Revista Brasileira 29
Revista Brasileira 29
Revista Brasileira 29
N 29
o
Fase VII Outubro-Novembro-Dezembro 2001 Ano VIII
Dir e to r i a : Diretor:
Tarcísio Padilha – presidente João de Scantimburgo
Alberto da Costa e Silva – secretário-geral
Lygia Fagundes Telles – primeira-secretária C onselho Edi tori al:
Carlos Heitor Cony – segundo-secretário Miguel Reale, Carlos Nejar,
Ivan Junqueira – tesoureiro Arnaldo Niskier, Oscar Dias Corrêa
Centenário de
Murilo Mendes
E d it o r ia l
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Edi to ri al
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Pretexto para louvar
Murilo Mendes
J o su é M o nt e l l o
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Jo su é Mo ntello
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Pretexto para lo u var Mu ri lo M e n de s
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.
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Jo su é Mo ntello
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Pretexto para lo u var Mu ri lo M e n de s
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Jo su é Mo ntello
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Compreensão de
Murilo Mendes
M assa u d M o is é s
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Massau d Mo i sés
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C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s
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Massau d Mo i sés
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C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s
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Massau d Mo i sés
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C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s
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Massau d Mo i sés
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C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s
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O polimorfo
Murilo Mendes
Fá b io L u c a s
O poeta insólito
Doutor em Economia
Tomemos a carreira literária de Murilo Mendes na perspectiva Política e História
das Doutrinas
do insólito, dados os seus gestos e concepções desacostumados. Não Econômicas, Fábio
somente na literatura, como também na apreensão e crítica do balé, Lucas se especializou
da música, do cinema e das artes plásticas. Seu campo de percepção em Teoria da
Literatura.
do fenômeno estético apresenta o mais amplo espectro, talvez o É professor, ensaísta
mais aberto entre os modernistas, não fora a forte predisposição de e crítico literário.
Mário de Andrade a abarcar todas as manifestações do campo artís- Tem inúmeros livros
publicados, entre os
tico. Fiquemos, todavia, no Murilo Mendes poeta e prosador. quais Temas literários e
Estas reflexões constituem variante e extensão da obra que prepa- juízos críticos (1963), Do
ramos para comemorar o centenário do poeta de Juiz de Fora, Murilo barroco ao moderno e
Crepúsculo dos símbolos:
Mendes, poeta e prosador (São Paulo, Educ, 2001). Desejamos assinalar, reflexões sobre o livro no
antes de mais nada, o lado heterodoxo com que Murilo Mendes Brasil (1989) e
abraçou suas causas literárias, embora, nos fundamentos de sua visão colabora em
periódicos
de mundo ficassem fronteiras que ele jamais cruzaria. Exemplo: sua especializados.
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Fábi o Lu c as
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O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s
Poeta e prosador
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Fábi o Lu c as
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O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s
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Fábi o Lu c as
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O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s
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Fábi o Lu c as
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O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s
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Fábi o Lu c as
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O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s
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Fábi o Lu c as
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Aí está o Murilo Mendes de Transistor, título original, com a sua
carga simultânea de modernidade e ironia. Certa vez, em Princeton,
EUA, onde estivemos exilado em 1971, convivemos com o físico
brasileiro Jaime Tiomno, igualmente exilado, que lá chegara para in-
tegrar uma equipe que estudava os “buracos negros”. Em certa oca-
sião ele explicou-nos a razão pela qual a então URSS perdera a cor-
rida espacial para os Estados Unidos. É que o Partido Comunista,
intrometendo-se na Ciência, vetara o uso de transistores na fabrica-
ção dos computadores por serem “material burguês”. E os russos
trabalhavam com computadores de várias toneladas, pesados demais
para as aventuras espaciais. O nosso Murilo Mendes, diversamente,
usou a leveza da prosa contida, aguda e agressiva, para elaborar os
textos do seu Transistor, variante da poesia polifacetada, anarco-
surreal, com que declarava o amor às artes, o primado do espírito, o
protesto engajado, o grito anti-fascista e o culto de Eros, ora abrin-
do-se ao sublime, ora mergulhado no grotesco. Espécie de loucura
dirigida ou de pragmatismo inconsciente. O certo é que o enigma
deste mundo ganhou, com a obra de Murilo Mendes, um extenso e
extraordinário desdobramento na linha do esplendor e da cintilação.
Sua prosa lembra um poliedro, assim como a poesia se assemelha a
uma fotomontagem.
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Ismael Nery, Auto-retrato – c. 1930
Óleo s/madeira – 62 x 47,5 cm
Coleção Gilberto Chateaubriand –
MAM RJ
Poesia e prosa de Murilo
Mendes: Exemplos
Poemas de O visionário
A Mulher do Deserto
A mulher de areia
Penteia os cabelos de folhas de palmeira,
Estende as mãos de cardo
Pedindo água,
Depois descansa as mãos de cardo
Na humildade da pedra.
A mulher do deserto
Pensa nos seus amores infelizes,
Pensa nos seus amores
Que se evaporam quando o sol nasceu.
Depois não pode mais pensar
Porque o tempo é pouco para pedir água.
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Fábi o Lu c as
A Filha do Caos
O rio da noite banha
O alicerce das tuas pernas;
Andam brutos e assobios
Na curva, pra te cercarem;
Levanta o arco do corpo,
Sacode a aura sublime
Dos teus sovacos molhados,
Muda o rumo das estátuas,
Manda a criação se deitar...
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Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s
A fremência do cavalo
E o cheiro... que nenhuma tem;
Negra floresta, profunda,
Adormece em teus pentelhos;
Assisto em ti à alvorada,
À tempestade e ao crepúsculo,
Ao movimento e ao repouso...
Que nem Deus terá coragem
De penetrar em teus sonhos!
Cuspirás no meu cadáver,
Do cuspo saem rajadas
De granizo, que destroem
Este mundo e a Criação.
De A poesia em pânico
Conhecimento
A marcha das constelações me segue até no lodo.
Estendo os braços para separar os tempos
E indico ao navio de poetas o caminho do pânico.
Quem sou eu? A sombra ambulante de meus pais até o primeiro
homem,
Quem sou eu? Um cérebro deixado em pasto aos bichos,
Sou a fome de mim mesmo e de todos,
Sou o alimento dos outros,
Sou o bem encarcerado e o mal que não germina.
Sou a própria esfinge que me devora.
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Fábi o Lu c as
Viver Morrendo
Eu preciso da paciência dos prisioneiros
Que há vinte anos olham o azul através das grades.
Preciso da esperança de Maria
Sentindo no seio a germinação do Salvador do mundo.
Preciso me revestir da estabilidade da pedra
Para ver o movimento imóvel, o deserto sem cardo...
O Átomo
Agasalha-me à sombra do teu corpo.
Aninha-me entre teus seios,
Aquece-me no calor do teu ventre.
Coisa ínfima, quero ficar perto de ti:
Pássaro que fugiu da tempestade.
De As metamorfoses
1999
Estrelas em fragmentos rolarão sobre mim.
Retratos de belas dançarinas serão levados pelo vento
Até a cova rasa em que descanso.
Ninguém pode morrer, que a flor não deixa,
A sombra da árvore não deixa, a pedra e a cruz não deixam.
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Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s
A Dama Branca
Ei-la que surge, taciturna,
Anunciada pelos grandes candelabros que se tocam.
Soam tambores nas nuvens,
Cruzam-se mortos no céu.
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Fábi o Lu c as
De Mundo enigma
Poema Barroco
Os cavalos da aurora derrubando pianos
Avançaram furiosamente pelas portas da noite.
Dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,
Dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.
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Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s
De Poesia liberdade
Ofício Humano
As harpas da manhã vibram suaves e róseas.
O poeta abre seu arquivo – o mundo –
E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejam reajustadas na unidade.
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Fábi o Lu c as
De Tempo espanhol
Numancia
Prefigurando Guernica
E a resistência espanhola,
As Carpideiras
(Pinturas do Sepulcro de Don Sancho Saiz
Carrillo. 1300. Museu de Arte Antiga, Barcelona)
Altas e agudas flechas espanholas.
Não chorais agora apenas
O cavaleiro estendido no chão:
Chorais árida Espanha abatida.
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Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s
Mulheres contidas
Que uma plástica esquemática
Ordena em rigor: de Espanha
Lamentais a vida abatida.
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Fábi o Lu c as
Graciliano Ramos
Encontrei muitas vezes Graciliano Ramos. Admirava natural-
mente o escritor pela severidade e precisão do estilo, seu dom cria-
dor de personagens concretos, sua denúncia das falsas estruturas so-
ciais, estimando também o homem pela independência e franqueza
de suas polêmicas atitudes, embora às vezes temperamentais ou de-
sagradáveis. Segundo tentei defini-lo num página do meu livro Con-
vergência, era
Brabo. Olho-faca. Difícil.
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Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s
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Fábi o Lu c as
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Em torno de um poema
de Murilo Mendes
N elso n S a l d a nh a
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Nelso n Saldanha
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Em torno de u m po ema de Mu ri lo M e n de s
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Nelso n Saldanha
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Em torno de u m po ema de Mu ri lo M e n de s
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Disco de Faístos, Creta
Museu do Louvre, Paris
Datado do século XVII a.C.
São 45 signos representando figuras de animais e objetos da vida cotidiana.
Supõe-se que a leitura comece da borda para o centro.
Diretrizes do
culturalismo
Miguel Reale
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Mi gu el Reale
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Di retri zes do c u ltu r a l i s m o
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Mi gu el Reale
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Di retri zes do c u ltu r a l i s m o
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Mi gu el Reale
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Di retri zes do c u ltu r a l i s m o
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Mi gu el Reale
ele denominou a priori material, dando, desse modo, valor tanto ao su-
jeito que conhece quanto ao objeto conhecido. Dado esse passo, foi
possível a Max Scheler e Nicolai Hartmann reintroduzir a ética no
mundo do conhecimento e da cultura, ao mesmo tempo que os re-
novados estudos sobre o valor (axiologia), a partir das últimas déca-
das do século XIX, permitiram que ele fosse o elemento mediador
entre natureza e cultura, ou, como prefiro dizer, entre o que é e o que
deve ser, iluminando o sentido a ser dado ao objeto cultural, que “é en-
quanto deve ser”. Nem se pode esquecer que se deve a Bergson a fa-
çanha de desvincular a liberdade dos nexos causais da natureza, sem o
que não teria sido possível reconhecer-se a autonomia da cultura.
Lembrado, nesse breve escorço histórico, como veio se delinean-
do o culturalismo – que, no Brasil, teve como precursor Tobias Barre-
to ao correlacionar Kant com o antropólogo Hermann Post e o ju-
rista Jhering – cabe-me observar que, segundo minhas últimas medi-
tações, há um terceiro a priori a considerar, o relativo às condições
existenciais da correlação sujeito/objeto no plano do conheci-
mento: é o a priori cultural, transcendentalmente inerente ao ato de co-
nhecer. Em verdade, a cultura não é algo que vem depois – como ge-
ralmente se pensa – mas é coeva e concomitante com o surgimento
do ser humano na face da Terra, como o comprovam seus instru-
mentos e desenhos encontrados nas cavernas primitivas. Essa proje-
ção da cultura à origem do homem altera radicalmente a problemáti-
ca do culturalismo, podendo-se afirmar que a cultura é “a objetiviza-
ção das intencionalidades humanas ao longo da história”, a partir da
noção de que “conhecer é conhecer algo no mundo”.
Husserl, com o seu conceito de Lebenswelt (mundo da vida) distinto do
mundo dotado de categorias cognoscitivas, tal como, por exemplo, o
mundo da ciência – abre caminho à admissão de um a priori cultural. É
que o Lebenswelt não representa uma fase anterior da evolução histórica,
mas constitui uma realidade perene, a qual coexiste com o mundo su-
jeito a diversas formas de categorização resultantes do poder nomoté-
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Di retri zes do c u ltu r a l i s m o
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O santo D. Eugênio
Ar n al d o N is k ie r
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A rnaldo Ni ski er
A luz da religião
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O santo D. E u g ê n i o
É por isso mesmo que ela não pode se ausentar da escola, inde-
pendentemente da crença dos jovens estudantes: “Para que de
forma completa a Educação possa assegurar o futuro da socieda-
de, pois são fundamentais os valores morais ministrados adequa-
damente.”
