social e política 181


situação poder-se-ia caracterizar da seguinte maneira: os Kaiabi gostariam de ser como os
“padres”, mas podem vir a ser apenas “civilizados”.
Com a transferência de dois terços dos índios do Rio dos Peixes para o Parque
Nacional do Xingu, em outubro de 1966, este equilíbrio precário foi certamente destruído,
e suponho que assim chegou ao fim a existência do último grupo Kaiabi residente em seu
habitat.

182 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


capítulo VII

CICLO DE VIDA
1. Gravidez e nascimento
Durante a gravidez, os pais submetem-se a determinadas restrições alimentares,
assim como em todas as outras situações consideradas perigosas. Além da alimentação
vegetariana – com exceção da castanha-do-pará – só podem comer aves, macaco-prego,
peixe pintado e girinos. Os homens não caçam nenhum animal de presa ou, pelo menos,
não os podem tocar. Quando sua mulher estava em estado de gravidez adiantada, Maró
abateu uma jaguatirica. Ele a largou no chão, voltou à aldeia e mandou um outro buscar a
presa. Mairer‰ explicou esse comportamento dizendo que, do contrário, a criança choraria
e apareceria o aimama, que os “civilizados” chamam de “espírito santo”; à guisa de ilustra-
ção, começou a tremer em todo corpo. Negou-se a responder outras perguntas.
Maró fabricou para sua mulher uma pequena figura antropomorfa de fios de algo-
dão e de otólito de peixe, chamada konomi, ou seja, menino ou homem jovem, que foi
presa na rede da gestante (Grünberg 1967:86).
A relação sexual é rigorosamente proibida durante esse tempo. A mulher cuida do
serviço da casa até o fim e só no transporte de cargas mais pesadas o marido a auxilia mais
do que de ordinário.
Já que não pude observar pessoalmente um nascimento, transcrevo, sem acrésci-
mos, os dados de meus informantes.
De acordo com Tapa, no dia do nascimento e alguns dias depois só é permitido aos
pais comer mutap de cogumelos e girinos. A mulher dá à luz numa choça (provavelmente
na yeway-móók, ver pág. 122) auxiliada pelas mulheres idosas que “entendem”; o homem
se deita um dia na rede (Tapa) ou se afasta (Yupari´up). Os pais devem ficar deitados na
rede após o nascimento.
O nascituro é cuidadosamente lavado com água e uma mulher lhe corta o cordão
umbilical com um pedaço de taquarinha. Ele é seco e pendurado no pescoço da criança
como um colar, pois “isso é bom, o pai não perderá o filho” (Yupari´up). Mais tarde o
cordão é enterrado.
No caso de gêmeos, só o que nasceu primeiro sobrevive, segundo Yupari´up: o que
vem em seguida é “jogado fora” por ter sido gerado por “outro homem durante a gravi-
dez”. Mairer‰, entretanto, afirmava que os gêmeos e trigêmeos são criados, mas o ideal é
ter só uma criança; “a gente também não sabe por que são gêmeos!”. Apenas crianças
deformadas seriam mortas. Pouco após o nascimento, a “mulher mais velha” perfura os

Ciclo de vida 183


lóbulos da orelha da criança com um espinho da palmeira tucum. Pelos orifícios passam
fios de algodão. O pai, o irmão do pai ou a mãe, a irmã da mãe (Mairer‰) ou então o chefe
(Yupari´up) dá um nome à criança, mas o nome dos pais não muda.
Enquanto o pai ainda se encontra na rede, os parentes vêm visitá-lo. Ele apenas diz:
“dói”. Depois faz um pequeno arco de aproximadamente 10 cm de comprimento para seu
filho, colocando-o na rede do bebê, “pois assim vai matar bem os animais e ficar forte”. Se
nasce uma menina, o pai confecciona um enfeite para ela e um pequeno cesto. Às vezes o
pai também faz profecias (cerimônias pressagiantes) para seu filho (Yupari´up).
Tolksdorf (MS 1958) relata em seu diário:
“Hoje nasceu aqui uma criança de uma índia que veio com um grupo de Kayabi
para a festa. Foi tudo muito simples e indolor. A mulher recolheu-se a um velho
barracão das proximidades e pouco depois, passando por perto, eu a vi sentada
ali, segurando o recém-nascido e limpando-o. O pai estava ao lado, sorridente.
Provavelmente muitas índias estiveram presentes também” (...).
“Para dar à luz, a mulher vai para o mato ou para uma choça próxima e pouco
tempo depois do parto ela retoma suas atividades. Se, por negligência ou outra
causa qualquer, o umbigo sangrar, ele é untado com sumo de seringueira. O
umbigo é atado com uma embira”.
2. Infância
As mencionadas regras alimentares para os pais são mantidas, de forma ameniza-
da, até que a criança possa ficar em pé ou andar. A criança é amamentada até o quinto ou
sexto ano de vida e o desmamar não é abrupto.Quando o filho de Tapa, de dois a três anos
de idade, queria mamar, a mãe expressava seu desagrado, mas não o impedia; Tapa expli-
cou-me que as mães nunca impedem os filhos de mamar, mas lhes dizem tantas vezes que
não devem fazê-lo, que eles param por si. Este modo de educar é habitual até pelo menos
os cinco anos. Nunca vi um adulto bater em criança, nem mesmo quando causavam grande
prejuízo, jogando fora, por exemplo, o arroz que na ocasião era nosso único alimento ou
matando com requintes de crueldade o papagaio preferido de Temeoni.
De outro lado, as crianças podem ser muito agressivas em relação aos pais. Peró,
de quatro anos de idade, por exemplo, bateu com toda a força de seus pequenos punhos
em sua mãe e ela não se incomodou. Seu pai, Tapa, observou o garoto por algum tempo e
finalmente grunhiu de leve, com o que seu filho sossegou. Certa vez, observei algumas
crianças começarem a comer areia diante da casa, enquanto Mariro observava rindo. Os
adultos só interferiam em casos de perigo real e iminente, quando as crianças, por exem-
plo, caíam na água ou queriam destruir um ninho de marimbondos.

184 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Dessa atitude deduz-se que os Kaiabi reconhecem uma vontade própria também
em crianças pequenas, que geralmente respeitam. Ao pedir a Kupe´ap para fazer-me um
brinquedo de criança, ele quis dar-me o de seu filho de dois anos de idade. Começou a
conversar seriamente com ele a respeito. Pouco depois o garoto veio ter comigo, dando-
me o animal entalhado em madeira feito pelo pai. O mesmo procedimento observei tam-
bém em Tapa e seu filho.
Expressão dessa grande independência também é o agrupamento de meninos e
meninas em grupos lúdicos muito autônomos, nos quais não pude observar líderes
destacados.
Além do mencionado brinquedo, muitos objetos são usados para imitar a vida dos
adultos, “canoas” de folha de palmeira, arrastadas pelo chão de um lado para outro, com
as quais se empreendem viagens. O mais tardar com cinco anos, os grupos dividem-se de
acordo com o sexo: para o menino, a “caçada” se torna o principal tema de brincadeiras e,
para as meninas, o preparo da comida.
Na idade de seis a oito anos se processa uma mudança no comportamento da
criança, que pode ser considerada radical. A excessiva mobilidade e as atitudes “atrevi-
das” características da fase anterior transformam-se em comportamento circunspecto, cal-
mo e obediente, que corresponde inteiramente, ao que parece, ao do adulto. Não se tem a
impressão, entretanto, de que essa mudança tenha sido induzida por medidas educativas
diretas, parecendo totalmente espontânea. Os pais a consideram natural.
3. Puberdade e casamento
Na idade de doze a treze anos, meninos e meninas são submetidos coletivamente a
ritos de iniciação, que encontram sua expressão visível na tatuagem. Antes de 1964 esta
cerimônia, o ayupara´ikutukap (?), foi realizada pela última vez e meus conhecimentos
baseiam-se apenas em informações de diversos participantes, que em parte se contra-
dizem.
De acordo com Mairer‰, essa cerimônia só se realiza para meninos de tempos
em tempos, quando “há número suficiente”. De manhã bem cedo os rapazes são “tran-
cados” na maloca, não podem falar uma palavra nem comer nada além de uma varieda-
de preta de milho (awatsi´un) ou mesmo beber. O panyé e Temeoni falam então com eles
e o primeiro executa a tatuagem. À noite, Temeoni toca a flauta de pã e canta para eles;
cada rapaz recebe outro nome de seu pai, podendo casar-se mais tarde.
Tapa falou da própria tatuagem: ela fora feita por seu pai, o grande panyé, de
madrugada, e só os homens podiam assistir; mas não se cantou nem se tocou. Em seguida
recebera uma chicha de awatsi´un para beber, não pode mais falar e permaneceu dois dias

Ciclo de vida 185


deitado na rede. No terceiro dia já estava “seco”, só não podia comer amendoim porque
senão a cor “sairia”. Yupari´up, um pouco mais velho, contou mais ou menos a mesma
coisa, e Yavaré´i/Paulistano completou: depois que o “velho” falou com o rapaz e este fora
tatuado, só bebeu água através de uma flauta de taquara, “de tanto que a boca doía”. Por
diversos dias não pode mexer com fogo, “caso contrário não fica preto no rosto”. Todos
os moços se chamam meauoo depois.
Após a primeira menstruação (ayemonyat), as meninas devem subir totalmente
nuas sobre uma pedra erguida na maloca, ali permanecendo por um dia inteiro, sem
falar. Elas só podem comer peixes pequenos (Yupari´up) e tomar chicha de awatsi´été
(Tapa). Banham-se depois no rio e permanecem na rede por três dias como mortas.
“Depois está bom”, e elas são tatuadas pelo panyé, tal como os rapazes. As meninas
também trocam de nome e podem ter relações sexuais após passarem pelos ritos. Em
todas as menstruações subseqüentes, que são associadas com a lua (ver pág. 233), elas
não precisam mais se recolher à maloca.
Conforme comunicação pessoal de Dornstauder, também ele viu, em 1955,
uma menina nua e muda, parada em cima de uma pedra.
Embora todos os informantes assegurassem que tanto rapazes quanto moças
podiam casar a qualquer momento depois do ayupot, isto não parece ser comum.
Quando o Tapirapé de aproximadamente 16 anos de idade quis casar com uma Kaiabi
do Teles Pires, de pelo menos 35 anos, Tekwarai/Paulina (com a qual já vivia), esta
união não foi aceita pelos demais Kaiabi. O casal não agüentou a forte pressão social
e teve de migrar para o Juruena. Alguns Kaiabi justificaram estas sanções pela pouca
idade do homem, enquanto outros apontavam a circunstância de que a mulher já era
“casada” com um outro Kaiabi. A diferença de idade não regula, pois entre os parcei-
ros preferidos para casamento contam-se tias cruzadas e os sobrinhos cruzados.
Querendo casar, o homem dirige-se à mãe da futura esposa, expressa sua intenção
e esta a transmite à filha. Ele presenteia a mãe com objetos por ele fabricados, como cestos
e cordéis enfiados de contas de tucum, mudando-se para junto da esposa, onde recebe
uma repartição própria e um local para o fogo. Marido e esposa recebem um novo nome.
Depois deste terceiro nome, um homem ainda pode adquirir diversos outros: sem-
pre que matar um inimigo e quando tem uma vivência em sonho que o leva a pedir ao panyé
que lhe faça uma tatuagem individual. Timaka´i (“macaco na perna”), por exemplo, chama-
se assim porque viu um macaco-prego em sonhos – provavelmente um espírito protetor
com essa aparência – e um outro xamã lhe tatuou a imagem nos lados externos das pernas
(Fig. 6-3, pág. 145). Temeoni enumerou pelo menos sete nomes diferentes que ele possuía,
e do seu relato era possível perceber que esse número era extraordinário, estando associ-
186 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
ado a grande prestígio, e que ele dispensava a mim uma honra especial ao comunicar todos
os seus nomes. Nomes de pessoas falecidas não se pronunciam mais.

4. Morte
Durante a minha permanência no Rio dos Peixes houve apenas um falecimento na
aldeia de Temeoni; eu me encontrava no Posto Tatuí e meus dados baseiam-se, portanto,
no que me contaram.
Conforme Moanyan e Tapa, o homem que morreu é pintado com urucu por sua
esposa, enfeitado com todos os seus ornamentos e amarrado de cócoras, com os braços
cruzados sobre o peito. É deitado assim na sua rede e enterrado perpendicularmente numa
cova redonda dentro da maloca. Suas armas são queimadas. A viúva também se pinta de
urucu e corta bem curtos seus cabelos. Yupari´up descreveu de modo bem semelhante o
enterro de uma mulher, tendo sido queimados seus cestos e suas cabaças. Seu marido não
precisou cortar os cabelos. No caso de gestante, deixa-se a criança no ventre da morta.
Segundo comunicação pessoal de Dornstauder, quando se acumulam os casos de morte,
os Kaiabi não enterram os corpos na maloca, mas no oni’i (ver pág. 121), lamentando-os
ali. Tolksdorf dá a seguinte descrição (MS 1958):
“Morrendo um Kayabi, amarram-se-lhe as mãos e os pés, deixando-o mais ou
menos de cócoras. Colocam-no em sua rede e ele é enterrado na maloca onde
viveu. Faz-se uma cova de 1-1,5m de profundidade e ele é sepultado ali. Depois
o chão é batido com os pés e a vida continua na superfície”.
Por diversos dias pude observar os lamentos pela morte de Ri‰´été na maloca de
Temeoni. Logo que escurecia, três mulheres, que se sentavam juntas numa rede, entoavam
um choro esganiçado e comprido, que era ritmicamente repetido. Depois de uns cinco
minutos, o choro terminava num diminuendo.

Ciclo de vida 187


capítulo VIII

NORMAS DE COMPORTAMENTO E FUNDAMENTOS PSICOMENTAIS

Neste capítulo pretendo apresentar diversas observações que visam a análise das
relações internas no sistema de comportamento dos Kaiabi. Pré-requisito para esta aná-
lise é categorizar seu objetivo não a priori, mas à base de critérios indutivamente encon-
trados. Indubitavelmente, isso só foi possível em casos excepcionais, pois em geral só
chamaram-me a atenção os comportamentos diferentes dos meus. Dessa maneira, as
subseqüentes normas de comportamento, formuladas nomoteticamente, apenas podem
ser consideradas como “existentes” para os Kaiabi; correspondem antes ao meu desejo
de encontrar regras que tornassem menos incômodo o meu próprio comportamento.
A ordem dessas observações não reflete nenhum sistema, orientando-se apenas
por aspectos subjetivos e práticos.
A extraordinária importância de uma etnografia comparada da comunicação já
foi destacada (Hymes 1964); faltam, entretanto, praticamente todos os trabalhos pre-
liminares para as tribos das terras baixas sul-americanas. A exceção é um artigo sobre
gestos de diversas tribos do Oriente boliviano, que propõe uma subdivisão dos gestos
em lexicais, não-lexicais e emocionais (Key 1964b), mostrando algumas semelhanças
surpreendentes com os comportamentos que observei entre os Kaiabi.

1. Formas de comunicação
Os Kaiabi falam em voz baixa, levemente nasal e monótona, fazendo poucos
gestos. Ao falar, viram a cabeça ligeiramente para o lado a fim de não olhar o interlocutor
de frente: não se deve dar a impressão de estar com pressa ou de que a notícia que
transmite seja importante. Por isso mesmo, ridiculariza-se a gesticulação dos brasileiros,
que são comparados aos bugios. Mesmo quando o interlocutor não está presente –
porque passa, por exemplo, do lado de fora da casa, enquanto o falante está no interior
– não se levanta a voz. Assim, todos os moradores da “aldeia” podem manter conversas
à noite, deitados em suas redes. As mães falam com crianças pequenas e animais de
estimação em voz baixa e gutural, mas quando estão irritadas, especialmente em
relação aos cachorros, então resmungam. Com fins educativos elas deixam transparecer
seu mau humor com leves resmungos ou emitem um ruído semelhante ao ganir do ca-
chorro.
Ao narrar mitos ou dar ensinamentos de caráter geral, o estilo usado por Temeoni
era diferente de sua maneira habitual de conversa. O tom era mais cantado, fazia mui-
tos acréscimos onomatopéicos e imitava as vozes das pessoas mencionadas.
Normas de comportamento e fundamentos psicomentais 189
Os homens Kaiabi riem freqüente e demoradamente em falsete; quando, em conversa,
concordam com alguma coisa ou convidam ao assentimento, erguem bem as sobrancelhas e
esboçam largos sorrisos. Expressam desagrado com um forte “ö”. Na floresta, a comunicação
é mantida através de gritos curtos – ´üh – fortes e de alto registro.
Indicando um objeto nas proximidades, eles erguem levemente o queixo e encres-
pam os lábios, às vezes falando ao mesmo tempo. Quando o objeto está distante, esten-
dem o braço direito e apontam o dedo indicador, mantendo a mão ao lado olho, enquanto
ajustam cuidadosamente a cabeça para fixar a direção.
Momentaneamente assustados ou perplexos, os Kaiabi exclamam ´oyé, acentuan-
do apenas a primeira sílaba. Depois de despender um esforço maior, soltam um ´uh explo-
sivo, alto e forte.
Os homens têm destreza especial na imitação de sons de animais, particularmente
dos de macaco-prego e mutum. Também atraem um peixe, o tucunaré, com um assobio
estridente e trinado. Quando escutam, abaixam às vezes a cabeça e colocam a mão em
concha junto à orelha.
Os Kaiabi têm um pronunciado senso de humor, que corresponde às nossas repre-
sentações: riem demorada e abundantemente em situações cômicas e do comportamento
errado dos outros. No começo, riam praticamente de qualquer coisa que eu fizesse, e
mesmo após cinco meses ainda se repetiam, todos os dias, situações semelhantes. Às
vezes ainda acentuam o cômico fazendo perguntas e constatações irônicas: diante de um
peixe particularmente pequeno, perguntam: “É muito grande?”. Diante de uma comida muito
quente, exclamam: “Isto está muito frio!”. Esses gracejos são saudados com grandes risa-
das. Nunca vi adultos ou jovens pós-pubertários chorarem. Deixam as crianças chorarem
por algum tempo; quando elas correm para junto dos pais, estes as levantam para consolá-
las. Nunca observei que cantassem ou tocassem um instrumento com fins de comunicação.
Locais de ocupação humana são farejados, provavelmente devido à presença de
fumaça.
Merece ainda atenção o comportamento por ocasião de saudações e despedidas,
nas quais se reprimem expressões emotivas, como se os Kaiabi procurassem diminuir,
através de acentuada formalidade, o elemento perturbador destes acontecimentos.
Quando subimos o rio até Temeoni pela primeira vez, um tiro numa jacutinga traiu
nossa chegada. Foi imediatamente respondido, embora estivéssemos a uma distância de
vários quilômetros da maloca. Após uma hora, mais ou menos, aportamos, descarregamos
a canoa e fomos devagar, em fila indiana, para a maloca. Ninguém nos esperava no porto
e mesmo na casa. Temeoni apenas nos deu um breve sorriso, enquanto pendurávamos
nossas redes ao lado direito da entrada e nelas deitamos sem palavras. Depois de uns vinte

190 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


minutos, Moanyan iniciou uma conversa baixinha e formal com Ny‰kato e, então, fui até
Temeoni, acocorei-me diante dele e disse meu nome. “Vieste?”, perguntou ele. E respondi:
“Eu vim”. Deitei-me novamente na rede e pouco depois puseram à nossa frente chicha e
beijus de mandioca. Moanyan explicara-me as regras de saudação para forasteiros e meu
comportamento correspondeu visivelmente à expectativa de todos os presentes que, da-
das as suas relações de parentesco com Temeoni, não tinham necessidade de nenhuma
apresentação pessoal.
Quando se quer dar uma informação específica, espera-se até o final da visita,
transmitindo-a então em voz baixa e sem grande gesticulação. No início, indicam a rede
mais próxima em que, balançando suavemente, se aceita chicha e comidas, para depois
iniciar a conversa com temas bem convencionais como o tempo e o resultado de caçadas.
Durante as viagens, os Kaiabi também procuram acentuar o caráter fortuito de
eventuais encontros. Quando Moanyan, Timaka´i e eu, após vários dias de viagem nos
encontramos com a canoa de Ny‰kato, continuamos a remar junto às diferentes margens
sem tomar conhecimento uns dos outros. Dez minutos depois, Ny‰kato, sem pressa, parou
de pescar, Moanyan lhe disse algo através do rio e ele respondeu brevemente. Um quarto
de hora mais tarde, remamos para a outra margem, sem aumentar nossa velocidade e
quando Ny‰kato diminuiu a sua, nós o alcançamos depois de vinte minutos. Só então
começamos a conversar minuciosamente.
Por ocasião de despedidas, o Kaiabi apenas comunica que se vai. Recebe os ali-
mentos enrolados em folhas de pacova e, eventualmente, chicha dentro de cabaças e pane-
las. Pega sua espingarda e toma seu caminho sem olhar para trás. Em viagens maiores, este
procedimento se repete em cada família nuclear e uma parte dos moradores da maloca
ajuda a transportar os presentes até o porto. Lá permanecem sorrindo e esperam até que
os viajantes tenham se afastado. Reconhece-se a cordialidade dos sentimentos na despedi-
da pelos presentes espontâneos feitos no último minuto, particularmente animais de estima-
ção e peças ornamentais, entregues sem palavras aos que partem.
2. Movimentos
Ao caminhar e ao correr pelo mato, o Kaiabi abre as pernas a partir dos joelhos e
vira as pontas dos pés para dentro, para não tropeçar em cipós. Só depois que aprendi
este jeito de caminhar consegui acompanhar as corridas dos Kaiabi sem cair continuamen-
te no chão.
A ordem na marcha, que sempre se realiza em fila indiana, é rigorosamente
estabelecida: primeiro o líder, que abre a picada, seguido dos outros homens; depois as
mulheres, seguidas das crianças. E, por fim, eventualmente, um homem. Descansam com

Normas de comportamento e fundamentos psicomentais 191


freqüência, em geral ao fim de meia ou uma hora de marcha, mas sempre por pouco tempo.
A posição normal de descanso é agachar-se sobre os calcanhares, abrindo os joelhos. A
orientação se faz basicamente pelos cursos d´água e raras vezes de acordo com o sol,
quando se marcha, por exemplo, em extensões maiores de campo. Em paradas maiores, o
Kaiabi arma a rede de modo a ficar bem baixa, para que se possa deitar nela ou sentar-se
a cavaleiro com as pernas abertas, imprimindo-lhe às vezes um pequeno movimento.
Também na maloca, o Kaiabi muitas vezes se senta ou deita na rede para trabalhar,
curvando a cabeça e o tronco, usando o chão como base de trabalho. Sempre se come de
cócoras que, por assim dizer, é a posição básica para toda atividade social. Os Kaiabi
também gostam de apoiar-se com o peito em uma viga horizontal, com os braços cruzados
e as mãos descansando nos ombros. As mulheres, em especial, apanham pequenos obje-
tos do chão com o pé direito, prendendo-os com o dedão e o segundo dedo do pé, ou
então com todos os dedos e a sola do pé. Assim os Kaiabi levantam até cabaças cheias de
chicha, sem derramar nada, o que Tolksdorf também observou, cheio de admiração.
Meninos e meninas nadam e mergulham com grande perícia: as pernas levemente
dobradas, ficam fechadas e são movimentadas rapidamente para cima e para baixo; as
mãos abertas estendem-se para frente e pressionam a água para baixo. Meu nado de peito
e também o “crawl” provocaram muito riso, mas demonstraram serem mais rápidos.
Uma característica digna de nota, relacionada com todos os tipos de movimento, é
a divisão em demorados períodos de atividades alternados com longos períodos de des-
canso. Muitas vezes um homem caçava por 12 horas seguidas, sem interrupção para des-
cansar ou comer. Certa vez Moanyan passou a noite pescando e, em seguida, foi caçar por
algumas horas. Só então ele comeu, deitou-se, dormiu um pouco, alimentou-se de novo e
continuou o sono. A idéia de repetir todos os dias os movimentos durante o mesmo perío-
do de tempo, tal como os seringueiros o fazem na sua profissão, parece ridícula e
acabrunhante aos Kaiabi.
3. Funções fisiológicas e higiene
Ao anoitecer, a família vai em conjunto defecar no mato, e o homem leva arco e
flecha. Em viagem, o Kaiabi se afasta do fogo, fora do alcance da vista, esclarecendo antes
o seu propósito. Ao voltar, alguém às vezes lhe pergunta: “Defecaste bem?”. Para a limpe-
za, utilizam-se de determinadas folhas e para as crianças também chumaços de algodão.
Urinar desperta igualmente amável interesse. Nas viagens de canoa, os homens urinam de pé,
por cima da amurada e, no mato, em posição acocorada. Flatulências não são reprimidas nas
rodas, sendo alvo de risadas, comentários e imitações feitas com a boca. Arrotos durante a
refeição não contrariam a etiqueta: não recebem atenção nem são considerados cômicos.

192 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Os Kaiabi transpiram no rosto, principalmente sobre o nariz e no lábio superior,
mas muito menos que os brasileiros; eu mal percebia seu cheiro de corpo. Medidas gerais
de higiene são o banho diário, o espiolhamento recíproco subseqüente e o exame cuidado-
so do corpo à procura de carrapatos e espinhos. Para extrair espinhos da sola do pé,
fazem com a faca uma incisão diagonal na pele grossa, entreabrem o corte por meio de
distensão, removendo então o corpo estranho. Certos carrapatos minúsculos só a muito
custo são catados com os dedos, sendo porém muito sensíveis ao calor. Para afastá-los de
peças de roupa, estas são passadas rapidamente pelo fogo; eles podem ser mortos em
parte menos sensíveis do corpo aproximando-se um tição aceso à pele. Se eles já penetra-
ram na pele, passa-se seiva de tabaco por cima. As crianças de peito não são banhadas no
rio, mas na maloca. Tomando um pouco de água amornada na boca, a mãe a borrifa sobre
o corpo da criança, esfregando e enxugando com chumaços de algodão. A mãe chupa a
secreção nasal da criança e a cospe fora. Em caso de tosse mais forte, os homens batem-
se reciprocamente nas costas e os espirros são atentamente observados, pois nesse caso
“sua esposa está chamando”, como me explicavam a cada ocasião. Quando sentem um
cheiro ruim, os Kaiabi apertam o nariz com os dedos e cospem diversas vezes.
4. Expressões emocionais
Quando os Kaiabi sentem frio, acocoram-se ou ficam em pé bem juntos, imóveis e,
tiritando, mantêm os punhos cerrados contra o peito ou a boca. Evitam fazer qualquer
movimento, esperando até que passe a chuva fria ou, à noite, até o fogo se tornar mais forte
e despender calor. Tolksdorf (MS 1958) descreve de modo muito vivo um comportamen-
to que eu também observei em homens e mulheres:
“Quando voltei ao nosso acampamento, 4 ou 5 mulheres que haviam arrumado
vestidos, estavam reunidas em volta do fogo. Viradas de costas para o fogo,
haviam levantado as saias, aparentemente para esquentar o traseiro. Não se dei-
xaram perturbar pela minha chegada”.
Nas mãos, a sensibilidade ao calor é extremamente pequena, bem ao contrário
da boca, muito sensível para alimentos ou bebidas quentes. O café brasileiro normal
quase sempre era quente demais para os Kaiabi, que o sopravam muito tempo antes de
tomá-lo.
Uma outra característica do comportamento Kaiabi que dá na vista é a forte reser-
va quanto a contatos físicos. Não observei castigos corporais nem carícias, exceção feitas
aos bebês, e mesmo os rapazes evitam dar-se as mãos, bater no ombro uns dos outros ou
lutas corporais amistosas. Muitas vezes a dor física é tão reprimida que um diagnóstico de
doenças se torna quase impossível.
Normas de comportamento e fundamentos psicomentais 193
Todas as manifestações emocionais de cunho psíquico pareceram-me muito redu-
zidas entre os Kaiabi, particularmente quando comparadas às dos brasileiros ou também
às dos índios do Alto Xingu. Podia-se avaliar isso, por exemplo, quando do luto por algum
falecido, em que se restringem drasticamente todas as atividades; apenas pude perceber a
cólera por fisionomias rígidas semelhantes a máscaras e pela respiração rápida. Segundo
relato de diversos Kaiabi e de Dornstauder, ocorrem por vezes explosões emocionais que,
de maneira típica, reúnem diversas características: gritos furiosos e revirar de olhos, movi-
mentos espasmódicos e espuma nos lábios, associados a atos intencionais e agressivos,
como o desvario ou a destruição de objetos do mobiliário. Estas explosões são muito
temidas, mas também aceitas excepcionalmente como soluções de conflitos sociais. Nunca
cheguei a observar um tal estado e, inicialmente, considerei-o uma lenda dos seringueiros,
que contavam particularidades horripilantes de Kaiabi “que se tornaram selvagens” no Teles
Pires. Nesses casos, a agressão dirigia-se contra inimigos, mas é certo que ela pode ocor-
rer no interior do grupo e que não se trata de ataques epiléticos. É questão a investigar, se
trata-se realmente de uma institucionalização individual do relacionamento agressivo, tal
como Moreira (1965:393ss) interpretou fenômenos semelhantes entre os Tupinambá e
Urubu.
Tapa contou-me de um suicídio, cujo motivo era ciúme ou amor contrariado. Um
homem brigou com sua esposa e ameaçou lançar-se pela cachoeira. Pegou seu filho, subiu
na canoa e deixou-se levar pelas águas; ele mesmo morreu, e o menino foi encontrado dois
dias depois a salvo sobre uma rocha. Tapa contou o caso em tom irônico, procurando
ridicularizá-lo, provavelmente para acentuar diante de mim seu status de marido e advertir-
me, brincando, de seus “perigos”.
Os Kaiabi não me apresentaram nenhuma razão para os incêndios que eles provo-
cam no campo, excetuando a observação jocosa de Moanyan de que se alegrava “porque
o fogo atingiria à noite a aldeia dos Apiaká, queimando tudo”. Talvez uma vantagem fosse
a sensível diminuição dos mosquitos devido à fumaça, sendo maior, porém, o inconveniente
dos braseiros, perigosos para pés descalços. Contudo, incendiaram repetidas vezes o campo,
contrariando meu pedido para que não traíssem, pela fumaça, nossa posição aos Apiaká.
Alegraram-se muito com o resultado de uma queimada que se espalhou por mais de 90 km
e cujas colunas de fumaça ainda eram visíveis à distância após oito dias.
5. Hábitos alimentares
Diariamente é feita uma refeição principal, preparada nas primeiras ou últimas horas
da tarde. De manhã os Kaiabi comem os restos da comida do dia anterior e, durante o dia,
pode-se “beliscar” a toda hora pequenos bocados de farinha de mandioca, eventualmente

