Revista Brasileira 53

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Revista Brasileira

o
Fase VII Outubro-Novembro-Dezembro 2007 Ano XIII N 53

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.


Machado de Assis
ACADEMIA BRASILEIRA REVISTA BRASILEIRA
DE LETRAS 2007

Dir e to r i a Diretor
Presidente: Marcos Vinicios Vilaça João de Scantimburgo
Secretário-Geral: Cícero Sandroni
Primeira-Secretária: Ana Maria Machado C onselho edi tori al
Segundo-Secretário: Domício Proença Filho Carlos Nejar, Arnaldo Niskier,
Diretor-Tesoureiro: Evanildo Cavalcante Bechara Lêdo Ivo, Alfredo Bosi

Produção edi tori al


Me m b r o s e f e ti vos
Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Affonso Arinos de Mello Franco,
Alberto da Costa e Silva, Alberto Re visão
Venancio Filho, Alfredo Bosi, Elvia Bezerra
Ana Maria Machado, Antonio Carlos Luciano Rosa
Secchin, Antonio Olinto, Ariano
Suassuna, Arnaldo Niskier, Proj eto g ráfi co
Candido Mendes de Almeida, Victor Burton
Carlos Heitor Cony, Carlos Nejar,
Celso Lafer, Cícero Sandroni, Editoração eletrôni ca
Domício Proença Filho, Eduardo Portella, Estúdio Castellani
Evanildo Cavalcante Bechara, Evaristo de
Moraes Filho, Pe. Fernando Bastos de A CADEMIA B RASILEIRA DE L ETRAS
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Ávila, Helio Jaguaribe, Ivan Junqueira, Av. Presidente Wilson, 203 – 4 andar
Ivo Pitanguy, João de Scantimburgo, Rio de Janeiro – RJ – CEP 20030-021
João Ubaldo Ribeiro, José Murilo de Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500
Carvalho, José Mindlin, José Sarney, Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525
Lêdo Ivo, Lygia Fagundes Telles, Fax: (0xx21) 2220-6695
Marco Maciel, Marcos Vinicios Vilaça, E-mail: [email protected]
Moacyr Scliar, Murilo Melo Filho, site: http://www.academia.org.br
Nélida Piñon, Nelson Pereira dos Santos,
Paulo Coelho, Sábato Magaldi, As colaborações são solicitadas.
Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio Padilha,
Zélia Gattai.
Sumário
EDITORIAL
João de Scantimburgo Sonetos ingleses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
CULTO DA IMORTALIDADE
Alberto Venancio Filho Afrânio Peixoto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Murilo Melo Filho Oscar Dias Corrêa, o acadêmico, o ministro e o jurista . . . . . 37
Afonso Arinos, filho Joaquim Nabuco, acadêmico e diplomata. . . . . . . . . . . . . . . 45
Eduardo Prado: Duas visões
José Murilo de Carvalho Eduardo Prado e a Polêmica do Iberismo
e do Americanismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Sergio Paulo Rouanet Eduardo Prado e a Modernidade . . . . . . . . . . . . . . 88
Alexei Bueno Presença de José Lins do Rego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
PROSA
Marcos Vinicios Vilaça Japão/Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
Lygia Fagundes Telles Álvares de Azevedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Arnaldo Niskier A cultura na ABL: Uma visão parcial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Moacyr Scliar Contos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Evanildo Bechara A Língua Portuguesa na concepção dos fundadores da ABL . . 149
Frederico Gomes Da sombra da morte à luz da poesia: poeta do pensamento . . . 157
Joaquim de Montezuma de Carvalho Os três sepulcros de Viriato e a sua
ressurreição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Francisco Marins Do berrante ao apito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
Fernando Guedes Corporações e confrarias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Ângela Montez O amor nos Sonetos dos Amores Mortos, de Rita Moutinho . . . . . . . 227
Gilberto Mendonça Teles O sentido da criação poética nas Odes,
de Miguel Torga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
J. Bernardo Cabral Doutrinas políticas contemporâneas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
Nicolás Extremera Tapias Anchieta: criador de modelos literários para
a evangelização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
POESIA
Lêdo Ivo Poemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 309
Ives Gandra da Silva Martins Sonetos ingleses para Ruth . . . . . . . . . . . . . . 315
Sonia Sales Poemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327
Izacyl Guimarães Ferreira Poemas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331
Guilherme de Almeida Poemas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
GUARDADOS DA MEMÓRIA
Afrânio Peixoto Mário de Alencar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345
Tristão de Athaíde Pressentimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355
Edit o r ia l

Sonetos ingleses
J o ão d e Sc a n t im b u r g o

O brilhante jurista, professor de Direito e ensaísta Ives


Gandra da Silva Martins adota como poema sob forma de
soneto o estilo inglês. Já lhe falei que o nosso estilo aqui é camonia-
no, é a tradição portuguesa e brasileira. Ponho aqui em destaque
Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo e ou-
tros. Seria penoso forçar a memória para citá-los.
Os sonetos são dirigidos a Ruth, sua amada esposa, em estilo
que não é praticado no Brasil nem em Portugal. Trata-se, no en-
tanto, de um estilo magnífico que representa a originalidade dos
ingleses e os perpetua como cultores da memória num estilo típi-
co de um país original como é a Inglaterra. Ives Gandra, sendo
um bom poeta e dedicando os sonetos a sua esposa, eu os admito
neste número da Revista Brasileira para dar aos poetas nacionais e
estrangeiros aqui radicados a amostra do estilo inglês em fazer
sonetos de amor. Sirvam-se os leitores desse festim de sonetos
que se contrapõem somente na forma aos sonetos camonianos, de
origem portuguesa.

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Joã o de Sc anti mbu rgo

O soneto é uma forma imortal de comunicar a sensibilidade poética em


quatorze versos que são respeitados na língua de Camões e na língua de Sha-
kespeare. Fiquem os leitores com essa colaboração, apoiados num grande poe-
ta brasileiro que dedica os seus sonetos para sua esposa. Sinta, leitores, como,
ao se fazerem poemas e sonetos ingleses, portugueses ou de outras nacionali-
dades, o amor sempre será o mesmo, basta saber como poetizar!

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C ulto da Im o r t a l ida de

Afrânio Peixoto
Alb er to Ven a n c io F il h o

(Conferência pronunciada em 27 de março de 2007 na Academia Ocupante da


Cadeira 25
Brasileira de Letras, no ciclo Presidentes da ABL)
na Academia
Brasileira de Letras.
Ao me convidar para pronunciar esta conferência, o acadêmico
Cícero Sandroni afirmou que eu seria a pessoa indicada. Confirmo
esta assertiva sem falsa modéstia, porque conheço bem a vida e a
obra de Afrânio Peixoto e convivi com ele na adolescência. Já pu-
bliquei um artigo na Revista Brasileira sobre ele. Em 1998 o Presi-
dente Arnaldo Niskier convidou-me para escrever uma biografia
de Afrânio Peixoto; impossibilitado de aceitar a incumbência, in-
diquei Fernando Salles que preparou o excelente estudo A Bahia de
Afrânio Peixoto. Fernando Salles, foi responsável por várias reedi-
ções de seus romances e organizador da Casa de Cultura na cidade
natal de Lençóis.
A minha ligação é atávica, pois meu pai, Francisco Venancio Filho,
foi um dos seus grandes amigos e sobre ele escreveu vários trabalhos.
Saudou-o em 1944, quando da publicação das Obras Literárias em 25
volumes editadas pela Editora Jackson.

7
Al berto Venanc i o Fi lho

Uma referência cabe à sua viúva, de quem certa vez fui advogado. D.
Chiquita, como era chamada, uma senhora de raras virtudes, fiel à memória
do marido, tinha uma singularidade, era quase uma acadêmica honorária:
além de esposa de acadêmico, era filha do acadêmico Alberto de Faria, ir-
mão do acadêmico Otávio de Faria, e cunhada do acadêmico Alceu Amo-
roso Lima.
Não poderia iniciar esta conferência sem prestar homenagem ao meu gran-
de amigo e saudoso confrade Josué Montello, grande amigo de Afrânio Peixo-
to. Mal chegado ao Rio, foi convidado para escrever o perfil biográfico de
Gonçalves Dias para a Coleção Afrânio Peixoto e participou na Academia das
comemorações do centenário de Machado de Assis. Josué Montello convi-
dou-o certa vez para ministrar uma aula no Curso de Biblioteconomia da Bi-
blioteca Nacional por ele dirigido, mas Afrânio não pôde aceitar o convite.
Em carta de 11 de maio de 1944 se escusaria:

“Meu querido amigo, mas não é possível. Como agora estudar outra coi-
sa, me obrigaria a fazer coisa digna, e então onerosa, e então fazendo parar a
máquina, ‘moinho de sal’ da bondade de Humberto de Campos. Amigo,
compreenda a lástima.”

