Entre Processos e Perceptos - Ariadne - PPGAU-FAUFBA

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Universidade Federal da Bahia

Faculdade de Arquitetura
PPG-AU/FAUFBA
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

ENTRE PROCESSOS E PERCEPTOS


Arquiteturas contemporâneas
Multiplicidade e heterogeneidade de expressões estéticas

Ariadne Moraes Silva

Salvador, março de 2009


Universidade Federal da Bahia
Faculdade de Arquitetura
PPG-AU/FAUFBA
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

Título da Dissertação

ENTRE PROCESSOS E PERCEPTOS


Arquiteturas contemporâneas
Multiplicidade e heterogeneidade de expressões estéticas

Ariadne Moraes Silva

Dissertação apresentada como exigência para


obtenção do título de Mestre em Arquitetura e
Urbanismo.

Orientador: Prof. Dr. Pasqualino Romano Magnavita

Salvador, março de 2009


Faculdade de Arquitetura da UFBA - Biblioteca

Silva, Ariadne Moraes.


S586 Entre processos e perceptos - arquiteturas contemporâneas: multiplicidade e
heterogeneidade de expressões estéticas. 2009.
218 f.: il.

Orientador: Prof. Dr. Pasqualino Romano Magnavita.


Mestrado (dissertação) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2009.

1. Arquitetura - Estética. 2. Arquitetura – aspectos estéticos. 3. Arquitetura – crítica. I.


Título.

CDU: 72.01
Universidade Federal da Bahia
Faculdade de Arquitetura
PPG-AU/FAUFBA
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

Dissertação intitulada “Entre Processos e


Perceptos – arquiteturas contemporâneas:
multiplicidade e heterogeneidade de expressões
estéticas” desenvolvida pela mestranda Ariadne
Moraes Silva, sob a orientação do Prof. Dr.
Pasqualino Romano Magnavita e apresentado à
Banca Examinadora como exigência das
atividades deste Programa de Pós-Graduação.
Área de Concentração: Urbanismo. Linha de
Pesquisa: Processos Urbanos Contemporâneos.

Banca Examinadora

Dra. Anne Marie Sumner (FAU-Mackenzie) – membro externo

Dra. Paola Berenstein Jacques (PPG-AU/FAUFBA)

Dr. Pasqualino Romano Magnavita (PPG-AU/FAUFBA) - orientador


Dedico esse trabalho a duas “lobas” especiais:
Beatriz Moraes Siles Vargas & Adriana Elizabeth Moraes.
AGRADECIMENTOS

O desenvolvimento desse trabalho não seria possível sem as influências que me perseguem
desde a infância, formações que tive dentro das instituições disciplinares (família, escola,
etc), nas minhas escapadas pelas ruas e no convívio com outros seres humanos em diversas
fases de vida; relações que catalisaram em mim inúmeros processos de transformação e que
me permite ser o que sou – não apenas uma pessoa, um simples EU, mas um ser “ajudado,
aspirado, multiplicado”.

Gostaria de agradecer aos meus pais, Arnaldo e Adriana, que aportaram em terras
soteropolitanas no início da década de 1980, trazendo na bagagem três filhos e a esperança
de travar novas batalhas em um novo mundo.

Aos meus queridos irmãos, Adaléia e Eliézer, pelos intensos momentos compartilhados.

Ao músico Alexandre Vargas, pelo carinho e compreensão nos períodos em que estive imersa
em livros e reservada no meu “cantinho”, privada de um convívio mais intenso.

A nossa encantadora Beatriz, por sua existência, por seu sorriso, pela sua expressividade.

Ao amigo e colega de profissão, James José de Farias, pelo aprendizado e convívio no


desenvolvimento de inúmeros projetos arquitetônicos.

Ao professor Alberto Olivieri, “figura” de extrema generosidade com quem tive a oportunidade
de compartilhar as atividades de docência no Atelier II da FAUFBA.

Agradeço também a todos os meus colegas professores do curso de Arquitetura e Urbanismo


da Unifacs (em especial Juliana Nery, Rodrigo Baeta, Ida Pela, Sérgio Kopinski Ekerman, Karla
Andrade, Erick Frot, Roberto Fajer, Marcos Rodrigues, Joaquim Viana, Liliane Mariano,
Gerardo Bressan Smith e Márcia Mello), companheiros valorosos na busca de um ensino mais
prospectivo e crítico.

Ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPG-AU/FAUFBA e ao Conselho


Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pela bolsa que me auxiliou
nesse período.

A todos os membros da banca examinadora pelas contribuições, pelas críticas e por aceitarem
o convite – Anete Régis Castro Araújo (na época do exame de qualificação I), Anne Marie
Sumner e Paola Berenstein Jacques.

E, finalmente, a Pasqualino Romano Magnavita, que me despertou para uma nova maneira de
pensar e me permitiu o percurso de um caminho mais prazeroso. O prazer em arquiteturas
onde “o desejo possa morar”. Professor instigador, figura humana extraordinária e pensador
livre, lembro-me de uma velha canção popular: “(...) feliz de quem penetre o teu mistério...
como a alma sem corpo, sem vestes, como encadernação vistosa feito para iletrados ele se
enfeita, mas ele é um livro e somente alguns a que tal graça se concede é dado lê-lo”. Meu
profundo respeito e reconhecimento.
RESUMO

Os processos de projeto e arquiteturas contemporâneas são entendidos a partir de sua


multiplicidade e heterogeneidade de conexões e contaminações com outras esferas do
pensamento, seja a arte, a ciência e a filosofia. Entre as mais diferentes tramas de expressões
estéticas na produção de arquiteturas (diagramas, hibridizações, desconstruções, experimentações,
tecnologias virtuais, fluxos, transversalidades, micro-ações, desejos, imprevisibilidades, etc),
verifica-se seus intensos processos de transformação em meio ao caráter heterogêneo de suas
formações e de suas diferenças de grau e/ou nível, embora, poucas vezes, mudem de natureza. As
problematizações provocadas ao longo do trabalho podem indicar contribuições críticas ao fazer
arquitetônico e potencializar o arranque de metodologias “mutantes” e subjetivas que não se
curvem a uma geometria meramente cartesiana.

Este trabalho também aponta outras formas perceptivas, afetivas, sensoriais, intempestivas e
“corporais” de se compreender o espaço da cidade e suas arquiteturas - territórios que não se
deixam simular apenas pelo mundo da representação, mas que se delineiam entre traços de
conteúdo e de expressão, em seus universos moleculares. Palco de complexas coexistências de
uma multiplicidade de arquiteturas que atendem aos mais diversos setores e poderes, mas que
sugerem a emergência de pequenos focos de resistência a um pensamento
dominante/convencional e que possibilite quebras das linhas de segmentaridade dura, abrindo
espaço para outros campos da criação.

Palavras-chave: 1. Processos. 2. Arquitetura e arte contemporânea. 3. Pós-estruturalismo. 4. Ensino de


projeto. 5. Desconstrução, hibridização, diagramas. 6. Espaço e representação.

ABSTRACT

Design processes and contemporary architectures are understood from their multiplicity and
different links with other spheres of knowledge, such diverse as arts, science and philosophy.
Among different lines of aesthetic expression close to the production of architecture (diagrams,
hibridizations, deconstruction, experimentation, virtual technology, flows, transversalities, micro-
actions, desires, impressibilities), one may find intense processes of transformation among the
heterogenous nature of their formation and differences of degree and / or level, though they
change their character few times. The problematics brought along the work can suggest critical
contributions to architectural doing, potencializing the upcoming of mutant and subjective methods
which will not bound to conventional Cartesian geometry.

This work also points out other perceptive, affectionate, sensitive, tempestuousness and "physical"
forms of understanding the space of the city and it's “architectures” – territories that do not let
themselves simulate only in the world of representation, but that are also outlined between traces
of content and expression, in their molecular universes. Stage of complex cohexistance for multiple
“architectures” which serve to many sectors and powers, but that suggest the emergence of small
focuses of resistance to a dominant / conventional thought and which make possible to break of
the lines of segmentation lasts, opening space for other fields of the creation.

Keywords: 1. Processes. 2. Architecture and contemporary art. 3. Poststructuralism. 4. Teaching project. 5.


Deconstruction, hybridization and diagrams. 6. Space and representation.
SUMÁRIO

Apresentação, 5

Introdução, 10
Eixos de problematização, 11
Eixo 01 – entre / processos / perceptos
Eixo 02 – composição temática e aspectos metodológicos
Eixo 03 – arquiteturas: poderes, sobre-codificações e multiplicidades

Capítulo I – Novas formas de pensar, 34


Fundamentação teórica, 35
Entre linhas de intersecção - criação, idéia, conceito, experiência
Experimentação e formação disciplinar

Micropolítica do cotidiano e revoluções moleculares, 52


Arquitetura de fronteira - transgressão, limites e crítica, 61

Capítulo II – Que fazer? 72


A arte enquanto potência geradora de blocos de sensações - perceptos e afectos, 78
Mitologia(s), horizonte maquínico e as esferas da representação, 85
Sociedade de controle e o princípio da indeterminação, 93

Capítulo III – Contaminação, 101


Produção de arquiteturas, artes e interdisciplinaridade, 104
A influência dos movimentos vanguardistas – experimentações, sentidos e expressões. A
sedução russa, 108
Desejo, devires-outros. Metamorfose e arte, 126
Transversalidades - arquiteturas, fluxos. Corpo & espaço, 130
O trans-estético, 144

Capítulo IV - Entre processos, 146


Os diagramas, 148
Manipulação de modelos dinâmicos – a poïetica, 162
Processos híbridos – transições, oscilações e multiplicidades, 171
Desconstrutivismo, arquiteturas e devaneios, 179
- Desconstrução e pós-estuturalismo
- Arquiteturas e discursos
Materialidade e tecnologia. Efemeridade e eventos, 185
Star system, marketing e espetáculo – arquitetura enquanto grife, 193
Transarquitetura, virtualidades e simulações - o espaço da informação, 196

Desfecho - Considerações transitórias, 204


Por um outro paradigma ético e estético

Referências, 210
5

APRESENTAÇÃO

Quando estruturei o anteprojeto de dissertação para entrada no mestrado, no final do


ano de 2005, estava ministrando a disciplina Atelier II1 na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da UFBA. Desde 2004, quando fui selecionada como professora substituta de
projeto, mantive contato direto com uma prática metodológica utilizada pelo professor
Dr. Alberto Olivieri (coordenador do Atelier) – a poïetica – um método desenvolvido pela
pedagogia da criação através da manipulação de modelos dinâmicos. A sala de aula,
então, passou a ser o locus da experimentação e da liberdade processual, onde os alunos
interferiam mais diretamente sem limites precisos de categorias de espaços, permitindo
maior “independência” na transformação das formas de percepção do indivíduo.

Não haviam regras pré-estabelecidas e era nessa transição de um certo desequilíbrio


emergente que comecei a enxergar uma nova possibilidade para o processo de criação
na arquitetura. Nada de novo, obviamente, já que a manipulação de modelos plásticos foi
bastante utilizada por ícones em períodos diversos da história da arquitetura. Porém, me
interessou investigar esse rico processo de trocas entre o indivíduo e seu espaço
adjacente, não necessariamente o espaço construído, mas as possibilidades de criação. O
processo criativo dos alunos fluía entre a percepção frente ao próprio material que eles
manipulavam, implicando em sistemas de forças – os diagramas - e as nuanças
fenomenológicas de blocos de sensações - perceptos e afetos. Para além desse jogo de
saberes e subjetividades, havia uma dinâmica que os coloca em relação – os modelos
criados e seus afetos. Nesse contexto, entre a transitividade dos modelos trabalhados
pelos alunos, gerava-se uma tensão entre corpos – entre os corpos dos alunos e os
corpos dos materiais plásticos, onde os alunos faziam parte do processo e se tornavam
parte dele, afetando e se deixando afetar.

Outra questão é que essa materialidade se desenvolve na tridimensionalidade tendo o


desenho apenas como suporte do processo, mas não eixo central de representação - a
consciência do espaço como elemento ativo. Hélio Oiticica, quando faz sua transição do
quadro para o espaço nos idos de 1959, ampliando seus trabalhos bidimensionais para o
plano espaço-tempo, constata o seguinte: “tudo o que era antes fundo, ou também suporte
para o ato e a estrutura da pintura, transforma-se em elemento vivo” (OITICICA, 1962, in:
FERREIRA; COTRIM, 2006, p.82). Para esse artista, a verdadeira arte jamais separa a

técnica da expressão. A expressividade do modelo, sempre em transição, funciona como


motor de arranque para possíveis arquiteturas. O processo é, portanto, tão
representativo quanto o produto final, ou talvez mais importante, pois traz a tona tanto a

1
O Atelier II corresponde a uma “disciplina” anual de projeto arquitetônico ligada, na época, ao Departamento
de Teoria e Prática do Planejamento (atualmente Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo) e
ministrada para alunos do segundo ano.
6

pulsão do seu autor como torna visível o modo de fazer, o percurso do projeto que
antecede a sua própria materialização. Lembro-me de uma citação de Leibniz: “há uma
coisa mais importante que as mais belas descobertas: o conhecimento do método pelo qual são
feitas”.

Não posso deixar de citar uma revista que me chamou bastante atenção na época – uma
edição de 2001 da el croquis (hibridization processes) – na qual inúmeros arquitetos
espanhóis expunham seus processos projetuais, seus pensamentos oscilantes e suas
arquiteturas frenéticas em meio há tempos irregulares. Um número bastante
experimental, mas com muitas reverberações materializadas em obra construída,
demonstrando uma certa “utopia do possível”. Fui “pega no composto”, ainda mais
quando verifiquei que muitos daqueles processos apresentados na revista dialogavam
com os processos desenvolvidos no Atelier II.

Essa foi à deixa, o elemento catalisador, para que eu me interessasse muito mais por
novas formas de apreensão do espaço – fora das amarras da minha própria formação (já
que o ensino no período que estudei na FAUFBA quase sempre foi orientado por preceitos
modernistas, racionalistas e funcionalistas) - na qual acabei desenvolvendo uma tímida
pesquisa paralela nas disciplinas de projeto e arquitetura contemporânea que comecei a
ministrar no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIFACS (2006-2007) e no meu
retorno à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA em 2008, agora como
professora auxiliar.

Passei, então, a estudar algumas das principais abordagens e proposições arquitetônicas,


com ênfase na produção realizada a partir dos anos 50, tentando caracterizar suas
lógicas sociais, funcionais e formais. No entanto, creio que o entendimento da produção
dos processos contemporâneos não deve estar desarticulado das novas formas de
pensar, das novas tecnologias, das novas linguagens e das novas lógicas de poderes. O
pensamento reflexivo acerca da arquitetura, ou arquiteturas, sejam as produções
engendradas pelo star system, sejam as produções mais espontâneas ou auto-geridas,
sejam aquelas submetidas ao capital especulativo, sejam aquelas agenciadas pelas
populações nômades ou pelas máquinas do Estado (leia-se também corporações),
produções em grande ou micro escalas, devem ser vistas mais como linhas de fuga
suscitadas ao longo dos seus processos de transformação, revelando assim o caráter
heterogêneo de suas formações e de suas diferenças de grau e/ou nível, embora, raras
vezes, mudem de natureza. Tarefa nada fácil em um universo tão complexo.
7

***
Para dar conta dessa investigação, a dissertação se desenvolve em seis momentos que
se inter-relacionam: uma primeira partícula introdutória onde trato das principais
temáticas e eixos de problematização do trabalho, quatro capítulos sub-seqüentes que
funcionam como uma espécie de linha norteadora do pensamento, e um último momento
a guisa de conclusão. Não escrevi necessariamente nessa seqüência, na verdade resolvi
experimentar escrever de uma maneira mais livre, sem estruturar, previamente, um
roteiro, um recorte ou uma ordem de abordagens até porque os temas expostos se
entrelaçam e se contaminam quase que em todo o processo da escrita. Ao final, chega-
se ao formato explicitado a seguir.

A introdução é de fundamental importância, pois exponho conceitualmente o território


que resolvi transitar – um estado entre, de intermezzo - e alguns campos temáticos que
são atravessados pelo trânsito de arquiteturas – seus processos, suas expressões e suas
conexões com lógicas de poderes – inerentes a essa condição contemporânea. Trato,
também, das delimitações e eixos estruturantes de abordagens desses processos.

Em Novas formas de pensar, falo um pouco sobre a fundamentação teórica do


trabalho, entrando em algumas linhas de intersecção que permeiam os processos de
criação na arquitetura em face de sutis confrontações, num primeiro momento, com a
questão da experiência/experimentação. Algumas temáticas iniciais são examinadas a
partir do entendimento da arquitetura e do urbanismo como um campo das relações
humanas, ou seja, um território que não se deixa afetar apenas pelo mundo da
representação, mas que se deleita entre traços de conteúdo, em suas intensidades de
matérias e traços de expressão, em suas funções e tensores. Nesse primeiro capítulo
coloco um pouco a minha forma de pensar dentro de um posicionamento muito próximo
ao pensamento deleuzeano, por entender que a lógica da multiplicidade esteja mais
alinhada com as questões aqui expostas. Portanto, conceituações que tangenciam a
micropolítica do cotidiano, as revoluções moleculares, as arquiteturas de fronteira ou
ainda as possibilidades de transgressão na construção dos processos projetuais, apontam
para importantes formas críticas do fazer arquitetônico.

No segundo capítulo – Que fazer? -, vou tratar de alguns agenciamentos coletivos de


enunciação (discursos) e agenciamentos maquínicos (o que se vê e o que se faz) na
esperança de tentar engendrar uma ponte com a pressuposição de formas heterogêneas
e seu universo, nem sempre visível, de representações. No meu entendimento, o
fomento da sociedade de controle, em substituição (e ainda coexistência) às sociedades
disciplinares, na qual os processos midiáticos moldam as subjetivações dos indivíduos, irá
influenciar substancialmente os modos de projetar na contemporaneidade, uma vez que
poderemos perceber a força de alguns elementos reguladores e bloqueadores das
8

conexões criadoras, além de buscar alguns sintomas, sejam nas novas tecnologias ou
nos sistemas de comunicação, que indiquem outras formas de pensar os processos da
arquitetura contemporânea. O princípio da indeterminação vem como suporte para a
compreensão de uma produção que acontece em meio a um campo que não opera mais
em estruturas meramente científicas e funcionais (exatas e equilibradas), mas articulada
com a arte e a filosofia. É nesse sentido que o tópico “A arte enquanto potência geradora
de blocos de sensações - perceptos e afectos” aponta para os perceptos como elementos
de fuga, de desvio às representações tradicionais nas arquiteturas enquanto objeto -
devires-outros - pois não estão simplesmente presos à relações dialéticas significante-
significado / sujeito-objeto e seus códigos binários-axiomáticos.

O terceiro capítulo – Contaminação – aponta para as possibilidades das influências das


diversas manifestações da arte na produção da arquitetura. O desejo, a criação, os
devires, as transformações, os fluxos, o corpo, as manifestações nômades sobre a
cidade, as performances, o acontecimento, a interdisciplinaridade, alguns experimentos
vanguardistas, etc, são entendidos como verdadeiras possibilidades de devolver à
arquitetura seu caráter de emoção e de ultrapassar as esferas do reducionismo
arquitetônico. Porém, não deixamos de lado as referências também críticas quanto aos
processos de estetização simultânea e a exacerbação do trans-estético e do trans-político
trabalhado por Baudrillard em “A transparência do mal”. Há de se ter cuidado! Em que
tais questões podem funcionar enquanto contribuição para o processo projetual? Quais
são as possibilidades dessas contaminações? Como tratar a obra de arte nas grandes
escalas das cidades? Cidade X arte X cultura de massa e a potência individual/subjetiva,
relações estas envolvidas no universo de invisíveis redes de micro poderes.

No quarto capítulo – Entre processos – mergulhamos de uma maneira mais direta e até
racional naqueles processos que consideramos mais instigadores, embora algumas obras
arquiteturais também transitem nos capítulos anteriores. Não elegemos grupos de
arquitetos ou obras isoladas, mas tentamos compreender o esforço de suas próprias
arquiteturas em romper com aquilo que entendemos como “máquinas abstratas binárias
e axiomáticas”, que realizam totalizações, homogeneizações ou círculos de fechamento e,
nesse percurso, aproveitamos para tecer algumas críticas ao processo de
espatecularização e suas arquiteturas resplandecentes. Nos defrontaremos com a
exposição de processos que não estejam aprisionados em formulações pré-estabelecidas,
mas que transitam em reflexões mais abertas, experimentais e que questionem a
reprodução de um saber sedentário. Em suas multiplicidades de expressões estéticas –
hibridizações, virtualidades, efemeridades, manipulação de modelos, processos
diagramáticos, desconstruções ou até nos mais simples gestos miméticos, muitos dos
projetos apresentados tangenciarão não apenas os efeitos de contaminação de outras
áreas e campos do saber, mas, conseqüentemente, o pensamento pós-estruturalista.
9

Finalizo a dissertação através de um capítulo não exatamente conclusivo, mas na qual


teço algumas considerações acerca das possibilidades de inserção de novos paradigmas
éticos e estéticos que sejam capazes de transformar os eixos contextuais de nossa
condição contemporânea em que a arte, a arquitetura e o pensamento possam ser
instrumentos de algum respingo de mobilidade não estratificada.

***

Vale ressaltar que, esse trabalho, como veremos a seguir, encontra-se no intermezzo,
entre, sempre envolvido nas mais variadas conexões e simultaneidade de abordagens em
diferentes escalas territoriais e espaciais – um emaranhado de tendências e expressões
estéticas da produção de arquiteturas no passado recente e na contemporaneidade. A
tentativa de organizar os tópicos exigidos na estruturação de uma dissertação é mera
formalidade acadêmica, pois a construção do texto funciona como um “diagrama
discursivo” agenciado pelo próprio processo rizomático e, claro, reflete a expressão desse
processo. A presença de freqüentes ritornelos (repetindo e re-enfatizando questões em
momentos diversos da monografia) é quase que uma necessidade de assegurar o
território conquistado por essa nova forma de pensar, funcionando como um fio
condutor.

Compreendo esse trabalho pelo viés de três aspectos principais: primeiro na possibilidade
de explorar outros territórios, não apenas da arquitetura e do urbanismo, mas do
pensamento; segundo constitui uma inquietação, um esforço em tentar mudar de
posição, o que resultou em uma espécie de catarse pessoal no processo de produção
dessa monografia e, finalmente, a despretensão de tentar defender alguma coisa ou
fechar um círculo preciso, longe disso! Embora tenha sido muito prazeroso escrever,
entendo esse trabalho muito mais como uma provocação do que qualquer outra coisa,
pois, encontrando-me nesse estado “Entre” multiplicidade e heterogeneidade de
processos, questionamentos, problemas, experimentações, desejos, desterritorializações,
visões de mundo no viés ético/estético, me vem à mente uma metafórica condição da
existência transmitida pelo meu orientador em uma de suas aulas: “A vida é um navegar
no meio de um mar revolto, todavia, sem porto de chegada (...) navegar no Caos é
preciso!”.

Entendendo Caos como lugar da criação de todas as formas, de todas as partículas, “mar
das dessemelhanças”, o trabalho que ora apresento deve ser entendido, também, como
um barco à deriva, seguindo uma linha de fuga sempre em busca de outros mares e
ciente que não terei, necessariamente, um porto de chegada, porém, seguindo sempre e
me mantendo por entre “órbitas instáveis” e futuros improváveis.
10

INTRODUÇÃO

A lógica de um pensamento é o conjunto das crises que ele


atravessa, assemelha-se mais a uma cadeia vulcânica do que a um
sistema tranqüilo e próximo do equilíbrio.

Gilles Deleuze
11

INTRODUÇÃO

Eixos de problematização

Eixo 01 – entre / processos / perceptos

Talvez o tema central dessa dissertação – processos contemporâneos ou produção


contemporânea de arquiteturas – seja um tanto quanto genérico. Embora, inicialmente,
eu não tenha priorizado fechar um limite preciso do objeto de pesquisa, assumindo sua
condição de intermezzo, esse trabalho é sobre processos. Mas, para que o leitor possa
“guerrear” por entre as linhas das páginas que aparecem na seqüência, se faz necessário
compreender a intenção e interferência que essas três palavras-chave expostas no título
da dissertação podem representar como eixos estruturantes para uma limitação das
arquiteturas contemporâneas que serão aqui tratadas: entre / processos / perceptos.
Além disso, poderemos perceber como esses conceitos e noções se conectam entre si e
se articulam com aquilo que entendemos como desconstrução e multiplicidade,
possibilitando uma costura um tanto quanto enviesada de arquiteturas, seus processos e
suas expressões (explicitado no capítulo IV), bem como suas contaminações com
outras esferas das artes (explicitado no capítulo III).

Alguns discursos e pesquisas têm surgido na cena atual travando relações, diálogos e
supostas intersecções entre literatura e arquitetura, parafraseando conceitos maturados
por filósofos como Jacques Derrida e Júlia Kristeva - desconstrução, escritura, diferença,
intertextualidade. Arquitetos que hoje fazem parte de um distinto grupo de estrelas
internacionais, a exemplo de Peter Eisenman e Bernard Tschumi, trabalharam
conjuntamente com Derrida nos idos de 1985, três anos antes da exposição organizada
por Philip Johnson e Mark Wigley no MOMA em Nova York – uma mostra arrebatadora da
recém denominada “arquitetura desconstrutivista” que em nada se aproximava da
desconstrução literária presente nos círculos acadêmicos anglo-saxões. Nessa ocasião,
Tschumi, após vencer o concurso internacional, convidou Eisenman e Derrida para
desenharem uma folie para o Parc La Villette, processo esse descrito no livro “Chora (L)
Works”, uma referência explícita ao texto do filósofo francês originado no Timeu platônico
– Khôra2. Tanto Eisenman quanto Derrida iniciam um trabalho em colaboração,
estabelecendo articulações entre arquitetura e filosofia, onde procuram determinar
alguma relação entre o discurso da desconstrução, muitas vezes representado pelo
conceito do entre na arquitetura, da ausência e do questionamento às ordens clássicas,
ou ainda uma possível materialização de um “espaço entre”, com o universo da escrita
arquitetônica. Isso tudo vai desembocar naquilo que Eisenman chama de “deslocamento”
ou lugar deslocado.3

2
Ver capítulo III, nota 102.
3
Para maiores detalhes e aprofundamentos acerca da desconstrução e do pós-estruturalismo, ver capítulo IV.
12

Em linhas gerais, as principais discussões estabelecidas na desconstrução de Derrida


seriam: perda do centro, negação da unidade e da ordem, questionamento da origem,
crítica ao pensamento dialético, descontinuidade, ausência, etc, que surgem de re-
leituras das escrituras de Mallarmé, Descartes, Aristóteles, Heidegger, Saussure e
Nietzsche. O pensamento e a linguagem são vistos como caminhos e podem estabelecer
conexões com arquiteturas. No entanto, não haveria, necessariamente, descobertas ou
revelações, mas sim, invenções e criações. Esse seria o sentido para abertura de um
caminho que não se rende puramente ao método e à técnica, mas que “sem saber aonde
nos levará, grava sua passagem”.

Nesse projeto em La Villette, Jacques Derrida verifica que os arquitetos estariam


desconstruindo a essência da tradição no momento em que criticam a subordinação da
produção de arquiteturas a uma outra coisa, uma vez que tentam liberar essa produção
de finalidades externas. Segundo o filósofo, uma arquitetura não deve ser pura ou
original, muito menos ser considerada como signo que remeta a um significado pré-
determinado, mas deve ser colocada em comunicação com outras artes, para contaminar
e ser contaminada.

“Para propor uma desconstrução em arquitetura é preciso ultrapassar a dominância da


presença [como metafísica] (...) a arquitetura não pode meramente retornar à dialética
da metafísica da presença nem retornar ao niilismo que nega a presença. Presentness é
um termo alternativo que não força uma escolha entre os dois” (EISENMAN, 1995, apud
ZONNO, 2006). Esse sentido de presentness seria revelado pelas folies em La Villette e,
nesse sentido, as folies podem ser consideradas um entre arquitetura e escultura.

Em algum momento, a desconstrução e o pós-estruturalismo ofereciam essa


possibilidade de tratar uma arquitetura como metáfora, principalmente no plano da
ausência e no abandono da significação defendidos por Derrida. Porém, Eisenman
percebe que a tentativa de libertar uma arquitetura do projeto metafísico é impossível,
pois “tratamos a arquitetura como realidade”. Eis que nesse ponto inicia-se uma
discordância entre ambos e o princípio de um distanciamento que culminou em 1990, a
partir de uma troca de correspondências publicadas na revista Assemblage. Se, até um
dado momento, Eisenman se colocava num posicionamento de que quando se olha um
objeto conhecido torna-se necessário lê-lo e não apenas vê-lo, nas correspondências com
Derrida o arquiteto cambia de postura: uma arquitetura deve ser vista a partir de um
sentido conceitual e não literal. O substrato conceitual da arquitetura. E mais, fala que a
arquitetura precisa lhe dar com a presença e, portanto, com a metafísica e com alguma
condição final do Ser. Ela não pode continuar a desconstruir-se, pois sempre irá se
deparar com a presença. Lembrete: Derrida sempre atacou a metafísica. Outro lembrete:
Eisenman raramente usa a palavra desconstrução em suas formulações, embora seja
13

rotulado assim: “é muito difícil falar de arquitetura em termos de desconstrução, porque


não estamos falando de ruínas ou fragmentos e o termo é muito metafórico e literal para
a arquitetura” (EISENMAN, 1988). E as folies? As folies de Tschumi estão lá no parque,
mas a folie proposta por Eisenman e Derrida jamais foi construída.

Após o “mal entendido”, em uma conversa nada amistosa com Sandorf Kwinter na Rice
University School of Architecture, em Houston, no ano de 20014, Eisenman alfineta:
“Derrida é uma das pessoas mais brilhante do mundo, mas não sabe ver”. Em 2004,
alguns meses antes de falecer em decorrência de um câncer, Derrida responde em uma
carta à Luiz Fernández-Galiano sobre a possibilidade de re-encontrar Peter Eisenman:
“não posso negar que, no que diz respeito à arquitetura, hoje me sinto menos
competente e menos inspirado do que nunca”.

Sobre a aproximação dos dois, Fernández-Galiano (2005) coloca: “entre o francês e o


nova-iorquino estabeleceu-se um diálogo de contornos pouco nítidos e subversão
tipográfica que prescreveria um pacote de metáforas textuais sobre o 'deslocamento',
sem oferecer mapas fidedignos do território comum sobre o qual transitavam”. E finaliza
em seu ensaio, sobre o que restou daquela exposição do MOMA: “os sete grandes da
mostra, tornaram-se, todos eles, estrelas do firmamento arquitetônico, enquanto daquele
movimento associado a formas fragmentadas restam apenas fragmentos difusos e cinzas
dispersas”.

Bem, essa pequena passagem sobre o encontro entre Eisenman e Derrida foi exposta,
pois, é preciso estar atento a essa relação paradoxal entre a aplicação de uma teoria ao
campo da realidade. Na grande maioria das vezes, as articulações de conceitos filosóficos
ao universo da arquitetura quase sempre operam por semelhanças formais5. Muitos
edifícios expressam em seus próprios corpos noções de fragmentação, desequilíbrio,
fissura, contorções, torções, decomposições. Piranesi já “operava” dessa maneira no
século XVIII, no “espaço entre” de seus desenhos. Para Barthes, a desconstrução tem
um sentido de luta contra a alienação, a dominação de estereótipos e a tirania das
normas. Nesse contexto, a desconstrução deflagra a perda de hegemonia de um saber e
de uma forma de pensar que, todavia, continua coexistindo com novas construções e
criações.

4
Conferir artigo intitulado “Peter Eisenman e Sanford Kwinter – tensão disciplinar: territórios mutantes”,
publicado originalmente em Arquitectura Viva – Pragmatismo y Paisaje, 2001, p.34-45.
5
Uma noção teórica textual difere de uma prática arquitetônica construída, embora em universos completamente
distintos economicamente, socialmente, culturalmente e geograficamente podemos perceber semelhanças
formais, por exemplo, entre a “arquitetura desconstrutivista” e a arquitetura de favelas, como examina
JACQUES (1995) em “Favelas / Déconstructiviste. Constat et questionnement”. A autora, inclusive, nos faz
uma advertência quanto a aplicação desses conceitos: “nous pourrions essayer de déconstruire les grands dogmes
de l´historie de l´architecture, les mythes, les modèles, les bâtiments fétiches, déconstruire Le Corbusier ou le
Bauhaus, ou bien déconstruire les grands textes de théorie architecturale, les doctrines, déconstruire Vitruve ou
Alberti. Travail théorique restant à faire” (idem, p.172).
14

Na noção de processos, entendemos a desconstrução como uma das vertentes


contemporâneas que podem ir além dos aspectos meramente estético-formais, aleatórios
e gratuitos (seria muito limitador), pois ao revelar a estrutura interna de um pensamento
arquitetônico através de seus conceitos, seus functivos, seus diagramas e explorando
essa sucessão de caminhos, acreditamos que alguns princípios teóricos dessas “idéias
filosóficas” derivadas do pós-estruturalismo possam excitar o arquiteto e colaborar com a
crítica do fazer arquitetônico. No mais, o desconstrutivismo arquitetônico tentou
engendrar algum tipo de crítica ao pós-modernismo, principalmente na caracterização de
um pensamento de ruptura com dogmas que constituem pressupostos de práticas
arquitetônicas, sejam a reinvenção do lugar, as tensões de tramas de criação projetual,
as referências às vanguardas (sobretudo a russa), as evidências aos conflitos e
estratégias de ação, a inclusão do fragmento, enfim, questões instigantes as quais não
podemos ficar indiferentes. E é nesse sentido que não objetivamos estudar apenas as
formas, mas seus processos de transformação, ultrapassando os limites dimensionais,
escalares e espaciais, tentando articular a criação a partir de contaminações outras que
se manifestam no universo da arquitetura e vice-versa. Estar entre nesse processo. Ir
além do visível.

O conceito da dobra, por exemplo, muitas vezes incorporada no discurso de alguns


arquitetos a partir da leitura de outro filósofo francês – Gilles Deleuze - pode ser
considerada um entre. Segundo Otília Arantes (1985, p.89), um espaço desdobrado irá
construir novas relações entre os pares dos opostos clássicos, cedendo lugar a uma
modelação variável e uma curvatura variável, passando-se do espaço da presença e do
efetivo, para o afetivo; algo que está além da racionalidade clássica, o não visto. Um
entre estaria na inflexão, no limite...

Porém, estar entre não pode ser facilmente significado, mas é preciso estar atento aos
indícios, as conexões, as transições. Estar entre não implica em uma localização, mas
estar na iminência, deslocado. Se a condição entre habita numa condição intermediária,
não num espaço, pois o espaço está ligado ao tempo e em khôra não há tempo, então a
condição entre se abre para o processo, o impulso da criação, da invenção, do devir, do
espaçamento.

Para compreendermos conceitualmente esse estado entre, buscamos no conceito rizoma,


explicitado abaixo, um caminho para construção das nossas inquietações.

Em oposição à lógica binária e arborescente, Gilles Deleuze e Félix Guattari apresentam,


a partir de uma série de enunciados6, uma quebra com o sistema hierárquico e ordenado,
ou seja, propõem uma rede de pensamentos que cria uma ruptura com o próprio

6
Princípios de conexão e de heterogeneidade; princípio de multiplicidade; princípio de ruptura a-significante;
princípio de cartografia e de decalcomania. Conferir em DELEUZE; GUATTARI (1995).
15

pensamento piramidal – rizoma. Um desses princípios é exatamente o princípio da


multiplicidade – “uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente
determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mudem de
natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.16). E para mudarem de natureza ou
crescerem, é necessário que as linhas de fuga, as linhas abstratas e as linhas de
desterritorialização que definem as multiplicidades pelo lado de fora, se conectem umas
às outras sem pontos fixos ou pré-determinados, estabelecendo um sistema aberto. As
multiplicidades, portanto, são rizomáticas. E o rizoma é uma antigenealogia.

Um rizoma é quase um estado khôra. Não é facilmente localizável. Um rizoma é feito de


platôs e um platô está sempre no meio, entre, sem início ou fim. Os autores citam
Gregory Bateson para designar a palavra platô como algo muito especial: “(...) uma
região contínua de intensidades vibrando sobre ela mesma e que se desenvolve evitando
toda orientação sobre um ponto culminante ou em duração a uma finalidade exterior”.
Um platô seria uma multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas
superficiais de maneira a formar e a estender um rizoma (idem, p.33).

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança.
(ibidem, p.37)

Um olhar entre, um estado entre, tenta perceber as coisas pelo meio, transversalmente,
em suas intensidades, em suas conexões, em suas potências afetivas e perceptivas, em
blocos de sensações. Não há desejo de partir do zero ou buscar a gênese dos processos
que serão “enfrentados”, mas navegar entre suas velocidades de expressão, tentando
trazer a tona às inquietações de problematizações e as contaminações, mesmo que às
vezes de maneira excessiva ou dissimulada.

Por mais que seja possível ler os processos através da própria obra7, solidificada e
enraizada (e de maneira nenhuma se procura aqui negar a obra ou o fato materializado,
a arquitetura feita e inserida num contexto, pelo contrário), a escolha em navegar por
entre processos de maneira mais profunda, buscando o momento da criação, o modo de
fazer ou alguma compreensão de um espaço criado que atravessa o espaço do desenho e
o espaço materializado, expressa aquilo que chamamos de coexistência. Porém, estudar
a obra ou o objeto arquitetônico também nos coloca em relação. Estar no meio, entre,
também significa coexistir, conectar, estabelecer relações. Como nos coloca Rosalind
Krauss (apud ZONNO, 2006), a obra pode ser considerada um entre a paisagem e a
arquitetura. Os arquitetos lidam com um sistema complexo na atividade projetual,
através de repertórios de uma realidade (sejam sociológicas, econômicas, culturais,

7
Parafraseando Tzvetan Todorov – toda obra mostra a maneira como foi feita. No entanto, essa fatura pode estar
explícita ou implícita.
16

artísticas, contextuais, climáticas, funcionais, etc), de referenciais históricos, teóricos e


filosóficos, além das bases tecnológicas (materiais construtivos, conforto ambiental,
técnicas estruturais, etc). De maneira geral, se orientam por localizações, pontos,
hierarquias e por passos planejados e estruturados, quando não altamente
especializados. A arquitetura se manifesta em uma multiplicidade de aspectos, sem
dúvida. Solá-Morales (1985, in NEBITT, 2006) nos fala que não existe uma doutrina de
intervenções (denominação comum na cidade tradicional), mesmo nas relações com a
pré-existência. No entanto, não deixa de se referir às ressonâncias de um niilismo
cultural e de um vazio na questão da exacerbação do formalismo (SOLÁ-MORALES,
1998).

Vale lembrar que a maior parte dos arquitetos não expõe os seus processos de trabalho,
muito menos os tornam públicos. No Brasil, em particular, a busca de um modelo de uma
nova sociedade oriunda da nossa forte herança modernista (principalmente os preceitos
corbusianos), ocasionou a formação de um arquiteto criador pseudo-capaz de sintetizar
um momento histórico, social e cultural em sua obra (MEDRANO, 2005)8. Poucos
também assumem uma posição ética e estética clara daquilo que compreendem
enquanto a tarefa da arte e da arquitetura, bem como suas preocupações políticas e com
o destino das cidades ou ainda, alguma condição de formulação de uma crítica radical
como prática teórica, como colocava Guy Debord (a cultural e social deveria preceder a
revolução urbana). Por isso, por mais paradoxal que seja, pensadores como Peter
Eisenman e Bernard Tschumi (entre outros), são exemplos de arquitetos que, mesmo
exercitando suas arquiteturas para as grandes corporações e fazendo parte do star
system internacional na atualidade, expõe seus percursos, seus processos e produzem
discursos substanciais sobre suas próprias atuações, implementando maiores relações
entre práticas teóricas e projetuais. É nesse sentido que, muitos de seus processos (que
consideramos instigantes) e de suas reflexões engendradas ao longo de suas carreiras
(principalmente nos idos dos anos 1980 e princípio dos 1990, antes de habitarem o hall
estelar de maneira tão hegemônica) são colocados no corpo deste trabalho.

No mais, a busca pelo processo e esse estado entre, abre um outro caminho que é a do
entendimento da arte e da arquitetura enquanto linguagem das sensações – o percepto,
o afeto, o sensorial, o incorporal9.

8
Sobre o traço de Oscar Niemeyer e sua condição de “arquiteto gênio”, o autor coloca: “Oscar Niemeyer é o
representante mais emblemático nessa questão: seu processo vai do traço gestual e espontâneo ao desenho
executivo e obra – esse traço contém como reflexos todas as respostas às angústias de um tempo – como criador
consciente não precisa de processo ou método, ou pelo menos esses se mantêm ocultos”.
9
Sobre essas questões, verificar no capítulo II, o tópico: “a arte enquanto potência geradora de blocos de
sensações - perceptos e afectos” e no capítulo III: “transversalidades - arquiteturas, fluxos. Corpo & espaço”.
17

Mas, o que são os perceptos? Os perceptos não se configuram como percepções


simplesmente, vão além. A arte, por exemplo, se conserva enquanto durarem os seus
próprios suportes e materiais. No entanto, a obra de arte é independente, tanto do seu
criador quanto do “usuário” que a experimenta, ou que se limita a interpretá-la. A arte
cria blocos de sensações e novas percepções, que são os perceptos. Porém, não existe
percepto sem afeto. Segundo Deleuze, os perceptos são conjuntos de sensações que
sobrevivem àqueles que a experimentam. E os afetos não são apenas sentimentos, mas
devires que transbordam o que os atravessa, o que passa por eles e, nesse sentido, se
transformam, tornam-se outros.

Em uma obra de arte, em um texto ou em um projeto, podemos ser afetados por eles e
estabelecer relações de potências – os blocos de sensações. E, projetar, escrever ou criar
por perceptos, por sensações, por afetos.

É possível exemplificar isso? A pintura abstrata, por exemplo, que trabalha com linhas de
força ou os diagramas de um processo projetual (que serão analisados no capítulo IV),
ou ainda as sensações estabelecidas a partir da experimentação de um espaço, de um
afeto potencializado pela arte, seja uma fotografia, um filme ou uma escultura. E é isso
que se conserva na arte – os blocos de sensações que são compostos por perceptos e
afetos.

Deleuze e Guattari (1992, p.235) escrevem: “não é esta a definição do percepto em


Pessoa: tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos afetam,
nos fazem devir?” E citam Mondrian, Kandinsky e Tintoreto, artistas que pintam as
forças, que tensionam, que curvam as linhas – “geometria viva”.

É da arte novos perceptos e novos afetos, ou seja, desvios, retornos, linhas de partida,
mudanças de níveis e de escalas (idem, p.248). As arquiteturas aqui inseridas estão
nesse limiar, mesmo que sejam medíocres. Mas não é por força da mediocridade que
podem tornar-se gigantescas? Toda fabulação é fabricação de gigantes (ibidem, p.223).

Acerca de algumas peculiaridades e sintomas do pós-modernismo, Frederic Jameson


(1997, p.408) coloca que o novo espaço que emerge envolve a supressão da distância e
a incansável saturação de quaisquer espaços vazios ou espaços que sobraram, um
espaço que, segundo Lefbvre, é abstrato e, simultaneamente, homogêneo e
fragmentário. E finaliza: “(...) a desorientação do espaço saturado será nosso fio
condutor mais proveitoso no presente contexto”. Sobre essa questão da saturação,
Deleuze e Guattari (1992, p.223) buscam em Virginia Wolf um caminho – eliminar tudo o
que é superficialidade, aquilo que gruda nas nossas percepções correntes e vividas e só
guardar a saturação que nos dá um percepto. Os autores falam que por vezes é preciso
deitar na terra, como faz o pintor, para localizar o “motivo”, isto é, o percepto (idem,
p.222). E depois, saturar. Experimentar intensamente... Trazer as entranhas. Não num
18

sentido de interpretação, mas de se colocar, arrancar o percepto, penetrar nos


processos, estar entre nessa relação.

Esses três eixos e palavras se conectam e fornecem uma linha condutora capaz de
costurar os caminhos que levam aos processos que serão lidos, olhados... em suas
multiplicidades. Quase excessivamente. Em sensações e afetos. Chora(l) também
significa multiplicidade de vozes, um excesso. Algo que não produz um único sentido,
como defende Derrida: “a capacidade de um trabalho produzir muitos significados
simultaneamente, incluindo os contraditórios, não intencionais e os indesejáveis” (apud
MENDONÇA, 2000).

É nesse sentido que preferimos tentar construir uma exposição através de um viés mais
crítico como objetivo, em detrimento de uma abordagem classificatória, enfocando um
conhecimento heterogêneo que atravessa multiplicidades de intensidades em suas
diferentes manifestações.

Eixo 02 - Composição temática e aspectos metodológicos

1.
É atravessando os vieses acima mencionados, e sendo atravessados por eles, que
procuraremos analisar a complexidade de algumas obras contemporâneas e seus ricos
processos conceituais, funcionais e perceptivos / afetivos de projetação, buscando
conexões entre as principais vertentes atuais e os novos questionamentos e paradigmas
que vem sendo discutidos por filósofos, cientistas, arquitetos e artistas em geral
(verificação do estado da arte dos processos contemporâneos).

Em meio a essa nova realidade, transitória e de intensa mutação, antigos modelos


pragmáticos acabam sendo questionados e substituídos por estruturas mais complexas,
tendo como tendência o surgimento de ambientes multifuncionais, dinâmicos e até
efêmeros que integram simultaneidade e novas formas de viver, morar, trabalhar e
deslocar, abrindo caminhos para processos e concepções mais virtuais e velozes que,
muitas vezes, deflagram a falência da representação enquanto estrutura de uma suposta
identidade globalizante. Esses acontecimentos se convertem em vários aspectos:
plásticos, arquitetônicos, literários, filosóficos e de investigação sociológica e histórica,
entre outros.

O estudo dos processos projetuais contemporâneos (incluindo aí alguns métodos de


projeto e concepção/composição arquitetônica), na abordagem que pretendemos seguir,
contempla alguns campos temáticos que se inter-relacionam: codificações e processos
experimentais e discursivos do projeto arquitetônico; análises da materialidade e do
objeto a partir da interação com o sujeito (fruidor), tanto pelo viés da subjetividade
quanto pela aproximação entre arquitetura e arte enquanto potência geradora de blocos
19

de sensações – perceptos e afectos10; formas de concepção espacial que não estejam


limitadas nas representações cartesianas: processos híbridos, transicionais,
diagramáticos e desconstrutivistas, além das novas tecnologias (transarquitetura,
arquitetura líquida/topológica, virtualidades, arquitetura digital) e de novas
espacialidades (disjunção espaço-tempo, espaço da informação, interatividade,
simultaneidade). Uma multiplicidade de expressões estéticas.

Para aprofundar algumas metodologias inerentes a esses campos, utilizamos como base
algumas investigações de articulações processuais contemporâneas de concepção de
arquiteturas, em suas multiplicidades de expressões, enquanto caminhos significativos na
re-fundamentação de “metodologias outras” do nosso tempo (e que podem servir como
instrumentos de experimentação), sem deixar de articulá-las com o contexto, os fazeres
e os saberes em que são processadas. No entanto, processos formulados por arquitetos e
artistas de outros períodos, também podem ser utilizados como exemplificações de
construções e obras que foram vanguardistas em seu período histórico (ver capítulo III),
contribuindo não apenas para o desenvolvimento do espaço construído, mas, sobretudo,
para a disseminação de experimentações, criações e acontecimentos.

O estado da arte dessa produção não está delimitado em uma região específica ou em
um dado período; ela acaba acontecendo de modos diferentes e em partes diversas do
mundo. Nesse sentido, tentamos avançar em questões que comportam alguns eixos
estruturantes de composição temática que serão desdobrados, sejam:

• Articular as bases processuais pesquisadas (ver “sub-itens” analisados no capítulo


Entre processos), incorporando experiências e experimentações, com novos trânsitos
de idéias que pressupõe sistemas mais abertos e abstratos, muitas vezes inseridos
em tecnologias digitais e virtuais, que se contrapõe à visão positivista e funcionalista
do período moderno11 que nos ensinou a produzir o espaço arquitetônico a partir da
forma, da função e da técnica.

10
Essa categoria de análises – Percepto, Afecto e Conceito – é desenvolvida em DELEUZE; GUATTARI
(1992b), O que é a filosofia?, p.213-255.
11
É claro que me refiro a uma versão domesticada e reprodutivista da arquitetura moderna. Vale lembrar a
realização da exposição “The International Style: Architecture from 1922”, organizada por Philip Johnson e
Henry-Russell Hitchcock, no MOMA-NY, em 1932, onde se tentou promover a disseminação de um estilo
internacionalizado – falsamente unitário - com apresentação de mais de 72 obras construídas na Europa e EUA,
não referenciando nenhum projeto visionário, nem mesmo os experimentos russos ou futuristas, negligenciando
também as produções da Escola de Amsterdã, o expressionismo alemão e a arquitetura organicista. Percebe-se
que, ao longo do tempo, as arquiteturas de vanguarda e experimentais foram marginalizadas e as bases
revolucionárias do movimento moderno na arquitetura foram reduzidas às formas e à linguagem, sem conectá-las
com novas metodologias de pensar e projetar arquiteturas na cidade e de repropô-las como fator social essencial
– aspecto de renovação contínua e ideológica defendido pelos grandes mestres. Após a década de 1970 (período
que alguns autores consideram como posterior ao “moderno tardio”) evidenciam-se algumas correntes pós-
modernistas tardias (fundamentalistas, historicistas, contextualistas ou neo-culturalistas) e neo-modernistas. Os
primeiros preocupados com a preexistência ou com a disseminação de uma linguagem arquitetônica ao mesmo
tempo eclética e carregada de símbolos que atendem a uma quase pasteurização do meio urbano; os segundos
20

• Examinar as contaminações da arquitetura com outras esferas da arte e vice-versa,


incluindo transversalidades (os fluxos, o sensorial, a experiência corpo X espaço, etc)
e, sobretudo, as reverberações dos movimentos de vanguarda do início do século XX
em suas potências de reinvenção social, cultural e artística enquanto ferramentas
críticas aos processos de projeto.

• Trabalhar o uso do diagrama e processos híbridos enquanto campo perceptivo


através da materialização de um dispositivo conceitual revelado pelo desenho,
mapas ou modelos em transformação, permeando o processo de criação.

• Construir pequenas e necessárias pontes entre as principais conceituações e


perceptos dos processos e arquiteturas estudadas ao longo da pesquisa, com
algumas experimentações em sala de aula (já que desenvolvemos atividades de
docência na área de projetos e propomos a ênfase nos processos), verificando como
tais articulações poderiam contribuir criticamente com o pensamento e o fazer
arquitetônico.

É claro que não podemos deixar de considerar o poder da mídia, das máquinas sociais de
homogeneização e demais agenciamentos externos e coexistentes no universo da
arquitetura (diria até no ensino das escolas) e que contribuem muito para a formação
das subjetividades – individuais ou coletivas. As esferas do mundo da representação, a
“semelhança do percebido”, as referências e os processos de imitação frente ao mundo
real e ao que se publica em livros e revistas especializadas de arquitetura e urbanismo.

As problematizações desses campos, em constante ebulição, permeiam a busca de um


rebatimento dessas articulações na percepção de diferentes metodologias (que não são
consensuais, mas, muitas vezes, subjetivas e heterogêneas), processos e contextos da
produção do espaço arquitetônico, na apreensão de novas mediações funcionais e
tecnológicas relacionadas a diferentes formas de linguagem, diferentes formas de
expressão e diferentes formas de conteúdo que, além de apontarem para agenciamentos
processuais que possibilitem rupturas estruturais em meio à evocação de repetições
criativas, muitas vezes incorporais, suscitam transversalidades do pensar contemporâneo
onde se provocam incessantes olhares estéticos e éticos sobre os corpos das
arquiteturas, sem deixar de considerar a multiplicidade de saberes e poderes incidentes
sobre elas.

tentam retomar alguns princípios idealizados pelos mestres da primeira geração do movimento moderno, porém
sem a utopia ou causa social de outrora. Ambas correntes, de modo geral, acabaram sendo cooptadas no processo
de espetacularização e mercantilização da cidade contemporânea, seja através da preservação de seus centros
históricos ou na exploração empreendida pelo mercado imobiliário especulativo.
21

2.
É importante salientar que compreendemos a “metodologia” como uma articulação de
conceitos, perceptos e funções - não apenas de definições - que têm a consistência de
nitidez para ser guia autêntico e, simultaneamente, a flexibilidade para conter ‘n’
métodos, que podem variar de arquiteto para arquiteto.

As sensações, as vibrações, as transversalidades e os olhares - enquanto mundo


percebido – não vêm como suporte para a interpretação do objeto, mas sim para o
estreitamento de processos perceptivos e afetivos, subjetivos ao nosso olhar (conferir
capítulo II). Os perceptos têm um caráter mutável. Para Baudrillard, o homem pode
achar-se ligado aos objetos de uma dada ambiência, pelo mesmo trato íntimo que se
encontra ligado aos órgãos do seu próprio corpo. Michel Foucault, um mestre em
articular relações, implementa em “As palavras e as coisas” uma sutil conexão entre as
palavras e a representação; isso porque a escrita, como ele próprio coloca no sub-
capítulo intitulado “A derivação”, inicia-se não mais com a própria coisa, mas com um
dos elementos que a constituem, ou com uma das circunstâncias habituais que a
marcam, ou ainda, uma outra coisa a que ela se assemelha. Ou seja, não existe uma
origem exata, uma ordem pré-estabelecida ou uma verdade universal – o espaço comum
é o lugar das vizinhanças, possibilitando coexistência entre as diferenças e imersão de
outros sistemas de linguagem e representação. É nesse sentido que o pensamento pós-
estruturalista, como veremos no próximo capítulo (Novas formas de pensar), irá permear
quase que todos os caminhos seguidos nesse trabalho.

Minha forma de pensar se alinha muito com o repertório conceitual desenvolvido pelo ex-
professor da Universidade de Paris VIII-Vincennes e filósofo Gilles Deleuze, mais
precisamente suas obras em colaboração com o psicanalista-teórico-militante Félix
Guattari. O cerne deleuzeano aponta para uma filosofia da diferença que se contrapõe a
um pensamento da representação. Uma das vertentes do pensamento pós-estruturalista,
diz respeito à lógica da multiplicidade a qual se orienta o pensamento rizomático.

Utilizo, ao longo da pesquisa, alguns trabalhos e publicações de ambos pensadores


franceses (já falecidos, Deleuze em 04 de novembro de 1995 e Guattari em 29 de agosto
de 1992) produzidos em momentos diversos de suas existências (para não dizer
carreiras). Félix Guattari, inclusive, já esteve no Brasil em algumas oportunidades e
geralmente problematiza questões muito próximas ao universo do arquiteto e do
urbanista, manifestações que dialogam com a formação de territórios na cidade e a
proposição de novas dimensões de lutas: a micropolítica do cotidiano. Ex-diretor da
clínica de La Borde, em Cour-Cheverny, e fundador de diversas associações de
contestação da ordem psiquiátrica oficial na França, desenvolveu algumas publicações
22

em parceria com Suely Rolnik, psicanalista brasileira e umas das tradutoras das obras de
Guattari e Deleuze no país.

Ao longo do desenvolvimento da dissertação, os principais conceitos utilizados dentro


desse rico repertório irão surgir, de acordo com os temas estudados, e serão explicitados
no corpo da monografia. Outros autores também surgirão em momentos distintos do
trabalho (mesmo que nem sempre concordemos com seus pontos de vista), a exemplo
dos arquitetos e pensadores Peter Eisenman, Bernard Tschumi, Rem Koolhaas e
Manfredo Tafuri, Paul Virilio e Jacques Derrida; também Marshall Berman, Jean
Baudrillard e Michel Foucault, entre outros em maiores ou menores graus de intensidade.

Entre problematizações formais da contemporaneidade, transgressões e


aprisionamentos, desafios projetuais, possibilidades de navegar em crises,
contaminações de diversas formas de cultura nas relações entre arquitetura e arte,
experimentações, intuições, materializações, processos e desejos, o mais instigador é
não deixar adormecer nossa percepção diante de um cotidiano de repetições, apostar na
diferença e despertar diante do desequilíbrio.

Eixo 03 – Arquiteturas – poderes, sobre-codificação e multiplicidades

Se nos reportarmos a uma visão mais funcionalista e racionalista, perceberemos que boa
parte das necessidades humanas é construída a partir de necessidades sociais reunidas
dentro de um programa formal estético totalizador e unificado. Formas ideais. Estruturas
zoneadas socialmente e espacialmente (heranças da Carta de Atenas?).12 Hierarquias.
Conjuntos de subsistemas ordenados. Disciplina, organização e domesticação. Nesse
sentido, dentro de uma lógica positivista, tanto a ciência quanto a tecnologia se vinculam
a uma estética dirigida aos interesses de um certo “progresso social”. Poderes que se
querem fazer ver. Por exemplo, é muito comum acessarmos algumas passagens que
alavancam revelações formais submetidas a uma espécie de função social do edifício. No
entanto, o funcionalismo de um edifício, se assim pode-se referir, não poderia ocultar a
sua função ideológica menos aparente? O agente de arte Dan Graham, por exemplo,
analisa as disparidades entre a fachada – o que ele chama de uma certa convenção de
comunicação com o ambiente externo – e a sua função institucional privada. Forma

12
Um dos modelos mais disseminados na história da arquitetura e do urbanismo do século XX – o “urbanismo
moderno” desenvolvido, inicialmente em 1933, pelo CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna,
terão suas principais bases documentadas na Carta de Atenas (1943). Seus principais fundamentos racionalistas
(dormitório, célula habitacional, unidade residencial, micro-região, região e cidade) entoados pelos quatro pontos
básicos de zoneamento: trabalho / residência / lazer / circulação, serão utilizados nos projetos de reconstrução de
cidades no pós-guerra e atenderão uma necessidade de habitação para as massas desalojadas. No entanto, tal
orientação será banalizada nesse período e a aplicação dos princípios funcionalistas como modelo durante o
“modernismo tardio” (fase que vai do segundo pós-guerra até a década de 1970) irá facilitar o controle e a
segregação, além de guiar a produção em série e a pré-fabricação.
23

exterior e função interior. E chega a conclusão que o formalismo de um edifício muitas


vezes é construído a partir de tecnologias ou de uma estética visual específica
(geralmente da transparência – o uso do vidro, por exemplo, dá ao transeunte, ao
observador externo ao prédio, a ilusão que ele vê aquilo como é, mas na verdade, o
vidro pode ser a maior das camuflagens13) geralmente engendrada por corporações (sob
a tutela de aparelhos de Estado) para permitir a sua tradução privada da ordem sobre
uma determinada sociedade.

Algumas “estruturas modernistas” ditadas e domesticadas pelo International Style14, se


tornam o supra-sumo de consumo das grandes corporações norte-americanas a partir da
década de 1930 e, potencialmente, no segundo pós-guerra. As torres envidraçadas se
tornam o carro-chave da política expansionista americana. O arranha-céu é mais do que
um marco simbólico – os americanos absorvem essa tecnologia como modelo e passam a
exportá-la para boa parte do mundo, funcionando como uma espécie de propagação
ideológica do triunfo capitalista. Arquitetura corporativa enquanto cultura de massa
comercializada. O urbanismo racionalista, por exemplo, disseminado no imediato
segundo pós-guerra, irá facilitar o estabelecimento de uma relação quase que inevitável:
cidade x empresa capitalista. Desde então, a cidade é entendida como uma mega
mercadoria, mais especificamente aquilo que Jean Baudrillard (1995) chama de
mercadoria-signo, ao passo que os meios de comunicação de massa são veiculados em
estreita relação com a própria reprodução da sociedade de cultura do capitalismo tardio.
Hoje, a publicidade, o poder da mídia, os ataques infindáveis de mensagens, imagens e
produtos se unem a exacerbação da mercadoria e do signo como elementos de simulação
e sedução de um mar de consumidores. Até a mercadoria e, portanto, a cidade e suas
arquiteturas, se tornam símbolo e signo (BAUDRILLARD, 1991).

Vale ressaltar que a disseminação desse modelo de torres não seria possível sem o
apurado senso de inovação proposto pelo alemão Ludwig Mies Van der Rohe. A
modelação do espaço para Mies provém de uma linha imaginária traçada a partir de um
esqueleto estrutural de pilares metálicos e um resplandecente invólucro transparente (o
vidro). O pavilhão executado para a Exposição Internacional de Barcelona em 1929, e
reconstruído na década de 1980, é considerado, assim como a Bauhaus de Walter

13
“(...) pois enquanto a função real da corporação pode ser a de concentrar o seu poder independente e de
controlar por meio de informações secretas, a sua fachada arquitetônica dá a impressão de uma abertura absoluta.
A transparência é apenas visual: o vidro separa o visual do verbal, isolando quem está do lado de fora do local
de tomada de decisões e das ligações, invisíveis porém reais, entre as operações da companhia e a sociedade”.
(GRAHAM, 1979, p.434-435, grifos nossos).
14
Sobre a exposição realizada em 1932, Montaner (1993, p.13) comenta: “A exposição pretendia estabelecer um
cânon: uma determinada arquitetura cúbica, lisa, de fachadas brancas revestida de metal e vidro, de propostas
funcionais e simples”. A disseminação de um estilo internacionalizado que se fazia intérprete severo dos
princípios funcionalistas.
24

Gropius em Dessau e a Villa Savoye de Le Corbusier em Poissy, uma das principais obras
paradigmáticas do código racionalista no universo da arquitetura.

É sabido que após o fechamento da Bauhaus pelos nazistas em 1933, os grandes


mestres da escola passaram a emigrar para outros centros, principalmente EUA e
Inglaterra. Moholy-Nagy criou a New Bauhaus em Chicago e passou a integrar o corpo de
pesquisadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Walter Gropius começou
a lecionar na Universidade de Harvard e Mies Van der Rohe tornou-se um dos
precursores desse tipo de estética de arranha-céus nos EUA, principalmente na
“remodelação” de Chicago, tendo como expoente a torre de apartamentos na Lake Shore
Drive (1948) e a estupenda vitrine internacional - o Seagram Building, desenvolvido em
parceria com Philip Johnson entre 1954 e 1958 em Nova York.15

Defensores do movimento moderno e amparados pelo corporativismo norte americano,


eles irão influenciar toda uma geração de arquitetos, não apenas dos EUA, mas
certamente dos principais centros ocidentais. Só que essas “estruturas modernistas”
ultrapassarão seu caráter ideal e se tornarão verdadeiros pacotes populares replicados
nas filiais dos escritórios das multinacionais espalhadas pelos quatro cantos do mundo.

