Revista Brasileira 53
Revista Brasileira 53
Revista Brasileira 53
o
Fase VII Outubro-Novembro-Dezembro 2007 Ano XIII N 53
Dir e to r i a Diretor
Presidente: Marcos Vinicios Vilaça João de Scantimburgo
Secretário-Geral: Cícero Sandroni
Primeira-Secretária: Ana Maria Machado C onselho edi tori al
Segundo-Secretário: Domício Proença Filho Carlos Nejar, Arnaldo Niskier,
Diretor-Tesoureiro: Evanildo Cavalcante Bechara Lêdo Ivo, Alfredo Bosi
Sonetos ingleses
J o ão d e Sc a n t im b u r g o
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Joã o de Sc anti mbu rgo
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C ulto da Im o r t a l ida de
Afrânio Peixoto
Alb er to Ven a n c io F il h o
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Al berto Venanc i o Fi lho
Uma referência cabe à sua viúva, de quem certa vez fui advogado. D.
Chiquita, como era chamada, uma senhora de raras virtudes, fiel à memória
do marido, tinha uma singularidade, era quase uma acadêmica honorária:
além de esposa de acadêmico, era filha do acadêmico Alberto de Faria, ir-
mão do acadêmico Otávio de Faria, e cunhada do acadêmico Alceu Amo-
roso Lima.
Não poderia iniciar esta conferência sem prestar homenagem ao meu gran-
de amigo e saudoso confrade Josué Montello, grande amigo de Afrânio Peixo-
to. Mal chegado ao Rio, foi convidado para escrever o perfil biográfico de
Gonçalves Dias para a Coleção Afrânio Peixoto e participou na Academia das
comemorações do centenário de Machado de Assis. Josué Montello convi-
dou-o certa vez para ministrar uma aula no Curso de Biblioteconomia da Bi-
blioteca Nacional por ele dirigido, mas Afrânio não pôde aceitar o convite.
Em carta de 11 de maio de 1944 se escusaria:
“Meu querido amigo, mas não é possível. Como agora estudar outra coi-
sa, me obrigaria a fazer coisa digna, e então onerosa, e então fazendo parar a
máquina, ‘moinho de sal’ da bondade de Humberto de Campos. Amigo,
compreenda a lástima.”
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A f r â n i o P e i x o to
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“Sabe o Sr. que não é candidato quem não se inscreveu dentro do prazo
fixo e certo da inscrição, que, no caso, foi findo a 30 de outubro do ano p.
passado, uma carta, manifestando clara e precisamente a sua vontade de ser
acadêmico.
Ora, se Afrânio Peixoto não escreveu, como de fato, a carta aludida, não
foi candidato.”
E conclui:
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Al berto Venanc i o Fi lho
E prosseguiria:
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No ciclo sertanejo após Maria Bonita, publicou ainda Fruto do Mato (1920), Bugri-
nha (1922), Sinhazinha (1929), mas Maria Bonita é considerada sua obra principal.
A crítica considera a fase sertaneja como a mais expressiva, e Luciana Ste-
gagno Picchio falaria de uma “obra regionalista quase com faceirice numa pro-
dução novelística de feitura elegante e de horizontes limitados” e com a utili-
zação de um material agreste de mulheres baianas, numa alencariana galeria de
“perfis de mulher”.
Afrânio Peixoto foi Presidente desta Casa de 7 de dezembro de 1922, suce-
dendo a Carlos de Laet, até 20 de dezembro de 1923, substituído por Medeiros
e Albuquerque. Seus méritos estão reconhecidos no busto que se encontra no
Salão Nobre, juntamente com Machado de Assis e Austregésilo de Athayde.
Pode-se, entretanto, dizer que Afrânio foi um Presidente perpétuo. Antes e
depois da Presidência apresentava livros, encaminhava propostas, recebia visi-
tantes estrangeiros, prefaciava livros e representou a Academia em 1936 no
tricentenário da Academia Francesa.
Com o encerramento em 1922 da Exposição Internacional do Centenário
da Independência, para a qual a França construíra um pavilhão especial, o Petit
Trianon, no modelo do de Versailles, Afrânio Peixoto, em companhia de Gra-
ça Aranha, foi procurar o Embaixador Alexandre Conty, indagando da possi-
bilidade de o prédio ser doado à Academia. Conty solicitou a preparação de
uma nota para ser enviada ao Governo Francês. Conty teve uma atuação deci-
siva no encaminhamento do assunto e recebeu o título de sócio corresponden-
te da Cadeira 20. Na Academia há poucos dados sobre Conty, que nasceu em
1864, era escritor, e dentre seus livros destaca-se La Requête des Femmes. Não há
indicação sobre se era diplomata de carreira, mas pela idade tudo leva a crer
que tenha ocupado outros postos, como seu antecessor Paul Claudel.
A partir daí todas as iniciativas foram de Afrânio. A nota dizia:
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Quando das tratativas, era Presidente da República Epitácio Pessoa. Este não
tinha apreço pela Academia por força de desavença com Pedro Lessa, seu figadal
inimigo, eleito acadêmico e ambos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Empossado o Presidente Arthur Bernardes, Afrânio Peixoto foi procurá-lo
com outros acadêmicos para pedir-lhe apoio. Respondeu o presidente que o
assunto não era da alçada do governo, mas Afrânio Peixoto replicou que a aqui-
sição importava em responsabilidades que a Academia não poderia aceitar. Se
o governo não colaborasse, inclusive porque o terreno era próprio nacional, a
Academia não teria como adquiri-lo. Então ele se manifestou favoravelmente.
Foi apresentado projeto no Conselho Municipal para cessão do terreno,
mas o Prefeito Alaor Prata vetou o projeto. Afinal, conseguiu-se o apoio do
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“Dias alegres e tristes! Aqui viemos ter, tendo enfim achado um pouso, e
aqui vem ao nosso encontro a abastança. Começando pobres, não tínhamos
lar, no escritório da Revista Brasileira, o n.o 31 da Travessa do Ouvidor, que
também mudou e tem um nome estrangeiro, o de Sachet, irmanado na mor-
te sob o céu de Paris a esse Augusto Severo que denomina nossa rua... passa-
mos à rua da Quitanda n.o 47, hoje 57, onde no seu escritório de advogado
nos acolheu o nosso Rodrigo Octavio...
Aqui nos surpreendeu o legado do benemérito livreiro Francisco Alves,
que nos dá abastança e nos causa tanta injusta animosidade... Confesso-vos
que tendo, no poder que me conferistes, experimentado muitas vezes o ran-
cor e a cobiça que essa riqueza desperta, me tem várias vezes tornado ao juí-
zo: há momentos em que temos o direito quase de pensar que o nosso
Monthyon, o abnegado Francisco Alves, foi um malfeitor e quis matar a
Academia...
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Trianon tinha sido conseguido pelo Sr. Graça Aranha (aliás, estranho a es-
sas intrigas). Perdoe, meu caro amigo, a minha franqueza, mas o Sr. precisa-
va saber a verdade, que bem poderá ser histórica, e só uma pessoa a sabe, o
doador. Perdoe-me ainda e creia no seu afetuoso amigo e admirador.”
“Meu caro Presidente, em resposta à vossa recente carta, venho dar co-
nhecimento das circunstâncias pelas quais decidi propor ao meu Governo a
doação do Pavilhão de Honra da França à Academia Brasileira de Letras. O
Senhor esteve no mês de outubro de 1922 acompanhado do Sr. Graça Ara-
nha em meu escritório na Rua Paissandu e o senhor me declarou apoiado
pelo seu confrade que a Academia Brasileira de Letras seria particularmente
feliz de ser designada como donatária do Petit Trianon. Então pedi ao Se-
nhor pessoalmente me fazer redigir uma pequena nota para expor este pedi-
do e é a tradução deste documento que eu transmiti apoiando ao Ministro
francês das Relações Exteriores.”
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“Sou assíduo à Academia não só nos dias de glória, mas também e princi-
palmente nos dias magros. Atestam-no os empregados desta Casa e até os
presidentes dela que aqui vinham nesses dias, o Sr. Conde de Afonso Celso
e o Sr. Medeiros e Albuquerque, meus preclaros amigos, com quem nume-
rosíssimas vezes tive feliz ensejo de encontro e não me deixarão sem o seu
testemunho.
Aos serviços da Academia, não temo em declarar, desconheço quem seja
aqui mais assíduo.”
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“Estou certo de que é, ainda, como posto educativo que Afrânio recebe
em 1910 sua entrada para a Academia. Esta, para ele, é posto cultural em
que trabalha pela cultura do Brasil. É ele, durante largos anos, o ‘acadêmico
para quem a Academia é o número um de suas preocupações’. Inicia a mag-
nífica Biblioteca da Cultura Nacional, inestimável serviço aos brasileiros, a
quem a justiça da Academia chamou a Coleção Afrânio Peixoto, na qual
não há livro que não traga proêmios ou nota de Afrânio.
Era conversador incomparável e comumente se defrontava com Tasso
Fragoso nos serões da Biblioteca Nacional. Quando um se assenhorava da
palavra, o outro ficava aguardando ocasião para reavê-la. E que luta para
Tasso Fragoso quando Afrânio lhe tomava a dianteira!
Uma ocasião, Afrânio falava havia quase uma hora – enquanto Tasso
Fragoso permanecia em silêncio, desenvolvendo caladamente seu raciocínio
estratégico para calar o seu rival. E Afrânio continuava a falar. A certa altu-
ra, verificando que nenhuma oportunidade lhe podia aparecer para reapos-
sar-se da direção da conversa, Tasso Fragoso levantou-se, segurou Afrânio
pelos ombros e disse com argumento de sua cabeça branca:
– Agora falo eu que sou mais velho!”
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criada. No fim da vida seria lembrado para ministro da Educação e Saúde Pú-
blica no primeiro governo após a redemocratização. Só um apelo, em 1926, o
faria aceitar a cadeira de deputado pelo Estado da Bahia, por insistência do
amigo Góes Calmon, então governador do Estado. Os trabalhos realizados no
Congresso, como o projeto de assistência aos insanos e a lei de acidentes de
trabalho, constam de volume a que deu, com o sabor literário, o título de Marta
e Maria, dizia ele para não interessar os políticos.
Na expressão de Levi Carneiro:
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“Qualquer que seja o destino que essa ilustre Corporação lhe der, nada
poderá privar o autor de haver sido escolhido e da oportunidade de executar
tal obra, de outro modo talvez não o fizesse.”
E concluiria:
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E concluía:
“Nenhuma data, nome ou fato contestado... Dizem que, por narrar elei-
ções acadêmicas, acadêmicos eleitos na segunda, terceira ou quarta vez, can-
didatos que se acharam privados do coup de foudre da paixão pela Academia,
foram lembrados no livro ao público... Mas o livro terá segunda edição,
quando a vaidade não for mais... ‘contemporânea’.”
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“Depois de ler-se esta obra toda, o último volume permite uma revisão
de idéias, de sentimentos, de cultura com que se retorna do périplo silencioso.
E volta-se reconhecido ao autor pelas horas, pelos dias de repouso em re-
canto espiritual que lhe ficou devendo. E aos privilegiados que têm a fortu-
na de sua amizade, sobre a gratidão esta pequenina alegria impura: que pena
nos faz quem não gosta de Afrânio.”
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Al berto Venanc i o Fi lho
são e tortura não há sorriso. O erro dos que, sem atentarem bem para ela,
combateram e combatem minha definição está em que eles supõem que eu te-
nha dito ‘sorriso do homem’, quando o que eu escrevi foi ‘sorriso da socieda-
de’. Está claro que não poderia nunca dizer que a literatura é o sorriso do ho-
mem: primeiro porque esta, para mim, não existe, não passa de simples elo de
uma cadeia infinita; e, segundo, porque não ignoro que toda grande obra é fe-
ita, como a gestação, na dor. Mas só um ambiente social tranqüilo e feliz per-
mite o aparecimento de um livro notável. No tempo de Balzac, como havia
abastança social, o autor de Père Goriot pôde dedicar-se a criar vida para gozo
da sociedade. E só uma sociedade feliz aplaudiria Balzac. Das torturas de sua
doença e de suas prisões na Sibéria, no cárcere e no hospital, Dostoievski,
através de seus livros, saía de si para a sociedade que o admirava.”
E finalizando:
E em nova manifestação:
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“Estudou e escreveu
Nada mais lhe aconteceu.”
Sobre as críticas que lhe foram feitas por excessivo lusismo discorreu Afon-
so Pena Júnior:
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Afrânio Peixoto, não é só a Academia que se cobre de luto com o teu de-
saparecimento; é toda a Literatura Brasileira; é a ciência médica, de que fos-
te um dos mais consumados Mestres; é o Brasil e a língua que falam duas
Pátrias irmãs.
Nesta Casa, no meio século de sua duração, foste um dos maiores, dos
mais assíduos, dos mais amados e dos que mais amaram.
Se possuímos este palácio, dádiva generosa da França, a ela o devemos,
mas também à tua tenacidade de negociador avisado. Um dia nos trouxeste
o instrumento da liberalidade, a que somos perpetuamente agradecidos.
Durante longos anos não ocupaste uma cadeira. Dia por dia, escrevendo,
falando, ensinando, aumentaste a substância dos títulos que a conquistaram; e
a glória, que a tua pena ou a tua voz alcançaram, não a monopolizaste, como
seria natural. Dividiste-a conosco; incorporaste-a ao patrimônio intelectual
da Academia. Pertencias ao número daqueles que não embalsamam a fama à
sombra dos primeiros louros, mas dão-lhe um esplendor crescente, ador-
nando-a com novas flores e enriquecendo-a com novos frutos.
Nada escapou à curiosidade do teu espírito de privilegiado, que devassou
com brilho inexcedível a Medicina, o Romance, a Poesia, a Crítica, a Histó-
ria, a Filosofia e os segredos da criação artística.
Contigo desaparece e ganha os contornos da imortalidade um dos líderes
da geração predestinada, que emergiu das delícias do fim do século XIX e
chegou quase à metade deste, sabendo conservar, entre o desequilíbrio da
Revolução e da Guerra duas vezes desencadeada, o idealismo imarcescível
da Bondade e da Beleza. Foste, talvez, a última expressão ardente e vigorosa
do neo-romantismo brasileiro.
Sucumbes no ano em que vamos celebrar o centenário do nascimento de
Castro Alves, patrono da tua Cadeira e patrono, sobretudo, do Brasil liber-
to da escravidão. Saberemos confundir, na mesma enternecida homenagem,
o Poeta dos Escravos e aquele que melhor explicou e entendeu a sua glória
condoreira.”
Concluo com uma nota pessoal.
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No final da vida em 1944, três anos antes de sua morte, dedicou a jovem gi-
nasiano, filho de um grande amigo, as Obras Completas de Castro Alves, com to-
cante dedicatória: “Alberto: Castro Alves mereceu a paixão de Euclides. Que
eles lhe inspirem a paixão do Brasil ...”
Se pudéssemos resumir a vida de Afrânio Peixoto, poderíamos acrescentar
que, além da paixão do Brasil, ele teve também a paixão da Academia.
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C ulto da Im o r t a l ida de
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M urilo Melo Fi lho
Aprendendo o italiano
Em 1940, com 19 anos, Oscar teve uma pleurisia, com infecção nos dois
pulmões. Internou-se no Sanatório Belo Horizonte, durante três meses, após
os quais recebeu alta e saiu curado, tendo aproveitado a internação para apren-
der italiano e ler as Obras Completas de Dante Alighieri.
A admiração pelo grande florentino levaria naturalmente o menino itau-
nense a aproximar-se de Giácomo Leopardi e a saber de cor estrofes inteiras do
Inferno, do Purgatório e do Paraíso dantianos, com 35 cantos em cada uma
dessas três partes, onde Alighieri – nesta obra que é talvez a maior expressão
do humanismo cristão medieval – descreve uma visão tida na Semana Santa,
atravessa os nove círculos do Inferno e, no ápice da montanha, encontra
Beatrice, que o conduz ao Paraíso.
Em 1944, depois do “Manifesto dos Mineiros”, um grupo de líderes mi-
neiros resolveu solidarizar-se com José Américo de Almeida pela sua entrevis-
ta ao Correio da Manhã, que derrubou a censura à imprensa no Estado Novo. Pe-
dro Aleixo procurou Oscar para pedir-lhe a assinatura nesse telegrama e ouviu
dele a seguinte resposta:
– Dr. Pedro, vou assiná-lo, porque na prisão o senhor leva jeito de ser pelo
menos um bom companheiro.
Recém-formado em Direito, Oscar abriu um escritório com Carlos Castelo
Branco, em Belo Horizonte, na Av. Amazonas, situado justamente, por mera
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O sca r Di as C o rrêa, o ac adêmi c o , o m i n i s tr o e o j u r i s ta
O combativo deputado
Escreverei em seguida sobre Oscar Dias Corrêa, o jovem e combativo depu-
tado estadual da UDN, numa brava e violenta oposição ao então Governador
Juscelino Kubitschek.
Certa tarde, chegou à Assembléia uma mensagem do Governador solicitan-
do um empréstimo de 2 bilhões de cruzeiros, para construção de estradas.
A UDN resolveu obstruir a mensagem. Nessa obstrução, para ganhar tem-
po, Oscar lia na tribuna a Arte de Furtar, atribuída ao Padre Antônio Vieira,
além de trechos da Eneida, de Virgílio; das Epístolas, de Horácio, e das Catiliná-
rias, de Cícero. Até que, um dia, o orador bateu o seu próprio recorde: falou
seis horas seguidas. E não ficou rouco.
O competente executivo
Devo escrever a seguir sobre Oscar, secretário do Governador Magalhães
Pinto, que quis inicialmente nomeá-lo para a Segurança Pública:
– Você perdeu o juízo, Magalhães. Não aceito de jeito nenhum. O primeiro
sujeito que aparecer morto na rua, vão dizer que fui eu quem mandou matá-lo.
Convidado para secretário de Educação, Oscar sugeriu ao governador:
– Bota aí, quinhentas escolas, logo no primeiro ano de governo.
– Você está louco, Oscar ?
– Estou louco, não, Magalhães. É que você não vai ganhar mesmo esta elei-
ção. E papel aceita tudo. Então, bota aí: quinhentas escolas logo no primeiro
ano de governo.
Aí começou a batalha dos quinhentos grupos escolares, com pré-molda-
dos de ferro, quatro salas de aula para quarenta alunos em cada sala, num to-
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M urilo Melo Fi lho
tal de 160 alunos que, em três turmas diárias – manhã, tarde e noite –, se
multiplicavam para 480 alunos em todos os quinhentos municípios minei-
ros. As prefeituras cediam as áreas, empresas e particulares doavam os terre-
nos, e a Secretaria de Educação construía os prédios, fornecia os móveis e
nomeava as professoras. A verdade é que, no fim do primeiro ano, o secretá-
rio pôde procurar o governador e dizer-lhe:
– Eu não lhe disse, Magalhães? Olha aí as quinhentas escolas construídas e
já em pleno funcionamento.
O professor universitário
Comentarei agora o Oscar, Professor Catedrático de Economia Política e
Emérito da Universidade do Rio de Janeiro, e que tinha com os estudantes um
contato suave, mas rigoroso.
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O sca r Di as C o rrêa, o ac adêmi c o , o m i n i s tr o e o j u r i s ta
Certa vez, concedeu-lhes uma audiência e viu que, entre eles, havia duas mo-
ças. Estava sentado e se levantou:
– Perfeitamente, às ordens.
Aí um dos alunos se sentou.
Oscar disse:
– Levante-se. Se eu, que sou professor e diretor da Faculdade, me levantei,
em respeito a duas senhoritas presentes, por que o senhor vai ficar sentado? Le-
vante-se.
O estudante reagiu:
– Porque esse troço...
Aí não terminou a frase e foi interrompido por Oscar:
– Ou o senhor fala o nosso vernáculo direito, ou não teremos como nos en-
tender.
O criterioso magistrado
Apresentarei agora o Oscar, ministro do Tribunal Superior Eleitoral e do
Supremo Tribunal Federal, onde esteve durante sete anos, de 1982 a 1989, na
sucessão de Clovis Ramalhete e na companhia de grandes magistrados, como
Moreira Alves, Djaci Falcão, Rafael Mayer, Décio Miranda, Cordeiro Guerra
e Célio Borja.
Numa mensagem, hoje mais atual do que nunca, dizia Oscar que
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M urilo Melo Fi lho
O corajoso advogado
Poderia escrever ainda sobre Oscar advogado, mantendo a sua banca de ad-
vocacia como uma trincheira indômita e um bunker indormido na preservação
do Direito e da Justiça, que foram sempre as duas grandes bandeiras de toda a
sua vida, um advogado e um jurista na linha dos nossos confrades, os Acadê-
micos Lúcio de Mendonça, Rodrigo Octavio, Rui Barbosa, João Luís Alves,
Lafayette Rodrigues Pereira, Pedro Lessa, Aníbal Freire, Pontes de Miranda,
Cândido Motta, Clóvis Beviláqua, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Rai-
mundo Faoro.
Escreverei finalmente sobre o Oscar, escritor e autor de uma biografia sobre
Manuel, o seu pai português, além de Introdução Crítica à Economia Política, A Consti-
tuição de 1967, O STF, Corte Constitucional do Brasil, Constituição de 1988 e de várias
outras obras jurídicas, de Vultos e Perfis, com estudos sobre a Inconfidência Mi-
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O sca r Di as C o rrêa, o ac adêmi c o , o m i n i s tr o e o j u r i s ta
Plural e multifacetado
Este foi o Oscar Dias Corrêa, um ser plural e multifacetado, sobre o
qual traçamos este despretensioso esboço, para descrever aquele menino da
cidade de Itaúna, que seria depois um dos poucos homens públicos deste
País aprovado no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, na cátedra uni-
versitária e na advocacia liberal, deputado estadual em dois mandatos e de-
putado federal em três, secretário da Educação de Minas, ministro do Su-
premo, do T.S.E. e da Justiça, professor, educador e escritor, mas, sobretu-
do, nosso querido companheiro na Academia Brasileira de Letras, eleito no
dia 6 de abril de 1989 para a Cadeira 28, que tem como Patrono Manuel
Antônio de Almeida, como Fundador Inglês de Sousa, como antecessores
Xavier Marques e Menotti del Picchia e na qual lhe sucedeu o atual ocu-
pante, Acadêmico Domício Proença Filho.
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M urilo Melo Fi lho
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C ulto da Im o r t a l ida de
Joaquim Nabuco,
acadêmico e diplomata
Af o n so Ar in o s , f il h o
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Afon so A ri no s, fi lho
A referência aos “poucos (...) eleitos pela Academia ainda incompleta” re-
sulta, como é sabido, do fato de que os fundadores originais eram trinta, mas
eles optaram por adotar o modelo da Academia Francesa, com os seus quaren-
ta membros. E Nabuco assinalava:
“O número de quarenta era quase forçado, por que não dizê-lo? Tinha a
medida do prestígio, esse quê simbólico das grandes tradições (...): as pro-
porções justas de qualquer criação humana são sempre as que foram consa-
gradas pelo sucesso. Não tomamos à França todo o sistema decimal? Podía-
mos bem tomar-lhe o metro acadêmico.”
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
“a uma Academia importa mais elevar o culto das letras, o valor do esforço,
do que realçar o talento e a obra do escritor. Decerto, deixamos ao talento a
liberdade de se apagar. Alguém fez uma bela obra? Admiremos a obra e dei-
xemos o autor viver como toda gente; não o forcemos, querendo que se ex-
ceda a si mesmo, a refazer-se uma e mais vezes, a viver da sua reputação, di-
minuindo-a sempre. Não o condenemos à série, deixemo-lo desaparecer na
fileira, depois de ter feito uma brilhante ação como soldado. A altivez do ta-
lento pode consistir nisso mesmo, em não diminuir. É a primeira liberdade
do artista, deixar de produzir; não, porém, renunciar a produzir; repelir a
inspiração, abdicar o talento, deixar a imaginação atrofiar-se. Isso é desinte-
ressar-se das suas próprias criações anteriores, as quais só podem viver por
essa cultura literária, que perdeu para ele toda a primazia. Não há, em nosso
Grêmio, omissão irreparável; a morte encarrega-se de abrir nossa porta com
intervalos mais curtos do que o gênio ou o talento toma para produzir qual-
quer obra de valor”.
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Afon so A ri no s, fi lho
“Para não podermos fazer nenhum mal, basta isso; para fazermos algum
bem, é preciso que tenhamos algum objetivo comum. Não haverá nada co-
mum entre nós? Há uma coisa: é a nossa própria evolução; partimos de pon-
tos opostos para pontos opostos (...). A utilidade desta Companhia será, a
meu ver, tanto maior quanto for um resultado da aproximação, ou melhor,
do encontro, em direção oposta, desses ideais contrários, a trégua de pre-
venções recíprocas em nome de uma admiração comum, e até, é preciso es-
perá-lo, de apreço mútuo. Porque (...) qual é o princípio vital literário que
precisamos criar por meio desta Academia (...)? É a responsabilidade do es-
critor, a consciência dos seus deveres para com a sua inteligência, o dever su-
perior da perfeição, o desprezo da reputação pela obra.”
“estamos certos de não encontrar a política. Eu sei bem que a política, ou,
tomando-a em sua forma a mais pura, o espírito público, é inseparável de
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
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Afon so A ri no s, fi lho
pois, ficaríamos sem recepção. O Arinos talvez viesse fazer o elogio... Eu,
pela minha parte, que entre os dois votaria nele, porque o elogio do Taunay
pelo Assis Brasil (...) podia ser uma peça forçada, confesso-lhe que não o
vejo como o Constâncio; mas se V. não pensa que o Constâncio tem a me-
lodia interior, a nota rara, que eu lhe descubro, submeto-me ao mestre. Com
o voto do Dória, que me prometeu, e o meu, o Constâncio já tem dois. Se
V. viesse, era o triângulo, e poderíamos até falsificar a eleição. Sério!”
“Mas, dada a grande importância que reconheço ter a nova sentença que
vamos disputar, e sendo legítima a solicitude de V. Ex.ª, de amparar, do mo-
do que lhe pareça mais seguro, a sorte dos territórios amazônicos em litígio,
uma vez que, ouvidas todas as minhas reflexões, V. Ex.ª continua consideran-
do necessária minha colaboração, eu não posso menos que submeter-me. Para
não fazê-lo prima facie, eu só poderia valer-me das minhas conhecidas idéias
monárquicas. Tratando-se, sem embargo, de uma questão de caráter pura-
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
Havia, porém, uma condição. Joaquim Nabuco fora nomeado para cuidar
do litígio sobre limites, ficando a Legação em Londres entregue ao ministro
plenipotenciário Artur de Sousa Correia, com quem a Inglaterra ainda tentava
um acordo direto. Assim, o monarquista por tradição defenderia uma causa
nacional, mas sem colocar-se a serviço permanente da República. Mas ele já
constatava, por outro lado, as dificuldades de que duas cabeças cuidassem da
mesma questão, quando Correia, seu amigo íntimo, faleceu em março de
1900. Nabuco tentou, ainda, a solução complicada de ser acreditado como
plenipotenciário em Missão Especial, e a Legação entregue a um encarregado
de Negócios, ficando ambas, virtualmente, sob sua direção. Em dezembro,
contudo, pressionado pelo governo e consciente da situação esdrúxula em que
se encontrava o posto a ele confiado, aceitou a chefia efetiva da Legação. E foi
o último ministro a entregar credenciais à rainha Vitória, idosa e enferma.
Até então, Nabuco viajava pela Europa e trabalhava onde melhor lhe aprou-
vesse. Assim, escreveu a Machado de Paris, em dezembro de 1899, sempre ma-
nifestando interesse por esta Casa, ao perguntar pela “nossa Academia” e a
“nossa Revista”. E repreendeu o amigo. “V. não aparece em nenhuma, mas eu,
se fosse ministro (não há nenhuma irreverência nisto), mandava-o ir a ambas,
na expressão legal, debaixo de vara... do pálio.” Acrescentou ainda haver-lhe
Magalhães de Azeredo escrito
“propondo um modo original de termos casa para a Academia, que era con-
tribuírem os acadêmicos com uma mensalidade para o aluguel. Res-
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Afon so A ri no s, fi lho
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
“Como vai a nossa Academia? Eu realmente penso que aos ausentes devia
ser dado o direito de voto. Era mais honroso para os eleitos reunir o maior
número possível de votos. VV. estatuiriam o modo de enviar a nossa chapa,
ou de poder alguém da Academia votar pelos ausentes. Não haveria perigo
de ata falsa nem de fósforos. O procurador, ao votar, por exemplo, por
mim, declararia que eu lhe escrevera (mostrando o documento) para votar
por mim, nessa eleição, no candidato F. Talvez o voto dos ausentes devesse
ser aberto e declarado. Quem são os candidatos às duas Cadeiras?”