194 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


com castanha-do-pará, e tomar chicha, sem exigência de uma etiqueta especial. Para tanto,
toma-se uma porção entre o polegar, o dedo médio e o indicador, jogando-a de baixo para
cima na boca aberta. Os Kaiabi bebem depois da refeição: apanha-se água ou chicha com
uma pequena cabaça, segurando-a pela borda com três dedos, levando a borda oposta à
boca, alçando vagarosamente o recipiente. Evita-se cuidadosamente derramar o líquido, bebe-
se tudo ou passa-se adiante a cabaça.
Apenas os dedos são utilizados para comer e há preocupação em limpá-los regu-
larmente. Com raras exceções, partes da comida são dadas ao mesmo tempo aos animais
de estimação e, mais raramente, aos cachorros. As mães mastigam o alimento, dando-o
em seguida às crianças pequenas.
Gesto de amizade é meter comida, principalmente petiscos, na boca de adultos,
experiência que também Pyrineus de Sousa e Max Schmidt tiveram:
“Enquanto os índios nos auxiliavam neste serviço, duas índias moças, de corpo
bem feito e bonitas feições, muito alegres, preparavam comida (amendoim e
polvilho) para nós, para o pae dellas e para três irmãos. Descascavam o amen-
doim e ellas mesmas queriam bota-lo em nossa bocca, acompanhado de um
punhado de polvilho, como faziam ao pae e aos irmãos. Quando se recusava a
comida offerecida pelas moças, vinha o velho insistir para que se acceitasse,
comendo elle primeiro, como prova de que estava bom e não fazia mal” (Sousa
1916:80).
“Deixaram convencer-se a acompanhar-me para dentro do meu rancho, onde
tive de submeter-me inicialmente a uma cerimônia de recepção muito desagradá-
vel, pois a mulher índia lambusava de mel a boca de cada um dos estranhos com
os mesmos dedos com que o tirava do recipiente de cabaça. Felizmente tive a
vantagem de ser o primeiro da fila” (Schmidt 1929:91).
6. Fundamentos psicomentais
a) Modos de pensar
Na convivência com os Kaiabi, chamou-me a atenção a sua capacidade de per-
cepção particularmente rápida que, combinada com associações complexas, tornava difícil
seguir seu raciocínio. É provável que prefiram em muitos domínios as representações figu-
rativas às abstratas e procuravam aplicar certas generalizações minhas a coisas e situações
concretas. Assim Moanyan recusava-se a repetir “orelha grande” em Kaiabi, “pois só
civilizado tem orelha grande, Kaiabi só tem pequena”. Nem podiam entender meus moti-
vos para aprender sua língua, já que eu evidentemente não era Kaiabi e não queria estabe-
lecer um relacionamento de parentesco. Explicaram-me sem rodeios que minhas tentativas
Normas de comportamento e fundamentos psicomentais 195
eram vãs, pois “só Kaiabi podem falar Kaiabi”. Vendo minhas anotações escritas, expres-
saram também a suspeita de que eu pudesse “tirar” a língua deles, concepção formulada
com muito mais ênfase face aos trabalhos lingüísticos de Helga Weiss e Rose Dobson (SIL)
no Parque Nacional.
Os Kaiabi consideram-se intelectualmente superiores aos “civilizados” e mui-
tas vezes criticaram minha “perplexidade” com observações irônicas e, em certos ca-
sos mais crassos, eles afirmavam categoricamente: “Tu não sabes nada!”. Se fosse dita
para um Kaiabi, esta constatação seria uma ofensa grave e acarretaria sanções.
Como em todas as outras esferas da vida, também no domínio religioso
transparece uma característica fundamental da cultura dos Kaiabi, ou seja, um marcante
“understatement” de todas as emoções e atividades, associado a uma pretensão ao
absoluto de suas normas morais e religiosas. Talvez por isso seja tão difícil demarcar
entre os Kaiabi, e provavelmente em todas as tribos Tupi, como campo específico o
universo das crenças que é o pressuposto evidente para todos os outros comporta-
mentos próprios daquelas criaturas denominadas “homens”.
b) Número e tempo
Os Kaiabi conhecem os numerais: 1 = aypiyté; 2 = muku†; 3 = moapit; 4 = ir‰pavé;
e, para 5, escutei ir‰a´em e, por vezes, também o termo para mão: aipó. Para indicar
números superiores podem valer-se adicionalmente da outra mão e de ambos os pés, o
que não pude observar na prática. Números se mostram com os dedos, a começar pelo
indicador e, em seguida, pelo médio, o anular, o minguinho e, por fim, o polegar. Em cada
um dos casos, todos os outros dedos ficam dobrados.
A maior unidade de tempo e também a mais usada é a estação da seca (kwaripé)
e a época da chuva (amanipé). A unidade menor seguinte é a lua (yai), calculando-se o
período de uma para outra lua nova; finalmente, a posição do sol, indicada com a mão
esticada, é usada para distinções mais sutis.
c) Representações figurativas
Sem a menor dificuldade, os Kaiabi identificavam pessoas em fotografias que viam
pela primeira vez comigo, e figuras de animais, mesmo quando eram tão fortemente estilizadas
quanto, por exemplo, o veado Bambi de Walt Disney. Eles mesmos riscam figuras na casca
de cabaças, pintam-nas na pele ou as tatuam, tal como também Schmidt descreve (1942:28)
e ilustra (1942: Lâmina XIV, figura 34; lâminas XV-XVIII, figuras 38-42). Elas são, em
parte, idênticas aos desenhos das figuras 10-12 que pedi que fizessem no Rio dos Peixes.
A seqüência de dados é número, instrumento, autor, representação Com exce-
ção das tatuagens, os desenhos foram feitos em papel.
196 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
Figura 10: REPRESENTAÇÕES FIGURATIVAS

10.1
10.3 10.4
10.5
10.2

10.6 10.7 10.8


10.9 10.10 10.11

10.13 10.14 10.15


10.12

1. Esferográfica, ?, homem
2. Lápis, Timaka´i, mulher
3. Lápis, Timaka´i, criança
4. Lápis-cera, Timaka´i, coatá
5. Lápis-cera, Moanyan, coatá
6. Tatuagem, pai de Tapa, macaco-prego
7-8. Lápis-cópia, Moanyan, macaco-prego
9. Lápis-cera, Moanyan, macaco-prego
10-12. Lápis-cópia, Moanyan, onça
13. Lápis-cera, Moanyan, onça
14. Lápis, Timaka´i, onça
15. Lápis-cópia, Moanyan, onça

Normas de comportamento e fundamentos psicomentais 197


Figura 11: REPRESENTAÇÕES FIGURATIVAS

11.1 11.2 11.3 11.4 11.5

11.6

11.8
11.7 11.9
11.11 11.12
11.10

11.17 11.18
11.13
11.14 11.15 11.16

1. Lápis-cópia, Moanyan, veado


2. Lápis-cera, Kwaban, anta
3. Lápis-cera, Kwaban, porco-do-mato
4. Lápis-cera, Kwaban, caitetu
5. Lápis-cópia, Moanyan, tamanduá
6. Lápis, Timaka´i, jacu
7. Lápis-cópia, Moanyan, cabeça-seca (ave)
8. Esferográfica, ?, macuco
9. Lápis, Timaka´i, arara
10. Lápis, Timaka´i, garça
11. Lápis-cópia, Moanyan, lagarto
12. Lápis-cera, Kwaban, jacaré
13. Lápis-cópia, Moanyan, lagarto
14. Lápis-cópia, Moanyan, rubafo
15. Lápis-cópia, Moanyan, peixe-agulha
16. Lápis-cera, Kwaban, sapo
17. Lápis, Timaka´i, sapo
18. Tatuagem, Ipepuri, escorpião

198 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Figura 12: REPRESENTAÇÕES FIGURATIVAS

12.3
12.4 12.5
12.1 12.2

1. Lápis-cera, Kwaban, barco do pe. Dornstauder


2. Lápis-cera, Kwaban, barco do seringalista Marcelo
3. Lápis-cera, Kwaban, pilão
4. Lápis-cera, Kwaban, sol
5. Lápis-cera, Moanyan, maloca (reduzida)

Normas de comportamento e fundamentos psicomentais 199


capítulo IX

CRENÇA E RELIGIÃO
Todas as restrições feitas nos capítulos IV e VII ao valor da descrição ética de
características culturais cujo conhecimento foi obtido em condições difíceis de comunica-
ção valem muito mais ainda para aquele setor de cultura que designo pelo nome de religião
em sentido amplo, seguindo a praxe etnográfica.
Baseio-me em Haekel (1958) na organização do presente capítulo e na terminolo-
gia empregada, mas evitarei propositalmente observações comparativas, para não correr o
perigo de preencher as lacunas do meu conhecimento com dados provenientes da descri-
ção de outras culturas.
1. Esferas de representações
a) Alma, morte, Além
As informações subseqüentes foram fornecidas por Yupari´up, Nawé, Moanyan,
Tapa e Temeoni. Eu as condenso aqui.
Todo homem, assim como todo “animal grande”, possui um ai’a . Ele não o recebe
ao nascer, mas junto com o nome. Aqueles que não recebem o ai’a não se tornam seres
humanos e morrerão em breve. Ele é o propriamente humano e, sem ele, o homem é como
um tucano empalhado, um invólucro: aepiri´t. Uma vez dentro do homem, a gente não vê o
ai’a nem sabe onde ele está. Quando o ser humano fala, ele está em sua boca (Yupari´up).
Nawé achava que ele se localiza no coração.
Quando alguém sonha, o ai’a sai do corpo e olha tudo em volta. Mas é perigoso
sonhar, porque um panyé ou outro ai’a podem vê-lo no mato. Ele se parece exatamente
com uma sombra: ai’a it. A pessoa morre quando teve um sonho “muito forte”: ai’fayop.
Quando alguém adoece, isto se refere apenas ao corpo – aérété (?) – e ele sara outra vez.
Mas, se o corpo é muito “mau”, se não há nada mais para comer e a pessoa cada vez fica
mais fraca, então o ai’a não agüenta mais e vai embora – aí a pessoa morre. Também
pode acontecer que um panyé o leve e, se outro panyé não for ao mato com a cesta para
procurar o ai’a , não o encontrar e o trouxer, o indivíduo morre. O invólucro fica no chão
e apodrece, mas o ai’a caminha em direção ao levante para o iwak. Lá só existem Kaiabi
que vivem juntos em famílias como aqui, têm roça, caçam e pescam. Isto é o i´wa pewak.
Antigamente, os Kaiabi não tinham medo de morrer, mas agora são poucos e têm medo.
b) Espíritos e personificações
Definimos espírito como “... um ser incorpóreo, autoconsciente, dotado de forças e
habilidades sobrehumanas, embora limitadas” (Haekel 1958:49).

Crença e religião 201


Os Kaiabi conhecem muitos seres desta categoria. De importância especial e muito
perigoso é o anya . Ele é o chefe dos mama´é (ver pág. 204), vive na mata densa e quem
for caçar sozinho pode encontrá-lo. Nestas ocasiões, ele se parece com um homem e fala
com o caçador (Yupari´up). Ele também tem esposa – k‰yamutat, e rouba crianças, mu-
lheres e até mesmo homens adultos. Estes então ficam doentes e morrem; só o panyé pode
trazê-los de volta (Nawé).
Em todos os rios vivem os karuat. Não se sabe se são homens ou mulheres,
mas são chefes de todos os animais da água e muito perigosos para os humanos. Eles
puxam o homem pelo pé para o fundo da água (Nawé). Um dos karuat é o tacapé´i, a
onça d´água. Ele se parece com a onça, mas os ai’a e o panyé podem vê-lo na forma
humana porque ele é exatamente como um homem (Mairer‰). Na água também vive
uma harpia – kwanõaip (?) que o comum dos homens não pode ver. Tem a aparência
de um homem e é chefe de todas as harpias (Meau´ap).
Todos os animais juntos têm um chefe, ou então uma senhora, dona, que é uma
velha, a oiw†. Ela mora no fundo da mata e cuida dos animais, também das onças (Tapa).
As onças têm um chefe próprio (Mairer‰), que são as onças pretas: yavarun (Nawé).
Outros animais também têm seus protetores específicos, como os mutuns
(urakwayup) e os macucos (urakwavi). Antigamente eles guardavam seus animais em
gaiolas para que os Kaiabi não pudessem matá-los. Foi lá um panyé, abriu primeiro a
porta de uma gaiola e disse: “Cuidado! Suas aves vão fugir!”. Os protetores correram
para prendê-las novamente, enquanto o panyé foi para outra gaiola, abrindo-a. Então,
todas as aves voaram para a mata e desde então os Kaiabi podem caçá-las. O atual
panyé sempre precisa visitar de novo esses “espíritos protetores” e acalmá-los. Ele
diz: “Fica tranqüilo, não fica bravo, nós não mataremos muitos”. Então eles mandam
os animais e os Kaiabi têm sorte nas caçadas (Tapa).
c) Seres-dema e heróis culturais
Outra crença dos Kaiabi é a da “gente velha” (é´i †), que vivia no fim dos primeiros
tempos e “já morreram há muito tempo”, mas eram “como os Kaiabi”. Eles ensinaram aos
Kaiabi a viver “direito” e, matando em conjunto um deles que se apresentou voluntaria-
mente, deram origem aos principais gêneros alimentícios. Estes seres correspondem essen-
cialmente às “divindades-dema” descritas por Jensen (1951:116-122). Deles se ocupam
quase todos os mitos que foram contados e que são reproduzidos no item 8 deste capítulo.

2. Xamanismo
“O xamanismo constitui um complexo de idéias e práticas diversas que são
correlacionadas pela pessoa do xamã e se configuram numa estrutura caracterís-

202 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


tica. Trata-se de uma atitude religiosa que se expressa através da comunicação
extática específica de pessoas especialmente qualificadas com seres sobrenatu-
rais a serviço da comunidade e que se fundamenta numa determinada ideologia
relativa à alma”.
Esta definição de Haekel (1958:62) permite enquadrar as idéias religiosas dos Kaiabi
relativas ao no complexo sistema do xamanismo. Para investigá-lo, Baldus forneceu, em
estudo abrangente (1966), diretrizes precisas que se adaptam particularmente bem às con-
dições vigentes entre os índios brasileiros.
a) Possessão e viagem ao Além
Só os homens podem tornar-se panyé, pois é coisa muito perigosa. Antigamente
havia muitos e o último “grande” foi o pai de Tapa. Não se pode aprender a ser panyé;
deve-se “saber mesmo” – alguns ficam sabendo em sonho, outros na mata. Também há os
que morrem com isso (Meau´ap).
O panyé pode viajar em sonho a qualquer parte, também para junto dos ma´it, os
grandes panyé do iwak, já falecidos; estes lhe explicam tudo e deles recebe todo o poder
para ajudar os Kaiabi aqui embaixo. O ma´it faz descer uma corda, pela qual o panyé
sobe a oeste, kwararesap – e fala com ele, e pela qual desce novamente à terra quando o
dia raia a leste, kwarapoap. Enquanto isso, seu corpo está deitado, como morto, na rede
(Tapa).
Se há muitos doentes ou quando o panyé não sabe mais o que fazer, ele constrói
i
um ma rók (ver pág. 121) com folhas, fica um tempo ali dentro e chama o ma´it. Este vem
e fala com as pessoas, enquanto o panyé parece morto. Nesta ocasião, a choça se agita e
pode-se ouvir bem alto a voz do ma´it. Os parentes dos doentes ficam em fila diante do
mairók e perguntam, um após o outro, o que vai acontecer e o ma´it responde. Antes de
uma viagem, o panyé também consulta o ma´it. Este sobrevoa a região e o panyé o
acompanha. Então o ma´it diz, de dentro da choça: “Tudo está bom. Lá tem muita caça
etc” (Meau´ap).
Alguns panyé são capazes de viajar pelos ares e ver tudo “como avião”. Eles dizem
depois para onde se deve viajar, onde há brejo etc (Moanyan).
O panyé pode tirar o ai’a dos homens e eles morrem. Os outros (?) panyé é que
fazem isto, pois os dos Kaiabi procuram os ai’a e os trazem de volta (ver pág. 201).
Nesta ocasião, eles podem transformar-se em animais, também em onças (Nawé).
b) Cura de doentes
A tarefa mais importante do xamã é curar os doentes, pois a maioria das moléstias
é causada por seres imateriais – embora representadas em termos de pessoas – que se

Crença e religião 203


manifestam nos corpos dos doentes como objetos intrusivos, e só o panyé é capaz de
retirá-los. Esses espíritos, bem como os objetos intrusivos – dentes de onça, de macaco e
espinhos – têm o nome de mama´é. Anya os manda ou, então, eles mesmos procuram
uma pessoa, nela penetram e produzem a doença (Nawé, Temeoni).
Cada panyé possui diversos espíritos auxiliares – arupiwat, que procuram os
mama´é e o avisam. Os arupiwat matam o mama´é e, em seguida, o panyé o retira. Às
vezes não se pode ver o mama´é, apenas o panyé o vê. Ele é um bicho ou um homem
(Nawé).
O mama´é é muito quente e quando o panyé o tira do corpo, ele grita: “Ai! Como
esse é quente, esse é duro de pegar”. Mostra-o depois e joga-o fora da casa, enquanto
coloca numa peneira o ipirewat – o espírito auxiliar do anya – e, saindo pela porta, diz:
“Volta ao iwak!”. Se o panyé não retira o mama´é corretamente, ele fica na mão e penetra
no corpo. Então o panyé começa a sangrar pelo nariz e deve deitar-se até que melhore; os
panyé mais jovens podem prestar ajuda. Quando o doente fica bom outra vez, deve
presentear o panyé com alguma coisa: flecha e arco, uma borduna, uma cesta pintada ou
penas para que os arupiwat o vejam. Então dizem: “Nosso panyé é grande e bom, ele
tem muitas coisas”, e o ajudam. Mas, se ele não tem nada, dizem: “O panyé não tem
nada”, e passam a ajudar um outro. “Mas hoje as pessoas não dão mais nada, não valem
mais nada” (Meau´ap).
Observei pessoalmente três tratamentos de doentes. No dia 26 de fevereiro de
1966, Mairer‰ aproximou-se de Timaka´i e lhe disse que Purikato estava “muito doente”.
Timaka´i estava cansado e ficou em casa. No dia seguinte, sua mulher preparou chicha e
por isso ele novamente ficou em casa. Finalmente, no dia 28, pelas dez horas da manhã, ele
foi ver Purikato. Eu o segui dez minutos depois porque, apesar de ter pedido que me
avisasse, não fui convidado para ir junto.
O tratamento durou pouco mais de uma hora e decorreu numa atmosfera objetiva e
impessoal, sendo eu o único a observar o procedimento de perto, o que divertiu os outros.
Timaka´i caminhou vagarosamente, de braços cruzados e às vezes de olhos fechados, em
torno da rede do paciente imóvel, fumando um charuto que ele mesmo preparara e paran-
do de tempo em tempo. Gemia, murmurava baixinho, soprava a flauta de osso de onça e
expelia fumaça de maneira audível. Depois de uns 15 minutos ele se curvou, gemendo alto,
sobre a cabeça do doente, passou lentamente ambas as mãos que vibraram ao longo do
corpo até os pés, sorvendo e expelindo fumaça sem pausas. Aos pés da rede, a mulher de
Purikato segurava uma grande peneira em que, finalmente, caiu um objeto invisível. Deva-
gar, cambaleando, Timaka´i carregou até a porta a peneira agora visivelmente pesada,
esvaziando-a em diversas direções e gritando alto. Tudo isso durou cerca de 20 minutos.

204 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Em seguida, ele sentou-se na rede com o doente e colocou a mão sobre a área do fígado,
que estava inchada e muito sensível à pressão. Inicialmente gritava “hókó´ké”, devagar e
entre pausas longas, depois cada vez mais rápido e alto, até ficar “fora de si”; enquanto
isso, agarrava um objeto invisível com uma das mãos e o deixava cair imediatamente na
outra, porque parecia ser muito quente. Ele apertava as mãos uma contra a outra, levantou-
se de um pulo e correu, tremendo e aos gritos, até a porta. Mairer‰ e Kupe´ap correram
atrás dele para ajudá-lo a manter longe do corpo o braço esquerdo: na mão crispada
encontrava-se o perigoso objeto. Timaka´i virava os olhos, estava com o rosto vermelho,
transpirava muito e tinha um pouco de espuma nos lábios. Ele gritava continuamente, con-
torcendo-se, e parecia não poder abrir a mão. Essa cãibra durou uns cinco minutos. De-
pois, ele deixou cair o objeto, que permaneceu invisível. Acalmou-se em alguns segun-
dos, cambaleou esgotado até a rede, onde virou o paciente de bruços. Para as costas
do paciente ele repetiu todo o processo anterior, embora com menor intensidade. Purikato
continuou na rede, sem dizer nada, embora agitado, adormecendo em seguida. Timaka´i,
amparado por Mairer‰, sentou-se exausto numa rede, sendo-lhe servidos chicha e grandes
feijões com farinha de mandioca. Uma hora depois ele voltou comigo e com Kupe´ap para
o Posto, deitando-se em sua rede. Sua aparência era a de um doente. Na noite seguinte ele
recomeçou a gritar alto “hókó´ké” e a cantar em voz abafada em sua casa. Depois foi até
a porta, com ânsias, e finalmente vomitou. De manhã cedo apresentava todos os sintomas
de doença: pulso fortemente acelerado, febre, leves tremores no corpo e expressão de
sofrimento.
Tapirapé explicou-me que, em sonhos, Timaka´i tinha estado com Purikato, can-
tando lá. No mesmo dia o estado geral de Purikato melhorou nitidamente, diminuindo
um pouco o intumescimento do fígado. (É claro que todos atribuíram esta melhora ao
tratamento de Timaka´i, embora soubessem que eu havia aplicado uma injeção em
Purikato).
Mais tarde obtive alguns esclarecimentos sobre o que se passara. Antigamente, o
panyé curava apenas com sopros sonoros sobre a parte doente do corpo; agora, utiliza-se
de charutos (Moanyan). Toca-se a flauta para impedir que o mama´é volte outra vez ao
corpo (Nawé).
Observei um outro tratamento realizado por Timaka´i, no dia 12 de agosto de
1966, na maloca de Temeoni. Mariwa, filha de Temeoni, já na véspera sentira dores no
abdômen que se tornaram cada vez mais fortes. Timaka´i foi chamado ao cair da noite,
apareceu depois de algum tempo, sentou-se fumando na rede com a doente e passou a
expelir a fumaça de forma sonora intercaladamente sobre a parte dolorida. Falava baixinho
com Mariwa, espremendo em seguida, com as mãos, um objeto invisível de seu corpo e o

Crença e religião 205


soprou para longe da rede. Repetiu diversas vezes o processo, curvando a cabeça sobre o
ventre da paciente, sugando-o rapidamente. Depois de seis minutos recomeçou a falar com
ela e, sem ter-se agitado, bebeu chicha e foi embora.
No dia 9 de setembro, Piaka voltou da caçada com febre alta e deitou-se. Nessa
ocasião, Timaka´i já havia viajado para o Xingu e chamou-se Mairer‰. Ele começou a
caminhar em torno da rede, fumando muito e soprando a fumaça, de todas as direções,
sobre o doente; gemia alto, passava ambas as mãos no rosto, arregalava os olhos e apre-
sentava uma expressão fisionômica rígida e alterada. Passou as mãos trêmulas sobre o
corpo de Piaka, da cabeça aos pés, e colocou o mama´é numa peneira já à disposição,
levando-a, tremendo em todo o corpo, para fora da casa. Com isso terminou o tratamento
que durara um quarto de hora. A mulher de Mairer‰ ainda friccionou o corpo do paciente
com as folhas aromáticas de uma árvore, soprando continuamente sobre ele.
Os três tratamentos descritos mostram muitos traços comuns e baseiam-se na mes-
ma ideologia. No entanto, no último faltaram todos os aspectos extáticos que, segundo
Haekel (1958:62s), constituem as características distintivas essenciais entre o xamã e o
médico-feitiçeiro.
No primeiro caso, entretanto, reconhecem-se os quatro pontos do verdadeiro êx-
tase xamânico: preparativos e invocação do espírito auxiliar, depois o transe, o tratamento
propriamente dito em conjunto com o espírito auxiliar e, por fim, a transição para o estado
normal.
As narrações dos meus informantes e os fenômenos de adivinhação do interior do
mai´rók, confirmados por brasileiros no Parque Nacional, justificam a conclusão de que
entre os Kaiabi se encontra unido, numa só pessoa, o tipo do xamã itinerante e o de pos-
sessão. É difícil discernir, entretanto, até que ponto se trata de uma possessão genuína. Em
seu último trabalho sobre este problema, Métraux constata:
“A possessão xamânica, ainda que raramente assinalada, está longe de ser des-
conhecida na América do Sul... a bem dizer, a maior parte das descrições e
sessões xamanísticas sugerem mais a idéia de colóquios entre hospedeiros e visi-
tantes que de crises de possessão, mas não se saberia traçar exatamente o limite
entre estas duas formas de comunicação sobrenatural” (1967:92).
Esta opinião adapta-se inteiramente ao que existe entre os Kaiabi. É supérfluo ex-
por quantas questões ainda permanecem em aberto. Os dados apresentados não podem
informar satisfatoriamente sobre o xamanismo entre os Kaiabi; são apenas pontos de par-
tida para novas pesquisas, de acordo com o que foi exposto no trabalho já mencionado de
Baldus (1966), podendo ser considerados particularmente frutíferos e essenciais.

206 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


3. Magia, feitiçaria, presságios
“Magia no sentido mais estrito seria influenciar e guiar acontecimentos, proces-
sos da natureza e seres superiores por meio de ritos de eficiência infalível, em
benefício da comunidade... A feitiçaria consistiria mais em práticas individuais,
em parte executadas secretamente, para fins pessoais ou outros estritamente li-
mitados...” (Haekel 1958:57).
É difícil distinguir, na prática, entre magia e feitiçaria. Entre os Kaiabi é necessário
explicar, inicialmente, o conceito de moa . Trata-se de matéria mágica invisível ou um
remédio concreto – também um medicamento dos civilizados – ou veneno, como o DDT.
O panyé pode preparar um moa feito de unhas cozidas, alguns cabelos e da sujei-
ra raspada da pele de um homem, a fim da matá-lo (Nawé). Se um Kaiabi quer ter relações
sexuais com uma mulher e ela o recusa, ele toma uma certa folha pequena – ka´a´ip,
esfarela-a na mão e a coloca no ombro da mulher, passando a mão por cima. Depois
espera até a noite. Enquanto isso, moa atua e o “coração da mulher amolece”. Então fala
novamente com ela. Com outro moa , o ipirai, pode-se esfregar a rede de dormir da
mulher. Então ela vomita e sai sangue de sua vagina; no outro dia ela morre. Isto um homem
faz por ciúme (Tapiokap).
O hálito humano também é “como um moa ”. Ameaçava chuva e, para afastá-la,
Ny‰kato e Moanyan sopraram intensivamente na direção do temporal, falando baixinho:
“Vai embora chuva..., etc”, ameaçando com o facão. Os primeiros socorros prestados a
dois pássaros feridos consistiram em soprar-lhes intensivamente sobre a cabeça. O mesmo
se faz com pequenos ferimentos das pessoas. Urucu e jenipapo também são designados
por moa (ver pág. 144). Certo lagarto, menem´i, que vive nas margens da água, não
pode ser tocado, “senão chove”. Um dia toquei um de propósito, e os Kaiabi presentes se
aterrorizaram, olhando o bicho, cheios de medo. Só depois de algum tempo é que a situa-
ção passou a ser novamente considerada inócua.
“Quanto aos agouros, trata-se... simplesmente de observação passiva de dife-
rentes sinais na natureza e no ambiente, que anunciam benefícios ou males” (Haekel
1958:62).
Vários Kaiabi fizeram uma viagem mais longa comigo, procurando entrar em con-
tato pacífico com os Apiaká. Toda empresa fracassou após alguns dias por causa de um mau
agouro: o aparecimento de incríveis quantidades de abelhas bravias. Moanyan explicou: “Os
Kaiabi não gostam de tantas abelhas, e se aparecerem numa viagem eles voltam. Porque são
sinal de guerra e sempre que os Kaiabi fazem guerra com outros, vêm as abelhas e cobrem
inteiramente os mortos” (o sangue as atrai). Também Tapa confirmou esta opinião.

