Entre Processos e Perceptos - Ariadne - PPGAU-FAUFBA
Entre Processos e Perceptos - Ariadne - PPGAU-FAUFBA
Entre Processos e Perceptos - Ariadne - PPGAU-FAUFBA
Faculdade de Arquitetura
PPG-AU/FAUFBA
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Título da Dissertação
CDU: 72.01
Universidade Federal da Bahia
Faculdade de Arquitetura
PPG-AU/FAUFBA
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Banca Examinadora
O desenvolvimento desse trabalho não seria possível sem as influências que me perseguem
desde a infância, formações que tive dentro das instituições disciplinares (família, escola,
etc), nas minhas escapadas pelas ruas e no convívio com outros seres humanos em diversas
fases de vida; relações que catalisaram em mim inúmeros processos de transformação e que
me permite ser o que sou – não apenas uma pessoa, um simples EU, mas um ser “ajudado,
aspirado, multiplicado”.
Gostaria de agradecer aos meus pais, Arnaldo e Adriana, que aportaram em terras
soteropolitanas no início da década de 1980, trazendo na bagagem três filhos e a esperança
de travar novas batalhas em um novo mundo.
Aos meus queridos irmãos, Adaléia e Eliézer, pelos intensos momentos compartilhados.
Ao músico Alexandre Vargas, pelo carinho e compreensão nos períodos em que estive imersa
em livros e reservada no meu “cantinho”, privada de um convívio mais intenso.
A nossa encantadora Beatriz, por sua existência, por seu sorriso, pela sua expressividade.
Ao professor Alberto Olivieri, “figura” de extrema generosidade com quem tive a oportunidade
de compartilhar as atividades de docência no Atelier II da FAUFBA.
A todos os membros da banca examinadora pelas contribuições, pelas críticas e por aceitarem
o convite – Anete Régis Castro Araújo (na época do exame de qualificação I), Anne Marie
Sumner e Paola Berenstein Jacques.
E, finalmente, a Pasqualino Romano Magnavita, que me despertou para uma nova maneira de
pensar e me permitiu o percurso de um caminho mais prazeroso. O prazer em arquiteturas
onde “o desejo possa morar”. Professor instigador, figura humana extraordinária e pensador
livre, lembro-me de uma velha canção popular: “(...) feliz de quem penetre o teu mistério...
como a alma sem corpo, sem vestes, como encadernação vistosa feito para iletrados ele se
enfeita, mas ele é um livro e somente alguns a que tal graça se concede é dado lê-lo”. Meu
profundo respeito e reconhecimento.
RESUMO
Este trabalho também aponta outras formas perceptivas, afetivas, sensoriais, intempestivas e
“corporais” de se compreender o espaço da cidade e suas arquiteturas - territórios que não se
deixam simular apenas pelo mundo da representação, mas que se delineiam entre traços de
conteúdo e de expressão, em seus universos moleculares. Palco de complexas coexistências de
uma multiplicidade de arquiteturas que atendem aos mais diversos setores e poderes, mas que
sugerem a emergência de pequenos focos de resistência a um pensamento
dominante/convencional e que possibilite quebras das linhas de segmentaridade dura, abrindo
espaço para outros campos da criação.
ABSTRACT
Design processes and contemporary architectures are understood from their multiplicity and
different links with other spheres of knowledge, such diverse as arts, science and philosophy.
Among different lines of aesthetic expression close to the production of architecture (diagrams,
hibridizations, deconstruction, experimentation, virtual technology, flows, transversalities, micro-
actions, desires, impressibilities), one may find intense processes of transformation among the
heterogenous nature of their formation and differences of degree and / or level, though they
change their character few times. The problematics brought along the work can suggest critical
contributions to architectural doing, potencializing the upcoming of mutant and subjective methods
which will not bound to conventional Cartesian geometry.
This work also points out other perceptive, affectionate, sensitive, tempestuousness and "physical"
forms of understanding the space of the city and it's “architectures” – territories that do not let
themselves simulate only in the world of representation, but that are also outlined between traces
of content and expression, in their molecular universes. Stage of complex cohexistance for multiple
“architectures” which serve to many sectors and powers, but that suggest the emergence of small
focuses of resistance to a dominant / conventional thought and which make possible to break of
the lines of segmentation lasts, opening space for other fields of the creation.
Apresentação, 5
Introdução, 10
Eixos de problematização, 11
Eixo 01 – entre / processos / perceptos
Eixo 02 – composição temática e aspectos metodológicos
Eixo 03 – arquiteturas: poderes, sobre-codificações e multiplicidades
Referências, 210
5
APRESENTAÇÃO
1
O Atelier II corresponde a uma “disciplina” anual de projeto arquitetônico ligada, na época, ao Departamento
de Teoria e Prática do Planejamento (atualmente Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo) e
ministrada para alunos do segundo ano.
6
pulsão do seu autor como torna visível o modo de fazer, o percurso do projeto que
antecede a sua própria materialização. Lembro-me de uma citação de Leibniz: “há uma
coisa mais importante que as mais belas descobertas: o conhecimento do método pelo qual são
feitas”.
Não posso deixar de citar uma revista que me chamou bastante atenção na época – uma
edição de 2001 da el croquis (hibridization processes) – na qual inúmeros arquitetos
espanhóis expunham seus processos projetuais, seus pensamentos oscilantes e suas
arquiteturas frenéticas em meio há tempos irregulares. Um número bastante
experimental, mas com muitas reverberações materializadas em obra construída,
demonstrando uma certa “utopia do possível”. Fui “pega no composto”, ainda mais
quando verifiquei que muitos daqueles processos apresentados na revista dialogavam
com os processos desenvolvidos no Atelier II.
Essa foi à deixa, o elemento catalisador, para que eu me interessasse muito mais por
novas formas de apreensão do espaço – fora das amarras da minha própria formação (já
que o ensino no período que estudei na FAUFBA quase sempre foi orientado por preceitos
modernistas, racionalistas e funcionalistas) - na qual acabei desenvolvendo uma tímida
pesquisa paralela nas disciplinas de projeto e arquitetura contemporânea que comecei a
ministrar no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIFACS (2006-2007) e no meu
retorno à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA em 2008, agora como
professora auxiliar.
***
Para dar conta dessa investigação, a dissertação se desenvolve em seis momentos que
se inter-relacionam: uma primeira partícula introdutória onde trato das principais
temáticas e eixos de problematização do trabalho, quatro capítulos sub-seqüentes que
funcionam como uma espécie de linha norteadora do pensamento, e um último momento
a guisa de conclusão. Não escrevi necessariamente nessa seqüência, na verdade resolvi
experimentar escrever de uma maneira mais livre, sem estruturar, previamente, um
roteiro, um recorte ou uma ordem de abordagens até porque os temas expostos se
entrelaçam e se contaminam quase que em todo o processo da escrita. Ao final, chega-
se ao formato explicitado a seguir.
conexões criadoras, além de buscar alguns sintomas, sejam nas novas tecnologias ou
nos sistemas de comunicação, que indiquem outras formas de pensar os processos da
arquitetura contemporânea. O princípio da indeterminação vem como suporte para a
compreensão de uma produção que acontece em meio a um campo que não opera mais
em estruturas meramente científicas e funcionais (exatas e equilibradas), mas articulada
com a arte e a filosofia. É nesse sentido que o tópico “A arte enquanto potência geradora
de blocos de sensações - perceptos e afectos” aponta para os perceptos como elementos
de fuga, de desvio às representações tradicionais nas arquiteturas enquanto objeto -
devires-outros - pois não estão simplesmente presos à relações dialéticas significante-
significado / sujeito-objeto e seus códigos binários-axiomáticos.
No quarto capítulo – Entre processos – mergulhamos de uma maneira mais direta e até
racional naqueles processos que consideramos mais instigadores, embora algumas obras
arquiteturais também transitem nos capítulos anteriores. Não elegemos grupos de
arquitetos ou obras isoladas, mas tentamos compreender o esforço de suas próprias
arquiteturas em romper com aquilo que entendemos como “máquinas abstratas binárias
e axiomáticas”, que realizam totalizações, homogeneizações ou círculos de fechamento e,
nesse percurso, aproveitamos para tecer algumas críticas ao processo de
espatecularização e suas arquiteturas resplandecentes. Nos defrontaremos com a
exposição de processos que não estejam aprisionados em formulações pré-estabelecidas,
mas que transitam em reflexões mais abertas, experimentais e que questionem a
reprodução de um saber sedentário. Em suas multiplicidades de expressões estéticas –
hibridizações, virtualidades, efemeridades, manipulação de modelos, processos
diagramáticos, desconstruções ou até nos mais simples gestos miméticos, muitos dos
projetos apresentados tangenciarão não apenas os efeitos de contaminação de outras
áreas e campos do saber, mas, conseqüentemente, o pensamento pós-estruturalista.
9
***
Vale ressaltar que, esse trabalho, como veremos a seguir, encontra-se no intermezzo,
entre, sempre envolvido nas mais variadas conexões e simultaneidade de abordagens em
diferentes escalas territoriais e espaciais – um emaranhado de tendências e expressões
estéticas da produção de arquiteturas no passado recente e na contemporaneidade. A
tentativa de organizar os tópicos exigidos na estruturação de uma dissertação é mera
formalidade acadêmica, pois a construção do texto funciona como um “diagrama
discursivo” agenciado pelo próprio processo rizomático e, claro, reflete a expressão desse
processo. A presença de freqüentes ritornelos (repetindo e re-enfatizando questões em
momentos diversos da monografia) é quase que uma necessidade de assegurar o
território conquistado por essa nova forma de pensar, funcionando como um fio
condutor.
Compreendo esse trabalho pelo viés de três aspectos principais: primeiro na possibilidade
de explorar outros territórios, não apenas da arquitetura e do urbanismo, mas do
pensamento; segundo constitui uma inquietação, um esforço em tentar mudar de
posição, o que resultou em uma espécie de catarse pessoal no processo de produção
dessa monografia e, finalmente, a despretensão de tentar defender alguma coisa ou
fechar um círculo preciso, longe disso! Embora tenha sido muito prazeroso escrever,
entendo esse trabalho muito mais como uma provocação do que qualquer outra coisa,
pois, encontrando-me nesse estado “Entre” multiplicidade e heterogeneidade de
processos, questionamentos, problemas, experimentações, desejos, desterritorializações,
visões de mundo no viés ético/estético, me vem à mente uma metafórica condição da
existência transmitida pelo meu orientador em uma de suas aulas: “A vida é um navegar
no meio de um mar revolto, todavia, sem porto de chegada (...) navegar no Caos é
preciso!”.
Entendendo Caos como lugar da criação de todas as formas, de todas as partículas, “mar
das dessemelhanças”, o trabalho que ora apresento deve ser entendido, também, como
um barco à deriva, seguindo uma linha de fuga sempre em busca de outros mares e
ciente que não terei, necessariamente, um porto de chegada, porém, seguindo sempre e
me mantendo por entre “órbitas instáveis” e futuros improváveis.
10
INTRODUÇÃO
Gilles Deleuze
11
INTRODUÇÃO
Eixos de problematização
Alguns discursos e pesquisas têm surgido na cena atual travando relações, diálogos e
supostas intersecções entre literatura e arquitetura, parafraseando conceitos maturados
por filósofos como Jacques Derrida e Júlia Kristeva - desconstrução, escritura, diferença,
intertextualidade. Arquitetos que hoje fazem parte de um distinto grupo de estrelas
internacionais, a exemplo de Peter Eisenman e Bernard Tschumi, trabalharam
conjuntamente com Derrida nos idos de 1985, três anos antes da exposição organizada
por Philip Johnson e Mark Wigley no MOMA em Nova York – uma mostra arrebatadora da
recém denominada “arquitetura desconstrutivista” que em nada se aproximava da
desconstrução literária presente nos círculos acadêmicos anglo-saxões. Nessa ocasião,
Tschumi, após vencer o concurso internacional, convidou Eisenman e Derrida para
desenharem uma folie para o Parc La Villette, processo esse descrito no livro “Chora (L)
Works”, uma referência explícita ao texto do filósofo francês originado no Timeu platônico
– Khôra2. Tanto Eisenman quanto Derrida iniciam um trabalho em colaboração,
estabelecendo articulações entre arquitetura e filosofia, onde procuram determinar
alguma relação entre o discurso da desconstrução, muitas vezes representado pelo
conceito do entre na arquitetura, da ausência e do questionamento às ordens clássicas,
ou ainda uma possível materialização de um “espaço entre”, com o universo da escrita
arquitetônica. Isso tudo vai desembocar naquilo que Eisenman chama de “deslocamento”
ou lugar deslocado.3
2
Ver capítulo III, nota 102.
3
Para maiores detalhes e aprofundamentos acerca da desconstrução e do pós-estruturalismo, ver capítulo IV.
12
Após o “mal entendido”, em uma conversa nada amistosa com Sandorf Kwinter na Rice
University School of Architecture, em Houston, no ano de 20014, Eisenman alfineta:
“Derrida é uma das pessoas mais brilhante do mundo, mas não sabe ver”. Em 2004,
alguns meses antes de falecer em decorrência de um câncer, Derrida responde em uma
carta à Luiz Fernández-Galiano sobre a possibilidade de re-encontrar Peter Eisenman:
“não posso negar que, no que diz respeito à arquitetura, hoje me sinto menos
competente e menos inspirado do que nunca”.
Bem, essa pequena passagem sobre o encontro entre Eisenman e Derrida foi exposta,
pois, é preciso estar atento a essa relação paradoxal entre a aplicação de uma teoria ao
campo da realidade. Na grande maioria das vezes, as articulações de conceitos filosóficos
ao universo da arquitetura quase sempre operam por semelhanças formais5. Muitos
edifícios expressam em seus próprios corpos noções de fragmentação, desequilíbrio,
fissura, contorções, torções, decomposições. Piranesi já “operava” dessa maneira no
século XVIII, no “espaço entre” de seus desenhos. Para Barthes, a desconstrução tem
um sentido de luta contra a alienação, a dominação de estereótipos e a tirania das
normas. Nesse contexto, a desconstrução deflagra a perda de hegemonia de um saber e
de uma forma de pensar que, todavia, continua coexistindo com novas construções e
criações.
4
Conferir artigo intitulado “Peter Eisenman e Sanford Kwinter – tensão disciplinar: territórios mutantes”,
publicado originalmente em Arquitectura Viva – Pragmatismo y Paisaje, 2001, p.34-45.
5
Uma noção teórica textual difere de uma prática arquitetônica construída, embora em universos completamente
distintos economicamente, socialmente, culturalmente e geograficamente podemos perceber semelhanças
formais, por exemplo, entre a “arquitetura desconstrutivista” e a arquitetura de favelas, como examina
JACQUES (1995) em “Favelas / Déconstructiviste. Constat et questionnement”. A autora, inclusive, nos faz
uma advertência quanto a aplicação desses conceitos: “nous pourrions essayer de déconstruire les grands dogmes
de l´historie de l´architecture, les mythes, les modèles, les bâtiments fétiches, déconstruire Le Corbusier ou le
Bauhaus, ou bien déconstruire les grands textes de théorie architecturale, les doctrines, déconstruire Vitruve ou
Alberti. Travail théorique restant à faire” (idem, p.172).
14
Porém, estar entre não pode ser facilmente significado, mas é preciso estar atento aos
indícios, as conexões, as transições. Estar entre não implica em uma localização, mas
estar na iminência, deslocado. Se a condição entre habita numa condição intermediária,
não num espaço, pois o espaço está ligado ao tempo e em khôra não há tempo, então a
condição entre se abre para o processo, o impulso da criação, da invenção, do devir, do
espaçamento.
6
Princípios de conexão e de heterogeneidade; princípio de multiplicidade; princípio de ruptura a-significante;
princípio de cartografia e de decalcomania. Conferir em DELEUZE; GUATTARI (1995).
15
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança.
(ibidem, p.37)
Um olhar entre, um estado entre, tenta perceber as coisas pelo meio, transversalmente,
em suas intensidades, em suas conexões, em suas potências afetivas e perceptivas, em
blocos de sensações. Não há desejo de partir do zero ou buscar a gênese dos processos
que serão “enfrentados”, mas navegar entre suas velocidades de expressão, tentando
trazer a tona às inquietações de problematizações e as contaminações, mesmo que às
vezes de maneira excessiva ou dissimulada.
Por mais que seja possível ler os processos através da própria obra7, solidificada e
enraizada (e de maneira nenhuma se procura aqui negar a obra ou o fato materializado,
a arquitetura feita e inserida num contexto, pelo contrário), a escolha em navegar por
entre processos de maneira mais profunda, buscando o momento da criação, o modo de
fazer ou alguma compreensão de um espaço criado que atravessa o espaço do desenho e
o espaço materializado, expressa aquilo que chamamos de coexistência. Porém, estudar
a obra ou o objeto arquitetônico também nos coloca em relação. Estar no meio, entre,
também significa coexistir, conectar, estabelecer relações. Como nos coloca Rosalind
Krauss (apud ZONNO, 2006), a obra pode ser considerada um entre a paisagem e a
arquitetura. Os arquitetos lidam com um sistema complexo na atividade projetual,
através de repertórios de uma realidade (sejam sociológicas, econômicas, culturais,
7
Parafraseando Tzvetan Todorov – toda obra mostra a maneira como foi feita. No entanto, essa fatura pode estar
explícita ou implícita.
16
Vale lembrar que a maior parte dos arquitetos não expõe os seus processos de trabalho,
muito menos os tornam públicos. No Brasil, em particular, a busca de um modelo de uma
nova sociedade oriunda da nossa forte herança modernista (principalmente os preceitos
corbusianos), ocasionou a formação de um arquiteto criador pseudo-capaz de sintetizar
um momento histórico, social e cultural em sua obra (MEDRANO, 2005)8. Poucos
também assumem uma posição ética e estética clara daquilo que compreendem
enquanto a tarefa da arte e da arquitetura, bem como suas preocupações políticas e com
o destino das cidades ou ainda, alguma condição de formulação de uma crítica radical
como prática teórica, como colocava Guy Debord (a cultural e social deveria preceder a
revolução urbana). Por isso, por mais paradoxal que seja, pensadores como Peter
Eisenman e Bernard Tschumi (entre outros), são exemplos de arquitetos que, mesmo
exercitando suas arquiteturas para as grandes corporações e fazendo parte do star
system internacional na atualidade, expõe seus percursos, seus processos e produzem
discursos substanciais sobre suas próprias atuações, implementando maiores relações
entre práticas teóricas e projetuais. É nesse sentido que, muitos de seus processos (que
consideramos instigantes) e de suas reflexões engendradas ao longo de suas carreiras
(principalmente nos idos dos anos 1980 e princípio dos 1990, antes de habitarem o hall
estelar de maneira tão hegemônica) são colocados no corpo deste trabalho.
No mais, a busca pelo processo e esse estado entre, abre um outro caminho que é a do
entendimento da arte e da arquitetura enquanto linguagem das sensações – o percepto,
o afeto, o sensorial, o incorporal9.
8
Sobre o traço de Oscar Niemeyer e sua condição de “arquiteto gênio”, o autor coloca: “Oscar Niemeyer é o
representante mais emblemático nessa questão: seu processo vai do traço gestual e espontâneo ao desenho
executivo e obra – esse traço contém como reflexos todas as respostas às angústias de um tempo – como criador
consciente não precisa de processo ou método, ou pelo menos esses se mantêm ocultos”.
9
Sobre essas questões, verificar no capítulo II, o tópico: “a arte enquanto potência geradora de blocos de
sensações - perceptos e afectos” e no capítulo III: “transversalidades - arquiteturas, fluxos. Corpo & espaço”.
17
Em uma obra de arte, em um texto ou em um projeto, podemos ser afetados por eles e
estabelecer relações de potências – os blocos de sensações. E, projetar, escrever ou criar
por perceptos, por sensações, por afetos.
É possível exemplificar isso? A pintura abstrata, por exemplo, que trabalha com linhas de
força ou os diagramas de um processo projetual (que serão analisados no capítulo IV),
ou ainda as sensações estabelecidas a partir da experimentação de um espaço, de um
afeto potencializado pela arte, seja uma fotografia, um filme ou uma escultura. E é isso
que se conserva na arte – os blocos de sensações que são compostos por perceptos e
afetos.
É da arte novos perceptos e novos afetos, ou seja, desvios, retornos, linhas de partida,
mudanças de níveis e de escalas (idem, p.248). As arquiteturas aqui inseridas estão
nesse limiar, mesmo que sejam medíocres. Mas não é por força da mediocridade que
podem tornar-se gigantescas? Toda fabulação é fabricação de gigantes (ibidem, p.223).
Esses três eixos e palavras se conectam e fornecem uma linha condutora capaz de
costurar os caminhos que levam aos processos que serão lidos, olhados... em suas
multiplicidades. Quase excessivamente. Em sensações e afetos. Chora(l) também
significa multiplicidade de vozes, um excesso. Algo que não produz um único sentido,
como defende Derrida: “a capacidade de um trabalho produzir muitos significados
simultaneamente, incluindo os contraditórios, não intencionais e os indesejáveis” (apud
MENDONÇA, 2000).
É nesse sentido que preferimos tentar construir uma exposição através de um viés mais
crítico como objetivo, em detrimento de uma abordagem classificatória, enfocando um
conhecimento heterogêneo que atravessa multiplicidades de intensidades em suas
diferentes manifestações.
1.
É atravessando os vieses acima mencionados, e sendo atravessados por eles, que
procuraremos analisar a complexidade de algumas obras contemporâneas e seus ricos
processos conceituais, funcionais e perceptivos / afetivos de projetação, buscando
conexões entre as principais vertentes atuais e os novos questionamentos e paradigmas
que vem sendo discutidos por filósofos, cientistas, arquitetos e artistas em geral
(verificação do estado da arte dos processos contemporâneos).
Para aprofundar algumas metodologias inerentes a esses campos, utilizamos como base
algumas investigações de articulações processuais contemporâneas de concepção de
arquiteturas, em suas multiplicidades de expressões, enquanto caminhos significativos na
re-fundamentação de “metodologias outras” do nosso tempo (e que podem servir como
instrumentos de experimentação), sem deixar de articulá-las com o contexto, os fazeres
e os saberes em que são processadas. No entanto, processos formulados por arquitetos e
artistas de outros períodos, também podem ser utilizados como exemplificações de
construções e obras que foram vanguardistas em seu período histórico (ver capítulo III),
contribuindo não apenas para o desenvolvimento do espaço construído, mas, sobretudo,
para a disseminação de experimentações, criações e acontecimentos.
O estado da arte dessa produção não está delimitado em uma região específica ou em
um dado período; ela acaba acontecendo de modos diferentes e em partes diversas do
mundo. Nesse sentido, tentamos avançar em questões que comportam alguns eixos
estruturantes de composição temática que serão desdobrados, sejam:
10
Essa categoria de análises – Percepto, Afecto e Conceito – é desenvolvida em DELEUZE; GUATTARI
(1992b), O que é a filosofia?, p.213-255.
11
É claro que me refiro a uma versão domesticada e reprodutivista da arquitetura moderna. Vale lembrar a
realização da exposição “The International Style: Architecture from 1922”, organizada por Philip Johnson e
Henry-Russell Hitchcock, no MOMA-NY, em 1932, onde se tentou promover a disseminação de um estilo
internacionalizado – falsamente unitário - com apresentação de mais de 72 obras construídas na Europa e EUA,
não referenciando nenhum projeto visionário, nem mesmo os experimentos russos ou futuristas, negligenciando
também as produções da Escola de Amsterdã, o expressionismo alemão e a arquitetura organicista. Percebe-se
que, ao longo do tempo, as arquiteturas de vanguarda e experimentais foram marginalizadas e as bases
revolucionárias do movimento moderno na arquitetura foram reduzidas às formas e à linguagem, sem conectá-las
com novas metodologias de pensar e projetar arquiteturas na cidade e de repropô-las como fator social essencial
– aspecto de renovação contínua e ideológica defendido pelos grandes mestres. Após a década de 1970 (período
que alguns autores consideram como posterior ao “moderno tardio”) evidenciam-se algumas correntes pós-
modernistas tardias (fundamentalistas, historicistas, contextualistas ou neo-culturalistas) e neo-modernistas. Os
primeiros preocupados com a preexistência ou com a disseminação de uma linguagem arquitetônica ao mesmo
tempo eclética e carregada de símbolos que atendem a uma quase pasteurização do meio urbano; os segundos
20
É claro que não podemos deixar de considerar o poder da mídia, das máquinas sociais de
homogeneização e demais agenciamentos externos e coexistentes no universo da
arquitetura (diria até no ensino das escolas) e que contribuem muito para a formação
das subjetividades – individuais ou coletivas. As esferas do mundo da representação, a
“semelhança do percebido”, as referências e os processos de imitação frente ao mundo
real e ao que se publica em livros e revistas especializadas de arquitetura e urbanismo.
tentam retomar alguns princípios idealizados pelos mestres da primeira geração do movimento moderno, porém
sem a utopia ou causa social de outrora. Ambas correntes, de modo geral, acabaram sendo cooptadas no processo
de espetacularização e mercantilização da cidade contemporânea, seja através da preservação de seus centros
históricos ou na exploração empreendida pelo mercado imobiliário especulativo.
21
2.
É importante salientar que compreendemos a “metodologia” como uma articulação de
conceitos, perceptos e funções - não apenas de definições - que têm a consistência de
nitidez para ser guia autêntico e, simultaneamente, a flexibilidade para conter ‘n’
métodos, que podem variar de arquiteto para arquiteto.
Minha forma de pensar se alinha muito com o repertório conceitual desenvolvido pelo ex-
professor da Universidade de Paris VIII-Vincennes e filósofo Gilles Deleuze, mais
precisamente suas obras em colaboração com o psicanalista-teórico-militante Félix
Guattari. O cerne deleuzeano aponta para uma filosofia da diferença que se contrapõe a
um pensamento da representação. Uma das vertentes do pensamento pós-estruturalista,
diz respeito à lógica da multiplicidade a qual se orienta o pensamento rizomático.
em parceria com Suely Rolnik, psicanalista brasileira e umas das tradutoras das obras de
Guattari e Deleuze no país.
Se nos reportarmos a uma visão mais funcionalista e racionalista, perceberemos que boa
parte das necessidades humanas é construída a partir de necessidades sociais reunidas
dentro de um programa formal estético totalizador e unificado. Formas ideais. Estruturas
zoneadas socialmente e espacialmente (heranças da Carta de Atenas?).12 Hierarquias.
Conjuntos de subsistemas ordenados. Disciplina, organização e domesticação. Nesse
sentido, dentro de uma lógica positivista, tanto a ciência quanto a tecnologia se vinculam
a uma estética dirigida aos interesses de um certo “progresso social”. Poderes que se
querem fazer ver. Por exemplo, é muito comum acessarmos algumas passagens que
alavancam revelações formais submetidas a uma espécie de função social do edifício. No
entanto, o funcionalismo de um edifício, se assim pode-se referir, não poderia ocultar a
sua função ideológica menos aparente? O agente de arte Dan Graham, por exemplo,
analisa as disparidades entre a fachada – o que ele chama de uma certa convenção de
comunicação com o ambiente externo – e a sua função institucional privada. Forma
12
Um dos modelos mais disseminados na história da arquitetura e do urbanismo do século XX – o “urbanismo
moderno” desenvolvido, inicialmente em 1933, pelo CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna,
terão suas principais bases documentadas na Carta de Atenas (1943). Seus principais fundamentos racionalistas
(dormitório, célula habitacional, unidade residencial, micro-região, região e cidade) entoados pelos quatro pontos
básicos de zoneamento: trabalho / residência / lazer / circulação, serão utilizados nos projetos de reconstrução de
cidades no pós-guerra e atenderão uma necessidade de habitação para as massas desalojadas. No entanto, tal
orientação será banalizada nesse período e a aplicação dos princípios funcionalistas como modelo durante o
“modernismo tardio” (fase que vai do segundo pós-guerra até a década de 1970) irá facilitar o controle e a
segregação, além de guiar a produção em série e a pré-fabricação.