53
Afon so A ri no s, fi lho
que em nossas letras se acolhem do seu lado e professam o lema: ‘Um só re-
banho, um só pastor’.”
“Aí vai o meu voto. Dou-o ao Afonso Arinos por diversos motivos, sendo
um deles ser a vaga do Eduardo Prado. (Arinos era casado com Antonieta, sobrinha
de Eduardo Prado, filha do conselheiro Antônio Prado e irmã de Paulo Prado.) Para a Ca-
deira do Francisco de Castro, eu votaria com prazer no Assis Brasil. Por que
não se reuniram as eleições num só dia?”
Em seguida, expõe opinião, que foi sempre a sua, favorável a que, tal como a
Francesa, a Academia Brasileira não se destinasse apenas a escritores, mas tam-
bém abrigasse expoentes de outros quadrantes da vida nacional:
“V. sabe que eu penso dever a Academia ter uma esfera mais lata do que a lite-
ratura exclusivamente literária, para ter maior influência. Nós precisamos de
um certo número de grands seigneurs de todos os partidos. Não devem ser mui-
tos, mas alguns devemos ter, mesmo porque isso populariza as Letras.”
54
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
“Estou às suas ordens para escrever a resposta ao discurso do Arinos, com al-
gumas condições, porém. A primeira é que V. me dará tempo. A segunda que
o Arinos me mandará o que o Eduardo escreveu; tenho tudo isso nos meus
papéis e caixões, mas fora de mão. (...) A terceira é que o discurso do Arinos
me seja remetido. Isso é óbvio, mas que depois dele corra o meu prazo, pelo
menos de três meses. Aceitando V. e ele tudo isso, está tomado o compromis-
so. Para mim, trabalhos desses são uma distração necessária dos meus estudos
da questão. No caso de ser o Assis Brasil candidato agora na vaga do Francis-
co de Castro, vote por mim nele. Esta é a minha cédula. Se for preciso, corte o
nome acima, que vai por minha mão, e meta o retalho no envelope.”
55
Afon so A ri no s, fi lho
“muito cansado. Desta vez, em 6 meses darei 6 vol. para juntar aos 8 da pri-
meira Memória. Fico, assim, em 14. Em dezembro darei mais 2, 16. É um re-
cord, uma biblioteca de in folio em um ano. A Memória já está aí na Secretaria.
Os meus amigos e os que se interessam pelo assunto devem recorrer ao Rio
Branco.”
56
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
57
Afon so A ri no s, fi lho
de caráter, Vítor Manuel III – que se dobraria pusilânime, por duas décadas, a
todas as exigências, vontades e caprichos do ditador Benito Mussolini, para
atraiçoá-lo tão logo o viu decaído do poder de outrora – não hesitou em exor-
bitar das atribuições a ele conferidas pelo Tratado de Arbitramento, que o le-
variam a resolver juridicamente a pendência. Declarando-se impossibilitado
de fazê-lo, dividiu o território entre os estados litigantes, quando a própria
Inglaterra já havia oferecido ao Brasil, que a declinara por injusta, solução mais
favorável para nós: dois terços da zona disputada, e acabou recebendo três
quintos.
De fato, um alto funcionário do Foreign Office apresentara a Nabuco verbal-
mente, em agosto de 1900, uma linha divisória que não atribuía a qualquer dos
contendores supremacia sobre o Rio Pirara, o qual passaria a servir de frontei-
ra. Fronteira esta quase toda fluvial, terminando no Rupununi. Mas Joaquim
Nabuco, cônscio dos nossos direitos sobre toda a extensão do território con-
testado, descartou a proposta, que nos deixava com 22.930 quilômetros qua-
drados, restando à Inglaterra 10.270. Porém, como o Brasil a rejeitara, a Ingla-
terra retirou-a, sem apresentá-la oficialmente. E Nabuco, com escrúpulo tal-
vez excessivo, não a levou ao conhecimento do árbitro. O rei acabou por con-
ferir 13.570 quilômetros quadrados ao Brasil e 19.630 aos britânicos. Em be-
nefício destes últimos sobretudo, conforme palavras do representante brasilei-
ro à esposa, Vítor Manuel abriu “o rombo através do qual a Inglaterra pene-
trou na bacia do Amazonas, depois de ter impedido a França de fazê-lo”.
O diplomata e acadêmico Carlos Magalhães de Azeredo servia, então, em
Roma, na Legação junto ao Vaticano, e seguia os trâmites da questão, embora
sem dela participar. Eis o testemunho que deixou em seu Diário, ainda inédito,
quando se conheceu o laudo arbitral, datado de 6 de junho de 1904:
“Foi dada esta manhã a sentença, e é-nos contrária. Quero dizer, recebemos
do território contestado não só muito menos do que pedimos, mas um pou-
co menos até do que a própria Inglaterra nos oferecia confidencialmente
para truncar a questão; ora, todos sabem que a Inglaterra não costuma ofe-
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
recer senão aquilo que sabe muito bem não ser seu... Quanto à sentença em
si própria, dizem os meus amigos da Missão que é um monstro jurídico,
contraditório, e não arbitral mas arbitrária, e que, se o tratado feito com a
Inglaterra não nos obrigasse a aceitá-la incondicionalmente, poderíamos
protestar e impugnar-lhe os fundamentos. Eles conhecem a questão, estu-
daram-na cinco anos, e entre nós, brasileiros, não têm por que dissimular a
verdade; se, de fato, a razão não estivesse da nossa parte, longe de ser uma
agravante isso para a nossa contrariedade, seria um consolo. Eu conheço o
assunto apenas vagamente, mas não é preciso ser forte nele para reconhecer
que o laudo de Vítor Manuel III está longe de ser uma produção brilhante;
em resumo, ele declara que, depois de ler as memórias e os documentos
apresentados por ambas as partes (uns 25 volumes!), continua a ignorar a
quem aquele território pertence; e que, não podendo dividi-lo ao meio (!),
adota uma linha geográfica que lhe parece a mais eqüitativa e natural para
resolver a questão. Verdadeiramente, parece que o jovem monarca, ao me-
nos por vaidade, poderia mostrar um pouco mais de talento. Se ele não sa-
bia a quem pertencia o território, devia, antes de pronunciar o seu extrava-
gante laudo, chamar a Inglaterra e o Brasil para ver se obtinha um acordo.
Pedia-se-lhe uma sentença jurídica, não uma sentença de Salomão; ele exce-
deu as suas atribuições. Além disso, pela primeira vez é invocado, em um lau-
do arbitral, um argumento extremamente perigoso, sobretudo para os paí-
ses fracos; e é que a intenção de exercer a soberania não basta para contar a
mesma soberania como incontestável, mas que é precisa a ocupação efetiva
do território; (...) a verdade é, porém, que as nações fortes não provam essas
cousas por argumentos jurídicos, mas pela autoridade das armas; de modo
que só às débeis a inovação pode fazer mal. Que a sentença do rei seja espe-
cialmente política, isto é, que se tenha inspirado em motivos de interesse in-
teiramente estranhos aos elementos históricos e jurídicos da questão, não
posso pô-lo em dúvida. Vítor Manuel III é árbitro, também, em outra ques-
tão semelhante, entre a Inglaterra e Portugal; dizem que, desejando ele favo-
recer o rei D. Carlos, que é seu primo-irmão, e não podendo declarar-se
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Afon so A ri no s, fi lho
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
“Há tempos, recebi a sua boa carta sobre a sentença, carta verdadeiramente
primorosa, e uma das que mais vezes hei de reler, quando tiver tempo para
voltar ao passado e viver a vida das recordações. (...) Não estou certo de que
não teríamos perdido tudo sem o esforço que fiz para coligir e deduzir a
nossa prova, e, por isso, me vou desvanecendo de ter reivindicado a melhor
parte, para nós, da divisão feita pelo árbitro. Não foi uma partida vencida,
61
Afon so A ri no s, fi lho
foi uma partida empatada, e isto, quando o outro jogador era a Inglaterra, é,
por certo, meia vitória.”
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
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Afon so A ri no s, fi lho
Não o será sem o seu concurso, V., então, decida por mim, sem prejuízo
do Jaceguai. Em uma palavra, V. é o guarda da minha consciência literária,
ausente do prélio como me acho.”
“Como lhe disse, sou um forte monroísta, e, por isso, grande partidário da
aproximação cada vez maior entre o Brasil e os Estados Unidos. Em vez de
pensar em mim para suceder-lhe daqui a dois anos, V. deveria, talvez, em fa-
zer-me seu colaborador naquela política.”
Foi, assim, com prazer, em janeiro de 1905, nomeado pelo presidente Ro-
drigues Alves para a primeira Embaixada que o Brasil abria no mundo, em
Washington, mantendo-se as demais chefias de missão em nível de legação.
Das Montanhas Brancas, onde Nabuco descansava, veio sua primeira carta
dos Estados Unidos para Machado de Assis, em julho. Sempre atento às elei-
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
“O meu voto para a vaga do Patrocínio é para o Jaceguai. Acho que ele deve
apresentar-se. Não compreendo que ele, que não teve medo de passar Hu-
maitá, o tenha de atravessar a praia da Lapa (rumo ao prédio do Silogeu, onde então
se alojava a Academia, no local em que hoje se encontra o Instituto Histórico). Se ele não
for candidato e o Artur Orlando o for, votarei neste. Seria lastimável se as
candidaturas as mais brilhantes que em nosso país possam surgir, como es-
sas, recuarem diante de qualquer suspeita de haver na Academia grupos for-
mados, e fechados. Devemos torná-la nacional.”
“O meu voto é pelo Dr. Artur Orlando, se ele for o único candidato, e, ten-
do competidores, ainda é dele, exceto se os competidores forem o Assis Bra-
sil e o Jaceguai, que têm compromisso meu anterior em cartas escritas a V.
mesmo. Não me deixe o Dr. Orlando naufragar sem uma combinação que
65
Afon so A ri no s, fi lho
lhe garanta a eleição para a futura vaga. Um homem como ele pode ser ven-
cido numa eleição acadêmica, não pode, porém, ser derrotado sem pesar
para os eleitores. A nossa balança é de pesar ouro somente. Ele mesmo, es-
tou certo, não se aborreceria de ser segunda escolha em competição com o
Dr. Assis Brasil, que já teve uma (ou duas?) non réussites. Eu desejava-lhe, en-
tretanto, uma vaga que lhe permitisse falar de Pernambuco largamente, mas
teria que escolher entre mim e o Oliveira Lima, e nenhum dos dois ele podia
preferir ao outro. Em todo caso, alguém mais da filosofia que o Dória. Mas
é odioso esperar vagas determinadas.”
“Muito prazer tive com a simpatia mútua entre o nosso povo e os america-
nos. A Haia ia-nos fazendo perder de vista a nossa única política possível.
Eu, em diplomacia, nunca perdi um só dia o sentido da proporção e o da
realidade. É que um indivíduo pode sempre fugir à desonra e ao cativeiro,
66
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
mas as nações não se podem matar como ele. Alguns milhares morrerão em
combate, mas a totalidade passa sob o jugo. As maiores nações procuram,
hoje, garantir-se por meio de alianças; como podem as nações indefesas
contar somente consigo? E, desde que o nosso único apoio possível é este,
por que não fazermos tudo para que ele não nos venha a faltar? Essa é a mi-
nha intuição, e tive, por isso, o maior prazer com esse renascimento da sim-
patia entre as duas nações por ocasião da visita da esquadra americana.”
Esta não fora sempre, todavia, sua visão dos Estados Unidos. Em fevereiro
de 1899, escrevendo, do Rio, a Carlos Magalhães de Azeredo, Nabuco di-
zia-lhe estar entre os
67
Afon so A ri no s, fi lho
muito contente, pelo Brasil, com todas essas honras, que são principalmente
feitas ao país.”
“Quanto ao seu livro, li-o letra por letra, com verdadeira delícia, por ser
mais um retrato de V. mesmo, dos seus gostos, da sua maneira de tomar a
vida e de considerar tudo. É um livro que dá saudade de V., mas também
que a mata. E que frescura de espírito!”
Três dias depois, em carta ao cunhado, Hilário de Gouveia, ele reconhecia que
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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta
“Há meses não estou bem. Cheguei fatigado e exausto ao cimo da vida. Eu
não fui feito para velho, e estou envelhecendo, não por minha conta, mas por
conta dos que me querem o mais tempo possível neste mundo, por mais dife-
rente que eu vá ficando de mim mesmo. É uma combinação de doenças que
me cerca por todos os lados, um verdadeiro círculo vicioso. Ontem o médico
veio despedir-se, e disse-me que eu estava outro, muito melhor do que che-
guei. É preciso acreditá-lo, mas, por mim mesmo, eu não o afirmaria.”
“Muito lhe agradeço suas boas palavras sobre minhas conferências de Yale.
A 28 de agosto, devo estar em Chicago, já lhe disse. Aqui, levo uma vida de
peregrino, de universidade em universidade. Mas que saudades da nossa
Academia e da Revista, de que ela nasceu! É uma grande privação viver longe
dos amigos, em terra estranha, como estrangeiro. Sobretudo acabar assim.
Mas espero voltar ainda antes da noite.”
69
C ulto da Im o r t a l ida de
Eduardo Prado:
Duas visões
EDUARDO PRADO E A POLÊMICA
DO IBERISMO E DO AMERICANISMO
J o sé M u r i lo d e C a r va l h o Ocupante da
Cadeira 5
na Academia
“Salvo algumas exceções, pode-se dizer que os formados Brasileira de
Letras.
nos Estados Unidos são, na concorrência brasileira, os que
menos sabem e os que menos preparo têm. [...] se eles pu-
dessem transformariam a sociedade brasileira num ar-
remedo simiesco dos Estados Unidos, que eles julgam o
primeiro país do mundo, porque há por lá muita eletrici-
dade e bons water closets.” Eduardo Prado, A Ilu-
são Americana, p. 104-105.
71
José Mu ri lo de C arvalho
1
Na mais recente seleção de intérpretes, organizada por Silviano Santiago, publicada pela Nova
Aguilar, estão presentes Retrato do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo.
72
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
Exemplo ainda mais radical de rebeldia social foi dado por Eleutério Prado,
primo de Eduardo. Aborrecido com o veto da família a um casamento deseja-
do, Eleutério passou a viver abertamente com duas cozinheiras negras. O fato
lhe valeu o apelido preconceituoso de “negreiro”. Tradição oral da família, co-
lhida por Darrel Levi, conta que, quando Antônio Prado levou o primeiro
time brasileiro de futebol para jogar na França, um primo francês que assistia
ao jogo lhe perguntou, apontando um jogador: “Quem é aquele macaco?”.
“Não é macaco, meu caro, é seu primo”, retrucou Antônio Prado. O “meu
caro” entra aí como contribuição minha ao caso.2
No campo político, o melhor exemplo de rebeldia no século XIX foi o de
Martinico Prado, irmão de Eduardo. Os Prados tinham sido estreitamente li-
gados à Monarquia e à Casa Imperial desde o Primeiro Reinado. Uma prova
do apreço em que eram tidos foi a concessão do título de Barão do Iguape feita
por D. Pedro II ao terceiro Antônio Prado em 1848. Embora parte dessa tra-
dição, Martinico não hesitou em aderir à República desde os bancos escolares.
Aderiu também à maçonaria, mas ser maçom na época não era indicador de
rebeldia. Estava tão convencido dos valores republicanos que adotou métodos
muito liberais no governo de sua casa, formada pela mulher e doze filhos. Aca-
bou perdendo o controle de sua pequena república doméstica, desestabilizada
pela rebeldia dos jovens republicanos. Recorreu, então, aos serviços de uma
preceptora alemã que residia no Rio de Janeiro. Ina von Binzer enfrentou com
valentia os endiabrados republicanos a quem o pai, para exibir suas convicções
políticas, dera nomes romanos. A filha mais velha (a única bem comportada)
era Lavínia. Vinham a seguir Caio Graco, Plínio, Cornélia, Corina, Cássio,
Fábio, Cícero, etc. Fraülein von Binzer teve grande dificuldade em controlar
seus romanos, como os chamava, sobretudo Caius Gracchus e Plinius, que se
engalfinhavam com freqüência. Em uma das brigas, Caius jogou Plinius pela
janela. Subvertendo a História antiga, os bárbaros romanos brasileiros derro-
2
Darrel Erville Levi. The Prados of São Paulo: an Elite Brazilian Family in a Changing Society, 1840-1930.
Tese de doutoramento, Universidade de Yale, 1974, p. 131.
73
José Mu ri lo de C arvalho
taram a civilizada germânica, e Ina perdeu o emprego. Para sorte sua, a mágoa
foi compensada pela descoberta de um amor inglês. A Martinico só restou
confinar os filhos em internatos.3 Um de seus netos, Caio Prado Jr., continuou
sua tradição política de rebeldia, aderindo ao Partido Comunista na década
de 1930.
A política introduziu muitas divergências na família, sobretudo após a pro-
clamação da República, quando Eduardo e Martinico deixaram de se falar e
houve desentendimento até mesmo entre Eduardo e Antônio, o irmão mais ve-
lho que também era monarquista. Embora tais conflitos não se transferissem
para o âmbito dos negócios, são testemunho do alto grau de independência
pessoal dos Prados.
Eduardo não foi exceção no capítulo da rebeldia. O fato de ser o irmão mais
novo, nascido vinte anos depois do primogênito, pode ter reforçado, como su-
gere Darrel Levi, sua independência pessoal, espírito crítico, inquietação inte-
lectual. Eça de Queirós, amigo íntimo de longa convivência, apontava a curio-
sidade como sua principal característica. Como caçula, não caía sobre suas cos-
tas a responsabilidade pelo destino da família e pela continuidade da tradição.
As manifestações de sua independência foram constantes em todas as fases de
sua curta vida de 41 anos, iniciada em 1860.
O período de formação de Eduardo Prado, basicamente o que vai do final
da Guerra da Tríplice Aliança até a proclamação da República, foi marcado
por profunda renovação intelectual e política. Na Filosofia, abandou-se o
ecletismo em favor do Positivismo, do Evolucionismo, do Materialismo. Na
Política, o Republicanismo criava forças, embalado pela publicação do ma-
nifesto de 1870. Na religião, a aliança da Igreja e do Estado era abalada pela
prisão dos bispos e pelo crescimento do anticlericalismo. As faculdades de
Direito, Medicina e Engenharia tornaram-se os principais centros de agita-
ção das novas idéias.
3
Ver Ina Von Binzer. Os Meus Romanos:Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Brasil. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2.ª ed. 1980.
74
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
4
ABL. Discursos Acadêmicos. Rio de Janeiro, 2005, tomo I, p. 166-67.
75
José Mu ri lo de C arvalho
5
Maria de Lourdes Mônaco Janotti. Os Subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.
6
A Ilusão Americana. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 109.
76
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
7
Ver nesta edição, Sérgio Paulo Rouanet. “Eduardo Prado e a Modernidade”, e Mark Hillary
Hansen. “Eduardo Prado, Liberal Monarchist and Catholic Nationalist: a Whig rebel in Brazil´s old
Republic”. Tese de doutoramento, Universidade de Columbia, 2002.
77
José Mu ri lo de C arvalho
nada beneficiavam o Brasil, e cita observação ofensiva ao país, feita pelo Almi-
rante Benham, o mesmo que comandou a intervenção norte-americana duran-
te a revolta da Armada. Benham teria dito em homenagem que lhe prestaram
que a amizade do Brasil se baseava em respeito e “um pequeno toque de algo
mais”. As gargalhadas da platéia revelaram o sentido do “algo mais”: o medo e
a subserviência (p.63).
Essa dimensão política foi a responsável pela apropriação de Eduardo Pra-
do como precursor das idéias e posturas antiamericanas e das críticas ao impe-
rialismo ianque. Ela deve fazer do livro leitura popular hoje no Ministério das
Relações Exteriores. Mas o que gostaria de salientar aqui é a dimensão cultural
da análise de Eduardo Prado. Sua crítica pode ser lida como sendo feita sobre-
tudo ao Brasil pela mania de copiar os norte-americanos. Mas por que não os
copiar se os considera a raça mais enérgica da espécie humana, construtora de
uma nação forte e poderosa? A razão estaria em características culturais da so-
ciedade.
78
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
8
Eduardo Prado. Collectâneas, vol. II, p. 162, 173.
79
José Mu ri lo de C arvalho
do escrever texto erudito, talvez por não o conhecer, talvez por detestar os po-
sitivistas. Em Fórmula da Civilização Brasileira, Falcão desenvolve as concepções
comteanas sobre a natureza das civilizações, aplicando-as ao Brasil. Segundo
ele, a fórmula da civilização brasileira seria
O momento crucial de nossa história teria sido, segundo Falcão, não fosse
ele um pernambucano, a derrota e expulsão dos holandeses. Chocavam-se na
luta contra os flamengos mais que dois países ou dois impérios. Batiam-se
duas civilizações, a ibérica católica e a batava protestante. De um lado, a preo-
cupação com o coletivo, o moral, o poético, a centralização; de outro, o indivi-
dualismo, a razão, a ação, a dispersão democrática. Os Estados Unidos, segun-
do Falcão, eram parte da civilização protestante e herdeiros de seus vícios. O
país, diz ele,
“[...] cada vez mais degenera de pátria americana em uma verdadeira e imen-
sa sociedade de mercadores, sem passado, sem futuro, e com uma religião
característica: o culto do Dólar” (p. 131-32).
9
Anníbal Falcão. Fórmula da Civilização Brasileira, Rio, 1933, p. 89.
80
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
10
José Henrique Rodo. Ariel. São Paulo: Editora da Unicamp, 1991.
81
José Mu ri lo de C arvalho
11
Francisco Campos. A política e as Características Espirituais do Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1939.
82
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
12
ABL. Discursos Acadêmicos, p.143-45.
83
José Mu ri lo de C arvalho
84
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
14
Ver Simon Schwartzman. “O espelho de Morse”. Novos Estudos Cebrap, n.o 22 (1988) e José
Guilherme Merquior. “O Outro Ocidente”. Presença, n.o 15 (abril, 1990). Ver também a resposta de
Morse a Schwartzman. “A miopia de Schwartzman”, Novos Estudos Cebrap, n.o 24 (julho, 1989) e a
tréplica de Schwartzman. “O gato de Cortázar”. Novos Estudos Cebrap, n.o 25 (1989). Numa
perspectiva mais ampla, ver o estudo de Luiz Werneck Vianna. A Revolução Passiva. Iberismo e
Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/Revan, 1997.
15
Ver José Murilo de Carvalho. “Richard Morse e a América Latina: ser ou não ser”. In Antonio
Candido et alii. Um Americano Intranqüilo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992, p. 47-57.
85
José Mu ri lo de C arvalho
86
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o
87
EDUARDO PRADO E A
MODERNIDADE
Serg io P a u l o R o u a ne t
Ocupante da
Cadeira 13
na Academia
Brasileira de
O s grandes homens são freqüentemente vítimas dos seus ad-
versários e, mais ainda, dos seus admiradores. Foi o triste
destino de um dos maiores amigos de Eduardo Prado, Eça de Quei-
Letras.
rós, e do próprio Eduardo Prado.
Eça de Queirós teve contra si a implacável hostilidade de todos
os conservadores, que não lhe perdoavam nem as Farpas, dirigida
contra a pasmaceira cultural e política de Portugal, nem O Crime do
Padre Amaro, dirigido contra certas frações do clero, nem Os Maias,
em que não poupou sua própria geração, nem os artigos em que se
batia contra a patriotice oficial, representada, entre outros, por Pi-
nheiro Chagas.
Mas ele sempre soube lidar com seus críticos. Foram seus admira-
dores póstumos que quase o derrubaram.
Minha geração ainda lia Eça, mas era difícil manter nosso entu-
siasmo quando nos defrontávamos com os adeptos mais fervorosos
do romancista. Eram senhores pelo menos septuagenários, em geral
desembargadores aposentados, que citavam nas horas menos opor-
tunas trechos inteiros de A Cidade e as Serras. Eram contra o palavrão
no teatro, diziam que a crise do Brasil era de caráter, votavam na
UDN e usavam expressões como data venia e “salvo melhor juízo”.
Quando veio o golpe militar, muitos contribuíram com suas luzes
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de
89
S erg io Pau lo Ro u anet
gio dúbio de ser elogiado pelas pessoas erradas, com base em dois mal-enten-
didos opostos.
Há um mal-entendido de esquerda, que, partindo de sua crítica aos Estados
Unidos em A Ilusão Americana, vê em Eduardo Prado uma espécie de precursor
do antiamericanismo atual. Há traços dessa interpretação no prefácio da edi-
ção de 1958, da Brasiliense. Ainda que sem perceber a significação do imperia-
lismo norte-americano como etapa no desenvolvimento do Capitalismo, Edu-
ardo Prado teria detectado em toda a sua brutalidade a tendência dos Estados
Unidos à dominação mundial. Atribuiu a uma nação o que na verdade faz par-
te da lógica de um sistema social, e nisso consistiu seu erro. Apesar disso, foi
“profeta sem saber.” Seu livro
“vale pela denúncia que faz dos métodos norte-americanos, no fundo ine-
rentes à finalidade de lucro que move a economia capitalista, a qual encon-
trou possivelmente na América do Norte as condições mais favoráveis para
o seu desenvolvimento. Hoje os que se insurgem contra a dominação eco-
nômica dos Estados Unidos encontram em Eduardo Prado um aliado”.1
1
Eduardo Prado, A Ilusão Americana (São Paulo: Editora Brasiliense, 1958) p. 3.
2 Sebastião Pagano, Eduardo Prado e sua Época (São Paulo: Editora Cetro, s.d.).
90
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de
ele defendera a Monarquia tal como ela existia ultimamente no Brasil, conta-
minada pelas mazelas do século, as mesmas que Pio IX com toda razão havia
condenado no Sylabus. Foi a culpada indulgência com essas forças dissolventes,
combinada com a ação de uma sociedade secreta, a maçonaria, que precipitou
o fim do Império. Mas Eduardo Prado era de tão boa cepa paulista, vinha de
uma família tão limpidamente aristocrática, tivera o privilégio, graças à sua ve-
neranda mãe D. Viridiana, de uma educação católica tão sólida, que conseguiu
superar as limitações do seu tempo, acedendo aos princípios eternos que estão
na base da verdadeira moral e da verdadeira política. Nisso teve um mérito es-
pecial, porque precisou livrar-se da influência dos seus mestres franceses,
como o sutil heresiarca Renan, professor de ceticismo, e dos seus amigos por-
tugueses, entre os quais Eça de Queirós, autor de um romance pornográfico, A
Relíquia, que para cúmulo do desrespeito se passava na terra de Nosso Senhor.
É verdade que no final de sua vida Eça de Queirós se reconciliou com sua pá-
tria e com a religião, resultado que Pagano não hesita em atribuir à ação seráfi-
ca de Eduardo Prado. Sim, apesar de um certo diletantismo no início de sua
vida, Eduardo Prado despertou, com a catástrofe da queda do Império, para a
consciência de suas responsabilidades religiosas e políticas, dedicou o resto de
sua curta vida a uma causa nobilíssima, a restauração da Monarquia, e teve uma
morte santa, aos 41 anos, pronunciando palavras edificantes.
Positivamente, Pagano é um personagem de Eça de Queirós. Que persona-
gem? Se é verdade que Eduardo Prado foi um alter ego de Fradique Mendes, o
civilizadíssimo filho espiritual do romancista português, basta procurar na
Correspondência de Fradique Mendes uma figura que se assemelhe a Pagano. Logo
encontramos essa figura: é Pacheco, homem de imenso talento, sem o qual
Portugal não seria o que é entre as nações. Pacheco falava pouco, mas quando
saía do seu fecundo silêncio era para dizer coisas que aterravam a oposição e
enchiam de veneração as bancadas governistas. Uma vez aparteou um padre
zarolho que discursava sobre a liberdade. De pé, com o dedo espetado, Pache-
co afirmou, num tom que traía a segurança do pensar e o saber íntimo: “Ao
lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Reconhecemos na fra-
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S erg io Pau lo Ro u anet
se de Pacheco uma idéia cara a Pagano. A semelhança é tão grande que pode-
mos imaginar que um dia seja publicado um livro de Pacheco julgando Fradi-
que Mendes, como Pagano publicou um livro julgando Eduardo Prado. Po-
dem ter certeza de que em seu livro Pacheco provaria que, apesar das aparên-
cias, Fradique era um católico ultramontano e legitimista. O estilo de Pacheco
seria tão decoroso quanto o de Pagano. Como Pagano, Sua Excelência usaria
adjetivos irrepreensíveis: todos os homens seriam ínclitos ou preclaros, todas
as mulheres, sobretudo quando mães, seriam virtuosas ou venerandas, e o pa-
triotismo, sobretudo quando se tratasse de patriotismo paulista, seria sempre
ou acrisolado ou acendrado.