Usado como filial ultramariana, o edifício do Estilo Internacional funciona


ideologicamente como uma base racional neutra e objetivada para o capitalismo de
exportação dos EUA, embora desejasse ser tomado meramente como uma forma
abstrata (não-simbólica). (GRAHAM, 1979, p.436)

Provavelmente, os desenhos das cidades futuristas vislumbrados pelo visionário


Sant´Elia não apenas profetizaram a linguagem da arquitetura praticada nos EUA na
década de 1920 (principalmente se nos reportarmos aos primeiros edifícios Art Déco
desenhados por Louis Sullivan – o criador de “poemas em pedras” - em Chicago)16, como
a exaltação à estética da máquina e suas intrincadas ligações mecânicas presentes em
seus manifestos irão impulsionar o despertar de uma nova cidade, aquela pintada por
Umberto Boccioni, e influenciarão substancialmente o campo das artes visuais na
contemporaneidade.

15
O arquiteto e crítico ácido Sérgio Ferro será cruel com Mies: “Mies van der Rohe, quando propõe a não
especificidade dos espaços, desce à crueza enquanto arquiteto a serviço do capital (quase tautologia). Desenha
espaços vendáveis, cumpre sua missão; o que deles é feito não o ocupa. E, por isso, é capaz de passar do
monumento (felizmente destruído) a Rosa Luxembourg e K. Liebknnecht ao Seagram´s Building. É que nele
encontramos como que o arquétipo da forma de “tipo-zero”, paralelepípedos anônimos prontos para qualquer –
ou nenhum – uso”. (FERRO, 1982, p.15).
16
A tecnologia construtiva difundida pela Escola de Chicago é revolucionária para a época, pois o uso do ferro
na estrutura possibilita a reprodução em série e a execução de altos gabaritos com rapidez e praticidade.
Obviamente, em detrimento de uma fachada em bloco, quase que constante e sem muitas variações.
25

O despertar da cidade (1910). Umberto Boccioni. Farol de Adziogol (1911).


Fonte: www.frammentiarte.it Vladimir Schuchov. Fonte: www.answers.com

O que nos denota a sucessão de torres de 200m de altura imaginadas por August Perret
– Maisons Tours – em Paris (1922) ou a mítica Empire State Building em Nova York, um
verdadeiro arranha céu de 381m projetada e construída por Willian Lamb (1931), se não
um prenúncio da Città Nuova (1914) de Antonio Sant´Elia? Para não falar do Farol de
Adziogol, imaginado por Vladimir Schuchov (Ucrânia – 1911), ou a estupenda Torre em
estrutura metálica formando três espirais circulando uma pirâmide, um cone e um
cilindro rotativos desenhada por Vladimir Tatlin – Monumento à IIIª Internacional
(1919); esses últimos, experimentos russos boicotados em solos ocidentais.17

O famoso e não menos visionário Plain Voisin (1925) ou o Plano para uma cidade de 3
milhões de habitantes (1922), ambos de Le Corbusier, propõe uma autêntica tabula rasa
– “destruir” Paris e construir uma cidade totalmente moderna, objetivando o
descongestionamento do centro da cidade, o incremento da densidade (implicando na
verticalização e uma suposta redução das distâncias e rapidez de comunicação), dos
meios de circulação e das superfícies plantadas. Tal choque possivelmente já vislumbrava
aquilo que Rem Koolhaas chama de cultura do congestionamento, onde o impacto não se
dá apenas no efeito de rasgar os céus, mas, sobretudo, no rompimento da tessitura
urbana configurada por amplos espaços abertos e na dilaceração, pelo automóvel, do
percurso do pedestre através, principalmente, da construção das vias expressas.
Koolhaas transita para além do delírio e se coloca como um arquiteto que acaba
atendendo algumas regras hegemônicas, embora tente subvertê-las. “Cada vez mais
nosso interesse principal tem sido menos o de fazer arquitetura, mas o de manipular os
planos urbanos para criar um máximo de efeito programático” (KOOLHAAS, 1994, in
NESBITT, 2006, p.367).

17
Ver tese de doutorado de Pitanga do Amparo apresentado na Universidade de São Paulo – “O Grande Boicote
Ocidental”.
26

Maisons Tours (1922), Paris, Auguste Perret. Filme Metrópolis (1925), Fritz Lang, Città Nuova (1914), Sant´Elia.
Fontes: www.eras.free.fr / www.dehora.net / www.web.mit.edu

A reconstrução do World Trade Center (Ground Zero), proposta elaborada pelo escritório
do arquiteto Daniel Libeskind e vencedora de um concurso internacional concorridíssimo;
a Torre sem Fim desenhada por Jean Nouvel para uma área já um tanto quanto
“esteticizada” pelas políticas de renovação urbana – as adjacências do La Défense -; a
reprodução da Torre de Pisa em Milão desenhada por um outro arquiteto grife:
Dominique Perrault; um hotel de luxo com mais de 59.000m2 coroado por uma superfície
de metal perfurado, elaborado por Bernard Tschumi para uma região nobre de Pequim; o
“novo anel” para a Tour Eiffel – uma plataforma em carbono Kevlar, um híbrido sintético
da DuPont, cinco vezes mais leve que o aço ou ainda as “Tours dansantes” desenhadas
por Zaha Hadid para um bairro de negócios em Dubai, não são mais simples devaneios.
Zaha, a pseudo-discípula de Malevich, já é uma grife. Uma marca. A propagação de uma
política de arranha-céus cada vez mais em voga no skyline das cidades obedece a
algumas lógicas: a espetacularização dos centros urbanos, as arquiteturas que servem a
diversos poderes e mídias, a inserção de grifes globalizadas em estreita conexão com a
revolução tecnológica e com a inovação digital presente nos sistemas das grandes
corporações.

Política de Arranha-Céus – o céu é o limite. Umeda Sky Building, em Osaka, croqui de Hiroshi Hara. A Torre
sem Fim, Paris – Jean Nouvel. Chicago Spire, Calatrava. Fontes: www.vitruvius.com.br / www.inhabitat.com
27

Monumento à IIIa Internacional (1919) Vladimir Tatlin. Rendering


de Takehiko Nagakura (MIT). Fonte: www.architettura.dada.net
Desenhos de Zaha Hadid para a Expo The Great Utopia, NY – 1992.
Fonte: ZAHA HADID (2002).

Até a cidade de Chicago é re-visitada por uma flecha de mais de 600m de altura
delineada por ninguém menos que Santiago Calatrava, o arquiteto engenheiro notável
por suas célebres estruturas, embora muitas vezes tais esculturas virem as costas à
cidade e ao seu tecido urbano. Hoje o poder mítico das principais cidades mundiais é
balizado não apenas pela altura de seus edifícios, mas pelo número de arranha-céus
(edifícios perfeitamente convencionados – com mais de 152m de altura) que elas
dispõem. Vamos a alguns números: Nova York perdeu seu posto para Hong Kong, que
atualmente possui mais de 6000 mega-edifícios altos, contra cerca de 5000 da cidade
nova-iorquina. Nessa batalha e disputa competitiva entre cidades até São Paulo entra no
hall estrelado – já são quase 2000 torres, não exatamente dentro desse padrão, mas que
ilustram bem seu skyline. E se você for procurar com calma, com certeza encontrará
mapas e listagens (as vezes permeados por números conflitantes) que ilustram bem essa
rede de arranha-céus. Para além da geopolítica (cronopolítica, diria Paul Virilio), são
traçadas paisagens totalmente mediadas.

Que corpos são esses? Como são operados esses processos? Quais estratégias são
estabelecidas e por quem (se é que se pode dar nome aos bois)? Segundo o filósofo
francês Luc Ferry, em recente palestra realizada em Salvador, a revolução científica na
contemporaneidade opera através de um discurso universal estabelecido em estreito
alinhamento com a globalização a partir de uma espécie de irradiação virótica que quer
se espalhar por todo o planeta. E pior, por trás dos mercados financeiros e das redes
mundiais não há responsáveis específicos. Se nos séculos XVIII e XIX o desenvolvimento
da ciência estava atrelado a uma idéia de progresso que tinha como objetivo o
conhecimento em prol da humanidade, hoje o avanço é mecânico e ultraveloz e o
progresso está motivado pela lógica da competição – competição entre povos,
competição entre universidades, competição entre empresas. Karl Marx já havia entoado:
28

“o capitalismo é a revolução permanente”. E mais, da permanente reterritorialização do


capital em sua máxima desterritorialização – o capital financeiro do lucro.

Tours dansantes – Dubai, Zaha Hadid. The Legs – Emirados Árabes, Andrew Bromberg. Tours Jumelles - China.
Fontes: www.linternaute.com / www.chine-insolite.blogspot.com

A Torre de Pisa em Milão. Dominique Perrault


Le King Alfred – Grã-Bretanha, Frank Gehry.
Fonte: www.linternaute.com

A arquitetura, o urbanismo e suas representações na cidade nem sempre estão atreladas


ao star system, a tabulações genéricas ou reproduções totalizantes, mas de uma maneira
ou de outra estão conectadas com essas novas lógicas de espaço-tempo. E é exatamente
nesses processos de construção das estruturas da cidade, ou seja, em seus níveis
moleculares, nas micro-gestões, nas micro-ações, numa “insegurança molecular
permanente” que as grandes organizações tem suas bases de sustentação e operam seus
sistemas molares. De edifício em edifício, de rua em rua, de indivíduo em indivíduo (o
indivíduo molecularizado, um número estatístico de massa) as grandes redes vão se
formando até se tornarem expressões desfiguradas (personificada no prédio de Frank
Gehry – Le King Alfred Center?). O reconfortante é que a política do cotidiano, as
pequenas ações18, diria até algumas possíveis arquiteturas caracterizadas pelos

18
Poderíamos citar aqui algumas ações que, mesmo isoladas, conseguem transformar as paisagens do cotidiano e
nos arrancar blocos de sensações, não exatamente por sua qualidade arquitetônica, mas por seu caráter
renovador, a exemplo do ex-pugilista Nilson Garrido e sua esposa Cora Batista ao criarem sozinhos uma
academia de boxe, uma biblioteca e uma escola infantil (ambientes públicos e comunitários) em um espaço
29

processos e pequenos experimentos com os alunos na sala de aula (e fora dela) ou até o
estreitamento de alguns pensadores arquitetos que tentam fazer front ao pensamento
dominante e estratificado, podem operar no inverso, pois não se trata de distinção por
escalas, dimensões ou tamanho, mas pela natureza do sistema de referência
considerado, pois essas e outras linhas de movimentos moleculares (mesmo
imperceptíveis no nível da macro-política) podem interferir e afetar as grandes
organizações molares.19

Viaduto do Café – São Paulo. Academia de boxe, biblioteca e escola infantil idealizado pelos
moradores do local – o ex-pugilista Nilson Garrido e sua esposa Cora Batista. Fotos: Igor Guatelli

Será que poderíamos dizer que os processos de projeto desenvolvidos por arquitetos e
artistas, digamos, eruditos e questionadores de suas próprias práticas, a exemplo de
Bernard Tschumi, Peter Eisenman, Zaha Hadid ou Daniel Libeskind (comumente
chamados de desconstrutivistas ou neoconstrutivistas, talvez os representantes mais
singulares do star system arquitetônico mundial) seriam balizados em soluções
“revolucionárias”, embora elitizadas? Elitizadas a partir de suas erudições teóricas e de
suas especialidades? Há quem diga que nenhum deles, por mais criativos que sejam,
conseguem escapar ao tabuleiro, às tramas de luzes e pilares e aos jogos de ordenação,
“(...) pois eles, nos seus direitos autorais, não possuem mobilidade de libertações e
expõem quase sempre as forças interiores e os seus eixos de gravidades entre os gostos
dos impérios” (VIANA NETO, 2008, p.151). Arquiteturas cooptadas? Talvez...

Uma questão que consideramos relevante diz respeito às associações da arquitetura


(seja como profissão ou como disciplina acadêmica) com a indústria da construção e com
as empresas imobiliárias, assunto que nos leva a questionar o campo dessas
viabilidades: quem constrói, o que constrói, onde constrói, para quem constrói e quanto

residual urbano - abaixo do viaduto do Café em São Paulo, local onde moravam - quase que uma filosofia punk
do “faça você mesmo”. A própria construção coletiva da favela, por exemplo, que se desenvolve sem um modelo
formal e hierárquico, mas de forma labiríntica, rizomática e fragmentária como analisa JACQUES (2003),
aponta para um processo onde “o espaço movimento é diretamente ligado aos seus autores (sujeitos da ação),
que são tanto aqueles que percorrem esses espaços quanto aqueles que os constroem e os transformam
continuamente” (idem, p.149). Essas exemplificações apontam para outras possibilidades de pensar a ação de
projeto sobre as cidades fora de padrões dogmáticos, totalizantes e homogeneizantes.
19
Ver DELEUZE; GUATTARI (1996), Mil Platôs, v. 3 – Capítulo “Micropolítica e Segmentaridade”, p.83-116.
30

cu$ta. Se a produção da arquitetura estiver atrelada economicamente ao capitalismo,


obviamente tenderá a ser sobre-codificada20, salvo algumas brechas engendradas pela
indústria do espetáculo e do entretenimento (que ousam do ponto de vista formal, mas
muitas vezes mantém outro tipo de sobre-codificação ou conservadorismo,
permanecendo, todavia, nas estratificações dos diferentes estratos do universo
capitalista) quando não pelas mãos de mecenas mais sensíveis – milionários apreciadores
de arte dispostos a arriscar um pouco mais. Há, evidentemente, possibilidades fora desse
status quo, a exemplo de algumas materializações que são abstraídas de um universo,
de uma geografia, mais informal da cidade ou nas contaminações entre formalidade e
informalidade que permitem a participação mais intensa da população nos processos
construtivos da cidade. O arquiteto, muitas vezes, se depara com uma questão
inquietante: como construir ou projetar e ao mesmo tempo criticar as redes que
sustentam tais atividades?

Obviamente que se nossas análises aqui expostas se submeterem a esse pragmatismo


da realidade da construção civil ou do poder capitalista, provavelmente nossas
percepções cairiam nas armadilhas do engessamento e do fetiche. Contraditório, não? Eu
diria, apenas, que há possibilidades de coexistências.

Estética urbana nômade.


Ao lado, abrigos provisórios de
sem-teto em Kyoto, no Japão,
construídos com madeira e
papelão pelos próprios
ocupantes, formando uma
pequena vila. As feiras livres e
comércios informais também
representam espaços de
resistência à imposição
homogênea da cultura de
shopping center. Fonte:
KRONENBURG (2007).

À esquerda, o projeto “sítios manufaturados” (Teddy Cruz) explora


processos de construção em comunidades informais de Tijuana
(México), utilizando material residual, como o pneu e portas de ferro.
Na imagem, uma casa construída com restos de ferro e madeira, e o
muro de contenção com pneus e terra. Abaixo, o detalhe do corte dos
pneus reciclados e a participação da comunidade na execução das casas.

Fonte: VERB CRISIS (2008)


20
As arquiteturas, enquanto multiplicidades de expressões, tendem a se repetir em diferentes graus e níveis, mas
não mudam de natureza e continuam servindo às “sociedades de controle” e às redes de corporações sob a égide
de diferentes aparelhos de Estado. Nesse sentido, atreladas ao mercado e ao capital, elas também tendem a ser
conservadoras.
31

Ao lado, moradores do assentamento informal Quinta


Monroy, em Iquique, no Chile, participando do processo de
projeto de criação de suas casas, através de desenhos e
maquetes de estudo (Estúdio Elemental). Acima, montagem
dos abrigos em tubos de papel para os refugiados de Ruanda
(VAN – Shigeru Ban). Fonte: VERB CRISIS (2008).

Os processos de projeto e a disseminação de arquiteturas nunca estão dissociados das


lógicas de poderes e saberes. Qualquer que seja a época, qualquer que seja o segmento.
Nas produções mais hegemônicas, nas produções das grandes corporações, nas
arquiteturas resplandecentes e espetaculares, nas micro-arquiteturas, nas mega-
arquiteturas, nas arquiteturas nômades, nas arquiteturas periféricas, na estética das
favelas – se verificam uma multiplicidade de processos, sejam em agenciamentos duros
ou flexíveis, entre espaços lisos e estriados21, em diferentes temporalidades. Campos de
saberes estratificados ou campos de saberes empíricos - as estratificações22, ou ainda
nas experimentações, nas repetições e nas variações, com grandes recursos e
extravagantes orçamentos ou com verbas restritas – sempre há algum tipo de processo
projetual ou alguma lógica de construção de arquiteturas especializadas ou não.

Apropriações formais labirínticas. O grande “rizoma” que é a favela e o Memorial do


Holocausto em Berlim desenhado por Peter Eisenman.
Fonte: www.travelblog.org / TRACING EISENMAN (2007)

21
Ver DELEUZE; GUATTARI (1997b), Mil Platôs, volume 5 – Capítulo “O liso e o estriado”, p.179-214.
22
Os saberes de qualquer natureza são estratificações; a experiência empírica, os saberes ditos empíricos
coincidem com os saberes que vão se estratificando. Dependendo da forma de pensar e da visão de mundo, os
saberes empíricos também podem mudar de natureza, de devires outros. Então, trata-se de Acontecimento.
32

Fonte: www.flickr.com/photos/mvitor Fonte: www.nomads.usp.br

A estética das palafitas. Ocupações provisórias e as


relações formais com residência projetada pelo estúdio
NOMADs (São Paulo) e a Villa D´allava (Paris), de
Rem Koolhaas.
Fonte: www.flickr.com/photos/ihanegotthestyle

Se levarmos em consideração uma das vertentes do pensamento pós-estruturalista


desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari, mais precisamente aos acontecimentos
que se dão através de relações dentro da lógica da multiplicidade, veremos que não
existem conceitos isolados. Na verdade, eles (os conceitos) sempre foram utilizados para
explicitar alguma coisa, para determinar alguma coisa, para indicar uma essência. Mas a
questão colocada por esses pensadores vai mais além, estão em relação com as
circunstâncias das coisas: em que caso, como, onde, porque, etc.

O conceito se faz em multiplicidades, são tanto processuais quanto modulares23. Uma


trama de encruzilhadas. Assim como os conceitos, os processos não se produzem no
isolamento, mas se articulam e variam. Para o arquiteto Bernard Tschumi, não existe
arquitetura sem conceito (um desdobramento para além de uma idéia, um diagrama,
percepções e afecções de conceitos, etc); um conceito, não a forma, é que distingue uma
arquitetura de uma mera construção, embora suscite outras plataformas de comunicação
e de conflito entre o conceito e o contexto, por exemplo, referente à inserção (posição)

23
Ver DELEUZE; GUATTARI (1992b), O que é a filosofia - capítulo “O que é um conceito”, p.27-47.
33

da arquitetura, ou ainda das articulações com o conteúdo, ou seja, o programa funcional,


como veremos mais adiante. É que Tschumi está mais próximo da exploração dessas
relações (conceito, contexto, conteúdo) do que da análise do triunfo de um termo sobre
o outro enquanto proximidade arquitetônica - escolher uma estratégia apropriada para
um dado projeto também pode ser parte do conceito (TSCHUMI, 2004). Se a arquitetura
situa-se no campo da arte e na fenomenologia da sensação, talvez o que Tschumi queira
apontar seja exatamente o momento na qual a sensação pode tornar-se, ela própria,
sensação de conceito ou de função, pois, o pensamento sendo uma heterogênese, as
formas de criar e pensar – a filosofia, a arte e a ciência – se cruzam e se entrelaçam
como um rico tecido de correlações que se estabelecem entre os mais variados planos.
Aí, o conceito se torna conceito de função ou de sensação; a função se torna função de
sensação ou de conceito (DELEUZE, GUATTARI, 1992b, p.255).

Muitas dessas questões, obviamente, ficaram mais evidentes e se potencializaram


quando entrei no mestrado, principalmente no momento em que passei a ter um contato
mais direto com o pensamento pós-estruturalista (a exemplo das discussões travadas na
disciplina ministrada pelo professor Pasqualino Magnavita – “Formas de Pensar a
Contemporaneidade – Pós-estruturalismo e Arquitetura”) e iniciei viagem rumo ao meu
próprio processo de desterritorialização – ainda em curso. Como Foucault coloca: “O
novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”.
34

CAPÍTULO I NOVAS FORMAS DE PENSAR

A tese da pseudocontinuidade da história da arquitetura, com seus


momentos cuidadosamente determinados de ação e reação, apóia-se num
entendimento precário da história em geral e da história da arquitetura em
particular. Afinal de contas, a história da arquitetura não é linear e certas
obras fundamentais não estão de modo algum aprisionadas a continuidades
artificiais. Se a corrente dominante dos historiadores descartou inúmeras
obras por considerá-las ‘arquitetura conceitual’, ‘arquitetura de papelão’,
espaços ‘poéticos’ ou ‘narrativos’, chegou a hora de questionar
sistematicamente as suas estratégias reducionistas. Colocá-las em questão
não é simplesmente exaltar o que essas estratégias rejeitam. Ao contrário,
significa entender o que as atividades de fronteira escondem e encobrem.
Esse tipo de história e de reflexão crítica e analítica ainda está por ser
realizada. Não como um fato marginal (de poetas, visionários ou, pior, de
intelectuais), mas como um fenômeno crucial para a natureza da
arquitetura.

Bernard Tschumi
35

CAPÍTULO I – NOVAS FORMAS DE PENSAR

Antes de nos defrontarmos com os campos temáticos dos processos de projeto que serão
aqui estudados, se faz necessário compreender, em alguns matizes, conceituações
iniciais que permeiam os componentes básicos de articulação do estreitamento da
arquitetura como forma de conhecimento e campo de experimentação, sobretudo
imanente no plano da reflexão teórica e das batalhas práticas e cotidianas, desde o
desmantelamento de suas estruturas até as possibilidades de transgressão, onde os
deslocamentos e as categorias de análise (o percebido, o experimentado, o criado, o
imaginado, o mimetizado, etc) levam a diferentes campos de abordagem. Uma diferença
de perceptos e de campos de representação que permitam a emergência dos limites na
produção da arquitetura. Mutações e variações onde as sobreposições e as diferentes
apropriações de territorialidades, muitas vezes imprevistas, apontam lugares de conflitos
que se entrelaçam e se confundem no tempo e no espaço, mas que são fundamentais
para um melhor entendimento do pensamento contemporâneo. Como nos alerta o
cineasta Orson Welles: “i don´t like cinema, a like making cinema”, ou seja, mais do que
gostar de arquitetura, é preciso gostar de fazer arquitetura.

Fundamentação teórica

a) Entre linhas de intersecção – criação, idéia, conceito, experiência

Afectos e perceptos, por exemplo, talvez sejam condições intrínsecas à constituição de


toda obra de arte. Pintamos, projetamos, escrevemos, desenhamos com sensações. A
sensação não se realiza apenas no material manipulado pelo fruidor (artista, arquiteto,
etc), sem que esse material entre inteiramente na sensação, no percepto e no afecto –
onde são estabelecidas tensões entre os corpos. Nesse sentido, toda matéria, então, se
torna expressiva e essa dinâmica em conexão com o sujeito os coloca em relação direta.
A obra de arte ou o objeto arquitetural é, então, um ser de sensações, onde são criados
blocos de perceptos e afectos. Nesse deslocamento estético, segundo Deleuze e Guattari
(1992b, p.227), o artista é mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos,
em relação com os perceptos ou as visões que nos dá. Não seria apenas em suas obras
que eles (os artistas) os criam, os artistas nos dão e nos fazem transformarmo-nos com
eles, os artistas nos apanham no composto.

É o que acontece nos processos de experimentação. A experimentação é uma prática. A


experiência pode ser entendida como um conhecimento que nos é apreendido pelos
sentidos, como podemos observar nas indagações de alguns filósofos e pensadores que
trataram dessa questão ao longo de suas inquietações acerca da própria condição
humana. Para John Locke (1632-1704), médico e importante pensador inglês, a
36

experiência é a única fonte de idéias e, portanto, defende o processo empírico como


fonte do conhecimento. Para ele, a mente humana é, no início, algo como um grande
“gabinete ainda vazio”, um “papel branco”24 – uma tabula rasa – que aos poucos é
preenchido pelos dados da experiência. Porém, a noção de experiência não se limita
apenas à sensação dada aos órgãos do sentido por coisas exteriores. É preciso que a
mente realize certas operações a partir dessas idéias. A experiência interior (reflexão),
pela qual a mente percebe suas próprias operações, também é fonte de idéias – como o
pensamento, o raciocínio, a dúvida – embora estas não se refiram às coisas exteriores e
sim a essas atividades interiores. O conhecimento é o resultado das operações que a
mente realiza com as idéias, tanto da sensação como da reflexão, procurando perceber o
acordo ou desacordo entre elas25.

David Hume, filósofo escocês nascido em 1711 na cidade de Edimburgo, leva avante o
programa empirista de não admitir hipóteses. As impressões ou idéias estão em
constante variação. Para Hume continuaremos empregando palavras como “espírito”,
“mente”, “eu” para designar esse fluxo de diversas impressões e idéias; mas o espírito,
no sentido de substância, não existe; a relação de causalidade, por exemplo, é uma
crença baseada no hábito e os valores morais são inteiramente relativos. Os valores
podem variar de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade, de época para época,
mas algo permanece sem grandes alterações: exatamente a natureza humana. Com essa
noção, Hume indica que os homens associam idéias e acreditam nessa associação por
força do hábito ou costume, geralmente coletivo e de nada adianta perguntar qual a
origem desse “costume”, pois a sociedade e as instituições coletivas (governos, por
exemplo) estão em constante mudança. Hume salienta, então, que sem o apoio da
experiência, os raciocínios científicos, religiosos, morais ou políticos se tornam
dogmáticos. As relações permeadas pelas conexões de várias impressões e associações
de idéias irão deflagrar aquilo que ele chama de percepção. Mas o que conta de fato não
é o encadeamento lógico das idéias e sim a experiência. No entanto, sabemos que os
pressupostos de Hume são historicamente justificáveis, embora não se “encaixem” no
pensamento contemporâneo, pois a criação se dá através de imprevisíveis conexões e
não por vias de associações ou somas de articulações. O hábito, inclusive, é uma violenta
estratificação. Os tempos atuais são atravessados por traços de desterritorializações... a

24
No entanto, nunca a experiência foi um “papel em branco”, uma “tabula rasa”. Acreditamos que a experiência
não tem começo nem fim, é um processo contínuo de estratificação; os estratos têm grande mobilidade e são
atravessados por agenciamentos, pois se os estratos constituem territórios, os agenciamentos são territoriais.
Parafraseando Deleuze, há sempre “a pintura antes de pintar”, de uma forma ou outra, também há arquitetura, o
projeto, antes de projetar.
25
Locke desenvolve seu raciocínio dualizando a experiência. Na verdade, nas nossas aferições contemporâneas,
a experiência é compreendida enquanto uma multiplicidade de atividades sensoriais, conceituais e funcionais, em
vias de estratos preexistentes. Podemos criar novos conceitos, funções, perceptos e afetos no sentido de
Acontecimento, quando somos motivados para isso. Porém, muitas vezes passamos a repetir as experiências, em
diferentes graus e níveis, embora nem sempre constituindo um acontecimento filosófico, artístico ou científico.
37

questão é de desconstruir os hábitos e as formas de pensar, em lugar de repetir


experiências.

Para Hume, por exemplo, a certeza não se fundamenta em nenhum raciocínio ou


demonstração, tampouco em intuição, isto é, em todas as operações mentais
tradicionalmente admitidas como as únicas válidas para o verdadeiro conhecimento
racional. E o que dizer então dessa certeza sobre o futuro, se dele nem sequer podemos
ter experiência? A certeza, portanto, só pode ser uma crença. Mas em que se baseia
crença? Para Hume, a resposta é apenas uma: na repetição de experiências
semelhantes, isto é, no hábito (costume). O ceticismo torna-se, então, inevitável: o
conhecimento científico, que sempre pretendeu-se guiar pela razão e pela evidência da
intuição e da demonstração para estabelecer relações de causa e efeito, tem bases não-
racionais, como a crença e o hábito.

Isso nos leva a crer que a questão da experimentação enquanto performance talvez seja
um caminho interessante para alguns processos de criação; não uma experimentação
baseada na experiência repetitiva, mas numa abordagem empírica mesmo – uma
experiência sensível, nova. Nova no sentido daquilo que está a sua volta, um devir-outro,
não tabulado e que opera em zonas de vizinhança. Freqüentemente, repetimos aquilo
que já está dado no universo da representação. Temos medo ou receio daquilo que não
conhecemos. Às vezes ficamos presos às categorias kantianas e as representações
sintéticas objetuais que tem na unidade e seus múltiplos os eixos fundamentais de
determinação. A história da filosofia acabou fazendo do empirismo uma crítica do
inatismo, do a priori, embora também digam que o empirismo tenha lá seus segredos e
que, em Hume, tenha uma posição singular – o universo da ficção científica.26

Para Kant o conhecimento começa com a experiência, mas nem por isso origina-se nela.
Isso porque a experiência pressupõe o sujeito como condição de sua possibilidade, sem o
que a palavra “experiência” nem teria sentido. O sujeito, então, deve apresentar
capacidade ou faculdades que possibilitem a experiência e o próprio conhecimento. Que
faculdades seriam essas? A sensibilidade. A sensibilidade seria a capacidade de obter
representações mediante o modo como somos afetados por objetos. Na sensibilidade,
essas representações se dão de modo imediato pela intuição. Esta é empírica quando se
referir às sensações, isto é, aos efeitos causados na sensibilidade ao ser afetada pelos
objetos, que são “externos a nós”. Para Kant o espaço e o tempo (sucessivo ou
simultâneo) são condições a priori de possibilidade da intuição empírica, pois constituem
o campo dessa representação. O conteúdo, a matéria, corresponde a sensação. Trata-se
de uma condição a posteriori e é ordenado segundo certas relações de espaço e tempo.

26
Ver DELEUZE (1972) – Hume. In: DELEUZE (2006), A ilha deserta, p.211-220.
38

O pensamento contemporâneo no tratar da experiência enquanto construção terá em


Henri Bergson (1859-1941) seu principal defensor. O filósofo francês (prêmio Nobel de
literatura em 1927) irá trabalhar as relações entre tempo e movimento e, para isso, irá
defender o retorno à experiência imediata enquanto construção. Há toda uma lógica que
rege nossa vida prática e intelectual, profundamente embutida na nossa linguagem,
responsável pelas linhas básicas de nossa visão de mundo. O interessante é que
inúmeros fatores se colocam entre nós e a realidade, inúmeros acontecimentos nos
influenciam todo o tempo fazendo com que a nossa experiência cotidiana, científica, etc,
seja uma construção, um processo aberto, mutável, de diferentes naturezas e não uma
relação imediata das coisas. E, evidentemente, noções de duração, memória, impulso
vital e intuição, irão permear toda sua obra.

Erwin Panofsky (2000) levanta algumas questões atraentes, embora ainda ligado a um
pensamento de reconhecimento recognitivo, ancorado na filosofia da representação. A
primeira se refere às relações entre imaginação e imitação e a superação do modelo. “Foi
a imaginação que criou esses deuses, e ela é mais artista do que a imitação, pois a
imitação representa o que vê, a imaginação o que não vê” (Idem, p.21). Passagens que
nos revelam uma máxima de François Châtelet: “somos todos discípulos de Platão”. A
realidade para Platão é o mundo das idéias, o real não é o físico (mundo sensível), mas o
metafísico (mundo inteligível). Se os sentidos enganam e o mundo sensível é mutável,
logo não pode ser fonte de conhecimento; o mundo inteligível é que seria a base do
conhecimento. Poderíamos então dizer que a concepção de formas, dentro de uma lógica
platônica (idealista), seriam geradas a partir da idéia. Idéia enquanto essência – eidos.
Se aprisionados em suas cavernas os homens estão imersos na escuridão, fora dos
terrenos rochosos a intensidade de luz pode ofuscar a visão.

A segunda reporta-se à questão da universalidade do conceito e a singularidade da


representação individual. É que para o filósofo Aristóteles, a realidade depende da
apreensão do sujeito; é um conceito mais próximo da nossa condição humana. O
conhecimento, a teoria, as opiniões sistemáticas são construções intelectuais do ser
humano e depende da visão de mundo de cada um. O homem é o protagonista. Por se
dedicar ao estudo dos seres vivos e da natureza, Aristóteles não despreza a observação
das coisas que se apresentam aos sentidos e procura integrar a percepção do mundo
sensível ao conhecimento científico e filosófico. Aristóteles entende que o mundo
inteligível concebido por seu mestre, Platão, apenas explica a imperfeição do mundo
sensível. Mesmo fazendo uma crítica ao mundo inteligível idealizado por Platão,
Aristóteles também defende a Theoria27 como instrumento e pressuposto para a ação.

27
Theoria, para os gregos, tinha um sentido de contemplação. E contemplação significa conhecimento - uma
apreensão intuitiva a partir de fatos que independem da razão. Ou seja, contemplação, para os gregos, é ativa e
articulada com a realidade.
39

Somente a ação teorizada reflete o sentido de si mesma. Praticar sem teorizar seria agir
aleatoriamente, sem uma finalidade, e teoria sem finalidade de ação é abstração.

A terceira questão aponta para as relações entre forma e matéria. Causa, fim e motor. As
condições da própria existência da obra de arte e as condições empíricas de seu
aparecimento. O que leva um artista a trabalhar? A encomenda, o desejo de criação, as
possibilidades de transgressão / fruição? Pontos que serão confrontados no Capítulo III.

A quarta questão que me chamou a atenção refere-se ao espírito, a alma do artista. Para
o pintor Rafael, a idéia vem do espírito, a partir de uma representação interior. Quando o
mundo real não lhe oferecia os modelos de seu agrado para suas representações, ele
recorria às manifestações de seu espírito - “(...) na falta de modelos suficientemente
belos, utilizavam uma ‘certa idéia’”. (Ibidem, p.64) Idéia muitas vezes ancorada em um
olhar aprisionado a um ponto de fuga central, um olhar sem desvio.

Obviamente, a representação praticada no renascimento pressupunha a existência de


uma realidade que alguns pintores tentavam reproduzir, muitas vezes a partir de
modelos ou observações realísticas (imitação da natureza). As técnicas de representação
em perspectiva, por exemplo, foram criados pelos renascentistas Brunelleschi e Alberti; a
tavoleta é um marco revolucionário na história das imagens técnicas, pois irá trazer para
o plano bidimensional a profundidade da tridimensionalidade. Segundo Wölfflin (1989), a
pintura renascentista é essencialmente perspectivista; numa espacialidade perspectivista
temos quase a ilusão que o real está saltando aos nossos olhos. A arquitetura na pintura
da renascença serve para ilustrar a profundidade do quadro – um cenário arquitetônico
que será, muitas vezes, utilizado para reforçar a imagem daqueles que detinham o poder
no Quattrocento, a exemplo da Firenze dos Médici e as panorâmicas em sobreposição de
planos do Palazzo Público de Sienna.

As inúmeras discussões acerca da imagem e suas diversas dimensões (imagens públicas


e suas representações na cidade, imagens visuais, imagens plásticas, a fotografia, o
cinema, o design na contemporaneidade, a exacerbação do marketing, a cidade-outdoor,
etc) principalmente as relações entre imagem visual e realidade, são conceituações
amplamente trabalhadas por filósofos e pensadores ao longo da história do
conhecimento, como podemos ver já na obra República, de Platão, e sua conotação
acerca da imagem:

(...) primeiramente (as) sombras depois (os) reflexos que se vêem nas águas ou na
superfície dos corpos opacos, polidos e brilhantes, e a todas as representações
semelhantes. (Platão, 2000, p.222)
40

Merleau-Ponty (1908-1961), em “O Olho e o Espírito” nos coloca uma questão intrigante:


não há visão sem pensamento. Mas também não basta pensar para ver. A visão é um
pensamento que surge a partir da experiência do corpo. Nesse livro o filósofo irá analisar
como Descartes, na Dióptrica (parte da física que estuda a refração da luz), não parte
necessariamente da experiência do olhar. Descartes atua seguindo um modelo criado e,
a partir desse modelo, ele tenta construir explicações acerca do fenômeno, tendência que
Ponty aponta na relação entre a filosofia cartesiana e operacionalidade da ciência advinda
do iluminismo – a reconstrução do pensamento segundo um modelo, um método. A arte,
a representação do visível e os artifícios do mundo percebido estão muito mais próximos
de uma experiência tátil do que de uma experiência de um olhar puro. É como se o olhar
pudesse “apalpar” as coisas. O olhar se constrói nessa variação.

Quando eu vejo, através da espessura da água, o ladrilhado do fundo da piscina, não


o vejo apesar da água, dos reflexos; vejo-o justamente através deles, por eles. Se não
houvera essas distorções, essas zebruras de sol; se eu visse sem esta carne a
geometria do ladrilhado, então é que cessaria de ver como ele é, onde ele está, a
saber: mais longe do que qualquer lugar idêntico. A própria água, o poder aquoso, o
elemento xaroposo e cintilante, não posso dizer que esteja no espaço: ela não está
noutro lugar, mas também não está na piscina. Habita-a, nela se materializa, nela não
está contida, e, se ergo os olhos para a tela dos ciprestes onde brinca a rede dos
reflexos, não posso contestar que a água a visita também, ou pelo menos a ela envia
a sua essência ativa e viva. Esta animação interna, essa irradiação do visível é que o
pintor procura sob os nomes de profundidade, de espaço e de cor. (MERLEAU-PONTY,
1984, p. 104-105, grifos nossos).28

A base cartesiana de um mundo que advém do espírito aponta para a visão de um


mundo perfeito e ideal. Aprisionados na égide da razão, nas estruturas de uma
representação cômoda, geometrizada. Os artistas “ilusionistas”, que fogem às
representações tradicionais e racionais, estariam fora desse baralho. Os primados da
geometria, inclusive, se alinham com formas de segmentaridade dura; talvez seja por
isso que Merleau-Ponty não critica necessariamente a Dióptrica de Descartes enquanto
um tratado científico, mas a filosofia ou metafísica que ela representa. Paul Virilio, por
exemplo, ao analisar a difusão do império romano, verificará que ele se impõe a partir de
uma razão de Estado linear ou geométrica imposta por uma arte universal de “demarcar

28
É preciso lembrar que a vertente filosófica denominada fenomenologia, parte da relação sujeito/objeto, sem
caracterizar, todavia, a que sujeito se refere e que intencionalidade promove. Considerando que a significância e
subjetividade são construções em diferentes formações sociais, não existe a dualidade da relação sujeito/objeto,
mas uma multiplicidade de individuações sem sujeito, singularidades, hecceidades. Devires outros.
41

por traçados”, de demarcar territórios a partir de uma política de expansão calculada no


espaço e no tempo. “Desconfiem dos feitiços e dos atributos diabólicos da geometria”!29

Realmente, a geometria do Estado ignora as linhas do devir. Na verdade, a geometria


euclidiana é um saber axiomático e nasceu da necessidade em épocas que se perdem no
tempo de medir a terra, de afirmar a propriedade privada e ainda serve para esta e
outras finalidades.

Multi-artista, estudioso de arqueologia, revolucionário no uso da gravura sobre cobre e


água-forte e, potencialmente, um grande desenhista, Giovanni Battista Piranesi
questiona a representação estática. “L´architetto pazzo”, heterotópico nas palavras de
Manfredo Tafuri, possuía, evidentemente, as bases dialéticas do pensamento das Luzes –
um conflito exacerbado entre racionalismo e sentimento como diriam os mais
estruturalistas. Porém, a potência genial de um grande artista extrapola as linhas
axiomáticas do rigor e suas obras, sobretudo Carceri d´Invenzione, são verdadeiras odes
à imaginação criadora. Intuição, devaneio e liberdade.

Carceri d´Invenzione (1750) – Piranesi.


Fonte: www.gravuramundi.blogspot.com

Assim como o barroco nos remete a um traço de função operatória. “Não pára de fazer
dobras”.30 Não se abriga em um percurso reto, cartesiano. Está mais próximo de um
labirinto em sua multiplicidade de dobras.

Charles Sanders Peirce (1839-1914), químico pela Universidade de Harvard e o primeiro


psicólogo experimental dos EUA, estabeleceu a Teoria Geral dos Signos – a Semiótica, na
qual o mundo aparece e se traduz como linguagem. A partir de algumas categorias

29
Citação de Fénelon em oposição à política de Estado de Luiz XIV. In VIRILIO, L´insécurité du territoire.
Stock, 1976, p.120, p.174-175, APUD DELEUZE; GUATTARI (1996), Op.Cit., p.88.
30
DELEUZE (1991), A dobra: Leibniz e o barroco, p.13. Para maiores aprofundamentos, ver o capítulo “As
redobras da matéria”, p.13-31.
42

analisadas por Peirce e que se apresentam em manifestações psicológicas, nos


deparamos com a questão da impressão. Nossa vida está no presente, mas o presente se
transforma a todo instante. Há, para Peirce, centenas de coisas operando
simultaneamente na consciência – as sensações, os acontecimentos, a própria
existência... No entanto, não há como descrever tais sensações em um dado momento e
qualquer descrição pode soar como uma maneira de falseá-las. Os instantes são fugazes.

Peirce nos coloca que o mundo real e seus conflitos na existência cotidiana se
desenrolam independentemente do nosso pensamento. Trata-se do puro existir, antes do
percebido. “(...) quaisquer excitações, mesmo as viscerais ou interiores, imagens
mentais e sentimentos ou impressões, sempre produzem alguma reação, conflito entre
esforço e resistência”. (SANTAELLA, 2006, p.48). E chega ao universo da interpretação, a
partir de uma elaboração cognitiva e representativa do signo e dos seres simbólicos. O
signo representa um objeto para um intérprete – o interpretante, que por sua vez se
relaciona com o objeto através da mediação do próprio signo, por uma relação
processual que se cria na mente desse intérprete. Nesse sentido, ele não interpreta o
signo, mas está em processo, em relação. Para Peirce, há signos interpretáveis na forma
de sentimento ou através da experiência concreta ou da ação, ou ainda por pensamentos
infinitos. Parafraseando Fernando Pessoa – “o que em mim sente está pensando”.

Ao estruturar seu pensamento através da teoria lógica, filosófica e científica da


linguagem, Peirce se depara com a chamada Semiótica Formal, uma espécie de
configuração de conceitos abstrato-formais, sendo necessário singularizá-los para torná-
los compreensíveis às mentes empíricas, chegando às noções diagramáticas de
formatação dos signos. Para ele, a maquinaria do pensamento só pode proceder à
transformação do conhecimento, mas nunca originá-lo, a menos que seja alimentado por
fatos da observação (PEIRCE, 1972, p.51). Ao tentar classificar os signos a partir da
observação dos fenômenos (pensamento, conflito e interpretação), trabalhando ícones,
indicadores e símbolos, o criador da semiótica evidencia suas apreensões com base na
experiência, onde até a própria abstração pode ser considerada um tipo de observação. E
chega a conclusão que, nem sempre o signo se assemelha ou corresponde à aparência
de seus objetos. Embora a estrutura filosófica peirceana tenha promovido significativos
debates e rupturas com as raízes das relações binárias, as limitações de suas concepções
continuaram moldadas no mundo da representação.

Numa espécie de contra-mão, a obra de Gilles Deleuze irá se confrontar a uma filosofia
da representação. Não é a toa que ele vai se identificar com aqueles pensadores que se
opunham ao socrático-platonismo e à reflexão aristotélica, os chamados filósofos da
diferença: Hume, Espinosa, Leibniz, Bergson, Proust, Nietzsche. As grandes armadilhas
produzidas pela filosofia da representação, segundo Deleuze, acabaram subordinando a
43

“diferença” à “identidade” e a disseminação de um pensamento amplamente reproduzido


no senso comum – uma potência compartilhada de modo natural entre todos os homens.
É o que nos fala Châtelet.

Para Deleuze, tanto a ciência, quanto a arte ou a filosofia são maneiras de pensar. Por
isso as questões que emergem da experiência e a conseqüente efervescência de
conceitos são tão vorazes no cerne deleuziano, visto que os conceitos nunca são dados
prontos – é preciso criá-los, inventá-los dentro de um plano de imanência. Um conceito
deve dizer ao acontecimento, às circunstâncias, e não a uma essência. Um sistema
aberto, platôs de comunicação, sucessão de processos. Criação e invenção estão
presentes tanto na ciência quanto na arte e pressupõe a produção de convergências
inesperadas. A crítica deleuziana aponta para uma filosofia da diferença que se contrapõe
a um pensamento da representação, onde as rachaduras (as rupturas a-singnificantes,
as descontinuidades) são fundamentais – pegar as coisas pelo meio, onde elas crescem,
e não buscá-las na origem (DELEUZE, 1992a, p.109).

O papel do filósofo é de outra natureza. O que caracteriza e o diferencia de outros


criadores é o fato de ele ser um inventor de conceitos. A filosofia dentro dessa
perspectiva não é contemplação (o caminho em direção à idéia), comunicação (um
jogo de intersubjetividade), ou mesmo reflexão (uma reflexão metódica sobre um
objeto determinado) – filosofar é criar conceitos. (VASCONCELLOS, 2007, p.81)

É um pensamento de ruptura, sem dúvida, até porque insere mecanismos deslocantes,


justapostos e até desestruturantes - travessas transversas em oposição aos grupos
hierarquizados. Um pequeno conceito pode ter uma grande ressonância? É possível...
Embora os conceitos não sejam dimensionais e sim auto-referentes, virtuais e
incorporais, sofrendo apenas variações e graus de intensidade. Na verdade, os conceitos
aqui são compreendidos enquanto totalidades segmentárias e de maneira alguma
funcionam como um quebra-cabeça, pois nem mesmo seus contornos irregulares se
correspondem. “Eles formam um muro, mas é um muro de pedras secas e, se tudo é
tomado conjuntamente, é por caminhos divergentes. Mesmo as pontes, de um conceito a
um outro, são ainda encruzilhadas, ou desvios que não circunscrevem nenhum conjunto
discursivo. São pontes móveis.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992b, p.35-36)

O simples fato de pensar já pressupõe criação. Pensar é produzir idéias. Porém, o


conceito de idéia para Deleuze difere muito do sentido platônico ou daquele pensamento
da representação. A idéia não surge de uma relação contemplativa (diria transcendente).
Criação e idéia em Deleuze perpassa pela relação de alguns planos, como já foi dito: o
plano de composição da arte, o plano de referência da ciência e o plano de imanência da
filosofia. Sejam os conceitos criados pelos filósofos, sejam as funções inventadas pelos
cientistas, sejam os blocos de perceptos e afectos criados pelos artistas na arte.
44

E vai além. As idéias são multiplicidades. Não como uma combinação de múltiplo e de
uno, mas a partir de uma organização própria do múltiplo que não necessita da unidade
para formar um sistema – uma multiplicidade de fusão. Melhor: diferenças de
multiplicidades.

Assim como a estrutura é independente de um princípio de identidade, a gênese é


independente de uma regra de semelhança. Mas uma Idéia emerge com tantas
aventuras que pode acontecer que ela já satisfaça certas condições estruturais e
genéticas, mas não outras. Portanto, é preciso procurar a aplicação desses critérios
em domínios muito diferentes, quase ao acaso dos exemplos (DELEUZE, 1988,
p.262).31

Cézanne ultrapassa a representação do visível e multiplica os pontos de fuga. Cézanne


utilizava muitas linhas para desenhar, mas não são apenas linhas de contorno, são linhas
de expressão. Impressões de sensações. A pintura de Francis Bacon, tão bem analisada
por Deleuze em “Francis Bacon: lógica da sensação” também foge ao mundo da figuração
clássica tendo nos diagramas a expressão da sugestão e da não-representação como
uma possibilidade de tangenciar as dimensões sensíveis. Apropriação trabalhada pelo
arquiteto Peter Eisenman em alguns de seus projetos arquitetônicos – o uso do diagrama
como conceito projetual. “O conceito é contorno, a configuração, a constelação de um
acontecimento por vir” (DELEUZE; GUATTARI, 1992b, p.46).

Essa superação da narrativa já havia sido apontada na subversão de Kandinsky em sua


rejeição à forma ideal e ao simbolismo e, conseqüentemente, na crítica ao apuro das
formas geométricas, explicitadas no texto “Sobre o espiritual na arte”, de 1910. O
espiritual, para Kandinsky, não corresponde a um sentido ideal, como aponta Argan:

O ‘espiritual’, para Kandinsky, não é de forma alguma o ‘ideal’ dos simbolistas; o


símbolo também é uma forma à qual corresponde um significado dado, e deve ser
rejeitado. O ‘espiritual’ é o não-racional; o não-racional é a totalidade da existência,
na qual a realidade psíquica não se diferencia da realidade física. O signo não
preexiste como uma letra no alfabeto; é algo que nasce do impulso profundo do artista
e, portanto, é inseparável do gesto que o traça. (ARGAN, 1992, p.318)

Gesto também presente na poética suprematista de Kasimir Malevich – abstração


absoluta. Também apontadas na maquinaria barroca, onde o vazio nem sempre é
definido pelo desenho, mas pelas manchas da tinta, pelas luzes que oscilam entre a
transparência e a opacidade, pelo cenário transfigurado, pelas infinitas linhas de fuga
(OLIVIERI, 2006, p.24). Turbulências, mutações.

31
Na obra Diferença e repetição – ver Capítulo 4 “Síntese ideal da diferença”, mais precisamente “Idéia e
Multiplicidade”, p.260-262.
45

“Ponto, linha e superfície” (1925). Kandinsky


a) linha ondulada livre com acentuação: posição horizontal.
b) a mesma linha ondulada acompanhada por linhas geométricas.
Composição VIII (1923). Kandinsky. Fonte: ARGAN (1992).

Folies explodidas e sobreposições de layers – linhas, pontos e superfícies. Processo de projeto


para o Parc La Villette (1982-1997). Paris, Bernard Tschumi. Fonte: TSCHUMI (2003).

Não é à toa que arquitetos contemporâneos como Zaha Hadid, Bernard Tschumi e até o
NOX (Lars Spuybroek), entre outros, irão beber na fonte das vanguardas russas e no
caráter revolucionário de suas desconstruções. Zaha re-visita a dimensão da montagem
tridimensional e “arquitetônica” de Malevich (mais próxima de sua fase cubo-futurista) e
propõe a exploração da mutação em Malevich´s Tektonik, ainda enquanto estudante da
Architectural Association – AA – em Londres (1977); Tschumi se abriga da obra “Ponto,
46

linha e superfície” de Kandinsky (1925) como processo conceitual para estruturação de


seus pontos de folies no projeto do Parc La Villette, em Paris (1984) – fragmentando uma
suposta unidade e implementando noções que ele chama de disjunção arquitetônica
(TSCHUMI, 1996). Alguns fragmentos das obras de Iakov Chernikov, Naum Gabo,
Antoine Pevsner e Vladimir Tatlin estão presentes em alguns projetos, mesmo que um
tanto quanto fantasiosos, do Nox, a exemplo de uma torre em estrutura “espiralada” na
Holanda – Beachness (1997) ou as experimentações em De Goethic Stijl (2000), uma
casa virtual inspirada nas linhas formais e esculturais de Gabo e nas composições
aritméticas de Theo van Doesburg. Nas produções desse escritório de arquitetura,
também podemos perceber a influência de movimentos coletivos engendrados a partir da
segunda metade do século XX. As relações entre a action painting de Jackson Pollock
(em especial Autumn Rhythm, 1950) e a psicogeografia alavancada nos mapas
elaborados pela Internacional Situacionista (mais precisamente o trabalho desenvolvido
por Guy Debord com Asger Jorn, Memories, 1959; e a New Babylon de Constant, 1963)
irão influenciar a obra Paris Brain (2001), uma proposta de análise e intervenção urbana
para área oeste de La Défense – um esquema que aponta para a coexistência entre
mega arquitetura e micro urbanismo (SPUYBROEK, 2004, p.246).

Diagrama e esquema trans-urbano para o


Paris Brain Project (2001), elaborado
pelo NOX. Simultaneidade de corpos que
se metamorfoseiam sempre à beira da
transição. Fonte: SPUYBROEK (2004)

Fica evidente que a reflexão não é privilégio da linguagem falada, da escrita ou da


consciência, mas também habita nas artes e nas suas diferentes manifestações. Em meio
há tantas palavras enviesadas, é possível a produção de uma arquitetura como crítica
conscientemente elaborada? Para Bruno Zevi existe um grande desafio em proceder a
própria investigação teórica e história através dos instrumentos do arquiteto: “Porque não
exprimir a crítica arquitetônica em formas arquitetônicas, em vez de por palavras?” (Apud

TAFURI, 1972, p.140). Embora os caminhos de projeto não sejam assim tão simples e
possíveis enquanto crítica e obra “materializada”, talvez explorar maneiras de sempre re-
47

conceituar a arquitetura tendo os processos formais até então utilizados como paradigma
também pode ser um caminho interessante para experimentações.

Até porque não existe um conceito ideal, muito menos um conceito simples ou isolado.
Um conceito se constrói por entre uma multiplicidade de elementos heterogêneos que se
desenvolvem em zonas de vizinhança e se relacionam a guisa de uma rede. Mesmo a
alma, ou o espírito do artista estará de alguma forma contaminada pelas relações
externas ao seu âmago. Saberes e poderes do dito mundo físico, real, sensível. Fluxos,
forças, intensidades, agenciamentos moleculares e desejos... Questões ligadas a
subjetividade e a singularização, como veremos mais adiante. As forças externas (porém
nem sempre visíveis) é que fariam o pensamento sair de sua imobilidade, estimulando
conexões, justaposições, intersecções, contaminações, coalisões. E essas intersecções
interessam demais ao desenvolvimento do fazer arquitetônico, pois são exatamente
essas relações de contaminação não-filosóficas (a arte em geral, a ciência, a literatura, a
fotografia, a poesia, etc) que irão influenciar substancialmente algumas das proposições
contemporâneas que considero mais instigantes, conforme veremos no capítulo III
(Contaminações) e principalmente no capítulo IV (Entre processos).

b) Experimentação e formação disciplinar

O ensino de projeto, principalmente no Brasil, sofreu heranças claras de um contraponto


histórico entre o academicismo das belas artes e a sua conexão ao movimento
internacional da arquitetura moderna, como demonstra o ensaio de Leandro Medrano
(2005)32, desencadeando seqüelas (funcionalismo, universalismo, idealismo, positivismo,
sedimentação estruturalista) no que se refere ao método de ensino e desenvolvimento de
projeto; como conseqüências, o autor cita a supressão e/ou ocultação do processo de
projeto e apegos a ideais iluministas que apontam para uma razão instrumental balizadas
em respostas que indicam verdades únicas. Contudo, ensinar significa também
permanecer em um constante processo de aprendizagem, onde é possível verificar
também os modos de enfrentar os problemas da profissão. Tafuri (1972, p.15) fala que
“demolir o mito da perenidade e da validade meta-histórica dos valores e das instituições é uma
das tarefas específicas da crítica das ideologias”. Jacques Derrida nos faz uma advertência

quanto a disseminação do Discurso do Método presente nas entranhas de nossas


representações, principalmente na metáfora arquitetônica e urbanística; além do mais,
em “A Universidade sem Condição” (texto apresentado em conferência na Universidade
de Columbia em 1980, onde o filósofo desconstrói a “arquitetura do saber e do poder”) e
“O Olho da Universidade”, nos faz um alerta: “não há lugar neutro ou natural no ensino”.

32
Nesse ensaio intitulado “Capitalismo e Esquizofrenia – Gilles Deleuze, Félix Guattari e o ensino de projeto”,
apresentado no seminário Projetar 2005, o autor questiona a possibilidade de instrumentalizar o ensino de projeto
a partir das formulações teóricas desses filósofos franceses.
48

Entre pesquisas utilitárias, desenvolvimento tecnológico, valores éticos e políticos, micro-


poderes, saberes e inserções do mercado livre, onde transita a soberania da
universidade? Quais as reflexões sobre o lugar das práticas no seio da universidade
frente um mundo globalizado? Onde inicia o processo de cooptação do pesquisador-
arquiteto? Um tema deveras abissal, mas incitante para uma investigação mais profunda.
Essa é uma questão não apenas do arquiteto, mas de todo pensador ou profissional que
habita tanto o chamado “mercado de trabalho”, quanto as esferas acadêmicas.

No entanto, as contaminações e multiplicidades de rebatimentos não devem ser


unilateriais; podem apontar caminhos de coexistências. Porém, há de se ter cuidado:
“Cuidado com os abismos e as gargantas, mas cuidado também com as pontes e as ‘barriers’.
Cuidado com o que abre a Universidade para o exterior e para o sem-fundo, mas cuidado também
com o que, fechando-a em si mesma, não criaria senão um fantasma de cercado, a colocaria à
mercê de qualquer interesse ou a tornaria perfeitamente inútil. Cuidado com as finalidades, mas o
que seria uma Universidade sem finalidade?” (DERRIDA, 1999, contra-capa) Como se dão os

processos de projeto nas instituições de ensino? O que as diferencia? O caráter


geopolítico? O corpo docente? O corpo discente? O caráter da instituição? O aparato de
seus laboratórios? As pesquisas e os trabalhos de extensão? São tantas as diversidades...
um campo inconstante.

O arquiteto Rem Koolhaas (um dos principais representantes da corrente neo-


modernista, defensor da “tabula rasa”, da globalização e interessado nas grandes escalas
das metrópoles; se apropria de aspectos formais, porém sem a ideologia e utopias
sociais do ideário moderno do início do século XX), inclusive, em uma conferência
realizada em uma Universidade dos EUA no início da década de 1990, expõe sua visão
genérica acerca do ensino da arquitetura quando é questionado pela platéia se o fracasso
da arquitetura (sic!) é conseqüência do sistema de ensino. Koolhaas (2002, p.56)
responde afirmando que as escolas são muito parecidas e que “(...) cada uma é mais ou
menos tão boa quanto qualquer outra”. Para ele o enfoque das escolas americanas é mais idealista,
positiva e nobre em relação às escolas européias. “Na Europa existe um ceticismo inato em relação
à quase tudo, o que por um lado é saudável mas, por outro, é uma bobagem”. (Idem, p.56)

Para ele, o poder da arquitetura é superestimado e as escolas são dirigidas por um


consciente ou subconsciente coletivo. Existe um movimento contínuo onde, em certas
épocas, certos assuntos estão em voga e outros são ignorados E, em outras épocas, a
importância dos assuntos se modifica e o que era ignorado passa a ser discutido e
referenciado. Koolhaas ainda afirma que o diferencial de certas escolas aparece quando
um indivíduo ou alguns grupos deixa a sua marca, implementando movimentos e
correntes de idéias - aí as diferenças de pensamento acabam aparecendo.

As academias contribuíram mais para desmantelar ambições da arquitetura do que


para exercitá-las. (Ibidem, p.57)
49

Ora, não podemos esquecer que as instituições de ensino também se configuram como
estabelecimentos de micro-poderes que, inclusive, preparam competências para o
mercado (até mesmo especulativo), uma vez que adotam em suas bases, com raras
exceções, axiomas e práticas consensuais que se repetem com graus de diferença a
partir de uma demanda restrita e competitiva, pois as ocupações informais nos revelam
muito bem que boa parte das construções brasileiras não é projetada por arquitetos
(mais de 70% do território passível de ocupação em Salvador)33. Portanto as “ambições”
aventadas por Koolhaas são muito relativas e dependem muito do local e das condições
onde tal arquitetura é desenvolvida. Talvez o “desmantelamento” citado por ele esteja na
contestação de alguns pensadores e críticos que transitam nas academias e que, de uma
forma ou de outra, não tem seus desejos (ambições) compartilhados com os de
Koolhaas, que exercita sua arquitetura para corporações dominantes.

Em arquitetura é muito comum as disciplinas de projeto se orientarem através da


formulação e solução de problemas, transitando entre orientações metodológicas,
modelos tipológicos e outras formas de embate sistemático. Alan Colquhoun (1967, in
NESBITT, 2006), inclusive, admite o uso da tipologia como método de projeto. Não é a
questão do método que se quer questionar, até porque compreendemos a metodologia
como uma articulação de conceitos, perceptos e funções que transitam em variações; o
que se levanta enquanto ponto de problematização é o seu caráter doutrinário.

A concepção arquitetônica envolve processos de trabalho e métodos pertinentes a cada


obra, a cada situação, a cada condição, a cada autor. Muitas vezes o traço e a linguagem
do seu criador/fruidor (arquiteto/estudante) se reflete nas várias esferas da
representação gráfica, na exploração da forma arquitetônica, nos diálogos processuais e
na sincronia de suas formatações. Se tais resultados não estiverem atrelados a uma
prática reprodutivista e a uma sistematização unitária, o jogo de experimentações e
subjetividades fica muito mais intenso. Até mesmo o programa específico do edifício, por
exemplo, não deve ser encarado como uma mera listagem de atividades ou espaços,
mas sim como uma articulação de conceitos/perceptos (figuras estéticas)34 e dos
objetivos de determinadas atividades (síntese de indicativos, nesse sentido não tem
como não ser pragmático!), até mesmo catalizador do desenvolvimento do processo
criativo.

33
Vale lembrar a Lei de Assistência Técnica para Construção de Baixa Renda (PL no 6981 de 2006),
aprovada recentemente, em dezembro de 2008, de autoria do deputado Zezéu Ribeiro (PT/Bahia), onde se
asseguram às famílias de baixa renda assistência técnica, pública e gratuita para projetos e construções de
habitação de interesse social.
34
“As figuras estéticas não são idênticas aos personagens conceituais, mas são sensações – perceptos, afectos,
paisagens, rostos, visões e devires – sensações de conceitos e conceitos de sensações. O monumento não atualiza
o acontecimento virtual, mas o incorpora ou o encarna: dá-lhe um corpo, uma vida, um universo”. DELEUZE;
GUATTARI (1992b), Op.Cit., p.229.
50

Instalação urbana Seta Amarela (2004-2006).


Moov. As várias possibilidades de contaminar a
paisagem urbana e estabelecer comunicações
com a cidade contemporânea. Projeto itinerante
Portugal X Brasil. Fonte: 2G DOSSIER (2007).