No diário de Josué Montello há várias referências desse convívio, e de sua


personalidade o amigo traçou o perfil exato:

“Para quem teve o privilégio de conhecê-lo, como eu o conheci, em lon-


go convívio, quase dia a dia, houve dois Afrânios: um que se transferiu para
seus livros; outro, que não se separou do próprio Afrânio, e que o acompa-
nhava aos salões, aos encontros de rua, às conferências e às salas de aula. O
segundo, sem dúvida alguma, era maior que o primeiro. Porque os livros
não conseguiam captar e guardar todo o fulgor da inteligência do mestre
baiano, que dava de si, com todo o brilho, no improviso de uma palestra ou
de uma conversa.

8
A f r â n i o P e i x o to

Baixo, cabeça grande, uns restos de cabelos grisalhos que penteava


com um pente pequenino que a mão esquerda segurava, não tinha ele a
voz harmoniosa nem falava alto. Mas ao falar impunha silêncio repenti-
no. A frase curta como que se alongava nas pausas intencionais a que o
olhar muito vivo comunicava o matiz de uma intenção maliciosa ou
terna, e nisso estava o seu poder de comunicação. Nessas ocasiões, sa-
bia tudo, e sobre tudo dissertava, com a memória pronta, o comentário
jovial na ponta da língua.”

Afrânio Peixoto nasceu em 17 de dezembro de 1876 na cidade de Lençóis,


na Chapada Diamantina, e faleceu no Rio de Janeiro a 12 de janeiro de 1947,
71 anos de uma vida bem vivida. Aos nove anos a família se mudou para Cana-
vieiras, e ali permaneceu até se transferir para Salvador, a fim de estudar medi-
cina. Lençóis estava situada no distrito diamantífero do estado, e Canavieira
na zona cacaueira, e nesses dois ambientes se situam os seus romances de cará-
ter sertanejo.
Certo dia Juliano que se mudara para o Rio, escreve a Afrânio, convidan-
do-o a fazer o mesmo e acrescentando que aqui a taba era maior e os caboclos,
embora os mesmos, tinham mais afazeres, e, portanto, menos tempo de falar
uns dos outros.
Como, entretanto, permanecer no Rio, ele, Afrânio, que não dispunha de
recursos financeiros para enfrentar a situação? Encheu-se de coragem e procu-
rou o Governador Severino Vieira, solicitando-lhe a interferência na pretensão
de obter no Rio um dos cargos que seriam proximamente criados na Saúde
Pública Federal. O Chefe do Executivo Baiano, ouvindo-o, objetou: “Farei o
que você quiser, entretanto, ofereço-lhe qualquer outro lugar no Estado, de
que precise, porque prefiro tê-lo aqui. Não é justo que a Bahia vá deixando
partir aqueles que a podem bem servir.”
A despeito da ponderação, o governador entregou-lhe, no dia seguinte, uma
sobrecarta, na qual Afrânio encontrou, surpreso, três mensagens, uma dirigida
ao Presidente Campos Sales, outra ao Deputado J. J. Seabra, líder do Governo

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Al berto Venanc i o Fi lho

na Câmara Federal, e a terceira ao Dr. Paula Guimarães, que dirigia a bancada


baiana. E Afrânio consigna nas Memórias, ainda inéditas:

“Se eu mesmo escrevesse esses despachos, não os faria mais generosos. O


governador dizia ao presidente da República que, deixando de ser seu ministro,
ainda não lhe pedira um favor pessoal. Era agora ocasião, em favor de seu par-
ticular amigo que desejava uma nomeação de médico da Saúde Pública.
[...]
Ao chegar ao Rio, embora com o propósito de afastar as letras das suas
preocupações e querer ser apenas médico, a curiosidade levou-o à Garnier.
Ali sempre se encontrava Machado de Assis. Não era de relações fáceis.
Somente Veríssimo, Oliveira Lima e Mário de Alencar o provocavam.
Trazia sempre consigo um maço de jornais ingleses, creio que sabia notí-
cias da terra pelo Times.
Um dia se animou a convidar-me:
– Vamos a Petrópolis?
Não refleti e disse-lhe imediatamente:
– Estou às suas ordens.
Levantou-se e eu também e, em vez de nos dirigirmos para a porta da rua,
Machado tomou a dianteira e, indo ao fundo da casa, aí pediu que lhe abris-
sem a porta do fundo que dava para um pequeno pátio.
A tiragem que se fazia nesta vasta chaminé era tal, aberta a porta do fun-
do, que nenhum papel solto ficaria mais na livraria. Machado apenas deixa-
ra entreaberta a porta para mim e ele, ficou ali na corrente de ar, refrescan-
do-se do calor. Estivemos assim calados os dois, até que achando-o bastante
convocou-me:
– Se agora descêssemos a serra.
– Desçamos, acudi prontamente.
E Machado cerrou a porta, tornando à sua cadeira na livraria.”

Formado em Medicina, no ano seguinte publicava a tese “Epilepsia e Cri-


me”, que teve grande repercussão no país e no estrangeiro, e seria reeditada no

10
A f r â n i o P e i x o to

ano seguinte com prefácio de Nina Rodrigues e Juliano Moreira. Do primeiro


tornou-se preparador de Medicina Legal, mas o ambiente na terra natal era li-
mitado para ele.
Concorre à cátedra de Medicina Legal da Faculdade Nacional de Medicina,
sendo vitorioso e sobrepujando dois docentes da escola. O concurso ganhou
destaque, pois utilizou produtos que trouxera da Europa e eram desconheci-
dos da banca e da congregação.
Ao transferir-se para o Rio de Janeiro, Afrânio Peixoto almejava realizar
concurso para professor catedrático da Faculdade de Medicina, em virtude da
próxima aposentadoria do professor Souza Lima. Na Bahia a cátedra era ocu-
pada por Nina Rodrigues, que ainda era moço, mas veio a falecer aos 44 anos.
Para preparar-se para o concurso, realizou uma viagem de estudos à Euro-
pa, visitando centros médicos da Áustria e da França. Em Paris ocorreu um
fato singular; tentou se inscrever no concurso do Instituto Pasteur, mas as ins-
crições já estavam encerradas. Procurou então o diretor professor Roux, que o
levou pelo braço aos corredores do Instituto e parou diante de uma estátua.
– O senhor sabe que estátua é esta? É de Pedro II. Foi um dos primeiros a co-
operar na criação do Instituto. Por isso, jamais um brasileiro não será acolhido.
Assim, deixando para traz dezenas de candidatos, foi admitido no curso no
Instituto Pasteur.
Em sessão solene da Academia Nacional de Medicina em 1902, Afrânio
leu relatório em que analisava os acontecimentos científicos do ano na pre-
sença do Presidente Afonso Pena, de ministros de Estado e de Machado de
Assis. O orador descreveu a técnica da falsificação do leite, o que causou es-
tranheza ao Presidente, pois assim estaria ensinando a fraude aos comercian-
tes desonestos.
Machado de Assis, ao contrário, achou graça no logro que a ciência sofria
dos fraudadores e disse a Mário de Alencar:
– Um livro deste rapaz, com esta finura, poderia valer-lhe a Academia.
Afrânio Peixoto viajou em 1910 para a Europa e visitou em Nápoles Aluí-
sio Azevedo, seu amigo e membro desta Casa. Comentaram sobre a sucessão