Em suma, para as duas orientações, Eduardo Prado se aproximou da verda-
de, mas não a alcançou plenamente. Para a esquerda, ele bateu às portas do
Marxismo, mas não entrou, por não conhecer a teoria leninista do Imperialis-
mo. Para a direita, ele bateu às portas da TFP, mas não entrou, por não ter ade-
rido aos princípios teocráticos de Joseph de Maistre e Bonald.
Voltamos ao ponto de partida: é preciso salvar os grandes homens dos seus
admiradores. Pior que matar por ódio é matar por excesso de amor. “For all men
kill the thing they love”, escreveu Oscar Wilde. “The brave man does it with a sword; the
coward with a kiss.” É preciso proteger Eça contra a solenidade conselheiral dos
seus adeptos de hoje. E é preciso proteger Eduardo Prado contra os dois fun-
damentalismos rivais: ele não é nem um protoleninista nem um protofascista.
O que era ele, então? A meu ver, Eduardo Prado pode ser descrito como pro-
duto e agente da modernidade, em sua vertente aristocrático-conservadora.
Podemos ver a modernidade como fato e como ideal. Em sua forma factu-
al, não há melhor descrição que a de Max Weber. Para ele, como se sabe, a
modernidade é o produto de processos cumulativos de racionalização que se
deram no Ocidente a partir do século XVII. A modernidade teve uma di-
mensão econômica, política e cultural. A modernidade econômica implica a
livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção
de técnicas racionais de contabilidade e de gestão, o progresso técnico. A
modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada,
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Edu ardo Prado e a M o de r n i da de
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Edu ardo Prado e a M o de r n i da de
dores pagam cinco guilders por uma certa quantidade e de que não há impos-
tos de transmissão. Não somos poupados de nenhum detalhe sobre as mo-
léstias que afligem os cafezais. E que volúpia na descrição das máquinas de
secar café! Mas ele nos alerta: o secador Van Mannen é muito simples, mas
necessita de muito cuidado. E não pense o leitor que as máquinas podem fa-
zer tudo. Para que o café adquira uma bela cor, que lhe dê valor no mercado,
é preciso que acabe de secar lentamente ao sol.
Em geral, Prado se interessa mais pelas máquinas que pelos processos tradi-
cionais. Não é por acaso que ele serviu de modelo para outro personagem mo-
derníssimo de Eça de Queirós, Jacinto de Tormes. Em seu palacete da Avenida
dos Campos Elíseos, 202, Jacinto tem ao alcance da mão o saber técnico de
toda a humanidade, em aparelhos complicados que lhe dão acesso instantâneo
a todas as notícias, a todas as áreas da cultura, a toda a gama das atividades hu-
manas. Era um pouco assim no domicílio parisiense de Eduardo Prado, na
Rue de Rivoli. Às vezes essa high tec pregava peças a Eduardo, como pregara a
Jacinto, no famoso episódio do elevador enguiçado. Ao que parece, esse episó-
dio teria sido inspirado numa cena real, ocorrida na Rue de Rivoli. Mas em ge-
ral as forças da natureza submetiam-se com docilidade ao capricho desse
grão-senhor da civilização científico-tecnológica, e isso não somente em Paris,
mas no próprio reduto rural de Eduardo Prado, na fazenda do Brejão. Havia
ali um laboratório, construído especialmente para ele por um sábio russo cha-
mado Coulon, local de alta periculosidade, onde Eduardo realizava experiên-
cias sobre tudo, com sérios riscos de explosão. Sua cozinha e sua copa tinham
duas dúzias de máquinas diversas, e um dos seus divertimentos era mostrá-las
aos caipiras.3
Esse culto da modernidade econômica era acompanhado por uma grande
preocupação com a chamada “questão social”. Daí a importância de minorar a
miséria das massas proletárias. Mas esse sentimento genuíno de responsabili-
3
Afonso Arinos, Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, em “Discursos acadêmicos”, Tomo I,
1897-1919.
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4
Eduardo Prado, A Ilusão Americana, op. cit., p. 133-135.
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5
Eduardo Prado, Fastos da Ditadura Militar no Brasil, “Revista de Portugal”, 1890, p. 28.
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Dito isto, não há dúvida de que, qualquer que fosse a sinceridade de suas
convicções católicas, Eduardo Prado via na Igreja em grande parte um baluarte
da tradição, contra as forças que pretendiam renegar séculos de História. É o
que fica muito claro na sua bela conferência a propósito do tricentenário do
Padre Antonio Vieira:
7
Eduardo Prado, Catolicismo, a Companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo, em “Coletâneas”(São
Paulo: Escola tipográfica salesiana, 1900) vol. IV, p. 96-97.
8
Eduardo Prado, em “Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico”, tomo LXIV, 1901,
p. 239.
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Sua curiosidade não era ociosa, era a curiosidade do sábio, que quer conhecer
imparcialmente todos os povos da terra, e do homem de sentimento, que deseja
compreender todos os homens, para a todos amar. Por isso não há nenhum eu-
rocentrismo nele. Todas as culturas merecem ser conhecidas e amadas.
Eça tem razão. Quem percorrer os dois volumes das Viagens, em que Eduar-
do Prado conta suas peregrinações por todos os continentes, não encontrará
traços marcantes de xenofobia ou intolerância étnica. Apesar de sua anglofilia,
9
Eça de Queirós, Eduardo Prado, artigo introdutório a “Coletâneas”, de Eduardo Prado (São Paulo:
Escola tipográfica salesiana, 1904) vol. I, p.x.
10
Eça de Queirós, ibidem, p. xii e xiii.
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Edu ardo Prado e a M o de r n i da de
são as viajantes inglesas que Prado ridiculariza, não as mulheres nativas. Os in-
gleses é que são insulares, tendendo a desprezar os outros povos, mas “o calor
de Malta desfaz a rigidez orgulhosa dos colarinhos, sob o sol que dissipa os
preconceitos”.11 Entre esses preconceitos está a tão falada indolência meridio-
nal, a inaptidão do homem dos climas quentes para o trabalho. Por que países
como Portugal e Espanha são mais atrasados hoje que as nações do Norte?
Não por uma pretensa inferioridade da raça, mas porque viveram durante sé-
culos à custa de suas colônias, desabituando-se assim do trabalho produtivo, e
porque seu povo foi explorado pelo Absolutismo do rei, que extenuou a pe-
nínsula com suas imposições e proibições, e pela tirania da Inquisição, que a
imobilizou pelo terror.
Mas há também em Eduardo Prado uma nova ênfase nas particularidades
étnicas e nacionais. Do ponto de vista étnico, essa ênfase se aproxima perigosa-
mente do anti-semitismo. Eça diz com todas as letras que Prado era anti-semi-
ta, e isso não para seguir o modismo francês de detestar o judeus simplesmente
porque eles representam o moderno capital financeiro, e sim a partir de raí-
zes peninsulares autênticas, que remontavam à Idade Média, para a qual os
judeus não deveriam nunca ter saído do gueto. Há decerto muito exagero nis-
so. Por uma vez, Pagano merece mais crédito que Eça de Queirós. Para Paga-
no, não era por nenhum ressentimento gótico que Eduardo Prado não gostava
dos judeus, nem por acreditar que eles tivessem qualquer predestinação bioló-
gica para a usura, e sim porque encarnavam em sua forma mais visível a civili-
zação do dinheiro, que aquele milionário abominava. O inimigo era o materia-
lismo, do qual o judeu era um dos acólitos, e não o judeu em si, e a prova é que
Eduardo Prado odiava também os norte-americanos, pela mesma razão. Tal-
vez não houvesse realmente racismo em Eduardo Prado, no sentido técnico.
Não encontrei nele nenhum vestígio das fantasias raciais que estavam em
moda na ciência européia e reapareceriam de modo tão grotesco em alguns dos
principais intérpretes do Brasil. O Judaísmo para ele era mais um conceito
11
Eduardo Prado, Viagens, Vol. I, p. 65.
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12
Eduardo Prado, Viagens, Vol. II, p. 260.
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13
Eduardo Prado, Eça de Queirós, em “Coletâneas”, Vol. I, p. 316-323.
14
Eça de Queirós, Eduardo Prado, op. cit., p. xxii-xxiii.
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“Nos começos do século XIX... os brasileiros, livres dos seus dois males de
mocidade, o ouro e o regime colonial, tiveram um momento de única e mara-
vilhosa promessa... Os brasileiros podiam nesse dia radiante fundar a civiliza-
ção especial que lhes apetecesse... O que eu queria é que o Brasil... se instalasse
em seus vastos campos e... que lhe fossem nascendo... com viçosa e pura origi-
nalidade, idéias, sentimentos, costumes, uma literatura, uma arte, uma ética,
uma filosofia, toda uma civilização harmônica e própria, só brasileira, só do
Brasil, sem nada a dever aos livros, às modas, aos hábitos importados da Eu-
ropa. O que eu queria... era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil
nacional, brasileiro, e não esse Brasil que eu vi, feito com velhos pedaços da
Europa, levados pelo paquete e arrumados à pressa... Apenas as naus do se-
nhor D. João VI se tinham sumido nas névoas atlânticas, os brasileiros, se-
nhores do Brasil... romperam a copiar tumultuariamente a nossa civilização
européia, no que ela tinha de mais vistoso e copiável... Bem cedo, do velho e
generoso Brasil, nada restou – nem sequer brasileiros, porque só havia douto-
res... doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma
carteira, fundando bancos; doutores com uma sonda, capitaneando navios;
doutores com um apito, dirigindo a policia... doutores sem coisa nenhuma,
governando o estado... São esses doutores, brasileiros de nacionalidade, mas
não de nacionalismo, que cada dia mais desnacionalizam o Brasil, lhe matam
a originalidade nativa, com a teima doutoral de moralmente e materialmente
o enfardelarem numa fatiota européia feita de francesismo, com remendos de
vago inglesismo e de vago germanismo.”15
Sabe-se que a condenação das idéias importadas é dos temas mais antigos e
mais indestrutíveis da cultura brasileira. Ele começou com os românticos, la-
mentando o vezo brasileiro de ignorar a natureza tropical; continuou com Sil-
vio Romero, que considerou Machado de Assis inautêntico por copiar o hu-
morismo inglês; prosseguiu com Euclides da Cunha, para quem o consumo
15
Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes, Carta XVIII, a Eduardo Prado, em Eça de
Queirós, “Obras”, (Porto: Lello e Irmãos) vol. II.)
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Eduardo Prado, A Ilusão Americana, op. cit., p. 45-46.
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Edu ardo Prado e a M o de r n i da de
Eduardo Prado foi entre nós a expressão máxima de uma certa modernida-
de, a que se baseia na mistura prudente, num quadro nacional, de elementos
novos e tradicionais. Mas de algum modo tenho a impressão de que estava,
também, nos umbrais de uma nova modernidade, que mantinha viva a tensão
entre o universal e o particular, em vez de procurar sacrificar um pólo ao outro,
seja num sentido cosmopolita, seja num sentido chauvinista. Talvez ele não
visse com maus olhos o conceito de Democracia mundial, que, graças aos me-
canismos que ela oferece para que todos os participantes façam valer suas aspi-
rações, poderia, como sua querida Monarquia, temperar o progresso técnico
com a justiça social, a liberdade política com o sentimento de responsabilidade
e a emancipação cultural com o respeito à tradição.
109
C ulto da Im o r t a l ida de
Presença de José
Lins do Rego
Al e x e i Bu e no
111
Al ex ei Bu eno
112
P r o sa
Japão/Brasil
M ar c o s Vi n i c io s V il a ç a
113
M a rc o s Vi ni c i o s Vi laç a
114
Ja p ã o / B r a s i l
115
M a rc o s Vi ni c i o s Vi laç a
116
P r o sa
Álvares de Azevedo
L yg i a F ag u n d e s T e l l e s
117
Lyg ia Fagu ndes Telles
118
Ál v a r e s de A ze v e do
119
Lyg ia Fagu ndes Telles
Voltando ao nosso Maneco, é bom lembrar que ele escreveu sobre mulhe-
res, sim, mas estavam todas dormindo. Ou mortas.
Quer dizer então que o poeta cheio de ardências era virgem? “Virgensíssi-
mo!”, escreveu Mário de Andrade. Medo do amor sexual, o mesmo medo de
Casimiro de Abreu, o poeta de Barra de São João (Estado do Rio) que escre-
veu sobre a saudade da “aurora da minha vida”, um amante da Natureza que
faz lembrar a poesia de Gonçalves Dias, “de quem herdou não só a sensibilida-
de, mas também as agruras do exílio”, como escreveu Ronald de Carvalho. O
poeta dos pressentimentos morreu com 23 anos.
Os pressentimentos e a fatalidade. Escrevendo e lendo aquela barbaridade
que Álvares de Azevedo leu (só 20 anos!), como ele teria tempo e forças para
as famosas noitadas? A solução era posar de desregrado, devasso, fazendo uma
poesia fiel ao clima da geração. Nas orgias inglesas, Lord Byron bebia num crâ-
nio transformado em taça com alguns ornamentos de ouro. Pois os seus discí-
pulos paulistanos, segundo a tradição acadêmica, iam beber vinho num crânio
desencavado lá no próprio cemitério iluminado à noite pelas tochas. O nosso
poeta escrevia sobre essas cerimônias satânicas, mas, na realidade, de acordo
com a versão, antes de dormir tomava um copo de leite.
120
Ál v a r e s de A ze v e do
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Lyg ia Fagu ndes Telles
sentiu-se mal e atribuiu as dores a uma queda quando cavalgava nos ermos da
paulicéia. Foi operado, tumor na fossa ilíaca. Falou-se em tuberculose, em
pulmões afetados, o Mal do Século, como se dizia na época. Muitos deles ti-
nham aquele palor e aquela dor, mas foi nítido o diagnóstico após a operação
que sofreu sem anestesia e sem gemido. E lembro agora que, após o acidente
com o tiro de espingarda, Castro Alves teve o pé amputado. Operação sem
gemido e sem anestesia: “Corta-o, doutor, assim terei menos matéria que o
resto da humanidade.”
Os moços das capas pretas e a antiga lição greco-romana do estoicismo, ah!
essa Escola de Morrer Cedo. O último poema e os presságios. Álvares de Aze-
vedo pede à mãe que saia do quarto, quer poupá-la. Aperta a mão do pai:
Ele tinha às vezes acessos de humor, mas um humor irônico. Talvez achasse
graça ao saber que hoje o busto em sua homenagem erguido na Praça da Repú-
blica tem a cabeça de Fagundes Varela. Equívoco de quem encomendou a ho-
menagem e trocou as cabeças? Pois lá está a cabeça de Fagundes Varela com o
famoso verso do Maneco: “Foi poeta, sonhou e amou na vida.”
O leitor é o meu cúmplice, isso já foi dito em outra ocasião. Recorrendo ao
estilo romântico, convido agora esse leitor a descansar na mão direita a fronte
pensativa e refletir sobre essas versões em torno da vida do poeta: vamos, lei-
tor, vosso julgamento será definitivo.
122
P r o sa
A cultura na ABL:
Uma visão parcial
Ar n al d o N is k ie r
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Arn a ldo Ni ski er
124
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
“Há uma nova leitura de Machado de Assis, iluminada pelas angústias dos
nossos dias – disse Antonio Candido – porque ele fala também para o ho-
mem de hoje, aqui e agora, como Kafka ou Joyce.”
Com o apoio dela, Joaquim Maria Machado de Assis tinha construído uma
das obras mais universais da nossa Literatura. Autodidata, seu invejável talento
tinha enriquecido a vida daquele menino pobre e escrito sua biografia. Dele foi
a glória que fica, eleva, honra e consola.
Quem quisesse falar de Machado de Assis depois da biografia escrita em
1981 por Raimundo Magalhães Júnior estaria condenado a repetir o que já
125
Arn a ldo Ni ski er
“Não tenho nada contra capitais que venham para ajudar o nosso desenvol-
vimento e fiquem aqui, criando raízes e produzindo riquezas” – declarava
Barbosa Lima. “Mas o conceito de globalização hoje difundido baseia-se
no nacionalismo das nações hegemônicas, que estão apenas defendendo
seus interesses e os interesses de suas empresas globalizadas, ávidas de lu-
cros além-fronteiras. Ou então dos investidores internacionais do mercado
financeiro, essa nuvem de gafanhotos que vêm buscar dividendos de nossos
juros altos e, quando se sentem inseguros, migram para outras paragens em
busca de lucros maiores e de menores riscos.”
126
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
Ele achava que, como nação independente, deveríamos defender nossa eco-
nomia, nosso mercado, nossa produção, nossos trabalhadores, nosso povo.
“Os que agem dessa forma são nacionalistas, os outros não.”
127
Arn a ldo Ni ski er
Jornal. Foi assim que o então ex-industrial passou a falar de livros, assinando-se
Tristão de Athayde, seu alter ego literário (pseudônimo que, aliás, ele pensava
ser inédito, até descobrir um conquistador português a caminho de outras
Índias, com o mesmo nome). E assim cumpriu ele essa função, durante 25
anos, ali e em vários outros lugares, inclusive tendo sido um dos defensores das
conseqüências da revolução modernista na Semana de 22. Foi mais ensaísta do
que crítico. Até 1945, depois de exercer o que Otto Maria Carpeaux chamou
de “incomensurável influência nas letras brasileiras”
Sem filiar-se a qualquer partido, exerceu constante atividade política. É dele
a conclusão de que no Brasil grande parte da capacidade criadora e realizadora
do povo é desperdiçada, simplesmente porque o acesso à escola está vedado à
maior parte da população. “Os bancos escolares e a Universidade em particu-
lar – a frase é dele – são privilégio dos economicamente favorecidos, que as-
sim se eternizam no poder.” Para Alceu, o mundo tinha mudado de cara, desde
a morte do Papa João XXIII. “A angústia nuclear sucedeu às luzes da esperan-
ça. Felizmente, consola-nos saber que a Humanidade se agita, mas a Providên-
cia é que a conduz.”
Em ardente sintonia com a arte de viver, desde jovem se destacou na área do
pensamento, da Literatura, da cultura em geral, sem perder o contato com as
transformações da sociedade brasileira e as mudanças do mundo. Em uma de
suas últimas declarações, ele diria em entrevista à revista Manchete:
128
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
Deus quis no dia 14 de agosto de 1983, aos noventa anos de idade. Alceu
Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, deixou uma consistente obra de mais de
setenta livros, mas resumia-se em uma frase: “Passei a vida desarmado, física e
intelectualmente, odiando apenas o ódio e guerreando apenas a guerra.” Ficava
dele uma impressão permanente de eterna juventude. E de muita coragem,
porque foi uma das raras vozes da grande imprensa a falar de tristezas, mortes
e iniqüidades durante o longo período de exceção política dos anos 60/70.
Porque ele foi um homem que realmente viveu sua época. “Minha geração foi
apolítica, ou melhor, foi antipolítica” – sintetizava. Alceu foi uma referência
cultural e política deste país. “Não tenho uma formação política, tenho uma
formação de princípios” – definia-se. E porque – como chegaram a dizer – a
decência daquele homem era simplesmente avassaladora.
129
Arn a ldo Ni ski er
Afonso Arinos de Melo Franco foi o que Alceu Amoroso Lima definiu
como a mais fecunda vocação a unir Política e Letras no Brasil. Autor de mais
de cinqüenta livros, da Política à Economia, da Crítica à Poesia (uma de suas
grandes alegrias era a opinião do crítico literário Antonio Candido, que consi-
derava o seu A Alma do Tempo tão importante quanto Minha Formação, de Joa-
quim Nabuco), historiador (em Um Estadista da República e Rodrigues Alves, Apogeu e
Declínio do Presidencialismo), deputado federal, senador (um exemplo do analista
experiente e isento da vida pública), ministro, embaixador do Brasil na ONU,
orador (os discursos dele ajudaram a derrubar Vargas em 1954), advogado,
professor de Direito, cientista social, erudito.
Amante de tudo que o cercava, curioso, febril de tudo o que via, Arinos,
um aristocrata – no melhor sentido do termo, pela elevação espiritual, e
também no jeito de viver, de ser, de sentir, de morar e de escrever –, confes-
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A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
sadamente nunca viu o Brasil senão através da cultura – no seu sentido so-
ciológico de “herança social” – e jamais usou seus vastos conhecimentos
senão com reservada simplicidade e modéstia. Sobretudo, um aristocrata
despido de preconceitos, autor da lei contra a discriminação racial, de 3 de
julho de 1951, que leva seu nome, a Lei Afonso Arinos. “A inteligência
dele era luminosa” – dizia Rachel de Queiroz. “As discussões terminavam
quando ele falava algumas palavras. Eram como gotas de uma reação quí-
mica. Clareavam tudo.”
De sua longa lista de trabalhos, um deles, Amor a Roma, de 1982, é uma de-
claração de amor àquela que Arinos chamava de “rainha das cidades”, que ele
conheceu e aprendeu a admirar aos dezenove anos. “Uma meditação afetiva
sobre a capital italiana” – como ele mesmo definiu. Uma longa gestação literá-
ria ao longo da produtiva vida desse brilhante intelectual de cultura mais sele-
ta. Um verdadeiro poema em que Arinos soube misturar elementos culturais
universais com uma profunda acuidade perceptiva – como achou a Crítica. Na
contemplação menos das coisas do que do tempo, é um preito à Cidade Eter-
na, dos césares, de Augusto, de Virgílio e de Horácio, de Calígula e de Nero,
dos cardeais e dos papas, tantas vezes ocupada, arrasada, pelos gauleses, pelos
bárbaros, pelos alemães e franceses no Renascimento, pelos nazistas no século
passado, mas que não cede nunca, porque, segundo Afonso Arinos de Melo
Franco, “sua grandeza é inconquistável”.
E que levou Pedro Nava a dedicar-lhe um “Palíndromo do Amigo”, assim:
131
Arn a ldo Ni ski er
nha falecido em 1916, em Barcelona. Pois foi por influência dele que Alceu leu
Os Sertões, de Euclides da Cunha, obra maior que deflagraria um processo cul-
tural capaz de nos dar a maioridade literária.
Lançado em 1902 e escrito numa linguagem “agreste como um cipó” –
na expressão de um crítico –, o livro focalizava o sertanejo, um tipo de bra-
sileiro até então ignorado pelos seus irmãos do litoral, em sua maioria so-
fisticados, europeizados. Na tapeçaria lingüística de Os Sertões, um estilo
em permanente estado de ignição, no qual o autor depositava a carga de
tensão da história:
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A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
Pois assim como Os Sertões, outro livro lançado exatamente no mesmo ano de
1902 é considerado também emblemático e semiótico: Canaã, a obra mais signifi-
cativa de Graça Aranha. Escrito em estilo simbolista e com tendências de análise
social, contando como era a vida em uma colônia de imigrantes europeus no Espí-
rito Santo, no começo do século passado, a história girava em torno de dois perso-
nagens principais, Milkau e Lentz, que tinham modos opostos de ver o mundo,
um achando que estava na “terra prometida” (Canaã), e o outro, inadaptado à rea-
lidade brasileira, racista e preconceituoso, acreditando na superioridade da raça
ariana sobre os mestiços, considerados por ele como fracos e indolentes.
Homem com espírito de vanguarda, Graça Aranha participou mais tarde da
Semana de 22, proferindo uma conferência no Teatro Municipal de São
Paulo intitulada “A emoção estética na Arte Moderna”, abrindo uma fase agi-
tada nos círculos literários da época. E em sessão memorável desta Casa, dis-
correndo sobre o tema “O espírito moderno”, em 19 de junho de 1924, ele
rompeu com a Academia Brasileira de Letras (segundo suas próprias palavras,
“sem o menor ressentimento pessoal”). Mas merecendo o seguinte comentário
133
Arn a ldo Ni ski er
“No sertão não se tem como/ não viver sempre enlutado/ lá o luto não é
de vestir/ é de nascer, com luto nato./Sobe de dentro, tinge a pele/ de um
fosco fulo: é quase raça/ luto levado toda a vida/ e que a vida empoeira e
desgasta.”
Usando uma expressão poética com valor às vezes simbólico, que denuncia-
va a crítica que pretendia fazer, João Cabral de Melo Neto rompia com o liris-
mo, abordando a realidade geográfica, humana e existencial do Nordeste. Um
poeta voltado para a temática social, abordando aquelas vidas severinas.
“E mesmo o urubu que ali exerce/ negro tão puro noutras praças/ quando
no sertão, usa batina/ negra-fouveiro, pardavasca.”
Nada a ver com seu primeiro livro, Pedra do Sono, onde o que ele pretendeu
foi, confessadamente, “compor um buquê de imagens a cada poema”. Logo
João Cabral rejeitaria toda poesia nascida de inspiração, assumindo a objetivi-
dade diante do ato de escrever. “O poema – dizia ele – deve resultar de uma
atitude racionalista, objetiva, diante da realidade concreta, uma atitude de
quem controla as emoções”. Tanto que seus quase quinze livros são marcados
por um extremo cuidado formal (onde se pode perceber, algumas vezes, até
um questionamento quanto à validade do próprio ato de escrever).
Um poema-narrativo subintitulado “Auto de Natal pernambucano”, cha-
mado Morte e Vida Severina, de 1956, é seu trabalho estelar, tendo sido adaptado
para o palco com muito sucesso.
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A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
“O meu nome é Severino,/ não tenho outro de pia./ Como há muitos Se-
verinos,/ que é santo de romaria,/ deram então de me chamar/ Severino de
Maria;/ como há muitos Severinos/ com mães chamadas Maria,/ fiquei
sendo o da Maria/ do finado Zacarias./ [...] Vejamos: é o Severino/ da
Maria do Zacarias,/ lá da serra da Costela,/ limites da Paraíba.”
A mesma vida – e morte –, não sertaneja, mas severina, que Marques Rebe-
lo pintou em Marafa, imenso mural da metrópole individual e coletiva, pessoal
e anônima que era o Rio de Janeiro por volta dos anos 30.
Uma crônica, só que do tamanho que um livro exige. Uma atitude meio
zombeteira, mas piedosa. Ali, Marques Rebelo dava continuidade à tradição
dos mestres admiráveis da novela urbana, da vida pobre, monótona, sempre di-
fícil de quase toda gente, de muitos de todos nós.
“Há mendigos nas soleiras, no portão dos cemitérios, nos degraus das igre-
jas, à porta dos restaurantes, dormindo no sopé das estátuas e nos bancos
135
Arn a ldo Ni ski er
136
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
“Pesai bem que vos ides consagrar à lei num país onde ela absolutamente
não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligar-
quias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis as que põem e
dispõem, as que mandam e desmandam em tudo, num país onde não há lei,
não há moral, política ou juridicamente falando. E justiça atrasada não é
justiça.”
Era, entre muitas, uma de suas mais belas peças oratórias. Entretanto, foi
lida no dia 29 de março de 1921 por Reinaldo Porchat e não por ele, pois a
doença que levaria Rui à morte, no ano seguinte, já o impedia de fazê-lo:
“Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcan-
ce, a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de atividade incansável
com que desde os bancos acadêmicos o servi e o tenho servido até hoje. Pre-
guei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade constitucional, a ver-
dade republicana. Estudante ainda sou. Nada mais.”
137
Arn a ldo Ni ski er
“Se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um,
nos limites de sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas,
pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho. O traba-
lho não é o castigo, é a santificação das criaturas. Tudo o que nasce do tra-
balho é bom, tudo o que se amontoa pelo trabalho é justo, tudo o que se as-
senta no trabalho é útil.”
Era uma oração não só aos moços e não só aos bacharéis. Era a todos nós, de
sempre, e não só daqueles dias do século passado:
138
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
139
Arn a ldo Ni ski er
anos. Foi a idade em que tudo começou para ele, escrevendo uma novela em
parceria com Dias da Costa e Edson Carneiro chamada Lenira, precursora das
suas Gabrielas, Donas Flores, Tietas do Agreste e Terezas Batistas cansadas de
guerra, que um dia se libertaram dos grilhões de papel dos livros e se espalha-
ram em som e imagem por outros meios de comunicação, rádio, teatro, cinema
e televisão. Nessa transposição da palavra lida para a palavra dita, ele se fez
pioneiro e, espiando o mundo pelo buraco da fechadura, abriu alguns cami-
nhos da nossa moderna Literatura, também inovando, desbravando.
De Jorge Amado já disseram que foi o único habitante deste planeta que con-
seguiu acreditar, com a mesma sinceridade, em Marx e em Menininha do Gan-
tois. Uma mistura de pai-de-santo e pajé que contava histórias para a taba glo-
bal, uma obra caudalosa, cheia de cheiros e quente de pecados, com um elenco de
mulatas cadeirudas e cobiçadas, xangôs, iemanjás, saveiros, cabarés e velórios,
turcos fesceninos, duendes e salafrários, povo e polícia, marinheiros mentirosos,
doutores de borla e capelo, capitães de longo curso, quituteiras e babalaôs povo-
ando suas noites enfeitiçadas, seus terreiros de suor e milagres. Um leque aberto
diante dos delitos da carne e da alma, mostrando algumas molecagens da vida.