Vale salientar o caráter da formação disciplinar da academia, a exaustão de algumas


reproduções dentro de um repertório discursivo dado, que muitas vezes acabam caindo
nas armadilhas de um saber consensual, com resoluções competentes e bem
estruturadas do ponto de vista técnico, mas que em grande parte não encontram abrigo
nas explorações performáticas e suas novas territorialidades. Nessas reproduções de
conhecimento, e é claro que as disciplinas de arcabouço teórico, histórico e técnico que
fazem parte dos códigos contaminantes da disciplina de projeto estão incluídas, ocorrem
pequenas mudanças de grau e de natureza, variações que não chegam a se desprender
dos agenciamentos “tutelados pelos poderes hegemônicos que ditam as linhas mestras
da forma de pensar” (MAGNAVITA, 2007). Sem falar nas sobrecodificações
hierarquizadas pelos aparelhos do Estado, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases, o
Ministério da Educação, as legislações reguladoras incidentes, além dos órgãos e
associações de classe – instrumentos que orientam a formação e fomentam o controle
das instituições de ensino. Soma-se a isso as intervenções engendradas no dito
“mercado”, as informações tecnológicas e referências projetuais que nos chegam quase
que em tempo real, simultâneo, os “oráculos” da internet, os periódicos de arquitetura e
urbanismo, etc - processos da mass-midialização.

Embora a conexão da produção da arquitetura com a diversidade de fazeres


contemporâneos pressupõe fomentar questões que permitam entender e caracterizar as
diferentes metodologias e processos de projeto possíveis de serem referenciados, tendo
como base tanto as experiências acadêmicas quanto as profissionais, acredito que a
escola constitui um locus fundamental de ensaio e, sobretudo, de experimentação. Um
campo onde re-avaliamos a nossa prática, sem dúvida, mas onde podemos sugerir
alguma espécie de contaminação daquilo que estaria a margem das instituições de
ensino, sejam as ciências menores, sejam processos mais criativos ou performáticos que
não atendam necessariamente a um saber competente, testado e estratificado. Suscitar
transversalidades. Utopia? Não no sentido de quimera, devaneio ou fantasia, mas
51

utopia enquanto um pensamento atual movido pelo desejo de transformação ou reação a


um sistema em vigor, portanto, um terreno perigoso. Pensar é um modo de agir, de um
agir perigoso que assume riscos, que afeta, que resiste, que fere, que reconcilia, como
nos adverte Michel Foucault. Pensar dói, dói e é arriscado, assim como a própria
experimentação, que irá se contrapor aos métodos de interpretação.35 Experimentação,
dobras, redobras e pele. Onde se encontra a profundidade?

(...) a superfície torna-se essencialmente superfície de inscrição: é todo o tema do


enunciado ‘ao mesmo tempo não visível e não oculto’. A arqueologia é a constituição e
uma superfície de inscrição. Se você não constituir uma superfície de inscrição, o não-
oculto permanecerá não-visível. A superfície não se opõe à profundidade, mas à
interpretação. O método de Foucault sempre se contrapôs aos métodos da
interpretação. Jamais interprete, experimente... (DELEUZE, 1992a, p.109, grifos
nossos)

Em meio às diferentes formas de pensamento que permeiam a nossa


contemporaneidade, é quase que necessário abrir trincheiras que questionem o
pragmatismo do imediatismo, dos valores de uma sociedade consumista, especulativa,
onde nada escapa à mercantilização (sobretudo a educação no Brasil). Mais uma vez, é
preciso experimentar.

(...) Pensar é sempre experimentar, não interpretar, mas experimentar, e a


experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo, o que está em vias de se fazer.
(Idem, p.132)

Produção de estudantes do atelier II da FAUFBA. Fonte: acervo da autora

35
Sabemos que a fenomenologia - corrente iniciada pelo matemático e filósofo Edmund Husserl - vai
desembocar no humanismo contemporâneo, com suas preocupações centradas na liberdade, na vida e na situação
do indivíduo na história. Para Martin Heidegger, a fenomenologia é, antes de mais nada, um conceito de método;
“as coisas em si mesmo”. O termo tem dois componentes: fenômeno e logos; logos entendido como logia,
pensamento ou reflexão sobre alguma coisa traduzida em ciência, portanto fenomenologia seria a ciência dos
fenômenos. Ou seja, da própria investigação resulta que o sentido metódico da descrição fenomenológica é a
interpretação. Porém, não acreditamos em um fato, um mundo dado, “as coisas em si” e uma interpretação
daquilo que nos é apresentado em função apenas da nossa vivência, mas da forma como nos relacionamos e nos
envolvemos – seres de sensações. Nos inclinamos mais às relações entre o sujeito e o mundo percebido, mediado
pela experiência enquanto situação renovadora, no sentido como Merleau-Ponty nos coloca, abarcando conceitos
de sensação, percepção e de espacialidades. Uma existência indicada pelo sensível. Em relação ao entendimento
da percepção, Merleau-Ponty foi um dos grandes teóricos do pensamento moderno. Anteriormente nos referimos
a ele e à dualidade de sua concepção da relação sujeito/objeto (mundo), pois não existe um sujeito universal, mas
seres socialmente construídos. Trata-se de processos de construção de subjetividades, tanto individuais quanto
coletivas e que pressupõem multiplicidades de percepções e isso, em relação ao mesmo objeto, situação,
contexto – ver nota 28.
52

Experimentos urbanos efêmeros desafiam o ordinário cotidiano.


Acima, Obra Itinerante (2005), Brasília, desenvolvido por um grupo de arquitetos recém-saídos da UNB – um
elemento urbano, inflável, podendo ser adaptado às diversas ocasiões. Fonte: CAVALCANTE; CORRÊA (2005).
Abaixo, uma experiência de trânsito urbano numa praça do centro histórico de Sevilha, na Espanha (2006),
criado por estudantes de arquitetura. Uma enorme tela acolchoada em pleno espaço público que pode funcionar
como um sofá gigante e servir de experimentações sensoriais, despertando no transeunte blocos de sensações –
perceptivas e afetivas. Fonte: PAISEA (2008).

Acreditamos que existam algumas faíscas de produções mais independentes dentro de


algumas faculdades de arquitetura e que, de uma maneira ou outra, estejam
contribuindo com o fazer arquitetônico e potencializando qualidades processuais mais
instigadoras, através de abordagens mais conceituais em detrimento de uma linha de
produção de resultados finais, como veremos no capítulo IV.

Micropolítica do cotidiano e revoluções moleculares

As cidades são verdadeiros palcos de coexistências. Arenas de coalizão de forças (sejam


políticas, sociais, culturais, econômicas ou estéticas), de intensidades de quanta e de
diferenças - toda uma gama de multiplicidades de ações e modos de vida. São campos
de formações históricas heterogêneas, onde inúmeras correntes se desdobram e se
convergem, em momentos e períodos diversos. Território, sobretudo, das relações
humanas.
53

Segundo Deleuze e Guattari (1996), existem linhas de segmentaridade dura e linhas de


segmentaridade flexível presentes nas formações de territórios.36 A segmentaridade dura
é operada através de uma lógica binária que depende das grandes máquinas de
binarização direta, a exemplo dos agenciamentos engendrados pelo Estado ou pelas
grandes corporações37 que ditam, hegemonicamente, regras totalizantes. Na
segmentaridade flexível, as chamadas “binaridades” resultam de multiplicidades com n
dimensões. Mesmo uma segmentaridade circular tende a se tornar concêntrica (ou radial,
desenho muito comum no planejamento de cidades), ou seja, determina linhas de
conexão até pulsantes e intensas entre pontos, mas que não variam em seus
deslocamentos (máquinas de ressonância). A segmentaridade linear atende a lógicas de
uma máquina de sobrecodificação que estabelece espaços homogêneos construídos a
partir de traços perfeitamente determinados. A árvore exprime essa segmentaridade
endurecida e hierarquizada. Os autores até ensaiam uma espécie de “oposição” entre
uma segmentaridade arborificada e uma segmentação rizomática:

Mas, se opomos assim uma segmentaridade arborificada à segmentação rizomática,


não é só para indicar dois estados de um mesmo processo, é também para evidenciar
dois processos diferentes, pois as sociedades primitivas procedem essencialmente por
códigos e territorialidades. É inclusive a distinção entre esses dois elementos, sistema
tribal dos territórios, sistemas de clãs das linhagens, que impede a ressonância, ao
passo que as sociedades modernas ou com estado substituíram os códigos
desgastados por uma sobrecodificação unívoca, e as territorialidades perdidas por uma
reterritorialização específica (que se faz precisamente em espaço geométrico
sobrecodificado). A segmentaridade aparece sempre como o resultado de uma
máquina abstrata; mas não é a mesma máquina abstrata que opera no duro e no
flexível. (Idem, p.90)

Até mesmo as sociedades primitivas se organizavam de forma segmentária, setorizada e


dual, através de formas circulares ou formas lineares, aglomerados em grupos38
(oposições binárias – homens e mulheres, por exemplo, porém são resultantes de
máquinas ou agenciamentos que não são, necessariamente, binários), clãs e tribos,
porém sem “aparelhos de Estado” centrais ou fixos. Nas sociedades modernas, os
segmentos sociais têm uma certa flexibilidade de acordo com suas tarefas e situações
recorrentes. A questão é que o sistema político moderno é global, mas implica conjuntos
de subsistemas ordenados, compartimentações e processos parciais, a exemplo da
tecnocracia que opera por divisão de trabalho segmentário. Burocracias, metas,

36
Verificar capítulo “Micropolítica e Segmentaridade”, p.83-116
37
Bem, poderíamos dizer que hoje tais agenciamentos são engendrados pelas grandes corporações sob a égide
dos aparelhos de Estado.
38
O antropólogo Claude Lévi-Strauss estuda a organização dualista de povos primitivos e suas conformações em
grupos.
54

objetivos, organização. A vida moderna não só absorveu a segmentaridade primitiva,


como a endureceu, tentando engendrar um processo de domesticação e de profunda
hierarquização de seus espaços de modo que tais segmentaridades (duras e flexíveis)
não se opõem necessariamente, mas de alguma maneira se entrelaçam, se contaminam.
Segundo os autores, todo indivíduo de uma sociedade é atravessado pelas duas
segmentaridades ao mesmo tempo, sejam as linhas molares (dura, em nível macro) ou
linhas moleculares (flexível, em nível micro). Primeiramente as linhas segmentares das
instituições disciplinares – a família, o trabalho, a escola... segmentos bem
determinados, que recortam e tabulam em todos os sentidos. As linhas moleculares
também nos tocam, provocam desvios. São formuladas por devires e micro-devires de
notável intensidade.

Tudo é político, seja em nível da macropolítica ou da micropolítica. Os agenciamentos


moleculares, por exemplo, ocorrem mesmo nos conjuntos mais binários, mas não há
dependência recíproca. As próprias classes sociais remetem a “massas” heterogêneas,
que se diferenciam em vários aspectos, lutam de maneiras diversas, buscam objetivos
divergentes, etc.

As tentativas de distinguir massa e classe tendem efetivamente para este limite: a


noção de massa é uma noção molecular, procedendo por um tipo de segmentação
irredutível à segmentaridade molar de classe. (Ibidem, p.91)

A formação de territórios nas cidades, quando instituída pelas máquinas do Estado, são
agenciadas por lógicas molares. Tal agenciamento encontra-se submetido a uma
representação universal e hierarquizada formulada por linhas duras que ignoram as
cartografias das linhas do devir. Obviamente que tal imposição de demarcação de
territórios advindos de uma conotação cartesiana baseada numa geometria operatória e
esquadrinhada, tanto pela conformação de um desenho, quanto pela confluência de
poderes, não consegue acompanhar as transformações e mutações das cidades e suas
diferentes contextualizações na contemporaneidade.

As estruturas urbanas não se apresentam como um organismo coeso, nem tão pouco
obedece a uma doutrina unívoca ou a sistemas genéricos.39 São plataformas móveis cada
vez mais difíceis de serem domadas! A arquitetura e o urbanismo estão em meio ao
trânsito de outros limites espaciais de caráter cada vez mais transverso e não são
afetados apenas pelo mundo da representação, mas contaminam e se deixam
contaminar por outros focos de manifestações e suas interfaces, sejam do campo da
arte, da filosofia ou da ciência.

39
Ver KOOLHAAS (2007). La ciudad genérica.
55

“Conectores pedonales” (2001), San Miguel de la Vega, Caracas, Venezuela. Arq. Mateo Pintó.
Micro-ação: cuidado estético e ético. Fonte: REVISTA 2G DOSSIER (2007).

Todo agenciamento é territorial. Os territórios são atravessados por inúmeras linhas de


desterritorialização, por expressões (transformações incorporais, substância) e conteúdos
(corpo de fato, forma)40. A criação de territórios e a construção de seus diferentes
cenários, a sobrecodificação de seus espaços e suas mediações, as heterogêneas linhas
de interseção, as imagens instituídas nas cidades e suas diversas dimensões, também
perpassam por outras formas de percepção e apropriação advindas das esferas do
cotidiano, formuladas entre conexões moleculares (leia-se micropolítica). São
contaminações e micro-ações que se relacionam em zonas de vizinhança e que,
geralmente, são ignoradas pelo pensamento dominante.

Os movimentos populares, principalmente as apropriações mais nômades, em suas


dinâmicas moleculares provocam transformações advindas de formações de
territorialidades que muitas vezes estão associadas a fluxos que fogem a padrões
modelados pelos sistemas oficiais. São máquinas de guerra que não se permitem sobre-
codificar. Seres desterritorializados que habitam os espaços lisos.41 Espaços lisos que
também tendem ao estriamento e vice-versa.

As ações moleculares são ações de massa. Até os regimes mais autoritários (fascista,
nazista) se apropriaram de segmentaridades flexíveis e moleculares produzidas pelas

40
DELEUZE; GUATTARI (1997b), Op.Cit., conferir no último capítulo - Conclusão: regras concretas e
máquinas abstratas; mais precisamente os conceitos Estratos, estratificação, p.216-218 e Agenciamentos, p.218-
220.
41
“O espaço liso e o espaço estriado, - o espaço nômade e o espaço sedentário, - o espaço onde se desenvolve a
máquina de guerra e o espaço instituído pelo aparelho de Estado, - não são da mesma natureza. Por vezes
podemos marcar uma posição simples entre os dois tipos de espaço. Outras vezes devemos indicar uma
diferença muito mais complexa, que faz com que os termos sucessivos das oposições consideradas não
coincidam inteiramente. Outras vezes ainda devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças às
misturas entre si: o espaço liso não pára de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é
constantemente revertido, devolvido a um espaço liso. Num caso, organiza-se até mesmo o deserto; no outro, o
deserto se propaga e cresce; e os dois ao mesmo tempo” (Idem, p.179-180).
56

micro-organizações como forma de alcançar e penetrar todos os setores de uma


sociedade. E foram exatamente esses focos moleculares que serviram de baluarte para o
desenvolvimento desses regimes. “É uma potência micro-política ou molecular que torna
o fascismo perigoso, porque é um movimento de massa: um corpo canceroso mais que
um organismo totalitário” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.92). Por isso que a
micropolítica, as micro-ações, as movimentações de base, as esferas do cotidiano, as
pequenas construções de ruptura, de contestação, de questionamento, que suscitem
quebras das segmentaridades duras são tão importantes para a criação de novas
territorialidades e de focos de resistência. A arte e a arquitetura podem, muito bem,
expressar essas transformações, como podemos ver a seguir:

(...) a arquitetura até segunda ordem, potencialmente, também é uma arte. E o que é
uma arte senão justamente um condensador subjetivo para produzir mutações,
conversões de produção de subjetivação? A arte é justamente um condensador que
permite essa conversão de produção subjetiva. (GUATTARI, 1985, p.117)

Mas, quais são os nossos subterfúgios existenciais? De que maneira se dá a produção da


subjetividade, principalmente nas grandes cidades? De que maneira o indivíduo, então,
se posiciona nesse território? Como a metrópole sempre foi a sede da economia
monetária, essa relação também acaba se vinculando ao domínio do intelecto humano.
Estamos em meio a um bombardeio de seduções, informações, consumo. Segundo Georg
Simmel (1902, in VELHO, 1976) é preciso fortificar o intelecto criticamente no sentido até
de se criar uma certa proteção da vida “individual” frente ao poder avassalador da vida
metropolitana. Mas as maneiras de existir, obviamente, não estão aprisionadas nas
esferas do pensamento, mas também se instauram fora da consciência. São forças nem
sempre visíveis, já que a produção da subjetividade também se faz por entre máquinas
sociais de diferentes naturezas.

A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é


essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências
particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois
extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à
subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o
individuo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo
que eu chamaria de singularização. (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.33)

Quais as possibilidades, então, de desbravar territórios existenciais que fujam a padrões


modelados, pré-estabelecidos? As revoluções políticas, sociais e culturais engendradas
pelas forças moleculares estão conectadas com fluxos de desejos. Desejo enquanto
criação; desejo enquanto processo de desterritorialização; desejo enquanto construção
de linhas de fuga que não se submetam aos processos de nivelamento e homogeneização
massacrantes agenciados pela chamada “subjetividade coletiva da mídia” (GUATTARI,
57

1990) e seus mecanismos sócio-tecnológicos ou ainda pela força esmagadora das


relações econômicas.

A(s) arquitetura(s), inclusive, transita(m) em meio a novos cenários da chamada


metrópole comunicativa e imaterial (CANEVACCI, 2005) - contaminando e se deixando
contaminar – permeando relações indissociáveis. Como a arquitetura também se
configura no espaço da coexistência humana, ela se realiza para além das relações de
subjetividade (saberes e percepções), na transdisciplinaridade e na pluralidade de
abordagens metodológicas, tecnológicas e críticas. É, portanto, um campo de
convergência de conhecimentos e constitui um corpus heterogêneo, podendo também ser
objeto de investigação. Ao investigar a questão dos processos de projetos e suas
multiplicidades de articulações, acabe-se potencializando o sujeito. O indivíduo, portanto,
participa de um processo amplo social em que as subjetividades são construídas, seja na
esfera individual e/ou coletiva, em estreita relação com uma série de referências, não só
do campo da arquitetura, mas de outras manifestações e âmbitos do saber, sejam as
artes, a tecnologia, a filosofia, a antropologia, entre outras.

Como não existem conceitos isolados – são multiplicidades – essa subjetividade se


desenvolve em um certo contexto que pode ser balizado por questões econômicas,
sociais e/ou culturais. Novamente, o arquiteto holandês Rem Koolhaas (2002) nos
provoca afirmando que “a arquitetura é uma profissão perigosa”.42 Primeiro, porque é
uma profissão difícil e debilitante. Segundo, porque é uma mistura venenosa de
impotência e onipotência, pois o arquiteto alimenta sonhos (às vezes megalomaníacos)
que dependem de outras pessoas (leia-se grandes corporações), grupos e de
determinados interesses ou circunstâncias para se imporem e se concretizarem.

Talvez porque as intervenções “formais” no corpo das cidades, aí mais no cerne do


planejamento urbano, ainda se abriguem em resoluções sistêmicas que se baseiam em
alguns poucos modelos e, obviamente, não respondem bem às novas manifestações e
mutações mais contemporâneas. Fora as intervenções comerciais ou ligadas ao
fenômeno político de estratégias voltadas à cultura do entretenimento e do espetáculo
(Lille, Rockefeller Center, Euro Disney, Las Vegas, Dubailands), onde tais interesses
comerciais estão dando o tom dos empreendimentos maiores e mais complexos, se
colocando bem acima dos interesses políticos, as atuações do planejamento parecem
estar inclinadas a resolver problemas imediatos, ficando a reboque dos acontecimentos
atuais, onde raramente se preconizam ações futuras no sentido de imaginar ou criar
condições que permitam a fruição de diferentes densidades e situações. Inclusive, para

42
Não somente a arquitetura, mas todas as atividades profissionais de pensar e criar quando contestam os saberes
constituídos, as crenças solidificadas e estratificadas. Embora Koolhaas afirme as dificuldades profissionais do
universo da arquitetura, seus enunciados são bem recebidos pela “massa” acadêmica e até aplaudido em seus
pressupostos.
58

Koolhaas, nada que se produziu em termos de arquitetura na contemporaneidade foi tão


significativo após os movimentos engendrados pelo grupo Team X e pelos experimentos
capsulares e estruturas móveis vislumbrados pelo Archigram na década de 1960, talvez
as últimas propostas para as cidades modernas do século XX que tangenciaram a utopia.
No entanto, para o arquiteto inglês Peter Cook, um dos idealizadores da revista
Archigram, o próprio Rem Koolhaas estaria deixando a arquitetura para trás.43 Talvez,
Koolhaas seja um erudito intérprete da condição moderna; suas deformações estariam
disfarçadas à sombra de ressonâncias no âmbito do regime de signos herdado do
movimento moderno da arquitetura?

Teríamos um hiato desde então?44 Mas, e as produções fora do status quo? Ou ainda
intervenções propostas por pequenos grupos que nem sempre estão mapeados? E as
habitações autogeridas? E a explosão de guetos e favelas? Também não seriam
impressionantes? Como poderíamos transitar entre realidades e utopias? Segundo Carlos
Nelson Ferreira dos Santos (1989), os lugares são conformados por espaços carregados
de conotações simbólicas e eles mesmos símbolos; vivemos em um mundo de topias,
onde cada seção do território tem de ser o que é e o que se imagina que pode ter sido e
poderá ser (idem, p.127).

Em tempos onde a comunicação esteja apodrecida e até certo ponto banalizada


(imperam modismos e tendências), a criação passa a ser um ponto de inflexão - uma
constante reinvenção que não esteja, necessariamente, atrelada a um saber sedentário,
mas que sempre se atualiza. Portanto, é preciso suscitar uma abordagem teorética sobre
procedimentos práticos, sem deixar de conectar questões fundamentais não apenas do
pensamento filosófico contemporâneo inserido nos tais processos de (re)criação, mas as
articulações de vários campos de análise e suas interfaces, para que os resultados não
sejam meramente gratuitos, compreendendo-os também enquanto campos abertos e
desterritorializados.

Só que, todo processo de transformação, seja de ordem coletiva ou de ordem individual,


estará ligado à sedimentação do saber e a forma de pensar. Saber e pensar podem
caminhar em direção à uma postura ética – a visão de mundo – que nos leva a tomar um
posicionamento perante as condições na qual vivemos em uma determinada sociedade.
Esse posicionamento ético pode ser balizado pelas lutas que travamos, pelas micro-

43
Ver entrevista de Peter Cook cedida durante a realização da 5ª BIA de São Paulo, em 2003, disponível em
http://www.arcoweb.com.br/entrevista/entrevista50.asp
44
Obviamente, a visão de um arquiteto como Rem Koolhaas, que faz parte do mais alto escalão do star system
internacional, está no campo da Europa Ocidental e dos EUA. Seu escritório constrói nos quatro cantos do
mundo e seu emblema se transformou em uma poderosa grife. É claro que as colocações de Koolhaas são
provocativas e seu amadurecimento intelectual é instigador, principalmente quando nos deleitamos em seus
esquemas narrativos desenvolvidos em publicações como “Delirious New York”, “S, M, L, XL” ou a Revista
Content. Porém, as potencialidades e limites de países localizados no hemisfério sul do planeta são outras,
principalmente quando falamos de Brasil e América Latina.
59

revoluções que empregamos nas pequenas atitudes do dia-a-dia, pelo respeito às nossas
próprias convicções, pela resistência às ordens pré-estabelecidas e institucionalizadas.
Uma posição ética, uma postura coerente perante o mundo é uma arma, é uma máquina
de guerra,45 é uma forma de resistência aos aparelhos de captura (leia-se esferas de
dominação) e, conseqüentemente, pode engendrar abertura de espaços para
coexistências e revoluções – ou mesmo micro-revoluções – que possibilitem outros
campos da criação e de novos conceitos, embora o dito campo da representação continue
em voga, ou seja, um universo herdado da modernidade que ainda se apóia na semiótica
do regime de signos, de significância e da subjetivação.

À esquerda, construção em sistema CEB (Compressed Earth Block), funcionam como peças de Lego, facilitando
o processo de execução; aqui vemos moradores do bairro e estudantes de arquitetura colocando a “mão na
massa” (VAN – Shigeru Ban). À direita, os moradores da comunidade conversam com a equipe de arquitetos do
Estúdio Elemental, no Chile, nas primeiras fases do projeto com o objetivo de definirem em conjunto as relações
de distribuição das unidades habitacionais e dos espaços comuns. Fonte: VERB CRISIS (2008).

A visão de mundo de um arquiteto ou de um estudante de arquitetura, por exemplo, não


está dissociada da forma como ele postula seu processo projetual. Envolve não somente
saberes e percepções (experiência empírica), mas a formatação de novos conceitos
em relação à orientação de seu pensamento (novas formas de pensar). Trata-se de uma
questão delicada, pois não existe uma orientação unitária na forma de pensar. Os
imprevisíveis percursos, os acontecimentos e a conexão de idéias formuladas para a
concepção de um projeto arquitetônico, por exemplo, é constituído por uma
multiplicidade de elementos heterogêneos. E a criação depende de idéias que se
contaminam em zonas de vizinhança, que se sobrepõem em tempos diversos...

No meu entendimento, obviamente, arquitetura e arte são indissociáveis. Poderia dizer,


então, que projetamos com sensações. Projetamos, se assim desejarmos, rompendo com
modelos e representações impostas. Podemos utilizar essa ferramenta como uma espécie
de posicionamento, de atitude. Um projeto arquitetônico pode ser um manifesto! Um
devir criador de durações diferentes... Depende da maneira como nos posicionamos – a
tal visão de mundo – um outro paradigma ético e estético.

45
Conferir em DELEUZE; GUATTARI (1997b). Op.Cit., capítulos: Tratado de Nomadologia: A Máquina de
Guerra (p.11-110) / Aparelho de Captura (p.111-177).
60

(...) os grandes afectos criadores podem se encadear ou derivar, em compostos de


sensações que se transformam, vibram, se enlaçam ou se fendem: são estes seres de
sensação que dão conta da relação do artista com o público, da relação entre as obras
de um mesmo artista ou mesmo de uma eventual afinidade de artistas em si. O
artista acrescenta sempre novas variedades ao mundo. Os seres da sensação são
variedades, como os seres de conceitos são variações e os seres de função são
variáveis. (DELEUZE; GUATTARI, 1992b, p.227)

Como avançar, então, nessas questões? Como abrir novos discursos? A instigação de
experimentações e processos mais intempestivos pode ser um caminho interessante.
Permitir transformações nas formas de percepção do indivíduo - estar no meio, entre as
coisas, intermezzo - sem vislumbrar, necessariamente, o resultado. Transitar por entre
possibilidades, ampliar os pensamentos sobre os processos projetuais, permear os
impulsos e os devires.

O devir e o processo criativo encontram-se em uma cadeia complexa, ainda mais se


levarmos em consideração uma vertente reprodutiva, tanto do ensino quanto da prática
profissional, que se encontra subordinada simplesmente ao mercado ou a lógicas
sistêmicas, padronizadas e obtusas, portanto a formação do arquiteto deve ter caráter
crítico, prospectivo e permitir que “outras” formas de apropriação do espaço se
desenvolvam.

Podemos apontar para uma cartografia de ações moleculares engendradas por diferentes
agenciamentos que perpasse por processos de re-singularização? Qual a posição do
arquiteto nessa causa? Essas questões podem estar presentes em sua postura no nível
da “projetação”? Podemos escolher de que forma vamos atuar? Trata-se de uma questão
ética que perpassa pela dimensão política, naturalmente. Fazer arquitetura é também
fazer política ou micro-política.

A resposta jamais está na ponta da língua (quem se arrisca?), mas prefiro acreditar
numa espécie de revolução molecular que está sempre em vias de se tornar possível. Há
quem vislumbre campos imanentes de acontecimentos, devires revolucionários que se
espalhem em níveis e lugares diversos, capazes de colocar em questão as macro-
potências agenciadas tanto pelos Estados, quanto pela economia global, como explicitado
abaixo:

Ao invés de apostar sobre a eterna impossibilidade da revolução e sobre o


retorno fascista de uma máquina de guerra em geral, por que não pensar que um
novo tipo de revolução está se tornando possível, que todo tipo de máquinas
mutantes, viventes, fazem guerras, se conjugam e traçam um plano de
consistência que mina o plano de organização do Mundo e dos Estados?
(DELEUZE; PARNET, 1988).
61

Arquitetura de fronteira - transgressão, limites e crítica

O entendimento das estruturas espaciais ainda está aprisionado em análises tradicionais


e unilaterais de um outro tempo e não tem conseguido acompanhar a verdadeira
dinâmica urbano-antropológica implementada por essa grande rede aberta que é a
cidade contemporânea. Evidentemente, há exceções. O elemento central e provocador
das discussões que serão enfrentadas pretendem levantar outras questões que estão sub
entendidas e que não são evidentes à análise puramente espacial, como as diversas
manifestações experimentais, outras formas de multicomunicação, novas formas de
circulação, novas fronteiras e a busca pela identificação de outras formas de poder e
micro-poderes. Essa gama de multiplicidades está muito acima de supostas unidades e
abre espaço para apropriação de um campo heterogêneo, híbrido e desterritorializado,
típico de uma sociedade que vive sob outras relações de dimensão e proximidade
(disjunção espaço-tempo), não mais restritas somente ao espaço físico.

A noção de limites sofreu severas transformações nas últimas décadas. Seja no acesso às
cidades, seja nas superfícies de expressões de suas arquiteturas, seja na dissipação de
fronteiras. As mídias digitais, as interfaces eletrônicas e a tela do computador apontam
para outros horizontes. Uma superexposição da representação da cidade contemporânea
em vias de um espaço-tempo tecnológico (VIRILIO, 1993, p.10). Nesse sentido, nos
deparamos com limites físicos e materiais de um mundo palpável, construído de sólidas
paredes e estruturas perfeitamente localizáveis e agenciadas pela urbanística, mas
também nos defrontamos com um mundo imaterial e incorporal, formado por
representações, imagens e simulações. Mundo de transparências e aparências.
Arquiteturas de sobrevôo. Quais seriam os horizontes de uma arquitetura emergente?

(...) se ontem o arquitetônico podia ser comparado à geologia, à tectônica dos relevos
naturais, com as pirâmides, às sinuosidades neogóticas, de agora em diante pode
apenas ser comparado às técnicas de ponta, cujas proezas vertiginosas nos exilam do
horizonte terrestre (VIRILIO, 1993, p.21).

O discurso um tanto quanto radical46, mas instigador, de Paul Virilio, aguça uma questão
que se reflete muito mais nas formações de territorialidades nas metrópoles, onde são
travados diálogos permanentes sobre a conformação de uma nova paisagem urbana.
Olhares que se deparam com técnicas de ocupação geográfica, construções de todos os
níveis, obras de apurado comportamento estrutural materializadas graças aos avanços da
engenharia e sua infinidade de materiais, traçados urbanos, rotas e caminhos
dimensionados, mesmo que duros e fixos; um mundo onde podemos transitar

46
Falo radical, pois essa esfera da tecnologia não chega assim em tempo real em todas as civilizações
contemporâneas, embora seja um fenômeno crescente. A concentração de tecnologia acontece de maneira
desigual e perversa, principalmente em países como o nosso, onde grande parte dos habitantes ainda não possui
acessibilidade adequada às informações, quem dirá aos instrumentos básicos de informática.
62

fisicamente. De um outro lado se abre um mundo amparado pelo cetro de uma ciência
tecnológica não menos desviante; um cenário de câmeras, de vídeos, de ampliações
imagéticas, de revelações que rompem com as superfícies do tecido urbano. Não é
maravilhoso sobrevoar Roma da tela do seu computador, através do Google earth? As
redes de mapas virtuais e cartográficos de cidades, num primeiro momento, podem
parecer verdadeiros milagres digitais, mas nos abrem cenários que antes só podiam ser
penetrados pelo transeunte que se permitia descobrir os ângulos e frestas de uma
cidade, tal qual um flâneur47, um caminhante que constrói e explora sua própria
paisagem.
Fontes: 2G DOSSIER (2007); www.fotosearch.com; www.flickr.com/photos/gabao

“Caminhante, caminho não há. O caminho se faz ao andar”.

Fontes: www.fotosearch.com; PAISEA (2008); www.blogducana.zip.net

Não se trata apenas de um discurso reducionista, enquanto representação de dimensões,


escalas, proporções. A questão está nas formas de percepção desse “novo mundo” e de
como se dá a produção da arquitetura nesse contexto.

Partindo para uma análise menos formalista e, talvez, mais abstrata daquilo que se pode
chamar de limites da arquitetura, que são tantos e de diferentes naturezas, nos
defrontamos com o teor crítico. Há alguns posicionamentos de autores e arquitetos que

47
A exemplo de uma micro-experiência do cotidiano, poderíamos citar os catadores de lixo, que costumam
perambular pelas cidades, penetrando seus espaços mais esconsos e esquisitos, não mais como um romântico
flâneur – mas nas vestes de um andarilho contemporâneo que precisa sobreviver e que, muitas vezes, transforma
seu instrumento de trabalho em moradia nômade – arquitetura de dormir , ou criando pequenos eventos efêmeros
na paisagem da cidade – verdadeiras instalações nômades.
63

procuraram travar diálogos mais profundos com essa questão, a exemplo de Tafuri (neo-
marxista), Tschumi (competência projetual e discursiva) e Montaner (“oportuno”
intérprete).

Para Tschumi, parte da teoria e crítica contemporânea de arquitetura tem se aprisionado


em discussões muito simplificadas e limitadas ao formalismo, ao funcionalismo e ao
racionalismo. Ele critica as concepções delineadas em relações de causa e efeito,
sustentando que é preciso suscitar as diferenças e evocar arquiteturas de fronteira;
arquiteturas que vão além do caráter construtivo, arquiteturas que se desenvolvem no
limiar da transgressão e do pensamento. Ao afirmar que “não há arquitetura sem
desenho, da mesma forma que não há arquitetura sem textos” (in NESBITT, 2006,
p.174), evoca o caráter de uma certa expressividade arquitetônica que, muitas vezes,
está presente em intervenções de caráter experimental ou “obras menores”, porém não
menos importantes, ou projetos que nunca foram construídos, mas que tiveram o poder
de influenciar substancialmente o pensamento de uma práxis arquitetônica, ou ainda
textos teóricos de fundamental importância no campo reflexivo. Questões que,
possivelmente, não se fazem tão evidentes no cenário do debate arquitetônico, ou pelo
menos não tem o merecido destaque, apesar de alguns apelos midiáticos.

Para Tschumi, se na prática construtiva o edifício tem uma relação direta com a questão
da utilidade, a arquitetura não o tem necessariamente. E faz um ataque feroz às peças
publicitárias dos mercados imobiliários e as apropriações indevidas de símbolos e
referências da arquitetura de um outro tempo.

Chamar de arquitetônicas as esculturas que se apropriam superficialmente do


vocabulário dos frontões e escadas é tão simplório quanto chamar de pinturas as
insípidas aquarelas de certos arquitetos ou os desenhos em perspectiva de firmas
imobiliárias (Idem, p.176).

O discurso de Manfredo Tafuri (1935-1994) tem um valor emblemático quando se remete


às questões da crítica arquitetônica. Para Tafuri as relações de produção de um
pensamento crítico estão na mesma linha de fogo dos questionamentos à uma velha
ordem e ao ambiente correlato de uma certa “tradição cultural” e no estreitamento à
uma práxis operativa, uma possibilidade de ação. E aponta para um limbo da chamada
“crítica especializada”, quando nem sempre se confunde a figura do arquiteto que
escreve e que teoriza com o arquiteto que simplesmente atua. É por isso que muitas
vezes o dito “crítico puro”48 passa a ser visto com maus olhos, de acordo com a seguinte
reflexão deste pensador italiano:

48
Mas, o que seria um “crítico puro” nas palavras de Tafuri? Possivelmente um teórico apenas, que
simplesmente fala e reflete sobre aquilo que vê. Vale lembrar que até mesmo Tafuri, embora seja um pensador
revolucionário para seu tempo, bebe na dialética marxista e encontrava-se cerceado nas bases do historicismo
italiano.
64

É por esse motivo que o crítico puro começa a ser olhado como uma figura perigosa:
daí a tentativa de o etiquetar com a marca de um movimento, de uma tendência, de
uma poética. Dado que a crítica que pretende manter uma distância relativamente à
práxis atuante, mas não pode fazer do que submeter esta última a uma constante
desmistificação para superar as suas contradições ou, pelo menos, para as definir e
tornar presentes, os arquitetos procuram controlar essa crítica, e tentam, no fundo,
seu exorcismo (TAFURI, 1972, p.23).

Toda crítica carrega um cunho de juízo estético, mas também alguma carga ideológica.
Se ao longo da história a produção arquitetônica refletiu inúmeros valores determinados
por poderes de ordem política e econômica, no século XX há uma espécie de rompimento
com algumas categorias, a exemplo da própria tríade vitruviana e o ideal de beleza
greco-romano, e o surgimento de uma certa contestação em massa às instituições
disciplinares. A lingüística estrutural, inclusive, irá se apoderar dos códigos e da oratória
formal do arquiteto. Mas os processos de transformação de uma sociedade também em
mutação irão refletir explosões arquiteturais que buscam atender os anseios de uma
população em massa emergente, como podemos verificar nas concepções programáticas
imaginadas pelos futuristas italianos (atitude mais estetizante com base no movimento,
na velocidade, na ruptura radical com o passado) e construtivistas russos (mais focados
na utopia socialista) ao desenharem os mais diversos edifícios, a exemplo de cozinhas
comunitárias, teatros, clubes de trabalhadores, habitações coletivas e até mesmo
fábricas e cidades, muito comum na propagação da ideologia socialista européia dos anos
30 – a busca de uma estética que atendesse às necessidades dos operários urbanos.

Porém, “nem a arte, nem a crítica revolucionará”, segundo Harold Rosenberg. Segundo
Tafuri, há um sintoma que ronda a arquitetura contemporânea que é exatamente esse
frenesi, esse estado, essa busca de uma mudança radical, como se nos sentíssemos ao
mesmo tempo dentro e fora de uma tradição histórica e imersos em uma revolução
simbólica inquietante. “Também a crítica é obrigada, tal como a arquitetura, a
revolucionar-se continuamente a si própria...” (Idem, p.25). E vai mais longe, aponta
para algo que Giulio Carlo Argan já havia colocado em La crisi dei valori, um texto de
1964, onde a arte e a arquitetura encontrar-se-iam ancoradas e dominadas pelo caráter
inebriante da hipótese e muito pouco relacionadas com a ação criadora de experiências.

Segundo Vittorio Gregotti, outro italiano, existem algumas condições intrínsecas ao


arquiteto contemporâneo e essas condições estariam relacionadas com uma certa
insegurança latente na forma de projetar, pois ainda estaríamos um pouco presos a
algumas premissas herdadas da modernidade e isso se reflete numa certa incapacidade
de romper com esse passado o que, muitas vezes, nos lança em um conflito um tanto
quanto desesperado e direcionado à máxima: o que fazer? E nesse momento nos
deparamos com ecletismos e pastiches e, no entanto, temos que assumir uma posição.
65

Gregotti, mesmo em seu contexto culturalista do historicismo italiano, admite que “o


verdadeiro avanço é sempre descontinuidade, desarticulação, mas ele próprio se
define com tal relativamente a alguma coisa, isto é, relativamente à sedimentação
histórica do presente” (Apud Tafuri, 1972, p.93).

Se lançar em um olhar novo, é uma preocupação quase que cotidiana. Mas algo
completamente novo escapa a qualquer possibilidade de previsão. Se compreendermos
que as grandes utopias arquitetônicas e urbanísticas nasceram nos seios das grandes
cidades e se realizaram em manifestações coletivas, poderíamos até constatar que suas
obras são, potencialmente, instrumentos de alta relevância crítica. As cidades horizontais
flutuantes e o espaço Proun49 de El Lissitsky, o pavilhão russo de Konstantin Melnikov
para a Exposição Internacional de Paris em 1925, o genial Ivan Leonidov e sua estética
suprematista revelada, entre outros projetos, na proposta para o Instituto Lênin, os
planos de reorganização estrutural para a baía de Tóquio idealizadas por Kenzo Tange, a
Agricultural City Plan e as cidades hélice de Kisho Kurokawa e os metabolistas, sem falar
nos desenhos utópicos do grupo Archigram, evidenciam não apenas um simples
devaneio, mas uma estética de caráter visionário que estava muito à frente de seu
tempo e que exprimia uma necessidade da época, dentro de um contexto urbano.
Arquiteturas muito avançadas e que não puderam ser construídas porque a tecnologia do
período não permitia. Nesse sentido Tafuri coloca que as grandes utopias na arquitetura
se trataram de uma espécie de “amplificação retórica da desordem e das mitologias
contemporâneas”. Para ele algumas realizações posteriores ao movimento engendrado
pelo Futurismo italiano, a exemplo da Grande Central Terminal St. de Nova York ou as
grandes conexões do sistema de tráfego dos principais centros urbanos, apenas
reorganizaram aquilo que Sant´Elia, entre outros, havia sonhado. As propostas do
Archigram, inclusive, não são apenas experimentais, mas revelam um apurado senso de
ficção científica e de uma estética relacionada com um mundo existente permeado pela
tecnologia, pela informação, pela multi-funcionalidade e, obviamente, pelo caos.

Mais do que meras proposições formais e estruturais, esses grupos acabaram por
promover uma ruptura com o tempo presente ao inventar outros lugares, ao questionar a
ordem e os sistemas pré-estabelecidos, ao propor desligamentos espaciais. O
pensamento utópico mostra-se sempre atual e reafirma o lugar da criação como um
campo de ação crítica e transformadora. Uma inquietação frente ao amanhã. O tempo
futuro como uma linha de força. (CAÚLA, 2006).

49
Criados entre 1919 e 1921, definem-se como “projetos para afirmação do novo”, representações axonométricas
de corpos geométricos que possuem formas diversas que ora repousam sobre um alicerce sólido, ora flutuam no
espaço cósmico. Elementos em movimento, que provocam deslocamentos e tensões estruturais ao imprimir
múltiplos eixos de projeção. Experimentações que possibilitaram desafiar o campo gravitacional e explorar com
maior rigor a poética do espaço.
66

Experimentos russos.
Proun – a ponte (1919) – Sistema de Composição Espacial, Rússia. El Lissitzy. Fonte: www.rodasho.com
Pavilhão da U.R.S.S na Exposição Internacional de Paris (1925). Konstantin Melnikov. Imagem: T. Nagakura
Abaixo, maquete do Instituto Lênin (1927). Ivan Leonidov. Fonte: www.utopia.ru

Agricultural City Plan (1960).


Metabolistas
Fonte: www.kisho.co.jp

Metamorphosis´65 (1961).
Kisho Kurokawa
Fonte: www.kisho.co.jp

ARCHIGRAM

Vale lembrar também que mesmo na interdisciplinaridade da disciplina arquitetônica e


suas inúmeras conexões com outros campos do saber, ainda é muito lacunar as pontes
com a psicologia ou a psicanálise para que se possa “estudar o comportamento de
classes de indivíduos ou de classes sociais na sua leitura quotidiana das mensagens
arquitetônicas e urbanísticas” (TAFURI, 1972, p.136).

Mas, esse debate teria que vir ao grande público. Não é essa a intenção das vanguardas
arquitetônicas? Aproximar as produções artísticas do povo? Arte e transformação social?
Bem, essa é uma outra discussão, mas em recente reportagem à revista AU –
Arquitetura e Urbanismo50 – o espanhol Josep Maria Montaner acabou incomodando um
pouco alguns arquitetos e críticos brasileiros ao afirmar que nossas reflexões acerca do
universo da crítica arquitetônica ainda são pouco substanciais. “Há muitos arquitetos

50
Ver entrevista de Josep Maria Montaner concedida a Bianca Antunes da Revista AU, n.166, janeiro de 2008.
67

bons no Brasil e muitos bons críticos, mas nenhum se atreve a dar um salto e fazer um
trabalho mais amplo, mais ambicioso e mais geral”. Mas ele mesmo confessa:

O mundo da teoria está dominado pelos anglo-americanos e por certos autores italianos,
franceses ou centro-europeus. É impossível estar na primeira divisão se não for traduzido
para o inglês e formar parte da elite cultural anglo-americana (MONTANER, 2008, p.58).

No Brasil, de fato, não existe ainda um debate sistemático sobre arquitetura que chegue
ao grande público, a exemplo de suplementos jornalísticos ou outros meios de imprensa
mais amplos, embora exista uma quantidade razoável de blogs e páginas de discussão na
internet. As revistas, onde é publicada a maioria dos ensaios, ainda são especializadas e
direcionadas a um público alvo. Os problemas urbanísticos e as condições de nossas
edificações estão ausentes de uma reflexão que envolva a vida cotidiana das populações
de nossas cidades. Mas, não são os livros que formam opinião. Voltando as micro-ações,
acredito na existência de alguns pensadores, dentro da academia ou fora delas, que
estejam contribuindo para o debate de alguma maneira, mesmo que nas trincheiras dos
contra-poderes.

O que levaria, por exemplo, um arquiteto renomado como Shigeru Ban a construir
abrigos flexíveis, fabricadas em tubos de papel, para refugiados de Ruanda? Em 1996, o
arquiteto japonês criou o VAN – Voluntary Architect´s Network51 – uma rede para troca
de informações entre grupos acadêmicos e profissionais com intuito de contribuir com a
produção de uma arquitetura social voltada para áreas pobres do mundo e populações
que sofreram com desastres e/ou catástrofes naturais (terremotos, maremotos,
enchentes, tsunamis, etc) em seus países de origem. Suas contribuições atravessam
inúmeros países – Sri Lanka, Índia, Turquia, Japão. Seus protótipos podem ser
facilmente construídos por qualquer pessoa e, muitas vezes, seus próprios alunos
também participam das construções de abrigos temporários nos campos de refugiados. É
uma maneira de testar tecnologia, botar a “mão na massa” e, segundo ele, educar o
público. “(...) pero en geral creo que los arquitectos tendrían que implicarse en este tipo
de cosas, no sólo hacer edificios bonitos.” (BAN, 2008, p.134).

O processo de criação das habitações foi realizado pela equipe de Aravena (que aparece na foto) em conjunto com a
comunidade de Quinta Monroy, Iquique, Chile. Os moradores “brincaram” com as maquetes (percebendo a espacialidade
interna das unidades) e desenharam como imaginavam as fachadas e os espaços comuns. Fonte: ARAVENA (2008).

51
Cf. http://van.sfc.keio.ac.jp
68

O arquiteto chileno Alejandro Aravena desenvolveu no ano de 2001 um trabalho


belíssimo em um assentamento informal chamado Quinta Monroy, em uma cidade
costeira do Chile - Iquique. Existe um programa coordenado pelo governo chileno que
consiste em melhorar a qualidade de vida dos habitantes assentados em áreas
identificadas como precárias – ocupações informais sem infra-estrutura adequada e em
condições insuficientes de habitabilidade. O programa prevê a consolidação dessas áreas
através da realização de projetos participativos destinados a não só construir habitações
para as próprias populações residentes nesse tipo de localidade, mas também melhorar
as condições urbanas do entorno.52 O projeto de Aravena prevê a permanência das 100
famílias no mesmo local, em uma área de 5.000,00 m2. O processo projetual é bastante
interessante, pois é originado a partir de constantes reuniões com os moradores do
lugar, sendo elaborados modelos e maquetes de estudo referentes à solução tipológica
das unidades habitacionais; até as crianças do bairro desenharam e construíram seus
“protótipos”, da maneira como imaginavam o “aspecto” de suas casas. Os desenhos das
áreas de convivência também foram realizados pelos futuros moradores e apenas re-
organizados por Aravena e sua equipe do escritório Elemental. Ao final temos uma
solução primorosa, de extrema sensibilidade estética, onde se propõe a execução em
duas etapas: uma planta térrea que comporta uma sala, uma cozinha e um banheiro,
com possibilidade de ampliação para dois quartos e uma área de serviço coletiva aos
fundos; e um duplex integrado com disponibilidade para atender o mesmo programa. Só
que a edificação multifamiliar não é construída na íntegra. A superfície inicial é edificada -
uma espécie de núcleo base - e a população é orientada da maneira como devem
proceder as futuras ampliações, de acordo com suas próprias necessidades, condições e
desejos.

Os arquitetos do estúdio Elemental realizaram diversas reuniões e encontros com os habitantes, pois, a partir
dessa participação, foi possível compreender o modo de vida das famílias envolvidas com o projeto e atender, ao
máximo, as suas preferências quanto à distribuição dos espaços. A partir de uma espécie de jogo com os
pequenos volumes, foram elaborados alguns esquemas básicos das unidades, porém permitindo ampliações. As
cores em vermelho e azul escuro correspondem à estrutura que seria construída. Os cubos em azul e vermelho
claro representam os volumes destinados a autoconstrução que cada família poderia fazer posteriormente, de
acordo com suas necessidades e prioridades. Fonte: ARAVENA (2008).

52
Cf. http://chilebarrio.cl
69

Na seqüência, a unidade como foi entregue; a construção das ampliações de acordo com as
possibilidades de cada morador; a ampliação completa com preenchimento total dos vazios.

Podemos observar o “núcleo base” das unidades entregues e, após


um ano, as ampliações realizadas pelos próprios moradores. A
área inicial da casa térrea corresponde a 36,00m2 e a duplex
25,00m2. Com as ampliações, ambas podem chegar a 72,00m2.
Em termos de subsídio, uma casa custa U$8.300 por família.

Fonte:
ARAVENA (2008)

O brasileiro Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989) arquiteto e doutor em


antropologia, autor dos livros “Quando a rua vira casa” e “A cidade como jogo de cartas”,
também possui experiências interessantíssimas em favelas no Rio de Janeiro. Em suas
propostas para a favela de Brás de Pina, nos idos da década de 1960 (diga-se, em plena
ditadura militar), os próprios moradores eram inseridos no processo de urbanização da
comunidade e estabeleciam critérios para os desenhos de suas casas e ruas. A política da
equipe de arquitetos da Quadra, comandada por Nelson na época, entendia a favela
como locus de diversidade, integração e inclusão social e sempre lutou contra a remoção
70

dos moradores para outras localidades distantes do centro da cidade. A própria


diversidade do mundo urbano é utilizada enquanto meio para cultivar um processo de
planejamento dos espaços do cotidiano, ancorada na escala do dia-a-dia e nas
experiências do citadino, dos habitantes das cidades, que vivenciam a rua e não se
limitam aos seus quarteirões segregados e disciplinados.

São exemplos de ações que nos revelam algumas respostas arquitetônicas perante um
mundo em transformação e evidencia, sobretudo, um posicionamento crítico frente à
necessidade de mudar de rumo. Essa mudança implica em questionar as nossas crenças
e hábitos, os nossos valores e as nossas percepções. As atuações práticas de produções
que nascem tanto na Ásia quanto na América Latina apontam para arquiteturas que não
obedecem modelos genéricos ou anglo-saxões, mas que se adaptam a soluções formais e
funcionais de suas realidades, sem perder a qualidade de suas soluções espaciais.
Arquiteturas que não passam pelo crivo da espetacularização e ainda atendem a
importantes funções sociais e humanitárias.

As vertentes tradicionais de planejamento e concepção arquitetônica não têm conseguido


acompanhar as mutações e justaposições engendradas nas cidades atuais; toda
experiência urbana acaba implicando rupturas, distâncias, intervalos, desconexões,
descontinuidades, fragmentações. Emergem novas relações de vizinhança e de
coexistências. É preciso experimentar novas práticas de atuação que questionem o
pensamento hegemônico, dentro da nossa realidade, com aprofundamentos mais
conceituais na lógica da mutação das cidades e seus rebatimentos na produção de
arquiteturas. E claro, implementar outros saberes.

Entre espaços lisos e estriados – relações de vizinhança, limites


e contaminações afetando a paisagem da cidade. As favelas
formadas pelos “desterritorializados”, o Petronas Towers
desenhado por César Pelli na Malásia e os edifícios mais caros
do Morumbi, próximo a Paraisopolis, em São Paulo.
Incompreensíveis coexistências... Fonte: 2G DOSSIER (2007)
71

A própria cidade resulta da coexistência de hibridações – multiplicidades de elementos


heterogêneos - surgida de informações, sistemas digitais e do próprio ambiente. A
experimentação, o pensar arquitetônico e a transgressão formal estão presentes em
novas vertentes contemporâneas, nos processos de hibridização, nas novas tecnologias,
nas novas relações de espaço-tempo e no método poiëtico - irão inserir novos conceitos
de “criação”, onde os problemas reais se convertem em oportunidade e definem um novo
motor de arranque, sem o aprisionamento de uma origem pré-estabelecida. Uma
estratégia que se transmuta em vários aspectos, implementando novas noções de
acontecimento, de cultura e de questionamento.

Em meio a redes de poderes, saberes e subjetividades, talvez uma das grandes


dificuldades do trabalho de grande parte dos arquitetos do nosso tempo resiste na
capacidade de assimilar, compreender e perceber esses conceitos e rebatê-los na
produção de diferentes arquiteturas, desenvolvendo simultaneamente vários planos
distintos – múltiplos, superpostos e transversais – através de diagramas, fluxos,
processos aleatórios e descontínuos. Há um caldeirão de possibilidades, elementos
seqüenciados e projeções diferenciadas de uma idéia sobre conjuntos heterogêneos de
condições e limites.
72

CAPÍTULO II QUE FAZER?

Que fazer? dramatiza, pela primeira vez na história russa, o contra-sonho da


civilização vinda de baixo. Chernyshevski sabia das inadequações de seu livro
como drama e como sonho. Entretanto, enquanto desaparecia no vazio da
Sibéria, legou aos sobreviventes o desafio notável, na literatura e na política,
de completar o sonho e torna-lo mais real (...) Notas do Subterrâneo, de
Dostoievski, que apareceu em 1864, está cheio de alusões a Chernyshevski e a
Que Fazer? A mais famosa dessas alusões é a imagem do palácio de Cristal. O
palácio de Cristal de Londres, construído no Hyde Park para a Exposição
Internacional de 1851, e reconstruído em Sydenham Hill em 1854, foi visto de
longe por Chernyshevski por ocasião de sua breve visita a Londres em 1851 e
aparece como uma visão mágica no sonho de Vera Pavlona, a heroína de seu
romance. Para Chernyshevski e sua vanguarda de “homens novos”, o palácio
de Cristal é um símbolo de novos modos de liberdade e felicidade que os russos
poderiam usufruir caso dessem o grande salto histórico para a modernidade.
Para Dostoievski e seu anti-herói, o palácio de Cristal também representa a
modernidade, só que simboliza tudo o que há de agourento e ameaçador na
vida moderna, tudo contra o que o homem moderno deve se colocar en garde
(...) A primeira característica que marca o Homem do Subterrâneo como um
“homem novo”, ou “homem dos anos 60”, é seu anseio por um choque frontal,
um encontro explosivo – mesmo que venha a ser a vítima desse encontro.

Marshall Berman
73

CAPÍTULO II – QUE FAZER?

Provavelmente, acredita-se que até a década de 1960 era possível exercer um certo
controle das estruturas espaciais das cidades e de suas significações urbanas. As escalas
eram outras; a visibilidade dos poderes instituídos e da rede de saberes também. Hoje,
se nos reportarmos aos grandes centros urbanos verificamos uma transformação radical
das mega-estruturas de circulação e das relações de ocupação e uso dos tecidos dessas
cidades. Se em outros tempos as estruturas urbanas mais relevantes eram
53
categoricamente planejadas e elevadas ao status de símbolo de uma Era e
representativa da cultura de um povo de uma cidade (mesmo que tendenciosa – a
cultura do simulacro) - aquilo que Berman (1986, p.274) chama de “floresta de símbolos
baudelaireana”, referindo-se a uma certa overdose deveras impactante de arquiteturas e
representações simbólicas da modernidade - hoje algumas dessas estruturas “rígidas”
evidenciam a transmutação eloqüente dos modos metropolitanos e servem de cenário
para a degradação da vida humana. É preciso sobreviver nas grandes metrópoles.

Mais do que sobreviver, despertar! Nosso olhar ainda está maximizado para as grandes
obras, os grandes planos urbanísticos, as intervenções espetaculares... e ainda muito
minimizado para as pequenas ações, as intervenções do cotidiano ou a própria
experimentação dos sentidos, enquanto possibilidades de transformação em suas
revoluções moleculares (quase imperceptíveis, mas que encontram-se em processo). A
cidade ainda é a grande vedete! Metrópole de corpos mutilados, lugar de espaços lisos
desterritorializados, multiplicados e fragmentados. Fulguras de formas híbridas, espaços
de mestiçagem. A cidade não é sedentária, embora seja atravessada por seus espaços
estriados.

As grandes concentrações de populações em áreas urbanas ocorridas em função,


principalmente, do processo de industrialização, refletem mudanças de passagem (essa
transição não se faz em um dado momento, é um processo sempre em curso, onde
ocorrem sobreposições e resquícios de propagação) das sociedades rurais para
sociedades urbanas acompanhadas de alterações profundas em todas as fases da vida
social. As tribos nômades, por exemplo, também trazem nos seus modos e formas de
vida, influências de diversas ordens em inúmeros aspectos que contaminam as
sociedades contemporâneas e os indivíduos que nelas transitam. Um devir-nômade que
habita cada um de nós.

53
Poderíamos listar uma infinidade de símbolos urbanos, a exemplo da Estátua da Liberdade que é, talvez, a
referência mais significativa exaltada pelo povo americano, principalmente o habitante nova-iorquino. A torre
Eiffel ainda é considerada o marco arquitetônico mais expressivo de Paris, assim como a imponência do Cristo
Redentor – considerado uma das sete maravilhas do mundo – a transfigurar a espacialidade macro da cidade do
Rio de Janeiro. Sem falar nas grandes avenidas, nos centros financeiros, na política disseminada pela construção
dos arranha-céus (situação mais contemporânea e em voga), os centros de entretenimento e de lazer, a
disseminação da strip de Las Vegas e os fenômenos de espetacularização dos principais centros urbanos globais.
74

Mas, o que é esse “homem novo” traçado por Chernyshevski? Trata-se de um homem
que emerge da solidão, que anseia por ação. Que adora uma encrenca. Um ser que
talvez necessite escapar aos sistemas maquínicos que tentam a todo custo expropriar
toda sua singuralidade e arrancar-lhe seus mais profundos desejos. Seria, então, a
sociedade um cárcere, formado por pessoas moldadas por suas mais diversas máquinas?
Segundo Berman (1986, p.28), o homem moderno encontra seu conforto nas suas
cozinhas equipadas e suas almas em seus automóveis, enfim, seduzido por objetos de
consumo e, com sua vida programada para produzir exatamente aqueles desejos que o
sistema social pode satisfazer. Nada mais além.

Entre o futuro dominado pela técnica e o saber científico produzido por uma sociedade
totalitária e desumana como aponta Aldous Huxley54, há bem mais de meio século atrás,
prefiro a poesia e o devaneio do viajante veneziano Marco Polo, ao descrever as cidades
visitadas ao imperador Kublai Khan, onde podemos nos perder em memórias, sonhos e
símbolos, tal qual as andanças de um flâneur. São metafóricas? Desejantes? Ilusórias?
“(...) é o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a
soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem fórmula, que a sua corrupção
é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os
soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos
relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das
torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as
mordidas dos cupins” (CALVINO, 1990, p.10). As sociedades também vivem na medida
das suas emoções e, é claro, nossas lentes hoje são outras. Porém, o que importa nem
sempre são as misérias ou maravilhas do mundo, mas “as respostas que dá às nossas
perguntas”.

Se a crise é um dado da realidade e por mais que em alguns momentos históricos os


conflitos oscilem em ordem de grandeza, sendo mais ou menos intensos, as crises
sempre estão presentes nos eternos processos de transformações das sociedades. A
chamada crise urbana está interligada com a crise econômica ou às crises de
crescimento. Topalov (1991) se propõe a analisar uma tal de crise eventual específica da
comunidade de pesquisadores científicos que estudam a cidade e o território, fulminando
na crise do próprio conhecimento. E claro, é uma situação totalmente interligada aos
domínios dos saberes e dos poderes. Entre consensos, distanciamentos, ofensivas
práticas e intelectuais, outra questão colocada pelo autor é: o que nos resta hoje?

Uma investida um tanto quanto reacionária implementada por algumas esferas dos
poderes constituídos está na necessidade de querer colocar em ordem aquilo que está

54
Ver HUXLEY (1992). Admirável Mundo Novo. A primeira versão dessa publicação foi escrita em 1932.
75

em desordem. Organizar o caos55. Essa “tendência” esteve presente na reestruturação


dos planos urbanísticos de muitas cidades, realizada através de uma visão higienista e
sanitarista. Uma nova ordem espacial articulada a uma nova ordem social.

A ciência urbana está também conectada a uma prática própria do planejamento urbano
– uma vertente que lhe fornece conceitos, metodologia e especialistas. Tais relações
também não estão privadas de tensões. As diversas pressões que a cidade sofre, seja da
especulação imobiliária, seja da economia, sejam os conflitos de classes, políticos e
ideológicos, fazem com que muitas dessas relações sejam empobrecidas. Os aparelhos
governamentais, por exemplo, estão a mercê do capital e cederam espaço para as
grandes empresas - corporações ou oligopólios - como denomina Milton Santos (1993).
No capitalismo liberal, muito mais dirigido aos serviços que à produção, o mercado é
universal, cujas sedes são os Estados, as Bolsas (DELEUZE, 1992a, p.213). Em algumas
ocasiões, a exemplo de intervenções elaboradas nos moldes do planejamento
estratégico, até a miséria é vista como um problema paisagístico,56 onde grupos
excluídos e pobres não são encarados como pessoas, mas sim como um ambiente
(SILVA, 2008, p.84).