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Al berto Venanc i o Fi lho

de Euclides da Cunha, ambos preferindo Almachio Diniz. Pouco tempo de-


pois Aluísio recebia carta de Afrânio comunicando a candidatura. Ficou agas-
tado por não ter Afrânio informado da iniciativa. Mas Afrânio também igno-
rava o fato; Mário de Alencar imprimira cartões com o seu nome, e neles sua
letrinha fina pediu votos por ele, como mandava o regulamento.
Américo Jacobina Lacombe, meu grande amigo e ilustre membro desta
Casa, relatou-me que comentara com Afrânio ter encontrado na casa de Rui
Barbosa um cartão pedindo voto. Afrânio retrucou:
– Eu jamais pediria voto a Rui Barbosa com um cartão.
– E como pediria?
– Só de joelhos.
A própria carta de candidatura Mário de Alencar a escreveu, só mais tarde
substituída por outra de seu punho. Quando chegou ao Rio, eleito, pensou em
pedir-lhe que o recebesse, mas já achou por ele apalavrado Araripe Júnior, por-
que – dizia Mário – tendo benevolamente criticado a Rosa Mística, e sido por ele
prefaciado o seu livro Miss Kate, teria a bondade e o entusiasmo de o receber.
Escreve Afrânio:

“Compreendi que necessitava de justificar a escolha da Academia, e fazer


uma obra literária. Não quis reproduzir a aventura de Graça Aranha, que foi
acadêmico apenas com o prefácio de um livro de Fausto Cardoso. Também
eu havia prefaciado um livro de Araripe Júnior, o romance Miss Kate, mas
não julgava bastante para a honra que me conferira. Tinha eu na Grécia per-
corrido o caminho que vai de Cheronea a Tebas e de Tebas pelo Parnaso
acima até Delfos. Vira no aclive a encruzilhada no flanco do Parnaso, no ca-
minho de Tebas, onde Édipo matara o pai. E o mito da Esfinge grega que as
esfinges egípcias e a Tebas Luxor me recordavam aí foram sugestão bastan-
te para um livro escrito em que pudesse transpor a realidade de todo dia,
num símbolo para mim melhor representativo do que o do enigma propos-
to a Édipo pela Esfinge, no caminho de Tebas. A Esfinge seria a mulher de-
cifrada ou não decifrada. Era a Esfinge.”

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A f r â n i o P e i x o to

O eterno feminino foi na verdade o tema constante de seus romances.


Almachio Diniz, que com ele competia, se dirige ao presidente da Acade-
mia impugnando a inscrição:

“Sabe o Sr. que não é candidato quem não se inscreveu dentro do prazo
fixo e certo da inscrição, que, no caso, foi findo a 30 de outubro do ano p.
passado, uma carta, manifestando clara e precisamente a sua vontade de ser
acadêmico.
Ora, se Afrânio Peixoto não escreveu, como de fato, a carta aludida, não
foi candidato.”

E conclui:

“Quero a sua valiosíssima atenção de caráter pujante e inquebrantável,


diante de todas as heroicidades – não é lisonja porque não a sei tecer – para
o escândalo que cometeria a Academia se sufragasse em maio próximo um
nome que não foi candidato dentro dos termos do Regimento da Acade-
mia. A sua intervenção livrará a belíssima Instituição de uma derrocada mo-
ral lastimável. Creio na sua ação em benefício do renome da Academia.”

A impugnação não foi aceita e, em 15 de agosto de 1911, ao tomar posse na


sucessão de Euclides da Cunha, data de sua morte, confessaria:

“Senhores, minha primeira ambição consciente foi esta: ser acadêmico.


Na infância, as tendências de cada qual nos levam, sem modéstia nem jactân-
cia, aos postos mais humildes como às situações mais culminantes: à frente
de um exército ou à boléia de um carro. Tive a meninice enfática. Passados
alguns anos desse sonho, a Academia era realidade, e a vossa indulgência
consagra hoje minha ambição de criança: vós me fizestes acadêmico.
Não me direi surpreso, como é de uso em todas as investiduras cobiça-
das, porque pedi os vossos sufrágios, nem escondo o contentamento de os
ter alcançado.”

13
Al berto Venanc i o Fi lho

E prosseguiria:

“A Academia Brasileira atravessa neste instante, de seus quatorze anos,


aquele delicioso e encantado período da vida que um dos mais suaves líricos
de nossa língua chamou de menina e moça.
E pensei que, se de uma pode ter a reflexão com que vos escolheu a todos
vós, bons partidos do talento e da cultura, não recuou da sagrada leviandade
da outra, buscando alguém sem glória e talvez sem esperanças, para o qual ela
fosse, só e completamente, a grande consagração de uma vida por encher.”

O primeiro livro de ficção, Rosa Mística, foi publicado em 1900, impresso em


Leipzig, cada capítulo com cor diferente. A autoria era de Júlio Afrânio, nome
que jamais voltou a usar. Era drama em cinco atos, imbuído de simbolismo e de
inspiração poética. Este simbolismo se revelava na dedicatória: “A Gabriele
D’Annunzio, a Maurice Maeterlinck, e Eugênio de Castro, a trindade santíssima
que eu adoro.” O livro nunca foi reeditado e o autor praticamente o rejeitou. Em
exemplar existente na Biblioteca Lúcio de Mendonça consta à margem de uma
das páginas do livro: “Incorrigível. Só o fogo. A.P. 1913.” Recentemente, o Go-
verno da Bahia, para homenagear Afrânio Peixoto, deixou de lado numerosas
obras e reeditou, de forma lamentável, obra abandonada pelo autor.
Alceu Amoroso Lima apontou três aspectos de sua personalidade: o ho-
mem científico, o homem de letras, o homem social, que não se apresentaram
em três fases sucessivas, mas como aspectos concomitantes.
A sua obra se estende por todos os ramos, numa erudição que surpreende. E
não se exerceria apenas nos grandes temas da cultura brasileira, mas ainda em
aspectos de menor importância. Conta-se que Clado Ribeiro de Lessa publi-
cou o Vocabulário de Caça, reunindo em volume numerosos verbetes coligidos
durante anos. Afrânio Peixoto recebeu um exemplar, tempos depois o devolvia
com numerosas anotações, com acréscimos, aditamentos e contribuições que
sua cultura sugerira.
O comentário de Medeiros e Albuquerque é esclarecedor:

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A f r â n i o P e i x o to

“Um crítico literário do século XXI poderá, sem esforço, demonstrar


que o nome de Afrânio Peixoto não correspondeu jamais à determinada in-
dividualidade: era o pseudônimo de um grupo de homens de ciência e de le-
tras. Na Inglaterra, a advocacia é exercida por firmas comerciais. Nessas fir-
mas trabalham vários advogados, cada um com a sua especialidade; mas to-
dos os contratos são feitos com a firma, que é quem distribui os trabalhos
aos mais competentes. O clube literário e científico que funciona com o
nome de Afrânio Peixoto fez, entre nós, uma coisa até certo ponto parecida.
Esse pequeno mas admirável cenáculo tem publicado livros de poesia, ciên-
cia, literatura, sem nunca revelar quais os verdadeiros autores, dando a to-
dos os nomes da firma: Afrânio Peixoto.”

Afrânio Peixoto escreveu romances, ensaios, contos, crônicas, peças tea-


trais, artigos de crítica, monografias e tratados, excelendo na oratória acadê-
mica e parlamentar e na epistolografia. Foi historiador, memorialista, filólo-
go, estudioso do folclore, educador, sociólogo, moralista, higienista, psicó-
logo, psiquiatra, legista, discorrendo em páginas sobre todos os ramos do
conhecimento.
A obra romanesca de Afrânio Peixoto se apresenta, na definição de Afrânio
Coutinho, entre a cidade e o sertão, e seus romances podem ser classificados
como urbanos e sertanejos. A Esfinge pertence ao primeiro grupo e teve um su-
cesso imediato com várias reedições. A Esfinge tratava da sociedade do Rio e de
Petrópolis, e estava dividido em três ciclos, dos quais “Barro Branco” já é uma
reminiscência da vida rural.
Após A Esfinge, entre os romances urbanos enquadram-se As Razões do Coração
(1925) e Uma Mulher Como as Outras (1928).
Com algum tempo sem escrever, o editor Francisco Alves comentou que se
falava que se esgotara no primeiro livro e estava aproveitando os louros do su-
cesso. Afrânio retrucou que tinha um livro, mas estava constrangido de en-
viá-lo ao editor. A informação não era correta, mas em três meses entregava
Maria Bonita, o primeiro da série sertaneja.