23
Vale ressaltar que a disseminação desse modelo de torres não seria possível sem o
apurado senso de inovação proposto pelo alemão Ludwig Mies Van der Rohe. A
modelação do espaço para Mies provém de uma linha imaginária traçada a partir de um
esqueleto estrutural de pilares metálicos e um resplandecente invólucro transparente (o
vidro). O pavilhão executado para a Exposição Internacional de Barcelona em 1929, e
reconstruído na década de 1980, é considerado, assim como a Bauhaus de Walter
13
“(...) pois enquanto a função real da corporação pode ser a de concentrar o seu poder independente e de
controlar por meio de informações secretas, a sua fachada arquitetônica dá a impressão de uma abertura absoluta.
A transparência é apenas visual: o vidro separa o visual do verbal, isolando quem está do lado de fora do local
de tomada de decisões e das ligações, invisíveis porém reais, entre as operações da companhia e a sociedade”.
(GRAHAM, 1979, p.434-435, grifos nossos).
14
Sobre a exposição realizada em 1932, Montaner (1993, p.13) comenta: “A exposição pretendia estabelecer um
cânon: uma determinada arquitetura cúbica, lisa, de fachadas brancas revestida de metal e vidro, de propostas
funcionais e simples”. A disseminação de um estilo internacionalizado que se fazia intérprete severo dos
princípios funcionalistas.
24
Gropius em Dessau e a Villa Savoye de Le Corbusier em Poissy, uma das principais obras
paradigmáticas do código racionalista no universo da arquitetura.
15
O arquiteto e crítico ácido Sérgio Ferro será cruel com Mies: “Mies van der Rohe, quando propõe a não
especificidade dos espaços, desce à crueza enquanto arquiteto a serviço do capital (quase tautologia). Desenha
espaços vendáveis, cumpre sua missão; o que deles é feito não o ocupa. E, por isso, é capaz de passar do
monumento (felizmente destruído) a Rosa Luxembourg e K. Liebknnecht ao Seagram´s Building. É que nele
encontramos como que o arquétipo da forma de “tipo-zero”, paralelepípedos anônimos prontos para qualquer –
ou nenhum – uso”. (FERRO, 1982, p.15).
16
A tecnologia construtiva difundida pela Escola de Chicago é revolucionária para a época, pois o uso do ferro
na estrutura possibilita a reprodução em série e a execução de altos gabaritos com rapidez e praticidade.
Obviamente, em detrimento de uma fachada em bloco, quase que constante e sem muitas variações.
25
O que nos denota a sucessão de torres de 200m de altura imaginadas por August Perret
– Maisons Tours – em Paris (1922) ou a mítica Empire State Building em Nova York, um
verdadeiro arranha céu de 381m projetada e construída por Willian Lamb (1931), se não
um prenúncio da Città Nuova (1914) de Antonio Sant´Elia? Para não falar do Farol de
Adziogol, imaginado por Vladimir Schuchov (Ucrânia – 1911), ou a estupenda Torre em
estrutura metálica formando três espirais circulando uma pirâmide, um cone e um
cilindro rotativos desenhada por Vladimir Tatlin – Monumento à IIIª Internacional
(1919); esses últimos, experimentos russos boicotados em solos ocidentais.17
O famoso e não menos visionário Plain Voisin (1925) ou o Plano para uma cidade de 3
milhões de habitantes (1922), ambos de Le Corbusier, propõe uma autêntica tabula rasa
– “destruir” Paris e construir uma cidade totalmente moderna, objetivando o
descongestionamento do centro da cidade, o incremento da densidade (implicando na
verticalização e uma suposta redução das distâncias e rapidez de comunicação), dos
meios de circulação e das superfícies plantadas. Tal choque possivelmente já vislumbrava
aquilo que Rem Koolhaas chama de cultura do congestionamento, onde o impacto não se
dá apenas no efeito de rasgar os céus, mas, sobretudo, no rompimento da tessitura
urbana configurada por amplos espaços abertos e na dilaceração, pelo automóvel, do
percurso do pedestre através, principalmente, da construção das vias expressas.
Koolhaas transita para além do delírio e se coloca como um arquiteto que acaba
atendendo algumas regras hegemônicas, embora tente subvertê-las. “Cada vez mais
nosso interesse principal tem sido menos o de fazer arquitetura, mas o de manipular os
planos urbanos para criar um máximo de efeito programático” (KOOLHAAS, 1994, in
NESBITT, 2006, p.367).
17
Ver tese de doutorado de Pitanga do Amparo apresentado na Universidade de São Paulo – “O Grande Boicote
Ocidental”.
26
Maisons Tours (1922), Paris, Auguste Perret. Filme Metrópolis (1925), Fritz Lang, Città Nuova (1914), Sant´Elia.
Fontes: www.eras.free.fr / www.dehora.net / www.web.mit.edu
A reconstrução do World Trade Center (Ground Zero), proposta elaborada pelo escritório
do arquiteto Daniel Libeskind e vencedora de um concurso internacional concorridíssimo;
a Torre sem Fim desenhada por Jean Nouvel para uma área já um tanto quanto
“esteticizada” pelas políticas de renovação urbana – as adjacências do La Défense -; a
reprodução da Torre de Pisa em Milão desenhada por um outro arquiteto grife:
Dominique Perrault; um hotel de luxo com mais de 59.000m2 coroado por uma superfície
de metal perfurado, elaborado por Bernard Tschumi para uma região nobre de Pequim; o
“novo anel” para a Tour Eiffel – uma plataforma em carbono Kevlar, um híbrido sintético
da DuPont, cinco vezes mais leve que o aço ou ainda as “Tours dansantes” desenhadas
por Zaha Hadid para um bairro de negócios em Dubai, não são mais simples devaneios.
Zaha, a pseudo-discípula de Malevich, já é uma grife. Uma marca. A propagação de uma
política de arranha-céus cada vez mais em voga no skyline das cidades obedece a
algumas lógicas: a espetacularização dos centros urbanos, as arquiteturas que servem a
diversos poderes e mídias, a inserção de grifes globalizadas em estreita conexão com a
revolução tecnológica e com a inovação digital presente nos sistemas das grandes
corporações.
Política de Arranha-Céus – o céu é o limite. Umeda Sky Building, em Osaka, croqui de Hiroshi Hara. A Torre
sem Fim, Paris – Jean Nouvel. Chicago Spire, Calatrava. Fontes: www.vitruvius.com.br / www.inhabitat.com
27
Até a cidade de Chicago é re-visitada por uma flecha de mais de 600m de altura
delineada por ninguém menos que Santiago Calatrava, o arquiteto engenheiro notável
por suas célebres estruturas, embora muitas vezes tais esculturas virem as costas à
cidade e ao seu tecido urbano. Hoje o poder mítico das principais cidades mundiais é
balizado não apenas pela altura de seus edifícios, mas pelo número de arranha-céus
(edifícios perfeitamente convencionados – com mais de 152m de altura) que elas
dispõem. Vamos a alguns números: Nova York perdeu seu posto para Hong Kong, que
atualmente possui mais de 6000 mega-edifícios altos, contra cerca de 5000 da cidade
nova-iorquina. Nessa batalha e disputa competitiva entre cidades até São Paulo entra no
hall estrelado – já são quase 2000 torres, não exatamente dentro desse padrão, mas que
ilustram bem seu skyline. E se você for procurar com calma, com certeza encontrará
mapas e listagens (as vezes permeados por números conflitantes) que ilustram bem essa
rede de arranha-céus. Para além da geopolítica (cronopolítica, diria Paul Virilio), são
traçadas paisagens totalmente mediadas.
Que corpos são esses? Como são operados esses processos? Quais estratégias são
estabelecidas e por quem (se é que se pode dar nome aos bois)? Segundo o filósofo
francês Luc Ferry, em recente palestra realizada em Salvador, a revolução científica na
contemporaneidade opera através de um discurso universal estabelecido em estreito
alinhamento com a globalização a partir de uma espécie de irradiação virótica que quer
se espalhar por todo o planeta. E pior, por trás dos mercados financeiros e das redes
mundiais não há responsáveis específicos. Se nos séculos XVIII e XIX o desenvolvimento
da ciência estava atrelado a uma idéia de progresso que tinha como objetivo o
conhecimento em prol da humanidade, hoje o avanço é mecânico e ultraveloz e o
progresso está motivado pela lógica da competição – competição entre povos,
competição entre universidades, competição entre empresas. Karl Marx já havia entoado:
28
Tours dansantes – Dubai, Zaha Hadid. The Legs – Emirados Árabes, Andrew Bromberg. Tours Jumelles - China.
Fontes: www.linternaute.com / www.chine-insolite.blogspot.com
18
Poderíamos citar aqui algumas ações que, mesmo isoladas, conseguem transformar as paisagens do cotidiano e
nos arrancar blocos de sensações, não exatamente por sua qualidade arquitetônica, mas por seu caráter
renovador, a exemplo do ex-pugilista Nilson Garrido e sua esposa Cora Batista ao criarem sozinhos uma
academia de boxe, uma biblioteca e uma escola infantil (ambientes públicos e comunitários) em um espaço
29
processos e pequenos experimentos com os alunos na sala de aula (e fora dela) ou até o
estreitamento de alguns pensadores arquitetos que tentam fazer front ao pensamento
dominante e estratificado, podem operar no inverso, pois não se trata de distinção por
escalas, dimensões ou tamanho, mas pela natureza do sistema de referência
considerado, pois essas e outras linhas de movimentos moleculares (mesmo
imperceptíveis no nível da macro-política) podem interferir e afetar as grandes
organizações molares.19
Viaduto do Café – São Paulo. Academia de boxe, biblioteca e escola infantil idealizado pelos
moradores do local – o ex-pugilista Nilson Garrido e sua esposa Cora Batista. Fotos: Igor Guatelli
Será que poderíamos dizer que os processos de projeto desenvolvidos por arquitetos e
artistas, digamos, eruditos e questionadores de suas próprias práticas, a exemplo de
Bernard Tschumi, Peter Eisenman, Zaha Hadid ou Daniel Libeskind (comumente
chamados de desconstrutivistas ou neoconstrutivistas, talvez os representantes mais
singulares do star system arquitetônico mundial) seriam balizados em soluções
“revolucionárias”, embora elitizadas? Elitizadas a partir de suas erudições teóricas e de
suas especialidades? Há quem diga que nenhum deles, por mais criativos que sejam,
conseguem escapar ao tabuleiro, às tramas de luzes e pilares e aos jogos de ordenação,
“(...) pois eles, nos seus direitos autorais, não possuem mobilidade de libertações e
expõem quase sempre as forças interiores e os seus eixos de gravidades entre os gostos
dos impérios” (VIANA NETO, 2008, p.151). Arquiteturas cooptadas? Talvez...
residual urbano - abaixo do viaduto do Café em São Paulo, local onde moravam - quase que uma filosofia punk
do “faça você mesmo”. A própria construção coletiva da favela, por exemplo, que se desenvolve sem um modelo
formal e hierárquico, mas de forma labiríntica, rizomática e fragmentária como analisa JACQUES (2003),
aponta para um processo onde “o espaço movimento é diretamente ligado aos seus autores (sujeitos da ação),
que são tanto aqueles que percorrem esses espaços quanto aqueles que os constroem e os transformam
continuamente” (idem, p.149). Essas exemplificações apontam para outras possibilidades de pensar a ação de
projeto sobre as cidades fora de padrões dogmáticos, totalizantes e homogeneizantes.
19
Ver DELEUZE; GUATTARI (1996), Mil Platôs, v. 3 – Capítulo “Micropolítica e Segmentaridade”, p.83-116.
30
21
Ver DELEUZE; GUATTARI (1997b), Mil Platôs, volume 5 – Capítulo “O liso e o estriado”, p.179-214.
22
Os saberes de qualquer natureza são estratificações; a experiência empírica, os saberes ditos empíricos
coincidem com os saberes que vão se estratificando. Dependendo da forma de pensar e da visão de mundo, os
saberes empíricos também podem mudar de natureza, de devires outros. Então, trata-se de Acontecimento.
32
23
Ver DELEUZE; GUATTARI (1992b), O que é a filosofia - capítulo “O que é um conceito”, p.27-47.
33
Bernard Tschumi
35
Antes de nos defrontarmos com os campos temáticos dos processos de projeto que serão
aqui estudados, se faz necessário compreender, em alguns matizes, conceituações
iniciais que permeiam os componentes básicos de articulação do estreitamento da
arquitetura como forma de conhecimento e campo de experimentação, sobretudo
imanente no plano da reflexão teórica e das batalhas práticas e cotidianas, desde o
desmantelamento de suas estruturas até as possibilidades de transgressão, onde os
deslocamentos e as categorias de análise (o percebido, o experimentado, o criado, o
imaginado, o mimetizado, etc) levam a diferentes campos de abordagem. Uma diferença
de perceptos e de campos de representação que permitam a emergência dos limites na
produção da arquitetura. Mutações e variações onde as sobreposições e as diferentes
apropriações de territorialidades, muitas vezes imprevistas, apontam lugares de conflitos
que se entrelaçam e se confundem no tempo e no espaço, mas que são fundamentais
para um melhor entendimento do pensamento contemporâneo. Como nos alerta o
cineasta Orson Welles: “i don´t like cinema, a like making cinema”, ou seja, mais do que
gostar de arquitetura, é preciso gostar de fazer arquitetura.
Fundamentação teórica
David Hume, filósofo escocês nascido em 1711 na cidade de Edimburgo, leva avante o
programa empirista de não admitir hipóteses. As impressões ou idéias estão em
constante variação. Para Hume continuaremos empregando palavras como “espírito”,
“mente”, “eu” para designar esse fluxo de diversas impressões e idéias; mas o espírito,
no sentido de substância, não existe; a relação de causalidade, por exemplo, é uma
crença baseada no hábito e os valores morais são inteiramente relativos. Os valores
podem variar de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade, de época para época,
mas algo permanece sem grandes alterações: exatamente a natureza humana. Com essa
noção, Hume indica que os homens associam idéias e acreditam nessa associação por
força do hábito ou costume, geralmente coletivo e de nada adianta perguntar qual a
origem desse “costume”, pois a sociedade e as instituições coletivas (governos, por
exemplo) estão em constante mudança. Hume salienta, então, que sem o apoio da
experiência, os raciocínios científicos, religiosos, morais ou políticos se tornam
dogmáticos. As relações permeadas pelas conexões de várias impressões e associações
de idéias irão deflagrar aquilo que ele chama de percepção. Mas o que conta de fato não
é o encadeamento lógico das idéias e sim a experiência. No entanto, sabemos que os
pressupostos de Hume são historicamente justificáveis, embora não se “encaixem” no
pensamento contemporâneo, pois a criação se dá através de imprevisíveis conexões e
não por vias de associações ou somas de articulações. O hábito, inclusive, é uma violenta
estratificação. Os tempos atuais são atravessados por traços de desterritorializações... a
24
No entanto, nunca a experiência foi um “papel em branco”, uma “tabula rasa”. Acreditamos que a experiência
não tem começo nem fim, é um processo contínuo de estratificação; os estratos têm grande mobilidade e são
atravessados por agenciamentos, pois se os estratos constituem territórios, os agenciamentos são territoriais.
Parafraseando Deleuze, há sempre “a pintura antes de pintar”, de uma forma ou outra, também há arquitetura, o
projeto, antes de projetar.
25
Locke desenvolve seu raciocínio dualizando a experiência. Na verdade, nas nossas aferições contemporâneas,
a experiência é compreendida enquanto uma multiplicidade de atividades sensoriais, conceituais e funcionais, em
vias de estratos preexistentes. Podemos criar novos conceitos, funções, perceptos e afetos no sentido de
Acontecimento, quando somos motivados para isso. Porém, muitas vezes passamos a repetir as experiências, em
diferentes graus e níveis, embora nem sempre constituindo um acontecimento filosófico, artístico ou científico.
37
Isso nos leva a crer que a questão da experimentação enquanto performance talvez seja
um caminho interessante para alguns processos de criação; não uma experimentação
baseada na experiência repetitiva, mas numa abordagem empírica mesmo – uma
experiência sensível, nova. Nova no sentido daquilo que está a sua volta, um devir-outro,
não tabulado e que opera em zonas de vizinhança. Freqüentemente, repetimos aquilo
que já está dado no universo da representação. Temos medo ou receio daquilo que não
conhecemos. Às vezes ficamos presos às categorias kantianas e as representações
sintéticas objetuais que tem na unidade e seus múltiplos os eixos fundamentais de
determinação. A história da filosofia acabou fazendo do empirismo uma crítica do
inatismo, do a priori, embora também digam que o empirismo tenha lá seus segredos e
que, em Hume, tenha uma posição singular – o universo da ficção científica.26
Para Kant o conhecimento começa com a experiência, mas nem por isso origina-se nela.
Isso porque a experiência pressupõe o sujeito como condição de sua possibilidade, sem o
que a palavra “experiência” nem teria sentido. O sujeito, então, deve apresentar
capacidade ou faculdades que possibilitem a experiência e o próprio conhecimento. Que
faculdades seriam essas? A sensibilidade. A sensibilidade seria a capacidade de obter
representações mediante o modo como somos afetados por objetos. Na sensibilidade,
essas representações se dão de modo imediato pela intuição. Esta é empírica quando se
referir às sensações, isto é, aos efeitos causados na sensibilidade ao ser afetada pelos
objetos, que são “externos a nós”. Para Kant o espaço e o tempo (sucessivo ou
simultâneo) são condições a priori de possibilidade da intuição empírica, pois constituem
o campo dessa representação. O conteúdo, a matéria, corresponde a sensação. Trata-se
de uma condição a posteriori e é ordenado segundo certas relações de espaço e tempo.
26
Ver DELEUZE (1972) – Hume. In: DELEUZE (2006), A ilha deserta, p.211-220.
38
Erwin Panofsky (2000) levanta algumas questões atraentes, embora ainda ligado a um
pensamento de reconhecimento recognitivo, ancorado na filosofia da representação. A
primeira se refere às relações entre imaginação e imitação e a superação do modelo. “Foi
a imaginação que criou esses deuses, e ela é mais artista do que a imitação, pois a
imitação representa o que vê, a imaginação o que não vê” (Idem, p.21). Passagens que
nos revelam uma máxima de François Châtelet: “somos todos discípulos de Platão”. A
realidade para Platão é o mundo das idéias, o real não é o físico (mundo sensível), mas o
metafísico (mundo inteligível). Se os sentidos enganam e o mundo sensível é mutável,
logo não pode ser fonte de conhecimento; o mundo inteligível é que seria a base do
conhecimento. Poderíamos então dizer que a concepção de formas, dentro de uma lógica
platônica (idealista), seriam geradas a partir da idéia. Idéia enquanto essência – eidos.
Se aprisionados em suas cavernas os homens estão imersos na escuridão, fora dos
terrenos rochosos a intensidade de luz pode ofuscar a visão.
27
Theoria, para os gregos, tinha um sentido de contemplação. E contemplação significa conhecimento - uma
apreensão intuitiva a partir de fatos que independem da razão. Ou seja, contemplação, para os gregos, é ativa e
articulada com a realidade.
39
Somente a ação teorizada reflete o sentido de si mesma. Praticar sem teorizar seria agir
aleatoriamente, sem uma finalidade, e teoria sem finalidade de ação é abstração.
A terceira questão aponta para as relações entre forma e matéria. Causa, fim e motor. As
condições da própria existência da obra de arte e as condições empíricas de seu
aparecimento. O que leva um artista a trabalhar? A encomenda, o desejo de criação, as
possibilidades de transgressão / fruição? Pontos que serão confrontados no Capítulo III.
A quarta questão que me chamou a atenção refere-se ao espírito, a alma do artista. Para
o pintor Rafael, a idéia vem do espírito, a partir de uma representação interior. Quando o
mundo real não lhe oferecia os modelos de seu agrado para suas representações, ele
recorria às manifestações de seu espírito - “(...) na falta de modelos suficientemente
belos, utilizavam uma ‘certa idéia’”. (Ibidem, p.64) Idéia muitas vezes ancorada em um
olhar aprisionado a um ponto de fuga central, um olhar sem desvio.
(...) primeiramente (as) sombras depois (os) reflexos que se vêem nas águas ou na
superfície dos corpos opacos, polidos e brilhantes, e a todas as representações
semelhantes. (Platão, 2000, p.222)
40
28
É preciso lembrar que a vertente filosófica denominada fenomenologia, parte da relação sujeito/objeto, sem
caracterizar, todavia, a que sujeito se refere e que intencionalidade promove. Considerando que a significância e
subjetividade são construções em diferentes formações sociais, não existe a dualidade da relação sujeito/objeto,
mas uma multiplicidade de individuações sem sujeito, singularidades, hecceidades. Devires outros.
41
Assim como o barroco nos remete a um traço de função operatória. “Não pára de fazer
dobras”.30 Não se abriga em um percurso reto, cartesiano. Está mais próximo de um
labirinto em sua multiplicidade de dobras.
29
Citação de Fénelon em oposição à política de Estado de Luiz XIV. In VIRILIO, L´insécurité du territoire.
Stock, 1976, p.120, p.174-175, APUD DELEUZE; GUATTARI (1996), Op.Cit., p.88.
30
DELEUZE (1991), A dobra: Leibniz e o barroco, p.13. Para maiores aprofundamentos, ver o capítulo “As
redobras da matéria”, p.13-31.
42
Peirce nos coloca que o mundo real e seus conflitos na existência cotidiana se
desenrolam independentemente do nosso pensamento. Trata-se do puro existir, antes do
percebido. “(...) quaisquer excitações, mesmo as viscerais ou interiores, imagens
mentais e sentimentos ou impressões, sempre produzem alguma reação, conflito entre
esforço e resistência”. (SANTAELLA, 2006, p.48). E chega ao universo da interpretação, a
partir de uma elaboração cognitiva e representativa do signo e dos seres simbólicos. O
signo representa um objeto para um intérprete – o interpretante, que por sua vez se
relaciona com o objeto através da mediação do próprio signo, por uma relação
processual que se cria na mente desse intérprete. Nesse sentido, ele não interpreta o
signo, mas está em processo, em relação. Para Peirce, há signos interpretáveis na forma
de sentimento ou através da experiência concreta ou da ação, ou ainda por pensamentos
infinitos. Parafraseando Fernando Pessoa – “o que em mim sente está pensando”.
Numa espécie de contra-mão, a obra de Gilles Deleuze irá se confrontar a uma filosofia
da representação. Não é a toa que ele vai se identificar com aqueles pensadores que se
opunham ao socrático-platonismo e à reflexão aristotélica, os chamados filósofos da
diferença: Hume, Espinosa, Leibniz, Bergson, Proust, Nietzsche. As grandes armadilhas
produzidas pela filosofia da representação, segundo Deleuze, acabaram subordinando a
43
Para Deleuze, tanto a ciência, quanto a arte ou a filosofia são maneiras de pensar. Por
isso as questões que emergem da experiência e a conseqüente efervescência de
conceitos são tão vorazes no cerne deleuziano, visto que os conceitos nunca são dados
prontos – é preciso criá-los, inventá-los dentro de um plano de imanência. Um conceito
deve dizer ao acontecimento, às circunstâncias, e não a uma essência. Um sistema
aberto, platôs de comunicação, sucessão de processos. Criação e invenção estão
presentes tanto na ciência quanto na arte e pressupõe a produção de convergências
inesperadas. A crítica deleuziana aponta para uma filosofia da diferença que se contrapõe
a um pensamento da representação, onde as rachaduras (as rupturas a-singnificantes,
as descontinuidades) são fundamentais – pegar as coisas pelo meio, onde elas crescem,
e não buscá-las na origem (DELEUZE, 1992a, p.109).
E vai além. As idéias são multiplicidades. Não como uma combinação de múltiplo e de
uno, mas a partir de uma organização própria do múltiplo que não necessita da unidade
para formar um sistema – uma multiplicidade de fusão. Melhor: diferenças de
multiplicidades.
31
Na obra Diferença e repetição – ver Capítulo 4 “Síntese ideal da diferença”, mais precisamente “Idéia e
Multiplicidade”, p.260-262.
45
Não é à toa que arquitetos contemporâneos como Zaha Hadid, Bernard Tschumi e até o
NOX (Lars Spuybroek), entre outros, irão beber na fonte das vanguardas russas e no
caráter revolucionário de suas desconstruções. Zaha re-visita a dimensão da montagem
tridimensional e “arquitetônica” de Malevich (mais próxima de sua fase cubo-futurista) e
propõe a exploração da mutação em Malevich´s Tektonik, ainda enquanto estudante da
Architectural Association – AA – em Londres (1977); Tschumi se abriga da obra “Ponto,
46
TAFURI, 1972, p.140). Embora os caminhos de projeto não sejam assim tão simples e
possíveis enquanto crítica e obra “materializada”, talvez explorar maneiras de sempre re-
47
conceituar a arquitetura tendo os processos formais até então utilizados como paradigma
também pode ser um caminho interessante para experimentações.
Até porque não existe um conceito ideal, muito menos um conceito simples ou isolado.
Um conceito se constrói por entre uma multiplicidade de elementos heterogêneos que se
desenvolvem em zonas de vizinhança e se relacionam a guisa de uma rede. Mesmo a
alma, ou o espírito do artista estará de alguma forma contaminada pelas relações
externas ao seu âmago. Saberes e poderes do dito mundo físico, real, sensível. Fluxos,
forças, intensidades, agenciamentos moleculares e desejos... Questões ligadas a
subjetividade e a singularização, como veremos mais adiante. As forças externas (porém
nem sempre visíveis) é que fariam o pensamento sair de sua imobilidade, estimulando
conexões, justaposições, intersecções, contaminações, coalisões. E essas intersecções
interessam demais ao desenvolvimento do fazer arquitetônico, pois são exatamente
essas relações de contaminação não-filosóficas (a arte em geral, a ciência, a literatura, a
fotografia, a poesia, etc) que irão influenciar substancialmente algumas das proposições
contemporâneas que considero mais instigantes, conforme veremos no capítulo III
(Contaminações) e principalmente no capítulo IV (Entre processos).
32
Nesse ensaio intitulado “Capitalismo e Esquizofrenia – Gilles Deleuze, Félix Guattari e o ensino de projeto”,
apresentado no seminário Projetar 2005, o autor questiona a possibilidade de instrumentalizar o ensino de projeto
a partir das formulações teóricas desses filósofos franceses.
48
Ora, não podemos esquecer que as instituições de ensino também se configuram como
estabelecimentos de micro-poderes que, inclusive, preparam competências para o
mercado (até mesmo especulativo), uma vez que adotam em suas bases, com raras
exceções, axiomas e práticas consensuais que se repetem com graus de diferença a
partir de uma demanda restrita e competitiva, pois as ocupações informais nos revelam
muito bem que boa parte das construções brasileiras não é projetada por arquitetos
(mais de 70% do território passível de ocupação em Salvador)33. Portanto as “ambições”
aventadas por Koolhaas são muito relativas e dependem muito do local e das condições
onde tal arquitetura é desenvolvida. Talvez o “desmantelamento” citado por ele esteja na
contestação de alguns pensadores e críticos que transitam nas academias e que, de uma
forma ou de outra, não tem seus desejos (ambições) compartilhados com os de
Koolhaas, que exercita sua arquitetura para corporações dominantes.
33
Vale lembrar a Lei de Assistência Técnica para Construção de Baixa Renda (PL no 6981 de 2006),
aprovada recentemente, em dezembro de 2008, de autoria do deputado Zezéu Ribeiro (PT/Bahia), onde se
asseguram às famílias de baixa renda assistência técnica, pública e gratuita para projetos e construções de
habitação de interesse social.
34
“As figuras estéticas não são idênticas aos personagens conceituais, mas são sensações – perceptos, afectos,
paisagens, rostos, visões e devires – sensações de conceitos e conceitos de sensações. O monumento não atualiza
o acontecimento virtual, mas o incorpora ou o encarna: dá-lhe um corpo, uma vida, um universo”. DELEUZE;
GUATTARI (1992b), Op.Cit., p.229.