A influência das grandes fábricas, sobretudo no primeiro pós-guerra, nas novas formas
de pensar a “organização” das cidades está presente nos modelos idealizados por
urbanistas do início do século XX, a exemplo de Tony Garnier e Le Corbusier. A
disseminação de cidades pensadas através de zoneamentos a partir de um traçado
“sedentário” e altamente funcionalista-racionalista-separatista (principalmente após a
difusão da doutrina postulada na Carta de Atenas) irá facilitar o controle e a segregação
do modo de morar e habitar a própria cidade. Muitas obras tardias não se mantiveram
fiéis à grande Utopia idealizada pelos mestres da 1ª geração; princípios sociais do
funcionalismo, a exemplo da estrutura Dom-ino e a habitação mínima – a máquina de
morar – não apenas buscaram atender à universalização das condições de habitabilidade
do “homem” nas grandes cidades a partir das construções para as massas de
trabalhadores alojados nos dormitórios suburbanos no imediato pós-guerra, mas foram
absorvidas posteriormente pelos processos de especulação imobiliária, sem nenhuma
conexão com a ideologia moderna. Os processos de homogeneização, o fetichismo, o
predomínio da técnica e a reprodução serial denotam aquilo que Walter Benjamin (1987)
denominava de “perda da aura” na modernidade.

55
Caos aqui não é entendido como campo da desordem, mas compreendido enquanto lugar de todas as formas,
de todas as partículas e campo da criação. O espaço das coexistências e das diferenças – “o oceano da
dessemelhança”.
56
Ver diagnóstico produzido para a cidade do Rio de Janeiro, obedecendo aos princípios do modelo catalão –
bulas internacionalizadas para ações políticas em países emergentes, disseminados através de pacotes
estratégicos e sustentações de mídia. In: Vainer (2000b).
76

Surge, cada vez mais, uma forte ligação entre cidade (Estado) e empresa capitalista.
Com a incrementação da cidade-empreendimento, receita iniciada nos anos 1970 nos
Estados Unidos através da experiência em Baltimore, o “espetáculo urbano” passa a
funcionar como ferramenta de controle social e os monumentos arquitetônicos são
capazes de oferecer “emoções estéticas” ao turista – um admirador nato de fachadas e
perspectivas (ARANTES, 2001, p.82). A tabula rasa neo-modernista caminha pari passu à
vanguarda do capital em sistemas altamente lucrativos, onde também passeia o
chamado “culturalismo de mercado”. No Brasil, o fenômeno de oligopólio ocorrido entre
1970 e 1985 irá resultar numa intensificação do capitalismo corporativo monopolista
através de uma política altamente neoliberalista. O próprio poder público se torna refém
das grandes corporações, muitas vezes defendendo os interesses dessas, e não consegue
implementar políticas claras e necessárias que possam resultar em possibilidades de
justiça social. O Estado não consegue fornecer bons serviços de consumo coletivo, como
saúde, transporte ou educação e a habitação fica a reboque dos interesses das
construtoras. Todos os programas alavancados para viabilizar o déficit habitacional no
país, como o BNH ou Projeto CURA, acabaram ativando mais a especulação imobiliária do
que promovendo melhorias reais nessa área (SANTOS, 1993). Na contemporaneidade,
novas redes e estruturas urbanas vão se formando a partir de uma conotação ainda
imprevisível.

Bem, todas essas situações sinalizam alguns momentos de transição, ocorridos ao longo
da história, na qual as cidades tornam-se palco de conflitos e de transformações
incessantes. Tais mutações estão sempre articuladas a alguma esfera de poder (ou
micro-poderes) ou a inúmeras relações políticas, ao famigerado “progresso” ou ainda a
estruturas nem sempre visíveis e que, geralmente, não conseguimos dar conta – é o
preço que pagamos por tais metamorfoses. Portanto, poderíamos dizer que vivemos em
meio a crises constantes, principalmente quando se analisa os fenômenos de
urbanização.

O que fazer, então? O que os ditos “pensadores de cidades”, “gestores urbanos” ou


planejadores podem empreender enquanto estratégia para “reorganizar” as cidades?
Devemos partir do conceito de “reforma urbana”, tentando “melhorar” a situação
existente em locus pontuais (há quem defenda “acupunturas urbanas”) ou rumar para
opções mais radicais através de grandes rupturas com o establishment? Parece-me que
estamos “amarrados”, meio imobilizados perante a dinâmica e velocidade de
transformação empreendida por esse grande tecido emaranhado que é a cidade
contemporânea.

É a tal da “crise de saberes” levantada pelo Topalov. E saberes sobre a cidade, pois as
formulações trabalhadas e pesquisadas ao longo de mais de um século por especialistas,
77

cientistas urbanos e demais “intelectuais”, como ele mesmo coloca, estão profundamente
abaladas. Bem, então me parece óbvio que é preciso experimentar novas formas de
pensar e atuar nas cidades, principalmente na produção de suas arquiteturas, com
aprofundamentos mais conceituais e articulados – filosóficos, artísticos e científicos.

Formas de entendimento do espaço arquitetônico em que seja possível trabalhar outros


limites e temáticas que ainda não foram devidamente atravessadas em suas ações
práticas, a exemplo do estabelecimento dessas novas escalas contemporâneas (XL –
aquilo que Rem Koolhaas chama de Extra Large) e, mais precisamente, as relações
dessas novas cidades (em especial as metrópoles) com a obra de arte, as sensações, as
micro-ações do cotidiano, a experimentação do corpo, as manifestações nômades, os
pequenos projetos arquitetônicos e o próprio pensamento sobre a arquitetura, entre
outros campos, que apontam para formação de novos territórios e modos intempestivos
emergentes, possíveis de escape aos agenciamentos maquínicos.

Ou, como coloca Baudrillard, considerando o atual estado de coisas como uma espécie de
pós-orgia, estamos vivendo momentos explosivos de liberação de todos os domínios,
onde tudo vale. Tudo tende a ser antecipado, simulado, repetido... indefinidamente. Uma
comunicação de “enredo forçado”, onde não há mais espaço para o silêncio.

Talvez tenhamos que observar com mais cautela a exposição do escritor russo
Dostoievski em “Notas do Subterrâneo”. Esse “novo homem” que emerge das
profundezas e que anseia por novas experiências precisa se confrontar com o inesperado,
o imprevisível. E se arriscar em fronteiras imprecisas e encontros explosivos. Talvez esse
seja o sentido da nossa condição contemporânea.
78

A arte enquanto potência geradora de blocos de sensações – perceptos e


afectos

O Sol, que horas são... não sei


Ouço o som da catedral.
Sou louco, sou mistério é
Me some o cemitério.
Eu me rasgo, eu me ralo
Isso é vontade pura.
Essas mãos que me seguram
São de carne crua.
Esses livros que eu leio
Causam sensações,
Sensações, sensações...
Luiz Melodia

Partimos do pressuposto que os edifícios, as arquiteturas, as construções seriam capazes


de desencadear em nós inúmeros impulsos afetivos. A experiência espacial da
arquitetura opera em vários níveis simultâneos, em delimitações cognitivas, sensoriais,
perceptivas, enfim, em blocos de sensações que ultrapassam as bases dialéticas da
representação. Arquiteturas que toquem nossos sentimentos? Possivelmente. Daniel
Libeskind57 na época do projeto para o Museu Judaico em Berlim, no ano de 1989,
constrói as bases processuais do seu prédio a partir do “vazio” da memória. Ausência.
Fratura. Dor. Exílio. Morte. Um vazio que, segundo Andreas Huyssen (2000, p.111),
transformou-se num vazio que alimenta a memória e a reflexão, seja para os judeus ou
para os alemães. O prédio de Libeskind não se perde em jogos gratuitos de formas
geométricas ou organizações espaciais, mas cada espaço do museu possui uma forte
carga ideológica que se contamina e se comunica entre eixos de descontinuidade. A porta
de comunicação com esse edifício acontece por uma entrada subterrânea conectada ao
antigo Museu de Berlim e, desde esse primeiro contato, o visitante se lança numa
espécie de abismo sombrio e imprevisível, tal qual a viagem de Psiquê aos domínios de
Hades. Uma força de compressão nos lança para baixo e, ao mesmo tempo, como num
passe de mágica, o ambiente se dilata para cima como um imenso e incorporal vazio
fraturado. Para Huyssen (2000, p.112), “o vazio sempre estará na mente dos
espectadores que cruzam as pontes que atravessam o museu” e, essas sensações, se
ampliam e se transmutam de acordo com percepções subjetivas de cada indivíduo em

57
Quando venceu o concurso na década de 1980, Daniel Libeskind (arquiteto de origem judaica e polaca,
nascido em 1946) ainda não era conhecido da grande mídia arquitetônica e, de certa maneira, esse projeto o
lançou internacionalmente. Libeskind, antes de se formar em arquitetura em Nova York, iniciou estudos em
música em Israel e se tornou um grande pianista. Embora o processo de criação do museu judaico seja rico em
suas conceituações, instigador e, de fato, navegue nessa lógica das sensações pelos efeitos que os espaços do
prédio conseguem causar no espectador, pela “carga ideológica” de cada ambiência, pelas relações com a música
e com a literatura claramente expostas em suas formulações no sentido de contaminação no processo de
composição de todo o edifício e que serviram de motor de arranque em seu percurso de projeto, esse “traço das
cicatrizes” virou quase que uma marca. Parece que há um desejo universal em consumir esse tipo de forma e o
arquiteto acabou replicando-a em outros projetos, sem a sensibilidade com a qual tratou o museu em Berlim.
Como exemplo podemos citar o Renaissance ROM, extensão do Royal Ontario Museum, no Canadá ou a
ampliação do Museu de Arte de Denver, USA.
79

relação com uma multiplicidade de trocas que ele estabelece com o próprio espaço, seja
pelo esforço em percorrer a escadaria, seja pelo percurso ao longo dos corredores e suas
conexões que se fazem no sub-solo, seja pela intensidade da torre de concreto (a torre
simbólica do Holocausto) ou pela provocação sensorial anunciada no “Jardim do exílio”
com suas 49 colunas inclinadas. No mínimo, um sentido de desestabilização.

A dimensão artística da obra de Libeskind se conserva nos perceptos e nos afetos de


quem a experimenta. Nesse sentido, as relações estabelecidas entre a espacialidade do
edifício e o indivíduo que a percorre não se fazem por interpretação, mas por
comunicação de devires, por relações afetivas, por vibrações que se entrelaçam nas
entrelinhas. Between the lines. Sua arquitetura configura-se na intertextualidade de uma
partitura – a inspiração vem da desconstrução de uma obra musical incompleta de
Schoenberg. A partitura é uma escritura e, nesse caso, aproxima a arquitetura da arte
contemporânea.

Cenas do vídeo Le Musee Juif de Berlim – Entre les Lignes (2002)

Como coloca Roland Barthes (apud Perrone-Moisés, 2005, p.98), “(...) no mundo, nunca
há fundo, mas apenas a escrita de uma escrita: uma escrita remete sempre, finalmente,
a outra escrita, e o prospecto dos signos é, de certa maneira, infinito. Por conseguinte,
descrever sistemas significantes postulando um significado último é tomar partido contra
a própria natureza do sentido”. Claro que a colocação de Barthes realizada nos anos
1970 trás a tona uma crítica severa aos postulados estruturalistas e seu aprisionamento
no dualismo, mas também aponta para os efeitos de contaminação que a literatura, por
exemplo, pode exercer sobre as demais artes58. Talvez seja por essa e outras questões
que Huyssen considera, nessa obra, o “vazio fraturado” enquanto significações, um vazio
que é ao mesmo tempo conceitual e literal. Não é à toa que o livro “Rua de mão única”
de Walter Benjamin, texto que influenciou significativamente o processo de projeto dessa
arquitetura, aponta para algo que nunca poderá ser recuperado, uma ruptura que jamais
poderá ser preenchida. Uma linha fantasma daquilo que não pode ser contado, mas pode
ser sentido.

58
Poderíamos citar a instalação “Tenda” de autoria de Lena Bergstein, montada no MAM-RJ em 1992, uma
reflexão plástica sobre a questão da écriture, desdobramento da leitura da obra de Derrida – A escritura e a
diferença. Khôra, também de Derrida, influenciou a criação de um painel em um edifício na Praça da República,
em São Paulo, no ano de 1993, bem como o processo projetual realizado pelo arquiteto Peter Eisenman para
criação da proposta de uma folie para o concurso internacional Parc La Villette, em Paris, em 1987, a convite de
Bernard Tschumi.
80

Entre linhas de conexão. Between the lines. Jardim do exílio. Museu Judaico, Berlim. Daniel Libeskind
Fonte: Le Musee Juif de Berlim – Entre les Lignes (2002)

Muitos espaços, ambientes, meras arquiteturas, muitas vezes, podem reprimir nossos
devaneios e desejos? Ou, ao contrário, potencializar tais sensações? Para o arquiteto
finlandês Juhani Pallasmaa (1986, in NESBITT, p.484), a experiência da arte é uma
interação, entre as nossas memórias corporificadas e o mundo. E mais, ter a experiência
de uma obra de arte significa recriar sua dimensão de sentimento. Para ele, a arquitetura
é também a morada de seres metafísicos e tem o poder de levar nossa imaginação a
distanciar-se do mundo da realidade cotidiana. “A qualidade da arquitetura não reside na
sensação de realidade que expressa, mas, ao contrário, em sua capacidade de despertar
nossa imaginação”. (Idem, p.488)

Segundo Barbieri (2007), a partir dos ensaios do filósofo Gilles Deleuze acerca do
pensamento de Espinoza e Bergson59, existe uma potência de encontros de corpos que
envolvem afecções e afetos que vão se desencadeando, se articulando e se desdobrando.
“As afecções, enquanto estados que um corpo imprime em outro por meio de sua força
de existir, e os afetos, enquanto transições vivenciadas entre um e outro estados do
corpo, ou seja, enquanto durações que os conectam e os fazem permanecer à deriva
num território de puro movimento”. O afeto, então, é da ordem dos corpos e o devir é da
ordem da intempestividade, da oscilação e, nessa coexistência entre comunicações e
arquiteturas são estabelecidas relações que se desenvolvem em durações, sucessão que
a autora chama de espaço de suspensão - um espaço que não se orienta por uma
questão dimensional, escalar, física e material, mas um espaço destituído de matéria e
que se manifesta a partir de correntes de afetos, que são incorporais.

Eixos de continuidade e descontinuidade. Encruzilhadas. A linha fantasma. Fissuras.


Imagens: Le Musee Juif de Berlim (2002) e Rodrigo Baeta

59
No texto dessa autora – Arquitetura inatual como arquitetura da diferença [uma comunicação de afetos e
durações] - dois conceitos foram extraídos dos escritos de Deleuze sobre o pensamento de Espinoza e Bergson -
o afeto, entendido enquanto um movimento essencial entre partículas que compõem um corpo, e a duração, um
movimento que é condição para se penetrar numa realidade imanente e criadora.
81

Para Fuão (2004), o sentido do espaço só existe a partir da experiência do ‘eu’. O sentido
do espaço não estaria na arquitetura, em suas relações utilitárias ou dimensionais. O
sentido do espaço está além da sua superfície de contato e muito mais conectado ao
interior de quem o vivencia; nesse sentido, o espaço é imaterial, é plástico e etéreo como
o próprio tempo. E é, através da sensação, que podemos ultrapassar a simples figuração
ou a pura representação - “(...) a forma referida à sensação (Figura) é o contrário da forma
referida a um objeto que ela deveria representar (figuração)”. Segundo Deleuze (2007), ao

analisar a obra de Francis Bacon, essa sensação está voltada ao sujeito, mas também ao
objeto (o fato, o lugar, o acontecimento); para que o espectador possa experimentar a
sensação da obra de arte, a exemplo de uma pintura, é preciso que ele entre no quadro.
Daí a máxima de que a relação entre o indivíduo e o espaço se constrói em potência de
afetos e percepções, onde a arte opera como grande catalisadora desse encontro
podendo desencadear, também, processos criativos.

Linguagem das sensações - Cicatriz. Fraturas. Vazio. O vazio da memória.


Fonte: Le Musee Juif de Berlim (2002)

À esquerda e ao centro, a carga ideológica de cada ambiente atravessando quem experimenta


percorrer o interior do Museu Judaico em Berlim; à direita, reprodução formal no Renaissance ROM,
extensão do Royal Ontario Museum, no Canadá, ambos projetos de Libeskind.
Imagens: Ariadne Moraes Silva / Studio Daniel Libeskind
82

The Wall. Francis Bacon. Fonte: www.artnet.com

Em alguns processos contemporâneos que beiram arquiteturas de ruptura e que inserem


novas lógicas espaciais, sejam arquiteturas mais experimentais ou até algumas
experiências virtuais, têm a potência de nos fazer despertar, de provocar sentimentos
imprevisíveis, porque não estão, necessariamente, dentro de um desencadeamento
lógico de repetições, mas tangenciam um certo desequilíbrio. A própria cidade é vibração
em estado bruto que se apresenta em potências de ritmos que ultrapassam a sensação
visual – a sensação dos sons, por exemplo. A goteira no telhado, a buzina do carro, o
canto dos pássaros, o triturador do caminhão de lixo, a música dos pregões dos
ambulantes, as crianças brincando nas ruas (coisa cada vez mais rara hoje em dia)... a
sensação da distância, o cheiro do pão na esquina.

Os níveis de sensação seriam domínios sensíveis remetendo aos diferentes órgãos


dos sentidos; mas cada nível, cada domínio, teria uma maneira de remeter aos
outros, independentemente do objeto comum representado. (DELEUZE, 2007, p.49)

Essa condição é também bastante acentuada em alguns escritos de Bernard Tschumi:

(...) o espaço não é simplesmente a projeção tridimensional de uma percepção


mental, mas é algo que se ouve e na qual se age. E é o olho que enquadra a janela,
a porta, o ritual efêmero da passagem [...]. Espaços de movimento – corredores,
escadas, rampas, passagens, soleiras; é aí que começa a articulação entre o espaço
dos sentidos e o espaço da sociedade, as danças e os gestos que combinam a
representação do espaço e o espaço da representação. (1981, in NESBITT, 2006,
p.181)

É complicado afirmar onde começa ou acaba a sensação; trata-se de uma impressão


difícil de se tabular. Mas a arte tem o dom de conservar... e essa questão é possível de
ser melhor compreendida se nos deleitarmos sobre os escritos de Deleuze e Guattari em
“O que é a filosofia”, fundamentalmente um capítulo em especial intitulado “Percepto,
Afecto e Conceito”. Para esses autores, o objetivo da arte seria arrancar o percepto das
83

percepções e os afetos das afecções; num primeiro momento, extrair o percepto e o


afeto do próprio objeto de arte e do “sujeito percipiente” que o experimenta,
desencadeando um bloco de sensações. E para tal, é preciso que o artista, seja um
pintor, um escritor ou um arquiteto utilize a arte enquanto linguagem das sensações
(que se faz nas palavras, nas cores, nas texturas, nos sons, etc) a partir dos materiais
inerentes ao seu universo artístico de atuação. Tais atuações, obviamente, são realizadas
a partir de métodos que variam com cada autor, nas quais a pesquisa da sensação
inventa procedimentos diferentes em suas criações (DELEUZE; GUATTARI, 1992b,
p.217). Ou seja, nunca haverá dois artistas, dois pintores ou duas grandes obras que
operem da mesma maneira. “O artista acrescenta sempre novas variedades ao mundo.
Os seres da sensação são variedades, como os seres de conceito são variações e os seres
de função são variáveis”. (Idem, p.227).

Twilight. Atelier II – FAUFBA. Fonte: acervo da autora

Voltemos, então, a questão da arte e do seu processo de conservação60. A arte se


conserva em si mesma ou até, dentro de uma relação temporal, em função da
durabilidade de seu suporte ou de seus materiais. Porém, o que de fato se conserva, a
coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e
afetos (Ibidem, p.213). Tais sensações, entretanto, não se referenciam a um objeto
específico, elas podem até se assemelhar ao percepto e ao afeto que é arrancado do
próprio material, no entanto, o que se conserva não é o material, mas os perceptos e
afetos (muitas vezes desviantes em relação a um modelo, um olhar sobre fenômenos ou
a um espectador que se limita à interpretações) que são extraídos da obra de arte -
blocos de sensações que têm o poder de eternizar qualquer ato ou material que dure
poucos segundos. Se pensarmos na explosão das torres gêmeas em Nova York, o fatídico
11 de setembro, poderíamos estabelecer relações de perceptos fugidos perante aquilo
que Cézanne tão magistralmente coloca: “o homem ausente, mas inteiro na paisagem”.
Uma paisagem tão trágica e ao mesmo tempo tão efêmera, que foge a qualquer mera

60
A título de esclarecimento, a conservação aqui está sendo encarada do ponto de vista conceitual enquanto
duração de sensações e não sob o aspecto de proteção ao patrimônio histórico para salvaguarda de monumentos.
Parafraseando Deleuze e Guattari (1992b, p.218): “É verdade que toda a obra de arte é um monumento, mas o
monumento não é aqui o que comemora um passado, é um bloco de sensações presentes que só devem a si
mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o composto que o celebra. O ato do monumento não é
a memória, mas a fabulação”.
84

tentativa de percepção pré-cooptada e ultrapassa a retícula de um tempo controlado.


Uma imagem que se torna imortalizada pelas lentes de vídeos e celulares que captaram
o instante do choque dos aviões e o curso da combustão dos edifícios; entre névoas de
cinzas e poeiras, tais imagens se conservam em nós a partir de compostos de sensações
incomensuráveis.

Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que
os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a
força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afetos, são
seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. (DELEUZE; GUATTARI,
1992b, p.213).

Poderíamos falar em território das sensações? Até na conformação do próprio habitat e


suas relações funcionais e estruturais de existência, pode-se estabelecer conexões que
vão muito além das percepções fenomenológicas. Sensibilidade que transcende o
abstracionismo e possibilita a transformação das próprias funções. Até as figuras
geométricas em estado bruto tem afecções e percepções. No universo da arquitetura,
mesmo nas formulações de conceituações, por exemplo, a criação do conceito não é
apenas pensada, mas pode ser sentida e percebida. Obviamente que um trabalho de
arquitetura está sempre em um local, em uma situação, localizado em algum lugar,
mesmo que virtual (uma arquitetura sem contexto ainda encontra-se em relação com um
plano utópico) e o contexto pode ser geográfico, histórico, cultural, político ou
econômico. Não se trata de uma questão em sua dimensão visual ou em termos do tipo
“contextualismo”, como uma implicação estética conservadora. Como coloca Bernard
Tschumi (2004), no meio da arquitetura, conceito e contexto são inseparáveis.
Freqüentemente, eles também entram em conflito. O conceito pode negar ou ignorar as
circunstâncias que o circundam, enquanto o contexto pode ofuscar, tirar o brilho ou o
entusiasmo, ou ainda confundir a precisão de uma idéia arquitetônica.

Programa Transite (2006) –


concurso de idéias para
intervenções em espaços
públicos através de projetos de
arquiteturas efêmeras. A partir
das tradicionais caixas de frutas
em plástico utilizadas nos
mercados populares, duas
estudantes de arquitetura de
Granada propõem em um
corredor da cidade, uma
cobertura que também funciona
como piso, proporcionando
ventilação e iluminação.
Fonte: PAISEA (2008).
85

Tschumi (2004) também afirma que não há espaço arquitetônico sem conteúdo. A
maioria dos arquitetos, geralmente, inicia suas atividades a partir de um programa –
uma lista requerida pelos usuários. Um programa de funções pode ser o gerador da
forma, mas a forma nas análises desse autor é revisitada pela palavra conceito. Por
exemplo, um dado elemento programático pode ser problematizado ao ponto de tal
maneira que pode transformar o conceito de um edifício. Vejamos, no projeto para o
Museu Solomon R. Guggenheim (NY), Frank Lloyd Wright pega um elemento implícito do
programa – o movimento através do uso de uma linha que atravessa o edifício da
entrada até a saída – e conceitualiza-o na forma de uma rampa contínua que
definitivamente caracteriza o museu (TSCHUMI, 2004, p.13). Ele consegue,
impressionantemente, arrancar o percepto e o afeto até mesmo de uma relação funcional
programática (conteúdo). Retomando Deleuze e Guattari (1992b, p.172), sem querer
fazer uma ponte direta, mas tanto as percepções quanto as afecções especiais da
filosofia ou da ciência, se ligarão necessariamente aos perceptos e afetos da arte.

D-Tower (2004) - Doetinchem. Lars


Spuybroek & Q. S. Serafim. Uma
instalação em praça pública, capaz de
mapear as emoções dos habitantes da
cidade a partir de processos interativos
e sensores de fibra ótica. Fonte:
SPUYBROEK (2004).

Mitologia(s), horizonte maquínico e as esferas da representação

Os mitos fazem parte do mundo das artes e do imaginário coletivo. As inúmeras


simbologias míticas são retratadas por pintores e escultores em períodos diversos da
história da humanidade; suas fábulas são objeto de inspiração para obras de grandes
dramaturgos e escritores; C. G. Jung trabalhou com muitos arquétipos e simbologias
mandálicas orientais (A Flor de Ouro, por exemplo) para compreender os fenômenos dos
(des)caminhos e a dissolução da consciência de seus pacientes, fora dos padrões
ocidentais. Até nós, arquitetos, muitas vezes utilizamos referências arquetípicas,
específicas de uma cultura ou de um lugar, como elementos catalisadores do processo
86

criativo. Um arquétipo61 pode servir de base para o desenvolvimento de um modelo ou


de um tipo arquitetônico.

Com seu conceito de consciente, Freud postulou a existência de um continente


escondido da psique, no interior do qual se representaria o essencial das opções
pulsionais, afetivas e cognitivas. Atualmente não se podem dissociar as teorias do
inconsciente das práticas psicanalíticas, psicoterapêuticas, institucionais, literárias, etc,
que a elas se referem. O inconsciente se tornou uma instituição, um ‘equipamento
coletivo’ compreendido em um sentido mais amplo. (GUATTARI, 1992, p.20)

Segundo o historiador e crítico de arte italiano Giulio Carlo Argan (1963, in NESBITT,
2006, p.271), o tempietto de San Pietro em Montorio, de Bramante, é um projeto que se
baseia em um “tipo” - o templo de períptero circular descrito por Vitrúvio no Livro IV,
capítulo 8 - porém o motor de arranque para a elaboração do edifício está interligado
com a abstração de um “tipo” referenciado a um modelo histórico – o templo da Deusa
Cibele, em Tívoli.62

As obras de Boullée63, por exemplo, são verdadeiras homenagens aos primados da


geometria, referenciado-se ao arquiteto renascentista Andrea Palladio e, principalmente,
ao físico Isaac Newton, suas arquiteturas louvam a perfeição da esfera enquanto
expressão do Todo – uma reverência à Deusa Terra (Vesta) e aos templos redondos.

Cenotáfio a Newton (1784). Boullée.


Fonte: Arquitetura no Século XX (1996)

Até chegarmos às representações das máquinas imaginadas por Leonardo da Vinci, a


exemplo do esboço da máquina voadora presente nos manuscritos do artista, mais
precisamente nos Codice Atlantico (PEDRETI; CIANCHI, 1995). Para Joseph Campbell,
estudioso de mitologia norte-americano, o vôo da aeronave atua como libertação da

61
Segundo Jung, arquétipos são imagens psíquicas do inconsciente coletivo – um patrimônio comum de toda a
humanidade. O Paraíso Perdido, o dragão, o mito de Édipo ou o próprio círculo são exemplos de arquétipos que
podem ser encontrados nas mais diversas civilizações.
62
Cibele ou Réia era esposa e irmã de Saturno, também conhecida por Grã-Madre, por ser mãe dos deuses
maiores, entre os quais Júpiter, Netuno, Juno, Plutão, Ceres e Vesta.
63
Étienne-Louis Boullée (1728-1799), arquiteto francês que, juntamente com Claude-Nicolas Ledoux,
revolucionou o mundo da arquitetura no seu tempo ao romper com os paradigmas da época. Sua obra-prima –
Cenotáfio a Newton – simbolizava a universalidade dos axiomas newtonianos e, ao mesmo tempo, um
monumento determinado por uma criação fantasiosa, antecipando o traço da modernidade.
87

terra. É o papel simbólico que os pássaros costumavam desempenhar. Na arquitetura


também podemos vislumbrar alguns processos miméticos, tendo como base o vôo dos
pássaros e a aerodinâmica, presentes na obra do arquiteto e engenheiro Frei Otto ao
projetar a Tenda Olímpica em Munique (1968-1972), membrana que consegue alcançar
grandes vãos a partir das experimentações realizadas anteriormente na estrutura de
cobertura – o Pavilhão Alemão - apresentada na EXPO em Montreal (1967).

Já a temática da série cinematográfica “Star Wars” - Guerra nas Estrelas64 – do diretor


George Lucas, encara o Estado como uma máquina. Essa máquina irá esmagar ou servir
a humanidade? Eis o poder do Estado. No filme, entretanto, o “poder do mal” não
pertence a nenhuma nação específica, na verdade, o poder aí é abstrato. Não existe um
combate entre nações, mas são discutidos princípios, forças e poderes. As máscaras
representam a força monstruosa da máquina no mundo moderno.

E o chip de computador? Campbell faz uma analogia interessante com a estrutura dessa
máquina, relacionando-a com a mesma atitude de um líder tribal, onde todas as
pequenas coisas e aparatos estão sempre se referindo a um Deus. Deus, então, estaria
também no computador? É como se existisse uma hierarquia de anjos sobre as placas e
os pequenos tubos seriam milagres. Softwares, bits, bytes, gigas, configurações, janelas,
memórias, telas sensoriais. Todo um conjunto de sinais existentes em um determinado
sistema de programa conduz à realização de um dado objetivo. Cada programa tem a
sua própria articulação de sinais, de plataformas de informação, de organização de
dados.

É o que acontecesse na mitologia: ao se defrontar com uma mitologia em que a


metáfora para o mistério é o pai, você terá um conjunto de sinais diferentes do que
teria se a metáfora para a sabedoria e o mistério do mundo fosse a mãe. E ambas são
metáforas perfeitamente adequadas. Nenhuma delas é fato. São metáforas. É como se
o universo fosse meu pai, ou como se o universo fosse minha mãe. Jesus diz:
‘Ninguém chega ao pai senão através de mim’. O pai de que ele falava é o pai bíblico.
Pode ser que você somente chegue ao pai através de Jesus. Por outro lado, suponha
que você escolhesse o caminho da mãe. É simplesmente outro caminho para chegar
ao mistério da vida. É preciso entender que cada religião é uma espécie de programa
com seu conjunto próprio de sinais, que funcionem. (CAMPBELL, 1990, p.21).

64
O projeto Star Wars é dividido em duas trilogias, uma iniciada nos anos1970 e outra já nos anos 1990. Elas
não têm uma ordem muito coesa entre si. O episódio IV, que foi o primeiro a ser lançado em 1977 chama-se
“Guerra nas Estrelas”. Em 1980 é lançado “O Império Contra-Ataca” – episódio V; em 1983 surge “O Retorno
de Jedi” – o sexto e último episódio. Os episódios I, II e III são lançados em 1999, 2002 e 2005 – “A Ameaça
Fantasma”, “O Ataque dos Clones” e “A Vingança dos Sith”. A primeira trilogia, geralmente, é considerada a
mais interessante, com inúmeras simbologias arquetípicas e questões enigmáticas que suscitam as mais variadas
reflexões. George Lucas é um dos pioneiros na utilização da fotografia digital no cinema, onde personagens
digitais começam a contracenar com atores reais.
88

Essas pequenas reflexões sobre a mitologia e seu universo simbólico nos levam há uma
questão crucial para o entendimento dos processos de criação na nossa
contemporaneidade: o mundo da representação. A mitologia, as lendas, os arquétipos,
as representações, as convenções, os códigos ou os modelos possuem um forte
componente simbólico. Podem “explicar” fenômenos da natureza, tentar dar sentido às
coisas no mundo ou ainda serem agentes catalisadores para o conhecimento e, quem
sabe, propulsores de transformações do mundo em que vivemos. Segundo o pensador
francês Roland Barthes (1993), para o discurso mítico, os signos tornam-se novamente
significantes, sendo re-significados a partir do discurso que o reinscreve e, tal prática,
tem um significado político. Ainda segundo Perrone-Moisés (2005, p.102), a
metalinguagem supõe uma economia de representação e a imobilização do sentido numa
significação; a escrita de Derrida, por exemplo, fazendo da linguagem ao mesmo tempo
um alvo e uma arma, relança indefinidamente a significação, desarmando a
representação. O universo contemporâneo da representação estaria multiplicado ou
mesmo pulverizado com a globalização? É como se fossemos convidados, ainda de
acordo com os pensamentos de Derrida, a substituir a utopia política por uma abertura
ao porvir. A linguagem e a utopia poderiam ser consideradas motores para uma ação
concreta? E quanto ao universo das representações dos arquétipos? O que querem nos
revelar?

A saga de Dom Quixote, por exemplo, o último herói da Idade Média, se passa em uma
época na qual surge uma interpretação mecanicista do mundo, um ambiente de moinhos
de vento. “Atualmente...”, responde Joseph Campbell (1990, p.138, grifos nossos) em
uma entrevista nos idos de 1985, “(...) o mundo se tornou tão absolutamente mecanicista, tal
como interpretado pelas ciências físicas, pela sociologia marxista e pela psicologia behaviorista,
que não passamos de um padrão previsível de esquemas que reagem a estímulos. Essa
interpretação, formulada no século XIX, baniu da vida moderna todo livre-arbítrio”.

O momento exige uma pausa, pois será que sempre existiu essa liberdade de arbitrar?
Preferimos entender que, historicamente, existiu uma certa “liberdade condicionada”,
muitas vezes balizadas entre “ou isto ou aquilo”, regulada pelos poderosos e por aqueles
que aceitam a condição imposta. O ser que está à margem, excluído socialmente e
economicamente, por exemplo, que liberdade tem para opinar ou tomar certas decisões?
Até as pessoas que têm um certo grau de instrução, de cultura e habitam uma esfera
social mais privilegiada na questão dos acessos e das oportunidades, muitas vezes
também são condicionadas a tomar certas posturas. Há quem diga que “essa questão de
livre arbítrio é pura criação teológica para justificar as escolhas entre o Bem e o Mal, e
conseqüentemente, evidenciar a recompensa ou a danação, o céu ou o inferno”.65

65
Contribuição do professor Pasqualino Magnavita no próprio corpo do texto.
89

Na verdade, a própria existência humana tem se debatido com essas indagações e


convivido com certas máquinas sociais66 que acabam impondo processos de
nivelamento e homogeneização do comportamento engendrado por mecanismos sócio-
tecnológicos. É como se existisse um sistema de “modelização” das subjetividades. Nesse
sentido, Georg Simmel (1902; VELHO, 1976) lá no início do século XX já se coloca a
investigar de que forma a personalidade do indivíduo se acomoda nos ajustamentos das
forças externas, a partir da base psicológica do tipo metropolitano de individualidade
definindo blocos de estímulos e sensações criados pela metrópole.

Somos assediados e seduzidos quase que todo o tempo na atual sociedade midiática e de
consumo, onde tudo se transforma em objeto de desejo (estereotipado em categorias
genéricas); é como se estivéssemos interligados a uma rede maquínica e tecnológica que
cresce vertiginosamente. Não apenas cresce, mas se reproduz em encadeamentos
viróticos. Baudrillard (1992, p.13) também levanta essa questão quando se refere ao
processo de reprodução das máquinas, os “seres tecnológicos atuais” – os clones, as
próteses, a própria engenharia genética – proliferando e estendendo seus códigos e
programações aos seres humanos.

É nesse sentido que Guattari (1987, p.167) coloca que o próprio inconsciente humano
pode ser qualificado de maquínico, pois não está centrado simplesmente na subjetividade
humana, mas participa dos mais diversos fluxos de signos, fluxos sociais e fluxos
materiais. E claro, o inconsciente é manipulado constantemente pelos meios de
comunicação, por tabulações genéricas reproduzidas por corporações ou por uma razão
de Estado linear que ignora outras dimensões existenciais, muitas vezes ligadas a
universos incorporais ou até sensoriais - uma outra cartografia deveras desviante e
demarcada por relações cognitivas.

As transformações tecnológicas nos obrigam a considerar simultaneamente uma


tendência à homogeneização universalizante e reducionista da subjetividade e uma
tendência heterogenética, quer dizer, um esforço da heterogeneidade e da
singularização de seus componentes. (GUATTARI, 1992, p.15)

Na citação acima o autor está falando sobre a produção maquínica da subjetividade e a


exploração processual das “singularidades” dos acontecimentos, onde poderíamos
considerar novas modalidades de subjetivação, seja no devaneio criativo de um artista
plástico ou nos estratos melódicos criados por um músico, seja nas relações do indivíduo
com o próprio espaço arquitetônico, sejam nas práticas do cotidiano. Suscita a criação e
a invenção de outros universos e pulsões, mesmo que inconscientes (ou até “esquizo”,
voltado mais para atuações atuais, do que regressões em relação a um passado), como

66
Para um maior esclarecimento sobre as máquinas sociais de captura e demais agenciamentos, ver: Guattari
(1992), capítulo “Oralidade maquínica e ecologia do virtual”, p. 113-122.
90

uma possibilidade de fazer front a uma midialização estúpida que se estende a milhares
de indivíduos. Guattari (1992, p.20) diz que só a partir da subjetividade é possível
desenvolver a heterogênese; isso porque a subjetividade não é fabricada apenas através
das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos “matemas do Inconsciente”, mas também
das grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, lingüísticas, que não podem ser
qualificadas de humanas.

E tal “evolução maquínica” pode ser positiva ou negativa a depender de como acontece
sua articulação com os agenciamentos coletivos de enunciação, pois, mesmo em um
mundo opressor engendrado por esferas de controle, há de ser criar espaços para novos
universos de referência que possibilitem processos de re-singularização.

O que importa aqui não é unicamente o confronto com uma nova matéria de
expressão, é a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-
trocas múltiplas, que ofereçam à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma
corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de
se re-singularizar. (GUATTARI, 1992, p.17).

Esse questionamento nos remete a novos paradigmas estéticos que se colocam na


contra-mão de complexas estruturas já cristalizadas e que possibilitem novos modos de
singularização. O próprio contexto do Second Life, onde os indivíduos se comunicam em
espaços de convívio que tendem a se tornar cada vez mais virtuais (os nômades das
agências de internet e de marketing viral), nos remetem a novos domínios de
experimentações sociais que se desenvolvem através de redes interconectadas por
satélites e que podem nos fazer entrar numa espécie de era pós-mídia, caracterizada por
uma re-apropriação e uma re-singularização da utilização da própria mídia (GUATTARI,
1992, p.16). O universo da tecnologia tem influenciado significativamente os modos
contemporâneos de viver. O chamado “desterritorializado interconectado” ajusta a seu
próprio corpo os iPods ou pen-drives, que permitem armazenar em poucos centímetros
uma infinidade de informações, sejam arquivos, música, agendas, filmes, imagens e
fotos que são carregados de forma itinerante.

No universo da produção arquitetônica, essa interação tecnológica possibilitada não


apenas pelo mundo virtual, mas por uma série de softwares e programas gráficos, tem
determinado novas formas de representação e composição do espaço. A
interconectibilidade, que transpassa o ambiente contemporâneo, imprimi uma outra
velocidade aos processos de concepção, com resultados muitas vezes imprevisíveis. As
condições de um tempo em que os acontecimentos são encarados simultaneamente,
entre sucessões descontínuas sempre em processo de transformação, as plataformas de
estabelecimento de relações que envolvam o espaço imaginário (e daí seus inúmeros
sub-estratos – imagem, imaginação, representação, simulação e criação) e os aspectos
construtivos de um espaço real, possivelmente ainda necessitam ser atualizados nos
91

discursos que orientam novas formas de pensar. Afinal de contas, as esferas


arquitetônicas e suas representações na cidade coexistem em meio a múltiplos platôs, de
estratificação variada, de agenciamento de diversas forças – totalidades segmentarias.67
E é nesse campo que são construídas as subjetividades do indivíduo e seus processos de
subjetivação.

Que processos se desenrolam em sua consciência com o choque do inusitado? Como


se operam as modificações de um modo de pensamento, de uma aptidão para
apreender o mundo circundante em plena mutação? Como mudar as representações
desse mundo exterior, ele mesmo em processo de mudança? (...) Estamos diante de
uma escolha ética crucial: ou se objetiva, se reifica, se cientificiza a subjetividade ou,
ao contrário, tenta se apreendê-la em sua dimensão de criatividade processual.
(GUATTARI, 1992, p.22 e 24).

Fluid Vehicle – ponto de ônibus em Roterdã (2003) executado em EPS (espuma de


poliuretano expandido) e revestido em poliéster, projetado pelo NIO Architecten. À direita, o
pavilhão de exposições da BMW – The Bubble (1999), desenhado por Bernhard Franken
através de um processo digital de controle numérico (CNC) baseado na forma dinâmica de
duas gotas d´água. Fonte: www.nio.nl; www.franken-architekten.de

Era pós-mídia, ambientes virtuais, novas tecnologias e processos de


construção em arquitetura - até onde vai o espaço da informação?

Royal Melbourne Institute of Technology. Tom Kovac Architecture


Fonte: LA BIENNALE DI VENEZIA (2002)

67
Em oposição à uma totalidade unificadora. “Essa noção diz respeito a conjuntos de ‘Totalidades’ que se
consideram e onde coexistem multiplicidades de elementos heterogêneos que se relacionam, se conectam, se
sobrepõem, se contaminam, mantêm entre eles zonas de vizinhança, temporalidades diferentes, entre outras
modalidades de relacionamento. Elementos esses que apenas coexistem em seus dinâmicos relacionamentos e
conexões, num processo de Devir-outro, pois, eles não se encaixam como uma Totalidade clássica e moderna do
Todo e de suas partes, à guisa de um quebra-cabeça. Nas três formas de pensar e criar, por exemplo, ocorre
justamente essa coexistência, ou seja, a filosofia e seus conceitos, a ciência e suas funções e a arte com suas
percepções e afetos, constituem, também, uma Totalidade segmentaria. Elas coexistem, se cruzam, se
entrelaçam e fazem do pensamento uma Heterogênese”. In: MAGNAVITA (2007).
92

Para Baudrillard (1992, p.13), há uma sucessão de encadeamento maquínico em todos


os seus processos, seja na programação infinita sem organização simbólica, sem um
objetivo transcendente, ou na pura promiscuidade, que é também das redes e dos
circuitos integrados. Um lugar da metástase, onde a proliferação de uma sociedade
clônica prima pelo máximo de reprodução68, engendradas por pequenas máquinas
celibatárias. Um levante de modelos de representação é estereotipado e elevado àquilo
que esse autor denomina de grau Xerox, onde tudo se reproduz em larga escala e em
velocidades absurdas.

Se os homens sonham com máquinas originais e gerais é porque descrêem da


própria originalidade ou porque preferem desfazer-se dela e sentir prazer através das
máquinas. Porque as máquinas oferecem o espetáculo das idéias, e os homens, ao
manipulá-las, entregam-se mais ao espetáculo das idéias do que às próprias idéias.
(BAUDRILLARD, 1992, p.59)

Ou, talvez como preconizava Michel Foucault (1999), referindo-se à introdução da


causalidade como categoria na produção dos acontecimentos, já que até a produção do
discurso encontra-se controlada, selecionada, organizada e re-distribuída. Pensar sobre
as relações do acaso... e, sobretudo, “questionar nossa vontade de verdade; restituir ao
discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante”.

O arquiteto Peter Eisenman (1984, in NESBITT, 2006, p.233) fala sobre a influência de
“três ficções” que, de certa forma, doutrinaram o universo da arquitetura: a
representação, a razão e a história. Essas categorias persistiram durante cinco séculos
(do século XV ao XX) e são identificadas por Eisenman como manifestações de
continuidade de um pensamento arquitetônico clássico – “a representação devia
materializar a idéia de significado; a razão devia codificar a idéia de verdade; a história
devia resgatar a idéia de eternidade a partir da idéia de mudança”. Para ele, a
arquitetura permaneceu, nesse período, um modo de representação e, justamente, a
distinção estabelecida por Michel Foucault entre o clássico e o moderno, não foi
adequadamente formulada na arquitetura. O que Eisenman tem questionado em muitos
dos seus escritos é exatamente uma certa soberania da linguagem clássica na produção
da arquitetura, a exemplo de conceitos ou princípios predominantes como origem, fim e
processo de composição.

68
“Na época da liberação sexual, a palavra de ordem foi: ‘o máximo de sexualidade com o mínimo de
reprodução’. Hoje, o sonho de uma sociedade clônica seria o inverso: o máximo de reprodução com o mínimo
possível de sexo” (BAUDRILLARD, 1992, p.13). As novas tecnologias reprodutivas conceptivas (NTRc)
possibilitam uma separação muita clara entre sexo e reprodução. No cult movie Blade Runner, da década de
1980, a personagem de Daryl Hanna é um robô criado e programado para dar prazer. Em uma das cenas do
filme, as personagens de Harrison Ford e Sean Young fazem sexo através de um sensor, uma máquina, sem a
necessidade de um contato físico. O livro de David Levy – Robots Unlimited – ainda não publicado no Brasil,
trás inúmeras considerações da vida na era virtual, uma delas bastante visionária: a possibilidade de procriação
entre humanos e robôs.
93

Considerando a ficção da representação como a simulação do sentido, uma vez que a


própria arquitetura renascentista é considerada a primeira simulação, uma espécie de
ficção involuntária do objeto, ou seja, simulacros de edificações antigas (representações
de representações) que são reproduzidas a partir de uma arquitetura já dotada de valor,
onde utilizava-se a “mensagem” do passado para verificar o significado do presente,
Eisenman (idem, p.234) coloca que ao final do século XVIII, o “relativismo histórico veio
suplantar o ‘valor nominal’ da linguagem como representação, e essa nova visão da
história estimulou a busca de certeza, de origens ao mesmo tempo histórica e lógicas, de
verdade e de comprovação, e de objetivos”. A arquitetura moderna ao propor um
rompimento com esse tipo de representação, postulando uma arquitetura corporificada
na sua própria função e na racionalidade enquanto processos de composição, sem
ornamentos e devaneios formais (a forma segue a função), reduz a produção da
arquitetura em caráter da representação da própria realidade. É como se os objetivos
funcionais substituíssem as ordens de uma composição clássica e essa representação do
realismo é considerada por Eisenman como uma ficção análoga ao simulacro clássico na
representação renascentista. Ou melhor, uma representação que remete muito mais ao
seu próprio significado do que a mensagem de um significado anterior. O funcionalismo,
então, é também considerado uma solução estilística (alguns autores até consideram as
bases da arquitetura moderna enquanto uma metodologia de projeto) só que balizada
pelo tecnicismo, pelo positivismo e, naturalmente, pelo viés científico, aquilo que
Eisenman chama de “simulação de eficiência”. Um signo se repete, se reproduz, se
simula, parafraseando Baudrillard, chegando ao momento em que não sabemos mais o
que é realidade, o que é ficção, o que é simulação e eis que surge uma pequena pedrinha
no caminho: em que ponto a representação perde seu caráter de significação e passa a
ser simulação?

Sociedade de controle e o princípio da indeterminação

Muitos dos paradigmas da modernidade ainda se sustentam na filosofia de Descartes e


na física de Newton: racionalismo e determinismo. Para Descartes, o universo material
era uma máquina e não havia um propósito, seja vida ou espiritualidade, na matéria; a
natureza em Descartes é vista de acordo com suas leis mecânicas e o mundo material é
explicado em função de sua organização e do movimento de suas partes. (CAPRA, 1982,
p.56) A própria física, antes da teoria da relatividade, esteve muito vinculada à mecânica
newtoniana e ao eletromagnetismo de Maxwell. Albert Einstein irá reformular o conceito
físico do tempo e do espaço – a descrição de fenômenos, que envolvam velocidades
próximas a velocidade da luz, recorre a estruturas relativísticas na qual o tempo é
incorporado a três coordenadas espaciais, fazendo dele uma quarta coordenada a ser
94

especificada em relação a um observador (Idem, 1982, p.83).69 No entanto, a física


quântica nos diz que não é possível separar cartesianamente, por exemplo, a natureza e
a informação que se tem sobre ela. É como se existisse uma conexão entre todas as
coisas, entre consciência e realidade. O jazz, por exemplo, seria uma expressão humana
quântica, pois os músicos improvisam estratos melódicos com seus instrumentos, dentro
de regras harmônicas, mas não se sabe exatamente a intensidade e o resultado da
improvisação. O físico alemão, Werner Heisenberg, estabeleceu o princípio da
indeterminação ou princípio de incerteza, que consiste em expressar as limitações
dos conceitos clássicos da física a partir de experimentos relativamente precisos
aplicados aos fenômenos atômicos, onde, por exemplo, se pode conhecer a posição exata
de uma partícula ou a sua velocidade, mas não as duas coisas ao mesmo tempo.
Impossível saber onde se encontra exatamente um elétron. Os alicerces clássicos da
física, então, começaram a se mover. O mundo, então, segundo Heisenberg, apresenta-
se como um complicado tecido de eventos, nas quais conexões de diferentes espécies se
alternam, se sobrepõem ou se combinam e, desse modo, determinam uma outra
contextura.

Mas, porque estamos falando sobre física? Porque, com o desenvolvimento desse
princípio, abrem-se várias reflexões sobre a forma como vemos o mundo e essas
relações marcam os limites da imaginação humana no mundo atômico. A noção de
partes, por exemplo, se dissipa. As chamadas partes de um universo e suas partículas
subatômicas, já não podem ser compreendidas enquanto elementos isolados e
codificados, mas a partir de suas inter-relações. Não podemos prever acontecimentos
com precisão, pragmaticamente. Isso não quer dizer que não podemos criar utopias ou
planejar o futuro, muito pelo contrário, é fundamental fomentar sonhos, alçar maiores
vôos sem limites ou repressões. Essa riqueza de criação e de exercício intelectual –
pensar o mundo – também é um dos catalisadores do próprio processo de
70
desterritorialização frente às vertentes contemporâneas cada vez mais mutantes.
Grandes projetos paradigmáticos da história da arquitetura, por exemplo, nunca foram
construídos (Carceri d´Invenzione – Piranesi / Monumento à Terceira Internacional –
Tatlin / Cenotáfio a Newton – Boullée / As cidades dinâmicas imaginadas pelo grupo
Archigram / os experimentos dos Futuristas / etc), mas influenciaram várias gerações de
arquitetos, não pela materialização, mas pelos pensamentos que as originaram e pelo
caráter de transgressão. Porém, convivemos com a imprevisibilidade; engendramos

69
O tempo em Einstein é físico, e esse ponto de vista foi severamente debatido por outros filósofos, a saber,
Bergson. Ver Merleau-Ponty – “Einstein et la crise de la raison”, como apontado por Alberto Tassinari (2006).
70
“A função de desterritorialização: D é um movimento pelo qual se abandona o território. É a operação da linha
de fuga. (...) a D nunca é simples, mas sempre múltipla e composta: não apenas porque participa a um só tempo
de formas diversas, mas porque faz convergirem velocidades e movimentos distintos, segundo os quais se
assinala a tal ou qual momento um ‘desterritorializado’ e um ‘desterritorializante”. (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p.224 e 225).
95

possibilidades de mudanças, simultaneidades, instabilidades, mas nunca certezas. Frente


a um mundo de comportamentos díspares, nem mesmo no interior de um só saber os
desentendimentos se tranqüilizam (TASSINARI, 2006); “(...) não há mais situações
estáveis ou permanências que nos interessem, mas sim evoluções, crises e
71
instabilidades” (PRIGOGINE; STENGERS, 1979, apud FRÓIS, 2004, p.6).

O russo Ilya Prigogine (Prêmio Nobel de Química – 1977) coloca que a ciência moderna
não deveria negar a complexidade e o devir do mundo em prol de um mundo tutelado
por leis simplistas e imutáveis. Mais do que nunca, tanto a física, quanto a matemática e
as demais ciências consideradas “exatas” estão muito próximas das ciências humanas.
Ou seja, essa nova situação pede um maior diálogo experimental entre os diversos
campos do saber, em contra-posição a um domínio instrumental científico balizado por
visões mecanicistas, a partir de pontes de interconexão com uma visão múltipla acerca
de inúmeros aspectos da vida contemporânea, abarcando diversas áreas do
conhecimento.

Metropolitan Atlanta Rapid – Transit Authority.


Estudos de fluxos na cidade e nos meios de transporte-comunicação.
Fonte: www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp244.asp

No mundo contemporâneo, as distâncias ficaram “mais curtas” com a implementação do


transporte aéreo, o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, o uso mais
contínuo da internet, os processos de virtualidade e a introdução do GPS. O território
opera por outras lógicas, desencadeando outros tipos de “esqueletos estruturais” muito
mais relacionado às dinâmicas efêmeras, mutantes e mais velozes, gerando novas
formas de concentração e de sucessão relacionadas à disjunção entre espaço e
tempo, tanto em nossos ambientes construídos como na reorganização das populações
nas cidades. As noções de dimensão e proximidade não ficam mais restritas somente ao
espaço físico e a cidade acaba sofrendo severos efeitos de uma economia multinacional
gerando uma outra “reorganização urbana” em todas as sua esferas - novas formas de

71
Talvez o termo “evolução” tenha uma conotação deveras positivista, no sentido de passar de um estágio
inferior para outro superior; preferimos comungar com uma espécie de evolução a-paralela, não linear, mais
próxima do termo mudança, transformação.
96

circulação, novos fluxos, novas conexões de fluidez e mobilidade, novas fronteiras.


(VIRILIO, 1993).

Segundo o antropólogo Massimo Canevacci (2005), na metrópole comunicativa e


imaterial difunde-se o consumo, a cultura, os estilos, o híbrido, a montagem...
Generation X – excessivo, para-normal, extraterrestre, alheio, pornô, extasy, contra,
excess... o X é um múltiplo sem raízes, uma espécie de ideograma que acaba
incorporando o timbre sonoro do irregular, do interminável e do eXtremo.72 O capitalismo
é informacional, operando em redes e na dispersão. O marketing é um dos instrumentos
de controle social, a comunicação é instantânea e o poder é difuso, ilimitado e veloz. Na
verdade, as inúmeras formas de poder e micro-poderes são mais sofisticadas e regulam
os elementos imateriais da sociedade: informação, conhecimento e comunicação. O
controle? O controle é generalizado e multilateral; o consumo é o novo
73
fundamentalismo. As empresas controlam os clientes. As ONGs tentam controlar o
governo e as empresas, embora nem sempre a guerrilha de certos grupos ou denúncias
das mais diversas explorações, seja do trabalho infantil ou de verdadeiras devastações
ambientais, consegue obter êxito frente às grandes corporações - os Estados Unidos
ainda continuam poluindo o planeta. Mesmo assim, os governos tentam controlar os
cidadãos e alguns cidadãos tentam controlar a si mesmos, pois “precisam estar atentos
ao que fazem”.

Mapa da atividade de celulares em Roma


durante um show da cantora Madonna.
Fonte: www.imago-urbis.blogspot.com

72
Ver demais conceituações correlacionadas em CANEVACCI (2005). Culturas eXtremas: mutações juvenis
nos corpos das metrópoles.
73
Sobre consumismo, competitividade, relações de poder imposto pelas grandes corporações frente aos diversos
“espaços políticos” da cidade e reflexões acerca das forças atuantes nesse processo denominado, pelo próprio
Milton Santos, de processo "globalitário", tendo o território e a sociedade como eixos norteadores da formulação
do pensamento e do exercício da crítica, ver: SANTOS (2000). Por uma outra globalização: do pensamento
único à consciência universal.
97

São nas novas tecnologias e nos sistemas de comunicação que se deve procurar os
sintomas que irão indicar os caminhos do urbanismo como modo de vida (WIRTH, 1938;
VELHO, 1976) - em algumas das cidades do primeiro mundo, os níveis tecnológicos de
informação e comunicação e participação da comunidade na administração municipal
fazem com que elas sejam denominadas “cidades virtuais”, a exemplo de Amsterdã,
Bolonha, entre outras. A sociedade do controle opera assim: em curto prazo, em alta
rotação, continuamente e ilimitadamente... Quando nos cadastramos na Internet, por
exemplo, não temos uma identidade, mas um perfil. Hoje, o rastreamento das
informações já é possível, assim como a construção de padrões e associações entre
dados. Segundo o professor Rogério da Costa (2006), da PUC-SP, o reconhecimento de
padrões está diretamente ligado à mudança nos métodos de controle das ações
individuais. Hoje, somos humanamente definidos como membros de múltiplas redes.
Somos reconhecidos pelo CPF. Operamos através de infinitas senhas. Só nos falta ser
introduzido um chip de localização e de reconhecimento, tal qual nas mercadorias
expostas no supermercado. Nos códigos de barra estão inscritos os nomes e
sobrenomes da mercadoria; individualiza o produto, mas ao mesmo tempo guarda
inúmeras informações.

Hoje, sabe-se, que as sociedades de controle estão substituindo as sociedades


disciplinares. Nas sociedades disciplinares o enclausuramento se faz em espaços
nitidamente fechados, a exemplo da fábrica, da prisão, do hospício, através de sistemas
de ordenação do tempo de trabalho. A esses processos de confinamento Foucault chama
de moldagem, onde um molde fixo poderia ser replicado em diversas formas sociais. Na
sociedade disciplinar, a organização das informações é vertical e hierárquica; um sistema
panóptico de constante observação – “o olho que tudo vê”.

Cena do filme Blade Runner, de Ridley Scott.

Nas sociedades de controle a vigilância não se faz mais pela regulação dos passos das
pessoas, mas pela interceptação de mensagens, por redes e trânsito de comunicações,
por estratégias muitas vezes invisíveis, pertencentes ao espaço informacional (são uma
modulação) - aquilo que Deleuze (1992, p.224) chama de coleira eletrônica e que se
propaga aos indivíduos por códigos. Novas fronteiras e zonas autônomas se estabelecem
sem uma ordenação precisa e a velocidade permeia inúmeros acontecimentos.
98

O poder, por exemplo, não se encontra mais concentrado. Muitas vezes, ele nem tem
uma cara ou um representante. Os poderes se escondem em corporações, em grupos ou
disseminado nas redes, quase não localizável. A vigilância agora é eletrônica e
estabelecida por uma modulação contínua, a exemplo dos sistemas de controle por
câmeras. Se antes, em tempos disciplinares, o indivíduo era localizado por seu endereço
postal, por uma residência fixa atrelada a um espaço físico, isso hoje em dia pouco
interessa. Um indivíduo é reconhecido por sua inscrição em uma multiplicidade de redes
simultâneas e essa condição não está restrita ao mundo da web ou da internet, mas
também às redes sócio-técnicas, como a própria conta de luz, de telefone ou demais
agências de comunicação. É possível acessar inúmeros serviços de um ponto fixo sem a
necessidade de um deslocamento.

Estamos em meio a uma nova dinâmica, mutável e volátil. Talvez, como aponta Deleuze,
temos que criar vacúolos de não-comunicação, interruptores e propor pequenos
acontecimentos que escapem a esse controle, engendrando novos espaços-tempos.
Pierre Lévy defende o acesso livre à internet como uma forma de resistência ao poder –
são as guerrilhas virtuais. Muitos trabalhos expressivos (seja de escritores, músicos ou
até mesmo anônimos) que não tem espaço na mídia tradicional utilizam a internet como
meio de divulgação e atingem públicos cada vez maiores. É o caso dos sites de
relacionamento como o Orkut, a inserção de vídeos no youtube e, mais recentemente, o
myspace, uma rede estendida onde músicos do mundo inteiro têm a possibilidade de
trocar informações, se comunicar e disponibilizar suas músicas livremente. Ações como
essas, em especial a veiculação gratuita de músicas na internet e até mesmo a pirataria,
acabaram quebrando a política das grandes gravadoras e do mercado fonográfico
tradicional. O universo da cibercultura, segundo Lévy, leva a co-presença das mensagens
de volta ao seu contexto como ocorria nas sociedades orais, possibilitando uma maior
interconexão dos meios em que são produzidas e recebidas. As conversas pelo MSN, por
exemplo, acontecem em tempo real através da escrita imediata nos dois sentidos.

O crescimento do ciberespaço resulta de um movimento internacional de jovens ávidos


para experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquela que as
mídias clássicas nos propõem. (LÉVY, 1999, p.11).

Se por um lado, os contatos entre os indivíduos se proliferam indiscriminadamente em


meio a exacerbação de links, janelas e sistemas de informação cada vez mais virótico,
por outro, o planeta está inchando do ponto de vista demográfico. São mais de seis
bilhões e meio de criaturas na Terra, o que tem levado a muitos países investirem no
controle da natalidade. Na China, por exemplo, qualquer casal é terminantemente
proibido de ter mais de um filho. Em sociedades com grandes problemas infra-
estruturais, como a nossa, enfrentamos uma espécie de explosão territorial oriunda de
99

um processo de urbanização corporativa (SANTOS, 1993), onde guetos e favelas tendem


a crescer vertiginosamente.74

A ação do poder na sociedade de controle não se restringe simplesmente à contenção


das massas. Se nos reportarmos aos conflitos políticos e sociais engendrados,
principalmente pela juventude (as mobilizações de maio de 68, por exemplo), nas
décadas de 1960 e 1970, tais ações constituíram grandes concentrações de poder
enquanto espaço de reivindicação. Hoje, os conflitos de classe não tendem à
universalidade ou à generalização de articulação de outrora, eles são muito mais
caracterizados pelo imaterial, pela irregularidade, por diferentes formas de fazer política.
Formas de política que se alinham mais ao campo da micropolítica do cotidiano presente,
inclusive, em diferentes movimentos sociais; formas de luta que acontecem em
momentos e situações diversas. Revoluções moleculares que não operam na totalidade,
mas, de uma maneira ou outra, tem o poder de afetar as esferas da macropolítica.

Foucault fala em alguns grupos considerados minoritários, como as mulheres, os


prisioneiros, os homossexuais, os negros, enfim, que desde os anos 1970 iniciaram lutas
específicas contra um particular tipo de coerção. (FOUCAULT; DELEUZE, 2006, p.237)
Embora os embates de grupos minoritários sejam focos fundamentais de resistência,
uma minoria ou uma maioria não se distinguem pelo número. A maioria se define por um
modelo ao passo que uma minoria não opera por um modelo, mas por um devir, um
processo (DELEUZE, 1992a, p.214). Essa questão é muito importante para a
compreensão das novas formas de pensar, pois uma radical força criadora tem sua
potência de expressão no momento em que consegue se desgarrar de qualquer
possibilidade de agenciamento em modulação. A grande massa, o povo, cria por seus
próprios meios, embora, mesmo que queira alcançar um poder majoritário ou criar para
si seus próprios modelos, tal necessidade muitas vezes está em relação com um
inevitável processo de sobrevivência (Idem, p.216).

