Revista Brasileira 29

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Revista Brasileira

N 29
o
Fase VII Outubro-Novembro-Dezembro 2001 Ano VIII

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.


Machado de Assis
ACADEMIA BRASILEIRA REVISTA BRASILEIRA
DE LETRAS 2001

Dir e to r i a : Diretor:
Tarcísio Padilha – presidente João de Scantimburgo
Alberto da Costa e Silva – secretário-geral
Lygia Fagundes Telles – primeira-secretária C onselho Edi tori al:
Carlos Heitor Cony – segundo-secretário Miguel Reale, Carlos Nejar,
Ivan Junqueira – tesoureiro Arnaldo Niskier, Oscar Dias Corrêa

Me m b r o s e f e ti vos: Produção edi tori al e Rev i são


Affonso Arinos de Mello Franco, Nair Dametto
Alberto da Costa e Silva, Alberto Venancio
Filho, Antonio Olinto, Ariano Suassuna,
Proj eto g ráfi co
Arnaldo Niskier, Candido Mendes de
Victor Burton
Almeida, Carlos Heitor Cony,
Carlos Nejar, Celso Furtado,
Eduardo Portella, Evandro Lins e Silva, Editoração eletrôni ca
Evanildo Cavalcante Bechara, Estúdio Castellani
Evaristo de Moraes Filho,
Pe. Fernando Bastos de Ávila, Geraldo
França de Lima, Ivan Junqueira, A CADEMIA B RASILEIRA DE L ETRAS
o
Ivo Pitanguy, João de Scantimburgo, Av. Presidente Wilson, 203 – 4 andar
João Ubaldo Ribeiro, José Sarney, Josué Rio de Janeiro – RJ – CEP 20030-021
Montello, Lêdo Ivo, Dom Lucas Moreira Telefones: Geral: (0xx21) 2524-8230
Neves, Lygia Fagundes Telles, Marcos Fax: (0xx21) 220.6695
Almir Madeira, Marcos Vinicios Vilaça, E-mail: [email protected]
Miguel Reale, Murilo Melo Filho, Nélida site: http://www.academia.org.br
Piñon, Oscar Dias Corrêa, Rachel de
Queiroz, Raymundo Faoro, As colaborações são solicitadas.
Roberto Marinho, Sábato Magaldi,
Sergio Corrêa da Costa,
Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio Padilha.
Sumário

Celebração – Centenário de Murilo Mendes


EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
JOSUÉ MONTELLO Pretexto para louvar Murilo Mendes . . . . 7
MASSAUD MOISÉS Compreensão de Murilo Mendes . . . . . . 13
FÁBIO LUCAS O polimorfo Murilo Mendes . . . . . . . . . . . . . 23
FÁBIO LUCAS Poesia e prosa de Murilo Mendes: Exemplos . 37
NELSON SALDANHA Em torno de um poema de
Murilo Mendes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Prosa
MIGUEL REALE Diretrizes do culturalismo . . . . . . . . . . . . . . 55
ARNALDO NISKIER O santo D. Eugênio. . . . . . . . . . . . . . . . 65
JOÃO DE SCANTIMBURGO Eça de Queirós e Eduardo Prado. . 73
CARLOS HEITOR CONY João Guimarães Rosa . . . . . . . . . . 95
MURILO MELO FILHO José Lins do Rego: cem anos . . . . 103
CARLOS A. LEITE Dom Pedro II e o médico sem diploma 111
MILTON VARGAS Pessoa: Personagens e poesia . . . . . . . . . 117
CÉSAR LEAL Os viventes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
JOSÉ GUILHERME MERQUIOR Nosso Dickens . . . . . . . . . 161
Poesia
MURILO MENDES Poemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
Guardados da memória
AFONSO ARINOS, FILHO Magalhães de Azeredo e
Afonso Arinos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
MAGALHÃES DE AZEREDO Cartas a Afonso Arinos
de Melo Franco. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO Lembrança do
Amigo Ausente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
Textos esparsos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
Edit o r ia l

Centenário de
Murilo Mendes
E d it o r ia l

N ão há neste mundo em movimento – de gerações que pas-


sam, porque tudo passa, como disse em famoso sermão o
padre Vieira, de camadas inteiras da sociedade substituídas por ou-
tras – nada que seja guardado se não houver quem cuide da memó-
ria. Há poucos dias foi lançada com estardalhaço uma publicação
dos cem maiores poetas do século XX. Uma composição de injusti-
ças, pois faltaram entre os cem – muitos deles rotundas mediocrida-
des – Guilherme de Almeida, o maior artífice do verso em língua
portuguesa; Cassiano Ricardo, o poeta de Martim Cererê, Menotti del
Picchia, o Menotti de Juca Mulato, Máscaras e outros poemas antológi-
cos. Mas somente por obrigação, nas faculdades, são lembrados os
cem poetas, e alguns do mais alto mérito literário, e nomes de auto-
res de obras que merecem a perenidade das bibliotecas. No mais, as
gerações ainda moças e as adolescentes, essas não querem saber de
poetas, prosadores, ensaístas, historiadores.
Estamos na era eletrônica e para os jovens da geração que fre-
qüenta as universidades e ocuparão cargos de importância e direção

5
Edi to ri al

no futuro do país, não lhes interessa quem compôs um poema, quem


escreveu uma página, quem nos deixou um ensaio, todos com lugar
reservado na história da literatura. Hoje vale a Internet, não a página
impressa. Pela Internet, o jovem tem o mundo em casa, mediante os
movimentos de uma peça do computador. A página impressa dá-lhe
trabalho de ler e, não raro, de procurar saber de quem se trata.
Somos, a geração da pena ou da máquina de escrever ou, mesmo,
de um pouco de computador, os grandes esquecidos. Mário de
Andrade ainda é lembrado, pelo culto que lhe votam seus admirado-
res, alguns que não o conheceram pessoalmente. É uma exceção.
Mas Guilherme de Almeida, autor de poemas que espelham a beleza
da língua, quem dele se lembrará, senão alguns admiradores de sua
memória? Vivemos, por isso, entre mortos, não entre vivos. Essa a
realidade do mundo moderno. Faziam-se, no passado, romarias a
túmulos de artistas da palavra ou das tintas, ou do mármore. Hoje
ninguém deles quer saber. Esse é o mundo não dos vivos, mas dos
mortos, entre os quais vamos caminhando, também, para lem-
brar-nos de quem o encheu de beleza ou quem, pelo pensamento,
enriqueceu a cultura brasileira, escritores que deram sua contribui-
ção à língua portuguesa, mostrando-lhe a beleza, na qual versos
como os de Camões e prosa como a de Machado de Assis são rique-
zas perpétuas da arte e da ciência.
Dedicamos parte deste número da Revista Brasileira a Murilo Men-
des, grande poeta moderno, cuja poesia está sepultada em livros que
somente alguns abrem, por curiosidade ou por obrigação de aula.
Murilo Mendes foi um grande poeta. Leiam-no nesta edição, que fi-
carão encantados e nos justificarão de o termos escolhido para co-
memorar o seu centenário de nascimento, neste ano de graça de
2001, ele que é do primeiro ano do século passado. De Murilo dirão
os colaboradores. Registramos a justificativa de sua escolha para o
número presente da Revista Brasileira. Cumprimos um dever. Não po-
díamos deixar de fazê-lo.

6
Pretexto para louvar
Murilo Mendes
J o su é M o nt e l l o

M inha boa amiga Luciana Stegagno Picchio andou pelo


Brasil. Recebeu aqui as homenagens merecidas, por par-
te de universidades e de escritores, e volveu a Roma.
Artigo escrito a
propósito da
publicação de
Poemas
O que ela tem feito, no vasto campo das letras, em livros, em au- 1925-1929 e
Bumba-meu-poeta
las, em conferências, em congressos, chega a ser realmente comove- 1930-1931 /
dor. E, como a sua palavra realmente influi na decisão dos editores, é Murilo Mendes,
ela, hoje, a voz persuasiva, junto a esses editores, na obra benemérita organização,
introdução,
da tradução de poetas e romancistas brasileiros, com os quais com- variantes e
parte a sua admiração. biobibliogafia
por Luciana
Tivemos aqui uma boa e afetuosa conversa, à base do cafezinho
Stegagno
brasileiro, e é por isso que tenho, hoje, este pretexto para aplaudir Picchio. Rio de
uma de suas iniciativas beneméritas e que se reveste de expressiva Janeiro, Nova
Fronteira, 1990.
singularidade.
Desta vez não se trata de uma obra de poeta ou romancista brasi-
leiro, divulgada por Luciana em seu país. Mas sim de um poeta bra-
sileiro editado no Brasil. Refiro-me aos poemas de Murilo Mendes,

7
Jo su é Mo ntello

com variantes e bibliografia respectiva, coordenados e prefaciados


pelo rigor, a competência e o bom gosto de quem sabe ser, além de
grande amiga do poeta, uma das vozes abalizadas no reconhecimen-
to póstumo de seus altos méritos.
De mim para mim, tenho a impressão de que Murilo Mendes, se
não tivesse nascido em Minas Gerais, para ser essencialmente minei-
ro, teria acabado por se fazer italiano, quer pelo gosto de morar em
Roma, quer pela identificação profunda com a poesia e a arte da Itália.
É possível também que a mulher do poeta, Maria da Saudade,
portuguesa irredutível, tenha atuado no grande Murilo para preser-
var-lhe, com a sua autenticidade lisboeta, a porção dessa mesma au-
tenticidade, na sensibilidade do mestre da Poesia em pânico, como ge-
nuinidade brasileira.
De qualquer modo, o certo é que Murilo, enraizando-se em
Roma, sem jeito de retornar a Juiz de Fora, continuou autentica-
mente mineiro, como se do Brasil não houvesse saído.
E é sobretudo um florilégio de sua genuinidade brasileira que a
admirável Luciana coordenou no volume que a Nova Fronteira pu-
blicou ano passado e que a boa amiga veio trazer-me um destes dias,
para nele deixar, com o meu nome, o seu carinho ítalo-brasileiro.
Diz ela, abrindo o seu prefácio: “Este pequeno volume de poe-
mas, que inicia uma série dedicada à obra de Murilo Mendes, quer,
antes de mais nada, ajudar a restituir ao Brasil um dos seus mais altos
poetas da modernidade.”
Murilo é, na verdade, um de nossos poetas essenciais. Chamo as-
sim àqueles que não se limitam a ser poetas, mas a ser poetas genui-
namente brasileiros, ajustados ao nosso modo de ser, mesmo quan-
do parecem voltar contra as nossas características ou os nossos ex-
cessos a represália risonha de seu verso.
Disto é exemplo, na poesia de Murilo Mendes, a sua “Canção do
exílio”, toda ela lírica e irônica, constituindo, do ponto de vista te-

8
Pretexto para lo u var Mu ri lo M e n de s

mático, uma paródia da famosa “Canção do exílio” de Gonçalves


Dias, a que o mestre mineiro associou o seu modo pessoal de sorrir
do Brasil:

Minha terra tem macieiras da Califórnia


onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

O elemento lírico e o elemento crítico, de claro riso transparente,


afloram ainda mais evidentes no fecho do poema:

Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.

E por fim o suspiro do exilado:

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade


e ouvir um sabiá com certidão de idade.

Quando comparamos a “Canção do exílio” de Murilo Mendes


com a “Nova canção do exílio” de Carlos Drummond de Andrade,
prontamente reconhecemos que, neste, prevalece o elemento lírico,

9
Jo su é Mo ntello

com inconfundível tom nostálgico, enquanto naquele o elemento


dominante é a mordacidade jovial, na espontaneidade do verso im-
previsto.
Ao nos dar a mais nova edição dos dois primeiros livros de Mu-
rilo Mendes, compreendendo os poemas de 1925 a 1929, Luciana
Stegagno Picchio houve por bem uni-los ao auto dramático, que
faz seqüência natural a esse período, e isto nos permite acompa-
nhar o itinerário do poeta, numa dimensão a mais de suas reações
diante da vida.
Penso que esse auto, Bumba-meu-poeta, é o predecessor mais distan-
te das memórias de Murilo, A idade do serrote, com que o mestre minei-
ro abre um novo espaço à prosa de língua portuguesa. O poder in-
ventivo do memorialista invade a prosa tradicional. Veja-se, ao aca-
so, como exemplo, esta evocação de Abgail: “Abgail era um teatro
aberto. Comunicável e comunicada, recebia todos os dias. Quando
se instalaram os primeiros telefones da cidade, ela imediatamente re-
quereu um para a casa paterna, estabelecendo logo ali uma ponte aé-
rea de palavras.”
A poesia, assim, apodera-se da prosa de Murilo, e a recria esplen-
didamente, passando a constituir, essa prosa, uma das chaves do
enigma criativo muriliano.
É ele quem reconhece: “Todas as contradições se resolvem no es-
pírito do poeta. O poeta é ao mesmo tempo um ser simples e com-
plicado, humilde e orgulhoso, casto e sensual, equilibrado e louco.
O poeta não tem imaginação. É absolutamente realista.”
Daí as indagações como esta: “O primeiro e último leão de mi-
nha vida suscitou-me um problema importante, desenvolvido mui-
to depois: saber se os seres mais inumanos terão uma ligação mes-
mo tênue com a ternura; não só o leão ou o tigre, mas ainda o car-
rasco, o ditador, o alto executor dos campos de concentração, o
artífice da bomba.”

10
Pretexto para lo u var Mu ri lo M e n de s

Em vez de recolher em si o tumulto da vida, que se transferia para


o poema irônico ou sentimental, Murilo ia naturalmente ao epicen-
tro do tumulto, que seus sentidos captavam, e para o qual encontra-
va imediatamente o verso apropriado.
Hoje, que tanto se fala em modernidade, cumpre-nos dar-lhe
como exemplo a poesia muriliana. A rigor, a ligação que se estabele-
ce entre seu verso e o verso dos poetas que o precederam não nós é
imediatamente perceptível, sem as indicações do próprio Murilo, ao
falar-nos de Rimbaud, de Mário de Sá Carneiro, de Fernando Pes-
soa, seres de seu próprio mundo. Entretanto, acentuemos: a sua mo-
dernidade é invenção própria, com seu estranho poder de captar e
exprimir o mundo, na aparência de seu registro jovial.
Um dos mais importantes estudos sobre a poesia de Murilo
Mendes, em nossas letras, pode ser lido agora no volume Crítica, em
que José Guilherme Merquior reuniu seus ensaios de literatura, no
período de 1964 a 1969.
A conclusão desse ensaio vale como a síntese magistral do gênio
poético de Murilo Mendes: um cristão ecumenicamente interroga-
dor. Convém acrescentar: é esse o Murilo enquanto poeta. Porque
há também aquele que afirma, na conclusão do poema:

Um dia a morte devolverá meu corpo,


estes olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.

Certo, ele se interroga: “Onde encontrar o Cristo?” E ele próprio


responde: “Encontra-se muitas vezes o Cristo – assim me aconteceu
– prefigurado nos traços espirituais de um amigo. Mas não nos bas-
ta: precisamos encontrar o Cristo Total.”
Para esse encontro definitivo, a reflexão não nos basta. Joaquim
Nabuco encontrou, para mim, a explicação exata, quando reconhe-

11
Jo su é Mo ntello

ceu, numa de suas meditações conclusivas, que “a fé é um pássaro


pousado no alto da ramagem e que só canta quando Deus escuta”.
A admirável Luciana, amiga de Murilo Mendes, veio ao Brasil,
com a coletânea dos primeiros poemas do grande poeta, como se
quisesse demonstrar que, também aqui, ela nos é necessária, com a
sua competência e a sua comunhão literária.
Quando se despediu de mim, no Rio de Janeiro, ela me confessou:
– Fiquei muito contente com as belas rosas que aqui recebi de
meu editor brasileiro.
E eu me senti tentado a acrescentar que ele as havia mandado em
nome de todos nós, que lhe somos reconhecidos. Pondo a memória
de Murilo Mendes em primeiro lugar.

12
Compreensão de
Murilo Mendes
M assa u d M o is é s

M urilo Mendes pertence ao grupo de poetas considerados


“difíceis”, pela densidade do pensamento, ou pela enge-
nhosidade ou tensão da linguagem, a ser possível a separação entre as
Professor titular
de Literatura
Brasileira na
Faculdade de
duas camadas do texto poético. De qualquer modo, não alcançou a Filosofia,
Ciências e
popularidade de outros poetas do tempo, nem mesmo o entusiasmo
Letras da USP.
crítico de que é merecedor, salvo num pequeno e selecionado círculo
de leitores. E a razão talvez esteja no fato de a sua poesia, bem como
a de outros contemporâneos, lidar ambiguamente com a emoção,
sem a qual a poesia não desponta. É que a idéia de que o poema é
uma “máquina de provocar emoções” não condizia com os tempos
novos, em que o prosaísmo, na cola do verso livre difundido pelo
Modernismo de 22, se tornara um ideal estético. É certo que muita
poesia de superior qualidade nasceu desse empenho em acolher os
temas do cotidiano, numa linguagem próxima da crônica ou do falar
corrente; mas também é verdade que muita prosa de discutível quali-
dade se revestiu da aparência poética – a fragmentação do período

13
Massau d Mo i sés

numa série de membros à maneira de versos livres – para, como in-


tuito saneador que se tornara a bandeira dos participantes da Sema-
na de Arte Moderna, melhor aliciar os leitores. Pertencendo à segun-
da geração modernista, Murilo Mendes nem por isso ficou imune ao
contágio desse versilibrismo cerebrino, mas soube a tempo encon-
trar a linguagem mais apropriada à expressão do seu conflito íntimo.
Razão assiste à crítica, por conseguinte, quando aponta o con-
traste como o eixo em torno do qual gravita a obra de Murilo Men-
des. Com efeito, é preciso recorrer à noção de antinomia, paradoxo,
polivalência e cognatos para compreendê-la e avaliá-la devidamente.
Se fosse o caso de localizar a matriz da complexa malha de oposições
que a estrutura, diríamos que reside no conflito, jamais resolvido e
sempre renovado, entre forma e transparência, ou signo e significa-
do, expresso no corpo dos poemas e no título de um deles.
Para bem caracterizar o vulto dessa “guerra sem testemunhas”,
tomando a denominação de empréstimo a Osman Lins, é de bom
aviso ter em mente o seu dinamismo: não se trata do corriqueiro ato
de buscar a palavra capaz de revestir a idéia com exatidão, mas de
uma tensão entre essência e forma que não cessa mesmo quando uma
parece adaptar-se completamente à outra. Não é a simples procura
do signo por parte de um conteúdo – admitida a hipótese de este
existir em abstrato, à espera de um corpo para se encarnar –, nem é a
potencialização aristotélica da idéia em ato, como no soneto camo-
niano (“Transformar-se o amador na cousa amada”), senão o reno-
var ininterrupto do mesmo anseio integrativo logo que se realiza.
Malcomparando, assemelha-se às pulsões genesíacas que, ao atingir
o auge, principiam novo périplo, após o quê recomeçam idêntica
curva no tempo, numa cadeia sem fim.
Esse quadro, armado sobre o velho díptico “tema e variações”, já
se desenha nas primeiras composições. Por meio delas, o leitor tem
acesso às diretrizes fundamentais da poesia de Murilo Mendes, pre-

14
C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s

senciando, daí por diante, uma continuidade praticamente inaltera-


da: as metamorfoses na dicção do poeta não constituem mudanças
profundas de estruturas ou de visão da realidade; antes, pelo contrá-
rio, assinalam modificações de superfície, que não afetam a intimi-
dade lírica e ideativa. Em suma, variações de forma, por vezes impli-
cando outros focos de interesse, outras paisagens e assuntos, mas via
de regra ao redor da mesma essência, ou a ela regressando tão logo
cessa o efêmero atrativo das experiências e das novidades.
Assim o verso livre à 22, conduzindo ao “poema-piada”, em His-
tória do Brasil (publicado em 1932, mas significativamente excluído
das obras reunidas do autor), ao narrativo, ao apoético, comanda as
tentativas iniciais. Não é a ausência da linha melódica – já que esta
havia sido recusada na modernidade –, é o serem frases enunciativas,
desmetaforizadas, que acusa o prosaísmo dos versos inaugurais, de
onde a poesia volta e meia desertou. É, acima de tudo, a carência de
emoção: o poeta não oculta que trabalha com o intelecto, ou a repe-
lir a emoção inerente à poesia, decerto norteado pelo preconceito
moderno contra a melodia e a emoção. E tal rejeição acaba afetando
a poesia.
Esse estado de coisas, que corre por conta de uma inadequação no
plano da forma, acaba contagiando a essência, como se numa luta in-
testina lavrasse as duas dimensões do texto. O sensualismo é uma
dessas áreas de conflito: sendo uma das características primaciais da
poesia muriliana, faria supor que constituísse uma força eruptiva,
transbordante de emoção lírica. Quando contém emoção, esta se
exaure no limiar dos versos: não evoca, nem provoca, e sem evocação
ou provocação, a poesia custa a ganhar corpo.
As outras duas vertentes – a religiosa e a surrealista, que juntas
formam a base de sustentação da poesia de Murilo Mendes –, enfer-
mam da mesma vulnerabilidade ao prosaísmo em moda com a Se-
mana de Arte Moderna. Maduro no tocante às idéias, no terreno da

15
Massau d Mo i sés

forma o poeta ainda luta contra a tendência à prolixidade, fruto da


facilidade com que os versos lhe brotam da pena, uma prolixidade
horizontal, conferida pela proliferação dos versos, e uma vertical,
pelo desmedido alongamento: a concisão, que o poeta objetivava
nessa fase, pressuporia menos volume de segmentos e menos vocá-
bulos em cada um deles.
Numa palavra, não se havia encontrado ainda, ao menos como po-
eta, ou seja, na expressão literária do seu modo de ver o mundo. Além
da exuberância verbal, ressente-se de indeterminação, falta de solidez
do discurso poético, ou disponibilidade que pode ser, a um só tempo,
herança de 22 e resultante das oscilações próprias da idade.
A partir de Tempo e eternidade (1935), escrito de parceria com Jorge
de Lima, a par da prevalência da religiosidade de acento metafísico:

Nasci no plano do eterno


.......................................
Eu hei de me precipitar em Deus como um rio
..........................................................................
Se minha alma sobrevoa a própria poesia?
Só quero repousar na imensidade de Deus.
..................................................................
Eu sou da raça do Eterno.1
1
Murilo
Mendes, Poesias,
O poeta assume a sua opção essencialista (que lhe teria sido suge-
Rio de Janeiro, rida por Ismael Nery), guiado pela “idéia essencial de Deus” (“Poe-
José Olympio, ma passional”, de A poesia em pânico, 1938), agitado por uma “ânsia
1959, pp. 121,
123. Salvo
absoluta” (“Poema do ciúme”, ibidem), a “nostalgia do infinito”
indicação em (“Enigma do amor”, ibidem), mas continua a render tributo à sensua-
contrário, as lidade e ao surrealismo, tudo compondo indestrinçável mescla.
demais citações
serão extraídas
É nessa fase que igualmente se define o sentido apocalíptico da
desta edição. sua cosmovisão, derivado dessas matrizes ideológicas. E, no mesmo

16
C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s

processo imaginativo, alcança o esperado equilíbrio dos opostos,


como se pode ver neste simulacro de poema à antiga, amparado em
metáforas de intensa vibração concreta (“A marcha da história”):

Eu me encontrei no marco do horizonte


Onde as nuvens falam,
Onde os sonhos têm mãos e pés
E o mar é seduzido pelas sereias.

Eu me encontrei onde o real é fábula,


Onde o sol recebe a luz da lua,
Onde a música é pão de todo dia
E a criança aconselha-se com as flores,

Onde o homem e a mulher são um,


Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.

O seu surrealismo adquire o caráter que o distingue no panorama


da poesia brasileira do tempo: abstrato, ocultista, onírico, metafísi-
co, mítico, como se a transcendência teológica e a transcendência
surrealista se conjugassem no infinito. Murilo Mendes atinge nesse
momento o apogeu da sua capacidade inventiva: despojando-se dos
excessos verbais, logra a integração da essência com a forma. Agora
diz que vai para onde a Poesia o chama (“Novíssimo Orfeu”) e que
respira Poesia (“Respirar”), a Poesia Liberdade (1947). É sobretudo
nessa fase que a sua obra difere da que se praticava entre nós na déca-
da de 30, exibindo em qualquer frase ou imagem, embora ainda pos-
sa trair certo gosto pela expressão transbordante, o toque de uma
forte e marcante personalidade poética.

17
Massau d Mo i sés

Tal abundância escondia, afinal de contas, uma tendência subja-


cente ou incrustada na inflexão surrealista e religiosa: o barroquis-
mo. Seu misticismo, permeado por uma visão mágica e sensual, dis-
tingue-se pelo viés barroco. Essência e forma barroca: visão apoca-
líptica, dualista, vazada no jogo dos contrários, nos vocábulos anti-
téticos, compostos, etc. Em síntese, o emprego da dialética barroca
para exprimir uma mundividência que é, substancialmente, barroca
(“Aproximação do terror”, de Poesia Liberdade): “Não se trata de ser
ou não ser, / Trata-se de ser e não ser.” Tanto assim que, a páginas
tantas, compõe um “Poema barroco” e entra a experimentar a agonia
dos místicos espanhóis, Santa Teresa de Jesus à frente (“Memória”,
de As metamorfoses, 1944): “Morro de esperar a morte.”
Em Contemplação de Ouro Preto (1954), não obstante a atmosfera sur-
realista, o barroquismo domina amplamente. A escolha da velha cida-
de mineira como tema poderia correr por conta, é claro, da sua impor-
tância histórica e da sua luminosa beleza, mas no caso de Murilo
Mendes parece indicar o encontro de uma pulsação anímica e estética.
Falando de Alphonsus de Guimaraens, aponta a “correspondência in-
telectual / Entre formas e idéias, cor e som”, recorda que “O símbolo
é barroco” e que o poeta de “Ismália” apurara “uma técnica ajustada /
Ao tema do conflito permanente / Entre matéria e sonho”, – fala
como se pintasse o auto-retrato. Nem falta um poema – “Luminárias
de Ouro Preto” – à imagem e semelhança do “Lampadário de Cris-
tal”, exemplar composição gongorizante de Jerônimo Baía.
O Tempo espanhol (1959) testemunha o adensamento dessa onda
barroquizante, a começar da epígrafe onde, entre vários nomes, reluz
o de Santa Teresa de Jesus e o seu verso-emblema – “Que muero
porque no muero” –, que ressurge integralmente no fecho do poema
“Ávila”. Os numes tutelares do poeta são, nesse instante da sua car-
reira, antigos confrades castelhanos:

18
C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s

Da linguagem concreta iniciadores,


Mestres antigos, secos espanhóis,
Poetas da criação elementar,
Informantes da dura gesta do homem;
...........................................................
Vossa lição me nutre, me constrói:
Espanha me mostrais diretamente.
Que toda essa faena com a linguagem,
Mestres antigos, secos espanhóis,
Traduz conhecimento da hombridade
(O homem sempre no primeiro plano).2

A ponto de, referindo-se a Gôngora (“Lida de Gôngora”), dar a im-


pressão de seguir desenhando o seu auto-retrato, uma espécie de ato
falho ou de identificação até então desconhecida. Mais adiante assi-
nala “o estilo de contrastes” de Picasso, “construindo e destruindo
ao mesmo tempo”, fundindo “força e contenção” (“Picasso”), sem
querer se autodefinindo, ou revelando secretas motivações.
Contemporaneamente à ênfase na faceta barroquizante da sua
maneira de ver a realidade, vai mostrando em toda a extensão um as-
pecto da sua história poética: a engenhosidade formal. Sabíamos que
a sua poesia se caracterizava pela pugna entre essência e forma; per-
cebíamos que uma ansiava a outra, como entidades complementares.
Conhecíamos-lhe a facilidade em compor versos. Víamos que, nos
primeiros livros, estava mais voltado para os conteúdos que para as
formas com que os revestia ou exprimia. Interessava-lhe menos a
arte do verso que veicular, pelo seu intermédio, crenças e dúvidas li-
gadas à religião, a Deus, etc. Não que ignorasse os segredos da versi-
2
ficação, antes pelo contrário, mas é que os colocava a serviço das Idem, Tempo
idéias, jamais como um fim em si mesmo. Para ele, não existia a “arte espanhol, Lisboa,
Morais, 1959,
pela arte”, senão a arte engajada por vezes nas questões políticas, e p. 17.

19
Massau d Mo i sés

especialmente na crença religiosa: como os renascentistas e barrocos


espanhóis de semelhante estirpe, fazia arte ao divino.
Agora, porém, se observa um desequilíbrio em favor do segundo
termo da equação, denunciando o ingresso numa fase em que o me-
lhor da sua faculdade ideativa havia ficado para trás. Em Convergência
(1970), o poeta desenha grafitos verbais e ainda pratica os exercícios
vocabulares dos barrocos, num ludismo que não pode ser levado a
sério, notadamente pelo leitor que acompanhou com atenção o “ou-
tro” Murilo Mendes. A concisão, realiza-a no limite máximo, pare-
des meias com o Concretismo. Confessa a influência de João Cabral
de Melo Neto: “Joãocabralizei-me”; cunha “murilogramas”, um dos
quais, à Baudelaire, prega o consórcio entre “Fantasia, alquimia e ál-
gebra”,3 o que seria um sintoma de sondagem nas fontes da sua poe-
sia se não encerrasse, contraditoriamente, a renúncia do seu ideário
pregresso.
Mudou, a olhos vistos, atualizou-se, acompanhou a marcha do
tempo e ganhou maior poder de síntese, mas não sem pagar um
alto custo. Mergulhou no paradoxo em que navegava, às vezes com
segurança, outras à deriva, o seu lirismo: quando prolixo, era me-
lhor, apesar de tudo; ao eleger a condensação de formas, pelos la-
dos da despoetização do poema e do concretismo, revela ter perdi-
do a força conflitiva que lhe alimentava a alma e os sentimentos de
homem e de poeta. Chega, mesmo, ao mau gosto, em certo ponto
de “Grafito segundo Kafka”, ao repisar, com a mão incerta, a sen-
sualidade de outrora. Sem dúvida, persiste no geral a qualidade do
tecido poético que vimos nas coletâneas precedentes, mas também
são inequívocos os sinais de pertencer ao passado o momento de
3
Idem,
alta inspiração lírica.
Convergência,
São Paulo, Duas Nas obras seguintes evidenciará a indefectível consciência literá-
Cidades, 1970, ria, a gravidade com que encerava o seu ofício, a generosa função hu-
pp. 73, 131.
manitária que atribuía aos poetas (V. “Microdefinição do Autor”, à

20
C o mpreensão de Mu ri lo M e n de s

entrada de Poliedro, 1972), o experimentar de novos caminhos for-


mais e temáticos; tentará a prosa poética, esculpirá versos em italia-
no (Ipotesi, 1977), sem ressuscitar, no entanto, a fase anterior. Mar-
cado pela dicotomia entre idéia e signo, atraído pela religião e pelo
Surrealismo, Murilo Mendes jamais escondeu haver lutado até o fim
por conciliar os opostos da sua formação, temperamento e caráter.
Quando se perdeu nos extremos, deixou a sensação de promessa a
cumprir, ou de render-se ao fascínio limitador das reduções formais,
ele que suplicava, em “Máquina de sofrer” (de Poemas), que o desli-
gassem do mundo das formas; quando alcançou a desejada aliança,
colocou-se entre os maiores poetas do tempo.

21
O polimorfo
Murilo Mendes
Fá b io L u c a s

 O poeta insólito
Doutor em Economia
Tomemos a carreira literária de Murilo Mendes na perspectiva Política e História
das Doutrinas
do insólito, dados os seus gestos e concepções desacostumados. Não Econômicas, Fábio
somente na literatura, como também na apreensão e crítica do balé, Lucas se especializou
da música, do cinema e das artes plásticas. Seu campo de percepção em Teoria da
Literatura.
do fenômeno estético apresenta o mais amplo espectro, talvez o É professor, ensaísta
mais aberto entre os modernistas, não fora a forte predisposição de e crítico literário.
Mário de Andrade a abarcar todas as manifestações do campo artís- Tem inúmeros livros
publicados, entre os
tico. Fiquemos, todavia, no Murilo Mendes poeta e prosador. quais Temas literários e
Estas reflexões constituem variante e extensão da obra que prepa- juízos críticos (1963), Do
ramos para comemorar o centenário do poeta de Juiz de Fora, Murilo barroco ao moderno e
Crepúsculo dos símbolos:
Mendes, poeta e prosador (São Paulo, Educ, 2001). Desejamos assinalar, reflexões sobre o livro no
antes de mais nada, o lado heterodoxo com que Murilo Mendes Brasil (1989) e
abraçou suas causas literárias, embora, nos fundamentos de sua visão colabora em
periódicos
de mundo ficassem fronteiras que ele jamais cruzaria. Exemplo: sua especializados.

23
Fábi o Lu c as

fé no catolicismo, a partir da conversão que experimentou em 1934,


ante a influência da morte do pintor e amigo Ismael Nery.
Mesmo no campo da fé, não seguiu a linha predominante da Igreja
de seu tempo, conservadora e reacionária. Conforme rememora Pedro
Nava, ao tratar da conversão do poeta, “Esta conversão não resultou
de nenhuma catequese, de nenhuma dedução desse ser lógico, de ne-
nhuma reflexão desse homem inteligente, mas de um estado emocio-
nal que funcionou a fogo, como um pentecoste, na noite do velório de
Ismael Nery”. É que o cristão Murilo Mendes ingressou no rebanho
da Igreja Católica sem o espírito de grei, de devoto resignado ao curral
dos eleitos. Precedeu, de certa forma, o movimento de abertura dos
cânones, a fim de que o crente pudesse respirar um pouco de liberdade
diante de tanta ortodoxia. Quem conhece a história do catolicismo no
Brasil, dos anos 30 até o período seguinte ao golpe militar de 1964,
poderá vislumbrar quantos religiosos se moveram da posição conser-
vadora e até fascista para a militância libertária, de esquerda, próxima
até, em certos casos, da doutrina marxista.
Murilo Mendes, no curso de sua acidentada vida intelectual, mar-
chou com irreverência e alto espírito crítico para os campos da moti-
vação social, anti-capitalista e ligeiramente socialista.
Nota-se, como em Henriqueta Lisboa e Alphonsus de Guimara-
ens Filho, a visita, na maturidade, do princípio da dúvida ao castelo
da convicção religiosa. Daí a curiosidade de o seu livro póstumo, de
poemas escritos em italiano, levar o título Ipotesi (1977).
Um aspecto do estado de poesia em que militou Murilo Mendes:
compôs poemas tanto em italiano (velha tradição mineira, que vem
1
Cf. Territórios /
dos Árcades como J. Basílio da Gama e Cláudio Manuel da Costa),
Conjunções – poesia quanto em francês (como o simbolista Alphonsus de Guimaraens).
e prosa crítica de Tal iniciativa “aloglota”, para usar expressão do excelente intérprete
Murilo Mendes.
Rio, Imago,
Júlio Castañon Guimarães,1 indica forte inquietação do espírito e
1993, p. 247. aprofunda o seu perfil polimorfo.

24
O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s

Na produção literária, o eixo foi o grande apreço que emprestou


ao Surrealismo. Na verdade, foi o poeta brasileiro que mais se asso-
ciou à grande vanguarda de origem européia e mais energicamente
praticou os princípios surrealistas nas suas produções literárias. É
preciso assinalar, no entanto, que o próprio Surrealismo não se apre-
sentou como um conceito monolítico, mas antes se mostrou cheio
de matizes, tanto na teoria, quanto na prática. Segundo depoimento
do poeta, o Surrealismo entrou em sua vida na década de 20, assim
como na dos amigos Ismael Nery, Mário Pedrosa e Aníbal Macha-
do. Aproveitou do movimento a “cartilha inconformista”, a poética
dos elementos díspares, enfim, “o surrealismo à moda brasileira”.
O Surrealismo de Murilo Mendes por vezes se associa ao Dadaís-
mo, antepassado do Surrealismo (foi admirador de Tzara) e ao Cu-
bismo (quando Picasso propôs o “somatório das destruições”). Mas
a essência de sua proposta surreal vem da inspiração onírica entrela-
çada com a rebeldia antiburguesa. Tudo com humor iconoclasta. E
principalmente pelo gosto das metáforas ousadas e, não raro, grotes-
cas, como forma de quebrar os grilhões da racionalidade.
Os últimos escritos de Murilo Mendes revelam a sua concepção
da arte poética, mistura de iluminação com a construção (Mário de
Andrade, no Prefácio Interessantíssimo a Paulicéia desvairada, havia
proposto a fórmula de P. Dermée: Lirismo + Arte = Poesia). Não
descrê da sensibilidade nem do preparo técnico necessário à concep-
ção do poema. Não se tornou um cerebral, muito menos um repen-
tista. Ajustou as duas faces da criação: o êxtase da possessão à tekhne, a
fabricação do efeito.

 Poeta e prosador

Há, em Murilo Mendes, nascido a 13 de maio de 1901 e falecido


a 13 de agosto de 1975, um poeta e um prosador. O que se vê de co-

25
Fábi o Lu c as

mum entre ambos, no curso da eclosão das vanguardas do século


XX, é o propósito de revolucionar a linguagem. Basicamente o jogo
da liberdade do espírito, contra o jugo das convenções. Daí sua afi-
nidade com o Surrealismo e, de certo modo, com o Barroco. Na téc-
nica da expressão verbal, propôs a prevalência da imagem sobre o
conceito, princípio com que acabou influenciando João Cabral de
Melo Neto que, em dado momento, compôs uma Antologia de Mu-
rilo Mendes.
É desta matéria que trata Murilo Mendes, poeta e prosador. Místico,
erótico, visionário, excêntrico, alucinado são designativos que a crí-
tica lhe endereçou, dado o caráter surpreendente da expressão do es-
critor, que se tornou notável crítico e estimulador das artes plásticas
e exímio comentarista da música. A múltipla percepção do poeta
deu-lhe uma lírica multiforme e orquestral, dotada de uma plurali-
dade de recursos.
Tendo vivido na Itália e convivido com os maiores artistas da Eu-
ropa, não se distanciou, porém, da herança brasileira. A quem per-
guntasse “qual o maior livro do mundo?” Murilo Mendes responde-
ria sem trepidar: Grande sertão: Veredas de Guimarães Rosa. Sua admi-
ração pelos poetas Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de
Melo Neto não tinha limites. Em parceria com Jorge de Lima, pu-
blicou Tempo e eternidade (1935), de ritmo largo, bíblico. Depois es-
creveu Os quatro elementos (1935), após a sua conversão ao cristianis-
mo, incluído na coleção Poesias de 1959. Versos concisos, de rara
contenção verbal.
1935 foi, deste modo, o ano crítico de Murilo Mendes. Defron-
tou-se com Mozart, na paixão musical, e Ismael Nery, falecido em
1934, sua mais fervorosa lembrança. Barroco e Surrealismo, mais
uma vez. A visão de Ouro Preto acentuou sua afeição pelo Barroco e
a convivência com poetas e pintores europeus o fez mergulhar no
Surrealismo. A paisagem da Sicília renova sua noção imagística das

26
O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s

palavras. E a Espanha inspira-lhe o Tempo espanhol, cujo fundamento


ibérico é encontrado em Picasso, que soube “fundir a força e a con-
tenção”.
Mais do que tudo, Murilo Mendes é o poeta dos contrastes. O
catolicismo é agônico e, por vezes, irreverente. A sua visão de mundo
é política, quase sempre cáustica com os valores burgueses, sempre
ácida quanto ao nazi-fascismo. O seu surrealismo ora apresenta um
transbordamento barroco, ora é contido e seco como um clássico.

 Glorificar Murilo Mendes

Torna-se urgente evocar Murilo Mendes, poeta ora musical, ora


dissonante; ora barroco, ora surrealista; ora transbordante, ora con-
tido: católico agônico e iconoclasta, que experimentou todos os rit-
mos e metáforas para fixar a ascendência da imagem sobre o concei-
to. Buscava mais a musicalidade do que a sonoridade. Preferia o rit-
mo sincopado, “a quebra violenta do metro”.
E também falar do prosador agudo que escreveu ensaios inesque-
cíveis sobre a literatura, a música e as artes plásticas, além de confi-
gurar um memorialismo de estilo marcantemente pessoal.
Lírico e prosador revolucionário, de imagens poéticas fortes e
chocantes, foi homem de gestos corajosos e ousados. No dia da en-
trada das forças alemãs na Áustria, telegrafou a Hitler protestando
em nome de Mozart. E, ao chegar a Roma, declarado persona non
grata pela Espanha de Franco, quando o Brasil já mergulhara no
pântano da ditadura militar, levantou um brinde ao fim de todas as
ditaduras.
Murilo Mendes, poeta e prosador visa, pois, a trazer ao leitor a completa
figura do escritor juizdeforano, autor de “retratos-relâmpago”, gra-
fitos e murilogramas de insuperável originalidade.

27
Fábi o Lu c as

 O prosador na era do transistor

Dificilmente se pode desvincular a obra literária do conteúdo


biográfico. As diferentes composições de um autor não raro apre-
sentam estilhaços da experiência vital, no que tem essa de polimorfo
e avassalador. Especialmente isso ocorre naqueles escritores de pen-
dor memorialístico ou confessional.
Murilo Mendes surgiu impregnado da atmosfera modernista.
Combinava certo respeito pela tradição e pelos autores consagrados
com um temperamento irreverente e cáustico. Lírico derramado,
mas espírito crítico mordaz. No fundo, um romântico vocacionado
para o apocalipse.
No estudo de sua obra poética procuramos minudenciar as várias
correntes literárias em que se banhou, ao lado de fornecer-lhe os
acentos típicos, autênticos e intransferíveis. Do mesmo modo, apos-
samo-nos de sua prosa, na qual os tópicos e a temática absorvidos
pelos versos refluem travestidos da função narrativa, historiográfica
ou meramente de juízos interpretativos ou críticos. Ler a prosa de
Murilo Mendes é desfrutar de um modo muito original de descre-
ver, selecionar e definir. Elipses e metáforas engrandecem os textos.
Com a competente introdução de Luciana Stegagno Picchio, pu-
blicou-se Transistor (Rio, Nova Fronteira, 1980), que encerra uma
antologia da prosa muriliana, produzida no período 1931-1974.
Assinale-se que a seleção fora efetuada pelo autor (falecido a 31 de
agosto de 1975) e por Saudade Cortesão Mendes. Inclui Carta geo-
gráfica (1965-1967), Tempo espanhol (1966-1969) e Janelas verdes
(1970), inéditos até então. Mais ainda: acrescenta a 2a série, inédita,
de Retratos-relâmpago (1973-1974), A invenção do infinito (1960-1970)
e Conversa portátil (1931-1974). Portanto, uma ressurreição apoteóti-
ca de Murilo Mendes.

28
O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s

Não é fácil ao leitor separar os domínios de sua poesia e da sua


prosa, dado o processo de sua estruturação textual, cuja racionalida-
de e rigor crítico são permanentemente sacudidos por agitações da
insanidade e do caos. Da longa viagem pelo Surrealismo, Murilo
Mendes trouxe um descompromisso meio teatral com a compostura
e certo visionarismo anárquico sobre a vida.
Paradoxal combinação de forças descontroladas do espírito. De
um lado, um Murilo Mendes católico, apostólico, romano, um cren-
te irredutível em suas convicções religiosas, um militante da implan-
tação de Cristo no planeta. Numa carta a Emílio Moura, de 31 de
outubro de 1936 (“Na Vigília de Todos os Santos”, como escreve
no pórtico superior), Murilo Mendes nada mais faz que vibrante
apostolado em prol da conversão do destinatário. Aponta o cami-
nho da Igreja para o poeta amigo e tece demorado discurso de cate-
quese. “Porque não usa você a minha experiência?”, indaga. E acres-
centa: “Estou à sua disposição. Nada valho por mim mesmo, mas te-
nho atrás de mim a sombra formidável da Igreja Católica, mestra in-
falível da Verdade.” Mais conservador, impossível.
De outro lado, a prática da vida o leva aos recantos do protesto
contra a vida burguesa, à indignação cívica e à militância na seara
surrealista, quando esta se confundia com os movimentos revolucio-
nários da esquerda política. Daí ter-se Murilo juntado, na década de
20, a alguns amigos para adaptar-se à visão de mundo supra-real.
Motivo para o conceito com que José Guilherme Merquior ilustra a
“Introdução lírica à poesia de Murilo Mendes”, em prefácio à Anto-
logia poética de Murilo Mendes organizada por João Cabral de Melo
Neto: “Um cristão, porém, do lado da esperança, muito mais que da
crença.”2
2
Tomemos, pois, Transistor. Entre os retratos-relâmpago sobressai o Brasília,
Fontana / MEC,
de Ezra Pound, controvertida personagem. Diz, em dado momento: 1976. Cit.,
“A descontinuidade e falta de estrutura de seus poemas – segundo al- p. xxii.

29
Fábi o Lu c as

guns críticos impertinentes – talvez provenham da sua intuição do va-


lor positivo do silêncio: em toda grande poesia, como em toda grande
música, há que captar a força do silêncio. E não será a palavra a metá-
fora do silêncio? A alusão – recurso poético que procede de Mallarmé
– acha-se plantada na pessoa de Pound tanto quanto nos seus textos.”
(p. 201). E, adiante, prossegue em lúcida e erudita avaliação: “Volto
para casa meditando na crise do mundo atual. Na crise da poesia ana-
lítico-discursiva. Na crise da poesia concreta. Na crise da aventura do
homem, na desintegração do sagrado. No erro crítico que consiste em
taxar de humano somente o que vem da sensibilidade e do instinto, se-
parando o humano do intelectual.” (p. 203)
Como tudo o que saiu da pena de Murilo Mendes, o drama pes-
soal se mescla aos conceitos gerais. Daí ser possível extrair, dos tre-
chos da prosa, a essência do seu pensamento e da sua poética. Ve-
ja-se o que disse acima, a propósito de Ezra Pound. O texto é de
1971.
Enaltecer a excelência das obras de Murilo Mendes representa,
também, limitar o impulso de colher evidências, pois o poeta-
prosador é de tal forma insinuante que, no concerto de suas noções
e achados, melhor será referir por alto do que transcrever. Por
exemplo, no retrato-relâmpago de Pierre-Jean Jouve o que se salien-
ta é a perfeição do perfil. Mas, aos poucos, o que se tem é uma con-
tribuição preciosa acerca do próprio Murilo Mendes, seu modo de
ser e de pensar. Daí insistirmos em que o retrato do poeta se com-
põe, em grande parte, das opiniões que transmite acerca dos escri-
tores, músicos e artistas que admira. De Jouve retém o lado psica-
nalítico, que completa a visão surrealista, os confrontos da vida e
da morte e a suspeita da tragédia de 1939. Murilo Mendes é capaz
de sínteses admiráveis: “Para Jouve o inconsciente é motor de poesia.
Impossível separar o sexual do espiritual.” Ao enumerar as quali-
dades do retratado, Murilo Mendes se põe inteiro, como, por

30
O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s

exemplo, na afeição por Mozart, “um intérprete das forças totali-


tárias de Eros, um antídoto contra a vulgaridade da vida moderna;
aquele que nunca separa a dimensão trágica da feérica” (p. 207).
Retrato-relâmpago de 1971. A sacralização de Mozart pode ser
vista na visão de “Salzburgo” da Carta geográfica, onde o músico é
tratado como “Ele”, como um Deus.
O mesmo acontece com outros retratos. O de Cocteau, por exem-
plo, visto com olhos complacentes, mas, ao mesmo tempo, crítico:
“As experiências de Cocteau cineasta e pintor não me convencem.”
(p. 210).
Admiração saudável é a que destina a Guimarães Rosa. Prosa-
poesia para anunciar, por exemplo, a morte do escritor: “Estoura a
retrovoada, manifesta-se a sinistra palavra infarto, explode-lhe o co-
ração de dez andares.” Depois de evocar autor e obra, Murilo Men-
des literatiza: “Silêncio esdrúxulo que interrompe o martelar da ara-
ponga.” (p. 212)
Entre os santos do oratório do poeta mineiro, um dos mais reza-
dos é Giorgio de Chirico, em cuja pintura Murilo Mendes se inspi-
rou. Pintura “... contra o predomínio da mecânica, contra a predo-
minância da razão, contra certos postulados da civilização burgue-
sa” (p. 218). Outra inspiração foi Max Ernst. Quando diz de Chiri-
co, diz do primeiro, pois o segundo não interessa tanto, uma espécie
de personagem bufa, “rival de Dali”.
Tudo, na vida mental, integra a biografia? Pelo menos nos esta-
dos de êxtase ou de estesia, relatados por Murilo Mendes, poeta
cuja base são as epifanias. Assim, ao narrar seu contato com Nijins-
ki, parte para o registro impressionista e, por último, apela para a
memória dos apogeus: “Prossegue o diálogo sonho-realidade. Sete
anos anteriormente eu participaria do cometa de Halley, quatro
anos depois descobri o prodígio Ismael Nery, Nijinski da conver-
sação, e o choque Mallarmé” (p. 226). Retrocedendo um pouco,

31
Fábi o Lu c as

lembremos que Murilo Mendes, quando flagra Jean Arp, comenta,


na linha do argumento que desenvolvemos: “Mas todas as verda-
deiras criações do espírito, mesmo as aparentemente impessoais,
mesmo uma equação de Einstein, não se resolvem afinal em auto-
biografia?” (p. 221)
Além do observador tenaz de quadros e pintores, do amante in-
corrigível da música, há em Murilo Mendes o viajante perfeito, ca-
paz de estupor diante da descoberta, do grito perante o novo. A in-
teligência descritiva do poeta-prosador se apóia no pressuposto de
que a beleza está pousada em tudo. Basta o olhar curioso para fa-
zê-la saltar.
A beleza lhe é também um ato de inteligência e de conhecimento
acumulado. Já se disse que as viagens são como certas estalagens es-
panholas em que cada um se alimenta do que leva. As visitações de
Murilo Mendes, então, parecem um itinerário de esplendores. A
Grécia seja exemplo. “Qual seria a verdadeira informação sobre o
país que inventou o diálogo? O certo é que a Grécia, talvez devido à
elasticidade dos símbolos e do mito, sempre nos escapa” (p. 233).
Adiante reflexiona: “Direi que a cidade consiste na Acrópole, e nos
museus? Esquecerei o elemento mais vivo de Atenas e de toda a Gré-
cia, a luz que, nos redimindo de muitas culpas, consegue nos subtrair
à idéia dissonante da morte?” (p. 233)
Na viagem é que mais se aguça a energia do olhar. E no interior da
mente se processam as analogias e os contrastes, as articulações me-
tafóricas que galvanizam o texto. Exemplo: quando o poeta intitula
o texto, “A Holanda”, já tem no espírito Mondrian (não, ainda,
Bosch, Rembrandt, Van Gogh ou, longinquamente, Vermeer) pela
consonância de sua obra, sua precisão medida, com o gênio da plani-
ficação do homem holandês.
Poeta-prosador sensível, Murilo Mendes se abasteceu, nos sim-
bolistas, da sensibilidade múltipla, que provoca e mistura os senti-

32
O po li mo rfo Mu ri lo M e n de s

dos, no jogo sempre lembrado das correspondências. Ao dizer de


Haia, não deixa de confessar: “Recordo-me que na minha infância
eu queria não tocar música, mas tocar a música. Assim começou mi-
nha iniciação a esta arte. Pois não é com as mãos, a boca e até mesmo
os pés, que executamos?” (p. 257). O poeta desenvolve, portanto, o
conceito de música tangível.
Letras, música, artes... tantas afinidades estéticas. Mas não esca-
pou a Murilo Mendes o poder persuasivo da dança. Já dissemos do
fenômeno Nijinski. E o flamengo? “Constitui talvez a técnica de
canto e dança mais contagiosa, humana, terrestre, obtida com eco-
nomia de meios”, diz (p. 311) numa página insuperável acerca da
dança espanhola.
Na obra Janelas verdes Murilo Mendes passeia por Portugal e
traz-nos, fundos, os elos culturais que nos inauguraram para a ati-
vidade culta. Ao discorrer sobre as janelas numerosas de Guima-
rães, não lhe escapa o comentário arguto: “Abrindo o povo tantas
janelas, quer dizer (suponho) que é arejado, ama a vida, a comuni-
cação.” (p. 331)
Homem de tantos relacionamentos e de experiência intelectual
ilimitada, Murilo Mendes não se recusa a desdenhar o século XX
(incapaz, a seu ver, de construir grandes praças) e a lamentar o pro-
cesso de banalização da cultura a que a automação e o espírito bur-
guês levaram a civilização contemporânea. E, ao considerar Vila
Real de Santo António, introduz o comentário, entre irônico e de-
sencantado: “Saboreio o anonimato. Não me refiro ao meu anoni-
mato, pois em grande parte do mundo, a começar por Juiz de Fora,
sou anônimo.” (p. 355)
A fragmentação é um dos fortes procedimentos de Murilo
Mendes. Coisa antiga na sua obra. Transistor reproduz aforismas de
O discípulo de Emaús (1945). É daí que escolhemos, como significati-
vo, o de no 651, pois compreende perfeitamente os dois pilares da

33
Fábi o Lu c as

obra do poeta, a tradição e a ruptura: “Recolhamos da tradição o


que é espiritualmente vivo e queimemos suas forças caducas.” E
talvez para reforçar o poder órfico da criação literária, medita so-
bre a grandeza da imaginação demiúrgica: “Só não existe o que não
pode ser imaginado.”
É no capítulo final de Transístor que se publica “Conversa portá-
til”, do qual destacamos o poema cujos versos se dispõem separados
por barras, talvez o mais ousado manifesto existencialista do poeta,
calcado numa litania isomórfica, anafórica, que acaba concentrando
seu poder emocional e informativo no verbo final (como se estrutu-
rado ao modo do período latino): “Para conhecer os motivos da
morte / para ser bem recebido nos seus átrios e participar das gran-
des festas da sua fome / para distinguir os esqueletos cultos dos di-
tos analfabetos, os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros /
para desvelar os textos do Livro dos mortos guardados por Osíris
nas pirâmides nucleares / para tocar a flauta mágica / para concluir
a palavra / para decifrar o rito do touro / para romper com Rimbaud
o pão de pedra / para ler novos cânticos de Dante / para defrontar
Helena de Tróia / para desmontar o tempo / para completar minha
cota terrestre
cota existo.” (p. 403)
O outro destaque vai para o conjunto de apólogos que têm escri-
tores a artistas amigos em evidência, os “Mortos-vivos”, de que o so-
bre Graciliano Ramos no pareceu o mais original:
“ – Graciliano, no Nordeste do outro mundo tem água?
“ – Água não falta. O que falta é vontade de beber.”
Parece-nos que o chiste tem origem num trecho das Memórias do
cárcere em que Graciliano Ramos observa que, no Estado Novo, a
censura não caía fortemente sobre a produção literária, mas o que
matou foi a vontade de escrever.

34
Aí está o Murilo Mendes de Transistor, título original, com a sua
carga simultânea de modernidade e ironia. Certa vez, em Princeton,
EUA, onde estivemos exilado em 1971, convivemos com o físico
brasileiro Jaime Tiomno, igualmente exilado, que lá chegara para in-
tegrar uma equipe que estudava os “buracos negros”. Em certa oca-
sião ele explicou-nos a razão pela qual a então URSS perdera a cor-
rida espacial para os Estados Unidos. É que o Partido Comunista,
intrometendo-se na Ciência, vetara o uso de transistores na fabrica-
ção dos computadores por serem “material burguês”. E os russos
trabalhavam com computadores de várias toneladas, pesados demais
para as aventuras espaciais. O nosso Murilo Mendes, diversamente,
usou a leveza da prosa contida, aguda e agressiva, para elaborar os
textos do seu Transistor, variante da poesia polifacetada, anarco-
surreal, com que declarava o amor às artes, o primado do espírito, o
protesto engajado, o grito anti-fascista e o culto de Eros, ora abrin-
do-se ao sublime, ora mergulhado no grotesco. Espécie de loucura
dirigida ou de pragmatismo inconsciente. O certo é que o enigma
deste mundo ganhou, com a obra de Murilo Mendes, um extenso e
extraordinário desdobramento na linha do esplendor e da cintilação.
Sua prosa lembra um poliedro, assim como a poesia se assemelha a
uma fotomontagem.

35
Ismael Nery, Auto-retrato – c. 1930
Óleo s/madeira – 62 x 47,5 cm
Coleção Gilberto Chateaubriand –
MAM RJ
Poesia e prosa de Murilo
Mendes: Exemplos

 Poemas de O visionário

A Mulher do Deserto
A mulher de areia
Penteia os cabelos de folhas de palmeira,
Estende as mãos de cardo
Pedindo água,
Depois descansa as mãos de cardo
Na humildade da pedra.

A mulher do deserto
Pensa nos seus amores infelizes,
Pensa nos seus amores
Que se evaporam quando o sol nasceu.
Depois não pode mais pensar
Porque o tempo é pouco para pedir água.

37
Fábi o Lu c as

A Filha do Caos
O rio da noite banha
O alicerce das tuas pernas;
Andam brutos e assobios
Na curva, pra te cercarem;
Levanta o arco do corpo,
Sacode a aura sublime
Dos teus sovacos molhados,
Muda o rumo das estátuas,
Manda a criação se deitar...

Das nuvens do teu passado


Quem teus seios deslocou?
Quando surgiste na onda
Teu corpo logo assumiu
Uma feição quase eterna;
Os braços quando se movem
Chamam o juízo final,
Os mortos te obedeceram,
Vêm no cortejo do vento,
Mas a música reclama;
Para a consciência do som
Fizeste a ponte azulada,
Até os próprios gigantes
Palpitaram, desmaiaram,
Transformaram-se em meninos
Pra poderem te abraçar.

Que tens o peso da pedra


E a transparência da onda,

38
Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s

A fremência do cavalo
E o cheiro... que nenhuma tem;
Negra floresta, profunda,
Adormece em teus pentelhos;
Assisto em ti à alvorada,
À tempestade e ao crepúsculo,
Ao movimento e ao repouso...
Que nem Deus terá coragem
De penetrar em teus sonhos!
Cuspirás no meu cadáver,
Do cuspo saem rajadas
De granizo, que destroem
Este mundo e a Criação.

 De A poesia em pânico

Conhecimento
A marcha das constelações me segue até no lodo.
Estendo os braços para separar os tempos
E indico ao navio de poetas o caminho do pânico.
Quem sou eu? A sombra ambulante de meus pais até o primeiro
homem,
Quem sou eu? Um cérebro deixado em pasto aos bichos,
Sou a fome de mim mesmo e de todos,
Sou o alimento dos outros,
Sou o bem encarcerado e o mal que não germina.
Sou a própria esfinge que me devora.

39
Fábi o Lu c as

Viver Morrendo
Eu preciso da paciência dos prisioneiros
Que há vinte anos olham o azul através das grades.
Preciso da esperança de Maria
Sentindo no seio a germinação do Salvador do mundo.
Preciso me revestir da estabilidade da pedra
Para ver o movimento imóvel, o deserto sem cardo...

O Átomo
Agasalha-me à sombra do teu corpo.
Aninha-me entre teus seios,
Aquece-me no calor do teu ventre.
Coisa ínfima, quero ficar perto de ti:
Pássaro que fugiu da tempestade.

Eu sou uma moeda que Deus deixou rolar no chão.

 De As metamorfoses

1999
Estrelas em fragmentos rolarão sobre mim.
Retratos de belas dançarinas serão levados pelo vento
Até a cova rasa em que descanso.
Ninguém pode morrer, que a flor não deixa,
A sombra da árvore não deixa, a pedra e a cruz não deixam.

Tudo começa de novo e existe para sempre.


Eu amei todas e todas me amaram sem saber.
A semente de trigo deu a volta ao mundo
E se levanta em hóstia sobre minha alma seqüestrada.

40
Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s

Rio, murmura como no primeiro dia da criação,


Cometa, surge de novo me incorporando ao céu,
Operário, transmite no espaço o coro da humanidade.
Eis que venho sobre as nuvens.

Tocam-se o fim e o princípio:


FIAT LUX outra vez.

Estudo para um Caos


O último anjo derramou seu cálice no ar.

Os sonhos caem na cabeça do homem,


As crianças são expelidas do ventre materno,
As estrelas se despregam do firmamento.
Uma tocha enorme pega fogo no fogo,
A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.
Os vulcões vomitam cometas em furor
E as mil pernas da Grande dançarina
Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.
Rachou-se o teto do céu em quatro partes:
Instintivamente eu me agarro ao abismo.
Procurei meu rosto, não o achei.
Depois a treva foi ajuntada à própria treva.

A Dama Branca
Ei-la que surge, taciturna,
Anunciada pelos grandes candelabros que se tocam.
Soam tambores nas nuvens,
Cruzam-se mortos no céu.

41
Fábi o Lu c as

O longo vestido branco


Ocupa a linha inteira do horizonte.
Através de gerações e gerações
As mães transmitem às filhas durante o noivado
A idéia do vestido que os bichos do campo teceram.

Ela vem para mim,


Para todos os que admitem vê-la.
Traz o diadema que a separa do comum das mulheres:
Distribui sonhos entre os pobres
E punhais entre os ricos.

Eu a vi, na noite transparente e sem febre,


Quando um clarão ambíguo indicava seu corpo,
E formas desnudas empurravam a lua.

Desde então que percorro arfando o mundo,


Vazio de mim mesmo sem me ver.

 De Mundo enigma

Poema Barroco
Os cavalos da aurora derrubando pianos
Avançaram furiosamente pelas portas da noite.
Dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,
Dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.