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Al berto Venanc i o Fi lho

No ciclo sertanejo após Maria Bonita, publicou ainda Fruto do Mato (1920), Bugri-
nha (1922), Sinhazinha (1929), mas Maria Bonita é considerada sua obra principal.
A crítica considera a fase sertaneja como a mais expressiva, e Luciana Ste-
gagno Picchio falaria de uma “obra regionalista quase com faceirice numa pro-
dução novelística de feitura elegante e de horizontes limitados” e com a utili-
zação de um material agreste de mulheres baianas, numa alencariana galeria de
“perfis de mulher”.
Afrânio Peixoto foi Presidente desta Casa de 7 de dezembro de 1922, suce-
dendo a Carlos de Laet, até 20 de dezembro de 1923, substituído por Medeiros
e Albuquerque. Seus méritos estão reconhecidos no busto que se encontra no
Salão Nobre, juntamente com Machado de Assis e Austregésilo de Athayde.
Pode-se, entretanto, dizer que Afrânio foi um Presidente perpétuo. Antes e
depois da Presidência apresentava livros, encaminhava propostas, recebia visi-
tantes estrangeiros, prefaciava livros e representou a Academia em 1936 no
tricentenário da Academia Francesa.
Com o encerramento em 1922 da Exposição Internacional do Centenário
da Independência, para a qual a França construíra um pavilhão especial, o Petit
Trianon, no modelo do de Versailles, Afrânio Peixoto, em companhia de Gra-
ça Aranha, foi procurar o Embaixador Alexandre Conty, indagando da possi-
bilidade de o prédio ser doado à Academia. Conty solicitou a preparação de
uma nota para ser enviada ao Governo Francês. Conty teve uma atuação deci-
siva no encaminhamento do assunto e recebeu o título de sócio corresponden-
te da Cadeira 20. Na Academia há poucos dados sobre Conty, que nasceu em
1864, era escritor, e dentre seus livros destaca-se La Requête des Femmes. Não há
indicação sobre se era diplomata de carreira, mas pela idade tudo leva a crer
que tenha ocupado outros postos, como seu antecessor Paul Claudel.
A partir daí todas as iniciativas foram de Afrânio. A nota dizia:

“Se a França se vai desfazer do seu pavilhão dessa festa da Exposição,


em favor do Brasil, o fato importa pouco que seja em favor do governo
brasileiro ou de uma instituição nacional. As obrigações porventura

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A f r â n i o P e i x o to

impostas seriam, neste caso, mais rigorosamente cumpridas como menor


ônus que um presente assim feito, pois, ao governo, este o teria de manter
exclusivamente para o proveito da França, enquanto uma instituição brasi-
leira, usufrutuária, estabelecida, o conservaria melhor e sem nenhum incon-
veniente. A Academia Brasileira seria esta instituição à souhait. Puramente in-
telectual, com a sua perenidade garantida pelos seus legados, é uma cópia
reduzida da instituição francesa, genuinamente latina de cultura, que, a
mais, ficaria doravante ligada à França, sua benfeitora, como inspiradora.
Que mais rendosa propaganda teria a França ao tentar obter num país que
os seus quarenta homens mais notáveis nas letras, nas ciências, no jornalis-
mo, na política e na sociedade?
Para a Academia, esse ônus seria um adorno, uma festa freqüente, mais
motivo de ser procurada e visitada, aí viveria, receberia, honraria a França –
e a propaganda francesa seria de todos os intelectuais brasileiros a serem be-
neficiados. Seria, de imortal a imortais, um presente sempre presente na me-
mória das gerações futuras... a melhor das propagandas.
Que mais rendosa propaganda teria a França a tentar ou obter num país
do que a de seus quarenta homens mais notáveis, nas letras, nas ciências, no
jornalismo, na política e no magistério?”

Quando das tratativas, era Presidente da República Epitácio Pessoa. Este não
tinha apreço pela Academia por força de desavença com Pedro Lessa, seu figadal
inimigo, eleito acadêmico e ambos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Empossado o Presidente Arthur Bernardes, Afrânio Peixoto foi procurá-lo
com outros acadêmicos para pedir-lhe apoio. Respondeu o presidente que o
assunto não era da alçada do governo, mas Afrânio Peixoto replicou que a aqui-
sição importava em responsabilidades que a Academia não poderia aceitar. Se
o governo não colaborasse, inclusive porque o terreno era próprio nacional, a
Academia não teria como adquiri-lo. Então ele se manifestou favoravelmente.
Foi apresentado projeto no Conselho Municipal para cessão do terreno,
mas o Prefeito Alaor Prata vetou o projeto. Afinal, conseguiu-se o apoio do

17
Al berto Venanc i o Fi lho

Ministro da Fazenda Sampaio Vidal, que encontrou a fórmula: o governo


francês doaria o prédio para servir de sede para a Academia Brasileira.
Diz Afrânio:
– Devo dizer que Bernardes nada fez, e João Luiz Alves, seu ministro que se
prontificara a fazer tudo, e graças a isso entrara na Academia, tampouco.
Agora, fato curioso: num sábado à tarde o ministro procurou Afrânio e dis-
se que a escritura teria de ser lavrada impreterivelmente no dia seguinte antes
das 10 horas. Com estranheza, apesar das dificuldades isto foi conseguido. Na
tarde de domingo se sabia que se demitira o ministro da Fazenda.
Afirmou Afrânio: “Não tem a Academia na sua história uma demonstração
de agrado maior que nos dera esse estadista.”
Essa situação só se regularizou com o Decreto-Lei 5.316, de 11 de março de
1943, que consolidou o domínio do prédio para a Academia Brasileira de Letras.
Afrânio Peixoto presidiu em 15 de dezembro de 1923 a última sessão reali-
zada no Silogeu Brasileiro. Diria ele:

“Dias alegres e tristes! Aqui viemos ter, tendo enfim achado um pouso, e
aqui vem ao nosso encontro a abastança. Começando pobres, não tínhamos
lar, no escritório da Revista Brasileira, o n.o 31 da Travessa do Ouvidor, que
também mudou e tem um nome estrangeiro, o de Sachet, irmanado na mor-
te sob o céu de Paris a esse Augusto Severo que denomina nossa rua... passa-
mos à rua da Quitanda n.o 47, hoje 57, onde no seu escritório de advogado
nos acolheu o nosso Rodrigo Octavio...
Aqui nos surpreendeu o legado do benemérito livreiro Francisco Alves,
que nos dá abastança e nos causa tanta injusta animosidade... Confesso-vos
que tendo, no poder que me conferistes, experimentado muitas vezes o ran-
cor e a cobiça que essa riqueza desperta, me tem várias vezes tornado ao juí-
zo: há momentos em que temos o direito quase de pensar que o nosso
Monthyon, o abnegado Francisco Alves, foi um malfeitor e quis matar a
Academia...

18
A f r â n i o P e i x o to

Aqui nos veio a França oferecer um palácio maravilhoso cheio de alfaias,


tapeçarias, porcelanas, quadros, bronzes de arte e preço, séculos e séculos,
milhões e milhões, tantos, que desconfiados, na nossa humildade e modés-
tia, pensamos num presente de gregos, e recusamos, para só aceitar o conti-
nente, essa jóia arquitetônica que vai ser o escrínio da Academia.
Assim se mitiga a nossa saudade – mudamos de boa casa de empréstimo
para nova casa – mudamos para bem perto de onde nos podemos ver sem
fadiga. Se as coisas vêem e sentem, este solo, estas paredes, este teto saberão
que não somos ingratos e lá adiante não os esqueceremos...”

No discurso de inauguração da nova sede, em 15 de dezembro de 1923,


fruto de seus esforços, Afrânio Peixoto diria:

“A Academia, que assumiu o trato e a cultura da língua, é, ou tende a ser,


o maior órgão dessa nossa tradição. A instabilidade ambiciosa e esperança-
da dos povos já impede em nosso tempo a impassibilidade política. A mo-
narquia não chegou a viver aqui três quartos de século; a primeira Constitu-
ição teve logo um Ato adicional; a outra vai tendo sucessivas ameaças de re-
forma. Os Códigos, quando se não emendam nas sucessivas redações, como
o Civil, são emendados constantemente nas aplicações da prática, como o
Penal. Como a dos homens, há uma aposentadoria das leis, por invalidez. O
Senado já não é vitalício, e a compulsória já vai chegando aos civis. Onde,
no Brasil, uma instituição restrita e portanto aristocrática, vitalícia e imor-
tal? Só a Academia Brasileira. Não me julgueis ambicioso nessa declaração.”