A conversa, coordenada pelo professor Sérgio Pereira da Silva, foi
concluída com o comentário de D. Eugênio, depois de solicitar que
a Educação fosse incluída entre as prioridades do País: “Ela encerra
algo intrínseco à natureza do homem. Procura dar resposta às inter-
rogações que norteiam nossas atividades por toda parte.” Daí a ne-
cessidade do ensino religioso nas escolas.
Rádio Catedral
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A rnaldo Ni ski er
O Papa no Sumaré
Penso que vale ainda uma reflexão sobre o nosso primeiro encon-
tro com o Papa João Paulo II, no Centro de Estudos do Sumaré, em
1981. Eram aproximadamente 100 intelectuais, como pediu a D.
Eugênio o Sumo Pontífice, e a sessão onde falaria o acadêmico
Alceu Amoroso Lima se iniciou com um passeio do Papa, ao lado
do inesquecível professor Carlos Chagas Filho, para apertar a mão
de cada presente. D. Eugênio, sorrindo sempre, vinha logo atrás.
Quando chegou a minha vez, disse o professor Carlos Chagas:
“Eminência, este é o Secretário de Educação do Rio de Janeiro, pro-
fessor Arnaldo Niskier.” O Papa apertou delicadamente a minha
mão e disse: “Muito prazer.”
Mas D. Marcos Barbosa, de saudosa memória, que se encontrava
ao meu lado, aduziu rapidamente: “Ele é filho de poloneses.” O
Papa voltou um passo, me olhou de alto a baixo, e acrescentou, aper-
tando de novo a minha mão: “Muito bem.” Foi, confesso, um mo-
mento de grande emoção.
Chegando em casa, ainda muito feliz, e agradecido a D. Eugênio
Sales pela oportunidade, escrevi a crônica que ora transcrevo:
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O santo D. E u g ê n i o
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A rnaldo Ni ski er
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O santo D. E u g ê n i o
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Eça de Queirós e
Eduardo Prado
J o ão d e Sc a n t im b u r g o
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Jo ão de Sc anti mbu r g o
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Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do
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Jo ão de Sc anti mbu r g o
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Jo ão de Sc anti mbu r g o
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Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do
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Jo ão de Sc anti mbu r g o
Prado que Eça cultivou e por quem se ligou numa amizade sólida e,
mesmo, exaltada.
Eduardo era um estupendo exemplar da tradição viva e atuante.
Não se tratava de um desses mitos que se adoram inconscientemen-
te, mas de convicção firme de quem aceitava, nesse princípio, a via
certa para manter coesa a nação e projetá-la no tempo e no espaço,
portanto na História, mas com a sua personalidade soberanamente
assegurada. Eça admirou o amigo querido por ter com ele profunda
afinidade espiritual, profunda simpatia, no sentido atrás referido.
Eça vinha sofrendo com a devastação política, que tanto abalava
Portugal, e Eduardo, com o que abalava o Brasil, ambos, portanto,
identificados na mesma paixão, queimando no fogo do mesmo pa-
triotismo. Só se admira por identificação. Não se admiram os con-
trários. O belo ensaio, dedicado por Eça a Antero de Quental, inspi-
rou-se na mesma fonte. O grande e angustiado poeta, um dos maio-
res em qualquer língua, desafiou Deus, de relógio na mão – atitude
pueril e perdoável num desesperado –, mas era um desses estupen-
dos exemplares que a civilização portuguesa gerou, para a adesão en-
tusiástica de quem o conheceu. Antero foi, a rigor, um místico leigo,
ou um místico falhado. Daí não ter encontrado outra resposta para a
sua ansiedade em face dos pecados do mundo, senão se entregando à
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Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do
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Eduardo
Prado, Fastos
da ditadura
militar no Brasil.
São Paulo,
Livraria
Magalhães,
1923, passim.
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João Guimarães Rosa e os pais, Dona Chiquitinha e Florduardo, quando
os visitou em Belo Horizonte, pouco antes de falecer – 1966.
João Guimarães Rosa
Car lo s H e it o r C o n y
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C arlo s Hei to r C on y
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Jo ão Gu i marãe s Ro s a
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Jo ão Gu i marãe s Ro s a
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C arlo s Hei to r C on y
alma ao demônio para obter a música desejada, tal como o seu ante-
passado goethiano vendera a alma para recuperar a mocidade. “O ja-
gunço Riobaldo e o compositor Leverkuhen – analisa um crítico –
têm, cada qual a seu modo, uma tarefa a cumprir, tarefa que está além
de suas capacidades. É preciso, então, convocar a energia obscura por
meio do pacto diabólico.” Conquistado o grande fim (a morte do
bandido Hermógenes para Riobaldo, a criação da grande música para
Leverkuhen), os dois personagens se retiram para uma espécie de apo-
sentadoria sinistra: o compositor, minado pela sífilis, torna-se idiota.
Riobaldo, depois de graves doenças e delírios, transforma-se num cai-
pira pensativo e estéril. Em ambos os casos, a narração é feita de me-
mória, depois de decorridos alguns anos dos fatos principais.
Thomas Mann e Guimarães Rosa eram, acima de tudo, homens
eruditos, dois humanistas no sentido pleno e nobre da palavra. Eles
espremeriam dentro de suas histórias, por mais banais que parecessem,
a carga cultural que os condicionava. Daí, muita gente tirou suas con-
clusões a respeito do Dr. Faustus e o regime nazista. E pelo mesmo pro-
cesso muitos leitores e críticos enxergaram na obra de Guimarães
Rosa uma ontologia, uma metafísica e até mesmo uma teologia. O
certo é que o romance de Rosa guarda todas as proporções de uma
epopéia medieval – e o próprio Sertão que serve de cenário, sujeito e
predicado da ação, é uma ilha medieval cravada no imenso corpo do
Brasil. O livro, assim, entendido, resulta numa canção de gesta, onde o
trovador (o ex-jagunço Riobaldo) narra ou canta – para um presumí-
vel ouvinte – “a sua vida de aventura, tendo como leit-motiv o seu amor
impossível por Diadorim e a sua ânsia do absoluto”.
Guimarães Rosa não chegou, como querem alguns, a criar uma
língua realmente nova, embora tenha empregado uma linguagem cri-
ada para ele. Quem está habituado a ler os clássicos, sobretudo os
quinhentistas, identifica o filão que abastece a sua prosa. Lembre-
mos como exemplo um texto conhecido, o da carta de Pero Vaz Ca-
minha: “Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa von-
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Jo ão Gu i marãe s Ro s a
tade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, a que
não há de pôr mais do que aquilo que eu vi e que me pareceu.” Se
procurarmos outros exemplos em Frei Luís de Sousa e Gil Vicente,
chegaremos à conclusão de que Guimarães Rosa revisitou, criativa-
mente, o português arcaico, do qual ainda existem resíduos, ilhas
isoladas no arquipélago de nossa linguagem oral.
Ao perseguir uma expressão antiga, ele chegaria a um processo
antigo de pesquisar a realidade: a anotação gráfica dos pormenores.
Evidente que a memória e, sobretudo, a imaginação dariam os ele-
mentos demarcatórios de sua ficção. Mas o seu amor à verdade física
dos fatos levou-o ao mesmo processo adotado por tantos outros, in-
clusive por Zola: tirar o caderninho do bolso e registrar tudo. Gui-
marães Rosa anotava uma palavra que ouvia, tomava apontamentos
para descrever naturalisticamente uma planta ou um animal.
Zola, para fazer Bonheur des dames, gastou cinco cadernos anotando
nomes de tecidos, variações de tafetás, tipos de seda. E seu amor aos
detalhes fez com que empanturrasse 200 páginas para descrever um
jardim em La faute de l’Abbé Mouret.
Guimarães Rosa não fez por menos, por exemplo, ao relacionar
os nomes pelos quais o Demônio é mencionado no sertão: “O Arre-
negado, o Cão, o Sujo, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o
Pé-de-Pato, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o
Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o
Tristonho, o Não-Sei-Que-Diga, o Que-Nunca-Se-Ri, o Rapaz, o
Sem-Gracejos...
A seqüência de tantos nomes pitorescos não deixa de lembrar a
célebre passagem de outro clássico, Rui Barbosa, que conseguiu ali-
nhar uma dezena de nomes e expressões que significavam, simples-
mente, prostituta.
De certa forma, Guimarães Rosa tornou-se um autor oficial e ofi-
cializado. Nem assim perdeu o genial contorno que faz de sua obra
um monumento de nossa língua, território glorioso de nossa cultura.
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José Lins do Rego, de Portinari, 1939
Óleo s/tela, 73,4 x 60,2 cm
Acervo da ABL.
José Lins do Rego:
cem anos
M u r i lo M e l o Fil h o
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Mu ri lo Melo Fi lho
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Jo sé Li ns do Rego : ce m a n o s
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Mu ri lo Melo Fi lho
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Jo sé Li ns do Rego : ce m a n o s
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Mu ri lo Melo Fi lho
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Jo sé Li ns do Rego : ce m a n o s
epiléptico, embora José Lins não tenha usado uma só vez, nesse tex-
to, a palavra epilepsia.
Mas, além desses dois personagens, persistem até o fim do livro
uma curiosidade e uma incógnita, que em parte lembram a obra ma-
chadiana, no Dom Casmurro, com o mistério sobre a traição de Capi-
tu: a curiosidade e a incógnita de sabermos se o Mestre Zé Amaro –
que, mesmo protegido pelo Capitão Antonio Silvino, termina se sui-
cidando no final – foi ou não foi um lobisomem.
Misterioso ou não, a verdade é que esse foi José Lins do Rego Ca-
valcanti, que no dia 3 de junho de 2001, um domingo, foi lembrado
pelos seus conterrâneos com grandes e comoventes homenagens na
sua Paraíba.
Ele nos legou, ao fim dos escassos e efêmeros 56 anos de vida, a
imagem de um escritor espontâneo, emocional, simpático, bem-
humorado, rústico, franco, sarcástico, quase excêntrico, sem papas
na língua, e que foi também um incomparável arquiteto de roman-
ces, um exímio construtor de enredos, um modelar arquétipo de dra-
mas, um inteligente compositor de diálogos, um engenhoso mágico
de trovas e um admirável narrador de histórias.
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Louis Pasteur
(1822-1895)
Dom Pedro II e o
médico sem diploma
Car lo s A . L e it e
E o
stá sendo comemorado o 105 ano da morte de Louis Pas-
teur, a quem a humanidade rende os tributos de admiração e
gratidão pela pioneira e incomensurável contribuição no tratamento
Aluno do
Instituto Pasteur,
de Paris. Doutor
Honoris Causa da
da raiva. Nascido em Dôle, no dia 27 de dezembro de 1822, Pasteur UNIG.
cresceu em Arbois, onde seu pai tinha uma indústria de curtume. Em
1848 foi nomeado professor de Física no Liceu de Dijon, onde fi-
cou por pouco tempo, por não encontrar facilidades laboratoriais
para desenvolver suas pesquisas. Já no ano seguinte conheceu a filha
do reitor da Academia de Estrasburgo, Mademoiselle Marie Lau-
rent, com quem se casou, dela recebendo companheirismo e dedica-
ção por mais de 45 anos.
Sua carreira de pesquisador com a tranqüilidade doméstica come-
ça então a ganhar etapas rapidamente. Em 1857, ao ser nomeado di-
retor de estudos científicos da Escola Normal Superior, inicia uma
série de pesquisas que por 31 anos lhe iriam dar lugar de preeminên-
cia na vida pública e na comunidade científica internacional.