O poeta calça nuvens ornadas de cabeças gregas


E ajoelha-se ante a imagem de Nossa Senhora das Vitórias
Enquanto os primeiros ruídos de carrocinhas de leiteiros
Atravessam o céu de açucenas e bronze.

42
Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s

Preciso conhecer meu sistema de artérias


E saber até que ponto me sinto limitado
Pelos sonhos a galope, pelas últimas notícias de massacres,
Pelo caminhar das constelações, pela coreografia dos pássaros,
Pelo labirinto da esperança, pela respiração das plantas,
E pelo vagido da criança recém-parida na Maternidade.

Preciso conhecer os porões da minha miséria,


Tocar fogo nas ervas que crescem pelo corpo acima,
Ameaçando tapar meus olhos, meus ouvidos,
E amordaçar a indefesa e nua castidade.
É então que viro a bela imagem azul-vermelha:
Apresentando-me o outro lado coberto de punhais,
Nossa senhora das Derrotas, coroada de goivos,
Aponta seu coração e também pede auxílio.

 De Poesia liberdade

Ofício Humano
As harpas da manhã vibram suaves e róseas.
O poeta abre seu arquivo – o mundo –
E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejam reajustadas na unidade.

É preciso reunir o dia e a noite,


Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos clarins do sangue.

43
Fábi o Lu c as

Esperemos na angústia e no tremor o fim dos tempos,


Quando os homens se fundirem numa única família,
Quando ao se separar de novo a luz das trevas
O Cristo Jesus vier sobre a nuvem,
Arrastando por um cordel a antiga Serpente vencida.

 De Tempo espanhol

Numancia
Prefigurando Guernica
E a resistência espanhola,

Uma coluna mantida


No espaço nulo de outrora.

Fica na paisagem térrea


A dura memória da fome,

Lição que Espanha recebe


No seu sangue, e que a consome.

As Carpideiras
(Pinturas do Sepulcro de Don Sancho Saiz
Carrillo. 1300. Museu de Arte Antiga, Barcelona)
Altas e agudas flechas espanholas.
Não chorais agora apenas
O cavaleiro estendido no chão:
Chorais árida Espanha abatida.

44
Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s

Flechas também dobradas,


Chorais a vida abatida.
Manifestais, não a máquina da dor,
Mas a dor já rarefeita
Na arquitetura dos corpos herméticos,
Nas listas terrosas e negras
Dos vestidos.

Mulheres contidas
Que uma plástica esquemática
Ordena em rigor: de Espanha
Lamentais a vida abatida.

45
Fábi o Lu c as

Prosa de Murilo Mendes


 De Retratos-relâmpago

Graciliano Ramos
Encontrei muitas vezes Graciliano Ramos. Admirava natural-
mente o escritor pela severidade e precisão do estilo, seu dom cria-
dor de personagens concretos, sua denúncia das falsas estruturas so-
ciais, estimando também o homem pela independência e franqueza
de suas polêmicas atitudes, embora às vezes temperamentais ou de-
sagradáveis. Segundo tentei defini-lo num página do meu livro Con-
vergência, era
Brabo. Olho-faca. Difícil.

Quando inspetor federal de ensino secundário no Rio, Graciliano


foi em certa época designado para exercer essa função no Colégio de
São Bento. Decretada pelo governo Dutra a ilegalidade do Partido
Comunista, o escritor procurou o prefeito do colégio, declarando
que ia tratar da sua transferência a fim de não constranger os mon-
ges. Pediram-lhe então que continuasse a trabalhar em São Bento
onde era muito estimado: Graciliano concordou.

Um dia realizou-se no mosteiro o ato da investidura do novo aba-


de Dom Martinho Michler, que iria continuar a obra iniciada por
Dom Tomás Keller, de transformação da mentalidade dos noviços

46
Poesia e pro sa de Mu ri lo Mendes: Ex e m p l o s

segundo o espírito da Igreja primitiva e da Igreja moderna. Tal ceri-


mônia dura umas três horas. O templo achava-se repleto de fiéis. De
repente distingui num canto Graciliano, em pé, seguindo o desenro-
lar do ofício no livro com o texto litúrgico próprio do ato. Fiz-lhe
sinal que viesse ocupar o posto vago perto de mim; resistiu ao apelo,
firme, em pé durante todo o tempo que durou a cerimônia. Termi-
nada esta, seguiu-se-lhe, de acordo com a tradição hospitaleira da
Ordem Beneditina, um almoço festivo no amplo refeitório; nós dois
sentamo-nos à mesa dos hóspedes, ornada de palmas e gravatás. Ser-
viram-se bons vinhos portugueses.

O fato intrigou-me. Apreciaria Graciliano a linha de rigor e preci-


são estética da missa pontifical que, entre outros, o acatólico Mallar-
mé admirava, tanto assim que lhe dedicou uma grande página das
Divagations? Dias depois, encontrando-o na Livraria José Olympio,
perguntei-lhe frontalmente o motivo da sua atitude: o fato de ele,
um materialista, assistir com tanta atenção àquela cerimônia, acom-
panhando-a no texto latino-brasileiro, e de pé durante três horas.
Ele me respondeu que no fundo era espiritualista, tendo aderido ao
marxismo por julgá-lo a única doutrina capaz de colocar na sua justa
dimensão o trabalhador brasileiro. “Detesto a burguesia e seus parti-
dos, detesto esses políticos safados, patifes, canalhas que só querem
saber de dinheiro e nada mais”, brontolava, mascando o infalível ci-
garro e levantando o braço polêmico. Acrescentou que tendo perdi-
do na mocidade um ente queridíssimo pensara em entrar para um
convento, talvez franciscano; mas abandonou o projeto devido a
fortes dúvidas sobre a imortalidade da alma. Confiou-me ainda que
se houvesse no Brasil um partido cristão, sério, bem organizado,
possivelmente ingressaria nele. Eis o que me informou tão imprevis-
tamente o autor de Vidas secas.

47
Fábi o Lu c as

Minha primeira reação ao regressar do encontro foi de espanto e


surpresa. Depois caí em mim: por que admirar-me daquele fato?
Como se eu não tivesse lido muito, absorvendo-os, Dostoievski,
Freud, Stevenson, Pirandello, Kafka, não tivesse vivido experiências
de sondagem nas profundezas do ser humano com sua capacidade
de desdobramento. Seria Graciliano um rígido ‘materialista’? Seria
eu um rígido ‘espiritualista’? Antes mesmo daquela época eu já co-
meçara a duvidar dos esquemas e da versão oficial da nossa natureza,
inclusive as autoversões. Agora então que me aproximo a passos lar-
gos da palavra eternidade – com ou sem direito a uma segunda vida
– sinto se descolarem dia a dia as cômodas etiquetas que recipro-
camente nos aplicamos, enquanto subsiste o enigma da nossa ver-
dadeira identidade que talvez de resto nunca poderemos decifrar.

48
Em torno de um poema
de Murilo Mendes
N elso n S a l d a nh a

N o livro Mundo enigma, de Murilo Mendes, inclui-se o “Poe-


ma barroco”, que considero – desde que o li, em plena ju-
ventude – um dos maiores poemas da língua portuguesa.
Professor da
Universidade
Federal de
Pernambuco.
O poema, onde me parece existir algo de Jorge de Lima (um pa-
rente literário de Murilo), revela uma profunda força, um poderoso
latejar de imagens, algo que transparece na impressionante unidade
da peça. Unidade que existe apesar da variedade de imagens tão pró-
pria do autor.
De fato a poesia de Murilo Mendes apresenta uma às vezes des-
concertante (ou ao menos perturbadora) sucessão de alusões, que
são configurações e representações mas também nuances trazidas
pela adjetivação: um surrealismo que foi certamente da época, mas
com traços expressionistas atenuados pela religiosidade do poeta.
Essa religiosidade (que também se encontra em Jorge de Lima) atra-
vessa os poemas de Murilo Mendes como um basso continuo, um per-
passar quase silencioso mas não imperceptível.

49
Nelso n Saldanha

O “Poema barroco” começa abrupto, lembrando o início da Sin-


fonia no 1 de Sibelius, com acordes que desabam e recomeçam. Digo
conscientemente “desabam”, porque o poema se abre com estes dois
versos:

Os cavalos da aurora derrubando os pianos


Avançam furiosamente pelas portas da noite.

A aurora não é aí uma iluminação inaugural, mas quase uma vio-


lação: ela faz desabarem as portas e entra pela noite. Derruba pianos:
um instrumento pesado, difícil de ser derrubado, mas ao mesmo
tempo profundamente musical.
Adiante aparecem “relógios e cristais de outras épocas”; sempre o
agudo sentido do tempo, em um poeta que pensava em coisas intem-
porais como os anjos e o próprio Deus. E aparecem “cabeças gre-
gas”: o poeta se orna com elas, mas ajoelha-se diante da imagem de
Nossa Senhora das Vitórias. A alusão à Virgem convive, porém, de
pronto, com carrocinhas de leiteiros, e há um “céu de açucenas e
bronze”.
Esta comovedora união do frágil com o forte revela a ambigüida-
de que habita o espírito do poeta, ansioso por firmezas e certezas,
mas enormemente sensível às coisas precárias, perecíveis e inermes.
Nestas residem significações que o poema precisa detectar e reco-
lher, antes que cessem. Daí a associação, na terceira estrofe, entre a
preocupação com suas próprias artérias (o sangue: precariedade e,
entretanto, presença decisiva) e o esforço de suportar o mundo. Su-
portar as más notícias mas também os sonhos e as constelações. Os
sonhos “a galope”, note-se, retomando a imagem do avanço dos ca-
valos da aurora.
E mais:

50
Em torno de u m po ema de Mu ri lo M e n de s

Preciso conhecer os porões da minha miséria.

Tema pascaliano, por certo (misère de l’homme), a miséria como fra-


queza e afinal como finitude. Confusa disposição, a de vasculhar po-
rões existenciais, tanto mais que poucos versos antes – na citada es-
trofe terceira – o poeta mencionava (talvez uma expressão-chave) o
“labirinto da esperança”.
A estrofe final constitui um detour:

É então que viro a bela imagem azul-vermelha:


Apresentando-me o outro lado coberto de punhais
Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos,
Aponta seu coração e também pede auxílio.

Deixei de transcrever o poema inteiro, o que poderia ter feito ao


início, por supor que os leitores de Murilo Mendes o conhecem, e
para dar a este texto um sentido autônomo. Mas no seu conjunto é
que o poema possui seu encanto, estranho encanto, como peça que
se destaca entre os poemas do livro e, entretanto, confirma o modo do
autor, o tipo de imagens que usa, o ‘clima’ emocional a que corres-
ponde sua poesia. Não se trata de poesia ‘elaborada’ como experi-
mento verbal, nem construída como fuga: evitar isto, evitar aquilo. A
poesia de Murilo Mendes brota e flui, o que não quer dizer que não
revele um trabalho, uma artesania consciente, uma concentração e
uma competência. Ela exprime um constante diálogo com as coisas,
que não são apenas coisas, objetos inertes: são entidades cujo signifi-
cado as torna vivas. Diálogo com símbolos, com figuras que saem de

51
Nelso n Saldanha

dentro do poema antes mesmo de escrito, como a confirmar o que


escreveu uma vez Benedetto Croce: que o ponto crucial da criação
artística é aquele em que o artista concebe a forma a ser dada à obra.
Murilo Mendes revive intensamente, em seus poemas, sua experiên-
cia essencial. Ocorre lembrar Dilthey, quando escreveu, em sua Poéti-
ca, que a criação poética deve basear-se na força das vivências. Não
por acaso as gerações seguintes à de Dilthey utilizaram largamente a
idéia da vida, e com ela a da vivência, ou seja, a experiência entendida
em sua profundidade pessoal.
As imagens, na poesia de Murilo Mendes, apresentam uma va-
riedade que pode parecer caótica, mas que em realidade se con-
duz como uma consciente diversificação de elementos: dos mais
banais, tirados do cotidiano, aos místicos e transcendentais. Alu-
sões a Deus e à noite, bem como à guerra, a esqueletos de atrizes,
aos jornaleiros. Tudo isto traça um mundo, ou seja, retraça o
mundo nos termos do poeta, sempre impressionado com notícias
de bombardeios, com a eternidade e com os anjos. O mundo rees-
crito, a poesia como um relatório, e ao mesmo tempo como uma
reinvenção. Diria mesmo, como um palimpsesto, sempre reco-
berto, sempre mudado pela superposição das palavras, que é a su-
perposição das vivências.
Volto, para concluir, ao “Poema barroco”. Ele constitui a meu
ver o ponto mais alto de Mundo enigma. Nele se encontram de modo
exemplar as características da poesia do autor. A mim me parece ver
e ouvir a passagem dos “cavalos da aurora”, violando a noite (a noite
que tanto aparece em Murilo), violando as portas, que são limites; e
com a chegada da aurora aparecem as carrocinhas dos leiteiros.
Tudo são inquietações que o poeta flagra, inclusive dentro de si
mesmo. E afinal, a imagem de Nossa Senhora das Vitórias, diante da
qual o poeta se havia curvado, apresenta sua outra face, a das Derro-
tas, que “também pede auxílio”.

52
Em torno de u m po ema de Mu ri lo M e n de s

O barroco da profusão de imagens, colocadas durante o poema


como acúmulo de inquietações, converge para um ponto inesperado:
a própria santidade, a própria divindade posta em crise e entregue à
contingência.

53
Disco de Faístos, Creta
Museu do Louvre, Paris
Datado do século XVII a.C.
São 45 signos representando figuras de animais e objetos da vida cotidiana.
Supõe-se que a leitura comece da borda para o centro.
Diretrizes do
culturalismo
Miguel Reale

A ssim como se diz que o século XIX foi o século da história,


pode-se dizer que o século XX foi o século da cultura, o que
assinala relevante progresso na compreensão do ser humano. É pre-
Miguel Reale é
jurista, professor,
ensaísta. Sua
bibliografia
ciso, contudo, esclarecer em que sentido está sendo feita por mim fundamental
essa afirmação. abrange obras de
Filosofia, Teoria
A palavra “cultura” é, com efeito, rica de significados, a começar pelo
Geral do Direito,
mais genérico, relativo à nossa capacidade de utilização dos recursos na- Teoria Geral do
turais, como se dá, por exemplo, no caso da agricultura. Quando, po- Estado e estudos
rém, se cuida dos valores da sensibilidade e do intelecto (cultura animi), de Direito
Público e
empregamos o termo cultura para indicar o saber ou o conhecimento Privado. É o
indispensável ao acesso a formas superiores de vida. Foi Cícero quem, fundador da
pela primeira vez, fez a distinção entre cultura agri e cultura animi, quase Revista Brasileira de
Filosofia (1951) e
como uma síntese das civilizações grega e romana, esta mais apegada a presidente do
valores pragmáticos, aquela mais inclinada aos valores do espírito. Instituto
Era natural que de uma compreensão, por assim dizer subjetiva da Brasileiro de
Filosofia.
cultura, se passasse a indicar, com a mesma palavra, o conjunto objeti-
vo de bens artísticos, científicos, técnicos, etc., resultante de nossa ati-

55
Mi gu el Reale

vidade criadora. Finalmente, após terem os antropólogos estudado a


cultura ou civilização dos povos primitivos, a palavra cultura adquiriu
uma significação ainda mais extensa, servindo para indicar tudo aquilo
que o ser humano, valendo-se da capacidade que lhe é própria, veio
constituindo como patrimônio histórico da espécie, transmitido de
uma geração às outras, desde o machado de sílex dos ‘selvagens’ às
mais poderosas realizações da arte e da ciência contemporâneas, sem
esquecer o aprimoramento mesmo da mente e a extensão dos poderes
da sensibilidade, da inteligência e da vontade, em virtude dos prodigi-
osos instrumentos de comunicação de que dispomos.
Ora, como toda luz tem sua sombra, também o processo cultural
gera valores negativos, desvalores em todos os setores da vida indivi-
dual e coletiva, pois não deixa de pertencer também à história e à
cultura a sociedade em que vivemos, em continuidade ou em confli-
to com as sociedades do passado. Não deve, por conseguinte, causar
estranheza que nos países mais cultos surjam formas insuspeitadas
de violência e de criminalidade, o que prova que não somos nem
bons nem maus por natureza ou por cultura.
Eis aí, em palavras pobres, o quadro global da ‘cultura’ que apon-
tei como característica primordial do século passado, o mais violen-
to e revolucionário de todos os tempos, por sinal que condicionado
por dois conflitos bélicos universais que ocuparam a sua primeira
metade, projetando seus efeitos até nossos dias, com a Queda do
Muro de Berlim de permeio, após os genocídios nazista e soviético,
ambos igualmente atrozes, muito embora se costume esquecer ou
perdoar o praticado pelos comunistas...
É compreensível que a humanidade tenha tardado a adquirir cons-
ciência de seu ser como cultura, ou do ser como dever ser, isto é, como o
mundo de valores e desvalores espirituais e materiais que o homem veio
experienciando lentamente à sua imagem e semelhança, ainda mesmo
quando julgava o estar construindo à imagem de Deus ou da natureza.
Do sentimento perene do divino, raiz da religiosidade, segundo o
papa João Paulo II, andou divorciada a ciência de nosso tempo. Na re-

56
Di retri zes do c u ltu r a l i s m o

cente encíclica Fides et Ratio, emanada na véspera de seu vigésimo ano de


pontificado, o pontífice vai além, proclamando que o divórcio é até
mesmo entre ciência e filosofia, porquanto esta teria abandonado a me-
ditação dos problemas fundamentais sobre o ser e sobre o homem, para se
contentar com a análise minuciosa dos problemas da linguagem, cui-
dando os pensadores com afinco das técnicas de comunicação e infor-
mação, sem atentarem para aquilo que se comunica e se informa.
Não creio se possa negar razão ao grande papa de nosso tempo,
porque, efetivamente, filósofos há que, a meu ver, estão enroscados
na teia de aranha dos problemas lingüísticos e semióticos, sem da-
rem a menor atenção, não digo às questões religiosas, mas também
aos problemas éticos, estéticos ou históricos, pondo-se, desse modo,
à margem dos problemas essenciais do homem.
Eis aí uma perspectiva antiga que ressurge, em nossa época, com
foros de novidade, porquanto, após um período de exaltação da
existência, sob múltiplas formas de existencialismo, sucedeu uma
fase de predomínio exclusivo de questões de ordem formal. Até
mesmo os juristas, sempre sensíveis em relação aos problemas éticos,
esvaziaram a Filosofia do Direito de seu conteúdo axiológico, para
somente dar realce, não ao normativo quo tale, mas às vestes extrínse-
cas da normatividade.
Outro problema que está a merecer renovado interesse é o de rela-
ção da natureza com a cultura, antes no centro dos estudos humanísti-
cos. No meu entender são quatro os momentos fundamentais no mul-
timilenar relacionamento do homem com a natureza. O primeiro, o
mais longo, é o da subordinação passiva da nossa espécie às imposi-
ções da natureza, não faltando, é claro, o seu reflexo no plano filosófi-
co até hoje, sob todas as formas possíveis de ‘naturalismo’, prevalecen-
do a idéia de que a sabedoria consistiria em “obedecer à natureza”.
Ainda há poucas semanas, um famoso biólogo asseverou, dogmatica-
mente, que nossa vida interior – quer se denomine alma, consciência
ou espírito – não é senão o resultado de meros condicionamentos ce-
lulares, sendo o cérebro o órgão desse processo puramente material.

57
Mi gu el Reale

Em um segundo momento, porém, houve homens que se deram


conta de seu poder próprio, irredutível ao determinismo naturalista.
Lembro-me, mais uma vez, de Cícero, que, fiel ao voluntarismo de sua
gente, contrapunha-se ao naturalismo dos estóicos, afirmando: “est ali-
quid etsi in nostra potestate”, algo existe, todavia, em nosso poder de querer.
Dando grande salto na história das idéias, diria que coube a Kant
revelar com segurança o valor do eu perante a realidade natural, mos-
trando, com sua “revolução copernicana” (uma virada de 180º no
plano do conhecimento), que, para conhecer, não há adequatio rei ac
intellectus, ou seja, não nos adequamos aos objetos, mas são estes que
são constituídos como tais em virtude do poder legislador ou no-
motético da mente. Haveria, assim, condições subjetivas ordena-
doras ou legisladoras da realidade, as chamadas “condições trans-
cendentais”. Creio que essa mudança radical na esfera do conheci-
mento permitiu ir além de Kant através de Kant, digamos assim,
para compreender-se melhor como o ‘natural’ se converte em ‘cultu-
ral’, ao envolver tanto quem pensa como aquilo que é pensado e se
torna elemento e fator de nosso agir.
Pois bem, em um terceiro momento, houve exagero na considera-
ção da natureza como o ‘pólo negativo’ do conhecimento, até o pon-
to de Hegel, continuador de Kant, dizer que o espírito está ‘aliena-
do’ enquanto não se liberta da natureza, superando suas leis causais.
Tobias Barreto, pensador sergipano que lecionou na Faculdade de
Direito do Recife, entendia que é a cultura que supera o que há de
selvagem no homem, sendo “a antítese da natureza, no tanto quanto
ela importa uma mudança no natural, no intuito de fazê-lo belo e
bom”. Como no Nordeste, conforme dito de José Américo de
Almeida, “a natureza é menos mãe do que madrasta”, compreen-
de-se a visão negativa que Tobias tinha da natureza.
Já agora, abstração feita de certos ‘culturalistas’ extremados, prevale-
ce o entendimento de que a natureza está na base da cultura, constituin-
do ambas um binômio incindível, o que não nos impede de reconhecer
o primado do espírito e a sua irredutibilidade ao físico ou ao biológico.

58
Di retri zes do c u ltu r a l i s m o

O ‘culturalismo’, tal como vem sendo estudado no Brasil desde a


década de 1940, e se acha em pleno desenvolvimento, compartilha
desse conceito moderado de cultura. Seja-nos permitido ponderar
que nessa matéria há uma contribuição minha, não recebida da filo-
sofia alienígena: é a idéia de que a cultura não é um ente intercalado
entre a natureza e o espírito, entre os fatos e os valores ideais, con-
forme tese de origem neo-kantiana, mas representa o correlato da
natureza, sendo um ente autônomo, que abrange “tudo o que é enquanto
deve ser”, isto é, tudo o que o homem pensa e realiza ao longo da his-
tória, visando alcançar seus fins específicos. Não será demais acres-
centar que esse reconhecimento da cultura como objeto autônomo
só adquire plenitude se é atribuída a autonomia ao valor, visto por
mim como expressão do dever ser (Sollen) e não do ser (Sein). Não é ele
um ‘objeto ideal’, como os lógicos ou matemáticos, tal como errone-
amente sustentavam Max Scheler e Nicolai Hartmann, mas sim algo
que se põe como fim que deve ser realizado.
Grande passo deu o conhecimento humano, a cavaleiro dos sécu-
los XIX e XX, quando se passou da teoria deontológica do bem (objeto
final da conduta ética) para a teoria dos valores, condições transcen-
dentais de todas as objetivações intencionais do espírito, abran-
gendo tudo o que o ser humano pode criar, do plano filosófico ao
religioso, do ético ao político, do científico ao estético, e assim por
diante, o que quer dizer, aquilo que hoje denominamos cultura.
Daí minha afirmação de que o ser do homem é o seu dever, uma vez
que ele, a um só tempo, é e vale, como pessoa, que é o valor-fonte de to-
dos os valores, e, por conseguinte, a raiz primordial da cultura.
Esclarecidos esses pontos cardeais, pode-se concluir que o culturalis-
mo – que veio assumir no Brasil configuração e sentido próprios – é
uma doutrina que põe o conceito de cultura no centro de suas indaga-
ções sobre o ser humano e suas realizações, considerando-a um tema
essencial da filosofia, e não apenas da antropologia, como ciência po-
sitiva das formas de vida e civilização da espécie humana desde as suas
origens.

59
Mi gu el Reale

É claro que o culturalismo assume modalidades diversas, de ma-


neira que vou me limitar a expor meu ponto de vista, apresentado em
várias obras, duas das quais básicas, Experiência e cultura e Verdade e con-
jetura, completadas por um trabalho recente, intitulado Cinco temas do
culturalismo.
Assim sendo, torno a insistir que, quando emprego a palavra cultura,
não me refiro a seu sentido mais corrente, como o conjunto de conheci-
mentos que nos habilita a fruir de um número cada vez maior de valores
materiais e espirituais, mas sim à cultura como tudo aquilo que a huma-
nidade vem constituindo através da história, no plano da religião, das
ciências, das artes, das técnicas, etc., bem como do que ela realizou e
continua realizando no mundo da vida comum (Lebenswelt). Não é de-
mais acrescentar que a evolução cultural se desdobra em longos perío-
dos históricos que denominamos civilizações, ao longo das quais se confi-
guram durações que Fernand Braudel dá o expressivo nome de conjunturas.
Não será exagero afirmar que, desde quando o homem adquiriu
maior consciência de si mesmo e de sua posição no mundo, começou
a duvidar da verdade daquilo que pensava; ou do acerto de seu modo
de agir, dando, assim, nascimento, ainda que de forma imprecisa e
elementar, ao que, bem mais tarde, viria a constituir, respectivamen-
te, o domínio da ‘teoria do conhecimento’ e da ‘ética’.
Passaram-se milênios antes que se elaborassem esses dois campos
de investigação. Se a ética, como teoria da conduta em razão do bem,
se organizou mais cedo, atingindo um de seus pontos mais altos no
pensamento de Aristóteles, a indagação sobre os limites do conheci-
mento humano, como uma problemática autônoma, somente surgiu
na Época Moderna e, mais claramente, através de um processo cog-
noscitivo que vai de Descartes a Kant.
Pois bem, é com Kant, nas últimas décadas do século XVIII, que
a teoria do conhecimento adquire contornos mais precisos, enten-
dendo ele que somente pode ser considerado certo o que é verificá-
vel pela experiência, dependendo de certas condições subjetivas, ou seja,

60
Di retri zes do c u ltu r a l i s m o

de propriedades próprias do sujeito cognoscente como tal e que, por se-


rem condicionantes do saber, ele as declarava transcendentais ou a priori,
isto é, anteriores ao conhecimento mesmo. Noto que não há como
confundir transcendental com transcendente, visto ultrapassar este as rela-
ções entre o sujeito cognoscente e a experiência, sendo, por isso, a
seu ver, incognoscível (o absoluto).
Em última análise, a partir desses pressupostos, segundo Kant, se-
riam cientificamente cognoscíveis somente os fenômenos da nature-
za, havendo uma vinculação incindível entre teoria da natureza e teoria
do conhecimento, só podendo a ética resultar de imperativos que ema-
nam imediata e diretamente da consciência como imperativos cate-
góricos. Por outro lado, a história, ou por melhor dizer, os fatos his-
tóricos só poderiam ser objeto de conjeturas, colocação esta que eu iria
depois reviver, mas com outra significação, no meu livro Verdade e
conjetura, no qual também analiso o problema da metafísica para além
do mundo fenomenal.
Pode-se dizer que grande parte da filosofia, depois de Kant, se
propôs a superar o impasse por ele criado entre natureza e cultura,
ou natureza e história, com a exclusão da ética do plano do experien-
ciável, o que era grave, por ficar a liberdade humana insuscetível de ter
seu valor demonstrado ao longo do processo histórico. Daí o gigan-
tesco esforço de Hegel no sentido de tudo englobar em sua concep-
ção monista e dialética da história, na qual “o que é real é racional e o
que é racional é real”.
No meu entender, superado o monismo hegeliano, por sinal que
convertido por Marx em materialismo histórico, era preciso voltar
às origens da teoria do conhecimento, para revisá-la. Foi o que fez
Husserl, que, embora reconhecendo a existência de condições subjetivas
no ato cognoscitivo, declara necessário indagar também de suas con-
dições objetivas, ou seja, das pertinentes às coisas mesmas, para as quais se
dirige a consciência intencional, a qual não as poderia captar se nelas
não houvesse algo que as torna apreensíveis e que constituem o que

61
Mi gu el Reale

ele denominou a priori material, dando, desse modo, valor tanto ao su-
jeito que conhece quanto ao objeto conhecido. Dado esse passo, foi
possível a Max Scheler e Nicolai Hartmann reintroduzir a ética no
mundo do conhecimento e da cultura, ao mesmo tempo que os re-
novados estudos sobre o valor (axiologia), a partir das últimas déca-
das do século XIX, permitiram que ele fosse o elemento mediador
entre natureza e cultura, ou, como prefiro dizer, entre o que é e o que
deve ser, iluminando o sentido a ser dado ao objeto cultural, que “é en-
quanto deve ser”. Nem se pode esquecer que se deve a Bergson a fa-
çanha de desvincular a liberdade dos nexos causais da natureza, sem o
que não teria sido possível reconhecer-se a autonomia da cultura.
Lembrado, nesse breve escorço histórico, como veio se delinean-
do o culturalismo – que, no Brasil, teve como precursor Tobias Barre-
to ao correlacionar Kant com o antropólogo Hermann Post e o ju-
rista Jhering – cabe-me observar que, segundo minhas últimas medi-
tações, há um terceiro a priori a considerar, o relativo às condições
existenciais da correlação sujeito/objeto no plano do conheci-
mento: é o a priori cultural, transcendentalmente inerente ao ato de co-
nhecer. Em verdade, a cultura não é algo que vem depois – como ge-
ralmente se pensa – mas é coeva e concomitante com o surgimento
do ser humano na face da Terra, como o comprovam seus instru-
mentos e desenhos encontrados nas cavernas primitivas. Essa proje-
ção da cultura à origem do homem altera radicalmente a problemáti-
ca do culturalismo, podendo-se afirmar que a cultura é “a objetiviza-
ção das intencionalidades humanas ao longo da história”, a partir da
noção de que “conhecer é conhecer algo no mundo”.
Husserl, com o seu conceito de Lebenswelt (mundo da vida) distinto do
mundo dotado de categorias cognoscitivas, tal como, por exemplo, o
mundo da ciência – abre caminho à admissão de um a priori cultural. É
que o Lebenswelt não representa uma fase anterior da evolução histórica,
mas constitui uma realidade perene, a qual coexiste com o mundo su-
jeito a diversas formas de categorização resultantes do poder nomoté-

62
Di retri zes do c u ltu r a l i s m o

tico do espírito. O tempo do Lebenswelt não é, assim, tempo histórico


(como tal categorizado) mas mero tempo cultural correspondente ao
mundo intuitivo da vida cotidiana, à expontânea experiência comum
ou corrente não ordenada em objetos do conhecimento.1
Se assim é, pondero eu, cumpre reconhecer a universalidade a priori
da cultura, a qual é inerente ao ser humano, que desde as origens não
pode deixar de ser visto como um ente cultural.
Em verdade, quando surge a cultura? Quando o ser humano se
vale de suas propriedades individuais e introduz algo de novo na na-
tureza, passando do grito animalesco – que é sempre o mesmo –
para a fala, que nasce, se transforma e se desenvolve; ou, então, plas-
ma os dados da natureza para convertê-los em utensílios, deles se ser-
vindo para múltiplos fins, desde as armas de defesa ao preparo de
alimentos, não faltando a espontânea disposição à dança e ao re-
creio, bem como a inclinação a fazer os primitivos desenhos e escul-
turas, que até hoje nos surpreendem, como projeção de originária
força emocional. Como contestar que essas criações já não implicam
o poder a priori de instaurar cultura? É com base, pois, nesses dados de 1
Sobre o
experiência que afirmo existir um a priori cultural como conditio sine qua conceito
non de projeção do poder nomotético do espírito. husserliano de
Se, como geralmente se admite, o ser humano é um ente histórico, é Lebenswelt e
respectiva
porque originariamente é um agente cultural, instaurador dos bens de bibliografia, cfr.
cultura, graças aos a priori subjetivo e material que Kant e Husserl soube- Miguel Reale –
ram determinar no ato cognoscitivo. Experiência e
Cultura, 2a ed.
O homem, em suma, desde sua chegada ao mundo, é um agente cul- revista,
tural, sendo, a um só tempo natureza e cultura, estando a projeção desta Campinas, 2000,
a priori em sua mente, ou melhor, em sua subjetividade criadora. Isto pág. 126 e segs.
Quanto à
posto, a extensão que fiz da fenomenologia ao mundo histórico-
distinção entre
cultural, importa no reconhecimento de um a priori cultural, sem o tempo cultural e
qual não surgiria a relação sujeito-objeto, base da ontognoseologia. tempo histórico, v.,
Este é o ponto comum de partida da infinita aventura universal no mesmo livro,
Cap. VIII, § IV,
do espírito. pág. 254 e segs.

63
O santo D. Eugênio
Ar n al d o N is k ie r

C anonização propriamente dita, não houve. Mas é possível


considerar o Cardeal D. Eugênio de Araújo Sales um santo
dos tempos modernos. Numa crônica de novembro de 1995, publi-
Professor,
educador,
conferencista,
Arnaldo Niskier
cada no livro Diário da educação (Edições Consultor), tomei essa liber- tem cerca de uma
centena de livros
dade ao reviver a extraordinária obra de pastor do religioso nascido publicados, sobre
no Rio Grande do Norte, mas carioca por vontade dos que com ele Educação
têm o privilégio de conviver. brasileira,
Filosofia e
De onde vem a nossa estima? São múltiplos os fatos que a moti- História da
varam. Primeiro foi o convívio mais estreito quando me tornei Se- Educação,
cretário de Estado de Educação e Cultura do Rio de Janeiro Tecnologias de
Ensino, obras
(1979). Queríamos, numa grande interação, aperfeiçoar ainda didáticas e de
mais a coordenação de educação religiosa, reunindo católicos, ju- literatura
infanto-juvenil.
deus e protestantes.
D. Eugênio, homem de convergências, reuniu-me com os doze
bispos do Rio de Janeiro, para uma utilíssima troca de idéias. O
resultado foi o aprimoramento da educação religiosa nas 2.500

65
A rnaldo Ni ski er

escolas públicas do Estado, tarefa que parecia impossível, dada a


existência de interesses subalternos, mas que superamos, para ale-
gria geral.
Fui ao lançamento do livro Viver a fé em um mundo a construir, em que
se reuniram crônicas publicadas pelo Cardeal D. Eugênio nos prin-
cipais jornais do Rio de Janeiro. Temas predominantes? Ética, vio-
lência, AIDS, corrupção, saúde, vida, esperança e amor. Era o mo-
mento em que se comemorava o cinqüentenário de sacerdócio do
Cardeal-arcebispo, que consagrou a vida a Deus e ao bem das almas,
servindo completamente a seus irmãos de forma silenciosa e discre-
ta, como reparou o acadêmico Murilo Melo Filho, que lhe devota
profunda admiração.
Como sacerdote, estimulou os homens a lutar por uma sociedade
justa, com fundamento na moral e na exaltação dos valores éticos
pregados pela religião. Ele reage ao enfraquecimento da atenção aos
valores morais: “É insustentável esta situação, pois temo que haja
graves conseqüências para a vida do nosso país. Queremos uma soci-
edade livre e democrática, é certo, mas baseada em princípios éticos
da convivência social.” É uma declaração de 1995.

 A luz da religião

Na véspera de uma segunda visita do Papa João Paulo II ao Rio


de Janeiro, em 1997, conversando com os membros do Conselho
Cultural da Arquidiocese, por ele criada e da qual tenho a honra de
ser membro, D. Eugênio fez uma declaração que anotei em meu ca-
derno: “A religião ilumina nosso caminhar no mundo, exalta a dig-
nidade do indivíduo e oferece um fundamento sólido às dimensões
éticas em nossa ações.”

66
O santo D. E u g ê n i o

É por isso mesmo que ela não pode se ausentar da escola, inde-
pendentemente da crença dos jovens estudantes: “Para que de
forma completa a Educação possa assegurar o futuro da socieda-
de, pois são fundamentais os valores morais ministrados adequa-
damente.”
A conversa, coordenada pelo professor Sérgio Pereira da Silva, foi
concluída com o comentário de D. Eugênio, depois de solicitar que
a Educação fosse incluída entre as prioridades do País: “Ela encerra
algo intrínseco à natureza do homem. Procura dar resposta às inter-
rogações que norteiam nossas atividades por toda parte.” Daí a ne-
cessidade do ensino religioso nas escolas.

 Rádio Catedral

Outra ação que me aproximou muito de D. Eugênio Sales foi a


inauguração da Rádio Catedral. Participei das primeiras reuniões
sobre a sua programação, daí nascendo a idéia do vitorioso progra-
ma “Vox Populi”, conduzido pelo Conselho Cultural da Arquidio-
cese do Rio de Janeiro. Participei durante mais de dois anos, todas as
segundas-feiras, às 18 horas, do atraente programa de debates, ao
lado de profissionais dedicados e competentes. Tudo obra do Car-
deal, que, com a sua acuidade, por vezes nos puxava as orelhas quan-
do passávamos do ponto. Mas isso muito raramente, pois ele é fã ar-
doroso da liberdade de expressão e soube compreender também o
valor da mídia eletrônica.
A Rádio Catedral-FM hoje é uma realidade, no espectro das
emissoras do Rio de Janeiro, exercendo um papel de fundamental
importância, nos planos de comunicação da Igreja.

67
A rnaldo Ni ski er

Alguém menos avisado perguntará: “Como D. Eugênio permite


que um não-católico participe disso tudo?” Eu diria que a resposta
está na própria atitude aberta e democrática de D. Eugênio. Nunca
admitiu que, a qualquer pretexto, fosse feita qualquer discriminação.
Ao contrário, partiu dele o estímulo para que eu fizesse, há seis anos
ininterruptos, o programa “Frente a Frente”, na Rede Vida de Tele-
visão. A minha única frustração é que ele, até hoje, não encontrou
tempo para me dar uma entrevista, que será longa. Mas cultivo essa
esperança.

 O Papa no Sumaré

Penso que vale ainda uma reflexão sobre o nosso primeiro encon-
tro com o Papa João Paulo II, no Centro de Estudos do Sumaré, em
1981. Eram aproximadamente 100 intelectuais, como pediu a D.
Eugênio o Sumo Pontífice, e a sessão onde falaria o acadêmico
Alceu Amoroso Lima se iniciou com um passeio do Papa, ao lado
do inesquecível professor Carlos Chagas Filho, para apertar a mão
de cada presente. D. Eugênio, sorrindo sempre, vinha logo atrás.
Quando chegou a minha vez, disse o professor Carlos Chagas:
“Eminência, este é o Secretário de Educação do Rio de Janeiro, pro-
fessor Arnaldo Niskier.” O Papa apertou delicadamente a minha
mão e disse: “Muito prazer.”
Mas D. Marcos Barbosa, de saudosa memória, que se encontrava
ao meu lado, aduziu rapidamente: “Ele é filho de poloneses.” O
Papa voltou um passo, me olhou de alto a baixo, e acrescentou, aper-
tando de novo a minha mão: “Muito bem.” Foi, confesso, um mo-
mento de grande emoção.
Chegando em casa, ainda muito feliz, e agradecido a D. Eugênio
Sales pela oportunidade, escrevi a crônica que ora transcrevo:

68
O santo D. E u g ê n i o

Com uma serenidade invejável e um carisma evidente, o


Papa João Paulo II manteve um diálogo de 90 minutos com
dezenas de intelectuais brasileiros, no Sumaré. Disse – o
que foi uma constante em sua viagem – uma série de concei-
tos de grande importância para a nossa reflexão e o destino
da atual geração, que ele pretende seja beneficiada pela ins-
titucionalização da “civilização do amor.”
Tive o privilégio de participar desse encontro. Olhei de per-
to os seus olhos azuis e a sua face rosada, de onde se irradia in-
tensa luminosidade. É uma das maiores figuras da humanida-
de. Suas palavras ainda ecoam em nosso espírito:
– Os povos economicamente mais ricos e industrialmente
mais desenvolvidos geraram o consumismo, que está na ori-
gem de desequilíbrios cada vez mais acentuados entre os povos
ricos e os pobres, assim como entre as populações de um mes-
mo país.
O Papa ressaltou, sentado ao lado do Cardeal D. Eugênio
Sales, a contribuição da Igreja que, através das missões, tentou
preservar os elementos básicos da cultura indígena. Afirmou:
“A mensagem da Igreja não esteve alheia ao equilíbrio e à har-
monia com que se processou a integração das diversas raças
que constituíram o País.” (Nesse momento, eu me lembrei
muito do trabalho de José de Anchieta.)
Sua Santidade, com muita singeleza, mostrou que a verda-
deira cultura é humanização, enquanto a não-cultura e as falsas
culturas são desumanizantes. Por isso mesmo, na escolha da
cultura o homem empenha o seu destino. Assinalo o trecho
talvez mais enfático da leitura do Papa, num bonito e bem dito
português:

69
A rnaldo Ni ski er

– A humanização, ou seja, o desenvolvimento do ho-


mem, efetua-se em todos os campos da realidade na qual ele
está situado e se situa na sua espiritualidade e corporalida-
de, no universo, na sociedade humana e divina. Trata-se de
um desenvolvimento harmônico... A cultura deve cultivar o
homem e cada homem na extensão de um humanismo inte-
gral e pleno, no qual todo o homem e todos os homens são
promovidos na plenitude de sua dimensão humana. A cul-
tura tem o fim essencial de promover o ser humano e de
proporcionar-lhe os bens necessários ao desenvolvimento
de seu ser individual e social.
O Papa João Paulo II lembrou ainda que todas as formas
de promoção cultural radicam-se na cultura animi, segundo
expressão de Cícero – a cultura do pensar e do amar, pela
qual o homem se eleva à sua suprema dignidade, que é a do
pensamento, e se exterioriza na sua mais sublime doação,
que é a do amor.
Todas as colocações de Sua Santidade, lastreadas em sua
sólida formação filosófica, mereceriam uma boa reflexão.
Imaginem os desdobramentos da frase: “O homem culto
tem o dever de propor a sua cultura, mas não a pode impor.”
É claro que a imposição contradiz a própria idéia de cultu-
ra, que só pode florescer em regime de liberdade: “Não se
constrói uma sociedade humana desrespeitando a liberdade
humana.”
Se o homem é a medida de todas as coisas, como afirmou
Aristóteles, ninguém há de ter defendido com tanta propri-
edade o seu futuro, nos últimos anos, como fez o Papa João
Paulo II, na inesquecível passagem pelo Rio de Janeiro. A
sua grande presença e as palavras proferidas jamais serão es-
quecidas.

70
O santo D. E u g ê n i o

D. Eugênio Sales e o Papa João Paulo II sempre demonstraram


uma sólida afinidade. Não somente para saudar o passado, mas
para pensar grande o que podemos esperar do nosso futuro, com
a prevalência dos valores éticos de que são insubstituíveis para-
digmas.

71
Eça de Queirós e
Eduardo Prado
J o ão d e Sc a n t im b u r g o

F enômeno psicológico, a simpatia mereceu de Max Scheler


profundo e denso estudo na filosofia deste século. Segundo
o filósofo, a simpatia é o próprio fundamento do sentimento social,
João de
Scantimburgo
é jornalista,
ensaísta,
e consiste em participarmos do outro, enquanto outro. Acentua o fi- historiador,
autor de Tratado
lósofo que “todo o participar implica a intenção de sentir dor ou ale-
geral do Brasil,
gria pela vivência do próximo”.1 Opera-se a identificação entre dois Introdução à
sujeitos através desse profundo mistério psíquico, o qual, a rigor, de- filosofia de Maurice
Blondel, Os
veria atormentar todos os filósofos. Temos simpatia ou antipatia,
paulistas, Memórias
não raro gratuitamente, sem encontrarmos explicação para o estado da Pensão Humaitá
da alma em que nos encontramos. O cristão, por exemplo, deve ser (lembranças
da casa do
simpático e despertar simpatia, mas nem sempre o consegue, pois historiador Yan
todos carregamos conosco, durante a vida inteira, essa incógnita psí- de Almeida
quica que se denomina simpatia, ou seu antônimo, a antipatia. Mas Prado), Eça de
Queiroz e a
Scheler foi ao âmago da questão, e outros filósofos também a estu- tradição.
daram. Já o velho Aristóteles meditou sobre a simpatia. Atribui-lhe
o sentido de estado afetivo consciente, e qualifica-a como virtude,

73
Jo ão de Sc anti mbu r g o

ou sempre acompanhada de virtude, vendo nela, ainda, uma das ne-


cessidades a vida.2 Adam Smith, conhecido pelo seu tratado A riqueza
das nações, foi um moralista. A sua Teoria dos sentimentos morais trata da
simpatia. Para Smith a simpatia concorda com o sentimento que as
nações deixam transparecer. Ainda segundo o autor, a simpatia não é
uma espécie de intuição que leva o ser humano a se introduzir na
consciência do outro.3 Para Bergson, a intuição conduz a inteligência
a reconhecer que a vida não entra nem na categoria do múltiplo nem
do uno, que nem pela causalidade mecânica nem pela comunicação
simpática se estabelece relação entre seres vivos. Pela dilatação que
obterá de nossa consciência, ela nos introduzirá no próprio domínio
da vida, a qual é compenetração recíproca e criação indefinidamente
continuada.4
1 Não nos deteremos no fenômeno. Fomos buscar em Max Scheler
Max Scheler,
Esencia y forma de e outros filósofos uma definição. Consignando-a aqui, procuramos
la simpatia, tomá-la na exatidão de seus termos. Pela simpatia realiza-se a fusão
Buenos Aires,
de dois seres, não no sentido amoroso ou erótico, mas no sentido
Editorial
Losada, 1943, ético. Não haveria amizades duradouras, não haveria casamento, não
passim haveria fraternidade de idéias e ideais, não haveria comunhão de sen-
2 timentos se não palpitasse no fundo de cada ser humano esse enigma
Et. Nic., VIII, I.
insondável a que se dá o nome de simpatia. As ciências do espírito
3
Émile Brehier, devem levar em conta esse fato, para interpretarem as ações do ser
Historia de la
humano em toda a complexidade, da sua formação profunda à sua
Filosofia. Buenos
Aires, Editorial expressão em atitudes definidas. Tomando a simpatia como amor,
Sudamericana, no sentido elevado da palavra, todos os filósofos dela se ocuparam, e
1942, passim.
mais ainda o fizeram os teólogos, sobretudo quando estudaram e in-
4
Henri terpretaram o versículo primeiro do Evangelho segundo São João.
Bergson, Max Scheler tratou objetivamente do tema no capítulo das relações
Évolution
do amor com a simpatia. Baste-nos, por isso, o conceito do filósofo
créatrice. Paris,
PUF, 1969, e o que disseram outros.
p. 179.

74
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

Nessa linha, vamos encontrar um exemplo de simpatia, cimenta-


da por amizade sólida e duradoura, de Eça de Queirós por Eduardo
Prado. Vemos aí a concordância do escritor português com o escri-
tor brasileiro nas idéias, nos sentimentos nacionais, nos problemas
que a ambos preocupavam. Foi afetiva a ligação entre Eça e Eduardo
Prado, mas, também, sentimental e patriótica. Aduzia Max Scheler
que se pode ter simpatia somente por seres simpatizantes,5 pondo
ênfase no pathos que estabelece esses liames insondáveis, que nos con-
duzem em sociedade, pelo tempo e pelo espaço. Eça e Eduardo vive-
ram esse pathos, por estreitíssima afinidade de sentimentos. Não
compreendemos diferentemente a amizade que vinculou um ao ou-
tro, e mereceu de Eça o admirável ensaio de 1898, incluído nas Notas
contemporâneas.
Dentro dessas considerações, e da filosofia que esposamos para
fazê-las, não concordamos com Cândido Motta Filho6 quando es-
creve: “Eça desconfiava das convicções consagradas. O que dizia es-
tava sempre carregado de enfeites e berloques. E, por isso, era capaz
de reconhecer, em Eduardo, qualidades que ele não tinha e talvez
não quisesse ter.” “O retrato de Eduardo pode ser exato. É um retra-
to que também pode ser de Eça. É, além disso, de um Eduardo visto
por um europeu que encontra no americano os encantos da origina-
5
lidade.” “Não há dúvida que nesse retrato há, além dos retoques da Max Scheler,
admiração e da amizade, algo preconceituoso e intencional. A figura loc. cit.

do escritor brasileiro é traçada muito mais por um querer-bem do 6


Cândido
que por um querer-ver.” Discordamos. O retrato de Eça foi escrito Motta Filho, A
vida de Eduardo
com as tintas da simpatia, no significado filosófico da palavra ex-
Prado. Rio de
posto por Max Scheler. Deixamo-nos, pois, ficar no perfil de Eduar- Janeiro, José
do por Eça, nas Notas contemporâneas, admirável retrato que o escritor Olympio
Editora, 1967,
compôs com os recursos de sua palheta literária incomparável. Re- p. 38.
conhece Cândido Motta Filho7 que sobrava em Eça, “com disfarces
7
ou sem eles, um certo apego ao passado monárquico criador e con- Id., ibid., p. 37

75
Jo ão de Sc anti mbu r g o

servador da unidade lusitana” e que “em Eduardo, nascido em um


país mais amante do futuro do que do passado, estava um inimigo da
República e um amigo da Igreja”.
Identificamos um e outro pelo culto à tradição, esse princípio de
coesão social que em Portugal se entibiava progressivamente, como
ferida para qual não há medicamento, e no Brasil, a proclamação da
República, por um golpe revolucionário, vibrado pela espada do
marechal Deodoro, definitivamente, a comprometera. O admirável
sentimento de amizade e a simpatia que uniu Eça a Eduardo Prado
confirmam a tese que nos propusemos defender, a de que o supremo
artista de A ilustre Casa de Ramires patrocinou a tradição, no sentido
que lhe atribuímos, de força de solidariedade, sem cuja ascendência
as sociedades perecem. Não sabemos se Eduardo fez correções ou
retificações nos originais sobre o seu perfil, que Eça lhe submeteu,
mas deveria ter substituído o vocábulo “passado” pelo vocábulo
“tradição” nesta passagem: “Este culto do Passado não só atua sobre
o desenvolvimento incansável da sua cultura – mas dirigiu docemen-
te à evolução da sua consciência.” Eduardo observara a devastação
que a República causava no Brasil, nos anos subseqüentes à sua pro-
clamação. Saindo a público com Fastos da ditadura militar, Eduardo
quis demonstrar, com palavras ásperas, o papel que o Exército e a
Armada tiveram na mudança do regime, mudança que, à luz do seu
julgamento, seria fatal para a evolução das instituições políticas bra-
sileiras.
Os primeiros anos da República foram marcados pelo mais fe-
roz e alucinado jacobinismo, do qual Floriano Peixoto era a encar-
nação e o representante no Brasil. Ficou conhecido em nossa His-
tória o uso do cravo vermelho, símbolo dessa exaltação suposta-
mente patriótica, mas, no fundo, profundamente, jacobinamente
antipatriótica. Lembrando Proudhon, que “terminou por conside-
rar seriamente o jacobinismo, não como uma doutrina, mas como

76
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

uma doença maligna do coração e do cérebro”, Eça acrescentou:


“Mas a estes desagradáveis vícios que lhe analisou, com tristeza e
tédio, o grande Lógico da Revolução, ainda o Jacobismo junta um
e outro, abominável para um espírito tradicionalista como o de
Prado – a violência iconoclasta. O Jacobinismo possui, por único
princípio, um quid pro quo – a substituição da Soberania do Rei pela
Soberania do Povo. Vive de uma imprudente escamotagem de co-
roas, do salto de uma ficção para outra ficção, de uma mudança de
Absolutismo – e desastrosa, porque sempre o Absolutismo impes-
soal da Multidão será mais rude, fantasista e cruel do que o autori-
tarismo de um Homem, peado pelas considerações de Dinastia e
da Sociedade, e acessível às influências do terror, quando o não seja
às da justiça. O Jacobino portanto também se reclama de um Direi-
to Divino – que ele denomina Direito Popular; é o concorrente
nato da realeza; e, desde que governa, procede logo, mais por ins-
tinto do que por sistema, a destruir toda a obra secular da Monar-
quia. Para ele não há tradição nacional – pois que a Nação só legi-
timamente data do dia em que ele se coroou e reinou! O seu desejo
e interesse seriam anular toda a História.”
Eduardo Prado foi um dos poucos brasileiros de prestígio que
não se dobraram à revolução, cuja fúria abateu um trono com raí-
zes em séculos de História. Enfrentou a ditadura, com as armas nas
quais era destro, a inteligência e a pena. Foi perseguido e teve de fu-
gir. Rebento de uma das mais ilustres famílias do Brasil, indig-
nou-se com o mal que praticavam em sua pátria, e reagiu, veemen-
te, inflamando-se até o desespero. Esse excerto do perfil de Eduar-
do Prado por Eça de Queirós resume em poucas palavras o que foi
a revolução jacobina de 1889, substituindo a monarquia pela repú-
blica, isto é, a soberania dinástica, limada pelos séculos, responsá-
vel, familiarmente, pela continuidade da chefia do Estado e sua im-
parcialidade em face desse deus dos tempos modernos, a opinião

77
Jo ão de Sc anti mbu r g o

pública, pela soberania da massa, que vem a ser na realidade a sobe-


rania do anonimato, da demagogia, da mentira, da impostura e da
corrupção institucionalizada, de resto uma das poucas instituições
consolidadas na República. Nas democracias populares e nas de-
mocracias liberais o que observamos é ser essa falaz soberania mo-
nopolizada, não raro pelos enganadores, pelos mentirosos, pelos
espertos. Eça de Queirós viu longe, viu que Eduardo Prado, tão
caro aos seus sentimentos, estava certo em se revoltar contra o abu-
so dos republicanos e o tobogã pelo qual atiraram uma nação, cujo
regime se institucionalizava, através do exercício do poder mode-
rador e de modelar organização política.
Se Pitirim Sorokin8 tivesse adotado o exemplo brasileiro para
ilustrar a sua tese sobre o povo, não teria sido mais feliz. A palavra
povo aumenta a confusão das Ciências Sociais. É mesmo, na opi-
nião desse autor, um procedimento incientífico. Numa de suas
mais citadas mensagens de Natal, a de 1944, Pio XII estabeleceu a
distinção entre o povo e a massa.9 Deve-se, por isso, entender com
exatidão o que é povo e o que é massa, o que é povo nos regimes
“viltamente democráticos” e povo nos regimes sustentados pela
8
Society culture demagogia, ou pelas armas e a política secreta. O mundo está pro-
and personality.
Nova York, fundamente corrompido, e, com ele, as palavras. Já não se sabe exa-
Harper, 1944, tamente o que significa democracia, nem liberdade, nem povo,
p. 244-245. nem pessoa humana. Na Vulgata, tradução do padre Antônio Perei-
9
Pio XII, ra de Figueiredo, os filhos de Israel são o povo de Deus: “Por isso
Discorsi e dizei aos filhos de Israel: eu sou o Senhor, que vos hei de tirar da
radiomessaggi di prisão dos egípcios, que vos hei de livrar da servidão, e que vos hei
Sua Santitá.
Roma, de resgatar com um poderoso braço, e por meio de grandes juízos.
Tipografia Eu vos tomarei por meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que eu
Poliglotta sou o Senhor vosso Deus, depois que eu vos tiver tirado da prisão
Vaticana,
Mensagem de dos egípcios” (Ex. 6, 6-7). Dezenas de vezes a palavra ‘povo’ é cita-
Natal de 1944. da no Livro Sagrado, mas sempre no sentido de uma reunião de

78
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

pessoas. Foi neste século que o povo degenerou em massa. Esse é o


sentido que lhe atribuiu Ortega y Gasset.10
Com sua admirável inteligência, aberta aos fenômenos de seu
tempo, Eduardo Prado afuroou os dias vindouros, ao observar a sua
pátria retaliada pelas facções, governada, arbitrariamente, pelos
usurpadores do poder, e intoxicada pelo jacobismo. Foi contra esse
conjunto de males que se ergueu, tomado de ira santa, e vergastou o
regime. Intuitivamente, previa Eduardo, o seu povo se transformaria
em massa, para os políticos sem raízes na tradição, sem compromis-
sos com a História, sem o pundonor, que deve revestir todas as suas
facetas, e o fez com inegável beleza. Prado nunca foi um dândi de
boulevard, um sibarita, a quem a fortuna havia proporcionado lazeres
para as viagens. Era, no exato sentido da palavra, o patriota, que não
hesitou em se indispor com o governo da República, quando viu que
esta abalava o antigo edifício das suas mais caras convicções políticas
e sociais. Eça de Queirós também fizera o mesmo na sua pátria. Des-
de os trabalhos da mocidade, Uma campanha alegre, até As cidades e as ser-
ras Eça mostrou sempre o seu robusto patriotismo, o amor ao torrão 10
Ortega y
natal, que a tempestade ideológica da Revolução Francesa desfigura- Gasset, La
ra. Usou nos seus primeiros escritos a férula da ironia, em que era rebelión de las
massas. Madri,
fortíssimo, chegando até a repercutir no Brasil,11 contra os solapa- Espasa-Calpe,
mentos jacobinos, herdados das transformações sociais, políticas e 1932, pp.
econômicas do século XVIII e primeira metade do século XIX. 1063-1178, in
Obras completas.
Cada qual – Eça e Eduardo – em sua esfera, alanceava-se de amar-
gura diante do espetáculo que a mediocridade política exibia na 11
Paulo
grande cena de cada nação. Reagiram como puderam, como acha- Cavalcanti, Eça
de Queirós
ram mais conveniente para a finalidade que se propuseram. Ambos agitador no Brasil.
pagaram pesadíssimo tributo, durante a vida, pelas atitudes assumi- São Paulo,
das na área política. Quando Eça escreveu o soberbo perfil de Edu- Companhia
Editorial
ardo Prado, a República brasileira já tinha nove anos e estava conso- Nacional,
lidada. Mas Eduardo não cedeu em suas convicções. Prosseguiu, 1966, passim.

79
Jo ão de Sc anti mbu r g o

combatendo-a, fiel aos seus princípios. Eça, monarquista, partilhava


os dissabores do amigo caríssimo. Cultuando a História, esse estudo
“desenvolveu nele um dos seus fortes sentimentos inatos – o amor
do Passado”. Eduardo amava, efetivamente, o passado, com o seu
cortejo de glórias e de reveses, de tristezas e alegrias, de grandeza e
miséria, mas amava-o para ter do presente visão mais segura. “Este
culto do Passado não só atua sobre o desenvolvimento incansável da
sua cultura – mas dirigiu docemente a evolução da sua consciência”;
e acentua poeticamente: “... a Beatriz Teológica que no meio da sua
‘estrada’ (...) o tomou pela mão, o iniciou, era criatura toda de beleza
– e a augusta Poesia do Passado cantava na sua voz persuasiva.”
Eduardo foi, por isso, um revoltado contra a nacionalidade ame-
ricana que, sem ter compromissos com a História, com o passado,
com eras pretéritas, concorrera, decisivamente, para aluir o formoso
edifício da monarquia bragantina. Panfletário de talento, Eduardo
investiu contra os Estados Unidos, e deu a público libelo descarnan-
do os males do republicanismo norte-americano em A ilusão america-
na.12 Quando os Pais Fundadores criaram os Estados Unidos, como
república, dotando-a de um presidente eleito a prazo certo, puseram
em movimento uma formidável revolução que, em poucos anos,
conquistaria o mundo. Na lista negra de Eduardo, os Estados Uni-
dos entravam em primeiro lugar, não por um preconceito racial, de
que foi argüido maliciosamente por inimigos encapuçados ou osten-
sivos – pois freqüentou os Estados Unidos antes de conhecer a Eu-
ropa –, mas por ver neles o fator preponderante das transformações,
em cuja esteira seriam arrastadas as monarquias, centros de estabili-
dade, de permanência, de respeito à tradição. Eduardo observava
12
Eduardo que o mundo se pusera a mudar depois que os Estados Unidos pas-
Prado, A ilusão saram a ostentar uma vitalidade sem paralelo no mundo, fruto de va-
americana. São
Paulo, Ibrasa, riadas circunstâncias, já demasiado estudadas por seus contemporâ-
1980, passim. neos, que os Estados Unidos haviam aberto, por osmose, essa força

80
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

sociológica compulsiva, uma brecha irreparável no seu mundo, que


era a mundo da ordem monárquica.
Daí a cólera que extravasa em A ilusão americana. Estava certo
Eduardo Prado:

O furor imitativo dos Estados Unidos tem sido a ruína da


América. Péricles, no seu célebre discurso do Cerâmico, disse:
“Dei-vos, ó atenienses, uma constituição que não foi copiada
da constituição de nenhum outro povo. Não vos fiz a injú-
ria de fazer, para vosso uso, leis copiadas de outras nações.”
Há muita grandeza na exclamação do gênio grego. Há uma
presciência de tudo quanto descobriu a ciência social mo-
derna que, afinal, se pode resumir nisto: as sociedades de-
vem ser regidas por leis saídas da sua raça, da sua história,
do seu caráter, do seu desenvolvimento natural. Os legislado-
res latino-americanos têm uma vaidade inteiramente imersa no
nobre orgulho do ateniense. Gloriam-se de copiar as leis de
outros países!
Todos os países espanhóis na América, declarando a sua in-
dependência, adotaram as fórmulas norte-americanas, isto é,
renegaram as tradições da sua raça e da sua história, sacrifica-
das ao princípio insensato do artificialismo político e do exo-
tismo legislativo.
O que colheram desse absurdo, diz a triste história hispano-
americana deste século. O Brasil, mais feliz, instintivamente
obedeceu à grande lei de que as nações devem reformar-se den-
tro de si mesmas, como todos os organismos vivos, com a sua
própria substância, depois de já estarem lentamente assimila-
dos e incorporados à sua vida os elementos exteriores que ela
naturalmente tiver absorvido. No Brasil tivemos a indepen-
dência, fato lógico do desenvolvimento da sociedade colonial;

81
82
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

ção, perversa forma de agitação, a estabilidade que é própria da insti-


tuição. No Brasil, a nação inteira ouviu, no dia 15 de março de
1984, o presidente da República, João Baptista de Oliveira Figueire-
do, repetir que, ao assumir o governo, jurou fazer deste país uma de-
mocracia, isto cem anos depois da deposição da genuína democracia
coroada de D. Pedro II. Todos os demais países da América estão
nas mesmas condições. Quando, pois, Eduardo Prado fez as consi-
derações acima sobre a cópia servil das instituições americanas pelos
republicanos históricos, estava indigitando o grande mal de que vi-
mos sofrendo, de sua época aos nossos dias. O regime criado pelos
Pais Fundadores alcançou êxito nos Estados Unidos, para os quais
foi concebido. Mas não deveria ter sido exportado. É a tese de Ha-
rold J. Laski, em seu estudo sobre a democracia americana.14
Eça admirava em Eduardo sua lucidez, a capacidade excepcional
de perscrutar os dias vindouros e de fazer, com precisão, o diagnós-
tico sobre o Brasil e o seu futuro. Entraríamos numa fase turbulenta.
Sem recorrermos às teses conhecidas sobre o Estado patrimonial, di-
remos que prevalecia no Brasil o regime do Pai, caro à psicanálise, in-
tegrado na longa tradição luso-espanhola, católica, hierárquica, mo-
ralmente assentada sobre o princípio da autoridade. Eduardo não se
conformou, até a morte, prematura, aos 41 anos de idade, com o
golpe revolucionário que, numa agitada manhã de novembro, derru-
bou o trono e o substituiu por uma república, subservientemente co-
piada dos Estados Unidos, inclusive na impropriedade da nova de-
nominação. Gozando de independência econômica, moral e intelec-
14
tual, passou a desferir contra a situação a que foi jogado o Brasil os Harold J.
Laki, The
raios de sua ira. Pagou caro. Teve de fugir dos esbirros da ditadura, American
que sucedeu ao monarca liberal. Mas não se dobrou. Implacável na democracy.
crítica aos abusos do poder, denunciou-os com veemência. Flor do Londres,
George Allen
patriciado paulista, preferiu à comodidade do sibaritismo gratuito a and Unween,
polêmica, e vergastou, quanto pôde, o novo regime. Esse, o Eduardo 1953, passim.