140
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l
“Jamais escrevi uma linha que não expressasse as minhas convicções demo-
cráticas. Sou incapaz de ser a favor ou contra esse ou aquele homem, sou a
favor ou contra as idéias, os pontos de vista. Na verdade, o que almejo mes-
mo é a preservação da unidade nacional e o bem-estar do povo brasileiro.”
141
P r o sa
Contos
M o a c y r S c l ia r
TREM FANTASMA
Afinal se confirmou: era leucemia mesmo a doença de Matias, e a Ocupante da
Cadeira 31
mãe dele mandou me chamar. Chorando, disse-me que o maior de- na Academia
sejo de Matias sempre fora passear de Trem Fantasma; ela queria sa- Brasileira de
tisfazê-lo agora, e contava comigo. Matias tinha nove anos. Eu, dez. Letras.
Cocei a cabeça.
Não se poderia levá-lo ao parque onde funcionava o Trem Fan-
tasma. Teríamos de fazer uma improvisação na própria casa, um an-
tigo palacete nos Moinhos de Vento, de móveis escuros e cortinas
de veludo cor de vinho. A mãe de Matias deu-me dinheiro; fui ao
parque e andei de Trem Fantasma. Várias vezes. E escrevi tudo num
papel, tal como escrevo agora. Fiz também um esquema. De posse
destes dados, organizamos o Trem Fantasma.
A sessão teve lugar a 3 de julho de 1956, às 21 horas. O minuano
assobiava entre as árvores, mas a casa estava silenciosa. Acordamos o
Matias. Tremia de frio. A mãe o envolveu em cobertores. Com todo
o cuidado colocamo-lo num carrinho de bebê. Cabia bem, tão mir-
rado estava. Levei-o até o vestíbulo da entrada e ali ficamos, sobre o piso de
mármore, à espera.
As luzes se apagaram. Era o sinal. Empurrando o carrinho, precipitei-me a
toda velocidade pelo longo corredor. A porta do salão se abriu; entrei por ela.
Ali estava a mãe de Matias, disfarçada de bruxa (grossa maquilagem vermelha.
Olhos pintados, arregalados. Vestes negras. Sobre o ombro, uma coruja empa-
lhada. Invocava deuses malignos).
Dei duas voltas pelo salão, perseguido pela mulher. Matias gritava de susto
e de prazer. Voltei ao corredor.
Outra porta se abriu – a do banheiro, um velho banheiro com vasos de sa-
mambaia e torneiras de bronze polido. Suspenso do chuveiro estava o pai de
Matias, enforcado, língua de fora, rosto arroxeado. Saindo dali entrei num
quarto de dormir onde estava o irmão de Matias, como esqueleto (sobre o tó-
rax magro, costelas pintadas com tintas fosforescentes; nas mãos, uma corrente
enferrujada). Já o gabinete nos revelou as duas irmãs de Matias, apunhaladas
(facas enterradas nos peitos; rostos lambuzados de sangue de galinha. Uma es-
tertorava).
Assim era o Trem Fantasma, em 1956.
Matias estava exausto. O irmão tirou-o do carrinho e, com todo o cuidado,
colocou-o na cama.
Os pais choravam baixinho. A mãe quis me dar dinheiro. Não aceitei. Corri
para casa.
Matias morreu algumas semanas depois. Não me lembro de ter andado de
Trem Fantasma desde então.
144
C o n to s
145
M oa cyr Sc li ar
146
C o n to s
– Mas não sei – disse ele, desconsolado. Confesso que não sei.
Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momen-
to, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta pode-
ria ser o fim da minha infância. Mas:
– E a do vidro? – perguntei. Era a direita ou a esquerda?
Mirou-me, aparvalhado.
– Sabe que não sei? – murmurou numa voz fraca, rouca. Não sei.
E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha – qual-
quer orelha, seja ela de Van Gogh ou não –, verá que seu desenho se assemelha
ao de um labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.
147
P r o sa
A Língua Portuguesa
na concepção dos
fundadores da ABL
E v an i ldo B e c h a r a
149
Ev a n i ldo Bec hara
150
A Lín gua Por tu gu esa na c o nc epç ão do s f u n da do r e s da A B L
Lembra ainda o mesmo acadêmico, na 3.a série dos Estudos da Literatura Brasi-
leira, a ação desenvolvida pelo Cenáculo francês no que se refere ao registro da
língua em uso, “não – como diz a Academia – no uso que começa, mas no uso
geralmente aceito”.
É oportuno vermos essa afirmação ratificada ressoar nas palavras de Ma-
chado de Assis, no substancioso artigo publicado em 1873, sobre o instinto de
nacionalidade da Literatura Brasileira e a questão da língua:
“Há, portanto, certos modos de dizer locuções novas, que de força en-
tram no domínio do estilo e ganham direito de cidade. Mas se isto é um fato
incontestável, e se é verdadeiro o princípio que dele se deduz, não me parece
aceitável a opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda aque-
las que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma.”
“2.a Que uma só coisa fica e deve ficar eternamente respeitada: a gramáti-
ca e o gênio da língua.
3.a Que se estudem muito e muito os clássicos, porque é miséria grande
não saber usar das riquezas que herdamos.”
151
Ev a n i ldo Bec hara
“(...) devemos reconhecer que eles [os portugueses] são os donos das
fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las
indo a eles. A língua é o instrumento de idéias que pode e deve ter uma fixi-
dez relativa; nesse ponto tudo precisamos empenhar para secundar o esfor-
ço dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conser-
var as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época...
Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano, Garrett e os seus suces-
sores deixem de ter toda a vassalagem brasileira. A língua há de ficar perpe-
tuamente pro indiviso entre nós; a Literatura, essa, tem que seguir lentamente
a evolução diversa dos dois países, dos dois hemisférios. A formação da
Academia é a afirmação de que literária, como politicamente, somos uma
nação que tem o seu destino, seu caráter distinto e só pode ser dirigida por
si mesma, desenvolvendo sua originalidade com os seus recursos próprios,
só querendo, só aspirando à glória que possa vir de seu gênio.”
152
A Lín gua Por tu gu esa na c o nc epç ão do s f u n da do r e s da A B L
“O que foi este programa, a influência que exerceu, o efeito que produ-
ziu pela orientação que paleava, desviando o álveo do curso das línguas, agi-
tando questões a que se achavam alheios muitos dos docentes, é mister asse-
gurarmo-lo: assinalou nova época na docência das línguas e, quanto à verná-
cula, a emancipava das retrógradas doutrinas dos autores portugueses que
espousávamos.” [Maciel, 1922]
Por esta característica, não buscou para o seio da instituição nenhum dos
expoentes dessa reforma para cujo programa se escreveram, a partir de 1887,
as melhores gramáticas, que ainda hoje se lêem com proveito. É bem verdade
que à Academia foram chamados grandes sabedores do idioma – como Silva
Ramos, Carlos de Laet, José Veríssimo, Rui Barbosa, Taunay, mas que para lá
foram lembrados como poetas, literatos, jornalistas ou publicistas, jamais
como gramáticos ou filólogos. O mesmo João Ribeiro, gramático e artista,
primeiro acadêmico eleito, foi lembrado por José Veríssimo, que o recebeu em
1898, mais como artista do que como gramático.
Recebendo a língua portuguesa como patrimônio herdado, não supunham
nossos escritores que o idioma aqui se mantivesse inalterado, a repetir os usos
dos quinhentistas e seiscentistas. Todos tinham presente que esse patrimônio
153
Ev a n i ldo Bec hara
“1.a A minha opinião é que ainda, sem o querer, havemos de modificar alta-
mente o português.
4.a Mas que, nem só pode haver salvação fora do Evangelho de S. Luís, como
que devemos admitir tudo o de que precisamos para exprimir coisas ou
novas ou exclusivamente nossas. E que enfim o que é brasileiro é brasilei-
ro, e que cuia virá a ser tão clássico como porcelana, ainda que a não achem
tão bonita.”
154
A Lín gua Por tu gu esa na c o nc epç ão do s f u n da do r e s da A B L
155
Ev a n i ldo Bec hara
Bibliografia
ALENCAR, José de. “Pós-escrito de Diva”. In: Obras Completas, vol. I, 399-402. Rio
de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1965.
ASSIS, Machado de. “Literatura Brasileira – Instinto de nacionalidade”. In: Crítica
(Coleção feita por Mario de Alencar), 7-28. Rio de Janeiro, Livraria Garnier,
s/d [1910].
DIAS, Antônio Gonçalves. “Carta ao Dr. Pedro Nunes Leal”. [1857]. In: Pinto
(1978:33-38).
MACIEL, Maximino. Grammatica Descriptiva, 8.a edição. Rio de Janeiro, Livraria
Francisco Alves, 1922.
NABUCO, Joaquim. Discurso pronunciado na sessão inaugural da Academia Bra-
sileira de Letras em 20 de julho de 1897, na qualidade de Secretário-Geral. In:
Discursos Acadêmicos, Tomo I, s-14. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Le-
tras, 2005.
PINTO, Edith Pimentel. O Português do Brasil. Textos Críticos e Teóricos. I – 1820/1920
– Fontes para a teoria e a história. Seleção e apresentação de Edith Pimentel
Pinto. Biblioteca Universitária de Literatura Brasileira. São Paulo, EDUSP,
1978.
VERÍSSIMO, José. “A questão ortográfica”. In: Estudos de Literatura Brasileira. 3,a série
99-112 [1904]. São Paulo, Ed. Itatiaia Limitada – EDUSP, 1977.
156
P r o sa
Da sombra da morte
à luz da poesia:
poeta do pensamento
F r ed eric o G o m e s
157
F rederi c o Go mes
158
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to
(que, diz a anedota, foi a única coisa que ele realmente pintou durante toda a
vida, mesmo quando pintava um rosto ou um corpo feminino) – é a mesma
que move o poeta de O Outro Lado em sua apreensão metafísica da morte. A
morte é a sua Montagne de Sainte-Victoire, a sua obsessão mais notável, seja
afirmando-a ou recusando-a. Porém, ao atingir, na poesia, o momento extre-
mo da oposição vida-morte, o poeta o faz de maneira afirmativa, ora afir-
mando os sentidos da vida no sentido da morte (a infância, o amor, a arte),
ora afirmando o sentido da morte nos sentidos da vida (a vanidade, o absur-
do, o sem-sentido). Dupla afirmação que, em última análise, somente a poe-
sia de alta fatura consegue realizar. Ou, melhor ainda, conforme as exatas pa-
lavras de Eduardo Portella finalizando as orelhas do livro: “O poeta Ivan
Junqueira parece mobilizar, com um sentido e todos os sentidos, a sua elegia
à vida e o seu hino à morte. Superiormente”.
Lembremos, contudo, que Jorge Luis Borges já nos alertou, numa palestra
sobre a poesia, que “se a sentimos imediatamente, por que diluí-la em outras
palavras que, sem dúvida, serão mais fracas que nossos sentimentos?”. Sendo
assim, tudo o que dissemos nos parágrafos anteriores pode ser melhor esclare-
cido com as palavras do próprio poeta. Ouçamo-lo, pois, em “O testemunho”:
159
F rederi c o Go mes
[...]
160
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to
[...]
161
F rederi c o Go mes
[...]
[...]
[...]
não a luz de um sol furioso,
mas a que arde desde a noite
em que alguém disse: “Lenora!”
162
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to
A maior parte dos poemas que constituem O Outro Lado pode ser considera-
da, sem hesitação, antológica (e ontológica) por seu altíssimo nível técnico e
existencial, além de ser o que de melhor se tem produzido entre nós – sobretu-
do os longos “O rio”, “A história” e “O testemunho” (Ivan Junqueira nunca
foi adepto dos poemas curtos, geralmente descuidados) –, o que nos obriga,
infelizmente, a transcrevê-los em fragmentos. Dos três citados acima optamos
por essas passagens da esplêndida viagem pelo passado e presente da História
que é “O rio” (pode-se falar de viagem ao futuro, pois o poeta nos fala tam-
bém daquele rio heraclitiano “que está vindo a ser, mas que não é ainda”):
163
F rederi c o Go mes
164
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to
[...]
[...]
165
F rederi c o Go mes
[...]
166
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to
Resta a nós, leitores, torcer e aguardar o próximo livro desse poeta que, no
auge da sua criatividade, desce aos abismos, a um só tempo assombrosos e be-
los, da existência.
167
P r o sa
Os três sepulcros de
Viriato e a sua ressurreição
J oa qui m d e M o n tezu m a d e C a r v a l h o
XIII
Dezoito lustros de anos pelejando,
Toda a potência bélica romana
Não pode, já perdendo, já ganhando,
Acabar de render a lusitana,
169
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o
XIV
A fama, que em seu templo o engrandece,
Pai e mãe negam a filho tão altivo,
E com razão porque de ambos carece
Quem de suas obras foi filho adoptivo:
Não lhe nega a nação, porque merece
Ser colocada em seu eterno arquivo:
Todo foi português no esforço e manha,
Sem ter mistura de nação estranha.
Estas duas oitavas, sonoras como tubas, estavam num sepulcro porque con-
tinham dois disparates tão solenes como as tubas da fama. Só mais tarde refle-
ti. Ler e comparar é o remédio. Crescer é emendar.
O primeiro disparate é afirmar que o cajado (o bordão ou arrimo dos pasto-
res) foi ceptro de Espanha. Brás Garcia de Mascarenhas terá escrito scetra e não
sceptro (na forma atual, cetra e ceptro). A cetra (do latim cetra) era o antigo “es-
cudo” coberto de coiro (igualmente usado por Dom Afonso Henriques, pri-
meiro Rei de Portugal, quem não usou escudo metálico). O ceptro (do latim
scpetru) era o bastão de comando.
Ora Viriato, mais do que o estratega de retaguarda a quem lhe bastará o “bas-
tão”, era o soldado principal, era o lutador e para a luta armado ia de um “escu-
do” feito de boa madeira e guarnecido de coiro impenetrável às espadeiradas.
Os generais é que são gente de bastão, mas não lutam. Viriato, felizmente,
não foi o vulgar general dos tempos modernos. O seu escudo (a cetra) é que foi
o bastão de Espanha, a força de resistência contra as legiões imperiais romanas.
Com o cajado pouco ou nada faria. O que Brás Garcia de Mascarenhas quis di-
170
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição
zer é que aquele pastor Viriato, invocando apenas o “cajado”, foi por antono-
másia o “escudo” da Espanha (a antonomásia é aquela figura pela qual se toma
um nome comum por um nome próprio ou vice-versa).
Um bastão em mãos menos fortes não tem tanto poder e coragem. A tipo-
grafia, em 1699, e sem que o autor pudesse abrir a boca, pois falecera em 1656,
é que terá tido o descuido, até porque a palavra cetra pouco significava ou nada
em tempos de “escudos”... metálicos!
Mas o outro disparate é um cravo no madeiro e está tão profundamente pre-
gado na consciência do nosso país monárquico e republicano que não sabemos
como despregá-lo por causa dos milhentos olhos que não querem ver e pensar.
Os historiadores – excepção feita ao magnífico Américo Castro (1885-1972) –
andam pela Ibéria, dum lado e de outro, a cantarolar os mesmos atávicos equívo-
cos e se chamam espanhóis aos resistentes de Covadonga (Pelayo, 718 da era
cristã), por cá continuamos a chamar português a... Viriato!
E Brás Garcia de Mascarenhas foi na onda como tantos e sublinhou o máxi-
mo: “(Viriato) todo foi português no esforço e manha,/sem ter mistura de na-
ção estranha.”
Até se fica com esta impressão inculcada: não fora Viriato tão português na
pureza de seu sangue e o valor não o teria afstado do dócil e bucólico pastoreio
pelos montes Hermínios! Isto é, tinha de ser português para resistir por dezoi-
to anos, de 136 a 154 a.C, às tropas romanas!
O disparate em Espanha, no caso de Covadonga, ainda tem algo a seu favor
porque se dá em anos da era cristã, e a religião não gosta de purificar águas his-
tóricas, mete tudo no mesmo açude concentracionário. Mas o caso Viriato é
sem desculpabilização. O seu caso dá-se na Proto-História e antes da era cristã
(Cristo não nascera sequer!). Não existe sequer tapete mágico...
Pergunte-se: que religião tinha Viriato? Se os próprios romanos desembar-
cados na Ibéria e a palmilhá-la em busca de minérios, vinhos, trigo e sardinha
salgada (o petróleo e o gás de então para o Bush de Roma, em turno) ainda
eram aquelas multidões de tão escasso transcendatalismo (Platão, o grego, já
existia, uma pequeníssima camada romana o conhecia, a soldadesca tinha o
171
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o
mas ignorando ainda que a palavra “lusitano”, numa outra raiz sua, não pers-
crutada por Resende, Carolina e Ramalho, é o próprio “belicoso” (guerreiro,
bravo, inclinado à guerra). Os papéis velhos têm muita virtude...
Para libertar Viriato deste sepulcro, há que forjar um espanto: como é pos-
sível apontá-lo como “português” se Portugal só viria a nascer a 5 de 1143
172
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição
VIRIATO
Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.
173
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o
174
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição
a mãe farta como Artémis, a deusa mãe de Éfeso, na antiga Anatólia, hoje Tur-
quia, e cidade onde terá morrido Maria, mãe de Jesus Cristo, aos cuidados do
Apóstolo João (filho de Éfeso e o único ao lado da cruz onde expirara Jesus...).
Teixeira Lopes ampliou os seios para a filharada. Artémis era corpo de mil
seios. Em Maria, igualmente, o leite da vida em paz e dádivas permanentes. Mãe
em latim diz-se mater, e é desta raiz a iridescente palavra “mátria”. Teixeira Lopes
acertou e explica a todos os militares – os Viriatos de hoje – que Viriato foi
também uma criança a agarrar as pregas das saias de sua mãe e que arribou a
homem por ter mãe e teve coragem e inteligência para contrariar os violadores
da terra de sua mãe, a sua mátria à vista, com ovelhas e oliveiras, aquela soldades-
ca despachada de Roma para quebrar a paz das planícies e das montanhas, com
todo o ar da maldade nas ventas e a arrogância assassina da águia negra nos pen-
dões, como se águias houvera tão-só nos Alpes Apeninos e não também pelos
montes Hermínios (as Gardunhas, etc.) com outros férteis Abruzos...
Viriato apenas significa essa raiz. O resto que se diga pertence à romântica e
histórica conjectura. E ao significar aquela inquebrantável raiz, significa resis-
tência.
E eis que Viriato está hoje rodeado de mil apetências que lhe diminuíram a
resistência ao alienígena. Enfiaram o seu esqueleto na era global das interco-
municações de toda a espécie, quebraram-lhe os ossos com os circulantes mer-
cados comuns, dissolveram as fronteiras e chamam às novas comunidades sem
Viriato de espaço Cheng (nome asiático, coisa cómica).
Outros dirão que Viriato, apesar das globalidades a criar um figurino figu-
rão, significa o escudo de defesa da “identidade” e esta é até necessária à globa-
lidade para a não conversão plural em mera vulgaridade e indiscrição.
Viriato saltou dos sepulcros para ter essa voz; não estará a identidade da
pátria a ser veramente ameaçada e destruída pelas legiões de novos romanos
disfarçados nos políticos mercadores das planificadas uniões, pactos e cons-
tituições?
Ele, Viriato, acordou daqueles dois sepulcros, sacudiu o qualificativo por-
tuguês e nacionalista, ficou com o cajado da mera pátria (o lugar onde nasceu).
175
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o
Ainda não sabe responder se o ruído que aí vem é para mal ou para bem. Os
seus olhos estão esbugalhados e os ouvidos cheios de pó milenário. Ele precisa
de mais algum tempo a decidir-se se volta ou não para o sepulcro.
E onde este sepulcro, o terceiro do título deste meu texto?
Este é o verdadeiro e, infâmia das infâmias, ignorado pelos que estão em
Portugal (o “estar em” sobrepujou o “ser de”). Pode questionar-se muita co-
isa, mas pelo menos é o único com tal atribuição... Pergunto ao leitor pio: sa-
bia da existência deste sepulcro? E o pio leitor, nos noventa e nove por cento
responderá: não, não o sabia! E, por sua vez, o leitor, fortalecido pela arguta
razão, perguntará: como é possível existir o sepulcro de um Viriato, homem
antes da era cristã, sabendo-se tão pouco como os antigos da pátria terra se-
pultavam seus mortos (se postos numa fogueira, se dispostos a ser devorados
pelos animais, etc.) que ainda hoje os galegos do norte igualmente não sabem
responder por que junto aos castros nada relacionado com... funerais e se-
pulcros!
Eu estava há dias na Biblioteca do Exército a consultar o Diário da República e
o livro A General View of the State of Portugal, do britânico James Murphy, na edi-
ção original (London, 1798). A dois metros de mim estava o Luis Miguel de
Almeida, filho de Viseu e amante de sua terra como poucos, e o Carlos de Oli-
veira, que há poucos meses dissertava sobre Viriato. Estes dois militares an-
dam à volta com a continuação dos livros já publicados sobre as vidas dos ge-
nerais portugueses.
Em Viseu há uma estátua de Viriato, o que muito se respeita apesar de pôr
todos a sonhar e fazer perguntas...
Eu lia James Murphy, dei com a folha 131-132, espantei-me com o que
lera, jamais o lera aí, e voltando-me para o Almeida, o filho de Viseu, in-
quiri-o:
– O Almeida sabe onde está o sepulcro de Viriato?
E o Almeida estranhou e retorquiu: “Mas há sepulcro de Viriato?”
Há, adverti-o e mostrei-lhe a passagem do livro de Murphy que aqui repro-
duzo tal e qual:
176
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição
In the territory of Belas, near Lifbon, was found, in the reign of John III a ftone cheft,
containing a fword and the remains of the famous Viriatus, as appeared by the following inf-
cription, which was carved on the lid of it:
Pinho Leal não o diz, mas este João de Barros não é o preclaro cronista das
Décadas da Índia, etc. e que viveu entre 1496-1570, tendo nascido em Viseu e
outra glória da cidade.
177
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o
178
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição
ta-me-ei dos sepulcros. Talvez que a pátria esteja a sofrer o derradeiro abalo e
mutação, e nem sequer interessem letras numa pedra à dimensão de um corpo.
Talvez que o espaço Cheng – oh, que nome tão macaísta! – venha a ser “pá-
tria” para ninguém. Os séculos rolarão. As pedras angulosas tornar-se-ão re-
dondos seixos, uniformes e iguais. Então surgirá um qualquer Viriato da glo-
bal informática a dar ordens universias via fax, via e-mail, um Viriato sem pá-
tria, sem resistência, sem o tal cajado da identidade “inalienável”... Mas nesse,
então, Viriato não será o Viriato, símbolo da própria ipseidade. E as sepultu-
ras serão todas iguais.
179
P r o sa
Do berrante ao apito
Causo de toda uma noite de prosa...
F r an c i s c o M a r in s
– Quase meio ano fora, andando atrás de casco de boi pantaneiro não é
mole, é?
– Pra mais... que isso!
– Escutei que veio tocando mil cabeças!
– Pra mais... ! E eu tenho muita zanga, de nunca terem me levado em pelo
menos uma dessas viagens.
Nhô Quim ajeitou a camisa grossa, mal saída das calças e respondeu ao
peão.
– Diga pro compadre que, de noitinha, chego lá com a patroa, pra gente
prosear sobre a viagem e ouvir os causos. Vá lá também... se puder.
– Não dá certo. A mulher tá “esperando”... perciso campear logo nhá Mi-
nervina pra ajuda – senão o moleque num põe a cara no mundo. Ela tá na
“hora” e “gorda”, demais...
– Dá tudo certo...! Todo dia nasce criança. Vá em paz e que Deus ajude!
– Ontem ela pediu a benção do Paulino.
– É... o “nosso” ceguinho ajuda quem percisa, com oração... e “enxerga”
mais longe e pra dentro do peito, dos que têm “zóio” bom.
– É que ele “adivinha”, com a luz lá de cima. E apontou para o céu.
Caiara saiu a passos largos pra dar o aviso! Nho Quim entrou em casa e dis-
se à mulher:
– A gente vai, na boca da noite, ali na casa do compadre, pra ouvir dos acon-
tecidos da viagem no Mato Grosso.
– É... acompanho, faço gosto, mas mecês dois quando encangam só prose-
iam de boiada, comitiva, guieiro, burrama e não têm mais tropa...
– E sobre o que mais havera de sê... desde piquira tô só na lida do gado. Não
conheço outra coisa e fora do lombo de matungo não sô gente... Desta vez
vancê sabe, não deu pra mim mais o compadre ir na viagem, pra mor da mardi-
ta dor na perna, que responde na cacunda!
– É, marido, os “janeiro” tão passano, e aqui na vila não vejo futuro nem pra
mecê nem pros filhos! Eles já querem bater asas, sair do ninho, espiar o mundo
aí de fora que cresce, como fermento de pão... Aqui ficam na modorra.
182
Do be r r a n te a o a p i to
– Pra quê se queixa assim? Por acaso eu ando na madorna? Falta alguma coi-
sa pras “crianças”? – retrucou irritado.
– Não é isso... Cada vez que toco nesse assunto mecê vira onça acuada. Lá
fora tem muitos caminhos...
– E também encruzilhadas, buraqueiras, bossorocas...
– Ta vendo? Mecê já está na zanga! Só penso no “bem-bom” dos nossos.
– Reconheço... mas eu, moço feito, nunca me apartei dos “velhos”, até que
eles morreram.
– Foram outros tempos, marido.
Na boca da noite, como prometido, o casal foi a bater à porta de nhô Lazo e
de nhá Biela, onde foram recebidos pela cachorrada em guaiú, que só se acal-
mou aos ralhos do dono. Saudados com alegria, os chegantes indagaram da sa-
úde e também nominaram cada um dos filhos, ausentes.
– Mecê tá mais magro e queimado de sol! – comentou nhô Quim, ao abra-
çar o amigo.
– E também meio quebrado, de bunda esfolada por esse tempão no arreio –
“desembestou” o outro. Tinha dia que quase desanimava, com os contratem-
pos. Parecia que não chegava mais nos pousos. Pouco capim pro gado na beira
dos caminhos, reses de pernas quebradas que precisei matar, outras pegando
erva-de-rato nos bocados de catingueiro, logo estufando que nem balão e em-
panzinado, sem poder soltar os ventos da pança e logo caindo morto na primeira
bebida d’água de corgo... Mecê sabe de tudo isso... tão bem quanto eu, pois fez
tantas viagens como essa..
Eles mal chegavam e já enveredavam pelas conversas.
– É, compadre – respondeu nhô Quim –, desta vez não fui mais mecê, ando
meio jururu. Só Deus sabe...
– Pinche pra longe a inhaca ruim, cisque pra-trás que nem galinha e vá em
frente. Mecê ainda vai pro Mato Grosso comigo, pra trazer boiada erada, an-
cuda, boa pra “gancho de açougue”, com pouco tempo de pasto aí na serra.
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F ra n ci sc o Mari ns
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Do be r r a n te a o a p i to
– Daquele jeito que mecê sabe, bagualada que nunca entrou em mangueira e
que o dono nem sabia quanto era, deu muita canseira. Alguns bois o Timbó
teve que agarrar pro focinho ou tarracar nas oreias, até que pegassem rumo.
– É... o seu cachorro pra isso não tem outro.
– Os bois sinuelos também ajudaram na saída e, quando alguma rês refu-
gava, teimando, o meu peão Gibóia peleava ou trazia na cincha. Alguns va-
queanos do vendedor serviram de ponteiros e, depois de uma légua, na ajuda,
voltaram!
– Ouvindo isso parece que vejo tudo de novo. A festa e alegria da peonada
no começo de viagem...
– Aconteceu muito tropeço pra frente. Certo dia caiu tempestade de trovão e
corisco riscando o céu, estralejando de meter medo... e a gente ainda tinha estirão
comprido pela frente, antes de chegar no pouso, depois do Rio das Corujas.
– Conheço o lugar. Não é riozinho de meio dúzia de braças, não. E tem
fundura!
– É mais perigoso que os de corredeiras e espraiados.
– E “bufava” de cheio, devido às chuvas na cabeceira. Quedê a margem? A
água engolira os barrancos. E ali uma desgraça...
– Que foi?
– Mecê nem acredita: numa forquilha de árvore estava um homem pendu-
rado, se agarrando pelos galhos, cai não cai. Pros lados só restos de paus fin-
cados e paredes de casa de barro. O rio engolira sua tapera! O infeliz nem se
animou quando viu os ponteiros da nossa tropa, estava “entregue”, vencido
pela desgraça.