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C arlo s A . Lei te
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Do m Pedro II e o médi c o sem di p l o m a
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C arlo s A . Lei te
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Do m Pedro II e o médi c o sem di p l o m a
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Pessoa: personagens
e poesia
M i lt o n V a r g a s
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Mi lto n Vargas
do... Seria fácil enumerar dez grandes poetas que emprestaram, para-
doxalmente, à época do triunfo da tecnologia e das guerras mundiais,
uma atmosfera poética comparável à dos períodos mais criativos da
história. Ora, esses poetas, de um modo ou de outro, mostraram sua
filiação ao Simbolismo e a melhor crítica de poesia que se fez então
também adotou o ponto de vista do símbolo.
Depois disso, a fonte de criatividade poética parece vir se extin-
guindo. Depois do esplendor dos anos 20 a 40, fulgurou ainda a
chama de um St. John-Perse e o fogo lentamente se apagou. Mas este
fenômeno talvez seja aparente, pois é possível que a crítica agora do-
minante, tanto a analítico-informática, quanto a de origem marxista,
tenham sido incapazes de identificar uma nova poesia de grande va-
lor. As correntes críticas citadas partem do princípio de que a poesia
é tão-somente produção de uma pessoa: o poeta. Se a poesia, porém,
emerge do símbolo (o que se subentende no pensamento simbólico)
e o símbolo não é um produto pessoal, deve-se concluir que a poesia
transcende a instância meramente individual. É verdade que o mo-
mento poético eclode na mente do poeta, mas mesmo assim pode
não ser produzido por ele, como pessoa. Lembremos a esse respeito
o inconsciente coletivo, na conceituação de Jung, como fonte possí-
vel da fantasia criadora. Ele não é meu, não é teu, nem foi produzido
por alguém. Em suas camadas mais profundas, nem mesmo se pode
dizer que pertença à humanidade, pois suas raízes mergulham na an-
cestralidade telúrica do orgânico, atingindo abismos insondáveis,
que podem ser assimilados ao que sempre se chamou de divino. Une
a ordem urânica dos céus e as profundidades da terra com o mundo
e os homens. Põe o homem dentro de uma realidade que ao mesmo
tempo é dele e o ultrapassa.
A idéia romântica e pré-simbolista da poesia como verdade já a
retira do contexto de produto do poeta. Para Heidegger, a obra de
arte é uma coisa feita pelo homem, mas não é isto que a estabelece
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mitos, fatos e atos, diz respeito não à psicologia do autor, mas à psi-
cologia coletiva. No primeiro caso, há uma fabulação consciente do
autor; no segundo, irrompem forças do psiquismo, que escapam ao
controle do criador. Trata-se de estratos do inconsciente coletivo –
que forma o embasamento inconsciente de toda a psique humana,
espécie de repositório de toda a experiência da humanidade. Como
exemplos desses dois tipos de obra literária, Jung cita as duas partes
do Fausto, de Goethe. Na primeira, trata-se do relato claro e consci-
ente do drama psicológico pessoal de Fausto e de Margarida. Na se-
gunda, já não se trata de Fausto, mas de todo o demonismo e desejo
de salvação inatos na alma humana. Em lugar de Margarida aparece
Helena e o Eterno Feminino.
É verdade, como diz Jung, que “a essência da obra de arte não é
constituída pelas particularidades pessoais que pesam sobre ela
(quanto mais numerosas forem as particularidades, menos se tra-
ta de arte). Pelo contrário, consiste no fato de elevar-se muito
acima do pessoal”. No entanto, o psiquismo do poeta é como a
crisálida onde se conforma o poema e, portanto, este, de algum
modo, mantém a forma mentis do poeta. Há aqui um paradoxo
que o próprio Jung indica ao afirmar: “Todo ser criador repre-
senta uma dualidade ou uma síntese de dualidades paradoxais;
por um lado, é homem e pessoal e, por outro, é um processo sem-
pre humano, mas impessoal.”
É inevitável, lendo esta frase, deixar de pensar na dualidade de
Fernando Pessoa como ortônimo e como seus três heterônimos.
Note-se bem que, segundo o próprio Pessoa, não se trata de alguém
cujo nome oficial é Fernando Pessoa e que assina alguns de seus poe-
mas construídos de modo peculiar, com pseudônimos correspon-
dentes. Trata-se de uma estrutura psicológica constituída por um
centro consciente – que se chama Fernando Pessoa – e de persona-
gens que, como nós de energia psíquica, irrompem no consciente,
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Mi lto n Vargas
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
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Mas não advertia talvez que sua missão, como poeta, era a de di-
zer o que ainda não fora dito: aquilo que se situa no limiar do inau-
dito. Mas efetivamente disse o que jamais fora dito; por exemplo:
Ricardo Reis
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Álvaro de Campos
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Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene,
..........................................................................................
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vem ter conosco ao crepúsculo, à janela
..........................................................................................
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos
Beija-nos silenciosamente na fronte
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
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Mi lto n Vargas
Eu vou cantar aquela que gerou homens e deuses, eu vou cantar a Noite.
A Noite é a fonte do universo, Cipris é também seu nome.
Ouve-nos, divindade bem-aventurada, cintilante de estrelas,
Negro Sol, que alegra e torna calmo o sono múltiplo.
Ó felicidade, ó deslumbramento, Rainha das vigílias, Mãe dos sonhos,
Ó Consoladora, que acalmas todas as misérias.
Ó adormentadora, Cavaleira, Luz negra, Amiga universal,
Ó Inacabada, que ora pertences ao céu, ora à terra:
Ó arredondada, que brincas com tenebrosos ímpetos,
Ó tu que expulsas a luz do reino dos mortos e a ele retornas.
A terrível Fatalidade é de todas as coisas a soberana!
Ó Noite bem-aventurada, fartura de delícias, ó universal ternura,
Escutando a voz que, súplice, te implora, possas, ó Indulgente,
Livrar-nos dos terrores que brilham na sombra
E ser-nos propícia.
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E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Atual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navega mais devagar.
Esses mares misteriosos, porque se sabia menos deles.
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Mi lto n Vargas
Deixem-me em paz!
Não tardo, que eu nunca tardo...
Enquanto tarda o abismo e o silêncio, quero estar sozinho!
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Pieter Bruegel, Provérbios flamengos, detalhe, 1559
Óleo sobre painel, 116,8 x 162,8 cm
Museu Estadual de Cultura da Prússia, Berlim
Ilustração de capa de Os viventes – poesia, de
Carlos Nejar. Rio de Janeiro, Record, 1999.
Os viventes
César Leal
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C ésar Leal
poderá viver sem a arte, mas não viveria bem. Mondrian não especu-
lou muito sobre esse aspecto, mas sua afirmativa não quer dizer que
a arte deixará de existir. O que ocorrerá é o término de uma atividade
que sempre existira desde que o homem aparecera na terra. Isso quer
dizer que a arte continuaria sua vida institucional, como fragmentos
da história do espírito: no Museu, na Ópera, na Biblioteca, onde to-
dos poderiam ver esculturas de Fídias ou Miguelângelo, quadros de
Leonardo ou de Picasso, ouvir composições de Bach ou de Beetho-
ven, ou ler poemas de Homero, Dante ou Shakespeare. Será que os
homens do futuro ficariam satisfeitos em viver nesse estranho uni-
verso da ‘arte realizada’, tal como vivemos no meio da Natureza?
Carlos Nejar, poeta que não demonstra nenhuma adoração aos
ídolos da era técnica, resiste à idéia de que a arte, em particular a po-
esia, venha a desaparecer. As linguagens criadas pela cultura são mo-
numentos, e os monumentos, ensina-nos Ernst Cassirer, costumam
‘durar’, pois não dependem de transmissibilidade hereditária. Daí
acreditar – assim pensava Eliot – que a cultura não se herda: con-
quista-se com muito esforço. E uma vez conquistada, não se deixa
hipnotizar, como ocorre com largos segmentos das massas humanas,
pela mídia sofisticada, repressiva, desidiosa que domina os moder-
nos meios de comunicação, a serviço de interesses políticos e da eco-
nomia de mercado.
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Os v i v e n te s
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C ésar Leal
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Os v i v e n te s
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C ésar Leal
É por essas e outras razões que devemos resistir, como faz Carlos
Nejar, às teses do fim da Arte, do fim da poesia. Como ele diz:
A casa ia ruindo
com o rigor dos anos
o ruído
rancoroso dos canos,
o ruído plangente
do sótão
e dos nomes.
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Além de mim,
Prosseguirão plantando.
Prosseguirão nogueiras e planetas.
E gerações.
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Caladas laranjas
junto ao sangue
a casa
murcha.
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Os v i v e n te s
Pode o coração
correr com a lua
e sair aos tropeções
da morte?
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Largo do Pelourinho, visto da Casa de Jorge Amado.
Nosso Dickens
J o sé Gu i lh er m e M e r q u io r
Não serão as ideologias por acaso a desgraça do nosso tempo? O pensa- Estudo
mento criador submergido, afogado pelas teorias, pelos conceitos dogmáticos, o publicado no
Jornal do Brasil,
avanço do homem travado por regras imutáveis? 10-8-82, e em
Jorge Amado, O Menino Grapiúna O elixir do
apocalipse. Rio,
Nova Fronteira,
1983, p.
178-181.
161
Jo sé Gu i lherme Me r q u i o r
canela levou uns bons vinte anos para alcançar um milhão de exem-
plares – tiragem entre nós espetacular, mas banal no mundo do ro-
mance em inglês, já que ao alcance da primeira edição de qualquer
Harold Robbins, Leon Uris ou Arthur Hailey, o tal de Aeroporto, Ho-
tel, Hospital, etc.; e somente agora, que ele caiu tanto de nível, de Gar-
cia Márquez, com essa lamentável Crônica de uma morte anunciada.
Não é, portanto, no seu uso que reside a robusta vocação popular
da obra amadiana: é antes na sua forma, conteúdo e mensagem (em-
prego de propósito essas duas últimas palavras, seqüestradas pela pe-
dantocracia formalista que usurpou o discurso crítico na atualida-
de). Mas aqui, o “caso” Jorge Amado é um mar de equívocos. Nosso
escritor duplamente mais popular, assim que purgou seus livros da
catequese política, viu-se confrontado com os catões da ideologia.
Quando Gabriela surgiu, o plantão da ortodoxia comunista conde-
nou-lhe a visão “amoral e carnavalesca” – visão, segundo o mesmo
censor, própria apenas das classes altas e marginais, como se a saga
de Mundinho, Nacib e sua saborosa cozinheira exprimisse tão-só a
ótica “decadente” da grã-finagem e do lumpemproletariado, indigna
da virtude proletária... Não admira que uma das nossas mediocrida-
des mais pretensiosas tenha considerado o livro uma encomenda
partidária, escrita pelo ex-staliniano autor dos Subterrâneos da liberdade
para bajular a política revisionista de Kruschev!
Quanto à crítica propriamente dita, se não engrossou tanto, nem
por isso deixou de brandir preconceitos. “Populismo literário”, di-
ziam os bem-pensantes do progressismo –, e torciam o nariz a tama-
nha fuga aos ditames do realismo crítico. São Lukács, invocado para
a canonização de Graciliano, servia para a excomunhão ritual do au-
tor de Jubiabá, no entanto publicado no mesmo fecundo triênio – o
meio dos anos 30 – que viu nascer São Bernardo e Angústia.
O que constrangia toda essa crítica, dona da verdade e senhora
do Sentido da História, era a irredutível constante “romântica”
162
No sso D i c k e n s
163
Jo sé Gu i lherme Me r q u i o r
164
No sso D i c k e n s
165
Igreja de Santa Efigênia, 1772
Ouro Preto, MG
Poemas
M u r il o M e n d e s
Canção do exílio
Minha terra tem macieiras da Califórnia O poeta Murilo
onde cantam gaturamos de Veneza. Mendes nasceu em
Os poetas da minha terra Juiz de Fora (MG),
em 13 de maio de
são pretos que vivem em torres de ametista, 1901, e faleceu em
os sargentos do exército são monistas, cubistas, Lisboa (Portugal),
os filósofos são polacos vendendo a prestações. em 15 de agosto de
1975. Algumas
A gente não pode dormir obras: Poemas
com os oradores e os pernilongos. (1930), Tempo e
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. eternidade (com Jorge
de Lima, 1935), As
Eu morro sufocado metamorfoses (1944),
em terra estrangeira. Mundo enigma
Nossas flores são mais bonitas (1945), Contemplação
de Ouro Preto
nossas frutas mais gostosas (1954), Poliedro
mas custam cem mil réis a dúzia. (1974), Ipotesi (ed.
italiana, 1978).