Crença e religião 207


4. Medicina
Como todos os remédios, sem exceção, são considerados moa , a distinção entre
magia, feitiçaria e medicina só pode ser feita através da perspectiva européia. No caso de
fraturas, os Kaiabi preparam talas de madeira e lianas que, aplicadas de modo anatômico
correto, mostram bons resultados.
Todo Kaiabi conhece grande número de plantas medicinais, usadas com freqüên-
cia, mas somente um grande panyé conhece “todas”. Como não pude realizar a classifica-
ção botânica nem testar sistematicamente os remédios, meus conhecimentos se limitam a
algumas informações que eu reproduzo sob a forma de uma lista assim organizada: nome,
preparo, uso e, quando conhecida, a indicação:
– yamuoo: o caule é esmagado, misturado com água e aplicado externamente em
crianças;
– uwakatsi: raiz que, raspada com faca e diluída com um pouco d´água, é passada
dentro dos olhos contra inflamações da vista;
– utsi ´ip: a raiz é raspada, misturada com água e usada pelos homens externamen-
te em caso de febre;
– moa aputa i: bebe-se as raspas da raiz diluídas em água, em casos de câimbra e
fratura do braço;
– iki´anyapepirop: a raiz (?) é raspada e misturada com água fria; bebe-se manhã
cedo quando a comida não apetece (tem um agradável saber amargo e é ligeira-
mente tônico);
– yukitikriem: toma-se a raspa da raiz (?) misturada com água fria por ocasião da
primeira menstruação e quando as mulheres perdem muito sangue;
– moa a´ip (moa a´iwawira a´i): raspar a raiz e aplicá-la, misturada com um
pouco de água, em cima de feridas;
– tukaiyip: partes do tronco da árvore são piladas e misturadas com água, sendo
de uso tópico apenas em crianças contra aipirakwaré (?);
– kafereavi: as raspas da raiz em água são bebidas como anticoncepcional depois
do coito;
– mõapipi: a raiz é raspada, misturada com água, formando-se duas bolinhas que
são enfiadas nos ouvidos contra dor de cabeça. A pessoa deita-se na rede, trans-
pira durante a noite e na manhã seguinte “está boa”;
– yawarem´o: as folhas frescas desta liana são espremidas e passadas no corpo da
criança, (?);
– i´ip: corta-se a liana, recolhendo o sumo numa cabaça da qual se bebe o líquido (?).

208 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Tolksdorf menciona o leite da seringueira com que se unta a extremidade do umbi-
go, depois de cortado. Eu mesmo experimentei a resina de certa árvore que, misturada
com tabaco e fumada, demonstrou ter uma ação analgésica para dor de dente. Seu uso
repetido não registrou efeitos colaterais.
Muito espalhada entre os Kaiabi é uma doença de pele, aipira´ip, talvez uma micose
específica da tribo. Já Sousa a observou no Teles Pires, em 1915, com o mesmo nome:
“Em alguns índios notámos esquisitas feridas no dorso e na nuca, a que chama-
vam pirahiba. Desconfiado que as feridas fossem provenientes de mordeduras
de peixe pirahyba, mostramo-lhes a pelle que trazíamos de um destes peixes,
cuja boca aproximamos da ferida; comprehenderam a nossa pergunta e con-
tinuaram a dizer pirahíba mostrando a ferida e exprimindo que era dolorosa. O
dr. Moore examinou as feridas e achou-as profundas, irregulares, de bordos
salientes; não purgavam e tinham um odor característico. As feridas pareciam ser
produzidas por um talho de faca e davam a idéia de uma queimadura profunda”
(1916:82ss).
De fato, o nome nada tem a ver com o peixe chamado piraíba (Bagrus reticulatus)
pelos brasileiros. Essa doença não é atribuída à penetração de um mama´é, e os Kaiabi a
consideram e tratam como uma ferida; associam-na, portanto, a alguma ação mecânica
sobre a pele. Quando localizada nas articulações, produz chagas abertas que sangram,
criam pus freqüentemente e são muito dolorosas.
5. Representações do cosmo
De acordo com os Kaiabi, a Terra é um disco, acima e abaixo do qual existem
zonas em que os índios podem existir de alguma forma (Tapa). Os Kaiabi provêm do
nascente e para lá voltam ao morrer. Lá, no iwak, eles estão todos reunidos, caçando e
pescando (Moanyan) (ver pág. 201).
O firmamento não é utilizado como conceito geográfico. A lua, ya´i, é uma pessoa,
um panyé que vai passear “em cima” e volta à noite. O sol, kwat, também: ele é “como
fogo”. O céu estrelado, ya´itata, é uma grande lagarta e todas as luzes são seus pêlos
luminosos. Estrelas cadentes, ya´itatanyan, são lagartas que não querem ficar lá em cima e
voltam para a Terra (Mairer‰). Com o mesmo nome os Kaiabi designavam os satélites
artificiais que víamos praticamente todas as noites e eles sabiam que tinham sido atirados
para lá por “russos” e “americanos”. O arco-íris, yé´up, é feito de água e por ele os peixes
tucunaré nadam de um rio para outro (Mairer‰). Tapa contou-me que a Via Láctea é um
caminho que pode ser palmilhado pelo panyé, mas ele precisa precaver-se contra a onça
(Orion e algumas outras estrelas) e o puma (estrelas próximas ao sul de Orion), para não

Crença e religião 209


ser devorado; então o panyé morre aqui na Terra. A chuva, aman, cai em gotas porque é
água que cai da peneira da lua (ver pág. 233). O trovão, Tupã, está associado a um perso-
nagem mítico homônimo (ver pág. 233).
Infelizmente, esses dados não são suficientes para dar uma idéia da imagem do
mundo dos Kaiabi. Mais do que em numerosos outros assuntos, eles eram muito reser-
vados em suas informações sobre o cosmos.
6. Marakã
Este é o nome que os Kaiabi dão a um canto festivo de conteúdo religioso, entoado
por iniciativa e sob a orientação do xamã com outros homens. Sentam-se em torno do
fogo, fora da casa, e bebem muita chicha. O panyé entoa e canta uma estrofe, enquanto os
outros repetem o refrão “a-ha, é´hé”. Depois de vinte a trinta estrofes, fazem uma pausa de
alguns minutos. Antigamente, os panyé cantavam Marakã com freqüência, contou-me
Moanyan, hoje é muito raro. Eu mesmo só observei Timaka´i cantando o Marakã uma
única vez, na noite de 28-29 de agosto de 1966. Permitiram que eu participasse e fizesse a
gravação do canto, que utilizei no dia seguinte para traduzir o texto.
Os cantos dos xamãs referem-se, sobretudo, às suas experiências com espíritos
auxiliares, próprios ou alheios. Como exemplo, apresento dois cantos que registrei
pouco antes da meia-noite, traduzidos e comentados por Nawé no dia seguinte. Cada
estrofe é provida de um número e entre parênteses encontram-se esclarecimentos meus.

1o Canto
1. assim está melhor
2. eu o encontrei
3. eu falei com ele
4. eu fiquei de ouvidos fechados
5. eu fui ao seu lugar
6. ao lugar da “boca tatuada” – téméyu´i
7. vou cantar do “sapo” – yu´i
8. eu quero mesmo conhecê-lo
9. ele se deita para morrer
10. de manhã cedo acordei alegre
11. primeiro eu fico aqui
12. eu faço uma sopa de sapos (o espírito auxiliar deve levá-la ao mama´é; ele não
gosta dela, porém, e foge)
13. eu não a ponho na chicha (pois ela não tem bom sabor)

210 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


14. eu dou um nome a ele (ao espírito auxiliar)
15. “canela fina” – tima yu´iyu´i
16. ele já está próximo
17. existem muitos
18. eu não dou atenção (ao mama´é)
19. eles estão aqui comigo (os espíritos auxiliares de Timaka´i)

2o Canto
1. o “lábio da lagarta”, temei i, está aqui
2. eu vou dá-la a vocês (a chicha?)
3. embaixo da margem pendente do rio
4. ali eles cantam (os espíritos auxiliares)
5. eu lhes digo meu nome
6. eu lhes digo para irem junto de vocês
7. eles vão tirá-lo (os espíritos auxiliares ao mama´é)
8. eu mesmo o disse
9. este aqui (o espírito auxiliar)
10. este é panyé
11. este tem muita experiência
12. um panyé
13. eu vou com ele
14. ele é alguém especial
15. ele fica aqui
16. estes não são bons (os outros espíritos auxiliares)
17. “canela mole”, timaurua, está aqui
18. no lugar de “boca pequena”, yuru´i
19. no lugar de “boca da mosca”, yurumero
20. ele é como uma mosca
21. eu o procuro
22. eu não o descobri
23. ei-lo
24. vem depressa aqui
25. todos eles estão aqui (os espíritos auxiliares)
26. quando eles morrem, eu dou um nome (?)
27. “boca morta”, yurumamumamu
28. eu o pego pelo tornozelo

Crença e religião 211


29. afaste-se! (de mim, diz o “boca morta”)
30. “boca raspada”, yurupan‰, está aqui
31. daqui eu vou embora
32. se eu não o descobrir ele não irá comigo
Seguiram-se mais de vinte cantos diferentes, todos narrando em seqüência coeren-
te as aventuras de Timaka´i, dando a impressão de que o conteúdo já era conhecido da
maioria dos participantes e de que simples alusões ao texto bastavam para completar a com-
preensão. Por isso mesmo as minhas tentativas de tradução não deram nenhum resultado.

7. A festa Yawotsi
A festa Yawotsi constitui um cerimonial complexo que, em sua forma original, se
relaciona com a caça a cabeças e parece que, no passado, era organizada uma vez na
estação chuvosa e outra durante a seca (ver pág. 177). Todos os dias, à tardinha, os
homens e mulheres moças exercitavam os cantos e o passo de dança típico no corredor
central da maloca; durante muitos dias preparava-se a farinha e a chicha para todos feste-
jarem juntos (Moanyan).
No Posto Tatuí, ou seja, desde 1960, não se realizara mais nenhum Yawotsi; no
Rio dos Peixes, a última festa foi organizada em 1964 na maloca de Temeoni, ocasião a que
já me referi. Entretanto, quando Temeoni visitou a aldeia do Posto Tatuí em agosto de
1966, vários moços entoaram, uma noite, os cantos, que foram interrompidos às duas
horas da madrugada e reiniciados na manhã do dia seguinte. Finalmente, todos acabaram
por participar desse Yawotsi improvisado sem grande entusiasmo e foi-me possível reali-
zar algumas gravações. Todos os Kaiabi me asseguraram tratar-se de um Yawotsi “muito
pequeno”: poucas moças Kaiabi e nenhuma “casa grande”.
Já em março, o bem humorado Temeoni colocou uma noite o braço direito em volta
de meu ombro e dançou comigo o passo característico do Yawotsi, “para eu aprender”.
Quatro a cinco passos batidos são dados rapidamente para a frente, seguindo-se seis ou
sete para trás ou no mesmo lugar. Na mão esquerda ele segurava um maço de flechas
emplumadas, particularmente bonitas, reservadas para fins cerimoniais (Grünberg
1967:38ss).
Observei pela segunda vez um Yawotsi em Diauarum, no Parque Nacional do
Xingu, quando se festejava, entre 19 e 21 de outubro de 1966, a chegada do grupo Kaiabi
do Rio dos Peixes com o chefe Temeoni. Ele compareceu com um enfeite de cabeça de
penas verdes de papagaio e com um adorno de cintura de penas de harpia, segurando na
mão o aro de penas. Sem aviso prévio, um grupo de moças e mulheres dirigiu-se, por volta
das dez horas, para um poste no interior da casa em que um Kaiabi havia amarrado sua

212 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


rede. Ali elas iniciaram um canto alternado com prolongados “é:yi”, a que o homem res-
pondia baixinho, enrolando-se de tal forma na rede que ficou quase invisível. Depois da
primeira estrofe, o coro das moças repetia as últimas palavras do canto e com o refrão
“aéyéyupé”, que significa tanto como “isto ele diz a vocês”. Depois de três a quatro estro-
fes de extensão variável, o cantor anunciou o final com uma determinada mudança de
melodia e o coro respondeu com um canto que pode ser traduzido por “nós agora vamos
parar um pouco”. Em seguida, as moças dirigiam-se ao Kaiabi adulto seguinte, repetindo a
cena.
No Rio dos Peixes observei a mesma forma, com a diferença de que as moças de
idade adequada do coro foram substituídas por três rapazes – o que foi vivamente lamentado.
Em Diauarum, depois de algumas horas desse tipo de “preparativos” em que se
servia e bebia continuamente chicha, o Yawotsi entrou em sua segunda fase. Durante os
cantos alternados, um homem ergueu-se de um pulo, agarrou o arco e dois maços de
flechas – um deles com seis flechas com emplumação de arara e garça, o segundo com
outras tantas emplumadas com penas de harpia e garça – e começou a dançar, enquanto
continuava a cantar bem alto e animadamente. Com os passos já descritos, ele se movi-
mentava de um lado do corredor central para outro, dando meia volta ao chegar lá. Uma
moça, festivamente ornamentada, acompanhava-o a um passo atrás, à sua direita, seguran-
do o quadril direito do dançarino com a mão esquerda. Dois passos atrás, cinco a sete
moças do coro apoiavam ambos os braços nos ombros das vizinhas, formando uma fileira.
Imitavam todos os movimentos do dançarino e mantinham sempre a mesma distância do
par da frente. Quanto mais durava a festa, mais rápido e mais alto se tornava o canto, os
dançarinos batiam com toda a força os pés no chão, alguns deles segurando, além das
flechas ou no lugar delas, as clavas e o aro de penas.
Temeoni usava o colar de dentes humanos, emprestando-o às vezes aos outros
dançarinos. O ambiente ficou muito animado: homens, mulheres e crianças, sentados em
suas redes, conversavam ou faziam comentários engraçados sobre os dançarinos. Com
intensidade alternada, a festa durou toda noite e, depois de uma rápida interrupção, conti-
nuou pela manhã adentro. Parece que uma terceira fase do Yawotsi começa com o canto
“divertido” de mulheres velhas, puité. Não a observei no Tatuí nem no Xingu, mas Tolksdorf
(MS 1958) parece ter visto este canto na velha maloca de Temeoni:
“Algumas mulheres mais velhas andavam pela maloca, paravam junto ao espaço
de cada parentela e o mais velho do grupo entoava o canto e as mulheres faziam
o coro... Com sua voz grossa parece até que são homens cantando. Para dar
uma tonalidade mais baixa à voz, elas colocam a mão sobre a boca, mesmo
quando estão cantando”.

Crença e religião 213


O relatório de Tolksdorf sobre aquele Yawotsi coincide amplamente com minhas
próprias observações e inclui passagens muito vivas que reproduzem com perfeição o
ambiente festivo.
Acabadas a comida e a bebida, a festa termina e cada família extensa volta para
sua maloca.
Alguns trechos de cantos que ouvi a 31 de agosto de 1966 no Posto Tatuí, e
que Nawé traduziu simultaneamente, dão uma idéia de sua temática. Indicam-se o
nome do cantor e a hora em que o canto foi executado.
Kwasiari – 19h30:
1. Há algum tempo quebrou a madeira – o mutum bravo – ele quebrou a flecha –
mutum valente – o mutum claro – ele quebrou o meu arco – eu encontrei o mutum bravo –
quando eu fui, encontrei um mutum colorido.
2. Eu alcancei a flecha – eu estava longe do ninho da japuíra, a um dia de viagem –
eu quero uma vara comprida para pegar a japuíra no seu ninho – eu alcancei o ninho da
japuíra – mas eu quero uma vara comprida para o seu ninho – eu fui lá para ver o ninho da
japuíra – mas eu quero uma vara comprida.
3. Quando eu vi um peixe na baía, ele fugiu de mim – o peixe nadou para dentro da
nassa, ele a quebrou – eu queria atrair o peixe ali para dentro – eu dei lugar para ele nadar
até lá – ele nadou entrando no riacho, aí o peixe mordeu minha canela – eu fui bater timbó
no riacho, mas o peixe não morreu – aí eu fui fechar o grande riacho, mas o peixe saltou
para o alto.
Masi´a – 19h40:
1. Eu encontrei uma onça no mato – eu esperava a onça, mas ela não veio – eu não
pensei que a onça estava andando no mato – eu escutei seu esturro – a onça esturrava no
mato, eu fiquei com medo – a onça entrou na armadilha e saiu outra vez – a onça pintada
esturrava e foi para o rio – atirei na onça e a flecha quebrou – eu encontrei a terrível onça
– eu atirei minha flecha na onça quando ela se deitou – eu escutei o esturro da onça que é
muito feio.
2. Eu preparei um maço de timbó – mas eu não coloquei o maço na água – na ilha
dentro do rio largo – eu joguei o maço de timbó lá dentro – de uma grande ilha eu espiei um
peixe grande – eu joguei o maço de timbó no rio a partir de uma pequena ilha – a amarra-
ção do maço de timbó se rompeu – eu joguei o timbó nos peixes – numa ilha no rio verde
– numa ilha no grande rio.
3. Eu vi um ai’a embaixo de uma árvore – eu fiquei espantado – na lagoa eu cortei
os peixes com o facão – eu fui lá para derrubar a árvore grande e ela não caiu – o machado

214 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


quebrou na árvore grande, tinha muita fumaça – no riacho grande eu derrubei uma grande
árvore que ficou presa num galho – a árvore não cai – eu derrubo um iwu´yupé´ip – sua
seiva penetrante queimou o meu pé.
Timaka´i – 20h10:
1. Encontrei um ninho de japuíra – a japuíra estava brava no seu ninho – a vara
comprida não alcançava o ninho da japuíra – eu arranco o ninho da japuíra – não posso
alcançá-lo com a vara comprida – num tronco vermelho está sentada a japuíra – a valente
japuíra – não pude alcançar com uma vara comprida – na cabeceira do riacho estava a
japuíra – eu tinha medo da árvore alta – num tronco amarelo está sentada a japuíra – eu
quero arrancar o ninho da japuíra.
2. Eu coloquei a cabaça de volta na chicha – eu peguei um maço de flechas de
taquara – eu matei a onça com as flechas de taquara – numa grande clareira estava a onça
– estou contente, pois a onça vai entrar na armadilha – eu fiquei numa grande clareira com
medo da onça – eu joguei o maço de taquaras no mato – estou contente por matá-la – na
clareira da onça eu deixei um maço de taquaras – estou contente de deixá-lo na clareira da
onça – de uma árvore oca eu vi a onça – na grande clareira onde a onça gosta de ficar – eu
tinha a grande coragem de aproximar-me tanto da onça – sou mais forte que a onça – estou
contente de matar a onça a partir da árvore oca.
3. Eu esperava para ver o lugar da árvore para onde ele voaria – o mutum cantou,
voou lá para cima e parou de cantar – ele canta no mato embaixo de um grande ramo – eu
pensei que o mutum não voaria para cima do ramo – embaixo do ramo o mutum estava
sentado – eu esperava poder matar o mutum – ele voou em cima de um galho fino – eu segui
atrás dele, até onde o mutum cantava – o mutum comia – eu pensei que ele estava no seu lugar
– eu fui embaixo do galho em que o mutum estava sentado.
4. Eu queria derrubar uma grossa árvore – eu chamei para um outro vir na
minha direção – eu fiquei com a faca na mão junto à raiz da árvore – eu bato com o
machado na árvore – uma grande raiz eu golpeei com o machado – perto do riacho do
grande rio – eu tenho um machado sobre o ombro e na mão uma faca – eu tenho uma faca
leve na mão e um machado – pois eu tenho uma faca na mão, perto da raiz da árvore – eu
quero fazer um cabo para a faca, junto ao riacho do grande rio.
Temeoni – 20h35:
1. O mutum voa para cima do galho, eu quero matá-lo com a flecha – o mutum
voa para cima, onde eu já matei um outro – o mutum está sentado sobre um galho e canta
– ali para onde um outro já voou e correu – eu pensei que ele não ia voar para o lugar do
outro – o “braço ferido” matou o outro – onde eu matei um, o outro ficou no seu lugar – por

Crença e religião 215


isso eu ouvia o canto do mutum – eu matei a arara com a flecha – onde ele matou o outro
e desapareceu – “Queixa-se de tudo” matou o outro mutum – onde a arara estava sentada
na árvore oca – o mutum levantou vôo e sentou-se sobre um galho – eu escutava o canto
do mutum – eu esperei pelo mutum atrás da árvore – “Queixa-se de tudo” matou o belo
mutum – onde a arara está sentada está agora o mutum – por isso o mutum canta perto do
rio – onde estava o primeiro e agora o outro ficou no seu lugar.
2. Trepei na árvore larga – eu queria trepar na árvore – eu trepei na árvore até o
buraco do ninho da arara – eu trepei com uma vara até o buraco do ninho do papagaio – eu
achava que ela ia alcançar o buraco do ninho da arara – eu enfiei a vara no ninho do
papagaio – eu queria enfiar a vara no buraco do ninho da arara – eu enfiei a vara no buraco
do seu ninho – eu queria fechar o buraco do ninho da arara.
3. Eu vejo a flecha estragada – eu achava que a flecha sempre permaneceria boa –
o gavião pegou minha flecha, mas eu não pude matá-lo – quem pegará o gavião com minha
flecha? – eles foram ver o pé do gavião – quem pega o gavião com minha flecha? – eles
foram ver o ninho do gavião – quem viu minha flecha por aí? – eu vi a pena do gavião –
como vou pegar o gavião com a minha flecha? – eles foram ver o ninho do gavião – eu
gostava da flecha branca – eu acho que eles cuidam do gavião com minha flecha – eu
fiz uma flecha para matar o gavião – quem vai pegar o gavião com minha flecha? – eu
estava desnorteado sobre o ninho do gavião – eu acho que eles vão pegar o gavião para
trazê-lo.
Moanyan – 21h12:
1. Quando eu fiz uma flecha de taquara, eu a joguei fora – a onça esturrava e saiu –
quando eu peguei o maço de flechas, a onça desapareceu – a onça esturrava fora da
clareira – eu corri no mato e atirei na onça – a onça esturrou na margem do córrego – eu
armei o arco e tremia muito – na grande clareira a onça correu fugindo – fiquei muito
admirado da onça – a onça saiu da grande clareira – a onça esturrou em outro lugar – a
onça não ficou na clareira grande – a onça esturrou fora da clareira – do lugar em que a
onça estava, ela desapareceu.
2. Eu pensei estar à altura da onça – eu estava muito confuso – eu tinha medo da
onça – eu segurava a flecha na mão para matar a onça – eu alcancei a onça na minha
direção – eu tinha força para armar o arco e apontar em direção à onça – nós temos força
para armar o arco – nossa flecha acertará? – nossa flecha acertará? – eu atirei a flecha no
pescoço da onça – o urubu veio para junto da onça em decomposição.
3. Eu fiz um maço de timbó para batê-lo na água – eu joguei o maço de timbó na
água para matar os peixes – morreram muitos peixes dentro da água – eu joguei o timbó no

216 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


grande rio – eu perdi o maço de timbó – eu não tenho medo do grande rio – eu matei uma
grande quantidade de peixes na água – eu perdi o timbó na água – eu tenho coragem de
entrar no grande rio – eu perdi o maço de timbó – eu tenho muita coragem de entrar no
grande rio – morreram muitos peixes na água.
Masí – 21h30:
1. Eu quero beber chicha – eu quero deixar a chicha ficar azeda – eu gosto de
beber desta chicha – eu quero deixar a chicha azedar por uma noite – a chicha morna está
muito azeda – não tenho uma cabaça para pegar a chicha – eu quero deixar a chicha
tornar-se azeda.
2. Nós matamos um macaco sem mão – aqui matamos um macaco sem língua – nós
olhamos a boca do macaco – aqui matamos um macaco sem língua – estou contando onde
matei um macaco – no caminho dos pássaros matamos um macaco – eu mostro onde matei
um macaco – aqui nós matamos um macaco.
3. Quero bloquear o córrego onde saltam os peixes – eu vi os peixes saltando – eu
quero bloquear o córrego onde saltam os peixes – eu vi os peixes saltarem – eu vi os peixes
saltarem.
Ny‰kato – 21h55:
1. Eu vi (sic!) as rãs coaxarem na baía – eu tomei minha flecha na mão – eu fiquei no
meio das rãs – eu tinha a flecha na mão – eu fui no meio das rãs, eu enchi minha flecha – eu
enchi minha flecha de rãs – eu fui no meio das rãs – quando as rãs cantavam rio acima – eu
fui ao Yawotsi das rãs – eu enchi minha flecha de rãs – eu fui ao Yawotsi das rãs.
2. Ali onde eu estava, na clareira da onça, permaneci muito forte – eu trouxe o
couro da onça no braço para mostrá-lo – eu queria ver como eles tiravam o couro da onça
– nós fomos ao lugar da onça e eu fui com eles – eu quero assistir como eles matam a onça
– nós vamos ao lugar da onça e eu vou com eles – eu quero ver como eles matam a onça
– nós vamos ao lugar da onça – por isso eu vou junto com eles.
Os últimos seis cantos foram registrados na mesma noite em fitas gravadas; infeliz-
mente, com muita interferência. Mas eles só foram traduzidos, de modo muito sumário, a
16 de setembro, por Mairer‰.
Kwaban:
1. Eu abati uma grande árvore – eu sempre derrubo uma grande árvore – eu gosto
de abater uma árvore grande.
2. Vejo muitos caniços de taquara – existe muita taquara – sempre existe muita
taquara – eu gostaria de cortá-la, mas eu não posso – de ambos os lados do rio – sempre
existe muita taquara, mas eu não posso cortá-la.

Crença e religião 217


Temeoni:
1. As pessoas não fazem covos – elas nunca fazem um covo para pegar peixes –
elas nunca fazem um covo – nunca mais pegam peixes – eu verifico o covo – havia muitos
peixes, mas elas nunca mais fazem um covo – porque todos têm medo do rio – mas eu não
tenho medo.
2. Na margem do rio eu derrubei uma árvore – eu sempre derrubo uma árvore
junto ao grande rio – sempre há duas árvores grandes na margem do rio – eu sempre gosto
de derrubar uma árvore grande – eu quero jogar uma árvore grande no rio para ela fazer
uma corredeira.
Kwasiarí:
1. O jacaré não permite bater timbó na água para matar os peixes.
2. Eu queria matar um pássaro pequeno, mas ele nunca se sentava numa árvore,
e assim não pude fazê-lo.
Temeoni:
1. Eu queria matar rãs, mas eu não posso fazê-lo, as rãs não se deixam matar, as
flechas pequenas não acertavam.
2. Eu chamei o anya para dançar com ele, mas o anya não veio, ele não veio.
3. O gavião faz um ninho para botar seus ovos, depois sai um filhote que fica
grande.
4. Eu matei um macaco e olhei a sua boca, ele tinha comido jenipapo, o macaco
estava dormindo.
5. Eu sou o dono do caminho, pois eu fiz o caminho. Sempre sou eu quem faz
o caminho, eu construí o caminho na margem do rio.