50
35
Sabemos que a fenomenologia - corrente iniciada pelo matemático e filósofo Edmund Husserl - vai
desembocar no humanismo contemporâneo, com suas preocupações centradas na liberdade, na vida e na situação
do indivíduo na história. Para Martin Heidegger, a fenomenologia é, antes de mais nada, um conceito de método;
“as coisas em si mesmo”. O termo tem dois componentes: fenômeno e logos; logos entendido como logia,
pensamento ou reflexão sobre alguma coisa traduzida em ciência, portanto fenomenologia seria a ciência dos
fenômenos. Ou seja, da própria investigação resulta que o sentido metódico da descrição fenomenológica é a
interpretação. Porém, não acreditamos em um fato, um mundo dado, “as coisas em si” e uma interpretação
daquilo que nos é apresentado em função apenas da nossa vivência, mas da forma como nos relacionamos e nos
envolvemos – seres de sensações. Nos inclinamos mais às relações entre o sujeito e o mundo percebido, mediado
pela experiência enquanto situação renovadora, no sentido como Merleau-Ponty nos coloca, abarcando conceitos
de sensação, percepção e de espacialidades. Uma existência indicada pelo sensível. Em relação ao entendimento
da percepção, Merleau-Ponty foi um dos grandes teóricos do pensamento moderno. Anteriormente nos referimos
a ele e à dualidade de sua concepção da relação sujeito/objeto (mundo), pois não existe um sujeito universal, mas
seres socialmente construídos. Trata-se de processos de construção de subjetividades, tanto individuais quanto
coletivas e que pressupõem multiplicidades de percepções e isso, em relação ao mesmo objeto, situação,
contexto – ver nota 28.
52
36
Verificar capítulo “Micropolítica e Segmentaridade”, p.83-116
37
Bem, poderíamos dizer que hoje tais agenciamentos são engendrados pelas grandes corporações sob a égide
dos aparelhos de Estado.
38
O antropólogo Claude Lévi-Strauss estuda a organização dualista de povos primitivos e suas conformações em
grupos.
54
A formação de territórios nas cidades, quando instituída pelas máquinas do Estado, são
agenciadas por lógicas molares. Tal agenciamento encontra-se submetido a uma
representação universal e hierarquizada formulada por linhas duras que ignoram as
cartografias das linhas do devir. Obviamente que tal imposição de demarcação de
territórios advindos de uma conotação cartesiana baseada numa geometria operatória e
esquadrinhada, tanto pela conformação de um desenho, quanto pela confluência de
poderes, não consegue acompanhar as transformações e mutações das cidades e suas
diferentes contextualizações na contemporaneidade.
As estruturas urbanas não se apresentam como um organismo coeso, nem tão pouco
obedece a uma doutrina unívoca ou a sistemas genéricos.39 São plataformas móveis cada
vez mais difíceis de serem domadas! A arquitetura e o urbanismo estão em meio ao
trânsito de outros limites espaciais de caráter cada vez mais transverso e não são
afetados apenas pelo mundo da representação, mas contaminam e se deixam
contaminar por outros focos de manifestações e suas interfaces, sejam do campo da
arte, da filosofia ou da ciência.
39
Ver KOOLHAAS (2007). La ciudad genérica.
55
“Conectores pedonales” (2001), San Miguel de la Vega, Caracas, Venezuela. Arq. Mateo Pintó.
Micro-ação: cuidado estético e ético. Fonte: REVISTA 2G DOSSIER (2007).
As ações moleculares são ações de massa. Até os regimes mais autoritários (fascista,
nazista) se apropriaram de segmentaridades flexíveis e moleculares produzidas pelas
40
DELEUZE; GUATTARI (1997b), Op.Cit., conferir no último capítulo - Conclusão: regras concretas e
máquinas abstratas; mais precisamente os conceitos Estratos, estratificação, p.216-218 e Agenciamentos, p.218-
220.
41
“O espaço liso e o espaço estriado, - o espaço nômade e o espaço sedentário, - o espaço onde se desenvolve a
máquina de guerra e o espaço instituído pelo aparelho de Estado, - não são da mesma natureza. Por vezes
podemos marcar uma posição simples entre os dois tipos de espaço. Outras vezes devemos indicar uma
diferença muito mais complexa, que faz com que os termos sucessivos das oposições consideradas não
coincidam inteiramente. Outras vezes ainda devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças às
misturas entre si: o espaço liso não pára de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é
constantemente revertido, devolvido a um espaço liso. Num caso, organiza-se até mesmo o deserto; no outro, o
deserto se propaga e cresce; e os dois ao mesmo tempo” (Idem, p.179-180).
56
(...) a arquitetura até segunda ordem, potencialmente, também é uma arte. E o que é
uma arte senão justamente um condensador subjetivo para produzir mutações,
conversões de produção de subjetivação? A arte é justamente um condensador que
permite essa conversão de produção subjetiva. (GUATTARI, 1985, p.117)
42
Não somente a arquitetura, mas todas as atividades profissionais de pensar e criar quando contestam os saberes
constituídos, as crenças solidificadas e estratificadas. Embora Koolhaas afirme as dificuldades profissionais do
universo da arquitetura, seus enunciados são bem recebidos pela “massa” acadêmica e até aplaudido em seus
pressupostos.
58
Teríamos um hiato desde então?44 Mas, e as produções fora do status quo? Ou ainda
intervenções propostas por pequenos grupos que nem sempre estão mapeados? E as
habitações autogeridas? E a explosão de guetos e favelas? Também não seriam
impressionantes? Como poderíamos transitar entre realidades e utopias? Segundo Carlos
Nelson Ferreira dos Santos (1989), os lugares são conformados por espaços carregados
de conotações simbólicas e eles mesmos símbolos; vivemos em um mundo de topias,
onde cada seção do território tem de ser o que é e o que se imagina que pode ter sido e
poderá ser (idem, p.127).
43
Ver entrevista de Peter Cook cedida durante a realização da 5ª BIA de São Paulo, em 2003, disponível em
http://www.arcoweb.com.br/entrevista/entrevista50.asp
44
Obviamente, a visão de um arquiteto como Rem Koolhaas, que faz parte do mais alto escalão do star system
internacional, está no campo da Europa Ocidental e dos EUA. Seu escritório constrói nos quatro cantos do
mundo e seu emblema se transformou em uma poderosa grife. É claro que as colocações de Koolhaas são
provocativas e seu amadurecimento intelectual é instigador, principalmente quando nos deleitamos em seus
esquemas narrativos desenvolvidos em publicações como “Delirious New York”, “S, M, L, XL” ou a Revista
Content. Porém, as potencialidades e limites de países localizados no hemisfério sul do planeta são outras,
principalmente quando falamos de Brasil e América Latina.
59
revoluções que empregamos nas pequenas atitudes do dia-a-dia, pelo respeito às nossas
próprias convicções, pela resistência às ordens pré-estabelecidas e institucionalizadas.
Uma posição ética, uma postura coerente perante o mundo é uma arma, é uma máquina
de guerra,45 é uma forma de resistência aos aparelhos de captura (leia-se esferas de
dominação) e, conseqüentemente, pode engendrar abertura de espaços para
coexistências e revoluções – ou mesmo micro-revoluções – que possibilitem outros
campos da criação e de novos conceitos, embora o dito campo da representação continue
em voga, ou seja, um universo herdado da modernidade que ainda se apóia na semiótica
do regime de signos, de significância e da subjetivação.
À esquerda, construção em sistema CEB (Compressed Earth Block), funcionam como peças de Lego, facilitando
o processo de execução; aqui vemos moradores do bairro e estudantes de arquitetura colocando a “mão na
massa” (VAN – Shigeru Ban). À direita, os moradores da comunidade conversam com a equipe de arquitetos do
Estúdio Elemental, no Chile, nas primeiras fases do projeto com o objetivo de definirem em conjunto as relações
de distribuição das unidades habitacionais e dos espaços comuns. Fonte: VERB CRISIS (2008).
45
Conferir em DELEUZE; GUATTARI (1997b). Op.Cit., capítulos: Tratado de Nomadologia: A Máquina de
Guerra (p.11-110) / Aparelho de Captura (p.111-177).
60
Como avançar, então, nessas questões? Como abrir novos discursos? A instigação de
experimentações e processos mais intempestivos pode ser um caminho interessante.
Permitir transformações nas formas de percepção do indivíduo - estar no meio, entre as
coisas, intermezzo - sem vislumbrar, necessariamente, o resultado. Transitar por entre
possibilidades, ampliar os pensamentos sobre os processos projetuais, permear os
impulsos e os devires.
Podemos apontar para uma cartografia de ações moleculares engendradas por diferentes
agenciamentos que perpasse por processos de re-singularização? Qual a posição do
arquiteto nessa causa? Essas questões podem estar presentes em sua postura no nível
da “projetação”? Podemos escolher de que forma vamos atuar? Trata-se de uma questão
ética que perpassa pela dimensão política, naturalmente. Fazer arquitetura é também
fazer política ou micro-política.
A resposta jamais está na ponta da língua (quem se arrisca?), mas prefiro acreditar
numa espécie de revolução molecular que está sempre em vias de se tornar possível. Há
quem vislumbre campos imanentes de acontecimentos, devires revolucionários que se
espalhem em níveis e lugares diversos, capazes de colocar em questão as macro-
potências agenciadas tanto pelos Estados, quanto pela economia global, como explicitado
abaixo:
A noção de limites sofreu severas transformações nas últimas décadas. Seja no acesso às
cidades, seja nas superfícies de expressões de suas arquiteturas, seja na dissipação de
fronteiras. As mídias digitais, as interfaces eletrônicas e a tela do computador apontam
para outros horizontes. Uma superexposição da representação da cidade contemporânea
em vias de um espaço-tempo tecnológico (VIRILIO, 1993, p.10). Nesse sentido, nos
deparamos com limites físicos e materiais de um mundo palpável, construído de sólidas
paredes e estruturas perfeitamente localizáveis e agenciadas pela urbanística, mas
também nos defrontamos com um mundo imaterial e incorporal, formado por
representações, imagens e simulações. Mundo de transparências e aparências.
Arquiteturas de sobrevôo. Quais seriam os horizontes de uma arquitetura emergente?
(...) se ontem o arquitetônico podia ser comparado à geologia, à tectônica dos relevos
naturais, com as pirâmides, às sinuosidades neogóticas, de agora em diante pode
apenas ser comparado às técnicas de ponta, cujas proezas vertiginosas nos exilam do
horizonte terrestre (VIRILIO, 1993, p.21).
O discurso um tanto quanto radical46, mas instigador, de Paul Virilio, aguça uma questão
que se reflete muito mais nas formações de territorialidades nas metrópoles, onde são
travados diálogos permanentes sobre a conformação de uma nova paisagem urbana.
Olhares que se deparam com técnicas de ocupação geográfica, construções de todos os
níveis, obras de apurado comportamento estrutural materializadas graças aos avanços da
engenharia e sua infinidade de materiais, traçados urbanos, rotas e caminhos
dimensionados, mesmo que duros e fixos; um mundo onde podemos transitar
46
Falo radical, pois essa esfera da tecnologia não chega assim em tempo real em todas as civilizações
contemporâneas, embora seja um fenômeno crescente. A concentração de tecnologia acontece de maneira
desigual e perversa, principalmente em países como o nosso, onde grande parte dos habitantes ainda não possui
acessibilidade adequada às informações, quem dirá aos instrumentos básicos de informática.
62
fisicamente. De um outro lado se abre um mundo amparado pelo cetro de uma ciência
tecnológica não menos desviante; um cenário de câmeras, de vídeos, de ampliações
imagéticas, de revelações que rompem com as superfícies do tecido urbano. Não é
maravilhoso sobrevoar Roma da tela do seu computador, através do Google earth? As
redes de mapas virtuais e cartográficos de cidades, num primeiro momento, podem
parecer verdadeiros milagres digitais, mas nos abrem cenários que antes só podiam ser
penetrados pelo transeunte que se permitia descobrir os ângulos e frestas de uma
cidade, tal qual um flâneur47, um caminhante que constrói e explora sua própria
paisagem.
Fontes: 2G DOSSIER (2007); www.fotosearch.com; www.flickr.com/photos/gabao
Partindo para uma análise menos formalista e, talvez, mais abstrata daquilo que se pode
chamar de limites da arquitetura, que são tantos e de diferentes naturezas, nos
defrontamos com o teor crítico. Há alguns posicionamentos de autores e arquitetos que
47
A exemplo de uma micro-experiência do cotidiano, poderíamos citar os catadores de lixo, que costumam
perambular pelas cidades, penetrando seus espaços mais esconsos e esquisitos, não mais como um romântico
flâneur – mas nas vestes de um andarilho contemporâneo que precisa sobreviver e que, muitas vezes, transforma
seu instrumento de trabalho em moradia nômade – arquitetura de dormir , ou criando pequenos eventos efêmeros
na paisagem da cidade – verdadeiras instalações nômades.
63
procuraram travar diálogos mais profundos com essa questão, a exemplo de Tafuri (neo-
marxista), Tschumi (competência projetual e discursiva) e Montaner (“oportuno”
intérprete).
Para Tschumi, se na prática construtiva o edifício tem uma relação direta com a questão
da utilidade, a arquitetura não o tem necessariamente. E faz um ataque feroz às peças
publicitárias dos mercados imobiliários e as apropriações indevidas de símbolos e
referências da arquitetura de um outro tempo.
48
Mas, o que seria um “crítico puro” nas palavras de Tafuri? Possivelmente um teórico apenas, que
simplesmente fala e reflete sobre aquilo que vê. Vale lembrar que até mesmo Tafuri, embora seja um pensador
revolucionário para seu tempo, bebe na dialética marxista e encontrava-se cerceado nas bases do historicismo
italiano.
64
É por esse motivo que o crítico puro começa a ser olhado como uma figura perigosa:
daí a tentativa de o etiquetar com a marca de um movimento, de uma tendência, de
uma poética. Dado que a crítica que pretende manter uma distância relativamente à
práxis atuante, mas não pode fazer do que submeter esta última a uma constante
desmistificação para superar as suas contradições ou, pelo menos, para as definir e
tornar presentes, os arquitetos procuram controlar essa crítica, e tentam, no fundo,
seu exorcismo (TAFURI, 1972, p.23).
Toda crítica carrega um cunho de juízo estético, mas também alguma carga ideológica.
Se ao longo da história a produção arquitetônica refletiu inúmeros valores determinados
por poderes de ordem política e econômica, no século XX há uma espécie de rompimento
com algumas categorias, a exemplo da própria tríade vitruviana e o ideal de beleza
greco-romano, e o surgimento de uma certa contestação em massa às instituições
disciplinares. A lingüística estrutural, inclusive, irá se apoderar dos códigos e da oratória
formal do arquiteto. Mas os processos de transformação de uma sociedade também em
mutação irão refletir explosões arquiteturais que buscam atender os anseios de uma
população em massa emergente, como podemos verificar nas concepções programáticas
imaginadas pelos futuristas italianos (atitude mais estetizante com base no movimento,
na velocidade, na ruptura radical com o passado) e construtivistas russos (mais focados
na utopia socialista) ao desenharem os mais diversos edifícios, a exemplo de cozinhas
comunitárias, teatros, clubes de trabalhadores, habitações coletivas e até mesmo
fábricas e cidades, muito comum na propagação da ideologia socialista européia dos anos
30 – a busca de uma estética que atendesse às necessidades dos operários urbanos.
Porém, “nem a arte, nem a crítica revolucionará”, segundo Harold Rosenberg. Segundo
Tafuri, há um sintoma que ronda a arquitetura contemporânea que é exatamente esse
frenesi, esse estado, essa busca de uma mudança radical, como se nos sentíssemos ao
mesmo tempo dentro e fora de uma tradição histórica e imersos em uma revolução
simbólica inquietante. “Também a crítica é obrigada, tal como a arquitetura, a
revolucionar-se continuamente a si própria...” (Idem, p.25). E vai mais longe, aponta
para algo que Giulio Carlo Argan já havia colocado em La crisi dei valori, um texto de
1964, onde a arte e a arquitetura encontrar-se-iam ancoradas e dominadas pelo caráter
inebriante da hipótese e muito pouco relacionadas com a ação criadora de experiências.
Se lançar em um olhar novo, é uma preocupação quase que cotidiana. Mas algo
completamente novo escapa a qualquer possibilidade de previsão. Se compreendermos
que as grandes utopias arquitetônicas e urbanísticas nasceram nos seios das grandes
cidades e se realizaram em manifestações coletivas, poderíamos até constatar que suas
obras são, potencialmente, instrumentos de alta relevância crítica. As cidades horizontais
flutuantes e o espaço Proun49 de El Lissitsky, o pavilhão russo de Konstantin Melnikov
para a Exposição Internacional de Paris em 1925, o genial Ivan Leonidov e sua estética
suprematista revelada, entre outros projetos, na proposta para o Instituto Lênin, os
planos de reorganização estrutural para a baía de Tóquio idealizadas por Kenzo Tange, a
Agricultural City Plan e as cidades hélice de Kisho Kurokawa e os metabolistas, sem falar
nos desenhos utópicos do grupo Archigram, evidenciam não apenas um simples
devaneio, mas uma estética de caráter visionário que estava muito à frente de seu
tempo e que exprimia uma necessidade da época, dentro de um contexto urbano.
Arquiteturas muito avançadas e que não puderam ser construídas porque a tecnologia do
período não permitia. Nesse sentido Tafuri coloca que as grandes utopias na arquitetura
se trataram de uma espécie de “amplificação retórica da desordem e das mitologias
contemporâneas”. Para ele algumas realizações posteriores ao movimento engendrado
pelo Futurismo italiano, a exemplo da Grande Central Terminal St. de Nova York ou as
grandes conexões do sistema de tráfego dos principais centros urbanos, apenas
reorganizaram aquilo que Sant´Elia, entre outros, havia sonhado. As propostas do
Archigram, inclusive, não são apenas experimentais, mas revelam um apurado senso de
ficção científica e de uma estética relacionada com um mundo existente permeado pela
tecnologia, pela informação, pela multi-funcionalidade e, obviamente, pelo caos.
Mais do que meras proposições formais e estruturais, esses grupos acabaram por
promover uma ruptura com o tempo presente ao inventar outros lugares, ao questionar a
ordem e os sistemas pré-estabelecidos, ao propor desligamentos espaciais. O
pensamento utópico mostra-se sempre atual e reafirma o lugar da criação como um
campo de ação crítica e transformadora. Uma inquietação frente ao amanhã. O tempo
futuro como uma linha de força. (CAÚLA, 2006).
49
Criados entre 1919 e 1921, definem-se como “projetos para afirmação do novo”, representações axonométricas
de corpos geométricos que possuem formas diversas que ora repousam sobre um alicerce sólido, ora flutuam no
espaço cósmico. Elementos em movimento, que provocam deslocamentos e tensões estruturais ao imprimir
múltiplos eixos de projeção. Experimentações que possibilitaram desafiar o campo gravitacional e explorar com
maior rigor a poética do espaço.
66
Experimentos russos.
Proun – a ponte (1919) – Sistema de Composição Espacial, Rússia. El Lissitzy. Fonte: www.rodasho.com
Pavilhão da U.R.S.S na Exposição Internacional de Paris (1925). Konstantin Melnikov. Imagem: T. Nagakura
Abaixo, maquete do Instituto Lênin (1927). Ivan Leonidov. Fonte: www.utopia.ru
Metamorphosis´65 (1961).
Kisho Kurokawa
Fonte: www.kisho.co.jp
ARCHIGRAM
Mas, esse debate teria que vir ao grande público. Não é essa a intenção das vanguardas
arquitetônicas? Aproximar as produções artísticas do povo? Arte e transformação social?
Bem, essa é uma outra discussão, mas em recente reportagem à revista AU –
Arquitetura e Urbanismo50 – o espanhol Josep Maria Montaner acabou incomodando um
pouco alguns arquitetos e críticos brasileiros ao afirmar que nossas reflexões acerca do
universo da crítica arquitetônica ainda são pouco substanciais. “Há muitos arquitetos
50
Ver entrevista de Josep Maria Montaner concedida a Bianca Antunes da Revista AU, n.166, janeiro de 2008.
67
bons no Brasil e muitos bons críticos, mas nenhum se atreve a dar um salto e fazer um
trabalho mais amplo, mais ambicioso e mais geral”. Mas ele mesmo confessa:
O mundo da teoria está dominado pelos anglo-americanos e por certos autores italianos,
franceses ou centro-europeus. É impossível estar na primeira divisão se não for traduzido
para o inglês e formar parte da elite cultural anglo-americana (MONTANER, 2008, p.58).
No Brasil, de fato, não existe ainda um debate sistemático sobre arquitetura que chegue
ao grande público, a exemplo de suplementos jornalísticos ou outros meios de imprensa
mais amplos, embora exista uma quantidade razoável de blogs e páginas de discussão na
internet. As revistas, onde é publicada a maioria dos ensaios, ainda são especializadas e
direcionadas a um público alvo. Os problemas urbanísticos e as condições de nossas
edificações estão ausentes de uma reflexão que envolva a vida cotidiana das populações
de nossas cidades. Mas, não são os livros que formam opinião. Voltando as micro-ações,
acredito na existência de alguns pensadores, dentro da academia ou fora delas, que
estejam contribuindo para o debate de alguma maneira, mesmo que nas trincheiras dos
contra-poderes.
O que levaria, por exemplo, um arquiteto renomado como Shigeru Ban a construir
abrigos flexíveis, fabricadas em tubos de papel, para refugiados de Ruanda? Em 1996, o
arquiteto japonês criou o VAN – Voluntary Architect´s Network51 – uma rede para troca
de informações entre grupos acadêmicos e profissionais com intuito de contribuir com a
produção de uma arquitetura social voltada para áreas pobres do mundo e populações
que sofreram com desastres e/ou catástrofes naturais (terremotos, maremotos,
enchentes, tsunamis, etc) em seus países de origem. Suas contribuições atravessam
inúmeros países – Sri Lanka, Índia, Turquia, Japão. Seus protótipos podem ser
facilmente construídos por qualquer pessoa e, muitas vezes, seus próprios alunos
também participam das construções de abrigos temporários nos campos de refugiados. É
uma maneira de testar tecnologia, botar a “mão na massa” e, segundo ele, educar o
público. “(...) pero en geral creo que los arquitectos tendrían que implicarse en este tipo
de cosas, no sólo hacer edificios bonitos.” (BAN, 2008, p.134).
O processo de criação das habitações foi realizado pela equipe de Aravena (que aparece na foto) em conjunto com a
comunidade de Quinta Monroy, Iquique, Chile. Os moradores “brincaram” com as maquetes (percebendo a espacialidade
interna das unidades) e desenharam como imaginavam as fachadas e os espaços comuns. Fonte: ARAVENA (2008).
51
Cf. http://van.sfc.keio.ac.jp
68
Os arquitetos do estúdio Elemental realizaram diversas reuniões e encontros com os habitantes, pois, a partir
dessa participação, foi possível compreender o modo de vida das famílias envolvidas com o projeto e atender, ao
máximo, as suas preferências quanto à distribuição dos espaços. A partir de uma espécie de jogo com os
pequenos volumes, foram elaborados alguns esquemas básicos das unidades, porém permitindo ampliações. As
cores em vermelho e azul escuro correspondem à estrutura que seria construída. Os cubos em azul e vermelho
claro representam os volumes destinados a autoconstrução que cada família poderia fazer posteriormente, de
acordo com suas necessidades e prioridades. Fonte: ARAVENA (2008).
52
Cf. http://chilebarrio.cl
69
Na seqüência, a unidade como foi entregue; a construção das ampliações de acordo com as
possibilidades de cada morador; a ampliação completa com preenchimento total dos vazios.
Fonte:
ARAVENA (2008)
São exemplos de ações que nos revelam algumas respostas arquitetônicas perante um
mundo em transformação e evidencia, sobretudo, um posicionamento crítico frente à
necessidade de mudar de rumo. Essa mudança implica em questionar as nossas crenças
e hábitos, os nossos valores e as nossas percepções. As atuações práticas de produções
que nascem tanto na Ásia quanto na América Latina apontam para arquiteturas que não
obedecem modelos genéricos ou anglo-saxões, mas que se adaptam a soluções formais e
funcionais de suas realidades, sem perder a qualidade de suas soluções espaciais.
Arquiteturas que não passam pelo crivo da espetacularização e ainda atendem a
importantes funções sociais e humanitárias.
Marshall Berman
73
Provavelmente, acredita-se que até a década de 1960 era possível exercer um certo
controle das estruturas espaciais das cidades e de suas significações urbanas. As escalas
eram outras; a visibilidade dos poderes instituídos e da rede de saberes também. Hoje,
se nos reportarmos aos grandes centros urbanos verificamos uma transformação radical
das mega-estruturas de circulação e das relações de ocupação e uso dos tecidos dessas
cidades. Se em outros tempos as estruturas urbanas mais relevantes eram
53
categoricamente planejadas e elevadas ao status de símbolo de uma Era e
representativa da cultura de um povo de uma cidade (mesmo que tendenciosa – a
cultura do simulacro) - aquilo que Berman (1986, p.274) chama de “floresta de símbolos
baudelaireana”, referindo-se a uma certa overdose deveras impactante de arquiteturas e
representações simbólicas da modernidade - hoje algumas dessas estruturas “rígidas”
evidenciam a transmutação eloqüente dos modos metropolitanos e servem de cenário
para a degradação da vida humana. É preciso sobreviver nas grandes metrópoles.
Mais do que sobreviver, despertar! Nosso olhar ainda está maximizado para as grandes
obras, os grandes planos urbanísticos, as intervenções espetaculares... e ainda muito
minimizado para as pequenas ações, as intervenções do cotidiano ou a própria
experimentação dos sentidos, enquanto possibilidades de transformação em suas
revoluções moleculares (quase imperceptíveis, mas que encontram-se em processo). A
cidade ainda é a grande vedete! Metrópole de corpos mutilados, lugar de espaços lisos
desterritorializados, multiplicados e fragmentados. Fulguras de formas híbridas, espaços
de mestiçagem. A cidade não é sedentária, embora seja atravessada por seus espaços
estriados.
53
Poderíamos listar uma infinidade de símbolos urbanos, a exemplo da Estátua da Liberdade que é, talvez, a
referência mais significativa exaltada pelo povo americano, principalmente o habitante nova-iorquino. A torre
Eiffel ainda é considerada o marco arquitetônico mais expressivo de Paris, assim como a imponência do Cristo
Redentor – considerado uma das sete maravilhas do mundo – a transfigurar a espacialidade macro da cidade do
Rio de Janeiro. Sem falar nas grandes avenidas, nos centros financeiros, na política disseminada pela construção
dos arranha-céus (situação mais contemporânea e em voga), os centros de entretenimento e de lazer, a
disseminação da strip de Las Vegas e os fenômenos de espetacularização dos principais centros urbanos globais.
74
Mas, o que é esse “homem novo” traçado por Chernyshevski? Trata-se de um homem
que emerge da solidão, que anseia por ação. Que adora uma encrenca. Um ser que
talvez necessite escapar aos sistemas maquínicos que tentam a todo custo expropriar
toda sua singuralidade e arrancar-lhe seus mais profundos desejos. Seria, então, a
sociedade um cárcere, formado por pessoas moldadas por suas mais diversas máquinas?
Segundo Berman (1986, p.28), o homem moderno encontra seu conforto nas suas
cozinhas equipadas e suas almas em seus automóveis, enfim, seduzido por objetos de
consumo e, com sua vida programada para produzir exatamente aqueles desejos que o
sistema social pode satisfazer. Nada mais além.
Entre o futuro dominado pela técnica e o saber científico produzido por uma sociedade
totalitária e desumana como aponta Aldous Huxley54, há bem mais de meio século atrás,
prefiro a poesia e o devaneio do viajante veneziano Marco Polo, ao descrever as cidades
visitadas ao imperador Kublai Khan, onde podemos nos perder em memórias, sonhos e
símbolos, tal qual as andanças de um flâneur. São metafóricas? Desejantes? Ilusórias?
“(...) é o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a
soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem fórmula, que a sua corrupção
é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os
soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos
relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das
torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as
mordidas dos cupins” (CALVINO, 1990, p.10). As sociedades também vivem na medida
das suas emoções e, é claro, nossas lentes hoje são outras. Porém, o que importa nem
sempre são as misérias ou maravilhas do mundo, mas “as respostas que dá às nossas
perguntas”.