167
Mu ri lo Mendes
Quinze de novembro
Deodoro todo nos trinques
bate na porta de Dão Pedro Segundo.
– Seu imperadô, dê o fora
que nós queremos tomar conta desta bugiganga.
Mande vir os músicos.
O imperador bocejando responde
– Pois não meus filhos não se vexem
me deixem calçar as chinelas
podem entrar à vontade:
só peço que não me bulam nas obras completas de Vítor Hugo.
Cartão postal
Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
168
Poemas
A mãe-d’água só se preocupava
em tomar banhos asseadíssima
na piscina do sítio que não tinha chuveiro.
Noturno resumido
A noite suspende na bruta mão
que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprada no turco a prestações.
169
Mu ri lo Mendes
Xodó
O Cruzeiro do Sul não tira o pé do lugar
enquanto os dois namorados não descolam do portão.
As formas futuras esperam pacientemente no fundo dos corpos
porque eles evoluem em sentido vertical
misturando os cabelos e as respirações.
170
Poemas
Biografia do músico
O guri nasceu no morro aniquilado de sambas
bebeu leite condensado
soltou papagaio de tarde
aprendeu o nome de todos os donatários de capitania
esgotou os criouléus da Cidade Nova
bocejou anos e anos no Conservatório
não tirou medalha de ouro
coitado
porque não tinha pistolão
mais um astro que desponta no horizonte da arte nacional
botou sapato camuflagem terno de xadrez
casou com a filha do vendeiro da esquina
que parecia com Carlos Gomes
fez diversas músicas imitando o gorjeio dos pássaros
morreu vítima de pertinaz moléstia
que zombou dos recursos da ciência
ao enterro compareceram pessoas de destaque
citando palmas com sentidas dedicatórias
chegando no céu os anjinhos de calça larga e gravata borboleta
deram um concerto de ocarina onde figurava a oitava nota
e ele desmaiou de comoção.
Marinha
A esquadra não pôde seguir pros exercícios
porque estava nas vésperas do carnaval.
Os marinheiros caíram no parati
e nos braços roliços e cheirosos
de todas as mulatas que têm aí pela cidade.
171
Mu ri lo Mendes
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Poemas
A segunda,
Maria do Carmo,
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Mu ri lo Mendes
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Poemas
A sesta
O sol bate em chapa nas casas antigas.
O mar embalança,
rede mole sem corpo de mulata,
verde azul lilás verde outra vez.
As praias espreguiçam-se malandras,
é a hora das linhas repousantes.
Casamento
O violão entrou pela balalaica adentro
eta palavra difícil!
e saiu uma ninhada de sons povoando a floresta da noite,
pulando mexendo nos corpos brancos e morenos.
As cores se misturam
a foice e o martelo furam a Ordem e Progresso,
Lampião e Lenine calçados de botas vermelhas
tiram o sangue do mundo e voam no caminho dos astros.
175
Mu ri lo Mendes
Os cemitérios do ar esquentam
com o fogo saído dos sonhos da vizinha
rebolando no nariz do poeta dia e noite,
as cordas do sangue estalam.
176
Poemas
Eu não te disse
que tu não ias pro amor, a luta, o esporte.
Adeus meus lindos conhecimentos,
adeus realidade, minha secretária.
Venham a mim, diabos, almas penadas,
venham, me arrastem!
177
Mu ri lo Mendes
nos arranha-céus,
constroem o trabalho dos homens,
agitam o mar,
armam a mão dos padres e operários,
ajuntam imagens e reflexos na cabeça dos poetas;
despem as mulheres no mundo.
Os demônios vêm e vão
na terra, na água, no fogo, no ar.
Demônios de todas as cores, de outras cores que a gente não vê
movem os astros, balançam na consciência da terra.
A luta
(Cantos virginais do mundo,
planos da inocência,
frêmito de amor puro.)
178
Poemas
Serão
A sombra; e a noite do século passado,
gemendo; e a lança no flanco do mártir;
e a implacável mão da humanidade
pensando sobre o dorso da estátua...
Violência!
Rosas de fogo ardendo no céu plano!
E os cactos da violência, e a sombra
dos desertos futuros, e o magnetismo
dos olhares guardados através de gerações...
179
Mu ri lo Mendes
Vida de mármore
A estátua muda a camisa na praça deserta.
Arcanjos violentos surgem do fundo dos minutos,
carregam tua vontade para o outro lado do mundo
Amor preguiça deserto revolução amor,
tudo passa tudo se reduz a eternidade de olhares,
tudo passa menos a memória da bem-amada.
Alegoria
Sombras movendo o sonho
onde uma densa cabeleira cheirosa
aparece entre dois raios de pensamento
no quarto pendurado na terra morena;
de repente desloca-se a bruta massa do corpo dum santo, estátua me
invocando,
e um diabo verde me levando pro aniquilamento.
Nos jardins claros
gramados geométricos
a árvore dum vestido amarelo deixando adivinhar a forma
que nenhum sovaco úmido complica no gesto de apanhar uma bola,
um resto de som de seresta
agarra-se nas orelhas do cavalo mecânico
que rompe o espaço,
180
Poemas
Limites da razão
1
Atrás do meu pensamento
os demônios destroem as meninas que eu gostei,
fazem com o movimento e o espírito delas
um samba pros outros dançarem.
2
O manequim vermelho do espaço
que de noite eu levanto a mão para tocar
chega perto de mim
tem um ritmo próprio
um andar quase humano.
Já vi há muitos anos numa cidade do interior
uma professora inglesa que andava assim.
De tanto as costureiras do ateliê de Dona Laura
se esfregarem no manequim de tarde
ele já quer sair das camadas primitivas
daqui a mil anos será uma grande dançarina
dançará sobre minha cova diante do cartaz dos astros
quando eu mesmo dançar minha vida realizada
rio terraço dos astros.
181
Mu ri lo Mendes
3
Alongamento:
tudo foge na hora extrema
banhado na neblina da agonia
as constelações me abrem a porta
e montado no cavalo mecânico do gênio do tempo
atinjo a região proibida aos humanos,
mas nunca poderei ser totalmente outro.
Alguma coisa me fica do mundo antigo.
Desenvolvo-me em planos harmoniosos
distingo a iluminação dos pensamentos,
amparado pelas formas que moram no espaço
realizo a perfeição da minha unidade
penetro a vida das cores novas, dos sons definitivos
e enlaço a forma do amor
vivendo pra sempre dentro de mim.
Ritmos alternados
Um cheiro de angélicas
brota dos cemitérios do espaço.
Noite, cruzes no mundo, as idades voltam, não sei onde estou.
Os relâmpagos iluminam os corpos flexíveis no outro mundo, o som
do saxofone dos anjos previne o tempo, as famílias tremem
dentro das casas,
a terra molhada explode em formas novas, é o princípio e o fim.
Homens e mulheres
se arrependem de não ter realizado
todo o amor,
chegam mais perto uns dos outros... o gosto
da noite me leva aos teus seios.
182
Poemas
Evocações simultâneas
A noite curva...
Seios pendurados nas janelas da terra
Uma larga mão vermelha
me chama em alguma parte.
Mensagem do tato dum espírito do ar,
cheiro das namoradas, noite curva.
Minha cabeça levanta-se acima do abismo e do pensamento,
o espírito do ano de 1917 revive em mim.
Dêem lugar aos mortos, nivelados no tempo...
Relâmpagos, me abracem no quarto nupcial que é um túmulo,
o olho da morta é um seio, a asa do vento desligou-se da noite,
entrou em mim e desanda a bater. Abismos,
pontes da noite, estrelas escarlates vagamente entrevistas
num delírio perpendicular ao sonho, existo somente
pras sombras acima de mim e da miragem da morte,
sono das imagens... cortam-me a cabeça.
Vertigem
Venho do ar, da multiplicação de sombras,
cheiros se cruzando.
A noite se espreguiça elástica, em todos os pontos da terra
movem-se desejos,
uma outra vida transparece no azul, danças.
Coros de meninas de quinze anos em igrejas do interior,
namorados pressentindo o aviso dos sentidos,
um morto cruzou o espaço, treme o céu, a lua
penteia os cabelos, todas as coisas se comunicam,
as crianças chegam mais perto do seio materno,
183
Mu ri lo Mendes
Atmosfera desesperada
Uma escada lateral por onde as formas descem,
os sonhos sobem, vidas
entrevistas num relâmpago... Noite
molhada, noite de fim do dilúvio, mundo suspenso,
luz difusa de astros que mal aparecem num
ângulo do céu,
vertigem. Há qualquer
coisa esperando no ar, pressentimento de outras
distâncias, realidades paralelas a esta,
espíritos puros nascendo, o amor
aproximando as formas. O mar
balança, desligado da praia, cabeça cortada.
Mundo iluminado a gás, curvas do pensamento,
nós somos outros. Alguém
está andando dentro de mim, me segurando pelos cabelos,
não sinto mais o meu peso,
me perdi...
184
Poemas
O mundo inimigo
O cavalo mecânico arrebata o manequim pensativo
que invade a sombra das casas no espaço elástico.
Ao sinal do sonho a vida move direitinho as estátuas
que retomam seu lugar na série do planeta.
Os homens largam a ação na paisagem elementar
e invocam os pesadelos de mármore na beira do infinito.
Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos,
expulsam o sol do espaço e se instalam no mundo.
Canto do desânimo
Dorme, mundo!
Estrela, deita-te a meus pés,
tempo, some da minha memória,
infância, famílias aparvalhadas olhando pra mim,
sumi.
Desaparece,
bruma da criação anterior,
manequim da nebulosa vermelha ardendo no quarto em febre,
vestido e sombra da mulher primitiva me tomando nos braços,
apaga-te, mão de Deus me formando na manhã remota,
som, movimento, vontade, tempo, energia, desaparecei.
185
Mu ri lo Mendes
Canto do noivo
Eu verei tuas formas crescerem pouco a pouco,
verei tuas formas mudarem a cor, o peso, o ritmo,
teus seios se dilatarem na noite quente,
os olhos se transformarem quando brotar a idéia do primeiro filho.
Reflexão e convite
Nós todos estamos na beira da agonia
caminhando sobre pedras angulosas e abismos.
Ninguém ouve o barulho da banda de música
que está ali firme do outro lado do século.
186
Poemas
A pomba da lancha
Quando a rainha Locusta chegar
– Não é mais rainha, é a névoa –
As estrelas formarão a palavra ÓDIO.
Não haverá mais nem um capitalista,
187
Mu ri lo Mendes
O filho pródigo
Serenamente? A alma insatisfeita
Viemos cortando as águas tenebrosas,
Impulsionados pelos ventos largos.
Meu pai me espera na varanda amena.
(“Digo sim ao meu filho
Que volta para sugar meu sangue,
Acompanhado dos pássaros do meio-dia
Voando entre as arcadas tristes.
Solto na frente a estátua número três.
Se ouvem os clarins das vitrolas.”)
188
Poemas
Sacudo as asas,
Parto para o empíreo da cozinha.
Não me mato, estou cansado demais.
189
Mu ri lo Mendes
Tédio na varanda
Hesito entre as ancas da morena
Deslocando a rua,
E o mistério do fim do homem, por exemplo,
Dormir!
As camélias lambem
O sexo de teus lábios.
Os pássaros da vertigem
Bicam estátuas de pano.
190
Poemas
A visibilidade
Passar ignorado dos homens, das palavras,
Ignorado das águas, do demônio.
Ignorado dos personagens da história,
Ignorado até de Deus,
Até dos pássaros, das pedras.
Mas a luz se desfaz em vaia.
Os demônios mostram os seios em arco
– Arco de sua vitória exclusiva –,
As águas exigem um carinho,
Do contrário te afogarão.