Posteriormente, surgiram dúvidas sobre a iniciativa, e Afrânio Peixoto diri-


giu carta ao Embaixador Conty:

“Um dos meus desafetos e invejosos na Academia – diante de meus feli-


zes esforços recebendo a dádiva magnífica da França, devido principalmen-
te à sua generosidade, meu caro Conty, conseguindo ainda o terreno com o
Governo Federal e os impostos com a municipalidade – declarou que o

19
Al berto Venanc i o Fi lho

Trianon tinha sido conseguido pelo Sr. Graça Aranha (aliás, estranho a es-
sas intrigas). Perdoe, meu caro amigo, a minha franqueza, mas o Sr. precisa-
va saber a verdade, que bem poderá ser histórica, e só uma pessoa a sabe, o
doador. Perdoe-me ainda e creia no seu afetuoso amigo e admirador.”

Respondeu o Embaixador Conty de forma diplomática:

“Meu caro Presidente, em resposta à vossa recente carta, venho dar co-
nhecimento das circunstâncias pelas quais decidi propor ao meu Governo a
doação do Pavilhão de Honra da França à Academia Brasileira de Letras. O
Senhor esteve no mês de outubro de 1922 acompanhado do Sr. Graça Ara-
nha em meu escritório na Rua Paissandu e o senhor me declarou apoiado
pelo seu confrade que a Academia Brasileira de Letras seria particularmente
feliz de ser designada como donatária do Petit Trianon. Então pedi ao Se-
nhor pessoalmente me fazer redigir uma pequena nota para expor este pedi-
do e é a tradução deste documento que eu transmiti apoiando ao Ministro
francês das Relações Exteriores.”

Na sessão de 25 de maio de 1933 diria:

“Hoje é dia de festa. Porque se cumpre o desejo do Brasil realizado pela


Academia Brasileira de Letras, a publicação das Cartas Jesuíticas. Foi esta dívi-
da do Brasil que a Academia acaba de pagar com estes volumes de suas pu-
blicações.”

O ponto alto da Coleção no setor de história foi a publicação das Cartas


Jesuíticas, em três volumes, das Cartas do Brasil de Manuel da Nóbrega (1549-1660),
as Cartas Avulsas (1550-1568) e das Cartas (Informações, fragmentos inéditos e sermões
do Padre José de Anchieta) (1554-1594), freqüentes as notas e prefácios de Afrâ-
nio Peixoto.
Na sessão de 1926, respondendo a críticas feitas em sessão recente, se de-
fendeu:

20
A f r â n i o P e i x o to

“Sou assíduo à Academia não só nos dias de glória, mas também e princi-
palmente nos dias magros. Atestam-no os empregados desta Casa e até os
presidentes dela que aqui vinham nesses dias, o Sr. Conde de Afonso Celso
e o Sr. Medeiros e Albuquerque, meus preclaros amigos, com quem nume-
rosíssimas vezes tive feliz ensejo de encontro e não me deixarão sem o seu
testemunho.
Aos serviços da Academia, não temo em declarar, desconheço quem seja
aqui mais assíduo.”

As suas intervenções em Plenário eram às vezes pontuadas. Em sessão de 17


de fevereiro de 1927, sugerindo uma comemoração no centenário do Roman-
tismo, considerado o ano do prefácio-manifesto de Cromwell de Victor Hugo,
esclarecia: “pede vênia para tratar de um assunto literário, uma vez não fará
costume.”
Criador da Coleção de Cultura Nacional, justamente chamada em 1931
Coleção Afrânio Peixoto, promoveu a edição de vários volumes importan-
tes. No campo da Literatura, cabe destacar a Prosopopéia de Bento Teixeira, a
Música do Parnaso, as Obras de Gregório de Matos, o Compêndio Narrativo do Pe-
regrino da América, o Uraguai de Basílio da Gama (edição comemorativa do se-
gundo centenário), as Poesias de José Bonifácio, Uma Página de Escola Realista,
drama de Castro Alves, a obra de Machado de Assis Queda que as Mulheres
Têm pelos Tolos, Os Túmulos de Visconde de Pedra Branca e o Florilégio da Poesia
Brasileira, de Varnhagen, em três volumes, edição anotada por Rodolfo
Garcia.
Rodolfo Garcia relata que Afrânio Peixoto convidou Capistrano de Abreu
para dirigir o setor de história da Coleção, mas este, estando absorvido com es-
tudos da língua baicir, escusou o convite. Entretanto, organizou a lista de
obras e indicou Eugênio de Castro e Rodolfo Garcia para comentá-las e ano-
tá-las. Mas segundo ele “o vento soprou de um quadrante contrário à direção
da Academia e varreu-se”, sendo poucos os livros editados.

21
Al berto Venanc i o Fi lho

O setor de biografia iniciou-se com o volume de Afrânio Peixoto sobre


Castro Alves, seguido de Euclides da Cunha por Francisco Venancio Filho,
Gonçalves Dias por Josué Montello e inúmeros outros.
O amor aos grandes vultos da literatura luso-brasileira levou-lhe à feitura de
vários estudos consagrados a Camões, a Castro Alves e a Euclides da Cunha.
Data de 1914, na conferência então pronunciada na Biblioteca Nacional, a
primeira manifestação de Afrânio Peixoto a respeito da figura de Castro Alves.
Afrânio Peixoto devotou anos de pesquisa e de pacientes estudos em torno da
reunião de toda sua obra poética. Desse trabalho resultou a edição das Obras
Completas do cantor dos escravos, edição considerada a maior homenagem já
prestada à memória do poeta.
Esse tema, que viria a ser uma constante, foi retomado em nova conferência,
proferida em 1920, como preparação às comemorações do cinqüentenário do
Poeta, celebrado no ano seguinte.
Afirmando sempre que a melhor maneira de estudar um assunto era ensi-
ná-lo, Afrânio Peixoto ministrou dezenas e dezenas de cursos sobre os mais
variados assuntos. Destacamos os cursos para universitários norte-americanos,
Noções de História da Literatura Brasileira e Noções de História da Literatura Geral.
Da fase científica, haveria de falar do grande mestre da Medicina Legal, da
Higiene e da Criminologia, formador de gerações e gerações de discípulos.
Professor na Faculdade de Direito, declarou um dos expoentes da Faculda-
de, o professor Demóstenes Madureira de Pinho: “aproximando-o do tipo
ideal do professor de Direito, trazia Afrânio no seu temperamento e no seu
caráter dois predicados fundamentais: a altivez ante o poder e a sua paixão da
liberdade”.
Afrânio Peixoto passou a cultivar preferentemente as Letras. Mas a pro-
va mais significativa de que as ciências lhe eram tão caras está no episódio
ocorrido na Faculdade de Medicina, ao se jubilar em meio do ano letivo.
Os alunos reagem ao ato publicado e obtêm das autoridades do ensino que
o professor ultime o curso em andamento. Ele concorda e consigna no Li-
vro de Ponto:

22
A f r â n i o P e i x o to

“Solicitado pelos alunos e pelo Diretório Acadêmico, com assentimento


do senhor Diretor e de meu Substituto Assistente, torno, apesar de jubila-
do, a dar aula do curso de Higiene até o seu termo. É uma honra que me
quiseram dispensar. Professor que dê aulas não é vulgar, alunos que as dese-
jem, ainda menos; querê-las, de um velho mestre, no momento de seu bem
ganhado repouso, é uma condecoração a que nenhuma, na vida escolar, se
pode comparar. Fica exarada aqui a minha infinita gratidão.”

A segunda paixão cultural de Afrânio Peixoto foi Camões. Em 1922,


quando dos 350 anos de publicação de Os Lusíadas, inicia a publicação de
uma série de estudos focalizando os mais diversos ângulos do poema e do
poeta, culminando com o Dicionário dos Lusíadas, em colaboração com Pedro
Pinto. Tal foi a importância da contribuição dos estudos de Afrânio Pei-
xoto à bibliografia camoniana que, no Quarto Centenário da Restauração
Portuguesa, foi ele considerado em congressos internacionais, realizados
no Brasil e em Portugal, como um dos maiores camonólogos do mundo.
A Euclides da Cunha consagrou três conferências: o discurso de posse “Eu-
clides da Cunha: o homem e a obra”, “Euclides da Cunha: dom e arte do esti-
lo”, conferência pronunciada por iniciativa do Grêmio Euclides da Cunha em
1919, e “O Outro Euclides, o que resta de Os Sertões”, conferência pronunciada
em São José do Rio Pardo, em 1943.
Grande educador, além de professor universitário, foi Diretor de Instrução
Pública no Rio de Janeiro, professor do Instituto de Educação e reitor da
grande Universidade do Distrito Federal (UDF), criada por Anísio Teixeira.
Sobre os trabalhos no campo da educação, desejaria reproduzir as palavras
de Francisco Venancio Filho:

“na multiplicidade dos aspectos que apresenta a personalidade de Afrânio


Peixoto, o que domina é o de educador. No homem de letras como no de
ciências, no higienista como no médico legista como no parlamentar, no en-
saísta como no professor, no homem de sociedade como no amigo, Afrânio

23
Al berto Venanc i o Fi lho

Peixoto é antes de tudo o educador. Educou-se para educar, e ninguém no


seu tempo o excedeu nesse nobre mister. Aos trabalhos sobre a educação
que escreveu, cite-se o primoroso ensaio Ensinar a Ensinar, e uma história do
nosso país que é Minha Terra e Minha Gente.”