Uma investida um tanto quanto reacionária implementada por algumas esferas dos
poderes constituídos está na necessidade de querer colocar em ordem aquilo que está
54
Ver HUXLEY (1992). Admirável Mundo Novo. A primeira versão dessa publicação foi escrita em 1932.
75
A ciência urbana está também conectada a uma prática própria do planejamento urbano
– uma vertente que lhe fornece conceitos, metodologia e especialistas. Tais relações
também não estão privadas de tensões. As diversas pressões que a cidade sofre, seja da
especulação imobiliária, seja da economia, sejam os conflitos de classes, políticos e
ideológicos, fazem com que muitas dessas relações sejam empobrecidas. Os aparelhos
governamentais, por exemplo, estão a mercê do capital e cederam espaço para as
grandes empresas - corporações ou oligopólios - como denomina Milton Santos (1993).
No capitalismo liberal, muito mais dirigido aos serviços que à produção, o mercado é
universal, cujas sedes são os Estados, as Bolsas (DELEUZE, 1992a, p.213). Em algumas
ocasiões, a exemplo de intervenções elaboradas nos moldes do planejamento
estratégico, até a miséria é vista como um problema paisagístico,56 onde grupos
excluídos e pobres não são encarados como pessoas, mas sim como um ambiente
(SILVA, 2008, p.84).
A influência das grandes fábricas, sobretudo no primeiro pós-guerra, nas novas formas
de pensar a “organização” das cidades está presente nos modelos idealizados por
urbanistas do início do século XX, a exemplo de Tony Garnier e Le Corbusier. A
disseminação de cidades pensadas através de zoneamentos a partir de um traçado
“sedentário” e altamente funcionalista-racionalista-separatista (principalmente após a
difusão da doutrina postulada na Carta de Atenas) irá facilitar o controle e a segregação
do modo de morar e habitar a própria cidade. Muitas obras tardias não se mantiveram
fiéis à grande Utopia idealizada pelos mestres da 1ª geração; princípios sociais do
funcionalismo, a exemplo da estrutura Dom-ino e a habitação mínima – a máquina de
morar – não apenas buscaram atender à universalização das condições de habitabilidade
do “homem” nas grandes cidades a partir das construções para as massas de
trabalhadores alojados nos dormitórios suburbanos no imediato pós-guerra, mas foram
absorvidas posteriormente pelos processos de especulação imobiliária, sem nenhuma
conexão com a ideologia moderna. Os processos de homogeneização, o fetichismo, o
predomínio da técnica e a reprodução serial denotam aquilo que Walter Benjamin (1987)
denominava de “perda da aura” na modernidade.
55
Caos aqui não é entendido como campo da desordem, mas compreendido enquanto lugar de todas as formas,
de todas as partículas e campo da criação. O espaço das coexistências e das diferenças – “o oceano da
dessemelhança”.
56
Ver diagnóstico produzido para a cidade do Rio de Janeiro, obedecendo aos princípios do modelo catalão –
bulas internacionalizadas para ações políticas em países emergentes, disseminados através de pacotes
estratégicos e sustentações de mídia. In: Vainer (2000b).
76
Surge, cada vez mais, uma forte ligação entre cidade (Estado) e empresa capitalista.
Com a incrementação da cidade-empreendimento, receita iniciada nos anos 1970 nos
Estados Unidos através da experiência em Baltimore, o “espetáculo urbano” passa a
funcionar como ferramenta de controle social e os monumentos arquitetônicos são
capazes de oferecer “emoções estéticas” ao turista – um admirador nato de fachadas e
perspectivas (ARANTES, 2001, p.82). A tabula rasa neo-modernista caminha pari passu à
vanguarda do capital em sistemas altamente lucrativos, onde também passeia o
chamado “culturalismo de mercado”. No Brasil, o fenômeno de oligopólio ocorrido entre
1970 e 1985 irá resultar numa intensificação do capitalismo corporativo monopolista
através de uma política altamente neoliberalista. O próprio poder público se torna refém
das grandes corporações, muitas vezes defendendo os interesses dessas, e não consegue
implementar políticas claras e necessárias que possam resultar em possibilidades de
justiça social. O Estado não consegue fornecer bons serviços de consumo coletivo, como
saúde, transporte ou educação e a habitação fica a reboque dos interesses das
construtoras. Todos os programas alavancados para viabilizar o déficit habitacional no
país, como o BNH ou Projeto CURA, acabaram ativando mais a especulação imobiliária do
que promovendo melhorias reais nessa área (SANTOS, 1993). Na contemporaneidade,
novas redes e estruturas urbanas vão se formando a partir de uma conotação ainda
imprevisível.
Bem, todas essas situações sinalizam alguns momentos de transição, ocorridos ao longo
da história, na qual as cidades tornam-se palco de conflitos e de transformações
incessantes. Tais mutações estão sempre articuladas a alguma esfera de poder (ou
micro-poderes) ou a inúmeras relações políticas, ao famigerado “progresso” ou ainda a
estruturas nem sempre visíveis e que, geralmente, não conseguimos dar conta – é o
preço que pagamos por tais metamorfoses. Portanto, poderíamos dizer que vivemos em
meio a crises constantes, principalmente quando se analisa os fenômenos de
urbanização.
É a tal da “crise de saberes” levantada pelo Topalov. E saberes sobre a cidade, pois as
formulações trabalhadas e pesquisadas ao longo de mais de um século por especialistas,
77
cientistas urbanos e demais “intelectuais”, como ele mesmo coloca, estão profundamente
abaladas. Bem, então me parece óbvio que é preciso experimentar novas formas de
pensar e atuar nas cidades, principalmente na produção de suas arquiteturas, com
aprofundamentos mais conceituais e articulados – filosóficos, artísticos e científicos.
Ou, como coloca Baudrillard, considerando o atual estado de coisas como uma espécie de
pós-orgia, estamos vivendo momentos explosivos de liberação de todos os domínios,
onde tudo vale. Tudo tende a ser antecipado, simulado, repetido... indefinidamente. Uma
comunicação de “enredo forçado”, onde não há mais espaço para o silêncio.
Talvez tenhamos que observar com mais cautela a exposição do escritor russo
Dostoievski em “Notas do Subterrâneo”. Esse “novo homem” que emerge das
profundezas e que anseia por novas experiências precisa se confrontar com o inesperado,
o imprevisível. E se arriscar em fronteiras imprecisas e encontros explosivos. Talvez esse
seja o sentido da nossa condição contemporânea.
78
57
Quando venceu o concurso na década de 1980, Daniel Libeskind (arquiteto de origem judaica e polaca,
nascido em 1946) ainda não era conhecido da grande mídia arquitetônica e, de certa maneira, esse projeto o
lançou internacionalmente. Libeskind, antes de se formar em arquitetura em Nova York, iniciou estudos em
música em Israel e se tornou um grande pianista. Embora o processo de criação do museu judaico seja rico em
suas conceituações, instigador e, de fato, navegue nessa lógica das sensações pelos efeitos que os espaços do
prédio conseguem causar no espectador, pela “carga ideológica” de cada ambiência, pelas relações com a música
e com a literatura claramente expostas em suas formulações no sentido de contaminação no processo de
composição de todo o edifício e que serviram de motor de arranque em seu percurso de projeto, esse “traço das
cicatrizes” virou quase que uma marca. Parece que há um desejo universal em consumir esse tipo de forma e o
arquiteto acabou replicando-a em outros projetos, sem a sensibilidade com a qual tratou o museu em Berlim.
Como exemplo podemos citar o Renaissance ROM, extensão do Royal Ontario Museum, no Canadá ou a
ampliação do Museu de Arte de Denver, USA.
79
relação com uma multiplicidade de trocas que ele estabelece com o próprio espaço, seja
pelo esforço em percorrer a escadaria, seja pelo percurso ao longo dos corredores e suas
conexões que se fazem no sub-solo, seja pela intensidade da torre de concreto (a torre
simbólica do Holocausto) ou pela provocação sensorial anunciada no “Jardim do exílio”
com suas 49 colunas inclinadas. No mínimo, um sentido de desestabilização.
Como coloca Roland Barthes (apud Perrone-Moisés, 2005, p.98), “(...) no mundo, nunca
há fundo, mas apenas a escrita de uma escrita: uma escrita remete sempre, finalmente,
a outra escrita, e o prospecto dos signos é, de certa maneira, infinito. Por conseguinte,
descrever sistemas significantes postulando um significado último é tomar partido contra
a própria natureza do sentido”. Claro que a colocação de Barthes realizada nos anos
1970 trás a tona uma crítica severa aos postulados estruturalistas e seu aprisionamento
no dualismo, mas também aponta para os efeitos de contaminação que a literatura, por
exemplo, pode exercer sobre as demais artes58. Talvez seja por essa e outras questões
que Huyssen considera, nessa obra, o “vazio fraturado” enquanto significações, um vazio
que é ao mesmo tempo conceitual e literal. Não é à toa que o livro “Rua de mão única”
de Walter Benjamin, texto que influenciou significativamente o processo de projeto dessa
arquitetura, aponta para algo que nunca poderá ser recuperado, uma ruptura que jamais
poderá ser preenchida. Uma linha fantasma daquilo que não pode ser contado, mas pode
ser sentido.
58
Poderíamos citar a instalação “Tenda” de autoria de Lena Bergstein, montada no MAM-RJ em 1992, uma
reflexão plástica sobre a questão da écriture, desdobramento da leitura da obra de Derrida – A escritura e a
diferença. Khôra, também de Derrida, influenciou a criação de um painel em um edifício na Praça da República,
em São Paulo, no ano de 1993, bem como o processo projetual realizado pelo arquiteto Peter Eisenman para
criação da proposta de uma folie para o concurso internacional Parc La Villette, em Paris, em 1987, a convite de
Bernard Tschumi.
80
Entre linhas de conexão. Between the lines. Jardim do exílio. Museu Judaico, Berlim. Daniel Libeskind
Fonte: Le Musee Juif de Berlim – Entre les Lignes (2002)
Muitos espaços, ambientes, meras arquiteturas, muitas vezes, podem reprimir nossos
devaneios e desejos? Ou, ao contrário, potencializar tais sensações? Para o arquiteto
finlandês Juhani Pallasmaa (1986, in NESBITT, p.484), a experiência da arte é uma
interação, entre as nossas memórias corporificadas e o mundo. E mais, ter a experiência
de uma obra de arte significa recriar sua dimensão de sentimento. Para ele, a arquitetura
é também a morada de seres metafísicos e tem o poder de levar nossa imaginação a
distanciar-se do mundo da realidade cotidiana. “A qualidade da arquitetura não reside na
sensação de realidade que expressa, mas, ao contrário, em sua capacidade de despertar
nossa imaginação”. (Idem, p.488)
Segundo Barbieri (2007), a partir dos ensaios do filósofo Gilles Deleuze acerca do
pensamento de Espinoza e Bergson59, existe uma potência de encontros de corpos que
envolvem afecções e afetos que vão se desencadeando, se articulando e se desdobrando.
“As afecções, enquanto estados que um corpo imprime em outro por meio de sua força
de existir, e os afetos, enquanto transições vivenciadas entre um e outro estados do
corpo, ou seja, enquanto durações que os conectam e os fazem permanecer à deriva
num território de puro movimento”. O afeto, então, é da ordem dos corpos e o devir é da
ordem da intempestividade, da oscilação e, nessa coexistência entre comunicações e
arquiteturas são estabelecidas relações que se desenvolvem em durações, sucessão que
a autora chama de espaço de suspensão - um espaço que não se orienta por uma
questão dimensional, escalar, física e material, mas um espaço destituído de matéria e
que se manifesta a partir de correntes de afetos, que são incorporais.
59
No texto dessa autora – Arquitetura inatual como arquitetura da diferença [uma comunicação de afetos e
durações] - dois conceitos foram extraídos dos escritos de Deleuze sobre o pensamento de Espinoza e Bergson -
o afeto, entendido enquanto um movimento essencial entre partículas que compõem um corpo, e a duração, um
movimento que é condição para se penetrar numa realidade imanente e criadora.
81
Para Fuão (2004), o sentido do espaço só existe a partir da experiência do ‘eu’. O sentido
do espaço não estaria na arquitetura, em suas relações utilitárias ou dimensionais. O
sentido do espaço está além da sua superfície de contato e muito mais conectado ao
interior de quem o vivencia; nesse sentido, o espaço é imaterial, é plástico e etéreo como
o próprio tempo. E é, através da sensação, que podemos ultrapassar a simples figuração
ou a pura representação - “(...) a forma referida à sensação (Figura) é o contrário da forma
referida a um objeto que ela deveria representar (figuração)”. Segundo Deleuze (2007), ao
analisar a obra de Francis Bacon, essa sensação está voltada ao sujeito, mas também ao
objeto (o fato, o lugar, o acontecimento); para que o espectador possa experimentar a
sensação da obra de arte, a exemplo de uma pintura, é preciso que ele entre no quadro.
Daí a máxima de que a relação entre o indivíduo e o espaço se constrói em potência de
afetos e percepções, onde a arte opera como grande catalisadora desse encontro
podendo desencadear, também, processos criativos.
60
A título de esclarecimento, a conservação aqui está sendo encarada do ponto de vista conceitual enquanto
duração de sensações e não sob o aspecto de proteção ao patrimônio histórico para salvaguarda de monumentos.
Parafraseando Deleuze e Guattari (1992b, p.218): “É verdade que toda a obra de arte é um monumento, mas o
monumento não é aqui o que comemora um passado, é um bloco de sensações presentes que só devem a si
mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o composto que o celebra. O ato do monumento não é
a memória, mas a fabulação”.
84
Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que
os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a
força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afetos, são
seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. (DELEUZE; GUATTARI,
1992b, p.213).
Tschumi (2004) também afirma que não há espaço arquitetônico sem conteúdo. A
maioria dos arquitetos, geralmente, inicia suas atividades a partir de um programa –
uma lista requerida pelos usuários. Um programa de funções pode ser o gerador da
forma, mas a forma nas análises desse autor é revisitada pela palavra conceito. Por
exemplo, um dado elemento programático pode ser problematizado ao ponto de tal
maneira que pode transformar o conceito de um edifício. Vejamos, no projeto para o
Museu Solomon R. Guggenheim (NY), Frank Lloyd Wright pega um elemento implícito do
programa – o movimento através do uso de uma linha que atravessa o edifício da
entrada até a saída – e conceitualiza-o na forma de uma rampa contínua que
definitivamente caracteriza o museu (TSCHUMI, 2004, p.13). Ele consegue,
impressionantemente, arrancar o percepto e o afeto até mesmo de uma relação funcional
programática (conteúdo). Retomando Deleuze e Guattari (1992b, p.172), sem querer
fazer uma ponte direta, mas tanto as percepções quanto as afecções especiais da
filosofia ou da ciência, se ligarão necessariamente aos perceptos e afetos da arte.
Segundo o historiador e crítico de arte italiano Giulio Carlo Argan (1963, in NESBITT,
2006, p.271), o tempietto de San Pietro em Montorio, de Bramante, é um projeto que se
baseia em um “tipo” - o templo de períptero circular descrito por Vitrúvio no Livro IV,
capítulo 8 - porém o motor de arranque para a elaboração do edifício está interligado
com a abstração de um “tipo” referenciado a um modelo histórico – o templo da Deusa
Cibele, em Tívoli.62
61
Segundo Jung, arquétipos são imagens psíquicas do inconsciente coletivo – um patrimônio comum de toda a
humanidade. O Paraíso Perdido, o dragão, o mito de Édipo ou o próprio círculo são exemplos de arquétipos que
podem ser encontrados nas mais diversas civilizações.
62
Cibele ou Réia era esposa e irmã de Saturno, também conhecida por Grã-Madre, por ser mãe dos deuses
maiores, entre os quais Júpiter, Netuno, Juno, Plutão, Ceres e Vesta.
63
Étienne-Louis Boullée (1728-1799), arquiteto francês que, juntamente com Claude-Nicolas Ledoux,
revolucionou o mundo da arquitetura no seu tempo ao romper com os paradigmas da época. Sua obra-prima –
Cenotáfio a Newton – simbolizava a universalidade dos axiomas newtonianos e, ao mesmo tempo, um
monumento determinado por uma criação fantasiosa, antecipando o traço da modernidade.
87
E o chip de computador? Campbell faz uma analogia interessante com a estrutura dessa
máquina, relacionando-a com a mesma atitude de um líder tribal, onde todas as
pequenas coisas e aparatos estão sempre se referindo a um Deus. Deus, então, estaria
também no computador? É como se existisse uma hierarquia de anjos sobre as placas e
os pequenos tubos seriam milagres. Softwares, bits, bytes, gigas, configurações, janelas,
memórias, telas sensoriais. Todo um conjunto de sinais existentes em um determinado
sistema de programa conduz à realização de um dado objetivo. Cada programa tem a
sua própria articulação de sinais, de plataformas de informação, de organização de
dados.
64
O projeto Star Wars é dividido em duas trilogias, uma iniciada nos anos1970 e outra já nos anos 1990. Elas
não têm uma ordem muito coesa entre si. O episódio IV, que foi o primeiro a ser lançado em 1977 chama-se
“Guerra nas Estrelas”. Em 1980 é lançado “O Império Contra-Ataca” – episódio V; em 1983 surge “O Retorno
de Jedi” – o sexto e último episódio. Os episódios I, II e III são lançados em 1999, 2002 e 2005 – “A Ameaça
Fantasma”, “O Ataque dos Clones” e “A Vingança dos Sith”. A primeira trilogia, geralmente, é considerada a
mais interessante, com inúmeras simbologias arquetípicas e questões enigmáticas que suscitam as mais variadas
reflexões. George Lucas é um dos pioneiros na utilização da fotografia digital no cinema, onde personagens
digitais começam a contracenar com atores reais.
88
Essas pequenas reflexões sobre a mitologia e seu universo simbólico nos levam há uma
questão crucial para o entendimento dos processos de criação na nossa
contemporaneidade: o mundo da representação. A mitologia, as lendas, os arquétipos,
as representações, as convenções, os códigos ou os modelos possuem um forte
componente simbólico. Podem “explicar” fenômenos da natureza, tentar dar sentido às
coisas no mundo ou ainda serem agentes catalisadores para o conhecimento e, quem
sabe, propulsores de transformações do mundo em que vivemos. Segundo o pensador
francês Roland Barthes (1993), para o discurso mítico, os signos tornam-se novamente
significantes, sendo re-significados a partir do discurso que o reinscreve e, tal prática,
tem um significado político. Ainda segundo Perrone-Moisés (2005, p.102), a
metalinguagem supõe uma economia de representação e a imobilização do sentido numa
significação; a escrita de Derrida, por exemplo, fazendo da linguagem ao mesmo tempo
um alvo e uma arma, relança indefinidamente a significação, desarmando a
representação. O universo contemporâneo da representação estaria multiplicado ou
mesmo pulverizado com a globalização? É como se fossemos convidados, ainda de
acordo com os pensamentos de Derrida, a substituir a utopia política por uma abertura
ao porvir. A linguagem e a utopia poderiam ser consideradas motores para uma ação
concreta? E quanto ao universo das representações dos arquétipos? O que querem nos
revelar?
A saga de Dom Quixote, por exemplo, o último herói da Idade Média, se passa em uma
época na qual surge uma interpretação mecanicista do mundo, um ambiente de moinhos
de vento. “Atualmente...”, responde Joseph Campbell (1990, p.138, grifos nossos) em
uma entrevista nos idos de 1985, “(...) o mundo se tornou tão absolutamente mecanicista, tal
como interpretado pelas ciências físicas, pela sociologia marxista e pela psicologia behaviorista,
que não passamos de um padrão previsível de esquemas que reagem a estímulos. Essa
interpretação, formulada no século XIX, baniu da vida moderna todo livre-arbítrio”.
O momento exige uma pausa, pois será que sempre existiu essa liberdade de arbitrar?
Preferimos entender que, historicamente, existiu uma certa “liberdade condicionada”,
muitas vezes balizadas entre “ou isto ou aquilo”, regulada pelos poderosos e por aqueles
que aceitam a condição imposta. O ser que está à margem, excluído socialmente e
economicamente, por exemplo, que liberdade tem para opinar ou tomar certas decisões?
Até as pessoas que têm um certo grau de instrução, de cultura e habitam uma esfera
social mais privilegiada na questão dos acessos e das oportunidades, muitas vezes
também são condicionadas a tomar certas posturas. Há quem diga que “essa questão de
livre arbítrio é pura criação teológica para justificar as escolhas entre o Bem e o Mal, e
conseqüentemente, evidenciar a recompensa ou a danação, o céu ou o inferno”.65
65
Contribuição do professor Pasqualino Magnavita no próprio corpo do texto.
89
Somos assediados e seduzidos quase que todo o tempo na atual sociedade midiática e de
consumo, onde tudo se transforma em objeto de desejo (estereotipado em categorias
genéricas); é como se estivéssemos interligados a uma rede maquínica e tecnológica que
cresce vertiginosamente. Não apenas cresce, mas se reproduz em encadeamentos
viróticos. Baudrillard (1992, p.13) também levanta essa questão quando se refere ao
processo de reprodução das máquinas, os “seres tecnológicos atuais” – os clones, as
próteses, a própria engenharia genética – proliferando e estendendo seus códigos e
programações aos seres humanos.
É nesse sentido que Guattari (1987, p.167) coloca que o próprio inconsciente humano
pode ser qualificado de maquínico, pois não está centrado simplesmente na subjetividade
humana, mas participa dos mais diversos fluxos de signos, fluxos sociais e fluxos
materiais. E claro, o inconsciente é manipulado constantemente pelos meios de
comunicação, por tabulações genéricas reproduzidas por corporações ou por uma razão
de Estado linear que ignora outras dimensões existenciais, muitas vezes ligadas a
universos incorporais ou até sensoriais - uma outra cartografia deveras desviante e
demarcada por relações cognitivas.
66
Para um maior esclarecimento sobre as máquinas sociais de captura e demais agenciamentos, ver: Guattari
(1992), capítulo “Oralidade maquínica e ecologia do virtual”, p. 113-122.
90
uma possibilidade de fazer front a uma midialização estúpida que se estende a milhares
de indivíduos. Guattari (1992, p.20) diz que só a partir da subjetividade é possível
desenvolver a heterogênese; isso porque a subjetividade não é fabricada apenas através
das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos “matemas do Inconsciente”, mas também
das grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, lingüísticas, que não podem ser
qualificadas de humanas.
E tal “evolução maquínica” pode ser positiva ou negativa a depender de como acontece
sua articulação com os agenciamentos coletivos de enunciação, pois, mesmo em um
mundo opressor engendrado por esferas de controle, há de ser criar espaços para novos
universos de referência que possibilitem processos de re-singularização.
O que importa aqui não é unicamente o confronto com uma nova matéria de
expressão, é a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-
trocas múltiplas, que ofereçam à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma
corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de
se re-singularizar. (GUATTARI, 1992, p.17).
67
Em oposição à uma totalidade unificadora. “Essa noção diz respeito a conjuntos de ‘Totalidades’ que se
consideram e onde coexistem multiplicidades de elementos heterogêneos que se relacionam, se conectam, se
sobrepõem, se contaminam, mantêm entre eles zonas de vizinhança, temporalidades diferentes, entre outras
modalidades de relacionamento. Elementos esses que apenas coexistem em seus dinâmicos relacionamentos e
conexões, num processo de Devir-outro, pois, eles não se encaixam como uma Totalidade clássica e moderna do
Todo e de suas partes, à guisa de um quebra-cabeça. Nas três formas de pensar e criar, por exemplo, ocorre
justamente essa coexistência, ou seja, a filosofia e seus conceitos, a ciência e suas funções e a arte com suas
percepções e afetos, constituem, também, uma Totalidade segmentaria. Elas coexistem, se cruzam, se
entrelaçam e fazem do pensamento uma Heterogênese”. In: MAGNAVITA (2007).
92
O arquiteto Peter Eisenman (1984, in NESBITT, 2006, p.233) fala sobre a influência de
“três ficções” que, de certa forma, doutrinaram o universo da arquitetura: a
representação, a razão e a história. Essas categorias persistiram durante cinco séculos
(do século XV ao XX) e são identificadas por Eisenman como manifestações de
continuidade de um pensamento arquitetônico clássico – “a representação devia
materializar a idéia de significado; a razão devia codificar a idéia de verdade; a história
devia resgatar a idéia de eternidade a partir da idéia de mudança”. Para ele, a
arquitetura permaneceu, nesse período, um modo de representação e, justamente, a
distinção estabelecida por Michel Foucault entre o clássico e o moderno, não foi
adequadamente formulada na arquitetura. O que Eisenman tem questionado em muitos
dos seus escritos é exatamente uma certa soberania da linguagem clássica na produção
da arquitetura, a exemplo de conceitos ou princípios predominantes como origem, fim e
processo de composição.
68
“Na época da liberação sexual, a palavra de ordem foi: ‘o máximo de sexualidade com o mínimo de
reprodução’. Hoje, o sonho de uma sociedade clônica seria o inverso: o máximo de reprodução com o mínimo
possível de sexo” (BAUDRILLARD, 1992, p.13). As novas tecnologias reprodutivas conceptivas (NTRc)
possibilitam uma separação muita clara entre sexo e reprodução. No cult movie Blade Runner, da década de
1980, a personagem de Daryl Hanna é um robô criado e programado para dar prazer. Em uma das cenas do
filme, as personagens de Harrison Ford e Sean Young fazem sexo através de um sensor, uma máquina, sem a
necessidade de um contato físico. O livro de David Levy – Robots Unlimited – ainda não publicado no Brasil,
trás inúmeras considerações da vida na era virtual, uma delas bastante visionária: a possibilidade de procriação
entre humanos e robôs.
93
Mas, porque estamos falando sobre física? Porque, com o desenvolvimento desse
princípio, abrem-se várias reflexões sobre a forma como vemos o mundo e essas
relações marcam os limites da imaginação humana no mundo atômico. A noção de
partes, por exemplo, se dissipa. As chamadas partes de um universo e suas partículas
subatômicas, já não podem ser compreendidas enquanto elementos isolados e
codificados, mas a partir de suas inter-relações. Não podemos prever acontecimentos
com precisão, pragmaticamente. Isso não quer dizer que não podemos criar utopias ou
planejar o futuro, muito pelo contrário, é fundamental fomentar sonhos, alçar maiores
vôos sem limites ou repressões. Essa riqueza de criação e de exercício intelectual –
pensar o mundo – também é um dos catalisadores do próprio processo de
70
desterritorialização frente às vertentes contemporâneas cada vez mais mutantes.
Grandes projetos paradigmáticos da história da arquitetura, por exemplo, nunca foram
construídos (Carceri d´Invenzione – Piranesi / Monumento à Terceira Internacional –
Tatlin / Cenotáfio a Newton – Boullée / As cidades dinâmicas imaginadas pelo grupo
Archigram / os experimentos dos Futuristas / etc), mas influenciaram várias gerações de
arquitetos, não pela materialização, mas pelos pensamentos que as originaram e pelo
caráter de transgressão. Porém, convivemos com a imprevisibilidade; engendramos
69
O tempo em Einstein é físico, e esse ponto de vista foi severamente debatido por outros filósofos, a saber,
Bergson. Ver Merleau-Ponty – “Einstein et la crise de la raison”, como apontado por Alberto Tassinari (2006).
70
“A função de desterritorialização: D é um movimento pelo qual se abandona o território. É a operação da linha
de fuga. (...) a D nunca é simples, mas sempre múltipla e composta: não apenas porque participa a um só tempo
de formas diversas, mas porque faz convergirem velocidades e movimentos distintos, segundo os quais se
assinala a tal ou qual momento um ‘desterritorializado’ e um ‘desterritorializante”. (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p.224 e 225).
95
O russo Ilya Prigogine (Prêmio Nobel de Química – 1977) coloca que a ciência moderna
não deveria negar a complexidade e o devir do mundo em prol de um mundo tutelado
por leis simplistas e imutáveis. Mais do que nunca, tanto a física, quanto a matemática e
as demais ciências consideradas “exatas” estão muito próximas das ciências humanas.