As pedras exigem teu amor
– Vives em cima delas –
Do contrário te apedrejarão,
Apedrejarão
Quem quiser viver no ar.
Mas
As ondas amarguradas
Encostam a cabeça na pedra do cais.
Até as ondas possuem
191
Mu ri lo Mendes
Poema no bonde-camelo
Sou firme que nem areia
Em noite de tempestade.
192
Poemas
As máquinas aperfeiçoadas
Do cruzamento das raças,
Aeroplanos de braços,
Globos de seios cheirosos
Não deixam o deserto afinal
Ficar tão vazio assim.
Cabeleiras de palmeiras
Morenas vermelhas louras
Se agitam neste deserto.
Água não falta, cerveja,
Uísques e aguardentes
Guardados em odres finos
De cristais bem facetados.
E poemas fazendo lembrar
Que se deve rezar um pouco.
Arte de desamar
Meu amor é disponível,
A qualquer hora ele fecha;
A crise de convicção
É mesmo muito grande.
193
Mu ri lo Mendes
O doente do século
Meu coração vai sangrando,
Se desfazendo aos pedaços,
194
Poemas
Novíssimo Job
– Eu fui criado à tua imagem e semelhança.
Mas não me deixaste o poder de multiplicar o pão do pobre,
Nem a neta de Madalena para me amar,
O segredo que faz andar o morto e faz o cego ver.
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Mu ri lo Mendes
196
Poemas
197
Mu ri lo Mendes
A musa
Estás sozinha desde o princípio,
Foste imaginada na época da formação das pedras.
Um violento temporal lavou a terra antes que nascesses,
E muitas estrelas de perfil se inclinaram sobre teu berço.
Atravessas desertos de areia e mares vermelhos
Sem que sujes teu corpo,
Sem que ninguém penetre tua essência.
Os poetas te sacrificam suas amadas retrospectivas, atuais e futuras.
198
Poemas
Epifania
Eu te procurei tal qual os três reis magos
Que caminhavam através de mares e desertos,
Até que um dia uma estrela enviada por ti mesmo
Me trouxe até a tua inefável presença.
Não posso te ofertar o ouro, o incenso e a mirra:
Ofereço-te a minha alma que tu mesmo criaste,
Ofereço-te a minha aridez e o meu pecado.
Ilumina agora e sempre todos os que te procuram
E todos aqueles que acreditam no teu fim.
Angústia e escuridão dominam o homem
Porque tu ainda não deste a volta ao mundo.
Vocação do poeta
Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
199
Mu ri lo Mendes
O poeta e a musa
Vens da eternidade e voltas para a eternidade.
Não tens ódio.
Não tens amor.
Não tens fome nem sede.
Tens o ar frio de quem ultrapassou o mundo sensível e resolve lhe
dar um sinal da sua condescendência.
A linha das montanhas, a linha do horizonte e a linha da tua alma
se desdobram diante de ti como um anteprojeto da eternidade.
Estás desligada da geração que te trouxe ao mundo.
Anulas meu interesse pelo espetáculo da existência.
Olhas-me serenamente, passas a mão pelos meus cabelos e me
chamas de tua grande criança.
Esperas que eu diminua minha humanidade para ficar junto de ti,
sem ação, sem impulsos, observando apenas o desenrolar do tempo,
o ciclo das estações, o curso dos astros, as cambiantes da cor do céu e
do oceano...
Seremos duas estátuas confabulando.
Então os acontecimentos não agirão mais sobre mim.
E eu sobrevoarei a vida física.
E tocarei o espírito da musa.
200
Poemas
o
Salmo n 1
Meu espírito anseia pela vinda da esposa,
Meu espírito anseia pela glória da Igreja,
Meu espírito anseia pelas núpcias eternas
Com a musa preparada por mil gerações.
Eu hei de me precipitar em Deus como um rio,
Porque não me contenho nos limites do mundo.
Dai-me pão em excesso e eu ficarei triste,
Dai-me luxo, riqueza, ficarei mais triste.
Para quê resolver o problema da máquina
Se minha alma sobrevoa a própria poesia?
Só quero repousar na imensidade de Deus.
Filiação
Eu sou da raça do Eterno.
Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.
201
Mu ri lo Mendes
O profeta
A Dante Milano
o
Salmo n 2
Ó Deus meu e de todos,
Que tenho feito até hoje no mundo,
Senão te invocar para que surjas,
Senão me desesperar porque sou pó?
Dilata minha visão,
Dilata poderosamente minha alma,
Faze-me referir todas as coisas ao teu centro,
Faze-me apreciar formas vis e desprezíveis
Faze-me amar o que não amo.
Tudo o que criaste no universo
É a divisão de uma vasta unidade
Em espaços e épocas diferentes.
Liga-me a todas as coisas em ti
E ilumina-nos fora do tempo, a todos nós
Que esperamos tua divina Parusia.
202
Poemas
Futura visão
Apresentam-me o livro da tua vida
Escrito por dentro e por fora:
Sou digno de romper os sete selos.
Logo na primeira página
Paro três anos em êxtase
Diante da tua fotografia.
A lua e o mar adormecem a meus pés.
Tudo o que evoco vai nascendo ao gritar o teu nome
Berenice! Berenice!
E choro muito
Porque não existe ninguém digno de te olhar.
203
Mu ri lo Mendes
Poema condenado
Eu te respiro por todos os poros:
Mulher, estás em todos os lugares.
Prefiro me danar a um dia te perder de vista.
Teu vestido desdobrado esconde a Cruz.
Se este sortilégio acabasse eu me mataria.
Antiguidade
Quero voltar para o repouso sem fim,
Para o mundo de onde saí pelo pecado,
Onde não é mais preciso sol nem lua.
Quero voltar para a mulher comum
Que abriga a todos igualmente,
Que tem os olhos vendados e descansa nas águas eternas.
204
Poemas
Começo
Uma vasta mão me sacudirá na manhã pura.
Talvez eu nasça naquele momento,
Eu que venho morrendo desde a criação do mundo,
Eu que trago fortíssimo comigo
O pecado de nossos primeiros pais.
O espaço e o tempo
Hão de se desfazer no vestido da Grande noiva branca.
Serei finalmente decifrado, o estrangeiro da vida
Descansará pela primeira vez no universo familiar.
O emigrante
A Henri Michaux
205
Mu ri lo Mendes
A janela
Ó altas constelações,
Nuvem prenhe de fantasmas,
Preguiçosa onda do mar,
Friíssima noite, lua!
Minhas irmãs elementares,
Tendes mãos, ouvidos, boca.
Murmurais doces cantigas
Que os homens decifrarão
No rodízio do universo,
Entre revoadas de anjos,
Quando soarem os clarins
Que despertarão os mortos
E a alma se reunir
Ao corpo que apodrecera.
206
Poemas
Minha órfã
Porque não quis te olhar, ficaste cega.
Sei que esperas por mim
Desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.
Roxelane, Roxelane:
Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,
Boca sem frescura e sem expressão,
Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo,
Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.
Roxelane, Roxelane:
Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,
Conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança,
Enquanto eu recolherei para sempre
A tua, a minha e a miséria de outros,
Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.
Canção
Para o Oriente do amor
Meus sentidos aparelham.
207
Mu ri lo Mendes
R.
Vens, toda fria do dilúvio, com dois peixes na mão.
És grande e flexível, na madrugada acesa pelos arcos voltaicos.
Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenos
Onde atualmente só se ouvem
Cânticos de guerra e pregações do inferno.
Jerusalém
Jerusalém, Jerusalém,
Quantas vezes tentei abrigar no coração
Todos os meus anseios para Deus,
208
Poemas
Jerusalém, Jerusalém,
Morro de sede à beira da fonte,
Morro de fome debaixo da mesa coberta de pães.
Jerusalém, Jerusalém,
Recolhe meu último sopro.
Idéia fortíssima
Uma idéia fortíssima entre todas menos uma
Habita meu cérebro noite e dia,
A idéia de uma mulher, mais densa que uma forma.
Idéia que me acompanha
De uma a outra lua,
De uma a outra caminhada, de uma a outra angústia,
Que me arranca do tempo e sobrevoa a história,
Que me separa de mim mesmo,
Que me corta em dois como o gládio divino.
Uma idéia que anula as paisagens exteriores,
Que me provoca terror e febre,
209
Mu ri lo Mendes
Companheira
Companheira, dou-te as sombras que me acompanham,
Todas as sombras criadas pelos vivos.
Companheira, dou-te a alegria
Do que nada tem a esperar do esforço humano.
Dou-te a cantiga do asilado.
O suspiro do menino que olha em vão
O velocípede do menino vizinho.
Dou-te a nostalgia de quem soltou papagaio
Em épocas muito remotas.
Companheira,
Dou-te a tristeza do que nada achou na sua primeira comunhão.
Dou-te o desconsolo do que está sendo destruído
Pelos crimes que não cometeu,
Pelos crimes de outros em época distante.
Os amantes submarinos
Esta noite eu te encontro nas solidões de coral
Onde a força da vida nos trouxe pela mão.
No cume dos redondos lustres em concha
Uma dançarina se desfolha.
Os sonhos da tua infância
Desenrolam-se da boca das sereias.
210
Poemas
Canto amigo
1
Eu te direi: poderás te libertar do peso da vida,
Poderás encontrar um amigo no fantasma que te habita,
Os homens poderão amordaçar os tiranos se quiserem se
transformar num só.
Eu te direi: da própria franqueza emerge a força,
E muitas vezes a renúncia é o esquema da vitória.
Se conhecesses o dom que vem do alto e que afastas!
Por que aumentas o terror que rodeia o teu lar,
Por que em vez dos retratos de poetas
Que prolongam no tempo a corrente do amor e da fraternidade
Suspendes na tua casa fotografias de couraçados e de fortalezas
volantes?
Por que acreditas no julgamento dos chefes transitórios do homem?
Por que recusas pão e brinquedo às crianças, dando-lhes granadas?
Que futuro preparas, homem amigo, para teus descendentes.
211
Mu ri lo Mendes
2
Ó meus irmãos, eu ando entre vós como o sobrevivente duma cidade
arrasada.
Ouvi os últimos acordes do meu canto de perdão e de ternura
Antes que os rádios extingam minha palavra com anúncios de
guerra.
Ó meus irmãos, eu sou o que não ri, o que não mistifica,
Eu sou o que vos deveria odiar e que vos ama,
Eu sou o que espera a vitória divina sobre as forças do mal
Que agem poderosamente dentro de mim e de vós.
A criação e o criador
O poema obscuro dorme na pedra:
212
Poemas
Quase segredo
A velocidade da luz
Me protege contra o enigma.
Mundo antigo,
(Árvore de campainhas,
Bola azul negra)
Já conheço teu alfabeto
E o que pretendes de mim.
Quem me conhece
Torna-se de repente visível.
A inicial
Os sons transportam o sino:
213
Mu ri lo Mendes
As águas me bebem.
As criações orgânicas
Que eu levantei do caos
Sobem comigo
Sem o suporte da máquina,
Deixam este exílio composto
De água, terra, fogo e ar.
Duas mulheres
Duas mulheres na sombra
Decifram o alfabeto oculto,
Ouvem o contraste das ondas,
Falam com os deuses de pedra
214
Poemas
Poema presente
O céu púbere e profundo
Ajunta nuvens de fogo
À tendência dos homens, inquietante:
E um pensamento de guerra
Anula o que poderia vir
Da água, da rosa, da borboleta.
Vergéis tranqüilos
Disfarçam espadas.
Sombras pedindo corpos
Esperam desde o dilúvio
O sopro de um puro espírito.
Separam a luz da luz.
Poema estático
Vestir a couraça do céu
E caminhar vigilante
Mesmo na música.
Formas esperam
215
Mu ri lo Mendes
Nossa cooperação
No campo fértil
Da funda morte,
Da vida envolvente
Sempre a crescer.
Poema da tarde
A tarde move-se entre os galhos de minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim deste meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:
E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.