– Na certa vivia escoteiro, sozinho!
– Espere, compadre. Nem tanto. Tinha companhia...
– Como assim?
– Segurava no braço um cachorrinho cotó e ainda tratou de agarrar, de um
galho da árvore, um macaquinho... os dois quase morrendo de fome. Um não
gania mais, outro mal guinchava. O homem, desanimado, já se entregara de
vez. Pra ele tanto fazia receber a nossa ajuda ou ficar lá, até morrer.
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F ra n ci sc o Mari ns
– O Zeca Pedro jogou o laço pra ele se agarrar... Mas não deu no compri-
mento. Doze braças de couro não deram pra laçada chegar na árvore e nem o
homem parecia com força pra vir no arrasto. Podia cair e se afogar.
– O certo era levar a montaria até ele – disse nhô Quim.
– Foi o jeito. O Alírio montado no burro Pachola e puxando a mula ruana
foi a mal e mal até a árvore. Então o desgraçado empacou. Só ia se também le-
vasse o cachorro e o macaco. Alírio teve que dar um jeito, amarrando a custo os
dois no arreio. Quando chegaram no terreno seco, estavam tão fracos que nem
tiveram coragem de comer a carne de sol e a farinha da nossa matula.
– E o macaco?
– Por sorte, no antigo quintal da casinha, não invadido pelas águas, havia
um pomar, que foi bom pra eles e pra gente também. Tinha lá uns pés de laran-
ja e banana.
– E a passagem do rio?
– Foi ruim... tinha peixe de dente travado, pronto pra lanhar o couro dos
bois...
– É... verdade... e se o sangue escorre da rês e tinge a água, ajuntam as maldi-
tas piranhas em cardume, que mordem a barriga, as pernas, o saco dos bois... –
comentou nhô Quim.
– Uma desgranha mesmo. Me socorri, então, do modo antigo do boiadeiro
na travessia de rios.
– Jogando vervuia na água?
– Não, compadre, a gene não tinha bangada de mutum nem de outra ave,
foi “boi de piranha” mesmo! Não tive outro jeito. Com muito dó, peguei um
magruço, que mal se arrastava e logo ia cair e ficar no caminho pra comida de
corvo, e atirei o coitado na água. Foi desgraça pra ele e festa pra piranhada. E,
enquanto as carniceiras iam rio abaixo, lanhando a carcaça, atropelamos ligeiro
a boiada, pra travessia do rio...
– E demorou muito a passagem?
– Um tempão... tanto boi, magote mais magote, das centenas de cabeças... e
ainda perdi outros, que rodaram com a correnteza, sem força pra chegar do
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Do be r r a n te a o a p i to
outro lado, onde o barranco era alto... Arrastados, rio abaixo, no redemoinho,
quase uma dúzia...
– Pra mais que isso... ia dizer o Caiara, se estivesse aqui.
Os dois riram, lembrando-se das respostas do peão, que viraram cacoete,
sempre a repetir “pra mais”.
– Na certa algum boi se salvou do afogamento, enroscando-se em algum
tronco de árvore, braças lá pra baixo...
– Sorte deles que alongaram e assim escaparam do açougue...
– Pode ser que viraram comida de onças...
– Do Rio das Corujas pra frente a gente não teve mais tropeço, a não ser
quando, numa grota, de noite, uma “pintada” quebrou o pescoço de um garro-
te e bardeou a presa pra longe.
– Faz parte! O bicho onça também tem de dar comida pros filhotes.
– Mas não às custas das nossas reses.
187
F ra n ci sc o Mari ns
Nesse momento as duas ouviram, vindo dos longes, som prolongado que
atravessava a noite – era apito de locomotiva a vencer, fogosa, a planura dos
campos e as distâncias...
Os dois maridos emudeceram, respiração suspensa.
– Pra mim, compadre, preferia ouvir o som do berrante, chorado no des-
campado, puxando os bois...
– Muito mais gostoso!
Nhá Zabé saiu pra rua, deserta, que a casa dela era logo na esquina. Seu ca-
chorro, na espera, deitado junto a um tronco velho, abanou o rabo e acompa-
nhou a patroa.
Os dois compadres voltaram a se acomodar nas cadeiras, pernas espichadas,
e a sorver mais canecos de café e a trincar nos dentes torresmos pururucas, com
farinha de milho. Ficaram por minutos calados. Aquele apito vindo da noite
parecia feri-los como uma zagaia atirada em onça no covil.
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Do be r r a n te a o a p i to
– Pra mais que isso – respondeu Caiara. E ia se afastar quando Nhô Quim
indagou:
– E a mulher que tava “esperando”... já aconteceu? Veio o “bacorinho” ma-
cho, que vance tanto queria?
– Nasceram, patrão! Fui campear Nhá Minervina. Ela apareceu ligeirinho
lá em casa, quase nem precisara de parteira...
Nhô Quim estranhou a resposta e pensou ter ouvido mal.
– Como assim? É menino ou menina?
– Dois machinhos, patrão. Vieram de cambulhada, espertinhos, e mamam
que nem bezerrinho novo...
– Gêmeos, então?
– E já têm nome... se me dá licença, um chama Quinzinho e o outro Lazi-
nho, lembrando mecê e nhô Lazo.
– Tá certo, da minha parte concordo. Que Deus ajude. E agora eu é que
digo – não foi um só!
– Pra mais... – logo atalhou o Caiara, com o seu cacoete.
O peão ia saindo quando lhe perguntou:
– Nhô Macário não veio tratar da nova viagem da nossa gente pro Mato
Grosso, quando vancê vai de “ponteiro”?!
Caiara balançou a cabeça meio desconsolado. Já sabia de tudo, mas não
queria dizer nem pra Nhô Quim nem pra Nhô Lazo que a peonada da serra
não ia mais buscar boiada naqueles mundos tão distantes, por meses e meses de
caminhada. Nhô Macário tinha outro jeito de trazer o gado do Mato Grosso.
Parou, ajeitou o chapéu, e então os dois ouviram à distância um apito pro-
longado, que nem lembrava o som do berrante.
Caiara estava feliz, na manhã de muito sol. Era pai de cria. Dupla.
191
P r o sa
Corporações e confrarias
De Livreiros em Portugal e
Espanha desde os Reis Católicos
a D. José I de Portugal
(Breves apontamentos)
F er n an d o G u e d e s
193
F ern ando Gu edes
ros, aliás semelhante ao do rei português. Trata-se de uma carta assinada pelos
Reis Católicos em Sevilha, a 25 de dezembro de 1477, a favor de um Teodori-
co Alemão, impressor e livreiro, a quem se isenta do pagamento de uma série
de impostos, porque as suas actividades “redundavam em honra e vitalidade
dos nossos reinos e dos seus naturais”.
Contudo, quer este documento, quer o português, não têm, nenhum deles,
carácter geral de protecção, antes são mercês atribuídas isoladamente a alguns
mercadores. O que tem já carácter geral de protecção real, mediante a isenção
de alguns impostos, é a lei promulgada por Fernando e Isabel nas Cortes de
Toledo de 1480 para todos os livros que fossem importados nos seus reinos,
bem como a carta de D. Manuel I de Portugal, de 10 de janeiro de 1511, exac-
tamente no mesmo sentido. Antes, em 1508, o mesmo rei, a Jacob Cromber-
ger, impressor em Sevilha e em Lisboa, e a todos os outros impressores de li-
vros que em Portugal residissem ou viessem a residir, concedia as mesmas
“graças, privilégios, liberdades e honras” que tivessem os cavaleiros da casa
real, desde que fossem limpos de sangue, sem suspeita de qualquer heresia,
nem tivessem incorrido em crime de lesa-majestade.
A razão destas precauções finais explicava-a o rei que se destinavam a impe-
dir que nos seus reinos se semeassem “algumas heresias por meio de livros”
que neles se imprimissem. Já em 1502, a 8 de julho, os Reis Católicos tinham
assinado uma Pragmática pela qual severamente se ordenava “que nenhum li-
vreiro, nem impressor de moldes, nem mercador” tivesse a ousadia de impri-
mir ou fazer imprimir, a partir daquela data, “nenhum livro de nenhuma Fa-
culdade ou leitura, ou obra que seja pequena ou grande, em latim ou em verná-
culo” sem que primeiramente tenha obtido licença real para o fazer.
Os receios manifestados por estas decisões dos reis de Portugal e de Espa-
nha vinham, afinal, na sequência dos avisos e recomendações que sucessivos
Papas faziam desde 1487, quando Inocêncio VIII publica a carta Contra
Impressores Librorum Reprobatorun e, depois, Alexandre VI a bula Inter Multiples, em
1501, recomendando o estabelecimento da censura aos bispos de Colónia,
Mainz, Trier e Magdburgo.
194
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s
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F ern ando Gu edes
E teria sido desse “pacto tácito” que teriam nascido as primeiras autorida-
des corporativas.
Esta opinião do mestre português, expressa em 1942, é claramente partilha-
da pelo Prof. Rumeu de Armas ao reflectir, quanto a Espanha do século XII e
até anterior, sobre
196
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s
197
F ern ando Gu edes
mente, três cidades: a cristã, a moura e a judia, e nas três havia trabalhadores
mesteirais, que não podiam conviver na mesma associação. Só quando, no
tempo dos Reis Católicos, se obrigou à conversão ou expulsão de judeus e
mouros, é que a agremiação se tornou possível, e o grémio castelhano nasce
exactamente durante o reinado daqueles soberanos. Ainda segundo o Marquês
de Lozoya, houve uma notável excepção a este quadro acontecido em Segóvia,
na Confraria de Santo Eloi, integrada por mouros e cristãos, mas onde houve a
precaução de dispensar aqueles dos compromissos religiosos.
A crise económica profunda que assolou a Europa nos séculos XIV e XV
provocou naturalmente um movimento de defesa nas incipientes associações de
mesteres e é dessa situação que vai surgir a peça principal da organização, o exame
e a inerente criação da obra de mestria, indispensáveis, desde então, para a qualifica-
ção de mestre mas, simultaneamente, uma forma incontornável de limitar o nú-
mero de artesãos e de assegurar trabalho permanente aos já instalados no grémio.
E resta, para já, chamar a atenção para um facto extremamente importante e
ao qual, de leve, me referi no começo.
De uma maneira geral, a forma mais remota de associação é a Confraria, de
início apenas com intuitos religiosos e beneficentes e cuja existência está com-
provada desde o século XII. É também, como vimos, no século XII que, nos
reinos do Levante, os ofícios começam a surgir com alguma regulamentação, à
sombra dos Foros municipais. Ora, é da conjunção da Confraria e do Ofício
que vai nascer a Confraria-gremial, ou seja, aquela instituição que já não tem
simplesmente um objectivo religioso e beneficente, mas a estes iniciais agrega
agora um intuito económico. De Confraria-gremial a Grémio foi um passo, no
momento em que as próprias autoridades lhe atribuíram jurisdição própria so-
bre os seus agremiados, aos quais permitiram que regulassem e vigiassem o
funcionamento do ofício, realizassem os exames de mestria, etc., sem nunca,
porém, deixarem de estar sujeitos às obrigações religiosas, beneficentes e de
apoio mútuo que a Confraria original lhes impunha. Em terras de Espanha,
parece que a Confraria-Grémio mais antiga terá sido a dos Tendeiros de S.
Miguel de Tróia, anterior a 1151.
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Conf. Fernando Guedes, Os Livreiros em Portugal, 2.ª edição 2005, Lisboa.
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fraria, que no século XVI se formou, teve S. Crispim por orago. E, numa re-
presentação dos ourives de Lisboa a D. Afonso V, de 25 de julho de 1457, pe-
de-se-lhe que permita a eleição de um dos seus “confrades de hospital” para
exercer determinadas funções relacionadas com a profissão.
Um outro documento, da chancelaria de D. João II, ao ordenar que os mes-
teres elejam os Vinte e Quatro “em seus esprytais”, parece indiciar, primeiro,
que, em geral, os ofícios embandeirados tinham o seu hospital; segundo, que
esses hospitais eram, por via de regra, a “sede” dos ofícios, tradição que se
manterá com o Hospital Real de Todos-os-Santos, que os anexou: aí foram
reservadas salas para as reuniões da Casa dos Vinte e Quatro e aí se guardaram
os seus arquivos, que lamentavelmente de todo desapareceram com o incêndio
que se seguiu ao terramoto de 1755.
Não há, nestes documentos, quer no dos ourives, quer no régio, menção a
confrarias; todavia, é importante agora transcrever um passo do notável “Regi-
mento do Hospital Real de Todos-os-Santos”, do Rei D. Manuel:
“Pelo ajuntamento que por virtude da Bula do santo padre se fez de todos
os hospitais desta Cidade, se hão-de cumprir neste dito nosso Hospital to-
das as obrigações deles, assim de missas como de camas e mercearias, e todas
as ‘outras esmolas’ que neles se faziam e ‘a que são obrigados por virtude
dos compromissos deles’, e assim de ‘algumas Capelas’, que por virtude da
dita Bula aqui se mudaram e anexaram dos quais compromissos. Nós man-
damos fazer um compromisso no qual são escritos e declarados todos os
hospitais que a este nosso hospital se ajuntaram; e assim ‘Capelas e os com-
promissos e obrigações de cada um’ para segundo eles se satisfazer e cum-
prir o que em cada um hospital e capela se fazia e era obrigado a fazer, se-
gundo a possibilidade de suas rendas”.
Perante este texto, não parece imprudência aventar que alguns hospitais,
que no de Todos-os-Santos se juntaram, traziam consigo as confrarias dos ofí-
cios que os sustentavam, confrarias essas ligadas a capelas, como era de uso, e
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F ern ando Gu edes
que, pelos seus “compromissos”, traziam certas obrigações para o novo hospi-
tal. E não parece que a palavra compromisso tivesse sido empregada por D.
Manuel no sentido comum de obrigação, até porque o rei em certo ponto uti-
liza ambas – compromissos e obrigações – e, mais, ele próprio manda redigir
um “compromisso” onde se declaram os nomes dos hospitais anexados, as ca-
pelas e os compromissos, e as obrigações de cada um.
Também António Cruz entende que certos hospitais medievais do Porto
tinham sido fundados e eram mantidos por confrarias de mesteirais e
“denotam, pela sua antiguidade, que estes (os mesteirais) vieram a consti-
tuir-se em irmandades, para a manutenção do culto do padroeiro respectivo
e a prática da caridade, muito antes de agrupados sob a mesma bandeira
com o propósito de defender interesses de classe”.
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A organização dos mesteres em Lisboa parece ter sido bastante mais com-
plexa do que nas restantes terras do País, nomeadamente no Porto e em Coim-
bra. As bandeiras, como instituições autónomas, com organização e, até, “regi-
mento” próprio, supomos que só tenham existido em Lisboa. É certo que
António Cruz, no seu utilíssimo trabalho Os Mesteres do Porto (já citado), refe-
re-se às bandeiras como se elas tivessem existido no Porto com as mesmas ca-
racterísticas que tiveram em Lisboa, mas da própria leitura da sua obra se con-
clui negativamente. A bandeira, instituição agrupando um conjunto de ofícios,
nem sempre, ou raramente, relacionados entre si, é uma instituição puramente
lisboeta.
A introdução do Regimento (...) da bandeyra do Arcanjo S. Miguel, datado
de 1770, é bastante esclarecedora quanto aos seus fins:
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F ern ando Gu edes
Meresendo ao Regio Cuidado do Senhor Rey Dom João 3.º no anno de mil
quinhentos e trinta e nove estabelecer huma Ley pela qual debaixo do titulo
de Bandeiras regular todos os officios para por estes serem chamados a dita
Caza. E para que a mesma regulação não deixe de Sortir aquelle effeito que
a Real Intenção naquelle tempo, e Se tem conservado the ao prezente, se faz
precizo que as mesmas Bandeyras tenhão forma pela qual Se possão deregir
os Mestres que houverem de ocupar os Cargos, que se fazem precizos para a
conservação daquelles, e para o adiantamento destes. E como a Bandeyra do
Arcanjo São Miguel Seja huma das Contempladas na mesma regulação,
Supplicou o Juiz desta ao Supremo Senado da camara lhe desse Regimento,
pela qual pudessem os Officios de que a mesma Bandeyra Se compoem re-
gular-se para evitar dezordens que Sempre Se fizerão odiozas”.
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“não poderão ser eleitos da bandeira sem que primeiro tenham servido alguns
dos lugares principais na Mesa do Espiritual, a saber juiz, escrivão, procurador ou
tesoureiro, para o que apresentarão na Mesa da bandeira um atestado da dita
Mesa do Espiritual de como lá serviram.”
209
F ern ando Gu edes
Porto e Coimbra não tiveram uma organização tão apurada. A este respeito,
as determinações em Lisboa, Porto e Coimbra quanto à participação na pro-
cissão do Corpo de Deus são bem eslarecedoras.
A celebração do Corpus Christi constituiu sempre em Portugal, talvez
desde o reinado de D. Afonso III, um dos momentos mais altos do ano li-
túrgico. Na procissão, que começou a realizar-se no século XV, incorpora-
va-se em Lisboa o próprio monarca e os príncipes, que seguravam as varas
do pálio, e, em todo o país, a nobreza, autoridades municipais, cidadãos e
oficiais mecânicos, sem qualquer excepção. Muitos privilégios, de merca-
dores e mesteirais, especificam que isentavam de todas as obrigações para
com a cidade excepto da participação nas festas solenes, nomeadamente na
procissão do Corpo de Deus.
Para Lisboa, uma disposição do Senado da Câmara de 1771 regulou rigoro-
samente “a ordem com que devem, impreterivelmente, seguir os lugares das ban-
deiras nas procissões públicas da cidade”. A bandeira de S. Miguel era a terceira,
depois das bandeiras de Santo Antão, a segunda, e de S. José, a primeira.
Quanto ao Porto, o melhor documento sobre aquele grande acontecimento
citadino é o Acordo e Regimento que Fizeram os Oficiais da Câmara da Cidade do Porto
para a Procissão de Corpus Christi com Parecer do Doutor António Cabral, Chanceler da Re-
lação, e do Bispo da Dita Cidade Conforme às Provisões de S. Majestade, datado de 16 de
setembro de 1621. Aí se descreve, pormenorizadamente, a participação de to-
dos e cada um na procissão. Citemos o passo que importa para aqui:
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zerem (…); E assim mais irão os liueiros que tambem ficarão de fora com suas
tochas diante dos orifeses”.
Os livreiros no Porto, portanto, entravam na procissão atrás dos ataqueiros
e antes dos ourives. Em Coimbra, o regimento dos começos do século XVI co-
loca-os à frente dos mesmos ataqueiros, mas atrás dos pintores: “os cerieiros
são obrigados a fazer Santa Maria ‘dasnjnha he jochym’ tudo bem deito e ‘co-
regido’ e sua bandeira rica e hão-de ir após os correeiros e nisto entram os pin-
tores e os livreiros”.
Não há, nem num caso nem no outro, qualquer referência a uma organi-
zação superior à do ofício, embora alguns autores se refiram a ofícios em-
bandeirados e até a bandeiras, mas sem oferecer qualquer prova nem sequer in-
dício de que tivessem, de facto, existido em Coimbra. Aliás, não se conse-
gue descortinar muito bem, nem em Pinto Loureiro nem em António
Cruz, como se efectuavam realmente, em Coimbra e no Porto, as eleições
para a Casa dos Vinte e Quatro.
Tratemos, porém, agora mais especificamente do ofício de livreiro e dos Re-
gimentos que o regeram durante cerca de duzentos e cinquenta anos.
O primeiro é, como já se disse, o que foi redigido ou reformulado por Du-
arte Nunes de Leão em 1572, e governava os livreiros em Lisboa. Do Porto e
de Coimbra não chegaram até nós regimentos escritos deste ofício, mas, base-
ando-nos naquelas profissões para as quais há regimentos no Porto e em Lis-
boa, não será aventuroso admitir que, se existiram textos em Coimbra, no Por-
to e eventualmente noutros lugares, eles não difeririam substancialmente do de
Lisboa, pois isso é o que se comprova pelos existentes nessas outras profissões.
Em 1733 os juízes do ofício propuseram ao Senado um novo regimento,
pois o primitivo, ainda que
“fosse conveniente para tempos tão antigos, já hoje se acha quase de todo
inútil, não só pela antiguidade das palavras, que por desusadas não é fácil a
sua percepção, mas juntamente por serem as suas condenações muito limi-
tadas para estes tempos”.
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C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s
Por poucos anos, porém, o statu quo de séculos se irá manter. A tempestade
pombalina que se avizinha irá derrubar os muros mais sólidos, e a Junta do Co-
mércio, criada pelo marquês, vai desencadear situações novas perante as quais
os velhos ofícios serão impotentes.
Da obrigatoriedade da visitação, imposta geralmente pelo regimento dos ofí-
cios, decorreu, certamente, a necessidade dos arruamentos, quer dizer, a imposi-
ção de as lojas de um dado ofício se situarem todas na mesma rua ou nas suas
imediações, embora, em teoria, o arruamento também se destinasse a facilitar
aos possíveis clientes a procura de um determinado produto.
Em Lisboa foi onde a prática do arruamento mais se enraizou. Coimbra não
conheceu o sistema, e no Porto, e em outras cidades, só levemente ele foi aplicado.
No que se refere aos livreiros, só em Lisboa, de facto, se dá fé da existência,
desde a segunda metade do século XVII, de uma Rua dos Livreiros, situada
junto “dos Apóstolos”, ou seja, nas proximidades do Colégio de Santo Antão,
da Companhia de Jesus, actualmente Hospital de S. José. Luís Pastor de Ma-
cedo diz que o nome oficial dessa serventia era Rua Direita do Colégio, a qual,
passado o terramoto, foi denominada Rua do Arco da Graça, designação que
hoje se mantém. Todavia, em 1801, o Roteiro dos Correios ainda a designava por
Rua dos Livreiros.
A localização desta rua devia ter uma forte relação com a existência próxima
do colégio jesuíta, intenso foco de ensino e cultura, “o mais importante de Lis-
boa durante dois séculos”. Independentemente, porém, da existência da “sua”
rua, os livreiros sempre se dispersaram um pouco por toda a cidade. No século
XVI vemos Cristóvão Rodrigues de Oliveira referir os livreiros da Rua Moca,
e em 1657 um alvará real, referente a aquisições de edições inteiras “sem se dar
parte das compras aos juízes do dito ofício de livreiro”, foi notificado pelo es-
crivão aos mestres “da Rua Direita” junto ao “Colégio dos Apóstolos”, aos da
Rua Moca, “aos da Portagem, Mizericórdia e Arco de ferro”. Após o terramo-
to de 1755, Pombal determinou que a Rua da Rainha se destinasse aos ourives
da prata (daí a sua designação de Rua da Prata) e aos livreiros. Todavia, em
1777 só de dois livreiros temos notícia que aí se tivessem instalado, enquanto
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F ern ando Gu edes
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nos vários casos apresentados por F.P. Langhens, dos séculos XVI, XVII e
XVIII.
Pinto Loureiro escreve, abonando-se em Virgílio Correia, que “as taxas fa-
ziam em regra parte do regimento de cada ofício”. A nossa leitura dos regi-
mentos não nos leva à mesma conclusão, pois as mais das vezes a “taxa” que
eles referem é a que se há-de pagar ao juiz, ou seja, os seus honorários pelo
exercício do cargo, e apenas encontramos taxas de bens e serviços em três ou
quatro regimentos (taberneiros, picheleiros, adeleiros...); outros dois mandam
vender pelas “taxas da cidade”, e o próprio “Livro segundo das posturas gerais
para os oficiais mecânicos” que, no dizer de Virgílio Correia, “engloba as dis-
posições administrativas gerais que regiam os ofícios”, não as menciona.
De qualquer modo, o que importa reter é que as taxas eram fixadas pelo Se-
nado ouvidos os mesteres interessados, “com sseu acordo”, e eram de aplica-
ção geral. As de Lisboa de 1611 cobriam uma multiplicidade de bens e ofícios,
mas entre tantos não se incluíam os livreiros, nem temos conhecimento de que
alguma vez se lhes tivesse aplicado uma taxa geral. Na verdade, os livros são di-
ferentes.
A primeira conclusão que se pode tirar do exame dos documentos é que a
taxa era aplicada nos livros caso a caso.
A segunda conclusão é que nem todos os livros eram taxados. Principal-
mente no século XVI, talvez porque o livro impresso fosse um produto co-
mercial recente, os livros taxados são uma minoria o entre os que sobreviveram
até aos nossos dias. Numa escolha aleatória, por nós levada a efeito, de cerca de
cinquenta livros impressos em Portugal nesse século (± 5% da colecção da Bi-
blioteca Nacional) verifica-se que 52,5% foram beneficiados com privilégio,
mas destes apenas 30% estão taxados e mais um contém a indicação “vende-se
por... reaes” sem a menção do valor. Apenas encontramos nessa amostra um
caso de livro não privilegiado no qual a licença para “correr” determina que
“tornará à mesa para se taxar e sem isso não correrá”; mas não tornou.
Parece, pois, que, de início, só, ou quase só, tinham o preço fixado os livros
que beneficiavam de privilégio (e desses, nem todos). Dir-se-ia que, como es-
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F ern ando Gu edes
“tamto que os ditos livros forem impremidos se trara a hum delles aa mesa do
despacho dos desembargadores do paço para lhe poerem o preço por que
cada hum deve ser vendido, e doutra maneira se não poderão vemder (...) o
qual se imprimeraa no principio ou no fim de cada hum dos ditos livros”.
E é por isso que encontramos hoje livros com a inscrição impressa “taxa-
do... reis em papel”, mencionando-se manuscrita a quantia ou... não se mencio-
nando mesmo. E também acontecem, com alguma frequência, casos em que o
alvará manda indicar na obra o preço de venda e este não vem, afinal, mencio-
nado. Um desses casos é a própria primeira edição de Os Lusíadas.
Por que motivo há alvarás de privilégio que desde logo taxam a obra e ou-
tros remetem para decisão posterior do Desembargo do Paço, quando lhe for
presente o livro impresso, é mais um mistério que não pudemos decifrar. Uma
hipótese seria a de o candidato ao privilégio, na sua petição, fornecer, por ve-
zes, indicações que permitissem desde logo estabelecer a taxa. Se essas petições
se conservassem, fácil seria comprovar, ou não, a veracidade desta hipótese,
mas elas eram feitas em folha solta de papel e o alvará era passado nas costas
dessas folhas, só este se registando depois na chancelaria real.
Num caso, porém, conhecemos a petição:
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sembargo declarava “ser lícito o negociar e mandar vir livros de fora do reino
para nele os vender (...) não só por partidas mas também pelo miudo”.
Contra esta decisão do Desembargo do Paço os livreiros recorreram para o
rei, que manda ouvir o Senado. Este apoia a posição dos peticionários, “em
atenção à utilidade pública, em razão de que, vendendo-se os livros pelo miu-
do, sem ser por oficiais examinados, se acham ao depois truncados e faltos de
folhas, e por esta razão se achava disposto pelo regimento que se não vendes-
sem com a proibição de que dependia, e nem se proibia o comércio, por ser lí-
cito a todos mandarem vir livros e os venderem por partidas”. E os vereadores
concluíram que fosse Sua Majestade “servido haver por bem confirmar o regi-
mento dos suplicantes para que nenhuma pessoa que não for examinada no
ofício do livreiro não possa vender livros alguns pelo miudo, havendo por de
nenhum efeito a sentença que se proferiu no desembargo do paço”.
Mas não só os mercadores de livros se atravessavam num negócio que os
oficiais livreiros tinham por exclusivamente seu; os próprios cegos, da
Irmandade do Menino Jesus, causavam igualmente preocupações pelas ven-
das que faziam de porta em porta. Finalmente, a criação da Junta do Comér-
cio pelo Marquês de Pombal, no reinado seguinte, veio lançar, em geral, al-
guma nova confusão no exercício das profissões reguladas por regimentos de
ofícios mecânicos, e certamente também entre os livreiros. Bastaria ver como
proliferaram, pelos meados do século XVIII, os mercadores de livros de na-
cionalidade francesa, com as suas lojas bem fornecidas e os seus catálogos
bem recheados.
A extinção das corporações dos ofícios mecânicos, com o advento do libe-
ralismo em 1834, seria a machadada final num sistema que vigorara durante
mais de três séculos.
Voltando a Espanha, é o momento de analisarmos de perto as antigas orde-
nações de uma associação de livreiros do Levante peninsular, a Confraria dos
Livreiros de Saragossa, fundada, como se diz na portada do livro, “na Igreja do
Senhor Santiago da presente cidade de Saragossa, sob invocação e patrocínio
do Bem aventurado e glorioso Doutor da Igreja São Jerónimo”.