Afonso Pena Júnior, ao sucedê-lo nesta Casa, vinculou a obra de educador


às atividades da Instituição:

“Estou certo de que é, ainda, como posto educativo que Afrânio recebe
em 1910 sua entrada para a Academia. Esta, para ele, é posto cultural em
que trabalha pela cultura do Brasil. É ele, durante largos anos, o ‘acadêmico
para quem a Academia é o número um de suas preocupações’. Inicia a mag-
nífica Biblioteca da Cultura Nacional, inestimável serviço aos brasileiros, a
quem a justiça da Academia chamou a Coleção Afrânio Peixoto, na qual
não há livro que não traga proêmios ou nota de Afrânio.
Era conversador incomparável e comumente se defrontava com Tasso
Fragoso nos serões da Biblioteca Nacional. Quando um se assenhorava da
palavra, o outro ficava aguardando ocasião para reavê-la. E que luta para
Tasso Fragoso quando Afrânio lhe tomava a dianteira!
Uma ocasião, Afrânio falava havia quase uma hora – enquanto Tasso
Fragoso permanecia em silêncio, desenvolvendo caladamente seu raciocínio
estratégico para calar o seu rival. E Afrânio continuava a falar. A certa altu-
ra, verificando que nenhuma oportunidade lhe podia aparecer para reapos-
sar-se da direção da conversa, Tasso Fragoso levantou-se, segurou Afrânio
pelos ombros e disse com argumento de sua cabeça branca:
– Agora falo eu que sou mais velho!”

Procurou sempre afastar-se da política. Ainda na juventude, convivendo


com grandes amigos – Miguel Calmon, Carlos Peixoto, James Darci e Eloi de
Souza –, foi um dos participantes do “Jardim de Infância”.
Caso fosse vitorioso o movimento com a eleição de João Pinheiro para pre-
sidente da República, iria ocupar a pasta da Educação e Saúde Pública, a ser

24
A f r â n i o P e i x o to

criada. No fim da vida seria lembrado para ministro da Educação e Saúde Pú-
blica no primeiro governo após a redemocratização. Só um apelo, em 1926, o
faria aceitar a cadeira de deputado pelo Estado da Bahia, por insistência do
amigo Góes Calmon, então governador do Estado. Os trabalhos realizados no
Congresso, como o projeto de assistência aos insanos e a lei de acidentes de
trabalho, constam de volume a que deu, com o sabor literário, o título de Marta
e Maria, dizia ele para não interessar os políticos.
Na expressão de Levi Carneiro:

“Um traço marcante de sua personalidade repontava nas atitudes: o en-


tusiasmo com que encorajava e exaltava as pretensões literárias mais medío-
cres, todas as iniciativas de índole intelectual, todos os cometimentos artís-
ticos, todos os que se dedicavam a alguma obra do espírito, ainda que mal
ou deficientemente. Ninguém o excedia na arte dificílima de agradecer li-
vros oferecidos por autores mais ou menos obscuros. No cartão endereçado
a cada autor, havia conceitos deliciosos – e também havia, sempre, um inci-
tamento, um estímulo cordial, o prenúncio de grandes vitórias definitivas,
que ele derramou por todo o Brasil. Ninguém terá prefaciado maior núme-
ro de obras, de méritos variáveis, sabendo exarar nas páginas de cada uma as
palavras mais adequadas de louvor. Quando pressentia a inclinação para a
Academia, não vacilava: ‘A Academia o espera!’”

Outra grande tarefa de Afrânio na Academia foi a publicação do Dicionário


da Língua Portuguesa. Os fundadores da Academia não cogitaram inicialmente
de fazer um dicionário da língua e, em 1910, Mário de Alencar propôs que
se desse início ao trabalho de lexicografia, que constaria primeiro de um di-
cionário de brasileirismos e mais tarde de um dicionário da língua, mas as
iniciativas não prosperaram. Em 1924, Laudelino Freire ofereceu um pla-
no e foram nomeados cinco acadêmicos para formar a comissão organiza-
dora, assessorada por um técnico, o Professor Dalton Santos. Também
essa ação não teve seguimento.

25
Al berto Venanc i o Fi lho

Em 1940, Afrânio Peixoto retoma a iniciativa na sessão de 4 de abril e pro-


põe condições para contratação de um técnico e filólogo, o Professor Antenor
Nascentes, com uma despesa total de 60 contos de réis, declarando que, caso a
obra não fosse aceita pela Academia, a importância seria restituída. Na sessão
seguinte, a pedido do presidente, apresenta o plano do Dicionário da Acade-
mia Brasileira de Letras nas condições mencionadas anteriormente, com a de-
claração expressa:

“Aliás, ficará também declarado que, se a Academia, feito o dicionário,


se desinteressar dessa obra, a quantia gasta ser-lhe-á restituída.
Finalmente, está claro, mas não é inoportuno agora e sempre declarar
que o signatário, acadêmico que é, assume essa responsabilidade sem ne-
nhuma vantagem material: presta apenas o serviço devido.”

Em 12 de novembro de 1943 Antenor Nascentes encaminha a Afrânio Pei-


xoto o Dicionário, declarando:

“Qualquer que seja o destino que essa ilustre Corporação lhe der, nada
poderá privar o autor de haver sido escolhido e da oportunidade de executar
tal obra, de outro modo talvez não o fizesse.”

E concluiria:

“Só me resta agradecer-lhe, Doutor Afrânio Peixoto, a confiança que de-


positou em minha humilde pessoa, quando lembrou meu nome para técni-
co do trabalho.”

Em 1940, é publicado o livro de Fernando Neves, pseudônimo de Fernan-


do Nery, secretário da Casa, Academia Brasileira – Notas e Documentos para Sua His-
tória, 1896-1940, com prefácio de Afrânio Peixoto.
O prefácio explicava:

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A f r â n i o P e i x o to

“Dissera, no fim de sua vida, Paul Bourget, diante da subversão do mun-


do, que três colunas morais ainda sustentavam a Europa: o Vaticano, a Câ-
mara dos Lordes e a Academia Francesa...”

E analisava a evolução das academias, especialmente da Academia Brasileira:

“Não agradará a todos a verdade, sempre reservada para os pósteros, por


isso mesmo menos verdadeira, pois já não admite a contradita. Um livro
honesto não deve temê-la. A Academia, modelo, também moral, para afei-
çoar-se, deve-se considerá-la a própria consciência, verdade penitente.”

As expressões de Afrânio Peixoto eram premonitórias, pois o livro pro-


vocou polêmica. Alguns acadêmicos contestaram afirmações do prefácio e
do texto, e a distribuição do livro foi suspensa.” No volume Indes escreveu
um post scriptum sobre o livro supresso:

“Tal livro foi supresso. Tentou-se mesmo incendiá-lo. Esconderam-no.


Como matar um livro?”

E concluía:

“Nenhuma data, nome ou fato contestado... Dizem que, por narrar elei-
ções acadêmicas, acadêmicos eleitos na segunda, terceira ou quarta vez, can-
didatos que se acharam privados do coup de foudre da paixão pela Academia,
foram lembrados no livro ao público... Mas o livro terá segunda edição,
quando a vaidade não for mais... ‘contemporânea’.”