Poema antecipado
Harpa de obuses,
Sempre um espírito guardião sobra
Para desenvolver o germe augusto
Que foi criado no princípio,
Para não explodir de febre
E dançar no fogo azul.
216
Poemas
A manhã
Ninguém sabe se a manhã
Traz promessa de prazer.
Anônimas sanfoninas
Alternam com sabiás.
Os braços espantam
Os restos da noite.
A ceia sinistra
1
Sentamo-nos à mesa servida por um braço de mar.
217
Mu ri lo Mendes
2
O tanque comanda o homem.
A alma oprimida soluça
Num ângulo do terror.
Alma antiqüíssima e nova,
?Tua melodia onde está.
O pássaro, a fonte, a flauta,
A estrela, o gado manso te esperam
Para os batizares de novo.
3
Os mortos perturbarão a festa inútil.
?Quem lhes trouxe ternura e presentes – em vida.
?Quem lhes inspirou pensamentos e amores castos – em vida.
?Quem lhes arrancava das mãos a espada e o fuzil – em vida.
Agora eles não precisam mais de carinho ou de flores.
Agora eles estão libertos, vivos,
Pisando calmos sobre nossas covas.
218
Poemas
Canção pesada
A negra pena
Comprime a alma,
A negra pena
Da massa viva
De dores cruéis,
Do amor que punge,
Da glória inútil,
Sutil serpente
Que morde o peito,
Que enrola o homem,
Constringe-o todo,
A negra pena
Que se alimenta
De sangue e fel,
Triste cuidado,
Lembrança amarga
Dos impossíveis,
A negra pena
Sem remissão,
Que, morto o homem,
Lhe sobrevive
Em novas formas,
Antiga pena,
Futura pena,
Eterna pena.
219
Mu ri lo Mendes
O espelho
Não surge mais a forma humana.
Nem o gesto de se vingar:
Tentação
Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo:
“Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz.”
As lavadeiras
As lavadeiras no tanque noturno
Não responderam ao canto da sibila.
“Lavamos os mortos,
Lavamos o tabuleiro das idéias antigas
220
Poemas
Choques
O choque de teus pensamentos furiosos
Com a inércia da boca e dos braços de outros.
O choque dos cerimoniais antigos
Com a velocidade dos aviões de bombardeio.
O choque da foice contra o cristal dos milionários.
O choque das roseiras emigrantes
Com o silêncio das linhas retas nas janelas.
221
Mu ri lo Mendes
II
A aveia do camponês
Queixou-se do cavalo do ditador,
Então o cavalo forte
Queixou-se das esporas do ditador.
III
O pensamento encontrou-se com a eternidade
E perguntou-lhe: de onde vens?
– Se eu soubesse não seria eterna.
– Para onde vais?
– Volto para de onde venho.
222
Poemas
O túnel do século
I
Sob o céu de temor e zinco
Os prisioneiros caminham, tambores velados:
A manopla da noite pesa
Sobre suas omoplatas, seus sonhos comunicantes.
II
Sob o céu de temor e tremor
A estátua da infância é flechada
Pelos descendentes dos ídolos subterrâneos
Que consagram a espada dançante.
Amaldiçoam o pão e o vinho,
Rasgando o caderno de roseiras
– Alfabeto dos pobres migratórios.
223
Mu ri lo Mendes
1
Assombrações que sobem do barroco,
Das ladeiras e dos crucifixos esquálidos,
Frias portadas de pedra, anjos torcidos,
Passantes conduzindo aos ombros o passado,
Cemitérios aéreos de adros largos
Onde noturnos seresteiros cantam,
Seguindo-se de violas e violões,
Aos defuntos colados nas gavetas:
224
Poemas
2
O canto alternativo das igrejas
Nos leves sinos da levitação
Cruzando-se em cerrado contraponto,
São Francisco de Assis adverte ao Carmo,
São Francisco de Paula à matriz do Pilar.
225
Mu ri lo Mendes
3
A Viúva de Ouro Preto sobe a rua cantando,
Apoiada ao bastão, na cabeça um penacho
De três cores, vestido velho e desbotado
Cuja invisível cauda arrasta com desdém.
A Viúva de Ouro Preto fala em frases cifradas,
Pesa em partes iguais o mito e a realidade,
O passado e o presente, a alegria e a tristeza,
Declara que decide a guerra no estrangeiro,
Rico e pobre entretém com igual polidez.
A trama da sua vida é feita de fantasmas
Que só se extinguirão no seu último dia:
A Viúva de Ouro Preto é de grande família
Que possuiu fazenda, escravos e palácios,
Privou com a Imperatriz, refinou-se na Europa.
Serviu banquetes em baixelas persas,
Depois tudo perdeu, os membros dispersou,
Resta Dona Adelaide Mosqueira de Meneses,
Vítima da jogatina, a Viúva de Ouro Preto
Que vive numa toca de espectros rodeada,
Que inda tem uma pedra onde apóia a cabeça...
A Viúva de Ouro Preto desce a rua rezando.
4
Ouro Preto se inclina com elegância,
Ouro Preto se inclina, e um dia cairá.
Nova técnica transfigura a terra,
Mas os futuros engenheiros e arquitetos
Não mudarão o corpo de Ouro Preto
Que ainda se preserva da reforma
Por sua mesma pobreza e solidão.
226
Poemas
5
Repousemos na pedra de Ouro Preto,
Repousemos no centro de Ouro Preto:
São Francisco de Assis! Igreja ilustre, acolhe,
À tua sombra irmã, meus membros lassos.
Confrontamos aqui toda a miséria,
Da matéria o desgaste deduzindo
Em nossa vida universal e pessoal.
Ó rude tempo de aniquilamento,
Ó rude tempo de desproporção!
Nem nos transforma a companhia do Anjo
227
Mu ri lo Mendes
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Poemas
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Mu ri lo Mendes
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Poemas
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Poemas
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Poemas
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Poemas
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Mu ri lo Mendes
238
Poemas
Poema pessoal
Levanto-me da carruagem de paixões e plumas
Aparentemente guiada pelas irmãs Brontë.
239
Mu ri lo Mendes
O quarto da infância
Quem canta? Ninguém mais canta.
Seria preciso cantar para o morto na sua cova,
Para o vivo na sua cova. Seria preciso estender
Braçadas de canções ao órfão espiritual.
E até mesmo as estrelas pedem consolo,
Todos pedem consolo.
Quantos olhos desabitados,
Antigas ruínas que nenhum peregrino visita;
Quantas mãos cobertas de hera
Antecipando a paz definitiva.
Quanto seio que não foi acariciado,
Quantos pés caminhando sem consciência
Da passagem de um Deus pelos mesmos caminhos.
240
Poemas
A peregrinação
Investe-me o pavor do tempo restituído
À noite antes do Senhor, à cólera fria,
Ao desespero que contorna a cruz.
Pássaros noturnos
Pássaros noturnos:
Ao longe balançam o canto obscuro
Pois nas grutas profundas se encolheram
241
Mu ri lo Mendes
Indicação
Sim: o abismo oval atrai meus pés.
Leopardo familiar, a manhã se aproxima.
Preciso conhecer em que universo estou
E a que translações de estrelas me destinam.
Em três épocas me observo sustentado:
Na pré-história, no presente e no futuro.
Trago sempre comigo uma morte de bolso.
Assalta-me continuamente o novo enigma
E uma audácia imprevista me pressinto.
Arrasto minha cruz aos solavancos,
Tal profunda mulher amada e odiada,
Sabendo que ela condiciona minha forma:
E o tempo do demônio me respira.
Gentilíssima dama eternidade
242
Poemas
243
Guardados d a M em ó r ia
Magalhães de Azeredo
e Afonso Arinos
Af o n so Ar in o s , f il h o
245
A fo nso A ri no s, fil h o
246
Cartas de Magalhães
de Azeredo a Afonso
Arinos de Melo Franco
Por favor, não veja na demora desta carta uma espécie de represá-
lia pelo silêncio que você longamente guardou para comigo. De
modo algum. Antes, com toda lisura lhe digo que, se aquele silêncio
por muitas razões merecia desculpá-lo, para a minha tardança em
responder-lhe só posso esperar perdão, apelando para a sua indul-
gência de amigo, e alegando, como circunstância, não justificativa,
mas atenuante apenas, da minha falta, os muitos trabalhos de várias
espécies, que me ocasionam sempre grande desordem na vida.
Aceite, pois, meu querido Afonso, as mais sinceras e calorosas
congratulações pelo seu casamento, com a certeza de que, se elas lhe
chegam atrasadas, pronto foi e constante será o nosso júbilo pela sua
felicidade tão merecida. Peço-lhe que transmita a sua Senhora, de
quem muito e com muita simpatia nos lembramos, a expressão desse
sentimento.
247
A fo nso A ri no s, fil h o
Saudoso abraço.
Breve escreverei.
Azeredo
7 de outubro de 1931
Querido Afonso,
248
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
Azeredo.
Querido Afonso, tenho esperado nestes dias uma carta sua. Rece-
beu a minha? Como estão passando nesse ar puro de Montana? Nós
na quinta-feira, depois de amanhã, partiremos para a Itália. Quase
nada pararemos em Milão, donde seguimos para Veneza e Florença,
e por fim para Roma, onde minha Mãe nos aguarda há tanto tempo.
O nosso endereço lá é Via Po, 32-34. Afetuosas lembranças nossas
para ambos. Saudoso abraço do seu muito dedicado
Azeredo.
Querido Afonso,
249
A fo nso A ri no s, fil h o
250
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
251
A fo nso A ri no s, fil h o
252
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
Querido Afonso,
253
A fo nso A ri no s, fil h o
254
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
255
A fo nso A ri no s, fil h o
passa, bem sei, por ser das menos laboriosas; mas, se a tarefa que
emerge é relativamente pequena, a que não se vê é imensa. A minha
atual qualidade de decano do Corpo Diplomático (já o sou desde
1926) a tem quase duplicado. Comunicações do Vaticano e do go-
verno italiano, consultas, visitas, tudo o que se refere a nós coletiva-
mente, pesa sobre meus ombros. Basta dizer-lhe que para os meus
versos e as minhas prosas, e para a correspondência particular, eu só
disponho de duas, no máximo três horas, pela manhã. De tarde, é ra-
ríssimo que eu tenha tempo de escrever um bilhete. E à noite, não
posso trabalhar. Apenas acabamos de almoçar, e antes por vezes, co-
meça o telefone: são pessoas de várias nacionalidades, de todas as
classes e castas, que querem falar-me; e cada uma traz um desejo, um
pedido, de dinheiro, carta de recomendação, intercessão pessoal mi-
nha a favor das suas pretensões ou das suas necessidades... Quando
posso, enfim, sair, para passear, e respirar um pouco de ar fresco –
quase sempre ao anoitecer – sinto-me enervado e exausto. Ah! que
saudades de quando era um simples secretário! Então, sim, era um
homem livre. Agora, para ler com sossego – porque, em suma, há
também muito que ler – tenho de isolar-me nas tardes de domingo,
quando outros vão às corridas, às matinées, aos chás dançantes: preci-
samente como um operário! Considerando-se tudo isto, e, ainda, a
delicadeza dos meus olhos, deve-se reconhecer que não escrevo as-
sim tão pouco aos amigos. Entretanto, a você, meu caro Afonso, eu
escreveria com mais freqüência, se... Em Lausanne você me disse que
eu interrompera por dois anos as nossas relações intelectuais. A cau-
sa foi, como lhe expliquei, a crise séria de cansaço da vista, que sofri
em 1929. Mas as suas palavras me fizeram pensar. Eu gostaria mui-
to, muito, realmente, de escrever-lhe com certa regularidade. Por
uma porção de razões, como a de ser você quem é, filho de Afrânio,
sobrinho de Arinos, irmão de Caio, e ter no espírito afinidades com
o meu, que se me revelaram desde a sua estada em Roma, cabe-lhe o
256
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
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A fo nso A ri no s, fil h o
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M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
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A fo nso A ri no s, fil h o
Via Po, 32. Roma. 16 de fevereiro de 1932. Não tive mais notí-
cias suas, mas desejo e espero que já esteja completamente curado.