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“Em Nome de Nosso Senhor Deus todo poderoso e da sempre Virgem San-
ta Maria e São Pedro e São Paulo e San Jerónimo. Seguem-se as ordenações e
Irmandade dos Livreiros da Cidade de Saragossa, as quais queremos e man-
damos sejam inviolavelmente guardadas pela forma e maneira seguinte.”
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F ern ando Gu edes
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P r o sa
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O a mor no s Sonetos dos Amores Mortos, de Ri ta M o u ti n h o
ções, Do luto, Dos frutos, Do futuro, incluindo-se aí, também, o “Soneto que
é nota da autora”, que inicia a obra, configurando-se numa espécie de prefácio
explicativo – observa-se o movimento dialético entre amar e perder. O percur-
so poético, assim, se faz no transitar entre a esperança e o conformismo,1 como em
uma das muitas epopéias ingênuas,2 em que uma Penélope meada e louca3 não sabe
como lidar com o platonismo impotente de um casto D. Quixote,4 outrora um
velho Príamo, capaz de dar cinqüenta filhos, duas mil nuvens.5 Nessa viagem outra, in-
terna, em que se louva e chora,6 sob o pêndulo do olhar, se formam as crises de dúplices
punções7 que permearão a obra. Essa é, portanto, uma viagem em crise, que é o ca-
minho-chave para a elaboração da perda que ora se instala como definitiva, ora
é negada pela persona poetica, até que finalmente se conclui. Mas há, também,
uma outra viagem a ela atrelada – a luta da persona poetica na busca de um lugar
feminino diferente, característico da modernidade, configurando o percurso
mais interessante da obra, pois é essa viagem que dá densidade às imagens e vo-
zes poéticas modernas contidas nos poemas.
Ainda no “Soneto que é nota da autora”, observa-se o ideal platônico, em
que o divino, no plano das Idéias, se opõe ao mortal, reles cópia da Perfeição.
Nele, os homens são colocados no plano divino – mitológicos deuses do meu cosmo –8
em oposição à persona poetica, situada no plano do terreno. Seriam os deuses que
decidiriam seu destino – Ai, Zéfiro, meu vento mitológico,/ por que tu conduziste meu
amado/ para confins sem chance de contato? –9 e a obrigariam à impotência. Mas, ao
mesmo tempo em que a persona poetica se vê obrigada por sua condição inferior,
se proclama Deusa do Ocaso – Deusa do Ocaso deu ordem inclemente,/ impingindo ao Desti-
1
p. 30 – “Soneto do grilhão, elo invisível que aprisiona”
2
p. 27 – “Soneto do falo falho ou do quixotesco”
3
p. 26 – “Soneto do ‘intermezzo’ de Penélope”
4
p. 27 – “Soneto do falo falho ou do quixotesco”
5
p. 31 – “Soneto de exaltação para um amor maior”
6
p. 15 – “Soneto que é nota da autora”
7
p. 23 – “Soneto da esperança e da contra-esperança”
8
P. 15 – “Soneto que é nota da autora”
9
p. 38 – “Soneto do fim dos confins”
229
Ân g ela Mo ntez
no a incumbência/de construir muralha permanente/ que destrói dos amantes a aderência –10 e
desfaz essa submissão, aparentemente sem volta, por meio do esquecimento:
Qual era o tom de tua barba rala?/ Que sabor tinham teus lábios de bala?/ Como eram os
olhos tristes quando olhavas?/ Tinhas tu dedos grossos donde escravas/ carícias plenas não se li-
bertaram?/ Retinas, por que, asnas, me falharam?11
Esse movimento de aceitação passiva/negação veemente impede a persona
poetica de se instalar com conforto no papel de vítima, típico da tradição do sé-
culo XIX, tanto na Literatura feminina como na masculina, e a impele à ação.
Fazendo de si mesma uma personagem análoga à personagem-símbolo da pa-
ciência – Penélope – Dias a fio pinto e descasco/ Penélope moderna, ser pasmado –,12
contrapõe-se ainda a uma outra personagem-símbolo, Sherazade, evocada su-
tilmente – Foram mil e uma noites numa apenas –,13 mostrando sua habilidade de
“contar histórias” – Meu querido, passo horas tua e absorta,/ lendo e escrevendo poemas do-
loridos.14 Mas a persona poetica identifica-se apenas provisoriamente com essas
personagens-símbolos, evitando repetir o lugar fixo que a tradição dá ao femi-
nino, ao mesmo tempo em que, ao incorporá-los, transita entre espelhos – Há que
carpir, amor, o céu quebrado/ quando o Universo ainda estava vivo,/ e os espelhos, ainda sem
cansaço,/ podiam refletir o eco afetivo –15 para, a seguir, devolvê-los ao passado e inu-
tilizá-los, construindo com eles as imagens poéticas caleidoscópicas do texto.
Assim, enquanto Penélope desenha para não enlouquecer– mas também, para não
me tornar louca,/ desenho, em cor, metáforas do livro16 –, mostra um comportamento
que vai além da personagem conhecida, pois mata o objeto do amor e qualquer
possibilidade de reconciliação – O fim do amor se deu na noite plena./ Matei-nos no
rubi da contracena.17
10
p. 72 – “Soneto dos lapsos de memória com estrambote”
11
p. 72 – “Soneto dos lapsos de memória com estrambote
12
p. 75 – “Soneto das almas abraçadas e apartadas”
13
p. 83 – “Soneto do duplo morrer na plenitude”
14
p. 85 – “Soneto da carta que o livro envia”
15
p. 97 – “Soneto do caleidoscópio quebrado”
16
p. 85 – “Soneto da carta que o livro envia”
17
p. 83 – “Soneto do duplo morrer na plenitude”
230
O a mor no s Sonetos dos Amores Mortos, de Ri ta M o u ti n h o
O amor com enfoque cristão também não fica de fora da obra, nem como
ideologia, nem como fonte imagética da tessitura textual. Ainda no soneto-
prefácio vê-se a cisão corpo/alma – alíneas de mim são amores mortos/ fímbrias que
ornam ainda corpo e alma.18 Com forte presença na tradição literária do século
XIX, ressaltado, principalmente, pela escola romântica, ele flui no texto, tam-
bém por meio de jogos de espelhos provisórios, refletindo-se em persona-
gens marcantes dessa escola. Deste modo, emerge na pele de uma Eva funda-
dora que sublinha a sua condição de mulher-corpo – Depois de tantos anos florin-
do a teu lado,/ tendo-te beija-flor a me sugar o néctar/ dos lábios, sendo tua alfa no céu es-
trelado,/ comungando prazeres no Éden, única Eva –,19 que escolhe sobreviver à dor
da perda por meio do ódio – Depois de tanto amor, somente ódio odiento/ supre a so-
brevivência do descasamento.20 Note-se que esse soneto é construído quase total-
mente com uma linguagem que lembra a da escola romântica, e apenas seus
dois últimos versos compõem a transgressão da personagem, tanto na sua
configuração, que passa de vítima à mulher que reage, quanto na linguagem
que utiliza, moderna.
Da mesma maneira, a persona poetica cita as mulheres-almas Ofélia e Ismália,
mas escolhe um destino outro para o desfecho de seu sofrimento – alo-me e zar-
po para um final outro/ ao que coube a Ofélias e Ismálias./ Quando o silêncio é adaga-agres-
são,/ pôr-me aço, proteger o coração.21 Enquanto as três personagens da tradição vi-
venciaram alguma forma de transgressão e foram punidas, a persona poetica se
resguarda no afastamento produzido pelo ódio, que endurece sua postura e a
faz deslocar-se, mais uma vez, do lugar de vítima de um poder maior para o lu-
gar de um eu que sabe se proteger.
O ódio funciona como um antídoto do amor passivo e paralisante produzi-
do pela idealização do ser amado e da sua condição de amante ardoroso – Sei
que este ódio viscoso é temporário,/ e a pronúncia do nome teu, rude e acre,/ sai do antes doce e
18
p. 15 – “Soneto que é nota da autora”
19
p. 54 – “Soneto do ódio substituindo o amor na via-crucis”
20
p. 54 – “Soneto do ódio substituindo o amor na via-crúcis”
21
p. 64 – “Soneto do silêncio enlouquecedor e mortal”
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22
p. 56 – “Soneto que sabe o ódio efêmero e necessário”
23
p. 53 – “Soneto da abafada praga”
24
p. 56 – “Soneto que sabe o ódio efêmero e necessário”
25
p. 107 – “Soneto do rever um amor morto”
26
p. 107 – “Soneto do rever um amor morto”
27
p. 73 – “Soneto do amor revivido pela música”
28
p. 74 – “Soneto aleijado para palavras especiais”
29
p. 35 – “Soneto arrítmico do pressentimento da partida”
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O a mor no s Sonetos dos Amores Mortos, de Ri ta M o u ti n h o
dade do surgimento de um novo amor – Haverá outro, eu sei, no teu lugar/ quando o
coração, com destino vago,/ .../ Ninguém te substitui, só te sucede.30
E entre o passado e o futuro, o corte do presente surge para trazer a perso-
na poetica à consciência da realidade – Não sou asceta, mas contemplo os fatos,/
numa mesa de mármore que há na serra,/ branca como a razão dos insensatos,/ sólida
como o fim que nos encerra –31 produzindo o afastamento necessário para a so-
lução do olhar ficcional. É também no intervalo passado/futuro que são
encontrados sonhos surreais, dando lugar ao “Soneto de um sábado surreal”
(p. 82), em que são geradas cenas “imaginadas”, que nunca teriam sido vi-
venciadas pela persona poetica:
30
p. 128 – “Soneto do amor vivo sucedendo”
31
p. 71 – “Soneto dos fatos em balanço”
233
Ân g ela Mo ntez
Para finalizar esta breve leitura, deve-se apontar para a configuração mais in-
teressante do amor inserido como fio condutor da trama textual, que é o amor
como fruto de nossa modernidade. É o amor que pretende sua realização através
do corpo, já que a existência “real” (ou ficcional) do corpo do Outro é impres-
cindível para sua concretização – Nenhum e.mail te presentifica,/ o celular está em algum
alasca,/ e o ato da corrente interrompida/ transformou nossa ponte em dupla lasca.32 É desse
amor que nasce o jogo memória/ausência física que dá sentido e densidade ao
texto. Se o livro adotasse apenas o olhar passadista, a persona poetica se contentaria
apenas com a rememoração de sua história e se instalaria anatomicamente no
platonismo, na assexualidade e na vitimização. Ao invés disso, busca um olhar
outro, moderno, para tecer seu luto e construir, para si, um corpo que busca um
futuro afetivo e sexuado – Mas há fluidos e seivas, e convivo/ com uma primordial necessi-
dade/ de que veja meus olhos um amor vivo,/ de que não more em mim só a saudade.33 O luto,
necessário para a construção desse futuro, dá lugar à tessitura desse livro catártico –
Este livro catártico, esta cachoeira,/ trampolim natural pras minhas mágoas/ se atirarem, levando
pelas águas,/ o que no inconsciente era poeira –,34 fruto da sublimação dessa perda – Mas
foi em versos livres ou demarcados,/ nas imagens onde o real se fantasiava/ .../ Foi deles que nas-
ceram invulgares filhos,/ nossa imortalidade em corpos de livros.35 Esses invulgares filhos confi-
guram a solução para a simbiose imaginária em que a persona poetica vivia com o ser
amado, consolidando, assim, a sua identidade de poeta.
Retomando a questão levantada no início deste pequeno estudo, subli-
nha-se que seria um equívoco denominar os Sonetos dos Amores Mortos de obra
confessional.
Na verdade, observa-se no texto de Rita Moutinho, assim como nos de ou-
tras mulheres escritoras, a busca de um lugar feminino outro, que procura dis-
cutir e rejeitar o olhar positivista encontrado nas obras do passado, contribu-
indo para a escrita da modernidade.
32
p. 24 – “Soneto da primeira cisão”
33
p. 128 – “Soneto do amor vivo sucedendo”
34
p. 135 – “Soneto da catarse e da sua benignidade”
35
p. 122 – “Soneto dos frutos de poetas amantes”.
234
P r o sa
O sentido da criação
poética nas Odes, de
Miguel Torga
Gi lb er to M en d o n ç a T e l e s
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G il be rto Mendo nç a Teles
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O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a
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G il be rto Mendo nç a Teles
de de dizer-lhe que conhecia o livro das Odes, cuja primeira estrofe recitei de
cor. Não me lembro de nenhuma reação dele, nem de agrado nem de desagra-
do. Ficou-me porém a impressão de que no seu rosto havia qualquer coisa de
dureza, de arbusto retorcido, de torga, ou seja, das urzes que davam expressão
ao seu famoso pseudônimo. Lembro, de passagem, que o termo latino torqueo,
-es (torquo, torco nas línguas românicas, de onde vem o vocábulo torga) significava
“torcido”, “retorcido”, “atormentado” (sentido físico e moral), assim como é
retorcido e “atormentado” o ramo de torga no norte de Portugal.
Talvez a minha admiração pela sua obra me levasse a contemplá-lo como a
um deus, cuja face eu podia ver, não um Deus invisível, aquele “príncipe Mi-
guel” de que fala o profeta Daniel. Conhecendo-lhe a fama de homem duro,
talvez eu o tivesse visto como a um lobo, o “nobre lobo” que se esconde na pa-
lavra Adolpho, de origem visigótica. Assim, o ADOLPHO ROCHA e o MIGUEL
TORGA – nome e pseudônimo – se identificavam para mim num paralelismo
semântico: Adolpho Rocha, o nome, apontava para o “nobre lobo das monta-
nhas”; e Miguel Torga, o pseudônimo que o escritor humilde e ironicamente
adotou, indicava na minha imaginação “o grande príncipe das torgas”, “o
príncipe das pequenas coisas, das urzes”, essas pequenas coisas a que ele soube
dar visibilidade na realidade estética de sua obra literária1.
O disfemismo criado pelo pseudônimo constitui a tensão maior que atraves-
sa toda a literatura criada por Miguel Torga e revela-se com mais ênfase nas
Odes, lugar de pequenas tensões culturais que o leitor vai descobrindo à medida
que passa pelos vários níveis do discurso poético. Aliás, o próprio escritor faz
questão de lembrar no seu Diário (III, p. 15) que “Os homens são como as obras de
arte: é preciso que se não entenda tudo delas de uma só vez”.
Poderia citar um terceiro motivo que, se não está diretamente ligado à lei-
tura da obra de Miguel Torga, diz respeito ao convite que a sua mulher, a
Profa. Andrée Crabbé Rocha, me fez para uma conferência na Universidade
de Coimbra, em 23 de maio de 1984, sobre minhas pesquisas sobre o Ca-
1
No prefácio a A terceira voz (1934), o escritor explica a mudança do nome próprio (Adolpho Rocha)
para o pseudônimo (Miguel Torga).
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O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a
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G il be rto Mendo nç a Teles
“É certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obcecado, ca-
paz de uma lógica que toca a desumanidade. [...] Preferi às vezes pôr um po-
ema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu
instinto sem provas do que na minha razão com argumentos. [III, p.173.]”
“De resto, um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser
um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos,
tudo o que se queira.”
É nessa década, em 1946, que lança as suas Odes, obra que tomaremos aqui
como o ponto central de toda a sua produção poética. Para ela convergem as
transformações temáticas e retóricas de sua linguagem literária; e dela parte
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O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a
“A depuração lírica que tentei não bastou [...]. Os motivos foram-se diluin-
do no regato da emoção, e qualquer dia chego à expressão pura, que será o
êxtase dado numa palavra.”
“Tout poème doit son caractère proprement à la présence, au rayonnement, à l’action trans-
formante et unifiante d’une réalité mystérieuse que nous appelons poésie pure.”
É curioso que, no conjunto de sua poesia, o livro das Odes venha depois de
sete livros editados, entre eles Libertação, de 1944, onde há poemas intitulados
“Dilema” (“eu ouço a voz que prega no deserto,/ E não paro nem volto”) e “Arte poética”:
Depois dele vêm mais sete, entre os quais Cântico do Homem, Alguns Poemas Ibé-
ricos, Orfeu Rebelde e Poemas Ibéricos. Deste modo, as Odes situam-se no centro cro-
nológico de sua produção de poesia. Em Orfeu Rebelde, de 1958, estão o poema
que dá título ao livro e um que se chama “Biografia”, no qual a poesia é vista
como uma prisioneira, que foge da prisão, e o poeta atira “Contra a serenidade de
quem passa”.
Deste modo as Odes situam-se no centro cronológico de sua produção de
poesia. É o lugar de reunião de temas, técnicas e formas aprendidas no período
241
G il be rto Mendo nç a Teles
A partir daí o leitor percebe uma série de tensões proveniente tanto dos temas
como da atitude retórica perante a escrita, ou seja, o desejo de produzir e, ao
mesmo tempo, olhar a sua produção. Passa-se da criação poética à relação crí-
tica ou autocrítica, construindo-se ao longo do livro uma terceira dimensão de
poesia (uma terceira margem, diria Guimarães Rosa) – a que se quer Arte e, ao
mesmo tempo, se mostra como discurso teórico, tematizando a linguagem sem
deixar de participar do equilíbrio e da significação maior de todo o livro. Tal
procedimento leva o leitor, por um lado, a fruir a beleza dos poemas e, por ou-
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O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a
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G il be rto Mendo nç a Teles
trabalho intelectual e dão sentido humano à sua criação literária. Assim, a ode
“A Orfeu” está para a tensão mitologia X cristianismo; a ode “À terra” exemplifica
a tensão natureza X cultura; e a ode “À poesia” confirma o duplo olhar do poeta,
simultaneamente para o mundo e para a linguagem do poema.
Na ode “A Orfeu”, que abre o livro e funciona como uma “declaração de
princípio”, o sujeito lírico se dirige a Orfeu e o trata como “Poeta” (com P
maiúsculo) e o iguala a um “deus” (“tuas mãos divinas”), dizendo-lhe [neste meu
tom de paráfrase] que herdou dele a lira, mas que não sabe tocá-la (“tangê-la”).
Tenta dar para isso a explicação de que os deuses (ou os demônios, diria Paul
Valéry) conspiram contra ele, fazendo-o poeta (“Por eleição ou maldição se-
creta”). Alude-se aqui à tradição clássica, de origem ciceroniana – o célebre Po-
7 Em outro livro dirá que é um “Orfeu rebelde”. Na sua
eta non fit, sed nascitur.
queixa a Orfeu – uma queixa disfêmica e de humildade já se vê – Miguel Torga
acaba passando ao leitor a idéia contrária do que está expresso no poema – o
sujeito lírico diz que não sabe fazer versos (“a lira que não sei tanger”) e se imagina
preso por uma grade (“Tenho uma grade para me prender”). No entanto, essa “gra-
de” se transforma metaforicamente em “cordas” que, humanizadas pela emo-
ção, viram “versos”, embora modestamente ele diga que são “versos de ferro”,
que dilaceram o poeta. Assim, de dentro “da alma e da prisão”, agradece a “Deus”
por ser o poeta que ele sabe ser. Mas que “Deus” é esse? É o Orfeu pagão, o po-
eta mais antigo, o mítico Orfeu que desce ao inferno (como Ulisses, como o
Cristo do Credo), o “deus” apolíneo da Poesia ou o Deus cristão, em que no
Diário III (p.19) Miguel Torga diz não acreditar? A tensão entre o paganismo
poético e o cristianismo religioso cria um dos sentidos especiais da Poesia. Este é
possivelmente um dos 7 types of ambiguity cujos efeitos William Empson estu-
dou no verso inglês. Veja-se, afinal, a pequena ode “A Orfeu”:
244
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a
O poema com que Miguel Torga homenageia a terra é também um dos mais
extensos do seu pequeno volume de dezoito poemas. Vejo nele, entrelaçados,
os três sentidos que percorrem o livro, de maneira que essa ode tem muito de
síntese das Odes torguianas. Filiando-se à áurea tradição dos poetas que fize-
ram a atualização do mito de Deméter, o poeta português começa com um
“Também”:
245
G il be rto Mendo nç a Teles
Torga termina a sua ode “À terra” com um jogo de palavra que esconde e ao
mesmo tempo revela alguns não-ditos, ou seja, está vendo a terra como o lugar
de germinação da Poesia, mas, no subconsciente, está vendo é o Sol, símbolo
de Apolo e, por trás do Sol, a tradição de Apolo como deus da Poesia. Daí na
estrofe que encerra o poema dizer e não dizer o nome de Apolo, a quem o poe-
ta não dedica entretanto nenhuma ode:
246
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a
Vou de comboio...
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
247
G il be rto Mendo nç a Teles
A Poesia para ele, nesta ode, tem “formas brancas e aladas”, está relacionada
com as coisas invisíveis, e ele, que se diz escravo dela, fala em ritmos, imagens e
emoções e a vê como “Musa bela, terrível e sagrada,/ Imaculada Deusa do condão”. A
tensão entre Mitologia e Religião se resolve numa fusão mítico-religiosa: as-
sim como qualquer outra tensão que o escritor teve de enfrentar, ele a soube re-
solver no sentido da melhor poesia. Qualquer que seja o sentido que tenha to-
mado o seu trabalho intelectual de artista da palavra, o médico-escritor teve
consciência de que o desgraçado do artista da pena tem de se agarrar em vocá-
bulos exangues, inertes, cadavéricos, e construir com eles uma obra pelo menos
tão estuante de seiva como a própria Criação.
A partir dessa ode, o leitor paciente e disciplinado saberá ir recolhendo os
fragmentos, as imagens, as experimentações rítmicas, a luta para resolver as ten-
sões culturais e ideológicas para, afinal, compor um Sentido maior, reunião de
todos os sentidos possíveis de serem percebidos, de todos os planos de percep-
ção, de todas as direções que o espírito criador de Miguel Torga pôs na prática
de sua obra literária. A palavra “Criação” no trecho acima vem com inicial ma-
iúscula, a simbolizar a Soma (S) de todas as formas estéticas da Beleza. As Odes de
Miguel Torga são uma parte dessa Beleza, pois constituem, no plano poético, o
que Philip Sidney fez, no plano teórico, para a poesia, defendendo-a ou, como
na segunda edição de seu livro do século XVI, fazendo na Inglaterra uma notá-
vel apologia da poesia. Miguel Torga, além de poeta, foi, como defensor da Poe-
sia no seu Diário, um verdadeiro apologista da Poesia no século XX.
248
P r o sa
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J. B ernardo C abral
250
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s
251
J. B ernardo C abral
mais votado, no que foi seguida por seus congêneres da Bélgica, Escandinávia e
Áustria.
A essa altura, o Socialismo constituía-se em um expressivo movimento de
massas animado por uma mesma interpretação da sociedade e da História, de-
senvolvida por Marx.
Suas idéias centrais são:
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3. A Doutrina Liberal
Cabe aqui recapitular que as linhas mestras da doutrina liberal, decantadas
após séculos de especulação e debates teóricos, são:
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Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s
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P r o sa
Anchieta: criador de
modelos literários
para a evangelização Catedrático da
Universidad de Granada,
Depto. de Filología
N i c o lás E x tr em e r a T a p ia s Românica, desde 1988.
Director do Centro de
Cultura Gallega da
Universidad de Granada
desde 1988. Presidente da
265
N icolás Extremera Tapi as
Hoje, porém, Anchieta é mais conhecido e divulgado pela sua produção lí-
rica e dramática em línguas vulgares, obra não publicada em sua época e reuni-
da num único manuscrito coetâneo, o ARSI 24, o que, em parte, também, não
deixa de ser uma obra atribuída, por mais que contenha partes autógrafas e sua
atribuição seja antiga e constante.
Embora pareça estranho, a fortuna editorial da obra de Anchieta não
difere do destino comum, no mesmo século, da épica e da lírica penin-
sulares. No que se refere às obras impressas, fazemos nossas as palavras
de Frank Pierce: “la épica literaria y demás variantes de la poesía narrativa ocupan
en el vasto campo de la literatura del Siglo de Oro un lugar cuantitativamente impor-
tante.” 1
Mas, pelo contrário, o mesmo Pierce assinalava, como fato surpreen-
dente, que, durante esse mesmo período, as poesias líricas “apareceram”
em vida de seus autores com pouquíssimas edições impressas, e que, em al-
guns casos, as obras deram-se a conhecer ao público leitor só muito tempo
depois.
Para situar a fortuna editorial da lírica de Anchieta entre seus contemporâ-
neos, o seguinte parágrafo de Rodríguez Moñino nos será de suma utilidade:
Voy a tomar veinte poetas que tienen edades rayanas entre los veintiun años, aproxima-
damente, y los sesenta, todos de una época que se circunscribe entre la Armada Invencible
(1588) Y la muerte de Felipe III. En 1588 tenia 61 años fray Luis de León, 58 Baltasar
del Alcázar, 54 Hernando de Herrera y Francisco de la Torre, 52 [?] Francisco de Figue-
roa, 46 San Juan de la Cruz, 41 Cervantes, 39 Rey de Artieda, 38 Vicente Espinel, 30
Barahona de Soto, 29 Lupercio Leonardo de Argensola, 28 el maestro Valdivielso, 27 don
Luis de Góngora, 26 Bartolomé Leonardo de Argensola, Alonso de Ledesma, Cristóbal de
Mesa y Lope de Vega, 25 el Conde de Salinas, 21 don Juan de Arguijo, madura edad Pedro
de Padilla.2 Já Anchieta tinha 54 años.
1
Vid . Frank Pierce.
266
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
En estos veinte nombres están representadas las más puras cimas de la lírica española a fi-
nes del reinado de Felipe II y durante todo el de Felipe III; Ahí se alían Fray Luis de León,
Hernando de Herrera, San Juan de la Cruz, los Argensola, Góngora, Lope, Cervantes... ¿
Qué podía conocer de la obra impresa de todos ellos un contemporáneo? De Hernando de
Herrera, un cuaderno de versos (1582); de Pedro de Padilla, cinco libros, 5 a partir de
1580; de los demás, nada.3
As línguas de Anchieta
Já registrei em outro ensaio haver uma discrepância entre a maneira como
Anchieta foi conhecido em sua época e como o é na atualidade. Pois tal diver-
gência volta a produzir-se, e com outra conseqüência: hoje pouco se fala do
Anchieta novilatino, quando o latim é a língua literária mais usada por ele,
com quase 12.000 versos (54,5%), mais da metade do total de sua produção
literária. Ele é reconhecido, e justificadamente, como fundador da Literatura
Brasileira, como um poeta de língua portuguesa, embora nessa língua não te-
nha escrito nem 10% de seus versos. Dos aproximadamente 22.000 versos
que conformam sua obra literária, pouco mais de 2.000 foram compostos por
2
“He aquí las fechas, si las conocemos, de fallecimento de estos poetas; entre paréntesis figura el año
en que se imprimen sus poesías en conjunto:
Fray Luis de León 1591 (1631), Baltasar del Alcázar 1606 (1856), Hernando de Herrera 1597
(1619), Francisco de la Torre? (1631), Francisco de Figueroa 1617? (1626), San Juan de la Cruz
1591 (1627-1628), Miguel de Cervantes 1616 (1916), Andrés Rey de Artieda 1613 (publicou em
vida), Vicente Espinel 1624 (publica en vida), Luis Barahona de Soto 1595 (1903), Lupercio
Leonardo de Argensola 1613 (1634), José de Valdivielso 1638 (publica en vida), Luis de Góngora
1627 (1627, póstumas), Bartolomé Leonardo de Argensola 1631 (1634), Alonso de Ledesma 1623
(publica en vida), Cristóbal de Mesa 1633 (publica en vida), Lope de Vega Carpio 1635 (publica en
vida), Conde de Salinas 1630 (inédito aún), Juan de Arguijo 1623 (1841), Pedro de Padilla 1595
(publica en vida). Vid. Antonio Rodríguez Moñino. Construcción Crítica y Realidad Histórica en la Poesía
Española de los Siglos XVI y XVII. Valencia, 1968. p. 20.
3
Vid. Antonio Rodríguez Moñino. Op. cit. pp. 19-20.
267
N icolás Extremera Tapi as
O latim
O uso do latim era um exercício imposto aos “eleitos”, no pedagógico sen-
tido jesuítico, para o apostolado. Diz o Padre António Blázquez, em carta da-
tada de 1564 na Bahia:
“O estudo nunca nesta terra andou com tanto fervor (entendendo-se entre
os nossos Padres e Irmãos, que a gente de fóra pouco se dá disso). Tem os
nossos as suas conclusões nos sabbados á tarde e a ellas se acham presentes o
Padre Provincial com outros Padres. No outro sabbado veiu o Bisbo vel-os
e tambem argumentar com elles, e, pela bondade do Senhor, para estudan-
tes Brasis fazem-n’o muito bem. São por todos, entre Padres e Irmãos, onze,
e porque a todos se désse o tempo necessario para os seus estudos, lê o ir-
mão Luis Carvalho pela manhã uma hora de poesia do livro 2.o da Eneida aos
mais adiantados, posto que tenha accidentes costumados; mas a caridade e
necessidade fazem com que tome em seus hombros esta carga ainda que seja
tanto á seu custo e trabalho, esperando que V. Revma., vendo esta falta, se
resolva a mandar-nos dessa província alguns Irmãos latinos que ajudem
aquelles que pouco podem”.4
Anchieta abraçou os dois modelos que o ensino e seu gosto pessoal lhe ofe-
receram – o civil, com Mem de Sá, em De Gesti Mendi de Saa; o sacro, com Nossa
4
Cartas Avulsas. 1550-1568 / Azpilcueta Navarro e outros. Belo Horizonte. Itatiaia. São Paulo. Editora
Universidade de São Paulo, 1988.