8. Mitos e narrações
Mitos e narrações sempre são escutados com a máxima atenção pelos homens
presentes. Quando eram recitados por Temeoni, apresentavam caráter nitidamente di-
dático. O estilo de recitação característico já foi mencionado à página 189, outra par-
ticularidade era evitar a menção explícita dos nomes das pessoas míticas, através de
diferentes perífrases. Daí a dificuldade de descobrir, na tradução, os ciclos interde-
pendentes. Como o narrador nunca podia ser interrompido, eu dependia das narra-
ções de segunda mão ou de traduções de gravações, para preencher as lacunas. E
meus informantes não tomavam em consideração o tempo gramatical usado, nem fazi-
am distinção, por exemplo, entre singular e plural, ou entre homem e ser humano. Estas
eram apenas algumas das dificuldades. Esforcei-me por apresentar todas as variantes in-

218 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


distintamente e dar atenção também às narrativas de Ipepuri que, na minha opinião, sofre-
ram influências dos mitos dos Kamayurá e de diversas representações dos brasileiros da
região de Cuiabá.
A primeira das variantes dos mitos e narrativas (a-d, ka, kd-kh, h) foi contada por
Temeoni, gravada e traduzida para o português por Piaka. Todas as outras versões são
narrações repetidas por outros em português ou então contadas em diversas ocasiões. A
terceira versão do mito c e fd foi contada por Ipepuri na sua maloca do Xingu, e as restan-
tes nas três aldeias do Rio dos Peixes.
Se nas narrativas de Temeoni algumas vezes aparecem expressões como “teu” ou
“a vocês”, elas se referem aos civilizados ou, então, a mim mesmo.
a) Maimairi rouba o fogo
(narrado por Temeoni em 26 de agosto de 1966, gravação traduzida por Piaka
em 28/08/1966)
Antigamente não havia fogo. A gente comia os peixes colocando-os sobre pedras
ao sol, e também mandioca torrava-se assim. Naquele tempo um homem, cujo nome era
Maimairi, lembrou-se que o urubu possuía o fogo. Ele foi no mato, deitou-se e untou todo
o seu corpo com cupins. Primeiro vieram moscas e depois (veio) um urubu, que espiou
aquele corpo e voltou para buscar companheiros. Um urubu branco (urubutinga?) veio em
seguida e pensou que era uma baía ressecada. Aí o homem correu para dar notícia aos
companheiros, voltou e deitou-se novamente. Bem ao meio-dia, voltou o urubu, fazendo
“pa:a:x”. Quando o homem ouviu isso, virou-se com o nariz para baixo e as costas para
cima e não se mexeu mais. Os urubus chegaram e trouxeram lenha seca e sempre iam
buscar mais, até que terminaram. Depois fizeram fogo. O homem pegou o fogo com a mão.
O urubu foi interrompido ao querer comer a costela e disse à sua mulher: “a:x”. O homem
correu e correu com o fogo e se foi. Mas os urubus todos voaram e foram embora. Então
o homem se banhou e encostou o fogo no pé do urucu, juntou lenha, arrumou-a e houve
uma grande fogueira. Ele foi buscar o tronco do pé do urucu para secá-lo ao sol, mexeu os
dois paus (ignígenos), saltou uma faísca que acendeu o fogo. Ele deu notícia aos vizinhos, e
eles vieram buscar o fogo. Ele lhes mostrou o pé de urucu e disse: “Isso é fogo”. Depois
foram para muito longe para buscar outras pessoas, pois agora havia fogo.Se o urubu não
tivesse o fogo, os seres humanos teriam de comer tudo cru, mas agora se pode comer tudo
com fogo. O urubu passou a procurar o fogo dele por toda parte e encontrou-se com o
homem no mato. Este transformou-se num pica-pau. Então ele disse: “Que pena, por que
não trouxe as minhas flechas para te matar?”. O homem, porém, juntou toda a gente e
distribuiu o fogo. As pessoas perguntaram: “Onde você encontrou o fogo?”. Ele respon-

Crença e religião 219


deu: “Era o fogo do urubu”. Distribuíram o fogo, depois o soltaram. O urubu ficou sem
nada e teve de comer tudo cru, e o faz até o dia de hoje. Mas este fogo já acabou. Agora
tem teu fogo: fósforos.
(Moanyan narra em 7 de fevereiro de 1966)
Antigamente não havia fogo. A gente só punha carne e peixe e mandioca ao sol
para secar, depois comia. Mas o urubu tinha fogo e só comia sua presa assada. Um Kaiabi
deitou-se no chão, colocou a mão na cara e ficou quietinho. Vieram as térmitas, cobriram-
no inteirinho e depois chamaram o urubu. Ele veio, juntou lenha e acendeu fogo à volta. Na
hora em que queria assar o homem, ele rapidamente apanhou o fogo e fugiu. Desde então
o urubu come tudo cru, mas os Kaiabi têm o fogo.
b) Origem das plantas cultivadas
(narrado por Temeoni em 26 de agosto de 1966, traduzido por Pia´ka em 28 de
agosto de 1966)
Primeiro não havia nada. Mais tarde vieram mandioca, amendoim, inhame, feijão.
Então os é´ii (seres-dema) que morreram faz muito tempo, nos mostraram o caroço do
coco inajá. Plantaram palmeira inajá e tucum, para ver se chegavam a carregar frutos.
Então um homem se lembrou de fazer um roçado. Abriu uma roça grande, grande. A moça
falou: “Que pena, que vamos plantar? Não há nada”. Então pegaram uma mulher e leva-
ram-na para a roça. Lá a queimaram e ela ficou estirada no chão. Os dentes viraram milho;
os pés, mandioca; o coração, inhame. Eles mandaram recado aos filhos dela para que
ficassem no mato e lhes disseram: “Se vier o papagaio, não vão atrás dele. Mas quando ele
vier pela segunda vez, o milho já terá grãos para se comer, então vocês podem vir”. Mais
tarde eles, os filhos, voltaram à roça. Aí havia milho, mandioca, amendoim, inhame e feijão.
Por isto agora comemos estas coisas. Naquele tempo as coisas de vocês não existiam.
Depois vieram machado de pedra e facas de pedra. Agora há facas de ferro e as nossas
facas de pedra eles deixaram inteiramente.
(Tapa narra em 14 de fevereiro de 1966)
Antes não havia milho, nem mandioca, nem roça. Somente da mãe queimada se
originou tudo isso. Milhos são os dentes, as outras coisas de outras partes, mas eu não
sei.
(Mairer‰ narra em 16 de setembro de 1966)
Panyéavi mandou seus dois filhos fazerem uma grande roça. Então, a mãe deles foi
até o meio da roça e disse: “Agora me queimem!”. E eles a queimaram. Aí todo o seu
corpo transformou-se em gêneros alimentícios. O ai’a dela foi para o iwak.

220 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


(Timaka´i narra em 28 de julho de 1966)
Da mãe morta se originaram: mandioca brava, dos dentes; amendoim, dos miolos;
cará preto, dos cotovelos; pé da mandioca, das mãos; mandioca doce, do antebraço; cará
branco, do queixo; taiá, dos cabelos; feijão, do sexo; e mangarito, dos dedos do pé.
c) Tuyararé
(narrado por Temeoni em 26 de agosto de 1966, gravação traduzida por Pia´ka
em 29 de agosto de 1966)
c.a.) Tuyararé entre os Munduruku
O homem começou a casar. Primeiro ele não tinha mulher, mas depois apareceu
uma mulher parecida com uma lagarta e ela se deitou na rede dele durante a noite. A lagarta
deitou-se no peito dele durante a noite e, apenas começou a clarear, ela saiu da rede e ficou
deitada no chão num montinho de cisco. Quando o homem foi ao mato para caçar, disse
para a mãe: “Não toque no montinho de cisco debaixo da minha rede, não o jogue fora,
deixe como está”. Mas a mãe não percebeu nada.
Um dia o homem foi caçar. A mãe falou: “Por que será que o meu filho não me
deixa jogar fora esse montinho de cisco debaixo de sua rede? É muito feio”. Então, a mãe
agarrou com a mão a lagarta, puxou-a para fora e exclamou: “Mas que lagarta grande!
Então é por isso que ele não me deixou mexer com esse cisco”. (E jogou-a fora.). Tuyararé
voltou (percebeu o que acontecera), ficou bravo e disse: “Minha mãe jogou fora o cisco”.
Agora ele só tinha a mãe em casa, estava triste e falou: “Eu vou embora daqui e já”. Ele
pegou sua grande mala feita de entrecasca em que guardava os dentes de macaco e todas
as coisas que lhe pertenciam. Foi longe, mato adentro, encontrou-se com muita gente, até
chegou no panyé dos uira´ip (Munduruku) e a esse ele contou tudo. Estava muito triste e
pensativo.
Então veio o irmão do pai, um homem muito velho, atravessando a terra dos uira´ip,
pegou as coisas de Tuyararé e as levou mais para a frente, voltou e levou também o resto.
Ele não se demorou no meio deles e disse a Tuyararé: “Não pare no meio deles”. Tuyararé
foi-se e encontrou uma mulher que estava na entrada de um rancho preparando farinha de
mandioca. Ao lado estava armada uma pequena rede. Ela falou para ele: “Pode chegar”.
Tuyararé respondeu: “Não! Eu não vou aí!”. E ficou parado ao lado da rede. Depois disse
para a mulher: “Agora vou contar uma coisa para você”. Muita gente dos uira´ip o rodea-
va, escutando o que ele contava; como se cria o passarinho, o papagaio e a arara. Depois
ele cantou e perguntou: “Quem é que canta assim?”. E ele disse: “O tucano”. E depois:
“Isso é um macaco”. Então a mulher pegou uma pena de gavião e com ela experimentou
um pouco de farinha de mandioca. Em seguida o chefe de família disse: “Agora podemos

Crença e religião 221


matá-lo para comê-lo, pois a farinha já está pronta”. Ao ouvir isto, ele olhou para trás e de
repente desatou a correr e toda a gente atrás dele, mas ele escapou e se escondeu mais em
frente. O chefe dos uira´ip disse: “Pena, ele escapou! Já vamos dar um jeito”. E disse a
toda a sua gente: “Vamos procurá-lo no mato”. Queriam levar todos os filhos e filhas, mas
ele falou: “Só os meninos vão, as filhas ficam, pois ele está procurando mulher. As mulheres
fiquem deitadas na rede, sem fazer barulho”.
Tuyararé realmente voltou, carregando a sua mala de embira nas costas. Na
abertura da porta parou e tirou a mala. Disse: “Toma, mãe”, deu-lhe uma pena e se
acocorou. A mãe disse: “De qual menina você gosta mais?”. Tuyararé respondeu: “Que-
ro essa”. Ele casou e deitou-se com ela na rede. Ele era muito pobre, sua rede arre-
bentou em pedaços, mas ele trouxe uma coruja e mais outros animais, porque estava
casando.
Bem cedo eles acordaram e Tuyararé levou a mulher consigo ao rio para buscar
água. Então ela disse: “Isto é uma coruja”. Ela voltou e mostrou a Tuyararé uma pena de
gavião. Mas Tuyararé explicou: “Esta só come grilos, ela não é perigosa para as pessoas”.
Ele lhe mostrou a pena do gavião e da coruja, que não tem penas grandes. A mulher foi
falar com sua mãe e lhe contou tudo: “Meu marido diz que esta aqui é uma pena de coruja
e esta grande é uma de gavião”.
Tuyararé levou sua mulher ao mato, à caçada. A mulher tinha muito medo, assusta-
va-se com os macacos e a arara, porque ela não conhecia o mato e nunca tinha penetrado
nele. Quando chegaram à floresta, o macaco gritou e ela ficou com medo e voltou correndo
para casa, onde contou tudo. Então os seus parentes queriam matar Tuyararé e comê-lo.
Então Tuyararé disse: “Ora, minha mulher foi embora!” Então ele matou um macaco para
mostrar que se podia comê-lo, porque os uira´ip não conheciam nada disto. Ele levou um
filhote e a cabeça de um macaco. Quando chegou, disse que era a cabeça de um inimigo,
mostrou-a e também um colar de dentes e contou tudo.
De outra vez, Tuyararé levou a mulher para caçar e mostrou-lhe tudo, também o
´inimigo´, dizendo que era igual a seres humanos. “Isto são dentes de macaco”, disse,
abrindo a mala de entrecasca. Depois disse: “Isto é um jacu, só os velhos o comem, gente
nova não”.
Outra vez, todo mundo saiu a caçar. Ele lhes mostrou tudo, tudo mesmo. En-
tão eles disseram: “Agora queremos comer carne de ´inimigos´”. E Tuyararé mostrou-
lhes o jacu, explicando: “A gente precisa preparar o jacu e a jacutinga e o macaco sepa-
radamente”. E ele mostrou sua mala de entrecasca a toda gente e à irmã de sua mulher. Então
sua mulher cozinhou tudo, preparou uma sopa de carne do macaco e farinha de mandioca. E
Tuyararé explicou a todas as mulheres como fazer, até que entenderam. Depois de esfriar, os

222 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


velhos comeram a sopa de jacutinga e os mais novos a sopa de carne de macaco. Falou para
eles: “Por que vocês misturam jacutinga e macaco?”.
Mais tarde tiveram um filho, Awatat. Eles abriram uma roça e plantaram muito
milho. A mulher pegou o cesto e foi à roça para buscar milho. Awatat ficou em casa, mas
depois foi à roça, onde viu o cesto. Awatat viu seu pai com sua mãe deitados no chão e
ficou muito bravo, decepou um braço da mãe, levou-o para casa, colocou em cima da mala
de entrecasca e o sangue corria e gotejava no chão. Quando a avó estava fazendo limpeza
no rancho, viu o sangue gotejando e disse: “Sangue está gotejando no chão”. Aí Awatat
contou como tinha matado a filha dela: “Eu vi como ela estava deitada com meu pai no chão
e por isso a matei”. Em seguida, Awatat quebrou todos os ossos de sua mãe e Tuyararé
pensou em mudar-se novamente e disse para as pessoas que ia embora.
Tuyararé ainda tinha uma menina e queria levá-la e disse para ela: “Você caminha
atrás de mim”. (E foram). A mãe de Tuyararé já estava com saudades de seu filho. O filho
fazia gente. A gente aumentou e aumentou. Os parentes de Tuyararé queriam vê-lo. Eles
vieram, viram a grande roça e pensaram tratar-se de muita gente, mas era apenas Tuyararé
com seus filhos. Tuyararé disse: “Está bem”.
“Você ainda está vivo”, disseram eles e Tuyararé lhes contou uma história. Eles
voltaram e juntaram toda a gente. A outra família queria que Tuyararé casasse com
uma mulher, mas ele disse: “Não quero”. Então eles queriam fazer guerra, juntou-se
muita gente e logo foram ter com ele.
A gente de Tuyararé perguntou-lhe se por ali havia um bicho que andava de
noite. Ele disse: “Aqui não há bicho que faça barulho com o bico, só o tucano”. Ao
clarear, o tucano fez “parara”. Ele foi procurá-lo e o trouxe. As pessoas perguntaram:
“Há (ainda) um bicho aqui que faça barulho durante a noite?”. E Tuyararé disse: “Não há”.
Assim, foram buscar cipó, trouxeram, voltaram e foram buscar mais outros e fizeram baru-
lho com isto. Então Tuyararé perguntou: “Há algum bicho por aqui que anda durante a noite
fora de casa?” As pessoas falaram: “Sim, na roça, lá ele estragou o nosso amendoim”.
Então Tuyararé perguntou: “Há algum bicho lá fora que sujou o rio?” As pessoas disseram
que sim. Aí Tuyararé foi com sua mulher ao rio para olhá-lo. Então ele lhes fez a pergunta
mais uma vez e disse: “Certo, há, mas é o sapo”. Depois procurou o sapo para mostrá-lo
e disse: “Esse aí não é de carne”. Tuyararé continuou a perguntar: “Por aqui há muita
fumaça?” As pessoas disseram: “Sim, muita fumaça”. (Assim ele ficou sabendo que havia
inimigos ali). Em seguida procuraram madeira para construir uma casa. Reuniram as pesso-
as, levantaram os esteios e fizeram uma casa, bastante perto do rio, ficaram juntos e não
mais se esparramaram pela mata. Os outros fizeram guerra e assim observaram o rio, ele
levava muita espuma. Então eles (os inimigos) atracaram e pensaram que Tuyararé estives-

Crença e religião 223


se sozinho. Era muita gente. Tuyararé foi ter com eles e os saudou. Mas seu pessoal estava
com medo. Só a sua mulher foi banhar-se no rio. Os inimigos pensaram que Tuyararé
estivesse sozinho, mas seus homens estavam escondidos e agora vieram trazer-lhe ajuda,
espalhando (os inimigos) pelo mundo todo. Estes foram recebidos por seus amigos e deste
modo ficaram espalhados (Munduruku).
(Tapa narra a 7 de agosto de 1966)
Primeiro nós não existíamos, só Tuyararé e sua mãe. A mãe dele fez a primeira
peneira. Tuyararé tinha uma mulher, uwuiwara´ik; durante o dia ela ficava escondida em-
baixo de um feixe de taquarinha e parecia uma lagarta. Durante a noite, porém, ela deitava-
se na rede de Tuyararé como mulher. Quando Tuyararé foi caçar no mato, sua mãe pegou
o feixe de taquarinha com a lagarta e o jogou no mato. Quando Tuyararé voltou, já não
tinha mais mulher. Então foi procurar outra mulher. Ele foi muito longe, até os yimamik
(Aripaktsá), ali encontrou uma e casou com ela. Ela gerou duas crianças, primeiro uma meni-
na, depois um menino. Um dia, a mulher foi à roça para buscar milho e aí vieram os parentes
dela. Tuyararé foi atrás dela e a encontrou deitada com outro homem. Tuyararé matou a mu-
lher, cortou-lhe um braço, colocou-o sobre uma folha de pacova e em cima de sua mala de
entrecasca. Ele foi para casa. Quando o sangue gotejava no chão, ele disse: “Limpe isto!”
A velha perguntou: “Que é isto?” Tuyararé respondeu: “Matei a tua filha”. Então o irmão da
mulher e a mãe dela foram embora muito bravos. Ele reuniu todas as pessoas, todos os
animais e construiu uma grande casa. Quando o pai da mulher chegou, ele quis matar
Tuyararé. Mas não foi capaz, porque eles eram muitos. Então Tuyararé o matou.
c.b.) Tuyararé e os seres vivos
(narrado por Tapa a 7 de agosto de 1966)
Tuyararé tinha uma grande panela com água borbulhando, mas ela não fervia. Tuyararé
falou para todos: “Entrem na água, vão ficar com um corpo bom”. Mas as pessoas não
queriam. Somente a cobra, a aranha e a barata entraram na água. Elas saem de dentro de
si, não morrem. Só nós morremos.
c.c.) Tuyararé cria os seres humanos
(narrado por Ipepuri a 20 de outubro de 1966)
(Logo depois de sua peregrinação, Tuyararé se vê obrigado a criar seres humanos
para defender-se dos parentes da mulher que o perseguem).
Primeiro ele cria os Kaiabi de caroços de tucum; por isso eles usam cintos deste
material. E o primeiro deles é o cacique Tivaupan e outros poucos, explicando-lhes como
poderiam construir rapidamente uma casa; ele e seu filho lhes mostram tudo.

224 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Antes o seu nome era Meau´oo, e só após haver criado os Kaiabi e ter-se casado
passou a chamar-se Tuyararé. Mais tarde, quando foi para o iwak, ele se chamava Mauvotsini,
tal como os Kamayurá ainda o chamam hoje. (Mavutsiné, segundo Oberg 1953:49). De-
pois Tuyararé criou do carvão os Apiaká; de cacos de cerâmica, os Bakairi e os Waurá; da
cambaúva; os Kamayurá; de rãs, os Juruna; da tocandira, os Kayapó; depois os Trumai,
Txikão e Karajá. Isso aconteceu no Alto Xingu, lá onde eles foram criados. Então Tuyararé
convidou as tribos para defendê-lo dos inimigos. Os mais bravos são os Kayapó, mas os
Kaiabi não acompanham, porque não querem lutar. Os Apiaká sim, estes têm vontade,
eles gostam de luta. Depois de tudo isso, Tuyararé estava cansado e disse que estava com
vontade de ir embora e deixá-los sozinhos. Aí todos ficaram tristes. Ainda queria casar o
seu filho e deixá-lo aqui, mas ninguém queria casar com ele e, assim, o pai o levou consigo.
Tivaupan pediu-lhe, antes, mais Kaiabi, e sob a orientação de Tuyararé, ele criou novos,
até serem bastante. Antes de ir-se, ele repartiu suas festas.
O Yavari ele deu primeiro aos Kaiabi, mas estes não queriam e o passaram aos
Trumai. E aos Trumai deu o Yawotsi que o deram em troca aos Kaiabi. O propulsor de
lanças era inicialmente dos Kaiabi, mas ele não vale nada, e deram-no aos Kamayurá e
também aos outros (cfr. Galvão 1956:335). Primeiro todos tinham a arara de várias cores,
mais tarde muitas araras vieram junto dos Kaiabi e agora os outros não têm mais nenhuma.
Em seguida, Tuyararé prometeu-lhes uma flauta particularmente bonita, mas proibi-
da para as mulheres. Como as mulheres das diversas tribos fossem lá para olhar, mataram-
nas. Aí todos ficaram muito tristes e disseram: “Nós não queremos a flauta, se nossas
mulheres com isso morrem. Ela é perigosa demais”. E assim os Trumai foram os primeiros
a ter a flauta (yakui).
Disse então Tuyararé: “Vocês não podem ficar todos juntos aqui, pois certamente
todos vão brigar e todos morrerão. Espalhem-se”. Mandou os Kaiabi e os Apiaká para o
Paranatinga, os Juruna para o rio Xingu abaixo, os Karajá para outro rio. Somente os
Kamayurá ficaram lá mesmo onde foram criados.
Então eles moravam todos juntos na cabeceira do rio Novo (Paranatinga) e ali
existia uma grande lagoa, que não era funda. Lá as crianças Kaiabi costumavam brincar
com a água e a sujavam. Os moradores do rio abaixo tinham que beber água suja. Por isso
os Beiço-de-Pau ficaram bravos e mataram o pequeno filho de Mãipi. O pai foi ter com o
cacique dos Beiços e explicou-lhe que ninguém gosta de beber água suja, mas que as
crianças são assim mesmo. Por que matara o menino? Que fossem embora para outro
lugar. O cacique mandou matar o homem, a mulher dele e o tio. Depois, os Beiços mataram
uma velha Kaiabi que ia à roça. Assim começou a briga e os Beiços mudaram-se e, no
caminho, os Kaiabi ainda mataram alguns Beiços para aborrecê-los.

Crença e religião 225


Também com os Apiaká tiveram briga. Os Kaiabi descobriram um periquito no
campo, a alguns dias de viagem da maloca. O Kaiabi disse ao Apiaká: “Vá lá buscá-lo e dê
para mim”. O Apiaká disse: “Não, vai você, porque eu sou mais velho”. Assim começaram
a brigar e depois disso os Apiaká foram-se embora e, mais tarde, os Kaiabi mataram
quase todos eles. Os Kaiabi só não brigam com os Bakairi.
Tuyararé foi embora e os Kaiabi tinham saudades dele. Fizeram uma escada de
galhos e subiram até onde ele estava. Ele ficou muito alegre e disse: “Vocês pensam sempre
em mim e se lembram de mim”. E para enganá-los disse: “Venham outra vez”. Mas ele
mudou-se para muito mais alto. De outra vez queriam subir novamente, viram que já não
era possível e ficaram muito tristes. Tuyararé derrubou a escada e a transformou em flores-
ta. Assim os Kaiabi ficaram na sua aldeia e já eram muito numerosos. Então Tuyararé disse
a Tivaupan: “Logo vai chover, tanto tempo, até tudo afundar na água. Muda-te mais para
cima, para o campo”. Mas os outros não queriam e só poucos se mudaram. Aí choveu,
choveu e tudo se encheu de água e não havia mais fogo. Quando a chuva parou e a água
baixou, mandaram um passarinho para ver se a aldeia ainda estava lá. Ele cantava e canta-
va até que a água baixou, voltando em seguida. Então mandaram Moravó para ver se os
homens ainda viviam. Moravó foi e encontrou todos mortos, já podres. Ele pegou uma
perna e a comeu, voltou e narrou tudo. Tuyararé disse: “Eu não te mandei para comer carne
podre. Pois bem, agora só vais comer isto”. Tuyararé tirou-lhe os braços e a boca e assim
Moravó transformou-se no urubu. Depois mandaram Tamewa para procurar fogo. Ele foi,
cavou, cavou, mas só encontrou cinza. Passou-a por todo o corpo e voltou. Por isso ele
agora é um kuyara (jacarezinho) e as pessoas tinham de comer só carne crua. Mais tarde
Maimairi roubou o fogo e a velha foi morta.
Capitão Sabino (Yawat) contou a Dornstauder em 1954 (segundo Dornstauder
MSb): “Dizem que aqui (no Paranatinga) não havia gente, só o rio. Os Apiaká e Bakairi
estavam junto conosco. Vieram conosco do Coluene. Eles vieram do litoral, mas encontra-
ram só o rio, não havia outros índios aqui”.
d) Yurupanye (Yurun)
(narrado por Temeoni em 26 de agosto de 1966; gravação traduzida por Piaká
em 30 de agosto de 1966)
Yurupanye era um homem com cabelos compridos na cabeça, que chegavam até o
chão. Então seus cabelos queimaram e também a barriga pegou fogo e queimava. Quando
escutou o barulho do fogo – u´:x – pensou que o Paranatinga tivesse pegado fogo. Então
sua cabeça pegou fogo e ele percebeu que eram os seus cabelos que estavam queimando
e saiu correndo ligeiro.

226 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Também seu filho tinha cabelos compridos como ele e também seus três netos, que
se chamavam Yurupanye, Manoém e Tariakato. Um deles era muito bravo e meio sem
juízo, ele sempre estava correndo diante do rancho. O outro sempre estava deitado na
rede e o terceiro devia ser tatuado. Assim, os três meninos foram ter com outros três, para
irem juntos aos ritos de iniciação e encontrar-se com as pessoas. Mas um de seus netos
matou um dos três meninos. Eles o deitaram na rede, para escondê-lo. Mas o espírito
auxiliar de Piriravi estava deitado embaixo da rede e escutou tudo. O pai do menino
esperou, esperou, e como o filho não vinha, foi atrás dele, encontrou os três irmãos e
perguntou: “Que estão fazendo aqui?” Eles responderam: “Estamos doentes, mas teu
filho foi buscar lenha para fazer fogo e assar uma cotia e nisto encontrou anya ?”. Mas
Piriravi já tinha contado ao pai que os três meninos tinham matado o filho dele e ele olhou
na rede e viu seu filho ali deitado, cheio de urucum e jenipapo. Então o pai foi embora
dizendo a Piriravi que ia à casa dos três filhos para mostrar-lhes com a borduna o que
pretendia fazer com eles.
Piriravi tomou o menino morto e o amarrou firmemente com uma corda, cortou-
lhe os cabelos e os moeu bem fino no pilão. Tudo pronto, saiu remando na canoa e
logo encontrou Yurun com o pessoal dele. Estes se puseram diante de Yurun, para que
Piriravi não o pudesse ver, porque ele queria matar Yurun e comê-lo. Mas Piriravi matou
muitos e Yurun, vendo que sua gente diminuía cada vez mais, chorou muito. Por fim, sobrou
só ele, e também foi morto por Piriravi, que o queimou com a sua gente, sua casa e todo
o resto. E é por isso que os Apiaká se fazem de pretos, exatamente como Yurun, e os
netos também se tatuavam; pois Piriravi matou Yurun, e agora deve-se fazer o mesmo que
ele.
Yurunoo é aquele que fez os Apiaká, como Tuyararé fez os Kaiabi. Ele matou muita
gente.
e) Õi w† , a senhora dos animais
(Tapa narra, de acordo com Temeoni, em 6 de agosto de 1966)
Õi w† (mulher velha) era a dona de todos os animais, também da onça. Um dia a
onça lhe trouxe na boca um menino morto. Ela ficou muito brava e matou a onça, porque
ela não devia fazer isso. Õi w† disse ao papagaio: “Vai ter com meu irmão, vai buscar meu
filho e diz que matei a onça”. O papagaio voou para lá, sentou na rede dele e disse:
“Yawarawé, yawarawé, a Õi w† matou a onça”. Todos os animais, todos mesmo, vieram
e tingiram-se de vermelho com o sangue e de branco com os miolos da onça. Somente o
filho pequeno da onça ficou com a velha. Quando cresceu, tornou-se muito bravo, procu-
rava crianças e as comia.

Crença e religião 227


f) Panyeavi
f.a.) Panyeavi criou os macacos
(narrado por Tapa, de acordo com Temeoni, em 6 de agosto de 1966)
Primeiro aémunyanat (aémunya ara a) foi à roça e viu que os homens, iguais aos
macacos, comiam milho verde. Ele veio e todos treparam nas árvores. Ele atirou em mui-
tos, matou dois, mas eles não estavam bem mortos. Um dos macacos pegou a flecha com
a boca e a trincou com os dentes. Panyeavi disse: “Você quebrou a flecha, está feito”.
Todos os outros fugiram. Agora são somente macacos.
(Mairer‰ narra, segundo Temeoni, em 16 de setembro de 1966)
Antigamente não havia macacos. Assim Panyeavi transformou seres humanos em
macacos.
Panyeavi foi à roça buscar milho para fazer chicha. Então viu que nossos velhos
antepassados estavam acendendo o fogo para torrar milho, e estavam descascando as
espigas. Ele ficou com muita vontade. Ele também quis comer milho e disse: “Agora vou
transformá-los em macacos e comer milho”. E assim mudou nossos velhos antepassados
em macacos. Pegou arco e flecha e matou muitos macacos. Mas um macaco pegou a
flecha com os dentes e a trincou. Panyeavi disse: “Você quebrou a minha flecha, assim há
de ser”. E, assim, todos os macacos mordem a flecha quando a gente atira neles.
f.b.) Panyeavi criou o jaú
(Mairer‰ narra, segundo Temeoni, em 16 de setembro de 1966)
Panyeavi deitou sobre o rio um tronco liso, para servir de pinguela. Depois foi
andando e encontrou a mulher anya . Lá ele ficou até de tarde, e a mulher lhe disse que se
deitasse na rede com ela. E ele se deitou com ela e poeira caiu sobre a rede. A mulher
estava sentada. Quando veio o marido dela, a mulher mentiu para ele, dizendo que Panyeavi
estava doente. E o anya foi lá e começou a tratá-lo, gritando muito. Então Panyeavi
disse: “Eu comi e dormi bem na sua casa, eu não estava doente e menti para você”.
Então anya quis dar cabo dele. Mas Panyeavi fugiu e o anya correu atrás dele, por cima
do tronco da pinguela, e o anya caiu na água. Então disse Panyeavi: “Agora você fica
sendo um peixe, o jaú”. O anya transformou-se num jaú e um pedaço da sua borduna
num peixe agulha.
f.c.) Panyeavi criou os veados
(Mairer‰ conta, segundo Temeoni, em 16 de setembro de 1966)
No começo, o veado era como gente e trabalhava na roça. Estava roçando o mato
quando veio Panyeavi e disse: “Está roçando aqui?”. O veado disse: “Estou roçando”.