Ou seja, essa nova situação pede um maior diálogo experimental entre os diversos
campos do saber, em contra-posição a um domínio instrumental científico balizado por
visões mecanicistas, a partir de pontes de interconexão com uma visão múltipla acerca
de inúmeros aspectos da vida contemporânea, abarcando diversas áreas do
conhecimento.
71
Talvez o termo “evolução” tenha uma conotação deveras positivista, no sentido de passar de um estágio
inferior para outro superior; preferimos comungar com uma espécie de evolução a-paralela, não linear, mais
próxima do termo mudança, transformação.
96
72
Ver demais conceituações correlacionadas em CANEVACCI (2005). Culturas eXtremas: mutações juvenis
nos corpos das metrópoles.
73
Sobre consumismo, competitividade, relações de poder imposto pelas grandes corporações frente aos diversos
“espaços políticos” da cidade e reflexões acerca das forças atuantes nesse processo denominado, pelo próprio
Milton Santos, de processo "globalitário", tendo o território e a sociedade como eixos norteadores da formulação
do pensamento e do exercício da crítica, ver: SANTOS (2000). Por uma outra globalização: do pensamento
único à consciência universal.
97
São nas novas tecnologias e nos sistemas de comunicação que se deve procurar os
sintomas que irão indicar os caminhos do urbanismo como modo de vida (WIRTH, 1938;
VELHO, 1976) - em algumas das cidades do primeiro mundo, os níveis tecnológicos de
informação e comunicação e participação da comunidade na administração municipal
fazem com que elas sejam denominadas “cidades virtuais”, a exemplo de Amsterdã,
Bolonha, entre outras. A sociedade do controle opera assim: em curto prazo, em alta
rotação, continuamente e ilimitadamente... Quando nos cadastramos na Internet, por
exemplo, não temos uma identidade, mas um perfil. Hoje, o rastreamento das
informações já é possível, assim como a construção de padrões e associações entre
dados. Segundo o professor Rogério da Costa (2006), da PUC-SP, o reconhecimento de
padrões está diretamente ligado à mudança nos métodos de controle das ações
individuais. Hoje, somos humanamente definidos como membros de múltiplas redes.
Somos reconhecidos pelo CPF. Operamos através de infinitas senhas. Só nos falta ser
introduzido um chip de localização e de reconhecimento, tal qual nas mercadorias
expostas no supermercado. Nos códigos de barra estão inscritos os nomes e
sobrenomes da mercadoria; individualiza o produto, mas ao mesmo tempo guarda
inúmeras informações.
Nas sociedades de controle a vigilância não se faz mais pela regulação dos passos das
pessoas, mas pela interceptação de mensagens, por redes e trânsito de comunicações,
por estratégias muitas vezes invisíveis, pertencentes ao espaço informacional (são uma
modulação) - aquilo que Deleuze (1992, p.224) chama de coleira eletrônica e que se
propaga aos indivíduos por códigos. Novas fronteiras e zonas autônomas se estabelecem
sem uma ordenação precisa e a velocidade permeia inúmeros acontecimentos.
98
O poder, por exemplo, não se encontra mais concentrado. Muitas vezes, ele nem tem
uma cara ou um representante. Os poderes se escondem em corporações, em grupos ou
disseminado nas redes, quase não localizável. A vigilância agora é eletrônica e
estabelecida por uma modulação contínua, a exemplo dos sistemas de controle por
câmeras. Se antes, em tempos disciplinares, o indivíduo era localizado por seu endereço
postal, por uma residência fixa atrelada a um espaço físico, isso hoje em dia pouco
interessa. Um indivíduo é reconhecido por sua inscrição em uma multiplicidade de redes
simultâneas e essa condição não está restrita ao mundo da web ou da internet, mas
também às redes sócio-técnicas, como a própria conta de luz, de telefone ou demais
agências de comunicação. É possível acessar inúmeros serviços de um ponto fixo sem a
necessidade de um deslocamento.
Estamos em meio a uma nova dinâmica, mutável e volátil. Talvez, como aponta Deleuze,
temos que criar vacúolos de não-comunicação, interruptores e propor pequenos
acontecimentos que escapem a esse controle, engendrando novos espaços-tempos.
Pierre Lévy defende o acesso livre à internet como uma forma de resistência ao poder –
são as guerrilhas virtuais. Muitos trabalhos expressivos (seja de escritores, músicos ou
até mesmo anônimos) que não tem espaço na mídia tradicional utilizam a internet como
meio de divulgação e atingem públicos cada vez maiores. É o caso dos sites de
relacionamento como o Orkut, a inserção de vídeos no youtube e, mais recentemente, o
myspace, uma rede estendida onde músicos do mundo inteiro têm a possibilidade de
trocar informações, se comunicar e disponibilizar suas músicas livremente. Ações como
essas, em especial a veiculação gratuita de músicas na internet e até mesmo a pirataria,
acabaram quebrando a política das grandes gravadoras e do mercado fonográfico
tradicional. O universo da cibercultura, segundo Lévy, leva a co-presença das mensagens
de volta ao seu contexto como ocorria nas sociedades orais, possibilitando uma maior
interconexão dos meios em que são produzidas e recebidas. As conversas pelo MSN, por
exemplo, acontecem em tempo real através da escrita imediata nos dois sentidos.
74
De acordo com os últimos índices noticiados pela revista Ciência e Vida, edição especial – Sociologia: As
Cidades e a Sociedade - 36,6% da população urbana brasileira é “favelada” e isso corresponde a 51,7 milhões de
pessoas. Na Argentina esse percentual é de 33,1% (11 milhões de pessoas). Na África esses índices são
aterrorizantes: 79,2% da população urbana (41,6 milhões) da Nigéria estão assentadas em favelas, só na Etiópia
são 99,4% de favelados. Tanzânia (92,1%), Sudão (85,7%), Bangladesh (84,7%) e Paquistão (73,6%) são
alguns dos países que explodiram em termos de ocupação habitacional urbana em áreas de risco, sem infra-
estrutura adequada.
75
Ver Deleuze (1992a, p.219-226), capítulo: Post-Scriptum – Sobre as Sociedades de Controle.
100
questões. São traços e costuras nem sempre tão visíveis e, muitas vezes,
paradoxalmente tão abstratos, mas que fazem parte daquilo que alguns autores chamam
de conflito real. Como sublima Tschumi (1980, in NESBITT, 2006, p.175):
A confusão atual torna-se clara tão logo se distingue, em meio às bienais de Veneza
e Paris, nas publicações de massa ou em outras celebrações públicas do debate
arquitetônico, uma disputa internacional entre essa visão estreita da história da
arquitetura e as pesquisas acerca da natureza e definição da disciplina. O conflito
não é mera dialética, mas um conflito real que corresponde, no plano teórico, a
batalhas práticas e cotidianas que se travam no interior dos novos mercados de
trivialidades arquitetônicas, dos velhos establishments corporativos e da ambiciosa
intelectualidade universitária.
Se a cidade tem lá suas próprias defesas e máquinas de guerra, o que importa é que
esse “novo homem” está aprendendo a pensar e, quem sabe, se re-singularizar,
afirmando uma nova presença e poder na rua; cheio de idéias e desejos (BERMAN, 1986,
p.217). Ele já não se curva mais ao controle de uma autocracia de castas que tenta a
todo custo expulsá-lo da rua e empurrá-lo novamente ao subterrâneo. Nem poderia se
render, até porque a miséria implementada pelo capitalismo ao longo da história, no qual
¾ da população mundial está pobre demais para a dívida e numerosa demais para o
confinamento (a situação do homem atual não é mais sua condição de confinado, mas de
endividado), já está gerando explosões nos guetos e favelas e dissipação de fronteiras –
questões que o “controle” terá que enfrentar (DELEUZE, 1992a, p.224). É a tal revolução
gerada de “baixo para cima”, retratada por Milton Santos na análise do processo de
globalização.
101
Jean Baudrillard
102
Moholy-Nagy (apud TAFURI, 1979, p.33), mulher de László, tenha rotulado Gropius como
o “celebrado feiticeiro do funcionalismo internacional” e tantas outras críticas tenham
surgido em relação à normalização e sistematização em transformar os impulsos
supostamente revolucionários em processos metodológicos76 a partir de uma organização
estética coletiva por meio do sistema educacional proposto pela Bauhaus, os efeitos
contaminadores das pesquisas visuais cinéticas77 vislumbradas por Moholy-Nagy jamais
tiveram abrigo em concepções padronizadas. Suas críticas ao homem setorizado e ao
especialista aparecem em alto e bom som quando da publicação do texto “Do material à
arquitetura”, em 1928, fruto de seus experimentos junto aos alunos da Bauhaus. Para
ele, quando o indivíduo se ocupa de apenas uma profissão ou ofício, deixa inutilizadas
todas as suas outras capacidades (MOHOLY-NAGY, 2005, p.10). Em seus escritos e
obras, podemos perceber que a arte está em relação com inúmeras manifestações de
cultura, tal qual já preconizavam os expressionistas europeus.
76
A exemplo da redução das técnicas das diversas artes à unidade metodológica do projeto.
77
Moholy é considerado um dos precursores da pesquisa visual-cinética na contemporaneidade. Arte,
movimento, ritmo cinético e as sensações do tempo. O espaço não é pensado como uma entidade geométrica
fechada, mas como uma dimensão da própria vida, aberta e ilimitada. As pesquisas cinéticas sugerem ao fruidor
uma série de movimentos, que determinam uma sucessão de imagens, superfícies de projeção, volumes e
expressões espaciais trabalhadas não apenas com a cor e os diferentes materiais, mas também com a luz.
103
78
Obviamente que, durante o período que lecionou na Bauhaus, Moholy-Nagy transitou interdisciplinarmente
dentro da própria instituição. Os mestres, artistas e professores viviam em dedicação total à escola, inclusive
moravam em interessantíssimas casas situadas nas vizinhanças do prédio principal em Dessau. Viviam,
dormiam, comiam e respiravam Bauhaus 24 horas por dia. No mais, muitos não viam com bons olhos o dito
mercado de arte que, certamente, poderia ser um meio de comunicação com a sociedade, porém limitava o
campo da arte sem fazer dela um instrumento de formação coletiva e democrática. Mesmo após o fechamento da
escola pelos nazistas, Moholy-Nagy segue para Londres e começa a fazer parte de um grupo construtivista
responsável pela publicação do periódico Circle. Em 1937 vai para Chicago, torna-se o diretor da nova Bauhaus
e funda o Instituto de Design.
79
Aristóteles (apud PANOFSKY, 1994, p.22) nos fala que a matéria e a forma são condições da própria
existência da obra de arte; o fim e o motor não são mais que condições (empíricas) do seu aparecimento. Dante
(De monarchia, II, 2) ainda acrescenta que a arte encontra-se em três níveis: no espírito do artista, no instrumento
que ele utiliza e na matéria que recebe sua forma da arte.
104
Mas nem tudo está sob controle. Como já colocado no primeiro capítulo, há
possibilidades de transformações dessas estruturas molares a partir de várias
plataformas de atuação. As arquiteturas não se constroem no isolamento e podem ser
potencializadas nos seus universos de micro-ações, além de se conectarem numa imensa
rede de fluxos da subjetividade contemporânea. É nesse sentido que a idéia da
contaminação se desenvolve nesse capítulo enquanto estímulo, instigação e curiosidade
de passear por caminhos outros, que escapem aos modelos e convenções e abram
espaço para percepções, muitas vezes, inclassificáveis,80 que contagiam e influenciam
uma multiplicidade de processos e expressões na produção das arquiteturas
contemporâneas.
Segundo Josep Maria Montaner (2002), existe um importante ponto de reflexão ao qual
não podemos fugir: os repertórios utilizáveis na criação de formas na arquitetura estão
intimamente relacionados com as demais artes, as reflexões filosóficas, os paradigmas
80
Ver PRECIOSA (2005).
105
Na visão desse autor, o conceito de forma, pelo fato de ter persistido ao longo de muito
tempo, possui uma enorme ambigüidade e uma grande variedade de significados. Foi
justamente no princípio do séc. XX com as vanguardas abstratas que a forma voltou a
ser entendida como a “essência”, a composição estrutural interna, a estrutura mínima irredutível
constituída por elementos substanciais e básicos. Esta concepção foi fundamentada
81
posteriormente pelas teorias lingüísticas e pelo pensamento estruturalista.
Nesse sentido, as formas sempre transmitem valores éticos, remetem a marcos culturais,
compartilham critérios sociais e se referem a significados. Detrás de cada um dos
conceitos formais básicos, para o autor, existe uma concepção concreta de tempo e uma
idéia definida de sujeito. Montaner exalta a relação com as artes, desde as obras dos
artistas do Renascimento e nas mútuas relações entre pintura e arquitetura para gerar a
perspectiva; entre os compositores musicais e os escritores dos libretos de ópera no
século XIX; entre os novelistas e os roteiristas cinematográficos no século XX; ou nas
obras dos arquitetos contemporâneos que foram ao mesmo tempo pintores, dos músicos
que foram escritores, dos pintores que foram poetas. Dessa maneira, a forma, entendida
pelo autor como único conceito, pode nos servir tanto para “interpretar” a arquitetura,
quanto para relacioná-la com as demais artes, a ciência, a filosofia e a sociedade.82
A relação clássica entre matéria e forma foi superada à medida que a materialização da
forma partia do domínio sobre uma crescente lista de novos materiais: as diferentes
variedades de aço, de alumínio e de ligas metálicas, o concreto armado, o vidro e a
grande variedade de plásticos.
81
Tal fundamentação, no entanto, é considerada equivocada por alguns autores. Ver crítica de Guattari (1992,
p.15) à corrente estruturalista; segundo ele, o estruturalismo comete um erro ao reunir tudo o que concerne à
psique sob o significante lingüístico.
82
Verificar a publicação “As formas do século XX”, onde Montaner apresenta uma pesquisa bastante
diversificada, abordando os principais conceitos formais que se estabeleceram na arquitetura do século XX.
106
A produção arquitetônica também transita em dimensões subjetivas e que vão além das
tramas de interpretações, onde a imagem pode atuar enquanto fonte de inspiração e
percepção. A comunicação, inclusive, se coloca como uma das principais interfaces da
arquitetura, ampliando, cada vez mais, as relações e trocas entre o indivíduo e o espaço
arquitetônico.
Essa questão leva a impasses. O rigor ou a composição formal, por exemplo, quase que
refém desse funcionalismo, culmina numa espécie de visão idealista da realidade. Não
vamos entrar nessa discussão, entre dimensões técnicas ou criativas no que tange a
complexidade da própria forma arquitetônica, nem cair nas armadilhas que reduzem tais
análises em categorias (arquitetura do conceito, arquitetura da forma, arquitetura da
função, arquitetura disto, arquitetura daquilo, sic), mas apenas ressaltar, de acordo com
as observações de Montaner (2002), uma lacuna na problematização de algumas
reformulações ou re-conceituações de teorias sobre as formas, a partir de algumas
reflexões apontadas pelo próprio autor: a diversidade de repertórios e de agrupamento
das formas; as bases que as regem; as relações éticas e estéticas; as concepções de
tempo, de singularidade, além das teorias científicas, filosóficas e políticas; as relações
com o lugar, o contexto urbano e as concepções construtivas; tipos de formas geradas a
partir do repertório e da personalidade de cada criador.
Pois bem, Tafuri (1979, p.136) já havia alertado sobre essas conexões, constatando uma
certa “insegurança da cultura arquitetônica”. Para ele, o “mito da interdisciplinaridade”
transita numa articulação da disciplina arquitetônica com uma série de campos externos
ou limítrofes às áreas da dita comunicação visual, seja a sociologia, a antropologia, a
economia, a biologia, etc, porém, a análise sobre o usuário, o público, o “receptador” de
tais informações e imagens arquitetônicas, ainda não foi aprofundada no que tange às
relações entre comunicação e comportamento social. A psicologia e a psicanálise, como
já apontadas pelo autor e reverenciadas no capítulo I83, seriam campos imanentes para
esse tipo de reflexão.
Mas, de onde o arquiteto deveria partir? O arquiteto Bernard Tschumi (2004, p.11-15) irá
expor relações muito interessantes entre conceito, contexto e conteúdo. Em seu
processo de reflexão, Tschumi insere no meio desses três elementos inúmeras
estratégias e costuras que passam pela forma, pelo lugar, pela imagem, pela
interpretação, pela idéia, pelo modelo, pela indiferença, pela tática, pela reciprocidade ou
pelo conflito, demonstrando, subjetivamente, que não existe uma força maior ou uma
superioridade entre um elemento ou outro; na verdade, tais elementos estão sempre em
relações e é preciso explorar tais relações, seja pela coexistência, seja pela interação,
seja pela justaposição. São esses conceitos, perceptos e afetos inseridos nos processos e
pensamentos sobre a idéia ou criação (motor de arranque, impulso ou devir), nunca no
começo da maturação criativa ou no fim da produção do objeto arquitetônico, mas
sempre no meio dessa experimentação, que diferenciarão a arquitetura de uma mera
construção (ou edifício). Essa ênfase também se faz por outros vieses estruturantes,
83
Ver “Arquitetura de fronteira – transgressão, limites e crítica”.
108
84
Ver notas 11 e 14 na introdução deste trabalho.
109
poder, aquilo que GRAHAM (1979, in FERREIRA; COTRIM, p.446) comenta como “gosto
do alto escalão do establishment, com valores da profissão arquitetônica como
instituição”.85
A “Torre Eiffel Proletária” (1919) de Tatlin e o Pavilhão da Rússia na EXPO Paris (1925), de Melnikov.
Fontes: www.educatorium.com; COLLARES (2005)
85
É como se, de acordo com Graham, o Estilo Internacional unificasse os valores de uma classe alta no interesse
de um negócio e ou de um Estado corporativo; uma máquina agenciadora, um código comercial fundido para
atender aos interesses das classes e governos hegemônicos economicamente.
86
Ver entrevista concedida pelo arquiteto Pitanga do Amparo à Haifa Y. Sabbag na Revista Projeto, no133, abril
de 2005, p.64-71, intitulada: “Vanguarda russa – o grande silêncio do ocidente”.
110
fendas em diagonais, dos balanços e das formas geométricas limpas. Segundo Oleg
Shvidkovsky (1971), Melnikov capturou para dentro do pavilhão um largo fluxo de
espaço externo – “sua dinâmica ousada, a franca simplicidade de seus materiais e a
leveza do pavilhão, como também sua rápida montagem, contrastou com a
87
monumentalidade teatral dos pavilhões vizinhos”. É considerada uma espécie de obra
síntese dos aspectos mais progressivos da arquitetura soviética produzidas até aquele
momento.
As primeiras pinturas de
Natalia Goncharova e o
“Amolador de Facas”
(1912) de Kasimir
Malevich – o prenúncio
do cubo-futurismo.
Fontes: www.pco.org.br;
www.pucsp.br
87
Verificar o texto de Oleg Shvidkovsky, intitulado “Building in the USSR 1917-1932”, disponível em
http://www.worldwhitewall.com/konstantinmelnikov.htm
111
Aqui podemos ter uma amostra do sumário proposto por El Lissitsky (1929, apud
GRAHAM, 1979, p.439), com objetivo de socializar e funcionalizar os meios da produção
artística e arquitetônica:
- trabalho objetivo, empreendido com a esperança silenciosa de que o produto final será
visto como um trabalho de arte;
- trabalho consciente dirigido a uma meta na arquitetura, que vai ter um efeito artístico
conciso com base em critérios objetivo-científicos bem preparados;
Embora apresente um certo rigor na sua formulação, isso não se configurava como uma
regra. A arte era realmente vista como um meio de transformação da vida naquela
sociedade. A dita “arte revolucionária” que acontecia de modo efervescente na Rússia se
112
alinhava não somente com os ideais dos artistas, mas com uma busca coletiva que tinha
no seu acontecimento presente a possibilidade de externá-la às ruas, às praças e a
qualquer cidadão – as “chamas do viver” - como apontado pelo manifesto realista-
construtivista de Gabo e Pevsner: “não procuramos consolação nem no passado nem no futuro.
O hoje pertence ao fato, teremos isso em conta ainda amanhã. Deixamos para trás o passado
como um cadáver putrefado. Deixamos o futuro aos profetas. Para nós, tomamos o hoje”. Esse
espírito contagiava inúmeros grupos que se formavam nas escolas, nas oficinas, por
qualquer parte... mesmo nas diferenças de pensamento, a arte coletiva daquele
momento, em especial na arquitetura, era a vida construtiva (mas não utilitária) em
todas as manifestações dos modos de vida!
A Vkhutemas continha oito cursos que passaram a funcionar como faculdade: pintura,
escultura, arquitetura, trabalhos em metal, trabalhos em madeira, trabalhos têxteis,
artes gráficas e cerâmica. Até então, as vanguardas eram institucionalizadas nesses
centros, porém permaneciam livres, abertas e democráticas. As informações e a arte
eram, de fato, socializadas. Inclusive, qualquer cidadão que desejasse, poderia estudar
nas escolas artísticas, sem necessitar ter formação específica. O cerne, a base da
educação nessa época na União Soviética perpassava pela produção artística, iniciando-
se nas artes plásticas. Não havia a figura do especialista ou uma separação entre arte e
técnica ou ainda uma ruptura na propagação dos diferentes ofícios89. Tudo se misturava
88
Kandinsky cria, em todo o país, mais de 22 museus voltados apenas para a arte de vanguarda.
89
Embora o rompimento entre arquitetura e engenharia seja um processo iniciado no século XVIII, em função da
industrialização e conseqüente inovação tecnológica no trato dos materiais construtivos. Ver Frampton (2000).
114
90
Sobre essa questão, DE FEO (1979) tece observações nada simpáticas ao projeto de Iofan: “um monumento
ridículo, um enorme bolo de noiva para celebrar o infausto casamento entre o socialismo e o classicismo”.
Embora o concurso para o Palácio dos Soviets seja considerado um momento ímpar na história da arquitetura,
alguns autores relacionam esse feito ao início da decadência do movimento moderno na Rússia. Uma arquitetura
com características revolucionárias e totalmente transgressoras em suas concepções, não poderia corresponder às
expectativas de representação do poder das autoridades políticas da época; segundo Collares (2005), a retórica
do Estado russo nesse período, principalmente após a morte de Lenin e início da ditadura de Stalin, estava ligada
aos modelos classicistas e às arquiteturas do passado. Amparo (2005, p.66-67) destaca esse período, após a
proibição, em abril de 1932, de qualquer experimento de arte cubo-futurista e de todo tipo de expressão
construtivista ou moderna, como o fim da arte de vanguarda e do próprio comunismo. As escolas russas foram
sendo fechadas por decreto e todos foram obrigados a reproduzir aquilo que Amparo chama de “excrescência
nazi-facista, ridículo pastiche da arte neoclássica greco-romana”.
115
Projeto para o Palácio dos Soviets em Moscou (1931). Le Corbusier. Fonte: COLLARES (2005)
91
Manuscritos datados de março de 1924, encontrado nos arquivos privados de Leningrado. Conferir em
http://www.worldwhitewall.com/kazimirmalevitch.html
116
92
Verstas – antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros. Nota do autor.
117
Sobre essa abstração e sentido de não-objetividade, Argan (1992, p.324) reflete que a
transformação proposta por Malevich é radical, sem dúvida; ele é um teórico fenomenal e
está fundamentalmente preocupado com a práxis de um pensamento e com a formação
intelectual das novas gerações que irão construir as bases do socialismo. Mas ao mesmo
tempo, Malevich não está assim tão alinhado com a exaltação ideológica e a propaganda
dos ideais revolucionários, como podemos ver a seguir:
Malevich nega tanto a utilidade social quanto a pura esteticidade da arte; aliás, se a
esteticidade educa ou agrada, ela entra na categoria do necessário ou do útil. Como o
conhecimento da realidade através das coisas é relativo e parcial, é preciso tender ao
conhecimento do mundo como não-objetivo; e, se a arte é meio para a redução do
objeto a não-objetividade, é também o meio para a redução do sujeito a não-
subjetividade. (...) A verdadeira revolução não é a substituição de uma concepção de
um mundo decadente por uma nova concepção: é um mundo destituído de objetos,
noções, passado e futuro, uma transformação radical em que o objeto e o sujeito são
igualmente reduzidos ao ‘grau zero’. (idem, p.324-325)
Arkhitektonics de Malevich (1924-28) e Malevich´s Tektonik (1976-77), Zaha Hadid. Fonte: ZAHA HADID (2002)
De uma forma ou outra essa concepção, o “grau zero”, um mundo “sem objetos”
conceitualmente estruturado, se alinha muito bem com a dita “causa proletária” por que
implica naquilo que Argan (ibidem, p.325) chama de “a não-propriedade das coisas e
noções”. De fato, o espírito da vanguarda só poderia ser simbolizado pelo deserto de
Malevich. Tafuri (179, p.136-137), nesse ponto, levanta algumas considerações
importantes, exatamente nessa diferenciação entre o sentido das vanguardas e o aspecto
do experimentalismo. São muito diferentes. Embora nos dois processos haja inovações e
rupturas consideráveis, na atitude experimental há a proteção de uma sólida rede – “as
suas inovações podem também ser generosamente projetadas para o desconhecido, mas
o trampolim que permite o impulso para o salto está solidamente fixo à terra” (idem,
118
Instalação suspensa de Vladimir Tatlin reconstruída em 1965 em exposição no MAM de Paris. Prounenraum
(1923) – instalação tridimensional de El Lissitsky reconstruída em 1971. Explosões de Zaha Hadid - desenhos
apresentados na exposição The Great Utopia (1992), no MOMA de NY, baseados no suprematismo russo.
Fonte: www.tate.org.uk / ZAHA HADID (2002)
93
Conferir em ZAHA HADID (2002, p.80).
119
AMPARO, 2005, p.66) faz o seguinte comentário: “é uma das primeiras tentativas de
criar uma síntese entre o técnico e o artístico. A tentativa de toda nova arquitetura de
dissolver o volume e criar uma penetração espacial entre externo e interno encontra, já
aqui, sua expressão. Aqui foi criado o verdadeiramente novo para um conteúdo novo”.
Uma construção em diagonal e espiralada em estrutura de treliça metálica (pensada para
ter mais de 600 metros de altura), que brinca com a interpenetração espacial e o senso
de gravidade. Os construtivistas se preocupavam com o real instrumental, desde a
materialidade espacial de Tatlin às instalações de ferro suspensas de Rodchenko,
passando pelas experimentações cinéticas de Gabo e Pevsner que, inclusive, irão
influenciar a produção do atelier de Moholy-Nagy na Bauhaus.
estética de estimado rigor formal, mas de incrível ligação com a tecnologia, além de ser
bastante avançada para a época. O projeto de Ivan Leonidov para o Instituto Lênin
(1927), por exemplo, é quase de tirar o fôlego, pela ousadia estrutural e formal. Essa
filosofia plástica contaminava também as artes gráficas, o design, o mobiliário, a moda,
entre outras manifestações, como podemos verificar nos figurinos desenhados por
Aleksandra Ekster (KOPP, 1985).
94
Em 1988, Philip Johnson e Mark Wigley organizaram uma exposição no MOMA de NY intitulada
“Arquitetura Desconstrutivista”. Foram apresentadas obras dos seguintes arquitetos: Peter Eisenman, Zaha
Hadid, Daniel Libeskind, Rem Koolhaas, Coop Himmelblau, Frank Gehry e Bernard Tschumi.
122
Imagens do filme
Metropolis (1925).
Fritz Lang
Sobre essa questão, Argan (1992, p352) considera tanto o De Stijl quanto o Dada,
movimentos aparentemente contraditórios, mas que, de fato, assumem a postura de
propor a feitura de uma tábua rasa em todas as feições e linguagens figurativas
institucionalizadas pelos cânones hegemônicos da época. Ambos movimentos desejavam
desmistificar os valores constituídos (embora os dadaístas sejam mais irônicos e exaltem
muito mais uma estética da casualidade e da desordem), seja a arte antiga ou presente,
sejam as leis mercadológicas, além de propor uma outra orientação na produção artística
voltada à uma espécie de “ato estético puro”.