O arquiteto contemporâneo, ao tentar provocar novos acontecimentos em suas próprias


ações projetuais, ao se solidarizar aos pequenos movimentos “minoritários”, ao exercer
suas práticas em contraposição aos establishments corporativistas, estaria tendo um
posicionamento de resistência ao controle?75 É algo, apenas, para se refletir. Afinal de
contas, os processos de projeto, seja em qual escala for, não se desvinculam dessas

74
De acordo com os últimos índices noticiados pela revista Ciência e Vida, edição especial – Sociologia: As
Cidades e a Sociedade - 36,6% da população urbana brasileira é “favelada” e isso corresponde a 51,7 milhões de
pessoas. Na Argentina esse percentual é de 33,1% (11 milhões de pessoas). Na África esses índices são
aterrorizantes: 79,2% da população urbana (41,6 milhões) da Nigéria estão assentadas em favelas, só na Etiópia
são 99,4% de favelados. Tanzânia (92,1%), Sudão (85,7%), Bangladesh (84,7%) e Paquistão (73,6%) são
alguns dos países que explodiram em termos de ocupação habitacional urbana em áreas de risco, sem infra-
estrutura adequada.
75
Ver Deleuze (1992a, p.219-226), capítulo: Post-Scriptum – Sobre as Sociedades de Controle.
100

questões. São traços e costuras nem sempre tão visíveis e, muitas vezes,
paradoxalmente tão abstratos, mas que fazem parte daquilo que alguns autores chamam
de conflito real. Como sublima Tschumi (1980, in NESBITT, 2006, p.175):

A confusão atual torna-se clara tão logo se distingue, em meio às bienais de Veneza
e Paris, nas publicações de massa ou em outras celebrações públicas do debate
arquitetônico, uma disputa internacional entre essa visão estreita da história da
arquitetura e as pesquisas acerca da natureza e definição da disciplina. O conflito
não é mera dialética, mas um conflito real que corresponde, no plano teórico, a
batalhas práticas e cotidianas que se travam no interior dos novos mercados de
trivialidades arquitetônicas, dos velhos establishments corporativos e da ambiciosa
intelectualidade universitária.

Se a cidade tem lá suas próprias defesas e máquinas de guerra, o que importa é que
esse “novo homem” está aprendendo a pensar e, quem sabe, se re-singularizar,
afirmando uma nova presença e poder na rua; cheio de idéias e desejos (BERMAN, 1986,
p.217). Ele já não se curva mais ao controle de uma autocracia de castas que tenta a
todo custo expulsá-lo da rua e empurrá-lo novamente ao subterrâneo. Nem poderia se
render, até porque a miséria implementada pelo capitalismo ao longo da história, no qual
¾ da população mundial está pobre demais para a dívida e numerosa demais para o
confinamento (a situação do homem atual não é mais sua condição de confinado, mas de
endividado), já está gerando explosões nos guetos e favelas e dissipação de fronteiras –
questões que o “controle” terá que enfrentar (DELEUZE, 1992a, p.224). É a tal revolução
gerada de “baixo para cima”, retratada por Milton Santos na análise do processo de
globalização.
101

CAPÍTULO III CONTAMINAÇÃO

Contaminação respectiva de todas as categorias, substituição de uma esfera


por outra, confusão dos gêneros (...) Tudo está afetado pelo coeficiente
esportivo da excelência, de esforço, de recorde e de auto-superação infantil
(...) Tudo é sexual. Tudo é político. Tudo é estético. Simultaneamente (...) Ao
mesmo tempo, tudo se estetiza: a política se estetiza no espetáculo, o sexo na
publicidade e na pornografia, o conjunto das atividades naquilo que se
convencionou chamar cultura, espécie de semiologização midiática e
publicitária que invade tudo – o grau xerox da cultura (...) Fala-se de
desmaterialização da arte, com a arte minimal, arte conceptual, arte efêmera,
antiarte, toda uma estética da transparência, do desaparecimento e da
desencarnação, mas na realidade é a estética que se materializou por toda a
parte em uma forma operacional.

Jean Baudrillard
102

CAPÍTULO III – CONTAMINAÇÃO

László Moholy-Nagy (1895-1946) – pintor, escultor e artista experimental húngaro – foi


professor da Bauhaus no período de 1923 a 1928, desenvolvendo atividades artísticas
que transitavam entre o cinema, o teatro, o desenho industrial e publicitário, a
fotografia, a tipografia, a pintura e a escultura. Naturalmente, suas experimentações se
alinhavam substancialmente com o cerne ideológico dessa escola alemã, como imaginava
Walter Gropius: “Formaremos uma escola sem separação de gêneros que criam barreiras entre o
artesão e o artista. Conceberemos uma arquitetura nova, a arquitetura do futuro, em que a
escultura, a pintura e a arquitetura formarão um só conjunto”. Embora, posteriormente, Sibyl

Moholy-Nagy (apud TAFURI, 1979, p.33), mulher de László, tenha rotulado Gropius como
o “celebrado feiticeiro do funcionalismo internacional” e tantas outras críticas tenham
surgido em relação à normalização e sistematização em transformar os impulsos
supostamente revolucionários em processos metodológicos76 a partir de uma organização
estética coletiva por meio do sistema educacional proposto pela Bauhaus, os efeitos
contaminadores das pesquisas visuais cinéticas77 vislumbradas por Moholy-Nagy jamais
tiveram abrigo em concepções padronizadas. Suas críticas ao homem setorizado e ao
especialista aparecem em alto e bom som quando da publicação do texto “Do material à
arquitetura”, em 1928, fruto de seus experimentos junto aos alunos da Bauhaus. Para
ele, quando o indivíduo se ocupa de apenas uma profissão ou ofício, deixa inutilizadas
todas as suas outras capacidades (MOHOLY-NAGY, 2005, p.10). Em seus escritos e
obras, podemos perceber que a arte está em relação com inúmeras manifestações de
cultura, tal qual já preconizavam os expressionistas europeus.

Segundo Argan (1993, p.58) o expressionismo alemão é o primeiro movimento que


envolve na mesma ação a arquitetura, a escultura, a pintura, a literatura, a música, o
teatro e o cinema. Tais alinhamentos e interconexões artísticas apontam para
contaminações que estão muito além do caráter formal ou ideal da obra de arte – as
sociedades viram-se esgotadas pelo mecanicismo repetitivo do trabalho industrial e os
artistas se uniram politicamente contra todas as formas dogmáticas precedentes, sejam
funcionais, sociais ou políticas. O Novembergruppe, por exemplo, surge em 1918 na
Alemanha, protestando criticamente à experiência destrutiva da guerra e criando nas
suas bases um tempo de reconstrução de uma sociedade em ruínas, onde o processo de
renovação das artes se vincula ao processo revolucionário da própria sociedade, como
veremos mais adiante – a ação desses rebatimentos refletiu em manifestações estéticas

76
A exemplo da redução das técnicas das diversas artes à unidade metodológica do projeto.
77
Moholy é considerado um dos precursores da pesquisa visual-cinética na contemporaneidade. Arte,
movimento, ritmo cinético e as sensações do tempo. O espaço não é pensado como uma entidade geométrica
fechada, mas como uma dimensão da própria vida, aberta e ilimitada. As pesquisas cinéticas sugerem ao fruidor
uma série de movimentos, que determinam uma sucessão de imagens, superfícies de projeção, volumes e
expressões espaciais trabalhadas não apenas com a cor e os diferentes materiais, mas também com a luz.
103

na “arquitetura do expressionismo”, onde criação, experimentação e atitude fizeram front


às “formas” utilitárias da época.

Embora as experimentações de Moholy-Nagy (2005, p.11) não transitassem,


78
necessariamente, nessa militância política tão fervorosa , para ele a arte não deveria
estar subordinada à uma produção em série ou de urgência, ao contrário, qualquer tipo
de arte deveria ser maturada, experimentada, saboreada... nenhuma produção deveria
estar escravizada nas armadilhas agressivas e extorsivas do lucro. Suas buscas sempre
estiveram mais ligadas ao significado ativo do espaço, por meio de sistemas dinâmico-
construtivos que questionassem a lógica do espaço real e as leis da estática; a
manipulação de materiais e construções dinâmicas, que ele próprio denominava
“construtividade vital”, permitia uma brutal densidade entre jogos de forças e tensões
provocando uma série de conexões em movimento, sem nenhuma busca frenética por
alguma suposta solução técnica. Seu interesse passava pela articulação entre o homem,
o material, a força e o espaço.79 A influência suprematista é evidente – o espaço não é
uma realidade objetiva, e sim uma estrutura da consciência. Seus protótipos, modelos e
esculturas cinéticas contribuíram para os processos de se pensar o espaço arquitetônico
enquanto espaço vivido e de incomensurável profundidade.

Capas de livros publicados por


Moholy-Nagy, já como professor da
New Bauhaus em Chicago, baseados
em trabalhos desenvolvidos pelos
seus alunos, incluindo não apenas os
experimentos em pesquisas visuais
cinéticas, mas também as inserções
com fotografia e cinema. Fonte:
www.lcwebdesign.com.br

78
Obviamente que, durante o período que lecionou na Bauhaus, Moholy-Nagy transitou interdisciplinarmente
dentro da própria instituição. Os mestres, artistas e professores viviam em dedicação total à escola, inclusive
moravam em interessantíssimas casas situadas nas vizinhanças do prédio principal em Dessau. Viviam,
dormiam, comiam e respiravam Bauhaus 24 horas por dia. No mais, muitos não viam com bons olhos o dito
mercado de arte que, certamente, poderia ser um meio de comunicação com a sociedade, porém limitava o
campo da arte sem fazer dela um instrumento de formação coletiva e democrática. Mesmo após o fechamento da
escola pelos nazistas, Moholy-Nagy segue para Londres e começa a fazer parte de um grupo construtivista
responsável pela publicação do periódico Circle. Em 1937 vai para Chicago, torna-se o diretor da nova Bauhaus
e funda o Instituto de Design.
79
Aristóteles (apud PANOFSKY, 1994, p.22) nos fala que a matéria e a forma são condições da própria
existência da obra de arte; o fim e o motor não são mais que condições (empíricas) do seu aparecimento. Dante
(De monarchia, II, 2) ainda acrescenta que a arte encontra-se em três níveis: no espírito do artista, no instrumento
que ele utiliza e na matéria que recebe sua forma da arte.
104

Uma multiplicidade de efeitos contaminadores do universo da arquitetura


contemporânea, sejam as demais formas de arte, as informações instantâneas que nos
chegam a todo o tempo ou as mais recentes descobertas tecnológicas que possibilitam
concretizar o maior dos devaneios, nos apontam caminhos que nem sempre comungam
com expressões coletivas de movimentos políticos e artísticos de outrora, que
experimentavam essa, digamos, “interdisciplinaridade”. As consideráveis transformações
ocorridas a partir da década de 1950, na política, na arte, na arquitetura, na ciência, na
genética, na biologia, no comportamento humano, na moda e nas diversas tecnologias,
se convergem para aquilo que Baudrillard chama de “contaminação simultânea de todas
as categorias”. Além da simultaneidade – “tudo ao mesmo tempo agora”, a
desmaterialização e a simulação são as palavras de impacto no momento. Como coloca
Mesquita (2004, p.51), acerca do universo múltiplo da moda e dos modos de vida,
considerações que se estendem a diversos campos do saber: “é somente um ‘des’ em meio
a tantos ‘pós’: despolitização, desestabilização, desestruturação, desconstrução, etc. Tudo agora é
mercadoria, se considerarmos o fato de que a informação é um bem muito mais valorizado do que
muitas coisas palpáveis. Quando pagamos pela roupa da marca X, há o ‘valor do design’ embutido
no preço. O produto ‘contém informação’. Compramos também o discurso sobre a peça”.

A arquitetura contemporânea produzida no mainstream está ligada a um panoptismo pra


lá de transcendente – ela precisa ser vista, presenciada e pensada de todos os ângulos
possíveis e inimagináveis. Seja real ou imaginária, desmaterializada, dissimulada,
excessiva ou espetacular.

Mas nem tudo está sob controle. Como já colocado no primeiro capítulo, há
possibilidades de transformações dessas estruturas molares a partir de várias
plataformas de atuação. As arquiteturas não se constroem no isolamento e podem ser
potencializadas nos seus universos de micro-ações, além de se conectarem numa imensa
rede de fluxos da subjetividade contemporânea. É nesse sentido que a idéia da
contaminação se desenvolve nesse capítulo enquanto estímulo, instigação e curiosidade
de passear por caminhos outros, que escapem aos modelos e convenções e abram
espaço para percepções, muitas vezes, inclassificáveis,80 que contagiam e influenciam
uma multiplicidade de processos e expressões na produção das arquiteturas
contemporâneas.

Produção de arquiteturas, artes e interdisciplinaridade

Segundo Josep Maria Montaner (2002), existe um importante ponto de reflexão ao qual
não podemos fugir: os repertórios utilizáveis na criação de formas na arquitetura estão
intimamente relacionados com as demais artes, as reflexões filosóficas, os paradigmas

80
Ver PRECIOSA (2005).
105

científicos e a contínua transformação da sociedade. Estamos em uma época na qual


praticamente desapareceram as leis compositivas universais frente à dissolução de um
sistema estético, clássico e compositivo baseado em critérios unitários como a ordem, a
simetria, a harmonia, a hierarquia e a representação.

Na visão desse autor, o conceito de forma, pelo fato de ter persistido ao longo de muito
tempo, possui uma enorme ambigüidade e uma grande variedade de significados. Foi
justamente no princípio do séc. XX com as vanguardas abstratas que a forma voltou a
ser entendida como a “essência”, a composição estrutural interna, a estrutura mínima irredutível
constituída por elementos substanciais e básicos. Esta concepção foi fundamentada
81
posteriormente pelas teorias lingüísticas e pelo pensamento estruturalista.

Nesse sentido, as formas sempre transmitem valores éticos, remetem a marcos culturais,
compartilham critérios sociais e se referem a significados. Detrás de cada um dos
conceitos formais básicos, para o autor, existe uma concepção concreta de tempo e uma
idéia definida de sujeito. Montaner exalta a relação com as artes, desde as obras dos
artistas do Renascimento e nas mútuas relações entre pintura e arquitetura para gerar a
perspectiva; entre os compositores musicais e os escritores dos libretos de ópera no
século XIX; entre os novelistas e os roteiristas cinematográficos no século XX; ou nas
obras dos arquitetos contemporâneos que foram ao mesmo tempo pintores, dos músicos
que foram escritores, dos pintores que foram poetas. Dessa maneira, a forma, entendida
pelo autor como único conceito, pode nos servir tanto para “interpretar” a arquitetura,
quanto para relacioná-la com as demais artes, a ciência, a filosofia e a sociedade.82

A relação clássica entre matéria e forma foi superada à medida que a materialização da
forma partia do domínio sobre uma crescente lista de novos materiais: as diferentes
variedades de aço, de alumínio e de ligas metálicas, o concreto armado, o vidro e a
grande variedade de plásticos.

A partir do início do século XX com a eclosão das vanguardas, as experiências artísticas e


arquitetônicas voltaram a ser complementarias. Para Le Corbusier, por exemplo, a
pintura purista foi sempre uma fonte de expressão e experimentação; Alvar Aalto, além
de arquiteto, trabalhou com design de móveis e se dedicou à pintura abstrata. Artistas
como Clorindo Testa, na Argentina, e Juan Navarro Baldeweg, na Espanha, também são
reconhecidos por suas produções, tanto na arquitetura, quanto na pintura.

No entanto, se nos reportamos a um exemplo clássico, a famigerada Biblioteca


Laurenziana, em Firenze – Itália, verificamos que Michelangelo Buonarrotti ao projetar o

81
Tal fundamentação, no entanto, é considerada equivocada por alguns autores. Ver crítica de Guattari (1992,
p.15) à corrente estruturalista; segundo ele, o estruturalismo comete um erro ao reunir tudo o que concerne à
psique sob o significante lingüístico.
82
Verificar a publicação “As formas do século XX”, onde Montaner apresenta uma pesquisa bastante
diversificada, abordando os principais conceitos formais que se estabeleceram na arquitetura do século XX.
106

vestíbulo e a escada de acesso, na primeira metade do século XVI, trabalha um espaço


perspectivo definido plasticamente pelos planos-limites das paredes, provocando uma
ruptura com os paradigmas da época ao transfigurar o espaço arquitetônico.

A sala e o vestíbulo da Biblioteca Laurenziana são o ponto de partida da arquitetura do


Maneirismo, isto é, de uma arquitetura que se desvincula da obrigação de representar
plasticamente o espaço da natureza e não conhece outro espaço a não ser o que a
própria forma, ao determinar-se, determina. (ARGAN, 1999, p.322).

A (de)composição e as novas proporções utilizadas pelo arquiteto vão de encontro às


regras praticadas pelos demais projetistas da sua época. Segundo Argan (idem, p.314),
o resultado dessa obra é o reflexo de um Michelangelo escultor, onde: “(...) a imagem – ou
conceito, idéia – tanto mais adquire forma, ou cresce, quanto mais a pedra – ou a matéria – é
destruída”. Ou seja, não é uma obra concebida com bases projetuais apoiadas apenas no

desenho, e sim no aspecto escultórico, na materialidade e na destruição.

O motivo dramático do pensamento artístico de Michelangelo reside inteiramente


nessa contradição inevitável do criar que é destruir, da individualidade que, ao exaltar-
se, se destrói e se converte em universalidade. (ibidem, p.317)

A produção arquitetônica também transita em dimensões subjetivas e que vão além das
tramas de interpretações, onde a imagem pode atuar enquanto fonte de inspiração e
percepção. A comunicação, inclusive, se coloca como uma das principais interfaces da
arquitetura, ampliando, cada vez mais, as relações e trocas entre o indivíduo e o espaço
arquitetônico.

Nesse sentido, a possibilidade criativa da arquitetura implica que, desde o primeiro


contato do arquiteto com o espaço, se estabeleça uma relação de afetos; por isso, a
presença intrusiva de um traço estético dentro de qualquer terreno já lida com
vontade de poder. Busca-se a imanência criativa, na qual sujeito e objeto (espaço e
arquiteto) são potências em relação. A partir disso, o ato arquitetural se revela como
uma composição de afetos (BARBIERI, 2007).

Muitas são as influências possíveis nas diversas manifestações da arquitetura. A


discussão, por exemplo, das relações entre forma, função ou tipo não estão meramente
ligadas ao plano da abstração. As cidades vêm crescendo de maneira desenfreada desde
o advento da industrialização e a necessidade de sobrevivência de populações nos
centros urbanos tem exigido compatibilizações de natureza funcionais extremamente
complexas para atender essa “clientela de massa”. Como conseqüência, para Eisenman
(1976, in NESBITT, 2006, p.98) a arquitetura e as representações urbanísticas tem se
tornado uma arte cada vez mais social ou programática – “assim, a medida que, em todo o
século XIX e boa parte do século XX, o programa adquiria complexidade, a forma-tipo foi perdendo
importância como objeto realizável e o equilíbrio foi perdendo força enquanto aspecto fundamental
de toda a teoria”.
107

Essa questão leva a impasses. O rigor ou a composição formal, por exemplo, quase que
refém desse funcionalismo, culmina numa espécie de visão idealista da realidade. Não
vamos entrar nessa discussão, entre dimensões técnicas ou criativas no que tange a
complexidade da própria forma arquitetônica, nem cair nas armadilhas que reduzem tais
análises em categorias (arquitetura do conceito, arquitetura da forma, arquitetura da
função, arquitetura disto, arquitetura daquilo, sic), mas apenas ressaltar, de acordo com
as observações de Montaner (2002), uma lacuna na problematização de algumas
reformulações ou re-conceituações de teorias sobre as formas, a partir de algumas
reflexões apontadas pelo próprio autor: a diversidade de repertórios e de agrupamento
das formas; as bases que as regem; as relações éticas e estéticas; as concepções de
tempo, de singularidade, além das teorias científicas, filosóficas e políticas; as relações
com o lugar, o contexto urbano e as concepções construtivas; tipos de formas geradas a
partir do repertório e da personalidade de cada criador.

Pois bem, Tafuri (1979, p.136) já havia alertado sobre essas conexões, constatando uma
certa “insegurança da cultura arquitetônica”. Para ele, o “mito da interdisciplinaridade”
transita numa articulação da disciplina arquitetônica com uma série de campos externos
ou limítrofes às áreas da dita comunicação visual, seja a sociologia, a antropologia, a
economia, a biologia, etc, porém, a análise sobre o usuário, o público, o “receptador” de
tais informações e imagens arquitetônicas, ainda não foi aprofundada no que tange às
relações entre comunicação e comportamento social. A psicologia e a psicanálise, como
já apontadas pelo autor e reverenciadas no capítulo I83, seriam campos imanentes para
esse tipo de reflexão.

Mas, de onde o arquiteto deveria partir? O arquiteto Bernard Tschumi (2004, p.11-15) irá
expor relações muito interessantes entre conceito, contexto e conteúdo. Em seu
processo de reflexão, Tschumi insere no meio desses três elementos inúmeras
estratégias e costuras que passam pela forma, pelo lugar, pela imagem, pela
interpretação, pela idéia, pelo modelo, pela indiferença, pela tática, pela reciprocidade ou
pelo conflito, demonstrando, subjetivamente, que não existe uma força maior ou uma
superioridade entre um elemento ou outro; na verdade, tais elementos estão sempre em
relações e é preciso explorar tais relações, seja pela coexistência, seja pela interação,
seja pela justaposição. São esses conceitos, perceptos e afetos inseridos nos processos e
pensamentos sobre a idéia ou criação (motor de arranque, impulso ou devir), nunca no
começo da maturação criativa ou no fim da produção do objeto arquitetônico, mas
sempre no meio dessa experimentação, que diferenciarão a arquitetura de uma mera
construção (ou edifício). Essa ênfase também se faz por outros vieses estruturantes,

83
Ver “Arquitetura de fronteira – transgressão, limites e crítica”.
108

como o clima, a tecnologia, os materiais e técnicas construtivas, a plástica, o desenho,


condicionantes sociais e culturais, entre outros repertórios de uma dada realidade.

Para irmos um pouco além das imposições ou formatações estruturalistas enquanto


verdades pré-determinadas ou dialéticas da concepção e construção de modelos ou
formatos arquitetônicos inerentes ao modus operandi já institucionalizados, é preciso
tecer relações, onde novas visões e olhares sobre as formas, segundo Montaner, devem
incluir a colaboração de cientistas, pensadores, criadores e críticos de arte, uma vez que
a arquitetura e suas relações com a cidade não se fazem de modo isolado e não estão
aprisionados em uma fórmula dada. Portanto, é preciso experimentar. Percorrer uma
atuação mais coletiva, ultrapassando as limitações dos espaços disponíveis. Não se trata
de síntese entre forma, função, técnica, estrutura ou significados, mas estar no meio
dessas relações. Montar plataformas mais abertas, como um rizoma.

A influência dos movimentos vanguardistas – experimentações, sentidos e


expressões. A sedução russa.

“Eu não procuro, encontro”.


Picasso

Não pretendemos aqui penetrar os universos particulares dos principais movimentos e


vanguardas artísticas do século passado com riqueza de detalhes (já bastante publicada
em outros estudos), inclusive alguns desses grupos em suas manifestações artísticas e
arquitetônicas são citados e referenciados ao longo da dissertação. Porém, nos
instigamos pelo sentido político, social e artístico desses movimentos enquanto força de
ruptura com os sistemas vigentes, pelo seu caráter de recriação e desejo de mudança
coletiva.

Entendemos também que as novas dimensões com relação ao espaço-tempo refletidas


nas arquiteturas e nas cidades contemporâneas podem ser compreendidas e contagiadas
a partir de leituras de expressivas correntes, muitas vezes visionárias, de conexões
artísticas do início do século XX, seja o cubismo, o futurismo ou o expressionismo,
principalmente a produção russa (suprematismo, construtivismo), até as articulações e
mobilizações engendradas por significativos grupos da década de 1960.

Alguns exemplares e experimentos de arquiteturas que transitaram nas ditas


manifestações de vanguarda, inclusive, serão vertentes totalmente marginalizadas ao
longo da tirania imposta pelo international style84 e pelos rígidos padrões
institucionalizados na época. Momento no qual os códigos de uma arquitetura
supostamente “elevada” exprime a coalizão de valores “eruditos” dos detentores do

84
Ver notas 11 e 14 na introdução deste trabalho.
109

poder, aquilo que GRAHAM (1979, in FERREIRA; COTRIM, p.446) comenta como “gosto
do alto escalão do establishment, com valores da profissão arquitetônica como
instituição”.85

Segundo a tese de doutorado do arquiteto paulista Pitanga do Amparo, intitulada “O


Grande Boicote Ocidental”, os principais críticos de arquitetura (Frampton, Joedicke e
Giedion), nunca deram o devido destaque para a influência das vanguardas russas no
ocidente, a exemplo do construtivismo e do suprematismo presente nas obras de
Kasimir Malevich, Ivan Leonidov, Vladimir Tatlin, El Lissitsky, entre outros. Inclusive
Frampton irá se retratar 25 anos após a publicação de “Histórica Crítica da Arquitetura
Moderna”, de 1980, admitindo sua “falha histórica”, ao tomar conhecimento das
pesquisas de Camilla Gray e de Vittorio De Feo, ambas publicadas nos anos 1960, sobre
os experimentos da escola russa e da arquitetura construtivista. Nessa tese, Amparo irá
sustentar que a Bauhaus e o De Stijl holandês foram subprodutos dos Estúdios
Superiores Técnico-Artísticos Vkhutemas, que o Centro George Pompidou e o próprio
Archigram se valem de mecanismos aparentes já apontados pela torre de Tatlin, de
1919, e que a obra pós-soviética de Le Corbusier teria sido diretamente influenciada
pelos projetos do arquiteto russo Ivan Leonidov.86

A “Torre Eiffel Proletária” (1919) de Tatlin e o Pavilhão da Rússia na EXPO Paris (1925), de Melnikov.
Fontes: www.educatorium.com; COLLARES (2005)

Quando observamos o pavilhão da extinta URSS projetado por Konstantin Melnikov


(1890-1974) para a Exposição Internacional de Artes Decorativas de Paris, realizada em
1925, nos deparamos com uma arquitetura deveras impactante para a época, tanto do
ponto de vista estético e formal quanto do ponto de vista tecnológico, abusando das

85
É como se, de acordo com Graham, o Estilo Internacional unificasse os valores de uma classe alta no interesse
de um negócio e ou de um Estado corporativo; uma máquina agenciadora, um código comercial fundido para
atender aos interesses das classes e governos hegemônicos economicamente.
86
Ver entrevista concedida pelo arquiteto Pitanga do Amparo à Haifa Y. Sabbag na Revista Projeto, no133, abril
de 2005, p.64-71, intitulada: “Vanguarda russa – o grande silêncio do ocidente”.
110

fendas em diagonais, dos balanços e das formas geométricas limpas. Segundo Oleg
Shvidkovsky (1971), Melnikov capturou para dentro do pavilhão um largo fluxo de
espaço externo – “sua dinâmica ousada, a franca simplicidade de seus materiais e a
leveza do pavilhão, como também sua rápida montagem, contrastou com a
87
monumentalidade teatral dos pavilhões vizinhos”. É considerada uma espécie de obra
síntese dos aspectos mais progressivos da arquitetura soviética produzidas até aquele
momento.

As primeiras pinturas de
Natalia Goncharova e o
“Amolador de Facas”
(1912) de Kasimir
Malevich – o prenúncio
do cubo-futurismo.
Fontes: www.pco.org.br;
www.pucsp.br

A fenomenal produção russa, antes da ocupação stalinista, se desenvolveu em um


período de intensa efervescência cultural e ideológica. Tudo se inicia em 1870, quando
um excêntrico mecenas e apreciador de arte, Savva Mamontov, começa a reunir em sua
residência os mais variados artistas (arquitetos, compositores, pintores, poetas) que
discordavam da produção tradicional desenvolvida na Academia de Artes de Petesburgo.
Esse grupo era denominado “Os Errantes” e defendiam a produção de uma arte voltada
para o povo. A partir desse período, inúmeros grupos efêmeros e correntes as mais
diversas começam a surgir na União Soviética, até desembocar em um primeiro
movimento mais consolidado – o Raísmo. Entre seus principais representantes e líderes,
estão uma mulher – Natalia Goncharova (1881-1962) – suas experimentações já se
relacionavam com o tema “futurista”, a dinâmica da máquina e a exaltação da
velocidade. Outra corrente deveras importante é o suprematismo empreendido por
Kasimir Malevich (1878-1935), tendo como base primeira o período cubo-futurista
(1911). O construtivismo encabeçado por Vladimir Tatlin (1885-1953) é,
frequentemente, associado a todas as tendências e vanguardas russas, que tiveram no
poeta Maiakovski (1893-1930) seu principal líder, teórico e articulador, além de terem
sido oficialmente sustentadas pelo comissário para instrução (leia-se educação) do
governo de Lênin, Lunacharsky (ARGAN, 1992, p.325).

87
Verificar o texto de Oleg Shvidkovsky, intitulado “Building in the USSR 1917-1932”, disponível em
http://www.worldwhitewall.com/konstantinmelnikov.htm
111

Fotomontagem. Alexander Rodchenko.


Acima, Rodchenko e Stepanova na
Rússia em 1920.
Fonte: www.constructordie.wordpress.com

Kandinsky (1886-1944), Pevsner (1886-1962), Gabo (1890-1977) e Chagall (1887-


1985) também participaram da intensa movimentação na Rússia, seja na organização de
museus e escolas, seja em trabalhos com a comunidade de artistas, embora tenham
fluído consideravelmente na Europa Ocidental. De acordo com Argan (idem, p.329) esses
artistas, assim como Malevich, estavam mais preocupados com a “função espiritual” (o
mundo da não-representação e da não-objetividade) e educativa de suas proposições –
seus instrumentos eram as escolas e os museus – enquanto que, para os construtivistas,
a ação artística deveria ser governamental e acabava se desenvolvendo com mais
intensidade no campo da planificação urbana, do projeto arquitetônico e do desenho
industrial.

Aqui podemos ter uma amostra do sumário proposto por El Lissitsky (1929, apud
GRAHAM, 1979, p.439), com objetivo de socializar e funcionalizar os meios da produção
artística e arquitetônica:

- a negação da arte como um assunto meramente emocional, individualista e romântico;

- trabalho objetivo, empreendido com a esperança silenciosa de que o produto final será
visto como um trabalho de arte;

- trabalho consciente dirigido a uma meta na arquitetura, que vai ter um efeito artístico
conciso com base em critérios objetivo-científicos bem preparados;

* Tal arquitetura vai elevar ativamente o padrão de vida geral.

Embora apresente um certo rigor na sua formulação, isso não se configurava como uma
regra. A arte era realmente vista como um meio de transformação da vida naquela
sociedade. A dita “arte revolucionária” que acontecia de modo efervescente na Rússia se
112

alinhava não somente com os ideais dos artistas, mas com uma busca coletiva que tinha
no seu acontecimento presente a possibilidade de externá-la às ruas, às praças e a
qualquer cidadão – as “chamas do viver” - como apontado pelo manifesto realista-
construtivista de Gabo e Pevsner: “não procuramos consolação nem no passado nem no futuro.
O hoje pertence ao fato, teremos isso em conta ainda amanhã. Deixamos para trás o passado
como um cadáver putrefado. Deixamos o futuro aos profetas. Para nós, tomamos o hoje”. Esse

espírito contagiava inúmeros grupos que se formavam nas escolas, nas oficinas, por
qualquer parte... mesmo nas diferenças de pensamento, a arte coletiva daquele
momento, em especial na arquitetura, era a vida construtiva (mas não utilitária) em
todas as manifestações dos modos de vida!

Fonte: www.pco.org.br Fonte: www.worldwhitewall.com

A poética suprematista de Kasimir Malevich – retângulo preto e triângulo


azul (1915). El Lissitzky: Golpeie os brancos com a cunha vermelha (1920);
Cartaz – “uma arte construtiva que não decora, mas organiza a vida”
(1929); auto-retrato e montagem (1924) – o construtor. Fonte: www.nfc.ca

O multi-artista El Lissitzky (1890-1941) - professor, arquiteto, engenheiro, fotógrafo,


designer, tipógrafo, ilustrador – foi o criador do sistema Proun, influenciado pelos
estudos suprematistas elaborados por Malevich, sobretudo os Planitas. É um dos
arquitetos russos mais difundidos fora de seu país de origem. Outro representante de
expressividade na arquitetura chama-se Ivan Leonidov (1902-1959), estudante da
Vkhutemas. Responsável por projetos de grande maturação espacial e de incrível
genialidade, suas criações envolviam cidades inteiras.

Além da escola soviética Vkhutemas fundada por Kandinsky em 1918, instituição


responsável pela formação de mais de 70 arquitetos fervorosos nesse tipo de arquitetura
de vanguarda, surge durante o governo de Lênin a Associação de Novos Arquitetos –
ASNOVA, muito mais vinculada ao Estado socialista. Em 1919 o grupo UNOVIS (The
Affirmers of the New Art) é formado no Colégio de Arte do Povo, tendo como membros El
113

Lissitsky e Malevich, e em 1921 o INKhUK (Instituto de Cultura Artística) torna-se um


importante centro, também criado por Kandinsky88. Em 1925 é fundada a União de
Arquitetos Contemporâneos (OSA), momento no qual começam a ser incorporados
métodos científicos às práticas arquitetônicas. Após a morte de Lênin e queda de
Lunacharsky, aparece em cena um grupo pró Stalin denominado VOPRA (Associação dos
Arquitetos Proletários - URSS) que começa a criticar os projetos e a arte idealizada dos
movimentos antecessores, muitas vezes denominada equivocadamente de arte burguesa
ou elitizada.

Acima e à esquerda, concurso de projetos


para sede de uma indústria em Moscou
(1934). A direita, desenhos de Ivan Leonidov
ainda como estudante da escola soviética
Vkhutemas.
Fonte: www.utopia.ru

A Vkhutemas continha oito cursos que passaram a funcionar como faculdade: pintura,
escultura, arquitetura, trabalhos em metal, trabalhos em madeira, trabalhos têxteis,
artes gráficas e cerâmica. Até então, as vanguardas eram institucionalizadas nesses
centros, porém permaneciam livres, abertas e democráticas. As informações e a arte
eram, de fato, socializadas. Inclusive, qualquer cidadão que desejasse, poderia estudar
nas escolas artísticas, sem necessitar ter formação específica. O cerne, a base da
educação nessa época na União Soviética perpassava pela produção artística, iniciando-
se nas artes plásticas. Não havia a figura do especialista ou uma separação entre arte e
técnica ou ainda uma ruptura na propagação dos diferentes ofícios89. Tudo se misturava

88
Kandinsky cria, em todo o país, mais de 22 museus voltados apenas para a arte de vanguarda.
89
Embora o rompimento entre arquitetura e engenharia seja um processo iniciado no século XVIII, em função da
industrialização e conseqüente inovação tecnológica no trato dos materiais construtivos. Ver Frampton (2000).
114

e se contaminava. As arquiteturas incorporavam o grafismo, a pintura, o design, a


fotografia e vice-versa.

A prática de concursos públicos e a promoção de processos de trocas entre os estúdios


de arquitetura, inclusive os estrangeiros, era extremamente rica do ponto de vista de
uma cena em constante explosão de idéias. O concurso para o Teatro de Estado de
Jarkov, por exemplo, obteve um alto nível de participação; dos 144 trabalhos inscritos,
100 foram produzidos por escritórios e grupos de arquitetos de fora da União Soviética,
demonstrando que esse país estava totalmente aberto em suas relações com o mundo
externo, principalmente no seu estreitamento com a França e a Alemanha. Inclusive, no
livro de El Lissitsky, “La reconstruccion de la arquitectura em la URSS”, de 1929, há
indicação de uma série de trabalhos desenvolvidos por Bruno Taut e Ernst May no final
da década de 1920, principalmente no campo da urbanística. O concurso para o Palácio
dos Soviets, realizado em 1931, também recebeu um número bastante considerável de
propostas – foram 160 projetos, entre arquitetos russos e estrangeiros como Le
Corbusier, Walter Gropius, August Perret e Erich Mendelsohn. Apesar do projeto vencedor
elaborado pelo arquiteto russo Boris Iofan, representante das tendências acadêmicas
tradicionalistas, corresponder a um retrocesso enquanto expressão arquitetônica90, o
projeto apresentado por Le Corbusier é considerado uma obra-prima do funcionalismo e
um exemplar da influência e expressão do construtivismo russo.

Tsentrosoiuz (1928), Concurso de


Projetos, Moscou. Ivan Leonidov.
Fonte: www.kmtspace.com

Instituto Lênin (1927). Ivan Leonidov. Fonte: www.utopia.ru

90
Sobre essa questão, DE FEO (1979) tece observações nada simpáticas ao projeto de Iofan: “um monumento
ridículo, um enorme bolo de noiva para celebrar o infausto casamento entre o socialismo e o classicismo”.
Embora o concurso para o Palácio dos Soviets seja considerado um momento ímpar na história da arquitetura,
alguns autores relacionam esse feito ao início da decadência do movimento moderno na Rússia. Uma arquitetura
com características revolucionárias e totalmente transgressoras em suas concepções, não poderia corresponder às
expectativas de representação do poder das autoridades políticas da época; segundo Collares (2005), a retórica
do Estado russo nesse período, principalmente após a morte de Lenin e início da ditadura de Stalin, estava ligada
aos modelos classicistas e às arquiteturas do passado. Amparo (2005, p.66-67) destaca esse período, após a
proibição, em abril de 1932, de qualquer experimento de arte cubo-futurista e de todo tipo de expressão
construtivista ou moderna, como o fim da arte de vanguarda e do próprio comunismo. As escolas russas foram
sendo fechadas por decreto e todos foram obrigados a reproduzir aquilo que Amparo chama de “excrescência
nazi-facista, ridículo pastiche da arte neoclássica greco-romana”.
115

Projeto para o Palácio dos Soviets em Moscou (1931). Le Corbusier. Fonte: COLLARES (2005)

Embora as propostas e experimentações russas tenham revolucionado o pensamento


sobre a arquitetura e se configurado como um movimento sem precedentes no século
XX, muitos projetos sequer saíram do papel. Essas vanguardas se desenvolveram mais
intensamente entre 1913 e 1930, período que corresponde à fase de revolução e pós-
revolução russa, portanto a economia estava substancialmente afetada e instável,
inviabilizando a materialização de inúmeras obras arquitetônicas. Algumas,
naturalmente, foram construídas, principalmente as de caráter mais coletivo – clubes de
trabalhadores, garagens, indústrias, centros culturais e habitações, a maioria projetada
por Melnikov. Vale lembrar também que, pelo refinamento e avanço das propostas e
soluções arquitetônicas, extremamente visionárias e por vezes, quase que
“extraterrestres” em suas formulações técnico-artísticas, muitas obras não foram
possíveis de serem concretizadas em função da falta de uma tecnologia apropriada. A
engenharia praticada na União Soviética naquela época não conseguiu acompanhar a
erudição de seus arquitetos.

Kasimir Malevich (Malevitch ou Maliêvitch) é quase um ser mitológico, o pai da abstração


absoluta. Enquanto pintor começou a pesquisar os fenômenos pictóricos em função do
movimento e do peso que eles produziam. Interessou-se substancialmente pelas duas
dimensões da natureza. Em um de seus manuscritos91, ele escreve que sua intenção
nessa pesquisa é estudar o futuro, “construir sobre a base deste saber os edifícios
pictóricos”. Malevich e boa parte dos artistas da vanguarda russa iniciaram seus
trabalhos estudando as obras cubistas de outros artistas ocidentais como Picasso,
Cézanne, Matisse. O universo cubista não apenas transfigurava a realidade, mas
representava uma força de ruptura com a pintura até então produzida no ocidente,
através dos contornos agressivos, de ângulos pronunciados e pela poética geométrica re-
construtiva que irá influenciar as concepções analíticas da própria arquitetura. Segundo
Huchet (2005, p.192), o cubismo propõe uma abertura crítica tanto sobre os formadores
quanto sobre os componentes estruturais dos objetos e dos corpos, desempenhando uma
espécie de modelo analógico voltado à prática projetual. Nesse sentido, esse autor faz

91
Manuscritos datados de março de 1924, encontrado nos arquivos privados de Leningrado. Conferir em
http://www.worldwhitewall.com/kazimirmalevitch.html
116

uma analogia entre o procedimento cubista e a arquitetura, chegando a seguinte


reflexão:

(...) quando nos deparamos com edifícios que tridimensionalizam os procedimentos


analíticos do cubismo, décadas depois, como nos projetos de Frank Gehry, Daniel Libeskind,
entre outros, é como se o cubismo processual do projeto arquitetônico tivesse esperado
sessenta anos para sair da toca. (idem, p.193)

Inúmeros procedimentos cubistas, inclusive a colagem, a introdução de materiais não


pictóricos e a dimensão tridimensional irão servir de motor de arranque para as
pesquisas futuras de Malevich. Sua obra “O amolador de facas”, de 1912, é considerada
um exemplar de uma pequena fase russa que seria chamada de “cubo-futurismo”,
culminando, posteriormente, na poética do suprematismo – “a supremacia do puro
sentimento”. Em 1922 ele publica na Alemanha aquele que seria considerado o
manuscrito suprematista, sob o título: “O mundo da não-objetividade”.

Suprematismo dinâmico (1916)


e o quadrado negro (1915) –
abstração pura. Kasimir Malevich
Fonte: www.ocisco.net

Em seus processos de trabalho, Malevich não se preocupa com a utilidade ou a questão


meramente estética de seus experimentos, embora evoque a força da visualidade
plástica, e defende uma arte livre e independente de finalidades práticas. Seu
pensamento está há anos luz a frente de seu tempo, exaltando fenômenos
incompreensíveis, percebendo e cavando uma posição nova nas artes, “que se engajará na
via liberta próxima da ciência, que entrará em contato com essa última ou seguirá a via nova,
praticando sem interrupção os furos no túnel e no futuro, evitando, assim, o vazio e conteúdo da
crista, que estão na origem da guerra entre o futuro e o passado que se encarrega de cativar este
a fim de dispor sobre esse terreno novo as velhas pequenas colunas clássicas da cultura
ultrapassada, do ponto em movimento. (...) As centenas de milhares de verstas92 percorridas ao
longo dos séculos de movimento da humanidade desejam iluminar seu caminho com as tochas de
Nero. Mas não o será assim, pois haverá a eletricidade e a plenitude luminosa da luz não objetiva”.
(MALEVICH, 1924).

92
Verstas – antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros. Nota do autor.
117

Sobre essa abstração e sentido de não-objetividade, Argan (1992, p.324) reflete que a
transformação proposta por Malevich é radical, sem dúvida; ele é um teórico fenomenal e
está fundamentalmente preocupado com a práxis de um pensamento e com a formação
intelectual das novas gerações que irão construir as bases do socialismo. Mas ao mesmo
tempo, Malevich não está assim tão alinhado com a exaltação ideológica e a propaganda
dos ideais revolucionários, como podemos ver a seguir:

Malevich nega tanto a utilidade social quanto a pura esteticidade da arte; aliás, se a
esteticidade educa ou agrada, ela entra na categoria do necessário ou do útil. Como o
conhecimento da realidade através das coisas é relativo e parcial, é preciso tender ao
conhecimento do mundo como não-objetivo; e, se a arte é meio para a redução do
objeto a não-objetividade, é também o meio para a redução do sujeito a não-
subjetividade. (...) A verdadeira revolução não é a substituição de uma concepção de
um mundo decadente por uma nova concepção: é um mundo destituído de objetos,
noções, passado e futuro, uma transformação radical em que o objeto e o sujeito são
igualmente reduzidos ao ‘grau zero’. (idem, p.324-325)

Arkhitektonics de Malevich (1924-28) e Malevich´s Tektonik (1976-77), Zaha Hadid. Fonte: ZAHA HADID (2002)

De uma forma ou outra essa concepção, o “grau zero”, um mundo “sem objetos”
conceitualmente estruturado, se alinha muito bem com a dita “causa proletária” por que
implica naquilo que Argan (ibidem, p.325) chama de “a não-propriedade das coisas e
noções”. De fato, o espírito da vanguarda só poderia ser simbolizado pelo deserto de
Malevich. Tafuri (179, p.136-137), nesse ponto, levanta algumas considerações
importantes, exatamente nessa diferenciação entre o sentido das vanguardas e o aspecto
do experimentalismo. São muito diferentes. Embora nos dois processos haja inovações e
rupturas consideráveis, na atitude experimental há a proteção de uma sólida rede – “as
suas inovações podem também ser generosamente projetadas para o desconhecido, mas
o trampolim que permite o impulso para o salto está solidamente fixo à terra” (idem,
118

p.137). Nas vanguardas não. A verdadeira vanguarda é totalmente desterritorializada,


não há sequer redes, nada é a priori, seu ato é radical, não há destino – “o naufrágio é
por elas encarado e aceite, desde o início, não só como um perigo, mas como um destino
inelutável, de resto livremente escolhido” (ibidem). O trabalho de Malevich não apenas
desmonta, decompõe ou inova, mas subverte.

Ele propõe novos sistemas espaciais na arte que influenciarão significativamente a


arquitetura – um “devir-espacial das artes visuais” (HUCHET, 2005, p.191). Os planitas,
desenhos que transitam entre a bi-dimensionalidade e a tridimensionalidade, são ao
mesmo tempo pintura e arquitetura. Zaha Hadid investiga essa forma de composição
suprematista e de pensamento arquitetônico em quase todo o processo projetual de seus
trabalhos. Em 1992, o estúdio da arquiteta realizou uma exposição no Museu
Guggenheim, na sede internacional do capitalismo - a cidade de New York -, onde re-
visita seus próprios estudos e desenhos experimentais baseados no construtivismo russo
e no Arkhitektonics de Malevich - The Great Utopia.93

Instalação suspensa de Vladimir Tatlin reconstruída em 1965 em exposição no MAM de Paris. Prounenraum
(1923) – instalação tridimensional de El Lissitsky reconstruída em 1971. Explosões de Zaha Hadid - desenhos
apresentados na exposição The Great Utopia (1992), no MOMA de NY, baseados no suprematismo russo.
Fonte: www.tate.org.uk / ZAHA HADID (2002)

El (Eleazar Markovich) Lissitsky e Vladimir Tatlin é que, de fato, injetaram a poética


suprematista de Malevich na arquitetura. Para Tatlin, que era artista plástico, a
intervenção arquitetônica ou urbanística precisava de uma ação política e deveria estar a
serviço da revolução, ser fabricada para o povo. A pintura e a escultura, por exemplo,
são entendidas enquanto construção e não mera representação, portanto ambas
expressões devem ter os mesmos procedimentos técnicos da arquitetura, operando,
simultaneamente, na esfera visual e funcional (Argan, 1992, 326). A arte deveria ser
informativa, um veículo de comunicações entre as pessoas. Nesse sentido, sua
famigerada torre vem bem a propósito - o Monumento à Terceira Internacional, de 1919,
consolida toda a exaltação do construtivismo russo. Sobre a torre, El Lissitsky (apud

93
Conferir em ZAHA HADID (2002, p.80).
119

AMPARO, 2005, p.66) faz o seguinte comentário: “é uma das primeiras tentativas de
criar uma síntese entre o técnico e o artístico. A tentativa de toda nova arquitetura de
dissolver o volume e criar uma penetração espacial entre externo e interno encontra, já
aqui, sua expressão. Aqui foi criado o verdadeiramente novo para um conteúdo novo”.
Uma construção em diagonal e espiralada em estrutura de treliça metálica (pensada para
ter mais de 600 metros de altura), que brinca com a interpenetração espacial e o senso
de gravidade. Os construtivistas se preocupavam com o real instrumental, desde a
materialidade espacial de Tatlin às instalações de ferro suspensas de Rodchenko,
passando pelas experimentações cinéticas de Gabo e Pevsner que, inclusive, irão
influenciar a produção do atelier de Moholy-Nagy na Bauhaus.

Acima, uma série de esculturas cinéticas


de Gabo e Pevsner.
Fonte: www.desarte.wordpress.com
Ao lado, figurinos de Aleksandra
Ekster: estudos em composição não
figurativa (1916); dançarina espanhola
(1919); traje masculino (1921); projeto
de cenografia para a peça Fausto (1927)
e estudos de iluminação e cenário teatral
(1930). Fonte: www.zn.ua

El Lissitisky, por exemplo, criou o suprematismo tridimensional – um avançado sistema


de composição espacial chamado Proun – elementos de intensa movimentação
provocados por panos de balanço e tensão estrutural de seus corpos, que hora repousam
sobre alicerces, hora tendem ao campo gravitacional, com possibilidades de simultâneos
eixos de projeção. Tais desafios estruturais e gravitacionais podem ser apreciados no
projeto para a Tribuna Lênin (1920) ou nos Cloudprops na Praça Nikitsky (1925), uma
120

estética de estimado rigor formal, mas de incrível ligação com a tecnologia, além de ser
bastante avançada para a época. O projeto de Ivan Leonidov para o Instituto Lênin
(1927), por exemplo, é quase de tirar o fôlego, pela ousadia estrutural e formal. Essa
filosofia plástica contaminava também as artes gráficas, o design, o mobiliário, a moda,
entre outras manifestações, como podemos verificar nos figurinos desenhados por
Aleksandra Ekster (KOPP, 1985).

Tribuna Lênin (1920) de Tatlin e Cloudprops


na Praça Nikitsky (1925) de El Lissitzky.
Fonte: www.stroganoffdesign.ru
Abaixo, herança “proun” na obra de Zaha
Hadid – estação de esqui na Áustria (2002).
Fonte: EL CROQUIS (2004)

A semântica da interpenetração dos sólidos e dos volumes, os estudos e desenhos


axonométricos, o desmantelamento do objeto arquitetural, a revelação da estrutura
interna do edifício na representação de suas plantas gráficas (cortes, elevações,
perspectivas) permitindo uma visão aberta e quase que lacerada da arquitetura, a fluidez
de suas linhas de superfícies ou a fragmentação dos planos, são fenômenos
intrinsecamente trabalhados nos projetos das vanguardas russas e que, muitos
arquitetos na contemporaneidade nem sequer incorporaram em seus processos. Por
outro lado, o construtivismo russo e sua instabilidade formal influenciaram
121

significativamente aqueles arquitetos que Philip Johnson denominou desconstrutivistas. 94


No entanto, por ironia do destino, esses experimentos russos desenvolvidos em solos
socialistas não deixam de ser os verdadeiros precursores do high-tech disseminado hoje
em dia pelo capitalismo internacional, pela política de arranha-céus e pela lógica das
mega-estruturas na cidade.

Herança suprematista nos processos de Zaha Hadid – a paisagem como


planta. Estudos para o projeto do Centro de Arte Multimídia Zollhof 3 (1993),
e Centro de Ciências (2000), ambos na Alemanha. Fonte: EL CROQUIS (2004)

Assim como a arquitetura futurista do visionário Antonio Sant´Elia (1888-1916), já


comentada no capítulo I. O manifesto futurista apresentado em terras italianas pelo
poeta Filippo Tommaso Marinetti em conexão com outros artistas da época propõe uma
subversão radical da cultura e dos costumes sociais a partir de um interesse ideológico
na arte. A exaltação à estética da máquina, à velocidade e às ligações mecânicas está
presente em vários projetos de Sant´Elia, a exemplo da proposta para o cemitério de
Monza (1912), la Stazione per treni e aerei (1913) ou a emblemática Città Nuova (1914)
– criações que ilustram desenhos de caráter monumental com programas arquitetônicos
para as grandes massas. Tais imagens de cidade se assemelham à atmosfera proposta
pelo alemão Fritz Lang (1890-1976) em Metropolis, o primeiro filme de ficção científica
da história do cinema rodado entre 1925 e 1926. Além da crítica às relações de poder
entre os trabalhadores e os donos dos bens de produção (conflitos, segregação e luta de
classes), as paisagens em Metropolis são quase que aterrorizantes, em um primeiro
momento. Uma literal selva de pedra coroada de arranha-céus e torres interligadas por
passarelas em meio ao trânsito de veículos voadores, carros flutuantes e metrôs. A
arquitetura em Metropolis consegue transmitir as relações de poder, de opressão e de
subserviência na qual são submetidos seus habitantes. A massa de trabalhadores vive
abaixo da superfície e são escravos da máquina e do próprio tempo que são obrigados a
controlar, enquanto que os jardins acima são espaços destinados apenas aos patrões;

94
Em 1988, Philip Johnson e Mark Wigley organizaram uma exposição no MOMA de NY intitulada
“Arquitetura Desconstrutivista”. Foram apresentadas obras dos seguintes arquitetos: Peter Eisenman, Zaha
Hadid, Daniel Libeskind, Rem Koolhaas, Coop Himmelblau, Frank Gehry e Bernard Tschumi.
122

abaixo do subterrâneo, para além da “morada” dos operários, apenas as antigas


catacumbas. O tempo, a roda, a máquina, a cidade, a torre de Babel, o construtor, o
criador, a clonagem, o homem-máquina, o robô... são mais do que ícones simbólicos ou
pontos isolados de uma imaginação acerca do futuro – “entre o cérebro que planeja e as
mãos que constroem, deve haver um mediador. (...) é o coração que deve provocar um
entendimento entre eles”. O mediador é o filho do criador, o senhor da Metropolis que
habita por entre as sombras dos edifícios. O cenário de Lang navega para muito além da
tecnologia e da coexistência de uma quase confusão formal; entre a cinzenta névoa
cenográfica de uma cidade em constante movimento, a poética do cineasta também
evoca o “estado da alma” e flerta substancialmente com a utopia. Ele inventa uma cidade
e um tempo. O ápice do filme, na minha percepção, é o momento no qual a massa de
trabalhadores em revolta está ávida pela destruição das máquinas e deseja a liberdade.
Mas, quem de fato, controla essas máquinas? Quem, de fato, manipula as massas?

Imagens do filme
Metropolis (1925).
Fritz Lang

É de se considerar que a proposta de destruição de cidades históricas ou de museus e a


ruptura com as tradições antecessoras, pronunciadas pelos futuristas, não tivessem lá
muito abrigo na própria Itália, país de vigoroso contexto culturalista histórico e de forte
herança do racionalismo moderno. Segundo Tafuri (1979, p.58) as vanguardas artísticas
do século XX afastaram a história para construir uma nova história. E prossegue: “o anti-
historicismo das vanguardas modernas não é, portanto, o produto de uma escolha
arbitrária, mas é a saída lógica de uma experiência que tem o seu epicentro na revolução
brunelleschiana e as suas bases no debate que durante mais de cinco séculos se
123

desenvolveu na cultura européia”. No mais, a arte em quase todas as vanguardas desse


período, passa pelo crivo dos processos tecnológicos face à era da máquina e, em suas
bases de experimentação, racionaliza seus próprios métodos artísticos. A destruição
dessa racionalização e dessa historicidade, segundo Tafuri, encontra abrigo na tábua rasa
do movimento dadaísta. A antiarte, o contra-senso, a anarquia, o ready made. Uma
proposta tão radical, inclusive, não encontra conexões com o artefato construtivo da
arquitetura, embora a corrente dadaísta sustente que o único lugar para a ação seja a
cidade.

Sobre essa questão, Argan (1992, p352) considera tanto o De Stijl quanto o Dada,
movimentos aparentemente contraditórios, mas que, de fato, assumem a postura de
propor a feitura de uma tábua rasa em todas as feições e linguagens figurativas
institucionalizadas pelos cânones hegemônicos da época. Ambos movimentos desejavam
desmistificar os valores constituídos (embora os dadaístas sejam mais irônicos e exaltem
muito mais uma estética da casualidade e da desordem), seja a arte antiga ou presente,
sejam as leis mercadológicas, além de propor uma outra orientação na produção artística
voltada à uma espécie de “ato estético puro”.

O De Stijl e seu manifesto neo-plasticista, lançado em 1918 na Holanda, prega a


liberdade da arte sem vínculos formais com uma sistematização pré-estabelecida. E, se a
cidade é o palco de ações e dos acontecimentos, a arte deve estar concentrada no sujeito
- o objetivo da natureza é o homem. “Na metrópole o belo exprime-se de um modo mais
matemático: por isso ela é o lugar onde se pode desenvolver o temperamento artístico
matemático do futuro: o lugar do nascimento do novo estilo” (MONDRIAN, Apud TAFURI,
1979, p.69). Suas concepções arquiteturais possuem alguma relação intrínseca às
vanguardas russas. Seus processos projetuais revelam um tratamento das formas
plásticas, principalmente nas obras de Piet Mondrian, Theo Van Doesburg e Gerrit
Rietveld, onde podemos perceber uma subversão da estática dos planos ortogonais,
decomposições oblíquas, um dinamismo cromático no uso das cores primárias e uma
estética dinâmica vinculada à apreensão estrutural. As criações arquitetônicas produzidas
no seio desse movimento possuem colaboração intensa de pintores, escultores,
cenógrafos e artistas gráficos que participam ativamente do processo de concepção nos
primeiros momentos do projeto. Resultado: uma arquitetura dinâmica, embora simples e
de formas limpas.

Sobre a abstração de Mondrian, Deleuze95 faz uma observação muito interessante: em


suas pinturas o quadro deixa de ser um organismo ou uma organização isolada para se
tornar uma divisão do ambiente que vai ser exposto e é nesse sentido que seus

95
Ver a obra “Francis Bacon – a lógica da sensação”, sobre o uso do diagrama nas obras de Kandinsky, Pollock,
Mondrian e o próprio Bacon, in DELEUZE (2007).
124

“quadros” não são decorativos, mas, sobretudo, arquitetônicos. Sua pintura abandona o
cavalete. A arquitetura dos planos e a intenção da pintura e do regime de cores do
artista se fundem e se confundem.

Erich Mendelsohn (1887-1953) e Bruno Taut (1880-1938) também transitaram pela


Rússia em várias oportunidades, sejam nos projetos de reconstrução de cidades, sejam
nos concursos internacionais de arquitetura, e fizeram parte de uma corrente que se
desenvolveu, sobretudo, no pós-guerra alemão – o expressionismo arquitetônico
europeu. É o momento que os arquitetos se organizam e se agrupam na Alemanha com o
objetivo de fazer de suas arquiteturas a nova expressão de uma sociedade. Assim como
os russos, eles tentam buscar o apoio do Estado, como o Novembergruppe e o Conselho
de Trabalho para a Arquitetura, que se configuram como núcleos de pesquisa e de
experimentação na construção civil através da produção arquitetônica e urbanística
voltada para atender as necessidades de vida do povo alemão em total postura crítica
contra as formulações propiciadas pelos especuladores imobiliários.

Erich Mendelsohn – Torre Einstein (1919-23); croquis Museu de Berlim e Armazém Schocken (1928).
Fonte: Arquitetura no século XX (1996)

De um modo geral, as produções dos arquitetos expressionistas servem para consolidar


as aspirações de uma sensibilidade não repressiva, a partir do momento que, em suas
formas e expressões dinâmicas, intensificam a espacialidade figurativa e plástica das
massas e volumes (inclusive no uso das cores) em detrimento de uma formulação
domesticada. Embora posteriormente, alguns de seus maiores representantes tenham
sido cooptados pelo rigoroso racionalismo arquitetônico alemão, a poética e a
modelagem propiciada pelo cimento (tijolo revestido de betão e estuque), por exemplo,
serão vigorosas nas obras de Mendelsohn. As curvaturas e os desenhos da Torre
Einstein, um observatório e laboratório de Astrofísica em Potsdam, construída em 1923,
revelam a fruição formal do arquiteto, quase uma escultura em sua plástica exponencial,
que recusa a racionalidade do geometrismo cartesiano e busca a expressão das forças e
tensões na morfologia dinâmica de seus contornos. O Armazém Schocken, de 1928, e os
croquis para o museu de Berlim, também revelam essa riqueza plástica. Para Argan
125

(1992, p.247) a arquitetura expressionista deslocou o problema da funcionalidade da


pura técnica construtiva e da resposta às exigências práticas emergenciais daquele
período, a exemplo dos conjuntos habitacionais, das casas populares e de alguns edifícios
de uso coletivo, para o plano de uma outra funcionalidade – a visual e a comunicativa.
Segundo Argan, a contribuição essencial dessa movimentação no universo da arquitetura
é exatamente a concepção do espaço como algo que se constrói com a forma e “não
mais algo que em que se constrói a forma”. O edifico também é entendido como
protagonista do cenário urbano.

O pavilhão em vidro, de Bruno Taut, para a exposição de Werkbund - Colônia (1914) é


tão emblemático, que foi elevado a um dos símbolos apropriados pelo capital globalizado
na contemporaneidade. Talvez, sua forma sublime e de efeito exuberante represente,
para os fabricantes da cultura do simulacro, aquilo que as elites dos países de
capitalismo neoliberal desejam encontrar em suas viagens de entretenimento pelo
mundo. Até em um dos inúmeros paraísos artificiais de Dubai (City of Arabia), existe
uma reprodução ampliada desse prédio de Taut, em meio a arranha-céus, cópias
nefastas de frontões e capitéis greco-romanos, templos egípcios, a sempre reverenciada
Veneza e, pasmem, uma floresta de dinossauros aos moldes do Jurassic Park. A
campanha publicitária entoa: “Vamos voltar no tempo! Explore tudo isso! Um mundo de
sonhos e fantasias! Viva essa magia todos os dias!” Uma manipulação de desejos. Micro-
fascismos.

Segundo Amparo (2005), esse revival historicista do pós-modernismo possui um viés


fascista embutido. Nesse frenesi contemporâneo de estetização de tudo, de
espetacularização da arquitetura, de simulacros e simulações, de institucionalização de
todas as categorias, quase tudo está cooptado pelos cânones da plutocracia.

Um alinhamento do fascismo italiano, do nazismo alemão e do stalinismo russo em seus


poderes oficiais naquele período, não permitiu que as manifestações dessas artes de
vanguarda continuassem explorando a potencialidade de seus experimentos. Obviamente
que a orientação política e o senso de liberdade de pensamento promovida por tais
organizações, escolas e grupos de entusiastas, eram perigosos demais para os regimes
ditatoriais que emergiam nesses territórios. Para Stalin, a arte não tem autonomia, quem
dirá seus autores, e deve ser instrumento de propaganda política e de divulgação do
novo Estado. Os temas são impostos e qualquer manifestação artística deve ser oficial.
Ponto. Isso é bastante nítido nas ilustrações coroadas de réplicas de pilares gregos nas
propagandas e cartazes de Stalin, onde se lê: “pilares para o povo”.
126

Desejo, devires-outros. Metamorfose e arte

Gregório Samsa, caixeiro-viajante, acordou inseto. Na verdade, acordou barata. E


pensou: “que acontecerá se eu continuar dormindo um pouco mais e me esquecer de
todas as fantasias?” Impossível! As reflexões sobre sua condição humana o conduziram
para os ponteiros do relógio – hora de acordar! Atormentado pelo sono e pela fome, não
conseguia se mexer, quem dirá deslocar-se. Quais as linhas de fuga possíveis? Como é
desconcertante essa situação de um devir-animal! Como podemos parar de desejar? Às
vezes somos tão massacrados pela sistematização dos modos de vida e por uma corrida
vertiginosa, principalmente na sociedade contemporânea, que acabamos nos alienando
tanto que até o desejo passa a ser um “objeto de luxo”. Como fugir dessa situação?