Em agosto de 1944 a Editora Jackson publica 25 volumes da Obra Literária


de Afrânio Peixoto, ficando de fora do gênero não-literário certamente outros
tantos volumes. No lançamento dessa Coleção, realizada no terraço da Asso-
ciação Brasileira de Imprensa, concluiria Francisco Venancio Filho, seu grande
amigo, depois de analisar os livros da Coleção:

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Al berto Venanc i o Fi lho

“Depois de ler-se esta obra toda, o último volume permite uma revisão
de idéias, de sentimentos, de cultura com que se retorna do périplo silencioso.
E volta-se reconhecido ao autor pelas horas, pelos dias de repouso em re-
canto espiritual que lhe ficou devendo. E aos privilegiados que têm a fortu-
na de sua amizade, sobre a gratidão esta pequenina alegria impura: que pena
nos faz quem não gosta de Afrânio.”

Outro tema curioso se refere à adoção da expressão polêmica “literatura


sorriso da sociedade”. No livro Panorama da Literatura Brasileira, de 1940, Afrâ-
nio Peixoto escrevia:

“A Literatura é como o sorriso da sociedade. Quanto ela é feliz, a socie-


dade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na Arte literária, com ficção e
poesia, as mais graciosas expressões da imaginação. Se há apreensão ou so-
frimento, o espírito se concentra, grave, preocupado, e, então, história, en-
saios morais e científicos, sociológicos e políticos são-lhe a preferência im-
posta, pela utilidade imediata. A literatura de um povo não denuncia apenas
sua sensibilidade e sua inteligência, senão suas condições de vida, feliz ou
apreensiva, ou sofredora, sofrimento moral, político, econômico. Seria ab-
surdo que a flor, na ponta do galho, não dependesse de raiz obscura, no seio
profundo da terra...”

A afirmação causou polêmicas e controvérsias, até com ataques pessoais ao


autor.
Dentre os que criticaram a definição de Afrânio, cumpre citar Osório Bor-
ba, que em artigo de jornal observou:

“A Literatura, portanto, são flores, acrósticos, gaiteirices, bombons dos


tempos felizes. Dela estão excluídos os épicos, os satíricos, os inovadores,
toda poesia social, todo pensamento em ação, Homero, Dante, Milton,
Voltaire, Rousseau, aqueles pobres grandes russos (que tal o sorriso Gor-
ki?), Poe, Zola, Castro Alves, Euclides da Cunha...”

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A f r â n i o P e i x o to

Na crônica “A Graciosa Entrevista”, Genolino Amado, discordando tam-


bém da definição, observa:

“Fico a pensar nos livros imensos, os maiores da inteligência humana, que


surgiram em épocas de tumulto e angústia. Relembro o velho Montaigne a
compor os seus ensaios imortais quando a França se estraçalhava nas guerras
de Religião. E Dante, envolvido nas terríveis lutas florentinas dos guelfos e
dos gibelinos, a imaginar o seu incomparável poema. E Shakespeare, em plena
agitação da Inglaterra de Elisabeth, a escrever as suas peças prodigiosas. E
Goethe a meditar o Fausto em meio das invasões napoleônicas que talavam o
solo germânico. E Chateaubriand, emergindo com a Revolução, para abrir
caminho ao Romantismo. E os atormentados gênios russos do século XIX,
de Puchkin a Dostoievski, de Gogol a Tolstói, homens que formaram a ins-
piração no quadro caótico da enorme pátria tzarista, abalada pelas profundas
crises populares que só teriam desfecho em 1917. Fossem todos esses e mui-
tos outros esperar que o ambiente social se assentasse em felicidade serena, ja-
mais teriam feito as grandes obras que lhes deram a glória. Mesmo quando
procuraram alhear-se do frêmito político do seu tempo, a verdade é que daí
ainda lhes veio a força criadora, pois foi a ardência da época, palpitando nas
almas comuns, que transmitiu a essas almas excepcionais o calor de vida em
que o gênio realiza as suas transfigurações maravilhosas.
Os romances de Jane Austen – guardadas as proporções – e as Memórias de
um Sargento de Milícias. Os aspectos risonhos que a vida possa ter constituem
também matéria de ficção. O que não se compreende não é o bom humor
em literatura, e sim a convicção de que ela deve ser um sintoma do bom hu-
mor da sociedade.”

Mais tarde, entrevistado por Homero Senna, Afrânio ratificaria o argumento:

“Não tenho motivos para modificar minha definição de Literatura – re-


truca sem pestanejar. A Literatura, ou as Belas-Artes puras, comparei-as ao
sorriso da sociedade porque só nas épocas felizes a gente sorri. Nas de apreen-

29
Al berto Venanc i o Fi lho

são e tortura não há sorriso. O erro dos que, sem atentarem bem para ela,
combateram e combatem minha definição está em que eles supõem que eu te-
nha dito ‘sorriso do homem’, quando o que eu escrevi foi ‘sorriso da socieda-
de’. Está claro que não poderia nunca dizer que a literatura é o sorriso do ho-
mem: primeiro porque esta, para mim, não existe, não passa de simples elo de
uma cadeia infinita; e, segundo, porque não ignoro que toda grande obra é fe-
ita, como a gestação, na dor. Mas só um ambiente social tranqüilo e feliz per-
mite o aparecimento de um livro notável. No tempo de Balzac, como havia
abastança social, o autor de Père Goriot pôde dedicar-se a criar vida para gozo
da sociedade. E só uma sociedade feliz aplaudiria Balzac. Das torturas de sua
doença e de suas prisões na Sibéria, no cárcere e no hospital, Dostoievski,
através de seus livros, saía de si para a sociedade que o admirava.”

E finalizando:

“Insisto que o equívoco está em imaginarem que eu tenha escrito que a


Literatura é o sorriso do homem. Só um louco diria isto, pois, de acordo
com semelhante conceito, apenas os soberanos, os ricos, os poderosos fa-
riam Letras. E é sabido que estes, em geral, nada produzem que se aprovei-
te. Uma raiz atormentada, no fundo da terra, desabrocha nas flores de um
vergel. A arte é o sorriso da sociedade. Pouco importa que o artista, pesso-
almente, sofra. ‘De minhas penas fiz canções aladas’, disse Henrique Hei-
ne, e a sociedade feliz, que o admirava, o aplaudiu. Agora, nem os ricos, os
poderosos, os felizes conseguem realizar obra de arte, porque a sociedade
sofredora não sorri... A literatura não pode vir da indiferença ou da preo-
cupação.”

E em nova manifestação:

“As épocas de intensa produção literária foram os períodos de esperança, de


tranqüilidade relativa, de abastança geral, que davam para o suntuário da Arte e

30
A f r â n i o P e i x o to

da Literatura. O tempo de Péricles, na Grécia; o de Augusto, em Roma; o Re-


nascimento em toda a parte subculta da Europa, com a imprensa, as navega-
ções, a Reforma; o de Elisabeth, o de Luís XIV; o da Rainha Vitória... foram
esses períodos, e a situação política e econômica do mundo os explica, literaria-
mente. Quando sobreveio a ameaça macedônica; quando os bárbaros invadem
o império, colaborando com os imperadores; quando há necessidade de repelir,
também espiritualmente, a invasão muçulmana; quando a vitória, também,
infiel aos velhos, trai o crepuscular Rei Sol; quando os Domínios começam a
emancipar-se de Albion; quando o mundo pega fogo na mais espantosa das
guerras... não há mais lugar para o suntuário, para a ficção, para a literatura
pura... A literatura de agora é social, como foi a de Tácito, protestando; como
foi a de Demóstenes, castigando; como a Escolástica, reensinando a crer e a
pensar; como a do século XVIII, filósofo-enciclopédica, da Aufklärung; como a
do começo do século XX, político-marxista... Oratória eleitora, história ten-
denciosa, religião e conhecimento, divulgação científica, economia técnica...
São valores imediatos... Estamos assistindo a um crepúsculo literário, a que se
vai seguir ainda a noite. Desejamos curta noite de verão. Noite, porém, que se
prolongará cheia apenas de preocupações pragmáticas, que tiram o sono, ou tal-
vez traga algum sonho errante.”