228 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Então Panyeavi jogou-lhe uma coisa miúda no olho. O veado disse: “Caiu-me alguma coisa
no olho”. Panyeavi abriu-lhe o olho bem largo e o transformou num veado. Agora é um
veado.
f.d.) Panyeavi criou o jacaré
(Ipepuri conta em 19 de outubro de 1966)
O filho de Panyeavi chamava-se antigamente Puri´un, porque era todo preto. A sua
noiva não quis casar com ele, porque não era bonito. Então ele foi ter com o pai e pediu-lhe
que o fizesse branco. O pai falou: “Isto é com a minha mulher. Fique você aqui, eu vou
pescar”. E foi pescar. A mulher dele sentou-se diante de Puri´un com as pernas abertas e
ele agüentou. Quando voltou o pai, ele trouxe peixe, deu-os a Puri´un para comer e ele
ficou um pouco mais claro.
No dia seguinte foi pescar outra vez. Puri´un agüentou e clareou mais. E no terceiro
dia, outra vez; aí ficou claro. E agora seu nome é Piri´u´i.
O jacaré queria ficar claro e disse: “Eu também quero ser claro!” Então Panyeavi
fez o mesmo, mas o jacaré não agüentou e tomou a mulher. Panyeavi pegou outros peixes,
sabendo, assim, que ele não tinha agüentado. Voltou, esticou o pênis do jacaré e depois
também a boca. E assim ele virou jacaré.
g) Como se originou a coruja
(Mairer‰ narra, segundo Temeoni, em 16 de setembro de 1966)
Havia antigamente uma mulher, cujo marido foi morto. O ai’a dele voltou e sua
mulher o esperava. O homem queria deitar com ela, mas a mulher ficou com medo e disse
não. Então ele disse: “Agora vou virar coruja”. A mulher não o queria e por isso ele virou
coruja.
h) Por que os homens morrem
(Mairer‰ narra, segundo Temeoni, em 16 de setembro de 1966)
Antigamente morreu um homem, deixando sua mulher com uma pequena criança.
Ela o enterrou. O homem voltou e deitou-se com sua mulher. O filho dele mandou-o ao
mato buscar coquinho de tucum. Aí o pai subiu na palmeira, caiu e morreu, nunca mais
voltou. Assim, os homens não podem mais viver, uma vez que morreram.
i) Por que os ombros são pretos
(Mairer‰ narra, segundo Temeoni, em 16 de setembro de 1966)
Antigamente o sol queimava muito. Naquele tempo colhiam cará, amendoim e plan-
tavam tanto milho, que os ombros ficaram todos pretos.

Crença e religião 229


j) Árvore cósmica
(Mairer‰ narra, segundo Temeoni, em 16 de setembro de 1966)
Antigamente existia uma árvore muito grande, ka´asirip, que agora está no iwak.
Todas as pessoas que morrem vão morar lá e descansar sobre seus galhos.
l) Panyeavi e os gêmeos
(narrado por Temeoni em 29 de agosto de 1966; gravação traduzida por Pia´ká
em 11 de setembro de 1966)
A lua é um xamã, ela não é como nós. E seu pai é Panyeavi. Panyeavi tinha uma
mulher e ela teve filhos ao mesmo tempo. O primeiro era Muitawit e o segundo Yai
(Lua). Mas ele era louco e matou a mãe quando saiu de sua barriga, e então o pai o jogou
fora. Depois ele enterrou a sua mulher. A lua tem o nome de Mé, porque ela mente.
(Tapa narra em 14 de novembro de 1966)
Panyeavi fez tudo. Ele juntou os Kaiabi, que eram como bichos no mato. Os pri-
meiros seres humanos eram um irmão e uma irmã que casaram por ordem do pai. Panyeavi
juntou carvão e com ele fez gente. Por isso os primeiros Kaiabi eram todos pretos, como
“civilizados” (negros!).
m) Mé, a Lua
m.a) Mé como peixe
(Tapa narra, segundo Temeoni, em 6 de agosto de 1966)
No rio havia uma grande nassa. O pai se transformou e quando a mulher do homem
veio ao rio buscar água, viu um peixe enorme dentro da nassa. Aí ela chamou os homens
e eles atiraram no peixe até ele ficar eriçado de flechas. Mas ele havia se enrolado em
casca de árvore e logo que obteve flechas suficientes, nadou para longe, levando todas
as flechas.
Em casa, Muitawit lhe perguntou: “Onde arrumou tantas flechas?”. E o pai explicou:
“Toma bastante casca macia de árvore e entrecasca, embrulha-te com elas e quando al-
guém quiser pegar-te pelo rabo, sai nadando”. Quando um ser humano chegou ao rio,
havia outra vez um peixe na nassa. Ele atirou no peixe, e quando este virou de barriga para
cima, queria pegá-lo pelo rabo, mas aí o peixe de repente fugiu nadando. Muitawit chegou
em casa com muitas flechas. Seu irmão Mé também queria flechas, mas não tinha prestado
atenção e perguntou ao irmão. Este disse: “Você não sabe”. E Mé foi só com duas cascas
de árvore. Quando chegou à nassa, os homens estavam esperando. Atiraram nele, pega-
ram-no e o levaram para casa, onde o comeram. Panyeavi esperou, esperou. Mé não veio.
Então o irmão disse: “Os homens comeram Mé”. O pai disse: “Eu vou olhar”. Foi, encon-

230 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


trou uma criança e perguntou: “Meu filho mais novo veio para cá. Você o viu?”. “Eu só
comi carne de peixe”, falou a criança. O pai: “Sim, essa era carne dele”. Aí veio a barata,
ela tinha comido uma pequena espinha. O pai tomou-a e, com o moan, fez dela outra vez
Mé. Depois disse-lhe: “Não vá mais embora, meu filho”.
m.b.) Mé e o porco-do-mato
(Tapa conta, segundo Temeoni, em 6 de agosto de 1966)
O pai foi caçar porco. Ele procurou galhos e fez com eles uma armação, depois
soprou no trompete transversal e assim chamou o porco. Este era muito bravo e já tinha
matado muitos. No chão não se podia matá-lo: só de cima. Ele veio e o pai matou-o. Em
casa, Muitawit perguntou ao pai (recebeu instruções), foi ao mato e matou muitos porcos.
Mé queria fazer o mesmo. Ele foi ao mato, fez uma armação de folhas de pacova, que os
porcos gostam de comer, e quando eles vieram, caíram em cima dele e o devoraram. O pai
esperou e Mé não veio. E assim o pai foi no mato e viu que o porco havia comido Mé. Só
numa folha de pacova ainda havia traços de sangue. Ele tomou um moan, deitou nele o
sangue e Mé surgiu novamente. Então o pai falou a Mé: “Você foi comido outra vez. Não
saia mais daqui”.
m.c.) Mé e a nassa
(narrada por Temeoni em 29 de agosto de 1966; gravação traduzida por Pia´ká
em 11 de setembro de 1966)
O pai foi ao rio e fez uma grande nassa. Pois lá havia muitíssimos peixes e ele trouxe
muitos para casa.
Muitawit também queria muitos peixes e disse ao pai: “Pai, onde está sua nassa?”
Ele disse: “Vá ao rio, remexa a água e traga a sujeira. Em casa ela vai transformar-se em
peixes”. Muitawit foi ao rio e trouxe muitos peixes para casa. Mé também queria pegar
peixes e perguntou ao pai: “Pai, onde está sua nassa?” “Ela está no rio. Faça uma cesta de
carga, vá lá e você poderá trazer os peixes”. Mas Mé disse: “Eu não farei uma cesta de
carga, eu trarei os peixes na mão”. Quando voltou, o pai perguntou: “Você trouxe peixes?”.
Mé disse: “Não há peixes”. E o pai: “Mas os peixes são as folhas, traga-as”.
m.d.) Mé e os macacos
(narrado por Temeoni em 29 de agosto de 1966; gravação traduzida por Pia´ká
em 11 de setembro de 1966)
O pai foi caçar macacos. Ele tomou arco e flecha, foi no mato e assobiou para os
macacos. Aí vieram os macacos. Ele tomou uma flecha e atirou no meio deles e todos os
macacos caíram mortos. Então assobiou para flecha e esta transformou-se em cobra, vol-

Crença e religião 231


tou, e virou novamente flecha. Ele tomou cipó, amarrou os macacos uns aos outros e foi
para a casa. Muitawit perguntou ao pai como conseguir matar tantos macacos. E fez
em seguida assim como o pai. Mé também queria caçar macacos e Muitawit disse:
“Você não deve ter medo de cobra!”. Mé assobiou para a flecha e a cobra veio. Aí ele
ficou com medo e matou-a. Agora é a cascavel e não se pode mais transformá-la em
flecha.
m.e.) Mé e as favas
(narrada por Temeoni em 29 de agosto de 1966; gravação traduzida por Pia´ká
em 11 de setembro de 1966)
Os dois meninos, Mé e Muitawit, foram caçar e levaram as suas flechinhas de
criança. As pessoas disseram: “Como querem caçar com essas flechinhas?”. Mas quando
chegaram à floresta, elas se transformaram em grandes flechas de camaiúva. Andaram
muito tempo na mata e, de repente, escutaram um mutum que fazia “mmm”; mas era o pai
que se transformara em mutum. Eles queriam matá-lo, pegaram um tronco e nadaram
para a outra margem. Pisaram na terra e o mutum falou: “Não me matem, mmm, sou o
pai de vocês”. Ele desceu voando da árvore. Os meninos correram atrás dele e, quan-
do chegaram, ele virou gente outra vez. Aí voltaram, encontraram uma mulher e disse-
ram: “Nós encontramos um mutum, mas ele fugiu. Cozinhe favas para nós”. A mulher
falou: “Vou cozinhar somente cinco favas”. Então Mé disse: “Que pena, tão poucas
favas, então não vamos comer”. Quando as favas ficaram quentes, elas começaram a
crescer na panela e a grande panela ficou cheia de favas. A mulher falou: “Sirvam-se
das favas”. E Mé: “Mas nós dissemos que não comeríamos nenhuma fava, e agora há
tantas!”. Só Muitawit não tinha dito nada. Ele ficou quieto, e assim podia comer. Só Mé
não comeu nada.
m.f.) Mé e o machado
(narrado por Temeoni em 29 de agosto de 1966; gravação traduzida por Pia´ká
em 11 de setembro de 1966)
Eles estavam abrindo uma roça. Panyeavi deixou lá o machado e ele derrubava
sozinho. Ninguém precisava trabalhar. No outro dia Muitawit queria derrubar. Ele pergun-
tou ao pai (recebeu instruções), deixou o machado lá mesmo e ele derrubava por si mes-
mo. No dia seguinte, Mé queria derrubar. Ele perguntou novamente (e recebeu a mesma
informação), mas Muitawit disse: “Mé, deixe disto, você não compreende o que seu pai
diz”. Mas Mé respondeu: “Eu mesmo vou derrubar”. E assim ele trabalhou e derrubou
sozinho. E desde então os homens devem trabalhar mesmo. Antes o machado fazia o
trabalho sozinho.
232 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia
m.g.) Mé como peneira
(narrado por Temeoni em 29 de agosto de 1966; gravação traduzida por Piaká
em 11 de setembro de 1966)
Yurupanye fez uma cesta para proteger-se do sol. Mé chegou e perguntou: “Que
está fazendo aqui?”. Ele respondeu: “Uma cesta contra o sol”. Então Mé disse: “Eu queria
pendurá-la”. E o pai: “Mas pendure-a baixo”. Mas ele foi muito longe e pendurou-a bem
alto, tal como a gente a vê agora (como lua).
(Tapa narra em 12 de junho de 1966)
O pai de Lua mandou-o pendurar uma grande peneira. Ele disse: “Vou pendurá-la
mais alto, mais alto ainda”. E então ele ficou em cima de vez. Todo o céu é uma grande
peneira. E é por isto que chove tão pouco.
n) Tupã
(Yupari´up narra em 4 de setembro de 1966)
Antes era um homem como nós. Ele tocava uma grande flauta, mas a sua mu-
lher não queria saber disso. Então ele quis ir embora. Primeiro desceu para olhar, mas
lá havia muita água suja. Então foi para cima. Ali havia uma roça grande e bonita, e
floresta com passarinhos. Ali ele ficou. E agora toca na sua flauta. Só a mulher ficou
aqui.
o) Origem da menstruação
(Tapa narra em 5 de agosto de 1966)
Antes era do pênis que saía sangue. Então passou perto dele uma menina e ele
falou: “Eu vou colocar o sangue aqui entre as suas pernas. Assim está bom”. E ele passou-
lhe o sangue ali, e agora sangra apenas a mulher e o homem não.
(Yupari´up conta em 11 de setembro de 1966)
Antigamente só os homens tinham fluxo de sangue. A mulher se deitou com Lua.
Ele o trocou com a mulher. Agora ela tem sangue todo mês.
p) Os Kaiabi e os civilizados
(narrado por Temeoni em 30 de agosto de 1966; gravação traduzida por Pia´ká
em 9 de setembro de 1966)
Assim vivíamos. Antigamente todos estavam juntos. Aí faziam taquara, os velhos
ensinavam e o capitão mandava sempre. Havia um homem, Pionõõ, que reunia gente à sua
volta. Depois pegou os ossos das rãs para fazer colares e ensinou aos homens como
deviam viver e fazer tudo. Eles trouxeram então bicos de tucano, que são os narizes dos

Crença e religião 233


homens, para mostrar que existem muitos e muitos seres humanos. Trouxeram tucanos,
para mostrar que existem tantos seres humanos quanto tucanos.
Havia um homem, chamado Iwá´oo, que explicou aos homens como se vive. E um
outro chamava-se Koa´ip. Um conta ao outro, até que morre, e assim continua sempre, um
conta ao outro e nunca acaba. Então já fora morto um civilizado e eles levaram sua cabeça
para fazer Yawotsi. Só procuravam civilizados durante a noite, para matá-los. No mato
houve um barulho como de vento e as rãs fizeram muito barulho. Eu e Témé´at (Cueca)
sabemos tudo sobre os bichos, tanto ele como eu. Vocês vieram do iwak, um panyé
trouxe vocês. Um gavião trouxe vocês aqui para baixo, para a terra. Um homem jovem foi
ter com o irmão de sua mãe, quando o gavião já tinha trazido vocês. Já havia gente na terra,
quando vieram mandioca, feijão e mandioca doce. Aí ele perguntou o que estavam fazendo
e ficou muito admirado sobre todos os gêneros alimentícios. Então ele disse: “Vou buscar
toda a gente para olhar”. Ele reuniu todos e mostrou-lhes batatas, feijão miúdo, mandioca
mansa e sal. As pessoas pensavam que ele queria matá-las com veneno. Mas o velho falou:
“Não tenham medo, é bom”.
Depois veio um outro panyé, ele desceu muito longe daqui. Todas as moças tive-
ram medo, elas escutaram um tiro e pensaram que se tratava de fogo, que iria queimá-las.
Mas o velho disse: “Não tenham medo. Ele não vai matar vocês”. Elas lhe trouxeram
comida. Três pessoas o acompanhavam, Mairayop, Tapayup e Mairupet. Eles tinham a
mesma cara, um igual ao outro e não tinham mulher. Eles fizeram uma canoa do tronco de
uma castanheira, o toco dela ainda existe, mas não sei mais aonde. A canoa (monóxila)
estava pronta, ele subiu o Arinos até as cabeceiras, muito longe.
Antes as pessoas viajavam para muito longe, não havia civilizados e os homens
estavam muito espalhados. Antigamente em todo o Arinos havia gente, dizia-se vovô
para eles e eles tinham a mesma língua que nós. Naquele tempo, quando se viajava
com a canoa de casca por toda parte, a gente passava por todas as casas, olhava tudo
e parava sempre. A gente chegava e perguntava: “Tsi´a?”, e eles diziam na mesma língua:
“Tsi´a” para nassa (itsi´a). A gente de lá fugiu toda, só ficou um velho. Os civilizados eram
muito bravos e casaram lá, era a sua primeira mulher.
Depois foram mais para cima e roubaram Pi´up. Ele se chamava assim porque eles
lhe tiraram a pele. Eles pegaram uma vara de ferro, para fazer uma faca. Nós só fazemos as
facas durante a noite. E vocês? Fazem-nas de dia ou de noite? Pi´up queria ver como se faz
uma faca, um machado, uma foice. Eles o trouxeram depois novamente ao chefe, mas mais
tarde. Ele disse que os civilizados o retiveram durante muito tempo.
Uma mulher, que tinha tido uma briga, fugiu. Ela foi ao rio para lavar cabaças,
depois voltou e disse que queria fugir. Passaram civilizados e atracaram no porto. Mas

234 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


o marido dela não foi com ela ao rio. Então o pessoal a levou consigo na canoa, seguindo
viagem. O homem foi ao rio, mas a sua mulher tinha ido embora. O pai da mulher disse a
ele: “Por que você não toma conta de sua mulher?”. Então o homem foi atrás dela. Também
o pai da mulher foi à procura dela. Os civilizados deram ao pai uma rede, faca, machado,
mas ele não encontrou a mulher. Eles atracaram mais embaixo e disseram que o marido
dela estava zangado. Então trouxeram a mulher e deixaram seus vestidos e outras coisas na
beira do rio. Aí veio a mãe dela e não reconheceu a filha, porque tinha aparência estranha.
A filha então foi embora e começou a chorar. Então a mãe disse: “Agora não posso falar
duro com ela, porque está chorando”. Ela foi à outra margem, até o covo para lá buscar as
coisas dela. Então a mãe disse ao homem: “Agora não brigue outra vez com sua mulher, se
não ela vai embora outra vez”. Os que roubaram a jovem eram gente do iwak, eles foram
embora outra vez. Os civilizados vieram de lá, por isso têm faca, machado, tudo. Não
havia faca, só machado de pedra. Depois vieram do céu e trouxeram a faca. Para cá
vieram os civilizados para viver aqui. Você compreendeu?

Crença e religião 235


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Referências bibliográficas 249


posfácio
OS KAIABI HOJE: ASPECTOS CULTURAIS E AMBIENTAIS
Introdução
Quase quatro décadas já se passaram desde que Georg Grünberg realizou suas
pesquisas de campo junto aos Kaiabi e que resultaram na tese aqui publicada.
O objetivo deste capítulo é agregar informações ao trabalho de Grünberg, apre-
sentando um breve panorama da situação atual dos Kaiabi. Nestes últimos tempos,
enquanto certos aspectos da vida desse povo foram também estudados por outros
pesquisadores, resultando em novas informações que vêm se acumulando sobre
eles, algumas coisas mudaram, outras nem tanto. A gama de possibilidades de
temas para esta atualização é enorme e não é objetivo deste pequeno complemento
esgotá-la. Na impossibilidade de incluir a totalidade desses outros estudos, esta
edição privilegiou alguns enfoques em função do próprio conteúdo da tese original,
dos trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores que assinam os textos e, tam-
bém, dos legítimos interesses e atividades dos próprios Kaiabi atualmente.
Povo desterrado de seu território tradicional, hoje os Kaiabi lutam pela recupera-
ção de suas terras ancestrais e pela reparação de pelo menos parte desta perda.
Além de comentar sobre a localização atual deste povo, o texto vem também expor
suas reivindicações territoriais. São também abordadas as diferenças ambientais
entre o Parque Indígena do Xingu (PIX),(1) no Mato Grosso, para onde a maior parte
da população Kaiabi foi transferida a partir dos anos 50, e suas terras tradicionais, a
oeste do Parque, uma vez que Grünberg não teve oportunidade de conhecer mais
profundamente a área que passaram a ocupar após a transferência. Por fim, duas
seções abordam o sistema agrícola Kaiabi, a cultura material, o processo de
revitalização cultural em que se encontram imersos e a apropriação do conceito
ocidental de cultura que se torna mais presente.

As terras kaiabi hoje e suas reivindicações


O processo de transferência dos Kaiabi para o Xingu nunca foi consensual entre
o grupo. Quando da última grande transferência em 1966, o grupo dividiu-se e uma

1
À época da transferência, o PIX era designado Parque Nacional do Xingu. O Decreto
nº 82.263, de 13/09/1978, altera seu nome para Parque Indígena do Xingu.

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 251


parte recusou-se terminantemente a abandonar sua terra. Mesmo entre aqueles
que acabaram sendo levados a viver no Xingu, o desejo de retornar sempre perma-
neceu vivo, principalmente entre os mais velhos, manifestando-se desde pouco tempo
após a transferência, conforme confissões feitas por alguns Kaiabi ao antropólogo
Eduardo Galvão ainda em 1967 (Galvão 1996: 338-9).
A maioria da população Kaiabi reside atualmente no médio curso do Rio Xingu no
estado do Mato Grosso, em seu trecho que corta o Parque Indígena do Xingu. As
diversas aldeias localizam-se à montante e à jusante do Posto Indígena Diauarum,
na porção norte do Parque, em território habitado anteriormente pelas etnias Yudjá,
Suyá e Trumai, entre outras.
Uma pequena parcela dos Kaiabi vive atualmente no baixo Teles Pires, em uma
área indígena localizada já no estado do Pará, para onde foram sendo empurrados
ao longo dos séculos XIX e XX pela progressiva ocupação de suas terras tradicio-
nais mais ao sul.(2) A pequena parcela da população do Rio dos Peixes, que se
recusou a ir para o PIX em 1966, permanece até hoje em uma reduzida área que
divide com alguns remanescentes Apiaká e Munduruku, localizada abaixo do grande
salto deste rio no Mato Grosso.(3) Diversos eventos culminaram no deslocamento da
maior parte da população Kaiabi de seus territórios tradicionais e, por conseguinte,
as duas áreas atualmente habitadas por eles fora do PIX representam apenas uma
diminuta parcela do território ancestral do grupo.
Paralelamente a um movimento de recuperação demográfica e revitalização
cultural, os Kaiabi estão empenhados também em um processo de recuperação de
suas áreas de ocupação tradicional nos Rios Teles Pires e Tatu’y (ou Rio dos Pei-
xes). Neste sentido, vêm há vários anos solicitando à Funai a constituição de Gru-
pos de Trabalho para identificar oficialmente essas áreas.
Há vários anos também os Kaiabi do Xingu, com o apoio de outras lideranças
indígenas do PIX, estão sistematicamente pleiteando junto à Funai a criação de
Grupos de Trabalho para identificação e posterior delimitação das áreas por eles
reivindicadas. Transcrevemos a seguir um trecho de um documento entregue em

2
Área Indígena Cayabi: demarcação homologada em 1982; área: 117.246 ha; município:
Itaituba-PA. Área Indígena Cayabi Gleba Sul, atualmente denominada Terra Indígena Kaiabi,
aguardando ser declarada pelo Ministério da Justiça: área: 1.408.000 ha; municípios:
Jacareacanga-PA e Apiacás-MT.
3
Terra Indígena Apiaká-Kaiabi: demarcação homologada em 1991; área: 109.245 ha;
município: Juara-MT.

252 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Terras kaiabi

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 253


mãos ao então presidente da Funai, sr. Sullivan Silvestre, em 13 de novembro de
1998, por ocasião de uma reunião no PI Diauarum:
“Nós Kaiabi fomos transferidos há cerca de 40 anos da terra onde moráva-
mos e onde estão enterrados nossos parentes. Na época da transferência,
muitos de nós não queriam abandonar a terra e, ainda hoje, os mais velhos
pensam em voltar para a região do Teles Pires e Tatu’y (Rio dos Peixes),
onde nós vivíamos. Desde a época da transferência, os não índios que
tomaram as nossas terras estão destruindo a floresta e sujando os rios.
Hoje aquela região, nos rios Tatu’y e Teles Pires, já está quase toda estragada
e ocupada pelos brancos. Os Kaiabi, com apoio das lideranças do Xingu,
entregaram um documento em 03/10/97 à presidência da Funai propondo
ações para reparar a perda de nosso território. Porém, o Presidente da
Funai não deu resposta nenhuma. Depois, em reunião no PI Diauarum em
julho de 1998, o Presidente prometeu assinar portaria criando um Grupo
de Trabalho para estudar a situação e analisar a reposição de uma terra
aos Kaiabi vizinha ao Parque Indígena do Xingu e também a recuperação
de áreas próximas da TI Apiaká-Kaiabi do Rio dos Peixes.”
Cansados de esperar a ação do órgão oficial, os Kaiabi do PIX realizaram por
conta própria expedições para avaliar a situação atual de seus antigos territórios no
Rio Teles Pires. Como grande parte da área encontra-se hoje densamente ocupada
e devastada, decidiram reivindicar à Funai a demarcação de uma faixa de terra con-
tígua ao limite oeste do PIX como reparação das imensas perdas sofridas com a
transferência. Esta região, que compreende parte das sub-bacias dos rios Arraias e
Manitsawá-Miçu, é a que tem as maiores semelhanças ambientais com a terra an-
cestral kaiabi e foi o ponto de chegada destes ao Parque.
À luz da legislação atual (principalmente o artigo 231 da Constituição Federal),
a caracterização de uma área como de ocupação tradicional por grupos indígenas
não pressupõe uma demonstração desta ocupação ao longo de uma linha tempo-
ral até tempos imemoriais. Estabelece-se que esta ocupação precisa ser caracte-
rizada como sendo de modo tradicional, ou seja, segundo os usos, costumes e
tradições de determinado(s) povo(s) indígena(s), para que a terra possa lhes ser
destinada com o propósito de garantir seu bem estar e as condições necessárias
à sua reprodução física e cultural, direitos assegurados pela Constituição Federal
de 1988. Assim, atualmente estão sendo realizados estudos de identificação an-
tropológica nesta região com o intuito de atender à reivindicação expressa pelo
grupo.

254 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Paralelamente, os Kaiabi que permaneceram no Rio dos Peixes vêm, principal-
mente desde a década de 80,(4) reivindicando sistematicamente a realização de es-
tudos de identificação antropológica de seu território tradicional ao longo deste rio. O
objetivo dos índios é que lhes seja restituída pelo menos parte de seu território an-
cestral. A principal reivindicação visa principalmente a recuperação das terras próxi-
mas ao Rio Batelão, região onde estavam localizadas as principais aldeias kaiabi
desde tempos mais remotos até a década de 60 do século passado. Em 2001, a
Funai finalmente determinou a realização de estudos de identificação antropológica
nesta área que resultaram na proposta de criação da Terra Indígena Batelão, atual-
mente em tramitação legal.(5) Esta região engloba, conforme os relatos míticos, o
centro de origem dos Kaiabi. Ainda preserva elementos do ambiente tradicional,
concentra vários pontos de coleta, além das antigas aldeias, cemitérios e locais
considerados sagrados.
Os Kaiabi do Rio dos Peixes, concentrados, então, em uma pequena área que
lamentavelmente não incorporou a parte central de seu antigo território, vivem uma
realidade distinta da de seus parentes no Xingu. Recebendo pouca assistência e
colaboração tanto de entidades governamentais quanto não-governamentais, e na
falta de melhores perspectivas, eles têm sido seduzidos a permitir que os ocupan-
tes do entorno retirem madeira de suas terras sem nenhum tipo de controle.
Os Kaiabi localizados mais ao norte, em terras que dividem com os Munduruku
e Apiaká às margens do Rio Teles Pires em território paraense, conseguiram que
fossem realizados estudos de identificação na área por eles ali reivindicada naque-
la região. O Relatório de Identificação aprovado pelo órgão indigenista destina
uma área de 1.408.000 hectares para o grupo. O resumo deste Relatório foi publi-
cado no Diário Oficial em 1999 e desde então o processo encontra-se emperrado,
não tendo a área sido oficialmente declarada até o momento.
Como os demais procedimentos que visam a demarcação de Terras Indígenas,
a resistência está nos ocupantes não-índios e de governos locais e estaduais em-
penhados em implementar um processo de ocupação baseado em grandes pro-
priedades, conforme um modelo econômico calcado na exploração madeireira, pe-
cuária e atualmente na agricultura de larga escala, principalmente de soja e outros

4
Diante da problemática envolvendo a construção de uma barragem no Salto do Rio dos Peixes,
considerado sagrado por eles.
5
Publicada no Diário Oficial da União em julho de 2003, aguardando a assinatura da Portaria que
declara a terra, com extensão de 117.050 hectares, de posse permanente dos Kaiabi.

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 255


grãos. Neste ínterim, as Terras Indígenas estão se tornando ilhas de verde em meio
a rápida e crescente degradação ambiental que se justificaria sob o rótulo desenvol-
vimentista. A devastação do entorno das áreas indígenas tem provocado a ameaça
de grandes incêndios, a poluição dos rios dos quais as populações indígenas se
abastecem, além de vários novos problemas e desafios. Hoje, as comunidades indí-
genas, dentre estas os Kaiabi, estão cientes de que a organização política dos po-
vos que habitam as Terras Indígenas e sua valorização étnica é a única possibilida-
de de que dispõem para lutar pela preservação de sua diversidade sócio-cultural e
ambiental.
Atualmente, além da resolução das muitas pendências com relação a identifica-
ções e demarcações reivindicadas por vários povos indígenas, a grande questão
diz respeito à gestão das terras indígenas. Este quadro torna-se complexo em ra-
zão do constante enfraquecimento institucional e político do órgão indigenista oficial
do qual os índios muito se ressentem. Neste contexto, os Kaiabi têm se movimenta-
do no sentido de trabalhar em conjunto com órgãos ambientais e entidades não-
governamentais para impedir que a destruição de seus ambientes tradicionais se
acelere ainda mais. É fundamental ressaltar que, caso as demarcações se concre-
tizem, será importante que os povos indígenas construam parcerias para a criação
de alternativas à exploração irracional dos recursos naturais, promovendo seu ma-
nejo continuado, medidas fundamentais para a sua adequada sobrevivência física e
cultural.