Franz Kafka retrata o desespero do homem perante os absurdos do mundo. E nos coloca
em alerta! Precisamos assumir uma outra postura, uma outra posição corpórea mesmo,
andar por outros lugares, buscar um outro ponto de vista para compreendermos melhor
a heterogeneidade do mundo e as infinitas possibilidades de transformação. Esse é um
processo que podemos iniciar a qualquer tempo, em qualquer período. Quais seriam os
impulsos para um processo de metamorfose? Talvez um devir conectado a um saber
contemplativo. A sensação é um plano de composição. É contemplação. Contemplar é
criar. A sensação preenche o plano da composição. “Não são as idéias que contemplamos
pelo conceito, mas os elementos da matéria, por sensação” (DELEUZE; GUATTARI, 1992,
p.272).

De quais maneiras podemos trabalhar essas percepções? Por uma multiplicidade de


devires? A arte também pode ser um elemento de transformação? Derrida (1986, in
NESBITT, 2006, p.165) nos coloca a seguinte interrogação: a arquitetura é uma
materialização do pensamento? Ela pode ir além de uma mera representação?
Arquitetura é arte ou uma técnica de instrumentalização desse pensamento?
Naturalmente, o próprio pensamento é sempre um caminho e as arquiteturas habitam
lugares em que o reconhecimento do desejo também pode se definir como processo de
produção em meio a um grande campo de imanência (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.15).
Esse campo de imanência é definido por Deleuze e Guattari como um corpo sem órgãos –
CsO.

Para fugirmos aos estratos, esses autores sugerem algumas possibilidades de desvios,
quais sejam: a desarticulação ou n articulações, a experimentação (fuja das teias de
interpretações) e o nomadismo (idem, p.22). Quais seriam o CsO das cidades? Segundo
Magnavita (2008, in OLIVIERI; BIRIBA, 2008) a formulação analógica do pressuposto “a
cidade é um organismo” vem sendo questionada por uma das vertentes do pensamento
contemporâneo com base na atualização de novos conceitos que ultrapassam os limites
homogêneos enraizados no mundo macro da representação. Como uma cidade pode ser
127

referenciada a um organismo, ou seja, pressupondo uma organização, se as relações


corpo/cidade/espaço (como veremos mais à frente) se delineiam em uma rede de
multiplicidades extremamente complexas, de conexões de elementos heterogêneos, de
processos híbridos, de fluxos e acontecimentos, muitas vezes, imprevisíveis? Os Cso se
opõe a organização e, no caso das cidades, eles habitam nas mais variadas camadas. Ao
propor a desarticulação como um dos caminhos desviantes, similar a uma linha de fuga,
Deleuze e Guattari talvez nos queiram alertar acerca de outras maneiras de transitar em
universos permeáveis às micro-políticas e tão caros aos corpos das cidades e suas
arquiteturas. O que Magnavita aponta ao final do seu ensaio é o devir de uma nova ética,
um despertar: suspire, deseje, respire e deixe que a cidade construa seus próprios
corpos sem órgãos – os devires-outros da cidade.

Talvez permitir fluir o devir-criança que habita cada um de nós. Ver a vida de uma
maneira nova, com novos olhos, onde cada instante é novo (visão aguçada). Para uma
criança tudo é novo. A criança tem sua sensibilidade aguçada; já o adulto tem a síntese,
mas banaliza. O artista tenta ver novidade em tudo, tenta construir a união da síntese
com a sensibilidade. Para Baudelaire, sem essa mutabilidade e os processos de
transformação, nada poderia ser eternizado; nesse sentido a própria beleza é múltipla e
plural. Como “tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos
afetam, e que nos fazem devir?” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 235)

O espaço vivido, a re-polarização da política, o componente estético trazido pelo


arquiteto enquanto criador que deseja e utiliza esse anseio na sua produção – as nossas
“máquinas desejantes” (GUATTARI; ROLNIK, 1993, p.239), os nossos afetos estéticos
complexos, nossos cruzamentos sensíveis...

Onde habita o desejo? No campo molecular (ver capítulo I – Micropolítica do cotidiano e


revoluções moleculares), enquanto fluxos de quanta que se criam, se esgotam, se
modificam, se somam, se subtraem e se combinam (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.99).
A arte e, portanto, a arquitetura, pode ser um fluxo mutante, desde que escape aos
códigos pré-estabelecidos, que transite por campos de transformação criativa. Félix
Guattari (1992, p.115) diz que é nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos de
resistência dos mais conseqüentes ao rolo compressor da subjetividade capitalista e que
não se trata de fazer dos artistas os novos heróis da revolução, as novas alavancas da
história, mas a arte evoca toda uma criatividade subjetiva que atravessa os povos e as
gerações oprimidas, os guetos, as minorias.

A obra de arte é sempre um ser de sensações. Composição de perceptos e afetos


mutantes. Segundo Cézanne, há um minuto do mundo que passa, não o conservaremos
sem nos transformarmos nele. A pintura abstrata, por exemplo, convoca as forças,
trabalha com o fundo traçando figuras geométricas, faz ver nelas mesmas as forças
128

invisíveis. As forças podem empreender inúmeros gradientes de tensões – as forças de


gravitação, de peso, de rotação, de turbilhão, de explosão, de expansão, de germinação
– as forças do tempo. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.234).96

A arte vive de zonas de indeterminação, principalmente quando o material manipulado


pelo artista entra na sensação, criando procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos.
É a co-criação. Para um desenhista, é preciso existir um fundo, para que o pintor dissolva
as suas formas e os seus desejos (idem, p.225). Os afetos criadores se derivam em
compostos de sensações que se transformam, vibram, se enlaçam ou se fendem – “(...)
são estes seres de sensação que dão conta da relação do artista com o público, da
relação entre as obras de um mesmo artista ou mesmo de uma eventual afinidade de
artistas em si” (ibidem, p.227).

Esboço para almanaque do


Cavaleiro Azul (1911). Kandinsky.
“O movimento Der blaue Reiter
deve ser considerado em relação e
em oposição ao Cubismo,
reconhecendo sua ação renovadora,
mas contestando, como um limite a
essa própria ação, seu fundamento
racionalista e implicitamente
realista.” Fonte: ARGAN (1992)

Primeira aquarela abstrata (1910).


Kandinsky.

Na arquitetura, por exemplo, os movimentos vanguardistas que cultuavam a


experimentação e/ou o empirismo, romperam com padrões tradicionais do seu tempo e,
quando sua arte não interessava mais à esfera do poder dominante, foram relegados à
marginalização. Muitos artistas russos que fizeram parte dos Estudos Superiores Técnico-
Artísticos Vkhutemas – o locus das vanguardas russas –, ou de outros centros de
produção de arte, ficaram a mingua quando do período stalinista. Seus desejos foram
bloqueados, paralisados, implodidos e auto-destruídos. No entanto, os ricos
experimentos do construtivismo e do suprematismo na União Soviética refletiam a
esperança de um mundo mais justo. Kandinsky quando recusa a perspectiva tradicional,
rompe com os fundamentos racionalistas e realistas do cubismo e foge do mundo da
representação conservadora - representando aquilo que não se vê – quebra com o
estereótipo do lugar comum. Qual a visão de mundo que ele tem? Qual o seu
posicionamento ético e estético frente às suas próprias convicções? Quais suas
percepções e afetos? Ele faz da sua arte instrumento de transformação do mundo que o
rodeia. A arte extrapola, não é discursiva, mas tem o dom de conservar. A arte conserva,

96
Ver com mais propriedade o capítulo “Percepto, Afecto e Conceito”.
129

mas não num sentido de duração material. A arte é independente; ela não depende do
espectador que se limita a experimentá-la. A arte também é independente do seu
criador, pela autoposição do criado, que se conserva em si. O que conserva, a coisa ou a
obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos97.

A arte de Kandinsky - suas composições, seus experimentos, suas abstrações, suas


linhas nômades sem contorno, Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) - é sua bandeira de
luta. É sua forma de se posicionar no mundo – conexões subjetivas que não se deixam
sobre-codificar linearmente. A arte tem esse poder. Os movimentos de vanguarda
sempre estiveram atrelados aos anseios revolucionários não só dos artistas, mas de um
povo, de uma estrutura social coletiva. E claro, não se pode refletir as vanguardas sem
conectá-las a algum tipo de desejo ou revolução (mesmo molecular) e sem relacioná-las
com as diferentes e inúmeras relações de poder, ou micro-poderes, enquanto rede aberta
nem sempre visível. Mas a arte, nesse sentido, pode ser encarada enquanto um caminho
de mudança, um agente catalisador para uma multiplicidade de processos de
transformação. Possibilidades de navegar no caos - o buraco negro suprematista de
Malevich. Devir-arte! Devir-conceito! Devir-desejo!

Todos esses componentes de subjetividade social, maquínica e estética nos assediam


literalmente por toda a parte, desmembrando nossos antigos espaços de referência.
Com maior ou menos felicidade e com uma velocidade de desterritorialização cada vez
maior, nossos órgãos sensoriais, nossas funções orgânicas, nossos fantasmas, nossos
reflexos etológicos se encontram maquinicamente ligados em um mundo técnico-
científico que está realmente engajado em um crescimento louco. O mundo não muda
mais de dez em dez anos, mas de ano em ano. Nesse contexto, a programação
arquitetural e urbanística parece caminhar a passos de dinossauro. Assim um
arquiteto escrupuloso seria condenado a permanecer de braços cruzados face
à complexidade das questões que o assolam? (GUATTARI, 1992, p.159. Grifos
nossos).

Pode ser que esses focos, na contemporaneidade, se tornem cada vez mais rarefeitos.
Estamos in process. Em alguns momentos, como na citação acima, nós, arquitetos e
urbanistas, somos convocados a tomar uma posição e a atualizarmos nossa própria visão
de mundo. Entre tantas revoluções (genética, tecnológica, biológica, econômica, etc),
cabe saber onde podemos encontrar o novelo das vanguardas contemporâneas, se é que
há espaço para elas. Ou re-conceituar as estratégias de atuação possíveis para o século
XXI. Mas não esperemos uma unidade, as guerrilhas hoje são fragmentárias, muitas
vezes abstratas e habitam outras pulsões inconscientes. Quem sabe, re-avaliarmos
nossas escolhas e os nossos compromissos, entendendo que o espaço construído se

97
Ver capítulo II da dissertação.
130

relaciona com um conjunto de experiências e com territórios existenciais de coexistência


humana – o valor da emoção da arquitetura, por exemplo, que possa receber bem as
pessoas. E é aí que as nossas mãos, mãos táteis, que abrigam universos inimagináveis,
transitam em zonas particularmente sensíveis.

Transversalidades – arquiteturas, fluxos. Corpo & espaço

Quais são as possibilidades da produção de uma arquitetura como fato empírico que se
relacione substancialmente com os sentidos e com a experimentação do espaço? De
quais maneiras a experiência do corpo pode ser utilizada enquanto elemento indutor para
uma espécie de contaminação das relações arquitetônicas e suas representações na
cidade? De quais modos podemos estabelecer relações entre o espaço imaginário (e daí
seus inúmeros sub-estratos – imagem, imaginação, representação, simulação e criação)
e os aspectos construtivos de um espaço real?

Sistema arquitetônico que combina pressão de ar e materiais têxteis de alta


resistência como solução tectônica a estruturas autoportantes com uma massa
mínima: menos material e mais informação. O corpo humano funciona como
elemento indutor. Alexis Rochas (2006). Fotos: Michael Shields

São temáticas que transitam entre limites que ainda não foram devidamente corrompidos
e transgredidos e que fazem parte do universo que cerca tanto o arquiteto quanto os
demais artistas ou pensadores que refletem sobre questões inerentes aos corpos das
cidades, suas arquiteturas e seus espaços urbanos. Um universo até então muito restrito
se levarmos em consideração um mundo que ainda se orienta por programas estéticos
totalizadores, onde podemos observar uma predominância latente de reproduções
cartesianas e funcionalistas. O filósofo Jacques Derrida (1986, in: NESBITT, 2006, p.166)
expõe o problema da arquitetura como uma possibilidade do próprio pensamento e que
não pode ser reduzido à categoria da representação. Ainda somos guiados por análises
padronizadas e sistêmicas, principalmente dentro das praxes oficiais e disciplinas
urbanísticas hegemônicas, que não têm conseguido levar em consideração outras formas
de percepção mais abertas e desterritorializadas no que se refere à apropriação de novas
espacialidades. O dito campo da representação – expressão que possui forte conotação
histórica – se desenrola em meio a um “mundo” que se alimenta a partir da semiótica da
131

significância dos regimes de signos, das interpretações, da mobilidade dos estratos e de


suas sobre-codificações. Trata-se de um universo herdado da modernidade e que, por
enquanto, coexiste ao trânsito de novas fronteiras espaciais e tensivas, cada vez mais
transversas, que contaminam e se deixam contaminar por outros campos da criação, de
novos conceitos, funções, perceptos e afetos, manifestações outras que se articulam em
uma multiplicidade de conexões, sejam as esferas da arte, da filosofia ou da ciência.

Acreditamos que as questões e/ou problemáticas da urbanística e a concepção/criação de


arquiteturas, naquilo que Derrida chama de “momento de desejo, da invenção”, estão
distantes e até alheias das possíveis interlocuções com a vida cotidiana de nossas
cidades. Segundo Jacques (2008), a própria experiência urbana e, em particular, a
experiência corporal da cidade pode ser considerada um tipo de micro-resistência ao
processo de espetacularização contemporânea. A prática da errância98, por exemplo,
pode ser considerada uma ferramenta singular e subjetiva que se contrapõe aos modelos
e métodos tradicionais de se pensar e, até mesmo, diagnosticar a cidade.

O errante é então aquele que busca o estado de espírito (ou melhor, de corpo)
errante, que experimenta a cidade através das errâncias, que se preocupa mais com
as práticas, ações e percursos, do que com as representações, planificações ou
projeções (JACQUES, 2008).

Poderíamos dizer que o nosso olhar encontra-se, então, viciado ou cooptado pelas
máquinas axiomáticas e aparelhos sociais de controle? Olhares que coexistem entre
esferas organizadoras de saberes e poderes, típicas do pensamento dominante, que
tendem a maximizar os grandes centros urbanos, as impressionantes intervenções
arquitetônicas, os grandes planos e os famosos arquitetos-grife, porém pouco se
relacionam com as novas esferas e agenciamentos do cotidiano. Ainda temos nosso olhar
muito pouco direcionado às pequenas ações, às apropriações mais sensoriais e até
incorporais ou outras formas de micro-política, embora tais manifestações estejam
explodindo por toda parte. Segundo Guattari (1987, p.167) o inconsciente moderno é
constantemente manipulado pelos meios de comunicação, pelos equipamentos coletivos
e pelos especialistas de todo o tipo – sistemas maquínicos que tentam expropriar toda
singularização e toda vida de desejo. E, nesse sentido, o autor nos fala da necessidade
da recomposição de uma certa corporeidade existencial que possibilite processos de re-
singularização99, onde o corpo (e aí também nossos órgãos sensoriais) e as relações com

98
Errância – “qualidade, hábito ou condição de errante”. Os errantes modernos ou nômades urbanos são aqueles
que percorrem as cidades e fazem dessa ação – o simples caminhar – um instrumento de experimentação da
urbanidade, das ruas, dos acontecimentos, das manifestações dos citadinos. Portanto, o errante é aquele que
pratica “errâncias urbanas”. A prática da errância voluntária foi exercitada por vários artistas, com maior ênfase
nas décadas de 1950 e 1960, na qual utilizavam essa experiência enquanto atitude crítica e contestadora aos
grandes planos urbanísticos ou, talvez, a partir da própria experimentação do espaço público, trazer a tona àquilo
que Hélio Oiticica declamava: “poetizar o urbano”. (Ver JACQUES, 2004).
99
Ver capítulo 2 – Mitologia(s), horizonte maquínico e as esferas da representação.
132

as arquiteturas e a cidade se estabeleçam também entre impulsos cognitivos e afetivos.


Para Guattari (1992, p.158), os edifícios e as construções são máquinas enunciadoras e
produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de
subjetivação, provocando sensações que vão muito além de suas estruturas visíveis e
funcionais.

Os territórios urbanos são atravessados por inúmeras linhas de fuga e de


desterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1997) e são nesses espaços de convivência
que se estabelecem comunicações entre os sujeitos que neles coexistem. Nesse sentido,
os indivíduos transitam e interagem com tudo o que está a sua volta e travam relações
de contaminação de senso amplo que transpõem as bases binárias (dialéticas), de causa
e efeito, onde se constata o declínio da representação enquanto percepção macro
(molar) e como estrutura de uma identidade globalizante. As heterogêneas
manifestações que não estão “tabuladas” pelos cânones hegemônicos do poder, a
exemplo das micro-ações (moleculares), das ditas artes menores, das expressões
coletivas do cotidiano ou das correntes marginais, são entendidas enquanto
possibilidades de formação de novos territórios permeados por outras formas de
percepção intempestivas ou, até, acontecimentos imprevisíveis. Aspectos impregnados
daquilo que podemos chamar de uma certa “geografia informal” da cidade, onde é
possível percebê-la como um grande acampamento nômade, na qual os habitantes estão
em trânsito constante, contra uma paisagem que muda de hora em hora (PEIXOTO,
1996, p.308).

E se, a cidade é a grande vedete, metrópole de espaços fragmentados de fluxos de


quanta dinâmicos e fluídos que se manifestam em territórios que tendem à
desterritorialização, o corpo pode ser encarado enquanto uma arquitetura mutante ou
elemento de ação física e sensorial capaz de reorientar uma outra possibilidade
perceptiva do espaço urbano. Não um corpo enquanto objeto de medida, escrita ou
simbolização, tais quais as formatações em escalas de proporção aventadas por Leonardo
da Vinci a partir do homem vitruviano ou os sistemas de transformação do corpo
(masculino e adulto) em modelos sintáticos e signos arquitetônicos elaborados por Alberti
e Galeano ou ainda os estudos do Modulor realizados por Le Corbusier, mas o próprio
corpo enquanto objeto de experimentação que vai muito além de uma mera
representação visual ou imagética.

As cidades se apresentam em suas formas híbridas e se configuram como verdadeiros


espaços de mestiçagem e de coexistências de modos de vida que as fazem o território
das relações e ações humanas. Talvez as manifestações do ser desterritorializado, ou
seja, dos grupos “nômades”, a exemplo dos ciganos, dos andarilhos, dos sem-teto, dos
catadores de lixo, dos mendigos, dos artistas performáticos que se apresentam nas ruas
133

ou até do simples habitante que faz da sua desterritorialização o suporte de suas


andanças, nos revelem outras relações possíveis entre corpo e espaço. Como aponta
Guattari (1992, p.154): “(...) uma paisagem ou um quadro podem ao mesmo tempo
adquirir uma consistência estrutural de caráter estético e me interrogar, me encarar
fixamente de um ponto de vista ético e afetivo que submerge toda discursividade
espacial”.

Em meio a complexas redes de conexões de elementos heterogêneos, em constante


processo de transformação, é preciso estar atento aos universos incorporais, mesmo no
âmbito da arquitetura e do urbanismo. Há dimensões existenciais de expressão, a
exemplo de agenciamentos de desejo estético, que não se inscrevem na lógica dos
conjuntos discursivos. São interfaces sem limite e devires entendidos como focos de
diferenciação. Tais agenciamentos não podem ser detectados por coordenadas ou
simplesmente representados pragmaticamente. Para Guattari (1992, p.117), não nos
conhecemos através de representações, mas por contaminação afetiva. “Eles se põem a
existir em você, apesar de você”. E o afeto não é questão de representação de
discursividade, mas de existência.

Os objetos da arte e do desejo são apreendidos em territórios existenciais que são


ao mesmo tempo corpo próprio, eu, corpo materno, espaço vivido, ritornelos da
língua materna, rostos familiares, narrativa familiar, étnica... (GUATTARI, 1992,
p.120).

O espaço liso100 é o espaço nômade, onde se desenvolve a máquina de guerra, que faz
front ao agenciamento imposto pelas máquinas axiomáticas dos aparelhos do Estado, das
corporações ou da mídia. Como o feltro, uma espécie de anti-tecido – um emaranhado de
fibras que de modo algum é homogêneo. O nômade, o desterritorializado, ao tecer,
ajusta sua vestimenta e sua própria casa ao espaço exterior, ao espaço liso (fluido, sem
fronteiras) onde o corpo se move; ao contrário dos sedentários, onde seus tecidos
integram o corpo e o exterior a um espaço fechado (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.81).

O errante urbano que utiliza a rua enquanto espaço de criação e experimentação, ou um


“observador ambulante”, um flâneur, que contempla o sublime das paisagens e circula
calmamente sem rumo por entre as vielas da cidade, penetram as tessituras urbanas a
partir do olhar do pedestre. A própria rua funciona como um dispositivo do olhar e “a
cidade abre-se diante do transeunte como uma paisagem sem soleiras”. Tal
experimentação poderia complementar, e não necessariamente se opor, àquilo que Paul
Virilio (1993, p.10) chama de “superexposição da representação da cidade
contemporânea em vias de um espaço-tempo tecnológico” - uma visão aérea, mapeada

100
A configuração de um espaço liso não implica em uma homogeneização, muito pelo contrário, trata-se,
muitas vezes, de um espaço amorfo, informal e que se agencia em variações.
134

por coordenadas, muitas vezes amparadas por cenários de inúmeras lentes, câmeras,
vídeos, ampliações imagéticas e revelações que rompem com as superfícies do tecido
urbano. Os mapeamentos cartográficos, os Sistemas de Posicionamento Global (GPS), os
Sistemas Globais para Comunicação Móvel (GSM) ou os diversos softwares de localização
disponibilizados pela internet são instrumentos amplamente utilizados por uma
multiplicidade de usuários (não só especialistas) e nos abrem novas portas da cidade -
panoramas que antes só podiam ser desbravados pelo caminhante que percorre as ruas,
seus “becos” e suas esquinas a partir de uma visão experimentada através da presença
física e sensorial e não da tele-presença interativa. Uma era que Peixoto (1996, p.299)
chama de “era pós-arquitetônica”, onde a capacidade tradicional de organizar o espaço e
o tempo entra em conflito com o poder dos meios de comunicação – se a delimitação das
superfícies é substituída pelo contato instantâneo da interface (a tela torna-se o lugar) e
as três dimensões do espaço construído são literalmente transferidos para as duas
dimensões da tela, a arquitetura, segundo Peixoto, torna-se superficial. É uma questão a
ser considerada.

Fonte: 2G DOSSIER (2007)

Fonte: www.overmundo.com.br

Fonte: www.vitruvius.com.br

O simples caminhar pela cidade já pressupõe uma experiência de prática urbana, seja através das
performances de artistas, como o baiano Jaime Figura que percorre as ruas de Salvador vestido com
indumentárias criadas por ele mesmo ou Flávio de Carvalho, conhecido por suas deambulações (na
foto ele aparece usando seu “traje de verão” em meio a olhares desconcertantes – São Paulo, 1956),
seja através de qualquer cidadão que deseje, simplesmente, fluir pelas ruas e se manifestar.

Uma vivência prática dos espaços urbanos, que se faz em nível molecular, difere muito
de uma percepção apreendida a partir de um olhar de sobrevôo, que se faz em nível
molar, muitas vezes representado em um mapa ou por demais aparatos tecnológicos,
135

onde até a própria representação arquitetônica se converte em imagem.101 Tais


instrumentos é que, em sua maioria, acabam orientando as ações práticas profissionais,
sejam dos urbanistas ou dos arquitetos; são valorações que se baseiam em formas
reducionistas de se compreender o espaço enquanto representação de dimensões,
escalas e proporções, sem falar em dados econômicos ou matemáticos, e afastam o
caráter urbano do sensorial e do corporal (Jacques, 2008). Embora a questão das
distâncias e, obviamente, das dimensões, da infinitude (ver Boullée, Piranesi, a torre de
Babel), dos cheios e dos vazios abriguem o universo da práxis arquitetônica, a
experimentação do espaçamento na arquitetura e no urbanismo pode apontar para
alguns paradoxos escalares, seja o scaling de Peter Eisenman que procura desestabilizar
a “metafísica da escala” (Peixoto, 1996, p.310), seja a supressão ou não da medida do
homem, sejam as mega escalas evocadas pelos projetos do não menos mega Rem
Koolhaas, arquiteto que tem defendido vigorosamente macro estudos econômicos e
sociais nas definições de suas intervenções e a inserção global e genérica da arquitetura
- por essas e outras, alguns o consideram “inumano”. Do monumental ao espaço
distraído, do modelo à experiência do lugar, talvez tenhamos que compartilhar das
reflexões de Derrida ao vislumbrar a propriedade da medida que ainda não tenha lugar
nem forma arquitetônica. Um quase incompreensível lugar sem lugar – o Khôra.102

******

Os cenários mundiais se transformaram radicalmente na virada do século XIX, momento


que o mundo passa por um processo de industrialização e as cidades passam a
representar a “alegoria da modernidade”, panorama no qual Walter Benjamin, a partir da
“alegoria do flâneur”, descreve os transeuntes como andarilhos urbanos, que se
transformam nos ícones das cidades que se modernizam, e suas multidões de expressão
coletiva (Mello; Silva, 2008).

101
O design simbólico das fachadas decoradas, por exemplo, ou o prenúncio da cidade outdoor - típicas da strip
de Las Vegas - que nos fala Venturi; Scott Brown & Izenour (2003), apontam para além dos códigos lingüísticos
presentes nesses tipos de “edifícios” - a constatação da estética publicitária onipresente no espaço público e a
forma arquitetônica atuando enquanto imagem, signo, consumo, sedução e, porque não, vertigem, orientaram
grande parte das produções ditas pós-modernas. Ver também JENCKS (1991).
102
O discurso sobre khôra navega por entre mares e por entre céus, mas também por entre regiões abissais,
tocando abismos e espectros do caos, sem ser isso ou aquilo. Embora até hoje não tenhamos sequer idéia por
onde o khôra, de fato, transita - seja um lugar, uma posição, uma localização, uma região ou um território, seja
aquilo que a tradição denomina “figuras’, as representações, as imagens ou os símbolos, Derrida afirma que as
traduções permanecem presas em redes de interpretações. “Insensível, impassível, mas sem crueldade,
inacessível à retórica, khôra desencoraja, ela é aquilo mesmo que desarma os esforços de persuasão e de todo
aquele que quisesse ter a ousadia de crer ou o desejo de fazer crer, por exemplo, em figuras, tropos ou seduções
do discurso. Nem sensível, nem inteligível, nem metáfora nem designação literal, nem isso nem aquilo, e isso e
aquilo, participando e não participando dos dois termos de um casal, khôra, dita também matriz ou nutriz
assemelha-se, apesar disso, a um nome próprio singular, a um prenome, ao mesmo tempo maternal e virginal”
(DERRIDA, 1995, contra-capa).
136

Vale lembrar que é nas primeiras décadas do século XX que o chamado “urbanismo
moderno”, modelo higienista e funcionalista, será amplamente disseminado, inicialmente,
em 1933 pelo CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) e, principalmente,
após suas bases serem documentadas na Carta de Atenas (1943). Seus princípios
racionalistas fundamentam-se em zoneamentos (a cidade é sub-dividida em zonas:
habitação, trabalho, lazer e circulações), grandes planificações e estruturas
homogeneizantes baseadas numa espécie de homem ideal (modulor) que irão contribuir
para a definição daquilo que se chamaria International Style, onde uma certa “gramática
rigorosa” é imposta à arquitetura.

Numa espécie de contra-mão, começam a surgir na Europa alguns grupos contestadores


dessa lógica separatista e críticos ácidos da cidade espetacular, a exemplo do Team X –
grupo responsável pela organização do décimo CIAM de Dubrovnik, realizado em 1956,
mas que manteve-se presente no cenário das discussões do universo da arquitetura e do
urbanismo até 1984, tendo como membros mais atuantes os ingleses Alison e Peter
Smithson, o holandês Aldo van Eyck, o italiano Giancarlo de Carlo e o também inglês
Ralph Erskine, embora tenha elegido a Suécia para desenvolver suas atividades
profissionais. Eles irão potencializar a valorização do caráter político da arquitetura103 e
defender a cidade enquanto lugar da diversidade, das diferenças e do conflito
(exatamente por tornarem as cidades mais sedutoras104), apostando naquilo que
chamavam de “utopia do possível”, através da realização de pequenos planos ancorados
no homem real e não a partir de grandes planejamentos setorizados e genéricos (planos-
discursos) pensados para um tipo universal, como propunham a “velha guarda”.
Sugerem, entre outras questões, a prática de métodos experimentais e empíricos,
estudados caso a caso – poderíamos citar, como exemplo, o interesse de Van Eyck em
romper com valores tradicionais pré-estabelecidos, buscando algumas definições de um
desenho para espaços em transição e na curiosidade de perceber o homem em diferentes
culturas ou ainda as pesquisas desenvolvidas por Alison e Peter Smithson nas
comunidades de bairros do subúrbio da Inglaterra, baseadas na apreensão do espaço
urbano através das relações de vizinhança e na percepção das escalas da casa, da rua,
do próprio bairro e da cidade (BARONE, 2002, p.137), que irão substanciar as críticas ao
mono-funcionalismo dos CIAM105, assim como a percepção de que os espaços não

103
“O tema fundamental do grupo não estava mais na discussão das novas tecnologias, da casa mínima ou dos
princípios fundamentais do urbanismo moderno. (...) A intenção fundamental dos jovens era questionar a
validade desses princípios universais a partir da noção de que o homem se organiza em comunidades, que
desenvolve a necessidade de se diferenciar, se identificar com o local onde habita, criar vínculos sociais e
apreender o espaço a partir de seus próprios valores culturais” (BARONE, 2002, p.61). Obviamente, nem sempre
as idéias do grupo se alinhavam, muito pelo contrário, em 30 anos de existência muitos conflitos ideológicos e
diversidade de opiniões provocaram polêmicas acirradas entre seus próprios membros.
104
Ver RYKWERT (2004).
105
O casal de arquitetos propôs algumas estruturas e projetos, a exemplo de Golden Lane (1952), um conjunto
habitacional baseado na idéia de cluster – formas de agregação e articulação de diversas unidades de habitação –
137

planejados (sejam aqueles abandonados, fraturados, vazios ou ironicamente


marginalizados) também eram significantes e cumpriam funções importantes na vida
desses agrupamentos populares. É nesse cenário que noções de psicologia – e aí o
interesse antropológico e sociológico despertado pelo tema da vida popular de rua -
começam a ser incorporadas ao pensamento crítico sobre a cidade e a defesa de uma
realidade mutante (e não estática), dinâmica e, porque não, passageira.

O discurso da arquitetura internacional dos anos 1960 será balizado pela cultura pop, a
alta tecnologia e as novas formas de viver. O grupo Archigram, liderado pelo inglês Peter
Cook, vai rejeitar os preceitos do movimento moderno e sua atuação será materializada
a partir de publicações undergrounds, manifestos e projetos experimentais que irão
refletir a vida do homem nas cidades, através de linhas teóricas baseadas em novas
tecnologias, na idéia de dispersão do ambiente urbano e da arquitetura passeando entre
o entretenimento e o aprendizado. Surgem Living City (Cotidiano Recortado), Walking
City (Cidade Andarilha), Plug-in-City (Cápsulas de Metrópoles), Living 1990 e Instant City
(a Metrópole Visitante). Já se vislumbrava a metrópole informacional e a subversão da
sociedade do modernismo tardio.

Archigram – cidade informacional e


mutante. Fonte: www.leap.umontreal.ca
Bloco de apartamentos materializado por
Cidade Hélice dos Metabolistas.
Moshe Safdie para a EXPO 67 Montreal.
Fonte: www.kisho.co.jp
Fonte: Arquitetura no Século XX (1996)

pensado não através da questão da função urbana, mas baseado na qualidade dos espaços, nos modos de vida da
população e na possibilidade de encontros e convívios dessas pessoas (dispostos no núcleo central – o core). Eles
tentam sair do olhar de sobrevôo e retratam essas articulações a partir da inserção da agregação humana do
usuário. Construíram, de fato, em 1970, o conjunto habitacional Robbin Hood Gardens, baseado nessa proposta
teórica dos clusters (um modelo arquitetônico), uma pesada estrutura em concreto aparente que nos remete ao
brutalismo inglês.
138

Os Metabolistas, liderados pelos japoneses Kenzo Tange e Kisho Kurokawa, sobretudo


este último, irão introduzir o conceito da “Filosofia da Simbiose”, baseado nas
coexistências dos contrários e em cadeias metafóricas e miméticas enraizadas na
biologia. Kurokawa inicia seus experimentos formais a partir de planos de cidades, como
a “Cidade Hélice” e “Cidade Flutuante”, até a idealização da Nagakin Capsule Tower,
construída em Tóquio em 1972 a partir de um protótipo apresentado na EXPO Osaka
1970.

O happening e a cultura cotidiana do homem da rua marcaram significativamente os


movimentos urbanos vanguardistas desse período. Ainda poderíamos citar os
situacionistas e suas experiências efêmeras de apreensão do espaço urbano através da
prática da deriva e da psicogeografia, as experimentações dos errantes brasileiros (Flávio
de Carvalho e Hélio Oiticica), entre outros pequenos grupos experimentais. A artista
plástica e pintora Lygia Clark, por exemplo, que participou de vários grupos brasileiros
(Frente, Neoconcreto) irá revolucionar o mundo da arte ao propor o corpo não apenas
como suporte, mas a descoberta do próprio corpo enquanto criação - ser de sensações e
de experimentação - ao gerar obras onde o grande público possa participar e interagir.
Uma arte interativa, sensorial e totalmente corporal. O mesmo acontece com o projeto
de Oiticica – Éden – realizado na Whitechapel Gallery, em Londres (1969), onde o artista
explora as possibilidades do próprio comportamento humano em constante relação com a
instalação, a partir de uma obra que se coloca aberta. As relações dos sentidos, explica
Oiticica (1969, in: SPERLING, 2007), “são estabelecidas em um contexto humano, como
um corpo de significações e não uma soma de significações apreendidas por canais
específicos”. Labiríntico, fluidez espaço-temporal, espaço-entre, tensões, sensações. A
arquitetura se transforma, assim como o próprio corpo se transforma.

AS RELAÇÕES DOS SENTIDOS / CONTAMINAÇÕES CORPO X ESPAÇO


Instalação Éden e os parangolés de Hélio Oiticica.
As máscaras sensoriais de Lygia Clark. Fonte: SPERLING (2008)
139

Como podemos verificar no primeiro capítulo, até nas produções do NOX, escritório
dirigido pelo arquiteto holandês Lars Spuybroek e bastante conhecido por suas
formulações híbridas, fluidas, multimidiáticas e que convencionamos chamar arquitetura
líquida, percebe-se a influência de movimentos coletivos de outrora, sejam os
experimentos das vanguardas russas, as subversões cromáticas e espaciais do De Stijl,
as experiências urbanas da Internacional Situacionista ou ainda as expressões miméticas
suscitadas por Frei Otto e Buckminster Füller, sem falar nos modelos suspensos
(catenárias) desenvolvidos por Antoni Gaudí para o projeto da Sagrada Família – traços
altamente contaminadores presentes nos processos experimentados pela equipe de
arquitetos do NOX. Coexistência de corpos que se metamorfoseiam sempre à beira da
transição.

Para o arquiteto franco suíço, Bernard Tschumi, o corpo é o ponto de partida e o ponto
de chegada da arquitetura, como podemos constatar a seguir:

A concepção cartesiana do corpo-como-objeto foi contraposta pela visão


fenomenológica do corpo-como-sujeito e a materialidade e a lógica do corpo se
opuseram à materialidade e à lógica dos espaços. Do espaço do corpo para o corpo no
espaço – a passagem é intricada. E esse deslizamento, a brecha na obscuridade do
inconsciente, algum lugar entre o corpo e o Ego, entre o Ego e o Outro [...] A
arquitetura ainda não começou a analisar as descobertas vienenses da virada do
século, se é que algum dia a arquitetura virá a informar a psicanálise mais do que essa
informou a arquitetura. (1981, in: NESBITT, 2006, p.181).

A articulação dos sentidos e dos espaços em movimento é um território da ação corporal


e pressupõe a possibilidade de interação do espaço com os eventos. Os movimentos
corporais sejam através da dança, do esporte ou do simples caminhar têm a força de
influir na formação dos espaços arquitetônicos. No projeto para o Parc La Villette em
Paris (1983), de autoria de Tschumi, o que se discute é a noção de unidade, pois se trata
de uma proposta concebida sem começo nem fim, ao invés, surgem repetições,
distorções, sobreposições, fragmentações... A sobreposição e a distorção de elementos
como o plano, a linha e o ponto (influência da obra de Kandinsky) distribuídos em uma
malha geraram um diagrama final, definindo pontos de folies e uma arquitetura onde a
paisagem é construída ao caminhar (Silva, 2006, p.113). Para Tschumi, seu prazer na
arquitetura não nasce dos grandes projetos, das grandes obras, muito menos da
contemplação de edifícios, mas de sua desmontagem, de seus processos. É preciso
desmantelar os componentes tradicionais e remontá-los a partir de vestígios, de uma
des-localização, enfim, uma disjunção arquitetônica.
140

Explorações performáticas e espaciais possibilitadas pela dança.


Coreógrafo Merce Cunningham.
Fonte: www.merce.org

A dança expressionista, por exemplo, desenvolvida especialmente na Alemanha no


primeiro pós-guerra, trás a manifestação da emoção visceral do subconsciente subjetivo
e coletivo; a leveza da bailarina clássica e “romântica” levitando nos ares foi
bruscamente submetida à força da gravidade, jogando-a, com todo o peso, no chão
(Cruz, 2008, p.6). O bailarino, aquele que experimenta seu próprio corpo e sua relação
com o espaço em volta, também está sujeito às contingências sociais e, a partir de seus
movimentos, expressa suas emoções e sensações individuais. As bases do ballet clássico
– requintado e organizado através de coreografias estruturadas e coordenadas - são
rompidas abrindo espaço para coexistência da explosão do “gesto verdadeiro”, expressão
que não cabe mais nos padrões estéticos de movimentos pré-estabelecidos.

As corpografias urbanas,106 a exemplo das manifestações coletivas e espontâneas


realizadas nas ruas, sofrem constantes processos de recriação. Alguns grupos
experimentais de dança buscaram realizar intervenções em espaços públicos, sejam
sítios arquitetônicos, praças ou marcos históricos, no sentido de travar relações de
contaminações mútuas com o lugar. Várias companhias, a exemplo das experimentações
do grupo de artistas Fluxus, as explorações espaciais vivenciadas pelo grupo do
coreógrafo americano Merce Cunningham, mais recentemente a companhia da brasileira
Débora Colker, até as instalações do multi-artista Bill Viola, apostam em montagens de
espetáculos em espaços, muitas vezes, não convencionais, sejam em áreas abertas ou

106
Cf. JACQUES (2008).
141

fechadas, utilizando a expressividade e a percepção corporal enquanto instrumento de


explorar o espaço e de estabelecer relações com suas próprias performances.

A vídeo-arte do artista Bill Viola. Suas instalações procuram explorar o lado espiritual e perceptivo do
ser humano, através de elementos fluídos como a água, o fogo ou as próprias sensações humanas. Suas
temáticas sempre procuram travar constantes diálogos com o espaço arquitetural. Fonte: www.billviola.com

Assim como as dobras de Ana Holk107. Suas instalações experimentam e enlaçam o lugar,
transformando o cenário pré-existente. Sua obra “Estais”, de alguma maneira, examina
os elementos arquitetônicos do interior do edifício, no caso, uma galeria de arte em São
Paulo. Entre paredes e pilares completamente brancos, a artista constrói uma nova
espacialidade, onde a corporeidade de quem a transita se relaciona substancialmente
com suas “faixas vinílicas”, afetando e se deixando afetar. O trajeto do observador
também se faz presente nas obras suspensas de Waltercio Caldas. Aparentemente
minimalista e sintético, sua arte se manifesta em limites de efeitos paradoxalmente
explosivos, onde a tensão e os vazios coexistem em meio a pausas, ausências e
expectativas. Entre instalações e esculturas penduradas e submetidas aos efeitos
gravitacionais em sintonia com o próprio material – a exemplo de Fios de Lã (1993) ou
Longínquo (1987) – ou até mesmo a articulação de objetos intercalados em eixos e
discos distribuídos minuciosamente ao chão (Próximo de 1991), o artista se propõe a
experimentar o caráter do olhar multifacetado do próprio caminhante.

107
Ver texto de Alberto Tassinari, originalmente publicado no catálogo da exposição realizada pela artista e
arquiteta na Galeria Virgílio, em São Paulo, entre outubro e novembro de 2004, também disponível em Tassinari
(2004).
142

Estais (2004). Instalação realizada pela artista e arquiteta Ana Holk em São Paulo/SP.
Foto: Everton Ballardin

Vale lembrar que esses efeitos espaciais, possivelmente, têm alguma relação com os
trabalhos desenvolvidos pelos artistas construtivistas russos no final da década de 1920,
a exemplo das esculturas suspensas de Rodschenko, da escultura cinética e dos pêndulos
de Gabo, dos elementos escultóricos vazios de Joost Schmidt, insinuando volumes
virtuais, ou ainda as instalações de Moholy-Nagy, considerados experimentos plásticos e,
sobretudo, investigações escultóricas que se configuram enquanto massas e volumes
elaborados com os mais diversos materiais (tubos de vidro, arames, elásticos, cobre,
metais, borrachas, etc); materiais esses que são testados e vivenciados pelo próprio
fruidor a partir de exercícios que privilegiem não apenas o conhecimento do material que
está sendo manipulado, mas potencialmente os sentidos (órgãos táteis).108

Pesquisas sensoriais e
instalações de Moholy-
Nagy. Fonte: MOHOLY-
NAGY (2005)

É, talvez, compactuando um pouco com esse pensamento que alguns arquitetos tentam
construir a resolução espacial a partir desses outros diálogos, no sentido de parafrasear
aquilo que o arquiteto Bernard Tschumi chama de experiência do corpo e a sua
possibilidade de contaminar a produção da arquitetura – a influência dos diferentes
espaços sobre a performance:

108
Verificar a produção dos alunos de Moholy-Nagy na Bauhaus, entre 1927 e 1928, a exemplo dos “exercícios
táteis” e dos “exercícios dos sentidos”, bem como a história da escultura cinética e o “manifesto realista” de
Gabo e Pevsner em MOHOLY-NAGY (2005).
143

Se hoje em dia quisermos nos ater a uma ruptura epistemológica com o que é
geralmente chamado de modernismo, então sua contingência formal também deve
ser posta em questão. Isso não implica de forma alguma de um retorno a
concepções que opõem forma e função, a relações de causa e efeito entre programa
e tipo, a visões utópicas ou às diversas ideologias positivistas e mecanicistas do
passado. Pelo contrário, significa ir além das interpretações reducionistas da
arquitetura. A habitual exclusão do corpo e de sua experiência de todo o
discurso sobre a lógica da forma é um exemplo que vem bem a propósito.
(TSCHUMI, 1981, in: NESBITT, 2006, p.187, grifos nossos).

Explorações dos espaços das cidades no seu cotidiano -


caminhantes das favelas, cultura pop de rua e crianças
brincando no memorial ao Holocausto em Berlim.
Fontes: www.fotosearch.com / www.revistalimites.blogspot.com
144

O trans-estético

Grande parte dos planos urbanos, principalmente em países com enormes problemas
infra-estruturais, tem servido a interesses especulativos (geralmente privados) e
políticos. Com raríssimas exceções, em suas formulações, os arquitetos e urbanistas
acabam atendendo regras hegemônicas e “esteticizadas” por modelos competitivos e
internacionalizados de “renovação urbana”. A arquitetura também seria objeto de
sedução? Dentro dessa lógica de reprodução, queiramos ou não, a arquitetura é
entendida enquanto mercadoria, enquanto símbolo e até enquanto fetichismo
especulativo do mercado.

Na contemporaneidade, é latente o processo de contaminação intensa e simultânea de


inúmeras categorias; um frenesi de estetização de tudo, de banalização da imagem, onde
tudo é visual à beira da mercantilização, da culturalização generalizada... Aquilo que
Baudrillard chama de “campo trans-estético da simulação”, engendrado pela antecipação
de resultados, pela disponibilidade e proliferação de todos os signos, de todas as formas,
de todos os desejos. Um modo fractal de dispersão. Os efeitos midiáticos e publicitários
nos levam a uma sincronização das emoções e não de opiniões. Estaríamos condenados à
indiferença?

Segundo Baudrillard (1992, p.23), “toda maquinaria industrial do mundo ficou estetizada,
toda a significância do mundo viu-se transfigurada pelo estético. (...) foi a estetização do
mundo, sua encenação cosmopolita, sua transformação em imagens, sua organização
semiológica. (...) o sistema funciona não tanto pela mais-valia da mercadoria mas pela
mais-valia estética do signo”. A arte, a arquitetura tende à homogeneização, à
artificialidade, vide os verdadeiros paraísos de entretenimentos vertiginosos moldados
em superfícies do simulacro e da fantasia – efeito Las Vegas e processos de
“disneylandização” – City of Arabia, the heart of Dubailand. Territórios estratégicos onde
as arquiteturas genéricas e tecnológicas se reproduzem e se replicam tornando-se
corpos-prótese. Pois, ainda de acordo com Baudrillard, somos todos simbolicamente
trans-sexuais, mutantes biológicos em potência de signos exagerados e essa condição
contamina, evidentemente, as esferas da arte, da arquitetura e suas representações nas
cidades. Espaços aparentemente idealizados, limpos, assépticos, equilibrados, seguros,
vigiados, controlados e acessados por algumas camadas mais elitizadas que têm
condições de bancar os custos de tais devaneios. Nesse sentido, são espaços
excludentes.

Segundo Jeudy (2005), os processos de espetacularização das cidades, as atrevidas


clonagens de cidades – “duplicação patrimonial e renascimento perpétuo do kitsch” e
esse fenômeno global de caça aos turistas estrangeiros, tem gerado uma certa
aniquilação das singularidades de cada local, ou seja, cidades ou territórios que se
145

submetem a esse tipo de “engessamento”. Um mundo no qual “o falso não é mais


verdadeiro ou menos verdadeiro do que o original autêntico, ele se impõe por si mesmo”
(idem, p.71). Numa era de reprodutibilidade infinita, o falso não é indigno, pode ser até
fascinante para alguns, pois está alinhado com a condição da clonagem, do virtual. Uma
arquitetura de espaços, por exemplo, pode ser substituída por uma arquitetura de
imagens, sem nenhum pudor.

Como tratar, então, desigualdade e diversidade nas múltiplas escalas das cidades
contemporâneas? Os corpos não se deleitam apenas em multiplicidades de expressões
estéticas ou políticas, mas somos assombrados por vestígios e rastros nem sempre
visíveis e que estão muito além das relações das contradições auto-referenciadas. Corpos
transcendentais; para além de corpos políticos, hoje eles se fazem trans-políticos.

Estética de favela e os arranha-céus no


skyline das cidades contemporâneas (a
“infinita torre de Dubai”, projeto da DOS
Arquitectos e o edifício “Marylin Monroe”,
no Canadá, desenhado pelo Studio MAD).
Possibilidades de coexistências?
Fonte: www.linternaute.com

*****
146

CAPÍTULO IV ENTRE PROCESSOS

(...) as grandes paisagens têm, toda elas, um caráter visionário. A visão é o que do
invisível se torna visível... a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos,
mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar tanto quanto
possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este abandono não atinge
somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida. Na paisagem, deixamos de
ser seres históricos, isto é, seres eles mesmos objetiváveis. Não temos memória para a
paisagem, não temos memória, nem mesmo para nós na paisagem. Sonhamos em pleno
dia e com os olhos abertos. Somos furtados ao mundo objetivo, mas também a nós
mesmos. É o sentir.

Cézanne

Não se recomeçará do começo. Não se remontará, como o é especificado logo depois,


aos primeiros princípios ou elementos de todas as coisas (stoikheia tou pantos). É
preciso ir mais longe, retomar tudo o que tinha podido considerar até aqui como origem,
voltar aquém dos princípios elementares, isto é, da oposição do paradigma e de sua
cópia. E quando, para fazê-lo, se anuncia que não se recorrerá a não ser a afirmações
plausíveis, é para propor também “dividir ainda mais” o princípio.

Jacques Derrida, in Khôra


147

CAPÍTULO IV - ENTRE PROCESSOS

Como conceber uma arquitetura deslocada? Segundo Peter Eisenman, um deslocamento


importante diz respeito ao próprio papel do arquiteto e ao processo projetual que ele
postula, ou seja, o caminho que ambos percorrem na definição de plataformas para a
composição de um objeto arquitetônico. Estar entre, não ser isto ou aquilo, mas ser
quase isso ou quase aquilo, também se refere a uma experiência de incerteza, de
deslocamento e até de desestabilização. Talvez um voltar-se para dentro, não apenas no
sentido da interioridade da arquitetura, mas na sutileza em se permitir arriscar um
percurso de projeto de maneira mais prazerosa e atenta. Construir os seus próprios
labirintos e esboçar os seus próprios desertos em meio à insubordinação de um traçado
meramente euclidiano.

Os processos de projeto, o momento do desejo da criação, o motor de arranque e o devir


arquitetônico são tão importantes quanto o objeto acabado, pois, quando colocados à
mostra, nos revelam caminhos e possibilidades que nem sempre a própria arquitetura,
enquanto fato ou obra em si mesma, consegue transmitir (embora Todorov coloque que
toda obra acaba mostrando a maneira como foi feita). Nada que existe no mundo está
esgotado, não por enquanto... Estar entre é uma condição de mutação. Uma arquitetura
que se constrói em processos, nesse estado de intermezzo, nos abre possibilidades de
comunicações as mais inimagináveis, fora de tabulações de uma condição a priori.
Permite experimentar e penetrar universos cada vez mais transversais e abertos. Entre,
meio, twilight... luzco-fusco, o momento mágico entre o dia e a noite, é também um
encontro para a arquitetura. Uma arquitetura que não se quer presa ao decalque e ao
mundo da representação.

As revoluções moleculares, problematizadas em alguns momentos da dissertação, devem


ser percebidas não apenas na materialização de pequenas obras, mas, sobretudo nos
pequenos (embora intensos) processos e experimentos que, muitas vezes, também
geram intervenções grandiosas em suas dimensões. Incompreensível coexistência...

Uma multiplicidade de expressões estéticas nas arquiteturas contemporâneas, de uma


maneira ou outra, formais ou informais, híbridas ou desconstrutivistas, auto-geridas,
espetaculares e até intempestivas, está ligada à mutação das cidades. Nós nos
encontramos no meio dessa mutação. É o sentir, colocado por Cézanne.
148

Os diagramas

O potencial discursivo da arquitetura existe na sua própria interioridade


Peter Eisenmam

O que é um diagrama? Um sistema de forças? Um conjunto de gráficos e curvas? Uma


representação esquemática de algum sistema? Bem, em arquitetura, segundo as
abordagens de Peter Eisenman em total sintonia com o pensamento pós-estruturalista de
Gilles Deleuze109, um diagrama se relaciona muito mais a uma máquina de forças
potenciais em emergência. Mas isso não quer dizer que um diagrama, seja analógico ou
digital, equivale a uma estrutura formal. Um diagrama não obedece a uma hierarquia de
forças estáticas, muito menos nos remete a um ponto de origem. As forças, em um
diagrama, estão em relação com elas mesmas e em constante desequilíbrio.

Por exemplo, um quadro cubista pode ser um diagrama, em seus planos e faces, em
suas dobras e desdobras, em seus espaços entre, em suas linhas de transição... Segundo
Huchet (2005, p.102), “a elaboração de uma visão total e aberta dos objetos, e não
apenas de suas aparências externas, abre a possibilidade de mostrar suas estruturas,
sua anatomia, as linhas e os volumes até agora escondidos pela representação
tradicional”. Como nas explorações do músico, crítico de teatro e pintor Paul Klee (1879-
1940), onde, em muitos de seus quadros, o plano e a profundidade se confundem. Para
Argan (1992, p.450), a perspectiva em Klee não é forma, e sim imagem, só que não
define um espaço, muito pelo contrário, muitas vezes ela é multiplicada, labiríntica em
suas linhas e percursos, não retornam a um ponto de partida, mas se extraviam; seus
desenhos são um acontecimento e suas obras são tão provocativas que surpreendem o
observador.

Paul Klee. Ao lado: Caminhos principais e caminhos


secundários (1929). Acima: Villa R (1919) e O lugar em
questão (1922). Fonte: PAUL KLEE (1993).
109
Essa constatação está bem evidente no livro “Diagram Diaries” de Peter Eisenman, onde o arquiteto faz um
passeio sobre suas principais obras, refletindo sobre o uso do diagrama nas criações de suas arquiteturas, citando
como base filosófica de suas próprias reflexões sobre o assunto, não apenas Deleuze, mas Foucault e Derrida. O
livro ainda consta de um prefácio preparado pelo professor R. E. Somol, do departamento de arquitetura e design
urbano da UCLA.
149

Klee desenvolveu muitos métodos didáticos e teorias nos ateliês de ensino da Bauhaus, a
exemplo da Teoria da forma e da figuração, onde examina a terceira dimensão do espaço
através de diagramas e desenhos construtivos quase esquemáticos que nos conduzem à
exploração de pontos nodais, superfícies, linhas e planos. Em “Confissões de um criador”,
de 1920, Paul Klee (1993, p.54) escreve que a arte não reproduz o visível, mas torna-o
visível: “o aspecto esquemático e fantástico da imaginação é um dado adquirido que, ao mesmo
tempo, se expressa com grande exatidão. Quanto mais puro é o desenho, isto é, quanto maior é a
importância atribuída à forma que está na base da representação gráfica, tanto mais deficiente é o
suporte para a representação realista dos objetos visíveis”.

O deus da floresta nórdica (1922) / Destruição e esperança (1916) / A máquina de chilrear (1922)
Fonte: PAUL KLEE (1993)

Estudos de Klee sobre a Teoria da forma e da


figuração, desenvolvidos nos ateliês da Bauhaus:
desenho construtivo, pontos nodais no espaço,
superfícies externas. Fonte: ARGAN (1992).

No trabalho intitulado “A fluidez do espaço”, um projeto arquitetônico para um centro


ecumênico, desenvolvido pelas alunas Patrícia Americano e Fernanda Rios no atelier de
projetos II da faculdade de arquitetura da UFBA, elas abordam a reflexão e a
comunicação como bases para suas próprias inquietações perante o desafio de criar um
150

espaço sagrado e de introspecção em pleno bairro do Rio Vermelho (reconhecido por


seus bares e espaços culturais de intensa boêmia, reduto de artistas e intelectuais
baianos e abrigo de uma das festas mais populares do calendário soteropolitano: a Festa
de Iemanjá que acontece todos os anos, no dia 2 de fevereiro) e em uma cidade sob
forte influência do sincretismo religioso entre o catolicismo e o candomblé. Em um
primeiro momento, as alunas foram buscar inspiração em alguns processos híbridos de
projetação110 e se contaminaram de referências plásticas e formais presentes na obra de
Theo Van Doesburg, na abstração artística do minimalismo, na espacialidade dos templos
barrocos da cidade e seus jogos de curvas e nuanças volumétricas, até às redobras da
matéria presentes nas confrontações de Gilles Deleuze; mas foi na manipulação de
modelos concebidos em diagramas que encontraram abrigo processual para a fruição de
seus perceptos e afetos frente à materialização de suas idéias.

Processos - modelos, dobras e croquis. Atelier II / FAUFBA (2008)


Fonte: acervo da autora

De forma empírica, elaboraram uma série de pequenas esculturas (modelos


volumétricos) com base em dobras trabalhadas intuitivamente sobre a maquete do
terreno, utilizando o emborrachado de EVA (etil vinil acetato), um material bastante
maleável. Nesse percurso, entre um vai e vem de investigação dinâmica e inúmeras
tentativas de manipulação desse material, resolveram eleger como elemento norteador
do processo, o abebé – um tipo de leque utilizado por Iemanjá. Elaboraram uma espécie
de silhueta dessa figura, uma abebé desconstruído, que se apresenta a priori em duas
dimensões. Esse elemento, então, começa a dançar no espaço e assumir formas
trabalhadas pela sensação e pelo toque de suas “fruidoras”, chegando-se a um diagrama
tridimensional, que as autoras denominaram de protótipo. Esse diagrama singular é uma
obra de arte, de formas irregulares e abstratas, que se abre aos nossos olhos e revela as
estruturas de sua interioridade. E quer ser arquitetura! Está entre nesse processo,
twilight... mas esse diagrama, jamais será a arquitetura, ele é um caminho que nos leva
a ela. “O diagrama é a possibilidade do fato e não o fato em si mesmo”, nos fala Deleuze
ao fruir sobre a obra de Francis Bacon. Esse diagrama, ao assumir posturas de protótipo,
já não é mais um diagrama de forças, pois já está em metamorfose (um diagrama não é
um modelo, no diagrama verificamos composições de intensidades muitas vezes

110
Ver neste capítulo: Processos híbridos – transições, oscilações e multiplicidades.
151

incorporais – quase uma máquina abstrata). Mas continua seu percurso na lógica da
sensação, pois deixa de ser representativo e quer se tornar real. Na verdade, ele nunca
foi meramente representativo, mas flui de maneira muito intensa. Segundo Deleuze
(2007, p.102), existe um trabalho preparatório muito árduo, quase excessivo, que
precede o ato propriamente dito de pintar ou de projetar, e esse trabalho muitas vezes é
invisível e silencioso. O ato de projetar, no percurso transcorrido pelas alunas, agora se
encontra em um outro momento; momento no qual o diagrama e suas formas abstratas
precisam dialogar com o programa arquitetônico estabelecido para o edifício e, dessa
maneira, ele sofrerá mais do que adaptações, principalmente nas adequações de escalas,
na sua inserção no sítio (implantação) e até na sua representação gráfica no plano
cartesiano (aspecto de desenho construtivo – as plantas do projeto).

Silhueta do abebé de Yemanjá:


base para construção do protótipo.
Na seqüência, transposição do
protótipo para o plano cartesiano
gerando diagramas.
Fonte: acervo da autora

Abaixo, maquetes de estudos desenvolvidas a partir dos diagramas – vista superior e inserção no terreno; conexão
com a Casa do Peso existente (núcleo dos pescadores); píer e acessos. Atelier II / FAUFBA (2008)
Fonte: acervo da autora
152

O uso de diagramas enquanto processo projetual foi abordado e incorporado por alguns
arquitetos. Peter Eisenman, por exemplo, é quase que um entusiasta nesse tipo de
pensamento, pois ele não só assimilou essa questão, como trabalhou essa temática tanto
discursivamente em seus textos como em suas práticas projetuais. Poderíamos citar a
matriz cúbica trabalhada enquanto diagrama na produção de uma série de suas casas111,
processo esse iniciado ainda no final da década de 1960 (logo após a apresentação de
sua tese de doutorado intitulada “The Formal Basis of Modern Architecture”), ao re-visitar
a obra do arquiteto italiano Giuseppe Terragni (1904-1943)112, o edifício sede do partido
fascista na cidade de Como, a Casa Del Fascio (1932-1936). O tipo arquitetônico,
obviamente, nos remete ao esquema desenvolvido por Andrea Palladio (1508-1580) para
o Palazzo Thiene em Vicenza (1542-1558) – uma tipologia de pátio central. Segundo
Duarte (2002, p.170), a proposta para a série de dez casas, “são fruto direto de um
trabalho semiológico com os elementos arquitetônicos, estabelecendo um sistema que
permitia, a partir de sua codificação, a produção de uma série ilimitada de combinações,
num processo lingüístico que se volta sempre sobre si mesmo”. O cubo, trabalhado por
Eisenman, passa por uma série de questionamentos em sua estrutura formal bruta; esse
elemento sofre distorções, extrusões, subtrações, decomposições, enfim, deslocalizações.
Talvez, parafraseando Michael Graves: o que Peter Eisenman está fazendo não é
arquitetura. Sobre essa questão, o próprio Eisenman (1987, p.195) comenta que os seus
trabalhos, muitas vezes, estão fora daquilo que ele supõe ser o vocabulário natural da
arquitetura. Esse deslocamento deverá ultrapassar o objeto arquitetural e invadir o
universo que cerca os arquitetos (Tschumi, 1977, p.581). O que Eisenman fez, ao
experimentar composições diagramáticas enquanto eixos de desconstrução em
edificações relativamente pequenas – habitações unidomiciliares – foi enfatizar o
processo de criação em detrimento do objeto acabado. Talvez suas casas não tenham lá
tanto significado do ponto de vista de suas imagens ou de seus signos, embora, sem
dúvidas, provoquem sensações - hoje, saber decodificar, não tem a menor importância.
A relevância de sua obra aponta para a própria função do papel do processo: “o modo de
fazer converteu-se em algo mais importante que o artefato, a forma explica a maneira
como a obra foi elaborada” (MONTANER, 1993, p.168).

111
Peter Eisenman iniciou suas experiências trabalhando a estrutura interna da matriz cúbica, procurando estar
entre o diagrama e o tipo (EISENMAN, 2001, p.62), primeiramente na House I, localizada em Princeton, New
Jersey, em 1967-68. E prosseguiu seus experimentos, sempre “brincando” com a forma, as tensões, a diferença, a
implosão, a extrusão, o excesso, a rotação, etc, em meio ao sentido de interioridade: House II (Hardwick,
Vermont, 1969-70); House III (Lakeville, Connecticut, 1969-71); House IV (Falls Village, Connecticut, 1972-
76); House VI (Cornwall, Connecticut, 1972-75); House X (Bloomfield Hills, Michigan, 1975); House 11a (Palo
Alto, Califórnia, 1978); House El even Odd (1980); Fin D´Ou T Hou S (1983) e a Guardiola House (Cadiz,
Espanha, 1988).
112
Verificar em Eisenman (2003). Giuseppe Terragni: Transformations, Decompositions, Critiques.
153

Sobre o pensamento e obra de Eisenman in process, Rafael Moneo (2004, p.151)


comenta: “Eisenman´s desire to put on records what he calls the “ideas” that generated
the architecture makes him confuse them with process. Only by knowing about the
process can we have access to the essence of his architecture”.