95
Ver a obra “Francis Bacon – a lógica da sensação”, sobre o uso do diagrama nas obras de Kandinsky, Pollock,
Mondrian e o próprio Bacon, in DELEUZE (2007).
124
“quadros” não são decorativos, mas, sobretudo, arquitetônicos. Sua pintura abandona o
cavalete. A arquitetura dos planos e a intenção da pintura e do regime de cores do
artista se fundem e se confundem.
Erich Mendelsohn – Torre Einstein (1919-23); croquis Museu de Berlim e Armazém Schocken (1928).
Fonte: Arquitetura no século XX (1996)
Franz Kafka retrata o desespero do homem perante os absurdos do mundo. E nos coloca
em alerta! Precisamos assumir uma outra postura, uma outra posição corpórea mesmo,
andar por outros lugares, buscar um outro ponto de vista para compreendermos melhor
a heterogeneidade do mundo e as infinitas possibilidades de transformação. Esse é um
processo que podemos iniciar a qualquer tempo, em qualquer período. Quais seriam os
impulsos para um processo de metamorfose? Talvez um devir conectado a um saber
contemplativo. A sensação é um plano de composição. É contemplação. Contemplar é
criar. A sensação preenche o plano da composição. “Não são as idéias que contemplamos
pelo conceito, mas os elementos da matéria, por sensação” (DELEUZE; GUATTARI, 1992,
p.272).
Para fugirmos aos estratos, esses autores sugerem algumas possibilidades de desvios,
quais sejam: a desarticulação ou n articulações, a experimentação (fuja das teias de
interpretações) e o nomadismo (idem, p.22). Quais seriam o CsO das cidades? Segundo
Magnavita (2008, in OLIVIERI; BIRIBA, 2008) a formulação analógica do pressuposto “a
cidade é um organismo” vem sendo questionada por uma das vertentes do pensamento
contemporâneo com base na atualização de novos conceitos que ultrapassam os limites
homogêneos enraizados no mundo macro da representação. Como uma cidade pode ser
127
Talvez permitir fluir o devir-criança que habita cada um de nós. Ver a vida de uma
maneira nova, com novos olhos, onde cada instante é novo (visão aguçada). Para uma
criança tudo é novo. A criança tem sua sensibilidade aguçada; já o adulto tem a síntese,
mas banaliza. O artista tenta ver novidade em tudo, tenta construir a união da síntese
com a sensibilidade. Para Baudelaire, sem essa mutabilidade e os processos de
transformação, nada poderia ser eternizado; nesse sentido a própria beleza é múltipla e
plural. Como “tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos
afetam, e que nos fazem devir?” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 235)
96
Ver com mais propriedade o capítulo “Percepto, Afecto e Conceito”.
129
mas não num sentido de duração material. A arte é independente; ela não depende do
espectador que se limita a experimentá-la. A arte também é independente do seu
criador, pela autoposição do criado, que se conserva em si. O que conserva, a coisa ou a
obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos97.
Pode ser que esses focos, na contemporaneidade, se tornem cada vez mais rarefeitos.
Estamos in process. Em alguns momentos, como na citação acima, nós, arquitetos e
urbanistas, somos convocados a tomar uma posição e a atualizarmos nossa própria visão
de mundo. Entre tantas revoluções (genética, tecnológica, biológica, econômica, etc),
cabe saber onde podemos encontrar o novelo das vanguardas contemporâneas, se é que
há espaço para elas. Ou re-conceituar as estratégias de atuação possíveis para o século
XXI. Mas não esperemos uma unidade, as guerrilhas hoje são fragmentárias, muitas
vezes abstratas e habitam outras pulsões inconscientes. Quem sabe, re-avaliarmos
nossas escolhas e os nossos compromissos, entendendo que o espaço construído se
97
Ver capítulo II da dissertação.
130
Quais são as possibilidades da produção de uma arquitetura como fato empírico que se
relacione substancialmente com os sentidos e com a experimentação do espaço? De
quais maneiras a experiência do corpo pode ser utilizada enquanto elemento indutor para
uma espécie de contaminação das relações arquitetônicas e suas representações na
cidade? De quais modos podemos estabelecer relações entre o espaço imaginário (e daí
seus inúmeros sub-estratos – imagem, imaginação, representação, simulação e criação)
e os aspectos construtivos de um espaço real?
São temáticas que transitam entre limites que ainda não foram devidamente corrompidos
e transgredidos e que fazem parte do universo que cerca tanto o arquiteto quanto os
demais artistas ou pensadores que refletem sobre questões inerentes aos corpos das
cidades, suas arquiteturas e seus espaços urbanos. Um universo até então muito restrito
se levarmos em consideração um mundo que ainda se orienta por programas estéticos
totalizadores, onde podemos observar uma predominância latente de reproduções
cartesianas e funcionalistas. O filósofo Jacques Derrida (1986, in: NESBITT, 2006, p.166)
expõe o problema da arquitetura como uma possibilidade do próprio pensamento e que
não pode ser reduzido à categoria da representação. Ainda somos guiados por análises
padronizadas e sistêmicas, principalmente dentro das praxes oficiais e disciplinas
urbanísticas hegemônicas, que não têm conseguido levar em consideração outras formas
de percepção mais abertas e desterritorializadas no que se refere à apropriação de novas
espacialidades. O dito campo da representação – expressão que possui forte conotação
histórica – se desenrola em meio a um “mundo” que se alimenta a partir da semiótica da
131
O errante é então aquele que busca o estado de espírito (ou melhor, de corpo)
errante, que experimenta a cidade através das errâncias, que se preocupa mais com
as práticas, ações e percursos, do que com as representações, planificações ou
projeções (JACQUES, 2008).
Poderíamos dizer que o nosso olhar encontra-se, então, viciado ou cooptado pelas
máquinas axiomáticas e aparelhos sociais de controle? Olhares que coexistem entre
esferas organizadoras de saberes e poderes, típicas do pensamento dominante, que
tendem a maximizar os grandes centros urbanos, as impressionantes intervenções
arquitetônicas, os grandes planos e os famosos arquitetos-grife, porém pouco se
relacionam com as novas esferas e agenciamentos do cotidiano. Ainda temos nosso olhar
muito pouco direcionado às pequenas ações, às apropriações mais sensoriais e até
incorporais ou outras formas de micro-política, embora tais manifestações estejam
explodindo por toda parte. Segundo Guattari (1987, p.167) o inconsciente moderno é
constantemente manipulado pelos meios de comunicação, pelos equipamentos coletivos
e pelos especialistas de todo o tipo – sistemas maquínicos que tentam expropriar toda
singularização e toda vida de desejo. E, nesse sentido, o autor nos fala da necessidade
da recomposição de uma certa corporeidade existencial que possibilite processos de re-
singularização99, onde o corpo (e aí também nossos órgãos sensoriais) e as relações com
98
Errância – “qualidade, hábito ou condição de errante”. Os errantes modernos ou nômades urbanos são aqueles
que percorrem as cidades e fazem dessa ação – o simples caminhar – um instrumento de experimentação da
urbanidade, das ruas, dos acontecimentos, das manifestações dos citadinos. Portanto, o errante é aquele que
pratica “errâncias urbanas”. A prática da errância voluntária foi exercitada por vários artistas, com maior ênfase
nas décadas de 1950 e 1960, na qual utilizavam essa experiência enquanto atitude crítica e contestadora aos
grandes planos urbanísticos ou, talvez, a partir da própria experimentação do espaço público, trazer a tona àquilo
que Hélio Oiticica declamava: “poetizar o urbano”. (Ver JACQUES, 2004).
99
Ver capítulo 2 – Mitologia(s), horizonte maquínico e as esferas da representação.
132
O espaço liso100 é o espaço nômade, onde se desenvolve a máquina de guerra, que faz
front ao agenciamento imposto pelas máquinas axiomáticas dos aparelhos do Estado, das
corporações ou da mídia. Como o feltro, uma espécie de anti-tecido – um emaranhado de
fibras que de modo algum é homogêneo. O nômade, o desterritorializado, ao tecer,
ajusta sua vestimenta e sua própria casa ao espaço exterior, ao espaço liso (fluido, sem
fronteiras) onde o corpo se move; ao contrário dos sedentários, onde seus tecidos
integram o corpo e o exterior a um espaço fechado (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.81).
100
A configuração de um espaço liso não implica em uma homogeneização, muito pelo contrário, trata-se,
muitas vezes, de um espaço amorfo, informal e que se agencia em variações.
134
por coordenadas, muitas vezes amparadas por cenários de inúmeras lentes, câmeras,
vídeos, ampliações imagéticas e revelações que rompem com as superfícies do tecido
urbano. Os mapeamentos cartográficos, os Sistemas de Posicionamento Global (GPS), os
Sistemas Globais para Comunicação Móvel (GSM) ou os diversos softwares de localização
disponibilizados pela internet são instrumentos amplamente utilizados por uma
multiplicidade de usuários (não só especialistas) e nos abrem novas portas da cidade -
panoramas que antes só podiam ser desbravados pelo caminhante que percorre as ruas,
seus “becos” e suas esquinas a partir de uma visão experimentada através da presença
física e sensorial e não da tele-presença interativa. Uma era que Peixoto (1996, p.299)
chama de “era pós-arquitetônica”, onde a capacidade tradicional de organizar o espaço e
o tempo entra em conflito com o poder dos meios de comunicação – se a delimitação das
superfícies é substituída pelo contato instantâneo da interface (a tela torna-se o lugar) e
as três dimensões do espaço construído são literalmente transferidos para as duas
dimensões da tela, a arquitetura, segundo Peixoto, torna-se superficial. É uma questão a
ser considerada.
Fonte: www.overmundo.com.br
Fonte: www.vitruvius.com.br
O simples caminhar pela cidade já pressupõe uma experiência de prática urbana, seja através das
performances de artistas, como o baiano Jaime Figura que percorre as ruas de Salvador vestido com
indumentárias criadas por ele mesmo ou Flávio de Carvalho, conhecido por suas deambulações (na
foto ele aparece usando seu “traje de verão” em meio a olhares desconcertantes – São Paulo, 1956),
seja através de qualquer cidadão que deseje, simplesmente, fluir pelas ruas e se manifestar.
Uma vivência prática dos espaços urbanos, que se faz em nível molecular, difere muito
de uma percepção apreendida a partir de um olhar de sobrevôo, que se faz em nível
molar, muitas vezes representado em um mapa ou por demais aparatos tecnológicos,
135
******
101
O design simbólico das fachadas decoradas, por exemplo, ou o prenúncio da cidade outdoor - típicas da strip
de Las Vegas - que nos fala Venturi; Scott Brown & Izenour (2003), apontam para além dos códigos lingüísticos
presentes nesses tipos de “edifícios” - a constatação da estética publicitária onipresente no espaço público e a
forma arquitetônica atuando enquanto imagem, signo, consumo, sedução e, porque não, vertigem, orientaram
grande parte das produções ditas pós-modernas. Ver também JENCKS (1991).
102
O discurso sobre khôra navega por entre mares e por entre céus, mas também por entre regiões abissais,
tocando abismos e espectros do caos, sem ser isso ou aquilo. Embora até hoje não tenhamos sequer idéia por
onde o khôra, de fato, transita - seja um lugar, uma posição, uma localização, uma região ou um território, seja
aquilo que a tradição denomina “figuras’, as representações, as imagens ou os símbolos, Derrida afirma que as
traduções permanecem presas em redes de interpretações. “Insensível, impassível, mas sem crueldade,
inacessível à retórica, khôra desencoraja, ela é aquilo mesmo que desarma os esforços de persuasão e de todo
aquele que quisesse ter a ousadia de crer ou o desejo de fazer crer, por exemplo, em figuras, tropos ou seduções
do discurso. Nem sensível, nem inteligível, nem metáfora nem designação literal, nem isso nem aquilo, e isso e
aquilo, participando e não participando dos dois termos de um casal, khôra, dita também matriz ou nutriz
assemelha-se, apesar disso, a um nome próprio singular, a um prenome, ao mesmo tempo maternal e virginal”
(DERRIDA, 1995, contra-capa).
136
Vale lembrar que é nas primeiras décadas do século XX que o chamado “urbanismo
moderno”, modelo higienista e funcionalista, será amplamente disseminado, inicialmente,
em 1933 pelo CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) e, principalmente,
após suas bases serem documentadas na Carta de Atenas (1943). Seus princípios
racionalistas fundamentam-se em zoneamentos (a cidade é sub-dividida em zonas:
habitação, trabalho, lazer e circulações), grandes planificações e estruturas
homogeneizantes baseadas numa espécie de homem ideal (modulor) que irão contribuir
para a definição daquilo que se chamaria International Style, onde uma certa “gramática
rigorosa” é imposta à arquitetura.
103
“O tema fundamental do grupo não estava mais na discussão das novas tecnologias, da casa mínima ou dos
princípios fundamentais do urbanismo moderno. (...) A intenção fundamental dos jovens era questionar a
validade desses princípios universais a partir da noção de que o homem se organiza em comunidades, que
desenvolve a necessidade de se diferenciar, se identificar com o local onde habita, criar vínculos sociais e
apreender o espaço a partir de seus próprios valores culturais” (BARONE, 2002, p.61). Obviamente, nem sempre
as idéias do grupo se alinhavam, muito pelo contrário, em 30 anos de existência muitos conflitos ideológicos e
diversidade de opiniões provocaram polêmicas acirradas entre seus próprios membros.
104
Ver RYKWERT (2004).
105
O casal de arquitetos propôs algumas estruturas e projetos, a exemplo de Golden Lane (1952), um conjunto
habitacional baseado na idéia de cluster – formas de agregação e articulação de diversas unidades de habitação –
137
O discurso da arquitetura internacional dos anos 1960 será balizado pela cultura pop, a
alta tecnologia e as novas formas de viver. O grupo Archigram, liderado pelo inglês Peter
Cook, vai rejeitar os preceitos do movimento moderno e sua atuação será materializada
a partir de publicações undergrounds, manifestos e projetos experimentais que irão
refletir a vida do homem nas cidades, através de linhas teóricas baseadas em novas
tecnologias, na idéia de dispersão do ambiente urbano e da arquitetura passeando entre
o entretenimento e o aprendizado. Surgem Living City (Cotidiano Recortado), Walking
City (Cidade Andarilha), Plug-in-City (Cápsulas de Metrópoles), Living 1990 e Instant City
(a Metrópole Visitante). Já se vislumbrava a metrópole informacional e a subversão da
sociedade do modernismo tardio.
pensado não através da questão da função urbana, mas baseado na qualidade dos espaços, nos modos de vida da
população e na possibilidade de encontros e convívios dessas pessoas (dispostos no núcleo central – o core). Eles
tentam sair do olhar de sobrevôo e retratam essas articulações a partir da inserção da agregação humana do
usuário. Construíram, de fato, em 1970, o conjunto habitacional Robbin Hood Gardens, baseado nessa proposta
teórica dos clusters (um modelo arquitetônico), uma pesada estrutura em concreto aparente que nos remete ao
brutalismo inglês.
138
Como podemos verificar no primeiro capítulo, até nas produções do NOX, escritório
dirigido pelo arquiteto holandês Lars Spuybroek e bastante conhecido por suas
formulações híbridas, fluidas, multimidiáticas e que convencionamos chamar arquitetura
líquida, percebe-se a influência de movimentos coletivos de outrora, sejam os
experimentos das vanguardas russas, as subversões cromáticas e espaciais do De Stijl,
as experiências urbanas da Internacional Situacionista ou ainda as expressões miméticas
suscitadas por Frei Otto e Buckminster Füller, sem falar nos modelos suspensos
(catenárias) desenvolvidos por Antoni Gaudí para o projeto da Sagrada Família – traços
altamente contaminadores presentes nos processos experimentados pela equipe de
arquitetos do NOX. Coexistência de corpos que se metamorfoseiam sempre à beira da
transição.
Para o arquiteto franco suíço, Bernard Tschumi, o corpo é o ponto de partida e o ponto
de chegada da arquitetura, como podemos constatar a seguir:
106
Cf. JACQUES (2008).
141
A vídeo-arte do artista Bill Viola. Suas instalações procuram explorar o lado espiritual e perceptivo do
ser humano, através de elementos fluídos como a água, o fogo ou as próprias sensações humanas. Suas
temáticas sempre procuram travar constantes diálogos com o espaço arquitetural. Fonte: www.billviola.com
Assim como as dobras de Ana Holk107. Suas instalações experimentam e enlaçam o lugar,
transformando o cenário pré-existente. Sua obra “Estais”, de alguma maneira, examina
os elementos arquitetônicos do interior do edifício, no caso, uma galeria de arte em São
Paulo. Entre paredes e pilares completamente brancos, a artista constrói uma nova
espacialidade, onde a corporeidade de quem a transita se relaciona substancialmente
com suas “faixas vinílicas”, afetando e se deixando afetar. O trajeto do observador
também se faz presente nas obras suspensas de Waltercio Caldas. Aparentemente
minimalista e sintético, sua arte se manifesta em limites de efeitos paradoxalmente
explosivos, onde a tensão e os vazios coexistem em meio a pausas, ausências e
expectativas. Entre instalações e esculturas penduradas e submetidas aos efeitos
gravitacionais em sintonia com o próprio material – a exemplo de Fios de Lã (1993) ou
Longínquo (1987) – ou até mesmo a articulação de objetos intercalados em eixos e
discos distribuídos minuciosamente ao chão (Próximo de 1991), o artista se propõe a
experimentar o caráter do olhar multifacetado do próprio caminhante.
107
Ver texto de Alberto Tassinari, originalmente publicado no catálogo da exposição realizada pela artista e
arquiteta na Galeria Virgílio, em São Paulo, entre outubro e novembro de 2004, também disponível em Tassinari
(2004).
142
Estais (2004). Instalação realizada pela artista e arquiteta Ana Holk em São Paulo/SP.
Foto: Everton Ballardin
Vale lembrar que esses efeitos espaciais, possivelmente, têm alguma relação com os
trabalhos desenvolvidos pelos artistas construtivistas russos no final da década de 1920,
a exemplo das esculturas suspensas de Rodschenko, da escultura cinética e dos pêndulos
de Gabo, dos elementos escultóricos vazios de Joost Schmidt, insinuando volumes
virtuais, ou ainda as instalações de Moholy-Nagy, considerados experimentos plásticos e,
sobretudo, investigações escultóricas que se configuram enquanto massas e volumes
elaborados com os mais diversos materiais (tubos de vidro, arames, elásticos, cobre,
metais, borrachas, etc); materiais esses que são testados e vivenciados pelo próprio
fruidor a partir de exercícios que privilegiem não apenas o conhecimento do material que
está sendo manipulado, mas potencialmente os sentidos (órgãos táteis).108
Pesquisas sensoriais e
instalações de Moholy-
Nagy. Fonte: MOHOLY-
NAGY (2005)
É, talvez, compactuando um pouco com esse pensamento que alguns arquitetos tentam
construir a resolução espacial a partir desses outros diálogos, no sentido de parafrasear
aquilo que o arquiteto Bernard Tschumi chama de experiência do corpo e a sua
possibilidade de contaminar a produção da arquitetura – a influência dos diferentes
espaços sobre a performance:
108
Verificar a produção dos alunos de Moholy-Nagy na Bauhaus, entre 1927 e 1928, a exemplo dos “exercícios
táteis” e dos “exercícios dos sentidos”, bem como a história da escultura cinética e o “manifesto realista” de
Gabo e Pevsner em MOHOLY-NAGY (2005).
143
Se hoje em dia quisermos nos ater a uma ruptura epistemológica com o que é
geralmente chamado de modernismo, então sua contingência formal também deve
ser posta em questão. Isso não implica de forma alguma de um retorno a
concepções que opõem forma e função, a relações de causa e efeito entre programa
e tipo, a visões utópicas ou às diversas ideologias positivistas e mecanicistas do
passado. Pelo contrário, significa ir além das interpretações reducionistas da
arquitetura. A habitual exclusão do corpo e de sua experiência de todo o
discurso sobre a lógica da forma é um exemplo que vem bem a propósito.
(TSCHUMI, 1981, in: NESBITT, 2006, p.187, grifos nossos).
O trans-estético
Grande parte dos planos urbanos, principalmente em países com enormes problemas
infra-estruturais, tem servido a interesses especulativos (geralmente privados) e
políticos. Com raríssimas exceções, em suas formulações, os arquitetos e urbanistas
acabam atendendo regras hegemônicas e “esteticizadas” por modelos competitivos e
internacionalizados de “renovação urbana”. A arquitetura também seria objeto de
sedução? Dentro dessa lógica de reprodução, queiramos ou não, a arquitetura é
entendida enquanto mercadoria, enquanto símbolo e até enquanto fetichismo
especulativo do mercado.
Segundo Baudrillard (1992, p.23), “toda maquinaria industrial do mundo ficou estetizada,
toda a significância do mundo viu-se transfigurada pelo estético. (...) foi a estetização do
mundo, sua encenação cosmopolita, sua transformação em imagens, sua organização
semiológica. (...) o sistema funciona não tanto pela mais-valia da mercadoria mas pela
mais-valia estética do signo”. A arte, a arquitetura tende à homogeneização, à
artificialidade, vide os verdadeiros paraísos de entretenimentos vertiginosos moldados
em superfícies do simulacro e da fantasia – efeito Las Vegas e processos de
“disneylandização” – City of Arabia, the heart of Dubailand. Territórios estratégicos onde
as arquiteturas genéricas e tecnológicas se reproduzem e se replicam tornando-se
corpos-prótese. Pois, ainda de acordo com Baudrillard, somos todos simbolicamente
trans-sexuais, mutantes biológicos em potência de signos exagerados e essa condição
contamina, evidentemente, as esferas da arte, da arquitetura e suas representações nas
cidades. Espaços aparentemente idealizados, limpos, assépticos, equilibrados, seguros,
vigiados, controlados e acessados por algumas camadas mais elitizadas que têm
condições de bancar os custos de tais devaneios. Nesse sentido, são espaços
excludentes.
Como tratar, então, desigualdade e diversidade nas múltiplas escalas das cidades
contemporâneas? Os corpos não se deleitam apenas em multiplicidades de expressões
estéticas ou políticas, mas somos assombrados por vestígios e rastros nem sempre
visíveis e que estão muito além das relações das contradições auto-referenciadas. Corpos
transcendentais; para além de corpos políticos, hoje eles se fazem trans-políticos.
*****
146
(...) as grandes paisagens têm, toda elas, um caráter visionário. A visão é o que do
invisível se torna visível... a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos,
mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar tanto quanto
possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este abandono não atinge
somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida. Na paisagem, deixamos de
ser seres históricos, isto é, seres eles mesmos objetiváveis. Não temos memória para a
paisagem, não temos memória, nem mesmo para nós na paisagem. Sonhamos em pleno
dia e com os olhos abertos. Somos furtados ao mundo objetivo, mas também a nós
mesmos. É o sentir.
Cézanne
Os diagramas
Por exemplo, um quadro cubista pode ser um diagrama, em seus planos e faces, em
suas dobras e desdobras, em seus espaços entre, em suas linhas de transição... Segundo
Huchet (2005, p.102), “a elaboração de uma visão total e aberta dos objetos, e não
apenas de suas aparências externas, abre a possibilidade de mostrar suas estruturas,
sua anatomia, as linhas e os volumes até agora escondidos pela representação
tradicional”. Como nas explorações do músico, crítico de teatro e pintor Paul Klee (1879-
1940), onde, em muitos de seus quadros, o plano e a profundidade se confundem. Para
Argan (1992, p.450), a perspectiva em Klee não é forma, e sim imagem, só que não
define um espaço, muito pelo contrário, muitas vezes ela é multiplicada, labiríntica em
suas linhas e percursos, não retornam a um ponto de partida, mas se extraviam; seus
desenhos são um acontecimento e suas obras são tão provocativas que surpreendem o
observador.
Klee desenvolveu muitos métodos didáticos e teorias nos ateliês de ensino da Bauhaus, a
exemplo da Teoria da forma e da figuração, onde examina a terceira dimensão do espaço
através de diagramas e desenhos construtivos quase esquemáticos que nos conduzem à
exploração de pontos nodais, superfícies, linhas e planos. Em “Confissões de um criador”,
de 1920, Paul Klee (1993, p.54) escreve que a arte não reproduz o visível, mas torna-o
visível: “o aspecto esquemático e fantástico da imaginação é um dado adquirido que, ao mesmo
tempo, se expressa com grande exatidão. Quanto mais puro é o desenho, isto é, quanto maior é a
importância atribuída à forma que está na base da representação gráfica, tanto mais deficiente é o
suporte para a representação realista dos objetos visíveis”.
O deus da floresta nórdica (1922) / Destruição e esperança (1916) / A máquina de chilrear (1922)
Fonte: PAUL KLEE (1993)
110
Ver neste capítulo: Processos híbridos – transições, oscilações e multiplicidades.
151
incorporais – quase uma máquina abstrata). Mas continua seu percurso na lógica da
sensação, pois deixa de ser representativo e quer se tornar real. Na verdade, ele nunca
foi meramente representativo, mas flui de maneira muito intensa. Segundo Deleuze
(2007, p.102), existe um trabalho preparatório muito árduo, quase excessivo, que
precede o ato propriamente dito de pintar ou de projetar, e esse trabalho muitas vezes é
invisível e silencioso. O ato de projetar, no percurso transcorrido pelas alunas, agora se
encontra em um outro momento; momento no qual o diagrama e suas formas abstratas
precisam dialogar com o programa arquitetônico estabelecido para o edifício e, dessa
maneira, ele sofrerá mais do que adaptações, principalmente nas adequações de escalas,
na sua inserção no sítio (implantação) e até na sua representação gráfica no plano
cartesiano (aspecto de desenho construtivo – as plantas do projeto).
Abaixo, maquetes de estudos desenvolvidas a partir dos diagramas – vista superior e inserção no terreno; conexão
com a Casa do Peso existente (núcleo dos pescadores); píer e acessos. Atelier II / FAUFBA (2008)
Fonte: acervo da autora
152
O uso de diagramas enquanto processo projetual foi abordado e incorporado por alguns
arquitetos. Peter Eisenman, por exemplo, é quase que um entusiasta nesse tipo de
pensamento, pois ele não só assimilou essa questão, como trabalhou essa temática tanto
discursivamente em seus textos como em suas práticas projetuais. Poderíamos citar a
matriz cúbica trabalhada enquanto diagrama na produção de uma série de suas casas111,
processo esse iniciado ainda no final da década de 1960 (logo após a apresentação de
sua tese de doutorado intitulada “The Formal Basis of Modern Architecture”), ao re-visitar
a obra do arquiteto italiano Giuseppe Terragni (1904-1943)112, o edifício sede do partido
fascista na cidade de Como, a Casa Del Fascio (1932-1936). O tipo arquitetônico,
obviamente, nos remete ao esquema desenvolvido por Andrea Palladio (1508-1580) para
o Palazzo Thiene em Vicenza (1542-1558) – uma tipologia de pátio central. Segundo
Duarte (2002, p.170), a proposta para a série de dez casas, “são fruto direto de um
trabalho semiológico com os elementos arquitetônicos, estabelecendo um sistema que
permitia, a partir de sua codificação, a produção de uma série ilimitada de combinações,
num processo lingüístico que se volta sempre sobre si mesmo”. O cubo, trabalhado por
Eisenman, passa por uma série de questionamentos em sua estrutura formal bruta; esse
elemento sofre distorções, extrusões, subtrações, decomposições, enfim, deslocalizações.
Talvez, parafraseando Michael Graves: o que Peter Eisenman está fazendo não é
arquitetura. Sobre essa questão, o próprio Eisenman (1987, p.195) comenta que os seus
trabalhos, muitas vezes, estão fora daquilo que ele supõe ser o vocabulário natural da
arquitetura. Esse deslocamento deverá ultrapassar o objeto arquitetural e invadir o
universo que cerca os arquitetos (Tschumi, 1977, p.581). O que Eisenman fez, ao
experimentar composições diagramáticas enquanto eixos de desconstrução em
edificações relativamente pequenas – habitações unidomiciliares – foi enfatizar o
processo de criação em detrimento do objeto acabado. Talvez suas casas não tenham lá
tanto significado do ponto de vista de suas imagens ou de seus signos, embora, sem
dúvidas, provoquem sensações - hoje, saber decodificar, não tem a menor importância.