Vejo que aí o frio tem aumentado ainda, e que há neve por toda a
Suíça. Aqui caiu pouquinha uma noite, mas derreteu-se logo. O in-
verno em Roma foi de maravilhosa beleza até poucos dias atrás; ago-
ra começam as chuvas; aliás é a temporada delas e provavelmente a
primavera será linda. Afetuosos recados nossos para todos aí. E um
abraço do sempre seu
Azeredo.
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M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
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A fo nso A ri no s, fil h o
Meu caro Afonso, até hoje não pude responder à sua carta. Você
já deve saber as razões, que são as mesmas de sempre.
Não me admira o que me diz sobre a “invadência” e a crescente
preponderância dos alemães no cantão Ticino. Na Engadina, que
lhe fica próxima, sucede a mesma cousa. Em Tarasp, aonde fomos
vilegiar três anos seguidos, eles se estão apoderando de tudo; na al-
262
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s
263
A fo nso A ri no s, fil h o
trangeiro, e filho da América latina, podia ter sentido e feito esse li-
vro. Disse-o, aqui, um excelente crítico e erudito, Julio Marchet-
ti-Ferrarte, que conhece muito bem a nossa língua, e a nossa literatu-
ra. – L’averla scelta a seconda patria, rese profonda l’influenza dell’Italia su questo
“latino d’oltremare”; tuttavia non alterò in lui le fonti native del sentimento. Sol-
tanto un brasiliano avrebbe potuto scrive le liriche che l’Azeredo raccolse nel volume
Odes e elegias, e il vibrante poema “Italia”.1 – É, aliás, natural que se
compreenda isso, aqui, melhor que lá.
Mesmo durante aquele período, escrevi poemas, contos, ensaios,
alheios a toda influência italiana; assim, por exemplo, o “Romance
lírico” em Vida e sonho, e quase todo este volume. Nos meus livros
mais recentes, ela quase não aparece, salvo em paisagens, ou ainda,
assuntos fortuitos, devidos ao fato de morar aqui; seriam brasileiros,
se morasse no Brasil, ou franceses, se morasse na França. Pois se deve
considerar que na minha produção literária, o estímulo inicial, pelo
menos, deriva sempre da realidade, de impressões pessoais, diretas,
que em seguida, é claro, a imaginação transforma a seu talante. Eu
creio que, romântico pela sensibilidade como bom brasileiro, tenho
tendências clássicas naturais, que a esta sensibilidade impõem uma
disciplina artística. Há fatos semelhantes na nossa terra: o de Rai-
mundo Correia, por exemplo, e o do próprio Bilac, embora neste a
torrencial exuberância do temperamento dificultasse a “combinação
química”. Eu tive sobre eles duas vantagens: fugi desde o princípio
ao estreito jugo parnasiano, e conheci diretamente a Itália e a Grécia;
assim o que neles é de segunda mão, é reflexo mais ou menos livres-
co, em mim é fruto de experiência imediata, vivida por mim numa
atmosfera genuína, autêntica.
Mas basta de cousas que me concernem; e peço até perdão desta
prolixidade indiscreta, que somente se explica e se escusa pela certe-
1
Illustrazione za, que tenho, do seu interesse pelo meu espírito.
italiana – 8 Falemos de você. Acho uma imprudência a sua partida para o Rio
Dicembre 1929.
agora. Penso que você precisa de consolidar a cura na Suíça por al-
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júbilo. Essa carta, porém, exige muito tempo, e uma farta documen-
tação; eu a escreverei logo que disponha de adequado lazer.
Por hoje aproveito a bondade do querido amigo embaixador
Acioli, que me deixa grandes saudades, para dizer-lhe as muitas
que de você tenho, e mandar-lhe um cordialíssimo abraço em espí-
rito, com a esperança de poder-lho renovar algum dia, em presença
real. A este abraço se associa Maria Luísa, e o estende a sua Senho-
ra, cujas mãos beijo.
Presumo que se preocuparam muitas vezes da nossa sorte, e em
verdade atravessamos um período terrível de apreensões e perigos,
que durou nove meses longos, longuíssimos e lentíssimos a passar. A
minha situação tornou-se extremamente precária, porque, se os ale-
mães me descobrissem e agarrassem, infalivelmente me teriam de-
portado para as suas inóspitas terras; ótimo refém era eu, brasileiro,
e embaixador ainda por cima. É de espantar que não me hajam pega-
do; as cautelas que tomei não me teriam salvado, sem uma visível e
sempre vigilante proteção divina. Não sofremos o mínimo desgosto,
o mínimo vexame. Nunca um boche nos falou, nunca tivemos de falar
a um boche. Agora lutamos ainda com penosas dificuldades materiais,
mas podemos respirar livremente. E – benefício supremo – graças ao
admirável zelo apostólico, ao indefesso labor persuasivo, e ao uni-
versal prestígio de Pio XII, Roma está materialmente intacta.
O carinho da família, a afetuosa assistência de alguns fiéis amigos,
o estudo, o trabalho, ajudaram-me a atravessar o período nefasto
sem sucumbir ao desalento e à tristeza. Escrevi, vou escrevendo,
muitas cousas, em parte novas, em parte começadas e interrompidas
há anos; tenho meia dúzia de volumes para publicar, além das mi-
nhas memórias já adiantadas, e da edição completa dos meus versos.
Mais um abraço do sempre e muito seu, como de seu inolvidável Pai
fui por quase meio século,
Azeredo.
269
Afonso Arinos de Melo Franco
no Palácio Itamaraty, Rio de
Janeiro, frente ao busto do Pai,
Afrânio de Melo Franco.
Lembrança do
Amigo Ausente
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derão fazer o que eu mesmo fiz, e que marcou para sempre a minha
vida, imprimindo um selo indelével à minha formação mental: ver
Roma, viver em Roma no desabrochar da mocidade. Vislumbrei en-
tão a eternidade (pelo menos no sentido humano desta palavra), do
complexo greco-latino-cristão. E me habituei a crer na sua capacida-
de para resolver todos os problemas que a História coloque diante
da nossa ação.
Foi nessa época do meu primeiro e deslumbrado contato com
Roma (vão fazer em breve vinte anos) que conheci mais de perto
Carlos Magalhães de Azeredo. Com ele convivi durante quase dois
meses vendo-o todos os dias, e ele foi o meu guia experiente, incan-
sável e entusiasta daquele meio que conhecia como um familiar de
muitos lustros, que tinha conservado a curiosidade sempre presente
de quem nele penetrasse pela primeira vez. Possuo ainda, à vista da
minha mesa de trabalho, o retrato que Azeredo me ofereceu. Está ao
lado de um de meu pai, de quem ele foi amigo durante meio século.
É uma fina água-forte, na qual o perfil do poeta, firmemente corta-
do, aparece em primeiro plano sobre os contornos distantes e vagos
da velha Roma, a quem ele tanto deve e tanto quer. E a dedicatória,
depois de evocar “a nossa bela convivência em Roma” traz a data:
primavera de 1925. Eu ainda não tinha atingido os vinte anos e Aze-
redo já havia transposto os cinqüenta. Mas conservava esta esponta-
neidade emotiva, esta claridade matinal da imaginação, esta pronti-
dão em atender aos reclamos da alegria, do sofrimento ou da ternura
que fazem com que o tempo não se transforme em idade biológica,
mas em experiência e enriquecimento da razão e da alma. Por isto
homens como Azeredo, Afonso Pena Júnior, Manuel Bandeira,
Otávio Tarqüínio de Sousa, ou como meu pai, podem ser facilmente
amigos dos filhos ou daqueles que poderiam ser seus filhos.
Percorri com Azeredo, na mais cordial camaradagem, os palácios
sacros e profanos, as ruas buliçosas e comoventes, onde a majestade
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Meu querido Afonso, por que não me escreve nunca? Vejo que
você adotou a regra comum a numerosos homens de letras – a de
não traçarem linha que não deva ser tipografada e publicada. Regra
talvez sensata, no dinamismo implacável da vida moderna, mas que
deve admitir exceções; e se há quem mereça uma de sua parte sou eu,
pelo muito bem que lhe quero, e pelas condições morais em que me
acho, longe da pátria, e as quais você com tão comovidas palavras
desenhou naquele inolvidável artigo, “Lembrança do amigo ausen-
te”. Fortuitamente soube, por uma alusão do nosso amigo Acioli, e
por outras de outras pessoas, terem aparecido nos Diários Associa-
dos as minhas impressões de “Roma em guerra”. Achou-as você in-
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nhas horas livres, fazia poesia lírica e prosas mais ou menos românti-
cas, colaborava na Gazeta de Notícias e em La Razón; costumava mos-
trar-lhe os meus escritos antes de publicá-los, e lembram-me ainda al-
guns bons conselhos que me deu. Qual era então, fiquei até 1934,
quando o senhor Getúlio Vargas houve por bem despedir-me, com
um atestado de boa conduta e dois meses de indenização; um artista
emprestado à diplomacia, o que aliás não me privou de servir util-
mente o Brasil, e ser bem sucedido nas minhas várias incumbências.
Eis, meu querido Afonso, o que posso dizer-lhe sobre aquele cur-
to período de Montevidéu, e espero que lhe seja de algum proveito
para o primeiro volume da sua obra.
Estimo que “Roma em guerra” lhe tenha agradado, e a outros lei-
tores como me assegura, e me informam cartas recebidas de vários
pontos do Brasil. Não importa que a direção dos Diários Associados
não me haja enviado os números em que saíram os artigos; não pre-
tendo recolhê-los em livro, cousa efêmera como são, e de resto tenho
aqui o original autógrafo e uma cópia datilografada. O que lastimo e
o que me magoa é que Assis Chateaubriand não tenha cogitado de
distinguir-me com uma palavra de cortesia. Afonso, eu fui educado,
como você igualmente apesar de tanto mais moço, segundo um có-
digo de bom tom um pouco antigo, mas que devia ser eterno; sou,
pois, bastante sensível a certas incorreções hoje muito em voga.
Além disso, são passados não sei quantos meses desde a publicação
dos artigos, e nada me consta sobre a devida remuneração; por inter-
médio de Barreto Leite, Assis Chateaubriand pediu e tornou a pedir
que eu lhes fixasse o preço; alegando a minha falta de prática em tal
matéria, respondi que o deixava ao arbítrio dele; mas é óbvio que não
significava essa resposta uma renúncia. Quando eu era embaixador
junto ao Vaticano, por espontânea deliberação minha, colaborei
gratuitamente por alguns anos n’O Jornal. Hoje a minha situação é
diferente; sou um simples escritor, e o meu trabalho deve ser pago;
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não por interesse reivindico este direito, pois poucos homens haverá
que façam menos caso do dinheiro que eu, mas, em primeiro lugar,
porque é de justiça (dignus est operarius mercede sua); e ao mesmo tempo
por dignidade profissional; pois, se sempre detestei a réclame, não me
presto a desvalorizar o meu trabalho; todos sabemos que fornecer
artigos gratuitamente a uma folha que paga outros colaboradores, é
publicar por favor – por favor, não do autor, mas da folha.
Ao terminar, hoje (21 de maio), acabo de receber uma carta deli-
ciosa de Caio, em resposta à que lhe escrevi pelo seu 50o aniversário.
Para você e sua Senhora os mais afetuosos recados de nós três. Sau-
doso abraço do seu de coração
Azeredo.
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Querido Afonso,
Li com espanto, em um artigo do Correio da Manhã, que ainda não
existe no Brasil uma lei de responsabilidade concernente ao presi-
dente da República e aos seus colaboradores no governo. “Como?