83
Jo ão de Sc anti mbu r g o

Prado que Eça cultivou e por quem se ligou numa amizade sólida e,
mesmo, exaltada.
Eduardo era um estupendo exemplar da tradição viva e atuante.
Não se tratava de um desses mitos que se adoram inconscientemen-
te, mas de convicção firme de quem aceitava, nesse princípio, a via
certa para manter coesa a nação e projetá-la no tempo e no espaço,
portanto na História, mas com a sua personalidade soberanamente
assegurada. Eça admirou o amigo querido por ter com ele profunda
afinidade espiritual, profunda simpatia, no sentido atrás referido.
Eça vinha sofrendo com a devastação política, que tanto abalava
Portugal, e Eduardo, com o que abalava o Brasil, ambos, portanto,
identificados na mesma paixão, queimando no fogo do mesmo pa-
triotismo. Só se admira por identificação. Não se admiram os con-
trários. O belo ensaio, dedicado por Eça a Antero de Quental, inspi-
rou-se na mesma fonte. O grande e angustiado poeta, um dos maio-
res em qualquer língua, desafiou Deus, de relógio na mão – atitude
pueril e perdoável num desesperado –, mas era um desses estupen-
dos exemplares que a civilização portuguesa gerou, para a adesão en-
tusiástica de quem o conheceu. Antero foi, a rigor, um místico leigo,
ou um místico falhado. Daí não ter encontrado outra resposta para a
sua ansiedade em face dos pecados do mundo, senão se entregando à

Funérea Beatriz de mão gelada,


15
Antero de Mas única Beatriz consoladora.
Quental, Prosas
escolhidas. Rio de Isto é, a morte por suas próprias mãos. Quando Eça confessou
Janeiro, Livro
de Portugal, que ficou, sempre, aos seus pés, cultuando-o, via no poeta do pessi-
1942, passim, mismo e da aflição um ser humano com longos, extensos vínculos
seleção e no passado.
prefácio de
Fidelino de O autor da conferência sobre as “Causas da Decadência dos Po-
Figueiredo. vos Peninsulares”,15 “atraente mas demasiado simplista”, como dela

84
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

diz Fidelino de Figueiredo, não aceitava a mediocridade do século


político em que vivia. Esse aristocrata, rebento de ilustre família aço-
riana, de onde emergiram para a História de Portugal André Ponte
Quental da Câmara, amigo de Boccage “e seu dileto companheiro na
boêmia literária do fim do século XVIII”, e Bartolomeu de Quental,
escritor místico, fundador, em Portugal, da Congregação do Orató-
rio, cuja influência na fé e nos costumes foi das maiores. Eça o admi-
rou por sentir nele um irmão, embora Antero tivesse abandonado a
fé de seus ancestrais e se convertido, como afirmou, ao socialismo,
doutrina que na época, envolvida pelo romantismo do século, con-
fundia-se com humanitarismo. Essas duas admirações, até mesmo
exageradas, de Eça confirmaram, a nosso ver, a tese que vimos defen-
dendo, a do profundo apego do escritor às tradições de sua terra.
Eduardo e Antero possuíam tudo para atrair admirações. Um era o
homme du monde, civilizado, culto rico, amando as viagens por ser,
como acentuou Eça, devorado pela curiosidade, não a que faz escu-
tar atrás das portas ou olhar por sobre os muros, mas a que leva a
descobrir a América. O outro era o iconoclasta, o atormentado pers-
crutador dos mistérios do mundo, em quem o meio coimbrão,
segundo Fidelino de Figueiredo, havia destruído a forte crença religio-
sa, substituindo-a pela dúvida cruel que o torturou durante toda a
vida. Mas ambos imergindo rizomas profundos no passado – ou no
Passado, como gostava de escrever Eça –, isto é, na tradição. Tinham
até mesmo, um e outro, a compulsão à luta pelas idéias que esposaram.
Mas foi em Eduardo que Eça encontrou o seu modelo de tradição
mais acentuado. O homem que passava longos meses em viagem,
que era um autêntico parigot em Paris e que, voltando ao Brasil, passa-
va também longos meses na sua fazenda do Brejão, no interior de
São Paulo, em contato amoroso com a terra, constituía-se bem num
desses exemplares raros de nobreza, no puro sentido da palavra.
Vendo destruídas instituições que se consolidaram, Eduardo revol-

85
Jo ão de Sc anti mbu r g o

tou-se. Eça o acompanhou de longe e, depois, ouviu-lhe a narração


dos episódios que desfizeram no Brasil uma construção soberba, ir-
reparavelmente comprometida, como a História fartamente nos
comprovou. Consiste a tradição em coser, perpetuamente, o passado
ao presente e ao futuro. Regra de fé na Igreja Católica Apostólica
Romana, até o Concílio Vaticano II, a tradição é o único tônico su-
ficientemente forte para conter a tendência naturalmente desagrega-
dora do ser humano, tendência acentuada em nossos dias pela revo-
lução como processo de subversão das instituições.
Eduardo Prado cumpriu o seu dever de patriota quando a Re-
pública foi proclamada. Manifestou o seu inconformismo. Tinha
29 anos. Era rico, bem-nascido. Silva Prado é um dos troncos mais
ilustres do Brasil. O seu irmão, Antônio, conselheiro do Império,
conservador, antigo ministro do gabinete João Alfredo, mais tarde
aderiu à República, e veio a ser fundador do Partido Democrático,
que nasceu em 1926 para se opor à oligarquia dominante, o velho e
carcomido – como se dizia na época – Partido Republicano Pau-
lista. Eduardo, porém, não cedeu. Intransigente nas suas convic-
ções monárquicas, não aceitou o novo regime. Manteve-se monar-
quista até a morte, em 1901, quando Campos Sales, paulista de
Campinas, já ocupava a Presidência, e o seu ministro da Fazenda,
Joaquim Murtinho, aplicava a doutrina econômica liberal, contra
o desvario do ‘encilhamento’ dos primeiros anos republicanos.
Eduardo cultuava a tradição, era-lhe fidelíssimo, mas não tinha
nada de imobilista. Referindo-se ao prestígio que D. Pedro II go-
zava nos Estados Unidos, acentuou: “O seu amor à liberdade, o
seu espírito aberto a todas as novidades do século, a sua atividade,
16
Antônio a singeleza da sua pessoa, impressionaram sempre os americanos,
Sardinha,
Purgatório das que de um rei só faziam a idéia de um homem rodeado de fausto,
idéias. Lisboa, de um defensor do passado contra o espírito inovador.” Esse, o
Livraria Perim, conceito de tradição em Eduardo Prado, o de permanência na con-
1929, passim.
tinuidade, como a definiu Antônio Sardinha.16

86
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

Eça, encantado com o amigo brasileiro, fixou-lhe as notas domi-


nantes da personalidade, e se pôs em relevo a curiosidade intelectual,
destacou-lhe também o amor à tradição e, na esfera política, à legiti-
midade do poder, para ele identificada exclusivamente com o mo-
narca. Vergastando a ditadura militar dos primeiros anos da Repú-
blica, Eduardo defendeu o primado dos governos legítimos contra
os arbitrários, da lei contra a usurpação do poder pelas oligarquias
galonadas. Esse mal não ficaria restrito aos primeiros anos da Repú-
blica. Vimos que se repetiu, registrando-se intervenções militares na
República, com uma cadência que já deveria ter merecido estudos
aprofundados – e fazemos aqui mea culpa – sobre a incompatibilida-
de do regime, ainda hoje, com as origens da nação e sua formação
através do tempo. Esse, o Eduardo que Eça admirava, o Eduardo da
tradição, que ia buscar longe, no Mediterrâneo, no catolicismo, na
epopéia heróica dos navegadores, na destemida bravura dos bandei-
rantes, nos povoadores, as origens da gente brasileira. Devorado de
curiosidade foi sempre Eduardo Prado, mas também devorado de
patriotismo, capaz dos maiores sacrifícios por sua e nossa terra.
Creio que até mesmo o indigitado anti-semitismo de Eduardo tinha
relação com esses vínculos telúricos. Católico bem formado, a pes-
soa humana estava acima de falácias de sangue ou raça. O que im-
portava para Eduardo era a fidelidade à terra, e essa, segundo lendas
já desfeitas, o judeu não a possuía. Mas Eça, também ele, faz referên-
cias de menosprezo ao judeu. Pagou o tributo de sua época.
Ninguém que conheça a vida de Eduardo Prado o classificaria
como anti-semita, se tivesse ele vivido na década de 30, quando a re-
volução nacional-socialista precipitou a Alemanha no desvario anti-
semita e abismou o mundo na terrível Segunda Grande Guerra.
Impressionado com a plurocracia americana, pretendeu ver no juda-
ísmo a fonte de exploração capitalista dos Estados Unidos contra os
países fracos. Na época, também o catolicismo conservava, ainda,

87
Jo ão de Sc anti mbu r g o

velhos resíduos, brasa não apagada, do anti-semitismo inquisitorial.


Essa posição está definitivamente superada, e Eduardo, homem
aberto à compreensão, teria, também ele, se incorporado à corrente
que vê a pessoa humana o próximo feito à imagem e semelhança de
Deus. O que nos importa é o Eduardo menos tradicionalista do que
patrono da tradição, como força de conservação social e nacional.
Quando expressa o seu amor a Portugal, está cultuando a tradição.
“Também o culto do Passado revela, em Eduardo Prado, pelo seu
carinho quase filial ao velho torrão Lusitano. Poucos portugueses
amarão Portugal com um amor tão inteligente e crítico, em que não
entra sentimento atávico, e que todo ele nasce da observação, da
comparação, do estudo atento feito por meio de jornadas, depois
completado por meio de leituras, duas fontes do Saber da limpidez
desigual, mas ambas agradáveis e recomendadas por Aristóteles.”
Eduardo ia buscar em longínquas eras as nossas origens, e as tra-
zia ao Brasil, com a força dos crentes. Daí opor-se tenazmente à
idéia de que deveríamos imitar os Estados Unidos do Brasil, como
os Pais Fundadores criaram os Estados Unidos da América. Intuiti-
vamente, Eduardo via nos Estados Unidos um sinal de contradição.
A sua imensa força política, econômica e social iria desestabilizar as
nações americanas, como, de fato, historicamente, está comprovado
que seu exemplo mimético introduziu no seio de todos os povos
ibero-americanos elemento altamente perturbador, desses que de-
formam todas as doutrinas, em sua trasladação de uma terra para ou-
tra. Octavio Paz definiu muito bem o fenômeno americano. “A
grande originalidade histórica da nação norte-americana, e, da mes-
ma maneira, a raiz de sua contradição, está inscrita no próprio ato de
sua fundação. Os Estados Unidos foram fundados para que os seus
cidadãos vivam entre eles e com eles mesmos, livres, enfim, do peso
da História e dos fins meta-históricos que o Estado assinalava às so-
ciedades do passado. Esta foi uma construção contra a História e os

88
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

seus desastres, em face do futuro, esta terra incognita com a qual os


Estados Unidos se identificaram. O culto do futuro se insere natu-
ralmente no projeto norte-americano; ele é, por assim dizer, a sua
condição e o seu resultado. A sociedade norte-americana fundou-se
por um ato de abolição do passado. Contrariamente aos ingleses, ou
aos japoneses, aos alemães ou aos chineses, aos mexicanos ou aos
portugueses, os cidadãos dos Estados Unidos não são filhos de uma
tradição mas o seu começo. Eles não perpetuam um passado, eles
inauguram um tempo novo.”17
Eduardo, com a sua agudíssima inteligência e a capacidade única
de atravessar névoas espessas da História e da formação de povos,
percebeu essa diferença, e a apontou como nociva influência no Bra-
sil-República. Os partidários do novo regime, os propagandistas da
República, os históricos e os de data recente – Rui Barbosa, por
exemplo – não viram, não souberam ver o fenômeno. Declararam o
modelo americano como se tivéssemos a mesma origem, como se
não houvéssemos contraído compromisso antigo com o passado re-
moto. Os republicanos adotaram o presidencialismo com ligeireza,
ou com leviandade, pois supuseram que bastava depor um monarca,
cujo trono constituía um afluente do antigo álveo lusitano, bani-lo
do Brasil, por decreto, extinguir instituições, adotar nova denomina-
ção, que tudo andaria bem, como bem andavam os Estados Unidos
da América. Esse enormíssimo erro dos propagandistas e dos repu-
blicanos do dia seguinte, que atabalhoadamente aderiram ao novo
regime, iria repercutir em todo o funcionamento do regime republi-
cano, nos estados de sítio, no desajustamento entre o ‘país legal’ e o
‘país real’, nos revezamentos entre autoritarismo e liberalismo, e este,
viciadíssimo, por lhe faltarem os suportes que lhe deram relativa re-
gra na União americana. Começamos artificialmente e continua-
mos, prosseguindo, aos tropeções, nos erros que não reparamos. E 17
Octavio
agora é tarde. Paz, ibid.

89
Jo ão de Sc anti mbu r g o

Eduardo tudo pressentiu, e não cedeu, por amor ao Brasil. Fez-se


planfetário. Segundo Eça, “Eduardo Prado é um incomparável mes-
tre do Panfleto”. Como panfletário defendeu a tradição, a pátria, a
religião que nos batizou, pelas mãos de frei Henrique de Coimbra,
na manhã auroral em que o frade franciscano elevou na terra do Bra-
sil a hóstia sagrada, diante dos marinheiros da frota de Cabral e dos
indígenas atônitos. Quando a nova classe dos republicanos, dos ade-
sistas e dos conformados – pois o Brasil é o país dos fatos consuma-
dos, logo aceitos – subiu no horizonte da nossa História, Eduardo
deixou-se ficar no seu posto de combate, firmemente agarrado à tra-
dição – ou Tradição, como escreveria Eça –, que ele sabia ser a causa
sagrada, a única pela qual valeria a pena viver. Eduardo tinha a certe-
za de que se a República, proclamada em 15 de novembro, se conso-
lidasse, como se consolidou, as ameaças contra o edifício das suas
tradições se cumpriram. Mas, assim mesmo, não ensarilhou armas.
Continuou o bom combate, pois o que lhe interessava era a causa, e
não a eventualidade, embora pudesse também aderir ao ver baldados
os seus esforços, como aderiu seu irmão, o conselheiro Antônio Pra-
do. Eduardo não se tornaria republicano, não renunciaria ao seu cul-
to à tradição, não se dobraria.
Eça diz que a sua lucidez era esparsa, alumiando amplos espaços
com tenuidade, mas concreta, por isso mesmo ricamente intensa,
como um fino dardo que vara horizontes. Foi essa lucidez que ante-
viu a crise em que iria enredar a República presidencial, adotada,
afobadamente, na manhã de 15 de novembro, em que o conselheiro
Aires, no Passeio Público, não chegou a saber o que se passava no
Campo de Santana, na frondeuse cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro, sede do governo imperial de Sua Majestade D. Pedro II,
Bragança da linhagem heróica da Restauração.
Na história do Brasil as relações dos monarquistas, dos titulares
do regime, da quase totalidade dos membros da Câmara dos Depu-

90
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

tados, do Senado vitalício, da Justiça, eram sólidas. Mas, naquela


manhã de novembro, que deveria ser quente, como em geral todas as
manhãs de novembro na cálida cidade tropical do Rio de Janeiro,
viu-se que a solidez de que se prezava D. Pedro II esboroou-se, e, em
poucas horas, passamos de monarquia a república. Dentre os que
não cederam estava Eduardo Prado. A sua firmeza de atitude lhe
despejaria nos passos do caminho não poucos dissabores. Recen-
seia-os todos Sebastião Pagano,18 em obra bem fundamentada. O
guerrilheiro Eduardo Prado – como o chamou Eça – permaneceu o
mesmo até o fim da sua curta vida. Plantou-se no mais alto cimo da
observação, de arma na mão – a sua arma, a pena, com as idéias que
sabia manejar –, e desfechou contra a República recém-inaugurada,
enquanto viveu, a munição que pôde juntar. Eduardo não foi, como
se pode supor, um saudosista, que só olhava para trás, atribuindo
maior importância ao passado do que ao futuro. Não. Ele sabia que,
desprezando o passado, em nome de abstrações e cópias subservien-
tes, o futuro do Brasil estaria comprometido. Quem conhece a nossa
história, e a interpreta objetiva e serenamente, não ignora que Eduar-
do estava com a razão. Cem anos depois de proclamada a República,
é tão instável o regime que presidentes, impostos pelas armas e por
seus galões, realizaram a tentativa de dar de presente ao país uma de-
mocracia.
Diz Eça que Eduardo pôs todos os seus dons nas suas campa-
nhas, com estilo claro, límpido, perfeito. “Dentro de um tal estilo a
expressão cabe, porque a sua ductilidade se presta tanto à grossa ri-
sada como ao soluço lírico. E Eduardo Prado para tudo o faz ser-
vir: lutando ou doutrinando, segundo a necessidade da causa santa, 18
Sebastião
ele emprega a ironia alada, o sarcasmo estridente, a prédica cate- Pagano, Eduardo
drática e de toga, a murmuração familiar em chinelos, a rápida e re- Prado e sua época.
São Paulo, O
mexida rebusca dos fatos, e mesmo a compassada e ponderosa pro- Cetro, s.d.,
cissão das teorias.” passim.

91
Jo ão de Sc anti mbu r g o

As personagens de Eça foram compostas, como fazem todos os


romancistas, com pedaços de seres vivos. Eduardo Prado entrou
com a sua parcela, sobretudo em Fradique Mendes. Para Eça, no en-
tanto, o que predominou em Eduardo Prado foi o seu intrépido, es-
clarecido, puro amor à tradição, como elo entre gerações e prolonga-
mento das lições do passado no futuro. Na linha dos tradicionalistas
do século XIX, Eduardo nunca deixou de ser moderno e de querer
para o Brasil o progresso a que seu povo tem direito. Mas lhe repug-
nou sempre o desprezo à Tradição – sempre, como escrevia Eça – de
que procede o Brasil, a grande matriz lusitana, enriquecida, mas não
desfigurada, pela contribuição negra e imigratória. Eduardo Prado
conservou na urna mais cara de sua afeição o passado do Brasil e
Portugal, por nele ver o sólido bloco sobre o qual ergueram-se a civi-
lização e a cultura desta nação. Se essa foi em Eduardo uma virtude
ou um defeito, é tema a ser debatido. De nossa parte, vemos Eduar-
do Prado um paladino, uma espécie de cavaleiro, não da decadência
da Cavalaria, pois esse ilustre patrício do mais puro paulistismo não
foi, nem seria, um Quixote, mas, sim, um Bayard que cumpria o seu
dever, contra todos os obstáculos. As suas convicções foram para ele
sacratíssimas. Defendeu-se com fé, pois somente com fé se pode de-
fender convicções. Como disse Eça, “à planta que ele plantar, não
faltará nem adubo, nem sacha, nem rega, nem ternos cuidados”. Não
o conhecem as novas gerações. Iludidas pelos demagogos, intoxica-
das pelos impostores, enganadas pelos ideólogos, as novas gerações
se apresentam para contrariar o rumo histórico do Brasil, pois já não
mais se cultua a tradição da nossa límpida origem, do nosso com-
promisso com o passado.
Neste começo de milênio, quando o Brasil completou 500 anos,
poderíamos atribuir-lhe muito mais, pois ele vem do fundo das ida-
des, quando se formou, sob o magistério da Igreja, do Portugal, que
sairia pelos mares para descobrir novas terras, incorporá-las ao seu
patrimônio, civilizá-las e transferi-las a outros governantes.

92
Eç a de Qu ei ró s e Edu ardo P r a do

Infelizmente, para nós, o Brasil ficou, todo ele, desfigurado. A


crise maior de que sofremos, crise que nos fará, ainda, muito mal, é
essa, a da ignorância de nossas mais altas tradições. Não dispondo
desse bom cimento, as gerações, que se sucedem, devem aprender de
novo as regras de convivência, quando podiam aproveitar as lições
do passado e prosseguir, no tempo histórico, como fizeram as na-
ções que souberam se defender do processo revolucionário, ao qual
o mundo deve responsabilizar o impacto da desestabilização, em cu-
jas tenazes se debate. Foi esse homem de superior qualidade, “que na
verdade honra o Brasil”, como disse Eça, um grande exemplo de pa-
ladino da tradição e inteira entrega a uma causa, que ele considerava
sagrada, por estar diretamente vinculada à sua e à nossa pátria. Mui-
tas qualidades possuía esse brasileiro, esse paulista ilustre.
Eça as arrolou, acentuando que o fazia sem estudar. Mas com elas
se identificou, e com uma, ao menos, sua identidade foi maior, a
Tradição, pois essa correspondia ao seu permanente amor pelo que-
rido Portugal, que o vento revolucionário do século XIX iria defor-
mar. E o seu grande amor pelo Brasil, que Eduardo, com denodo e
sacrifício, demonstrou profundamente amar.19

19
Eduardo
Prado, Fastos
da ditadura
militar no Brasil.
São Paulo,
Livraria
Magalhães,
1923, passim.

93
João Guimarães Rosa e os pais, Dona Chiquitinha e Florduardo, quando
os visitou em Belo Horizonte, pouco antes de falecer – 1966.
João Guimarães Rosa
Car lo s H e it o r C o n y

O nome do pai – Florduardo – é a chave para a linguagem


de toda a sua obra. Menino do interior, introvertido, ob-
servador, viu neste nome um destino. Todos os pais têm nomes sim-
Jornalista,
romancista,
cronista, contista e
ensaísta. Desde o
ples. E o seu tinha um que era a mistura de flor e Eduardo. seu romance
Quando começou a escrever, ele procurava juntar palavras, às ve- O ventre (1958) a
O indigitado e
zes para criar uma outra, às vezes pelo prazer de juntar e ver o resul- A tarde da sua
tado. O processo não era exclusividade sua, pois James Joyce (e antes ausência (2001),
de Joyce, outros autores, inclusive o maranhense Sousândrade) usa- publicou cerca de
trinta livros e fez
ram da aglutinação dos vocábulos para variados efeitos literários. adaptações de
No noite de 19 de novembro de 1967, sozinho em seu aparta- obras da literatura
mento na rua Francisco Otaviano, em Copacabana, morreu tentan- universal. Por mais
de 30 anos
do telefonar para alguém A pessoa que o atendeu ouviu-o dizer: “so-
colaborou na
corro”. O telefone ficou fora do gancho, e a cabeça do escritor tom- revista Manchete.
bada sobre a mesa de trabalho. Atualmente é
cronista do jornal
Dois dias antes, tomara posse na cadeira no 2 da Academia Brasi-
Folha de S. Paulo.
leira de Letras, cadeira que pertencera a outro romancista barroco
como ele (Coelho Neto) e cujo último ocupante fora o seu ex-chefe

95
C arlo s Hei to r C on y

no Itamaraty, João Neves da Fontoura. A muitos amigos, Guimarães


Rosa confidenciara: – “Tenho medo da posse. O coração não vai
agüentar.” Agüentou. Pediu a amigos (Josué Montello entre eles)
que o fiscalizassem durante a leitura do discurso. No seu amor pela
perfeição, tomara exercícios de empostação de voz com Pedro
Bloch. Ouviu a saudação de Afonso Arinos de Melo Franco com um
sorriso que ficava mais no olhar do que nos lábios.
Segundo alguns – não precisava da Academia, mas ele precisava
dela e por isso se emocionava, e por isso temia a morte na tribuna,
envolto no fardão, como um clown das letras que encontra o ato final
no próprio palco.
Para seu bom gosto, a cena seria exagerada. Ele desejava que tudo
corresse bem, socialmente bem (pedira ao presidente Austregésilo
de Athayde uma banda de música) e o desenlace no seio da Acade-
mia seria sobretudo um trambolho, além de uma emoção dispensá-
vel. Seu amor pela ordem impediu a fraqueza e ele reagiu. Mas sa-
bia-se marcado. Horas mais tarde, em sua arena de trabalho, na mes-
ma mesa onde sofria em busca da palavra exata, da frase perfeita, ele
sentiu o fim.
Na véspera de sua posse, encontrei-o pela última vez. O sinal lu-
minoso da Rua Raul Pompéia com a Avenida Rainha Elizabeth fe-
chara e eu reparei em dois homens que atravessavam a rua. Chovia e
era noite. Apesar da miopia, da chuva e da noite, os olhos de gato de
Guimarães Rosa me descobriram dentro do carro. A seu lado,
Franklin de Oliveira, seu amigo e admirador.
Guimarães veio, o guarda-chuva pingando, dar-me o boa-noite.
O sinal abrira e eu tentei acelerar o carro.
– Olha, não me deixe sozinho amanhã. Eu preciso de suas palmas.
– Você terá muitas palmas. Nem estará sozinho.
– Mas vá, assim mesmo.
Buzinaram atrás de mim, e eu tive de avançar. Pelo retrovisor, vi a
silhueta dos dois amigos tentando alcançar a calçada oposta. E só

96
Jo ão Gu i marãe s Ro s a

então reparei que Guimarães Rosa falara comigo naturalmente.


Antes, quando o encontrava pelas manhãs no Posto Seis, ele a cami-
nho do Itamaraty e eu a caminho da praia com as minhas filhas, a sua
saudação era sempre de efeito, literária, barroca:
– Salve o pai matinal e audaz!
Eu gostava da saudação, e retribuía com uma frase menos barroca
mas igualmente amiga:
– Salve o honesto menino da primeira comunhão!
Com ternos claros, gravata borboleta, rosto lavado e jovem, sem-
pre me deu a impressão do menino que vai fazer a primeira comu-
nhão. Ele me prendia até que o seu ônibus chegasse. Não tomava
qualquer carro, tinha um lugar que era só dele, se estivesse ocupado,
esperava outro.
Dali, ele gostava de olhar as ruas, as pessoas, o dia e a vida. Mas
seu pensamento, quanto mais olhava a cidade, mais buscava em si
próprio os campos de suas Gerais. Uma tarde, tentou me explicar a
diferença entre um buriti e uma palmeira que até há pouco resistia,
ali na Avenida Atlântica. Para resumir, ele terminou dizendo, talvez,
uma de suas melhores e mais espontâneas frases:
– No fundo, dá tudo na mesma.
Cordisburgo significa cidade do coração. Foi uma palavra inventada
pelo missionário que fundou a cidade. Padre João de Santo Antônio,
que desejava homenagear o Sagrado Coração de Jesus. Juntou a palavra
latina cordis, genitivo de cor (coração), com o sufixo anglo-saxônico bur-
go, que significa burgo mesmo. A explicação do nome de sua cidade na-
tal foi dada pelo próprio Guimarães Rosa na abertura do seu discurso
de posse na Academia. Mais uma vez demonstrava a preocupação com
as palavras, que tornam o mundo mágico.
Em 1921 publica os primeiros contos. São trabalhos estranhos,
escritos numa linguagem de folhetim, com personagens estrangei-
ros, em ambientes sofisticados da Bulgária ou de Londres. Alguns de
seus títulos: O mistério de Higmore Hall, Cronos Kay Anagke. A fabulação

97
C arlo s Hei to r C on y

era primária, a trama superficial, mas desde já se esparramava na


hora de inventar nomes para seus personagens. Temos assim uma
enxurrada de Tragywyddol, Affael, Lleoddag, Duw-Rhoddoddag,
Inverary, Sviazline.
Mais tarde, a obsessão o arrastaria a nomes como Miguilim, Ma-
nuelzão, Sêo Habão, Joca Ramiro, Zé Bebêlo, Quelemén, Valtêi
(“nome moderno, é o que o povo daqui agora aprecia, o senhor
sabe”), Sesfredo, Suzarte, Ana Dazuza, Zéfim Aduzido, Alarico
Tostões, etc.
Em 1936 escreve um livro de poemas e o inscreve num concurso
na Academia Brasileira de Letras. O título, Magma, também seria a
chave para o título do livro de contos que viria a seguir e que o reve-
laria como contista: Sagarana.
Foi numa conversa, em seu gabinete, no Itamaraty, que Guimarães
Rosa explicou-me esta transformação. Procurara, para o livro de poe-
mas, um nome curto que tivesse dois as. Não seria difícil encontrar al-
guns: mágoa, Magda, vaga, fala. Fixou-se em Magma, e descobriu que
quanto mais as tivesse um nome, mais bonito ficaria. Quando escreveu
o primeiro livro de contos, fez uma relação de vários nomes. Pensou
durante algum tempo em savana, mas não queria empregar uma pala-
vra que já tinha um significado preciso. E como pensava em criar uma
grande saga (Grande Sertão), da palavra saga partiu para sagana, que
soava mal, até chegar a sagarana, que tinha quatro as, mantinha nítida a
raiz saga e praticamente não significava nada.
Para o escritor Guimarães Rosa a carreira estava lançada. Era
tempo, também, de cuidar de sua outra carreira, a diplomática. No-
meado cônsul em Hamburgo, permaneceu na Alemanha até o rom-
pimento de relações entre o Brasil e os países do Eixo, ficando retido
em Baden-Baden, juntamente com outros diplomatas, até que o Ita-
maraty providenciasse a troca de funcionários alemães que exerciam
funções no Rio.

98
Jo ão Gu i marãe s Ro s a

Bogotá é o posto seguinte e é na capital colombiana que encontra


tempo para rever os contos de Sagarana. Dá-lhe o toque final, iria re-
tocar todas as suas obras, ao longo das sucessivas reedições.
Nos dez anos seguintes, ele concentraria todas as suas energias
para o salto que o consagraria definitivamente. Em sua vida funcio-
nal, continuaria servindo no estrangeiro, voltando a Bogotá. como
secretário-geral da IX Conferência Interamericana e, logo depois,
servindo em Paris, como conselheiro da Embaixada. Em 1951, du-
rante o segundo governo de Vargas, é convocado pelo ministro do
Exterior, João Neves da Fontoura, para chefia de seu gabinete.
Em 1956, o dilúvio. Logo nos primeiros meses do ano sai Corpo de
baile, em dois volumes, e em seguida Grande sertão: Veredas. O impacto
causado ficou sendo uma espécie de hégira da literatura brasileira.
Pode-se falar em antes e em depois de Guimarães Rosa.
Todas as grandes obras-primas da literatura têm uma história li-
near, sem nada de extraordinário. Crime e castigo é a história de um es-
tudante que assassina uma velha para roubar. Dom Quixote nem enre-
do tem: é um louco de meia-idade que sai pelo mundo procurando
briga. Madame Bovary é a mulher de um médico provinciano que ar-
ranja um amante. E daí?
Tal como no caso dos grandes mestres, a história episódica de Ri-
obaldo seria transformada pelas mãos do feiticeiro, e dessa transfor-
mação resultaria uma poção mágica que não poderia ser tomada de
um gole só. Precisava de conta-gotas, para ser explorada em suas mi-
udezas, em seus muitos atalhos e veredas.
Diante da monumentalidade da obra, os críticos falaram, inicialmen-
te, em Joyce, fazendo paralelos de linguagem e intenções. Em princípio,
pode-se traçar paralelos entre um livro e outro qualquer livro, por
exemplo, entre o Almanaque Capivarol de 1942 e a Divina comédia.
Para uso próprio, preferimos compará-lo com outra obra-prima
produzida no mesmo século, o Dr. Faustus, de Thomas Mann. O com-
positor Adrian Leverkuhen persegue a sua obra-prima e vende a sua

99
C arlo s Hei to r C on y

alma ao demônio para obter a música desejada, tal como o seu ante-
passado goethiano vendera a alma para recuperar a mocidade. “O ja-
gunço Riobaldo e o compositor Leverkuhen – analisa um crítico –
têm, cada qual a seu modo, uma tarefa a cumprir, tarefa que está além
de suas capacidades. É preciso, então, convocar a energia obscura por
meio do pacto diabólico.” Conquistado o grande fim (a morte do
bandido Hermógenes para Riobaldo, a criação da grande música para
Leverkuhen), os dois personagens se retiram para uma espécie de apo-
sentadoria sinistra: o compositor, minado pela sífilis, torna-se idiota.
Riobaldo, depois de graves doenças e delírios, transforma-se num cai-
pira pensativo e estéril. Em ambos os casos, a narração é feita de me-
mória, depois de decorridos alguns anos dos fatos principais.
Thomas Mann e Guimarães Rosa eram, acima de tudo, homens
eruditos, dois humanistas no sentido pleno e nobre da palavra. Eles
espremeriam dentro de suas histórias, por mais banais que parecessem,
a carga cultural que os condicionava. Daí, muita gente tirou suas con-
clusões a respeito do Dr. Faustus e o regime nazista. E pelo mesmo pro-
cesso muitos leitores e críticos enxergaram na obra de Guimarães
Rosa uma ontologia, uma metafísica e até mesmo uma teologia. O
certo é que o romance de Rosa guarda todas as proporções de uma
epopéia medieval – e o próprio Sertão que serve de cenário, sujeito e
predicado da ação, é uma ilha medieval cravada no imenso corpo do
Brasil. O livro, assim, entendido, resulta numa canção de gesta, onde o
trovador (o ex-jagunço Riobaldo) narra ou canta – para um presumí-
vel ouvinte – “a sua vida de aventura, tendo como leit-motiv o seu amor
impossível por Diadorim e a sua ânsia do absoluto”.
Guimarães Rosa não chegou, como querem alguns, a criar uma
língua realmente nova, embora tenha empregado uma linguagem cri-
ada para ele. Quem está habituado a ler os clássicos, sobretudo os
quinhentistas, identifica o filão que abastece a sua prosa. Lembre-
mos como exemplo um texto conhecido, o da carta de Pero Vaz Ca-
minha: “Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa von-

100
Jo ão Gu i marãe s Ro s a

tade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, a que
não há de pôr mais do que aquilo que eu vi e que me pareceu.” Se
procurarmos outros exemplos em Frei Luís de Sousa e Gil Vicente,
chegaremos à conclusão de que Guimarães Rosa revisitou, criativa-
mente, o português arcaico, do qual ainda existem resíduos, ilhas
isoladas no arquipélago de nossa linguagem oral.
Ao perseguir uma expressão antiga, ele chegaria a um processo
antigo de pesquisar a realidade: a anotação gráfica dos pormenores.
Evidente que a memória e, sobretudo, a imaginação dariam os ele-
mentos demarcatórios de sua ficção. Mas o seu amor à verdade física
dos fatos levou-o ao mesmo processo adotado por tantos outros, in-
clusive por Zola: tirar o caderninho do bolso e registrar tudo. Gui-
marães Rosa anotava uma palavra que ouvia, tomava apontamentos
para descrever naturalisticamente uma planta ou um animal.
Zola, para fazer Bonheur des dames, gastou cinco cadernos anotando
nomes de tecidos, variações de tafetás, tipos de seda. E seu amor aos
detalhes fez com que empanturrasse 200 páginas para descrever um
jardim em La faute de l’Abbé Mouret.
Guimarães Rosa não fez por menos, por exemplo, ao relacionar
os nomes pelos quais o Demônio é mencionado no sertão: “O Arre-
negado, o Cão, o Sujo, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o
Pé-de-Pato, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o
Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o
Tristonho, o Não-Sei-Que-Diga, o Que-Nunca-Se-Ri, o Rapaz, o
Sem-Gracejos...
A seqüência de tantos nomes pitorescos não deixa de lembrar a
célebre passagem de outro clássico, Rui Barbosa, que conseguiu ali-
nhar uma dezena de nomes e expressões que significavam, simples-
mente, prostituta.
De certa forma, Guimarães Rosa tornou-se um autor oficial e ofi-
cializado. Nem assim perdeu o genial contorno que faz de sua obra
um monumento de nossa língua, território glorioso de nossa cultura.

101
José Lins do Rego, de Portinari, 1939
Óleo s/tela, 73,4 x 60,2 cm
Acervo da ABL.
José Lins do Rego:
cem anos
M u r i lo M e l o Fil h o

N este ano de 2001, completa-se exatamente um século do


nascimento, no Engenho Corredor, município paraibano
de Pilar, de José Lins do Rego Cavalcanti, ou simplesmente Zélins,
O jornalista
Murilo Melo
Filho ocupa a
Cadeira 20 da
como é chamado e assim escrito na sua Paraíba. ABL. Trabalha na
imprensa desde os
Ele foi um dos principais líderes da revolução que se processou
18 anos. Como
no moderno romance brasileiro, regionalista e nordestino, ao lado repórter político,
de Amando Fontes, José Américo, Graciliano Ramos, Jorge Amado escreveu centenas
de reportagens
e Rachel de Queiroz, com ênfase nas temáticas da cana-de-açúcar, sobre o Brasil,
do cangaço, do misticismo e da seca. entrevistou
Ao longo do “ciclo da cana-de-açúcar”, sobretudo em Menino de personalidades do
mundo inteiro e
engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934) e Fogo morto (1943) – tem vários livros
lançado em pleno apogeu do nazi-fascismo – o personagem que per- publicados, entre
meia quase todas as suas tramas é o todo-poderoso e hegemônico os quais O modelo
brasileiro e
chefão de engenho, com suas greis restritas. E o pano de fundo que Testemunho político.
se abre como palco é o da casa-grande e da senzala. Daí talvez a sua
imensa afinidade e intensas relações com Gilberto Freyre.

103
Mu ri lo Melo Fi lho

Seu primeiro livro, Menino de engenho, em 1932, foi rejeitado por


todos os editores. Só veio à luz custeado pelo bolso do próprio au-
tor, mas teve os dois mil exemplares da sua 1a edição esgotados em
três meses, após ter sido saudado efusivamente por João Ribeiro,
crítico literário do Jornal do Brasil, que considerou o romance “um li-
vro de primeira ordem, escrito numa linguagem nordestina, alheia
ao vernaculismo e aos artifícios da literatura corrente”. Com esse seu
livro de estréia, ganhou o prêmio da Fundação Graça Aranha.
Já no “ciclo do cangaço, do misticismo e da seca”, ao qual perten-
cem Usina (1936), Pedra Bonita (1938) e Os cangaceiros (1953), com
vinculações em Moleque Ricardo (1935), Pureza (1937) e Riacho Doce
(1939) – era quase um livro por ano –, os protagonistas são quase
sempre aqueles errantes bandoleiros do Nordeste, os santeiros, os
messias, os taumaturgos e os beatos, cuja saga é descrita em cores vi-
vas e excitantes.
Com suas inesgotáveis reservas de grande ficcionista, José Lins
conseguiu escrever tantos livros de ambiências iguais e assemelhadas,
mas de interesse distinto e permanente.

Memorialista. Ele é um neo-realista do romance posterior ao


Modernismo que, como exímio memorialista, vai buscar na sua me-
ninice e na sua juventude a inspiração para os provocantes enredos,
que prendem o leitor da primeira à última página dos seus romances,
numa tessitura sobre o feiticismo da paisagem, do vento, do massa-
pê, dos canaviais, dos poentes, dos rios, das chuvas, das cigarras, das
serras, da mata, da várzea, da floresta, da caatinga.
Dizia ele: “Sou um literato da cabeça aos pés e nada me arreda de
arrancar das entranhas da terra a seiva dos meus romances.”
A imaginação e a memória são duas vertentes e viés que balizam e
sinalizam quase toda a área do trabalho zelinsniano, no qual está
presente uma simbiose da pobreza com o desamparo, da tristeza

104
Jo sé Li ns do Rego : ce m a n o s

com a carência, da humildade com a submissão, da morte prematura


com a orfandade e do sexo com o lúdico.
A sua é quase uma obra sociológica, de denúncia social contra as
terríveis desigualdades dos grotões e dos mundéus no semi-árido,
escrita por um autor identificado com o seu chão e o seu povo, exu-
berante, primitivista e telúrico. Nessas duas fases – da cana-de-
açúcar e do cangaço – há uma constante cíclica da ascensão e queda
dos “coronéis” rurais, como herança inevitável do patriarcalismo,
do latifúndio, da escravidão, do feudalismo, do baronato e do
mandonismo.
Ele foi um dos nossos mais ricos e férteis escritores de ficção rea-
lista, inspirado nas mais legítimas fontes nordestinas, com uma ta-
lentosa combinação entre a arte e a realidade: a sua infância órfã no
Santa Rosa do Menino de engenho, o seu internato no Colégio Nossa
Senhora do Carmo em Doidinho e a figura do seu avô e xará José Lins
no personagem do Coronel José Paulino em Fogo morto.
Rico, extenso e variado é o seu elenco de inesquecíveis figurantes:
Carlos de Mello, Olívia, Ricardo, Dr. Juca, os cegos Ladislau e Tor-
quato, Lola, Antônio Cavalcanti, Felismina, Maria Paula, Margari-
da, Antônio Bento, Padre Amâncio, Ester, Edna, Nô, Marta, Luís,
Lucas, Feliciano, Sinhá Josefa, Tia Maria, Sinhàzinha e Bento, entre
muitos outros.
Fascinado pelo estilo de Eça, não o imitou em nada. Leitor, aos
17 anos, de O Ateneu de Raul Pompéia e, aos 19, do Memorial de Aires
de Machado de Assis, não copiou nenhum dos dois, podendo, quan-
do muito, influenciar-se ligeiramente com Memórias de um sargento de
milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e com O cortiço, de Aluísio
de Azevedo.
Como se fosse um John dos Passos, um Steinbeck e um Heming-
way dos trópicos, escreveu um pouco na linha de William Faulkner,
o retratista da decadência do Sul americano; de Thomas Hardy, o

105
Mu ri lo Melo Fi lho

pessimista do regionalismo britânico; de Maurice Barrès, o cultor do


provincianismo francês, e de Marcel Proust, o romancista dos tem-
pos perdido e reencontrado.
Parodiando André Gide, poder-se-ia dizer que Zélins escrevia
para sobreviver, para pôr-se em contato com a vida, a ela se ligando
mais intimamente. Escrevia porque podia escrever, porque nascera
para isto e porque vivia.

Conflito. Há também uma atmosfera de quase permanente con-


flito entre os proprietários, de um lado, e os “sem-terra”, do outro,
como precursores da grande problemática brasileira dos dias atuais,
que é a reforma agrária.
Pergunto: como se haverá de ver, senão sob este prisma, o choque
do Coronel Lula de Holanda, senhor do engenho Santa Fé, genro e
herdeiro do Capitão Tomás Cabral – um saudosista de tempos glo-
riosos – com o Mestre Zé Amaro, um humilde artesão, fazedor de
selas e de arreios e com Vitorino Carneiro da Cunha, o “Papa-
Rabo”, uma grotesca reedição do Quixote, de Cervantes?
Se a técnica da narrativa de José Lins é possante nesse cenário ru-
ral, com o linguajar típico da rudeza do agreste e com cheiro de poei-
ra e de gente (camumbembe, lasquinê, bute, furriel, pua, cachenê,
cassacos, agulheiro, carpina, chibante, turina, latomia, quenga, etc.),
não será menos pujante quando ela se transporta desse horizonte in-
teriorano para o ambiente citadino, como em Água-mãe (Cabo Frio)
e Eurídice (Rio de Janeiro).
Aí já não é mais o promotor público da comarca mineira de Ma-
nhuaçu, mas o fiscal do imposto de consumo no Rio, que, segundo
Manuel Bandeira, não lavrou uma só multa, e que, segundo Drum-
mond, quase não comparecia ao seu trabalho, mas que era convida-
do a fazê-lo pelos seus novos chefes, interessados mais em conhe-
cê-lo pessoalmente do que em recriminá-lo.

106
Jo sé Li ns do Rego : ce m a n o s

No auge do macartismo e da “caça às bruxas”, subscreveu um ma-


nifesto de intelectuais brasileiros contra o generalíssimo Franco e
teve negado o visto para entrar nos Estados Unidos.

Rubro-negro. Certa vez, em setembro de 1954, cheguei a defron-


tar-me com ele, misturado nas arquibancadas com a massa ru-
bro-negra do seu Flamengo muito querido (do qual viria a ser o pre-
sidente). E, num jogo contra o Vasco, em São Januário, chegou a ser
preso pela polícia, durante duas horas, por causa de uma briga com
torcedores vascaínos.
Nesse mesmo ano, chefiou uma desastrada seleção brasileira de
futebol, que disputou uma Copa em Assunção e lá foi derrotada
pelo Paraguai, o que lhe valeu uma eterna inimizade com o craque
Zizinho. Zélins quis demitir-se do Jornal dos Sports e ir embora do Bra-
sil, no que foi dissuadido por Mário Filho.
Cronista diário (“Conversa de lotação”) e crítico cinematográfi-
co, já estava então empenhado na consolidação de sua obra literária,
com vários livros: Gordos e magros, Poesia e vida, Homens, seres e coisas e A
casa e o homem (crônicas), além de Pedro Américo e Presença do nordestino na
vida brasileira (ensaios); Meus verdes anos (memórias); Botas de sete léguas,
Roteiro de Israel, Gregos e troianos e Conferências no Prata (viagens); Histórias
da velha Totonha (infantil); Dias idos e vividos (antologia) e O vulcão e a
fonte (póstumo).

Acadêmico. Tomou posse na Cadeira no 25 da Academia Brasileira


de Letras, em 15 de dezembro de 1956, substituindo Ataulfo de Pai-
va, a quem se referiu num irreverente e cáustico discurso de posse, cuja
repercussão seria muito controvertida. Conviveu com a “imortalida-
de” acadêmica durante apenas nove meses, pois morreu a 12 de setem-
bro do ano seguinte. Foi sucedido por Afonso Arinos de Melo Franco
e pelo atual ocupante, o acadêmico Alberto Venancio Filho.

107
Mu ri lo Melo Fi lho

Faleceu no Hospital dos Servidores. A causa mortis, de acordo com


o boletim médico assinado pelo Dr. Theobaldo Vianna, foi uma cir-
rose hepática, embora suas relações com o álcool não tenham passa-
do, conforme esclarece o confrade Carlos Heitor Cony, de uma es-
porádica demi-bouteille de vinho tinto francês, aliás, um hábito saudá-
vel e muito igual ao do acadêmico Geraldo França de Lima.
Desprezava a datilografia e escrevia em cadernos escolares numa
letra miúda, quase ilegível, com suas correções e garranchos dificil-
mente decifráveis até mesmo por ele próprio. Tentava ler à tarde
para os amigos, numa praça fronteira, os textos que escrevera pela
manhã.
Casado com D. Naná, teve três filhas Marias: Elizabeth, Cristina
e da Glória, hoje mais do que nunca irmanadas no culto à sua memó-
ria, além de muitos e fraternais amigos: o baiano Jorge Amado, os
sergipanos Joel Silveira e Amando Fontes; os alagoanos Aurélio Bu-
arque, Waldemar Cavalcanti, Aloísio Branco, Jorge de Lima, Graci-
liano Ramos, Carlos Paurílio e Lêdo Ivo; os pernambucanos Gilber-
to Freyre, Luís Delgado, Aníbal Fernandes, Olívio Montenegro,
Osório Borba, João Condé e Luís Jardim; os paraibanos José Améri-
co, Assis Chateaubriand e Odilon Ribeiro Coutinho; a cearense Ra-
chel de Queiroz; o maranhense Josué Montello, além de Octavio
Tarquínio, Dinah Silveira de Queiroz, Paulo Prado, Tiago de Melo,
José Olympio, Carlos Drummond, Otto Maria Carpeaux, Álvaro
Lins, Portinari e Santa Rosa, entre vários outros.

Incógnita. O Mestre Zé Amaro e o Coronel Lula de Holanda são


dois personagens importantes, que ponteiam na urdirura de quase
todo o Fogo morto, seu melhor romance. Ambos são homens volunta-
riosos. Ambos são sertanejos de ânimo forte. Ambos são pais de
duas filhas patologicamente loucas: Marta e Olívia. Ambos são tam-
bém vítimas de ataques convulsivos, ao que tudo indica, de fundo

108
Jo sé Li ns do Rego : ce m a n o s

epiléptico, embora José Lins não tenha usado uma só vez, nesse tex-
to, a palavra epilepsia.
Mas, além desses dois personagens, persistem até o fim do livro
uma curiosidade e uma incógnita, que em parte lembram a obra ma-
chadiana, no Dom Casmurro, com o mistério sobre a traição de Capi-
tu: a curiosidade e a incógnita de sabermos se o Mestre Zé Amaro –
que, mesmo protegido pelo Capitão Antonio Silvino, termina se sui-
cidando no final – foi ou não foi um lobisomem.
Misterioso ou não, a verdade é que esse foi José Lins do Rego Ca-
valcanti, que no dia 3 de junho de 2001, um domingo, foi lembrado
pelos seus conterrâneos com grandes e comoventes homenagens na
sua Paraíba.
Ele nos legou, ao fim dos escassos e efêmeros 56 anos de vida, a
imagem de um escritor espontâneo, emocional, simpático, bem-
humorado, rústico, franco, sarcástico, quase excêntrico, sem papas
na língua, e que foi também um incomparável arquiteto de roman-
ces, um exímio construtor de enredos, um modelar arquétipo de dra-
mas, um inteligente compositor de diálogos, um engenhoso mágico
de trovas e um admirável narrador de histórias.

109
Louis Pasteur
(1822-1895)
Dom Pedro II e o
médico sem diploma
Car lo s A . L e it e

E o
stá sendo comemorado o 105 ano da morte de Louis Pas-
teur, a quem a humanidade rende os tributos de admiração e
gratidão pela pioneira e incomensurável contribuição no tratamento
Aluno do
Instituto Pasteur,
de Paris. Doutor
Honoris Causa da
da raiva. Nascido em Dôle, no dia 27 de dezembro de 1822, Pasteur UNIG.
cresceu em Arbois, onde seu pai tinha uma indústria de curtume. Em
1848 foi nomeado professor de Física no Liceu de Dijon, onde fi-
cou por pouco tempo, por não encontrar facilidades laboratoriais
para desenvolver suas pesquisas. Já no ano seguinte conheceu a filha
do reitor da Academia de Estrasburgo, Mademoiselle Marie Lau-
rent, com quem se casou, dela recebendo companheirismo e dedica-
ção por mais de 45 anos.
Sua carreira de pesquisador com a tranqüilidade doméstica come-
ça então a ganhar etapas rapidamente. Em 1857, ao ser nomeado di-
retor de estudos científicos da Escola Normal Superior, inicia uma
série de pesquisas que por 31 anos lhe iriam dar lugar de preeminên-
cia na vida pública e na comunidade científica internacional.

111
C arlo s A . Lei te

O Instituto Pasteur de Paris, inaugurado em 14 de novembro de


1888, obra perenal, desde a sua fundação, teve um especial carinho
para com os cientistas brasileiros que ali trabalharam ou estagiaram,
graças sobretudo aos aspectos humanitários marcantes, desconheci-
dos por muitos, do nosso Imperador Dom Pedro II. Esses predica-
dos de Dom Pedro II jamais seriam igualados pelos governantes do
novo regime que seguiu à sua queda do poder.
Deve-se salientar que a produção científica mais intensa e notável
de Pasteur seguiu-se ao episódio de hemorragia cerebral aos 45 anos
de idade. Esse médico sem diploma, como acentuou Xavier de Pré-
ville na obra editada por Tolra e M. Simonet, confessava que “la sci-
ence n’a pas de patrie”. Deste pensamento comungava, entre outros,
o nosso Imperador, que nas suas viagens à Europa, ao largo dos pra-
zeres fúteis, freqüentava as reuniões da Société de Secours des Amis
des Sciences, onde, no dia 31 de maio de 1877, discursando numa
sessão pública e notando a presença do nosso Imperador, Pasteur o
saudou com cordiais palavras, adoçadas por respeito e carinho: “...Sa
Majesté, pendant son dernier voyage à Paris, a été l’un des bienfaite-
urs de la Société. Vous serez hereux de saluer, avec moi, le premier et
plus illustre des amis de la Science”.
Este reconhecimento público da generosidade de Dom Pe-
dro II, embora intimamente o confortasse, atingia sua modéstia,
embora na verdade ele tenha sido o último de nossos dirigentes
a se preocupar com a ciência e dedicado aos nossos cientistas
apreço e respeito, que nos tempos atuais lhes é negado por um
país sem memória e sem escrúpulos. No discurso de posse na
Academia Francesa ocupando a vaga de Émile Littré – que nos
deixou, além da grande obra sobre a vida de Hipócrates em dez
volumes, o dicionário de termos médicos que sobrevive até os

112
Do m Pedro II e o médi c o sem di p l o m a

nossos dias – Pasteur acentuou as palavras que mais tarde iriam


compor o panegírico de Rui Barbosa na ausência de Osvaldo
Cruz: “...a grandeza das ações humanas mede-se pela inspiração
que lhe deu o ser. Feliz de quem traz em si um Deus, um ideal de
beleza e lhe obedece: um ideal de arte, ideal de ciência, ideal de
Pátria, ideal de virtudes do Evangelho, são estes os mananciais
vivos dos grandes pensamentos e das grandes ações. Todas elas,
todos eles se alumiam dos reflexos do infinito...”. Dom Pedro
II, mesmo comandando um Brasil sem as facilidades da comuni-
cação que podemos contar nos dias de hoje, mantinha-se ligado
ao Velho Mundo, de onde surgiam as novidades científicas. Em
1882, após uma comunicação de Pasteur feita à Academia das
Ciências e de Medicina, sobre as doenças microbianas, inclusive
a febre amarela, Pasteur recebeu uma carta de nosso Imperador
convidando-o a vir ao Brasil “estudar o micróbio da febre ama-
rela e preparar uma vacina”. Esta carta foi entregue pessoalmen-
te pelo Dr. Gorceix, diretor da Escola de Minas de Ouro Preto
– está nos Arquivos do Instituto Pasteur de Paris – e demonstra
a antevisão do progresso existente na mente sã de nosso Impera-
dor, reforçando a amizade que unia ambos humanistas.
Após o anúncio no memorável 26 de outubro de 1885 da des-
coberta do tratamento preventivo da raiva, Pasteur adoeceu gra-
vemente em Nice. Seu amigo brasileiro passou-lhe um telegrama:
“... longue vie à celui qui a tant fait pour prolonger celle des au-
tres..”. A doença de Pasteur e o Prêmio “Jean Reynaud” conferi-
do pela Academia de Ciências, ao final de 1886, apressaram a
subscrição para a “Fundation Pasteur”, que culminaria com a
inauguração do Institut Pasteur de Paris na rua Dutôt, hoje rua
Docteur Roux (médico de quem se valeu Pasteur, desde 1878,

113
C arlo s A . Lei te

para evitar as críticas que sofria quando se apresentava pelas es-


tradas da Medicina sem possuir o diploma legal de formação), na
estação do Metrô Pasteur. À inauguração compareceram 600
pessoas que puderam presenciar dois bustos, à direita e à esquer-
da da entrada principal, correspondentes a dois grandes benfeito-
res: o Tzar da Rússia e o Imperador do Brasil. O reconhecimento
público de Pasteur manifestou-se mais uma vez no discurso: “Sa
Majesté le Sultan voulait être un de nos souscripteurs; l’Empe-
reur de Brésil, cet homme de science, inscrivait son nom avec le
joie d’un confrère, et le Tsar saluait le rétour des russes qui nous
avions traités par un don vraiment imperial.”
Após ser deposto e exilado, D. Pedro II foi viver em Portugal e ao
enviuvar transferiu-se para a França, residindo em Cannes e Paris. O
nosso Dom Pedro d’Alcântara, como assinava então, continuava a
respirar o ar das ciências e procurar o saber nas visitas às bibliotecas,
museus e academias. O inverno rigoroso de 1891 preparou a arma-
dilha mortal. Em final de novembro, o nosso Dom Pedro foi acome-
tido de episódio febril por pneumonia e no dia 5 de dezembro ocor-
reu o óbito no Hôtel Bedford, na rua d’Arcade n. 17, no 8ème ar-
rondissement. O Hôtel Bedford, em respeito ao ilustre e fiel hóspe-
de do apartamento 212, mantém a inscrição numa placa de bronze:
“Dans cette maison a vécu ses derniers jours l’Empereur de Brésil
Don Pedro II. Grand patriote, protecteur des sciences et des arts,
ami de son peuple.”
Pasteur viria a falecer em 28 de setembro de 1895, porém o
Institut de Paris colocou na biblioteca, próximo à cripta de Pas-
teur, o busto em mármore branco do nosso Imperador ao lado do
de Pasteur com a inscrição: “S.M. Don Pedro II Empereur du
Brésil à l’Institut Pasteur, 1890.” A história da vida desses dois

114
Do m Pedro II e o médi c o sem di p l o m a

homens unidos pelo desejo de ajudar a humanidade, com lugar


proeminente no panteão de benfeitores, forjou um elo indestrutí-
vel no relacionamento dos cientistas brasileiros e franceses que
perdura até os nossos dias, mantendo viva a chama do dístico: A
Ciência não tem Pátria.