Carta do Padre Antonio Blasquez do Collegio da Bahia de Todos os Santos do Brasil Para Portugal e
Escripta a 13 de Setembro de 1564. p. 454. Acrescenta em nota: “Esse irmão Luis Carvalho veiu em 63
com o Pe. Quiricio Caxa e os irmãos Balthazar Alvares e Sebastião de Pina (Carta LI) por doente, e não
logrando saude, tornou a Portugal em 65. Era “latino” como diziam os padres (Carta LV) pois que lia,
ou era lente, dando aula, de poesia, do 2.o livro da “Eneida”, Vergilio, no Brasil, em 1564.” p. 459
268
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Senhora, em De Beata Virgine dei Matre Maria – ambos vazados na língua mais
universal e aparentemente imperecível, o latim, e no gênero mais excelso, o épi-
co. Em latim, não se encontra na literatura peninsular nenhum texto épico civil
ou religioso que se aproxime, quanto à qualidade literária, destas duas
obras-primas do Século de Ouro.
Essa preferência de Anchieta pelo gênero épico civil e religioso é também
comum ao momento peninsular, como registra Pierce:
La constante veneración de la Eneida como el epos por excelencia confirmó el gusto por
la poesía heroica (a este respecto hay que recordar la importancia de la traducción del po-
ema de Virgilio hecha en octavas por Hernández de Velasco, la cual se editó numerosas
veces entre 1555 y 1614). El ejemplo de Lucano fue más fuerte que el de Virgilio. En
cualquier caso, la preferencia por los acontecimientos históricos recientes y la declarada
intención de respetar la verdad histórica de toda época dan a la épica española un énfasis
personal. Esta preocupación por la historia puede verse como fase del culto poético a la
gloria nacional y a las familias nobles y su heroica estirpe; así, puede alegarse que el epos
tiene algo en común con la historiografía renacentista. La poesía épica española de este
período se caracteriza además por los poemas sobre vidas de santos, que igualmente (y en
estos casos necesariamente) demuestran gran respeto por los hechos históricos; algunas
veces estos poemas fueron escritos para contrarrestar la boga de los otros. La épica reli-
giosa fue extendiéndose cada vez más durante el siglo XVII, y llegó a abarcar temas bí-
blicos. Este tipo de poema empezó con la Christias (1535) de Vida y con la obra de
Sannazaro, De partu Virginis, de 1526 (este último poema fue también traducido
al español por Hernández de Ve1asco en 1554 y tuvo varias reimpresiones). El ejem-
plo de estas dos obras latinas, si no su influencia, puede considerarse como un estímulo
para los poetas españoles que cultivan una forma épica que se presenta como una faceta
de la universal religiosidad de la cultura española de la época.”5
269
N icolás Extremera Tapi as
270
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
A língua vulgar
Sua obra lírica e dramática em língua vernácula encontra-se num único
manuscrito do século XVI, conhecido por ARSI 24, no qual se encontram
diversas caligrafias, entre elas a de Anchieta. Descuidadamente reunido, pois
ocorrem vários fragmentos repetidos, faltam-lhe a capa e a primeira página.
Sempre foi atribuído a Anchieta de forma incontroversa, inclusive pelo Pa-
dre Serafim Leite.
Também nesse assunto, Anchieta teve melhor sorte que a de seus contem-
porâneos, como bem nota Rodríguez Moñino no artigo antes citado:
271
N icolás Extremera Tapi as
La inmensa mayoría de los volúmenes que recogen obra de un autor con cierta unidad, son tarea
no autógrafa, sino de copistas o amigos que acarrean de acá y de allá lo que pueden, de papeles varios
donde hay atribuciones. Si fray Luis de León hizo, efectivamente, una colección de sus versos, no está
representada en ninguno de los códices que han llegado a nosotros: hasta los que parecen más puros,
con la carta a Portocarrero, están llenos de poesías apócrifas.
Se podrá pensar, y yo lo he hecho más de una vez, que la transmisión manuscrita suplía
esta escasez evidente de textos fácilmente asequibles. ¿Circularon de mano en mano, manus-
critas, las obras de nuestros poetas? Algunas dificultades se oponen a ello. En primer lugar, la
lentitud de las copias; en segundo, la carestía de un volumen, la cantidad de horas de trabajo
necesarias para obtener un mediano resultado. Había que contar, primero, con la existencia
de un original del cual obtener el traslado; apenas algún autor se preocupaba de disponerlo.”6
6
Vid. Antonio Rodríguez Moñino. Op. cit. pp. 24-25
272
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Deles, aproximadamente:
4,5%, ou seja, 2.438, são em tupi;
3,2%, ou seja, 2.249, são em espanhol;
18,4%, ou seja, 1.057, são em português.
A lírica de Anchieta
A íntima relação que guardam música e lírica nas composições de
Anchieta foi por mim estabelecida numa série de artigos publicados entre
273
N icolás Extremera Tapi as
7
Vid. Nicolás Extremera Tapia:
Un contrafactum de José de Anchieta: Mira el Malo con Dureza. In Estudos Universitários de Língua e
Literatura in: Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho. Tempo Brasileiro,Rio de
Janeiro, 1993.
Ecos del Cancionero y Romancero Peninsulares en el Brasil del Siglo XVI. in Medioevo y Literatura. Actas del
V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval. 4 Vols. Granada, Universidad, 1995.
A poesia ao Divino do Padre Anchieta. in Revista Brasileira. Academia Brasileira de Letras, Fase
VII-Julho-Agosto-Setembro de 1995 – Ano I – n.o 4.
A Lírica de Anchieta: Os contrafacta. in Actas do Congresso Internacional Anchieta em Coimbra. Colégio das
Artes da Universidade (1548-1998). 3 vols. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 2000. pp.
1073-1105.
274
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
“Outras muitas obras compôs em diversos tempos, porque tinha para isso
muita graça e facilidade, em todas as quatro línguas que sabia, latina, portu-
guesa, espanhola e brasílica. Mudava cantigas profanas ao divino, e fazia
outras novas à honra de Deus e dos Santos, que se cantavam nas igrejas e pe-
las ruas e praças, todas mui devotas, com que a gente se edificava e movia a
temor e amor de Deus.”8
8
Vid. Pêro Rodrigues, A Vida do Pe. José de Anchieta, In: Primeiras Biografias de José de Anchieta, São Paulo,
Edições, Loyola, 1988. (L. 1, C. IX, p. 78-79).
275
N icolás Extremera Tapi as
Vemos assim que Anchieta foi tanto ou mais conhecido pela sua qualidade
de contrafator para o divino de cantigas profanas que pela sua atividade musi-
cal original, e são essas cantigas profanas, que com tanta “gracia y delicadeza” sa-
cralizava, o germe da poesia brasileira. Portanto, vou limitar-me, dentro da po-
esia lírica, à atividade contrafatora, talvez a mais elucidativa do que pretendo
referir, por permitir-nos observar a intencionalidade do autor. Para Anchieta,
tanto valia a poesia tradicional como a culta, a poesia marginal como as dan-
ças; tudo poderia ser utilizado para a sua missão apostólica. Ele compõe os
seus poemas à margem de qualquer pretensão artística. Tal coisa não significa,
evidentemente, que seus poemas não sejam apreciáveis sob uma perspectiva es-
tética, mas sim que sua beleza não provém de intencionalidade antecedente.
Em castelhano, existia uma maneira de enunciar as divinizações. Antiga-
mente os títulos rezavam “villancico (ou qualquer que fosse o metro do poeta)
vuelto a lo divino o contrahecho a lo divino”.
O termo contrafactum foi adotado por Wardropper, porque, em suas palavras:
en español hace falta un sustantivo sencillo, me ha parecido legítimo servirme en este libro
de un latinismo que constituye a la vez la base de los términos castellano y alemán: contra-
factum. Tiene la ventaja de ser una referencia internacional, fácilmente comprensible a to-
dos los que estudian la cultura europea; y elimina la necesidad de recurrir demasiado a las
voces divinización y espiritualización, que suenan mal, si no tanto en castellano, sí en otros
idiomas.10
9 Vid. Simão de Vasconcelos, Vida do Venerável Padre José de Anchieta (Prefácio de Serafim Leite), Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional, 1943. (L. I, C. V, n. 5, p. 34).
10
Vid. Bruce Wardropper, Historia de la poesía lírica a lo divino en la cristiandad occidental, Revista
de Occidente, (Madrid, 1958) 5-6.
276
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
una obra literaria (a veces una novela o un drama, pero generalmente un poema lírico de cor-
ta extensión) cuyo sentido profano ha sido sustituido por otro sagrado. Se trata pues de la re-
fundición de un texto. A veces la refundición conserva del original el metro, las rimas, y aun
– siempre que no contradiga el propósito divinizador – el pensamiento.11
11
Vid. Bruce Wardropper, Historia de la poesía lírica a lo divino en la cristiandad occidental, op. cit., p. 6.
277
N icolás Extremera Tapi as
278
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Foi por certo Anchieta quem enviou, em 1586, os missionários que iriam
estabelecer os alicerces das reduções, e estes só atingiram Assunção em 1588.
Aqui há pouco eu disse que, em geral, os poetas divinizadores apropria-
vam-se das composições mais conhecidas do seu tempo. É, portanto, na lírica,
que a presença da língua espanhola é mais patente. Tal fato ocorrente na Euro-
pa é igualmente válido para o Brasil, em meio a um público de colonos, mas
não entre os índios brasileiros, que, naturalmente, desconheciam qualquer da-
279
N icolás Extremera Tapi as
Os públicos
Os seus poemas podem ser reunidos em três grupos principais, dos quais
vou pinçar aqui alguns exemplos: os dirigidos aos índios e que não guardam
relação com o poema original; os dirigidos a um público de colonos e índios,
e que guardam relação com o poema original; e os dirigidos a um público co-
legial, podendo ser esses dois últimos contrafações completas ou quase com-
pletas.12 Em todos os casos, o elemento comum é a música, enquanto a letra
pode ou não sê-lo.
12
Aguirre descreve cinco modos de apropriação, que vão desde o simples aproveitamento da melodia
do poema profano à transcrição literal do poema profano, que cobra sentido religioso pelo simples
fato de ser citado num contexto piedoso. Entre um e outro extremos estão a utilização só do
estribilho ou de uma copla completa utilizados dentro de um contexto religioso; a utilização de um
verso ou mais, embora sempre muito poucos, de um poema profano como ponto de partida para a
criação de um contrafactum; a utilização de bastantes versos do poema original com algumas, poucas,
modificações que o convertem em religioso.
Estas são, de modo geral, as relações possíveis entre o poema original e a sua versão religiosa, as
quais se polarizam em dois extremos, segundo o poema resultante tenha nenhuma ou muita relação
com o original. Aguirre denomina as formas relacionadas com o primeiro caso Método formal (contrafacta
incompletos) e as relacionadas com o segundo Método conceptual (contrafacta completos). Vid. J. M.a Aguirre,
José de Valdivielso y la Poesía Religiosa Tradicional, Toledo, Diputación Provincial, 1965,p. 49-50.
280
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Pertencem ao primeiro grupo (aqueles dirigidos aos índios, que não guar-
dam relação com o poema original e que são contrafações incompletas):
Cantiga por o Sen Ventura a Nosso Senhor (Tupã ci porãgete) e Cantiga por el sin Ventura
(yanderubete Iesu).
Ao segundo conjunto (no qual o poema original sofre diferentes tratamen-
tos segundo o público a que se dirigem) pertencem: Já furtarão ao moleiro o pelote
domingueiro e Polo Moleiro (Pitãgi morauçubara), baseados nas glosas ao tema:
Já furtaram ao Moleyro
Seu Pelote domingueiro
Primeiro grupo. A Cantiga por el sin Ventura yanderubete Iesu figura na página 25
do manuscrito. Compõe-se de quatro estrofes de sete versos de oito sílabas, ex-
ceto os versos 5 e 6, que são de pé-quebrado, com rima ABABcbB. Traz a indi-
cação “Cantiga por O sem ventura”, e é uma oração a Jesus.
Na página seguinte do manuscrito, Tupansy porangeté compõe-se de cinco es-
trofes, tem a mesma indicação Cantiga por El sin ventura, em espanhol, mas é ago-
ra uma oração a Maria.
Assim, é patente que os dois poemas não guardam relação temática entre si.
O mesmo ocorre quanto ao poema de que tomam a melodia, El sin ventura man-
cebo Leandro de amor herido, que não é senão uma versão pouco conhecida, em ro-
mance, do tema de Hero e Leandro que figura na Primera Parte del Jardín de Ama-
dores,13 livro raro de que se conservaram poucos exemplares.
13
Vid. Primera Parte del Jardín de Amadores (Recopilados por Juan de la Puente). Há edições em
Zaragoza e Barcelona (1611), Zaragoza (1637 e 1644) e Valência (1679). O poema, de cuja
existência parece suspeitar Carolina Michaëlis de Vasconcelos (“Estudos sobre o Romanceiro
Peninsular: Romances Velhos em Portugal”, in Cultura Española, Madrid, 1907-1909, (reimp. em
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934, n.o XXIX), não figura nas recopilações que oferecem as
obras monográficas citadas nas duas notas seguintes.
281
N icolás Extremera Tapi as
Já furtaram ao Moleyro
Seu Pelote domingueiro,
obra de três autores, sendo a primeira glosa de autoria não mencionada e as se-
guintes de António Leitão, Luís Brochado e João de Couto, respectivamente.
14
Vid. Bárbara Fernández Taviel de Andrade, El Mito de Hero y Leandro en la Literatura Oral Europea,
Madri, Universidad Complutense, 1990, {Tesis Doctoral).
15
Vid. Francisca Moya del Baño, El Tema de Hero y Leandro en la Literatura Española, Múrcia, Universidad,
1966, {Tese de Licenciatura).
16
“Descubrir los tres motivos constituyentes de Hero y Leandro (Relación amorosa secreta, Paso del
agua, Amor más allá de la muerte) y las figuras que le son anejas (agua, fuego y noche) ha significado
descubrir la piedra angular de la leyenda”. Cfr. Bárbara Fernández Taviel de Andrade, op. cit., (III).
282
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
já furtaram ao moleiro
o pelote domingueiro
em português.
Eis duas maneiras totalmente diversas de aproveitar uma canção. Dirigida a
um público iletrado de índios, a primeira composição aproveita, portanto, só a
melodia dessas trovas, sem dúvida conhecidíssimas, para em dez sétimas, com-
postas de quintilhas e estribilho, contar a história do Menino Jesus, sem que na
dita história se estabeleça nenhuma relação com o tema original.
A segunda composição, em português, dirigida sem dúvida a índios aldea-
dos, é, também, de caráter doutrinário, mas tem um componente simbólico. É
constituída por 45 estrofes sujeitas ao esquema ABBAAcc DEEDDcc, dividi-
da em dois episódios de 24 e 21 estâncias subordinados aos motes:
já furtaram ao moleiro
o pelote domingueiro
respectivamente.
“Apesar da sua simplicidade narrativa – assinala Mello Nóbrega num
interessante estudo17 – O Pelote Domingueiro é composição de grande força
17
Vid. Mello Nóbrega, Um Poema de Anchieta (“O Pelote Domingueiro”), 1977. (Ampliação da conferência
lida em 1975 na Sociedade Brasileira de Romanistas e publicada na revista Romanistas XII y XIII,
órgão desta instituição XII y XIII do mesmo ano. Dispomos de uma cópia datilografada graças à
amabilidade do professor Azevedo Filho). (p. 6).
283
N icolás Extremera Tapi as
“Do que há de trivial e faceto, na história do moleiro que perdeu seu mais
vistoso casaco, é, precisamente, que lhes vem a eficácia comunicativa e dou-
trinária: valendo-se de episódio jocoso, muito popularizado na poesia de
gosto picaresco, o Padre Anchieta extraiu-lhe elevados ensinamentos religi-
osos, tornando-os acessíveis à compreensão de indígenas re-
cém-convertidos e de povoadores incultos.”18
Terceiro grupo. Os poemas desta série podem ser polarizados em dois nú-
cleos principais: o primeiro dirige-se a um público de colonos e compõe-se de
contrafações completas ou quase completas. Um exemplo seria Venid a suspirar.
18
Vid. Mello Nóbrega, op. cit., p. 6.
19
Cfr: Mello Nóbrega, op. cit., p. 8
284
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
o contrafactum:
20
O primeiro terceto e a música aparecem no Cancioneiro da Biblioteca Pública Hortensia de Elvas. Ambos os
tercetos e a música, com ligeiras diferenças, figuram no Cancioneiro Musical de Belém. São estas as únicas
fontes para a música e o texto.
Transcrevemos aqui a versão do Cancioneiro Musical de Belém (Estudo introdutório e transcrição de
Manuel Morais), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 65-66. Acompanha esta
edição uma interpretação do Cancioneiro pelo grupo Segréis de Lisboa.
285
N icolás Extremera Tapi as
MIRA NERO
Mira el malo, con dureza,
a Jesús, cómo moría.
Lloraba la redondeza,
con dolor y gran tristeza...
¡Y él de nada se dolía!
Dele serve-se Anchieta, para transferir à sua canção todo o clima de tristeza
de um dos romances mais populares da literatura peninsular.21
21
Para a fortuna deste poema em Espanha e América, no século XVI, vid: Nicolás Extremera y Luisa
Trias, “Un contrafactum de José de Anchieta: Mira el malo con dureza”, In: Estudos Universitários de Língua e
Literatura. Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1993, p.
611-624.
286
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Os modelos dramáticos
O teatro de Anchieta estende-se ao longo de 5.744 versos, quantidade im-
portante por representar 55% do ARSI 24, e em volta de 26% de sua produ-
ção literária.
Nesse gênero, inverte-se a freqüência de uso das línguas, ocupando agora o
primeiro lugar o tupi com 2.438 versos, 42,547%, seguido de perto pelo espa-
nhol com 2.249 versos, 39,249%; o português, com apenas 1.057 versos, fica
com 1,446%, em último lugar. E isso porque o teatro é por excelência o gênero
privilegiado de evangelização e o público é majoritariamente indígena.
O teatro, tanto o popular como o escolar, sempre foi para os jesuítas um
instrumento de educação. Se, no princípio, Anchieta chegou a dizer: “para esta
gente não há melhor pregação que a espada e a vara de ferro”22 – opinião ain-
da mais dura que a conclusão de Nóbrega no seu Diálogo sobre a Conversão do Gen-
tio –, pouco depois ele conseguiu converter o teatro em escola de catequese e
substituir os costumes dos índios pelos cristãos, adaptando-os aos valores da
fé através do diálogo dramático.
O teatro vicentino, as danças populares peninsulares e as cerimônias ances-
trais indígenas foram os seus modelos. Anchieta acrescenta, portanto, à tradi-
ção peninsular ibérica a novidade do cenário e a coreografia nativas. Usa das
trovas peninsulares contrafeitas, do recitativo da catequese, de temas e perso-
nagens da mitologia silvícola mesclados a imperadores romanos, e, mesmo, fi-
guras historicamente reais de chefes indígenas de tribos hostis.
Já assinalamos o caráter pragmático da música; a dança é considerada como
transição para o diálogo; mais ainda os machatins, que têm um substrato guer-
reiro ritual a que os índios estavam acostumados.
Mas tanto as músicas como as letras e os passos das danças de Anchieta
são diferentes; marcam uma diferença audiovisual com as das festas indíge-
nas, então consideradas anacrônicas, impróprias para o novo estado cristia-
nizado dos nativos. As personagens dos autos anchietanos partem da realida-
22
Vid. Anchieta, José de, Cartas. Correspondência Ativa e Passiva, São Paulo, Edições Loyola, 1984, p. 195.
287
N icolás Extremera Tapi as
O tupi
O uso exclusivo do tupi na obra de Anchieta determina o seu conteúdo, o
programa, a forma da instrução. No caso das obras que se podem incluir
no teatro em língua tupi, há três autos de catequese, a saber: Dia da Assunção,
Quando Levaram sua Imagem à Reritiba; Dos Mistérios do Rosário de Nossa Senhora e Na
Aldeia de Guaraparim, condicionados por toda uma inter-relação com novo
código.
Primeiro nível
A Selva
Desses autos, o mais próximo à selva é o Dia da Assunção, quando levaram sua
imagem à Reritiba, que consta de 103 versos. A citada aldeia foi fundada por
Anchieta provavelmente no dia 15 de agosto de 1570, com índios tupini-
quins. O auto deve ter sido representado nela a 15 de agosto de 1590.
Personagens
Coro de meninos que dançam machatins; um anjo; um diabo e seus compa-
nheiros. O auto está exclusivamente dirigido a um público de índios e tem por
finalidade o recebimento de uma imagem de Nossa Senhora no porto, no átrio
e na própria igreja.
O argumento desenvolve-se em três atos. No primeiro, um anjo e um diabo
enfrentam-se ao ser levada à vila uma imagem da Nossa Senhora. No segundo
ato, no átrio da igreja seis índios dançam machatins. O terceiro ato consiste
num discurso final do anjo. Concordamos com Paula Martins, para quem esta
representação provavelmente seria precedida de uma cantiga de 39 versos.
288
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Segundo nível
A Aldeia
A evolução desse gênero de espetáculo para uma forma mais dialogada en-
contra-se no auto representado em Guaraparim, aldeia de índios já mais cristi-
anizados, onde se entroniza o conceito de alma. O auto Na Aldeia de Guaraparim
deve ser situado num nível sensivelmente superior. Trata-se da peça mais lon-
ga, escrita exclusivamente em tupi, do caderno de Anchieta. Tem 806 versos e
289
N icolás Extremera Tapi as
Personagens:
Uma Alma, um Anjo e os Diabos Anhanguçu, Tatapiera/Arongatu, Cau-
guaçu/Caumondá, Moroupiara/Aboiuçu/Anngobi. O auto apresenta uma
personagem alegórica original para o teatro indígena – a Alma – e uma prová-
vel cena celestial – indícios de época avançada na catequese. Há crítica dos
maus costumes: a antropofagia, o beber cauim e seus derivados, além do ata-
que aos vetores dos vícios estabelecidos: as mulheres idosas e os pajés.
Fornece dados etnográficos, como o comportamento dos casais, a adoção
de muitos nomes à moda indígena e indicações geográficas, como a de aldeias
não conhecidas na documentação da época. Lingüisticamente, revela flexibili-
dade na linguagem, rapidez no diálogo e vocabulário relativamente mais rico
que o das peças tupis anteriores.”23
Terceiro nível
Um terceiro nível na evangelização das aldeias indígenas é indicado por pe-
ças bilíngües tupi-línguas peninsulares.
23
Ibidem. p. 603.
290
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
291
N icolás Extremera Tapi as
292
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
leriano, que são vencidos pelos demônios indígenas que atuam sob as ordens
de personagens do cristianismo: um anjo e um santo. A confrontação entre
ambos os paganismos realiza-se num espaço não menos anacrônico: o clássico,
culpável por ser posterior ao cristianismo, e o indígena, inocente, que vence o
paganismo clássico por mandato cristão.
Tal projeção cultural ocorre também no plano lingüístico, de modo que os
personagens põem em cena a máxima expressão da formação dos seletos. Seu
bilingüismo demonstra a aprendizagem das línguas a que eram submetidos
não só os índios, capazes de falar uma língua de cultura como a espanhola, mas
também os meninos órfãos levados ao Brasil pela Companhia, aos quais era
ensinado o tupi.
O paganismo clássico está representado pelos imperadores romanos Décio
e Valeriano, que falam castelhano, embora conheçam também as línguas dos
indígenas: o tupi, em que Décio pronuncia suas últimas palavras, cinco versos
(1.076-1.080), e o carijó, que Valeriano utiliza em quatro versos, para con-
fundir Aimbirê.
O paganismo indígena está representado pelos demônios indígenas, que são
os personagens verdadeiramente bilíngües do diálogo, pois ambos falam em
castelhano durante todo o diálogo, salvo Aimbirê com vinte versos e Saravaia
com seis versos. Ambos apresentam-se falando em tupi, embora imediatamen-
te passem para o castelhano. Aimbirê explica-o assim:
293
N icolás Extremera Tapi as
As línguas peninsulares
1. o Nível
Nas Vilas
O uso exclusivo de uma, outra ou de ambas as línguas peninsulares si-
tua-nos já em outro mundo; é o mundo dos colonos. Ali habitam os filhos dos
colonos melhor estabelecidos e os índios seletos transculturados. Trata-se da
universidade dos colégios do Brasil.
O auto de catequese intitulado Auto de Santa Úrsula ou, como consta do Ca-
derno de Anchieta, Quando no Espírito Santo se Recebeu uma Relíquia das Onze Mil Vir-
294
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Personagens
Um Diabo, um Anjo, São Maurício, um companheiro de São Maurício,
São Vitor, Santa Úrsula e um personagem alegórico. Tem particular interesse
a Vila, que aqui fala português.
Diz o Padre Hélio A. Viotti que “Seus atores parecem ter sido estudan-
tes da escola dos Jesuítas e membros da Confraria de S. Maurício, sediada
na igreja de Santiago, em cujo adro se representou a parte principal do
auto”.24 (p. 99)
Em correlação com este auto, Anchieta compôs Na Vila de Vitória, seu auto
mais extenso, com um total de 1.674 versos, dos quais 65% estão em espa-
nhol e os 35% restantes em português. É também o de maior elaboração téc-
nica e de melhor concepção dramática. Foi pela primeira vez representado
no pátio da igreja de Santiago, na Vila Velha de Vitória do Espírito Santo,
entre 1584 e 1586.
Estava dirigido a um público de colonos, no meio do qual, porém, poderia
haver índios em fase de evangelização ou já convertidos ao cristianismo. Tanto
sua temática como seus personagens diferem sensivelmente dos que costumam
ser habituais na dramaturgia anchietana.
Junto a personagens comuns a toda sua obra, como são Satanás, Lúcifer,
São Maurício e Vital, companheiro de São Maurício, aparecem outros de na-
tureza alegórica, como a Vila de Vitória, a Ingratidão, o Governo, e, por fim,
seus companheiros – o Temor de Deus, o Amor de Deus e o Embaixador do
Paraguai.
O fito desse auto é restabelecer a relação da aldeia com seu padroeiro São
Maurício, cuja deterioração está a ponto de motivar o traslado de suas relíqui-
as a pedido do embaixador do Paraguai. Muito complexa e suscetível de vários
24
Vid. P. Joseph de Anchieta S.J. Teatro de Anchieta, Obras Completas 3. volume. Originais
acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo P. Armando Cardoso. op. cit. p. 99
295
N icolás Extremera Tapi as
296
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Governo-
Mas não me tenhais a mal
preguntar-vos, sem engano
(não vos virá disto dano):
pois que sois de Portugal,
como falais castelhano?
(521-525)
Vitória-
Porque quiero dar su gloria
A Felipe, mi señor,
El cual siempre es vencedor,
Y por él habré victoria
De todo perseguidor
297
N icolás Extremera Tapi as
Yo me hallo arrepentido,
Pues, como hombre atrevido,
Hablé mal de Portugal.
298
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Embaixador-
¡Pues juro de trabajar,
de estas reliquias llevar
para el Río de la Plata!
(1.134-1.136)
Vital-
¡Mirad, hermano vuestro celo!
Aunque lo tengo por bueno,
No penséis que es tan ajeno
De justicia el rey del cielo,
que rige el mundo sin freno.
299
N icolás Extremera Tapi as
Embajador-
Pues, ¿nunca vendrá alguna hora
Para su visitación?
Vital-
Dios, de suma compasión,
En quien toda bondad mora,
Sabe el tiempo del perdón.
(1.204-1.208)
pues Mauricio,
por singular beneficio
de nuestro Dios, le fue dado
(1.337-1.339)
300
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Segundo Nível
A cidade-colégio. O auto em espanhol.
O âmbito lingüístico e cultural em que se inscreve o teatro de Anchieta é,
sem dúvida, dos mais amplos da história do gênero. Sem entrar no latim e fa-
lando só das línguas vulgares, Anchieta é capaz de vincular os idiomas indíge-
nas, os mais primitivos, que sequer eram conhecidos, com o espanhol, que para
ele ocupava o lugar de paradigma indisputado.