– exclamei entre mim – quatro anos depois de promulgada a Cons-
tituição vigente?” Essa lei de responsabilidade é uma medida im-
pessoal de justiça, uma garantia indispensável ao bom funciona-
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Querido Afonso,
Não sei por onde você anda, nem se estas linhas o alcançarão na
avenue Montaigne, nem quando pretende partir para a nossa terra,
de onde me contam que o calor está pavoroso. Morcaldi ontem pe-
diu-me notícias suas; respondi: – Creio firmemente na afeição deste
meu amigo, mas ele pertence à legião (numerosíssima além-Atlânti-
co) dos que evitam escrever cartas ou até simples bilhetes como a
maior maçada deste mundo. – Morcaldi também se gaba de não es-
crever a ninguém, mas penso que exagera um pouco. É claro que nes-
tes tempos telegráficos e telefônicos a todo transe, não se pode exigir
dos amigos a antiga assiduidade epistolar. O que vale e a supre é a
das gentis amigas, que perpetuam a graça e a glória de Madame de
Sévigné e Mademoiselle de Lespinasse.
Que lhe resta a cumprir do seu programa de férias nesta velha
mas sempre sedutora Europa? Regressará contente e animoso às
lutas nacionais, embora talvez queixoso do inverno, que foi um fe-
roz bandido, e da primavera, que se está portando como uma mu-
lher safada e vilã?
A carta sobre Um estadista da República, de que você leu aqui o come-
ço, cresceu muito, embora sempre num estilo de reminiscências ínti-
mas e episódios pessoais; não lha envio para aí por não estar certo de
que efetivamente chegará a suas mãos; seria pena que se perdesse;
vou fazê-la datilografar, e a expedirei para sua casa no Rio, devida-
mente registrada.
Quando lá estiver, não se esqueça de falar de mim ao seu amigo
José Olympio. Eu aspiro a entrar na clientela do ilustre editor, e pre-
sumo que alguns livros meus, além das Memórias, que ele já aceitou,
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Querido Afonso,
Um abraço ainda, e um voto de boa viagem, antes que vocês aban-
donem esta enigmática Europa, que deveras os tem tratado mal, e a
quantos nela moram. Se recebeu a minha carta precedente, deve es-
tar-se rindo de mim, pelo brilhante desmentido que deu, na sua tão
longa e interessante, ao que eu dissera de você ao bom Morcaldi. No
meu atual sedentarismo, forçado, porque o dinheiro não basta para
contentar o desejo, não extinto em mim, de novas e reveladoras pere-
grinações, gozei ao ler a animada relação das suas, a que não faltou o
momento dramático da excursão entre a Áustria e a Suíça, debaixo
de formidável nevada, com uma visibilidade quase nula, e sem cor-
rentes nas rodas do auto. Acredita com razão que na longa residência
aqui nunca nos achamos às voltas com inverno semelhante. Como
extravagância climática, mas de outro gênero, lembro-me, na nossa
primeira estada aqui, dos meses, de outubro a março, em que, sob o
influxo do siroco, choveu a cântaros quase sem trégua. A minha saú-
de era então muito mais frágil que hoje, e a neurastenia crônica de
que sofria se acentuou terrivelmente. Vê-se que Goethe, quando
compôs a melodiosa canção de Mignon, ainda não conhecia a Itália.
A benéfica maga que me curou naquela época foi Paris, onde passa-
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mos quase um ano, Mamãe, Maria Luísa e eu, em casa dos meus sau-
dosos sogros. Que bela a vida, que belo o mundo, naquele éden da
nossa mocidade feliz!
Lamento como você a estandardização norte-americana dos nos-
sos costumes, e até a alteração radical da fisionomia do Rio (mal de
todas ou quase todas as cidades, atualmente). O Rio da minha infân-
cia, da minha adolescência, não era bonito; mas antes feio, nos bair-
ros centrais; porém havia, a pequena distância destes, o encanto, o
remanso verde das grandes chácaras que em muitos arrabaldes desa-
pareceram; os skyscrapers vão invadindo tudo. Que penosa, por exem-
plo, a tragédia das maravilhosas palmeiras da rua Paissandu, sufoca-
das, atrofiadas pouco a pouco por eles!
Até “lá”! Memento mei apud Josephum Olympium!
Para ambos o afeto saudoso do velho amigo
Azeredo.
Querido Afonso,
Estou à espera de uma carta sua; ansioso, aflito por notícias do
problema, para mim, de tamanho alcance.
Na missiva precedente, você me anunciava próxima vinda a
Roma, se aceitasse o convite do presidente Kubitschek para unir-se à
comitiva do presidente Gronchi na sua viagem para o Rio; não acre-
ditei muito na possibilidade de tal aceitação, e logo a excluí quando
soube da sua candidatura a uma cadeira de senador nas próximas elei-
ções. Não era verossímil que se ausentasse daí em tal conjuntura.
Não sei se já lhe mencionei as minhas condições de saúde, que são
más desde há meses. Péssimo presente do inverno daqui: uma crise
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(sem data)
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Querido Afonso,
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Text o s esp a r so s
A alma do tempo
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tros postos, ficou na Itália todo o resto da sua longa vida, hoje quase
nonagenária.
Quando da minha primeira visita a Roma ele já ali se achava havia
trinta anos. Lá estivera ao tempo da missão Nabuco, aberta com glo-
riosos auspícios e tão tristemente malograda. (...)
Azeredo recordava para mim a vida triunfante de Nabuco, o seu
sucesso social, o prestígio que logo adquiriu no mais requintado
meio romano. (...)
Amigo pessoal dos papas sob cujo reinado servira, Leão XIII, Pio
X, Bento XV e Pio XI, possuidor de relíquias pessoais dos mesmos,
como, por exemplo, o solidéu de São Pio X, Azeredo era (e ainda é)
um repositório vivo de fatos e anedotas interessantes sobre a vida na
corte papal, desde o fim do século passado.
Meu pai devia ter-lhe escrito, recomendando-lhe que me dispen-
sasse alguma assistência; mas, além deste dever social para com o fi-
lho do amigo, Azeredo afeiçoou-se realmente a mim, em quem en-
contrava um ouvinte atento e permanentemente curioso para as suas
lembranças, bem como um espírito inteiramente absorto nos pro-
blemas da cultura, em geral, e da literatura em particular, que eram
os que a ele também mais de perto interessavam.
A partir da hora do almoço ficávamos juntos, praticamente, todo
o dia, até à hora do jantar, quando eu voltava para o meu hotel e, ha-
bitualmente, não mais saía. Pela manhã eu percorria, sozinho, a cida-
de e os monumentos. Depois almoçava na Via Po, e passava o resto
da tarde com Azeredo, em novas excursões aos monumentos ou em
passeios mais extensos, de automóvel, pela Via Appia, a campanha e
os castelos romanos. Os espetáculos eram variados. Lembro-me de
um concerto regido por Stravinski e de uma exposição de pintura
moderna, entremeada com as visões clássicas ou barrocas. Além dos
monumentos grandiosos, de fama universal, Azeredo não esquecia
as pequenas relíquias de Roma, como São Paulo das Três Fontes,
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A escalada
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Planalto
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Caio querido.
Só esta manhã tenho vagar para escrever-te. “Que vida ocupada” – murmura-
rias, não sem malícia, talvez. Mas a verdade é que as musas tomam conta de mim. Já
sabes que elas fazem comigo lo que más les gusta, em virtude de muitos antigos
direitos seus, e da minha beata condescendência. Quando as imagens e os ritmos en-
tram a cabriolar na cabeça da gente, que resulta se não se lhes dá saída? dor de cabeça.
E eu detesto dor de cabeça. Em suma, encurtando razões, resolvi há dias puxar da
pasta os meus papéis, para organizar um novo livro de versos. A leitura destes me
acordou uma vontade furiosa de fazer outros, e assim já escrevi nove sonetos em fila
cerrada. Na organização do livro foi, como de costume, a exuberância que me atra-
palhou. Mesmo dando só as peças de caráter puramente lírico, que tenho prontas, ele
sairia grande demais. Além disso, não ficaria homogêneo. Decidi, pois, excluir todos
os poemas amorosos, e, em geral, aqueles em que transparece, por assim dizer, uma
perspectiva idílica ou pitoresca do mundo. Colijo apenas as peças em que predomina o
pensamento – um pensamento eivado quase sempre de pessimismo ou tristeza. Deste
forma, as da primeira parte (não sei ainda como as batize) se harmonizarão com as
da segunda, que será o “Intermédio epigramático”. O livro todo será intitulado Pó e
sombra. (Rio, 7 de janeiro de 1966)
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Hoje pela manhã fui até à igreja de Santa Maria da Vitória, a fim
de visitar a escultura de Santa Teresa golpeada pelo amor de Deus,
de Bernini. Fi-lo em afetuosa lembrança de Carlos Magalhães de
Azeredo, que nutria por essa imagem uma amorosa devoção; amoro-
sa mais no sentido da terna admiração terrena do que no da beata
contemplação religiosa. Foi ele quem me levou – já lá vão mais de
quarenta anos – pela primeira vez a contemplar a estranha realização
barroca do mestre seiscentista. Eu tinha idéia de que Azeredo possu-
ía um dos dedos da imagem, que se quebrara e que ele obtivera gra-
ças à amizade do guardião. Hoje observei que as mãos de mármore
estão perfeitas: houve lapso da minha memória ou restauração da fi-
gura. O que Azeredo possuía certamente era uma reprodução da ca-
beça de Santa Teresa primorosamente feita em mármore, naquela
posição caída e voluptuosa que Bernini trabalhou com tanta paixão.
Em 1962 Alceu Amoroso Lima e eu ainda a vimos na casa do velho
poeta. (Roma, 23 de junho de 1966)
Alto-mar maralto
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Amor a Roma
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são brasileira de ter o seu cardeal. Campos Sales aceitou logo a su-
gestão e, pouco depois de assumir a presidência, iniciou as tratativas
com o Vaticano, que se concluíram com Pio X e Rodrigues Alves.
Azeredo acompanhou tudo de perto.
Em agosto de 1914, momento trágico para a vida da Europa e do
mundo, desapareceu Pio X que, no mês seguinte, foi substituído por
Bento XV. Em começo do ano de 1915, Azeredo foi efetivado
como chefe de missão, sempre em Roma, e entregou ao novo papa as
credenciais de ministro plenipotenciário do Brasil. Durante toda a
guerra permaneceu nessa categoria, até que, em abril de 1919, foi
elevado, pelo governo Delfim Moreira (Rodrigues Alves tinha fale-
cido, sem tomar posse, em janeiro), à função de primeiro embaixa-
dor do Brasil na Santa Sé.
No discurso com que apresenta ao papa suas novas credenciais
(14 de abril de 1919), Azeredo alude às angústias que se acumula-
vam sobre o mundo, depois da difícil vitória dos aliados, cinco me-
ses antes. Sente-se a preocupação do embaixador com a vitória dos
bolcheviques na Rússia, em novembro de 1918. Diz ele: “Contra o
materialismo filosófico e econômico, que, chegado às suas conse-
qüências extremas, ameaça subverter os mais preciosos tesouros do
nosso patrimônio ético e civil, só nos podem proporcionar válida
defesa aquelas grandes forças morais, que constituíram, sempre, o
supremo paládio do consórcio humano.” Era ao cristianismo que se
referia. Sessenta anos depois, quando estas linhas são escritas, a al-
ternativa permanece inalterada, pelo menos para o mundo ocidental:
marxismo ou Igreja.
Quando Azeredo foi feito embaixador, era ministro do Exterior
Domício da Gama, mas o verdadeiro chefe do governo (“regente”,
como o chamavam na Câmara) era Afrânio de Melo Franco. Não é,
assim, de se descartar a possibilidade de ter ele influído no ânimo do
ministro e no do presidente (ambos seus amigos), a fim de que fosse
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Roma azul!
Vi tuas ruas,
vi a estreiteza tortuosa de tuas ruas,
vi roupas multicores estendidas nas janelas,
vi crianças que pedem cigarros ou jogam dados pelas vielas
e vi criadas que empurram carrinhos nos jardins senhoriais.
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Roma,
doce velhinha acolhedora,
eu vi a eloqüência dos teus cocheiros sentimentais...
Roma,
adolescente de cabelos cor-de-rosa.
Agora,
são homens louros que trocam idéias em língua rude
sobre a efêmera flor das glórias imperiais.
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PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III
(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Ou-
tras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n. 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição reali-
zou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.