115
Pessoa: personagens
e poesia
M i lt o n V a r g a s

 A psique do poeta Milton Vargas é


professor da
Escola
Politécnica da
Será sem dúvida tarefa difícil e perigosa enfocar a poesia sob o
Universidade de
ponto de vista psicológico. No entanto, o aparecimento simultâneo São Paulo e
de uma filosofia das formas simbólicas, de uma psicologia dos sím- membro da
Academia
bolos e da poesia simbolista no fim do século passado e início do
Paulista de
atual, tornou quase irresistível a tentação de um tal enfoque. Letras.
Não pretendo, porém, de forma alguma dizer que o símbolo, e
com ele a poesia, sejam inteiramente redutíveis ao psicológico. Pelo
contrário, foi o símbolo que assumiu em nossa época uma realidade
na qual se radicam tanto a poesia como a psicologia.
Se tivéssemos que escolher cinco grandes poetas da primeira meta-
de do século XX para exemplificar a tese acima mencionada, sem dú-
vida colocaríamos Fernando Pessoa entre eles. Os primeiros cinqüen-
ta anos do século foram extraordinariamente ricos em poesia: Rilke,
Yeats, Pound, Eliot, Ungaretti, Maiakovski, Lorca, Antônio Macha-

117
Mi lto n Vargas

do... Seria fácil enumerar dez grandes poetas que emprestaram, para-
doxalmente, à época do triunfo da tecnologia e das guerras mundiais,
uma atmosfera poética comparável à dos períodos mais criativos da
história. Ora, esses poetas, de um modo ou de outro, mostraram sua
filiação ao Simbolismo e a melhor crítica de poesia que se fez então
também adotou o ponto de vista do símbolo.
Depois disso, a fonte de criatividade poética parece vir se extin-
guindo. Depois do esplendor dos anos 20 a 40, fulgurou ainda a
chama de um St. John-Perse e o fogo lentamente se apagou. Mas este
fenômeno talvez seja aparente, pois é possível que a crítica agora do-
minante, tanto a analítico-informática, quanto a de origem marxista,
tenham sido incapazes de identificar uma nova poesia de grande va-
lor. As correntes críticas citadas partem do princípio de que a poesia
é tão-somente produção de uma pessoa: o poeta. Se a poesia, porém,
emerge do símbolo (o que se subentende no pensamento simbólico)
e o símbolo não é um produto pessoal, deve-se concluir que a poesia
transcende a instância meramente individual. É verdade que o mo-
mento poético eclode na mente do poeta, mas mesmo assim pode
não ser produzido por ele, como pessoa. Lembremos a esse respeito
o inconsciente coletivo, na conceituação de Jung, como fonte possí-
vel da fantasia criadora. Ele não é meu, não é teu, nem foi produzido
por alguém. Em suas camadas mais profundas, nem mesmo se pode
dizer que pertença à humanidade, pois suas raízes mergulham na an-
cestralidade telúrica do orgânico, atingindo abismos insondáveis,
que podem ser assimilados ao que sempre se chamou de divino. Une
a ordem urânica dos céus e as profundidades da terra com o mundo
e os homens. Põe o homem dentro de uma realidade que ao mesmo
tempo é dele e o ultrapassa.
A idéia romântica e pré-simbolista da poesia como verdade já a
retira do contexto de produto do poeta. Para Heidegger, a obra de
arte é uma coisa feita pelo homem, mas não é isto que a estabelece

118
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

como obra de arte. Para ser obra de arte, essa coisa-feita-pelo-ho-


mem deve revelar algo como verdade. Assim, pois, esse momento es-
sencial da obra de arte está além do produzir humano, uma vez que
para a filosofia romântica a verdade é uma totalidade transcendente.
A poesia como desvelamento é independente e diversa do modo ou
técnica mediante os quais o produto foi produzido.
Para o Simbolismo, a poesia é sempre uma manifestação do sím-
bolo através da palavra. As palavras teriam cargas simbólicas, cono-
tações, que se enriqueceriam ao serem habilmente justapostas na po-
esia. Caberia, pois, ao poeta, o manejo dos símbolos, mas estes não
seriam de forma alguma produto do poeta. Seriam como que áto-
mos de criatividade ou fontes de realidade, cuja trajetória se daria
através do inconsciente que não pertence ao poeta como indivíduo.
A poesia de Fernando Pessoa, cujas raízes simbolistas são eviden-
tes, constitui uma excelente ilustração do que foi dito acima. Mani-
festa-se por si mesma, como que independente da pessoa que a pro-
duziu, e de forma alguma é explicável a partir de Pessoa como indi-
víduo. Este desdobrava-se em pelo menos quatro personagens dis-
tintos. Como produto de uma pessoa, ou dos vários personagens, tal
poesia não guarda característica alguma que a distinga univocamen-
te. Mas dela brota algo de quem a fez: uma das maiores vozes poéti-
cas de seu tempo.
O conceito de pessoa tem duas acepções em português: a de um
centro de consciência e reflexão, como a definição de que “a alma
imortal é, para o cristão, uma pessoa”. Aqui, a palavra indica um ser
não só capaz de conhecer-se a si mesmo e à sua circunstância, como
também de estabelecer uma relação de sujeito-objeto com as coisas
que o rodeiam, além de uma relação intersubjetiva com as pessoas,
sem que necessariamente com elas se confunda, ou nelas se perca. A
segunda acepção é a de pessoa como personagem, isto é, de alguém
que desempenha uma função, tal como na frase: “A pessoa impo-

119
Mi lto n Vargas

nente do Imperador escondia um fraco.” A palavra liga-se aqui, eti-


mologicamente, ao seu significado original de persona: máscara usada
pelos atores do teatro antigo. O limite superior do primeiro signifi-
cado ou acepção é a divindade; e o limite inferior, a aparência do far-
sante.
Aceitemos, pelo menos como hipótese de trabalho, que a estrutu-
ra da alma humana seja a de um ápice consciente, enraizado num
substrato inconsciente. No ápice, estará a pessoa humana, enquanto
que o substrato carece de toda personalidade e individualidade.
Confunde-se, assim, não só com o orgânico da humanidade, mas
também com a região psíquica onde se encontram os modelos de
todo o comportamento humano. C.G. Jung chamou às camadas
mais profundas dessa região de “inconsciente coletivo”, e aos mode-
los de comportamento, de “arquétipos do inconsciente coletivo”.
A palavra pessoa pode então significar a harmoniosa organização
da alma em torno de um centro que garanta a sua individualidade.
Mas pode também significar um segmento da psique coletiva que,
ao invadir a alma, domina o consciente, fazendo com que o indiví-
duo se confunda com sua função social. É o fenômeno comum, na
sociedade moderna, do indivíduo dominado por sua profissão: o se-
nhor Diretor, o senhor Governador, etc.
O primeiro significado corresponde aproximativamente ao que
Jung denominou Si-mesmo e o segundo, à persona.
Mas das profundezas do inconsciente coletivo podem também ir-
romper na consciência figuras numinosas (os arquétipos), a modo
daqueles “estranhos deuses que vêm e vão” na floresta do que so-
mos, vindos daquilo que não sabemos até a clareira do nosso eu co-
nhecido (Lawrence). Sob esse ponto de vista, o poeta é o ser particu-
larmente aberto à irrupção dos símbolos que vêm das profundezas,
do “antiquíssimo de nós”, tal como se exprime Fernando Pessoa, re-
gião que não mais nos pertence, abrangendo toda a humanidade e

120
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

ancestralidade. Esta é a região do sagrado, do divino, para além do


humano.
Fernando Pessoa, o poeta uno e múltiplo, mostrou-nos através de
seus heterônimos como a conjunção do eu consciente do poeta com
a multiplicidade da poesia pode dar-se. Fernando Pessoa é Alberto
Caeiro, o mestre de Álvaro de Campos, mas é também este último e
o seu oposto: Ricardo Reis. E é também o outro Fernando Pessoa,
ele mesmo.
A Álvaro de Campos, o mais lúcido dentre eles, coube explicar o
por quê dessa pluralidade:

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,


Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é tudo
E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Essa fragmentação da personalidade não ameaçará o poeta, en-


quanto um centro interior as mantiver harmoniosamente constela-
das, centro esse de certa forma análogo ao divino. No caso em ques-
tão, este centro consciente é Fernando Pessoa, ele mesmo, capaz de
conhecer a gênese dos seus heterônimos. Diz ele: “O que Fernando
Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras a que podemos
chamar de ortônimas e heterônimas. Não se poderá dizer que são
anônimas ou pseudônimas; porque deveras não o são. A obra pseu-

121
Mi lto n Vargas

dônima é do autor fora de sua pessoa, de uma individualidade com-


pletamente fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer
personagem de qualquer drama seu.”
Foi o próprio Fernando Pessoa quem contou, em carta a Casais
Monteiro, que no dia 8 de março de 1914, inclinado sobre uma cô-
moda alta, escrevera, de um só jato, trinta e tantos poemas de Alber-
to Caeiro, numa espécie de transe. Como a obra de Alberto Caeiro é
constituída pelos 49 poemas do “Guardador de rebanhos” e mais
35 poemas inconclusos, datados de 1911 a 1915, conclui-se que na-
quela noite houve a verdadeira e quase única irrupção do persona-
gem Caeiro, na mente consciente do poeta.
Contra essa versão há o fato do manuscrito do “Guardador de re-
banhos” ser datado de 1911 a 1912; no mesmo manuscrito, só al-
guns poemas têm a data da mencionada noite de 7 a 8 de março ao
10 de maio seguinte.
Imediatamente depois, diz ele, escrevi os seis poemas que consti-
tuem a “Chuva oblíqua”, de Fernando Pessoa. Diz ainda na mesma
carta: “Foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência
como Alberto Caeiro.” Essa frase, entretanto, faz supor que o pró-
prio Fernando Pessoa fosse um outro, pondo-se no mesmo nível de
Alberto Caeiro e disputando com ele a existência. Mas há um centro
de consciência, em Pessoa, que mantém o controle da individualida-
de, sem o que o poeta poderia perder-se na noite da loucura.
Suponho, aqui, que pela madrugada daquela noite memorável es-
crevesse, ao voltar a poetar como Caeiro, o final do último poema da
série (o atual poema XLVI do “Guardador de rebanhos”):

Isto sinto e isto escrevo


Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E o sol ainda não mostrou a cabeça

122
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

Por cima do muro do horizonte,


Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

E então, como na tragédia antiga, depois de finda a luta dos deu-


ses e mortos os heróis, a vida retoma sua normalidade. A manhã de
fim de inverno alvoreceu e o poeta contemplou de sua janela o por-
to, a igreja, a feira, o mundo, num dia de chuva oblíqua, entremeada
de raios de sol, e centrou-se de novo em si mesmo, escrevendo:

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito


E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios.

Difícil não ver nessa chuva oblíqua de madrugada a transição do


inconsciente Caeiro para o consciente Pessoa, transformando-se
lentamente um no outro. Mas, uma vez concluída a transformação,
como são diversos! O mesmo tornou-se, alquimicamente, o outro.

 Caeiro, o mestre do sensível


Por que teria sido Alberto Caeiro, tal como Fernando Pessoa o
declarou, o mestre dos três outros heterônimos? Sem dúvida, é ele o
poeta do sensível. O que nos faz lembrar Aristóteles: nada há no in-
telecto que primeiro não estivesse nos sentidos. Assim, a primazia de
Caeiro como mestre, afirma a primazia da sensibilidade que nele co-
meçando, passa para a intelectualidade dos outros. Caeiro é, portan-
to, o corpo dos outros. Se pensa, seu pensamento é sobre as sensa-
ções, tal como o diz no poema IX do “Guardador de rebanhos”:

Sou um guardador de rebanhos


O rebanho é os meus pensamentos

123
Mi lto n Vargas

E os meus pensamentos são todos sensações.


Penso com os olhos e os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto meu corpo deitado na realidade
Sei a verdade e sou feliz.

Eis o corpo! A realidade constituída pela totalidade das sensa-


ções, alcançada pelo mergulho do corpo inteiro no mar da sensibili-
dade. A estória do Menino Jesus contada no poema VII é uma ten-
tativa de trazer o paraíso cristão para o reino da sensibilidade: o Me-
nino foge do céu, onde não há sensibilidade, e vem brincar na terra,
com raios de luz e com flores e pedras, cuja grande glória é a de sim-
plesmente existirem na plenitude de suas cores, odores e tangibilida-
de. Esse poema revela uma nova maneira de viver, engolfada no sen-
sível, que é, também, uma religião. Sem dúvida alguma há, nesse poe-
ma, uma antevisão do movimento hippie, cujo Deus, necessariamente
imanente, é a Criança Nova:

A Criança Nova que habita onde vivo


Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo

124
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

E gozando o nosso segredo comum


Que é o saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

Dessa religião de um Deus imanente que parece dominar o pensa-


mento religioso atual, nasce uma ética da sensibilidade, já prenuncia-
da, por exemplo, por um D.H. Lawrence.
Veja-se como soa lawrenciano o final do poema XXXII:

(Louvado seja Deus que não sou bom,


E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com fluir e ir correndo.
É essa a única missão no mundo
Essa – existir claramente
E saber fazê-lo sem pensar nisso)
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

Compare-se esses versos com o que disse aquele suave e terrível


aristocrata, filho de mineiro, que viveu na Inglaterra nessa mesma
época:

And whoever forces himself to love anybody


begets a murder in his own body.

Entretanto, Caeiro, no seu Penúltimo Poema, admite que a reali-


dade, além das sensações, tem mais uma componente. Há que fazer
conjeturas sobre as sensações, e isto é o que distingue o poeta dos
outros seres, pois em suas conjeturas ele chega à verdade:

125
Mi lto n Vargas

Também sei fazer conjeturas


Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.
No animal é um ser interior longínquo,
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
É o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma cousa que o corpo.
Por isso se diz que os deuses nunca morrem.
Por isso os deuses não têm corpo e alma
Mas só corpo e são perfeitos
O corpo é que lhes é alma
E têm a consciência na própria carne divina.

Estranha conclusão, tão lógica, a que Caeiro chega, sobre a corpo-


ralidade dos deuses. Se a realidade é inicialmente sensação sobre a
qual o poeta deve conjeturar, é evidente a corporalidade dos deuses,
uma vez que eles são a fonte da realidade. Só eles poderão usufruir a
totalidade do real.
Sabe-se, através de Fernando Pessoa, que Alberto Caeiro só teve
instrução primária. Era órfão de pai e mãe. Nasceu em 1889 e não
teve profissão. Viveu quase toda a sua vida no campo, em compa-
nhia de uma tia, meia avó. Porém, com uma vida tão simples e esque-
mática, Caeiro é talvez o mais coerente, íntegro e conciso dos quatro
heterônimos. E por isso mereceu ser o mestre de todos, recolhendo
os dados da sensibilidade que depois foram elaborados pelos outros.

 Fernando Pessoa ortônimo


Mas Fernando Pessoa não é só Caeiro; é também os três outros,
sem que o ser quádruplo lhe turve a personalidade única. E entre os
quatro, sem distinção possível, está o seu ortônimo: Fernando Pessoa.

126
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

Já se tentou mostrar como seria possível interpretar a passagem


de Caeiro a Pessoa através de um dos últimos poemas do “Guarda-
dor de rebanhos”, e os primeiros versos de “Chuva oblíqua”, escri-
tos na mesma famosa madrugada já citada. Foi o final da paixão
noturna, quando a sensibilidade de Caeiro derramou-se, ao romper
do dia, em Fernando Pessoa. Finda a alegria dos sentidos, veio a
tristeza da constatação do infortúnio que rodeia o poeta – ser es-
tranho, lançado num mundo inóspito Caeiro não pensa, mas é coe-
rente. Fernando Pessoa perde-se no tumulto do pensamento e foge
das sensações, procurando refúgio no que não é real. Aparece então
a figura do poeta, como um fingidor que finge completamente a
dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreveu


Na dor lida sentem bem
Não as duas que ele teve
Mas só as que ele não tem.

Assim, segundo o que o próprio Fernando Pessoa publicou no


número 17 da revista Presença, aquilo que Pessoa escreve sob outro
nome, não é obra pseudônima, em seu sentido mais simples, mas or-
tônima.
A obra de Fernando Pessoa não poderia ser simplesmente dividida
em própria e heterônima, e muito menos em própria e sinônima. Ela é
ortônima e heterônima. Ora, ortônima quer dizer a que é certamente
própria, enquanto heterônima é aquela que é certamente de outro.
Atrever-nos-emos agora a formular a seguinte teoria, deslocando
a abordagem para uma análise literária e não psicológica da obra de
Fernando Pessoa. O poeta, ao escrever, adotando o nome do indiví-
duo físico Fernando Pessoa, não se confundiria com o cidadão por-
tuguês que viveu sob aquele nome em Lisboa, entre 1920 e 1935.

127
Mi lto n Vargas

A expressão “em sua pessoa”, designando o autor, sugere que,


embora não sendo o mesmo que a pessoa física, constitui o centro
consciente que dá unidade aos demais. É a pessoa de Fernando Pes-
soa aquele centro a que nos referimos, definindo a primeira das duas
acepções do termo e equiparando-a ao Si-mesmo de Jung. Os hete-
rônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são per-
sonagens parciais, emergências do plural interior do poeta, advindas
de um fundo abissal inconsciente.
Aliás, o próprio Fernando Pessoa confirma tal coisa, ao dizer que
sua poesia tem o sentido teatral do drama. Isto é um fato e, como tal,
poderia ser analisado objetivamente pela psicologia. Entretanto, essa
análise não é nossa meta, a não ser incidentalmente, para descobrir
certos condicionamentos da criatividade poética. A estrutura do psi-
quismo de Pessoa parece-nos realmente reveladora de algo necessá-
rio a toda criatividade poética. A pessoa (na primeira acepção do ter-
mo) do poeta é marcada indelevelmente por uma unicidade inabalá-
vel – fonte donde jorra o poema que sempre traz em si a marca única
de seu criador. Mas, paradoxalmente, o poeta é também aquele que é
capaz de falar através de personagens, isto é, de livrar-se de sua per-
sonalidade própria, aparecendo como outro. É capaz de “fingir” e,
fingindo, comparece como personagem.
Dessa forma, a poesia de Pessoa é extremamente esclarecedora
para explicar o fenômeno psicológico da criatividade poética.
Segundo C.G. Jung, a psicologia pode aparecer na obra literária
de duas formas: nas chamadas obras de caráter psicológico e nas de
caráter visionário. Nas primeiras, o autor discorre conscientemente
sobre fatos e questões que envolvem a psicologia. Em geral, esse re-
pertório se refere a uma série de preconceitos, crenças ou constata-
ções subjetivas do próprio autor. No máximo, poderá haver emer-
gências do seu inconsciente pessoal. Já na obra visionária nada se en-
contra de puramente subjetivo. O que aparece, através de símbolos e

128
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

mitos, fatos e atos, diz respeito não à psicologia do autor, mas à psi-
cologia coletiva. No primeiro caso, há uma fabulação consciente do
autor; no segundo, irrompem forças do psiquismo, que escapam ao
controle do criador. Trata-se de estratos do inconsciente coletivo –
que forma o embasamento inconsciente de toda a psique humana,
espécie de repositório de toda a experiência da humanidade. Como
exemplos desses dois tipos de obra literária, Jung cita as duas partes
do Fausto, de Goethe. Na primeira, trata-se do relato claro e consci-
ente do drama psicológico pessoal de Fausto e de Margarida. Na se-
gunda, já não se trata de Fausto, mas de todo o demonismo e desejo
de salvação inatos na alma humana. Em lugar de Margarida aparece
Helena e o Eterno Feminino.
É verdade, como diz Jung, que “a essência da obra de arte não é
constituída pelas particularidades pessoais que pesam sobre ela
(quanto mais numerosas forem as particularidades, menos se tra-
ta de arte). Pelo contrário, consiste no fato de elevar-se muito
acima do pessoal”. No entanto, o psiquismo do poeta é como a
crisálida onde se conforma o poema e, portanto, este, de algum
modo, mantém a forma mentis do poeta. Há aqui um paradoxo
que o próprio Jung indica ao afirmar: “Todo ser criador repre-
senta uma dualidade ou uma síntese de dualidades paradoxais;
por um lado, é homem e pessoal e, por outro, é um processo sem-
pre humano, mas impessoal.”
É inevitável, lendo esta frase, deixar de pensar na dualidade de
Fernando Pessoa como ortônimo e como seus três heterônimos.
Note-se bem que, segundo o próprio Pessoa, não se trata de alguém
cujo nome oficial é Fernando Pessoa e que assina alguns de seus poe-
mas construídos de modo peculiar, com pseudônimos correspon-
dentes. Trata-se de uma estrutura psicológica constituída por um
centro consciente – que se chama Fernando Pessoa – e de persona-
gens que, como nós de energia psíquica, irrompem no consciente,

129
Mi lto n Vargas

dele se apoderando, e dele fazendo seu instrumento. Segundo a con-


cepção junguiana expressa em “Psicologia e poesia” e endereçando-a
a Fernando Pessoa por minha conta: “Em última análise, o que o
anima e nele quer não é ele mesmo enquanto instância pessoal, mas a
obra de arte a criar.”
Para conferirmos esta temática com a realidade, seria necessário
recorrer a alguém que tivesse convivido com ele, e dotado de sensibi-
lidade para captar os sinais que confirmassem ou negassem o que foi
dito. Esse alguém felizmente existiu. Foi Casais Monteiro, que nos
forneceu os dados que confirmam a teoria.
Neste sentido, Casais Monteiro cita dois pontos de real impor-
tância. Primeiro, testemunha que os heterônimos não são “inven-
ções da inteligência” de Fernando Pessoa, antes, brotando “instin-
tiva e subconscientemente” de sua mente. De início, os persona-
gens brotam autônomos, como no caso de Alberto Caeiro na noite
de 8 de março de 1914. Só então é que o centro consciente de Pes-
soa os “fixa em moldes de realidade”, como diz o próprio poeta em
carta a Casais Monteiro: “Graduei as influências, conheci as ami-
zades, ouvi dentro de mim as discussões e as divergências de crité-
rios, e, em tudo isso, me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali
houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E pa-
rece que assim se passa.”
O segundo ponto importante no depoimento de Casais Monteiro
é sua observação acerca da intemporalidade e da falta de evolução da
poesia de Fernando Pessoa, confirmada e admitida pelo próprio poe-
ta. Diz ele: “Tenho uma vaga idéia de ter escrito a Fernando Pessoa
mais ou menos neste teor: a sua obra me parecia testemunha de uma
intemporalidade quase absoluta, não havendo nela nem passado, nem
futuro; mas apenas um eterno atual, que é o verdadeiro tempo em que
de fato vivem os grandes imaginativos.” Ao que respondeu Fernando
Pessoa: “O que sou essencialmente por trás das máscaras involuntárias

130
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenô-


meno da minha despersonalização instintiva... conduz naturalmente a
essa definição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO.”
Ora, a intemporalidade é uma característica fundamental do in-
consciente coletivo. Nele, presente, passado e futuro se presentifi-
cam nos símbolos oníricos que vêm da mais longínqua antiguidade e
nos presságios que freqüentemente acompanham as irrupções do in-
consciente. Nada evolui, tudo é o que sempre foi na origem e tal
como é agora no inconsciente. Por isso, nos sonhos, essa região apa-
rece comumente como a dos mortos, dos túmulos e do que perma-
nece enterrado na memória. É interessante notar como Fernando
Pessoa substitui a evolução pela viagem. É que a viagem está ligada
simbolicamente ao transpassar através das fronteiras do espaço e do
tempo para as regiões desconhecidas e ocultas do originário: o que
permanece sempre aquilo que é.
“Impressões do crepúsculo” é uma das primeiras revelações de
Fernando Pessoa, ortônimo. Numa seleção da Poesia de Fernando
Pessoa, feita e prefaciada por Adolfo Casais Monteiro (Editorial
Confluência, Lisboa, 1945), tal poema consta de duas partes. Na
primeira, comparece a origem: “Ó sino da minha aldeia, / Dolente
na tarde calma, / Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma.”
Mas é na segunda que o poeta universal diz quem é, ou, pelo, menos,
quem foi de início:

Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...


Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’alma
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balançar de cimos de palma!...
....................................................................................................
Címbalos de Imperfeição... Ó tão Antiguidade
A Hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade

131
Mi lto n Vargas

O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer,


E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se...
O Ministério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não-conter-se...

Apesar de Casais Monteiro ter afirmado que o próprio Fernando


Pessoa renegara esses poemas como um compromisso do “futuris-
mo” com o público do Portugal de então, talvez por isso mesmo eles
nos dêem a impressão de uma confidência do que é a gente de língua
portuguesa. Gente espalhada pelos cinco continentes, tão separada e
no entanto tão unida por essa delirante ânsia de futuro radicada no
passado. Esse constante estar só e em outras partes, esperando e se
aventurando em coisas impossíveis do futuro. Esse atirar-se para as
visões futuras do espaço sem fim, sonhando e esperando, porém
sempre saudosa do passado originário.
Já se disse que a preocupação máxima de Fernando Pessoa ortôni-
mo era a lucidez. Gilberto Kujawski observou, porém, com exatidão:
“Todo afã de lucidez de Fernando Pessoa se reduz à consciência ob-
sessiva de seus estados de consciência.” Em outro ensaio, Kujawski
diz: “A psicologia da própria criação artística e da contemplação do
mundo era objeto de sua lúcida consciência.” Mas, do que era auto-
consciente o poeta? Ele se sabia, primeiramente, poeta, intermediá-
rio entre os deuses e seu povo. Isto se evidencia no poema XIII dos
“Passos da Cruz”:

Emissário de um rei desconhecido,


Eu cumpro informes instruções do além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...

Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,

132
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

E a glória do meu Rei dá-me o desdém


Por este humano povo entre quem lido...

Mas não advertia talvez que sua missão, como poeta, era a de di-
zer o que ainda não fora dito: aquilo que se situa no limiar do inau-
dito. Mas efetivamente disse o que jamais fora dito; por exemplo:

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse


Teu gesto, sem beijar tuas mãos,
E, beijando-o, descesse p’los desvãos
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse

Tornado Puro Gesto, gesto-face


Da medalha sinistra – reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos
Quando processional o andor passasse!

Não creio que se tenha conseguido maior beleza em versos portu-


gueses. Mas o que é esse gesto musical inatingível, tão real e tão liga-
do ao sonho? Será o indizível essencial que há por detrás de toda a
gloriosa e exuberante festa do existir? O inefável gesto por detrás da
existência nua da mão que tange a harpa. Creio que o poeta conse-
guiu revelar a beleza cristalina daquilo que é único, eterno e perfeito
por detrás das aparências fugazes.

 Ricardo Reis

De acordo ainda com a célebre carta sobre a origem dos heterô-


nimos, enviada por Pessoa a Casais Monteiro, Ricardo Reis apare-
ceu (sem que o poeta o percebesse), por volta de 1912, quando lhe
veio à mente escrever poemas de índole pagã, em versos irregulares.
A idéia não vingou, os poemas não saíram; mas foi entrevisto “um

133
Mi lto n Vargas

vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo.” Somente um ano


e meio a dois anos depois, com a intenção de burlar-se de Sá Car-
neiro – seu amigo suicida – “inventou” um poeta bucólico: Alber-
to Caeiro, que aparece pronto e acabado na noite de 8 de março de
1914. “Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir ins-
tintiva e subconscientemente uns discípulos. Arranquei do seu fal-
so paganismo o Ricardo Reis latente, escolhi-me o nome e ajus-
tei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via.” Surgiu então, entre
outros, o poema:

As rosas amo dos jardins de Adônis,


Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol e acabam.

Lendo os versos acima, compreender-se-á o que desse heterôni-


mo diz Pessoa: “Pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina men-
tal, vestida da maneira que lhe é própria.” Ricardo Reis, nascido em
1887 no Porto, formou-se em medicina e imigrou para o Brasil em
1919, por ser monarquista, e onde vivia ainda em 1935. Era baixo e
forte “de um vago moreno mate”, homem cuja deliberada abstração
só se concretizava em odes que, em certos momentos, lhe vinham de
repente. Sem dúvida um epicurista, transformava as circunstâncias
em algo semelhante ao que ele imaginava ser o mundo clássico em
decadência, uma vez que o epicurismo assim era entendido em sua
época. O que transparece nos seus versos é que há um mundo da na-
tureza anterior a nós, no qual estamos imersos. E a felicidade coinci-
de com uma entrega total de si mesmo à sabedoria, sem pretender à
glória ou a qualquer compensação dela decorrente. É o que exprime
nestes versos:

134
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

Antes de nós nos mesmos arvoredos


Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde


Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo


Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Para o poeta, assim como para os gregos da decadência, além da


natureza há um outro mundo – o da “alta praia onde o mar é tem-
po”. Tal mundo não nos pertence, mas aos deuses que tão distantes
estão de nós, nesta época de carência. Apegamo-nos à certeza e à evi-
dência imediata da natureza. Mas, apesar disso:

Acima da Verdade estão os deuses,


A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.

Pois bem, para ler as “Odes” de Ricardo Reis é necessário envol-


ver-nos na ataraxia epicurista – aquela nobre e bela atitude de
distância em que “todo desejo inquieto se dissolve no amor da ver-
dadeira ‘sabedoria’... por onde se pode alcançar a verdadeira ‘liber-
dade’. E acima disso há a divindade: incorruptível, livre de preocupa-
ções e cuidados, acima de qualquer ira, assim como também de qual-

135
Mi lto n Vargas

quer benevolência”. Tanto o ódio como o amor são fraquezas hu-


manas, incompatíveis com a perfeição dos deuses. Esperar serena-
mente a morte, quando nos tornamos “Vultos solenes de repente
antigos”. A morte é a verdadeira libertadora de todo o terreno e do-
loroso apego às coisas e às pessoas. E quando chegar o momento:

Não tenhas nada nas mãos


Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Atropos te não tire?
Que louros que não forem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada?
Colhe as flores, mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.

Compare-se isto com o fragmento de Epicuro: “Habitua-te a


pensar que a morte nada é para nós, visto que todo mal e todo
bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sen-
sibilidade.”
É sob a impressão profunda da ataraxia helenística que se deve ler
a “Ode” seguinte:

136
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.


Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
................................................................................................
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos,
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassocegos grandes.
................................................................................................
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória, lembrando-te assim – à beira-rio.
Pagã triste e com flores no regaço.

E desse pedaço de mármore frio roubado às minas de uma cidade


antiga pelo “brasileiro” Ricardo Reis, passemos à labareda do últi-
mo dos heterônimos de Pessoa.

 Álvaro de Campos

Em abril de 1915 apareceu o primeiro número da revista Orfeu, e


em maio, o segundo e último. No primeiro número publicou-se a
“Ode triunfal” e, no segundo, a “Ode marítima”, ambas do poeta
“futurista” Álvaro de Campos, um outro Fernando Pessoa. Em
1917, o único número da revista de Almada Negreiros, Portugal Fu-
turista, publica o “Ultimato” de Álvaro de Campos, que se classifica-
ra a si mesmo como poeta sensacionista. Tanto os poemas como o
“manifesto” correspondem à onda de insurreição insuflada por Ma-
rinetti que, nessa época, abalou a crítica de arte.

137
Mi lto n Vargas

Álvaro de Campos apareceu como uma reação a Ricardo Reis,


pois logo que Fernando Pessoa conseguiu “ver” Ricardo Reis, bateu
a máquina, num jato, a “Ode triunfal”. Assim surgiu, diz Fernando
Pessoa, “a Ode com esse nome, e o homem com o nome que tem”.
Na mesma carta a Casais Monteiro, Pessoa revela que “Álvaro de
Campos nasceu em Trevira, no dia 15 de outubro de 1890, à uma e
meia da tarde (feito o horóscopo a essa hora, está certo)... é enge-
nheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa, em ina-
tividade... é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e
um pouco tendente a curvar-se... Cara raspada... entre branco e mo-
reno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e nor-
malmente apartado ao lado, monóculo”.
Fernando Pessoa, ao explicar a gênese dos heterônimos, decla-
ra-se histérico ou hístero-neurastênico e afirma: “Se eu fosse mulher
– na mulher os fenômenos histéricos rompem em ataque e coisas pa-
recidas –, cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente
histérico em mim) seria um alarme para a vizinhança.” Portanto,
Álvaro de Campos seria para Fernando Pessoa rumor e estardalhaço,
em reação à calma ataraxia de Ricardo Reis. Conseqüentemente, as-
sim deve ser lido e entendido. Poder-se-ia dizer que os poemas de
Álvaro de Campos são os que mais correspondem à imagem que se
tem da vida real de Pessoa. Vivendo em Lisboa de 1914 a 1936, da
primeira Grande Guerra até o expurgo stalinista, sua situação não
difere essencialmente da de Yeats, de Eliot, de Pound, que vivem em
Londres ou Paris. São poetas de um tempo de carência (na expressão
de Hölderlin), enquanto uma arte menor que a deles explode e se
fragmenta nos diversos movimentos modernistas e futuristas. São
eles os poetas “D’entre deux guerres”, cujo valor só será estabelecido
em termos adequados em 1945 e depois. São filhos tardios do Sim-
bolismo e embora também contaminados pela iconoclastia revoluci-
onária do Futurismo, conservam a preocupação do arcaísmo, implí-
cito em tudo que é simbólico. Não é Alberto Caeiro, nem Ricardo

138
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

Reis, ou Fernando Pessoa que mais agudamente participam dessa si-


tuação. Álvaro de Campos é quem a vive intensamente. É ele, em
Fernando Pessoa, o poeta europeu, irmão dos grandes de seu tempo,
com eles participando do que deveria ser vivido e transmitido ao seu
povo. Pode-se dizer, de certo modo, que Álvaro de Campos é mais
Fernando Pessoa do que o próprio Fernando Pessoa. É ele quem fala
no “antiquíssimo de nós”, no fragmento da Ode que começa:

Vem, Noite, antiquíssima e idêntica,


Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene,
..........................................................................................
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vem ter conosco ao crepúsculo, à janela
..........................................................................................
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos
Beija-nos silenciosamente na fronte
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

139
Mi lto n Vargas

Pensemos nos “instructors” de Yeats, na figura do “jardim das


rosas” de Eliot, no “Anjo terrível” de Rilke, nas “personae” de
Pound, e compreenderemos a unidade da grande poesia européia da
primeira metade do século XX.
Na origem de nossa cultura, o protótipo desta poesia se encontra
no “Hino à Noite”, de Orfeu:1

Eu vou cantar aquela que gerou homens e deuses, eu vou cantar a Noite.
A Noite é a fonte do universo, Cipris é também seu nome.
Ouve-nos, divindade bem-aventurada, cintilante de estrelas,
Negro Sol, que alegra e torna calmo o sono múltiplo.
Ó felicidade, ó deslumbramento, Rainha das vigílias, Mãe dos sonhos,
Ó Consoladora, que acalmas todas as misérias.
Ó adormentadora, Cavaleira, Luz negra, Amiga universal,
Ó Inacabada, que ora pertences ao céu, ora à terra:
Ó arredondada, que brincas com tenebrosos ímpetos,
Ó tu que expulsas a luz do reino dos mortos e a ele retornas.
A terrível Fatalidade é de todas as coisas a soberana!
Ó Noite bem-aventurada, fartura de delícias, ó universal ternura,
Escutando a voz que, súplice, te implora, possas, ó Indulgente,
Livrar-nos dos terrores que brilham na sombra
E ser-nos propícia.

Esta matriz órfica revela-se claramente na Ode fragmentária de


Álvaro de Campos. Mãe e Fonte de todo o imaginário, o “antiquís-
simo de nós” é uma antevisão poética do inconsciente coletivo.
O transbordamento desses sonhos do profundíssimo toma,
muitas vezes, a forma de um ilimitado amor pela natureza, ou
1
pelo mundo moderno, tal como é, com toda a sua problemática,
Tradução de
Dora Ferreira
ou então se manifesta num exaltado sentimento de fraternidade
da Silva humana. Tudo isso, num tom em que se percebe o acento lamen-

140
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

toso e ambivalente de um amor infeliz. Podemos percebê-lo na


“Ode triunfal” e na “Ode marítima” e também na “Saudação a
Walt Whitman”: “Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera /
Amo-vos carnivoramente, / Pervertidamente e enroscando a
minha vista / Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis / Ó
coisas todas modernas.” E não é raro que esse frenético amor pela
humanidade seja transfigurado no simbolismo da viagem – e na
mais simbólica das viagens: a marítima –, percorrendo os mares
que abraçam, mas que também separam toda a humanidade.
Como deve ressoar fortemente para um português “o chamamen-
to confuso das águas”:

E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Atual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navega mais devagar.
Esses mares misteriosos, porque se sabia menos deles.

A princípio, a “Ode marítima” é a evocação da viagem como


aventura pelos mares do mundo, a encontrar estranha gente em luga-
res estranhos. Mas logo se transforma no mergulho pelos mares te-
nebrosos da obscura interioridade, onde há piratas terríveis, seden-
tos de sangue, cheios de crueldade e paroxismo. Mas tudo termina,
num tom ao mesmo tempo sarcástico e seco, pela retomada da regu-
laridade exigida pelo tráfego comercial, dirigido por faturas e cartas
protocolares, que garantem a segurança da carga a ser conduzida a
destino certo.

141
Mi lto n Vargas

Na “Saudação a Walt Whitman”, logo percebemos a identifica-


ção do poeta Álvaro de Campos com o poeta americano. Se, antes,
na “Ode marítima” se entregara femininamente a todas as violações,
de tudo participando na própria carne, na “Saudação” é uma pessoa
objetiva como totalidade de irrestrito amor por tudo o que há: mares
do mundo e subjetividade profunda, corpo e alma, dentro e fora:

E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,


De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,


Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas,
................................................................................................
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo.

É impossível não ver nessa imagem do amante incondicional da


totalidade, que quer ser ativamente masculino e, ao mesmo tempo,
mulher violentada em sua ânsia amorosa por tudo, o poeta por-
tuguês, muito mais do que Walt Whitman. Nessa saudação, que é
muito mais o retrato do primeiro do que do segundo, compreende-
mos o modo de ser de Pessoa, e muito pouco do poeta de Leaves of
Grass. Caeiro – a sensação e o corpo de todos os heterônimos e do
próprio Pessoa – parece intervir em certas passagens:

Não quero intervalos no mundo!


Quero a contigüidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam um dos outros como as almas,
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

É o mesmo transbordamento insaciável que dá prosseguimento à


“Passagem das horas”, poema de 1916:

142
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

Trago dentro do meu coração


Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

Mas aqui já começa a desilusão de tudo querer imaginativamente.


Desilusão filha da inadequação entre o que é imaginado e o que há.

Dói-me a imaginação entre o que é imaginado e o que há.


Declina dentro de mim o sol no alto mar.
.......................................................................................
Eu sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quero,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

Esse estado de espírito parece sofrer uma interrupção melancólica


em “A Casa branca Nau preta”, escrito em 1916. Álvaro de Cam-
pos, o sensacionista, desaparece, para reaparecer como o suicida po-
tencial, no recado enviado a Daisy, sob a forma do “Soneto já anti-
go”, datado de 1922. Em 1923, Lisboa foi revisitada por Álvaro de
Campos:

Não, não quero nada


já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A minha única conclusão é morrer.
............................................................................................
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

143
Mi lto n Vargas

Deixem-me em paz!
Não tardo, que eu nunca tardo...
Enquanto tarda o abismo e o silêncio, quero estar sozinho!

Foi porém em abril de 1926, após a segunda “Lisbon Revisited”,


que o poeta confessa:

Nada me prende a nada.


Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio como uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja.

E então o suicida aparece em Álvaro de Campos. Ou teria apareci-


do em Fernando Pessoa e só testemunhado por Álvaro de Campos?

Se te queres matar, por que não te queres matar?


Ah, aproveita! Que eu tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria.
...................................................................................
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios da inteligência!
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Mas tudo, em Álvaro de Campos, deve ser adiado. Até a morte


desejada e o suicídio.

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã.


Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...

A poesia de Álvaro de Campos provém do mais espontâneo e


profundo e, portanto, do mais verdadeiro de Fernando Pessoa. Ela
brota do “antiquíssimo de nós”, é propiciada pela Noite, no sentido

144
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

órfico da palavra, fonte obscura de toda realidade, Grande Mãe, sede


da paixão criadora. É a poesia da totalidade do que existe: da extre-
ma doçura à mais cruel violência. Vai desde a percepção direta
(como lhe ensinou a perceber seu mestre Caeiro) até a mais intrinca-
da conjetura, desde o absurdo irracional até a mais alta especulação,
que só a razão pode acolher.
Creio, porém, que não só a essência da poesia de Álvaro de Cam-
pos, mas também a própria essência do que é ser poeta poderá ser
encontrada em dois de seus poemas. O primeiro assim começa: “Ao
volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”. O poeta é aquele que,
sempre em viagem pelos grandes caminhos do mundo, ou pelas in-
findáveis veredas da imaginação, sempre espera pela nova partida, e
há, sempre, que arrumar as malas. Às vezes, entretanto, pode ocorrer
também que “Hoje é a véspera de não partir nunca”. O poeta segue,
contudo, “sem haver Lisboa deixado ou Sintra a que ir ter”. Sempre
estará “na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da
vida...” e inclusive diante da grande viagem que o levará ao que não
pode encarar deveras.

Guiando o Chevrolet emprestado, desconsoladamente


Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem
vê-lo.

Todas as viagens levam, porém, a parte alguma senão ao centro de


si mesmo, àquele em que se está sozinho, “enquanto tarda o Abismo
e o Silêncio”.
Na “Tabacaria”, o poeta se define pela negativa: “Não sou nada.
/ Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, te-

145
Mi lto n Vargas

nho em mim todos os sonhos do mundo.” Observador inserido na


vida e no mundo, o poeta observa e dá sentido a tudo, como se esti-
vesse fora dele. E nessa posição se divide entre a exterioridade do que
vê e sente, e a interioridade do que pensa e imagina, a ambas tendo
como reais e irreais.

A tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora


E a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Eterno fracassado é o poeta, diante de si e do mundo, sonhando


ganhar batalhas ganhas pelos generais, sonhando construir obras que
os arquitetos constroem, sonhando fazer a filosofia que os filósofos
escrevem. Ele é sempre “o que não nasceu para isso”, “o que só tinha
qualidades”, o que “Cantou a cantiga do Infinito numa capoeira / E
ouviu a voz de Deus num poço tapado”. “Escravos cardíacos das es-
trelas”, os poetas conquistam o universo antes de se levantarem da
cama.” Permanece, no entanto, “A caligrafia rápida destes versos, /
Pórtico partido para o Impossível”.
Entre as inspiradoras formas femininas e o mundo real que vê,
por fora, como estrangeiro em viagem, longe da pátria, é o poeta, no
entanto, que confere realidade a tudo o que vê: “Porque é possível fa-
zer a realidade de tudo isso, sem fazer nada disso.” Há os poemas
que o poeta faz, e há a tabuleta da Tabacaria. Tudo passará, com o
tempo, e no entanto “sempre haverá gente fazendo coisas como ver-
sos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas”. Mas o mundo
sempre e continuamente restitui o poeta ao imediato, como nos últi-
mos versos de “Tabacaria”:

Com um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.


Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves! e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal sem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

146
Pesso a: perso nagens e p o e s i a

 Afinal Fernando Pessoa, ele mesmo

Mas afinal, dentre essa profusão de personagens, quem era o au-


tor? Quem era Fernando Pessoa, ele mesmo? De quem, a consciência
lúcida, capaz de manter harmoniosamente a sensibilidade física de
Caeiro, a pura inteligência de Ricardo Reis e o sensacionismo total
de Álvaro de Campos? De quem eram esse corpo, essa alma e esse es-
pírito dessa pessoa de gênio, mal reconhecida, vivendo uma vida
marginal num país periférico? O pobre e infeliz escrevente, tradutor
comercial, adepto do ocultismo, fazedor de horóscopos, que viveu
em Lisboa, entre 1914 e 1936?
Fernando Pessoa nasceu em 1888, no Largo de São Carlos, “a sua
aldeia”. Passou a infância na África do Sul, onde seu padrasto era côn-
sul português. Teve uma educação inglesa. Por isso, estreou como
poeta de língua inglesa, em 1908. Em 1918 publica a plaquete 35
Sonnets, que mereceu então um comentário indulgente num jornal in-
glês. Seu único livro publicado em vida foi Mensagem, em 1934, con-
correndo a um concurso literário que perdeu. Em 1913 apareceram
seus poemas Impressões do crepúsculo e Hora absurda. Mas só a partir do pri-
meiro número da revista Orfeu (1914), aparece o Pessoa ortônimo. Os
heterônimos continuaram a ser publicados na revista de Coimbra Pre-
sença, até fins de 1938, mais de dois anos após sua morte. Só em 1942
apareceram suas Obras completas e, a partir dessa data, a presença múlti-
pla desse homem que foi vários pôde ser desenhada como esse núcleo
uno e intenso que se chama Fernando Pessoa.

147
Pieter Bruegel, Provérbios flamengos, detalhe, 1559
Óleo sobre painel, 116,8 x 162,8 cm
Museu Estadual de Cultura da Prússia, Berlim
Ilustração de capa de Os viventes – poesia, de
Carlos Nejar. Rio de Janeiro, Record, 1999.
Os viventes
César Leal

M itos, pessoas a animais formam o núcleo desse livro de


Carlos Nejar. Sendo um escritor com acentuada cons-
ciência de seu tempo, não parece disposto a contaminar-se pelos
Poeta, ensaísta,
crítico literário,
jornalista,
professor de
postulados teóricos dos que falam de poesia em extinção. Portanto, Teoria da
Literatura. Sua
não submisso ao profetismo hegeliano que no século XIX anunciou
obra poética e
o fim da arte, tese frustrada por Baudelaire, ao dar-lhe adequada res- ensaística é
posta teórica, não só em sua praxis poética, mas também em seus es- extensa, a partir
da publicação de
tudos de estética que lhe permitiram retirar do limbo os materiais e
Invenções da noite
as formas fundadoras da poesia da modernidade. menor (1957),
No início do século XX, o pintor Piet Mondrian também fez destacando-se os
ensaios Dante e os
previsões sobre o fim da arte, chegando a assinalar os motivos e a modernos e Literatura:
época em que ocorreria o seu desaparecimento, indo além do que fi- a palavra como forma
zera Hegel no século anterior. Deduz-se da trágica profecia de Mon- de ação, os livros de
poesia A quinta
drian que, ao desaparecer a arte, desapareceria também a figura do estação, prefácio de
artista. Mas como viver o homem numa sociedade em que a arte não Cassiano Ricardo,
mais existisse? Tal é a pergunta que fazemos. Para Camus, o homem e Os heróis.

149
C ésar Leal

poderá viver sem a arte, mas não viveria bem. Mondrian não especu-
lou muito sobre esse aspecto, mas sua afirmativa não quer dizer que
a arte deixará de existir. O que ocorrerá é o término de uma atividade
que sempre existira desde que o homem aparecera na terra. Isso quer
dizer que a arte continuaria sua vida institucional, como fragmentos
da história do espírito: no Museu, na Ópera, na Biblioteca, onde to-
dos poderiam ver esculturas de Fídias ou Miguelângelo, quadros de
Leonardo ou de Picasso, ouvir composições de Bach ou de Beetho-
ven, ou ler poemas de Homero, Dante ou Shakespeare. Será que os
homens do futuro ficariam satisfeitos em viver nesse estranho uni-
verso da ‘arte realizada’, tal como vivemos no meio da Natureza?
Carlos Nejar, poeta que não demonstra nenhuma adoração aos
ídolos da era técnica, resiste à idéia de que a arte, em particular a po-
esia, venha a desaparecer. As linguagens criadas pela cultura são mo-
numentos, e os monumentos, ensina-nos Ernst Cassirer, costumam
‘durar’, pois não dependem de transmissibilidade hereditária. Daí
acreditar – assim pensava Eliot – que a cultura não se herda: con-
quista-se com muito esforço. E uma vez conquistada, não se deixa
hipnotizar, como ocorre com largos segmentos das massas humanas,
pela mídia sofisticada, repressiva, desidiosa que domina os moder-
nos meios de comunicação, a serviço de interesses políticos e da eco-
nomia de mercado.

Carlos Nejar publicou seus primeiros livros na década de 60.


Desde seu aparecimento, goza de sólida reputação nos meios inte-
lectuais. O ‘fim’ da arte, possivelmente, está presente aos movimen-
tos de seu espírito, mas ele faz o quanto é possível, em seu relato épi-
co-lírico, para anular nas obras que escreve aquilo a que Luc Ferry
denomina as partes subjetivas da aparência. Thomas Mann, com ri-
gor, exuberância e beleza, mostrou-nos a “tragédia da arte moder-

150
Os v i v e n te s

na”, em um de seus últimos grandes romances: o Doutor Fausto, de-


nunciando-a, como um trabalho do Demônio. Tais denúncias des-
sas pessimistas visões sobre o futuro da arte contemporânea refor-
çam a confiança de Carlos Nejar na persistência da arte, através dos
tempos, ao invés de aceitá-las como válidas, como fazem as vanguar-
das sibilinas e filisteínas, sempre atentas em atrair à sua rede de men-
tiras e mistificações o leitor desprevenido.
Há um eco do profetismo hegeliano no pensamento de Mondrian.
Para o pintor holandês, não estamos distante daquele momento em
que a realização do puramente escultórico, na realidade, substituirá a
obra de arte. Então não haverá necessidade de quadros. O que tinha de
ser feito já o fizeram os pintores anteriores ao nosso tempo. Mon-
drian fala de uma ‘contra-natureza’, que será adotada e nela desapare-
cerá o artista. Assim, iremos viver em meio da arte realizada. Para Mon-
drian, essa contra-natureza será a construção elevada à ‘categoria de ídolo’.
Tal contra-natureza será orientada – diz o pintor – pelo cientismo e
pela técnica. Acredito que há um forte componente de ironia nas afir-
mações de Mondrian. Se assim for, Mondrian está de nosso lado.
Mas, quando ele afirmou isso, podia estar a falar com toda a seriedade.
A ironia só é ironia quando comporta elevados índices de ambigüida-
de. Não podemos duvidar de um artista teoricamente bem armado,
quando ele diz que “a arte desaparecerá na medida em que a vida te-
nha mais equilíbrio, na medida simplesmente em que tenha adotado a
nova ‘contra-natureza’, e nela desaparecido”. De qualquer forma –
ironia ou não – se Mondrian assim fala, tendo em vista principalmen-
te a pintura, então podemos estender sua profecia às demais artes, como,
em relação à música, Thomas Mann fez o Demônio demonstrar, com
a mais rica erudição histórica e filosófica, ser contra as obras, em uma
de suas conversas com Adrian Leverkühn.

151
C ésar Leal

O poeta de Os viventes resiste à elástica simplicidade dos que, em-


bora se julgando artistas, são incapazes de distinguir a arte da não-arte,
o falso do verdadeiro. Carlos Drummond de Andrade, ao escrever
sobre o livro de Nejar, por ocasião de seu aparecimento em 1979,
afirmou que Os viventes é uma criação onde o próprio Drummond
sentia o calor existencial, “é obra que, sucedendo ao canto, anterior,
e antecipando o canto que continuará extraindo de sua mina poética,
nos dá um belo exemplo de permanência e invenção contínua”, es-
creveu o autor de O sentimento do mundo ao proclamar a importância
desse livro.
Os viventes se dividem em oito partes, a começar com o Anel do vento e
terminando com O Livro das Bestas. Entre essa coordenada bipolar estão
os grandes poemas bíblicos, os profetas, Moisés, Lázaro, os pequenos
e os grandes do Velho e do Novo Testamento. No canto inicial, se lê
que nos Viventes tudo é julgado, ou é julgamento in progress.

Viventes o que sabeis


– que mundo o poema! – ?
Em sua terra
nada se queima.

Viventes o que sabeis


da morte e o resto
se nem sabemos de nós
no anel do vento?

Como diria o Dr. Richards, na poesia de Nejar podemos observar


um conjunto de aspectos dos quais “participam não só os aconteci-
mentos mentais, mas também todos os acontecimentos”. Assim é no
poema a “Casa dos nomes”. Indaga-se, inicialmente, pela Casa Ama-
rela e a resposta é que tal casa, ao iniciar o seu processo de desmoro-

152
Os v i v e n te s

namento, arrasta consigo a infância, e os próprios nomes se disper-


sam pela casa em ruínas. Podemos ‘escorar’ essas ruínas (Eliot), mas
nada impedirá o desabamento das paredes de suas salas, de seus al-
pendres, de seus quartos, dispensas e outros lugares onde são guar-
dados – simbolicamente, é claro – velhos objetos, leitos desmonta-
dos, velhas arcas, ecos de vozes apagadas, garrafas vazias, faltando
apenas a velha rameira de que nos fala Yeats, a que conta as moedas e
as guarda em sua caixa preta, dando-nos, assim, uma vaga e válida
imagem do inconsciente, tal como lemos numa das estrofes de “A
deserção dos animais do circo”. O processo pelo qual registramos a
nossa vida é lento, mas tem um duplo efeito: o efeito Letes-Eunoè,
esquecimento x lembrança, horror x beleza, morte x renascimento,
porque a memória permanece no tempo e sempre vê de pé a casa demolida.
O que procura Carlos Nejar é aproximar de sua experiência a expe-
riência do leitor. A leitura de poemas exige tranqüilidade e fortaleci-
da consciência de que a língua poética não é a língua da comunica-
ção. Para mim, não seria difícil falar sobre a experiência da casa em
ruínas. A que nasci era uma casa grande, com oito quartos, no sertão
dos Inhamuns: o quarto escuro – o dos morcegos – o quarto dos pe-
sadelos. O quarto do anjo degolado, onde se guardava o ossuário da
família em grande urna de mármore italiano. O quarto de Anna
Angélica e de Anna Aurora. Não conheci essas tias-bisavós, mas
sempre as vi em sonhos. A força do poeta está em saber como apro-
ximar tais experiências das experiências do leitor, pois afinal todos
tiveram suas casas, todos recordam seus tios, o carinhos dos avós,
enfim, “as afeições domésticas”, diria Alfredo Antunes ao escrever
sobre o sentimento de ‘saudade’ em Fernando Pessoa. Ou como, ao
recordar a casa, desfila diante de nós a vida, tal como nos mostra um
dos mais belos poemas de Emílio Moura: “A casa”.

153
C ésar Leal

É por essas e outras razões que devemos resistir, como faz Carlos
Nejar, às teses do fim da Arte, do fim da poesia. Como ele diz:

A casa ia ruindo
com o rigor dos anos
o ruído
rancoroso dos canos,
o ruído plangente
do sótão
e dos nomes.

São manifestações existenciais, algo situado na área fenomenoló-


gica, e utilizo o termo na acepção que lhe foi dada por Lambert, o
seu criador. A linguagem de Carlos Nejar em Os viventes não é a ex-
pressão de um temperamento romântico, quando fala em Mafalda,
Paulo, Sadi. “Onde Paulo e Sadi?” – indaga e ele próprio responde:
Estão correndo e era o pátio com os curvos pessegueiros. Cristina, Graça, Mira, a
Rosa sobre o ventre das janelas verdes, palavras suficientes, necessárias, não
excessivas, pois quando se usa a linguagem com precisão ela nunca é
excesso. A economia da linguagem não engrandece a língua. É antes
um maneirismo, já que não enriquece o idioma como sistema social
nem como língua poética. É por isso que se deve recordar Murilo
Mendes, um latifundiário de palavras. Palavras produtivas, como
produtiva é a palavra em todo poeta forte. Não esqueçam Shakespe-
are, que usava demasiadamente as palavras, nem Malherbe, que as
economizava em demasia. Façam uma reflexão sobre os dois e digam
– não é preciso indagar a ninguém – quem foi o vencedor. A língua
criadora de ‘monumentos’ é rica em palavras, símbolos e alegorias,
como em Dante, ou plena de imagens e metáforas, como em Shakes-
peare. Quem mais contribuiu para a grandeza da língua inglesa no
século XVII foi Shakespeare, porque a usou como se fosse a corren-

154
Os v i v e n te s

teza de um imenso rio de imagens e de metáforas. Engana-se quem


diz que Dante foi econômico no uso da linguagem. Como? se foi ele
quem mobilizou todos as palavras, todos os dialetos, todos os recur-
sos que lhe possibilitaram criar um novo idioma, em uma época em
que o latim era, por ele próprio, considerado uma língua criada por
sábios? Ao falar sobre “Ofícios terrestres e divinos”, Nejar põe na
boca de Samuel estas palavras:

Além de mim,
Prosseguirão plantando.
Prosseguirão nogueiras e planetas.
E gerações.

Ou ainda, como na parte V – “Baldeações” – ao dizer:

A senha é a porta. Não haverá outra.


O tempo está posto
nos remos.

Essa magia de linguagem, de que Rimbaud foi um dos mais altos


representantes, constitui o núcleo da poesia da modernidade. A mo-
dernidade, cujo fim já foi anunciado por tantos, continua muito
viva. E vai durar muito tempo, justamente por ser um conceito tem-
poral. Mas, talvez, se justifiquem outros conceitos. A baixa-moderni-
dade, termo proposto por Eduardo Portella, para denominar o que
chamamos ‘pós-moderno’, torna-se um conceito operacional im-
portante porque proporciona ao poeta, ao pintor, ao compositor,
algo que não elimina a idéia de modernidade, já que um ‘pós’ isto ou
‘pós’ aquilo não significa coisa alguma. Todos os ‘pós’ nos conduzem
ao teorema do Nada. Ou, então, fale-se de ultra-modernidade, termo
proposto pelo jovem filósofo francês Luc Ferry, do Ministério da

155
C ésar Leal

Educação da França, professor na Universidade de Caen. Pelo cami-


nho de Os viventes transitam Adão, com o conhecimento do Mal,
Abel, qual ovelha muda em vôo para Deus, ou Paulo, que viu o pri-
meiro céu com seu rio de fogo. E se literatura se faz com literatura,
então falem os poetas:

Humano amor celeste,


cuja voz não confundo
e ao pulsar, pulso junto.

E tal um vinho em flor


borbulha no odre surdo,
o som de seu amor

com a eternidade escuto.

Assim, é preciso voltar à “Casa dos nomes” e lembrar a flor, a flor


não como o índice de uma idéia renascentista, neoclássica ou român-
tica flor azul, cor da flor de Novalis: a flor como símbolo, como
símbolo ou imagem restante, continuada, que podemos ver a afas-
tar-se, a flor em um muro de vento, a usura das horas, metonímico
de tempo, a cinza, a cinza. Coração febril da infância. A flor em Car-
los Nejar perde o significado tradicional para ser muro de vento pal-
pitante, a secura do tempo, o pó. As fotografias dos avós descolo-
rem. A lonjura dos olhos e das roupas.

Caladas laranjas
junto ao sangue
a casa
murcha.

156
Os v i v e n te s

As imagens não buscam semelhanças a serem alcançadas, ou reco-


nhecidas por sugestão. O que faz Nejar é ampliar a noção de ‘visibi-
lidade’ do real. Tudo o que ele diz une aquelas duas experiências an-
tes citadas, de forma a que autor / leitor caminhem juntos na com-
preensão e interpretação do poema. Mas o conhecimento dessa lin-
guagem não é tão fácil, quando somos convocados a dar respostas a
indagações como estas:

Que distância pai, entre a casa e a rua?

Há nessa pergunta uma suspensão do pensamento, uma atmosfe-


ra vaga, imprecisa, já que o verso “se foi desmoronada” não é o que
se espera da indagação “Que distância, pai, entre a casa e a rua?”. É
uma situação mais apropriada à análise das artes plásticas. Não é só a
casa que desmorona. Também a rua pode desaparecer, dando lugar a
uma praça, um mercado, uma escola, um asilo, ou algo que represen-
ta ameaça à vida dos vizinhos, por exemplo: um quartel. O poeta
procura romper não só com a idéia de ritmo, equilíbrio, unidade,
mas também com a lógica do pensamento, tal como não a reconhe-
ceria a linguagem da comunicação, para dar lugar à expressão idio-
mática, poética, portanto. O poema intitula-se “Casa dos nomes”. E
os nomes têm muita importância em poesia, como o comprova o
poema de Dante, tão clássico e tão moderno, escrito com os nomes
de pessoas que efetivamente tiveram vida histórica, aos quais se asso-
ciaram alguns mitos, que, afinal, como nos ensina o poeta do Ulis-
ses, são “nada” e são “tudo”.
A força das alusões e o poder de associação também estão presen-
tes, quando fala dos avós Georgina e Antônio Miguel, deitados, à se-
melhança dos personagens de “Evocação do Recife”, ambos dor-
mindo profundamente. Suas fotografias, ao perderem a cor, aludem
à viagem no tempo, a marcar a distância dos olhos e das roupas des-

157
C ésar Leal

coloridas. Caladas laranjas junto ao sangue, imagens de surpreendente


modernidade, ao menos para aqueles que lêem a poesia mundial –
que deve ser lida diariamente.
Assim, tanto o leitor comum quanto os críticos especializados
terão a seu alcance referenciais seguros, ao avaliar a importância dos
poemas escritos no Brasil, país onde se escreve boa poesia. E para o
seu prazer – do leitor e do crítico – ao ler os mil estilos de poesia que
se escreve no mundo, não busquem louvar, apenas por capricho ou má
consciência, apenas o lixo que se escreve em língua portuguesa com o
nome de ‘poesia’, às vezes inspirada na filosofia do nada, em um con-
texto cultural onde se cultiva tão pouco a filosofia da arte. A tal ponto
que, em breve, sistematizaremos tal filosofia e acabaremos formando
doutores em Teorema do Nada. No Brasil, não há sentimentos fraternais
entre poetas e críticos, mas apenas idiossincrasias, que anulam reci-
procamente os melhores valores de nossa literatura, ficando as obras
literárias entregues a colunistas preconceituosos, despreparados, a ser-
viço exclusivo de grupos sectários, além de verdadeiros ‘Guardas de
Sião’ das editoras, como os denominava o grande Ernst Robert Curti-
us. É tal espírito que Antero de Quental viu na poesia portuguesa em
suas Conferências no Cassino Lisboense, ao mostrar o “quadro de insignifi-
cância” a que chegaram Portugal e Espanha entre os séculos XVII e o
século XIX. “Saímos de uma sociedade de homens vivos, movendo-se
ao ar livre; entramos num recinto sepulcral, com uma atmosfera turva
pelo pó de livros velhos, e habitado por espectros de doutores” – dizia
ele, acusando a poesia portuguesa de haver se transformado em mera
cópia do passado, interessada apenas em traduções e sem nenhum es-
pírito inventivo. Claro que precisamos de traduções. Todavia, mais
importante é a criação de obras sérias e não “brincos de crianças”, de
que falava Quental em seus discursos no Cassino. Tal espírito – o es-
pírito inventivo – era considerado um perigo pelos autores da época.
Por isso, o poeta de Os viventes diz:

158
Os v i v e n te s

Pode o coração
correr com a lua
e sair aos tropeções
da morte?

Tal é o clima dos legítimos afetos, quando dois grandes inovado-


res, Marino e Gôngora, impõem a italianos e espanhóis, e depois ao
mundo, uma visão renovada do modo de ver e estruturar a ponte que
vai ligar o Clássico e o Barroco, continuando cada um com seu enge-
nho, sua agudeza e sua arte. É assim que vejo a “Casa dos nomes” em
Os viventes. Uma obra in progress, como diriam os ingleses.

159
Largo do Pelourinho, visto da Casa de Jorge Amado.
Nosso Dickens
J o sé Gu i lh er m e M e r q u io r

Não serão as ideologias por acaso a desgraça do nosso tempo? O pensa- Estudo
mento criador submergido, afogado pelas teorias, pelos conceitos dogmáticos, o publicado no
Jornal do Brasil,
avanço do homem travado por regras imutáveis? 10-8-82, e em
Jorge Amado, O Menino Grapiúna O elixir do
apocalipse. Rio,
Nova Fronteira,
1983, p.
178-181.