A população kaiabi hoje


A violência na ocupação das terras kaiabi, a partir das primeiras décadas do
século XX, a falta de assistência e a disseminação desenfreada de doenças repre-
sentaram uma tragédia demográfica para o grupo. Apenas na década que vai de
1955 a 1965, pelas informações de Grünberg, a população kaiabi foi reduzida em
um terço. Não há dados para a década anterior, mas pelos relatos dos índios e pelo
fato do modelo de ocupação ter sido o mesmo, é possível supor que tenham perdido
outro terço de sua população naquele período. Desta forma, em 30 ou 40 anos o
grupo deve ter perdido aproximadamente de 60 a 70% de sua população.
A débâcle demográfica dos Kaiabi começou a se reverter de forma mais con-
tundente a partir dos anos 70. Entre 1970 e 1999 a população do grupo dentro do
PIX, por exemplo, saltou de 204 para 758 habitantes, o que demonstra um cresci-
mento populacional médio da ordem de 4,5% ao ano. O mesmo se verifica para as
outras duas áreas atualmente habitadas pelos Kaiabi. A população do grupo no Rio

256 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


População kaiabi (1955 a 2000)

Rio dos Peixes Teles Pires PIX Outros Total Fontes


108 148 40 45 341 Dornstauder, 1955
32 54 179 43 308 Meliá, 1966
- - 204 - - EPM*, 1970
265 70 758 - 1093 EPM/FNS**, 2000
* Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo
** Fundação Nacional de Saúde

dos Peixes e no sul do Pará (Teles Pires) também encontra-se em franca recupera-
ção populacional. Estas altas taxas de crescimento também são encontradas em
muitos outros grupos indígenas atualmente após conseguirem superar o nadir de
sua curva demográfica. A conjugação de uma melhor assistência médica curativa e
preventiva, a maior resistência a agentes infecciosos, a garantia de territórios e um
explícito desejo de aumentar a sua população em um novo contexto de fortaleci-
mento político e sócio-cultural são os fatores principais que explicam essa forte
retomada demográfica dos Kaiabi (Pagliaro 2002). [KLINTON V. SENRA]

O contraste entre ambientes(6)


O ambiente físico e biológico da região do Parque do Xingu é bastante diferencia-
do daquele da região ancestral dos Kaiabi, que abrangia parte das sub-bacias do
Rio dos Peixes, também chamado de São Francisco, Itaupiami ou Tatu´y e do Rio
Teles Pires, São Manoel ou Wyrasing’y. A região ancestral localiza-se na bacia
hidrográfica do Rio Tapajós, enquanto o Parque do Xingu está na bacia do Rio Xingu.
O Rio do Peixes tem a totalidade de seu curso dentro do estado do Mato Grosso.
Sua foz localiza-se no Rio Arinos, afluente do Juruena, tributário da margem direita
do Rio Tapajós, que por sua vez segue para o Rio Amazonas. Segundo Köppen, o
clima nesta região é do tipo Am, ou seja, tropical chuvoso, quente e úmido, com
chuvas de monção e um pequeno período seco no inverno (RadamBrasil, 1980). A
precipitação pluviométrica é elevada, próxima dos 2500-2750 mm anuais, com me-

6
Este texto baseia-se em um relatório técnico referente à expedição realizada para o Rio dos
Peixes em 1999, da qual participaram técnicos e colaboradores do Programa Xingu do ISA e
um grupo de homens e mulheres kaiabi residentes no Parque do Xingu. Veja Silva et al, 2000.

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 257


nor intensidade entre maio e agosto. A umidade relativa do ar é de cerca de 85 % e
a temperatura média anual é de 24º C. A região onde está inserida a sub-bacia do
Rio dos Peixes apresenta a maior complexidade geológica e geomorfológica do es-
tado do Mato Grosso, com três unidades geomórficas identificadas pelo posiciona-
mento altimétrico relativo (entre 250 e 500 m) e pela semelhança de formas do
relevo (RadamBrasil, 1980).
Este panorama ambiental exibe um contraste marcante com a paisagem do Par-
que do Xingu onde o clima regional é tropical chuvoso, abrangendo dois tipos: Am,
com chuvas de monção e Aw, com verão úmido e inverno seco. Caracteriza-se,
pois, pelo caráter transicional entre os domínios tropicais da Amazônia úmida e
florestada e o Planalto Central do Brasil, coberto por savanas, com duas estações
bem marcadas (RadamBrasil, 1981). A precipitação total anual oscila entre 2.000 e
2.750 mm (crescente de sudeste para noroeste); as temperaturas médias anuais
variam entre 24° e 26°C, com amplitude térmica no geral pouco significativa. Po-
rém, nos meses de inverno a influência da continentalidade se faz sentir, com a
amplitude térmica alcançando mais de 20°C, em julho. Apesar da umidade relati-
va do ar ser alta, da ordem de 80 a 85%, na região existem dois períodos com
índices de precipitação pluviométrica distintos: o período chuvoso, na primavera/
verão, que concentra mais de 80% dos totais anuais, com cerca de 250 mm ao
mês, entre setembro/outubro e abril; e o período seco, de abril a setembro, com
baixos índices pluviométricos, chegando a registrar-se até dois meses contínuos
sem nenhuma precipitação.
A vegetação das duas regiões é significativamente diferenciada em decorrência
de características climáticas, geológicas e fitogeográficas. O Parque do Xingu en-
contra-se em uma região de transição ecológica entre o cerrado (ou savana), a
Floresta Estacional Semidecidual (floresta mais seca que ocorre nas regiões cen-
tro-oeste, sudeste e sul do país) e a Floresta Ombrófila Tropical (floresta amazônica
chuvosa). O clima é mais seco, a floresta é mais decídua (boa parte das árvores
perdem suas folhas durante a estação seca) e mais pobre em elementos de impor-
tância econômica, tanto para o extrativismo como para a exploração comercial de
madeira (RadamBrasil, 1980;1981). Na região ancestral dos Kaiabi, a Floresta
Estacional Semidecidual e os cerrados ocorrem na forma de contato com outras
formações florestais, principalmente com a Floresta Ombrófila Amazônica. Georg
Grünberg menciona a importância da vegetação de cerrado para os Kaiabi, sugerin-
do tratar-se de uma formação de origem antrópica ou humana. Pode-se afirmar que
o cerrado da região ancestral Kaiabi é de origem natural, apresentando-se sob a

258 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


forma de mosaicos na área montanhosa que recebe o nome de “Serra dos Caiabis”
(RadamBrasil, 1980).
No Parque, estão ausentes espécies vegetais tipicamente amazônicas, como a
seringueira (Hevea brasiliensis), o mogno (Swietenia macrophylla) e a castanha-
do-pará (Bertholletia excelsa). Em sua área ancestral, os Kaiabi exploravam uma
grande área de floresta com castanheiras, as quais podem estar associadas com
sítios que receberam influência humana pretérita. A castanha-do-pará era um recur-
so de grande importância econômica para os Kaiabi antes de sua transferência.
Denominada por eles de “fruto verdadeiro” (y’wa ete), representava uma importante
fonte de proteínas com alto valor nutritivo. Antigamente, os Kaiabi empreendiam ex-
pedições para a coleta de castanha, acampando próximo aos castanhais (ywatyp).
Dentre outros recursos florestais utilizados pelos Kaiabi que não ocorrem na
área do Parque do Xingu destacam-se o patauá (Oenocarpus bataua), palmeira
frutífera; o marajá (Bactris sp), cujos frutos eram usados para artesanato; o cacau
(Theobroma cacao), alimento; o açaí (Euterpe precatoria) alimento; a siriva (Bactris
macana), palmeira cuja madeira era usada com várias finalidades; o taquari ou
camaiúva (Guadua sp), usada para flechas de caça; e o arumã de tala lisa
(Ischnosiphon sp), usado para trançar peneiras, além de outras espécies de frutífe-
ras nativas não identificadas.
A diferenciação ambiental da área ancestral dos Kaiabi e do Parque Xingu refle-
te-se também na composição faunística. Segundo os Kaiabi, na área ancestral exis-
tia maior diversidade e quantidade de mamíferos e aves do que no Xingu, havendo
conseqüentemente, maior abundância de caça. Algumas espécies animais que não
ocorrem no Parque são a arara-canga ou ararinha-vermelha (Ara macao), cujas
penas eram usadas para a confecção de cocares e flechas e outras espécies de
psitacídeos (papagaios e araras). Os moluscos bivalves e gasterópodos utilizados
pelos Kaiabi no passado para a confecção de colares e adornos não existem no PIX.
Em relação à pesca, o quadro se inverte, pois o Rio dos Peixes tem uma diversida-
de e abundância de peixes bem menor do que o Rio Xingu.
Uma vez no Xingu, a tarefa que se impôs aos Kaiabi foi a de continuar construin-
do-se como grupo em uma nova realidade ambiental e sócio-cultural aplicando seus
conhecimentos a um novo espaço. Os Kaiabi realizam a manipulação atual da pai-
sagem no Parque do Xingu, segundo a sua percepção e acesso às zonas ambientais
e aos recursos naturais associados: flora, fauna, solos e minerais (Silva & Athayde,
1999; Silva et al, 2000; Schmidt, 2001). O seu ordenamento da paisagem expressa
conceitos de tempo e espaço. Através do ciclo anual das águas, o ritmo das esta-

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 259


ções é traduzido pela freqüência, duração e intensidade dos períodos de inundação.
Isto é evidenciado pelo discernimento dos macroambientes yapopep (floresta
inundável na época chuvosa) e ka’a rete (floresta de terra firme que nunca inunda).
A dimensão espacial também considera de modo relevante a influência da água
expressa através do grau de hidromorfismo presente em setores de ambientes mais
gerais. Por exemplo, a localização dos meso-ambientes ka’a papawet (mato da
beira da lagoa) e yatarãn (pantanalzinho na cabeceira de córregos dentro da flo-
resta de terra firme). Cada nominação identifica um conjunto de variações micro-
ambientais que condicionam a existência e/ou exuberância de recursos particu-
lares, como por exemplo, as interpenetrações de campos (j‰sing) na floresta de
várzea (yapopep).
A denominação indígena mostra também a história de uso de sítios particulares,
agregando informações sobre a sucessão vegetal e aspectos da evolução antropogêni-
ca ou geomórfica de certos locais (Silva, 1999). A antigüidade da interferência antrópica
é enfatizada pela composição da vegetação e por evidências arqueológicas (fragmen-
tos de cerâmica), relacionados com a origem das terras pretas ou solos antrópicos.
Nestes locais a floresta recebe o nome de kofet rarete (capoeira verdadeira).
A combinação de ambas dimensões temporal e espacial permite também a iden-
tificação e nominação de feições transicionais dentro e entre ambientes. Por exem-
plo, há variações significativas entre o uso dado a porções de terra quando se parte
do centro do kofet rarete para a sua borda (kofet rarete remejep), passando para a
borda do mato circundante (ka’a rete remejep) até que se alcance uma porção do
ka’a rete legítimo. Cada nominação identifica um conjunto de variações micro-
ambientais que podem apontar a existência ou densidade de recursos particulares,
utilizados como indicadores da aptidão das terras para receber roçados (ko = roça;
kofet = local onde a roça já foi feita).
As áreas usadas para plantio de roças são incluídas em uma categoria geral
para a sucessão secundária, denominada comumente de “capoeira” em português.
As áreas de terra preta são consideradas capoeiras legítimas (qualificação designada
pelo sufixo ete = verdadeiro), as melhores para o desenvolvimento de policultivos
alimentares dos Kaiabi, em geral com bom acesso por água.(7)

7
O acesso às capoeiras é desigual. Há locais com fácil acesso por terra firme, em distâncias
variáveis. Em outros, o acesso é exclusivamente por água, sendo que nos casos em que a terra
preta está localizada atrás de lagoas temporárias, o transporte é dificultado durante a estação
seca, prejudicando o escoamento da produção.

260
Do ponto de vista agrícola, é importante separar as terras pretas de outros tipos
de terras ocorrentes nas áreas ocupadas pelos Kaiabi. Terras pretas são distinguidas
por critérios fisionômicos, florísticos e estruturais da vegetação, pela presença de
materiais arqueológicos (fragmentos de cerâmica, machados), pela cor do solo e
pela sua elevada fertilidade natural (embora desigual, internamente), pelo cheiro da
terra e pela concentração de algumas espécies da fauna (macacos, anta, pássa-
ros, etc). Em caso de dúvida quanto à qualidade da terra, esta pode ser examinada
com o auxílio do facão, pelo tato e pelo cheiro. As terras pretas têm elevada capaci-
dade de retenção de água, o que conjugado com a topografia do terreno (plano a
suave ondulado) e com as diferenças no estoque e disponibilidade biológica de ele-
mentos nutricionais, faz com que estes sítios arqueológicos constituam as melho-
res terras para cultivo em toda a Amazônia.(8) A probabilidade de se encontrar solos,
em áreas de floresta de terra firme, com este conjunto de características favoráveis
é muito baixa. No Rio Tatu’y, há terras vermelhas naturalmente férteis que podem
receber culturas exigentes com desempenho similar ao das terras pretas, que tam-
bém ocorrem lá (Silva et al, 2000). Apesar de apresentar dimensões reduzidas (pou-
cos hectares) e distribuição esparsa na paisagem de terra firme, no Xingu as áreas
de terras pretas assumem um papel similar ao dos solos férteis de outras regiões
(Moran, 1995).
No Xingu, os Kaiabi mantiveram a prática de usar florestas antrópicas para agri-
cultura, dando continuidade à manipulação da vegetação e de solos realizada por
outros povos, há séculos. Hoje, a paisagem regional mostra que as capoeiras de
terra preta formam unidades espaciais abrigando diversas manchas de sucessão
vegetal com histórico, composição e idades diferentes, com ou sem roças atuais.
Muitas destas áreas abrigam casas de roça, nas quais há quintais domésticos. Há
também mosaicos de sucessão em terra vermelha, que podem estar nas cercanias
das terras pretas ou afastadas destas. [GERALDO MOSIMANN DA SILVA E SIMONE FERREIRA
DE ATHAYDE]

Territorialidade
A grande maioria da população Kaiabi atual é xinguana, ou seja, nascida após a
transferência para o Parque Indígena do Xingu, e é com esta terra que mais se

8
A distribuição de terras pretas se dá em praticamente toda a Bacia Amazônica e também na
Bacia do Rio Orinoco (Balée, 1989; Moran, 1995; Posey, 1984; Smith, 1980).

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 261


identificam. Uma vez nas terras do Parque, os Kaiabi fizeram uma leitura do novo
ambiente natural e sócio-cultural segundo características próprias do grupo. Assim
como outros grupos, principalmente da família lingüística Tupi-guarani (Viveiros de
Castro 1992), os Kaiabi têm uma propensão a orientarem-se para pontos para além
de sua sociedade, característica esta que é constitutiva de seu modelo de socialidade
e sociabilidade (Oakdale 1996). Apesar de o episódio da transferência ter acarreta-
do um grande impacto social, talvez impossível de se avaliar em sua plenitude, é
inegável que uma certa plasticidade adaptativa permitiu ao grupo se encaixar no
novo ambiente e procurar reconstruir as condições de possibilidade de sua sobrevi-
vência física e cultural sobre novas bases materiais e sociopolíticas. Este processo,
obviamente, está sempre em curso e sujeito a inúmeras variáveis em diversos ní-
veis de complexidade. Há um processo contínuo de recriação da identidade kaiabi o
qual caminha necessariamente “pari passu” com a crescente relação com a nova
terra, com os outros povos do Parque e com o mundo dos brancos.
Quando a Expedição Roncador-Xingu, capitaneada pelos irmãos Villas Bôas,
encontrou os Kaiabi, estes viviam uma situação conflituosa, sendo vilipendiados
exatamente por aqueles que deveriam estar garantindo-lhes o direito sobre suas
terras ancestralmente ocupadas. Aos índios não se apresentavam muitas alternati-
vas, uma vez que o próprio poder público os estava retirando de suas terras. Ao que
parece não se cogitou a possibilidade de tentar a criação de uma área para os Kaiabi
dentro de seu próprio território e, desde os primeiros contatos, ou mesmo antes, a
intenção parece ter sido transferir os Kaiabi para o PIX liberando os vales do Teles
Pires e Arinos para a colonização. A alternativa da mudança prevaleceu entre os
Kaiabi do Rio Teles Pires e tomou corpo em parte devido à atuação de Prepori, um
dos principais líderes do grupo na época. Em 1990, Prepori deu um depoimento
sobre a vinda de seu povo para o Xingu:
“Ladrão, ladrão, que acaba minha terra. Eles entraram todos sem pedir
favor, sem pedir pro dono, sem pedir pra nada, roubando toda minha ter-
ra. Então Orlando pediu pra mim: ‘Vamos pro Xingu’. Então eu puxei um
grupinho pra cá. Eu mesmo vim por aqui com meu filho, procurar terra
daqui. Procurei o pessoal daqui (...). Isto foi naquele tempo de 49.” (apud
Fausto 1990: 127).
A transferência foi justificada como única alternativa ao processo de destribaliza-
ção e marginalização vivido pelos Kaiabi. O processo deixou marcas profundas e
dividiu o grupo tanto física quanto emocionalmente. Durante muito tempo os Kaiabi
que permaneceram no Rio dos Peixes, os do Baixo Teles Pires e os do Xingu fica-

262 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


ram praticamente sem contato uns com os outros. Em fins dos anos 70, os conta-
tos foram retomados através de visitas recíprocas, transmissões por rádio e troca
de fitas cassete gravadas. Nessas fitas os índios mandavam recados, perguntavam
sobre parentes e pediam presentes, principalmente recursos tradicionais que não
são encontrados no Xingu e dos quais sentem falta. Em uma dessas fitas os velhos
manifestavam sua vontade de retornar à terra natal dizendo que no Xingu “o mato é
ruim”, que não tem as coisas que eles gostam (Travassos 1984: 25).
A integração com os líderes da Expedição Roncador-Xingu continuaria após a
transferência com os Kaiabi se envolvendo cada vez mais na administração e con-
solidação do Parque, no desempenho de novas atividades como mecânicos e bar-
queiros e também em expedições de “pacificação” de outros povos. Ainda na déca-
da de 50, os Kaiabi já participavam da pacificação de grupos Kayapó. Posteriormen-
te ainda participariam da pacificação e realocação dos Ikpeng (Txikão) e dos Panará.
Até mesmo das expedições que contactaram os Arara do Pará alguns Kaiabi parti-
ciparam ativamente.
Quanto à ocupação propriamente dita das novas terras no Xingu, com a transfe-
rência para o PIX, os Kaiabi inicialmente mantiveram um padrão de assentamento
caracterizado pela dispersão em pequenas unidades familiares. Num segundo mo-
mento, alguns aldeamentos Kaiabi passaram a se organizar em unidades maiores
e multifamiliares, destoando assim do padrão de isolamento observado em suas
regiões tradicionais de ocupação à época da transferência. Induzidos pela adminis-
tração da Funai no Parque, os Kaiabi foram aos poucos se deslocando mais para
perto do Posto Diauarum, às margens do rio Xingu, e a se agregarem em aldeias
maiores. Foram os Kaiabi que ajudaram a construir este posto e a ele deram o
nome Diauarum, a ‘onça preta’. É provável, conforme também salienta Oakdale
(1996: 11), que grandes aglomerados como as aldeias Capivara ou Tuiararé (as
maiores aldeias kaiabi no PIX) não sejam um padrão inteiramente novo para o gru-
po. Relatos antigos como o de Antonio Pyrineus de Souza, oficial da Comissão
Rondon que percorreu a região do Rio Teles Pires em 1915, sugerem a existência
desde pequenos agrupamentos unifamiliares, até grandes grupos residenciais en-
globando centenas de pessoas, informação corroborada ainda hoje pelos Kaiabi
(Souza 1916: 76). Acreditamos, então, a partir das fontes documentais e das pes-
quisas etnográficas, que os Kaiabi sempre tiveram aldeias grandes e pequenas
concomitantemente, e que é preciso desfocar um pouco a atenção dada às aldeias
enquanto unidades sociais. Há uma tendência, por parte dos não-índios, sejam pes-
quisadores ou outros agentes, a se cristalizar a figura da aldeia como unidade social

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 263


discreta, fato que não é necessariamente enfatizado pelos índios, pelo menos não de
forma absoluta.
O próprio modelo de relação entre as instituições que atuam no Parque e os
índios, de certa forma criou novas condições para o fortalecimento da tendência de
reunião em agrupamentos maiores. Muitos Kaiabi afirmam que a reunião em gran-
des aldeias foi encorajada pela administração do Parque, principalmente com o in-
tuito de facilitar os tratamentos de saúde. De fato, o maior acesso aos medicamen-
tos e aos médicos é pensado como uma das grandes vantagens da moradia em
grandes aldeias e argumento utilizado pelos líderes em seus discursos ao estimula-
rem a reunião das famílias em unidades maiores. Assim, pelo menos em certa
medida, a reunião das famílias extensas em aldeias maiores pode ser creditada à
necessidade de manter uma relação eficiente e constante com os órgãos adminis-
trativos, ONGs e também com os outros índios.
No entanto, após algum tempo mais concentrados na região próxima ao
Diauarum, os Kaiabi, em consonância com uma marcada característica sócio-cul-
tural do grupo, acabaram se espalhando pela área do Parque ao longo do Rio Xingu,
do Manitsawá-Miçu e do Arraias. Ao contrário dos grupos Alto Xinguanos, que
constróem grandes aldeias circulares mais permanentes, os Kaiabi preferem se
agregar em unidades residenciais mais isoladas, abrigando uma ou mais famílias
proximamente relacionadas. Estas aldeias apresentam uma grande mobilidade es-
pacial, se comparadas com as do Alto Xingu.
Apesar de o modelo de relação com os órgãos que atuam no PIX, das novas
necessidades materiais do grupo, e mesmo de uma escassez relativa de terras,
induzirem a princípio a formação e a estabilização de aldeias maiores, a dinâmica
sociológica do grupo continua a impelir a cisão das mesmas e a ocupação de novas
áreas. As aldeias kaiabi são organizadas em torno de parentelas egocentradas muito
independentes e esta independência é um traço cultural marcante e consciente-
mente defendido pelos índios. O padrão tradicional de assentamento dos Kaiabi
pode ser visto a partir de dois níveis analíticos: o assentamento independente, e a
configuração de assentamentos vizinhos. A distinção é importante por tornar possí-
vel notar as diferenças na dinâmica interativa das propriedades de dispersão e
mobilidade de acordo com o nível considerado. Ao nível dos assentamentos inde-
pendentes, a relação entre mobilidade e dispersão seria complementar e condicio-
nada por questões de defesa tanto quanto de subsistência diária. Além de ser uma
estratégia militar (pelo menos no passado), o padrão de assentamentos dispersos
na paisagem seria uma eficiente resposta a recursos também dispersos. Ao nível

264 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


dos agrupamentos de assentamentos independentes o papel da subsistência dimi-
nui e outros fatores precisam ser levados em conta, tais como a reprodução biológi-
ca, saúde, comércio e política. É no contexto destes outros fatores que vemos a
significância das estruturas socioespaciais supralocais. Os Kaiabi não concebem
os dois modos de assentamento como um movimento cíclico entre períodos de
maior adensamento e períodos de maior atomismo ao longo de uma linha temporal.
Os dois modos são antes complementares que opostos, tanto sincrônica quanto
diacronicamente, e esta divisão perde um pouco o sentido quando olhada de um
ponto de vista regional que concebe o espaço como uma totalidade, uma rede que
interconecta social e culturalmente as diversas aldeias e os diversos sub-ambien-
tes em variados estágios sucessionais. A paisagem social é analogamente conce-
bida, com os diversos sítios-habitação sendo concebidos concomitantemente a
partir das unidades de assentamento, enquanto unidades discretas, e a partir das
relações entre as unidades que a compõe.
A razão de sempre morarem em parte agregados em aldeias maiores e em
parte espalhados em unidades menores pode ser entendida ao mesmo tempo por
motivos ecológicos e sócio-políticos. O crescimento populacional dentro do Parque
e a crescente conscientização da finitude dos recursos e das limitações territoriais
agora impostas têm feito com que fatores como a disponibilidade de terras pretas,
e.g., sejam cada vez mais considerados e decisivamente influenciem na localiza-
ção das aldeias. Hoje os Kaiabi do Xingu estão espalhados por 18 aldeias, entendi-
das aqui como sítios-habitação, duas delas com mais de uma centena de pessoas
enquanto outras podem não chegar a dez habitantes. [KLINTON V. SENRA]

O sistema agrícola kaiabi


A análise de sistemas agrícolas indígenas deve ser feita em seu contexto histó-
rico, cultural e econômico. A economia indígena, originalmente de subsistência e de
trocas intra e intertribais passou a relacionar-se com a sociedade que ocupou e vem
ocupando a região amazônica pós-colombiana. Hoje observa-se uma descaracteri-
zação da agricultura kaiabi nas aldeias do Rio dos Peixes, reflexo da drástica altera-
ção nos hábitos alimentares do grupo. Na aldeia Kururuzinho, no Pará, relatos dos
índios informam que também vem ocorrendo uma simplificação do sistema agríco-
la, embora com intensidade bem menor do que no Rio dos Peixes.
No Xingu, após a transferência, a estratégia adaptativa do grupo foi manter, a
par da coleta, pesca e caça, sua prática agrícola diversificada, baseada no sistema
hortícola da mandioca (Nimuendaju, 1948), com destaque também para o milho,

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 265


amendoim e culturas como tubérculos (cará, taioba, batata doce), favas, abóboras,
pimentas e outras. A agricultura kaiabi destaca-se pela sua diversidade e complexi-
dade, principalmente se comparada com outros povos xinguanos. A tabela 1 apre-
senta as plantas cultivadas, tentativamente identificadas pela taxonomia botânica, e
uma apreciação da disponibilidade de suas variedades.
No Parque, as roças foram viabilizadas porque no início da década de 1950 fo-
ram trazidas pequenas amostras de cada variedade das plantas agrícolas, a pé e
em canoas, em um percurso de cerca de 500 km, a pedido de Prepori (Jepepyri), o
líder carismático que havia aceitado apoio dos irmãos Villas Bôas para efetivar a
transferência para o Xingu. Quando as plantas chegaram, Prepori plantou sucessi-
vas roças, multiplicou e distribuiu mudas e sementes para permitir um condição de
vida mais favorável aos Kaiabi que haviam mudado. Em 1966, também foram trazidas
sementes e mudas do Rio Tatu’y.
Este patrimônio genético continua, no entanto, em risco de se perder. No Xingu
tem sido observada uma diminuição da diversidade genética em roças, relacionada
com a perda de variedades consideradas tradicionais pelos Kaiabi . As causas pro-
váveis são alterações em hábitos culturais e alimentares, associados com a relativa
falta de terras aptas para receber culturas mais exigentes em água e nutrientes.
Reagindo a esta situação, em algumas aldeias foi deflagrado um processo para
multiplicação e distribuição de sementes e mudas destas plantas. O ponto focal
deste trabalho encontra-se na aldeia Kwaruja, que reúne os descendentes de Prepori,
onde há disponibilidade de terras boas para roças. Nesta aldeia vêm sendo planta-
das roças com este fim específico, configurando jardins genéticos que propiciam a
conservação “in situ” da agrobiodiversidade kaiabi.
Em antigas aldeias no rio Tatu’y observamos, em 1999, sítios agrícolas em ter-
ras pretas, e em terras vermelhas, com ou sem cascalho. Na época, Tewit Kaiabi
informou que naquela área em ambos os tipos de terra é possível obter boa produ-
ção agrícola (Silva et al, 2000). Desde sua chegada ao Parque, os Kaiabi procura-
ram terras aptas para o cultivo de alimentos mais exigentes em fertilidade e disponi-
bilidade hídrica. Os Kaiabi identificam a aptidão agrícola de terras associando, nos
extremos, o desempenho do milho na terra preta e da mandioca em qualquer terra,
produzindo bem inclusive na vermelha. Reconhecem, também, gradações de res-
postas do conjunto de seus cultivos a transições ambientais, como as terras meio
preta meio vermelhas, cuja aptidão para culturas exigentes é relativamente menor e
onde é reduzida a possibilidade de boas colheitas em um horizonte de tempo similar
ao do uso de terras pretas.