A relevância de sua obra aponta para a própria função do papel do processo: “o modo de
fazer converteu-se em algo mais importante que o artefato, a forma explica a maneira
como a obra foi elaborada” (MONTANER, 1993, p.168).
111
Peter Eisenman iniciou suas experiências trabalhando a estrutura interna da matriz cúbica, procurando estar
entre o diagrama e o tipo (EISENMAN, 2001, p.62), primeiramente na House I, localizada em Princeton, New
Jersey, em 1967-68. E prosseguiu seus experimentos, sempre “brincando” com a forma, as tensões, a diferença, a
implosão, a extrusão, o excesso, a rotação, etc, em meio ao sentido de interioridade: House II (Hardwick,
Vermont, 1969-70); House III (Lakeville, Connecticut, 1969-71); House IV (Falls Village, Connecticut, 1972-
76); House VI (Cornwall, Connecticut, 1972-75); House X (Bloomfield Hills, Michigan, 1975); House 11a (Palo
Alto, Califórnia, 1978); House El even Odd (1980); Fin D´Ou T Hou S (1983) e a Guardiola House (Cadiz,
Espanha, 1988).
112
Verificar em Eisenman (2003). Giuseppe Terragni: Transformations, Decompositions, Critiques.
153
113
Temática que Eisenman irá retomar anos mais tarde, lá pelos idos de 1997, época da Virtual House
Competition, uma casa concebida a partir de nove cubos abstratos e translúcidos trabalhados em função da
vetorização de suas linhas com auxílio da tecnologia computacional. Verificar em TRACING EISENMAN
(2006, p.257).
154
Casa del Fascio (1932-36), Como - Itália. Arq. Giuseppe Terragni. Inserção urbana e vista interna.
Fonte: EISENMAN (2003)
Seria impossível aqui referenciar de forma substancial as tantas obras de Eisenman que
transitaram nessa exploração diagramática. No projeto do IBA Social Housing at
Checkpoint Charlie, em Berlim (1981-85), o famigerado Wexner Center for the Visual
Arts and Fine Arts Library, em Ohio (1983-89), o Biocentrum, na Alemanha Oriental
(1986-87), o concurso para o Parc la Villette, em Paris (1987), o Aronoff Center for
Design and Art, também em Ohio (1988-96) ou o Koizumi Sangyo Office Building em
Tokyo (1988-90), entre tantos outros edifícios (só para citar alguns que foram
desenvolvidos até o início da década de 1990) voltados para um público mais amplo,
foram concebidos em seus processos de maneira tão intensa graças aos experimentos
realizados anteriormente nas residências.
155
Quando Eisenman escreve Diagram Diaries, em 2001, ele re-visita suas principais
obras, aquelas que foram geradas a partir desse processo e, como já colocado, ele faz
uma ponte bastante interessante e pertinente com o pensamento deleuzeano. Eis que
esse momento requer uma pequena pausa, para que possamos compreender a
intensidade da conexão do uso do diagrama não apenas enquanto processo de projeto,
mas enquanto um conceito incorporal, uma máquina de forças como traçado por Deleuze
em sua obra “Francis Bacon: lógica da sensação”.
Nesse livro, Deleuze penetra a obra de Francis Bacon (1909-1992) a partir de uma série
de questões que ele levanta na pintura desse artista; um desses pontos analisados pelo
filósofo francês diz respeito aos diagramas. Numa intenção primeira, Deleuze talvez
pretenda encontrar na obra desse pintor irlandês um caminho que dialogue com o modo
de pensar contemporâneo, que faz front à lógica de um pensamento dual e binário; uma
obra que, segundo o tradutor da edição, o professor Roberto Machado, da UFRJ,
“pretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração”. E mais: “a transformação em
conceitos de elementos não conceituais – perceptos e afetos – oriundos da literatura e
das artes”.
156
O ato de pintar em Bacon se define pelas marcas ao acaso, pelo jogo de tintas e traços
lançados em diversos ângulos e em velocidades variadas. Esses traços são irracionais,
involuntários, acidentais e livres. Portanto, são não representativos, não ilustrativos e
não narrativos. São traços assignificantes, traços de sensação, mesmo que confusos
(DELEUZE, 2007, p.103). O diagrama é um conjunto operatório de linhas e zonas, tal
qual experimentados por Eisenman. Sugere, mas do que qualquer coisa. É um caos,
quase uma catástrofe, mas abre domínios sensíveis (idem, p.104). É nesse sentido, que
tal processo foge à representação clássica da organização, uma escolha ao acaso que se
opõe a uma concepção de escolha binária. As linhas, tal qual em Klee, Kandinsky ou
Pollock, passam entre os pontos e não pára de mudar de direção, até atingir uma
potência de forças em sua superfície. Como nos diagramas dos arquitetos, que transitam
entre espacialidades muitas vezes estranhas ao olho do observador, mas que evoca uma
geometria do sensível em suas tensões espaciais, muito comuns nos processos
contemporâneos – planos verticais e horizontais que se fundem em profundidade e ao
mesmo tempo revelam pontos em desequilíbrio, como nas explosões e fragmentações da
matemática sensível de Zaha Hadid, nas intuições, devaneios e simulações de Frank
Gehry, no ciberespaço de Marcos Novak, na arquitetura fluída do NOX, na virtualidade de
Greg Lynn ou simplesmente nas linhas surreais do Coop Himmelblau.
O ato de pintar em Francis Bacon. Acaso, variações, formas de indeterminação, traços de sensações.
Fontes: www.enchgallery.com / www.artnet.com / www.thismoment.pwp.blueyonder.co.uk
Arte digital sobre obra de Francis Bacon. The Virtual House (1997), Berlim –
Alemanha / Eisenman Architects. Explosões e fragmentações na matemática
sensível de Zaha Hadid – Centro de Arte Contemporânea de Roma (1999).
Fontes: www.enchgallery.com / TRACING EISENMAN (2007) / EL CROQUIS (2004)
157
Processo de projeto iniciado através da manipulação de diagramas. Na seqüência, estudo de modelos, maquete e o
edifício construído. Nunotani Corporation Headquarters (1990-92), Tokyo – Japão. Eisenman Architects.
Fonte: TRACING EISENMAN (2007).
114
Ver BENEVOLO (2007).
158
A Sahara, a rhinoceros skin, this is the diagram suddenly stretched out. It is like a
catastrophe happening unexpectedly to the canvas, inside figurative or probabilistic
data. It is like the emergence of another world. (...) The diagram is the possibility
of fact – it is not the fact itself (DELEUZE, apud EISENMAN, 2001, p.23).115
115
Verificar em Diagram Diaries, algumas citações referentes a um texto de Deleuze específico sobre os
diagramas, podendo ser conferido em DELEUZE, Gilles. The Diagram, in The Deleuze Reader, Constantin V.
Boundas. New York: Columbia University Press, 1993, p.194-199.
116
Conferir em TRACING EISENMAN (2006, p.251).
159
No processo utilizado para criação de seu mais recente projeto em construção, a “Cidade
da Cultura de Santiago de Compostela”, fez uma releitura da 5a parte do Codex
Calixtinus117, um dos mais importantes códigos da era medieval. Realizou uma espécie de
transferência das linhas e curvas da concha (uma espécie de simbolismo matriz presente
no livro de Saint James, do medievo) para o plano da cidade.
Eisenman transferred the shells ridges to his plan for the City of Culture, where they
reflect an internal order that is likewise patterned on a shallow concha, or shell-shaped
hillock, furrowed by a series of passageways that recall the narrow streets of Santiago.
117
O Codex Calixtinus é dividido em cinco partes, onde a 5a parte desse código refere-se ao guia de peregrinação
– a guide for pilgrims traveling from France through Spain to Santiago.
118
Os diagramas reorganizados, sobrepostos possibilitam a configuração de novas estruturas e,
conseqüentemente, a produção de novas formas.
160
(...) City of Culture emerges from a reading in between the patterns that help us
decipher diagrams and images (EISENMAN ARCHITECTS, 2005, p.25).
A concha representada em uma das páginas do Codex Calixtinus, um dos muitos guias de peregrinação da
jornada para Santiago de Compostela, e o mapa do centro da cidade. As primeiras linhas sobre a “casca” da
concha e estudos de diagramas de zonas de funções. Fonte: EISENMAN ARCHITECTS (2005)
Layers de informação: o curso das linhas, a partir das desconstrução da concha e conexão com o
traçado medieval original de Compostela, é usado como processo para o desenvolvimento do
desenho da cidade e seus edifícios. Os estudos dos modelos demonstram os vários efeitos das ruas
sobre a topografia do lugar. Fonte: EISENMAN ARCHITECTS (2005)
Mais a frente veremos que o uso do diagrama também é apropriado por muitos
arquitetos espanhóis, que não fazem parte, ainda, do star system internacional, naquilo
que eles mesmos chamam de procesos de hibridación. Suas propostas são mais radicais,
beirando o surrealismo. Muitas ainda transitam no plano micro ou na exploração do
próprio pensamento.
CODEX
Cidade da Cultura da
Galícia – diagramas
virtuais, modelos, estudo
de funções, maquetes
internas analógicas e Fonte:
digitais, o projeto em EISENMAN ARCHITECTS (2005)
construção.
162
119
O objeto não é o ponto central, mas sim a relação corpo. A concepção dos espaços muda a partir do momento
em que o corpo e seus impulsos vitais passam a ser o elemento transformador. A sintaxe da manipulação de
modelos se identifica com a imagem consciente do corpo - relação entre corpo, movimento e modelo.
120
O modelo aqui não é entendido como um objeto a ser reproduzido por imitação, mas como um elemento
plástico volumétrico suscetível a experimentações pelos alunos (fruidores) e de imprevisível resolução formal.
121
Mais sobre o assunto ver “A Poética dos Modelos”, do mesmo autor, no prelo, onde os estudos sobre as
relações entre o corpo e o material, a simulação nos modelos e a transposição de novas linguagens surgem
através de problematizações pedagógicas que refletem os métodos de ensino desenvolvidos no Atelier da
FAUFBA, formando um processo que compatibilize criação, representação e técnica.
163
vocação de sujeito. O objeto não é mais o ponto central, e sim o sujeito (fruidor) através
do movimento, da intuição, dos perceptos e claro, das lógicas de saber e formas de
pensar.
Tal procedimento talvez não seja tão erudito e desterritorializado quanto a exploração
dos diagramas, processo exposto anteriormente, embora os esforços diagramáticos
muitas vezes surjam inconscientemente na manipulação do material, como um desenho
em constante discurso espaço-temporal. Esse desenho não funciona como representação
de uma idéia, mas, sobretudo como processo. O espaço euclidiano, em suas três
dimensões, é o campo da percepção visual no tempo da permanência, em sua
compreensão estática. As outras dimensões do espaço nos abrem através de uma
construção mental que se faz no espaço-tempo, na expressão de uma duração, no seu
deslocamento – a quarta dimensão (OLIVIERI, 2002, p.23). Mas qual seria o elemento
gerador do espaço? Parafraseando Milton Santos: “não pode haver espaço sem ação”. A
quinta dimensão do espaço, então, se constrói para além da esfera do olhar, do
deslocamento cinético ou de um movimento, o que constrói a quinta dimensão do espaço
são as ações que acontecem no agora (idem, p.24). No processo poïetico, os modelos
dinâmicos são gerados a partir da ação do fruidor; ali está acontecendo a quinta
dimensão do espaço em consonância com a criação das formas volumétricas, nas
pequenas esculturas arquiteturais.
Essas vibrações formadas pelo mundo das forças não são percebidas diretamente na
tridimensionalidade, mas somente alguns fenômenos. A quinta dimensão do espaço é
constituída de uma trama, um campo modelador das durações, formadoras dos
modelos de fenômenos de interioridade e exterioridade (...) A incorporação da quinta
dimensão do espaço ao estudo da arte e da arquitetura foi responsável diretamente
pelas grandes mudanças nas artes, mesmo que a sua evidência tenha mascarado a
interioridade (ibidem, p.24-25).
Segundo Paulo Mendes da Rocha, a erudição não pode abolir a experimentação. Eugène
Freyssinet, considerado o pai do concreto protendido, fez suas experiências de modo
empírico, pensando nas deformações, nos esforços, testando seus modelos volumétricos
e muitas vezes imaginando o que não existia. Obviamente, não conseguiu calcular todas
as suas descobertas.
122
Essa publicação se refere a notas de aula e oficina sobre maquetes ministrada por Paulo Mendes da Rocha na
Casa Vilanova Artigas, em Curitiba, em abril de 2006.
165
Mais do que modelos de ensaio, mais do que a simples materialidade da idéia, o processo
poïetico permite um maior diálogo entre o material e o artista, através de uma ação
direta:
O método poïetico, além de ser um meio, é significado englobando a invenção, a
composição, o acaso, a reflexão, a imitação, a cultura e o ambiente, além da análise
técnica dos procedimentos, instrumentos materiais e suportes de ação. (REY, 1996,
apud OLIVIERI, 2002, p.74).
123
É uma inspiração mimética na estrutura molecular do diamante.
166
paradigma têxtil aventado por Gottfried Semper – “do têxtil deriva a arquitetura”. Nada
escapa aos sentidos. Mesmo nas suas pesquisas cinéticas, com as esculturas, as massas
e os volumes, Moholy acreditava que a investigação dos elementos invadia a expressão
subjetiva e era dessa maneira que ele problematizava a fronteira entre a arquitetura e a
escultura. É como se, de alguma maneira, esse processo criativo se afastasse um pouco
da racionalidade e entrasse num campo vago e de incerteza, sugerindo uma produção
aparentemente caótica. Ao contrário da formulação de El Lissitzki quando da transição de
experimentações para o campo mais racionalizado da arquitetura: “Os métodos e sistemas
básicos da arquitetura é desenvolver a expressão gráfica e plástica dos seus projetos construtivos
através do uso de modelos”.
Estudo para projeto de um atelier de artista em um terreno topograficamente acidentado - a arte enquanto
processo para geração de formas. No exemplo à esquerda, a aluna Gisela desenvolveu um protótipo inspirado na
obra do escultor Eduardo Chilida. À direita, o aluno João Hênio criou seu projeto a partir de referências ao artista
Amílcar de Castro. Introdução ao Projeto / UNIFACS (2007). Fonte: acervo da autora
*****
Acreditamos que, de acordo com a exposição já problematizada no capítulo I124, o atelier
de projeto, assim como a escola, é o lugar da experimentação. Muitas soluções
trabalhadas pelos alunos têm alcançado ótimos níveis de propostas arquitetônicas pelas
próprias características do processo projetual explicitadas acima, como podemos verificar
nas imagens anexas. Os alunos se permitem estar no meio de plataformas mais abertas,
explorando os modos de fazer e, claro, estabelecendo uma metodologia de maior
intensidade subjetiva.
Não comungamos com a idéia de que a prática da arquitetura, esteja na sala de aula ou
não, deva atender a mecanismos reprodutivistas. Acreditamos em transformações,
criações, pensamentos e até conflitos.
124
Verificar “Experimentação e formação disciplinar”
125
Ver LACOMBE, Octavio. O projeto como descoberta. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br>.
168
Como colocam Deleuze e Guattari (1992, p.217), “é preciso um método que varie com
cada autor e que faça parte da obra”. Como transgredir ou quebrar o aprisionamento
formal herdado do mundo da modernidade e da representação, se não através do(s)
método(s) e de uma multiplicidade de processos?
Residência universitária X poética da favela. Nesse exercício, os alunos deveriam propor uma nova
residência universitária para a UFBA, incorporando na proposta um espaço destinado a receber artistas
plásticos de diversas partes do mundo. O local para o projeto seria a Escola de Belas Artes, localizada na av.
Araújo Pinho, no bairro do Canela, em Salvador. Além de trabalharem com a pré-existência, incorporando
usos e ambientes da própria faculdade, a equipe (Patrícia Americano e Ana Cecília) optou em estudar uma
ocupação informal vizinha ao terreno. A partir da experiência com os moradores dessa comunidade,
incorporaram sua própria vivência do espaço enquanto ferramenta projetual. Não se limitaram a estudar as
formas ou espaços intersticiais da favela, como a fragmentação e os fluxos de circulação, mas potencializaram
em sua proposta, ambientes que favorecessem o convívio entre os residentes, inclusive permitindo que os
futuros moradores pudessem interferir esteticamente e funcionalmente nas construções, através de
intervenções coletivas e participativas, como acontece na comunidade vizinha estudada. Nesse sentido, a
própria arquitetura continuaria sempre in process. Atelier II / FAUFBA (2008). Fonte: acervo da autora.
170
Residência universitária X poética do bambu X poética do devaneio. Para o mesmo exercício explicitado
nas imagens anteriores, essas duas equipes optaram em trabalhar com concepções bem diversas. As imagens
laterais mostram maquetes de um grupo que resolveu estudar a estrutura do bambu e, a partir das
possibilidades estruturais e estéticas desse material, chegaram à uma proposição mais “orgânica”, sem deixar
de levar em consideração aspectos contextuais e morfológicos. Na imagem central vemos como essa outra
equipe trabalhou de maneira mais formalista, intercalando curvas, retas e misturando materiais e texturas; em
seu memorial, defendem a coexistência de elementos formais distintos e interligados e uma arquitetura que
cause sensações, a partir do percurso do próprio usuário. Atelier II / FAUFBA (2008). Fonte: acervo da autora.
Segundo Cabral Filho (idem, p.77) alguns poucos arquitetos começaram a propor objetos
arquitetônicos híbridos, não apenas em seus processos, assumindo novas formas de
mediação tecnológica e buscando a instauração de um lugar que seja mais adequado aos
nossos dias. Na verdade, essa questão não fica restrita ao espaço arquitetônico; a
própria poética dos modelos de simulação também não deixam de ser uma arte híbrida
nos seus sistemas numéricos.
- Motor de arranque
Nos processos híbridos o trânsito de idéias se confunde com planos transitórios, fluxos,
procedimentos aleatórios, planos distintos e superpostos. Não há um ponto de partida,
mas um motor de arranque para o processo que se convencionou chamar criativo. Essa
efervescência permite transitar por entre variações do próprio mecanismo. Sistemas
abstratos, layers, diagramas. Se a sociedade contemporânea muda tão rapidamente, a
arquitetura também não deve manter uma rigidez e tem de desconfiar da imposição de
certos limites, portanto deve ser fluida e mutante. Os problemas reais devem se
converter em oportunidade, em re-orientações. Um campo de atuação com regras,
porém abertas; é assim que os caminhos vão surgindo de formas irregulares, como
nunca havíamos imaginado. Essas questões retratam um pouco a condição das oscilações
128
Mais sobre o assunto ver nossa publicação: SILVA (2006). “Processos Híbridos de Projetação em
Arquitetura”.
172
e transições por quais os processo híbridos atravessam. Não há certezas, a obra não
nasce, mas um motor de arranque a impulsiona.
- Procedimentos de oscilação
- Paisagens de adequação
Quando o arquiteto espanhol Eduardo Arroyo elabora uma das etapas da proposta para a
Vila Olímpica em Paris - jogos de 2008129, trabalhando o tema “Habitar esportivamente”,
lança uma série de perspectivas visuais sobre o locus da vila olímpica, a partir do
rebatimento de alguns elementos significativos existentes em um raio de ação pré-
determinado: La Defense, Tour Eiffel, Sacre Coeur, Stade Nautique, Parc La Villette,
Grande Salle, Paris Le Bourget, Basilique de Saint Denis e Stade de France. A partir da
angulação que cada elemento desse reflete sobre o lugar e da conexão de uma série de
pontos, gerando fluxos e diagramas de intervenção, Arroyo vai determinando o master-
129
Na ocasião a cidade de Paris se candidatou à sede dos jogos olímpicos e convidou 12 arquitetos de partes
diversas do mundo, inclusive o brasileiro Paulo Mendes da Rocha, para um “Concurso Internacional de Idéias
para as Olimpíadas de 2008”. Paris perdeu a disputa para Pequim – China, mas muitas das idéias apresentadas
nos projetos serão apropriadas como soluções para o futuro desenho de partes da cidade.
173
plan do seu projeto. Ele trabalha aquilo que Eisenman chama de diagrama de
exterioridade.
Nesse sentido, seu processo projetual é totalmente rizomático130 (não sua arquitetura) e,
apesar do caráter experimental da sua proposta, a solução está inteiramente ligada aos
arquétipos locais. O procedimento não é gratuito, o diferencial está na metodologia
utilizada na apropriação dessa espacialidade. Os edifícios surgem a partir das infinitas
relações de objetos pontuais a cada horizonte e a paisagem vai sendo costurada por
meio de um sistema aberto e de coexistências, que Arroyo chama de horizonte
fragmentário.
130
Rizomático porque a sua atuação, enquanto processo projetual, é aleatória e imprevisível. Não existe uma
origem ou um fim pré-estabelecido. Inclusive, o processo criativo é impulsionado através de um “motor de
arranque”, onde Arroyo trabalha com conceitos como “Instante Simbólico” e “Paisagens de Adequação”. Nesse
sentido, sua percepção se aproxima do Pensamento Rizomático, colocados por Deleuze e Guattari, onde o
rizoma constitui um sistema aberto de relações e conexões sempre em processo, sempre em transformação,
sempre no meio, “entre”... em oposição à estrutura arborescente, binária.
174
Uma lógica muito similar, no que diz respeito à exploração de espaços heterogêneos e à
hibridização conceitual, está presente nos estudos para a Casa G (espaço doméstico para
um escritor), idealizados pelos arquitetos espanhóis Cristina Moreno e Efrén Grinda.
Nesse exercício, eles exploram a paisagem através de repetições, recordações e
acontecimentos, criando um conjunto de estruturas tubulares justapostos elaborados a
partir de uma configuração mimética inspirada na estruturação formal dos dedos da mão.
Sete naves longitudinais se deformam, se entrecruzam e se tangenciam em certos
pontos do percurso, depois se bifurcam, compartilhando seus limites e se
interconectando entre si. Portas topográficas e fissuras que se atravessam de um espaço
a outro. Relações de proximidade e atração que são enfrentados pelos seus principais
elementos. Um sistema fenomenológico superposto de definições espaciais, resultando
em um refúgio de distintas trajetórias representado por membranas translúcidas. Trata-
se de uma experimentação provocativa e ao mesmo tempo questionadora em relação ao
espaço da moradia - um sistema que também quer resistir ao desgaste do cotidiano, sem
vínculos formais. Porém, é a partir dessa relação-corpo que o projeto acaba nascendo.
175
CASA G – espaço doméstico para um escritor (1999), Espanha. Cristina Moreno & Efrén Grinda.
Fonte: EL CROQUIS (2001)
O mesmo acontece na elaboração da Capela de Valleacerón, situada em uma colina em Almadén,
Ciudad Real, na Espanha, desenvolvida pelos arquitetos Sol Madridejos e Juan Carlos Osinaga. O
método utilizado é muito próximo aos exercícios desenvolvidos nos ateliês da UFBA, através da
manipulação de modelos. Os jogos de tensões e vazios permitem a transição de sucessivos
espaços iniciados através de uma simples dobra de papel, onde cada fachada do pequeno edifício
se apresenta como um quadro inserido na paisagem, permitindo a leitura de diferentes pontos de
fuga. Trabalhada com concreto aparente e vidro, a capela capta a luz natural através dos seus
diferentes planos, permitindo um diálogo mais intenso com as diversas matizes e cores intrínsecas
ao próprio lugar no qual está implantada - transparência / luz / silêncio/ vazio.
Capela de Valleacerón (1997/2000), Ciudad Real – Espanha. Processo das dobras de papel através da poïetica
atuando enquanto elemento condutor da composição criativa do fruidor. Imagens dos modelos de estudo e de vistas
internas e externas da capela em uma pequena colina de Almadén. Sol Madridejos e Juan Carlos Osinaga.
Fonte: EL CROQUIS (2001)
176
Genética Urbana em Saint Denis (1999). O arquiteto Eduardo Arroyo e seu grupo
trabalham sobre três aspectos – processos de hibridação genética, onde as próprias
estruturas urbanas são compreendidas como tecidos vivos e, portanto, podem
transportar uma multiplicidade de informações suscetíveis a mutações em seus próprios
códigos; os cultivos codificados, que seriam células carregadas com códigos genéticos
tanto dos seres humanos, quanto dos materiais existentes nos lugares, possibilitando
uma aparição futura a partir desses códigos conservados, ou seja, uma grande variedade
dessas células naturais compõe também os diferentes cultivos de laboratório e que
provocam múltiplas reações nas condições existentes; e as mutações, o cultivo genético
das células completam seu processo de mutação e eis que surge o momento de ler os
novos códigos surgidos desse processo, bem como as novas relações ocasionadas entre
eles.
entre espelhos e vidros, refletindo a paisagem externa (um bosque) que se encontra ao
longo das habitações. Por isso elas assumem um caráter de contínua mutação, seja pela
transformação da própria paisagem refletida – paisagens de adequação – seja pela
disposição dos prédios, que se alinham como tiras adaptadas à captação solar,
produzindo deformações e uma aparente desordem das suas peças de articulação,
posicionadas aleatoriamente na conformação de seus pátios internos. As casas se abrem
ao exterior a partir da articulação com o pátio privado, e se ampliam. No inverno, esses
pátios servem de colchão climático para a casa.
Projeto vencedor do Europan 6. Vivendas em Jyväskylä (2001), Suomi – Finlândia. Complexo habitacional
contendo 99 unidades trabalhadas em conexão com a paisagem do lugar; uma arquitetura que busca em seus
jogos de efeitos um sistema mutável que permite utilizações diversas das habitações, articulando espaços
coletivos e privados. Cristina Moreno e Efrén Grinda. Fonte: EL CROQUIS (2001).
131
Verificar também a revista EL CROQUIS (2007), “Sistemas de Trabajo”.
179
Desconstrução e pós-estruturalismo
Segundo Felix Guattari, a corrente estruturalista comete um erro grave quando tenta
reunir tudo o que concerne à psique sob o significante lingüístico. Michel Foucault
(1999a, p.54) já havia colocado em xeque a soberania do significante, as relações de
causa e efeito e potencializado o caráter do acontecimento ao questionar as quatro
noções (significação, originalidade, unidade e criação) dominantes na história tradicional,
onde “se procurava o ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um
tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das significações
ocultas”. Nesse sentido, vislumbra a notação de outras noções que deveriam seguir de
princípio regulador para novas análises: o acontecimento (em oposição à criação), a
série (em oposição à unidade), a regularidade (em oposição à originalidade) e a
condição de possibilidade (em oposição à significação).
132
A desconstrução nasce da discordância da leitura de uma escritura. Um novo corpo lendo um texto ou uma
arquitetura - já que a arquitetura, seja uma obra ou um projeto, pode ser entendida como uma partitura e, esse é o
sentido da arte contemporânea - você tem uma nova escritura sempre, um novo contexto.
180
(... ) não existe um consenso geral. Para a arquitetura moderna existia um consenso
geral sobre o que devia ser feito, situação que desapareceu. A Desconstrução deslocou
a arquitetura moderna e pós-moderna; basta dar uma olhada na última Bienal de
Veneza para comprovar que tudo ali apresentado era Desconstrução. Mas eu entendo
que existe um problema hoje e o motivo é porque os arquitetos não sabem o que
fazer. Não há uma teoria predominante. Não existem líderes teóricos. Por isso é um
momento difícil. O quê se pode ensinar? Eu ensino Brunelleschi, Borromini, Le
Corbusier, Mies Van der Rohe… Não sei que outra coisa poderia ensinar.133
Segundo Eisenman (1976, p.100), o próprio homem é uma função discursiva em meio a
sistemas de linguagens complexas e preexistentes, que ele testemunha, mas não
constitui. Essa condição de deslocamento desemboca em um desenvolvimento não-linear
do projeto – sem começo nem fim – determinando coexistências em potencial e outras
temporalidades. Quais seriam as respostas que a arquitetura poderia dar às crises do
modernismo? Arquitetura e reinvenção. Transparência e opacidade. Ausência e presença.