Q ue significa – nos seus setenta anos – a figura de Jorge


Amado na literatura latino-americana? Antes de mais
nada, um caso de forte enraizamento popular da obra literária, num
O ensaísta José
Guilherme
Merquior
(1941-1991)
ocupou a
universo onde o livro culto permanece objeto do consumo de luxo, e Cadeira no 36
os escritores vivem vidas inteiras na nostalgia de imensos públicos da ABL.
potenciais – os únicos que correspondem ao tamanho das populações
luso- ou hispanófonas. Entretanto essa amplitude de leitura ainda é
quase nula, comparada com o best-seller das verdadeiras “culturas do
livro”, a começar, naturalmente, pela anglo-saxônica. Gabriela, cravo e

161
Jo sé Gu i lherme Me r q u i o r

canela levou uns bons vinte anos para alcançar um milhão de exem-
plares – tiragem entre nós espetacular, mas banal no mundo do ro-
mance em inglês, já que ao alcance da primeira edição de qualquer
Harold Robbins, Leon Uris ou Arthur Hailey, o tal de Aeroporto, Ho-
tel, Hospital, etc.; e somente agora, que ele caiu tanto de nível, de Gar-
cia Márquez, com essa lamentável Crônica de uma morte anunciada.
Não é, portanto, no seu uso que reside a robusta vocação popular
da obra amadiana: é antes na sua forma, conteúdo e mensagem (em-
prego de propósito essas duas últimas palavras, seqüestradas pela pe-
dantocracia formalista que usurpou o discurso crítico na atualida-
de). Mas aqui, o “caso” Jorge Amado é um mar de equívocos. Nosso
escritor duplamente mais popular, assim que purgou seus livros da
catequese política, viu-se confrontado com os catões da ideologia.
Quando Gabriela surgiu, o plantão da ortodoxia comunista conde-
nou-lhe a visão “amoral e carnavalesca” – visão, segundo o mesmo
censor, própria apenas das classes altas e marginais, como se a saga
de Mundinho, Nacib e sua saborosa cozinheira exprimisse tão-só a
ótica “decadente” da grã-finagem e do lumpemproletariado, indigna
da virtude proletária... Não admira que uma das nossas mediocrida-
des mais pretensiosas tenha considerado o livro uma encomenda
partidária, escrita pelo ex-staliniano autor dos Subterrâneos da liberdade
para bajular a política revisionista de Kruschev!
Quanto à crítica propriamente dita, se não engrossou tanto, nem
por isso deixou de brandir preconceitos. “Populismo literário”, di-
ziam os bem-pensantes do progressismo –, e torciam o nariz a tama-
nha fuga aos ditames do realismo crítico. São Lukács, invocado para
a canonização de Graciliano, servia para a excomunhão ritual do au-
tor de Jubiabá, no entanto publicado no mesmo fecundo triênio – o
meio dos anos 30 – que viu nascer São Bernardo e Angústia.
O que constrangia toda essa crítica, dona da verdade e senhora
do Sentido da História, era a irredutível constante “romântica”

162
No sso D i c k e n s

de Jorge Amado. Os mesmos intelectuais que caíam em perplexi-


dade hostil diante do expressionismo com molho direitista do te-
atro de Nelson Rodrigues recusavam enfastiados o romantismo
de esquerda de Jorge Amado. Em ambos, o melodrama não mor-
rera – e em ambos, atingia em cheio leitor e platéia, dando quinau
sobre quinau às anêmicas arlequinagens da vanguarda e aos diktats
da crítica “radical”.
Não foi a crítica e sim Rubem Braga quem percebeu que o Baldo
de Jubiabá está muito mais perto de Macunaíma do que do Moleque
Ricardo. Porém Baldo é um pícaro com coração de cavaleiro andan-
te: não é à toa que se chama Balduíno e idolatra Lindinalva, dulcinéia
caída no prostíbulo... Há sempre um lado Amadis em Amado.
Oswald de Andrade, antes de escrever sobre ele algumas enormida-
des ditadas pela paixão política, falou nas figuras ‘homéricas’ das es-
tórias amadianas. Ora, homérico é, sob esse aspecto, todo persona-
gem de ficção romântica, no sentido largo do termo – todo caráter
inteiriço, herói ou vilão, metido em trama de epopéia ou folhetim. O
romance de talhe coletivista de Jorge Amado estava predestinado a
essa forma épico-romântica. Sua própria densidade demográfica ex-
cluía os espaços interiores da análise psicológica – mas, em compen-
sação, assegurava uma multiplicidade de tipos bem gráficos, Fáceis
de reter na memória do público.
Em literatura, romantismo e realismo não se excluem – e roman-
tismo e costumismo chegam a se implicar um ao outro. Daí a natura-
lidade com que, nos anos 40, Jorge Amado partiu, já com arte mais
madura, para a seqüência ficcional, no díptico de Terras do Sem Fim a
São Jorge dos Ilhéus; e daí a evolução posterior para o que Wilson Mar-
tins chamou de “ciclo da comédia baiana” – o mundo citadino e
burlesco de Gabriela e Quincas Berro d’Água.
Por outro lado, a narrativa de costumes com um mínimo de pá-
tina histórica, nutrida do exotismo de um passado bem definido

163
Jo sé Gu i lherme Me r q u i o r

em termos de lugar, é a alma do regionalismo. E foi o regionalismo,


em Jorge Amado, que acabou engolindo o romance social “de tese”
que ele articulou sem nunca, a rigor, desenvolver. Mas qual o seu
papel, no rico elenco dos nossos regionalistas? Fundada, justamen-
te, pelo romantismo caboclo de Alencar, a ficção regionalista se
prestaria, neste século, a mais de uma fórmula feliz: a versão me-
morialística de Lins do Rego e a psicológica de Graciliano; o ro-
mance social do Herberto Sales de Cascalho e o romance histórico
de Autran Dourado (Os sinos da agonia); a variante ‘gótica’ de Ado-
nias Filho (Memórias de Lázaro) e a farsesca de José Cândido de Car-
valho (O coronel e o lobisomem); o epos órfico de Guimarães Rosa e a in-
triga política de Mário Palmério (Vila dos Confins); o grande forma-
to do “roman fleuve” (O tempo e o vento de Érico Veríssimo; Os tam-
bores de São Luís de Josué Montello) e a extensão mirim do conto
(Bernardo Élis, Jorge Medauar).
Nessa ampla galeria, Jorge Amado prima pela seiva cômico-
sentimental do seu narrar, combinada com a abrangência do seu re-
gistro social. Numa palavra: ele é o Dickens do nosso regionalismo
– mas um Dickens, é claro, que tivesse trocado o decoro vitoriano
pela sensualidade de cama e mesa da tradição baiana. E assim como
o mui romântico autor de Grandes esperanças impregnava seu notável
realismo social de pathos e humor, nosso Dickens moreno conjuga
protesto socialista com uma apologia rabelaisiana da carne e do pra-
zer. O perfume da prosa amadiana lembra Diderot: “felicidade e
prosperidade só podem existir numa sociedade em que a lei reconhe-
ce o instinto”. Eis aqui a raiz do generoso perspectivismo moral que
preside as novelas de Os velhos marinheiros ou de Os pastores da noite – e já
levava O menino grapiúna a sentir a liberdade como uma carícia. Pers-
pectivismo impossível se a obra de Jorge Amado não tivesse sido,
conforme viu Antônio Houaiss, uma poderosa “antena para captar,
anunciar e denunciar ideologias”.

164
No sso D i c k e n s

Quando Ernest Gellner, um dos mais argutos sociólogos do nos-


so tempo, quis conhecer o Brasil, pediu-me que lhe indicasse alguns
estudos introdutórios (à parte Casa-grande & senzala, ele estava a zero
em matéria de brasiliana). Na sua partida, perguntei-lhe que ensaio
lhe havia ensinado mais sobre nós e nossa história moderna. “Não
foi bem um ensaio”, respondeu ele; “foi Gabriela, cravo e canela.” E an-
tes que algum puritano do espírito se atreva a tachar essa resposta de
“folclórica”, quero lembrar uma velha idéia de Antonio Cândido: no
Brasil, foi a literatura que fez as vezes de conhecimento sociológico,
e nos ajudou a nos interpretarmos e criticarmos a nós mesmos. Há
certa sabedoria poética no fato de Jorge Amado ocupar, na Acade-
mia, a cadeira de Machado de Assis.

165
Igreja de Santa Efigênia, 1772
Ouro Preto, MG
Poemas
M u r il o M e n d e s

Canção do exílio
Minha terra tem macieiras da Califórnia O poeta Murilo
onde cantam gaturamos de Veneza. Mendes nasceu em
Os poetas da minha terra Juiz de Fora (MG),
em 13 de maio de
são pretos que vivem em torres de ametista, 1901, e faleceu em
os sargentos do exército são monistas, cubistas, Lisboa (Portugal),
os filósofos são polacos vendendo a prestações. em 15 de agosto de
1975. Algumas
A gente não pode dormir obras: Poemas
com os oradores e os pernilongos. (1930), Tempo e
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. eternidade (com Jorge
de Lima, 1935), As
Eu morro sufocado metamorfoses (1944),
em terra estrangeira. Mundo enigma
Nossas flores são mais bonitas (1945), Contemplação
de Ouro Preto
nossas frutas mais gostosas (1954), Poliedro
mas custam cem mil réis a dúzia. (1974), Ipotesi (ed.
italiana, 1978).

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade


e ouvir um sabiá com certidão de idade!

167
Mu ri lo Mendes

Quinze de novembro
Deodoro todo nos trinques
bate na porta de Dão Pedro Segundo.
– Seu imperadô, dê o fora
que nós queremos tomar conta desta bugiganga.
Mande vir os músicos.
O imperador bocejando responde
– Pois não meus filhos não se vexem
me deixem calçar as chinelas
podem entrar à vontade:
só peço que não me bulam nas obras completas de Vítor Hugo.

Cartão postal
Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.

Passam braços e seios com um jeitão


que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocaso


como a cabeça daquela menina sardenta,
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

168
Poemas

O menino sem passado


Monstros complicados
não povoaram meus sonos de criança
porque o saci-pererê não fazia mal a ninguém
limitando-se moleque a dançar maxixes desenfreados
no mundo das garotas de madeira
que meu tio habilidoso fazia para mim.

A mãe-d’água só se preocupava
em tomar banhos asseadíssima
na piscina do sítio que não tinha chuveiro.

De noite eu ia no fundo do quintal


pra ver se aparecia um gigante com trezentos anos
que ia me levar dentro dum surrão,
mas não acreditava nada.

Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas


estou diante do mundo
deitado na rede mole
que todos os países embalançam.

Noturno resumido
A noite suspende na bruta mão
que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprada no turco a prestações.

169
Mu ri lo Mendes

A lua e os manifestos de arte moderna


brigam no poema em branco.

A vizinha sestrosa da janela em frente


tem na vida um camarada
que se atirou dum quinto andar.
Todos têm a vidinha deles.

As namoradas não namoram mais


porque nós agora somos civilizados,
andamos no automóvel gostoso pensando no cubismo.

A noite é uma soma de sambas


que eu ando ouvindo há muitos anos.

O tinteiro caindo me suja os dedos


e me aborrece tanto
que não posso escrever a obra-prima
que todos esperam do meu talento.

Xodó
O Cruzeiro do Sul não tira o pé do lugar
enquanto os dois namorados não descolam do portão.
As formas futuras esperam pacientemente no fundo dos corpos
porque eles evoluem em sentido vertical
misturando os cabelos e as respirações.

O cheiro dos jasmins bate no nariz dos dois cutuba


mas eles não sentem nada
e ficam ali a noite inteira bobos ao ar livre matutando.

170
Poemas

Biografia do músico
O guri nasceu no morro aniquilado de sambas
bebeu leite condensado
soltou papagaio de tarde
aprendeu o nome de todos os donatários de capitania
esgotou os criouléus da Cidade Nova
bocejou anos e anos no Conservatório
não tirou medalha de ouro
coitado
porque não tinha pistolão
mais um astro que desponta no horizonte da arte nacional
botou sapato camuflagem terno de xadrez
casou com a filha do vendeiro da esquina
que parecia com Carlos Gomes
fez diversas músicas imitando o gorjeio dos pássaros
morreu vítima de pertinaz moléstia
que zombou dos recursos da ciência
ao enterro compareceram pessoas de destaque
citando palmas com sentidas dedicatórias
chegando no céu os anjinhos de calça larga e gravata borboleta
deram um concerto de ocarina onde figurava a oitava nota
e ele desmaiou de comoção.

Marinha
A esquadra não pôde seguir pros exercícios
porque estava nas vésperas do carnaval.
Os marinheiros caíram no parati
e nos braços roliços e cheirosos
de todas as mulatas que têm aí pela cidade.

171
Mu ri lo Mendes

A esquadra tornou a não poder seguir


porque era depois do carnaval,
a turma se sentia mal depois do carnaval.
Dava uma preguiça tamanha na guarnição
que o almirante resolveu não fazer nada.

Depois de muita mangação a esquadra foi-se embora


com bandeirinhas, dobrados pacholas tocando no cais,
mas o pessoal caiu de repente no maxixe,
O Minas e o São Paulo pararam no alto mar,
deu cerração, foi a conta, a esquadra voltou.

O embaixador inglês foi ao palácio do governo,


engasgou, falou na aliança dos dois países amigos,
acabou oferecendo dois mil contos pela esquadra.
O governo aceitou, mandou mil pros órfãos turcos,
com o restante deu um bruto baile depois caiu na vadiagem.

Família russa no Brasil


O Soviete deu nisto,
seu Naum largou de Odessa numa chispada,
abriu vendinha em Botafogo,
logo no bairro chique.

Veio com a mulher e duas filhas,


uma delas é boa posta de carne,
a outra é garotinha mas já promete.

No fim de um ano seu Naum progrediu,


já sabe que tem Rui Barbosa, Mangue, Lampião.

172
Poemas

Joga no bicho todo o dia, está ajuntando pro carnaval,


depois do almoço anda às turras com a mulher.

As filhas dele instalaram-se na vida nacional.


Sabem dançar o maxixe
conversam com os sargentos em bom brasileiro.

Chega de tarde a aguardente acabou,


os fregueses somem, seu Naum cai na moleza.
Nos sábados todo janota ele vai pro criouléu.
Seu Naum inda é capaz de chegar a senador.

Endereço das cinco Marias


Sou o tipo acabado do sujeito
que não arranja nada nesta vida.

Gosto de cinco Marias nesta vida.

A primeira tinha uma pinta na cara,


eu adorava aquela pinta.
Maria do Rosário jurava pela alma da mãe dela
que só havia de casar comigo.
Um belo dia apareceu um tenente
que usava polainas e dançava com muito garbo.
Foi a conta:
ela fugiu pra São Paulo com o tenente
e me deixou na mão.

A segunda,
Maria do Carmo,

173
Mu ri lo Mendes

era uma pequena dos bons tempos


que a gente conversava no portão de noite,
romântica de olhos pretos não gostava de bailes.
Aquela sim,
mas apanhou um resfriado de tanto conversar comigo no portão
e bateu a bota.

Lá está num cemitério em Belorizonte


Onde tem muita paisagem.

As três Marias restantes estão no céu.

Perspectiva da sala de jantar


A filha do modesto funcionário público
dá um bruto interesse à natureza morta
da sala pobre no subúrbio.
O vestido amarelo de organdi
distribui cheiros apetitosos de carne morena
saindo do banho com sabonete barato.

O ambiente parado esperava mesmo aquela vibração:


papel ordinário representando florestas com tigres,
uma Ceia onde os personagens não comem nada,
a mesa com a toalha furada
a folhinha que a dona da casa segue o conselho
e o piano que eles não têm sala de visitas.

A menina olha longamente pro corpo dela


como se ele hoje estivesse diferente,
depois senta-se ao piano comprado a prestações

174
Poemas

e o cachorro malandro do vizinho


toma nota dos sons com atenção.

A sesta
O sol bate em chapa nas casas antigas.
O mar embalança,
rede mole sem corpo de mulata,
verde azul lilás verde outra vez.
As praias espreguiçam-se malandras,
é a hora das linhas repousantes.

A buzina distante dum automóvel


chega até aqui com um som de lundu.
Um mulatinho magro com o desenho certo
chupa um pirulito devagarinho.
Dentro das casas pensativas
as meninas caem na madorna.

A música das serrarias aumenta a sonolência...


Os comerciantes torcem pra nenhum freguês entrar.

Casamento
O violão entrou pela balalaica adentro
eta palavra difícil!
e saiu uma ninhada de sons povoando a floresta da noite,
pulando mexendo nos corpos brancos e morenos.
As cores se misturam
a foice e o martelo furam a Ordem e Progresso,
Lampião e Lenine calçados de botas vermelhas
tiram o sangue do mundo e voam no caminho dos astros.

175
Mu ri lo Mendes

O povo deixa a revolução no meio


e toca a dançar o maxixe,
carnes morenas se esfregando pra darem poetas e operários,
dança minha gente, no criouléu, na planície, na usina e no dancingue,
que a música é gostosa, todas as mulheres saem pra rua
e os homens vão bancar o estivador pras pequenas terem vestido de
seda.
Ninguém tem a cabeça no lugar.
Malazarte pegou numa tesoura e cortou o passado em mil pedaços,
o índio, o português, o africano deram o fora
mas os tártaros ainda perturbam o sono das crianças mineiras
e o poeta tem a metade do corpo enfiada na noite do Brasil e da
Rússia
porque as cabeças do poeta e dos brasileiros pertencem ao
pensamento de Deus.

Sonata sem luar, quase uma fantasia


Das cinco regiões onde navios angulosos
sangram nos portos da loucura
vieram meninas morenas,
pancadões, com os seios empinados gritando
Mamãe eu quero um noivo!

Os cemitérios do ar esquentam
com o fogo saído dos sonhos da vizinha
rebolando no nariz do poeta dia e noite,
as cordas do sangue estalam.

Não pode, não pode!


É o homem que trabalha enquanto os vegetais sonham,
o mar se espreguiça,

176
Poemas

os minerais dormem a vida inteira.


Níquel de luz.
As estrelas torram o serviço,
ninguém sabe se é o céu ou o peito duma negra.
Cadê o luar?
Gato comeu.
Greve da inteligência
e um grito deste tamanho, do homem
tentando romper os moldes do previsto.
Acabou o amor,
cadê a lógica, a resignação?
Gato comeu.

Lá onde acaba a ação, a vida curva


e o abandono começa.
Os cheiros da terra sumiram,
cemitério, fogos fátuos, coração vazio,
as cordas da vontade estalam.
Além das fronteiras do espírito, mais além!
O olho fixo do demônio determina a paisagem.

Eu não te disse
que tu não ias pro amor, a luta, o esporte.
Adeus meus lindos conhecimentos,
adeus realidade, minha secretária.
Venham a mim, diabos, almas penadas,
venham, me arrastem!

Vida dos demônios


Demônios grandes
trabalham na planície, nas montanhas,

177
Mu ri lo Mendes

nos arranha-céus,
constroem o trabalho dos homens,
agitam o mar,
armam a mão dos padres e operários,
ajuntam imagens e reflexos na cabeça dos poetas;
despem as mulheres no mundo.
Os demônios vêm e vão
na terra, na água, no fogo, no ar.
Demônios de todas as cores, de outras cores que a gente não vê
movem os astros, balançam na consciência da terra.

Eles vão e vêm, sobem, descem,


debruçam-se nos olhos da gente,
no bico da minha pena.
Mundo, campo de experiência dos demônios.
Os demônios sitiam o plano inefável
onde Deus pensa a harmonia do mundo.

A Virgem Maria toda branca e fria


atravessa no caminho,
eles caem no tempo.

A luta
(Cantos virginais do mundo,
planos da inocência,
frêmito de amor puro.)

A vida asfixiou meus cantos de inocência,


sou da noite, da assombração
e dos ritmos desesperados.

178
Poemas

Tardes calmas, vida lânguida nas varandas cariocas


olhando o mar, nunca mais.
Nunca mais vibrarão cantos de noivas nos meus terraços,
nem vestidos suspensos lembrarão a forma da coisa amada,
nem eu dançarei.
Nem olharei pras rosas nem me banharei na luz das madrugadas.

Sou a luta entre um homem acabado


e outro homem que está andando no ar.

Serão
A sombra; e a noite do século passado,
gemendo; e a lança no flanco do mártir;
e a implacável mão da humanidade
pensando sobre o dorso da estátua...
Violência!
Rosas de fogo ardendo no céu plano!
E os cactos da violência, e a sombra
dos desertos futuros, e o magnetismo
dos olhares guardados através de gerações...

A bola noturna do mundo


roda no deserto da memória de Deus.
A árvore vermelha coberta de noivos
e de assassinos
estende a sombra até ainda o século futuro.
Estende a sombra
para lá da memória e das vontades pensantes,
sem o som das aves idiotas,
até que se possa ouvir um dia
as notas do último clarim.

179
Mu ri lo Mendes

Vida de mármore
A estátua muda a camisa na praça deserta.
Arcanjos violentos surgem do fundo dos minutos,
carregam tua vontade para o outro lado do mundo
Amor preguiça deserto revolução amor,
tudo passa tudo se reduz a eternidade de olhares,
tudo passa menos a memória da bem-amada.

Tudo se reduz a eternidade de contatos.


O amor passa menos a memória da bem-amada.
Meus pensamentos eternos ficaram à superfície do teu corpo.
Toda a realidade do mundo é provisória, o mundo é provisório.
Tudo se reduz a eternidade de preguiça e de olhares.
A estátua mudou de camisa e se acalma na praça deserta.

Alegoria
Sombras movendo o sonho
onde uma densa cabeleira cheirosa
aparece entre dois raios de pensamento
no quarto pendurado na terra morena;
de repente desloca-se a bruta massa do corpo dum santo, estátua me
invocando,
e um diabo verde me levando pro aniquilamento.
Nos jardins claros
gramados geométricos
a árvore dum vestido amarelo deixando adivinhar a forma
que nenhum sovaco úmido complica no gesto de apanhar uma bola,
um resto de som de seresta
agarra-se nas orelhas do cavalo mecânico
que rompe o espaço,

180
Poemas

lá vai até o oco do mundo onde as mesmas mulheres deste lado


afagam o seio pensando no cavaleiro amado,
doce meditação debaixo das lâmpadas elétricas
sentindo a aproximação dos cheiros e dos sons do carnaval,
convidando ao sono
numa cama que mal dá pra um homem de estatura mediana.

Limites da razão
1
Atrás do meu pensamento
os demônios destroem as meninas que eu gostei,
fazem com o movimento e o espírito delas
um samba pros outros dançarem.

2
O manequim vermelho do espaço
que de noite eu levanto a mão para tocar
chega perto de mim
tem um ritmo próprio
um andar quase humano.
Já vi há muitos anos numa cidade do interior
uma professora inglesa que andava assim.
De tanto as costureiras do ateliê de Dona Laura
se esfregarem no manequim de tarde
ele já quer sair das camadas primitivas
daqui a mil anos será uma grande dançarina
dançará sobre minha cova diante do cartaz dos astros
quando eu mesmo dançar minha vida realizada
rio terraço dos astros.

181
Mu ri lo Mendes

3
Alongamento:
tudo foge na hora extrema
banhado na neblina da agonia
as constelações me abrem a porta
e montado no cavalo mecânico do gênio do tempo
atinjo a região proibida aos humanos,
mas nunca poderei ser totalmente outro.
Alguma coisa me fica do mundo antigo.
Desenvolvo-me em planos harmoniosos
distingo a iluminação dos pensamentos,
amparado pelas formas que moram no espaço
realizo a perfeição da minha unidade
penetro a vida das cores novas, dos sons definitivos
e enlaço a forma do amor
vivendo pra sempre dentro de mim.

Ritmos alternados
Um cheiro de angélicas
brota dos cemitérios do espaço.
Noite, cruzes no mundo, as idades voltam, não sei onde estou.
Os relâmpagos iluminam os corpos flexíveis no outro mundo, o som
do saxofone dos anjos previne o tempo, as famílias tremem
dentro das casas,
a terra molhada explode em formas novas, é o princípio e o fim.
Homens e mulheres
se arrependem de não ter realizado
todo o amor,
chegam mais perto uns dos outros... o gosto
da noite me leva aos teus seios.

182
Poemas

Evocações simultâneas
A noite curva...
Seios pendurados nas janelas da terra
Uma larga mão vermelha
me chama em alguma parte.
Mensagem do tato dum espírito do ar,
cheiro das namoradas, noite curva.
Minha cabeça levanta-se acima do abismo e do pensamento,
o espírito do ano de 1917 revive em mim.
Dêem lugar aos mortos, nivelados no tempo...
Relâmpagos, me abracem no quarto nupcial que é um túmulo,
o olho da morta é um seio, a asa do vento desligou-se da noite,
entrou em mim e desanda a bater. Abismos,
pontes da noite, estrelas escarlates vagamente entrevistas
num delírio perpendicular ao sonho, existo somente
pras sombras acima de mim e da miragem da morte,
sono das imagens... cortam-me a cabeça.

Vertigem
Venho do ar, da multiplicação de sombras,
cheiros se cruzando.
A noite se espreguiça elástica, em todos os pontos da terra
movem-se desejos,
uma outra vida transparece no azul, danças.
Coros de meninas de quinze anos em igrejas do interior,
namorados pressentindo o aviso dos sentidos,
um morto cruzou o espaço, treme o céu, a lua
penteia os cabelos, todas as coisas se comunicam,
as crianças chegam mais perto do seio materno,

183
Mu ri lo Mendes

os chefes de família vêem no espaço a projeção da vida deles.


Ritmos lânguidos, cadeiras de balanço, tudo no seu lugar...
Eu intervenho, chego da viagem nas almas,
tonto, vários planos me invocam, estou em relação
com as estátuas andando na terra,
mulheres que voltam pra trás sentindo o meu olhar,
um barulho vem do fundo da terra, estrelas caindo,
vidas rodando, os sete arcanjos tardam, estou vendo
minha vida pra trás e eu balançando na asa do vento.
Me socorram, me levem pra outro mundo
onde as mulheres sejam tão bonitas como aqui
e o desânimo ainda maior.

Atmosfera desesperada
Uma escada lateral por onde as formas descem,
os sonhos sobem, vidas
entrevistas num relâmpago... Noite
molhada, noite de fim do dilúvio, mundo suspenso,
luz difusa de astros que mal aparecem num
ângulo do céu,
vertigem. Há qualquer
coisa esperando no ar, pressentimento de outras
distâncias, realidades paralelas a esta,
espíritos puros nascendo, o amor
aproximando as formas. O mar
balança, desligado da praia, cabeça cortada.
Mundo iluminado a gás, curvas do pensamento,
nós somos outros. Alguém
está andando dentro de mim, me segurando pelos cabelos,
não sinto mais o meu peso,
me perdi...

184
Poemas

O mundo inimigo
O cavalo mecânico arrebata o manequim pensativo
que invade a sombra das casas no espaço elástico.
Ao sinal do sonho a vida move direitinho as estátuas
que retomam seu lugar na série do planeta.
Os homens largam a ação na paisagem elementar
e invocam os pesadelos de mármore na beira do infinito.
Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos,
expulsam o sol do espaço e se instalam no mundo.

Canto do desânimo
Dorme, mundo!
Estrela, deita-te a meus pés,
tempo, some da minha memória,
infância, famílias aparvalhadas olhando pra mim,
sumi.

Desaparece, gravura da primeira comunhão,


some, primeiro olhar da namorada,
corpo da prostituta na cidade sibilante,
noite do crime, vida de amor, sombra do santo.

Desaparece,
bruma da criação anterior,
manequim da nebulosa vermelha ardendo no quarto em febre,
vestido e sombra da mulher primitiva me tomando nos braços,
apaga-te, mão de Deus me formando na manhã remota,
som, movimento, vontade, tempo, energia, desaparecei.

185
Mu ri lo Mendes

Canto do noivo
Eu verei tuas formas crescerem pouco a pouco,
verei tuas formas mudarem a cor, o peso, o ritmo,
teus seios se dilatarem na noite quente,
os olhos se transformarem quando brotar a idéia do primeiro filho.

Assistirei ao desenvolver das tuas idades,


guardando todos os teus movimentos.
Já está na minha memória a menina mãe de bonecas,
depois a que ficava de tarde na janela,
e a que se alterou quando me conheceu,
e a que está perto da união das almas e dos corpos.
As outras virão. Tuas ancas hão de se alargar,
e os seios caídos, o olhar apagado, os cabelos sem brilho
hão de te arrastar pra mais perto do sentido do amor,
ó minha mártir, forma que eu destruí, integrada em mim.

Reflexão e convite
Nós todos estamos na beira da agonia
caminhando sobre pedras angulosas e abismos.
Ninguém ouve o barulho da banda de música
que está ali firme do outro lado do século.

Encontramos o sonho e o pusemos no altar.


Incenso e adoração, culto ardente pra servir.
Saímos dos planos múltiplos do sonho,
não nos integramos na ciência da total realidade.
Vamos colher as flores grandes que crescem nos abismos
e apreciar as explosões de luz de dois universos.

186
Poemas

Apressando o passo estaremos do outro lado do século


ouvindo o barulho da banda de música que não pára nunca.

História futura do cravo e da rosa


Puseram sinais semafóricos
Puseram guardas aduaneiros
Na estratosfera.

O Cravo de letra grande


E a Rosa de letra grande
Brigaram uma bela tarde
No aparelho de televisão.
Então uma tempestade
Que desde o instante do FIAT
Se concentrara, esperando,
Lá nas gavetas do céu,
Levou as sementes do Cravo e da Rosa
Para os jardins do caos
Onde eles cresceram
Brincaram de roda
– Papai e mamãe –
Vestidos de rendas,
Sonhando pra sempre.

A pomba da lancha
Quando a rainha Locusta chegar
– Não é mais rainha, é a névoa –
As estrelas formarão a palavra ÓDIO.
Não haverá mais nem um capitalista,

187
Mu ri lo Mendes

Não haverá mais nem um operário,


Não haverá mais nem uma rosa.
Eu mesma estarei sepultada
Debaixo de pedra e dilúvio.
Em cima das pedras, sozinho,
Um urubu vestido com as cores do arco-íris
Dará milho ao fantasma de Deus.

O filho pródigo
Serenamente? A alma insatisfeita
Viemos cortando as águas tenebrosas,
Impulsionados pelos ventos largos.
Meu pai me espera na varanda amena.
(“Digo sim ao meu filho
Que volta para sugar meu sangue,
Acompanhado dos pássaros do meio-dia
Voando entre as arcadas tristes.
Solto na frente a estátua número três.
Se ouvem os clarins das vitrolas.”)

E todos me felicitam vivamente.


Tenho uma grande ação a cumprir:
Falta-me coragem...
O peso desta ação a cumprir
Pesa demais sobre mim.
Além disto preciso eliminar
O céu, o inferno, o purgatório.
Serei talhado à imagem e semelhança da pedra.

Girândolas, foguetes, abraços.


Meu irmão:

188
Poemas

“Não te comoves ao ver


A cara da tua antiga namorada?”
Então olho de fato pra Maria:
“Ô movimento atual de tuas ancas...”
Nos retratos da sala de espera
Flutuam cabeleiras de amadas dos outros.
Os outros: tios-minerais, primos-cactos...
“Sim! Nunca mais nos veremos,
Ó primas e tias de outrora;
E as que temos agora
Estão na frente de nós,
Não as podemos ver direito.”

Os vizinhos me conduzem até à varanda.


“Meu pai,
Ao mesmo tempo meu filho e meu irmão,
Levei teu nome ao mundo inteiro,
Espalhei teu sangue,
Tomei éter,
Dei teu dinheiro aos sem-trabalho,
Não dormi, para construir as netas que não conheces...
Divulguei a raça do demônio,
O ódio, o mal, a desesperança.
Mas não quero continuar minha tarefa.
Dá tua herança aos urubus,
Joga teus mantimentos
Aos aviadores perdidos nas ilhas;
Enforquem minha namorada!”

Sacudo as asas,
Parto para o empíreo da cozinha.
Não me mato, estou cansado demais.

189
Mu ri lo Mendes

Tédio na varanda
Hesito entre as ancas da morena
Deslocando a rua,
E o mistério do fim do homem, por exemplo,
Dormir!
As camélias lambem
O sexo de teus lábios.
Os pássaros da vertigem
Bicam estátuas de pano.

O mar fala a língua de p


Enquanto eu não tenho
Pés de vento,
Mãos de metal.

As botas de sete pedras


Comem léguas de aborrecimento.

O poeta assassina a musa


Há dez dias que Clotilde
– Uma das musas queridas –
Anda aborrecendo o poeta.
Aparece carinhosa,
De repente vira as costas,
Diz várias coisas amargas,
Bate impaciente com o pé.
Então o poeta aporrinhado
Joga álcool e ateia fogo
Nas vestes da musa.
A musa descabelada

190
Poemas

Sai cantando pela rua.


Súbito o corpo grande se estende no chão.

Diversas musas sobressalentes


Desandam a entoar meus cânticos de dor.
Clotilde ressuscitará no terceiro dia,
Clotilde e o poeta farão as pazes.
Música! Bebidas! Venham todos à função.

A visibilidade
Passar ignorado dos homens, das palavras,
Ignorado das águas, do demônio.
Ignorado dos personagens da história,
Ignorado até de Deus,
Até dos pássaros, das pedras.
Mas a luz se desfaz em vaia.
Os demônios mostram os seios em arco
– Arco de sua vitória exclusiva –,
As águas exigem um carinho,
Do contrário te afogarão.
As pedras exigem teu amor
– Vives em cima delas –
Do contrário te apedrejarão,
Apedrejarão
Quem quiser viver no ar.

Mas
As ondas amarguradas
Encostam a cabeça na pedra do cais.
Até as ondas possuem

191
Mu ri lo Mendes

Uma pedra para descansar a cabeça.


Eu na verdade possuo
Todas as pedras que há no mundo,
Mas não descanso.
As mulheres me dão corda
Mas somem nas alturas.
Eu apalpei aquele seio,
Minhas mãos ficaram boquiabertas.
Aqueles olhos gritaram na minha direção
Mas depois desfaleceram.
O mundo se desfaz em pedra
Na minha direção,
Mas as pedras marcham, não param,
Não poderei descansar.
A poesia é muito grande,
Mas o alfabeto é bem curto
E a preguiça, bem comprida.
O amor é muito grande
Mas não é puro, as mulheres
Toda a hora humilham a gente
Com golpes de olhares,
Com arrancadas de seios...
Mas assim mesmo inda é bom.

Poema no bonde-camelo
Sou firme que nem areia
Em noite de tempestade.

Meu desânimo afinal


Me segura neste mundo.

192
Poemas

Estou farto de saber


Que só piso no deserto.

As máquinas aperfeiçoadas
Do cruzamento das raças,
Aeroplanos de braços,
Globos de seios cheirosos
Não deixam o deserto afinal
Ficar tão vazio assim.

Cabeleiras de palmeiras
Morenas vermelhas louras
Se agitam neste deserto.
Água não falta, cerveja,
Uísques e aguardentes
Guardados em odres finos
De cristais bem facetados.
E poemas fazendo lembrar
Que se deve rezar um pouco.

Às vezes a noiva morta


Passa no vento chorando,
Arrisco dois olhos grandes:
É a miragem nossa irmã.

Arte de desamar
Meu amor é disponível,
A qualquer hora ele fecha;
A crise de convicção
É mesmo muito grande.

193
Mu ri lo Mendes

As pernas do meu amor


Distraem da metafísica,
O corpo do meu amor
Tem a vantagem sublime
De disfarçar o horizonte.

Eu não amo meu amor


Para quê tapeação.
Não amo ninguém no mundo,
Nem eu mesmo, nem me odeio.

Meu amor é uma rede


Onde descanso da vadiação.
Os olhos do meu amor
São bastante distraídos,
Não vêem meu desamor.

Com o porta-seios moderno


Os seios do meu amor
Aparados à la garçonne
Ocupam lugar pequeno
No espaço do seu corpo.

Se meu amor qualquer dia


Me abandonar, ai de mim!
Eu não me suicidarei...
Escreverei mais poemas.

O doente do século
Meu coração vai sangrando,
Se desfazendo aos pedaços,

194
Poemas

Mas assim mesmo inda tem


Uns pedacinhos de pedra
Que resistem duramente:
A pedra resiste ao vento
De aridez, que vai passando,
Vem rolando, traiçoeiro,
Dos desertos da cabeça.
O vento insinua então:
“Siga firme para a frente,
Deixe a luz à sua direita,
Tome o rumo de Moscou,
Se inebrie com este coro
Que sai vibrante das máquinas,
Fuzile a palavra amém.”
Mas quem sou eu neste mundo
Pra anular a tradição?
Venham, filhas da esperança,
Me levem na padiola
Para o chalé da ternura,
Acendam-me a luz do amor,
Desenrolem seus cabelos
Sobre o meu corpo, senão
Não terei culpa nenhuma
Se me matar amanhã.

Novíssimo Job
– Eu fui criado à tua imagem e semelhança.
Mas não me deixaste o poder de multiplicar o pão do pobre,
Nem a neta de Madalena para me amar,
O segredo que faz andar o morto e faz o cego ver.

195
Mu ri lo Mendes

Deixaste-me de ti somente o escárnio que te deram,


Deixaste-me o demônio que te tentou no deserto,
Deixaste-me a fraqueza que sentiste no horto,
E o eco do teu grande grito de abandono:
Por isso serei angustiado e só até a consumação dos meus dias.

Por que não me fizeste morrer pelo gládio de Herodes,


Ou por que não me fizeste morrer no ventre da minha mãe?
Não me liguei ao mundo, nem venci o mundo.
Já me julguei muito antes do teu julgamento.
E já estou salvo porque me deste a poeira por herança.

Até há pouco tempo atrás no meu país


Ninguém sabia que a vida é a luta entre classes
E eu já era, desde cedo, inconformado e triste.
Antes da separação entre os homens
Existe a separação entre o homem e Deus.
É doce te encarar como poeta e amigo,
É duro te encarar como criador e juiz.
Tu me guardas como instrumento de teus desígnios,
Tu és o Grande Inquisidor perante mim.
Por que me queres vivo? Mata-me desde já.
Cria outras almas, outros universos,
Sonda-os, explora-os com tua lente enorme.
Mas faze cessar um instante o meu suplício.

Prefiro o inferno definitivo à dúvida provisória.


Falaste-me pelos teus profetas e pelo Espírito Santo,
Mas a última e essencial palavra está contigo.
Todas as tuas obras dão testemunho de ti,
Mas ninguém sabe o que tu queres de nós.

196
Poemas

(Ó Virgem Maria, levanta-te da estrela da manhã


E faze o sinal da cruz sobre minha alma golpeada.)

Tu também não terás teus filhos renegados?


Aqueles que criaste e entregaste ao demônio
Para satisfazer tua cólera e paixão?
Ó Deus, tua justiça é maior que tua misericórdia.
Por que me deixaste assim sem abrigo no mundo?
Por que me deste passado, presente e futuro?
Manda a tempestade de fogo a destruir minha existência.

– Estou contigo mesmo e não me queres ter


Sou tua herança desde toda a eternidade.

Meu novo olhar


Meu novo olhar é o de quem já sabe
Que alegria e ventura não permanecem.
Meu novo olhar é o de quem desvendou os tempos futuros
E viu neles a separação entre os homens,
O filho contra o pai, a irmã contra o irmão, o esposo contra a esposa,
As igrejas dinamitadas, depois reconstruídas com maior fervor;
Meu novo olhar é o de quem penetra a massa
E sabe que, depois de ela ter obtido pão e cinema,
Guerreará outra vez para não se entediar.
Meu novo olhar é o de quem observa um casal belo e forte
E sabe que, sozinhos, se amam os dois com nojo.
Meu novo olhar é o de quem lúcido vê a dançarina
Que, para conseguir um movimento gracioso da perna,
Durante anos sacrificou o resto do seu ser.
Meu novo olhar é o de quem adivinha na criança

197
Mu ri lo Mendes

O futuro doente, o louco, a órfã, a perdida.


Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas de passagem
E não se detém mais nas ancas, nas nucas e nas coxas,
Mas se dilata à vista da musa bela e serena,
A que me conduzirá ao amor essencial.
Meu novo olhar é o de quem assistiu à paixão e morte do Amigo.
Poeta para toda a eternidade segundo a ordem de Jesus Cristo,
E aquele que mudou a direção do meu olhar;
É o de quem já vê se desenrolar sua própria paixão e morte,
Esperando a integração do seu ser definitivo
Sob o olhar fixo e incompreensível de Deus.

A musa
Estás sozinha desde o princípio,
Foste imaginada na época da formação das pedras.
Um violento temporal lavou a terra antes que nascesses,
E muitas estrelas de perfil se inclinaram sobre teu berço.
Atravessas desertos de areia e mares vermelhos
Sem que sujes teu corpo,
Sem que ninguém penetre tua essência.
Os poetas te sacrificam suas amadas retrospectivas, atuais e futuras.

Tua cabeça triste e serena


Recortada num céu de convulsões desencadeia o mito:
Distribuis ao mesmo tempo consolo e desespero.
Aos olhos do homem és acima do sexo como uma deusa,
Aos olhos da mulher és masculina como um guerreiro.
Anulas o movimento de quem soube te decifrar,
E não te perturbas nem ao menos ante a idéia de Deus.

198
Poemas

Epifania
Eu te procurei tal qual os três reis magos
Que caminhavam através de mares e desertos,
Até que um dia uma estrela enviada por ti mesmo
Me trouxe até a tua inefável presença.
Não posso te ofertar o ouro, o incenso e a mirra:
Ofereço-te a minha alma que tu mesmo criaste,
Ofereço-te a minha aridez e o meu pecado.
Ilumina agora e sempre todos os que te procuram
E todos aqueles que acreditam no teu fim.
Angústia e escuridão dominam o homem
Porque tu ainda não deste a volta ao mundo.

Vocação do poeta
Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.

Vim para conhecer o mal e o bem


E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.

199
Mu ri lo Mendes

Vim para sofrer as influências do tempo


E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

O poeta e a musa
Vens da eternidade e voltas para a eternidade.
Não tens ódio.
Não tens amor.
Não tens fome nem sede.
Tens o ar frio de quem ultrapassou o mundo sensível e resolve lhe
dar um sinal da sua condescendência.
A linha das montanhas, a linha do horizonte e a linha da tua alma
se desdobram diante de ti como um anteprojeto da eternidade.
Estás desligada da geração que te trouxe ao mundo.
Anulas meu interesse pelo espetáculo da existência.
Olhas-me serenamente, passas a mão pelos meus cabelos e me
chamas de tua grande criança.
Esperas que eu diminua minha humanidade para ficar junto de ti,
sem ação, sem impulsos, observando apenas o desenrolar do tempo,
o ciclo das estações, o curso dos astros, as cambiantes da cor do céu e
do oceano...
Seremos duas estátuas confabulando.
Então os acontecimentos não agirão mais sobre mim.
E eu sobrevoarei a vida física.
E tocarei o espírito da musa.

200
Poemas

o
Salmo n 1
Meu espírito anseia pela vinda da esposa,
Meu espírito anseia pela glória da Igreja,
Meu espírito anseia pelas núpcias eternas
Com a musa preparada por mil gerações.
Eu hei de me precipitar em Deus como um rio,
Porque não me contenho nos limites do mundo.
Dai-me pão em excesso e eu ficarei triste,
Dai-me luxo, riqueza, ficarei mais triste.
Para quê resolver o problema da máquina
Se minha alma sobrevoa a própria poesia?
Só quero repousar na imensidade de Deus.

Filiação
Eu sou da raça do Eterno.
Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.

201
Mu ri lo Mendes

O profeta
A Dante Milano

A Virgem deverá gerar o Filho


Que é seu Pai desde toda a eternidade.
A sombra de Deus se alastrará pelas eras futuras.
O homem caminhará guiado por uma estrela de fogo.
Haverá música para o pobre e açoites para o rico.
Os poetas celebrarão suas relações com o Eterno.
Muitos mecânicos sentirão nostalgia do Egito.
A serpente de asas será desterrada na lua.
A última mulher será igual a Eva.
E o Julgador, arrastando na sua marcha as constelações,
Reverterá todas as coisas ao seu princípio.

o
Salmo n 2
Ó Deus meu e de todos,
Que tenho feito até hoje no mundo,
Senão te invocar para que surjas,
Senão me desesperar porque sou pó?
Dilata minha visão,
Dilata poderosamente minha alma,
Faze-me referir todas as coisas ao teu centro,
Faze-me apreciar formas vis e desprezíveis
Faze-me amar o que não amo.
Tudo o que criaste no universo
É a divisão de uma vasta unidade
Em espaços e épocas diferentes.
Liga-me a todas as coisas em ti
E ilumina-nos fora do tempo, a todos nós
Que esperamos tua divina Parusia.

202
Poemas

Futura visão
Apresentam-me o livro da tua vida
Escrito por dentro e por fora:
Sou digno de romper os sete selos.
Logo na primeira página
Paro três anos em êxtase
Diante da tua fotografia.
A lua e o mar adormecem a meus pés.
Tudo o que evoco vai nascendo ao gritar o teu nome
Berenice! Berenice!
E choro muito
Porque não existe ninguém digno de te olhar.

Alguém me segura à beira do abismo,


Contém minha impaciência e me desarma o braço:
Deverei assistir ao que se descreve no livro.
Terás que parir fisicamente e espiritualmente na desgraça,
Beberás o cálice da injúria e das abominações,
Vestida de púrpura serás sentada no trono da solidão.

Eu devoro o livro, que amarga minhas entranhas.


GLORIFICAI-A! GLORIFICAI-A!
Esta é minha súplica de sempre.

O Princípio vem sobre as nuvens em fogo


E clama para mim e para todo o universo:
TUDO SERÁ PERDOADO AOS QUE AMARAM MUITO.

203
Mu ri lo Mendes

Poema condenado
Eu te respiro por todos os poros:
Mulher, estás em todos os lugares.
Prefiro me danar a um dia te perder de vista.
Teu vestido desdobrado esconde a Cruz.
Se este sortilégio acabasse eu me mataria.

Tua existência é a justificação do mundo:


Para que vale o sol
Senão para dar vida à matéria que te cerca,
Para que vale a lua
Senão para aumentar tua palidez,
Para que valem as flores
Senão para serem enfeitadas por ti,
Para que valho eu
Senão para permanecer teu poeta,
Para que vale o paraíso
Se não estiveres a meu lado?

Antiguidade
Quero voltar para o repouso sem fim,
Para o mundo de onde saí pelo pecado,
Onde não é mais preciso sol nem lua.
Quero voltar para a mulher comum
Que abriga a todos igualmente,
Que tem os olhos vendados e descansa nas águas eternas.

Quero voltar para o Princípio


Que nivela vida e morte, construção e destruição,
Diante do qual não existe lei nem marco.

204
Poemas

Quero viver sem cor nem forma, peso ou cheiro,


Fora da alegria e da tristeza.

Eu sofro a terrível pressão do que existiu,


Do que não existiu e do que existirá.
Eu mesmo aperto os três círculos do inferno
Neste trabalho de escavação do universo
Pelo qual me aproximo das origens.

Começo
Uma vasta mão me sacudirá na manhã pura.
Talvez eu nasça naquele momento,
Eu que venho morrendo desde a criação do mundo,
Eu que trago fortíssimo comigo
O pecado de nossos primeiros pais.

O espaço e o tempo
Hão de se desfazer no vestido da Grande noiva branca.
Serei finalmente decifrado, o estrangeiro da vida
Descansará pela primeira vez no universo familiar.

O emigrante
A Henri Michaux

A nuvem andante acolhe o pássaro


Que saiu da estátua de pedra.
Sou aquela nuvem andante,
O pássaro e a estátua de pedra.
Recapitulei os fantasmas,
Corri de deserto em deserto,

205
Mu ri lo Mendes

Me expulsam da sombra do avião.


Tenho sede generosa,
Nenhuma fonte me basta.
Amigo! Irmão! Vou te levar
O trigo das terras do Egito,
Até o trigo que não tenho.
Egito! Egito! Amontoei
Para dar um dia a outrem:
Eis-me nu, vazio e pobre.
A sombra fértil de Deus
Não me larga um só instante.
Tirai-me o colar da febre:
Eu vos deixo minha sede,
Nada mais tenho de meu.

A janela
Ó altas constelações,
Nuvem prenhe de fantasmas,
Preguiçosa onda do mar,
Friíssima noite, lua!
Minhas irmãs elementares,
Tendes mãos, ouvidos, boca.
Murmurais doces cantigas
Que os homens decifrarão
No rodízio do universo,
Entre revoadas de anjos,
Quando soarem os clarins
Que despertarão os mortos
E a alma se reunir
Ao corpo que apodrecera.

206
Poemas

Minha órfã
Porque não quis te olhar, ficaste cega.
Sei que esperas por mim
Desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.

Sei que esperas por mim,


Mas eu não quis te olhar
Porque me debrucei sobre o mito de outras,
Porque não me sabes dar, pobre amiga,
O sofrimento e a angústia que formam a catástrofe.

Roxelane, Roxelane:
Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,
Boca sem frescura e sem expressão,
Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo,
Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.

Roxelane, Roxelane:
Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,
Conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança,
Enquanto eu recolherei para sempre
A tua, a minha e a miséria de outros,
Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.

Canção
Para o Oriente do amor
Meus sentidos aparelham.

Bandeiras azuis, vermelhas,


Cruzaram-se no horizonte.

207
Mu ri lo Mendes

De onde vem tal embriaguez,


Que aurora terei tomado?
Vem do fundo de mim mesmo,
Vem da minha alma correndo.

Minha amada na varanda


Arrulha, me faz sinais.
Vôo com abril nas mãos,
Para continuar o ciclo
De antiga revelação:
Aboli as dissonâncias,
O sentimento renasce
Como no início do mundo.

R.
Vens, toda fria do dilúvio, com dois peixes na mão.
És grande e flexível, na madrugada acesa pelos arcos voltaicos.
Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenos
Onde atualmente só se ouvem
Cânticos de guerra e pregações do inferno.

Vens, toda fria do dilúvio,


Semear a discórdia nas choupanas e nos palácios.
Vens para minha maldição, para me indicar o abismo
Onde ficarei só e triste, sem pianos.

Jerusalém
Jerusalém, Jerusalém,
Quantas vezes tentei abrigar no coração
Todos os meus anseios para Deus,

208
Poemas

Como a ave abriga a ninhada debaixo das asas:


E tu não quiseste, mundo,
Tu não quiseste, carne,
Tu não quiseste, demônio.

Jerusalém, Jerusalém,
Morro de sede à beira da fonte,
Morro de fome debaixo da mesa coberta de pães.

Em vez de sinos festivos


Ouço sirenes de aviões.
Em vez da santa eucaristia
Recebo granadas de mão.
Os mitos do mal desencadeados sobre mim
Me envolvem sem que eu possa respirar.

Jerusalém, Jerusalém,
Recolhe meu último sopro.

Idéia fortíssima
Uma idéia fortíssima entre todas menos uma
Habita meu cérebro noite e dia,
A idéia de uma mulher, mais densa que uma forma.
Idéia que me acompanha
De uma a outra lua,
De uma a outra caminhada, de uma a outra angústia,
Que me arranca do tempo e sobrevoa a história,
Que me separa de mim mesmo,
Que me corta em dois como o gládio divino.
Uma idéia que anula as paisagens exteriores,
Que me provoca terror e febre,

209
Mu ri lo Mendes

Que se antepõe à pirâmide de órfãos e miseráveis,


Uma idéia que verruma todos os poros do meu corpo
E só não se torna o grande cáustico
Porque é um alívio diante da idéia muito mais forte e violenta de
Deus.

Companheira
Companheira, dou-te as sombras que me acompanham,
Todas as sombras criadas pelos vivos.
Companheira, dou-te a alegria
Do que nada tem a esperar do esforço humano.
Dou-te a cantiga do asilado.
O suspiro do menino que olha em vão
O velocípede do menino vizinho.
Dou-te a nostalgia de quem soltou papagaio
Em épocas muito remotas.
Companheira,
Dou-te a tristeza do que nada achou na sua primeira comunhão.
Dou-te o desconsolo do que está sendo destruído
Pelos crimes que não cometeu,
Pelos crimes de outros em época distante.

Os amantes submarinos
Esta noite eu te encontro nas solidões de coral
Onde a força da vida nos trouxe pela mão.
No cume dos redondos lustres em concha
Uma dançarina se desfolha.
Os sonhos da tua infância
Desenrolam-se da boca das sereias.

210
Poemas

A grande borboleta verde do fundo do mar


Que só nasce de mil em mil anos
Adeja em torno a ti para te servir,
Apresentando-te o espelho em que a água se mira,
E os finos peixes amarelos e azuis
Circulando nos teus cabelos
Trazem pronto o líquido para adormecer o escafandrista.
Mergulhamos sem pavor
Nestas fundas regiões onde dorme o veleiro,
À espera que o irreal não se levante em aurora
Sobre nossos corpos que retornam à água do paraíso.

Canto amigo

1
Eu te direi: poderás te libertar do peso da vida,
Poderás encontrar um amigo no fantasma que te habita,
Os homens poderão amordaçar os tiranos se quiserem se
transformar num só.
Eu te direi: da própria franqueza emerge a força,
E muitas vezes a renúncia é o esquema da vitória.
Se conhecesses o dom que vem do alto e que afastas!
Por que aumentas o terror que rodeia o teu lar,
Por que em vez dos retratos de poetas
Que prolongam no tempo a corrente do amor e da fraternidade
Suspendes na tua casa fotografias de couraçados e de fortalezas
volantes?
Por que acreditas no julgamento dos chefes transitórios do homem?
Por que recusas pão e brinquedo às crianças, dando-lhes granadas?
Que futuro preparas, homem amigo, para teus descendentes.

211
Mu ri lo Mendes

2
Ó meus irmãos, eu ando entre vós como o sobrevivente duma cidade
arrasada.
Ouvi os últimos acordes do meu canto de perdão e de ternura
Antes que os rádios extingam minha palavra com anúncios de
guerra.
Ó meus irmãos, eu sou o que não ri, o que não mistifica,
Eu sou o que vos deveria odiar e que vos ama,
Eu sou o que espera a vitória divina sobre as forças do mal
Que agem poderosamente dentro de mim e de vós.

A criação e o criador
O poema obscuro dorme na pedra:

“Levanta-te, toma essência, corpo.”

Imediatamente o poema corre na areia,


Sacode os pés onde já nascem asas,
Volta coberto com a espuma do oceano.

O poema entrando na cidade


É tentado e socorrido por um demônio,
Abraça-se ao busto de Altair,
Recebe contrastes do mundo inteiro,
Ouve a secreta sinfonia
Em combinação com o céu e os peixes.

E agora é ele quem me persegue


Ora branco, ora azul, ora negro,
É ele quem empunha o chicote

212
Poemas

Até que o vento da noite


O faça voltar domado
Ao pó de onde proveio.

Quase segredo
A velocidade da luz
Me protege contra o enigma.

Mundo antigo,
(Árvore de campainhas,
Bola azul negra)
Já conheço teu alfabeto
E o que pretendes de mim.

Outrora eu tinha pés,


Caminhava sobre os pianos,
Às vezes até sobre a terra.

Fiz um buquê de mulheres,


Respiro ciúme traição:
Braços e pernas de uma
Estão no torso de outra.

Quem me conhece
Torna-se de repente visível.

A inicial
Os sons transportam o sino:

Abro a gaiola do céu,


Dei a vida àquela nuvem.

213
Mu ri lo Mendes

As águas me bebem.

As criações orgânicas
Que eu levantei do caos
Sobem comigo
Sem o suporte da máquina,
Deixam este exílio composto
De água, terra, fogo e ar.

A inicial da minha amada


Surge na blusa do vento.

Refiz pensamentos, galeras...


Enquanto a tarde pousava
O candelabro aos meus pés.

Duas mulheres
Duas mulheres na sombra
Decifram o alfabeto oculto,
Ouvem o contraste das ondas,
Falam com os deuses de pedra

Dançam a roda, murmuram,


Decifram o enigma das sombras,
Uma triste, outra morena,
Ambas são ágeis e esbeltas,
Vestem roupagens de nuvens,
Segredam amores eternos,
Tocam súbito a corneta
Para despertar os peixes.

214
Poemas

Duas mulheres na sombra


Encarnando lua e árvore
Decifram o alfabeto oculto.

Poema presente
O céu púbere e profundo
Ajunta nuvens de fogo
À tendência dos homens, inquietante:
E um pensamento de guerra
Anula o que poderia vir
Da água, da rosa, da borboleta.

Vergéis tranqüilos
Disfarçam espadas.
Sombras pedindo corpos
Esperam desde o dilúvio
O sopro de um puro espírito.
Separam a luz da luz.

Poema estático
Vestir a couraça do céu
E caminhar vigilante
Mesmo na música.

Ternura, doce rigor,


Alguém acende meu ombro.
Até o silêncio (cristal) pesa.

Confronto-me com o sexo e a sombra.

Formas esperam

215
Mu ri lo Mendes

Nossa cooperação
No campo fértil
Da funda morte,
Da vida envolvente
Sempre a crescer.

Poema da tarde
A tarde move-se entre os galhos de minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim deste meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:
E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.

Poema antecipado
Harpa de obuses,
Sempre um espírito guardião sobra
Para desenvolver o germe augusto
Que foi criado no princípio,
Para não explodir de febre
E dançar no fogo azul.

Terra e céu, jardins suspensos,


Em dia remoto serão refeitos.
O homem respira a Criação,
O corpo todo verá
(Antes de nascer eu já via).

216
Poemas

A manhã
Ninguém sabe se a manhã
Traz promessa de prazer.

Anônimas sanfoninas
Alternam com sabiás.

Transformou-se o vento de ontem,


Agora sopra sereno.

Sai um homem para o trabalho,


Saem dois, saem três, saem mil
Pensando na volta.
Ontem não havia
Aquela roseira em pé,
E a carícia d’agora
Desapareceu no ar.

Os braços espantam
Os restos da noite.

A ceia sinistra

1
Sentamo-nos à mesa servida por um braço de mar.

Eis a hora propiciatória, augusta,


A hora de alimentar os fantasmas.
?Quem vem lá, montado num trator de cadáveres,

217
Mu ri lo Mendes

Com uma grande espada para plantar no peito da Rússia.


Outros estendem bandeiras de todos os países,
Fazem uma cortina de névoa que esconde o cavaleiro andante:
O homem morre sem ainda saber quem é.
A morte coletiva apodera-se da morte de cada um.
A terra chove suor e sangue,
As ondas mugem.

2
O tanque comanda o homem.
A alma oprimida soluça
Num ângulo do terror.
Alma antiqüíssima e nova,
?Tua melodia onde está.
O pássaro, a fonte, a flauta,
A estrela, o gado manso te esperam
Para os batizares de novo.

Sentados à mesa circular


Aguardamos o sopro do dia.

3
Os mortos perturbarão a festa inútil.
?Quem lhes trouxe ternura e presentes – em vida.
?Quem lhes inspirou pensamentos e amores castos – em vida.
?Quem lhes arrancava das mãos a espada e o fuzil – em vida.
Agora eles não precisam mais de carinho ou de flores.
Agora eles estão libertos, vivos,
Pisando calmos sobre nossas covas.

218
Poemas

Abancados à vasta mesa circular


Comemos o que roubamos aos mortos conhecidos e anônimos.

Canção pesada
A negra pena
Comprime a alma,
A negra pena
Da massa viva
De dores cruéis,
Do amor que punge,
Da glória inútil,
Sutil serpente
Que morde o peito,
Que enrola o homem,
Constringe-o todo,
A negra pena
Que se alimenta
De sangue e fel,
Triste cuidado,
Lembrança amarga
Dos impossíveis,
A negra pena
Sem remissão,
Que, morto o homem,
Lhe sobrevive
Em novas formas,
Antiga pena,
Futura pena,
Eterna pena.

219
Mu ri lo Mendes

O espelho
Não surge mais a forma humana.
Nem o gesto de se vingar:

Não se enxerga mais, – se ouve!


Não se mira mais nem o morto
Na primeira comunhão,
Debruado de esplendor,
Ou na bicicleta do sol:

Mas se ouvem, claras, cristalinas,


Campainhas de cristal
Despertando a eternidade
Que recusa a forma humana
Cansada de grito e gesto;
Despertando a eternidade.

Tentação
Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo:
“Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz.”

As lavadeiras
As lavadeiras no tanque noturno
Não responderam ao canto da sibila.

“Lavamos os mortos,
Lavamos o tabuleiro das idéias antigas

220
Poemas

E os balaústres para repouso do mar...


Quem nos desviará do nosso canto obscuro?
Nele encontramos restos de galeras,
Nele descobrimos o augusto pudor do vento,
O balanço do corpo do pirata com argolas,
Nele promovemos a sede do povo
E excitamos a nossa própria sede...”

As lavadeiras no tanque branco


Lavam o espectro da guerra.
Os braços das lavadeiras
No abismo noturno
Vão e vêm.

Choques
O choque de teus pensamentos furiosos
Com a inércia da boca e dos braços de outros.
O choque dos cerimoniais antigos
Com a velocidade dos aviões de bombardeio.
O choque da foice contra o cristal dos milionários.
O choque das roseiras emigrantes
Com o silêncio das linhas retas nas janelas.

A tempestade calcula um choque de distâncias


Com o lúcido farol e seus presságios.
Chocam-se as águias arredando a noite
Com o armário que, inalterável, rumina.
Um ouvido resistente poderia perceber
O choque do tempo contra o altar da eternidade.
Choca-se a enorme multidão sacrificada

221
Mu ri lo Mendes

Com o ditador sentado na metralhadora.


Choca-se a guilhotina erguida pelo erro dos séculos
Com a pomba mirando a liberdade do horizonte.

Homenagem a Raimundo Lulio


I
A inocência perguntou à crueldade:
Por que me persegues?
A crueldade respondeu-lhe:
– E tu, por que te opões a mim?

II
A aveia do camponês
Queixou-se do cavalo do ditador,
Então o cavalo forte
Queixou-se das esporas do ditador.