266 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Tabela 1. Plantas da roça kaiabi e situação de sua diversidade genética

nome nome espécie e no variedades no variedades no variedades


kaiabi português família cultivadas perdidas ameaçadas*

amyneju algodão Gossypium 3 0 0


barbadense Malvaceae
awasi milho Zea mayz Poaceae 8 1 (?) 0
jetyk batata doce Ipomea batatas 10 1 0
Convolvulaceae
ka’ra cará Dioscorea spp 16 0 8
Dioscoreaceae
kumanai’i feijão Phaseolus vulgaris 16 1 (?) 4
e Vigna unguiculata
Papilionaceae
kumanauu fava Phaseolus lunatus
Papilionaceae
kumarataia curcuma, Curcuma domestica 1 0 0
açafrão Zingiberaceae
mukajyp carauá Neoglaziovia spp 1 0 0
Bromeliaceae
maniyp mandiocas Manihot esculenta 14 0 2
Euphorbiaceae
monowi amendoim Arachis hypogaea 26 1 8
Papilionaceae
muãtai’i gengibre Zingiber officinale 1 0 0
Zingiberaceae
namu’a** mangaritos Colocasia spp e Xan- 6 1 2
thosoma spp Araceae
pytem tabaco Nicotiniana tabacum 1 0 1
Solanaceae
tamituaran calatea Calathea sp 1 0 0
Marantaceae
urucu urucum Bixa orellana 2 0 0
Bixaceae

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 267


nome nome espécie e no variedades no variedades no variedades
kaiabi português família cultivadas perdidas ameaçadas*

uruewypy araruta Maranta arundinaria 1 0 0


Marantaceae
wuy’wa cana brava Gynerium sagittatum 1 0 0
Poaceae
y’a cuias e Lagenaria siceraria 12 0 3
cabaças Cucurbitaceae
ykyj pimenta Capsicum spp 7 0 0
Solanaceae
arusi arroz Oryza sativa 2 0 0
Poaceae
juparapa- abacaxi Ananas comosus 2 0 0
rauu Bromeliaceae
kana cana de açucar Sacharum spp 4 0 0
Poaceae
kuirua’uu abóbora Cucurbita spp 2 0 0
Cucurbitaceae
maniatata macaxeira Manihot esculenta 3 0 0
Euphorbiaceae
menãsi melancia Citrullus lanatus 4 0 0
Cucurbitaceae
mõmõ mamão Carica papaya 3 0 0
Caricaceae
pakua banana Musa spp 7 0 0
Musaceae
Totais 154 5 28

* Variedade ameaçada é aquela que muito poucas famílias cultivavam na época do censo,
refletindo um critério quantitativo. Um zero, ou seja, uma planta sem variedades ameaçadas,
quer dizer que, de fato, muitas pessoas estão plantando todas as variedades identificadas.
** Georg Grünberg cita dois nomes para estas plantas, mangarito e taja. No Xingu, contudo, só
observamos o emprego de mangarito, sendo towa o prefixo da palavra que designa dois tipos
de mangarito: towauu e towanaja, o último ao que parece já extinto.
Fonte: levantamento nas aldeias do Parque do Xingu e Kururuzinho, PA, safra 1999-2000.

268 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Assim, as terras pretas foram os locais escolhidos para o estabelecimento das
primeiras aldeias no Xingu, mantendo-se a prática de usar florestas antrópicas para
agricultura, continuando a manipulação da vegetação e dos solos realizada por ou-
tros povos há séculos. O estabelecimento de uma infra-estrutura criada pelos bran-
cos e outros fatores externos ao grupo contribuíram para acentuar um fato aparen-
temente novo para os Kaiabi, a maior sedentarização das aldeias, levando a uma
demanda crescente por recursos naturais finitos, como as terras pretas. Este novo
arranjo social e a pressão sobre recursos estratégicos vêm desencadeando uma
crise para o abastecimento de produtos oriundos da coleta, caça e agricultura, prin-
cipalmente em aldeias maiores, como Tuiarare e Capivara. Esta última reúne as
famílias que vieram transferidas do Rio Tatu’y.
Povos Tupi-Guarani, em geral, não realizam o cultivo de árvores ou o transplante
de mudas nas capoeiras em regeneração ou trilhas (Baleé, 1994). Além dos quin-
tais domésticos, não é comum se ver veredas plantadas pelos Kaiabi, apesar de
haver em algumas aldeias trilhas com frutíferas cultivadas nas suas margens (o que
sugere para a técnica um empréstimo cultural recente). Todavia, práticas de prote-
ção de espécies florestais incluem a tolerância de algumas espécies em meio às
roças (inajá, tucum, jatobá, sumaúma). Também o fogo das queimadas de roças
pode realizar a escarificação de materiais propagativos formando, por exemplo,
inajazais – agrupamentos da palmeira Maximiliana maripa, fortemente vinculados
com o ciclo das roças. O grande conhecimento kaiabi de etologia parece promover,
ainda, o favorecimento de condições ambientais propícias para a fauna, a qual faria
a dispersão de material propagativo de muitas espécies de interesse. Coerente-
mente, os Kaiabi selecionam criteriosamente o local adequado ao sistema de culti-
vo desejado.
A dinâmica do sistema de cultivos dos Kaiabi inclui o calendário de trabalhos
preparatórios (escolha do terreno; determinação do tamanho e forma da roça; roçada
e derrubada; queimada inicial; coivara) e de plantio, desinçamento e tratos cultu-
rais, colheita e armazenagem. Há uma complementaridade nas funções agrícolas,
pelo casal e filhos. Em geral o homem escolhe o terreno, roça e derruba o mato e
realiza os tratos culturais, enquanto a mulher planta e colhe a produção, sendo
auxiliada pelo marido e filhos.
O ritmo das estações é evidenciado pelo calendário agrícola kaiabi. Há diver-
sos tipos de avisos da natureza para sinalizar a época de realizar os trabalhos com
as roças, dentre os quais: o canto do pássaro junyra, que praticamente não pia
durante a estação chuvosa; o aparecimento do gavião towotauu, que só surge du-

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 269


rante a estação seca; a observação visual do abaixamento do Rio Xingu, chamado
de ytyryk; o amarelecimento e queda das folhas da árvore yagyp, na capoeira. O
aparecimento em grande quantidade das borboletas panã-panã nas margens dos
rios é sinal de que o rio não subirá mais; a partir deste momento o nível do rio fica
estável por uns 20 a 30 dias e, depois, começa a descer rapidamente; a floração de
um tipo de ipê de flor escura, tameju’yp, indica que em breve começarão as chuvas,
devendo-se queimar logo as roças; por fim, a época de maturação da fruta api (cer-
ca de 15 de outubro) indica o momento do plantio do amendoim.
Quanto à forma das roças, sabe-se que estas eram antigamente circulares ou
ovaladas, assumindo a forma retangular predominante hoje por assimilação cultu-
ral. Segundo Arupajup, filho mais velho do finado Prepori, na antiga aldeia Krukisa,
no Xingu, eles ainda plantaram uma roça redonda. O tamanho das roças é variável
segundo a composição planejada, o macroambiente de localização e o tipo de solo
escolhido. Observa-se no Parque um padrão próximo dos seis mil metros quadra-
dos para roças de mandioca e para policultivos. Roças maiores podem ter o dobro
ou o triplo desta dimensão, porém os Kaiabi declaram que nunca fizeram roças
muito grandes no Xingu.
A roçada é feita normalmente em três dias de trabalho, podendo contar com
trabalho apenas familiar ou também com convidados. O mesmo tempo é requerido,
em média, para a derrubada da mata com machados. Abre-se a roça por setores,
com posterior acerto de eventuais sobras. Aqui situa-se a primeira revolução
tecnológica do pós-contato: Galvão (1963, p. 124) afirma que na virada do século
apenas os grupos que viviam muito isolados ainda não conheciam e usavam o ma-
chado de aço. Atualmente, os Kaiabi do Xingu estão paulatinamente adotando outra
ferramenta, a motosserra, que está tornando-se a cada ano mais comum, transfor-
mando visivelmente a produtividade do trabalho masculino. Contudo, isto pouco in-
terfere com a dinâmica do trabalho feminino.
A queimada é realizada por grupos de homens, ateando fogos em diversos pon-
tos, das bordas para o centro, em dias com brisa suave e com a roça geralmente
guarnecida por aceiros. Se bem executado o trabalho, as roças queimam bem, po-
dendo fumegar por dois ou três dias. A coivara nem sempre é praticada. Merece
destaque, no entanto, a área central da roça destinada ao cultivo do amendoim, que
é totalmente limpa, tendo galhos e resíduos amontoados e queimados. A dimensão
destas áreas em geral varia entre 600 e 900 m2.
O povo kaiabi não aplica estratégias de fertilização direta em seus campos. To-
davia, plantam seus cultivos mais exigentes próximos a troncos queimados, possi-

270 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


velmente devido ao acúmulo de nutrientes trazidos à superfície, disponibilizados
através das cinzas. O plantio, embora ainda realizado com pau de plantar, em algu-
mas aldeias já vem sendo substituído pela enxada. A figura do ‘especialista em plan-
tio’, aquela pessoa que quando planta proporciona grandes colheitas, também já
está desaparecendo em algumas aldeias. Replantios ocorrem conforme a necessi-
dade. O cuidado com as roças envolve uma ou duas limpeza de ervas, com facão.
Empregam, também, práticas agronômicas e xamânicas para controle de pragas e
doenças.
Após a colheita ainda são empregados jiraus para armazenar a produção. Aque-
les construídos para guardar cará são descobertos, já os destinados para o milho
(y´pe ok awasiryr‰) são cobertos com um telhado rústico de folhas de inajá. Ambos
podem ficar próximos da roça, mas o milho colhido pode ser levado para a aldeia.
Jiraus para estufar banana também são usados, bem como a técnica de enterrio.
A composição e seqüência de cultivos varia com o tipo de terreno, segundo as
necessidades imediatas da família e objetivos da roça. No Parque, áreas que rece-
bem mandioca em terra vermelha são praticamente monocultivos, abrigando even-
tualmente culturas subsidiárias. Roças em terra preta podem apresentar grandes
variações. As mais completas exibem policultivos alimentares com dezenas de es-
pécies e cultivares, mas em geral concentram milho na maior parte de sua superfí-
cie, no primeiro ano. Dependendo da disponibilidade de terras pretas na aldeia, a
mandioca pode ser plantada em consórcio ou em sucessão a outras culturas, no
policultivo. Também, as roças em terra preta podem servir como base para a im-
plantação de pomares, em geral com banana, abacaxi, mamão, caju, citrus e man-
ga, os quais durarão até que a vegetação secundária abafe-os.
O zoneamento interno das roças exibe agrupamentos de plantas, consorciadas
ou não, geralmente em linhas. Cada cultivo ocupa uma posição horizontal e vertical,
em função das particularidades de sinais arqueológicos, do solo, microclima, do
histórico conhecido da área ou interpretado em função da estrutura e composição
da vegetação na época da derrubada. Diferentes culturas ou variedades destas po-
dem ser separadas através de linhas plantadas com mandioca, milho, algodão ou
banana, por troncos queimados ou mesmo um sutil aumento no espaçamento entre
linhas de plantas.
O arranjo das roças afeta a estrutura e composição da sucessão secundária. Há
uma seqüência identificável desde a roça de ciclo curto, passando pelo pomar, está-
gios mais avançados da sucessão até a floresta secundária, englobando espécies
cultivadas, semidomesticadas e silvestres de interesse para os índios. Não há limite

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 271


nítido entre roça e campo abandonado (sucessão secundária), mas sim uma transi-
ção, com variações na intensidade de manejo. O manejo mais intenso dura geral-
mente entre dois a três anos.
Embora possa ser maior, idealmente o pousio pode durar cerca de 15 anos.
Contudo, em muitos casos o esgotamento de terras pretas próximas das aldeias
tem levado a uma severa redução no tempo de pousio, que em alguns casos não
passa de três a cinco anos. A estratégia que é manifestada pelos habitantes destas
aldeias é de acessar capoeiras de terras pretas mais interiores, para permitir o des-
canso e regeneração destes sítios comprometidos. Porém, dada a existência de
um número limitado de terras pretas e seu tamanho reduzido, mantendo-se as atu-
ais taxas de crescimento populacional e a organização das aldeias, pode-se antever
que em médio prazo a pressão por terras agrícolas para cultivos exigentes vai exigir
outra estratégia mais duradoura.
Observando-se a paisagem norte do Parque como uma unidade regional, perce-
be-se padrões de distribuição de sub-unidades com roças e capoeiras, em meio à
matriz de floresta. Estas áreas, em constante alteração, são ligadas por caminhos
por terra e/ou por água (lagoas) que podem ser considerados corredores naturais
para o refúgio da flora e fauna. Em diversos setores, há trilhas preferenciais para
caçar e locais favoritos para pescar. Adicionalmente, estes sistemas agroflorestais
de longo prazo podem abrigar importantes recursos genéticos.
Assim, as roças não se constituem em técnicas isoladas de subsistência, em-
bora individualmente cada família tenha plena liberdade para escolher a composição
e arranjo de componentes. Também, cada família detém a posse da parcela de solo
usada para agricultura apenas enquanto a roça está ativa. É notório um sistema de
manejo da floresta em diferentes zonas ambientais que resulta na formação de
mosaicos de áreas de ecótono, com transições temporais e espaciais, o que favo-
rece também a caça. A integração da agricultura, coleta, caça e pesca, apesar das
mudanças que vêm ocorrendo com o grupo, continua sendo um dos pilares da eco-
nomia kaiabi. [GERALDO MOSIMANN DA SILVA]

A cultura material: mudanças, comércio e resgate cultural


Para a ciência ocidental, o conjunto de objetos produzidos por uma determinada
sociedade, com diversas finalidades, é uma forma de materialização de seus siste-
mas culturais. Portanto, este conjunto de objetos tem sido denominado de “cultura
material”. Após o contato com a sociedade não-índia, muitos povos indígenas co-
meçaram a produzir artefatos não só para o seu próprio uso, mas com finalidade

272 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


comercial. O conjunto de objetos produzidos pelos povos indígenas para o comér-
cio externo passou a ser comumente designado de “artesanato indígena” (Ribeiro,
1983).
Artefatos são instrumentos importantes na manutenção de instituições sociais
e padrões culturais de uma sociedade. Etnógrafos têm demonstrado como estes
objetos, aos quais se associam valores sociais, espirituais e econômicos, podem
ser dados como dotes em casamentos, pagamentos de serviços prestados por
pajés, trocados dentro ou fora do grupo que os produz e também vendidos.
Após a nossa viagem com um grupo de homens e mulheres kaiabi à região do
Tatu’y em 1999, constatamos que fortes laços de parentesco e intercâmbio de
pessoas ainda ocorrem entre os Kaiabi que permaneceram ou retornaram ao Rio
dos Peixes (hoje Terra Indígena Apiaká-Kaiabi ) e os Kaiabi do PIX. Porém, os Kaiabi do
Tatu’y parecem ter perdido (ou mantêm dormente) a habilidade de confeccionar gran-
de parte dos artefatos tradicionais do grupo. No Tatu’y, quase não existem mais
artefatos indígenas: muitas técnicas foram esquecidas e a maior parte dos objetos
foi substituída por produtos industrializados. Por outro lado, os Kaiabi do Xingu ainda
mantêm uma parte significativa de seus artefatos tradicionais registrados por Grünberg
em 1966, mesmo com perdas e mudanças em função do comércio e do contato
com os não-índios e com outros grupos indígenas que habitam o PIX. O comércio
de artesanato com a sociedade não-indígena brasileira pode levar tanto a mudanças
como, às vezes, à manutenção de determinadas técnicas de confecção de artefa-
tos produzidos com finalidade comercial em novos contextos.
No Parque, existe um trabalho de facilitação do comércio de artesanato das co-
munidades Kaiabi, Suyá e Yudja através da Associação Terra Indígena Xingu (Atix)
iniciado em 1997. A Associação tem mantido um capital de giro que possibilita com-
prar das comunidades e vender para algumas lojas especializadas em São Paulo
com as quais mantém relações comerciais. Além disso, existe um fluxo de pesso-
as que vão para Brasília e São Paulo, a fim de realizarem tratamento médico ou
com outras finalidades, e aproveitam para levar artesanato das famílias ou das
comunidades para vender diretamente em lojas especializadas ou na sede do
Programa Artíndia da Funai, em Brasília.(9)

9
O Programa Artíndia foi criado no início da década de 1970, em decorrência do acúmulo de
artefatos indígenas adquiridos pelas equipes da Funai e encaminhados ao Museu do Índio.
Além da matriz, em Brasília, conta hoje com mais seis lojas distribuídas em capitais
brasileiras.

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 273


Muitos homens e mulheres kaiabi do Xingu estão preocupados com a perda,
atualmente, dos conhecimentos relacionados aos seus artefatos. As mudanças
sócio-culturais e ambientais causadas pela transferência do grupo para o Parque do
Xingu, além da aparente falta de interesse dos jovens, como eles mesmo afirmam,
têm causado preocupações quanto à continuidade futura das tradições e dos itens
que compõem a cultura material e, conseqüentemente, a identidade étnica dos Kaiabi.
A palavra-chave agora é o “resgate” ou a “revitalização” da cultura. Muitos Kaiabi
acreditam que devem tomar providências para a perpetuação do seu sistema de
conhecimentos, concretizada a seus olhos em seus objetos materiais, em novos
contextos que vão além dos mecanismos tradicionais de transmissão deste conjun-
to de conhecimentos.
Algumas comunidades e pessoas vêm desenvolvendo projetos e atividades com
esta finalidade. Em 1997, a Atix iniciou, juntamente com a atividade de comercializa-
ção de artesanato, o Projeto Kumana de resgate cultural, que envolvia os povos
Kaiabi, Yuda e Suyá. Foram construídas “Escolas da Cultura” nas aldeias maiores,
com a finalidade de criar um espaço para propiciar o ensino de artesanato e de
outros aspectos da cultura, como contar histórias. O artesanato produzido nestas
escolas seria comercializado via Associação e a verba reverteria para a manuten-
ção do projeto. Este projeto teve duração de dois anos e atingiu resultados diferen-
tes, dependendo da aldeia. A falta de entendimento e de envolvimento das comuni-
dades por um lado, e de acompanhamento da equipe da Atix por outro, foram os
principais fatores que contribuíram para seu fim. No entanto, alguns jovens chega-
ram a aprender a fazer bordunas e trançados de peneiras nestas escolas, principal-
mente nas aldeias Capivara e Kururu Kaiabi.
Existem outras iniciativas de resgate ligados à cultura material kaiabi, com des-
taque para o trabalho de rrevitalização da cestaria e da tecelagem e para as ativida-
des desenvolvidas pelos professores indígenas nas escolas. Mesmo tendo em mente
que a escola não substitui a socialização e as formas tradicionais de transmissão
do conhecimento, nem tampouco o contato íntimo com a natureza e com os recur-
sos naturais, acredita-se que ela possa ser uma aliada neste processo de res-
gate e reprodução cultural, construído com base em uma imagem objetivada de
cultura tradicional, em que vários grupos indígenas brasileiros encontram-se envol-
vidos atualmente.
Se hoje fizéssemos uma descrição dos objetos confeccionados e usados pelos
Kaiabi, nos moldes do trabalho que Georg Grünberg realizou, o panorama iria ser
bem diferente. Primeiro, porque muitos itens são hoje confeccionados com finalida-

274 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


de quase totalmente comercial. Segundo, porque vários itens já não são mais con-
feccionados e, finalmente, as técnicas, a transmissão destas, o significado social
dos objetos em si e mesmo as relações de gênero ligadas à confecção de certos
artefatos também mudaram.
A disponibilidade dos recursos naturais necessários à elaboração dos objetos
da cultura material dos Kaiabi é outro fator que influencia a produção atual, uma vez
que muitos recursos ou não são encontrados ou têm ocorrência limitada na área do
Parque do Xingu. Além disso, o processo de sedentarização das aldeias no PIX,
aliado à destinação de itens para o comércio têm causado uma maior pressão so-
bre alguns recursos, e conseqüentemente, a diminuição de suas populações natu-
rais. Este é o caso do arumã (Ischnosiphon gracilis, Marantaceae), principal fibra
usada para os trançados das peneiras kaiabi e do tucumã (Astrocaryum aculeatum,
Arecaceae), cuja madeira é usada como substituta da siriva (Bactris macana,
Arecaceae) que não ocorre no PIX, para as bordunas e arcos e os frutos para os
enfeites (colares, anéis e pulseiras). O taquari ou camaiúva (Guadua sp), espécie
mais importante para a confecção de flechas de caça, também não ocorre natural-
mente na área do PIX.
Um dos trabalhos em desenvolvimento junto aos Kaiabi é a pesquisa e o manejo
de recursos naturais estratégicos para a reprodução sócio-cultural do grupo. Desde
2000, jovens vêm sendo formados para atuarem como agentes indígenas para o
manejo de recursos naturais no PIX, envolvendo os povos Kaiabi, Suyá, Yudja e
Ikpeng. Atividades de pesquisa e manejo do arumã foram implementadas na aldeia
Sobradinho, com a participação de jovens kaiabi que atuam como agentes de ma-
nejo e da comunidade.
O tucumã é um recurso mais utilizado no PIX do que na área ancestral dos
Kaiabi, pela não disponibilidade da siriva no Xingu. Assim, arcos e bordunas são
agora preferencialmente confeccionados com a madeira escura e resistente desta
palmeira. As bordunas passaram a ter um uso político, além de cerimonial, em fes-
tas esporádicas. Os Kaiabi usam as bordunas com empunhadura trançada de arumã,
com padrões gráficos similares aos da sua cestaria, como símbolo de força, poder
e identidade étnica em reuniões e eventos políticos. Além disso, estes objetos tam-
bém são muito comercializados. Bordunas pequenas, para crianças, são confeccio-
nadas em algumas aldeias para a venda, um tipo de “souvenir” kaiabi.
Os arcos e flechas passaram a ser usados mais para a pesca do que para a
caça. Alguns Kaiabi ainda caçam macacos com flechas, mas muito raramente e
mais para demonstração de sua destreza como caçador do que para prover a

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 275


família. A caça passou a ser feita quase que exclusivamente com o uso de armas de
fogo. Arcos e flechas são usados ainda por ocasião de festas esporádicas, como o
Jawotsi.
A arquitetura kaiabi mudou completamente, não só no Parque do Xingu como
também na aldeia do Rio dos Peixes. Eles praticamente abandonaram as grandes
casas com telhado de duas águas indo até o chão. Adotaram o estilo arquitetônico
que se disseminou na parte norte do Parque, talvez por influência dos Villas Bôas:
casas menores com paredes de pau-roliço, telhado de palha de inajá amarrado
com envira e algumas divisões interiores para os quartos. Em algumas aldeias
do PIX ainda existiam casas de duas águas segundo o modelo tradicional Kaiabi.
Porém, a relativa escassez de inajá na região, a pouca durabilidade deste tipo de
telhado, e o fato das famílias hoje morarem com seus núcleos familiares, ao invés
de constituírem famílias extensas morando na mesma “maloca”, como cita Grünberg,
contribuíram para o desuso do tipo tradicional de habitação.
Os bancos de madeira, antigamente confeccionados segundo um tamanho con-
vencional e usados somente pelos homens, também passaram por uma mudança
significativa. Hoje os Kaiabi estão fazendo bancos de todos os tamanhos possíveis
e começaram a pintá-los com o objetivo de torná-los mais atraentes para o comér-
cio. Esta pintura nos bancos começou a ser feita em 1997, na aldeia Kururu, e logo
foi adotada por pessoas em outras aldeias também. Os Kaiabi inspiraram-se nos
Yudja, que tradicionalmente confeccionam bancos de madeira pintados com dese-
nhos da sua pintura corporal. Os Kaiabi passaram então a usar a mesma tinta em-
pregada pelos Yudja, aplicando nos bancos padrões gráficos oriundos de sua cestaria
(Athayde, 1998). Em algumas aldeias, os jovens também se envolveram na pintura
dos bancos, que passaram a ser vendidos mais facilmente.
Também as cuias e cabaças, a exemplo das registradas por Max Schmidt (1942),
voltaram a ser decoradas com incisões, por alguns homens, com finalidade comer-
cial. Os Kaiabi de algumas aldeias inspiraram-se em um documento elaborado por
Klinton Senra (1997), contendo fotografias de objetos kaiabi da coleção do Museu
Nacional e do Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Além dos desenhos que eles cos-
tumavam representar nas cabaças, agora vários outros padrões, principalmente
originários da pintura das peneiras, estão sendo empregados nas cuias e cabaças.
Os recipientes de entrecasca de árvore ainda podem ser observados em algu-
mas casas. Também são confeccionados para a venda, mas o valor pago pelos
compradores é irrisório em função do trabalho despendido para confeccionar esta
“mala do índio”, denominação em português dada pelos Kaiabi. Alguns homens mais

276 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


OS KAIABI NO PARQUE INDÕGENA DO XINGU

Simone Ferreira de Athayde


Posto Indígena Diauarum, (1997)

André Villas-Bôas

Aldeia Capivara (2002)

Os Kaiabi no Parque Indígena do Xingu


Fotos: Simone Ferreira de Athayde
Preparação de polvilho, aldeia Maraká (1999)

Atividades na Casa de Cultura, aldeia Capivara (1997)

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Fotos: Simone Ferreira de Athayde
Tuiarajup, cacique da aldeia
Kwaruja, usando a técnica de
pintura posterior das peneiras
(1999)
Kaw†ta’i, cacique da aldeia Kururu,
fazendo peneira (1998)

Tecelagem, aldeia Tuiarare (1998)

Os Kaiabi no Parque Indígena do Xingu


Fotos: Simone Ferreira de Athayde
Jeruá, aldeia Maraká, preparando
cuias (1999) Tymaka’i, falecido em 2002, o último
Kaiabi do Rio dos Peixes que sabia
fazer panak‰ (1999)

Mairawê Kaiabi, que presidiu a Atix por


dez anos, empunhando a borduna
tradicional

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Geraldo Mosimann da Silva
Simone Ferreira de Athayde

Aracy Kaiabi, professora da aldeia Maraká,


com brincos e tatuagem tradicional (1999)

Kamiran enfeitado para a festa


Simone Ferreira de Athayde

Jawotsi, aldeia Maraká (1999)

Banco (kanawá) pintado com padrão da


cestaria (1998)

Camila Gauditano

Escola da aldeia Três Irmãos (2003)

Os Kaiabi no Parque Indígena do Xingu


Simone Ferreira de Athayde
Na página ao lado, o desenho de
Sirawan Kaiabi e dos alunos da
escola da aldeia Kwaruja mostra
o caminho percorrido para trazer
as sementes da área ancestral
Prepori (Jepepyri) exibe sementes do Rio dos Peixes até o Parque
de variedades tradicionais (1999) do Xingu.
Geraldo Mosimann da Silva

Colheita de amendoim na aldeia Kwaruja (2003)

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Os Kaiabi no Parque Indígena do Xingu
Festa Jawotsi, celebrada na aldeia Maraká (1999)

fotos: Geraldo Mosimann da Silva

Festa para Kupeirup comemora a multiplicação das


variedades de amendoim. Ao lado, Tuiarajup Kaiabi,
filho de Prepori (2003)

Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


velhos ainda usam o u’yp wir‰ (recipiente para flechas) para guardar penas, flechas
e outros utensílios. As propriedades mágicas deste objeto foram enfatizadas por um
mito contado por Tarumani Kaiabi, da aldeia Kururu. Segundo ele, antigamente os
colares e cintos de tucumã não precisavam ser feitos pelos homens com as mãos,
conta a conta, individualmente. Bastava colocar os caroços de tucumã dentro da
mala, que depois de alguns dias as contas apareciam prontas e já enfiadas em
cordão: saía um cordão bem comprido de contas de tucumã pronto de dentro da
mala de entrecasca. Na mitologia kaiabi, o Lua era um irmão teimoso de Tuiarare, o
herói mítico que criou o povo Kaiabi . Ele sempre queria fazer as coisas sozinho,
mesmo quando seu pai dizia para não fazer. Então, ele quis fazer sozinho as contas
de tucumã para os cintos. Por isso os Kaiabi têm de fazer todo o trabalho com o
tucum até hoje.
Grünberg já havia mencionado a habilidade dos homens kaiabi em trabalhar com
os frutos de tucumã e inajá para fazer adornos como cintos e colares. Segundo ele
afirma, esta habilidade teria, na visão Kaiabi, suas origens em um tempo mítico,
onde eles eram animais como a paca e a cutia, que se alimentavam dos frutos
destas palmeiras. Também, antes do surgimento das plantas cultivadas, os própri-
os Kaiabi, já na forma humana, se alimentavam com os frutos destas plantas. Anti-
gamente, antes da transferência dos Kaiabi, este era um trabalho exclusivamente
masculino. Atualmente, a arte de confeccionar colares, pulseiras e cintos passou a
ser um trabalho quase que exclusivo das mulheres. Elas contam que aprenderam a
fazer colares de tucum e inajá com figuras zoomorfas com os Munduruku. A venda
de colares é uma das principais fontes de renda das mulheres kaiabi, além de se-
rem objetos de troca constante entre elas mesmas e com os não-índios que traba-
lham no PIX. Já os colares de sementes e de conchas quase não são mais confec-
cionados pelos Kaiabi do Xingu. Várias conchas existentes na região do Rio dos
Peixes não existem no Xingu, bem como sementes especiais, substituídas em grande
parte por miçangas industrializadas.
As peneiras desenhadas de arumã, confeccionadas pelos homens para as mu-
lheres fiarem algodão, representam os objetos mais elaborados da cultura material
kaiabi. Berta Ribeiro (1987), com base no trabalho de Grünberg e em um levanta-
mento de campo que efetuou entre os Kaiabi entre 1977 e 1981, escreveu um artigo
sobre o significado simbólico dos padrões gráficos representados nas peneiras dos
Kaiabi . Em um trabalho anterior, Berta Ribeiro (1980) afirmou que os Kaiabi, os
Paresi e os Tapirapé são os únicos grupos indígenas brasileiros que empregam a
técnica de pintura posterior de peneiras em sua cestaria. Ao invés de pintarem as

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 285


talas de arumã antes de começar o trançado, os Kaiabi usam a face lisa (ventral) e
a rugosa (dorsal) das talas para demarcar os padrões de desenho. A peneira é
totalmente pintada com a tinta avermelhada da casca de jequitibá (Cariniana sp).
Depois de seca ao sol, esta tinta é raspada, revelando o desenho que fica aderido à
parte interna da tala.
Conta o mito de criação do povo Kaiabi, também registrado por Grünberg em
1966, que Tuiararé, o herói demiurgo, era um grande pajé. Ele ficava horas em sua
rede trançando peneiras de arumã, cujos restos acumulavam-se embaixo da rede.
À noite, aparecia uma lagarta que morava nos ciscos de arumã e que se transfor-
mava em sua mulher. Até que sua mãe varreu aquela “sujeira” de arumã e a primei-
ra mulher lagarta de Tuiararé foi embora.
Em 1966, Grünberg registrou 12 padrões gráficos representados nas peneiras
pintadas pelos Kaiabi do Rio dos Peixes. Em nossa visita à aldeia do Rio dos Peixes
em 1999, apesar da disponibilidade de arumã na região, registramos o desapareci-
mento quase completo das peneiras desenhadas. Somente um homem mais velho,
Tymaka’i, ainda dominava a técnica por lá. No PIX, a falta de arumã é um fator
preocupante, mas o repertório de desenhos ainda está sendo mantido, principal-
mente entre os homens de meia idade e mais velhos. Está atualmente em andamen-
to um trabalho de resgate cultural das peneiras kaiabi, coordenado pelo professor Aturi,
da aldeia Tuiararé. Fizemos nas aldeias, em publicações e em museus etnográficos
do Brasil e do exterior, um levantamento fotográfico detalhado sobre os padrões de
peneira, reunidos em um livro(10) a ser completado e publicado. Registramos até o
momento a existência de 22 padrões gráficos para as peneiras kaiabi. Segundo
Grünberg, um dos padrões considerados mais complexos (ta’agap = figura, dese-
nho de gente) foi aprendido com os Apiaká. Kupeap, filho do falecido Temeoni e hoje
um dos Kaiabi mais velhos, morador da aldeia Capivara, afirmou que alguns pa-
drões foram aprendidos com os Apiaká, mas os Kaiabi já trançavam peneira antes.
O aprendizado das peneiras se dá sobretudo por observação e contagem. Al-
guns homens mais habilidosos conseguem reproduzir qualquer padrão gráfico a
partir de fotografias e desenhos. Em algumas aldeias, como no Kururu, desenhos
que já estavam sendo esquecidos voltaram a ser confeccionados a partir do livro
que está sendo organizado. Esta forma de aprendizado reflete um dos mitos Kaiabi,

10
O livro reúne fotografias tiradas por Grünberg em 1966, tiradas em museus de São Paulo
(Museu de Arqueologia e Etnologia da USP) e Rio de Janeiro (Museu Nacional e Museu do Índio)
e nas várias aldeias do PIX (Athayde, 1999).