House III. Casa Miller


Fonte: EISENMAN (2001)

Matriz cúbica – diagramas de interioridade utilizados


como processos de estudo para House III (1969-1971)
Fonte: EISENMAN (2001)

Se na investigação da matriz cúbica ele mergulha, analogicamente, na exploração do seu


sentido de interioridade, construindo diagramas a partir da desconstrução de sua forma
básica, para o projeto da El even Odd ele trabalha três estágios de axonometria com
base no modelo elaborado para a House X. Primeiramente se apropriando de uma das
projeções ortogonais realizadas na House X, no segundo estágio criando extrusões de
projeção axonométrica referente aos 45 degraus de uma escada trabalhada em ângulos
localizada no mesmo pavilhão tipo e um terceiro momento separando e fragmentando o
elemento formal originado desse segundo estágio, resultando em um outro plano
volumétrico; ele gera, assim, um diagrama contínuo de transformação que, de certa
forma, desconstrói a idéia tradicional de uma arquitetura voltada para uma moradia. O
resultado denota uma composição que questiona a própria perspectiva visual comum ao
“olho humano”.

O projeto para a Casa Guardiola é considerado o ponto de mudança na obra de


Eisenman, pois as composições e jogos volumétricos foram sendo construídos com o
auxílio de softwares de computador, não mais analogicamente, mas digitalmente,
virtualmente113. É nesse momento que Eisenman dá por encerrada suas investigações em
pequenos experimentos como as residências, processos que ele próprio considera
riquíssimos, pois o arquiteto consegue dominar melhor essas pequenas escalas
potencializando a sua própria relação subjetiva com o que está fazendo – se colocando
entre e dentro dessas conexões interiores -, e parte para investigação de diagramas mais

113
Temática que Eisenman irá retomar anos mais tarde, lá pelos idos de 1997, época da Virtual House
Competition, uma casa concebida a partir de nove cubos abstratos e translúcidos trabalhados em função da
vetorização de suas linhas com auxílio da tecnologia computacional. Verificar em TRACING EISENMAN
(2006, p.257).
154

conceituais e amplos no sentido de trabalhá-los tanto na escala da cidade quanto na


maturação de projetos maiores e coletivos. São os diagramas de exterioridade em
conexão com a mega-máquina que é a cidade, como colocou Lewis Mumford.

Casa del Fascio (1932-36), Como - Itália. Arq. Giuseppe Terragni. Inserção urbana e vista interna.
Fonte: EISENMAN (2003)

Fachada da House II (1969-70), Vermont - EUA.


Vista interna da House I (1967-68). New Jersey – EUA.
Diagramas, croquis, modelos axonométricos. Fonte: EISENMAN (2001)

Seria impossível aqui referenciar de forma substancial as tantas obras de Eisenman que
transitaram nessa exploração diagramática. No projeto do IBA Social Housing at
Checkpoint Charlie, em Berlim (1981-85), o famigerado Wexner Center for the Visual
Arts and Fine Arts Library, em Ohio (1983-89), o Biocentrum, na Alemanha Oriental
(1986-87), o concurso para o Parc la Villette, em Paris (1987), o Aronoff Center for
Design and Art, também em Ohio (1988-96) ou o Koizumi Sangyo Office Building em
Tokyo (1988-90), entre tantos outros edifícios (só para citar alguns que foram
desenvolvidos até o início da década de 1990) voltados para um público mais amplo,
foram concebidos em seus processos de maneira tão intensa graças aos experimentos
realizados anteriormente nas residências.
155

Explorações diagramáticas. Koizumi Sangyo Office Building (1988-90), Tokyo - Japão.


Fonte: TRACING EISENMAN (2007)

Quando Eisenman escreve Diagram Diaries, em 2001, ele re-visita suas principais
obras, aquelas que foram geradas a partir desse processo e, como já colocado, ele faz
uma ponte bastante interessante e pertinente com o pensamento deleuzeano. Eis que
esse momento requer uma pequena pausa, para que possamos compreender a
intensidade da conexão do uso do diagrama não apenas enquanto processo de projeto,
mas enquanto um conceito incorporal, uma máquina de forças como traçado por Deleuze
em sua obra “Francis Bacon: lógica da sensação”.

House X (1975), Michigan - EUA.


House El even Odd (1980).
Guardiola House (1988). Espanha.
Diagramas Fin D´OU T Hou S (1983).
Fonte: EISENMAN ( 2001)

Nesse livro, Deleuze penetra a obra de Francis Bacon (1909-1992) a partir de uma série
de questões que ele levanta na pintura desse artista; um desses pontos analisados pelo
filósofo francês diz respeito aos diagramas. Numa intenção primeira, Deleuze talvez
pretenda encontrar na obra desse pintor irlandês um caminho que dialogue com o modo
de pensar contemporâneo, que faz front à lógica de um pensamento dual e binário; uma
obra que, segundo o tradutor da edição, o professor Roberto Machado, da UFRJ,
“pretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração”. E mais: “a transformação em
conceitos de elementos não conceituais – perceptos e afetos – oriundos da literatura e
das artes”.
156

O ato de pintar em Bacon se define pelas marcas ao acaso, pelo jogo de tintas e traços
lançados em diversos ângulos e em velocidades variadas. Esses traços são irracionais,
involuntários, acidentais e livres. Portanto, são não representativos, não ilustrativos e
não narrativos. São traços assignificantes, traços de sensação, mesmo que confusos
(DELEUZE, 2007, p.103). O diagrama é um conjunto operatório de linhas e zonas, tal
qual experimentados por Eisenman. Sugere, mas do que qualquer coisa. É um caos,
quase uma catástrofe, mas abre domínios sensíveis (idem, p.104). É nesse sentido, que
tal processo foge à representação clássica da organização, uma escolha ao acaso que se
opõe a uma concepção de escolha binária. As linhas, tal qual em Klee, Kandinsky ou
Pollock, passam entre os pontos e não pára de mudar de direção, até atingir uma
potência de forças em sua superfície. Como nos diagramas dos arquitetos, que transitam
entre espacialidades muitas vezes estranhas ao olho do observador, mas que evoca uma
geometria do sensível em suas tensões espaciais, muito comuns nos processos
contemporâneos – planos verticais e horizontais que se fundem em profundidade e ao
mesmo tempo revelam pontos em desequilíbrio, como nas explosões e fragmentações da
matemática sensível de Zaha Hadid, nas intuições, devaneios e simulações de Frank
Gehry, no ciberespaço de Marcos Novak, na arquitetura fluída do NOX, na virtualidade de
Greg Lynn ou simplesmente nas linhas surreais do Coop Himmelblau.

O ato de pintar em Francis Bacon. Acaso, variações, formas de indeterminação, traços de sensações.
Fontes: www.enchgallery.com / www.artnet.com / www.thismoment.pwp.blueyonder.co.uk

Arte digital sobre obra de Francis Bacon. The Virtual House (1997), Berlim –
Alemanha / Eisenman Architects. Explosões e fragmentações na matemática
sensível de Zaha Hadid – Centro de Arte Contemporânea de Roma (1999).
Fontes: www.enchgallery.com / TRACING EISENMAN (2007) / EL CROQUIS (2004)
157

Outro arquiteto que se abriga no uso do diagrama em suas composições é o americano


Richard Meier, embora sem o rigor e a erudição de Peter Eisenman. Meier juntamente
com o próprio Peter, Michael Graves, Charles Gwathmey e John Hejduk formaram um
grupo denominado Five Architects, em 1969. Se Eisenman re-visita a obra de Terragni, já
Richard Meier será reconhecido em função de sua retórica neo-corbusiana ao apostar em
um purismo geométrico e extravagantemente branco, muito próximo à linguagem
exercida pelo mestre da primeira geração da vanguarda moderna. A Casa Douglas
(Michigan, 1971-74), por exemplo, se assemelha em sua composição formal, aos
primeiros experimentos de Eisenman (House I, II e III) talvez fruto das discussões
reflexivas e críticas trabalhadas pelo Five Architects em outrora. Após a dissolução do
grupo, Meier trilha caminhos outros e se transforma em um arquiteto de “sucesso” na
América, principalmente ao exercitar sua produção arquitetônica para as grandes
corporações dos EUA.114

Processo de projeto iniciado através da manipulação de diagramas. Na seqüência, estudo de modelos, maquete e o
edifício construído. Nunotani Corporation Headquarters (1990-92), Tokyo – Japão. Eisenman Architects.
Fonte: TRACING EISENMAN (2007).

Os diagramas em sua composição de forças determinam outros campos de fuga visual e


possibilitam aberturas para novos territórios e práticas que se proliferem por horizontes
outros, que não deixem escapar a tensão. Os processos diagramáticos podem gerar, em
boa parte dos experimentos, proposições não-lineares, simultâneas, nem sempre

114
Ver BENEVOLO (2007).
158

conclusivas, mas que possibilitam conexões sincrônicas entre realidades conceituais,


objetuais e gestuais possíveis de serem articuladas ao projeto, aos mapas (EISENMAN,
2001). Para Deleuze, o diagrama também pode se tornar uma chave para a exploração
do novo, daquilo que está por vir, isso porque o diagrama é diferente da estrutura em si
e, na dita “arquitetura clássica” ou pensamento clássico/estruturalista, o diagrama é
equivocadamente interpretado e demonstrado em relação a uma estrutura hierárquica,
estática e que tem um ponto de origem. Porém, o diagrama é um flexível jogo de
relações entre forças; uma combinação aleatória composta de distribuições, focos seriais
e formalizações funcionando como mecanismos estruturais. O arquiteto poderá conduzir
esse diagrama a uma estruturação subordinada a algum princípio de organização, no
sentido de materializá-lo enquanto obra construída, mas deixará de ser diagrama, pois o
diagrama se refere ao processo, aponta para as possibilidades de fato, não o fato em si
(WITTGENSTEIN, apud DELEUZE, 2007). Para Eisenman (e aí articulando essa
experimentação em sua própria arquitetura), se uma estrutura é vista verticalmente ou
como uma certa ordem hierárquica de partes constituintes, o diagrama deve ser
imaginado e/ou concebido quase que acidentalmente, sem hierarquias, tanto
horizontalmente quanto verticalmente quanto transversalmente, a partir de conexões
livres, de pontos ilimitados, de redes de superposições e layers que não se estabilizam
em um plano ou em uma origem, onde a base (terreno) e figuras flutuantes estão entre
uma e outra. Um diagrama transita entre a matéria visual formal e a formalização de
articulações de funções tensivas.

A Sahara, a rhinoceros skin, this is the diagram suddenly stretched out. It is like a
catastrophe happening unexpectedly to the canvas, inside figurative or probabilistic
data. It is like the emergence of another world. (...) The diagram is the possibility
of fact – it is not the fact itself (DELEUZE, apud EISENMAN, 2001, p.23).115

A obra de Eisenman está em constante experimentação e transformação, mesmo que na


produção de mega-estruturas, a exemplo da proposta para Biblioteca de L´ihuei116, na
Suíça (1996-97), onde trabalha um diagrama conceitual na rede urbana do sítio ou para
a proposta da Cidade da Cultura da Galícia, uma intervenção monumental iniciada em
1999 (projeto) e que ainda encontra-se em execução, onde os processos diagramáticos
envolvem dimensões muito mais complexas e se deformam sobre si mesmos.
Diagramas de exterioridade que começam a dialogar com o lugar.

115
Verificar em Diagram Diaries, algumas citações referentes a um texto de Deleuze específico sobre os
diagramas, podendo ser conferido em DELEUZE, Gilles. The Diagram, in The Deleuze Reader, Constantin V.
Boundas. New York: Columbia University Press, 1993, p.194-199.
116
Conferir em TRACING EISENMAN (2006, p.251).
159

Seqüência dos diagramas


conceituais – a rede urbana e a
nova paisagem determinando os
traços do processo. Modelos de
estudo volumétricos e
estruturais da Biblioteca
L´ihuei (1996-97), Suíça.
Eisenman Architects.
Fonte: TRACING EISENMAN
(2007)

No processo utilizado para criação de seu mais recente projeto em construção, a “Cidade
da Cultura de Santiago de Compostela”, fez uma releitura da 5a parte do Codex
Calixtinus117, um dos mais importantes códigos da era medieval. Realizou uma espécie de
transferência das linhas e curvas da concha (uma espécie de simbolismo matriz presente
no livro de Saint James, do medievo) para o plano da cidade.

Desconstruindo a concha, ele a rebate no centro antigo de Santiago e o master-plan


nasce através de diagramas de zonas de funções a partir da topografia do sítio,
fazendo alusões às escavações da cidade artificial em “Check-point Charlie project” e as
superposições dos mapas de Berlim dos séculos XVII, XVIII e XIX. Os modelos dos seis
edifícios são trabalhados em terceira dimensão, através de extrusões do plano horizontal
e deformações de linhas das curvaturas das superfícies, para só depois serem
organizadas as funções do programa, inserindo-as na grande casca.118 Nesse processo
complexo é necessário construir maquetes físicas de estudo na escala de 1/50 para
visualizar melhor as relações entre os edifícios e a rua. Uma descrição minuciosa de todo
o processo projetual para esse complexo pode ser conferido no livro CODEX, escrito por
Eisenman e sua equipe em 2005.

Eisenman transferred the shells ridges to his plan for the City of Culture, where they
reflect an internal order that is likewise patterned on a shallow concha, or shell-shaped
hillock, furrowed by a series of passageways that recall the narrow streets of Santiago.

117
O Codex Calixtinus é dividido em cinco partes, onde a 5a parte desse código refere-se ao guia de peregrinação
– a guide for pilgrims traveling from France through Spain to Santiago.
118
Os diagramas reorganizados, sobrepostos possibilitam a configuração de novas estruturas e,
conseqüentemente, a produção de novas formas.
160

(...) City of Culture emerges from a reading in between the patterns that help us
decipher diagrams and images (EISENMAN ARCHITECTS, 2005, p.25).

As obras foram iniciadas em 2001 com previsão de finalização em 2012; segundo


entrevista recente de Peter Eisenman à revista italiana Domus (fevereiro de 2007),
quatro dos seis edifícios propostos encontram-se em construção – o Palácio dos Arquivos,
a biblioteca, o edifício administrativo e o Museu de História – e, na época da entrevista,
ainda seriam iniciadas as obras do Teatro e do Centro de Novas Tecnologias. Trata-se de
um mega projeto, sem dúvida, inserido em uma área de 141.800m2 e investimentos da
ordem de 340 milhões de euros. O projeto de Eisenman foi escolhido pela simbiose da
linguagem contemporânea empregada na solução da proposta em alinhamento com as
questões históricas da antiga capital da Galícia.

A concha representada em uma das páginas do Codex Calixtinus, um dos muitos guias de peregrinação da
jornada para Santiago de Compostela, e o mapa do centro da cidade. As primeiras linhas sobre a “casca” da
concha e estudos de diagramas de zonas de funções. Fonte: EISENMAN ARCHITECTS (2005)

Layers de informação: o curso das linhas, a partir das desconstrução da concha e conexão com o
traçado medieval original de Compostela, é usado como processo para o desenvolvimento do
desenho da cidade e seus edifícios. Os estudos dos modelos demonstram os vários efeitos das ruas
sobre a topografia do lugar. Fonte: EISENMAN ARCHITECTS (2005)

Mais a frente veremos que o uso do diagrama também é apropriado por muitos
arquitetos espanhóis, que não fazem parte, ainda, do star system internacional, naquilo
que eles mesmos chamam de procesos de hibridación. Suas propostas são mais radicais,
beirando o surrealismo. Muitas ainda transitam no plano micro ou na exploração do
próprio pensamento.

Embora o discurso pressuponha a obra, a obra, provavelmente, nem sempre expressará


o discurso, pois, queiramos ou não, são coisas de natureza diversas. Michel Foucault nos
lembra que o que se diz não habita no que se vê, as palavras e as coisas são expressões
de natureza diferente, embora estabelecem entre elas interfaces, porém, somente
161

pressupõem correspondências. Os diagramas, as maquetes, os modelos, os desenhos, os


mapas, as plantas e os sketchs, embora apoiados em uma discursividade histórica, na
experiência empírica, em experimentações estéticas, em percepções, em uma
multiplicidade de conexões dessa exploração processual, provavelmente não explicitará o
histórico CODEX. O resultado construtivo e o conjunto edificável também não
explicitarão. Ou explicitarão nas entrelinhas? O que importa aqui, no momento, se refere
ao modo de fazer. Deixemos essa questão após a conclusão das obras.

O que Eisenman procura fazer é um discurso conceitual e sua arquitetura acaba


pertencendo a uma diferente forma de pensar e criar: a arte. Embora exista uma
pressuposição recíproca entre o que se diz (discurso) e o que se vê (o que se faz, obra).
Quando escreve “O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim”, ele deixa uma sutil
mensagem, onde se lê: “Este ensaio baseia-se em hipóteses não verificáveis ou valores:
uma arquitetura intemporal (sem origem, sem fim); uma arquitetura não
representacional (sem objeto); e uma arquitetura artificial (arbitrária, não-racional)”.
Nada mais, nada menos do que uma provocação.

CODEX
Cidade da Cultura da
Galícia – diagramas
virtuais, modelos, estudo
de funções, maquetes
internas analógicas e Fonte:
digitais, o projeto em EISENMAN ARCHITECTS (2005)
construção.
162

A manipulação de modelos dinâmicos – a poïetica

A experimentação dos materiais e a modelação para a criação de elementos


tridimensionais foram utilizadas por artistas de vários períodos da história da arte e da
arquitetura; na Grécia antiga, no medievo, no renascimento, no maneirismo, nas
vanguardas do século XX e na contemporaneidade, a exemplo de Michelangelo, Poussin,
Gaudí, Buckminster Füller, Frei Otto, Moholy-Nagy, Frank Gehry, entre outros.

Dentro do Atelier II da Faculdade de Arquitetura da UFBA, estudamos o método de


criação através da Poïetica, ou seja, a arte enquanto processo para geração de formas. A
obra nasce através dela mesma, com participação direta do fruidor - o foco está voltado
ao sujeito.119 Trabalhamos o modelo dinâmico120 e o próprio material, permitindo uma
maior interferência criativa dos alunos, para somente depois adequá-lo ao utilitas e
firmitas e, finalmente, à representação técnica. Venustas estaria presente na própria
modelação arquetípica das formas.

Em arquitetura, a poïetica deve utilizar o desenho como ação sincrética, desenvolvido


na geometria espaço-temporal. O ícone da projeção só pode ser utilizado em fase após
a ‘modelagem’. Esse método é considerado por alguns autores como uma ‘caixa preta’
de impossível previsão e sistematização, no entanto, o mesmo deve ser analisado a
partir dos resultados. O procedimento através desse método é da modelação dinâmica
através do desenho com o próprio objeto se fazendo (OLIVIERI, 2002, p.75).121

Através do processo das dobras, enquanto “construções labirínticas múltiplas”, o aluno


experimenta as nuanças fenomenológicas do material e seus resultados plásticos em
função das particularidades estruturais, das relações de esforços, dos aspectos formais e
das articulações entre planos e volumes. Os materiais são manipulados antes que a idéia
se estabeleça totalmente na mente. Assim, um corpo pode, juntamente com o espaço
que lhe é coexistente, ser atravessado por seus devires, construir com ele uma
multiplicidade de afetos. Essa relação entre corpo e ambiente se revela como o
“acontecimento da coexistência”.

Essa transversalidade e as novas conexões de experimento e subjetividade irão instigar e


provocar um novo campo de reflexão: a busca de sistemas expressivos que
potencializem a arquitetura como algo oscilante entre seu caráter de objeto e sua

119
O objeto não é o ponto central, mas sim a relação corpo. A concepção dos espaços muda a partir do momento
em que o corpo e seus impulsos vitais passam a ser o elemento transformador. A sintaxe da manipulação de
modelos se identifica com a imagem consciente do corpo - relação entre corpo, movimento e modelo.
120
O modelo aqui não é entendido como um objeto a ser reproduzido por imitação, mas como um elemento
plástico volumétrico suscetível a experimentações pelos alunos (fruidores) e de imprevisível resolução formal.
121
Mais sobre o assunto ver “A Poética dos Modelos”, do mesmo autor, no prelo, onde os estudos sobre as
relações entre o corpo e o material, a simulação nos modelos e a transposição de novas linguagens surgem
através de problematizações pedagógicas que refletem os métodos de ensino desenvolvidos no Atelier da
FAUFBA, formando um processo que compatibilize criação, representação e técnica.
163

vocação de sujeito. O objeto não é mais o ponto central, e sim o sujeito (fruidor) através
do movimento, da intuição, dos perceptos e claro, das lógicas de saber e formas de
pensar.

Tal procedimento talvez não seja tão erudito e desterritorializado quanto a exploração
dos diagramas, processo exposto anteriormente, embora os esforços diagramáticos
muitas vezes surjam inconscientemente na manipulação do material, como um desenho
em constante discurso espaço-temporal. Esse desenho não funciona como representação
de uma idéia, mas, sobretudo como processo. O espaço euclidiano, em suas três
dimensões, é o campo da percepção visual no tempo da permanência, em sua
compreensão estática. As outras dimensões do espaço nos abrem através de uma
construção mental que se faz no espaço-tempo, na expressão de uma duração, no seu
deslocamento – a quarta dimensão (OLIVIERI, 2002, p.23). Mas qual seria o elemento
gerador do espaço? Parafraseando Milton Santos: “não pode haver espaço sem ação”. A
quinta dimensão do espaço, então, se constrói para além da esfera do olhar, do
deslocamento cinético ou de um movimento, o que constrói a quinta dimensão do espaço
são as ações que acontecem no agora (idem, p.24). No processo poïetico, os modelos
dinâmicos são gerados a partir da ação do fruidor; ali está acontecendo a quinta
dimensão do espaço em consonância com a criação das formas volumétricas, nas
pequenas esculturas arquiteturais.

Essas vibrações formadas pelo mundo das forças não são percebidas diretamente na
tridimensionalidade, mas somente alguns fenômenos. A quinta dimensão do espaço é
constituída de uma trama, um campo modelador das durações, formadoras dos
modelos de fenômenos de interioridade e exterioridade (...) A incorporação da quinta
dimensão do espaço ao estudo da arte e da arquitetura foi responsável diretamente
pelas grandes mudanças nas artes, mesmo que a sua evidência tenha mascarado a
interioridade (ibidem, p.24-25).

“O olho do furacão” – Estudos para uma casa de shows realizados


pelos alunos Inuri, Manoel e Olmo. Atelier II / FAUFBA (2004).
Fonte: acervo da autora
164

Já as maquetes de estudo, sejam físicas ou digitais, assumem outra função - transformar


os primeiros rabiscos em algo palpável. A maquete pode ser considerada uma espécie de
croqui vivo, como uma extensão da própria mente, podendo ser elaborada com materiais
simples que estão à mão. Para o arquiteto Paulo Mendes da Rocha a maquete deve
funcionar mais como um instrumento do desenho, uma ferramenta para se estudar o
projeto e que faz parte do processo de criação, e não para ser exibida ou para vender
idéias (que o digam as peças publicitárias da especulação imobiliária). As maquetes não
precisam de cenografia (arvorezinhas, carrinhos ou bonequinhos), o modelo por ele
mesmo já representa a força de uma idéia, mesmo que seja esquemática, tosca, crua. E
evoca: “faça você mesmo”. É na confecção das maquetes que verificamos proporções,
transparências e escalas.

A maquete, assim, representa para o arquiteto um momento de aferição, no qual ele


verifica as proporções, as transparências, as sombras que aqueles volumes geram e a
relação com as diferentes escalas urbana e humana (ROCHA, 2007, p.12).

O arquiteto comenta no livro “Maquetes de papel”122 que os projetos da Praça dos


Museus da USP – Museu de Zoologia, de Arqueologia e Etnologia (2000) foram originados
a partir da poética volumétrica do uso da maquete como instrumento do processo
criativo. Antes de elaborar qualquer risco, ele começou a estudar o lugar e as relações
espaciais através dos modelos volumétricos. Essa manipulação é entendida como fases
de estudo de imprevisível resultado, onde “a idéia básica permite ensaiar por meio de
modelos as virtudes das nossas hipóteses” (idem, p.50). Muitas vezes, esses momentos
são criados na solidão.

Segundo Paulo Mendes da Rocha, a erudição não pode abolir a experimentação. Eugène
Freyssinet, considerado o pai do concreto protendido, fez suas experiências de modo
empírico, pensando nas deformações, nos esforços, testando seus modelos volumétricos
e muitas vezes imaginando o que não existia. Obviamente, não conseguiu calcular todas
as suas descobertas.

No projeto para a Igreja da Sagrada Família, Antoni Gaudí (1852-1926) utiliza um


processo bastante revolucionário para a época – a manipulação dos modelos e dos
esforços, compondo desenhos dinâmicos através dos arcos parabólicos catenários e
pequenos pesos refletidos no espelho. Experimenta maquetes, manipula massas e estuda
os empuxos pelo método poïetico. Buckminster Füller (1895-1983), por exemplo, vai
estudar a formação geométrica da natureza para chegar a conclusão que essa formação
se baseia em sistemas coordenados de vetores, tendo como estrutura básica o triângulo.

122
Essa publicação se refere a notas de aula e oficina sobre maquetes ministrada por Paulo Mendes da Rocha na
Casa Vilanova Artigas, em Curitiba, em abril de 2006.
165

Assim, formas triangulares e tetraédricas combinadas formam círculos e esferas123 e, a


partir dessa lógica, ele concebe a Construção Geodésica, exibida na EXPO de Montreal,
em 1967. A grande membrana de Frei Otto, apresentada também em Montreal, pensada
e materializada como uma grande teia tensionada capaz de cobrir 7.700m2, irá servir de
inspiração para as coberturas voadoras executadas no Parque Olímpico de Munique
(1972). Nesse sentido, nos dois últimos exemplos, há uma incorporação do processo
mimético.

Inspirados no pintor surrealista Magritte, os alunos iniciaram o


processo projetual de uma residência universitária através da
modelação de uma folha – uma cobertura que representa um
abrigo que dá sombra. Os ambientes da residência possuem
paredes móveis e foram pensados como espaços integrados e
flexíveis; relações que os estudantes foram buscar no trabalho do
arquiteto húngaro Yona Friedman e sua “architettura mobile”.
Atelier II / FAUFBA (2005). Fonte: acervo da autora

Mais do que modelos de ensaio, mais do que a simples materialidade da idéia, o processo
poïetico permite um maior diálogo entre o material e o artista, através de uma ação
direta:
O método poïetico, além de ser um meio, é significado englobando a invenção, a
composição, o acaso, a reflexão, a imitação, a cultura e o ambiente, além da análise
técnica dos procedimentos, instrumentos materiais e suportes de ação. (REY, 1996,
apud OLIVIERI, 2002, p.74).

Como já comentado no capítulo III, Lásló Moholy-Nagy trabalhou seus processos


criativos junto aos alunos nos ateliês da Bauhaus. Nos “exercícios táteis” e “exercícios
dos sentidos” os alunos experimentam as sensações dos materiais e de seus próprios
órgãos corporais, principalmente o tato, a visão e a audição. Eles trabalham com restos
de pão, couro, papel, porcelana, vidro, borracha, metal, esponja, entre outros materiais,
na tentativa de estabelecer os valores das sensações em diagramas (MOHOLY-NAGY,
2005, p.22). Por exemplo, eles montam pequenas estruturas utilizando parafusos e
trabalham a sensação de pressão e vibração. No uso dos pregos, eles vivenciam o
material a partir da sensação de picadas. Estudam, inclusive, texturas as mais variadas
possíveis, seja a pele de um gato, seja a pele humana jovem e lisa, seja a pele rugosa de
um ancião ou até o processo de decomposição de uma maça tomada por fungos. Um

123
É uma inspiração mimética na estrutura molecular do diamante.
166

paradigma têxtil aventado por Gottfried Semper – “do têxtil deriva a arquitetura”. Nada
escapa aos sentidos. Mesmo nas suas pesquisas cinéticas, com as esculturas, as massas
e os volumes, Moholy acreditava que a investigação dos elementos invadia a expressão
subjetiva e era dessa maneira que ele problematizava a fronteira entre a arquitetura e a
escultura. É como se, de alguma maneira, esse processo criativo se afastasse um pouco
da racionalidade e entrasse num campo vago e de incerteza, sugerindo uma produção
aparentemente caótica. Ao contrário da formulação de El Lissitzki quando da transição de
experimentações para o campo mais racionalizado da arquitetura: “Os métodos e sistemas
básicos da arquitetura é desenvolver a expressão gráfica e plástica dos seus projetos construtivos
através do uso de modelos”.

Manipulação de modelos dinâmicos empregando diversos materiais: borracha, arame,


esponja, plástico, isopor, tecido e casca de laranja. Os modelos foram utilizados como
estudos para o projeto de um atelier de artista, desenvolvido por alunos do primeiro ano
do curso de arquitetura. Introdução ao Projeto / UNIFACS (2007). Fonte: acervo da autora

Estudo para projeto de um atelier de artista em um terreno topograficamente acidentado - a arte enquanto
processo para geração de formas. No exemplo à esquerda, a aluna Gisela desenvolveu um protótipo inspirado na
obra do escultor Eduardo Chilida. À direita, o aluno João Hênio criou seu projeto a partir de referências ao artista
Amílcar de Castro. Introdução ao Projeto / UNIFACS (2007). Fonte: acervo da autora

Processos de criação através da poïetica , atendendo programas diversificados: espaço


para shows, templo sagrado e casa do saber africano. Atelier II / FAUFBA (2004 –08).
Fonte: acervo da autora.
167

*****
Acreditamos que, de acordo com a exposição já problematizada no capítulo I124, o atelier
de projeto, assim como a escola, é o lugar da experimentação. Muitas soluções
trabalhadas pelos alunos têm alcançado ótimos níveis de propostas arquitetônicas pelas
próprias características do processo projetual explicitadas acima, como podemos verificar
nas imagens anexas. Os alunos se permitem estar no meio de plataformas mais abertas,
explorando os modos de fazer e, claro, estabelecendo uma metodologia de maior
intensidade subjetiva.

Não comungamos com a idéia de que a prática da arquitetura, esteja na sala de aula ou
não, deva atender a mecanismos reprodutivistas. Acreditamos em transformações,
criações, pensamentos e até conflitos.

Na Mostra Internacional da Bienal de Veneza em 2002, a Faculdade de Arquitetura de


Montevidéu representou a produção uruguaia no evento a partir da exposição de
inúmeros croquis elaborados por estudantes dessa instituição tendo como tema:
Montevideo – Next City. Um exercício provocador tendo como mote as transformações
das estruturas urbanas e territoriais e as possíveis integrações em eixos de conexão com
outras cidades da América do Sul, como Buenos Aires e São Paulo. Um esforço que
considerou a cidade a partir de suas metamorfoses, reconhecendo a real materialização
do passado/presente/instante e um possível cenário para o futuro.

Montevideo – Next City.


Fonte: LA BIENNALE DI
VENEZIA (2002)

Alguns experimentos utilizando conceitos como diagramas e analogia estão sendo


desenvolvidos enquanto processo projetual na disciplina intitulada “Linguagem” referente
ao segundo semestre do curso de Arquitetura da Unimep, sob orientação do professor
Octavio Lacombe.125 O professor aponta algumas heranças presentes nas escolas de
arquitetura, principalmente nas cadeiras de projeto, quanto aos métodos tradicionais de
representação que ainda estão aprisionados em recursos bidimensionais do desenho
codificado. Ao utilizar o diagrama enquanto hipóteses projetuais, faz uma ponte com o
raciocínio de Charles Peirce e experimenta modelos diagramáticos tridimensionais
trabalhados pelos alunos do curso, onde a descoberta da arquitetura está sempre em
vias do porvir. Para Deleuze (2007), a linguagem analógica seria uma linguagem de

124
Verificar “Experimentação e formação disciplinar”
125
Ver LACOMBE, Octavio. O projeto como descoberta. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br>.
168

relações, que comporta os movimentos expressivos, os signos paralingüísticos (tons e


sons não lingüísticos que acompanham a fala), os sopros e os gritos. A teoria semiológica
de Peirce define os ícones pela semelhança e os símbolos por uma regra convencional,
mesmo que tais símbolos comportem ícones que ultrapassem a mera semelhança
qualitativa, compreendendo diagramas (idem, p.117)126.

Analogia, diagramas e experimentações. Projeto dos


alunos da disciplina Linguagem, do curso de Arquitetura
da UNIMEP. Fonte: LACOMBE (2007).

Exercícios interessantes, como as “próteses perceptivas” – uma espécie de laboratório


sensorial de investigação do corpo - são introduzidas em uma série de experimentações
práticas e discussões teóricas relacionadas com o ensino de projeto no recém criado
Curso de Arquitetura e Urbanismo do Unileste-MG. Nessa escola ainda podemos nos
defrontar com as “máquinas de ler”, um dispositivo para leituras da “micro-história”
enquanto uma investigação transversal em contra-posição a uma história universal da
arquitetura oficial; as “construções experimentais”, onde alunos constroem protótipos
para abrigos flexíveis, montáveis e desmontáveis, transportáveis, moduláveis,
articuláveis, entre outros tantos experimentos. Segundo seus fundadores, o currículo do
curso privilegia a vivência cotidiana da invenção e da integração dos “diversos saberes
que compõem o caleidoscópio arquitetônico”, onde a convergência de outros campos da
cultura se articula às práticas de ensino. Tais atividades podem ser verificadas na ar -
“revista de arquitetura, ensino e cultura”.127

Produção do Atelier II da FAUFBA (2004). Fotos: acervo da autora


126
Essa questão, colocada por Deleuze com base na teoria do signo peirciano denota que as pesquisas de Peirce,
embora sejam significativas, acabaram restringindo o diagrama a uma similitude de relações. Verificar as
análises que esse autor faz acerca dos sintetizadores analógicos modulares, da linguagem analógica e do
diagrama enquanto modulador na obra “Francis Bacon – lógica da sensação”, mais especificamente o capítulo
“A analogia”.
127
As imagens e textos sobre as atividades citadas podem ser encontradas nessa revista, ano1, número 1, de
junho de 2004, uma publicação do CAU do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais.
169

Experimentações - próteses perceptivas, o corpo violado,


implantes, máquinas que se conectam aos usuários, micro-
leituras, relações corpo x espaço, construções
experimentais. Imagens das aulas práticas do CAU.
Fonte: Revista AR (2004).

Como colocam Deleuze e Guattari (1992, p.217), “é preciso um método que varie com
cada autor e que faça parte da obra”. Como transgredir ou quebrar o aprisionamento
formal herdado do mundo da modernidade e da representação, se não através do(s)
método(s) e de uma multiplicidade de processos?

As experimentações contemporâneas e as explorações formais, verificados na utilização


de modelos dinâmicos e em concepções mais abertas (diagramas, fluxos, devires, etc),
vão desencadear uma rede de reflexões que irá contribuir com a introdução da
casualidade no agenciamento dos acontecimentos, estabelecendo outras relações não
hierarquizadas, entrecruzadas, descontínuas, sempre a beira de transformação e que não
estejam limitados nos códigos de representação tradicional. A geometria euclidiana já
não atende as necessidades das nossas condições atuais - “a arquitetura contemporânea
é feita para quem a percorre e observa de todos os ângulos” (PEIXOTO, 1996, p.300).

Residência universitária X poética da favela. Nesse exercício, os alunos deveriam propor uma nova
residência universitária para a UFBA, incorporando na proposta um espaço destinado a receber artistas
plásticos de diversas partes do mundo. O local para o projeto seria a Escola de Belas Artes, localizada na av.
Araújo Pinho, no bairro do Canela, em Salvador. Além de trabalharem com a pré-existência, incorporando
usos e ambientes da própria faculdade, a equipe (Patrícia Americano e Ana Cecília) optou em estudar uma
ocupação informal vizinha ao terreno. A partir da experiência com os moradores dessa comunidade,
incorporaram sua própria vivência do espaço enquanto ferramenta projetual. Não se limitaram a estudar as
formas ou espaços intersticiais da favela, como a fragmentação e os fluxos de circulação, mas potencializaram
em sua proposta, ambientes que favorecessem o convívio entre os residentes, inclusive permitindo que os
futuros moradores pudessem interferir esteticamente e funcionalmente nas construções, através de
intervenções coletivas e participativas, como acontece na comunidade vizinha estudada. Nesse sentido, a
própria arquitetura continuaria sempre in process. Atelier II / FAUFBA (2008). Fonte: acervo da autora.
170

Residência universitária X poética do bambu X poética do devaneio. Para o mesmo exercício explicitado
nas imagens anteriores, essas duas equipes optaram em trabalhar com concepções bem diversas. As imagens
laterais mostram maquetes de um grupo que resolveu estudar a estrutura do bambu e, a partir das
possibilidades estruturais e estéticas desse material, chegaram à uma proposição mais “orgânica”, sem deixar
de levar em consideração aspectos contextuais e morfológicos. Na imagem central vemos como essa outra
equipe trabalhou de maneira mais formalista, intercalando curvas, retas e misturando materiais e texturas; em
seu memorial, defendem a coexistência de elementos formais distintos e interligados e uma arquitetura que
cause sensações, a partir do percurso do próprio usuário. Atelier II / FAUFBA (2008). Fonte: acervo da autora.

Residência universitária X estrutura X fluxos. Na primeira imagem à esquerda,


observamos a proposta de uma equipe que trabalha com conceito de tensão estrutural,
criando elementos independentes entre si, passarelas de conexão externas e liberando o
pavimento térreo para o convívio coletivo – soluções formalmente modernistas e modulares
– os edifícios se repetem e são criados pátios entre eles. As outras imagens revelam um
edifício bem “generoso”, onde todos os pavimentos e ambientes foram estudados a partir de
seus fluxos internos e externos. Os pavimentos se comunicam de modo fluido a partir de
suas circulações horizontais, verticais e transversas (rampas). O usuário consegue ter uma
vista de todo o prédio a partir de qualquer ponto (visão panóptica / focos visuais
estruturantes), reforçando a conexão com o pátio interno e permitindo uma ambiência de
intenso convívio. Atelier II / FAUFBA (2008). Fonte: acervo da autora.
171

Processos híbridos – transições, oscilações e multiplicidades

“El tiempo solo tiene una realidad, la del instante”.


Eduardo Arroyo

Se nos reportarmos aos processos híbridos128 de concepção arquitetônica, veremos


que não há lei de combinação ou uma estruturação fixa, pré-estabelecida. Em meios há
tempos de oscilações e deslocamentos, a arquitetura saí um pouco do eixo central de sua
condição de “semi-deusa” e, naturalmente, outras linhas a desviam de sua excessiva
ênfase no objeto e remete-a para o âmbito mais promissor das relações (CABRAL FILHO,
2005, p.73). Ela já não está inteira na cena enquanto substância, obra materializada ou
construção física (esse não é o foco central), mas permeia por outros cenários
deslocantes e desarticulados, entre plataformas móveis sem pontos de amarração. A
arquitetura nada mais é do que o encontro entre o sujeito e o objeto. É um evento, um
acontecimento.

Segundo Cabral Filho (idem, p.77) alguns poucos arquitetos começaram a propor objetos
arquitetônicos híbridos, não apenas em seus processos, assumindo novas formas de
mediação tecnológica e buscando a instauração de um lugar que seja mais adequado aos
nossos dias. Na verdade, essa questão não fica restrita ao espaço arquitetônico; a
própria poética dos modelos de simulação também não deixam de ser uma arte híbrida
nos seus sistemas numéricos.

Entre arquiteturas de excesso, a própria cidade resulta de mesclas de formas híbridas,


surgida de informações, sistemas digitais e do próprio ambiente. Nesse sentido, o
deslocamento proposto está muito mais voltado ao plano conceitual. Vamos a alguns
desses novos vocabulários:

- Motor de arranque

Nos processos híbridos o trânsito de idéias se confunde com planos transitórios, fluxos,
procedimentos aleatórios, planos distintos e superpostos. Não há um ponto de partida,
mas um motor de arranque para o processo que se convencionou chamar criativo. Essa
efervescência permite transitar por entre variações do próprio mecanismo. Sistemas
abstratos, layers, diagramas. Se a sociedade contemporânea muda tão rapidamente, a
arquitetura também não deve manter uma rigidez e tem de desconfiar da imposição de
certos limites, portanto deve ser fluida e mutante. Os problemas reais devem se
converter em oportunidade, em re-orientações. Um campo de atuação com regras,
porém abertas; é assim que os caminhos vão surgindo de formas irregulares, como
nunca havíamos imaginado. Essas questões retratam um pouco a condição das oscilações

128
Mais sobre o assunto ver nossa publicação: SILVA (2006). “Processos Híbridos de Projetação em
Arquitetura”.
172

e transições por quais os processo híbridos atravessam. Não há certezas, a obra não
nasce, mas um motor de arranque a impulsiona.

- Procedimentos de oscilação

O processo de oscilação admite a existência de diferentes realidades múltiplas e


complexas, oscilantes, desestabilizadas, sobre as quais o sujeito se permite projetar suas
próprias obsessões pessoais que podem ser confrontadas com as necessidades públicas.
Uma catarse. Uma esquizoanálise, talvez. Uma aceitação de uma contingência das
próprias idéias, a alteração de procedimentos e uma dissolução dos limites entre sujeito
e objeto. Os procedimentos tradicionais de investigação pressupõem a existência de uma
realidade única, que tende a aproximar conceitos e formas, estabelecendo uma
seqüência unilateral e disciplinar. Nos procedimentos de oscilação, o fruidor (nesse caso,
o arquiteto) projeta sobre distintas realidades, produzindo uma série de sistemas abertos
e transicionais, em contra-posição a essa realidade única e imutável.

- Paisagens de adequação

A ecologia, a ciência, a genética, as matemáticas avançadas, não tratam de estados de


equilíbrio, mas abrem caminhos para transformações. Nada permanece, tudo se
transforma. Para Arroyo [no.mad], a maior parte das arquiteturas produzidas até aqui
possuem uma lamentável tendência a exagerar na estabilidade e na segurança e se
aprisionam em um equilíbrio. O caminho para ele tem de ser o inesperado, o
imprevisível, a forma aleatória. A “lógica” do processo híbrido se situa em sistemas
nebulosos, de variações, de indefinições do entorno (borradas), em uma certa inexatidão
das decisões humanas que tendem a se modificar constantemente. Com isso, a
arquitetura deve se abrir às possibilidades de mudanças, um processo difuso que resulta
em paisagens de adequação. É um experimento, uma intervenção que aponta para
caminhos abertos, mas que não conclui, não se fecha em si mesmo.

Quando o arquiteto espanhol Eduardo Arroyo elabora uma das etapas da proposta para a
Vila Olímpica em Paris - jogos de 2008129, trabalhando o tema “Habitar esportivamente”,
lança uma série de perspectivas visuais sobre o locus da vila olímpica, a partir do
rebatimento de alguns elementos significativos existentes em um raio de ação pré-
determinado: La Defense, Tour Eiffel, Sacre Coeur, Stade Nautique, Parc La Villette,
Grande Salle, Paris Le Bourget, Basilique de Saint Denis e Stade de France. A partir da
angulação que cada elemento desse reflete sobre o lugar e da conexão de uma série de
pontos, gerando fluxos e diagramas de intervenção, Arroyo vai determinando o master-

129
Na ocasião a cidade de Paris se candidatou à sede dos jogos olímpicos e convidou 12 arquitetos de partes
diversas do mundo, inclusive o brasileiro Paulo Mendes da Rocha, para um “Concurso Internacional de Idéias
para as Olimpíadas de 2008”. Paris perdeu a disputa para Pequim – China, mas muitas das idéias apresentadas
nos projetos serão apropriadas como soluções para o futuro desenho de partes da cidade.
173

plan do seu projeto. Ele trabalha aquilo que Eisenman chama de diagrama de
exterioridade.

Vila Olímpica em Paris 2008. Eduardo Arroyo


[no.mad]. Acima, os “horizontes de percepção” e
seus objetos significativos - em verde os
elementos mais distantes: o raio de ação de Paris
Le Bourget, La Defense e Tour Eiffel; em laranja,
a influência do Parc La Villette. Ao lado, a
localização das perspectivas visuais sobre a Vila
Olímpica. Abaixo, podemos verificar um
diagrama de composição de forças das chamadas
“torres-reflexo”, determinando deformações na
forma dos edifícios. Fonte: EL CROQUIS (2001)

Nesse sentido, seu processo projetual é totalmente rizomático130 (não sua arquitetura) e,
apesar do caráter experimental da sua proposta, a solução está inteiramente ligada aos
arquétipos locais. O procedimento não é gratuito, o diferencial está na metodologia
utilizada na apropriação dessa espacialidade. Os edifícios surgem a partir das infinitas
relações de objetos pontuais a cada horizonte e a paisagem vai sendo costurada por
meio de um sistema aberto e de coexistências, que Arroyo chama de horizonte
fragmentário.

130
Rizomático porque a sua atuação, enquanto processo projetual, é aleatória e imprevisível. Não existe uma
origem ou um fim pré-estabelecido. Inclusive, o processo criativo é impulsionado através de um “motor de
arranque”, onde Arroyo trabalha com conceitos como “Instante Simbólico” e “Paisagens de Adequação”. Nesse
sentido, sua percepção se aproxima do Pensamento Rizomático, colocados por Deleuze e Guattari, onde o
rizoma constitui um sistema aberto de relações e conexões sempre em processo, sempre em transformação,
sempre no meio, “entre”... em oposição à estrutura arborescente, binária.
174

A organização funcional das unidades de alojamento (que após as olimpíadas serviriam


para habitação) é sistematizada enquanto possibilidades de ocupação, sem proposições
fechadas. A esses espaços o arquiteto chama de espaço neutro – domus vivendi,
totalmente adaptável e mutável, de acordo com a característica de cada futuro ocupante.

Vila Olímpica em Paris 2008. Eduardo Arroyo [no.mad]. Entre


paisagens de adequação e horizontes fragmentários, o projeto de
Arroyo ainda prevê espaços neutros – domus vivendi.
Fonte: EL CROQUIS (2001)

Uma lógica muito similar, no que diz respeito à exploração de espaços heterogêneos e à
hibridização conceitual, está presente nos estudos para a Casa G (espaço doméstico para
um escritor), idealizados pelos arquitetos espanhóis Cristina Moreno e Efrén Grinda.
Nesse exercício, eles exploram a paisagem através de repetições, recordações e
acontecimentos, criando um conjunto de estruturas tubulares justapostos elaborados a
partir de uma configuração mimética inspirada na estruturação formal dos dedos da mão.
Sete naves longitudinais se deformam, se entrecruzam e se tangenciam em certos
pontos do percurso, depois se bifurcam, compartilhando seus limites e se
interconectando entre si. Portas topográficas e fissuras que se atravessam de um espaço
a outro. Relações de proximidade e atração que são enfrentados pelos seus principais
elementos. Um sistema fenomenológico superposto de definições espaciais, resultando
em um refúgio de distintas trajetórias representado por membranas translúcidas. Trata-
se de uma experimentação provocativa e ao mesmo tempo questionadora em relação ao
espaço da moradia - um sistema que também quer resistir ao desgaste do cotidiano, sem
vínculos formais. Porém, é a partir dessa relação-corpo que o projeto acaba nascendo.
175

CASA G – espaço doméstico para um escritor (1999), Espanha. Cristina Moreno & Efrén Grinda.
Fonte: EL CROQUIS (2001)
O mesmo acontece na elaboração da Capela de Valleacerón, situada em uma colina em Almadén,
Ciudad Real, na Espanha, desenvolvida pelos arquitetos Sol Madridejos e Juan Carlos Osinaga. O
método utilizado é muito próximo aos exercícios desenvolvidos nos ateliês da UFBA, através da
manipulação de modelos. Os jogos de tensões e vazios permitem a transição de sucessivos
espaços iniciados através de uma simples dobra de papel, onde cada fachada do pequeno edifício
se apresenta como um quadro inserido na paisagem, permitindo a leitura de diferentes pontos de
fuga. Trabalhada com concreto aparente e vidro, a capela capta a luz natural através dos seus
diferentes planos, permitindo um diálogo mais intenso com as diversas matizes e cores intrínsecas
ao próprio lugar no qual está implantada - transparência / luz / silêncio/ vazio.

Capela de Valleacerón (1997/2000), Ciudad Real – Espanha. Processo das dobras de papel através da poïetica
atuando enquanto elemento condutor da composição criativa do fruidor. Imagens dos modelos de estudo e de vistas
internas e externas da capela em uma pequena colina de Almadén. Sol Madridejos e Juan Carlos Osinaga.
Fonte: EL CROQUIS (2001)
176

Genética Urbana em Saint Denis (1999). O arquiteto Eduardo Arroyo e seu grupo
trabalham sobre três aspectos – processos de hibridação genética, onde as próprias
estruturas urbanas são compreendidas como tecidos vivos e, portanto, podem
transportar uma multiplicidade de informações suscetíveis a mutações em seus próprios
códigos; os cultivos codificados, que seriam células carregadas com códigos genéticos
tanto dos seres humanos, quanto dos materiais existentes nos lugares, possibilitando
uma aparição futura a partir desses códigos conservados, ou seja, uma grande variedade
dessas células naturais compõe também os diferentes cultivos de laboratório e que
provocam múltiplas reações nas condições existentes; e as mutações, o cultivo genético
das células completam seu processo de mutação e eis que surge o momento de ler os
novos códigos surgidos desse processo, bem como as novas relações ocasionadas entre
eles.

Dessas hibridações, nascem quinze fases diversas que correspondem, em etapas, à


criação do novo tecido urbano da cidade. Desse processo de mutação urbana, vai
surgindo uma série de diagramas de intervenção lançados no sítio. Diagramas que
correspondem às células habitacionais, as circulações, as áreas livres, as transformações
dos blocos e edificáveis, as condições de colocação dos materiais, as áreas verdes,
formando algo que ele mesmo chama de instrucciones borrosas, ou seja, explicações
confusas para paisagens também confusas, manchadas ou embaçadas, como uma
pintura de Francis Bacon. Seus diagramas são, realmente, quase que incompreensíveis
de analisar. Embora seu ritual explicativo acerca do processo projetual seja instigante e
interessante em seus diagramas “embaçados”, a lógica de construção desses diagramas
não é aleatória e possui uma organização lógica em seus procedimentos e, nesse sentido,
não é abstrato.

Genética Urbana em Saint Denis (1999).


Eduardo Arroyo [no.mad]. Processo de
hibridação genética, cultivos codificados e
mutações. Fonte: EL CROQUIS (2001).

Para o projeto da Biblioteca Pública em Jerez (Cadiz, Espanha, 2001) de autoria de


Mansilla + Tuñón, Arquitectos, são lançadas uma série de projeções de idéias e seções
177

diferenciadas sobre um conjunto múltiplo de circunstâncias e limites. A aproximação


possível com essa biblioteca seria imaginar o interior de um livro: um espaço conceitual,
delimitado por suas bordas, no qual os planos das diversas páginas se entrelaçam entre
si. Um recipiente capaz de criar um mundo interior com vida própria, de letras, palavras,
histórias, poesias. Um mundo de imaginação, onde cada pessoa é ao mesmo tempo
distinta e parecida com as outras. Se misturam, se tocam, se confundem. Os espaços são
como páginas parecidas em suas formas, mas são distintas e definidas pelo seu
conteúdo. Essas folhas são espalhadas pelo interior do edifício, definindo planos de
paredes e pisos aleatoriamente, se entrelaçando, se sobrepondo, mas definindo espaços.
Os ambientes se espacializam para fora do recinto, as fronteiras entre o interior e o
exterior desaparecem, para formar parte da cidade. De algum modo, igualdade e
diferença, ordem e flexibilidade, variações e restrições, se convertem e se aproximam ao
mundo da cultura do abstrato, mas também ao mundo concreto de uma arquitetura
materializada. Uma coexistência. Segundo os autores do projeto, essa idéia só pode ser
materializada em arquitetura se as questões funcionais, construtivas, estruturais,
energéticas, de circulações, do entorno urbano, de segurança, etc, forem resolvidas
corretamente: “sólo las necesidades reales son capaces de dar forma a las ideas”. Uma
biblioteca, um espaço livre para as pessoas e a própria vida.

Estudos volumétricos, maquetes e elevações. Biblioteca Pública em


Jerez (2001) - Cadiz, Espanha. Mansilla + Tuñón Arquitectos.
Fonte: EL CROQUIS (2001).

Para o concurso Europan 6 – Vivendas em Jyväskylä, em Suomi, na Finlândia (2001),


novamente Cristina Moreno e Efrén Grinda constroem um complexo habitacional de 99
unidades dispostas a partir de suas interconexões em pátios públicos contínuos,
localizados no nível térreo. O espaço privado fragmentado se desenvolve no nível
superior. A materialidade e a textura são expressas nas fachadas dos pequenos prédios
178

entre espelhos e vidros, refletindo a paisagem externa (um bosque) que se encontra ao
longo das habitações. Por isso elas assumem um caráter de contínua mutação, seja pela
transformação da própria paisagem refletida – paisagens de adequação – seja pela
disposição dos prédios, que se alinham como tiras adaptadas à captação solar,
produzindo deformações e uma aparente desordem das suas peças de articulação,
posicionadas aleatoriamente na conformação de seus pátios internos. As casas se abrem
ao exterior a partir da articulação com o pátio privado, e se ampliam. No inverno, esses
pátios servem de colchão climático para a casa.

Esse tipo de procedimento não se esgota. Há uma gama de arquitetos, principalmente os


espanhóis, se abrigando dessa maneira mais híbrida de projetar. Além dos supra citados,
se destacam José Selgas, Lucía Cano, Fuensanta Nieto, Enrique Sobejano, Federico
Soriano, Dolores Palácios e muitos outros. Tudo vale: diagramas, modelos, maquetes,
sonhos, acontecimentos, desconstruções, instantes simbólicos, dobras, até recordações.
E não ficam somente no plano das idéias não, muitas dessas concepções irreverentes
estão começando a ser materializadas, construídas. Vale lembrar que tais elaborações
surgiram em concursos públicos de idéia - espaço bastante interessante para o exercício
do pensamento arquitetônico.131

Projeto vencedor do Europan 6. Vivendas em Jyväskylä (2001), Suomi – Finlândia. Complexo habitacional
contendo 99 unidades trabalhadas em conexão com a paisagem do lugar; uma arquitetura que busca em seus
jogos de efeitos um sistema mutável que permite utilizações diversas das habitações, articulando espaços
coletivos e privados. Cristina Moreno e Efrén Grinda. Fonte: EL CROQUIS (2001).

131
Verificar também a revista EL CROQUIS (2007), “Sistemas de Trabajo”.
179

Desconstrutivismo, arquiteturas e devaneios.

Desconstrução e pós-estruturalismo

Segundo Felix Guattari, a corrente estruturalista comete um erro grave quando tenta
reunir tudo o que concerne à psique sob o significante lingüístico. Michel Foucault
(1999a, p.54) já havia colocado em xeque a soberania do significante, as relações de
causa e efeito e potencializado o caráter do acontecimento ao questionar as quatro
noções (significação, originalidade, unidade e criação) dominantes na história tradicional,
onde “se procurava o ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um
tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das significações
ocultas”. Nesse sentido, vislumbra a notação de outras noções que deveriam seguir de
princípio regulador para novas análises: o acontecimento (em oposição à criação), a
série (em oposição à unidade), a regularidade (em oposição à originalidade) e a
condição de possibilidade (em oposição à significação).

As reflexões fenomenológicas acerca da arquitetura começaram a tomar o lugar do


formalismo e abriram terreno para o surgimento das discussões contemporâneas. A
influência de Heidegger é evidente nos escritos atuais, a exemplo do próprio
desconstrutivismo de Derrida132 e das formulações teóricas pós-modernas.

O pós-estruturalismo irá dar um salto à frente ao separar o significante do significado,


problematizando o sujeito como autor, colocando em questão o poder e ampliando o
fenômeno das relações e das coexistências. Nesse sentido, os processos de subjetivação
ficam mais evidentes e as conexões com o pensamento crítico justificam articulações
descontínuas, abertas e fragmentadas, baseadas nas transformações atuais e na
diferença. Essas posições estão sendo aceitas e trabalhadas por diversos arquitetos e
professores de arquitetura, de acordo com alguns pensamentos, processos e projetos já
exemplificados anteriormente.

O discurso da “filosofia da desconstrução”, por exemplo, trará novos questionamentos


acerca do pensamento arquitetônico, não como um novo estilo, mas como uma nova
forma ideológica de compreender a produção de diferentes arquiteturas (ou diferentes
dimensões da forma arquitetônica gerando outros limites e/ou manifestações espaciais),
além de novas maneiras de se fazer crítica, uma vez que a própria crítica seria, por sua
própria natureza, desconstrutiva. A desconstrução, em arquitetura, não nega as ordens
pré-estabelecidas, mas evidencia a diferença de novos conceitos e formas de pensar em
relação à hegemonia de regras instituídas, mostrando as suas limitações no
entendimento da realidade processual contemporânea. Trata-se de uma efetiva ruptura

132
A desconstrução nasce da discordância da leitura de uma escritura. Um novo corpo lendo um texto ou uma
arquitetura - já que a arquitetura, seja uma obra ou um projeto, pode ser entendida como uma partitura e, esse é o
sentido da arte contemporânea - você tem uma nova escritura sempre, um novo contexto.
180

em relação a um pensamento de representação/significação e, nesse sentido, subverte


as bases estruturalistas. A vertente desconstrutivista aponta para a questão da estrutura
através da busca da inclusão do fragmento, de multiplicidades, transgredindo as lógicas
formais tradicionais, rompendo com as percepções básicas, evidenciando conflitos,
explorando intermediações e deslocando as ordens clássicas, em meio há tempos de
incertezas.

(... ) não existe um consenso geral. Para a arquitetura moderna existia um consenso
geral sobre o que devia ser feito, situação que desapareceu. A Desconstrução deslocou
a arquitetura moderna e pós-moderna; basta dar uma olhada na última Bienal de
Veneza para comprovar que tudo ali apresentado era Desconstrução. Mas eu entendo
que existe um problema hoje e o motivo é porque os arquitetos não sabem o que
fazer. Não há uma teoria predominante. Não existem líderes teóricos. Por isso é um
momento difícil. O quê se pode ensinar? Eu ensino Brunelleschi, Borromini, Le
Corbusier, Mies Van der Rohe… Não sei que outra coisa poderia ensinar.133

Segundo Eisenman (1976, p.100), o próprio homem é uma função discursiva em meio a
sistemas de linguagens complexas e preexistentes, que ele testemunha, mas não
constitui. Essa condição de deslocamento desemboca em um desenvolvimento não-linear
do projeto – sem começo nem fim – determinando coexistências em potencial e outras
temporalidades. Quais seriam as respostas que a arquitetura poderia dar às crises do
modernismo? Arquitetura e reinvenção. Transparência e opacidade. Ausência e presença.
Ainda nos aprisionamos em análises dialéticas, entre relativismos e substâncias. Um
mundo que vive em processos transitórios e, obviamente, em colisão.

No entanto, acreditamos que os espaços de conflito são entendidos enquanto


possibilidades de criação. Dentro do pensamento pós-estruturalista, essa condição da
arquitetura estar em eterna crise se reflete no próprio campo da criação, onde esse
suposto caos seria um verdadeiro turbilhão de novas idéias e concepções, e não apenas
da lógica da desordem. A partir da década de 1980 inicia-se um período conduzido por
novas formas de interpretações científicas baseadas na conceituação de um universo em
desequilíbrio, que se expressa em geometrias fractais e na teoria do caos – um campo
aberto para concepções descontínuas, fragmentárias e provisórias, baseadas na diferença
e sempre em processo de transformação. É natural, portanto, que algumas vertentes
contemporâneas, no caso “apoiadas” na própria filosofia da desconstrução e,
obviamente, no pós-estruturalismo, desloque a arquitetura moderna (aversão utilitarista)
e outras vertentes historicistas (signos simbólicos) da arquitetura pós-moderna e coloque
em xeque seus principais preceitos.

133
Entrevista com Peter Eisenman realizada por Fredy Massad e Alicia Guerrero Yeste em abril de 2005.
Disponível em <http://www.vitruvius.com.br>.
181

A base da filosofia da desconstrução está no ataque aos objetos segundo seu aspecto
clássico; procura desmontar para revelar a estrutura. O discurso da desconstrução
em arquitetura, tendo como fundamento os ensaios do filósofo francês Jacques Derrida,
relaciona-se com a multiplicação dos pontos de vista, operando por meio de
“deslocalizações”, com a quebra de uma certa estética, com a provocação de sensações e
a exploração do caos. O desconstrutivismo busca a tensão estrutural ao limite, com base
na interpenetração espacial e na semântica dos objetos trabalhados, inicialmente, pelas
vanguardas russas. Após o construtivismo russo, fica claro que a arquitetura não se
configura apenas como obra construída – o fenômeno, a materialização - mas o
pensamento que a origina.

Não pretendo sugerir com isso que a arquitetura seja uma técnica apartada do
pensamento e, por esta razão, talvez apropriada a representá-la no espaço,
constituindo quase que sua materialização; antes procuro expor o problema da
arquitetura como uma possibilidade do próprio pensamento, que não pode ser
reduzida à categoria de representação do pensamento (DERRIDA, 1986, p.165).

Portanto, dentro de uma possibilidade de investigação dessas novas vertentes de


pensamento, nos resta buscar novos olhares críticos para o que venha a ser a prática e o
ensino da arquitetura, tecendo novas relações e buscando novos paradigmas no desejo
inquietante de revelar novos processos de entendimento desse fervor de linguagens
arquitetônicas; não no ataque ou negação das formas tradicionais, mas numa lógica de
coexistência espacial e temporal (co-espacialidade e co-temporalidade).