III
O pensamento encontrou-se com a eternidade
E perguntou-lhe: de onde vens?
– Se eu soubesse não seria eterna.
– Para onde vais?
– Volto para de onde venho.

Então a monarquia do corpo obumbrou-se ainda mais


E a morte inclinou seu estandarte.

222
Poemas

O túnel do século
I
Sob o céu de temor e zinco
Os prisioneiros caminham, tambores velados:
A manopla da noite pesa
Sobre suas omoplatas, seus sonhos comunicantes.

As Erínias, segadoras antiquíssimas do povo, tambores velados.


Caminham, passo a passo,
Apresentando armas de ódio, punhos implacáveis.
Toda a carne se oferece ao espanto desnudo,
Os castelos de pedra vão se desfazendo
À medida que os heróis agitam a bengala blindada.
As Erínias reproduzem-se durante a noite,
E pela manhã encontramos aberta
A rosa dos ventres.

II
Sob o céu de temor e tremor
A estátua da infância é flechada
Pelos descendentes dos ídolos subterrâneos
Que consagram a espada dançante.
Amaldiçoam o pão e o vinho,
Rasgando o caderno de roseiras
– Alfabeto dos pobres migratórios.

Cegos digladiando-se num túnel,


Constroem as próprias sepulturas.

Sob o céu de temor e tremor


Os homens clandestinos, tambores velados, caminham.

223
Mu ri lo Mendes

Motivos de Ouro Preto


A Ruben Navarra

1
Assombrações que sobem do barroco,
Das ladeiras e dos crucifixos esquálidos,
Frias portadas de pedra, anjos torcidos,
Passantes conduzindo aos ombros o passado,
Cemitérios aéreos de adros largos
Onde noturnos seresteiros cantam,
Seguindo-se de violas e violões,
Aos defuntos colados nas gavetas:

A experiência de sombras trasladadas


De procissões civis, eclesiásticas,
Dum antigo túnel de conspiração;
A água escapando pelos chafarizes,
As cicatrizes que o minério abriu;
Tantos Passos fechados o ano inteiro,
Ruínas de solares e sobrados
Onde pairam espectros de poetas,
De padres doidos, de reformadores;
Algarismos gravados nas carrancas
A presença do tempo traduzindo,
O silêncio ao silêncio se juntando
Nesses becos e vielas embuçados;
A reunião de natureza e arte
Por um gênio severo combinadas,
O espírito levando à sua origem
Despojado de efêmeros enfeites,

224
Poemas

A pátina paciente de Ouro Preto


Sobre aparências estendendo um véu:
Tudo aparelha a mente para a morte,
Mas a morte em si mesma, a própria morte,
Privada de artifício, a morte chã.

E contra a dispersão das ossadas no tempo,


Que o amor à forma e a Promessa rejeitam,
Da pedra o testemunho antigo se levanta,
Poder do Itacolomi – e o da Pedra perene.

2
O canto alternativo das igrejas
Nos leves sinos da levitação
Cruzando-se em cerrado contraponto,
São Francisco de Assis adverte ao Carmo,
São Francisco de Paula à matriz do Pilar.

Devolve o ar ao ouvido o som das campainhas


Dessas humildes mulas pensativas
Que parecem voltar da Palestina.
E esses pianos dir-se-iam pianolas
Tangendo sons remotos, subterrâneos,
Restos de roídas polcas e mazurcas...
Pianos inconfidentes.
Cindem o ar seco, poroso,
Pancadas pacientes de relógio.
Esse vago clarim nos longes do quartel
Atende ao ido apelo de outro tempo:
Erra insatisfeita nos ares
A alma trágica do alferes Joaquim José da Silva Xavier.
Os amigos chamou, e o eco respondeu...

225
Mu ri lo Mendes

3
A Viúva de Ouro Preto sobe a rua cantando,
Apoiada ao bastão, na cabeça um penacho
De três cores, vestido velho e desbotado
Cuja invisível cauda arrasta com desdém.
A Viúva de Ouro Preto fala em frases cifradas,
Pesa em partes iguais o mito e a realidade,
O passado e o presente, a alegria e a tristeza,
Declara que decide a guerra no estrangeiro,
Rico e pobre entretém com igual polidez.
A trama da sua vida é feita de fantasmas
Que só se extinguirão no seu último dia:
A Viúva de Ouro Preto é de grande família
Que possuiu fazenda, escravos e palácios,
Privou com a Imperatriz, refinou-se na Europa.
Serviu banquetes em baixelas persas,
Depois tudo perdeu, os membros dispersou,
Resta Dona Adelaide Mosqueira de Meneses,
Vítima da jogatina, a Viúva de Ouro Preto
Que vive numa toca de espectros rodeada,
Que inda tem uma pedra onde apóia a cabeça...
A Viúva de Ouro Preto desce a rua rezando.

4
Ouro Preto se inclina com elegância,
Ouro Preto se inclina, e um dia cairá.
Nova técnica transfigura a terra,
Mas os futuros engenheiros e arquitetos
Não mudarão o corpo de Ouro Preto
Que ainda se preserva da reforma
Por sua mesma pobreza e solidão.

226
Poemas

Ouro Preto para o futuro um dia se voltara,


Gerando no seu bojo a nova tradição...
Acelerando a história, a vida deslocou.
Mas a lenda combate aqui a história:
Seus espectros e igrejas permanecem
Pelo ciúme da morte resguardados.

Aqui o próprio Cristo, o rei da vida,


Que se diz Deus dos vivos, não dos mortos,
Aqui o mestre da ressurreição
É contemplado apenas em sua morte:
Parece que em sua imensa humanidade
Aos espectros o Cristo se aparelha,
O seu ar familiar logo assumindo,
Abancado no largo das igrejas
Com os amigos, extrema assombração...
Aguardando seu próprio julgamento,
Sua caridade a todos estendendo,
Mesmo a Joaquim Silvério dá o pão.

5
Repousemos na pedra de Ouro Preto,
Repousemos no centro de Ouro Preto:
São Francisco de Assis! Igreja ilustre, acolhe,
À tua sombra irmã, meus membros lassos.
Confrontamos aqui toda a miséria,
Da matéria o desgaste deduzindo
Em nossa vida universal e pessoal.
Ó rude tempo de aniquilamento,
Ó rude tempo de desproporção!
Nem nos transforma a companhia do Anjo

227
Mu ri lo Mendes

Que estendido no teto desta igreja,


Rumando para a terra, em vôo certeiro
Despede ao chão a lâmpada de prata!
Entretanto ele é belo! Dançarino
Do sopro da saúde modelado,
Asas de larga envergadura tem,
E seus panejamentos apresenta
Com delicada graça, mas viril.
Respira o rosto, máquina rosada,
Um mesmo movimento aparelhando
A boca, os olhos diurnos e o nariz;
Carnal vivência o busto manifesta,
Os cabelos castanhos esparzidos
Numa desordenada simetria
O ritmo ajudam da composição;
Os pés calçados de sandálias gregas
Formam sólida base ao corpo inteiro.
Mas não se vale apenas de suas asas:
Os braços desenvoltos deslocando
O espaço em torno, rápido, oferecem
Flores, frutos da terra ao povo fiel.
Seus ornamentos sóbrios sintetizam
Do barroco mineiro a austera força.
Assim o esculpiu na tradução humana
O escopro genial do Aleijadinho.
Mas de que serve o gratuidade do Anjo,
Que pode o Anjo ante a angustura do homem
E a força da caveira desarmada
Que elevada se vê no tapa-vento?
Que pode o Anjo ante a manopla imóvel,
Ante a pátina da morte em Ouro Preto?
Kyrie eleison. Memento mori. Kyrie eleison.

228
Poemas

Romance de Ouro Preto


A Manuel Bandeira Se balançando
Despede a lua.
Na luz difusa Desdobra templos
Que funde os planos, Na luz redonda.
Vai nas colinas, Lava ladeiras,
Vai nas igrejas, Lava os lavabos
Vai nas lonjuras Das sacristias,
Se refratando, Recobre as casas
Na luz difusa De branco e anil,
Da manhã fria Tira o capuz
Nasce Ouro Preto Do Itacolomi;
Congeminando. Extinto o ouro,
Nasce inda agora Pequena indústria
Dos astros frios, Faz funcionar
Estremunhada – Chá, pinga e mel –,
Descerra as portas Apruma os pobres
De pedra frias, Do álgido Asilo,
Desata a bruma Espanta as moscas
Dos dedos brancos, Que do leproso
Levanta cruzes Toldam a visão,
No ar macio, Governa o reide
Turva da noite, Circunvolante
Tonta de espectros, Dos urubus.
Doida de sono, No jardim único
Mira-se ao espelho Do Carmo ao lado
Lavado, oval, Balança plumas
Da solidão. De árvores densas,
Um gênio fluido Apara arbustos,
No ar poroso Desfolha dálias,

229
Mu ri lo Mendes

Agrupa os goivos, De Inconfidentes


Cruza coroas Na cal propícia
De crisandálias; Recolocados,
A água limosa Sombras vencidas,
Dos chafarizes Sombras severas,
Rápido ordenha, Estranho espólio,
Desmama riachos, Solene expõe;
Sutura as torres Álulas frágeis
Na cerração, De anjos feridos
Dá corda aos sinos, Dos frontispícios
Rói paramentos, Pronto refaz;
Rói estandartes, As malas tange
Move estudantes Que dos distritos
Até o Palácio Descem ao mercado
Onde assistia Campainhando,
O Governador Pule os minérios,
– Máquina cinza Monda as arestas
De corpo espesso Dos monumentos
No alto da Praça Azul e rosa,
Bem assentada, Branco e cinzento;
Soturno espelho Lumeia os círios
Do grão poder; Lá no Pilar,
Sobe ao Museu Renova a missa
Que, adrede armado, No altar barroco,
Graves destroços Propende o Cristo,
Da antiga Minas Suscita a sombra,
Prenhe, barroca Suspende o sol.
– Dura escultura –,
Torsos de Minas Ó Vila Rica,
Dependurados, Trânsito é o teu
Restos roídos Tão sossegado!

230
Poemas

Nossa Senhora, Levando aos Três


Nosso Senhor, – Ventos de amor –
De pés descalços, Novas novenas
De braços dados, E ladainhas,
Tristes, felizes, Teus Kyrie eleison
Tristes, calados, Santos amém.
Pelas ladeiras
Recuando a morte, Tu, Vila Rica
Pelas calçadas, De forte exemplo,
De dia, de noite Ei, Ouro Preto!
Correndo vão. O ouro leproso,
Ó tu, musical Amaldiçoado,
Terra não és, Da luz do inferno,
Curva Ouro Preto, Do mal do inferno
Plástica sim! Contaminado,
Díssonos pianos Te desgraçou.
Deslocam o eco Que havias feito
Mas os teus sinos Pra te mandarem
Das tuas manhãs: Praga tamanha,
– Enoch e Elias, Virgem do céu?...
Ivo e Luquésio, Tu, Vila Rica
Roque e Raquel – Do ouro gerada,
Sobem do Carmo, Desde teu berço
De São Francisco. Ouro mamando,
Sonoros sagram, Desde menina.
Bentos batizam Já castigada
Tua atmosfera – Forrada de ouro,
Com igual fervor, Fecunda um tempo,
Dobram com força Logo faminta,
Por todos nós, Depressa estéril –,
Das ruínas do ar Estrela obnóxia

231
Mu ri lo Mendes

Vinda de Oblívio, Almas penadas


Luz de presságios Com véus de viúvas
Na cauda de ouro Que pelas vielas
Morna arrastando, E pelas pontes
Ai! te obumbrou. Sutis deslisam
E entre ais e uivos
Maior na morte Perdidos vão:
Que no esplendor, Triste Ouro Preto
Espectro enxuto A quem a cinza,
De olho de pedra O tempo e o mito
Que absurdo adoro Servem de pão.
Tanto que aguardo,
Roxo, tremendo,
Mortos teus dentes,
Últimos fins,
Tuas colunas Teu ouro extinto
Tão inspiradas, – Virou esterco –,
Curvas e rampas Abandonados
Ao pensamento Os teus pendões,
Rude inclinando, Podres os bosques
Nobres portadas, Das sesmarias,
Pátina cinza, Paços queimados
Muros de canga (Nos mornos morros
E anjos ambíguos, Correm manadas
Anjos oblíquos, De assombrações),
Anjos oblongos, Mantos roídos,
Torres torcidas, Trompas sem boca
Torres chuvosas, Que te acordavam,
Olho-de-boi Prismas partidos,
Lentos absorvem Morta a euforia,
Tua agonia Toda a ambição:
Logo cercada Vive tua plástica
De fogos-fátuos, Na forma estática.

232
Poemas

Só para a morte Do Grande Hotel,


Guardaste a luz, Do Alto da Cruz
Tu, Ouro Preto, Que Chico Rei
Dama de pedra, Dançando o congo
Demente lúcida Fez levantar,
– Dobras a morte Glória a Jesus;
Com teu palor –, De São Francisco de Paula
Tu, Ouro Preto, A massa branca, maciça,
Que outrora foste Sempre de frente,
E agora inda és. De qualquer ponto
Se mostra à luz.
De qualquer ângulo Bela Ouro Preto
Tu sempre és bela! Vinda do caos,
De qualquer ângulo Tua unidade
Ao olho amante – Tácito acordo
Sempre és igual. Entre homem e Deus –
Perto, distante, No entrosamento
Quer vista sejas De forma e fundo
Na luz redonda, – Subido exemplo –
No prisma azul, Com teu engenho
Na trovoada, Se resolveu.
Na refração,
À chuva espessa, Vi quantas belas
Ao sol friorento, Adormecidas
Ao sol violento, Nessas varandas
Ao luar das Lages, Desguarnecidas,
Na cerração, Pelo nevoeiro
Vista de frente, Logo veladas:
Vista dos fundos, Vaga Marília,
Lá das Cabeças, Doce Ifigênia
Lá do Rosário, – Zéfiro brando –

233
Mu ri lo Mendes

Que do Brasil Que a névoa filtra,


Foste noivada, Adormecidos
Nise saudosa, Nas lájeas frias,
Glaura de seda, Em balcões frios,
Bárbara mísera Finos fantasmas
Do norte estrela Frios da noite,
Que teu destino Frescos do orvalho,
Mal sabes guiar, Brancos da morte,
Clara Constança Puros do luar...
De negras tranças
Breve roídas Nas tuas naves
Na escuridão... Limpas, lavadas,
Musas oclusas, Qual céu de Minas
Tristes, heróicas, Após trovoada,
Tontas, alegres, Nas tuas naves
Santas, vadias, Claras, azuis,
Musas obscuras Abrindo os braços,
De igual valor, Fechando os olhos,
Quantas Marias Cinzas tomei,
Trabalhadeiras, Bíblico eu fui.
Requebradeiras, Nas tuas lájeas
Doidas de amor, Verde-cinzentas,
Belas doceiras, Desconsolado
Ó costureiras, Moendo o mundo,
Ó lavadeiras, Roucos soluços
Corpos em flor Triste abafando,
Que a minha lira Me prosternei;
– Pulsa, suspira – Dos teus santeiros
Do tempo caído Tortos, anônimos,
Quer suscitar, Nos oratórios
Finos fantasmas O gênio rústico,

234
Poemas

Crispado, áspero, Revelador –,


Interpretei; Do Aleijadinho
E ante os teus santos Severo ancestre
Ósseos, cavados, Mal-encarado,
Escalavrados, Encapuzado
Desencarnados No seu furor,
Pela oração, Alma barroca,
Que pedem graças Fundos refolhos
Do alto do nicho De obscura raiva
Em vez de as dar Guardando em si,
– Míseros são –, Na dura entranha
Fiz a exegese, De penha humana
Dei o balanço Com fortes peitos
Da nossa lepra, Gerado à luz,
Nossa paixão. Do Aleijadinho
Sóbria lição
Do Aleijadinho – Suma piedade
– Pernas de pedra, Rígida, austera,
Tronco de igreja, Na bruta Bíblia
Testa de morro Cedo assentada,
Da Minas bíblica De um mundo novo
Que a Santa Bárbara, Mantido em pedra
Grã domadora Consolidada
Da trovoada, Na criação,
Se consagrou, Do Aleijadinho
Do Aleijadinho, Força fogosa,
Macho escapado Grã-liberdade
Ao próprio escopro, Na disciplina
– Sua obra inteira Do Antigo amor
É auto-retrato Movendo os dedos,
De corpo inteiro Movendo o engenho

235
Mu ri lo Mendes

Com seu vigor, Mal-assombradas


Força madura, Quase que amei,
Fundamental, Teus seresteiros
Que à alma imprime Ao luar propício
Imperecível, Perambulando,
Sempre impassível, Cismando ouvi
Grave postura, – Cantam Dalilas,
Nobre feição, Dizem de dálias,
Do Aleijadinho Bordam perpétuas,
– Simplicidade Choram saudades,
Dentro do excesso, Longos degredos,
Transbordamento Penas de amor;
Não sem rigor, E de teus bêbedos
Conselho altivo De noite e dia
Que vence a morte, A lengalenga,
Nutrido a sangue, Ladeira abaixo,
Na chaga inscrito, Ladeira acima,
Rasgado a escopro Ainda ajudei;
– Transverte a dor –, E de tuas bruxas,
Do Aleijadinho Teus monsenhores,
Que transfixado Teus sacristães,
No seu grabato, Lendas, parlendas
Contempla o Cristo Mole girando,
Com febre e amor, Reconstituindo
Do Aleijadinho Tempos soberbos,
Sopro do eterno Quentes distúrbios
Rolando em Minas, Nos arraiais,
Gravado em pedra, Alumbramentos
No pau esculpido, Do ouro gerados,
Firme palpei. Superstições,
Cruzar de espadas,
Tuas velhinhas Punhos suspensos,

236
Poemas

Membros candentes, Lá do Tijuco,


Conspirações De Gongo Soco,
Cedo morrendo, Cavalos épicos
– Vem, liberdade, Se esperdiçando,
Ainda que tarde –, Longos delírios,
Uivos de dor, Damas possessas,
Poetas tangidos Descabeladas,
Para o degredo, Girogirando
Secos de amor; Pelas estradas,
Do Tiradentes Lançando fábulas
Rubra cabeça Filhas do ouro,
Logo tornada De áureo clarão;
Constelação, E ouro rodando
Ó Excelências, Pelas calçadas,
Ó Reverências, Nas capistranas,
Bailes, fanfarras, Templos crescendo
Clarões, clarins, Com ouro e fé,
Ó luminárias, Negras escravas
Ó lumaréus, Bamboleando,
Bruscos archotes Cobrindo as testas
Queimando o céu, Com ouro em pó:
Ó procissões Tudo isto agora
Pagãs, festivas, Quero evocar.
Entrelaçando Tempo danado
Virgens e Vênus, De assombração,
Paulo e Plutão, És filho do ouro
Ó serenatas, Com a maldição.
Ó cavalhadas, Tu, Vila Rica,
Ricos senhores Auto-espantalho
Em coches de ouro Que nada assusta,
Vindos de longe, O próprio Cão

237
Mu ri lo Mendes

Montando a Morte Gele-me o corpo


Quer te assombrar, Se te esquecer,
Que tu refugas Seque-me a língua
No ventre fundo Se te maldar;
Dos teus minérios, Nesta retina
Lá nas profundas Cedo alumbrada,
Da noite oclusa, Desconsolada,
Cruz-credo, amém. Tua luz difusa
No amor filtrada
Na luz difusa Quero guardar
Que se arredonda – Imagem de outra
E se refrata Mais alta luz –;
Nos planos frios, Roupas não rasgo
Três sinos sobem – Tradição morta,
Lentas ladeiras, Disse Jesus –
Dobram a defunto, Mas breve rasgo
Declina o dia. – Rito profundo,
Deus nos assista Viva oração –
Com sua alegria, Diante do altar
Deus nos liberte, Que aos Três consagra
Ave, Maria. Nossa oblação,
Musa, te rogo, A Cruz mirando
Despede o manto, Que altera o mundo,
Grossa estamenha Sagrado lenho,
Pronto reveste, De Deus dossel,
Ouve em silêncio Mas breve rasgo
Desta cantiga Depois de aberto,
Desconjuntada De escalpelado,
O som final: Contrito, amargo,
Nobre Ouro Preto Descompassado,
Talhada a escopro, Mina de males

238
Poemas

Que não se extingue,


Tosca oferenda
Que a luz severa
Dos teus santeiros
Inconformados
Reflete inteira
Nesta angustura,
Mas breve rasgo
Meu coração.

Poema pessoal
Levanto-me da carruagem de paixões e plumas
Aparentemente guiada pelas irmãs Brontë.

Deu uma tristeza agora nos telhados...

As cigarras sublinham a tarde emparedada,


O trovão fechou o piano.
Surge antecipadamente o arco-íris,
Aliança temporária de Deus com o homem,
Sem a solidez da eucaristia:
Surge sobre encarcerados, órfãos, marginais,
Sobre os tristes e os sem-solução.

Dos quatro cantos de mim mesmo


Irrompe um Dedo terribilíssimo que me acusa
Porque sem os olhar deixo de lado
Os restos agonizantes do mundo.

Transformou-se agora o céu.


Céu patinado, que escureza.

239
Mu ri lo Mendes

Céu sempre futuro e amargo,


Como são fundamentais
Estes sofrimentos de segundo plano!

Mais o quê mesmo lembrar?


Ah sim – esta arrastada caranguejola da vida...

O quarto da infância
Quem canta? Ninguém mais canta.
Seria preciso cantar para o morto na sua cova,
Para o vivo na sua cova. Seria preciso estender
Braçadas de canções ao órfão espiritual.
E até mesmo as estrelas pedem consolo,
Todos pedem consolo.
Quantos olhos desabitados,
Antigas ruínas que nenhum peregrino visita;
Quantas mãos cobertas de hera
Antecipando a paz definitiva.
Quanto seio que não foi acariciado,
Quantos pés caminhando sem consciência
Da passagem de um Deus pelos mesmos caminhos.

Trocamos o que não se pode trocar,


Abandonamos o reflexo do fogo,
O eco de uma perdida gavota
E o gesto de nós meninos no espelho do soalho.
Trocamos a vela do barco solitário
E a inscrição na pedra de madressilvas
Pela moeda concreta do demônio,
Pelo demônio mesmo.

240
Poemas

A peregrinação
Investe-me o pavor do tempo restituído
À noite antes do Senhor, à cólera fria,
Ao desespero que contorna a cruz.

Minha alma cai do cavalo, parte de novo a galope,


Mas na curva do caminho enfrento os espantalhos
Do passado, do provisório e do futuro
– relâmpagos embuçados no horizonte. –
Em Antioquia, em Bizâncio e Ouro Preto me achei,
Levado pelo passo de animais familiares
Com asas e olhos plantados ao redor do corpo.
Volto as costas ao cemitério dos antepassados,
E, palpando a trilha vermelha de Pentecostes,
Bato furiosamente à porta de Simão Pedro
Que prometeu me ressuscitar dos mortos,
E que um dia havemos de julgar os anjos.
Assimilo sem cerimônia o próprio Criador
Escondido sob o fantasma do pão e do vinho.
Desde antes do começo da era atômica
Espero sem paciência o fim do mundo
Em novas formas de ressurreição.
Acaba logo, ó mundo; ó Cristo, vem depressa.

Pássaros noturnos
Pássaros noturnos:
Ao longe balançam o canto obscuro
Pois nas grutas profundas se encolheram

241
Mu ri lo Mendes

E nos maciços de árvores.


Pela noite seu canto oblíquo
Na soledade do silêncio
Configura-os a bichos desconhecidos,
São provisoriamente outros bichos
Nascidos sem lei nem forma
Do intocado abismo e da folhagem.
Pássaros fantasmas,
Pássaros noturnos
Anunciadores de uma vida livre
Cujo segredo ao nosso ouvido escapa,
Uma vida de ignota relação.

Indicação
Sim: o abismo oval atrai meus pés.
Leopardo familiar, a manhã se aproxima.
Preciso conhecer em que universo estou
E a que translações de estrelas me destinam.
Em três épocas me observo sustentado:
Na pré-história, no presente e no futuro.
Trago sempre comigo uma morte de bolso.
Assalta-me continuamente o novo enigma
E uma audácia imprevista me pressinto.
Arrasto minha cruz aos solavancos,
Tal profunda mulher amada e odiada,
Sabendo que ela condiciona minha forma:
E o tempo do demônio me respira.
Gentilíssima dama eternidade

242
Poemas

Escondida nas raízes do meu ser,


Campo de concentração onde se dança,
Beatitude cortada de fuzilamentos...
Retiram-me o véu que sei de mim.
Ontem sou, hoje serei, amanhã fui.

243
Guardados d a M em ó r ia

Magalhães de Azeredo
e Afonso Arinos
Af o n so Ar in o s , f il h o

Q uando cheguei a Roma, em 1956, para ocupar o meu


primeiro posto diplomático, como secretário da Em-
baixada do Brasil na Itália, Afonso Arinos recomendou-me –
Afonso Arinos, filho
é o nome literário de
Affonso Arinos de
Mello Franco, o
como Afrânio de Melo Franco fizera com ele, três décadas mais terceiro do nome a
pertencer à Academia
cedo – que ali procurasse o embaixador aposentado Carlos Ma- Brasileira de Letras.
galhães de Azeredo. O primeiro foi
Eu já o conhecera antes, em nossa casa, no Rio, e, durante os três Afonso Arinos
(1868-1916) e o
anos nos quais servi, então, em Roma, visitei-o amiúde. Faziam-me segundo,Afonso
companhia, às vezes, brasileiros eminentes de passagem pela capital Arinos de Melo
italiana – ou nela residentes, como Murilo Mendes –, curiosos de Franco (1905-1990).
Diplomata e escritor,
encontrá-lo, que Magalhães de Azeredo sempre recebeu, prestigiado autor de Primo canto
e contente por ter interrompida a própria solidão. Apresentei-lhe (Memórias da mocidade),
Carlos Lacerda (a quem ele saudou como “o ardente polemista”) e Três faces da liberdade,
Atrás do espelho (Cartas
Gilberto Freire (“o ilustre sociólogo”). Mas não reconheceu Muri- de meus pais), Tempestade
lo, quando este, finda a visita, tentou fazer-se notar, aos brados no altiplano (Diário de
(Azeredo estava surdo): “– Embaixador, somos colegas!” “– Ah! um embaixador).

245
A fo nso A ri no s, fil h o

também é diplomata?” “– Não, poeta!” E Azeredo, protetor.


“– Pois bem, mande-me seus versos.”
Muito idoso, o último fundador ainda vivo da Academia Bra-
sileira de Letras achava-se em dificuldades crescentes para viver
com dignidade os anos que lhe restavam. Afonso Arinos foi vê-lo
comigo, condoeu-se da sorte do antigo mestre, e, de regresso ao
Brasil, intercedeu por ele com o então chanceler Negrão de Lima.
Este, pouco depois, iria a Roma em viagem oficial, e levei-o a
Azeredo. Negrão, impressionado, criou para o ancião um cargo
honorífico de consultor na Embaixada do Brasil junto à Santa Sé,
acrescendo-lhe assim, com uns poucos dólares mensais, as parcas
economias.
Após a morte de Arinos, encontrei, entre os seus papéis, trinta
missivas de Magalhães de Azeredo – escritas de 1929 a 1963, várias
endereçadas à Suíça, onde o jovem Afonso buscava (e obtinha) cura
para os pulmões enfermos. Entremeado nelas, transcrevo artigo que
Afonso Arinos publicou em O Jornal – feliz por haver recebido boas
notícias de Azeredo, depois de quase oito anos sem correspondên-
cia, interrompida pela guerra –, e, em seguimento às cartas, os tre-
chos dedicados ao amigo ausente em três dos seus volumes de lem-
branças, e no livro Amor a Roma.
Em Planalto, terceiro tomo das recordações, Afonso anotou a 7
de janeiro de 1966: “Eu mesmo tenho numerosas (cartas) dele,
(Azeredo,) que algum dia, talvez, venha a reunir e publicar na Revis-
ta da Academia.” Mas não chegou a concretizar o intento. Faço-o
aqui, em sua memória e na do meu velho companheiro de Roma,
que eu viria a suceder, um dia, como embaixador do Brasil no Va-
ticano.

246
Cartas de Magalhães
de Azeredo a Afonso
Arinos de Melo Franco

Via Po, 32. Roma.


10 de fevereiro de 1929.

Meu querido Afonso,

Por favor, não veja na demora desta carta uma espécie de represá-
lia pelo silêncio que você longamente guardou para comigo. De
modo algum. Antes, com toda lisura lhe digo que, se aquele silêncio
por muitas razões merecia desculpá-lo, para a minha tardança em
responder-lhe só posso esperar perdão, apelando para a sua indul-
gência de amigo, e alegando, como circunstância, não justificativa,
mas atenuante apenas, da minha falta, os muitos trabalhos de várias
espécies, que me ocasionam sempre grande desordem na vida.
Aceite, pois, meu querido Afonso, as mais sinceras e calorosas
congratulações pelo seu casamento, com a certeza de que, se elas lhe
chegam atrasadas, pronto foi e constante será o nosso júbilo pela sua
felicidade tão merecida. Peço-lhe que transmita a sua Senhora, de
quem muito e com muita simpatia nos lembramos, a expressão desse
sentimento.

Abraça-o com afeto e saudade o seu muito dedicado


Azeredo.

247
A fo nso A ri no s, fil h o

Savoy-Hotel, Lausanne, [Suisse])


2.X.1929

Saudoso abraço.
Breve escreverei.
Azeredo

(Savoy Hotel, Lausanne Ouchy)

7 de outubro de 1931

Querido Afonso,

Você partiu de Lausanne a tempo de evitar o calor importuno


destes últimos três dias, que decerto lhe teria feito mal. Hoje o céu
está coberto, enfarruscado e creio que virá uma chuva salutar.
Restituo-lhe o seu poema, desejando, e esperando ainda, que um
Moisés novo aja contra o novo mar Vermelho como o antigo contra
o do seu tempo; isto é, sepulte nele os novos filisteus. Não tenho ab-
solutamente fé alguma na aventura comunista, que não é um sonho
de genial redenção, mas o pesadelo vesânico e sádico de uma Europa
enferma. Que ela sare, e ressurja do seu pantanal de erros e culpas!
(Com a infantil América é vão contar, por enquanto.) Não creio que
a civilização possa existir sem capitalismo, e sem livre concorrência
em todos os ramos do trabalho humano. O estado socialista do visi-
onário Marx só pode conduzir a um rápido e contínuo abaixamento
do nível intelectual, moral, e até econômico, dos povos. Nem creio
na arte coletiva, senão como execução de cousas criadas por grandes
espíritos dominadores, qual se viu nos templos gregos, e, sobretudo,
nas catedrais da idade média, em cujos lavores anônimos de detalhe,

248
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

subordinados aos vastos planos de conjunto, se revela justamente o


talento “individual” dos artífices.
Como você não pôde tirar aqui a instantânea que desejava, man-
do-lhe uma tirada em Rapallo há poucos meses. Nossos recados afe-
tuosos para o casal amigo, e para você um saudoso abraço do seu
muito dedicado

Azeredo.

Savoy Hotel. Lausanne.


13 de outubro de 1931.

Querido Afonso, tenho esperado nestes dias uma carta sua. Rece-
beu a minha? Como estão passando nesse ar puro de Montana? Nós
na quinta-feira, depois de amanhã, partiremos para a Itália. Quase
nada pararemos em Milão, donde seguimos para Veneza e Florença,
e por fim para Roma, onde minha Mãe nos aguarda há tanto tempo.
O nosso endereço lá é Via Po, 32-34. Afetuosas lembranças nossas
para ambos. Saudoso abraço do seu muito dedicado
Azeredo.

(Hotel Cavour Milano)


20 de outubro de 1931.

Querido Afonso,

Ontem somente pudemos voltar para a Itália, porque Maria Luí-


sa esteve bastante resfriada, e isso nos obrigou a adiar a viagem.

249
A fo nso A ri no s, fil h o

Amanhã seguiremos para Florença (abandonamos, por falta de tem-


po, o tão afagado projeto de uma ida a Veneza); no começo da pró-
xima semana estaremos em Roma, na nossa casa, ao lado de minha
Mãe, já cansada de esperar-nos.
Ontem de manhã, arrumando papéis, descobri um exemplar de
L’historique audience pontificale du 9 mars 1929, que é um livro interessan-
te para ler-se e guardar-se; como você me disse que não tinha, man-
dei-lho. Espero que se decidirá, agora, a escrever-me algumas linhas.
O nosso endereço em Roma é: Via Po, 34.
Para você e a sua gentil companheira, os nossos muito afetuosos
recados. Saudações para seu tio Armínio. Diga-lhe que o procurei
uma vez no Lausanne Palace, mas não o encontrei; teria feito ainda
outro esforço para vê-lo, como desejava; mas como ele se demorou
vários dias em Lausanne, sabendo que nós lá estávamos e em que ho-
tel, e não nos procurou nem me telefonou, entendi que ele não que-
ria visitas.

Saudoso abraço do seu muito dedicado


Azeredo.

Via Po, Roma.


9 de novembro de 1931.

Meu caro Afonso,

Aproveito uma hora livre para conversarmos um pouco.


Vejo pelos jornais de Lausanne que lá faz frio. Em Montana, en-
tão, vocês devem tiritar. Imagino que estão no meio da neve. Mas se
o tempo é bom e claro, esses beijos glaciais da montanha só lhe po-
dem dar vigor ao sangue, e alegria à alma.

250
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Como emprega seus dias? esporte? ócio intelectual? Ou escreveu


novas páginas? Não deixe de emprestar-me o que for escrevendo.
Eu, ando às voltas com a “Mensagem a Virgílio”, que se prolon-
ga, se prolonga... Deveras, se tivesse previsto tais proporções, e as di-
ficuldades que teria de arrostar, não me metia nesta empreitada. A
minha terna admiração pelo poeta, a espontaneidade lírica dos pri-
meiros capítulos (já que é preciso falar de capítulos!) me induziram
em erro. Não imaginei que a índole do argumento me obrigaria a um
teimoso tour de force para evitar o tour de force, cousa detestável em poe-
sia: quero dizer, para transformar naturalmente e realmente em subs-
tância poética um assunto inevitavelmente raciocinado... como Vir-
gílio mesmo fez, de maneira miraculosa, nas Geórgicas. Não atiro ao
rio – ao Tibre! – as páginas já escritas porque um justo amor- pró-
prio exige de mim que conclua a obra começada, e porque tenho
pena de inutilizar todo esse trabalho. Estou agora descontente dele;
mas quem sabe se essa impressão é falaz e transitória? se alguns dias,
ou algumas semanas, depois de terminado o poema, eu o encararei
com olhos mais favoráveis? É essa a única perspectiva, que se me de-
para, de uma relativa recompensa. Porque a crítica – a pequena críti-
ca apressada e superficial da nossa terra – vai, decerto, ainda uma
vez, desentender-me. Um poema de idéias, nesta época! e em decas-
sílabos soltos!... Junto a uma elite européia (centenares, ou milhares
de pessoas) ele chegaria, creio, a despertar interesse; seria considera-
do, discutido. Mas eu sou brasileiro, e escrevo em português. Se en-
contrar trinta ou quarenta leitores de boa vontade, me terei por ex-
traordinariamente feliz.
Envio-lhe, entanto, páginas de outro gênero, que me saíram do
coração comovido, e que você lerá, espero, com sentimento simpáti-
co. Um adeus às folhas cadentes, num parque de Ouchy, em melan-
cólica tarde de outono. Leia isso, e devolva-mo, porque preciso da
cópia para a Feira Literária, de São Paulo. É uma revista muito fina-
mente redigida e editada. Conhece-a?

251
A fo nso A ri no s, fil h o

Você nada me disse, na sua recente carta, sobre o Profilo biografico.


Leu-o? agradou-lhe? Nunca o tomei por adepto do comunismo.
Você mesmo em Lausanne me disse que não o era, e ainda que me
dissesse o contrário, eu não acreditaria. Parece-me, apenas, que você
espera demasiado do movimento comunista para o conjunto da civi-
lização moderna. Sem dúvida, há muito proveito a tirar dele, se for
considerado como uma justa lição, para se corrigirem os erros e se
expiarem as culpas do regime capitalista, que necessita de ser tecni-
camente, e sobretudo moralmente, transformado. Mas, para isso,
cumpre, antes, “neutralizar” o comunismo; triunfante no mundo in-
teiro, ele só poderia engendrar uma nova barbárie, semelhante à do
primeiro século da idade média, porém mil vezes mais grave, e mais
difícil de eliminar, porque científica e industrial, armada de instru-
mentos formidáveis e quase invencíveis de dominação. O momento,
sem dúvida, é mau para ele. As eleições inglesas acabam de infli-
gir-lhe a mais tremenda derrota que ainda sofreu, mais significativa e
importante que a criação do fascismo, porque realizada num ambi-
ente de liberdade, sem sacrifício dos direitos individuais, a que os ci-
dadãos ingleses não renunciam de maneira alguma. Ainda uma vez, a
Inglaterra provou ser uma grande nação; o seu povo é de uma com-
preensão extremamente vagarosa, e deveras levou muito tempo a ver
na sua própria casa o que os de fora viam e lhe diziam. Mas quando
se persuade de estar doente, não hesita diante do remédio amargo, e
dos tratamentos longos. Portanto, é de esperar que irá ao fundo das
cousas, com vantagem para si e para nós todos: que, por exemplo,
modernizará os seus meios de produção, e adotará uma política mais
enérgica e vigilante na Índia, cuja presunção de self government sem li-
mites constitui a mais terrível ameaça contra a civilização ocidental,
a “nossa”. Eu, neste ponto, tomei partido há muito tempo. Sou, irre-
dutivelmente, ocidental. Ocidental, latino, cristão, católico, euro-
peu, americano, e brasileiro.

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M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Saudosos recados nossos para o casal amigo. E para você um


abraço do seu muito dedicado
Azeredo.

Via Po, 32. Roma


21 de novembro de 1931.

Querido Afonso,

Restituo-lhe o seu artigo, que me interessou e agradou muito.


Sem dúvida, o melhor modo de viajar a Itália é esse mesmo que você
praticou e recomenda. Mas creio que ninguém o aprende da primei-
ra vez. A fome de beleza e os conselhos ouvidos dominam a gente
quando aqui chega; não se larga na rua o Baedeker, e em casa se lêem
avidamente muitos outros livros. Não é mau, aliás, adquirir uma vis-
ta de conjunto, embora a custo de grande fadiga; depois se escolhe
sem risco de errar.
Nós conhecemos pouco Milão, conquanto passemos por lá re-
gularmente duas vezes cada ano. Conhecemos, está claro, o Duo-
mo, o Cenacolo, Brera, Ambrosiana, e até uma relíquia feiticeira,
que você não conhece: os cabelos louros de Lucrécia Borja, que
estão desde o século XVI justamente na Ambrosiana. Envio-lhe,
emprestado também, um artigo que a propósito deles escrevi.
Não sentimos, porém, a “poesia” da capital lombarda, como sen-
timos, intensamente, a de Veneza, a de Florença, a de Siena, mes-
mo a de Nápoles. Milão nos parece uma cidade de muito movi-
mento, sem alegria, sem elegância, e até sem caráter. É provável
que corrigíssemos este juízo sumário, se a conhecêssemos me-
lhor. Ainda com essa honesta reserva, porém, não compreendo a

253
A fo nso A ri no s, fil h o

fascinação que ela exercia no espírito complexo – desabrido e


apaixonado, cínico e romântico de Stendhal. Milão devia ser
mais interessante naquele tempo do que é hoje, como, de resto, o
era, por exemplo, incontestavelmente, Roma.
Quanto ao lago de Como, nós o admiramos com entusiasmo e
ternura, como você. Esse e o Léman são os mais belos que conhece-
mos. Se você fizer algum dia o trajeto de Milão pela região comasca
e pela Valtellina, para entrar por Tirana na Bernina e na Engadina,
verá uma das grinaldas mais portentosas de paisagens, que há neste
mundo sublunar; e apesar de habituado às maravilhas do nosso Rio,
viajará de olho guloso e de boca aberta.
A caricatura de Taine por Barrès é tendenciosa e injusta, como a
outra que ele desenhou em Une visite à monsieur Renan (ou Une journée
avec monsieur Renan, não me lembra exatamente). Barrès, antes (de) ser
um escritor pensativo e seriamente apaixonado, foi um rapaz muito
petulante. Não se produzem com aqueles processos de esterilizante
erudição páginas primorosas (e intimamente vividas), como há mui-
tas no livro de Taine...
Pelo gosto de prosear com você, estou já no meio da quinta pági-
na desta carta. É preciso concluir, porque o trabalho me reclama.
Causa-nos verdadeiro prazer a notícia de que você não necessita
mais de cuidados médicos. Fez muito bem tomando um apartamen-
to. Nunca esquecerei o que me dizia, em 1912, quando eu estava
bem doente de neurastenia, o célebre professor Dubois, de Berna,
para dissuadir-me de entrar numa clínica: “La compagnie des malades rend
malade. Tâchez de frayer avec les gens bien portants.”
Quem nos dera irmos passar uns dias com vocês em Montana!
Como deve aí ser delicioso e revigorante o ar filtrado através da neve!
o de Roma é úmido e quente, mole, sirocoso... Mas, ai! as viagens
custam muito, e o dinheiro é pouco!

254
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

A Deus. Saudosos recados nossos ao casal amigo, e para você um


grande abraço do seu muito dedicado
Azeredo.
Armínio vai melhorando?
Saúde-o afetuosamente por mim.

Via Po, 32. Roma. 29 dezembro 1931.

Querido Afonso, começo agora a preocupar-me com o seu longo


silêncio, receando que esteja doente, ou que Armínio tenha piorado.
Peço-lhe que me tranqüilize. Aqui lhes mandamos os nossos votos
afetuosos de boas festas e feliz ano novo. Um abraço do seu
Azeredo.

Via Po, 32. Roma. 10 de janeiro de 1932.

Meu caro Afonso,


Aproveito com prazer a liberdade silenciosa desta tarde domini-
cal, para escrever-lhe tranqüilamente. Eu já lhe tinha escrito o bilhe-
te incluso, quando chegou a sua carta, que li com verdadeiro gosto.
Nela você justifica-se da demora em mandar-ma, e com válidas
razões. E ajunta: “O Senhor é que poderia furtar-se um pouco aos
lazeres da embaixada e dos trabalhos literários, e escrever mais lon-
gamente aos amigos que lhe querem bem.” Ah! meu caro Afonso, aí
você toca no ponto crítico, ou, como se diz hoje com uma imagem
que me agrada, no ponto nevrálgico da questão. Lazeres? onde estão
eles? Você não tem idéia clara da vida que levo aqui. Esta Embaixada

255
A fo nso A ri no s, fil h o

passa, bem sei, por ser das menos laboriosas; mas, se a tarefa que
emerge é relativamente pequena, a que não se vê é imensa. A minha
atual qualidade de decano do Corpo Diplomático (já o sou desde
1926) a tem quase duplicado. Comunicações do Vaticano e do go-
verno italiano, consultas, visitas, tudo o que se refere a nós coletiva-
mente, pesa sobre meus ombros. Basta dizer-lhe que para os meus
versos e as minhas prosas, e para a correspondência particular, eu só
disponho de duas, no máximo três horas, pela manhã. De tarde, é ra-
ríssimo que eu tenha tempo de escrever um bilhete. E à noite, não
posso trabalhar. Apenas acabamos de almoçar, e antes por vezes, co-
meça o telefone: são pessoas de várias nacionalidades, de todas as
classes e castas, que querem falar-me; e cada uma traz um desejo, um
pedido, de dinheiro, carta de recomendação, intercessão pessoal mi-
nha a favor das suas pretensões ou das suas necessidades... Quando
posso, enfim, sair, para passear, e respirar um pouco de ar fresco –
quase sempre ao anoitecer – sinto-me enervado e exausto. Ah! que
saudades de quando era um simples secretário! Então, sim, era um
homem livre. Agora, para ler com sossego – porque, em suma, há
também muito que ler – tenho de isolar-me nas tardes de domingo,
quando outros vão às corridas, às matinées, aos chás dançantes: preci-
samente como um operário! Considerando-se tudo isto, e, ainda, a
delicadeza dos meus olhos, deve-se reconhecer que não escrevo as-
sim tão pouco aos amigos. Entretanto, a você, meu caro Afonso, eu
escreveria com mais freqüência, se... Em Lausanne você me disse que
eu interrompera por dois anos as nossas relações intelectuais. A cau-
sa foi, como lhe expliquei, a crise séria de cansaço da vista, que sofri
em 1929. Mas as suas palavras me fizeram pensar. Eu gostaria mui-
to, muito, realmente, de escrever-lhe com certa regularidade. Por
uma porção de razões, como a de ser você quem é, filho de Afrânio,
sobrinho de Arinos, irmão de Caio, e ter no espírito afinidades com
o meu, que se me revelaram desde a sua estada em Roma, cabe-lhe o

256
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

título de meu amigo por excelência entre os escritores da nova gera-


ção brasileira, com as quais desejo estar em contato, sobre a base de
uma perfeita liberdade intelectual de parte a parte. Mas você me res-
ponderá – sobretudo quando se achar outra vez no Brasil? Não pre-
tendo, está claro, impor a norma ridícula: carta recebida, carta res-
pondida. Nada que signifique obrigação, constrangimento. Mas
cumpre que haja um certo interesse em “trocar idéias”.
Espero que você não tenha desistido do projeto de desenhar ou
pintar o meu retrato literário, e estimo que o não tenha feito ainda.
Prefiro que o deixe para um pouco mais tarde, porque je ne suis pas en-
core au bout de mon rouleau, e me creio capaz de surpreender ainda os
próprios que conhecem todos os meus escritos.
Por ora, continuo acorrentado ao poema virgiliano; mas não será
ele uma dessas cousas surpreendentes? Certo, como já lhe disse, não
o teria começado se lhe houvesse previsto a extensão e as dificulda-
des técnicas. No momento atual, porém, devo afirmá-lo, sentiria que
ele não figurasse entre os meus escritos; não é um bom sinal? Não
posso negar que fico contente quando consigo dar uma solução ge-
nuinamente artística a algum dos muitos problemas de “expressão”,
que se me apresentam, transformando em poesia, parece-me autênti-
ca, incontestável, cousas originariamente provindas das categorias
da lógica e da experiência. O preço dessas conquistas é, naturalmen-
te, uma integral absorção do meu espírito pelo assunto. Nada mais
posso escrever, nem pensar, há muito tempo.
Li com atenção e calma os seus três poemas. Gosto de todos. Em
“Bella-Lui” me agrada mais a segunda parte que a primeira; nesta
(para o meu sentir), há alguns traços demasiado crus, mesmo levan-
do-se em conta a peculiar estética modernista. Por exemplos, as co-
res dos doentes, “brancos, pretos, dourados, verdes,” e o boletim clí-
nico da “inglesinha cor-de-rosa”, com a suposta apendicite e o cons-
tatado pneumotórax bilateral. Mas é muito bela a nota:

257
A fo nso A ri no s, fil h o

Eles vêm todos, e ficam deitados,


olhando o céu com uma persistência lírica.

E acho excelente o epílogo, a começar do verso:

Quando as lâmpadas estiverem todas acesas...

A minha preferência vai, entretanto, ao “Vento dos Alpes” – tal-


vez pela razão mesma que o torna indeciso sobre o real valor desse
poema: por ser um poema completo, orgânico – uma sinfonia ou
uma arquitetura em versos.
Tenho uma boa notícia para dar-lhe: Guilherme Ferrero está na
Suíça, reside em Genebra, de cuja universidade foi nomeado profes-
sor. Está desenvolvendo um curso de história do século XIX, curso
que deve ser interessante e brilhante, a julgar pelo que ele escreveu há
poucos dias. Você me disse em Lausanne a sua admiração por esse
homem eminente, de uma honestidade intelectual não comum na
nossa época, e que me honra com a sua amizade há vinte e cinco
anos. Você me falou do seu desejo de possuir qualquer lembrança
dele. Eu vou escrever-lhe, a ele, brevemente, e na minha carta me re-
ferirei à alta estima que você lhe vota. E a você enviarei outra carta,
de apresentação, com a qual poderá procurar quando quiser o gran-
de escritor, que o receberá, estou certo, com carinho. Não lha envio
já porque não é urgente, e não vale a pena demorar mais estas folhas.
A Deus por hoje. Escreva-me. Como vai Armínio? Aceite com
Dona Ana os nossos afetuosos recados. Um bom abraço do seu mui-
to dedicado
Azeredo.

Não recebi de volta a Revista da Academia. E você nunca me disse se


gostou do livro de Giuseppe Alpi.

258
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Via Po, 32. Roma.


13 de janeiro de 1932.

Na minha carta datada de ontem, esqueceu-me pedir-lhe o ende-


reço de seu primo Rodrigo de Andrade. Diga-mo, sim? Obrigado.
Afetuosamente, Azeredo.

Via Po, 32. Roma.


30 de janeiro de 1932.

Meu querido Afonso, desejamos e esperamos que já esteja com-


pletamente restabelecido em saúde. Não pude escrever-lhe antes,
porque, em conseqüência do trabalho excessivo de vários dias, nos
quais tive de escrever quase continuamente, me vieram uma grande
fadiga e uma irritação dolorosa dos olhos, obrigando-me a um re-
pouso imediato. Agora estou melhor, mas bem de todo ainda não.
Pelo boletim meteorológico que leio pontualmente na Gazette de Lau-
sanne, vejo que deve ter aí muito frio, e uma bela neve.
Diga a sua prima Dona Vera que em Florença há diversas livrari-
as, porém a mais importante e recomendável é a livraria internacio-
nal Issler, na Via Tornabuoni, 20.
Com que cerimônia me escreveu sua Excelentíssima Senhora!
Apresente-lhe os meus mais respeitosos cumprimentos, com sauda-
ções afetuosas de Maria Luísa.
Saudoso abraço do sempre seu
Azeredo.

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A fo nso A ri no s, fil h o

Via Po, 32. Roma. 16 de fevereiro de 1932. Não tive mais notí-
cias suas, mas desejo e espero que já esteja completamente curado.
Vejo que aí o frio tem aumentado ainda, e que há neve por toda a
Suíça. Aqui caiu pouquinha uma noite, mas derreteu-se logo. O in-
verno em Roma foi de maravilhosa beleza até poucos dias atrás; ago-
ra começam as chuvas; aliás é a temporada delas e provavelmente a
primavera será linda. Afetuosos recados nossos para todos aí. E um
abraço do sempre seu
Azeredo.

Roma, 20 de março de 1932.


Via Po, 32.

Meu caro Afonso,


O meu silêncio tem sido agora mais prolongado que de costume,
ainda que muitas vezes, neste período, desejei e projetei escrever-lhe.
Ai! eu não disponho, não, dos “lazeres” que você imaginava. Para es-
crever com certa calma aos amigos o melhor é... estar doente; estar
doente sem gravidade, como me acontece nestes dias, em que um
forte resfriamento, aliás sem febre nem perda de apetite, me prende
em casa, e cá em cima. Resfriamento paradoxal; durante o longo e ri-
goroso inverno, andando por fora cada tarde até a hora do jantar,
nunca tive o menor achaque desse gênero; e com a volta do calor pri-
maveril, eis-me a espirrar e tossir desesperadamente. Aproveito os
intervalos para dar um bom empurrão ao meu trabalho e à minha
correspondência.
Aqui lhe restituo os seus dois poemas. Gosto muito de “Janela
aberta”; é um dos melhores que conheço entre os seus, um dos me-
lhores certamente entre os do grupo jovem a que você pertence. Tem

260
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

o ímpeto de uma onda de fundo; um sentimento pessoal e universal


que se comunica irresistivelmente ao leitor. Acho, apenas, que deve
suprimir a palavra chômage! Pois destoa do conjunto, e causa uma sen-
sação desagradável. Gosto menos do outro poema, “A visita e o mi-
lagre”. Nele, creio, você não atingiu a “expressão poética”, necessá-
ria a toda obra de poesia, indispensável sobretudo aos poemas sim-
plesmente rítmicos. Este seu me parece “prosaico” na sua seca minu-
ciosidade de crônica. Deve ser repensado e reelaborado.
Aqui lhe mando um, meu, que, como fenômeno literário, é positi-
vamente singular. Entre duas páginas da “Mensagem a Virgílio”
(obra tão diferente, tão distante!), num momento de pausa e concen-
tração interior, sem que nada o prenunciasse, me brotou da ponta do
lápis, não sei como. Donde surgiu? de que camadas obscuras do in-
consciente? Não só estava longe de mim, mil léguas, o intento pre-
meditado de escrever cousa dessa espécie (eu desde que existo como
poeta, nunca escrevi nada que não fosse imperiosamente ditado, or-
denado, pelo gênio interior, pelo daimon), mas o fato não se pode ex-
plicar por um obliterado fato autobiográfico, que tivesse emergido
de repente à tona da memória e da sensibilidade; pois nunca me en-
contrei na adolescência em caso semelhante ao do estudante desta
“Confissão”. Supérfluo é ajuntar que nunca publicarei nem permiti-
rei que outrem publique este poema: o seu tom demasiado livre não
se harmoniza com a minha idade nem com a fisionomia habitual da
minha poesia. Ele é uma planta esporádica e exótica, nascida por
mero capricho entre uma flora muito diversa. Envio-lho confiden-
cialmente, como curiosidade, rogando-lhe que mo devolva quando
o houver lido à vontade. Mas caso tenha a ocasião de o mostrar aí a
algum amigo, não lhe permita, seja quem for, que o copie, ou o leve
com o pretexto de estudá-lo. E diga-me o que pensa dele. O meu
amigo Gurgel do Amaral, conselheiro desta Embaixada, homem in-
teligente e de fina cultura, achou-lhe muita espontaneidade, muita

261
A fo nso A ri no s, fil h o

frescura de inspiração e linguagem, definiu-o produção de poeta


moço e muito moço – o que me lisonjeou deliciosamente, confesso.
Você, meu caro Afonso, como tantos outros, acusa recebidas as
cartas que recebe, e conversa por escrito; mas raramente responde –
o que se chama responder. Caio é tal qual; ou antes muito pior. Em
Lausanne, você mostrou um desejo extraordinário de entrar em rela-
ção com Guglielmo Ferrero; agora que ele está em Genebra, a pou-
cos quilômetros de Montana, pergunto se quer uma carta de apre-
sentação para ele, e você nada me diz. Assim também, nunca pude
conseguir que me dissesse a sua impressão sobre o livro de Giuseppe
Alpi. Entretanto, na imprensa italiana, alguns bons artigos têm apa-
recido a respeito do Profilo, e outros, nestes dias, vêm chegando, de
jornais brasileiros.
A Deus por hoje. Mande-me o que for escrevendo. Aceite com
sua Senhora os nossos cordiais recados. Para você um saudoso abra-
ço do seu muito dedicado
Azeredo.

Boas Páscoas! Vai junto um elegante e excelente “ensaio” que lhe


envia Deoclecinho de Campos. Responda-me breve!

Via Po, 32. Roma. 17 de abril de 1932.

Meu caro Afonso, até hoje não pude responder à sua carta. Você
já deve saber as razões, que são as mesmas de sempre.
Não me admira o que me diz sobre a “invadência” e a crescente
preponderância dos alemães no cantão Ticino. Na Engadina, que
lhe fica próxima, sucede a mesma cousa. Em Tarasp, aonde fomos
vilegiar três anos seguidos, eles se estão apoderando de tudo; na al-

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M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

deia de Schuls, que é a principal da zona, o comércio quase inteiro


lhes pertence; o capelão da igrejinha católica é um capuchinho ale-
mão, e cada par de domingos a prédica ao Evangelho se faz na língua
de Lutero. Os hotéis, as ruas, as florestas, as fontes termais formiga-
vam, e devem formigar ainda, de tipos idênticos aos que você descre-
ve; concorrentes inúmeros a prêmios de rubra, suante e enxundiosa
fealdade masculina, e, sobretudo, feminina (se femininas se pode
chamar àquelas truculentas viragos). Era de se fecharem à força os
olhos para não os ver!
Não preciso dizer (você me conhece bem) que gostei da franque-
za com que me falou da “Confissão de estudante”. E assim me deve
falar sempre. Pode ser que você tenha razão. Mas não poderá ter ha-
vido, no caso, a “volta de um estado de alma”? Você ainda é moço
demais para ter experimentado alguma vez tal fenômeno; quando ti-
ver transposto o cabo dos quarenta anos, porventura o sentirá; pois
no seu temperamento poético existe certamente a nota nostálgica, a
nota da saudade, que, embrionária por ora, aguarda, para manifes-
tar-se, a possibilidade de uma perspectiva suficiente de tempo.
Como quer que seja – e levando em conta a esperança, que não
despeço, de que você um dia realize a idéia antiga de estudar a fundo
a minha obra – desejo preveni-lo contra a lenda que sobre mim se
formou, e é repetida com freqüência. Eu não sou um poeta helênico,
ou romano. Sou um poeta brasileiro, moderno; e um cidadão do
mundo. Residindo na Itália, tendo estado na Grécia, era natural que
as afinidades do meu espírito com estes centros da antiga cultura
mediterrânea se manifestassem com particular intensidade em uma
fase da minha vida intelectual; porém essa fase encerrou-se há muito;
e mesmo nela, eu nunca deixei de ser um poeta transatlântico. Várias
cousas foram escritas sobre as Odes e elegias, que constituem o docu-
mento mais característico daquela influência; mas ninguém disse no
Brasil o que havia de mais importante a dizer, isto é, que só um es-

263
A fo nso A ri no s, fil h o

trangeiro, e filho da América latina, podia ter sentido e feito esse li-
vro. Disse-o, aqui, um excelente crítico e erudito, Julio Marchet-
ti-Ferrarte, que conhece muito bem a nossa língua, e a nossa literatu-
ra. – L’averla scelta a seconda patria, rese profonda l’influenza dell’Italia su questo
“latino d’oltremare”; tuttavia non alterò in lui le fonti native del sentimento. Sol-
tanto un brasiliano avrebbe potuto scrive le liriche che l’Azeredo raccolse nel volume
Odes e elegias, e il vibrante poema “Italia”.1 – É, aliás, natural que se
compreenda isso, aqui, melhor que lá.
Mesmo durante aquele período, escrevi poemas, contos, ensaios,
alheios a toda influência italiana; assim, por exemplo, o “Romance
lírico” em Vida e sonho, e quase todo este volume. Nos meus livros
mais recentes, ela quase não aparece, salvo em paisagens, ou ainda,
assuntos fortuitos, devidos ao fato de morar aqui; seriam brasileiros,
se morasse no Brasil, ou franceses, se morasse na França. Pois se deve
considerar que na minha produção literária, o estímulo inicial, pelo
menos, deriva sempre da realidade, de impressões pessoais, diretas,
que em seguida, é claro, a imaginação transforma a seu talante. Eu
creio que, romântico pela sensibilidade como bom brasileiro, tenho
tendências clássicas naturais, que a esta sensibilidade impõem uma
disciplina artística. Há fatos semelhantes na nossa terra: o de Rai-
mundo Correia, por exemplo, e o do próprio Bilac, embora neste a
torrencial exuberância do temperamento dificultasse a “combinação
química”. Eu tive sobre eles duas vantagens: fugi desde o princípio
ao estreito jugo parnasiano, e conheci diretamente a Itália e a Grécia;
assim o que neles é de segunda mão, é reflexo mais ou menos livres-
co, em mim é fruto de experiência imediata, vivida por mim numa
atmosfera genuína, autêntica.
Mas basta de cousas que me concernem; e peço até perdão desta
prolixidade indiscreta, que somente se explica e se escusa pela certe-
1
Illustrazione za, que tenho, do seu interesse pelo meu espírito.
italiana – 8 Falemos de você. Acho uma imprudência a sua partida para o Rio
Dicembre 1929.
agora. Penso que você precisa de consolidar a cura na Suíça por al-

264
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

gum tempo ainda. Entendo e louvo os escrúpulos de seu Pai, mas


não posso duvidar de que ele se renderá à necessidade de abonar-lhe
o necessário para viver aí. Como filho, você pode expor-lhe o caso
com toda a liberdade.
A Deus por hoje. Vai uma carta para Ferrero. Mande uma pa-
lavra a Deoclecinho. Saudades nossas, e um abraço do seu amigo
Azeredo.

Park Hotel. Gstaad.


12 de setembro de 1932.

Meu caro Afonso, advertido pelo nosso amável cônsul Schwob


de que você me telefonaria na sexta-feira passada, esperei chamado
seu nesse dia e nos dois seguintes, mas nada veio. Eu não telefonei
porque você e sua Senhora são hóspedes de casa amiga, e não temos,
minha Mulher e eu, o direito de disputar-lhe o prazer da sua compa-
nhia. O nosso seria grande, como lhe mandei dizer, se viesse almoçar
e passar uma tarde conosco em Gstaad, lindo sítio que talvez não co-
nhecessem, e que lhe agradaria certamente muito; mas seria, compre-
endemos bem, esforço um tanto pesado, pois de Coppet até cá me-
deia não pequena distância.
Por outro lado, como lhe expliquei na minha carta ao cônsul, nós
estamos aqui fazendo uma cure d’air por insistente ordem médica.
Para cumpri-la à risca, deveríamos demorar-nos um mês na monta-
nha, antes de descermos para Lausanne; não podendo, por várias ra-
zões, ficar aqui tanto tempo, ao menos duas semanas é indispensável
que fiquemos. Assim, contamos partir a 16, e esperamos que vocês
estarão ainda em Coppet, donde com a maior facilidade poderão ir
ver-nos em Ouchy, no Savoy Hotel.