Ainda nos aprisionamos em análises dialéticas, entre relativismos e substâncias. Um
mundo que vive em processos transitórios e, obviamente, em colisão.
133
Entrevista com Peter Eisenman realizada por Fredy Massad e Alicia Guerrero Yeste em abril de 2005.
Disponível em <http://www.vitruvius.com.br>.
181
A base da filosofia da desconstrução está no ataque aos objetos segundo seu aspecto
clássico; procura desmontar para revelar a estrutura. O discurso da desconstrução
em arquitetura, tendo como fundamento os ensaios do filósofo francês Jacques Derrida,
relaciona-se com a multiplicação dos pontos de vista, operando por meio de
“deslocalizações”, com a quebra de uma certa estética, com a provocação de sensações e
a exploração do caos. O desconstrutivismo busca a tensão estrutural ao limite, com base
na interpenetração espacial e na semântica dos objetos trabalhados, inicialmente, pelas
vanguardas russas. Após o construtivismo russo, fica claro que a arquitetura não se
configura apenas como obra construída – o fenômeno, a materialização - mas o
pensamento que a origina.
Não pretendo sugerir com isso que a arquitetura seja uma técnica apartada do
pensamento e, por esta razão, talvez apropriada a representá-la no espaço,
constituindo quase que sua materialização; antes procuro expor o problema da
arquitetura como uma possibilidade do próprio pensamento, que não pode ser
reduzida à categoria de representação do pensamento (DERRIDA, 1986, p.165).
Arquiteturas e discursos
“Uma arquitetura que sangre, que fadigue,
que se retorça e inclusive se rompa.
Que ilumine, que provoque, que rasgue
e sob pressão se tencione”
Coop Himmelb(l)au
De acordo com a arquiteta iraquiana Zaha Hadid (1991, p.16), “(...) a arquitetura não deve
se reduzir meramente à construção”. Seus projetos apoiados em croquis e pranchas
Estudos para o Al Wahda Sports Centre em Abu Dhabi (1988) & The Peak, em Hong Kong (1983).
Herança suprematista – os “planitas" e a “matemática sensível” da arquiteta iraquiana.
Fontes: EL CROQUIS (2004); ZAHA HADID (2002)
A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons
ou nas pedras. A arte não tem opinião. A arte desfaz a tríplice organização das
percepções, afecções e opiniões, que substitui por um monumento composto de
perceptos, de afectos e de blocos de sensações que fazem as vezes de linguagem
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.228).
Por outro lado, o arquiteto Peter Eisenman trabalhou em muitas de suas obras a questão
da semiologia dos elementos de arquitetura, estabelecendo um sistema que permitiam, a
partir de sua codificação, a produção de uma série ilimitada de combinações, num
processo lingüístico que se volta sempre sobre si mesmo. Eisenman procurou estar ligado
aos filósofos contemporâneos; da Desconstrução de Derrida aos Diagramas de Gilles
Deleuze, seu trabalho sempre esteve conectado com referenciais teóricos que, de alguma
maneira, provocassem suas concepções formais e interferissem no seu processo
projetual.
acaba gerando, segundo Eisenman, uma espécie de combinação entre os dois. Já a Casa
Guardiola teve como base processual os diagramas e modelos volumétricos
desenvolvidos para a House X (1975), como já comentados anteriormente.
The diagrams of Casa Guardiola elaborated the work of trace and imprint begun at La
Villette. The project used the diagrams of House X as an initial text. While this was an
arbitrary decision, it provided a contingent if not immanent relationship to an
architectural interiority since it related to both a prior project and thus to a form of
anteriority, and also to certain tropes which define any architecture interiority. (...) In
the La Villette project, absences were marked as imprints; again, an object was
pushed into a mold, and when it was taken away, it left an imprint in the mold. In
Casa Guardiola the idea of trace was introduced, which was seen as conceptually
different from an imprint (EISENMAN, 2001, p.194-195).
Derrida apontava a possibilidade de, conhecendo-se o centro, implodi-lo para obter daí
múltiplos fragmentos que poderiam despertar uma miríade de novos significantes e
significados. Seguindo essa lógica, Eisenman trabalhou muitos conceitos de seus
processos a partir da idéia de diagramas134 e releitura de códigos, configurando novas
estruturas e formas geradas de torções, extrusões e deformações utilizando notações
vetoriais espaciais. Essas relações processuais de ações, além de atuar no universo da
percepção, nos propõem devires-outros a cada projeto de arquitetura.
134
Ele desenvolve boa parte de seus projetos a partir da investigação de diagramas, utilizando-o não
simplesmente como forma, mas como idéia. No entanto essa idéia – o diagrama - sempre está ligada ao
programa, ao lugar ou a história. Ver no início deste capítulo “Os diagramas”.
184
Destaque para uma cobertura de um edifício em Viena que abriga um pequeno escritório
– Rooftop Remodelling Falkestrasse – “uma montagem escultórica” de marcante beleza
tecnológica. Em suas imaginações, os arquitetos visualizaram uma linha de energia vinda
da rua que rasga o telhado existente, provocando sua ruptura e seu desmonte. Uma ação
automática e psíquica tal qual as obras surrealistas de Salvador Dalí? Para Montaner
(idem), “a pretensão de toda a obra do Coop Himmelb(l)au foi fugir das formas
estabelecidas, buscar novos métodos criativos que se libertassem totalmente das
restrições da razão e que re-introduzissem o subconsciente, para poder assim criar
formas variáveis e flexíveis, fluidas e mutantes como as nuvens”.
185
135
Participaram Peter Eisenman, Rem Koolhas, Zaha Hadid, Coop Himmelblau e Bernard Tshumi. Todos
fizeram parte da exposição denominada Desconstrutivista, realizada por Philip Johnson, no MoMA de Nova
York, em 1988.
136
Sobre essas instalações, conferir em DUARTE (1999).
186
Tschumi coloca que, na arquitetura, a disjunção pressupõe que nenhuma das partes pode
converter-se em uma síntese ou totalidade auto-suficiente, mas que cada parte leva à
outra e toda construção é desestabilizada pelos vestígios, nela própria, de uma outra
construção. Nesse sentido, a disjunção pode ser constituída por vestígios de um evento,
de um programa e pode levar a conceitos, pois um de seus objetivos é compreender um
novo conceito de cidade, de arquitetura.
Toda obra teórica, quando ‘deslocada’ para o domínio do construído, ainda conserva
seu papel dentro de um sistema geral ou aberto de pensamento. Assim como nos
projetos teóricos de The Manhattan Transcripts, de 1981, e no do Parc de La Villette, o
137
Texto do curso dos professores Haw e Labelle, traduzido pelo arquiteto Sérgio Kopinski Ekerman.
187
Já Aldo Rossi, por exemplo, critica duramente o funcionalismo, demonstrando que não
existe uma relação linear entre as formas e as funções. Para o arquiteto italiano, o lugar
é mais forte que as pessoas e o cenário é mais forte que o acontecimento. Ao projetar o
Teatro do Mundo, em 1980, irá resgatar os paradigmas arquetípicos da arquitetura
veneziana; o espaço teatral efêmero dialoga com as referências formais do contexto
urbano, buscando seus elementos geométricos puros. Para ele, o cerne da concepção
arquitetônica está na justa articulação dos elementos da memória, do locus139 e do
desenho, ponte muito bem traçada na sua obra “Arquitetura da Cidade”, onde costura
relações entre história-teoria-projeto.140
138
Conferir em TSCHUMI (2004). Event-Cities 3. Concept vs. Context vs. Content.
139
“(...) locus intendendo con questo quel rapporto singolare eppure universale che esiste tra una certa
situazione locale e le costruzioni che stanno in quel luogo.” In: ROSSI (1966, p.117).
140
É preciso entender a atitude de Rossi num contexto culturalista do historicismo italiano do pós-guerra e de
cidades destruídas, de um certo “peso” da memória do lugar, dos processos históricos, das relações de
permanência e da forte herança do racionalismo moderno. Simultaneamente, no período em que escreve
“Arquitetura de Cidade”, em 1966, o pensamento de Robert Venturi pressupõe a arquitetura numa sociedade
consumista e de mercado, quando escreve “Complexidade e Contradição” em 1967.
188
Copa do Mundo. A fachada do estádio possui uma pele camaleônica composta por quase
3000 painéis de etileno-tetrafluoroetileno, que permite a mudança de cor e controla a
passagem de luz natural. Os arquitetos suíços são conhecidos pela alta tecnologia e
diversidade de materiais empregados principalmente no tratamento das fachadas dos
edifícios que projetam. Do prédio da Prada em Tóquio e seus 840 painéis de vidro em
formas côncavas e convexas inseridos entre estruturas resinadas, passando pela
vestimenta da biblioteca da Escola Técnica de Eberswalde – imagens fotográficas
impressas no concreto por meio de um processo similar ao silk-screen, ou ainda as
membranas translúcidas e mutantes de policarbonato colorido do Laban Centre London,
os efeitos são quase mágicos. É preciso impressionar.
As mega-instalações de Christo.
Fonte: www.christojeanneclaude.net
141
Responsável pela organização do IMAGINA, encontro de profissionais em imagens eletrônicas, que acontece anualmente
na cidade de Mônaco.
142
Para maiores detalhes ver: QUEAU (1986). Éloge de la simulation.
191
Já o studio americano Morphosis, criado no início dos anos 1970 no seio da Southern
California Institute of Architecture, liderado por Thom Mayne e Michael Rotondi, parece
estar fora de qualquer rótulo. As maquetes são fundamentais enquanto ferramenta de
projetação; algumas são executadas em escalas quase que reais. Seus desenhos, mesmo
a mais singela planta-baixa, são todos perspectivados e arrojados, misturando técnicas
da pop-art, como colagens e sobreposições, ao desenho mecânico. O desenho é
problematizado ao extremo, os esquemas são viscerais em suas elaborações quase
sempre isométricas. Nenhum mínimo detalhe passa despercebido. Uma estética outsider.
Em seus discursos, evocam a assimilação do acidental e do fragmento de impulsos em
suas criações e, para isso, a arquitetura precisa estar em constante mutação. Criticam
192
Ênfase no rigor do detalhe, na mecânica dos desenhos, nas montagens e nas maquetes analógicas do Studio Morphosis.
Fonte: COOK; RAND (1989).
Poderíamos ficar aqui citando uma série de arquiteturas e expressões que dialogam
substancialmente com as heranças advindas da concepção high-tech e monumental, da
ênfase nos detalhes arquitetônicos e suas relevâncias no que tange o uso da
transparência, da leveza e da eficácia técnica e estrutural presentes nas proposições
herdadas de Norman Foster, Renzo Piano, Richard Rogers, entre outros. Arquiteturas que
exaltam valores formais, simbólicos e culturais baseados na materialidade e na
construtividade do projeto e no equívoco mecanicista de que uma “boa construção”
equivale a uma “boa arquitetura” (sic). Esse “código de uma arquitetura elevada” e
comercial muitas vezes se alinha a uma coalizão de valores ‘eruditos’ da classe média
alta, o ‘gosto’ do alto escalão do establishment, com valores da profissão arquitetônica
como instituição. Segundo Graham (1979, p.446), esse novo “estilo internacionalizado”
unifica os valores da classe alta no interesse de um negócio e governo corporativos; “ao
mesmo tempo, ele olha para baixo, para a ‘praga’ e para a ‘poluição visual’, e discerne,
na complexa diversidade de códigos menores, menos organizados e mais baixos, todos
os sistemas de valores alternativos que são representativos”. Eis um ponto para reflexão.
Seria essas expressões arquitetônicas um paradigma da artificialidade?
193
lugares, onde um modelo contraditório, mas rico, segundo ele, mostra a vitalidade do
capitalismo (sic!).
Efeitos que ecoam desde o plano de privatização portuária da Harbor Place de Baltimore,
passando pela experiência de planificação estratégica da “Barcelona Olímpica”, entre
outras operações de marketing que vão ao encontro das demandas de localizações
instituídas pelos investidores internacionais que querem ampliar seu mercado
consumidor. Como exemplo dessa lógica, citamos a reconversão urbana em Lisboa
(EXPO 98), as Docklands em Londres, Puerto Madero em Buenos Aires, Píer 17 e Battery
Park em Nova York, Boston Waterfront, entre outras.
Para Maricato (2001) todas as intervenções devem ter uma “roupagem” democrática e
participativa e, geralmente, são coroadas por arquiteturas espetaculares das mais
contemporâneas grifes internacionais. Continuidade de uma cidade corporativa, que cede
à dominação ideológica e às necessidades das grandes empresas privadas. Uma cidade
competitiva, engendrada pela imagem e pela cultura e, paradoxalmente, caracterizada
pelo aumento da exclusão social.
Desde o lançamento de “Delirious New York” (1978), Koolhaas não deixa de colocar em
suas pautas de reflexão o fenômeno da cultura e da congestão - considerado pelo
arquiteto holandês um ingrediente chave de qualquer projeto ou arquitetura
metropolitana. Estabelece em suas análises quatro grandes eixos relacionados às
questões de projeto na cidade contemporânea143: o tamanho dos edifícios; a nova escala
mutante da arquitetura; as circulações verticais (em especial, os elevadores); o edifício
como elemento impressionante.144 Koolhaas, inclusive, vai considerar esses quatro
pontos para as formulações de alguns projetos realizados pelo seu escritório no ano de
1989: Terminal Marítimo de Zeebrugge, na Bélgica; Biblioteca da França, em Paris; ZKM
Centro de Arte e Tecnologia de Mídia, em Karlsruhe, na Alemanha.
143
Essa cidade contemporânea é analisada, obviamente, a partir do contexto norte-americano e europeu.
144
O quarto ponto está ligado ao aspecto que, desta grande escala do edifício, ele acaba nos impressionando pela
sua massa, pela sua aparência e pela sua simples existência.
196
A globalização, certamente, não nos arranca do chão. Pelo contrário, planta sementes e
cria raízes muito mais profundas e homogêneas em todos os lugares. As corporações
multinacionais é que são estrangeiras nos nossos lugares, em nosso território e nos
seduzem através do mercado, da dominação cultural e da mídia as custas de uma
armadilha de difícil escape. Ou, como coloca Julia Kristeva: “somos estrangeiros em
nossa própria pátria”.
Arquitetos multi-artistas como Marcos Novak, Greg Lynn, Lars Spuybroek (NOX), entre
outros, estão experimentando o espaço virtual e trabalhando novos conceitos como a
nanotecnologia, a transarquitetura, os espaços sensorizados, os princípios algoritmos,
etc. Surgem novas formas como o strand, os blebs, os shreds e a “arquitetura blob”.
Seriam antídotos à padronização?
Esses processos ultrapassam a relação binária entre o sujeito e o objeto. O objeto não é
único, ele é multiplicado. Essas multiplicidades estão acima das singularidades e abrem
espaço para apropriação de um campo heterogêneo, híbrido e desterritorializado, como
apontam Deleuze e Guattari (1995, p.8):
Nessa pequena explanação não pretendemos penetrar o universo das mídias digitais, da
cibercultura, muito menos das artes digitais. Um tema vastíssimo e de grande impacto
nas estéticas contemporâneas e nas redes mundiais de cidades. Mas, sem dúvida, eis
que surge uma nova flânerie (Rodrigues, 2008), embora sem a poética do esteta ou do
dandy, que capta o momento, o passageiro, o acontecimento urbano no qual se
“encenam complexas visões de estados permanentes da mente”145, presentes nos contos
145
In: BAUDELAIRE, 2007, p.17 - ver texto introdutório escrito por Dirceu Villa.
197
e crônicas de Edgard Alan Poe ou nas poesias e prosas de Charles Baudelaire - exímios
representantes e “testemunhas oculares” em corpos flanantes da emergência da vida
moderna no século XIX. Será que as novas tecnologias de informação e de comunicação
estariam abrindo novas possibilidades de se flanar pelas cidades? Um outro tipo de
mobilidade que tende a se re-orientar não apenas de um ponto fixo, mas através de
elementos portáteis móveis que recebem e fornecem informações mesmo em trânsito. E
mais, as viagens oferecidas pelo Google Earth através de imagens de satélites, por
exemplo, torna possível a vista aérea de uma série de cidades em partes diversas do
mundo, algumas, inclusive, já estão com boa parte de seus edifícios, ruas e viadutos
modelados em 3D. A partir de comandos muito simples, o usuário pode percorrer por
entre quadras e ruas, monitorando suas próprias visadas e ângulos de observação.
Aparentemente, ele está no controle.
Como já apontado por Paul Virilio, em “O espaço crítico”, as cidades sofrem efeitos de
uma economia multinacional, provocando transformações não apenas em seus tecidos
urbanos, mas nos acessos a essa cidade – zonas estéreis e não-estéreis, os lugares de
partida e de chegada. Um espaço construído que participa de uma topologia eletrônica,
“na qual o enquadramento do ponto de vista e a trama da imagem digital renovam a
noção de setor urbano” (VIRILIO, 1993, p.10). E nesse sentido, a arquitetura travará
relações com um espaço-tempo tecnológico, embora saibamos que não há um tempo
global ou um espaço global (SANTOS, 1997, p.268), mas um relógio global e alguns
espaços globalizados.
Sobre essas transformações mais voltadas ao tecido das cidades, Colin Rowe e Fred
Koetter, em Collage City (publicado em 1978) propõe o discurso da fragmentação na
geração de mecanismos da colagem recorrendo ao dualismo figura-fundo146 como
instrumento de análise acerca das localizações das arquiteturas no espaço urbano e
percebem uma certa inversão entre espaço livre e espaço construído na “cidade da
arquitetura moderna”. E disparam ironicamente: “(...) talvez devêssemos ter mais
rupturas; quem sabe abraçando esperançosamente a tecnologia. Hoje, devemos nos
preparar para uma espécie de surfe computadorizado sobre e por entre as marés do
tempo hegeliano em direção a um possível porto supremo de emancipação”.
146
O método figura-fundo é verificado nas modificações ocorridas entre a cidade tradicional (predomínio do
fundo preto – referente a massa construída; figuras rarefeitas – vazio das ruas, praças, passagens, pátios, espaços
públicos) e o despertar da cidade moderna (predomínio de um fundo branco, referente aos espaços verdes e
circulações; figuras pretas – edifícios isolados). Esse exercício é realizado em função das transformações urbanas
ocorridas em Roma e são expostas nas análises dos mapas dessa cidade, portanto não pode ser utilizado como
um modelo genérico. Se visualizarmos, por exemplo, as favelas das cidades brasileiras, verificaremos que seu
traçado ainda é medieval em pleno séc. XXI. Arquitetos como James Stirling, Hans Hollein e Arata Isozaki irão
se abrigar da fragmentação, tendo como mote o uso da figura sobre fundo em seus processos projetuais.
199
O estúdio de arquitetura NOX (leia-se Lars Spuybroek) é conhecido pelo seu projeto para
o Pavilhão da Água (H2O Pavilion), na Holanda. Uma arquitetura líquida, fluida, que não é
voltada para a representação, mas que abarca os fluxos humanos e a experiência do
movimento - uma proposta espacial de imersão feita de sons, tato, luz, como uma trama
sensorial. Se nos reportamos ao processo de estudos para a construção do D-tower, na
Holanda (em colaboração com o artista Q. S. Serafim), veremos que o caminho de
elaboração dessa obra de arte se inicia numa perfeita superfície esférica que vai
pulsando, inflando, sofrendo tensões, e se transformando em pleno espaço de modelação
virtual, até ganhar vida no ambiente real. Eles, então, materializam um modelo analógico
a partir desses estudos digitais; esse modelo sofre várias ações: o volume é estudado a
partir da estrutura de um balão, com seus fios de ligação, seus esforços e suas
flutuações; depois sofre outras ações físicas (distensões, alongamentos, bifurcações) tais
quais as malhas estruturais idealizadas por Frei-Otto (SPUYBROEK, 2004 p.352), até ser
submetido à ação da gravidade, influenciado pelos modelos suspensos elaborados por
Gaudí, tendo como inspiração o esquema de forças da arquitetura gótica. Lars e Serafim
re-encaminham essas influências para o ambiente virtual e começam a analisar a
dinâmica dessas forças, estudadas a partir do seu próprio empuxo. A forma, então, vai
se transformando novamente, criando-se torções em suas linhas de superfícies. Ao final,
nos deparamos com uma super escultura de fibra de vidro laminada e opaca, capaz de
provocar sensações em plena praça pública da cidade de Doetinchem. À noite, através de
201
sensores de fibra ótica, a escultura assume cores diversas que são manipuladas a partir
da interatividade com o visitante.
Processo híbrido e
experimentações
similares à versão
da Son-O-House do
NOX e modelação
da escultura final,
que será executada
em fibra de vidro.
construído pela Enterprise Group aos custos de 410.000 euros. Os processos do NOX
transitam entre produções híbridas, apoiadas na tecnologia, nas instalações midiáticas e
nas interfaces digitais, mas também nos aspectos sensoriais que não estão restritas ao
ciberespaço e apontam para um cruzamento da criação arquitetônica em sintonia com
outros campos da vida.
Processo híbrido do NOX (Lars Spuybroek + Edwin van der Heide) – das dobras de papel, passando pela
modelação virtual até a materialização da Son-O-house (2000-2004), na Holanda. Fontes: SPUYBROEK (2004);
ARCHITECTURE NOW (2004).
Por mais que exista um mundo virtual e um mundo real, sempre reencontramos a
matéria. Para Virilio (2005) a arquitetura é um revestimento dos corpos, sejam em suas
complexidades materiais ou espirituais, e não um vestido “descartável”. É que existe
uma nova geração de arquitetos que têm trabalhado com imagens virtuais e dinâmicas
em função das possibilidades espaciais ilimitadas e dos rompimentos com as categorias
cartesianas de representação, ocasionadas pela capacidade de assimilação do virtual,
suas interfaces e ferramentas. Porém, há de se ter cuidado com esse mar de ilusões; a
contração do espaço-tempo, por exemplo, pode ser considerado um progresso, mas
também pode ser considerado catastrófico. Virilio se reporta aos estudos de Foucault
sobre os manicômios do século XVIII e a questão do claustro, da vigília, e a sensação de
aprisionamento, de confinamento (sociedades disciplinares)147. Pois bem, o mundo,
então, estaria se tornando pequeno – “a sensação de aprisionamento torna-se coletivo,
com uma claustrofobia nascente nos jovens que viram já tudo antes de ser visto. (...) A
vastidão do mundo fez aquilo que somos, assim como os materiais do mundo fizeram
147
Ver capítulo II – “Sociedade de controle e o princípio da indeterminação”.
203
Mais uma vez, Guattari (1992, p.112) nos faz um alerta: chegará o tempo em que o
teclado digital irá desaparecer. Uma era pós-mídia e de um retorno maquínico da
oralidade. Será através da fala que o diálogo com as máquinas poderá se instaurar. Não
apenas as máquinas técnicas, mas as máquinas de sensação, de pensamento... talvez
possamos começar a pensar numa espécie de “maquinaria tecnológica digital”.
Parafraseando Roland Barthes – “o prazer não se rende assim tão facilmente à análise”,
embora queiramos quantificar e qualificar tudo, até mesmo as emoções.
204
(...) para Baudelaire nenhuma beleza seria possível sem a intervenção de algo
acidental... Só será belo o que sugere a existência de uma ordem ideal, ‘supra-
terrestre’, harmoniosa, lógica, mas que possui ao mesmo tempo, como a tara de
um pecado original, a gota de veneno, uma pitada de incoerência, um grão de
areia que desvia todo sistema.
Michel Leiris
205
Ao final desse exaustivo e intenso trabalho, já sendo “uma outra”, lembro-me de uma
frase de Foucault: “Não adianta dizer o que se vê; o que se vê não habita jamais no que
se diz”. As palavras e as coisas, as formas de conteúdo e as formas de expressão dos
processos e arquiteturas analisados nem sempre se correspondem, mesmo que
possamos construir os mais poéticos discursos sobre aquilo que somos afetados, mesmo
que alguns autores até tentem simular os seus próprios caminhos e processos, explicá-
los, revelá-los, até justificá-los. De alguma maneira existe uma dimensão transversa,
linhas de fuga e perceptos que não residem nas relações significante X significado. E é
nesse sentido que o caminho, o percurso de um projeto, e não exatamente o produto
final, pode ser exercido enquanto crítica. Portanto, a arquitetura (ou arquiteturas) passa
a ser entendida enquanto os próprios processos que as transformam.
148
Pesquisa piloto intitulada “Edifícios pluridomiciliares – uma avaliação pós-ocupação”, sob nossa
coordenação, onde contamos com a consultoria de um psicólogo na realização da avaliação junto aos moradores
- usuários. Esse trabalho foi realizado em 2006 através do Programa Competir – Desenvolvimento de economias
regionais do nordeste do Brasil – uma parceria do SENAI-BA e GTZ (Alemanha), tendo como objeto dois
blocos de apartamentos de um condomínio localizado no bairro do Stiep, em Salvador, contendo 120 unidades
habitacionais com cerca de 600 moradores em uma área de 4.000,00 m2.
149
O apartamento compreende: living, varanda, 02 quartos, uma suíte (quarto + sanitário), um sanitário social,
cozinha, área de serviço e banheiro de serviço.
207
Há quem diga que saber desenhar é inútil, pois o capital desenha as suas próprias
plantas. Mas a cidade continua sendo a sede dos conflitos sociais, revoltas e de
resistências, onde as desigualdades acontecem ali, no próprio bairro, nas malhas
urbanas, na vizinhança. É o catador de lixo que percorre as ruas da cidade, o mendigo
que dorme sob as marquises dos pequenos comércios de bairro, as crianças que
solicitam qualquer ajuda nas sinaleiras de trânsito ou nos supermercados, os sem-teto
que ocupam prédios devolutos, é a favela que cresce aos arredores dos condomínios de
luxo. E eis que surge um tempo no qual fatores ético-políticos tornam-se cada vez mais
relevantes. E eis que é preciso experimentar um novo urbanismo. Guattari (1992, p.175)
coloca: “Em essência, o objeto urbano é de uma complexidade muito grande e exige ser
abordado com as metodologias apropriadas à complexidade. A experimentação social
visa espécies particulares de ‘atratores estranhos’, comparáveis aos da física dos
processos caóticos. Uma ordem objetiva ‘mutante’ pode nascer do caos atual de nossas
cidades e também uma nova poesia, uma nova arte de viver”. E complementa: “Os
coeficientes de liberdade criadora que o projeto possui são chamados a representar um
papel essencial no trabalho do arquiteto e do urbanista”.
Ou seja, somos sutilmente convocados a buscar uma outra perspectiva estética e ética, a
pensar a transformação das cidades em função das gerações futuras – em mutações
virtuais – no sentido de não deixá-las engessadas e sedentárias, a multiplicar as
dimensões dos processos de recriação. Um arquiteto polifônico que se permite navegar
por entre explorações das formações coletivas do inconsciente (GUATTARI, 1992, p.177).
Uma cartografia multidimensional.
Podemos apontar três pontos para reflexão: a nossa visão de mundo – que envolve
perceptos e saberes (experiência empírica) e novos conceitos, portanto pressupõe uma
209
Se há saídas desse labirinto eu não sei. As saídas podem estar escritas nas entrelinhas,
ou sutilmente apontadas enquanto caminhos, possibilidades, coexistências. Não é
objetivo desse trabalho apontar saídas ou determinar regras - as regras de qualquer
disciplina (se é que existem) não regulamentam a experiência ou o modo de apresentá-la
- mas possíveis linhas de fuga, plataformas abertas e provocações.
150
Não nos propomos aqui discutir ou conceituar a ética do ponto de vista epistemológico. No entanto, do ponto
de vista da antropologia, um posicionamento ético diante de um mundo de condições e valores tão banalizados,
invertidos e, poderíamos até dizer, apodrecidos, a conduta humana estaria muito além do bem e do mal. Um
posicionamento ético se relaciona com princípios, posturas e juízos de valores que, muitas vezes, não
correspondem àqueles que vigoram na sociedade.
210
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