Arquiteturas e discursos
“Uma arquitetura que sangre, que fadigue,
que se retorça e inclusive se rompa.
Que ilumine, que provoque, que rasgue
e sob pressão se tencione”
Coop Himmelb(l)au

As relações processuais vão bem além dos ditames estruturalistas e necessitam de um


aprofundamento mais amplo de análise, elencando as relações de subjetividade e
intempestividade, de processos criativos e do entendimento que nem sempre é possível
materializar a arquitetura.

De acordo com a arquiteta iraquiana Zaha Hadid (1991, p.16), “(...) a arquitetura não deve
se reduzir meramente à construção”. Seus projetos apoiados em croquis e pranchas

processuais se revelam verdadeiras obras de arte e provocam sensações. Os métodos


tradicionais não conseguem representar os desenhos imaginados por Zaha, portanto ela
desconstrói o objeto, experimentando perceptos de explosões e fragmentações,
brincando com pontos de fuga e convergências, explorando as potencialidades de uma
“matemática sensível” a partir de formas de indeterminação e geometrias heterogêneas
182

– relevos, escavações e tectônicas - onde a estética atrelada à intuição também passa


pelo processo de conceituação e concepção. Suas telas são abstrações e aproxima a
arquitetura da arte contemporânea.

Estudos para o Al Wahda Sports Centre em Abu Dhabi (1988) & The Peak, em Hong Kong (1983).
Herança suprematista – os “planitas" e a “matemática sensível” da arquiteta iraquiana.
Fontes: EL CROQUIS (2004); ZAHA HADID (2002)

A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons
ou nas pedras. A arte não tem opinião. A arte desfaz a tríplice organização das
percepções, afecções e opiniões, que substitui por um monumento composto de
perceptos, de afectos e de blocos de sensações que fazem as vezes de linguagem
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.228).

Por outro lado, o arquiteto Peter Eisenman trabalhou em muitas de suas obras a questão
da semiologia dos elementos de arquitetura, estabelecendo um sistema que permitiam, a
partir de sua codificação, a produção de uma série ilimitada de combinações, num
processo lingüístico que se volta sempre sobre si mesmo. Eisenman procurou estar ligado
aos filósofos contemporâneos; da Desconstrução de Derrida aos Diagramas de Gilles
Deleuze, seu trabalho sempre esteve conectado com referenciais teóricos que, de alguma
maneira, provocassem suas concepções formais e interferissem no seu processo
projetual.

O concurso internacional idealizado para o Parc La Villette, inclusive, gerou projetos


interessantíssimos trabalhados por inúmeros escritórios de arquitetura na época. Peter
Eisenman, por exemplo, desenvolveu um processo curioso para o projeto de uma folie no
Parc La Villette, assim como para a Casa Guardiola (1988), iniciado através de textos
supostamente arbitrários, mas que se conectavam de alguma forma com a arquitetura
proposta para ambos os projetos, brincando com esquemas de superposição de traços. A
evolução da idéia para o projeto do Parc La Villette teve como base o texto “Plato´s
Chora”, do filósofo Jacques Derrida, e a variação de diagramas utilizados para o
Cannaregio Town Square (Veneza) – um projeto conceitual desenvolvido através de uma
rede de alinhamentos. A correspondência inicial entre La Villette e Cannaregio foi a
presença de um matadouro em ambas as localidades e essa superposição de diagramas
183

acaba gerando, segundo Eisenman, uma espécie de combinação entre os dois. Já a Casa
Guardiola teve como base processual os diagramas e modelos volumétricos
desenvolvidos para a House X (1975), como já comentados anteriormente.

The diagrams of Casa Guardiola elaborated the work of trace and imprint begun at La
Villette. The project used the diagrams of House X as an initial text. While this was an
arbitrary decision, it provided a contingent if not immanent relationship to an
architectural interiority since it related to both a prior project and thus to a form of
anteriority, and also to certain tropes which define any architecture interiority. (...) In
the La Villette project, absences were marked as imprints; again, an object was
pushed into a mold, and when it was taken away, it left an imprint in the mold. In
Casa Guardiola the idea of trace was introduced, which was seen as conceptually
different from an imprint (EISENMAN, 2001, p.194-195).

Derrida apontava a possibilidade de, conhecendo-se o centro, implodi-lo para obter daí
múltiplos fragmentos que poderiam despertar uma miríade de novos significantes e
significados. Seguindo essa lógica, Eisenman trabalhou muitos conceitos de seus
processos a partir da idéia de diagramas134 e releitura de códigos, configurando novas
estruturas e formas geradas de torções, extrusões e deformações utilizando notações
vetoriais espaciais. Essas relações processuais de ações, além de atuar no universo da
percepção, nos propõem devires-outros a cada projeto de arquitetura.

Acima, Cannaregio em Veneza (1978) e


seção do modelo da unidade de habitação.
Ao lado, proposta para o La Villette
(1987) em parceria com Jacques Derrida.
Fonte: TRACING EISENMAN ( 2007)

134
Ele desenvolve boa parte de seus projetos a partir da investigação de diagramas, utilizando-o não
simplesmente como forma, mas como idéia. No entanto essa idéia – o diagrama - sempre está ligada ao
programa, ao lugar ou a história. Ver no início deste capítulo “Os diagramas”.
184

Outros arquitetos que transitam no universo da desconstrução são os integrantes do


Coop Himmelb(l)au, escritório criado em 1968 em Viena, na Áustria, por Wolf Prix e
Helmut Swiczinsky, junto a Rainer Michael Holzer, que formou parte do grupo até 1971.
Arquitetos (artistas) que trabalharam com performances dentro do circuito de arte e do
design, e realizaram instalações intrigantes há cerca de 30 anos atrás, como: Reis Less
Sphere na Basiléia (1971), uma grande esfera de plástico ou a Blazing Wing em Essen
(1980), uma enorme asa que ardia.

Os primeiros experimentos arquiteturais foram inusitados, a exemplo do processo


criativo para o projeto The Open House (1983) – simplesmente riscar o papel com os
olhos vendados. Momento de intensidade criativa, onde a pulsão e a energia racional
fluem através das mãos em uma “figura automática que deveria ser convertida em
espaço e estrutura arquitetônica” (MONTANER, 2002, p.54).

“Sonho causado pelo vôo de uma abelha à volta de uma romã, um


segundo antes de despertar” (1944), Salvador Dali.
Rooftop Remodelling Falkestrasse (1983-88), Viena – Áustria.
Coop Himmelb(l)au. Contaminações psíquicas? Fonte: www.kmtspace.com

Destaque para uma cobertura de um edifício em Viena que abriga um pequeno escritório
– Rooftop Remodelling Falkestrasse – “uma montagem escultórica” de marcante beleza
tecnológica. Em suas imaginações, os arquitetos visualizaram uma linha de energia vinda
da rua que rasga o telhado existente, provocando sua ruptura e seu desmonte. Uma ação
automática e psíquica tal qual as obras surrealistas de Salvador Dalí? Para Montaner
(idem), “a pretensão de toda a obra do Coop Himmelb(l)au foi fugir das formas
estabelecidas, buscar novos métodos criativos que se libertassem totalmente das
restrições da razão e que re-introduzissem o subconsciente, para poder assim criar
formas variáveis e flexíveis, fluidas e mutantes como as nuvens”.
185

O grupo construiu o Pavilhão Oriental do Museu de Groningen, brincando com as dobras


e redobras do espaço, embriagados pela teoria dos fractais - tais quais os desenhos de
Escher e Piranesi. Uma evocação de formas instáveis, dinâmicas e nada convencionais.
No Coop Himmelb(l)au podemos perceber uma abstração quase que caótica em seus
processos de criação. “Não queremos uma arquitetura que exclua o inquietante,
queremos que a arquitetura tenha mais”.

Tensões e fragmentos – Museu em Groningen (1994) - Coop Himmelb(l)au.


Fonte: www.coop-himmelblau.at

Materialidade e tecnologia. Efemeridade e eventos

Nos anos 90, a cidade holandesa de Groningen é o palco de projetos urbanos e


arquitetônicos de caráter experimental. O projeto denominado “Os Portais de Groningen”
é coordenado por Daniel Libeskind, tendo com tema central os acessos e limites nas
cidades contemporâneas trabalhadas por diversos arquitetos135. A proposta é
fundamentada na discussão da imaterialidade das imagens eletrônicas concretizando-se
na materialidade arquitetônica. As novas concepções estéticas das imagens
experimentadas a partir do uso do vídeo, por exemplo, traziam a possibilidade de discutir
o uso dessas mídias no espaço público. É uma provocação. Os meios tecnológicos trazem
novos questionamentos e paradigmas que vem sendo discutido por filósofos, arquitetos e
artistas em geral. Peter Eisenman e Bernard Tschumi construíram cabines de vídeo
instaladas em lugares públicos da cidade de Groningen – as VideoFolies136. Zaha Hadid
também construiu um pavilhão voltado para mostras de videoclipes, em uma esquina da
cidade (EL CROQUIS, 2004, p.195).

135
Participaram Peter Eisenman, Rem Koolhas, Zaha Hadid, Coop Himmelblau e Bernard Tshumi. Todos
fizeram parte da exposição denominada Desconstrutivista, realizada por Philip Johnson, no MoMA de Nova
York, em 1988.
136
Sobre essas instalações, conferir em DUARTE (1999).
186

Segundo os professores da Architectural Associations de Londres, Alex Haw e Brandon


Labelle, o arquiteto é um editor espacial, canalizando nossos vários sentidos numa gama
de mídias que nos envolve em múltiplos níveis, coreografando experiências como a
direção de um evento cinemático137. Para eles, tanto um fenômeno audiovisual, quanto
um show musical ou demais mídias eletrônicas e digitais, exploram o espaço
arquitetônico em suas durações, em suas corporificações, em seus movimentos, em seus
ritmos, em suas velocidades. Luz e som, por exemplo, são forças invisíveis capazes de
ativar a experiência arquitetônica.

O projeto vencedor para o concurso internacional do Parc La Villette (1982-1983) foi


ideado na explosão, fragmentação e na disjunção. A partir das composições abstratas
elaboradas por Wassili Kandinsky e, principalmente, sua obra “Ponto, linha e superfície”
escrita em 1927 - fruto de seus experimentos na Bauhaus - Bernard Tschumi traçou uma
malha estrutural explodida em suas camadas (layers), abrigadas em três sistemas
abstratos: plano, linha e ponto. Como já comentamos no capítulo 3, a performance
processual de Tschumi, nesse projeto, está ligada ao universo cinemático e do compasso
corporal, pois ele acaba introduzindo a figura do co-autor – o transeunte – o sujeito que
também observa, investiga e constrói a paisagem no seu tempo, como se cortasse e
intervisse na grande linha ondulada de Kandinsky. Ou seja, é estabelecida uma troca de
afetos a partir de um percurso realizado em uma dada duração, desvendando
percepções.

Essa obra é importante do ponto de vista da história da arquitetura, porque o autor


questiona a noção de unidade ao projeto, através de uma ruptura com os processos
formais de representação até então utilizados. Introduz novos conceitos de evento,
espaço e movimento. “(...) colocou que a dissociação da idéia de síntese não é a negação da
autonomia ou estrutura do projeto arquitetônico, mas implica constantes e sistemáticas operações
de dissociações no espaço e no tempo” (DUARTE, 1999, p.124). O evento, para Derrida, seria a
emergência de uma multiplicidade diferente.

Tschumi coloca que, na arquitetura, a disjunção pressupõe que nenhuma das partes pode
converter-se em uma síntese ou totalidade auto-suficiente, mas que cada parte leva à
outra e toda construção é desestabilizada pelos vestígios, nela própria, de uma outra
construção. Nesse sentido, a disjunção pode ser constituída por vestígios de um evento,
de um programa e pode levar a conceitos, pois um de seus objetivos é compreender um
novo conceito de cidade, de arquitetura.

Toda obra teórica, quando ‘deslocada’ para o domínio do construído, ainda conserva
seu papel dentro de um sistema geral ou aberto de pensamento. Assim como nos
projetos teóricos de The Manhattan Transcripts, de 1981, e no do Parc de La Villette, o

137
Texto do curso dos professores Haw e Labelle, traduzido pelo arquiteto Sérgio Kopinski Ekerman.
187

que se discute é a noção de unidade. Da forma como foram concebidos, esses


projetos não têm começo nem fim. São antes operações, composta por repetições,
distorções, sobre-imposições, etc. Apesar de possuírem uma lógica interna própria –
seu pluralismo não é destituído de objetivos -, é impossível descrever tais operações
unicamente com relação a transformações internas ou seqüenciais. A idéia da ordem é
permanentemente questionada, desafiada e levada ao extremo (TSCHUMI, 1988, p.
191).

Para Tschumi, a arquitetura é como um evento, dinâmica e provocativa. Um incidente,


um acontecimento, uma ocorrência. Tais eventos podem surgir das maneiras mais
diversas, abrangendo usos, atividades, fluxos, programa funcionais, condições
singulares, táticas, estratégias, etc. Os projetos em Event-Cities 3, documentados por
Tschumi138, exploram experimentações e descobertas ocasionais trabalhadas em
diferentes obras arquitetônicas em suas variadas relações com o conceito, o contexto e o
conteúdo.

Já Aldo Rossi, por exemplo, critica duramente o funcionalismo, demonstrando que não
existe uma relação linear entre as formas e as funções. Para o arquiteto italiano, o lugar
é mais forte que as pessoas e o cenário é mais forte que o acontecimento. Ao projetar o
Teatro do Mundo, em 1980, irá resgatar os paradigmas arquetípicos da arquitetura
veneziana; o espaço teatral efêmero dialoga com as referências formais do contexto
urbano, buscando seus elementos geométricos puros. Para ele, o cerne da concepção
arquitetônica está na justa articulação dos elementos da memória, do locus139 e do
desenho, ponte muito bem traçada na sua obra “Arquitetura da Cidade”, onde costura
relações entre história-teoria-projeto.140

No entanto, a discussão contemporânea lançada enquanto provocação é: o sentido do


genius loci se perde ou tem como continuar no lugar dos projetos contemporâneos?

Essa condição da arquitetura como evento na contemporaneidade, principalmente nas


intervenções ligadas ao star system, tem se relacionado com uma valorização da
experiência urbana através de uma estética de comunicação midiática, por vezes
impactante e espetacular. Uma experiência urbana sensorial para as grandes massas
transmitidas em eventos ocasionais e efêmeros. Poderíamos citar o estádio do Allianz
Arena, em Munique, projetado pela dupla Jacques Herzog e Pierre de Meuron para a

138
Conferir em TSCHUMI (2004). Event-Cities 3. Concept vs. Context vs. Content.
139
“(...) locus intendendo con questo quel rapporto singolare eppure universale che esiste tra una certa
situazione locale e le costruzioni che stanno in quel luogo.” In: ROSSI (1966, p.117).
140
É preciso entender a atitude de Rossi num contexto culturalista do historicismo italiano do pós-guerra e de
cidades destruídas, de um certo “peso” da memória do lugar, dos processos históricos, das relações de
permanência e da forte herança do racionalismo moderno. Simultaneamente, no período em que escreve
“Arquitetura de Cidade”, em 1966, o pensamento de Robert Venturi pressupõe a arquitetura numa sociedade
consumista e de mercado, quando escreve “Complexidade e Contradição” em 1967.
188

Copa do Mundo. A fachada do estádio possui uma pele camaleônica composta por quase
3000 painéis de etileno-tetrafluoroetileno, que permite a mudança de cor e controla a
passagem de luz natural. Os arquitetos suíços são conhecidos pela alta tecnologia e
diversidade de materiais empregados principalmente no tratamento das fachadas dos
edifícios que projetam. Do prédio da Prada em Tóquio e seus 840 painéis de vidro em
formas côncavas e convexas inseridos entre estruturas resinadas, passando pela
vestimenta da biblioteca da Escola Técnica de Eberswalde – imagens fotográficas
impressas no concreto por meio de um processo similar ao silk-screen, ou ainda as
membranas translúcidas e mutantes de policarbonato colorido do Laban Centre London,
os efeitos são quase mágicos. É preciso impressionar.

Textura camaleônica - Allianz Arena, em


Munique, projetado pela dupla Jacques
Herzog e Pierre de Meuron. Acima, o
prédio da Prada em Tóquio.
Arquiteturas que servem ao poder e ao
espetáculo.
Fontes: ARCHITECTURE NOW (2004 e 2006)

O artista búlgaro Christo e sua esposa Jeanne-Claude são mestres em articular


projeções em grande escala na paisagem e no espaço urbano. Na obra “The Gates”,
conseguiram viabilizar 7.500 traves de vinil com 5 metros de altura cada, cobertas em
cortinas de nylon na cor laranja, e distribuí-las no Central Park de Nova York. A
performance envolveu 800 pessoas e custou U$21.000.000,00. Em 1995, após intensa
negociação com os órgãos competentes, conseguiram “embrulhar” o Reichstag, em
Berlim, antes da intervenção do arquiteto Norman Foster que, em 1997, recriou a
cúpula do parlamento alemão destruída durante a guerra.

Uma multiplicidade de linguagens e expressões arquitetônicas se espacializam na própria


imagem da cidade contemporânea e vão se relacionar com as estruturas formais e
funcionais pré-existentes e, evidentemente, com uma diversidade de materiais e
tecnologias disponíveis pelas mais variadas indústrias do ramo. Os reflexos tecnológicos
se fazem presentes também nas formas e concepções arquitetônicas.
189

As mega-instalações de Christo.
Fonte: www.christojeanneclaude.net

O arquiteto francês Jean Nouvel, por exemplo, trabalha a poética do tempo e da


história mediado por instrumentos eletrônicos ao projetar o Instituto do Mundo Árabe,
edifício destinado a abrigar o acervo de arte árabe existente na França e divulgar a
produção artística, histórica e contemporânea desses povos. Os dados formais históricos
da arquitetura árabe estão presentes no edifício e a fachada, que nos remete a uma
formosa tapeçaria oriental, é composta por diafragmas metálicos fotossensíveis
(projetados pelo Architecture Studio) controlados por computador. Na cidade de Morat,
época da Exposição Nacional da Suíça (2002), ele concebeu um bloco monolítico de
34x34x34m, em aço oxidado inserido no meio das águas do lago local. Além do imenso
cubo, Nouvel projetou outros equipamentos e pequenas arquiteturas efêmeras para essa
exposição específica que acontece de 25 em 25 anos.
Instituto do Mundo Árabe – Paris. Jean Nouvel.
Fonte: www.jeannouvel.fr
190

Frank Gehry também se abriga de processos, da materialidade e de distorções em


devaneios. O Museu de Bilbao, por exemplo, foi concebido a partir de um modelo de
arame, criado através de croquis e, posteriormente, simulado no computador por um
software – o CATIA, desenvolvido para a indústria aeroespacial e adaptado para
aplicação em arquitetura pela empresa francesa Dassault Systems of France. Além da
simulação de formas tridimensionais, esse software cria suas construções geométricas e
até determina especificações construtivas. Segundo Philippe Queau141, as imagens
virtuais são possibilidades de explorações que trazem a tona as idéias que as
engendram. A simulação, nesse sentido, não é encarada apenas como uma ferramenta
de representação, mas uma maneira de recriar a própria arquitetura, através de um jogo
frenético entre modelos, imagens e oscilações numéricas. A arquitetura na era digital
tende a se encontrar entre esse universo.142 Só assim foi possível concretizar o edifício
dançante de Gehry.

Processos em Frank Gehry – o grau quase xerox da reprodução.


Croquis do Walt Disney Concert Hall, modelação tridimensional
através do software Catia e estrutura construtiva do Museu em Bilbao.
Entre o arquiteto grife e a indústria do entretenimento, os processos são
atravessados pelos planos de mídia.
Fontes: GEHRY (2002); ARCHITECTURE NOW (2004)

141
Responsável pela organização do IMAGINA, encontro de profissionais em imagens eletrônicas, que acontece anualmente
na cidade de Mônaco.
142
Para maiores detalhes ver: QUEAU (1986). Éloge de la simulation.
191

O Future Systems, estúdio de arquitetura fundado em 1979 na cidade de Londres,


direcionam suas pesquisas e preocupações ao futuro do planeta, por isso suas propostas
quase sempre se relacionam com o alto aproveitamento da eficiência energética. Suas
formas orgânicas, amorfas e arrojadas exaltam a estética da máquina e são exercitadas
com a mais alta tecnologia de ponta. Entre seus principais projetos estão o Museu de
História Natural, o Centro da Terra, a Green Bird e, mais recentemente, o Lord´s Media
Centre, um projeto premiado em concurso internacional. O edifício, de contornos
aerodinâmicos e de apelo futurista, foi construído num estaleiro e transportado para o
local da obra com auxílio de guindastes. Sua execução só foi possível através do uso de
técnicas desenvolvidas para a construção naval.

O Asymptote, escritório de arquitetura e design digital, também reflete em suas


concepções a estética high-tech. A palavra Asymptote flerta com a palavra assíntota, ou
seja, significa uma reta que é tangente a uma curva no infinito. O grupo surgiu em Nova
York no ano de 1989, formado inicialmente por um arquiteto egípcio e uma designer
americana. Em suas experimentações digitais, trabalham com projeções hiperbólicas,
parabolóides e exaltam a estética da curva.

Luxury Residencial Tower (2007), Arábia.


Asymptote. Fonte: www.asymptote.net

Já o studio americano Morphosis, criado no início dos anos 1970 no seio da Southern
California Institute of Architecture, liderado por Thom Mayne e Michael Rotondi, parece
estar fora de qualquer rótulo. As maquetes são fundamentais enquanto ferramenta de
projetação; algumas são executadas em escalas quase que reais. Seus desenhos, mesmo
a mais singela planta-baixa, são todos perspectivados e arrojados, misturando técnicas
da pop-art, como colagens e sobreposições, ao desenho mecânico. O desenho é
problematizado ao extremo, os esquemas são viscerais em suas elaborações quase
sempre isométricas. Nenhum mínimo detalhe passa despercebido. Uma estética outsider.
Em seus discursos, evocam a assimilação do acidental e do fragmento de impulsos em
suas criações e, para isso, a arquitetura precisa estar em constante mutação. Criticam
192

Gehry e Eisenman. Não estão nem aí para especulações técnico-digitais. Exaltam o


contato com a realidade, se consideram inconformados e não desejam ter identidade.

Ênfase no rigor do detalhe, na mecânica dos desenhos, nas montagens e nas maquetes analógicas do Studio Morphosis.
Fonte: COOK; RAND (1989).

Poderíamos ficar aqui citando uma série de arquiteturas e expressões que dialogam
substancialmente com as heranças advindas da concepção high-tech e monumental, da
ênfase nos detalhes arquitetônicos e suas relevâncias no que tange o uso da
transparência, da leveza e da eficácia técnica e estrutural presentes nas proposições
herdadas de Norman Foster, Renzo Piano, Richard Rogers, entre outros. Arquiteturas que
exaltam valores formais, simbólicos e culturais baseados na materialidade e na
construtividade do projeto e no equívoco mecanicista de que uma “boa construção”
equivale a uma “boa arquitetura” (sic). Esse “código de uma arquitetura elevada” e
comercial muitas vezes se alinha a uma coalizão de valores ‘eruditos’ da classe média
alta, o ‘gosto’ do alto escalão do establishment, com valores da profissão arquitetônica
como instituição. Segundo Graham (1979, p.446), esse novo “estilo internacionalizado”
unifica os valores da classe alta no interesse de um negócio e governo corporativos; “ao
mesmo tempo, ele olha para baixo, para a ‘praga’ e para a ‘poluição visual’, e discerne,
na complexa diversidade de códigos menores, menos organizados e mais baixos, todos
os sistemas de valores alternativos que são representativos”. Eis um ponto para reflexão.
Seria essas expressões arquitetônicas um paradigma da artificialidade?
193

Protótipo m7 (2002-03), Punta de Gallo, Chile – Arquitetos da cooperativa uro1.org. Um exemplo de


arquitetura efêmera que foge aos moldes da espetacularização. Um pequeno pavilhão para moradia de 45m2,
que pode ser montado e desmontado facilmente de acordo com a conveniência da situação. Os módulos de
madeira pré-fabricados são transportados em caminhões e armados em menos de uma semana (total de 71
peças que podem ser adaptadas a uma topografia escalonada). Uma alternativa de custo acessível – cerca de
300 dólares por m2. Fonte: KRONENBURG (2007).

Star system, marketing e espetáculo – arquitetura enquanto grife

Colocamos aqui, enquanto ponto de problematização o seguinte questionamento: é


possível a construção de uma arquitetura contemporânea expressiva e aproximada da
arte sem cair nas esferas do espetáculo?

Vivemos um sistema capitalista global e informacional no qual os aparelhos do Estado


estão à mercê de grupos multinacionais e reféns das corporações, muitas vezes
defendendo os interesses dessas. As empresas se apóiam em estratégias de
marketing urbano, embriagadas pelo cultural turn, por empresarialismos
governamentais, pelos apelos publicitários, por grifes e arquiteturas espetaculares.
Segundo Carlos Vainer (2000a), a cidade se articula através de três analogias: cidade-
mercadoria; cidade-empresa; cidade-pátria. Esse novo projeto de cidade é apropriado
por interesses empresariais e o discurso instaurado é de que essa estratégia é o único
meio eficaz para atender os ditames impostos pela globalização às cidades e aos poderes
locais.

A partir da década de 1980, quando abandona as estruturas marxistas e começa a


investigar o papel das novas tecnologias de informação e comunicação na re-
estruturação econômica e social das cidades, o sociólogo Manuell Castells – especialista
em movimentos sociais urbanos - defende uma lógica planetária de fluxos e não de
194

lugares, onde um modelo contraditório, mas rico, segundo ele, mostra a vitalidade do
capitalismo (sic!).

A década de 1990, inclusive, será dominada guerras fiscais e competição entre as


principais metrópoles mundiais. Tempos onde projetos arquitetônicos e urbanísticos de
impacto imperam, exercido pelos ícones do star system internacional – planejamentos
estratégicos, espetacularização das cidades e processos de gentrification. As cidades
querem estar inseridas em redes internacionais de negócios e serão competitivas desde
que atraiam o capital estrangeiro.

Segundo Arantes (2000), a cidade é entendida enquanto mercadoria, uma espécie de


máquina de crescimento, apoiada na polarização sistêmica e na construção do consenso.
A rentabilidade e o patrimônio arquitetônico-cultural caminham de mãos dadas; a cultura
funciona como meio de dominação, através da manipulação de linguagens simbólicas de
exclusão e estetização do poder, criando um círculo de negócios, multiplicando os
complexos arquitetônicos, reconstruindo parques e implantando museus, gerando a
cidade-empresa-cultural, iniciativa que funciona como isca para formação de uma
imagem publicitária.

Efeitos que ecoam desde o plano de privatização portuária da Harbor Place de Baltimore,
passando pela experiência de planificação estratégica da “Barcelona Olímpica”, entre
outras operações de marketing que vão ao encontro das demandas de localizações
instituídas pelos investidores internacionais que querem ampliar seu mercado
consumidor. Como exemplo dessa lógica, citamos a reconversão urbana em Lisboa
(EXPO 98), as Docklands em Londres, Puerto Madero em Buenos Aires, Píer 17 e Battery
Park em Nova York, Boston Waterfront, entre outras.

O plano de renovação espetacular promovida em Paris, através de investimentos em


grandes projetos, culturais em sua maioria, desenvolvida na Era Miterrand, contou com a
participação de arquitetos de partes diversas do mundo e re-inseriu a cidade no mapa
dos roteiros turísticos oficiais. O mesmo acontece com Bilbao após implantação do Museu
da Fundação Guggenheim, projetado por outro arquiteto grife, Frank Gehry. Mega
eventos tornam-se a ocasião como oportunidade de atrair investimentos – são as cidades
ocasionais. Para Berlim, os projetos resplandecentes simbolizam a Alemanha unificada,
através da produção de um design altamente sofisticado, que mistura a tradicional
arquitetura neoclássica com a arquitetura de ponta; é um exemplo de animação cultural
24 h – showroom de arquitetura (Arantes, 2000). A autora chega a conclusão que existe
um pensamento único de cidades, através de um sistema polarizado e fragmentado; há
uma expansão desigual da dita rede de cidades e efeitos brutais da hegemonia dos
países centrais sobre os países periféricos.
195

Para Maricato (2001) todas as intervenções devem ter uma “roupagem” democrática e
participativa e, geralmente, são coroadas por arquiteturas espetaculares das mais
contemporâneas grifes internacionais. Continuidade de uma cidade corporativa, que cede
à dominação ideológica e às necessidades das grandes empresas privadas. Uma cidade
competitiva, engendrada pela imagem e pela cultura e, paradoxalmente, caracterizada
pelo aumento da exclusão social.

Os tentáculos do star sytem arquitetônico internacional se disseminam em qualquer


território, seja através da política de arranha-céus ou da proliferação de ilhas de
entretenimento, de simulacro e simulação que se formam em diversas partes do mundo.
Mais recentemente na China, nos Emirados Árabes e em Dubai, mas também em
Chicago, Nova York, Londres e Paris.

Desde o lançamento de “Delirious New York” (1978), Koolhaas não deixa de colocar em
suas pautas de reflexão o fenômeno da cultura e da congestão - considerado pelo
arquiteto holandês um ingrediente chave de qualquer projeto ou arquitetura
metropolitana. Estabelece em suas análises quatro grandes eixos relacionados às
questões de projeto na cidade contemporânea143: o tamanho dos edifícios; a nova escala
mutante da arquitetura; as circulações verticais (em especial, os elevadores); o edifício
como elemento impressionante.144 Koolhaas, inclusive, vai considerar esses quatro
pontos para as formulações de alguns projetos realizados pelo seu escritório no ano de
1989: Terminal Marítimo de Zeebrugge, na Bélgica; Biblioteca da França, em Paris; ZKM
Centro de Arte e Tecnologia de Mídia, em Karlsruhe, na Alemanha.

É claro que a cidade contemporânea é um mote de extrema relevância para as principais


concepções teóricas de Koolhaas e do OMA (Office for Metropolitan Architecture) em suas
apreciações pelas grandes escalas de intervenção. O grupo defende a atuação de
arquitetos “estrangeiros” em diversas partes do mundo e assume literalmente o
desenvolvimento de intervenções ligadas ao fenômeno político de estratégias articuladas
com a cultura do entretenimento e do espetáculo. Entre “cidades genéricas”, processos
de globalização, consumo e urbanismo planetário, as provocações um tanto quanto
polêmicas de Koolhaas nos convidam a refletir acerca das potencialidades e limites das
civilizações do nosso tempo. Será que, realmente, vivemos em um “redemoinho”,
condição da nossa contemporaneidade, e que não há escolha em termos de se manter
uma posição fundamental? Para Koolhaas (2002, p.59), “o surfista tem que seguir a
onda”.

143
Essa cidade contemporânea é analisada, obviamente, a partir do contexto norte-americano e europeu.
144
O quarto ponto está ligado ao aspecto que, desta grande escala do edifício, ele acaba nos impressionando pela
sua massa, pela sua aparência e pela sua simples existência.
196

A globalização irá arrancar-nos completamente do chão e deixar-nos, num sentido


muito sistemático, sem raízes. Seremos estrangeiros em todos os lugares.

A globalização, certamente, não nos arranca do chão. Pelo contrário, planta sementes e
cria raízes muito mais profundas e homogêneas em todos os lugares. As corporações
multinacionais é que são estrangeiras nos nossos lugares, em nosso território e nos
seduzem através do mercado, da dominação cultural e da mídia as custas de uma
armadilha de difícil escape. Ou, como coloca Julia Kristeva: “somos estrangeiros em
nossa própria pátria”.

Transarquitetura, virtualidades e simulações - o espaço da informação

Arquitetos multi-artistas como Marcos Novak, Greg Lynn, Lars Spuybroek (NOX), entre
outros, estão experimentando o espaço virtual e trabalhando novos conceitos como a
nanotecnologia, a transarquitetura, os espaços sensorizados, os princípios algoritmos,
etc. Surgem novas formas como o strand, os blebs, os shreds e a “arquitetura blob”.
Seriam antídotos à padronização?

Esses processos ultrapassam a relação binária entre o sujeito e o objeto. O objeto não é
único, ele é multiplicado. Essas multiplicidades estão acima das singularidades e abrem
espaço para apropriação de um campo heterogêneo, híbrido e desterritorializado, como
apontam Deleuze e Guattari (1995, p.8):

As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não


entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações,
as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e
aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades
concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são
devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem
sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de
realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de
composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as
atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.

Nessa pequena explanação não pretendemos penetrar o universo das mídias digitais, da
cibercultura, muito menos das artes digitais. Um tema vastíssimo e de grande impacto
nas estéticas contemporâneas e nas redes mundiais de cidades. Mas, sem dúvida, eis
que surge uma nova flânerie (Rodrigues, 2008), embora sem a poética do esteta ou do
dandy, que capta o momento, o passageiro, o acontecimento urbano no qual se
“encenam complexas visões de estados permanentes da mente”145, presentes nos contos

145
In: BAUDELAIRE, 2007, p.17 - ver texto introdutório escrito por Dirceu Villa.
197

e crônicas de Edgard Alan Poe ou nas poesias e prosas de Charles Baudelaire - exímios
representantes e “testemunhas oculares” em corpos flanantes da emergência da vida
moderna no século XIX. Será que as novas tecnologias de informação e de comunicação
estariam abrindo novas possibilidades de se flanar pelas cidades? Um outro tipo de
mobilidade que tende a se re-orientar não apenas de um ponto fixo, mas através de
elementos portáteis móveis que recebem e fornecem informações mesmo em trânsito. E
mais, as viagens oferecidas pelo Google Earth através de imagens de satélites, por
exemplo, torna possível a vista aérea de uma série de cidades em partes diversas do
mundo, algumas, inclusive, já estão com boa parte de seus edifícios, ruas e viadutos
modelados em 3D. A partir de comandos muito simples, o usuário pode percorrer por
entre quadras e ruas, monitorando suas próprias visadas e ângulos de observação.
Aparentemente, ele está no controle.

Como já apontado por Paul Virilio, em “O espaço crítico”, as cidades sofrem efeitos de
uma economia multinacional, provocando transformações não apenas em seus tecidos
urbanos, mas nos acessos a essa cidade – zonas estéreis e não-estéreis, os lugares de
partida e de chegada. Um espaço construído que participa de uma topologia eletrônica,
“na qual o enquadramento do ponto de vista e a trama da imagem digital renovam a
noção de setor urbano” (VIRILIO, 1993, p.10). E nesse sentido, a arquitetura travará
relações com um espaço-tempo tecnológico, embora saibamos que não há um tempo
global ou um espaço global (SANTOS, 1997, p.268), mas um relógio global e alguns
espaços globalizados.

No texto “A Dissolução da Metrópole” – Milton Santos (1993) problematiza as novas


relações de espaço-tempo influenciando o desenvolvimento das grandes cidades, onde
novas lógicas de divisão do trabalho territorial irão implementar novos eixos de
polarização de atividades intelectuais e produtivas em função da centralização de
informação, entre outros fatores. Tais questões não estão mais relacionadas apenas ao
espaço físico das cidades, mas de que forma essas novas centralidades mais fluidas,
velozes e instantâneas se proliferam quase que simultaneamente numa sociedade
informatizada e tecnologizada, porém refém de um “certo tempo”. A simultaneidade
entre os lugares também não está restrita somente ao tempo físico, mas a um tempo
social. Dessa forma, o tempo da metrópole acaba se disseminando por vários outros
pontos de um dado território, gerando o que Milton Santos chama de hierarquias
temporais. Estamos diante do fenômeno de uma metrópole onipresente, capaz de
“contaminar” outros lugares e impor procedimentos hegemônicos nas questões relativas
aos processos de desenvolvimento social mesmo em regiões distintas. A exemplo do
Brasil, grande parte do território nacional ainda vive sob os ditames hegemônicos
operados na região sudeste do país que, além de deter grande parte dos recursos e
198

investimentos nacionais, controlam também grande parte das informações e influenciam,


seja culturalmente ou socialmente, as demais zonas periféricas.

Sobre essas transformações mais voltadas ao tecido das cidades, Colin Rowe e Fred
Koetter, em Collage City (publicado em 1978) propõe o discurso da fragmentação na
geração de mecanismos da colagem recorrendo ao dualismo figura-fundo146 como
instrumento de análise acerca das localizações das arquiteturas no espaço urbano e
percebem uma certa inversão entre espaço livre e espaço construído na “cidade da
arquitetura moderna”. E disparam ironicamente: “(...) talvez devêssemos ter mais
rupturas; quem sabe abraçando esperançosamente a tecnologia. Hoje, devemos nos
preparar para uma espécie de surfe computadorizado sobre e por entre as marés do
tempo hegeliano em direção a um possível porto supremo de emancipação”.

Estamos, evidentemente, na Era do espaço da informação, do espaço multidimensional.


Segundo o professor da faculdade de arquitetura de Roma – La Sapienza - Antonino
Saggio (2007), as concepções de espaço tornam-se mais concretas através da
arquitetura. A pirâmide, além de suas representações arquetípicas, pode ser considerada
um exemplo da aplicação de noções de geometria e trigonometria, mas, de acordo com
Saggio, só pôde ser concebida a partir da forma mental do triângulo. Na
contemporaneidade, com o uso do computador e de softwares numéricos avançados, é
possível criar novos experimentos espaciais que ultrapassem as bases da geometria
euclidiana; uma arquitetura que rompe com a ortogonalidade e que não se limite apenas
ao ciberespaço, mas que possa alterar os modos e as condições de “habitação” do mundo
real a partir de experimentações no espaço virtual (Novak, 1999). A transarquitetura é
encarada como uma possibilidade de ruptura nesse sentido, pois do ponto de vista
informacional, de concepção algorítmica, é capaz de gerar protótipos e corpos variáveis
rapidamente entre plataformas de coexistências que entrelaçam o real e o virtual, o
material e o incorporal.

Paul Virilio também fala da passagem da imagem mental do projeto à imagem


instrumental, de uma forma que a criação é modificada pelo instrumento, ou seja, pelo
software. São travadas relações muito mais conceituas e incorporais, pois o instrumento,
nesse sentido, torna-se conceitual, influi sobre o corpo da forma e não se trata de um
mero objeto de representação a exemplo do uso “limitado” de instrumentos de outras

146
O método figura-fundo é verificado nas modificações ocorridas entre a cidade tradicional (predomínio do
fundo preto – referente a massa construída; figuras rarefeitas – vazio das ruas, praças, passagens, pátios, espaços
públicos) e o despertar da cidade moderna (predomínio de um fundo branco, referente aos espaços verdes e
circulações; figuras pretas – edifícios isolados). Esse exercício é realizado em função das transformações urbanas
ocorridas em Roma e são expostas nas análises dos mapas dessa cidade, portanto não pode ser utilizado como
um modelo genérico. Se visualizarmos, por exemplo, as favelas das cidades brasileiras, verificaremos que seu
traçado ainda é medieval em pleno séc. XXI. Arquitetos como James Stirling, Hans Hollein e Arata Isozaki irão
se abrigar da fragmentação, tendo como mote o uso da figura sobre fundo em seus processos projetuais.
199

épocas, como a régua T, o compasso ou o esquadro. A arquitetura experimental, entre


arquiteturas líquidas ou topológicas, muitas vezes não tem uma relação direta com a
intervenção arquitetônica, mas se relaciona de uma forma muito mais substancial com o
campo da instrumentação geométrica e em função dos adornamentos dos corpos.

E, ao invés, a arquitetura é a arte dos corpos, é coreografia; todavia significa que, em


qualquer modo, existe conexão com o corpo, com a dança. Quando nos encontramos
em um edifício, quando descemos uma escada, que seja de Palladio ou não, ou
entramos em um espaço de Kiesler, pra dizer um nome que me agrada muito, ou no
Guggenheim, nos encontramos em relação com os corpos. Hoje, de fato, temos
somente uma relação com a visão. É uma forma de martirizar os corpos, esquecendo-
os, omitindo-os: e este seria o princípio da arquitetura? (Virilio, 2005)

A arquitetura do filósofo, design e arquiteto Greg Lynn se desenvolve entre limites


muitas vezes imprecisos, que transcendem tanto as fronteiras das tecnologias do mundo
digital quanto às linhas concretas da materialização do espaço. Os resultados de seus
experimentos se fazem através de processos de projeto livres e imprevisíveis, com base
em uma geometria topológica – deformações, variações, distorções, oscilações, dobras.
Seu trabalho é desenvolvido através de softwares da indústria aeroespacial e do mercado
de animação. As estruturas que denominou “strand”, as técnicas para viabilizar aberturas
em superfícies chamadas de “shreds”, as modelagens “blob” ou os espaços “blebs”, num
primeiro momento, pode causar estranhamento. Porém, tais “experiências” digitais não
estão condicionadas apenas ao espaço virtual; uma versão da “embryological house”
(casa embrião) pôde ser experimentada pelo público e algumas de suas obras já foram
materializadas.

Acima, à esquerda - Welsh National Opera


House - Cardiff Bay. Arq. Greg Lynn.
Fonte: www.glform.com
Acima, à direita e ao lado - formas extraídas de
equações numéricas e modelos construídos a
partir dos princípios da arquitetura líquida.
Arq. Marcos Novak.
Fonte: www.centrifuge.org/marcos
200

Pesquisas realizadas pela Greg Lynn Form.


Lógica fluida e de conectividade; geometria
topológica, curvas e superfícies contínuas.
Estudos digitais, H2 House (Austria) e
“embryological house”.
Fontes: www.glform.com

O estúdio de arquitetura NOX (leia-se Lars Spuybroek) é conhecido pelo seu projeto para
o Pavilhão da Água (H2O Pavilion), na Holanda. Uma arquitetura líquida, fluida, que não é
voltada para a representação, mas que abarca os fluxos humanos e a experiência do
movimento - uma proposta espacial de imersão feita de sons, tato, luz, como uma trama
sensorial. Se nos reportamos ao processo de estudos para a construção do D-tower, na
Holanda (em colaboração com o artista Q. S. Serafim), veremos que o caminho de
elaboração dessa obra de arte se inicia numa perfeita superfície esférica que vai
pulsando, inflando, sofrendo tensões, e se transformando em pleno espaço de modelação
virtual, até ganhar vida no ambiente real. Eles, então, materializam um modelo analógico
a partir desses estudos digitais; esse modelo sofre várias ações: o volume é estudado a
partir da estrutura de um balão, com seus fios de ligação, seus esforços e suas
flutuações; depois sofre outras ações físicas (distensões, alongamentos, bifurcações) tais
quais as malhas estruturais idealizadas por Frei-Otto (SPUYBROEK, 2004 p.352), até ser
submetido à ação da gravidade, influenciado pelos modelos suspensos elaborados por
Gaudí, tendo como inspiração o esquema de forças da arquitetura gótica. Lars e Serafim
re-encaminham essas influências para o ambiente virtual e começam a analisar a
dinâmica dessas forças, estudadas a partir do seu próprio empuxo. A forma, então, vai
se transformando novamente, criando-se torções em suas linhas de superfícies. Ao final,
nos deparamos com uma super escultura de fibra de vidro laminada e opaca, capaz de
provocar sensações em plena praça pública da cidade de Doetinchem. À noite, através de
201

sensores de fibra ótica, a escultura assume cores diversas que são manipuladas a partir
da interatividade com o visitante.

D-tower - inspiração: linhas e superfícies góticas. No ambiente


virtual, as esferas são submetidas a jogos de forças (contrações e
expansões) até entrarem em colapso. Na seqüência, o modelo final
submetido à ação da gravidade. Fonte: SPUYBROEK (2004).

Processo híbrido e
experimentações
similares à versão
da Son-O-House do
NOX e modelação
da escultura final,
que será executada
em fibra de vidro.

Esse tipo de técnica interativa também é utilizado no projeto da Son-O-House – a house


where sounds live. Nesse projeto, Lars contou com a colaboração do compositor Edwin
van der Heide, um artista que estuda os efeitos da ondulação de interferência em
freqüências próximas. É, evidentemente, uma pequena instalação experimental, onde a
estrutura dessa casa se integra ao corpo dos habitantes que nela se movem. Esse
movimento, essa energia proliferada pelo corpo e pelos impulsos vitais (caminhar,
respirar, etc) são captados por 23 sensores distribuídos de forma estratégica nas
instalações internas, gerando novos padrões acústicos. As ondas de calor não produzem
o som necessariamente, mas as membranas da Son-O-House movimentam-se ao ritmo
dos sons influenciados pelo movimento dos visitantes. O invólucro da casa foi criado a
partir da manipulação de tiras de papel que vão sendo cortadas, formando tramas de
linhas que se envolvem, se entrelaçam e vão ganhando um corpo tridimensional. Um
método muito próximo à poïetica. Em seguida um modelo analógico é digitalizado e
remodelado no ambiente computadorizado. Essa membrana é construída a partir da
articulação das juntas experimentadas nas dobras e curvaturas das tiras de papel,
determinando um volume bastante orgânico em sua composição; nos espaçamentos
entre as linhas, os projetistas deixam fluir aberturas que funcionam como uma fenda
para a possibilidade de flexão do material – chapas de metal. A título de curiosidade, o
projeto foi pensado e elaborado minuciosamente em 4 anos, entre 2000 e 2004, e
202

construído pela Enterprise Group aos custos de 410.000 euros. Os processos do NOX
transitam entre produções híbridas, apoiadas na tecnologia, nas instalações midiáticas e
nas interfaces digitais, mas também nos aspectos sensoriais que não estão restritas ao
ciberespaço e apontam para um cruzamento da criação arquitetônica em sintonia com
outros campos da vida.

Processo híbrido do NOX (Lars Spuybroek + Edwin van der Heide) – das dobras de papel, passando pela
modelação virtual até a materialização da Son-O-house (2000-2004), na Holanda. Fontes: SPUYBROEK (2004);
ARCHITECTURE NOW (2004).

Por mais que exista um mundo virtual e um mundo real, sempre reencontramos a
matéria. Para Virilio (2005) a arquitetura é um revestimento dos corpos, sejam em suas
complexidades materiais ou espirituais, e não um vestido “descartável”. É que existe
uma nova geração de arquitetos que têm trabalhado com imagens virtuais e dinâmicas
em função das possibilidades espaciais ilimitadas e dos rompimentos com as categorias
cartesianas de representação, ocasionadas pela capacidade de assimilação do virtual,
suas interfaces e ferramentas. Porém, há de se ter cuidado com esse mar de ilusões; a
contração do espaço-tempo, por exemplo, pode ser considerado um progresso, mas
também pode ser considerado catastrófico. Virilio se reporta aos estudos de Foucault
sobre os manicômios do século XVIII e a questão do claustro, da vigília, e a sensação de
aprisionamento, de confinamento (sociedades disciplinares)147. Pois bem, o mundo,
então, estaria se tornando pequeno – “a sensação de aprisionamento torna-se coletivo,
com uma claustrofobia nascente nos jovens que viram já tudo antes de ser visto. (...) A
vastidão do mundo fez aquilo que somos, assim como os materiais do mundo fizeram

147
Ver capítulo II – “Sociedade de controle e o princípio da indeterminação”.
203

através da evolução e da história. De certo, pulverizar as distâncias, anulá-las, contrariá-


las, significa corromper esta mediada do habitat do homem. É algo que o arquiteto
deveria compreender” (Virilio, 2005, grifos nossos). Tais acontecimentos, segundo
esse autor, podem se tornar insuportáveis e provocar no ser humano danos psicológicos
e sociológicos inimagináveis, além de terríveis conseqüências políticas e sociais. Tudo
tende a ser antecipado em cadeias simultâneas. O excesso de informação, a banalização
da comunicação e a instantaneidade das coisas, segundo Baudrillard (1992, p.18), leva a
forma social à indiferença.

Mais uma vez, Guattari (1992, p.112) nos faz um alerta: chegará o tempo em que o
teclado digital irá desaparecer. Uma era pós-mídia e de um retorno maquínico da
oralidade. Será através da fala que o diálogo com as máquinas poderá se instaurar. Não
apenas as máquinas técnicas, mas as máquinas de sensação, de pensamento... talvez
possamos começar a pensar numa espécie de “maquinaria tecnológica digital”.
Parafraseando Roland Barthes – “o prazer não se rende assim tão facilmente à análise”,
embora queiramos quantificar e qualificar tudo, até mesmo as emoções.
204

DESFECHO CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS

(...) para Baudelaire nenhuma beleza seria possível sem a intervenção de algo
acidental... Só será belo o que sugere a existência de uma ordem ideal, ‘supra-
terrestre’, harmoniosa, lógica, mas que possui ao mesmo tempo, como a tara de
um pecado original, a gota de veneno, uma pitada de incoerência, um grão de
areia que desvia todo sistema.

Michel Leiris
205

DESFECHO - CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS

Por um outro paradigma ético e estético

Ao final desse exaustivo e intenso trabalho, já sendo “uma outra”, lembro-me de uma
frase de Foucault: “Não adianta dizer o que se vê; o que se vê não habita jamais no que
se diz”. As palavras e as coisas, as formas de conteúdo e as formas de expressão dos
processos e arquiteturas analisados nem sempre se correspondem, mesmo que
possamos construir os mais poéticos discursos sobre aquilo que somos afetados, mesmo
que alguns autores até tentem simular os seus próprios caminhos e processos, explicá-
los, revelá-los, até justificá-los. De alguma maneira existe uma dimensão transversa,
linhas de fuga e perceptos que não residem nas relações significante X significado. E é
nesse sentido que o caminho, o percurso de um projeto, e não exatamente o produto
final, pode ser exercido enquanto crítica. Portanto, a arquitetura (ou arquiteturas) passa
a ser entendida enquanto os próprios processos que as transformam.

Tentamos aqui estabelecer inúmeras confrontações acerca dos processos e projetos


inerentes ao universo da arquitetura e do urbanismo e, mesmo desejando suscitar ou
provocar um outro olhar ético e estético entre arquiteturas que não estejam limitadas em
um universo macro de representação ou a serviço de uma sociedade que transita entre o
horror econômico transplantado pela força do capitalismo neoliberal e pela exploração da
própria raça humana, estamos, como diria JAMESON (1997, p.468), em um dilema que
“envolve nossa inserção como sujeitos individuais em um conjunto multidimensional de
realidades radicalmente descontínuas, cujas molduras vão desde os espaços
sobreviventes da vida privada burguesa até o descentramento inimaginável do próprio
capital global. Nem mesmo a relatividade Einsteiniana ou os múltiplos mundos subjetivos
dos antigos modernistas são capazes de fornecer um tipo de figuração adequada para
esse processo, que na experiência do vivido faz-se sentir pela assim chamada morte do
sujeito, ou, mais exatamente, pelo descentramento e pela dispersão esquizofrênica e
fragmentada deste último”. Transitamos entre plataformas de coexistência e, esse
“apego” ao mundo da representação ainda nos persegue.

De fato os saberes e a sensibilidade do sujeito ou do artista, na fatura de suas criações,


apontarão para os caminhos que a sua arte irá perseguir. Porém, existem componentes
de subjetividade social, maquínicas e estéticas que interferem na construção das
subjetividades individuais. Nesse sentido, a não ser que ele consiga formular escapes a
esses agenciamentos e esteja em constante processo de transformação, o limite da
independência do sujeito é condicionado e conectado às lógicas de poderes. Isso não
quer dizer que o sujeito seja suprimido, pelo contrário, o sujeito deve ser potencializado
em seus universos incorporais, como sinaliza Guattari (1992). A partir de nossa própria
206

experiência urbana, podemos perceber as novas lógicas de comunicação, de circulação e


de fluxos, bem como a explosão de novos espaços e fronteiras. A vida contemporânea é
veloz, dinâmica e as cidades crescem em constante movimento.

Inversamente a esses fluxos tão intensos, a atitude do arquiteto e do urbanista perante


essa condição contemporânea está quase paralisada. A subjetividade também encontra-
se paralisada, submetida a homogeneização. Crescem vertiginosamente espaços cada
vez mais padronizados em todo o mundo; a especulação imobiliária, principalmente no
Brasil, reproduz símbolos, plantas mínimas e edifícios habitacionais em toda a cidade
com objetivos meramente comerciais (balizados por um gosto mediano de consumo),
sem pensar no incremento do uso do solo X circulações – o lote é visto isolado e
desarticulado da malha urbana. A repetição de “Alphavilles” pelas principais capitais do
país denota o pânico e o medo das classes mais favorecidas em relação à cidade
(preferem se proteger dentro dos muros), mesmo que, em contrapartida, tais
corporações devastem boa parte da mata atlântica residual (caso de Salvador). Em
pesquisa realizada em um condomínio de edifícios residenciais pluridomiciliares148, um
empreendimento voltado para a classe média, constatou-se o uso de uma tipologia de
planta (o replicado H) amplamente disseminada na cidade, configurando-se quase como
um projeto padrão. Entrevistamos os incorporadores, os agentes mobiliários (corretores)
e o arquiteto responsável pelo projeto. O arquiteto revelou que o projeto realizado para
esse condomínio resultou de uma adaptação (quase uma cópia) de um edifício similar
construído em um outro bairro da cidade para a mesma construtora. Tais projetos devem
atender à seguinte questão: o mínimo possível de perímetro de fachada. Curvas? Nem
pensar. Mesmo que o padrão H prejudique as questões de conforto ambiental
(geralmente, duas prumadas sempre ficam voltadas para o poente), essa disposição já
se configura como “estratégia” de venda – prumadas nascentes, mais altas e ventiladas -
mais caras; prumadas poentes, mais baixas e pouco ventiladas - um pouco menos caras.
Outra questão ditada pelo incorporador: a planta deve atender um certo perfil de
usuário, provavelmente elaborado através de uma vigorosa pesquisa de mercado,
definindo um programa arquitetônico e funcional. Dessa maneira o espaço da célula
habitacional149 é bastante compacto, com o mínimo de área útil (62,95m2), havendo um
bom incremento nas áreas comuns e de lazer, além de um tratamento especial no uso

148
Pesquisa piloto intitulada “Edifícios pluridomiciliares – uma avaliação pós-ocupação”, sob nossa
coordenação, onde contamos com a consultoria de um psicólogo na realização da avaliação junto aos moradores
- usuários. Esse trabalho foi realizado em 2006 através do Programa Competir – Desenvolvimento de economias
regionais do nordeste do Brasil – uma parceria do SENAI-BA e GTZ (Alemanha), tendo como objeto dois
blocos de apartamentos de um condomínio localizado no bairro do Stiep, em Salvador, contendo 120 unidades
habitacionais com cerca de 600 moradores em uma área de 4.000,00 m2.
149
O apartamento compreende: living, varanda, 02 quartos, uma suíte (quarto + sanitário), um sanitário social,
cozinha, área de serviço e banheiro de serviço.
207

dos materiais de acabamento e nos detalhes arquitetônicos. O arquiteto confessa que o


projeto, de fato, já vem desenhado, ele só faz algumas adaptações (se submete, mesmo
não concordando). O incorporador também fala que a “planta” também já vem
desenhada pelo “mercado”. Os corretores, na verdade, é quem acabam ditando as
rédeas de todo o processo.

Há quem diga que saber desenhar é inútil, pois o capital desenha as suas próprias
plantas. Mas a cidade continua sendo a sede dos conflitos sociais, revoltas e de
resistências, onde as desigualdades acontecem ali, no próprio bairro, nas malhas
urbanas, na vizinhança. É o catador de lixo que percorre as ruas da cidade, o mendigo
que dorme sob as marquises dos pequenos comércios de bairro, as crianças que
solicitam qualquer ajuda nas sinaleiras de trânsito ou nos supermercados, os sem-teto
que ocupam prédios devolutos, é a favela que cresce aos arredores dos condomínios de
luxo. E eis que surge um tempo no qual fatores ético-políticos tornam-se cada vez mais
relevantes. E eis que é preciso experimentar um novo urbanismo. Guattari (1992, p.175)
coloca: “Em essência, o objeto urbano é de uma complexidade muito grande e exige ser
abordado com as metodologias apropriadas à complexidade. A experimentação social
visa espécies particulares de ‘atratores estranhos’, comparáveis aos da física dos
processos caóticos. Uma ordem objetiva ‘mutante’ pode nascer do caos atual de nossas
cidades e também uma nova poesia, uma nova arte de viver”. E complementa: “Os
coeficientes de liberdade criadora que o projeto possui são chamados a representar um
papel essencial no trabalho do arquiteto e do urbanista”.

Ou seja, somos sutilmente convocados a buscar uma outra perspectiva estética e ética, a
pensar a transformação das cidades em função das gerações futuras – em mutações
virtuais – no sentido de não deixá-las engessadas e sedentárias, a multiplicar as
dimensões dos processos de recriação. Um arquiteto polifônico que se permite navegar
por entre explorações das formações coletivas do inconsciente (GUATTARI, 1992, p.177).
Uma cartografia multidimensional.

Onde encontrar essa expressão no complexo universo da arquitetura e do urbanismo?


Nos processos? Talvez... desde que não estejam isolados, mas que assumam um caráter
polifônico, de contaminação. Incitar o estudante dessas disciplinas a também explorar
algumas possibilidade mínimas de escape às programações tecnocráticas através de sua
postura ética, estética, social e política. Isso precede a qualquer desenho ou intervenção.
Só não se pode ficar imóvel. A utopia enquanto criação e crítica do presente também
pode ser um caminho interessante; a partir de lugares inventados e imaginados, por
onde transitavam artistas das vanguardas do século XX (entre outros), abre-se uma
porta para um turbilhão de novas possibilidades e campos de pensamento, ação e
excitação face ao futuro e aos processos de transformação das cidades.
208

A busca por novos instrumentos de análise e de criação do projeto arquitetônico em


função da complexidade atual da urbe contemporânea é um dos desafios da nossa
condição atual. Todas as ferramentas (desenhos, modelos, diagramas, maquetes,
experimentações, etc, e porque não o desejo, o devir e a paixão) utilizadas pelo arquiteto
funcionarão como suporte para a concepção de uma construção projetual. Qualquer idéia
transcendente que possua algum efeito de transformação sobre uma ordem histórica,
social e espacial realizada a qualquer tempo não deixa de ser utópica (MANNHEIM, 1966
apud CAÚLA, 2006, p.8). O arquiteto quando desenha, manipula seus modelinhos de
estudo e suas maquetes, de algum modo, está criando um novo espaço, mesmo que ele
não esteja engajado politicamente ou movido por desejos de novas escalas de valores,
ele está transitando pela utopia. Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1989), citando Louis
Marin, coloca que as utópicas são jogos neste grande campo lúdico que é a cidade. Ao
final das contas, arquitetos e urbanistas quase sempre se perdem em armadilhas rígidas
– a criação de algum tipo de modelo para ser aplicado. Mas, é preciso estar atento.
Segundo Santos (idem, p.129), os modelos são bons porque servem para pensar e os
projetos de arquitetura e de urbanismo podem ser sonhos, o problema é que, quando
viram “regras incontornáveis, porém, passam a pesadelos. Aí o melhor a fazer é
acordar”.

Existe um mundo real, tal qual se apresenta, um mundo de diferenças, de injustiças, de


pobrezas, alegrias e tristezas – depende de como está saturado. Existe também um
mundo artificial, recheado de simulações e signos, ilhas e imagens forçadas muitas vezes
produzidas em prol de um consumo desenfreado – são estratégias de dominação. Mas
também tem aquele mundo que podemos transformar, tentando reconhecer as
possibilidades, preservando as posturas éticas e abrindo espaço para as coexistências e
revoluções, provavelmente revoluções moleculares, quase imperceptíveis, mas, que se
encontram em processo. Mundos paralelos da condição de viver, ou melhor, mundos
coexistentes, superpostos, que se contaminam em zonas de vizinhança, em tempos
diferentes.

Podemos resistir de várias maneiras. Pelo questionamento ao pensamento dominante,


pelo posicionamento crítico e pela forma como encaramos esse mundo – no plano
individual e nas organizações coletivas. Tal posicionamento depende das relações entre
saberes e processos de subjetivações que são produzidas. No entanto, é também preciso
perceber as conexões e redes de poderes nem sempre visíveis. A arte, a arquitetura, o
pensamento podem ser usados como forças-motrizes que engendram acontecimentos,
sucessões descontínuas e multiplicidades sempre em processo de transformação.

Podemos apontar três pontos para reflexão: a nossa visão de mundo – que envolve
perceptos e saberes (experiência empírica) e novos conceitos, portanto pressupõe uma
209

nova orientação do pensamento, mudanças na forma de pensar e na maneira como nos


situamos perante uma multiplicidade de caminhos; nossa possibilidade de criação
(performance) diante das situações mais diversas – pelo caráter de transgressão e pelas
esferas de sensibilidade e contaminação com outros campos e, sobretudo, a ética150 –
pela posição que tomamos, pelos princípios que defendemos, pelos valores e posturas
que assumimos. Penso que tais princípios se estabelecem em relações indissociáveis e
são condições importantes que deveriam anteceder quaisquer resoluções projetuais no
campo da arquitetura e do urbanismo.

Se há saídas desse labirinto eu não sei. As saídas podem estar escritas nas entrelinhas,
ou sutilmente apontadas enquanto caminhos, possibilidades, coexistências. Não é
objetivo desse trabalho apontar saídas ou determinar regras - as regras de qualquer
disciplina (se é que existem) não regulamentam a experiência ou o modo de apresentá-la
- mas possíveis linhas de fuga, plataformas abertas e provocações.

Preferimos compactuar com Guattari (1992, p,116), ao enfatizar que o paradigma


estético, a potência da criação e a composição de perceptos e afetos mutantes são
formas de possíveis liberações a antigos dogmas. O rap de B. Negão é claro: “o processo
é lento. (...) o desapego do resultado é importante, o caminhar contínuo nessa vibe deve
ser o modus operandi. (...) um novo pensamento vai dando sinais sutis da sua
existência. (...) processo quase eterno de repetição. (...) dentro das possibilidades,
procurar a melhor opção. (...) o processo é lento, mas é assim que a gente vai pra
frente”. Se uma goteira contínua consegue perfurar a mais compacta pedra,
encampamos na defesa de seguir no “estilo conta gotas”. Mas sem inibir nossa liberdade
criadora. Dessa potência jamais podemos desistir!

150
Não nos propomos aqui discutir ou conceituar a ética do ponto de vista epistemológico. No entanto, do ponto
de vista da antropologia, um posicionamento ético diante de um mundo de condições e valores tão banalizados,
invertidos e, poderíamos até dizer, apodrecidos, a conduta humana estaria muito além do bem e do mal. Um
posicionamento ético se relaciona com princípios, posturas e juízos de valores que, muitas vezes, não
correspondem àqueles que vigoram na sociedade.
210

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