265
A fo nso A ri no s, fil h o

En attendant, escreva-me para aqui cinco ou seis linhas, informan-


do-nos dos seus projetos. E aceitem ambos as nossas afetuosas lem-
branças. Um abraço do seu muito dedicado,
Azeredo.

Queira recordar-nos com amizade ao Ministro e à Senhora.

Via Po, 32. Roma. 17 de agosto de 1934.

Meu caro Afonsinho, a sua carta me deu grande prazer, e, se tar-


dei um pouco a responder, foi porque desejaria enviar-lhe um pri-
meiro artigo de colaboração para a sua Folha de Minas. Infelizmente
isso é impossível por agora; o seu pedido chegou precisamente quan-
do, dissipada toda esperança (que em mim nunca fora forte) da mi-
nha permanência aqui como embaixador junto à Santa Sé, começava
para nós o caos formidável, assustador da mudança de casa. Se você
guarda ainda nítida lembrança da nossa residência, pode imaginar o
que isso tem sido. Depois de vistas e rejeitadas inúmeras, encontra-
mos por fim uma casa que a todos os respeitos nos convém, mas ela
só estará livre a 1o de dezembro, e até então tudo o que nos pertence
ficará praticamente fora de uso. Todos os meus “instrumentos de
trabalho” se acham provisoriamente seqüestrados, e, encadeado eu
numa labuta material enorme, não tenho tempo de escrever cousa al-
guma. Esta mudança de posição e de vida estragou por longo perío-
do toda a minha atividade intelectual. Não quero qualificar nem
comentar o ato do presidente Getúlio Vargas contra mim; outros,
muitos, em cartas, e até em artigos de jornais, o têm já feito com im-
parcialidade, que, pelo menos na aparência, me faltaria. Ainda bem
que ele não me deu por sucessor Gilberto Amado; se já era aberração

266
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

deste aspirar, com os seus notórios precedentes morais, à nossa em-


baixada no Vaticano, aberração muito mais grave fora, do lado do
governo brasileiro, propô-lo à Santa Sé; quanto a nomeá-lo, não te-
ria podido, porque, sei com absoluta certeza, o agrément lhe teria sido
inflexivelmente recusado.
Quanto às candidaturas acadêmicas, com verdadeiro entusiasmo
votarei por Tristão de Ataíde, e já lhe escrevi, a ele, neste sentido.
Desejaria atender ao seu pedido em favor de José Maria Belo; mas já
estou comprometido, há muito, com um dos candidatos à mesma
vaga, Osvaldo Orico.
Nós contamos partir para a Suíça antes do fim de agosto. De lá
lhe escreverei com mais vagar. Minha Mãe fica em Roma, porque na
sua idade, a longa viagem a fatigaria.
Recomende-nos a sua Senhora, e receba um abraço afetuoso do
seu muito dedicado
Azeredo.

Via dia villa Emiliani, 9. Parioli. Roma.


3 de dezembro de 1936.

Meu caro Afonsinho, a sua carta sentida e afetuosa, comoveu mui-


to o meu coração traspassado de dor. Você conheceu a minha santa
Mãe, e, como me relembra agora, teve ensejo de experimentar-lhe a
natural, espontânea bondade, que em redor dela se expandia contí-
nua, como água de fonte inexaurível. Esta bondade, feita heróica
pelo amor materno, eu a tive perto de mim, posso dizer, toda a mi-
nha vida, com poucos, e quase todos breves, intervalos. Tive o abra-
ço e o beijo da minha adorada Mãe cada manhã e cada noite; tive a
cada momento o exemplo das suas virtudes, e a influência salutar da

267
A fo nso A ri no s, fil h o

sua nobre inteligência. Ela foi a criadora do meu espírito e do meu


coração. Pense agora se poderei consolar-me nunca de havê-la perdi-
do. Nem só eu; pelas suas qualidades raras, como por ter morado
sempre conosco, ela se tornara o centro moral da nossa restrita famí-
lia; e hoje estamos desamparados, e como deixados, numa tristeza
infinita. Agradecemos-lhe as suas piedosas palavras. Creia sempre na
minha fiel amizade.
Azeredo.

Via dia villa Emiliani, 9. Parioli.


Roma. 10 de outubro de 1944.

Meu querido Afonsinho,

O seu simpático amigo Barreto Leite trouxe-me notícias suas, e


falou-me da fidelidade, que me comove, do seu afeto por mim. Eu
desejaria agora enviar-lhe uma carta muito comprida, mas muito, re-
lativa à sua antiga promessa, que não esqueço, de estudar com séria
crítica os meus escritos num livro; não renunciei nem renuncio à rea-
lização desse generoso e precioso projeto, espontaneamente nascido
no seu espírito. A minha não escassa, antes volumosa, obra necessita
mais que outras de um comentário como você é capaz de fazê-lo,
para atrair sobre ela a atenção presente e futura dos que aí se interes-
sam pelas cousas do pensamento e da arte; ela, além disso, o merece
(deixe-me falar sem hipocrisia de modéstia), porque, feliz ou não
nos resultados, revela uma personalidade à parte pela sua índole e
pela sua formação; revela acima de tudo uma alma. Si parva licet compo-
nere magnis (et sacris profana), eu direi que faço questão de ter em você o
meu evangelista; missão que decerto aceitará e desempenhará com

268
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

júbilo. Essa carta, porém, exige muito tempo, e uma farta documen-
tação; eu a escreverei logo que disponha de adequado lazer.
Por hoje aproveito a bondade do querido amigo embaixador
Acioli, que me deixa grandes saudades, para dizer-lhe as muitas
que de você tenho, e mandar-lhe um cordialíssimo abraço em espí-
rito, com a esperança de poder-lho renovar algum dia, em presença
real. A este abraço se associa Maria Luísa, e o estende a sua Senho-
ra, cujas mãos beijo.
Presumo que se preocuparam muitas vezes da nossa sorte, e em
verdade atravessamos um período terrível de apreensões e perigos,
que durou nove meses longos, longuíssimos e lentíssimos a passar. A
minha situação tornou-se extremamente precária, porque, se os ale-
mães me descobrissem e agarrassem, infalivelmente me teriam de-
portado para as suas inóspitas terras; ótimo refém era eu, brasileiro,
e embaixador ainda por cima. É de espantar que não me hajam pega-
do; as cautelas que tomei não me teriam salvado, sem uma visível e
sempre vigilante proteção divina. Não sofremos o mínimo desgosto,
o mínimo vexame. Nunca um boche nos falou, nunca tivemos de falar
a um boche. Agora lutamos ainda com penosas dificuldades materiais,
mas podemos respirar livremente. E – benefício supremo – graças ao
admirável zelo apostólico, ao indefesso labor persuasivo, e ao uni-
versal prestígio de Pio XII, Roma está materialmente intacta.
O carinho da família, a afetuosa assistência de alguns fiéis amigos,
o estudo, o trabalho, ajudaram-me a atravessar o período nefasto
sem sucumbir ao desalento e à tristeza. Escrevi, vou escrevendo,
muitas cousas, em parte novas, em parte começadas e interrompidas
há anos; tenho meia dúzia de volumes para publicar, além das mi-
nhas memórias já adiantadas, e da edição completa dos meus versos.
Mais um abraço do sempre e muito seu, como de seu inolvidável Pai
fui por quase meio século,
Azeredo.

269
Afonso Arinos de Melo Franco
no Palácio Itamaraty, Rio de
Janeiro, frente ao busto do Pai,
Afrânio de Melo Franco.
Lembrança do
Amigo Ausente

Afonso Ari nos de Melo F ranco

G raças à gentileza do embaixador Acióli chegou-me às mãos,


há algumas semanas, a primeira carta que desde vários anos
recebo de um amigo, em cujo destino muitas vezes cogitei no perío-
do da ocupação alemã de Roma: Carlos Magalhães de Azeredo.
Abri-la foi para mim como destampar um desses pequenos cofres
tão usados pelos nossos avós, caixinhas íntimas de madeira preciosa,
de cujos escaninhos irrompe, com a sua tremenda força, o passado.
Naturalmente que me interessou imenso o que o ilustre escritor
conta de atual, sobre a sua vida e sobre Roma. Interessou-me tanto
que suponho interesse também ao leitor, para quem transcrevo os
seguintes trechos: “Presumo que se preocuparam muitas vezes de
nossa sorte, e em verdade atravessamos um período terrível de apre-
ensões e perigos, que durou nove meses longos, longuíssimos e len-
tíssimos a passar. A minha situação tornou-se extremamente precá-
ria porque, se os alemães me descobrissem, infalivelmente me teriam
deportado para as suas inóspitas terras, ótimo refém que eu era, bra-

271
A fo nso A ri no s, fil h o

sileiro e embaixador ainda por cima. É de se espantar que não me ha-


jam pegado; as cautelas que tomei não me teriam salvado sem uma
visível e sempre vigilante proteção divina. Não sofremos o mínimo
desgosto, o mínimo vexame. Nunca um ‘boche’ nos falou, nunca ti-
vemos de falar a um ‘boche’. Agora lutamos ainda com penosas difi-
culdades materiais, mas podemos respirar livremente.”
Depois destas informações sobre si e a esposa, Azeredo não se es-
quece de juntar um parágrafo importantíssimo para todos nós, e que
diz respeito à sua amada Roma, nossa mãe comum. Diz ele:
“E – benefício supremo – graças ao admirável zelo apostólico, ao
indefesso labor persuasivo e ao admirável prestígio de Pio XII,
Roma está materialmente intacta.”
Eis aí, na verdade, e dada por um profundo conhecedor da Cida-
de Eterna, uma alvissareira notícia. Quer dizer que, além dos danos
causados pelo famoso bombardeio aliado sobre os pátios ferroviá-
rios romanos, durante o qual foi atingida uma preciosa igreja, Roma
conservou-se “materialmente intacta”.
Se a ação do papa foi tão decisiva para este resultado, como faz
crer Azeredo – e tudo indica que ele, observador qualificado por
todos os títulos, esteja exprimindo a realidade dos fatos –, então os
homens que tenham uma réstia de amor pelo que há de mais im-
portante na nossa cultura ocidental, sejam católicos fervorosos
como Azeredo, ou não sejam, devem agradecer profundamente ao
pastor da Igreja Romana o serviço inapreciável que pôde prestar à
civilização.
O antigo provérbio, que todos ouvíamos em criança, geralmente
empregado para aplacar os açodamentos da mocidade, advertia que
“Roma não se fez num dia”. Infelizmente, a nossa trágica época de-
monstrou que, se Roma não pode ser construída num dia, pode ser
perfeitamente destruída no decorrer deste exíguo relâmpago do
tempo. E isto é o que caracteriza o ameaçador desequilíbrio do nos-

272
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

so tempo, em que a técnica, filha da cultura, passou a ser empregada


para a destruição de quem a gerou.
Entretanto, e sem pecar por excesso de otimismo (o que seria,
aliás, nos dias de hoje, mais ingenuidade do que pecado), acredito
que a salvação de Roma foi uma prova de que muito de bom ainda
resta no coração dos homens. Evidentemente os apelos do papa de
nada valeriam se não encontrassem eco favorável nos chefes milita-
res das duas facções. A prova disto é que de nada valeram as duas rei-
teradas súplicas em favor da paz.
O que influiu no tácito acordo daqueles em cujas mãos esteve du-
rante semanas a conservação ou a destruição da Cidade Eterna foi,
talvez, a consideração da totalidade do significado histórico e huma-
no dela. Os monumentos admiráveis destruídos em outros pontos
que não Roma representavam aspetos limitados, aspetos nacionais
daquilo que já foi indicado como sendo a cultura ocidental: filosofia
grega, direito romano, moral cristã; ao passo que, com Roma, desa-
pareceria a síntese universal de tudo isto.
Enquanto na Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica, Rússia e ou-
tros países, assistimos ao arrasamento, pela guerra, de símbolos par-
ciais da nossa cultura, em Roma assistiríamos, se se desse, à destrui-
ção do núcleo central, e por isto mesmo geral dela; ao centro greco-
latino-cristão da História. Todo o mundo perderia um pouco do
que é seu com a perda de Roma, perderia a única encruzilhada de ca-
minhos onde Goethe se pode encontrar com Tolstói, com Byron ou
com Anatole France.
Será esta verdade indiscutível que terá levado os generais alemães
a respeitar os templos, os palácios, os aquedutos e fontes da cidade,
tanto quanto os jovens aviadores de Tio Sam e de John Bull? A mi-
nha teimosa crença no espírito humano está a me segredar que sim.
Em todo caso Roma está salva, e pelos séculos afora outros hu-
mildes, obscuros rapazes vindos dos confins do mundo cristão po-

273
A fo nso A ri no s, fil h o

derão fazer o que eu mesmo fiz, e que marcou para sempre a minha
vida, imprimindo um selo indelével à minha formação mental: ver
Roma, viver em Roma no desabrochar da mocidade. Vislumbrei en-
tão a eternidade (pelo menos no sentido humano desta palavra), do
complexo greco-latino-cristão. E me habituei a crer na sua capacida-
de para resolver todos os problemas que a História coloque diante
da nossa ação.
Foi nessa época do meu primeiro e deslumbrado contato com
Roma (vão fazer em breve vinte anos) que conheci mais de perto
Carlos Magalhães de Azeredo. Com ele convivi durante quase dois
meses vendo-o todos os dias, e ele foi o meu guia experiente, incan-
sável e entusiasta daquele meio que conhecia como um familiar de
muitos lustros, que tinha conservado a curiosidade sempre presente
de quem nele penetrasse pela primeira vez. Possuo ainda, à vista da
minha mesa de trabalho, o retrato que Azeredo me ofereceu. Está ao
lado de um de meu pai, de quem ele foi amigo durante meio século.
É uma fina água-forte, na qual o perfil do poeta, firmemente corta-
do, aparece em primeiro plano sobre os contornos distantes e vagos
da velha Roma, a quem ele tanto deve e tanto quer. E a dedicatória,
depois de evocar “a nossa bela convivência em Roma” traz a data:
primavera de 1925. Eu ainda não tinha atingido os vinte anos e Aze-
redo já havia transposto os cinqüenta. Mas conservava esta esponta-
neidade emotiva, esta claridade matinal da imaginação, esta pronti-
dão em atender aos reclamos da alegria, do sofrimento ou da ternura
que fazem com que o tempo não se transforme em idade biológica,
mas em experiência e enriquecimento da razão e da alma. Por isto
homens como Azeredo, Afonso Pena Júnior, Manuel Bandeira,
Otávio Tarqüínio de Sousa, ou como meu pai, podem ser facilmente
amigos dos filhos ou daqueles que poderiam ser seus filhos.
Percorri com Azeredo, na mais cordial camaradagem, os palácios
sacros e profanos, as ruas buliçosas e comoventes, onde a majestade

274
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

do passado se humaniza pela cor do céu, o sorriso das citadinas, a


beleza das flores e a fuga das águas, nessa cidade de fontes que é
Roma. Comemos nas “osterias” acolhedoras, onde as glicínias se de-
bruçam indiferentes sobre carramanchões, tal como fazem nos mu-
ros vetustos da fúnebre casa dos trapistas. Freqüentemente em com-
panhia deste outro caro amigo que é Francesco Bianco, visitávamos
os museus, sem itinerário nem programa, parando aqui junto a uma
tela, ali junto a uma estátua, mais além apenas diante de uma janela
aberta sobre a maravilha da paisagem, e ouvindo sempre o comentá-
rio agudo, a informação precisa, a sugestão atilada daquele brasileiro
romano, a quem Emílio de Meneses dizia que seria de toda justiça
que o Vaticano conferisse o chapéu cardinalício.
A iniciação romana, o culto da razão latina, que é em mim mais que
um culto, pois se trata de uma conformação, de uma maneira de ser, en-
trou-me assim na inteligência no momento em que esta se forma, pela
ação de um mestre vivo e presente, muito mais do que pela apreensão
sempre obscura e fastidiosa de textos mais ou menos indigeríveis.
Há espíritos que custam a encontrar a sua linha coerente de de-
senvolvimento, porque se debatem perdidos no choque das solicita-
ções contraditórias. Há outros – e muitos grandes – que jamais en-
contram esta linha, e flutuam toda a vida. Presa da tragédia da insa-
tisfação e da dúvida contínuas, que não passam, afinal, de expressões
aparentes de um processo profundo de desencontro de si mesmo.
Mas existe um grande prazer em constatar-se que a estabilização
do pensamento estético, filosófico e político da idade adulta coinci-
de, nas suas linhas principais, com os primeiros ensaios deste mesmo
pensamento na mocidade. Isto não significa nenhum regresso; ape-
nas um progresso mais firme, porque baseado em dados mais fortes,
porque mais pessoais e mais profundos.
A amizade de Azeredo, e a nossa convivência romana auxilia-
ram-me muito na fase em que precisei definir-me a mim próprio. E

275
A fo nso A ri no s, fil h o

hoje que a minha formação latina se acusa e se amplia diante de mim


mesmo por outros motivos e por outras experiências – formação
que me situa entre os que crêem na liberdade do homem e do espíri-
to, no predomínio do Direito sobre o Estado e o Governo e na re-
pulsão do Governo sobre o Estado e deste sobre o Direito; que me
situa entre os que participam da consideração otimista do homem e,
portanto, da crença na justiça social realizada pela democracia; que
me coloca finalmente entre os que amam a sobriedade, o estilo e a
limpidez da beleza latina –, eu lembro com afeição comovida o mes-
tre amigo com quem me entretinha há vinte anos sobre todos estes
temas.
Agora, para remate, uma sugestão! Azeredo informa na sua carta
que tem muitos trabalhos em andamento, inclusive capítulos de me-
mórias recentes e antigas. Sugiro a Assis Chateaubriand que reco-
mende a Barreto Leite a obtenção de cópias desses manuscritos, que
devem ser de grande interesse, para que, através deles e das colunas
dos Diários Associados, o velho escritor brasileiro, amigo de Ma-
chado e de Nabuco, volte a aparecer na imprensa do seu país, que
talvez o tenha esquecido, mas que ele não esquece nunca.

Via dia villa Emiliani 9, Parioli.


Roma. 26 de fevereiro de 1945.

Meu querido Afonso,

Você já terá, espero, desculpado a minha demora em agrade-


cer-lhe a comovente e admirável “Lembrança do amigo ausente”,
atribuindo-a a razões independentes da minha vontade. E razões
houve duas, sendo a primeira o atraso com que li o próprio artigo,

276
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

que me enviou, não sei se por sua incumbência, Maurício Nabuco; a


segunda foi um rude e obstinado resfriamento, que me teve preso
por mais de um mês, e impedido de escrever-lhe com o desenvolvi-
mento devido e desejado.
Não preciso de encarecer-lhe a comoção e a saudade, com que li
aquela sua formosa página. Não sei que destino terá nas letras brasi-
leiras a minha obra, se a salvará das ondas tórpidas do Letes, que tan-
tas cousas de contínuo tragam, a simpatia sucessivamente renovada
de alguns espíritos amigos, ou se naufragará para sempre nelas. A al-
ternativa, como outras do mesmo gênero, oscila entre muitos fatores
imprevisíveis. Mas desde já a consolante certeza de ter exercido essa
influência benéfica sobre inteligências e corações jovens, da qual
você com tanto afeto se apresenta como um exemplo, bastaria para
indenizar-me de um futuro esquecimento, e convencer-me de não
ter vivido em vão.
Vai-se verificando em mim a lei das compensações – le juste (?) re-
tour des choses d’ici bas; por muito mais tempo que a generalidade dos
homens conservei um aspeto físico singularmente moço; este se dis-
sipou com rápido processo, que começou quando tive a desventura
de perder a minha adorada Mãe, e se apressou ainda pela ação de ou-
tros sofrimentos pessoais e universais; hoje sou e pareço um velho.
Mas há tal casa de bela fachada que mascara a ruína interior; tal ou-
tra mostra um frontispício estragado e decadente, mas por dentro é
ainda confortável e hospitaleira. A esta creio que me assemelho. Ain-
da possuo, Deus seja louvado, o dom de compreender e atrair os
moços; mesmo aqui, onde de mim, pela impossibilidade de me le-
rem, se conhece pouco, alguns me rendem esse espontâneo e lisonjei-
ro testemunho. A tristeza que engendra o mistério moral do mundo,
objeto, há tantos anos, das minhas meditações tão perseverantes
quanto inconcludentes, o duplo espetáculo desorientante da nature-
za indiferente às nossas vicissitudes propícias ou nefastas, e da His-

277
A fo nso A ri no s, fil h o

tória, que, após milênios de esplendores e misérias, está fornecendo


nos seus recentes avatares argumentos esmagadores à negação do
mito do progresso, não destroem o meu interesse pela vida, a minha
fé no valor do trabalho honesto, e do sacrifício pelos grandes ideais
da humanidade; trabalho e sacrifício inúteis praticamente, talvez,
mas belos de uma beleza divina, e brasões de nobreza da nossa resis-
tência à brutalidade cega e surda do destino universal. Assim, o meu
carinho é grande por aqueles dos jovens de hoje, que, em condições
tão duras, tão hostis à primazia do Espírito, tomam corajosamente
das mãos dos velhos os fachos luminosos, e mesmo contra toda es-
perança, timbram em esposar um renascimento da nossa civilização
profanada e maculada. Talvez, quem sabe? por obra deles e dos seus
sucessores, ela saia por fim redimida deste imenso banho de sangue,
desta apocalíptica tormenta de ferro e fogo; pois, se é certo que o
mundo nunca vira tantos e tamanhos crimes, indubitável é também
que nunca tão claramente se nos revelou a monstruosa falsidade dos
sofismas e das aberrações, pelos quais se deixaram alucinar até a lou-
cura os povos que estão pagando com os próprios sofrimentos a ido-
latria que lhes prestaram; e assim o ensejo é o mais favorável, é o me-
lhor e talvez o derradeiro, para um severo exame de consciência e
uma sincera conversão. Como você eu confio na eternidade do
“complexo greco-latino-cristão”, e na sua capacidade de resolver to-
dos os problemas humanos; acentuando aliás, como presumo que
você faz igualmente, o último membro do trinômio; pois foi na ver-
dade o cristianismo, concretizando em si mesmo a síntese dos três
elementos, o criador da nossa civilização. Que aceitemos ou não os
dogmas da Igreja Católica – opina com razão o eminente filósofo
Benedetto Croce, autoridade insuspeita na matéria – somos todos
substancialmente cristãos.
Quanto à parte preponderante que teve o Papa na salvação de
Roma, confirmo o que lhe disse. Quando se puder publicar a do-

278
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

cumentação completa das demoradas e árduas negociações havi-


das, se evidenciarão os admiráveis esforços de Pio XII para evitar,
tanto as incursões aéreas contra a Urbe, como os combates dentro
dos seus muros entre os dois exércitos inimigos; mas desde já existe
um testemunho oficial além de outros, na clássica medalha pontifí-
cia que se cunha cada ano com a efígie do papa reinante; a de 1944
traz a legenda: Defensor Civitatis. Onde cuido que você se engana é
em presumir que (como houve seguramente do lado da Inglaterra e
dos Estados Unidos) tenha havido qualquer sugestão de bondade,
qualquer impulso de reverência por esta mãe de todas as gentes,
qualquer sentimento em suma de nobre simpatia humana, na ade-
são dos chefes militares alemães, ou antes, de Hitler que então
exercia ainda a autoridade suprema, às súplicas de Pio XII para que
Roma não fosse agredida e devastada. O que essas feras, esses de-
mônios fizeram aqui, os horrores inenarráveis que perpetraram, e
que continuam a perpetrar nas províncias italianas que ainda do-
minam, provam à saciedade que nada de semelhante àqueles movi-
mentos de alma os persuadiu a não cometerem, e o abominável ti-
rano não ordenar que cometessem, o crime supremo diante do qual
o próprio Átila recuou. Eu tendo a conjeturar que no organismo
enfermo, anormal, de Hitler atuou a superstição, que é sabido ser
uma das suas numerosas taras. E de Roma, em certas conjunturas,
emana um influxo de sacro terror. Napoleão mesmo, que ousou ar-
rancar do seu trono o meigo e santo Pio VII, que ousou conferir ao
filho, fadado a tão mísero fim, o título de rei de Roma, nunca ou-
sou vir a Roma, que aliás devia atraí-lo como a sucessor, que se
proclamava, de Carlos Magno.
Enfim, o essencial é que Roma está, como eu lhe disse, “material-
mente intacta”. (Florença, cuja destruição não seria menos deplorá-
vel, sofreu muito menos do que se temia, quase só as implosões da
linda ponte de Santa Trinita, e a sedutora Veneza é de esperar que se

279
A fo nso A ri no s, fil h o

salvará, posto que os ministérios e outras repartições da grotesca re-


pública mussoliniana, que lá se haviam instalado, já se transferiram
para as vizinhanças da fronteira austríaca.) Aqui a vida, sem dúvida,
é ainda duríssima, porém com a animadora certeza de que “eles” não
voltarão, acompanhamos, através dos telegramas e das correspon-
dências dos jornais, os derradeiros atos da horrenda tragédia em que
a Alemanha está consumando o seu suicídio, ou pelo menos simpli-
ficando macabramente, pela própria inanição medular, o problema
militar e político da sua sobrevivência; imagino, de fato, que da guer-
ra ela sairá esgotada e meio caquética, pela liquidação dos seus me-
lhores e mais robustos elementos; o Führer tem acabado por chamar
as classes mais baixas, os rapazes de 16 e 15 anos, constrangendo a
labutar nas fábricas de munições e nas trincheiras até as crianças,
além, naturalmente, das mulheres e dos velhos. E as condições ali-
mentares desse povo acostumado a comer muito são de longa data
desastrosas.
Quando reflito que a nação germânica, forte, operosa, industrio-
sa, e uma das mais instruídas da terra, se deixou precipitar num tal
abismo de perversidade e de abjeção, entregando-se de corpo e alma
a um bando de aventureiros charlatães e vulgares, além de diabolica-
mente criminosos, a tentação do mais absoluto pessimismo históri-
co se apodera de mim quase irresistivelmente. De que serve então a
ciência? que vale a cultura? onde foi parar o “professor” teutônico, o
“professor” ideal, a quem Taine e Renan atribuíam a superioridade
da raça vencedora em 1866 e 1870? Já se viu, na outra guerra mundi-
al, o que valia moralmente esse Herr Professor, retratado em 93 exem-
plares (que representavam milhares e milhares de outros) no famoso
“manifesto dos intelectuais”; e agora estamos vendo, de modo ainda
mais edificante, o que ele era, o que ele é. Hitler, de resto, declarou
uma vez cinicamente que a “sua” Alemanha nada tinha de comum
com a de Goethe e Schiller.

280
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Agora, essa “sua” Alemanha, que atingiu a extrema etapa do per-


curso Frederico II – Bismarck – Guilherme II – Hitler, está nas vés-
peras da derrota integral, e da diuturna, aspérrima, necessária expia-
ção. Sim, necessária por motivos morais superiores, necessária para
satisfazer a justa nêmesis, e restabelecer a harmonia do cosmos. É
possível que existam, antes deve ser verdade que existem, no inferno
hitleriano, milhares, dezenas ou centenas de milhares de alemães e
alemães, que não só hoje reprovam, mas desde o princípio reprova-
ram, com veemência, com horror, as atrocidades e infâmias dos na-
zistas. Rari nantes in gurgite vasto, como quer que seja, e, ainda como
quer que seja, não é concebível que se pratique para com um povo
malvado e precito na sua quase totalidade a clemência com que Jeová
prometeu poupar a Sodoma o fogo do céu se entre os seus muros se
encontrasse meia dúzia de inocentes. Neste outro caso, no da Ale-
manha, é doloroso, mas inevitável, que sofram alguns inocentes pela
multidão inumerável dos culpados. Não se deve confundir com a
vingança vulgar a justa vindita, e de outra parte a piedade para com a
Alemanha seria crueldade e traição para com o resto do mundo, não
só no presente, mas ainda no futuro. Está exuberantemente provado
pela História que esse povo, quando fraco e dividido, é inclinado à
discórdia interna, mas servil perante o estrangeiro, e quando unido e
forte, é arrastado, alucinado irrefreavelmente pelo demônio da
agressão selvagem contra os vizinhos, e da ambição de dominar
quantas mais terras e gentes pode. Seria loucura, e loucura crimino-
sa, tolerarmos por falsa generosidade que ele vá premeditando e apa-
relhando sempre novas guerras até realizar o seu sonho satânico;
pois que ele se revela absolutamente incorrigível dentro das normas
da igualdade internacional, cumpre aplicar-lhe, por tempo indeter-
minado, um regime de exceção. Cumpre, antes de mais nada, des-
membrar o Reich, e em não menos de dez ou doze pedaços; o ideal se-
ria a volta à Alemanha do tratado de Vestfália... e quem sabe se, dis-

281
A fo nso A ri no s, fil h o

tribuídos entre cem ou duzentos minúsculos estados, esses tudescos


não seriam, ao cabo de um século, mais felizes do que têm sido de
1870 até hoje? Mas, de uma forma ou de outra, é mister torná-los
inofensivos.
Quanto à Itália, o seu caso é todo diferente, no seu trágico desti-
no. Este povo nunca foi belicoso, embora saiba ser valente quando
deve, e não desejou, nem provocou, mas foi constrangido a suportar
esta guerra, porque uma opressão de vinte anos o reduzira à impossi-
bilidade material de rebelar-se contra as imposições de Mussolini e
do fascismo; de longa data ele rompera, no fundo da própria alma,
toda solidariedade com o Duce, ao contrário dos alemães que susten-
taram e aclamaram Hitler com furioso entusiasmo em todos os seus
atentados contra os direitos e a vida de outras nações. A queda do
execrado regime foi saudada em toda a península com explosões de
júbilo delirante, e se fosse seguida pelo armistício que tardou mês e
meio, é provável que a sua libertação total teria sido muito mais rápi-
da e menos onerosa. Os aliados deviam conhecer perfeitamente o es-
tado de alma do povo italiano, mas não souberam tratá-lo com eqüi-
dade e larga compreensão; e faltaram às reiteradas promessas públi-
cas de tratá-lo como amigo desde que derrubasse o fascismo. A exi-
gência da capitulação incondicional foi um grave erro, e as cláusulas
do armistício foram tão draconianas, que até hoje os vencedores não
tiveram a coragem de divulgá-las. Os bombardeamentos de cidades
grandes e pequenas, com a quase destruição de algumas, foram ex-
cessivos, demasiado cruéis, e sem proporção com os resultados mili-
tares visados. Assim, a pobre Itália foi ainda uma vez, como tantas
outras na sua gloriosa e tormentosa história, campo de batalha para
exércitos rivais, e aliados e alemães são responsáveis pelos seus enor-
mes sofrimentos; mas o maior e o pior responsável é Mussolini, que,
com a sua política imoral e insana, de nacionalismo megalomaníaco
e imperialismo brigantesco, a precipitou no abismo em que ela se con-

282
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

torce. Quem, sobretudo, amando-a como nós, a viu antes da primei-


ra guerra mundial, ou, como você, poucos anos depois, quem conhe-
ceu o paraíso que ela foi, e as possibilidades de grandeza pacífica e
justa que se lhe ofereciam; a grande prosperidade interna e de presti-
giosa influência continental que já atingira, é verdadeira dor de cora-
ção contemplá-la prostrada, malferida, coberta de farrapos sangren-
tos, como jaz agora. Cair de tão alto, neste báratro medonho! Agri-
cultura, indústria, comércio, marinha, estradas de ferro e de roda-
gem, tudo ou quase tudo devastado, pulverizado, aniquilado. A re-
serva áurea, ou dilapidada cinicamente pelos fascistas, ou roubada, a
pouca restante, pelos alemães; roubados pelos alemães, valores
imensos de toda espécie, tudo o que eles, conivente e cúmplice Mus-
solini, têm podido arrebatar e carregar para o seu país maldito. Um
déficit pavoroso, de mil bilhões ou mais, uma inflação de dar verti-
gens, uma subida fantástica, alucinante, do custo da vida, e a mísera
lira de tal maneira por terra, que eu não sei como se alcançará sal-
vá-la, mesmo através da enorme depreciação inevitável. E em suma a
Itália, que, depois de vitoriosa com a entente em 1918, começara a ser,
de fato e não só de nome, grande potência européia e mundial, se vê
reduzida, e pelo órgão de muitos seus ilustres se confessa reduzida, a
ser, quem sabe por quantas gerações, um país de segunda ou terceira
ordem! Causa profunda mágoa a humildade das suas declarações,
em contraste frisante com a ênfase e a retórica de péssimo gosto fa-
miliares aos discursos fascistas!
E no nosso Brasil, que se faz, que se passa? Não há dúvida que
soubemos jogar a boa carta e conforme à nossa índole, às nossas tra-
dições liberais; mas quais são os prognósticos relativos aos proveitos
que tiraremos da nossa justa solidariedade com as nações unidas?
Aqui as previsões são otimistas; além do intuitivo aumento de pres-
tígio político que resultará para nós, profetiza-se um considerável
desenvolvimento econômico pela valorização dos produtos nacio-

283
A fo nso A ri no s, fil h o

nais em conseqüência de um incremento assombroso da exportação


de matérias primas, e até de artigos manufaturados. Prevê-se tam-
bém um vasto e generoso movimento de hospitalidade à imigração
italiana, que corre parelhas com a portuguesa na vantagem da facili-
dade de assimilação.
O seu lindo artigo revelou-me um curioso encontro de idéias; ao
mesmo tempo, e talvez no mesmo dia, em que você sugeria a publi-
cação de capítulos das minhas memórias e outros escritos nos Diári-
os Associados, eu fazia aqui idêntica proposta a Barreto Leite; Assis
Chateaubriand acolheu-a favoravelmente, e a publicação principiará
em breve.
Escreva-me por intermédio do Itamarati para a Embaixada junto
à Santa Sé. Abraços nossos afetuosos. Seu de coração,
Azeredo.

Via dia villa Emiliani, 9. Parioli. Roma.


2 de março de 1946.

Meu querido Afonso, por que não me escreve nunca? Vejo que
você adotou a regra comum a numerosos homens de letras – a de
não traçarem linha que não deva ser tipografada e publicada. Regra
talvez sensata, no dinamismo implacável da vida moderna, mas que
deve admitir exceções; e se há quem mereça uma de sua parte sou eu,
pelo muito bem que lhe quero, e pelas condições morais em que me
acho, longe da pátria, e as quais você com tão comovidas palavras
desenhou naquele inolvidável artigo, “Lembrança do amigo ausen-
te”. Fortuitamente soube, por uma alusão do nosso amigo Acioli, e
por outras de outras pessoas, terem aparecido nos Diários Associa-
dos as minhas impressões de “Roma em guerra”. Achou-as você in-

284
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

teressantes? agradaram a Assis Chateaubriand? Ignoro-o, porque


guardaram ambos o mesmo silêncio. Eu não abandonei a idéia, que
me sugeriu você mesmo, de dar aos Diários Associados alguns capí-
tulos das minhas memórias; mas faz-me hesitar essa aparente indife-
rença que noto por parte de quem deveria ao menos manifestar uma
opinião qualquer... Maria do Carmo (Nabuco, irmã de Afonso Arinos) es-
teve aqui duas semanas com o marido; fiz-lhe uma longa visita logo
que chegaram; ela esteve em nossa casa meia hora uma vez e de outra
vez metade de meia hora; o José Tomás (Nabuco) nem veio ver-nos.
Cumprimentos nossos para sua Senhora, e um saudoso abraço do
sempre seu
Azeredo.

Via de villa Emiliani, 9. Parioli.


Roma. 15 de maio de 1946.

Querido Afonso, a lista dos vários encargos que lhe absorvem o


tempo e a atenção pôs-me tonto, atordoado; que diferença da mo-
notonia em que vão deslizando estes anos da minha velhice, tão den-
sos, todavia, de vida interior, de pensamentos, reminiscências, traba-
lhos antigos e novos! Eu levo tudo isso por diante, mas sem atropelo,
e sobretudo... com liberdade de coordenar a meu gosto as diversas
tarefas. Confesso que, hoje, não teria cabeça para resistir sólida e em
equilíbrio às tantas solicitações que lhe disputam as horas e os minu-
tos. Compreendo, assim, perfeitamente, que não lhe é fácil, mas an-
tes dificílimo, escrever com certa freqüência, mesmo aos mais caros
amigos. Confio, porém, que quando disponha de alguns momentos
vagos, continuará a pensar com afeto no “amigo ausente”, e lhe dará
o conforto de uma carta sua, seja embora breve e apressada.

285
A fo nso A ri no s, fil h o

Será para mim um prazer comunicar-lhe as páginas de Memórias


que se referem à minha fraternal amizade semi-secular com o seu
inolvidável Pai, com o meu Afrânio; mas ainda não cheguei lá, no
curso dessa narração que vai devagar e coxeando um pouco, porque
tenho o vício indesarraigável de fazer muitas cousas simultaneamen-
te. Eu o conheci em Montevidéu, secretários ambos da nossa Lega-
ção. Já dois anos antes, em 1893, eu conhecera em Ouro Preto seus
avós, o dr. Virgílio e dona Ana; na velha capital mineira, e depois,
em São João del Rei, ligara-me em sólida amizade com seu tio Ari-
nos, oficial do meu mesmo ofício, das letras. Em Montevidéu, tive
por primeiro chefe Vitorino Monteiro, que, porém, desde a instala-
ção do governo civil na pessoa de Prudente de Morais, se sentia
constrangido na posição de ministro, e não tardou a pedir exonera-
ção, sendo substituído por José Tomás da Porciúncula, que era casa-
do com uma tia de Afrânio, dona Luísa de Melo Franco; foi já sob
essa nova jurisdição que Afrânio encetou a sua carreira diplomática,
seguido a pouca distância de tempo por Armínio; instalaram-se no
mesmo hotel onde eu já morava com minha Mãe, e residia também,
havia anos, a família Caymari, que devia em breve tornar-se minha
própria. Nesse hotel – Hotel Oriental, na Calle Solis, o maior e me-
lhor da cidade, minha Mãe e eu tomamos um apartamento no pri-
meiro andar, e Afrânio com dona Sílvia outro no andar térreo, onde
nasceu em 3 de maio de 1896 Caio, a quem minha Mãe deu o pri-
meiro banho (Caio, esse bebê que vimos uma hora depois de nasci-
do, conta já cinqüenta anos, é ministro, cedo será embaixador; oh
atestado de velhice nossa, atestado que se une a outros numerosos,
que vêm de fora, das mudanças que se produzem nas pessoas e nas
cousas exteriores, e são mais frisantes, mais impressionantes, que a
consciência mesma da nossa idade.) A convivência era diária, po-
de-se dizer contínua; prontamente adquiriu caráter de intimidade.
Os diplomatas todos, como sói acontecer sobretudo nas capitais não

286
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

muito grandes (tal era então Montevidéu) freqüentavam assidua-


mente a sociedade, aquela sociedade ainda um pouco patriarcal, a
um tempo singela e distinta, que os acolhia com benevolência e con-
fiança (sinto não poder incluir aqui o quadro que dela desenho nas
Memórias, mas é extenso demais). Eu, solteiro ainda, era mais “mun-
dano” que ele, mais habituado de teatros, cafés-concertos, e ter-
túlias. O serviço da Legação, sob os olhos amáveis mas disciplinado-
res do nosso bom ministro, era considerável, e Afrânio começava a
sofrer da sua “cãibra dos escritores” (não havia, naturalmente, ainda
máquinas datilográficas), e eu me queixava de uma renitente neuras-
tenia, ora aguda, ora mais ou menos larvada, que, começada aos de-
zessete anos, me durou até perto dos trinta, com tonturas, sufoca-
ções, e outros penosos sintomas. Porém nos momentos de folga,
como os há em todas as afecções crônicas, das nossas doenças nos
ríamos, como nos ríamos de mil cousas... e é com enternecida sauda-
de que recordo esse período, como aurora da juventude, mas de certa
forma igualmente como uma prolongação da infância, porque, não
obstante o notável desenvolvimento intelectual, éramos ainda duas
verdadeiras crianças em face da vida e dos seus espetáculos, e quando
Armínio se juntava a nós, as risadas soavam tais, tão esfuziantes e es-
trondosas, que deveria parecer difícil a que nos observasse acredi-
tar-se em presença de três secretários de legação. Você sabe que seu
Pai conservou até muito tarde esse privilégio raro de frescura juvenil,
infantil até, dos olhos e do espírito, que quando se alia a qualidades
de homem superior, é verdadeiramente uma fortuna para quem o
possui, e um encanto para o seu entourage; dos filhos de Afrânio, pare-
ce-me ser Caio o que maior parte herdou desse privilégio. É supérfluo
acrescentar que, em Montevidéu, a nossa convivência não se ia toda
em risadas; além do serviço oficial, tínhamos outros empenhos sérios;
ele estudava a fundo o seu Direito Internacional, a sua Economia Po-
lítica, e ampliava com leituras diversas a sua cultura geral; eu, nas mi-

287
A fo nso A ri no s, fil h o

nhas horas livres, fazia poesia lírica e prosas mais ou menos românti-
cas, colaborava na Gazeta de Notícias e em La Razón; costumava mos-
trar-lhe os meus escritos antes de publicá-los, e lembram-me ainda al-
guns bons conselhos que me deu. Qual era então, fiquei até 1934,
quando o senhor Getúlio Vargas houve por bem despedir-me, com
um atestado de boa conduta e dois meses de indenização; um artista
emprestado à diplomacia, o que aliás não me privou de servir util-
mente o Brasil, e ser bem sucedido nas minhas várias incumbências.
Eis, meu querido Afonso, o que posso dizer-lhe sobre aquele cur-
to período de Montevidéu, e espero que lhe seja de algum proveito
para o primeiro volume da sua obra.
Estimo que “Roma em guerra” lhe tenha agradado, e a outros lei-
tores como me assegura, e me informam cartas recebidas de vários
pontos do Brasil. Não importa que a direção dos Diários Associados
não me haja enviado os números em que saíram os artigos; não pre-
tendo recolhê-los em livro, cousa efêmera como são, e de resto tenho
aqui o original autógrafo e uma cópia datilografada. O que lastimo e
o que me magoa é que Assis Chateaubriand não tenha cogitado de
distinguir-me com uma palavra de cortesia. Afonso, eu fui educado,
como você igualmente apesar de tanto mais moço, segundo um có-
digo de bom tom um pouco antigo, mas que devia ser eterno; sou,
pois, bastante sensível a certas incorreções hoje muito em voga.
Além disso, são passados não sei quantos meses desde a publicação
dos artigos, e nada me consta sobre a devida remuneração; por inter-
médio de Barreto Leite, Assis Chateaubriand pediu e tornou a pedir
que eu lhes fixasse o preço; alegando a minha falta de prática em tal
matéria, respondi que o deixava ao arbítrio dele; mas é óbvio que não
significava essa resposta uma renúncia. Quando eu era embaixador
junto ao Vaticano, por espontânea deliberação minha, colaborei
gratuitamente por alguns anos n’O Jornal. Hoje a minha situação é
diferente; sou um simples escritor, e o meu trabalho deve ser pago;

288
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

não por interesse reivindico este direito, pois poucos homens haverá
que façam menos caso do dinheiro que eu, mas, em primeiro lugar,
porque é de justiça (dignus est operarius mercede sua); e ao mesmo tempo
por dignidade profissional; pois, se sempre detestei a réclame, não me
presto a desvalorizar o meu trabalho; todos sabemos que fornecer
artigos gratuitamente a uma folha que paga outros colaboradores, é
publicar por favor – por favor, não do autor, mas da folha.
Ao terminar, hoje (21 de maio), acabo de receber uma carta deli-
ciosa de Caio, em resposta à que lhe escrevi pelo seu 50o aniversário.
Para você e sua Senhora os mais afetuosos recados de nós três. Sau-
doso abraço do seu de coração
Azeredo.

Via dia villa Emiliani, 9. Parioli.


Roma. 25 de novembro de 1948.

Meu caro Afonso,


Acabo de escrever a Caio, que nunca me escreve. Com a mesma
pena, a mesma tinta e na segunda metade da mesma folha de pa-
pel, traço estas linhas. Talvez lhe seja aconselhável, para se lhes
identificar o autor, voltar a página e ler a assinatura. Porque a mi-
nha letra já deve ser-lhe estranha aos olhos, como eu mesmo lhe
estou afastado do coração. Já não é a “Lembrança”, mas o
“Esquecimento do amigo ausente”. Amigo sempre, todavia. Eu
não esqueço aquela “Lembrança”, e os termos cativantes em que
foi expressa. Mas não creia que estou recriminando. É uma afetuo-
sa queixa, não um mau juízo.
Compreendo bem as circunstâncias atenuantes; não só atenuan-
tes; até plenamente explicativas. Estão sempre no torto os ausentes

289
A fo nso A ri no s, fil h o

de ausências longas, ainda quando elas sejam involuntárias, forçadas,


como é o meu caso. Acresce que no seu, além da endêmica influência
antiepistolar da estada, por anos, para lá da linha equatorial, há a da
política, gênero de atividade o mais absorvente e exclusivo. Aplaudo
que se dedique à nobre missão de melhorar a sorte da pátria, que é
talvez, nas suas condições pessoais, o dever superior a todos os ou-
tros. Alguns sinais, tenho visto das suas intervenções nos debates da
Câmara, entre os quais um belo discurso comemorativo de Afonso
Pena, sobre o qual, até, pensei por um momento em escrever-lhe,
louvando-o calorosamente no conjunto, mas divergindo, no plano
histórico, de algumas asserções. O que eu só sentiria é que a política
lhe esterilizasse a forte produção literária, como tem feito a muitos
outros com os seus mesmos dotes. Acredito, porém, que isso não su-
cederá.
Recomende-nos a sua Senhora, e aceite os nossos afetuosos cum-
primentos.
Muito seu
Carlos Magalhães de Azeredo.

Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1950.


(Hotel Central)

Querido Afonso,
Li com espanto, em um artigo do Correio da Manhã, que ainda não
existe no Brasil uma lei de responsabilidade concernente ao presi-
dente da República e aos seus colaboradores no governo. “Como?
– exclamei entre mim – quatro anos depois de promulgada a Cons-
tituição vigente?” Essa lei de responsabilidade é uma medida im-
pessoal de justiça, uma garantia indispensável ao bom funciona-

290
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

mento dos poderes constitucionais, que nada tem de ofensiva a


quem eventualmente exerce uma parte considerável deles, e que a
natureza do regime presidencial torna especialmente necessária. O
autor do artigo a que me refiro (você o terá lido) exortava o Con-
gresso atual a discuti-la e aprová-la antes de dissolver-se, alegando
com plena razão a premência dessa cautela contra os notórios pen-
dores ditatoriais do antigo e futuro chefe do Estado. Tolerará a
nossa demasiado comum imprevidência que Getúlio Vargas torne
ao governo sem ser tomada tão elementar precaução? Porque você,
de acordo com o seu partido, não apresenta à Câmara um projeto
de lei a esse respeito?
Outro fato político que tem atraído a minha atenção é o de não
haver conseguido o ex-ditador maioria absoluta de votos no pleito
de 3 de outubro. Parece-me de boa tática explorar esta significativa
circunstância para enfraquecer-lhe a autoridade.
Terceira observação: cumpre, segundo o meu humilde critério,
dar o maior relevo ao escândalo das relações muito suspeitas do
homem de São Borja com o aventureiro Perón e os seus emissários
mais ou menos secretos. Há aí um elemento precioso (baseado
aliás no interesse e na dignidade do Brasil, que essas relações ofen-
dem) para abrir os olhos das “massas” que o elegeram, pobre gente
ignara e fácil de iludir, mas que possui uma sensibilidade patriótica
assaz suscetível.
Naturalmente, vocês da UDN e de outros grupos genuinamente
democráticos não se descuidarão de cultivar com zelo e tato a simpa-
tia das classes armadas, em cujo espírito de vigilância e proteção da
legalidade creio que podemos confiar. Para tal fim lhes serão de efi-
caz auxílio o valor moral, o prestígio militar e político da grande in-
dividualidade do Brigadeiro, que reuniu ao redor de sua candidatura
mais de dois milhões de eleitores.

291
A fo nso A ri no s, fil h o

Em suma – desde que temos de suportar o ex-ditador – o essenci-


al, a meu ver, é que – e até no seu próprio interesse bem entendido –
os seus atos sejam controlados por uma oposição forte, perspicaz,
organizada e resoluta.
Releve-me a ingenuidade de falar assim a quem sabe tudo isso
melhor que eu, e com cordiais homenagens para Anah, aceite um
afetuoso abraço
do muito seu Azeredo.

Via dia villa Emiliani, 3 (sic). Parioli.


Roma. 14 de janeiro de 1956.

Querido Afonsinho, estou sem notícias suas diretas – o que é na-


tural desde que vocês andam às voltas com a magna Roma; ontem de
manhã, porém, telefonei ao Deoclécio (Redig de Campos), e soube com
prazer estar já combinado o programa para visitarem juntos o Vati-
cano (de cujos museus o brasileiro Deoclécio era diretor). Quando querem vir
almoçar novamente? Na próxima segunda-feira? na terça? e a que
hora? Vista a declaração que me fizeram de não estarem seguindo
“regimen” especial, autorizando-me portanto a oferecer-lhes um
menu brasileiro, cá os esperarei, no dia que marcarem, con todos los sa-
cramentos de la ley, como dizem os espanhóis: farinha de mandioca, pi-
menta malagueta, cachaça da mais fina; e lamento a falta dos cigarros
de palha, porque os estou reclamando, há meses, de um amigo do
Rio, que não me atende. O meu número de telefone é 870.332.
Abraços para ambos. Afetuosamente,
Azeredo.

292
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Via dia villa Emiliani, 9. Parioli.


Roma. 20 de abril de 1956.

Querido Afonso,

Não sei por onde você anda, nem se estas linhas o alcançarão na
avenue Montaigne, nem quando pretende partir para a nossa terra,
de onde me contam que o calor está pavoroso. Morcaldi ontem pe-
diu-me notícias suas; respondi: – Creio firmemente na afeição deste
meu amigo, mas ele pertence à legião (numerosíssima além-Atlânti-
co) dos que evitam escrever cartas ou até simples bilhetes como a
maior maçada deste mundo. – Morcaldi também se gaba de não es-
crever a ninguém, mas penso que exagera um pouco. É claro que nes-
tes tempos telegráficos e telefônicos a todo transe, não se pode exigir
dos amigos a antiga assiduidade epistolar. O que vale e a supre é a
das gentis amigas, que perpetuam a graça e a glória de Madame de
Sévigné e Mademoiselle de Lespinasse.
Que lhe resta a cumprir do seu programa de férias nesta velha
mas sempre sedutora Europa? Regressará contente e animoso às
lutas nacionais, embora talvez queixoso do inverno, que foi um fe-
roz bandido, e da primavera, que se está portando como uma mu-
lher safada e vilã?
A carta sobre Um estadista da República, de que você leu aqui o come-
ço, cresceu muito, embora sempre num estilo de reminiscências ínti-
mas e episódios pessoais; não lha envio para aí por não estar certo de
que efetivamente chegará a suas mãos; seria pena que se perdesse;
vou fazê-la datilografar, e a expedirei para sua casa no Rio, devida-
mente registrada.
Quando lá estiver, não se esqueça de falar de mim ao seu amigo
José Olympio. Eu aspiro a entrar na clientela do ilustre editor, e pre-
sumo que alguns livros meus, além das Memórias, que ele já aceitou,

293
A fo nso A ri no s, fil h o

poderão interessá-lo. Puxando você de um lado e Tarqüínio do ou-


tro, não lhes será difícil conseguir o que eu desejo.
Com saudosos abraços para o casal amigo, e um “Até lá!”, sou
sempre o seu de coração
Azeredo.

Via dia villa Emiliani, 9. Parioli.


Roma. 26 de abril de 1956.

Querido Afonso,
Um abraço ainda, e um voto de boa viagem, antes que vocês aban-
donem esta enigmática Europa, que deveras os tem tratado mal, e a
quantos nela moram. Se recebeu a minha carta precedente, deve es-
tar-se rindo de mim, pelo brilhante desmentido que deu, na sua tão
longa e interessante, ao que eu dissera de você ao bom Morcaldi. No
meu atual sedentarismo, forçado, porque o dinheiro não basta para
contentar o desejo, não extinto em mim, de novas e reveladoras pere-
grinações, gozei ao ler a animada relação das suas, a que não faltou o
momento dramático da excursão entre a Áustria e a Suíça, debaixo
de formidável nevada, com uma visibilidade quase nula, e sem cor-
rentes nas rodas do auto. Acredita com razão que na longa residência
aqui nunca nos achamos às voltas com inverno semelhante. Como
extravagância climática, mas de outro gênero, lembro-me, na nossa
primeira estada aqui, dos meses, de outubro a março, em que, sob o
influxo do siroco, choveu a cântaros quase sem trégua. A minha saú-
de era então muito mais frágil que hoje, e a neurastenia crônica de
que sofria se acentuou terrivelmente. Vê-se que Goethe, quando
compôs a melodiosa canção de Mignon, ainda não conhecia a Itália.
A benéfica maga que me curou naquela época foi Paris, onde passa-

294
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

mos quase um ano, Mamãe, Maria Luísa e eu, em casa dos meus sau-
dosos sogros. Que bela a vida, que belo o mundo, naquele éden da
nossa mocidade feliz!
Lamento como você a estandardização norte-americana dos nos-
sos costumes, e até a alteração radical da fisionomia do Rio (mal de
todas ou quase todas as cidades, atualmente). O Rio da minha infân-
cia, da minha adolescência, não era bonito; mas antes feio, nos bair-
ros centrais; porém havia, a pequena distância destes, o encanto, o
remanso verde das grandes chácaras que em muitos arrabaldes desa-
pareceram; os skyscrapers vão invadindo tudo. Que penosa, por exem-
plo, a tragédia das maravilhosas palmeiras da rua Paissandu, sufoca-
das, atrofiadas pouco a pouco por eles!
Até “lá”! Memento mei apud Josephum Olympium!
Para ambos o afeto saudoso do velho amigo
Azeredo.

Via dia villa Emiliani, 9. Parioli.


Roma. 29 de setembro de 1958.

Querido Afonso,
Estou à espera de uma carta sua; ansioso, aflito por notícias do
problema, para mim, de tamanho alcance.
Na missiva precedente, você me anunciava próxima vinda a
Roma, se aceitasse o convite do presidente Kubitschek para unir-se à
comitiva do presidente Gronchi na sua viagem para o Rio; não acre-
ditei muito na possibilidade de tal aceitação, e logo a excluí quando
soube da sua candidatura a uma cadeira de senador nas próximas elei-
ções. Não era verossímil que se ausentasse daí em tal conjuntura.
Não sei se já lhe mencionei as minhas condições de saúde, que são
más desde há meses. Péssimo presente do inverno daqui: uma crise

295
A fo nso A ri no s, fil h o

reumática mais ou menos generalizada, que me tem fatigado muito,


estorvando de contínuo a minha normal atividade por um obstinado
enfraquecimento das pernas e dos braços. O meu médico diz que
não é grave, vista a robusteza “juvenil” (expressão sua) do coração,
mas essa juvenilidade é assaz problemática, em contraste com a reali-
dade cronológica que marca hora bem diversa no relógio da minha
vida. E nesta hora crepuscular qualquer coisa anormal pode tor-
nar-se grave de um momento para outro. A grande questão para
mim, a questão melindrosa e alarmante não é porém sanitária; é fi-
nanceira. Equilibrar os distúrbios da uricemia com um funciona-
mento orgânico regular, tenho-o conseguido até agora, graças à pru-
dência, à estrita sobriedade, e ao sono pacificante, restaurador, que
vou cultivando. Mas resistir ao câmbio de 170 cruzeiros por dólar é
humanamente impossível! dentro do esquema de despesas que não
posso alterar sem descair do decoro de uma posição social fixada
através de tantos anos. Não são raras as visitas a esta casa de embai-
xadores, príncipes e princesas da aristocracia romana, cardeais (ain-
da na semana passada a do cardeal Barros Câmara, arcebispo do Rio
de Janeiro). Se em mim ou no ambiente onde resido se notasse um
abaixamento de tom, a vergonha não seria só minha, mas também do
governo brasileiro; porque eu aqui, além de muito conhecido, sou
muito estimado, e toda a gente sabe de cor o meu curriculum diplomá-
tico tão longo, e o modo por que foi preenchido.
Não quero dramatizar um episódio de dificuldades materiais,
ainda que angustiosas; mas sinto a necessidade de uma solução eqüi-
tativa e urgente. A que você me sugere é muito boa. O título de
consultor é honroso, e, ponderados os meus quarenta anos de não
inúteis serviços, parece-me que não deve haver obstáculo sério a tal
concessão. O caráter oficial da concessão justifica e legaliza a do
câmbio oficial, para os meus vencimentos, como você com razão ar-
gumenta na sua carta. Eis o grande dilema: ou me salvam da calami-

296
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

dade do câmbio desastroso, que equivale quase à não existência da


moeda nacional, ou seria para mim sorte pior que outra qualquer
perspectiva, mesmo a perda da vida. Porque significaria o descambar
fatal da necessidade para a miséria, a nua e crua indigência.
Significaria paralelamente uma depreciação iníqua do meu labor di-
plomático tão dilatado, não só exemplar na probidade e no desinteresse,
como nimbado de certo realce, para o bom nome do Brasil; e extrema-
mente profícuo, pois todos (digo todos) os encargos a mim cometidos pe-
los sucessivos governos foram sempre plenamente bem satisfeitos.
Não sei como explicar as causas que me trouxeram às presentes
e tão críticas condições. Nunca fui jogador, e menos ainda fiz pa-
gar pelo Estado dívidas de jogo, como outros solicitaram, mendi-
garam, e à força da bajulação e empenhos conseguiram. Nunca
dilapidei vencimentos em aventuras de mulheres, nem pretendi
deslumbrar a sociedade com excessos de luxo e prodigalidades de
snobismo. Resta-me atribuir a minha inópia atual ao escrúpulo
talvez demasiado com que apliquei sempre aos seus fins ostensi-
vos a verba da representação, na qual outros, por não ser ela sujei-
ta a prestação de contas, aparelharam, com sagaz economia (aliás
lícita dentro de certos limites) elementos próprios para uma cô-
moda prosperidade futura. Generosidades imprudentes houve de
minha parte a favor de pessoas mais ou menos dignas de apoio ou
socorro, mas especialmente a favor do Estado pela renúncia a vá-
rias ajudas de custo – e disto estou arrependido. Acresce que por
motivos que seria longo e tedioso expor, tendo sido aposentado
em fevereiro de 1934, fiquei dirigindo a embaixada até agosto,
com todas as despesas de tal posição, e sem vencimentos desde
abril. Tive em seguida de pacientar três anos e meio (até o verão
de 1937) a primeira quota da pensão de aposentado, circunstân-
cia que, possuindo, de meu, só modesto pecúlio, contribuiu para
reduzi-lo ainda mais. A todos ou quase todos os altos funcionários

297
A fo nso A ri no s, fil h o

aposentados então foram oferecidas pouco a pouco comissões


mais ou menos rendosas, ao passo que de mim ninguém se lem-
brou nunca; os que podiam compensar-me dos danos da prema-
tura aposentação em que me vi envolvido nas demagógicas derru-
badas de 1934 preferiram deixar inoperosa a minha capacidade
de novos serviços públicos a distinguir-me com uma prova de
merecida estima.
É supérfluo entretanto rebuscar razões em época relativamente
remota; a raiz de todo o mal está em fenômeno recente e imprevisí-
vel: na queda vertiginosa e calamitosa do câmbio, desastre sem pre-
cedente na história financeira do Brasil, que aliás, mesmo durante o
Império, atravessou crises bem graves (em 1864 por exemplo). Mas
aquelas crises suscitavam nas esferas dirigentes o instinto da defesa e
da recuperação do valor da moeda ameaçada, ao passo que hoje
qualquer simples observador, ainda que incompetente na matéria,
mas dotado de natural inteligência tem a impressão de que se deixa
correr tudo à revelia... E acontece que o “homem da rua” não pode
ouvir ou ler certas declarações desenvoltas e altissonantes do otimis-
mo oficial sem um sorriso de ceticismo assaz amargo.
Você teve ensejo de encontrar-me várias vezes nas minhas últimas
estadas aí, de cerca de um ano cada uma. Viu como eu vivia; num
bom hotel, recebendo e obsequiando amigos, passeando, trabalhan-
do normalmente, em suma, quanto possível, satisfeito; já havia certa
flexão do câmbio, a situação do país não era brilhante, mas enfim
podia-se agüentar as condições da vida quotidiana sem excessivas
apreensões, e nutrir esperanças de melhor futuro. Mas agora! quem
pode, obrigado a uma certa decência de trato social, resistir à pressão
de 170 cruzeiros por dólar?
Eu não posso; em todos os bancos onde tenho dinheiro, as mi-
nhas contas-correntes são deficitárias; mínimas as rendas, e se tiver
de vender títulos, minguarão ainda. Aqui curto privações muito

298
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

sensíveis; já tenho vendido às pressas e por vil preço objetos de que


nunca pensara ter de separar-me. Não posso, fatigado e depresso
por um verão tórrido, restaurar-me na Suíça como cada ano desde
1920. Não posso comprar livros que são caríssimos, ir a um teatro,
a um cinema, conceder-me uma diversão qualquer. Quase não saio
de casa; penso duas vezes para tomar um táxi. Devo poupar até nos
cuidados necessários à minha saúde abalada, como visitas de médi-
co, produtos farmacêuticos. Em duas palavras, vivo miseravelmen-
te. Veja você se me ajuda, se me salva. Dizem-me que o novo mi-
nistro do exterior (Francisco Negrão de Lima) é seu íntimo amigo; cal-
culo possua ele mais compreensão e sentimento humano do que o
José Carlos (de Macedo Soares), que não quis despender uma palavra,
fazer um gesto a meu favor. Talvez o Elmano Cardim poderia tam-
bém unir-se a você em meu proveito. Você é neste momento o ben-
jamim da Academia, ele é o presidente, eu sou o decano; quem sabe
se ele não quererá deduzir desta tríplice combinação uma espécie
de ponto de honra para defender-me? Sei que me estima; pelo meu
recente aniversário mandou-me um afetuoso telegrama.
Não tarde a escrever-me. Tem havido já tempo para vir daí, senão
um resultado definitivo, pelo menos algum esclarecimento sobre o
ritmo dos seus esforços. Estive incerto acerca dos seus endereços:
você deu-me o da Rua Dona Mariana, 63; o boletim oficial da Aca-
demia indicava Rua Barão do Flamengo, 32. Pedi conselho ao sim-
pático Afonso III, seu filho, que me sugeriu escrever para a Câmara
dos Deputados; é o que faço agora.
Carinhoso abraço para o casal amigo.
O seu de coração
Azeredo.