Tais são os dois extremos da atividade dramática de Anchieta: o mais pri-
mário, o mais elementar de seu apostolado, o do primeiro contato do índio com
o Deus dos jesuítas, está perfeitamente tipificado no Dia da Assunção, Quando
Levaram Sua Imagem a Reritiba, que é também a sua peça em tupi mais breve. No
outro extremo, o mais elaborado, o mais sutil de sua evangelização, o auto inti-
tulado Na Visitação de Santa Isabel. Escrito e representado em espanhol, apresenta
conteúdos elaborados, expressivos, doutrinários e místicos.
É a última peça que Anchieta escreveu, toda em castelhano, cerca de um mês
antes de sua morte.
301
N icolás Extremera Tapi as
É um auto diferente dos outros, mais próximo dos de Gil Vicente: o diálo-
go é mais longo, e a parte do espetáculo, menor. Foi criado para ser representa-
do antes da missa de inauguração da Santa Casa de Misericórdia, no dia 2 de
julho de 1595, em Vila Velha, antiga capital da Capitania do Espírito Santo.
Trata-se de um ato inaugural de uma obra com sufrágio em parte do Capitão
Miguel de Azeredo, que foi assistida por um público eminentemente cortesão.
O espetáculo que oferece é muito semelhante ao de uma peça similar da Penín-
sula Ibérica.
Escrito num único ato de 572 versos, parece ser melhor representado em
dois atos:
1.o O diálogo de Santa Isabel com um romeiro castelhano, até ao verso 416;
2.o Da aparição do Anjo, no verso 416, que marca a presença de Nossa Se-
nhora até o final, no verso 572.
Aqui já não aparece a dança, embora seja o canto o verdadeiro dinamizador
da peça, por meio de duas tonadilhas. O primeiro ato articula-se sobre ¿Quién
te visitó, Isabel, e o segundo sobre ¡Ave, estrella de la mar!
Primeiro Ato
No início, indica-se que ele se construiu “sobre este mote”:
302
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
cantado a duas vozes sobre a melodia de uma das cantigas de germania mais
populares do século XVI peninsular.25 A cantiga vai do verso 51 até ao 110. A
25
Recolhida no Cancionero General de Hernando del Castillo a partir da sua 8.a edição (1557). Diz assim:
Quién te me enojó Ysabel Calareme un molleron luego quinta y enbocada
quién con lágrimas te tiene un luan Machiz corto y ancho s’esta de masse Miguel
que hago voto solene Numbergue al gargamellon que hago voto solene
que pueden doblar por él. las onze mil en el pancho que pueden doblar por el.
y mi famosa Rodancho y si viniere en gauilla
No lloreys colipoterra y mi follosa cruel no le estimo en vn tornes
ni me tengays por gayon que hago voto solene para mi no es marauilla
si no os le pongo so tierra que pueden doblar por el. esperar a dos ni tres
antes que de la oracion yra comigo altopies
vos entrujad el cayron Al Burdion inocente que es vn compañero fiel
no demos en el barzel y’os le dare de antubiada que hago voto solene
que hago voto solene desd’el oyente al soniente que pueden doblar por el.
que pueden doblar por el. una luenga turrionada
Canção esta que talvez seja necessário “traduzir”12
Quem foi que te molestou Levo um capacete que eu faço voto solene
(enfadou) Isabel um cutelo curto e largo que podem dobrar sinos por ele
quem com lágrimas te tem couraça no peito
E se vier em companhia
que eu faço voto solene cota de malha na barriga
não o temo em nada
que podem dobrar sinos por ele. e o meu famoso escudo
para mim não é maravilha
e a minha espada cruel
Não choreis rameira esperar dois ou três
que eu faço voto solene
nem me tenhais por rufião irá comigo Altopés
que podem dobrar sinos por ele.
caso contrário não o enterro é companheiro fiel
antes de dar a oração Ao rufião inocente faço voto solene
vós roubais o dinheiro eu darei a traição podem dobrar sinos por ele
não vamos ir para a cadeia desde a orelha até ao nariz
que eu faço voto solene uma longa facada
que podem dobrar sinos por ele. logo vários golpes de espada
Sobre esta canção de germania Anchieta compôs também o contrafactum: “El que muere en el pecado”
(p. 18 v do manuscrito), no qual narra a estória de Baltasar Fernandes, um adúltero desdenhoso que,
admoestado em reiteradas ocasiões por Anchieta, respondia sempre “Morra gato, morra farto”.
O infeliz acabou morrendo de uma flechada do marido traído. Esta canção, que está relacionada
com outras [números 446, 447, 448 da obra de Margit Frenk, Corpus de la Antigua Lírica Popular
Hispánica (siglos XV a XVII), Madrid, Castalia, 1987], foi estudada na sua relação com o teatro de
Anchieta por Joseph E. Gillet, “José de Anchieta, the first brazilian dramatist”, Hispanic Review XXI,
(1953) 155-160. Há uma versão para o divino, anônima, que começa:
Aquel gran Dios de Ysrael, oy cunple el voto solene
que del padre sale y viene que David hizo por él
Figura no Cancionero Sevillano da Biblioteca da Hispanic Society of America (Nueva York), ms. b
2486, f. 170 v. Cfr. M. Frenk Alatorre, El cancionero sevillano de la Hispanic Society (ca. 1568), NRFH 16,
(1962) 355-394.
303
N icolás Extremera Tapi as
partir daí, o diálogo encaminha-se a narrar, já sem canto, a vida de Nossa Se-
nhora, sua pureza, além dos mistérios da redenção e da encarnação, com refe-
rência a um profeta.
Depois, segue-se um fragmento de litania:
De madre de pecadores,
Abogada de culpados,
Refugio de atribulados,
Medicina de dolores,
Libertad de encarcelados,
(307-311)
Este plano de exaltação mariana conclui-se com Santa Isabel estatuindo ser
a Misericórdia o mais fino elemento dentre as virtudes de Maria (335). Mais
adiante, no verso 381, estabelece-se o vínculo entre esta virtude da Virgem e a
Casa da Misericórdia que estava sendo inaugurada (379-381).
O ato conclui com uma despedida do romeiro e a promessa de Santa Isabel
de “por los ruegos” de Maria conseguir de Jesus que:
Segundo Ato
Este é introduzido pela chamada de um Anjo (dez versos) ao romeiro caste-
lhano que partia, anunciando a vinda da Mãe de Jesus. Na continuação, o romei-
ro e os quatro companheiros, de joelhos, iniciam o segundo movimento musical
da peça com o “¡Ave, estrella de la mar”. Cada um deles faz uma variação de dez ver-
sos, dando lugar à alocução de Nossa Senhora, que começa no verso 481.
304
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
Él es la miel sustancial,
Del alma dulce comida.
Él es el dulce panal,
Que en mi vientre virginal
Se crió, por darnos vida.
(521-525)
Abençoa a aldeia e pede para ela a proteção de seu Filho. Os romeiros tam-
bém vão embora, cantando
Seguem-se mais duas estrofes de mesma feição, com o que a obra se conclui.
Personagens
Participam oito, sendo a principal a Virgem Maria, em cujos lábios Anchie-
ta põe setenta versos. É a única vez em que Nossa Senhora participa como per-
sonagem no teatro de Anchieta, razão por que se pode fazer constar que a Vir-
gem de Anchieta fala em espanhol. O seguinte personagem em importância é
Santa Isabel, visitadora da Virgem Maria, que estabelece um diálogo teológi-
co-moral e por vezes político-religioso com o romeiro, assim como um víncu-
lo simbólico entre Nossa Senhora e a Casa da Misericórdia. O romeiro visita
Isabel, que visita a Virgem Maria, que visita a todos. O coro de quatro compa-
305
N icolás Extremera Tapi as
306
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização
26
Vid. Carta de Anchieta de finais de agosto de 1554 a Santo Inácio.
307
Gravura em metal (2005).
João Atanásio.
P o esia
Poemas
L ê d o Iv o
309
Lêdo Ivo
310
Poemas
O anjo
No dia suado dos homens
um anjo passou ao meu lado.
Caminhava como um sonâmbulo
e sua asa roçou o meu ombro.
311
Lêdo Ivo
O passeio de canoa
Ainda hoje ouço o rumor dos remos na laguna.
Eles cortam as águas como se escavassem a terra
e separassem o amanhecer dos prodígios do dia.
A canoa desliza lentamente entre os mangues verdes e emaranhados
e a promessa do mar que fulge na foz deserta.
312
Poemas
Soneto de Ottawa
E o tempo... o tempo o belo escarnecido,
por mais longo que seja sempre breve,
uma brancura plácida de neve
desgarrada do céu escurecido,
313
Lêdo Ivo
Uma laranja
Contemplo uma laranja que brilha como um sol na manhã de verão
e descubro que não sabemos contemplar.
A nossa pressa em tocar e possuir nos impede de contemplar o corpo
[bem-amado
especialmente os seios que reclamam o silêncio da adoração
antes de serem emurchecidos pelo deus dos corpos
mais cruel que o deus das almas.
314
P o esia
Sonetos ingleses
para Ruth
I ve s Gan d r a d a Si lva M a r t in s
315
Iv es Gandra da Si lva Marti ns
Eternamente Ruth
Há muito tempo que não resto assim,
Perto de tudo e longe de mim mesmo.
Caminho meu caminho sem ter fim,
E eu ando certo de que eu ando a esmo.
Em Natal
A timidez do sol, na tarde escura,
Com prenúncios de chuva mais adiante,
Desvenda pelo mar a compostura
De quem navega sonhos de um infante.
316
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th
Rei
Nasci rei de um reinado sem rei,
Num castelo sem cor e sem ponte,
Meus comandos nos quadros da lei
Mergulharam na cálida fonte.
317
Iv es Gandra da Si lva Marti ns
Nosso amor
O descompasso fere o pastoreio,
O pastoreio pasce o verso inculto,
O verso inculto gera o teu receio
E o teu receio torna-se meu vulto.
À noite
Quando te fito pela noite adentro,
Neste sossego que tua alma exalta,
Vejo um passado que não foi cruento
Vejo um porvir no qual amor não falta.
318
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th
Noite
No silêncio da noite e da distância,
Revejo, lasso, as cenas do passado,
Que recomponho, instância por instância,
Até formar o círculo quadrado.
319
Iv es Gandra da Si lva Marti ns
Olhar de infância
Penetrei pela enorme profundeza
Deste mar colorido de seus olhos.
Triste azul. Melancólica tristeza.
Penedo transformado sem escolhos.
Esboço
Feneceram as rosas pelo azul.
O verde naufragou em plena idéia
E perdeu o comando para o Sul.
Soçobraram lembranças de odisséias.
320
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th
O cansaço do tempo
O cansaço do tempo já desfeito,
Transparece nas páginas d’antanho,
Um cansaço explosivo no seu leito,
Que do tempo distende seu tamanho.
321
Iv es Gandra da Si lva Marti ns
Eu
Eu sou aquele que te quer, na vida,
Com um querer sereno e sem limite,
Que permanece, mesmo se a descida
Os anos mostre para quem os fite.
322
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th
323
Iv es Gandra da Si lva Marti ns
2007
Começo um ano novo. Recomeço.
A mesma luta intensa do passado.
A vida corre célere e não meço
O tempo que se escoa de meu lado.
324
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th
325
Microorganismo (2006).
João Atanásio.
P o esia
Poemas
S o nia S a l e s Sonia Sales nasceu no
Rio de Janeiro, mas é
paulistana há 23 anos.
Deus Com formação em
Psicologia e Arte e
Deus cursos de extenção
Leva-me ao cume da montanha em Londres, Munique
e Bruxelas, seus gêneros
Para que eu tenha uma visão mágica da natureza
literários são a poesia,
e volte com as mãos repletas de flores. o ensaio e a literatura
Mostra-me a Tua vontade infanto-juvenil. Tem
artigos publicados em
Onde a felicidade ainda existe.
jornais e revistas do
Brasil e do exterior e
Deus participa de várias
Entende minhas carências e o meu refúgio antologias em
Cruza a tênue linha da vida Portugal, Espanha,
EUA e Brasil. Tem
Em cada momento, a cada sol doze livros publicados,
acende a chama da virtude a maioria com versões
na alma que me deste em inglês e espanhol.
Seu último livro de
poemas, Os Dedos da
Deus Morte, recebeu o prêmio
Quero ouvir o Teu chamado para livros bilíngüe,
Comer a Tua ceia. Menotti del Picchia, da
União Brasileira de
E quando chegar a hora da luz Escritores.
e da verdade, ao som de violinos Pertence à Academia
dormirei a Teus pés. Carioca de Letras e ao
PEN Clube do Brasil.
327
S on ia Sales
Sonhos roubados
Cai a máscara.
Sem horizonte, a solidão
é o oráculo nesta cidade que
não mais conheço.
O sol esboroa-se refletido nas
vidraças empoeiradas.
Tremulam sombras esculpidas
na geometria do concreto.
Homens armados, carros blindados,
guarda-costas atentos.
Cristos em sangue.
O asfalto repleto de tradições
pactuando com a realidade virtual.
As imagens do computador
mostram corações de vidro
e a ferocidade de suas derrotas.
Criaturas sem face clamam por
liberdade.
Crianças reclamam
a devolução dos seus sonhos.
Hora da verdade
As tristezas se acumulam
as dívidas também.
A hora da verdade
Não é a do dia
Enquanto o sol
jorra pela janela.
328
Poemas
É de madrugada
Quando acordada me levanto
e a Besta está solta.
A ela me revelo.
Tanto é o medo do perjúrio
que estremeço enquanto outros
acham graça.
Indiferentes, não se alarmam
com as guerras alheias
com as nossas guerras
329
S on ia Sales
através da tela
todos os dias, todas as noites.
E nós, poderosas criaturas, nos
refestelamos com iguarias
enquanto elas morrem
de fome.
Meditação
No lodo do rio
talhado com o sangue dos infiéis
naves contraditórias descem na correnteza
procurando certezas
que só Deus nos pode dar.
330
P o esia
Poemas
I zac yl Gu i m ar ãe s F e r r e ir a
331
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra
Noturno
O instável firmamento
brilhava sobre nós,
perdidos em perguntas.
332
Poemas
Senhor
Há muito tempo venho te escrevendo.
De meus primeiros endereços,
desde o começo,
desde sempre eu te escrevi.
Desde os muitos casarios
– nas alturas, frente ao mar,
de minha terra solar
e de lugares sombrios –
de toda parte venho te escrevendo.
333
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra
Tamanhas caligrafias,
tamanhas indagações,
já não sei se me perdi
na própria língua
ou se esqueci tua extensa geografia.
334
Poemas
Sinais vitais
O belo está no belo que já vimos.
Afonso Felix de Sousa
335
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra
336
Poemas
Promenade
1.
Ouço a grande porta de Kiev
e sem que a veja a imagino.
Vejo as naturezas mortas
nas paredes infindáveis
sem perder os seus aromas.
Cheiro as flores dos jardins
impressionistas e as colho
em ramalhetes de sons.
A clorofila infinita
de Cézanne uma vez mais,
essa Vênus, esse Apolo,
os burgueses de Calais
– meu museu imaginário
e o de Malraux me acompanham
quando fecho minhas pálpebras.
Todas as coisas despertas
nos sentidos da memória
são eternas e imutáveis.
Todas as coisas lembradas
eternizam meus minutos.
2.
La guitarra es um pozo
Con aire em vez de água.
Gerardo Diego
337
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra
3.
Aquém ou além da fotografia,
do filme, da cegueira apenas breve
de meu sono, há imagens que se movem
a despeito de mim ou dos passantes.
Partem barcos velozes nas regatas,
as bandeiras ventando pelos mastros
num cais suspenso sobre um mar intacto.
338
Poemas
4.
Se meus olhos falassem,
meus ouvidos ouvissem,
muito conversaríamos,
estes auto-retratos
e eu, os olhos nos olhos:
jovens, velhos Rembrandts,
um e outro Van Gogh,
Portinari e seus óculos.
Levanto meus espelhos
para que possam ver
como eram e são,
quando o tempo se encolhe
e podemos falar
sem pressa, sem temor
aos relógios e às noites
que se acumulam densas
sobre os dias distantes
que nos separam. Mas
agora estamos juntos,
eles e os rostos todos
339
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra
5.
Entre o que vejo e penso,
entre a pintura feita
e a natureza vista
(ou inventada, outra,
ou nenhuma, mental),
entre olhar e lembrar,
a tela permanece
indiferente e livre.
340
Poemas
341
Microorganismo (2006).
João Atanásio.
P o esia
Poemas
Gu i lh er m e d e A l me id a
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G uil herme de A lmei da
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Guardados da M em ó r ia
Mário de Alencar
Af r ân io Pe ix o t o
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Afrâ ni o Pei xo to
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M á r i o de A l e n c a r
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Afrâ ni o Pei xo to
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M á r i o de A l e n c a r
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Afrâ ni o Pei xo to
350
M á r i o de A l e n c a r
seu alcance. Tivera o pai, o maior dos nossos escritores, e um mestre, o mais
medido e definitivo homem de letras do Brasil; dele viria, compensados anta-
gonismos, Mário de Alencar, que nem todos poderão admirar, mas que é cer-
tamente mestre de literatura, como não tivemos, como têm os países de grande
cultura nos raros homens de letras que fazem da arte literária um sacerdócio
que deve privar-se de parcerias equívocas.
Horácio dissera para ele: Odi profanum vulgus et arceo.
A Academia deu-lhe grandes desgostos; ninguém teve mais influência do
que ele ao tempo de Machado e ainda depois; a razão é que, antes do prestígio
que lhe deu a fortuna Alves, ela só tinha por si a dedicação de raros acadêmicos
e ele era talvez esse plural.
Só Bilac iniciara para ela, graciosomente, um arquivo. Tudo mais era Mário.
Dera-lhe casa, sendo Ministro Seabra; depois, dera-lhe os acadêmicos que vie-
ram vindo; já contei como eu mesmo fui beneficiado por essa bondade. Mário
levou para lá também seus médicos, Couto e Austregésilo devem-lhe isso.
Aos seus amigos permitia algumas iniciativas, assim é que João Ribeiro nos
doou Alberto Faria, provinciano de Campinas que tantas irritações viria cau-
sar, desunindo a Companhia desde aí.
A eleição de Lauro Müller, à qual não pôde deixar de dar seu consentimen-
to, porque senão Augusto de Alencar, seu irmão e ministro plenipotenciário,
seria vítima, custou-lhe a inimizade de Veríssimo, que, para vingar-se, escreveu
um livro de literatura nacional onde o eixo das letras nacionais deixou de pas-
sar por José de Alencar para passar por Machado de Assis.
Custou-lhe a animosidade, até depois da morte, de Medeiros e Albuquerque,
porque lhe contrariara as fantasias ortográficas, impostas à Academia.
Custou-lhe a ruptura com João Ribeiro, pelo amor que pôs na candidatura
de Jackson de Figueiredo.
Posso, porém, depor que ninguém, antes ou depois de Machado, quis mais
bem à Academia, desinteressadamente. Era como mãe extremosa que rompia
em guerra com quem lhe magoasse a filha. Daí o humor perene de sogra... aca-
dêmica.
351
Afrâ ni o Pei xo to
Fiz timbre enquanto viveu em não ter na Companhia outro voto ou opi-
nião, senão a sua. Também por duas vezes, em assuntos apaixonados, consegui
dele abandonar paixões e convicções, por meu juízo. Uma vez no caso Oliveira
Lima, em que toda a Companhia estava com ele, e que só não foi excluído da
Academia porque consegui fazer adiar essa exclusão para a sessão seguinte,
vindo com o tempo o juízo. A outra foi na venda ou cessão da Livraria Alves
aos devidos sucessores do livreiro, os seus empregados, quando indivíduos es-
tranhos queriam apossar-se desse bem. Fiz valer o ponto de vista confidencial
de Francisco Alves, ratificado pela proposta honesta de Paulo de Azevedo, a
mais vantajosa e idônea que recebeu a Academia.
Devo-lhe, também, o ter sido eleito presidente da Companhia, e à minha
revelia, como, doze anos antes, fora também por ele eleito, à revelia minha,
acadêmico.
Conspirávamos contra as presidências demoradas que tiranizaram a Aca-
demia: Machado, benigno tirano de uma Academia sem interesses. Rui, que
vem depois, e não governa, não aparece nunca e por ele dirigem os Secretários-
Gerais, Veríssimo, Afonso, etc. Chega o testamento Alves, e o presidente con-
tinua distante e nem os papéis mandados a ele são assinados.
Resolvi tentar uma mudnça e, numa eleição em que o mandato do grande
homem era seguidamente confirmado, consegui oito votos para Alberto de
Oliveira. Rui, habituado à unanimidade, mandou a sua renúncia, como eu es-
perava. Elegemos Domício da Gama que, volvendo do estrangeiro e ministro
de Estado, nos procurava assiduamente.
Domício, rapidamente, pôs termo ao inventário Alves. Teve, porém, de
partir, e em seu lugar foi feito presidente Laet, que iniciou uma série de anos
administrativos, com a sua coterie de Ataulfo, Alberto Faria, etc.
Resolvemos conspirar por outro presidente. Lembrei Medeiros, que repug-
nava a Mário, mas que ele aceitou por condescender comigo. Eu seria o Secre-
tário-Geral e assim outros. Fiz a cabala neste sentido, mas à última hora achei
Medeiros empenhado com Ataulfo para mantê-lo na Secretaria-Geral. Adver-
ti-lhe que a conspiração era principalmente contra Ataulfo e que eu era exata-
352
M á r i o de A l e n c a r
mente o apontado para substituí-lo. Medeiros não quis transigir. E eu fui obri-
gado a dizer-lhe que, neste caso, também não podia, diante dos meus amigos,
exigir-lhe a presidência. Respondeu-me risonho que estava eleito. Pude anun-
ciar-lhe que, a não ser que tivesse o próprio voto, teria apenas dois, um meu e o
outro do Ataulfo.
Comuniquei o fato a Mário, desinteressando-me do pleito. Fui para Petró-
polis no começo da sessão e só lá recebi aviso de ter sido eleito presidente da
Academia. Mário e seus parciais proveram de posto a todos os da lista, ex-
cluindo Medeiros pela razão referida. Isto deve ter feito acrimônia das memó-
rias de um sobre o outro.
Presidente da Academia, pudera ter iniciado também o meu período ditato-
rial. No fim do ano, porém, declarei que ônus e honra à presidência da Acade-
mia deviam caber a todos e sucessivamente, para que todos pudessem prestar a
ela serviços devidos.
Consegui eleger meu substituto a Medeiros, com assentimento de Má-
rio, e daí começou a série de presidentes anuais, Afonso Celso, Coelho
Neto, Rodrigo Octavio, fundadores, não o querendo, Silva Ramos, Filin-
to, Alberto de Oliveira, até que iniciamos a série dos que vieram depois,
Augusto de Lima, intervindo a política e as preferências em seguida, para a
desordem atual.
Falta-nos Mário de Alencar para pôr ordem em casa.
Mário, último filho de grande homem, onerado de trabalhos e de paixões, já
adiantado em anos e criado por mimos maternos excessivos, atravessou a vida
sob o peso imenso da glória paterna.
José de Alencar impedia-lhe ser o grande escritor que seria com o seu talen-
to, principalmente sua cultura e seu gosto, maiores do que o pai, se não fôra a
perpétua desconfiança de si mesmo e o medo das comparações inevitáveis.
Produziu pouco, mas esse pouco é como o extrato concentrado de perfu-
mes raros. Versos são sinceros e sem uma expressão demasiada. Prosa é enxuta
e lapidar.
353
Afrâ ni o Pei xo to
João Ribeiro
Por Mário de Alencar conheci João Ribeiro, que era tido por ele em singu-
lar veneração. A seu ver, era humanista raro e raríssimo escritor. Tolerava-lhe
as rabujices, que já eram muitas neste tempo, chegando àquilo que chamei o
humor de mulher velha, contraditório, a que chegou.
354
Guardados da M em ó r ia
Pressentimentos
Tr i stão d e A t h a íd e
anos de idade dos seus autores. Como começa a morrer com a sua
maturidade, quando aparecem os sinais de uma nova escola, de um
novo estado de espírito ou de uma frustação estética, isto é, de um
período árido de charneca ou de chapadão estéril.
Semanas atrás, publicava Antônio Carlos Villaça um retrospec-
to, o mais lúcido e completo que até agora se escreveu, sobre a de-
355
T ristão de A thaí de
nominada geração de 45, que está completando este ano seu trigésimo ani-
versário. Como estamos comemorando idêntica data da morte de Mário de
Andrade, com a qual se encerrava o período modernista e começava o neo-
modernismo. Daqui por diante começa o quarto final do século XX. Do sé-
culo XX, cujo planalto central estético foi marcado pelo Modernismo.
Como os 25 primeiros anos foram o prolongamento pré-modernista do últi-
mo quartel do século XIX.
Será que os últimos lustros do nosso século vão apenas prosseguir na senda
aberta pela geração de 45? Seria rematada ousadia querer profetizar a respeito.
Se realmente for exato que uma geração nasce com vinte anos e a publicação
das primeiras obras dos seus autores, não podemos senão admitir um outro si-
nal promissor ou despromissor sobre os futuros aspectos de nossas Letras e
Artes, que tão fortemente marcaram e estão marcando o centro do século, a
despeito de tudo o que há de adverso, na falta de liberdade criadora do regime
político em curso. Pois, como se vê no retrospecto citado, a safra da geração de
45, iniciada com Lêdo Ivo, em poesia, e possivelmente encerrada com obras
em prosa do mais alto teor literário, como Sinos da Agonia, de Autran Dourado,
não foi inferior à de 22, em suas linhas gerais. Será que o próximo futuro nos
reserva uma surpresa agradável? Ou uma frustração?
Como o meu pequeno barco de navegador solitário anda longe das praias li-
terárias e agitado pelas ondas tempestuosas do policialismo autoritário, não
ouço nenhuma voz proclamando “que o grande Pan está morto”, como ouvi-
ram os navegantes das praias helênicas e tanto impressionou a Nietzsche. Pos-
so, quando muito, alvitrar que estamos em terreno fronteiriço, como em 1922
ou em 1945. Assim como o gênio é o território medianeiro entre a saúde men-
tal e a loucura, a Poesia (em sentido croceano da expressão, que supera o plano
do verso propriamente dito) é a linha divisória entre o caos e o cosmos em ma-
téria de inteligência criadora. Ora, o vento que sopra em minha vela de al-
to-mar me sussurra aos ouvidos que, assim como o advento da geração de 45
foi a passagem poética do caos ao cosmos, o da geração de 75 vai ser a passa-
gem do cosmos ao caos.
356
P r e s s e n ti m e n to s
357
T ristão de A thaí de
uma extrapolação arbitrária. Não nego. Apenas pressinto, sem prejulgar. Pres-
sinto, antes de tudo, que, ao contrário do que sucedeu em 45, está havendo
uma revolução, como em 1922, e não uma evolução, como em 1945. Em 22,
houve a primeira transição da fase gestacional do Modernismo, isto é, o
pré-modernismo, para a sua fase geracional e central. Esta iria dar as grandes
figuras marcantes do planalto.
Em 45 não houve uma revolução estética como em 22, mas apenas uma
transmutação de processos criadores, representada por uma volta ao clássico.
Pois bem, o que pressinto nesta nova geração de 75, como advento da fase fi-
nal do pós-modernismo, é uma volta ao romantismo, à liberdade, ao instinto
criador. E particularmente ligado à revolução social que se processa, de modo
patente ou latente, em todo o mundo, sem excluir a reação contra o nosso
autoritarismo institucional. Do ponto de vista estético, é uma nova revolução
antiformalista. E, com isso, uma ruptura com a geração de 45. Esta ainda se
prendia à geração de 22, como sendo apenas o seu desdobramento. A geração
de 75 me parece nitidamente hostil àquelas preocupações de ordem, de disci-
plina, de certo neoclassicismo, de cristalinidade de expressão que havia, de cer-
to modo, marcado a originalidade da geração de 45.
O que agora se começa a ler de jovens totalmente desconhecidos, em alguns
novos suplementos literários ou em publicações inéditas, mais ou menos clan-
destinas, são clamores de novas libertações, de novas revoltas, de novas conde-
nações, de novos repúdios aos predecessores, ao contrário do que sucedera
com a mutação pacífica de 45. Os novíssimos estão com os olhos voltados
para frente, já para o século XXI, sem que aliás se possa ainda determinar ou
indicar qualquer revelação. Quando muito, se pode prever em poesia uma es-
pécie de novo Surrealismo. E, em prosa, um realismo violento, com a preocu-
pação das novas transmutações sociais. Por tudo isso é que acredito estarem os
novos de 75 muito mais perto dos de 22 que dos de 45. Basta pensar no prestí-
gio atual de Oswald de Andrade.
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PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III
(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis.
Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição
realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.