286 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


em que um herói mítico viaja para o Rio Xingu para buscar cana-brava(11) e passa
por várias aventuras até encontrar a casa onde viviam as serpentes, onde fica apri-
sionado. Ele começa a dizer vários nomes de animais e a serpente afirma não ter
medo de nenhum, até que ele chama o nome do gavião Acauã. A serpente fica
com medo e o herói pega um pedaço de peneira trançada que estava na parede e
sai correndo pela porta, levando o pedaço de peneira desenhada para sua aldeia.
Dizem que foi a partir desta peneira que ele aprendeu o trançado e ensinou para o
povo Kaiabi (Athayde, 1999).
O panak‰ ou jamaxim, um cesto grande de arumã desenhado usado para guar-
dar redes, já estava em processo de desaparecimento em 1966, conforme Grünberg
registrou. Hoje, somente um homem mais velho (Tarumani Kaiabi, aldeia Kururu)
ainda tem a habilidade para elaborar este cesto. No Xingu, além de não existir arumã
suficiente, nas poucas populações existentes as talas são curtas, não se prestando
à confecção deste cesto.

***

A tecelagem kaiabi também passou por uma mudança significativa depois da


transferência do grupo para o PIX. Grünberg registrou a técnica do trançado “torci-
do” (twined) das redes e tipóias kaiabi, empregada por vários outros grupos Tupi
(Ribeiro, 1984/85). No Parque do Xingu, as mulheres kaiabi aprenderam com as
mulheres yudja a técnica do entretecimento sarjado (twilled), que permite o desen-
volvimento de desenhos geométricos. As mulheres e homens confirmam esta mu-
dança tecnológica em relação à tecelagem aprendida com os Yudja na década de
1970, porém eles afirmam que os desenhos geométricos empregados nas redes e
tipóias são retirados dos padrões gráficos da cestaria kaiabi. Assim, os homens
“iniciaram” para algumas mulheres os padrões geométricos nas redes e tipóias,
que depois aprenderam sozinhas e passaram elas mesmas a criar ou copiar outros
padrões. Hoje, quase todas as casas possuem uma rede tecida à mão, que é sinal
de status e de destreza para as mulheres. Mas a maioria das redes utilizadas pelos
Kaiabi atualmente são industrializadas, tendo em vista o trabalho para fiar e tecer
uma rede, o qual leva de um a dois meses.
A cerâmica kaiabi pode ser considerada um item extinto de sua cultura material.
Isto se deve por um lado à transferência do grupo para o Xingu, onde não existe o

11
O Rio Xingu é denominado Wywa’y na língua kaiabi, e quer dizer “rio da cana-brava”.

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 287


barro especial que os Kaiabi buscavam na região do Tatu’y (em excursões que dura-
vam até três dias de canoa); e por outro à crescente disponibilidade de panelas de
alumínio industrializadas no PIX. Há alguns anos atrás, houve um movimento de
resgate da cerâmica por algumas mulheres kaiabi, mas a falta de barro apropriado e
a necessidade de empregar outras matérias-primas (como o cauixi, espongiário
usado pelas ceramistas do Alto Xingu, como as Waurá), além da fragilidade de algu-
mas panelas confeccionadas, contribuíram para o arrefecimento desta iniciativa.
Um outro grupo de artefatos que merece destaque aqui é o dos instrumentos
musicais. Grünberg menciona a existência de quatro tipos de flautas entre os Kaiabi
do Tatu’y. Atualmente, no Parque do Xingu, a única flauta ainda usada esporadica-
mente é a de osso de onça ou, segundo Grünberg, “flauta com bocal lateral e defletor
interno” (ja’wakang, ou apito de osso de onça), tocada pelos pajés para rezar os
doentes. As flautas do tipo reta (awawa), a flauta de pã (jumia’uu) e o trompete
transverso (cf irerujumi’a) não são mais confeccionadas e nem tocadas pelos ho-
mens kaiabi.
As mudanças que ocorreram em relação à produção material dos Kaiabi nos
últimos 37 anos refletem a dinâmica que caracteriza toda forma de expressão artís-
tica, constantemente em transformação. Algumas técnicas são perdidas, outras
são aprendidas, enquanto outras são modificadas. A possibilidade de destinar os
artefatos ao comércio externo é um fator que tem tido grande influência na produção
de objetos e na distribuição do trabalho artesanal entre homens e mulheres.
Por outro lado, o isolamento relativo dos Kaiabi das cidades e dos não-índios
após sua transferência para o Parque do Xingu parece ter contribuído, de forma
relativa, para a manutenção de seu repertório de artefatos tradicionais, mesmo com
os intercâmbios culturais que ocorreram e continuam ocorrendo entre os Kaiabi e
outros povos indígenas que habitam o Parque. Além disso, há que se considerar
que a área do Parque é pelo menos duas mil vezes maior do que a atual área dividi-
da entre os Kaiabi, os Apiaká e os Munduruku no Rio dos Peixes. No Rio dos Peixes,
a proximidade da cidade e dos não-índios, além do número pequeno de represen-
tantes Kaiabi que lá permaneceram ou que voltaram após a transferência, parecem
ter causado a perda de muitos aspectos da cultura do grupo: entre eles, a perda da
habilidade de produzir seus objetos de uso rotineiro e/ou ritual.
O movimento de alguns Kaiabi do Xingu que buscam um resgate da sua cultura
e das suas artes reflete uma preocupação geral de que hoje, as mudanças estão
acontecendo muito rapidamente. Também estão presentes reflexões entre as co-
munidades sobre a relação entre artesanato e cultura e o que significa produzir

288 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


apenas para o comércio. Um jovem pode saber fazer um banco, mas pode não
saber o significado e a história deste objeto para seu povo. De quê adianta perpetuar
as técnicas se o conhecimento associado a elas está sendo perdido? Assim, os
Kaiabi têm buscado novos mecanismos para a transmissão do conhecimento as-
sociado à cultura material por meio das escolas indígenas e/ou de projetos comuni-
tários. Como disse Mairawê Kaiabi, líder político e presidente da Atix, durante uma
reunião: “Sem isso (a cultura, o conhecimento tradicional) a gente não é nada. Não
adianta a luta política, a gente estar aqui lutando, porque (...) sem a nossa cultura, se
os nossos filhos não sabem trançar uma peneira, se a gente perder a língua, a gente
não é nada (...)”. [SIMONE FERREIRA DE ATHAYDE]

A cultura como instrumento


Quando Georg Grünberg colocou os pés pela primeira vez em uma aldeia kaiabi,
em novembro de 1965, o grupo que habitava o Rio dos Peixes passava por uma
dramática experiência de conflito permanente com seringueiros o que, em 1966,
acabou resultando na transferência de grande parte do povo Kaiabi para o Parque
Indígena do Xingu. No início de seu trabalho, Grünberg anotou de forma enfática:
“Neste nosso decênio certamente não se pode exigir de nenhum etnólogo que es-
creva monografias tribais com a consciência tranqüila. Se ele se propõe tarefa des-
sa ordem, o faz sabendo aspirar a algo impossível”. Grünberg acabaria por se tornar
testemunha ocular da última operação de transferência, iniciada um pouco mais de
uma década antes, com o deslocamento dos Kaiabi do Rio Teles Pires para o Xingu,
tornando-se inclusive passageiro no vôo organizado pelos Villas Bôas que levou
parte dos Kaiabi do Rio dos Peixes para o Parque do Xingu. A sensação, inescapável
naquele momento, era de que a história estava se fazendo à revelia dos povos indí-
genas, a reboque do que acontecia a sua volta. Um sentimento de perda, de débâcle
cultural quase podia ser tocado em tudo transparecendo uma idéia de que estavam
inevitavelmente perdendo algo para sempre. Ou então tinha-se uma imagem confu-
sa, misturada, onde a presença de elementos brancos e índios, modernos e tradicio-
nais, indicava mais um estado de degeneração social e cultural do que um processo
vivo, dinâmico, de transformações e apropriações, embora sob um contexto novo e
imprevisível. O próprio texto de Grünberg reflete bem esta situação ao colocar lado a
lado esta imagem e uma etnografia propriamente dita da cultura material e da orga-
nização social do grupo em seus aspectos tradicionais. Grünberg viu os Kaiabi com
os olhos treinados do pesquisador e também com a sensibilidade que ao longo dos
anos sempre exibiria pela causa indígena.

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 289


Esta característica perpassou grande parte das etnografias produzidas sobre
grupos indígenas no Brasil nas décadas de 60 e 70. Falando especificamente sobre
a etnologia Tupi-Guarani deste período, Viveiros de Castro observa que esta “pare-
cia esgotada e seu objeto voltado à desaparição concreta” (1986: 95-96). Os Kaiabi,
assim como os Gorotire,(12) para citar um exemplo não Tupi-Guarani, visitados pela
primeira vez por Terence Turner poucos anos antes, em 1962, “pareciam viver uma
vida dupla, uma verdadeira esquizofrenia entre o indígena e o moderno” (Sahlins
1997: 123). Duplicidade esta que parecia se cristalizar, no caso Kaiabi, nos comen-
tários de Grünberg sobre alguns de seus informantes. Falando de Temeoni, o último
grande líder tradicional do grupo, reconhecido assim por índios e brancos, transparece
uma sensação de ocaso pela qual o grupo parecia estar passando, sentimento este
que parecia emanar dos próprios índios, pelo menos de alguns: “Talvez fosse o
único (Temeoni) a ter plena consciência da amplitude da catástrofe sofrida pelos
Kaiabi desde seu contato com os brasileiros. Ele se negava até a pronunciar uma
única palavra em português”. Já Yuparyup “tratava-me como a um colega e procura-
va despertar a impressão de que tinha mais em comum com os ‘padres’ e comigo
do que com os demais Kaiabi”. Prepori, por sua vez, parecia concentrar em si toda
a aparente contradição vivida pelo grupo. Ele, de alguma forma, sintetizava e
mimetizava todo o processo: “Provável mestiço de um mulato e uma Kaiabi do alto
Teles Pires, ele desde cedo aprendeu a conhecer e a odiar a exploração de seus
companheiros de tribo pelos seringueiros. (...) Percorreu nos anos seguintes todo o
vale do Tele Pires habitado pelos Kaiabi, convencendo-os a fugir de seus donos e a
transferirem-se para o Parque Nacional, onde lhes era oferecida segurança. (...)
Falava bem o português, apresentava-se cônscio de si mesmo e manifestava em
relação a mim o comportamento típico de um brasileiro. Respondia prontamente
todas as minhas perguntas, mas parecia adotar elementos dos brasileiros e dos
Kamayurá, principalmente na narração de mitos, designando-os de maneira sincrética
como ‘realmente Kaiabi’”.
As perspicazes observações de Grünberg sobre seus informantes, principal-
mente sobre o também perspicaz Prepori, que viria a se tornar o mais importante
xamã dos Kaiabi, o clássico interlocutor de dois mundos, já na época mostrava a
germinação de um processo de conscientização e objetivação da cultura que toma-
ria corpo ao longo do tempo entre seu grupo e em grande parte dos grupos indíge-
nas pelo mundo afora.

12
Trata-se dos Kayapó Gorotire, do tronco lingüístico Macro-Jê.

290 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Com a maior parte de sua população exilada de seus territórios tradicionais,
vivendo no Xingu uma nova realidade ambiental e sócio-cultural em um processo de
integração crescente com a sociedade envolvente que já remontava há algumas
décadas, não se podia prever na época que os Kaiabi iriam fazer de um discurso
consciente sobre sua cultura um instrumento de sua própria diferenciação cultural.
Hoje, se a publicação da tese de Grünberg é de interesse de antropólogos e afins,
ela o é muito mais para os próprios Kaiabi que olham para sua cultura, ou para uma
construção específica desta, de uma maneira muito diferente do que faziam em
1966. O que parecia já germinar em Prepori era este processo que levaria os Kaiabi
a ver também a sua cultura como produto social deles próprios, de usá-la reflexiva-
mente e instrumentalmente na construção de sua identidade étnica, dela ser não
apenas uma herança mas também um projeto, como bem observa Marshal Sahlins
a respeito de outros povos (1997: 131).
Desde as pesquisas de Grünberg, os Kaiabi vêm se apropriando de um certo
discurso sobre sua cultura encontrando-se engajados em um processo dinâmico
de construção de sua etnicidade, como sempre estiveram, só que agora sob um
novo contexto. Em uma série de artigos, Jean Jackson elabora uma forte crítica a
uma visão essencialista de cultura, inadequada para a compreensão da dinâmica
de absorções e reinvenções característica dos movimentos étnicos atuais. Grande
parte da dificuldade que temos em compreender esta dinâmica derivaria de “uma
visão convencional do conceito de cultura baseado em uma analogia quase biológi-
ca na qual um grupo de pessoas é visto como ‘tendo’ ou ‘possuindo’ uma cultura no
sentido em que uma espécie animal tem peles ou garras” (1994: 383). Trata-se,
basicamente, de uma crítica à visão de cultura como um conjunto que as pessoas
simplesmente herdam. Falando a partir do exemplo Tukano, Jackson considera que
os vê atualmente como pessoas que estão “adquirindo” uma cultura. Paradoxal-
mente, embora sejam índios, os Tukano estão adquirindo “uma cultura indígena”
como resultado de um processo político de conscientização e objetivação. Os Kaiabi,
através de sua Associação, de sua atuação política no contexto regional e de seus
projetos e discursos de ‘revitalização cultural’ estão no mesmo processo. Ambos,
em verdade, estão fazendo o que sempre fizeram, utilizando valores culturais para
se diferenciarem enquanto grupo com a relação a outros grupos.
A questão de fundo passa então a ser uma discussão sobre a autenticidade ou
não autenticidade dos discursos de revitalização cultural levados a cabo pelos mo-
vimentos indígenas. Tal discussão, em torno da autenticidade ou não desse movi-
mento no qual os índios parecem estar ‘tornando-se índios’, não tem sentido “se

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 291


vemos cultura como algo dinâmico, algo que as pessoas utilizam para se adaptar a
condições sociais e ambientais em transformação e como algo que é por sua vez
adaptado” (1994: 385). Jackson sugere que vejamos a cultura, menos como um con-
junto de características herdadas de uma maneira estática e mais como uma improvi-
sação de um grupo de jazz, na qual muitas variáveis entram em jogo (1994: 385).
O interessante é que a noção de cultura que subjaz a esses projetos é exata-
mente a de um conjunto de traços, ou seja, o mesmo enfoque que Jackson critica
como responsável pelas nossas dificuldades na interpretação dos movimentos indí-
genas. O discurso Kaiabi sobre a ‘cultura’ não começou agora. Há vinte anos atrás,
Prepori, um importante xamã e líder Kaiabi, lamentava que seu filho, criado por civi-
lizados tirando látex, não soubesse caçar com arco nem fazer yrupem, as famosas
peneiras do grupo. Acostumado a conversar com antropólogos e tendo passado
muito tempo com os Villas Bôas em suas expedições, Prepori já fazia uso nessa
época de um vocabulário próprio dessas pessoas. Em uma conversa com Berta
Ribeiro afirmava: “índio novo precisa fazer cesta, dançar, senão cultura acaba” (Ri-
beiro 1979: 100). Atualmente a palavra cultura está na boca de todos. Em 1992, um
jovem Kaiabi comentava em tom triunfante com uma pesquisadora americana: “Aqui
no Xingu nós estamos criando cultura” (Oakdale 1996: 21). Os Kaiabi seguem seu
caminho apesar dos grandes revezes do passado e também do presente.
No caso Tukano, analisado por Jackson em seus artigos, a apropriação e a
objetivação da ‘cultura’ parece estar muito ligada com a organização política dos
índios em suas associações. Naquela área é forte a atuação da igreja e de organiza-
ções não-governamentais que também contribuíram para essa autoconscientização.
Para o caso do Parque do Xingu a situação é um pouco diferente. A formação e
proliferação de associações indígenas no PIX é bem mais recente se comparada a
outras regiões.
As lutas dos Kaiabi de hoje são outras e requerem novas armas. Em 1995 os
índios da parte norte do Parque Indígena do Xingu, região habitada majoritariamente
pelos Kaiabi, resolveram criar uma associação para defender seus direitos e tentar
implementar alguns projetos na área. Nascia, então, a Associação Terra Indígena
Xingu (Atix) incorporando mais uma entidade ao crescente movimento indigenista
brasileiro. A Associação conta em sua diretoria com membros das etnias Juruna
(Yudja), Suyá, Trumai, Txikão e Kaiabi, além de um conselho que reúne represen-
tantes de quase todas as 14 etnias presentes no PIX. A iniciativa para a criação da
Atix partiu principalmente dos Kaiabi, que, através dela, estão envolvidos em vários
projetos relacionados com a sustentabilidade ambiental, econômica e sócio-cultural

292 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


dos grupos que habitam o Parque. Diferente das outras associações indígenas do
Parque, estreitamente vinculadas a etnias específicas, a Atix – que sintomaticamen-
te não carrega em seu nome uma denominação indígena particular – tem uma pers-
pectiva de propor ações para o Parque como um todo, representando, em algumas
instâncias e projetos, todos os grupos. É interessante que uma iniciativa com este
caráter tenha partido exatamente de um povo transferido para a área e não dos
próprios xinguanos. Isto, pelo menos em parte, explica-se precisamente pela não
inserção dos Kaiabi no complexo sistema de relações historicamente construído
entre os grupos xinguanos.
Dentre os projetos desenvolvidos pela Atix destaca-se, pelo seu significado para
o tema aqui exposto, o das “Escolas de Cultura”, que prevê a construção de casas
nas aldeias destinadas a servir, principalmente, como local de ensino e aprendizado
de técnicas artesanais em desuso ou dominadas por poucas pessoas atualmente.
Assim, procura-se utilizar um espaço institucional típico da sociedade envolvente
criando uma nova alternativa ao processo tradicional de transmissão do conheci-
mento. A Atix também apoia a realização de excursões para coleta de materiais e
incentiva a realização das festas tradicionais.
Embora a criação através da Atix de um projeto como o das “Escolas de Cultura”
sedimente e evidencie o processo de objetivação da cultura, nos termos aqui expos-
tos, não é possível afirmar que seja o responsável por essa conscientização. Como
a igreja nunca atuou dentro do Parque podemos afirmar que a idéia de cultura, retida
pelos índios, como um conjunto de traços advém de seus contatos com a socieda-
de brasileira fora do Parque e com pesquisadores, eventuais viajantes e administra-
dores do Parque.
Berta Ribeiro escreveria em seu diário de 1977 que Prepori era “um exemplo vivo
de índio aculturado e biologicamente mestiçado que procura conciliar uma vivência
da cultura tribal, por sua condição de pajé e líder Kaiabi, com uma participação no
modo de ser dos caboclos da região” (1979:100). Um pouco mais adiante colocava
a necessidade de se mostrar aos índios que “tão importante quanto aprender a ler e
escrever é ensinar às novas gerações a fazer seus artefatos, porque isso é que,
entre outras coisas, faz o índio Kaiabi identificar-se como Kaiabi, o Juruna como
Juruna...” (1979: 140).
Os grupos que habitam o Alto Xingu têm sido considerados, no senso comum,
por uma série de fatores e por diversos atores, como exemplos, por excelência, da
cultura indígena tradicional. Grande parte dessa reputação deve-se aos irmãos Villas
Bôas que contribuíram decisivamente para a construção de uma imagem do Alto

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 293


Xingu como um paraíso natural, cultural e supostamente isolado, como acreditavam
que sempre esteve, já que acreditavam que em 1940 os índios estavam vivendo
exatamente como em 1884, época da viagem do famoso etnólogo alemão Karl von
den Steinen (Villas Bôas 1973: 13).
Como resultado da reputação que se formou e do incentivo dos Villas Bôas, os
povos do Alto Xingu têm historicamente recebido o maior número das visitas que
chegam ao Parque sejam de antropólogos, cineastas, autoridades do governo ou
simplesmente celebridades atrás de algum exotismo. Já se tornou corriqueiro o con-
vite a pessoas importantes para acompanharem a celebração do ritual intertribal
mais famoso da área, o Kwarup. Curiosamente, devido ao maior afluxo de bens e
pessoas para o Alto Xingu, os povos dessa área, supostamente mais isolados e
identificados como guardiões da autêntica tradição indígena, acabaram por se tor-
nar uma fonte de produtos não-indígenas para os outros grupos do Parque. Não é
incomum, por exemplo, que os Kaiabi troquem penas de aves, colares de tucum ou
inajá e outros itens artesanais por roupas, lanternas, armas etc., com os alto xinguanos.
Em contraste com os alto xinguanos, os Kaiabi historicamente têm sido consi-
derados mais como caboclos que índios. Berta Ribeiro, em viagem pelo Parque em
1977, encontrou-se com dois cineastas poloneses que lá estavam decididos a fazer
um filme com os verdadeiros índios do Xingu. Para eles os Kaiabi eram como cam-
poneses porque “usavam roupas, não faziam rituais e moravam em casas distan-
tes umas das outras e não em aldeias” (1979: 11). Vinte anos depois tive a oportuni-
dade de ver a cena se repetir quando encontrei-me com duas pessoas enviadas
pelo Discovery Channel ao Parque com o objetivo de agendar com os índios a rea-
lização de uma série de filmes. Embora tenham descido no Posto Diauarum, área
de maior influência dos Kaiabi, não manifestaram interesse pelo grupo indo no dia
seguinte para o Alto Xingu. Diferentemente dos poloneses encontrados por Berta,
os ingleses do Discovery se mostraram bastante conscientes de que estavam atrás
de estereótipos. Pessoalmente, consideravam igualmente importante e interessan-
te fazer um filme com os Kaiabi, porém, segundo argumentaram, o mesmo não
poderia ser dito dos executivos do canal ou dos telespectadores.
Independente de sua opinião pessoal, o fato é que a presença dessas pessoas,
e os filmes que irão fazer, reforçarão os estereótipos e a entrada de bens ocidentais
que circularão dentro do Parque a partir do Alto Xingu. O fato novo é que, neste
momento, a atitude de indiferença dos cinegrafistas para com os Kaiabi está tendo
o efeito de incentivá-los em seus projetos de revitalização cultural dentro de um
contexto onde a indianidade possui novos valores.

294 Os Kaiabi do Brasil Central – História e Etnografia


Esses são apenas pequenos exemplos e poderíamos citar outros que sugerem
como a atuação de antropólogos e outros pesquisadores na área contribuem, direta
ou indiretamente, para a sedimentação de uma peculiar noção de cultura por parte
dos índios. Independente do que se faça, a simples presença de antropólogos ou
outras pessoas com algum discurso sobre cultura na área, serve para reforçar e
fazer com que cada vez mais os Kaiabi, como a maioria dos outros grupos, se
utilizem objetivamente da cultura ‘que os brancos querem ver’, enquanto vivem uma
cultura que é muito mais do que isso.
Em sintonia com Sahlins, acreditamos que “não há sentido em lamentar por
‘inautênticas’ as formas de adaptação dos povos locais ao Sistema Mundial, sequer
quando eles se apropriam das imagens ocidentais do ‘nativo’ como signos de sua
própria alteridade – seja com propósitos aparentemente benignos (como quando os
‘nativos’ utilizam, em benefício próprio, toda a sabedoria ecológica que o movimento
ambientalista lhes imputa), seja com propósitos explicitamente comerciais (como
na exploração do mercado turístico ávido por danças ‘nativas’, artefatos ou coisa
que o valha). É assim que se faz a história cultural, em um intercâmbio dialético do
global com o local. Pois ficou bem claro agora que o imperialismo não está lidando com
amadores nesse negócio de construção de alteridades ou de produção de identidades”
(Sahlins 1997: 133). Neste cenário, impõe-se agora aos Kaiabi, e a todos nós, o
desafio de construir a sustentabilidade das bases ambientais e sócio-culturais que
permitam a reprodução de um modo de ser diferenciado, onde a transformação e a
mudança, inerente a qualquer grupo humano, opere não no sentido da homogeiniza-
ção, mas sim da manutenção da diversidade. [KLINTON V. SENRA]

Os Kaiabi hoje: aspectos culturais e ambientais 295


Referências bibliográficas do posfácio
BALÉE, William. The culture of Amazonian forests. In: POSEY, Darrel A.; BALÉE, William
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O Instituto Socioambiental (ISA) é uma associação sem fins lucrativos, qualificada como Organiza-
ção da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), fundada em 22 de abril de 1994, por pessoas
com formação e experiência marcante na luta por direitos sociais e ambientais.
Com sede em São Paulo e subsedes em Brasília (DF) e São Gabriel da Cachoeira (AM), além de
bases locais para a implantação de projetos demonstrativos, o ISA tem como objetivo defender bens
e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos
humanos e dos povos.
O ISA produz estudos e pesquisas, implanta projetos e programas que promovam a sustentabilidade
socioambiental, valorizando a diversidade cultural e biológica do país.

Para saber mais sobre o ISA consulte www.socioambiental.org

Conselho Diretor
Neide Esterci (presidente), Enrique Svirsky (vice-presidente), Beto Ricardo, Carlos Frederico Marés, Laymert Garcia
dos Santos, Márcio Santilli, Nilto Tatto, Sérgio Leitão, Sérgio Mauro [Sema] Santos Filho
Diretor executivo: Sérgio Leitão
Diretor executivo adjunto: Nilto Tatto
Coordenadores de Programas e Atividades Permanentes:
Adriana Ramos, Alicia Rolla, André Villas-Bôas, Ângela Galvão, Beto Ricardo, Fany Ricardo, Márcio Santilli,
Maria Inês Zanchetta, Maria Isabel Pedott, Marina Kahn, Marussia Whately, Nilto Tatto e Rodolfo Marincek

Apoio institucional:
ICCO – Organização Intereclesiástica para Cooperação ao Desenvolvimento
NCA – Ajuda de Igreja da Noruega

São Paulo São Gabriel da Cachoeira Brasília


Av. Higienópolis, 901 Rua Projetada 70 – Centro SCLN 210, bloco C, sala 112
01238-001 Caixa Postal 21 – 69750-000 70862-530
São Paulo – SP – Brasil S. G. da Cachoeira – AM – Brasil Brasília – DF – Brasil
tel: (11) 3660-7949 tel: (97) 471-1156/2193 tel: (61) 349-5114
fax: (11) 3660-7941 fax: (97) 471-1156 fax: (61) 274-7608
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tiragem desta edição: 1.000 exemplares


impressão e acabamento: Gráfica e Editora Alaúde Ltda (São Paulo, SP)

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