299
A fo nso A ri no s, fil h o

(sem data)

Querido Afonso (não posso chamar “Afonsinho” um ministro


de Estado, um “chanceler”, como neologisticamente se diz nas repú-
blicas latino-americanas).
O nosso bom e prezado amigo embaixador Sousa Gomes (natu-
ralmente lembrando-se de ter eu servido por tantos anos o Brasil
junto à Santa Sé), pede-me para lhe escrever acerca da recíproca situ-
ação das nossas duas embaixadas em Roma. Pensa ele, e, a meu ver,
com muita razão, que, estando suntuosamente instalada a Embaixa-
da junto ao Quirinal, e não tendo sido possível, por motivos que
bem compreendo, instalar no mesmo histórico palácio Doria Pamp-
hilj a outra, esta última ficaria em posição de inferioridade se não se
achasse modo de “equilibrá-la”, no sentido protocolar e mundano,
com a outra, assegurando-lhe uma residência pelo menos igualmente
decorosa. Sugere ele a solução de se comprar ou alugar a longo prazo
uma parte do não menos histórico palácio Orsini, onde há de mais o
precedente de lá terem morado alguns embaixadores acreditados pe-
rante o Vaticano. Parece, segundo ele me insinua, que o próprio Va-
ticano não ficaria contente com uma diferença patente entre as duas
embaixadas, em detrimento da “nossa”.
Assim, com muito prazer exponho a “Vossa Excelência” este
ponto de vista, partilhado, como acabo de dizer, por mim mesmo, e,
cumprida esta grata incumbência, bato palmas calorosas à sua nome-
ação para o Itamarati, da qual me rejubilo e como brasileiro me or-
gulho, e como amigo seu e da sua ilustre família por já três gerações;
e lhe envio o saudoso abraço do sempre seu de coração
Azeredo.
Quando nos veremos agora? e onde? Eu atualmente, e quem sabe
por quanto tempo, não poderei empreender tão dilatada viagem, e
você fica aí preso (com vínculos de ouro, mas preso em suma) por
quatro anos ao menos. Abrace a querida Anah por mim.

300
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Via Eleonora Duse, 2. Parioli.


Roma. 20 de dezembro de 1962.

Meu querido Afonso,


Terão estas linhas a boa fortuna de encontrá-lo ainda em Gene-
bra? Seguindo de longe e mal informado pelos jornais, a Conferência
sobre o Desarmamento, receei que você tivesse já reintegrado o seu
posto no casarão de vidro da ONU; o nosso João Hermes (que par-
tiu há dias para o Rio, mas decerto com a esperança de voltar aqui
para a persecução do Concílio) disse-me que a sua estada (de você)
na margem calvinista do belo lago Léman se prolongaria ainda um
pouco, e esta notícia me tranqüilizou um tanto. Esta manhã li que a
Conferência realizaria a sua penúltima sessão hoje, e assim é de crer
que esta carta, mandada por expresso, ainda lhe chegará a tempo.
Desejo muito e peço-lhe com grande empenho que no regresso a
Nova York passe por aqui e pare em Roma alguns dias. Preciso de
muito calor de amizade para opor ao duplo frio do inverno, que co-
meça amanhã, e da tediosa, melancólica solidão em que antes vegeto
do que propriamente vivo.
Você poderá como ninguém informar-me sobre coisas da nossa
terra, que me afligem e assustam; além de que temos uma partida
aberta – a do célebre soneto, sobre o qual paira um equívoco que eu
muito desejaria dissipar, mas por escrito seria tarefa muito larga, ao
passo que uma palestra, à vista do “corpo de delito”, afugentaria as
dúvidas rapidamente.
Venha, pois, aqui o espero com os braços abertos para estreitá-lo
sobre o meu coração ansioso, e o espírito sedento da cálida e lumi-
nosa irradiação do seu.
Até breve, pois, não falte!
O seu de sempre
Azeredo.

301
A fo nso A ri no s, fil h o

Via Eleonora Duse, 2. Parioli.


Roma. 4 de março de 1963.

Querido Afonso,

Tenho pensado em escrever-lhe, de novo, nestes últimos dias,


mas a incerteza do seu paradeiro me tem feito desistir. Na verdade
não sei se você está em Genebra, em Milão, ou em Nova York; hoje,
porém, considerando que a Conferência do Desarme retomou os
seus trabalhos, e não tendo eu visto referência a movimentos seus
nos boletins telex que a Embaixada da praça Navona me manda to-
das as manhãs, concluo pela possibilidade da sua demora na Suíça, e
arrisco-me a enviar-lhe estas linhas.
Realmente o meu intuito é somente lembrar-lhe a promessa de
uma ou algumas visitas suas em Roma, não só por serdes vós quem sois,
como pelo interesse do coração em gozar ainda de tão preciosa com-
panhia, e pelo valor das conversas e trocas de idéias sobre as coisas
do nosso Brasil e seus reflexos internacionais. Não repare na má letra
destas cartas; desta vez não dirá que a minha caligrafia continua óti-
ma, porém o fato é que tenho as mãos enregeladas pelo intenso frio
exterior que penetra nesta casa apesar de bem aquecida. Que inverno
pavoroso!
Abraços afetuosos para você e a querida Anah, do velho amigo
devotado e grato
Azeredo.

302
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Text o s esp a r so s

 A alma do tempo

Afonso Ari nos de Melo F ranco

Na Suíça, em 1932, deitado no sanatório, eu me correspondia


com Magalhães de Azeredo sobre Stendhal. (Rio, 14 de dezembro de
1959)

(A casa de Magalhães de Azeredo, na Via Po, em Roma, possuía


uma peça assim, embora muito mais luxuosa, pois a escada, lá, era
de mármore, e a galeria coberta, como o corredor superior de um
claustro, apoiada em colunas também de mármore.) (Rio, 24 de de-
zembro de 1959)

Só em dois encontrava informação mais ampla do que a minha:


no professor Séchaye e em Magalhães de Azeredo, que então co-
nheci em Genebra e de quem, em breve, me tornaria amigo, na con-
vivência que, pouco depois, entretivemos em Roma. (Rio, 2 de janei-
ro de 1960)

303
A fo nso A ri no s, fil h o

Meu encontro com Carlos Magalhães de Azeredo restituiu-me o


gosto de viver e o equilíbrio íntimo. Posso dizer que o conhecimen-
to deste amigo, o convívio diário que entretivemos durante as sema-
nas que passei em Roma, naquele ano, foram dados capitais da mi-
nha formação, além de haverem servido como remédio decisivo para
a crise moral que, naquele momento, eu atravessava.
Com ele tive a convivência literária que apagava a distância de
idade e que faltava com meu pai, em quem as preocupações da vida
política e dos estudos jurídicos tinham amortecido os arroubos poé-
ticos da mocidade. (...)
Azeredo, que conta hoje 87 anos, está escrevendo as suas memó-
rias. Há alguns meses fui vê-lo, como faço sempre que vou a Roma,
e ele me disse que um dos capítulos do livro seria dedicado às nos-
sas conversas de 1925. Mas o livro de Azeredo está sendo compos-
to devagar, não tendo atingido, ainda, quando com ele estive na úl-
tima vez, nem mesmo à missão Nabuco, de 1903. É, pois, pouco
provável que o meu velho amigo chegue à fase em que deve falar de
mim. Escrevo, pois, eu, a seu respeito, mesmo porque o episódio
do nosso encontro foi seguramente mais importante para mim do
que para ele.
Quando cheguei a Roma, em 1925, Carlos Magalhães de Azere-
do contava 52 anos, e tinha atingido o ápice da carreira diplomática,
como embaixador junto à Santa Sé. Casado, sem filhos, com uma se-
nhora de origem cubana, Maria Luísa Caymari, que ele conhecera
em Montevidéu, vivia numa bela casa na Via Po, com a esposa, duas
cunhadas e a mãe. Filho póstumo, criado com desvelo pela mãe que
nunca mais se casou, o escritor conservava, no princípio da velhice,
uma certa ingenuidade gâtée, própria da educação que tivera e da vida
que levava depois de casado, objeto do cuidado de tantas mulheres.
“O Azeredo casou-se com uma família”, dizia o malicioso Gastão
da Cunha, ao observar o cerimonial que era a saída do colega para a

304
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

rua: a mãe a lhe passar o capote, a esposa a enrolar-lhe o pescoço no


abafo de lã e a cunhada a entregar-lhe o guarda-chuva, junto à porta.
Bon enfant, Azeredo aceitava sorrindo esses carinhos sufocantes,
embora não desprezasse outros, que buscava junto a saias menos do-
mésticas.
Amava as mulheres, sendo eclético e distributivo nas atenções. A
copeirinha maliciosa do restaurante (meu irmão Caio, que foi seu se-
cretário, dizia-me que qualquer silhueta de avental e touca perturba-
va o poeta-embaixador), a lânguida duquesa italiana, a galante dama
brasileira, de todas essas flores de beira de estrada ou de estufas ricas
ele aspirava, com deleite, o perfume.
À ilustre e generosa dama brasileira, de origem árabe, que sabia
perdoar os próprios pecados com o mais compreensivo sorriso do
mundo, ele dedicou um soneto que me leu com ares inocentes, mas
com entonações cúmplices, na presença da esposa, soneto cujo pri-
meiro verso era o seguinte: “Perfumada pastilha do oriente...”
E por aí seguia. A embaixatriz, ao ouvir aqueles acentos bíblicos,
cheirando a Cântico dos cânticos, agitou-se na cadeira: “Ó Carlos, que
exagero!” Mas ele, piscando para mim, tranqüilizou-a na sua voz
metálica, de surdo: “Ora filha! São imagens poéticas.”
Azeredo e meu pai eram amigos desde a Faculdade de São Paulo,
onde foram contemporâneos. Depois ambos serviram como secretá-
rios na Embaixada do Brasil em Montevidéu. Naquele ano (1896)
Caio nasceu na capital uruguaia, e, assim, Azeredo conheceu, desde
os primeiros dias de vida, aquele que veio a ser seu subordinado na
Embaixada de Roma. (Petrópolis, 3 de janeiro de 1960)

Ainda em 1896 Azeredo foi removido para a Santa Sé e, a não ser


uma interrupção de cerca de dois anos, durante a qual serviu em ou-

305
A fo nso A ri no s, fil h o

tros postos, ficou na Itália todo o resto da sua longa vida, hoje quase
nonagenária.
Quando da minha primeira visita a Roma ele já ali se achava havia
trinta anos. Lá estivera ao tempo da missão Nabuco, aberta com glo-
riosos auspícios e tão tristemente malograda. (...)
Azeredo recordava para mim a vida triunfante de Nabuco, o seu
sucesso social, o prestígio que logo adquiriu no mais requintado
meio romano. (...)
Amigo pessoal dos papas sob cujo reinado servira, Leão XIII, Pio
X, Bento XV e Pio XI, possuidor de relíquias pessoais dos mesmos,
como, por exemplo, o solidéu de São Pio X, Azeredo era (e ainda é)
um repositório vivo de fatos e anedotas interessantes sobre a vida na
corte papal, desde o fim do século passado.
Meu pai devia ter-lhe escrito, recomendando-lhe que me dispen-
sasse alguma assistência; mas, além deste dever social para com o fi-
lho do amigo, Azeredo afeiçoou-se realmente a mim, em quem en-
contrava um ouvinte atento e permanentemente curioso para as suas
lembranças, bem como um espírito inteiramente absorto nos pro-
blemas da cultura, em geral, e da literatura em particular, que eram
os que a ele também mais de perto interessavam.
A partir da hora do almoço ficávamos juntos, praticamente, todo
o dia, até à hora do jantar, quando eu voltava para o meu hotel e, ha-
bitualmente, não mais saía. Pela manhã eu percorria, sozinho, a cida-
de e os monumentos. Depois almoçava na Via Po, e passava o resto
da tarde com Azeredo, em novas excursões aos monumentos ou em
passeios mais extensos, de automóvel, pela Via Appia, a campanha e
os castelos romanos. Os espetáculos eram variados. Lembro-me de
um concerto regido por Stravinski e de uma exposição de pintura
moderna, entremeada com as visões clássicas ou barrocas. Além dos
monumentos grandiosos, de fama universal, Azeredo não esquecia
as pequenas relíquias de Roma, como São Paulo das Três Fontes,

306
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

que ainda recordo cheia de glicínias em flor, uma pequena capela do


Bramante, a Farnesina, a prisão do Tasso, no Janículo. No alto deste
monte, certa tarde, junto à estátua de Garibaldi, com Roma dourada
a nossos pés, Azeredo leu-me uma página viva e reveladora sobre a
atmosfera de inquietação e intriga que reinava nos corredores do
Vaticano, nas horas que precederam à morte de Leão XIII.
Como embaixador em posto não lhe seria possível publicar aque-
la impressão um pouco ferina. Como aposentado, mas sempre resi-
dente em Roma, talvez não lhe tenha parecido conveniente divul-
gá-la mais tarde. De qualquer forma trata-se, pelo que me ficou na
memória, de um depoimento colhido ao vivo das horas, colorido e
curioso, e que bem merece ser conhecido, algum dia.
Pressionado pela paixão de escola, escrevi um poema sobre Roma
(bastante ruim, aliás), no qual procurava dar largas a impressões de
um “modernista”. Impressões falsas e que eu, no fundo, não sentia.
Azeredo não se enganou sobre aquele artificialismo pretensioso. A
mim nada disse, a não ser vagas amabilidades, mas ao seu fraternal
amigo Mário de Alencar escreveu, a respeito, trechos de uma carta,
que foram copiados e remetidos de torna-viagem pelo meu amigo
Jorge, filho do destinatário. Naquela carta Azeredo se desabafava,
junto a Mário, dos seus ressentimentos contra Graça Aranha. De-
pois de elogiar-me bastante, acentuava o mal que Graça fizera à nos-
sa geração, matando nela (assim ele supunha) a receptividade para a
cultura antiga. E aludia ao meu poema, observando com agudeza
que, nele, eu não exprimia talvez o que sentisse, mas o contrário da-
quilo que deveria sentir um poeta não modernista, em contato com
Roma.
Acho que ele tinha razão. (...)
Último fundador da Academia, amigo de Machado de Assis e de
Nabuco, Azeredo é um brasileiro altamente civilizado, que, pela cul-
tura, experiência intelectual, fidalguia e alta integridade moral, hon-

307
A fo nso A ri no s, fil h o

rou o Brasil na Itália durante decênios. O fato de havê-lo conhecido


na minha juventude, nas condições que relatei, teve sensível impor-
tância para a minha vida. Homem rigorosamente honesto, vivendo
dos seus vencimentos e do pequeno pecúlio herdado da mãe, o velho
poeta e embaixador ficou em sérias dificuldades, nos últimos anos.
Suas economias se desfizeram com as despesas de tratamento da es-
posa, até morrer, e dele próprio. Os vencimentos de aposentado,
muito baixos, tornavam-se ridículos com a queda do cruzeiro. Aze-
redo foi sendo forçado a restringir sua vida, creio que até a dispor de
peças de arte acumuladas na longa carreira. Quando fui batizar o
meu segundo neto em Roma, no ano de 1957, achei-o triste e apre-
ensivo. Deoclécio de Campos falou-me das dificuldades reais que o
nosso amigo atravessava. Diziam-lhe para retornar ao Brasil. Mas
como fazê-lo, sozinho, sem família aqui, depois de mais de sessenta
anos de Itália? Seria apressar a sua morte. Chegando ao Rio, expus a
situação ao ministro Negrão de Lima, que teve espírito e coração
bastantes para atendê-la. Chico Negrão providenciou imediatamen-
te um contrato com Azeredo, mediante o qual ele ficou à disposição
da Embaixada na Santa Sé, com alguns poucos dólares, menos do
que os que ganha um auxiliar de consulado, mas que são, contudo,
suficientes para que o meu velho amigo, que não sai mais de casa,
possa enfrentar sem riscos as suas escassas necessidades materiais.
Aqui declaro o único “favor” que, como líder da oposição, fiquei de-
vendo ao ministro de Estado, cuja amizade comigo merecia no en-
tanto reparos severos de correligionários. (...)
(Francesco Bianco) era íntimo de Azeredo e tornou-se meu compa-
nheiro constante, em Roma. (...) Bem mais velho que eu, era, contu-
do, bastante mais moço que Azeredo, o que dava à nossa convivência
um tom mais fraternal. (Rio, 5 de janeiro de 1960)

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M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Em 1925 festejava-se, em Roma, o Ano Santo. Graças às regalias


de que gozava Azeredo, como decano do corpo diplomático, pude
estar presente a algumas das imponentes cerimônias religiosas que se
realizam nessas ocasiões. (Rio, 6 de janeiro de 1960)

Nomeado pelo presidente Venceslau para o Itamaraty, ele (Caio


de Melo Franco) foi residir em Roma como secretário de Azeredo,
pouco antes da morte de minha mãe, sendo eu ainda ginasiano. (Rio,
10 de janeiro de 1960)

As cartas mais compridas e afetuosas são, porém, as do meu anti-


go mestre em assuntos romanos, Magalhães de Azeredo. O já então
embaixador aposentado interessava-se vivamente em que eu cum-
prisse a promessa, que lhe havia feito, de escrever um estudo sobre
ele e a sua obra literária.
Eu desejaria, agora, enviar-lhe uma carta muito comprida, mas muito, relativa
à sua antiga promessa, que não esqueço, de estudar com séria crítica os meus escritos
num livro. Não renunciei nem renuncio à realização desse generoso e precioso projeto
espontaneamente nascido no seu espírito. A minha não escassa, antes volumosa obra,
necessita, mais que outras, de um comentário como você é capaz de fazê-lo, para
atrair sobre ela a atenção presente e futura dos que aí se interessam pelas coisas do
pensamento e da arte; ela, além disso o merece (deixe-me falar sem hipocrisia de mo-
déstia), porque, feliz ou não nos resultados, revela uma personalidade à parte pela
sua índole e pela sua formação; revela, acima de tudo, uma alma. Si parva licet
componere magnis (et sacris profana).
Não me sendo possível satisfazê-lo quanto ao livro, por causa dos
afazeres da minha vida, dediquei a Azeredo uma das crônicas literá-
rias que então publicava na imprensa do Rio, dando-lhe o título
“Lembrança do amigo ausente”.

309
A fo nso A ri no s, fil h o

Antes mesmo que eu a remetesse a Roma, Maurício Nabuco, que


lá estava de embaixador, fez-lhe chegar às mãos a página evocativa.
Azeredo respondeu em longa carta de doze páginas, a que junta
um pequeno retrato. Sempre preocupado (como dizem que era Ale-
xandre Dumas) com a duração da sua obra, diz, em certo trecho:
Não sei que destino terá, nas letras brasileiras, a minha obra, se a salvará, das ondas
tórpidas do Letes, que tantas coisas de contínuo tragam, a simpatia, sucessivamente reno-
vada, de alguns espíritos amigos, ou se naufragará para sempre nelas. A alternativa, como
outras do mesmo gênero, oscila entre muitos fatores imprevisíveis. Mas desde já a conso-
lante certeza de ter exercido essa influência benéfica sobre inteligências e corações jovens,
dos quais você, com tanto afeto, se apresenta como um exemplo, bastaria para indeni-
zar-me de um futuro esquecimento, e convencer-me de não ter vivido em vão.
A carta é de fevereiro de 1945, dos últimos dias da guerra. Nela
Azeredo conta os horrores da dominação nazista em Roma e preco-
niza a divisão da Alemanha em inúmeros principados minúsculos
(como no Tratado de Vestfália), ao passo que, como bom romano,
procura defender a Itália, apelando para as glórias cristãs e latinas e
para a compreensão dos vencedores.
Muito interessante, pelo tom memorialístico, é outra carta do
embaixador, esta de 1946. Rememora o ano distante de 1893 em
que conhecera os meus avós na cidade de Ouro Preto, para onde
fora, com outros escritores, fugindo à polícia de Floriano.
Fala, em seguida, de sua íntima amizade com meu pai, quando
ambos eram secretários da Legação brasileira em Montevidéu, no
governo Prudente.
O quadro dessas lembranças, que incluía a vida ainda meio patri-
arcal da cidade uruguaia, ele o estava inserindo nas suas Memórias, já
então em preparo, e, infelizmente, inconclusas até agora.
Creio, pelo que Azeredo me disse em 1959 em Roma, sobre o an-
damento do livro, que a parte em referência já estava terminada. (Rio,
22 de dezembro de 1960)

310
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

 A escalada

Afonso Ari nos de Melo F ranco

Magalhães de Azeredo, que me levou, no deslumbramento dos vin-


te anos, à presença do sábio papa (Pio XI), contava-me da vida fecun-
da do cardeal milanês, debruçado durante lustros sobre os alfarrábios
e manuscritos, no salão da Ambrosiana. Foi, assim, pensando no velho
amigo diplomata, no bondoso papa que me pousou a mão na fronte, e
também no jovem de vinte anos que ainda às vezes ressuscita um pou-
co dentro de mim, que entrei no luxuoso salão de leitura, cheio de es-
tátuas e de lampadários, revestido até o teto de estantes onde se ali-
nham tomos veneráveis. (Milão, 23 de janeiro de 1963)

Outro depoimento contemporâneo que me agradou foi o do meu


velho amigo Magalhães de Azeredo, que, de Roma, escreveu-me a
respeito do discurso (sobre o centenário de Afonso Pena). (Rio, 26 de maio de
1963)

Juntamente com esta extraordinária missiva, o infatigável Rui


(Ribeiro Couto) me enviava cópia da carta por ele remetida a Maga-
lhães de Azeredo, bem como uma previsão dos votos de todos os
acadêmicos, por escrutínios e pelos três candidatos, eu, (Guimarães)
Rosa e Pinheiro Chagas... (Rio, 13 de maio de 1965)

311
A fo nso A ri no s, fil h o

(Segue o trecho da carta do embaixador e acadêmico Ribeiro Couto ao acadêmico


e embaixador Magalhães de Azeredo, datada de Belgrado, 2 de dezembro de
1957, sobre a candidatura de Afonso Arinos à Academia Brasileira de Letras.
“Estou muito inquieto com a eleição do Afonsinho, que não me parece fácil, por-
quanto o excelente Guimarães Rosa estava de plantão no Rio e logo que faleceu o Zé
Lins, começou a campanha eleitoral. Afonsinho, um pouco aéreo, um pouco
“sputnik”, deixou-se ficar pela Europa, enquanto os adversários ganhavam ter-
reno. Já mandou o seu voto? O essencial é mandarmos o nosso voto, ao próprio
Afonsinho, pois essas manifestações “concretas” têm muita influência sobre os pro-
váveis hesitantes e os possíveis “comprometidos”. Como sei que o senhor é voto firme
do Afonso, sugiro que entregue ao filho, secretário em Roma, a carta ao presidente da
Academia. É o que vou fazer eu mesmo, por confiar mais na mala diplomática de
Roma. (...) Quando terei a ventura de abraçá-lo? No Brasil? Em Roma? Até lá,
peço que aceite, em comunhão de amizade com os Melo Franco [que saudades do
Virgílio, do Caio e do velho dr. Afrânio!] um muito afetuoso abraço do seu).

 Planalto

Afonso Ar i nos d e Melo F ranco

De Magalhães de Azeredo, epistológrafo copioso, há várias car-


tas. Eu mesmo tenho numerosas dele, que algum dia, talvez, venha a
reunir e publicar na Revista da Academia. Entre aquelas dirigidas a
Caio, que vou aqui recolhendo, graças à liberdade que me reservei
nestas memórias, separei uma do velho e saudoso amigo, interessan-
te pelo que revela dos métodos de trabalho do poeta que ele foi. É
escrita de Lausanne, a 25 de setembro de 1922:

312
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Caio querido.
Só esta manhã tenho vagar para escrever-te. “Que vida ocupada” – murmura-
rias, não sem malícia, talvez. Mas a verdade é que as musas tomam conta de mim. Já
sabes que elas fazem comigo lo que más les gusta, em virtude de muitos antigos
direitos seus, e da minha beata condescendência. Quando as imagens e os ritmos en-
tram a cabriolar na cabeça da gente, que resulta se não se lhes dá saída? dor de cabeça.
E eu detesto dor de cabeça. Em suma, encurtando razões, resolvi há dias puxar da
pasta os meus papéis, para organizar um novo livro de versos. A leitura destes me
acordou uma vontade furiosa de fazer outros, e assim já escrevi nove sonetos em fila
cerrada. Na organização do livro foi, como de costume, a exuberância que me atra-
palhou. Mesmo dando só as peças de caráter puramente lírico, que tenho prontas, ele
sairia grande demais. Além disso, não ficaria homogêneo. Decidi, pois, excluir todos
os poemas amorosos, e, em geral, aqueles em que transparece, por assim dizer, uma
perspectiva idílica ou pitoresca do mundo. Colijo apenas as peças em que predomina o
pensamento – um pensamento eivado quase sempre de pessimismo ou tristeza. Deste
forma, as da primeira parte (não sei ainda como as batize) se harmonizarão com as
da segunda, que será o “Intermédio epigramático”. O livro todo será intitulado Pó e
sombra. (Rio, 7 de janeiro de 1966)

Magalhães de Azeredo me contou certo dia em que, juntos, pas-


seávamos pelo Janículo, que o papa Pio XI, sábio historiador e ar-
queólogo, costumava dizer aos visitantes que uma semana de
Roma dava para se ver tudo o que a cidade oferece, mas que um
ano, aplicadamente empregado, é apenas suficiente para que se co-
mece a ver o principal. Nunca me esqueço desta maliciosa adver-
tência do velho papa, antigo bibliotecário da Ambrosiana. (Rio, 1 de
maio de 1966)

313
A fo nso A ri no s, fil h o

Hoje pela manhã fui até à igreja de Santa Maria da Vitória, a fim
de visitar a escultura de Santa Teresa golpeada pelo amor de Deus,
de Bernini. Fi-lo em afetuosa lembrança de Carlos Magalhães de
Azeredo, que nutria por essa imagem uma amorosa devoção; amoro-
sa mais no sentido da terna admiração terrena do que no da beata
contemplação religiosa. Foi ele quem me levou – já lá vão mais de
quarenta anos – pela primeira vez a contemplar a estranha realização
barroca do mestre seiscentista. Eu tinha idéia de que Azeredo possu-
ía um dos dedos da imagem, que se quebrara e que ele obtivera gra-
ças à amizade do guardião. Hoje observei que as mãos de mármore
estão perfeitas: houve lapso da minha memória ou restauração da fi-
gura. O que Azeredo possuía certamente era uma reprodução da ca-
beça de Santa Teresa primorosamente feita em mármore, naquela
posição caída e voluptuosa que Bernini trabalhou com tanta paixão.
Em 1962 Alceu Amoroso Lima e eu ainda a vimos na casa do velho
poeta. (Roma, 23 de junho de 1966)

 Alto-mar maralto

Afonso Ar i nos d e Melo F ranco

A razão dessa escolha foi que Anah e eu moramos neste mesmo


hotel há mais de quarenta anos: ela em 1927, eu em 1925. Como
Roma nos parecia festiva e jovem! Lembro-me de um poema, bas-
tante ruim, que então escrevi, no qual procurava fixar a natureza pri-
maveril dos jardins cheios de crianças, em vez das ruínas imperiais e
monumentos barrocos. Mostrei esses versos, que não mais possuo, a
Magalhães de Azeredo, e ele escreveu a respeito uma carta a Mário

314
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

de Alencar, que me foi retransmitida, em cópia, por Jorge, filho do


destinatário e meu amigo. Azeredo queixava-se, na carta, da influên-
cia de Graça Aranha sobre a nova geração literária (ele não gostava
de Graça), e tomava como exemplo a minha pobre poesia. Parecia ao
poeta-embaixador que eu, propositadamente, dizia sobre Roma o
contrário do que diria um poeta sensível ao passado.
Tanto quanto posso lembrar-me, isto era falso. O que havia nos
meus versos não era insensibilidade afetada, mas ignorância genuína
e estuante mocidade. Aquela Roma de abril (abril para mim no ano e
na vida) era tão sinceramente vista como a de agora, Roma triste sob
o sol de agosto. E era, provavelmente, mais provocadora de felicida-
de, porque, como lá diz o Eclesiastes, quem acresce em saber aumen-
ta em sofrimento. (Roma, 28 de agosto de 1968)

Penso em como são raras e pouco marcantes as páginas brasileiras


sobre Roma e, mesmo, sobre a Itália. No entanto Joaquim Nabuco,
Magalhães de Azeredo, Sérgio Buarque de Holanda aqui viveram, o
segundo durante quase toda a vida, e os dois outros por bastante
tempo. (Roma, 7 de julho de 1970)

Lembro-me perfeitamente da primeira vez que vi a coluna de


Marco Aurélio. Foi numa tarde, em 1925. Eu vinha de automóvel,
com Magalhães de Azeredo. Passávamos pelo Corso e o meu velho
amigo, já bastante surdo, interrompeu o que vinha dizendo para ob-
servar com negligência “esta é a praça Colonna”. Tive vontade de
pedir-lhe que fizesse parar o carro, que me permitisse descer, admi-
rar o monumento que ali se ergue, desde Marco Aurélio, mas minha

315
A fo nso A ri no s, fil h o

timidez me conteve. Minutos depois flanqueávamos outra vista clás-


sica de Roma e Azeredo (que continuava a falar mal de Graça Ara-
nha) tornou a interromper-se para lançar-me com indiferença: “ali é
a fonte de Trevi”... Fitei-a desolado, enquanto o carro circundava a
praça e Azeredo não percebia minha ansiedade. (...)
Devotados a Roma foram os embaixadores na Santa Sé: Maga-
lhães de Azeredo, Hildebrando Acioli, Heitor Lira. (Roma, 19 de se-
tembro de 1971)

 Amor a Roma

Afonso Ar i nos d e Melo F ranco

Em resumo, pelo que me deu a entender Carlos Magalhães de


Azeredo, amigo de mocidade de meu pai e embaixador no Vati-
cano (a quem ele escrevera para que fosse o meu guia romano),
era importante que eu sentisse Roma, antes que viesse a compre-
endê-la.

O contato continuado de certos estrangeiros que se tornaram ro-


manos, entre eles os brasileiros Magalhães de Azeredo, Deoclécio
Redig de Campos e Murilo Mendes, reúne, obviamente, a presença
em Roma com a presença de Roma.

316
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

As janelas do meu quarto abriam sobre os muros de Aureliano e


os jardins da Vila Borghese. Logo que pude comuniquei-me com
Carlos Magalhães de Azeredo, a quem vinha recomendado por
meu pai. Os dois tinham sido colegas de trabalho, como secretá-
rios na Legação do Brasil em Montevidéu, em 1896, ano em que
nasceu, naquela cidade, meu irmão Caio, o primogênito, que veio,
em 1919, a ser secretário de Azeredo, na Embaixada brasileira jun-
to ao Vaticano.
Em Montevidéu, Azeredo se casara com a jovem Maria Luísa
Caymari, filha de um homem de negócios cubano que tinha ativida-
des na Europa, na América espanhola e no Brasil. A família Caymari
era ligada, por amizade e por interesses de dinheiro, a Quintino Bo-
caiúva, que era, como se sabe, filho de argentina. Um dos melhores
poemas de Azeredo, publicado no livro Procelárias, editado em 1898,
é o dedicado à noiva, sob o título “A escolhida”, escrito em Monte-
vidéu no ano de 1895.
Azeredo era dois anos mais moço que meu pai (nascera em 1872)
e casou-se em princípios de 1896, enquanto Afrânio se casara três
anos antes, em Ouro Preto. Em carta de 30 de janeiro de 1896, a
mãe da noiva anunciava a Quintino Bocaiúva: “O jovem se chama
Carlos Magalhães de Azeredo, tem talento e boas qualidades... Aca-
ba de ser nomeado para Roma.” Com poucas interrupções, Maga-
lhães de Azeredo ali viveu perto de setenta anos, até que a morte o
acolheu, sempre em Roma, mais que nonagenário, em 1964.

Foi então que o governo imperial, em aviso de 19 de maio de


1855, proibiu a admissão de noviços aos conventos. Era matar as or-
dens religiosas, com o passar do tempo. Não vamos acompanhar os
pormenores deste incidente diplomático, os quais não interessam a

317
A fo nso A ri no s, fil h o

esta breve resenha da presença política do Brasil em Roma, até a ges-


tão de Magalhães de Azeredo.

Tendo-se casado com Maria Luísa a 1 de junho de 1896, em


Montevidéu, Magalhães de Azeredo embarcou com a esposa para o
Brasil, no dia 6, pelo navio Portugal. Instalou-se em Petrópolis (pro-
vavelmente aquele carioca queria evitar o risco da febre amarela), e,
da serra, escrevia ao protetor Quintino Bocaiúva e ao mestre Macha-
do de Assis, de quem se aproximou filialmente, ajudado pelo mestre
Quintino. A 23 de junho, segundo a carta de Azeredo a Quintino, o
jovem casal partiu do Rio para a Itália, a bordo do navio North-Ame-
rica. Em meados de julho devia estar em Roma, onde viveu todo o
resto de sua longa vida, como dissemos.
Da Itália começa, em agosto de 1896, sua correspondência com
Machado de Assis, publicada em 1969 pelo Instituto Nacional do
Livro. Correspondência na qual se destaca a afetuosa solicitude do
mestre para com o jovem poeta.
O chefe de Azeredo em Roma, ministro do Brasil junto à Santa
Sé, era o mineiro Francisco Badaró, ex-deputado, que havia sido no-
meado por Floriano Peixoto. Badaró recebeu mal o jovem secretário,
suspeitado de monarquista, e tramou com êxito sua demissão, lavra-
da por decreto de Prudente de Morais, em janeiro de 1897. Era na-
tural que o florianista Badaró recebesse mal o antiflorianista Maga-
lhães de Azeredo, o qual, hostil à ditadura de Floriano, pertencera ao
grupo de intelectuais que se havia refugiado em Minas, entre 1893 e
1894.
As relações entre chefe e subordinado eram más desde a chegada
deste a Roma. Em cartas de Azeredo e Maria Luísa a Quintino,
transmite o jovem casal péssima imagem do chefe da Legação.

318
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Quando Azeredo soube da demissão de Badaró, por ele próprio, de-


sabafou mais francamente com Machado de Assis, em missiva de 23
de março de 1897: “Conheço bem o grotesco e detestável ministro
com quem tive a desgraça de trabalhar; toda Roma o conhece e sabe
do que é capaz... Não quero estender-me muito sobre a fama horrí-
vel que ele tem, pela sua grosseria, pela sua presunção grotesca, pela
má fé nos contratos, pelo licencioso de sua vida, e pela absoluta ne-
gligência nos trabalhos da Legação. Toda gente sabe que ele reside
fora de Roma, que só vem aqui, geralmente, para receber os venci-
mentos no princípio de cada mês, e passa a vida em passeios e caça-
das, pela Itália e pelo estrangeiro.”
Devia haver bastante exagero e mágoa compreensível neste desa-
bafo. Badaró, de velha família do norte de Minas (o sobrenome foi
adotado por ela como protesto liberal, quando do assassinato, em S.
Paulo, do jornalista italiano Líbero Badaró, em 1830), fora nomea-
do por motivos políticos, por sua fidelidade a Floriano. E Azeredo
era, de fato, um monarquista que tinha ficado com a República,
como tantos outros (o maior deles foi Nabuco), para fazer sua car-
reira na diplomacia. Meu pai, companheiro de Azeredo em Monte-
vidéu, foi demitido do posto de secretário em Bruxelas, no mês de
dezembro, mas por outro motivo: em virtude da lei daquele mês, que
suprimiu vários postos diplomáticos por medida de economia. Meu
pai disse-me que o sogro, Cesário Alvim, sugerira a Prudente a de-
missão. Queria talvez a filha junto a si.
Azeredo foi para Paris, onde ficou vivendo com os sogros, que mo-
ravam na Avenida dos Campos Elísios. As cartas desse período a Ma-
chado de Assis ocupam-se pormenorizadamente do assunto. Graças à
intervenção de Quintino Bocaiúva, Azeredo foi, afinal, reintegrado no
seu posto de Roma, em janeiro de 1898, nos mesmos mês e ano em
que, significativamente, Badaró era dispensado de sua função de mi-
nistro. O florianismo declinara e a autoridade civil, com Prudente, se

319
A fo nso A ri no s, fil h o

consolidara. Em carta a Machado, de 10 de fevereiro, Azeredo obser-


va: “A restituição do mesmo cargo que eu exercia e a exoneração do sr.
Badaró tornaram completo e inequívoco o ato do governo.”
Nesse período de residência em Paris com o sogro é que ocorreu seu
curioso encontro com Eça de Queirós, que ele me contou e que creio já
ter narrado por escrito, mas que vale repetir. Para se distrair e, talvez, ga-
nhar algum dinheiro, Azeredo aceitou colaborar na revista brasileira que
o paulista Martinho Botelho publicava em Paris, da qual dedicou um
número ao grande romancista português. Incumbido de redigir, creio, a
nota de apresentação, estava Azeredo na redação quando entra o pró-
prio Eça à procura de Eduardo Prado. Emocionado com a visita daque-
le que era o ídolo literário de sua geração no Brasil, o jovem Azeredo
não obedeceu às instruções de sigilo, e revelou a Eça o preparo do nú-
mero especial, e que ele ali estava escrevendo o seu elogio. Qual não foi
sua decepcionada surpresa ao verificar que Eça não se mostrou nada
abalado com a revelação. Sem lhe perguntar sequer o nome, deixou cair,
com displicência, já a caminho da porta: “Está a escrever o meu elogio?
Pois carregue-lhe no adjetivo...” E retirou-se.
Do mesmo ano de 1898 é a edição, na cidade do Porto, do livro
de Magalhães de Azeredo, Procelárias, poemas reunidos e, em parte,
escritos durante o período de afastamento da carreira diplomática.
As mágoas do funcionário injustiçado transparecem no poema inau-
gural, que dá título ao livro, em estrofes como estas:

Triunfa o mal; sórdida, a inveja


Tramas combina, em sombras mudas;
Ri o cinismo, o ódio esbraveja.

Conspira, intrépida e serena,


A traição; o ósculo de Judas
As frontes puras envenena;

320
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Os justos são vilmente expulsos;


Coroa os déspotas a plebe
Dando aos grilhões da infâmia os pulsos.

Sente-se nesses versos a condenação da ditadura florianista e do


republicanismo meio terrorista, que se prolongou pelo governo de
Prudente de Morais. Os poemas, escritos a partir de 1890, são ofe-
recidos a Machado de Assis, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Coe-
lho Neto, Carvalho Mourão, Filinto de Almeida, Alcântara Macha-
do, Valentim Magalhães, e outros escritores do tempo. O meu volu-
me traz a seguinte dedicatória ao meu tio e homônimo: “Ao caro
amigo Afonso Arinos oferece afetuosamente Magalhães de Azere-
do. Roma, 1898.”
É de se notar a ausência de versos sobre Roma, o que indica que
ou as poesias foram compostas antes de o poeta iniciar ali a sua vida
diplomática, ou foram escritas durante a fase de afastamento da car-
reira e residência em Paris.
Badaró foi substituído logo por Ferreira da Costa, funcionário de
carreira, que ficou em Roma até 1902. Azeredo manteve-se no posto
com ele. Em 1902 é nomeado Bruno Chaves, outro diplomata de car-
reira. Azeredo continua como secretário. Provavelmente para assegu-
rar sua permanência no posto, Azeredo viaja ao Brasil em agosto de
1902. Preparava-se para assumir o presidente Rodrigues Alves. O ba-
rão do Rio Branco estava escolhido para o Itamarati e Azeredo vinha,
como é tão comum na sua carreira, garantir-se junto ao novo governo.
Sempre receoso da febre amarela, ficou residindo em Petrópolis, de
onde escreve continuamente ao seu mestre Machado de Assis. Em
abril de 1903, já estava em Roma, para onde tinha conseguido regres-
sar, graças provavelmente à influência de Bocaiúva junto ao barão.
Nessa ocasião lhe é dado conviver com Joaquim Nabuco, que em
Roma se encontrava, a fim de acompanhar, até o injusto malogro, o

321
A fo nso A ri no s, fil h o

litígio de fronteiras entre o Brasil e a Inglaterra, no qual era árbitro,


por infeliz concordância nossa, o mesquinho e pouco correto Vítor
Emanuel III.
Azeredo experimentou, pouco depois, forte emoção com a doen-
ça e morte de Leão XIII, ocorrida em julho, após um quarto de sécu-
lo de pontificado. Lembro-me bem de que, nos últimos dias de mi-
nha viagem a Roma, em 1925, o embaixador convidou-me para um
passeio ao Janículo, ponto mais elevado da cidade. No alto, ao pé da
estátua de Garibaldi (que ali travou a perdida batalha contra os fran-
ceses, em defesa da sua República de 1949), Azeredo, sem que saís-
semos do carro, dispensou por algum tempo o motorista e comuni-
cou que ia ler-me uma página antiga. Esta página era a descrição do
ambiente do Vaticano, durante os últimos dias da vida de Leão XIII.
Não sei se tal escrito se encontra nos arquivos de Azeredo, conserva-
dos na Academia, nem dele guardo recordação muito precisa. Ape-
nas lembro-me de que era uma peça meio crítica, na qual o então se-
cretário brasileiro anotava as intrigas dos vivos ao redor do grande
papa moribundo. Foi a lembrança que me ficou daquela tarde, vivi-
da em um dos mais belos sítios do mundo, em companhia do diplo-
mata e humanista brasileiro.
Em agosto de 1903, foi eleito Pio X, depois santificado. Em
1905, o papa elevava a cardeal o bispo do Rio de Janeiro, d. Joaquim
Arcoverde. Na biografia do presidente Rodrigues Alves relatei, com
pormenores, os precedentes desse acontecimento. Da narrativa vê-se
como o jovem secretário Magalhães de Azeredo participou deles.
Em 1898, quando da passagem do presidente-eleito Campos Sales
por Roma, Magalhães de Azeredo servia como encarregado de ne-
gócios, por causa da demissão de Badaró. Foi nessa qualidade de
chefe de missão (posto que ocupava pela primeira vez) que sugeriu a
Campos Sales, antes de sua audiência com Leão XIII, a conveniência
de iniciar, depois de empossado, negociações efetivas para a preten-

322
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

são brasileira de ter o seu cardeal. Campos Sales aceitou logo a su-
gestão e, pouco depois de assumir a presidência, iniciou as tratativas
com o Vaticano, que se concluíram com Pio X e Rodrigues Alves.
Azeredo acompanhou tudo de perto.
Em agosto de 1914, momento trágico para a vida da Europa e do
mundo, desapareceu Pio X que, no mês seguinte, foi substituído por
Bento XV. Em começo do ano de 1915, Azeredo foi efetivado
como chefe de missão, sempre em Roma, e entregou ao novo papa as
credenciais de ministro plenipotenciário do Brasil. Durante toda a
guerra permaneceu nessa categoria, até que, em abril de 1919, foi
elevado, pelo governo Delfim Moreira (Rodrigues Alves tinha fale-
cido, sem tomar posse, em janeiro), à função de primeiro embaixa-
dor do Brasil na Santa Sé.
No discurso com que apresenta ao papa suas novas credenciais
(14 de abril de 1919), Azeredo alude às angústias que se acumula-
vam sobre o mundo, depois da difícil vitória dos aliados, cinco me-
ses antes. Sente-se a preocupação do embaixador com a vitória dos
bolcheviques na Rússia, em novembro de 1918. Diz ele: “Contra o
materialismo filosófico e econômico, que, chegado às suas conse-
qüências extremas, ameaça subverter os mais preciosos tesouros do
nosso patrimônio ético e civil, só nos podem proporcionar válida
defesa aquelas grandes forças morais, que constituíram, sempre, o
supremo paládio do consórcio humano.” Era ao cristianismo que se
referia. Sessenta anos depois, quando estas linhas são escritas, a al-
ternativa permanece inalterada, pelo menos para o mundo ocidental:
marxismo ou Igreja.
Quando Azeredo foi feito embaixador, era ministro do Exterior
Domício da Gama, mas o verdadeiro chefe do governo (“regente”,
como o chamavam na Câmara) era Afrânio de Melo Franco. Não é,
assim, de se descartar a possibilidade de ter ele influído no ânimo do
ministro e no do presidente (ambos seus amigos), a fim de que fosse

323
A fo nso A ri no s, fil h o

elevado, ao topo da carreira, seu velho companheiro de mocidade


em Montevidéu.
Como embaixador no Vaticano, continuou Azeredo até aposen-
tar-se, mas nunca deixou Roma, onde viveu, com poucas e breves in-
terrupções, desde 1896 até à morte, em 1964, portanto por quase
setenta anos.
Depois de aposentado e viúvo, tornou-se impossível, para o em-
baixador, que não tinha família no Brasil, regressar ao seu país. Nun-
ca deixou de ser brasileiro, mas sua pátria era também Roma, a única
cidade, repetimos, cuja cidadania é compatível com qualquer outra.
A última vez em que veio ao Brasil visitou-me, na Rua Anita Gari-
baldi. Estava já muito idoso. Anah e eu o recebemos para um almo-
ço, ao qual compareceram Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarqüínio
de Sousa. Embora bastante surdo, Azeredo ainda interessou aos nos-
sos amigos, pela finura e malícia com que falava. A Lúcia atraíram
especialmente suas recordações íntimas de Machado de Assis.
A solidão e a aposentadoria eram agravadas, para Azeredo, pela es-
cassez de recursos. Tendo deixado a bela casa da Via Po, ocupava, nos
últimos anos, um modesto apartamento no novo (e para mim desa-
gradável) bairro de Parioli, que partilhava – este é o termo – com uma
família de antigos empregados italianos. Por ocasião do Segundo
Concílio Vaticano, em 1962, ao qual comparecemos Alceu Amoroso
Lima e eu, estivemos os dois em visita a Azeredo e nossa impressão foi
triste. Para começar, o nome constante da porta de entrada, como mo-
rador do apartamento, não era o dele, mas o do empregado.
Lá dentro deparamos o velho poeta sentado em uma poltrona, ain-
da lúcido, mas dando a impressão de inteiramente entregue aos acom-
panhantes. Não parecia receoso ou maltratado; mas, sem dúvida, era
uma pessoa privada do poder de decisão. Alceu e eu conversamos com
ele sobre coisas novas e antigas do Brasil, mas nos retiramos tristes.

324
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Eu estava à espera de Francesco Bianco, amigo da família, a quem,


juntamente com Azeredo, muito fiquei devendo naquela primeira
visita à Itália. (...)
O poema que escrevi sobre Roma, naqueles dias de abril de 1925,
e submeti à apreciação de Magalhães de Azeredo, é um exemplo des-
se mau gênero, que eu supunha modernista. (...) Relendo-o (coisa
que não fazia há tantos anos!) com tal distância de tempo, conside-
ro-o tão mau quanto o leitor, se aqui o publicasse. Mas de certa for-
ma, me comove, ou melhor, me enternece. Não pelo que é, mas pelo
que fui. Vejo-me como se fosse um outro, um filho (não! um neto!)
que reaparecesse depois de longa ausência nesses países do passado,
tão esquivos, pungentes, irreais.

(Eis o poema: Roma cheia de luz

Eu a vi toda coroada de chamas,


a fronte secular brilhando sob as gemas
de luz do diadema matinal.

O dia era um incêndio inofensivo e lindo,


que sobre a cidade florescida vinha vindo
lentamente, do céu liso como um cristal.

Roma azul!

Vi tuas ruas,
vi a estreiteza tortuosa de tuas ruas,
vi roupas multicores estendidas nas janelas,
vi crianças que pedem cigarros ou jogam dados pelas vielas
e vi criadas que empurram carrinhos nos jardins senhoriais.

325
A fo nso A ri no s, fil h o

Roma,
doce velhinha acolhedora,
eu vi a eloqüência dos teus cocheiros sentimentais...

Que monumentos de antigüidades são teus fiacres originais!

No fórum, entre ruínas convidativas como um jardim,


perambulam mulheres inquietantes
que põem manchas escuras na manhã de jasmim.

Elas são magras, opacamente vestidas,


têm gestos bruscos que quebram a calma da manhã de ouro
e querem saber detalhes de arqueologia...

Elas são loucas: não há ruínas com tão lindo dia,


tudo está novo na manhã luminosa...

Roma,
adolescente de cabelos cor-de-rosa.

Agora,
são homens louros que trocam idéias em língua rude
sobre a efêmera flor das glórias imperiais.

Que ingenuidade! Nesta manhã de primavera


o Palatino é um lindo outeiro sem história,
cuja simples razão de beleza e de glória
são essas três rubras árvores floridas
que se levantam como taças incendidas
glorificando esta manhã de primavera.

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M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Taças cheias de vinho perfumado...

As flores roxo-encarnadas cobriam a terra como uma


túnica carmesim de seda e espuma.

Túnica efêmera como as púrpuras imperiais...

E em torno aos homens que discutiam preocupados,


pousando de leve na relva macia
as flores desciam em lentos vôos espiralados.

E pareciam frases veladas,


frases aladas de ironia.)

Transcrevo, a propósito, o que escrevi em A alma do tempo, na en-


trada de 5 de janeiro de 1960:

“Premido pela paixão da escola, escrevi um poema sobre Roma


(bastante ruim, aliás) no qual procuro dar largas a impressões de um
modernista. Impressões falsas e que eu, no fundo, não sentia. Azere-
do não se enganou sobre aquele artificialismo pretensioso. A mim
nada disse, a não ser vagas amabilidades, mas a seu fraternal amigo
Mário de Alencar escreveu, a respeito, trechos de uma carta que fo-
ram copiados e remetidos de torna-viagem pelo meu amigo Jorge, fi-
lho do destinatário. Naquela carta, Azeredo se desabafava, junto a
Mário, dos ressentimentos contra Graça Aranha. (Azeredo conhe-
ceu Graça Aranha em Roma, durante a missão Nabuco, da qual Gra-
ça era secretário.) Depois de referir-se generosamente a mim, acen-
tuava o mal que Graça fizera à nossa geração, matando nela (assim
ele supunha) a receptividade para a cultura antiga. E aludia ao meu
poema, observando, com agudeza, que, nele, eu não exprimia talvez

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A fo nso A ri no s, fil h o

o que sentisse, mas o contrário daquilo que deveria sentir um poeta


não modernista, em contato com Roma.”
Magalhães de Azeredo só se enganava em um pormenor: a in-
fluência de Graça Aranha, sob a qual eu me encontrava quando da
viagem à Itália, foi-se desfazendo à medida que eu ia avançando no
mundo da cultura, mundo cuja universalidade absorve gêneros, es-
colas e épocas. A cultura é precisamente a fusão, mais espiritual do
que intelectual, de todas as formas com todos os tempos.
Apesar de hostil ao movimento de renovação literária que então se
processava no Brasil, Magalhães de Azeredo mostrou-se interessado,
mesmo desejoso de que eu escrevesse um estudo sobre a sua obra de
poeta. Mais em homenagem ao amigo generoso e hospitaleiro do que
levado por admiração pelo escritor, declarei-me inclinado a preparar o
trabalho. Azeredo remeteu-me, para Genebra, farto material e, em
mais de uma carta, reiterava a esperança de que eu não desistiria do in-
tento. A vida me impediu de levar avante o desejo – mais do meu ve-
lho amigo do que, propriamente, meu. Com pretensões a escritor
“modernista”, não me sentia muito à vontade para escrever sobre um
“passadista”, especialmente sobre aquele, que não se destacava no
quadro das respeitabilidades preservadas. O caso de Azeredo é relati-
vamente freqüente. Trata-se de escritor com influência cultural sobre
os que dele se aproximaram, mas sem obra própria importante. (...)
Azeredo tinha 52 anos em abril de 1925 e, desde a adolescência,
viveu dentro da literatura. Estudante na Faculdade de Direito de S.
Paulo, jovem bacharel no exílio florianista em Minas Gerais, poeta
no Rio do começo da República, autor conhecido, pelo menos reco-
nhecido (graças à proteção de Machado de Assis ele foi fundador da
Academia Brasileira), afastado do serviço diplomático brasileiro no
Paris de Rio Branco, Eduardo Prado e Eça de Queirós, de novo di-
plomata na Roma de Nabuco, Graça Aranha e Domício da Gama,
finalmente na sua Roma de sempre, Magalhães de Azeredo não co-

328
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

nheceu outra vida, outro ambiente, outra preocupação, outra ativi-


dade senão a literatura. Durante o mês que passei com ele, só sobre
literatura, arte e história conversávamos. Nas ruas de Roma, nas ruí-
nas, nos templos, nos museus, nos grandes parques romanos ou na
Embaixada da Via Po, todo ele era recordação viva de Leão XIII,
Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, D’Annunzio, Heredia, Anatole
France, Rio Branco, Joaquim Nabuco, Machado de Assis... Essas
sombras nos cercavam pelas vias ilustres da urbe.
A carreira diplomática, que ele praticou quase toda em Roma, com
dedicação ainda que pouco trabalho, era o meio que lhe permitia viver
despreocupadamente, imerso naquele ambiente cultural dos mais im-
portantes do mundo, do qual Roma era, por tantos títulos, a capital.
Utilizando o italiano como o próprio idioma e o francês com desem-
baraço, Azeredo conhecera, em Paris, Heredia e Anatole France; na
Itália D’Annunzio confidenciava-lhe os expedientes usados para o seu
êxito (sempre provocar um escândalo pouco antes de publicar algum
novo livro); sob Leão XIII, Pio X, Bento XV e Pio XI, pôde praticar
familiarmente com expoentes do Sacro Colégio e com dignitários
eclesiásticos de várias partes do mundo; conversou mais de uma vez
com o barão von Pastor sobre o andamento da sua História dos papas,
uma das mais importantes obras da historiografia mundial.
A primeira vez em que ouvi falar de Pastor, morto em 1929, foi
por Azeredo, em 1925. O embaixador não se jactava de sua variada
experiência cultural, do seu relacionamento com tantas celebridades,
brasileiras e estrangeiras, da sua vivência em tantos ambientes, desde
a juventude. As referências, as narrativas, as lembranças, saíam-lhe
ao acaso da conversa; Machado de Assis, no Cosme Velho, sentado
na sala de jantar, descascando uma laranja; Eça de Queirós em Paris,
de óculos escuros, à procura de Eduardo Prado; Pio X retirando o
solidéu da cabeça e passando-o, como lembrança, ao ministro do
Brasil; o sacristão de S. Pietro in Vincoli (aqui, houve um lapso de Afonso

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A fo nso A ri no s, fil h o

Arinos: a escultura está em Santa Maria della Vittoria) dando-lhe, de presen-


te, um dedo da Santa Teresa de Bernini; os gemidos da jovem muca-
ma no porão da casa materna, na Rua de São Bento, no Rio, gemidos
que preocuparam o sinhô moço, no alto da escada, logo tranqüiliza-
do pelo negro velho, que estava com ela no porão: “não é nada,
Nhonhô, tô costumando ela co’a coisa”; o cardeal secretário de
Estado que, depois de admoestar o embaixador pelo pequeno atraso
na audiência papal, ao ouvir a pilhéria de que ficara retido na rua por
uma turista bonita, levantou a mão direita e deu-lhe a absolvição...
Essas histórias e outras se misturavam com breves interrupções e
um gesto dentro do automóvel em movimento: “Olha (estávamos
na Praça do Panteão), ali era uma estalagem onde morava Ariosto...
Naquele palácio – não neste, naquele ! – (íamos pelo Corso) era a
Embaixada de Chateaubriand... Este teatro (estávamos ouvindo
Stravinski reger uma orquestra) é o antigo túmulo de Augusto... Ga-
ribaldi morou naquela casa... As grandes estátuas do Capitólio fo-
ram desenterradas junto daquela igreja...”

Neste livro tecido de vivência, leitura e meditação, tudo compatí-


vel com a modéstia do meu cabedal, ser-me-á permitida uma recor-
dação. É a lembrança saudosa de um adolescente que, em companhia
do velho e sábio guia intelectual, Magalhães de Azeredo, assistia a
um concerto de orquestra no Augusteo, na primavera de 1925. A
beleza da sala, o recolhimento da assistência, flor da sociedade ro-
mana, o calor dos aplausos, justificavam-se. Roma, como outras ci-
dades européias, vinha consagrando um maestro que regia sua pró-
pria composição. Era homem jovem, chamado Igor Stravinski.

330
M a galhães de A zeredo e A fo nso A r i n o s

Da estação ferroviária, naquela manhã de abril de 1925, segui,


como já foi relatado, para o meu hotel, que era o Flora, colocado na
vizinhança imediata dos muros. O quarto que ocupei ficava na fa-
chada, cujas janelas se abrem sobre a milenária construção. Assim, a
primeira visão próxima que tive de Roma foram as muralhas e, logo
após, as árvores e flores dos jardins da Vila Borghese.
Lembro-me bem. Posso evocar, encostado à janela aberta, o jo-
vem que sorvia com os olhos a paisagem emoldurada pelos batentes
de madeira. Distinguia linha sinuosa das fortificações, a porta em
arco sobre a Praça Brasil e, logo após, as frondes e relvados do par-
que. Despertado da contemplação pela campainha do telefone, o jo-
vem ouviu a voz amiga do embaixador Magalhães de Azeredo, que
então, aos 52 anos, lhe parecia um velho senhor. “Prepare-se, venha
logo, Via Po 32. Temos muito que conversar.”

Esta era a Roma que Montaigne contemplou, a 26 de janeiro, do


alto do Janículo. O panorama que se descerra dessa eminência é o
mais belo da Urbe. Antes de entrar na descrição montaigniana per-
mito-me recordar aquela que me foi proporcionada por Magalhães
de Azeredo, em 1925, e fixada em A alma do tempo:
“Além de monumentos grandiosos, de fama universal, Azeredo
não esquecia as pequenas relíquias de Roma, porventura mais tocan-
tes, como São Paulo das Três Fontes, que ainda recordo cheia de gli-
cínias em flor, uma pequena capela do Bramante, a Farnesina, a pri-
são do Tasso, no Janículo. No alto deste monte, certa tarde, junto à
estátua de Garibaldi, com a Roma dourada a nossos pés, Azeredo
leu-me uma página viva e reveladora sobre a atmosfera de inquieta-
ção e intriga que reinava nos corredores do Vaticano, nas horas que
precederam a morte de Leão XIII.”

331
A fo nso A ri no s, fil h o

(Lembro agora, com saudade, a demorada visita que fiz à Farnesi-


na, em companhia de Magalhães de Azeredo e Francesco Bianco. O
espanto do rapaz brasileiro ao contemplar aquelas paredes, aquelas
pinturas, enquanto os velhos amigos lhe abriam os olhos do espírito
para novas paisagens dentro de si mesmo...)

Em 1932, deixando com Anah o sanatório Bella-Lui para uma


curta excursão à zona dos lagos lombardos e a Milão, eu já podia es-
crever a crônica “Viagem stendhaliana”, que enviei a Roma, para re-
visão do meu amigo Magalhães de Azeredo, o qual ma devolveu com
minuciosas correções e sugestões, todas adotadas na publicação acei-
ta pelos Diários Associados. (“Viagem stendhaliana, in Espelho de três
faces, Publicações Brasil, S. Paulo, 1937.)

332
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III
(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Ou-
tras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n. 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição reali-
zou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

Cadeira Patronos Fundadores Membros Efetivos


01 Adelino Fontoura Luís Murat Evandro Lins e Silva
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Carlos Heitor Cony
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia Rachel de Queiroz
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Raymundo Faoro
07 Castro Alves Valentim Magalhães Sergio Corrêa da Costa
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Antonio Olinto
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Lêdo Ivo
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Celso Furtado
12 França Júnior Urbano Duarte Dom Lucas Moreira Neves
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Miguel Reale
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Pe. Fernando Bastos de Ávila
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Marcos Almir Madeira
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Roberto Campos
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque Ivo Pitanguy
23 José de Alencar Machado de Assis Jorge Amado
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Sábato Magaldi
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Eduardo Portella
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Oscar Dias Corrêa
29 Martins Pena Artur Azevedo Josué Montello
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Geraldo França de Lima
32 Porto-Alegre Carlos de Laet Ariano Suassuna
33 Raul Pompéia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva João Ubaldo Ribeiro
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso João de Scantimburgo
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Ivan Junqueira
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Roberto Marinho
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Evaristo de Moraes Filho
ERRATA

O artigo “Centenário de Alcântara Machado”, de Evandro Lins e


Silva, publicado no número 28 da Revista Brasileira, págs 65-71, tem
seu título mudado para “O jurista Alcântara Machado”. O centená-
rio que se comemora em 2001 é o do nascimento de António de
Alcântara Machado (filho de José de Alcântara Machado).

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