Na crítica literária, Luciana Stegagno Picchio acha a “fórmula boa e sobre-


tudo cômoda e pode ser acolhida, ainda que ampliada, porque jamais como
então no primeiro vintênio do século no Brasil pré, durante e pós Grande
Guerra soube a sociedade sorrir; e mesmo arremedar a própria imagem refleti-
da no espaço mundano, ou franzir o cenho ante esta imagem reveladora de
uma despreocupação imprudente mais do que impudente.”
Escrevendo mais tarde o livro Prosa de Ficção (de 1870 a 1920), Lúcia Mi-
guel-Pereira deu a um dos capítulos o título de “Sorriso da Sociedade”, obser-
vando, a propósito do conceito:
“Historicamente, não se justifica a tese de Afrânio Peixoto: basta
lembrar Cervantes prisioneiro de piratas, e Dostoievski expiando na Si-

31
Al berto Venanc i o Fi lho

béria o crime de não se sujeitar ao absolutismo. E ainda menos se justifi-


ca em face da crítica literária, que tem visto o romance deixar cada vez
mais de ser a narrativa de um caso para se tornar o estudo das condições
de vida – no sentido mais amplo e dramático – do homem. Certo, nin-
guém negará que há também na obra literária um elemento de prazer, de
deleite e até de repouso para o espírito; que um livro agradável, alegre,
pode ser um grande livro.”

É curioso que em carta a Carlos Drummond de Andrade de 26 de julho de


1944 João Cabral aderiria ao conceito:

“Eu tenho a impressão que a solução mais geralmente indicada seria a


compreensão da Literatura como ‘sorriso da sociedade’. Digo isso a você
porque, estou certo, você não vai entendê-la como se eu achasse que a Lite-
ratura deva ser o agradável divertimento das chamadas camadas superiores
da sociedade. Eu a uso no outro sentido, o de necessariamente a Literatura
ser um veículo de alegria, saúde, não morbidez. Creio que a função mais im-
portante da Literatura não é refletir a miséria que a gente está vendo e sim
dar coragem a esses que se estão vendo na miséria.”

Em 1941 faleceu Silva Ramos, e alguns acadêmicos levantaram a candida-


tura do Presidente Getúlio Vargas. O Regimento exigia a apresentação de car-
ta, o que seria impossível. Com a alteração, permitiu-se que dez acadêmicos
pudessem propor um candidato. Na ata da eleição consta uma única absten-
ção, mas a crônica registra que quatro acadêmicos se abstiveram, entre eles
Otávio Mangabeira, que era exilado, e Afrânio Peixoto, aposentado. Mas há
indicação que teriam recebido punição como funcionários públicos Miguel
Osório de Almeida e Hélio Lobo.
Depois da eleição de Getúlio Vargas, em 1941, Afrânio Peixoto deixou de
comparecer com habitualidade às sessões, freqüentando a Biblioteca e o
Arquivo. Se por acaso comparecia ao Plenário, tinha o cuidado de tirar da car-

32
A f r â n i o P e i x o to

teira um recorte de cartolina branca onde se achava escrita a palavra em carac-


teres gregos: Silêncio.
Definiu num dístico a sua vida e obra:

“Estudou e escreveu
Nada mais lhe aconteceu.”

Sobre as críticas que lhe foram feitas por excessivo lusismo discorreu Afon-
so Pena Júnior:

“Na alma de Afrânio, dois antigos amores fundamentais: o amor a Por-


tugal e o amor à Bahia, duas linhas convergentes em cujo vértice refulge o
amor ao Brasil. Muito foi atacado, muito sofreu nos recessos do espírito,
por conta desses dois amores. Seu amor a Portugal, Pátria de sua Pátria, sig-
nifica apenas que ele amava o Brasil, mas não o Brasil do herbário ou museu,
separado e esquecido de suas origens, e sim um Brasil sobre suas raízes, cada
vez mais vivas e mais profundas. É por isto devoto de Portugal e dos jesuí-
tas, raízes mestras da nossa cultura.”

Falecido em 12 de janeiro de 1947, João Neves da Fontoura falou no se-


pultamento, em nome da Academia. Grande orador, em brilhantes palavras
traçou-lhe o perfil:

“Afrânio Peixoto, a Academia não te vem dizer adeus. Dos homens da


tua linhagem mental ninguém se despede para sempre. Continuarás aqui
dentro – pelo testemunho de teus livros, pela tua presença espiritual, pelos
raios de luz que o teu engenho derramou sobre esta Casa.
De ti pode-se dizer, como o fez Machado de Assis ao pé da estátua de
José de Alencar, corrigindo o desalento do autor de O Guarani: ‘nem tudo
passa sobre a terra’.
[...]

33
Al berto Venanc i o Fi lho

Afrânio Peixoto, não é só a Academia que se cobre de luto com o teu de-
saparecimento; é toda a Literatura Brasileira; é a ciência médica, de que fos-
te um dos mais consumados Mestres; é o Brasil e a língua que falam duas
Pátrias irmãs.
Nesta Casa, no meio século de sua duração, foste um dos maiores, dos
mais assíduos, dos mais amados e dos que mais amaram.
Se possuímos este palácio, dádiva generosa da França, a ela o devemos,
mas também à tua tenacidade de negociador avisado. Um dia nos trouxeste
o instrumento da liberalidade, a que somos perpetuamente agradecidos.
Durante longos anos não ocupaste uma cadeira. Dia por dia, escrevendo,
falando, ensinando, aumentaste a substância dos títulos que a conquistaram; e
a glória, que a tua pena ou a tua voz alcançaram, não a monopolizaste, como
seria natural. Dividiste-a conosco; incorporaste-a ao patrimônio intelectual
da Academia. Pertencias ao número daqueles que não embalsamam a fama à
sombra dos primeiros louros, mas dão-lhe um esplendor crescente, ador-
nando-a com novas flores e enriquecendo-a com novos frutos.
Nada escapou à curiosidade do teu espírito de privilegiado, que devassou
com brilho inexcedível a Medicina, o Romance, a Poesia, a Crítica, a Histó-
ria, a Filosofia e os segredos da criação artística.
Contigo desaparece e ganha os contornos da imortalidade um dos líderes
da geração predestinada, que emergiu das delícias do fim do século XIX e
chegou quase à metade deste, sabendo conservar, entre o desequilíbrio da
Revolução e da Guerra duas vezes desencadeada, o idealismo imarcescível
da Bondade e da Beleza. Foste, talvez, a última expressão ardente e vigorosa
do neo-romantismo brasileiro.
Sucumbes no ano em que vamos celebrar o centenário do nascimento de
Castro Alves, patrono da tua Cadeira e patrono, sobretudo, do Brasil liber-
to da escravidão. Saberemos confundir, na mesma enternecida homenagem,
o Poeta dos Escravos e aquele que melhor explicou e entendeu a sua glória
condoreira.”
Concluo com uma nota pessoal.

34
A f r â n i o P e i x o to

No final da vida em 1944, três anos antes de sua morte, dedicou a jovem gi-
nasiano, filho de um grande amigo, as Obras Completas de Castro Alves, com to-
cante dedicatória: “Alberto: Castro Alves mereceu a paixão de Euclides. Que
eles lhe inspirem a paixão do Brasil ...”
Se pudéssemos resumir a vida de Afrânio Peixoto, poderíamos acrescentar
que, além da paixão do Brasil, ele teve também a paixão da Academia.

35
C ulto da Im o r t a l ida de

Oscar Dias Corrêa,


o acadêmico, o ministro
e o jurista
M u r i lo M e l o Fil h o

N ão é fácil escrever sobre os 84 anos de um homem tão


completo como Oscar Dias Corrêa, consagrado nos três
Poderes da República: no Legislativo, no Executivo e no Judiciário.
Ocupante da
Cadeira 20
na Academia
Brasileira de Letras.
Começarei, então, escrevendo sobre o filho de Manoel Dias e de
Maria da Fonseca, nascido no dia 1.o de fevereiro de 1921, em sua
querida cidade de Itaúna, onde, aos 14 anos de idade, em 1935, já
vencia um concurso de oratória, com discurso sobre “A Paz no Chaco”.
Ainda recentemente, ele era tão bairrista e tão ciumento com a sua
cidade natal que costumava dizer o seguinte:
– Belo Horizonte está, agora, muito bem integrada na Região
Metropolitana da Grande Itaúna.
Na juventude, foi o melhor seresteiro de sua cidade. E ele próprio
recordava sempre:
– O namoro era tradicional. O rapaz levava dois anos para pegar
na mão da moça. Pegar no braço só por descuido. E para outros “pe-
gas”, era preciso, primeiro, casar.

37
M urilo Melo Fi lho

Aquele triunfo no concurso de oratória já prenunciava o grande e incompa-


rável orador que ele seria depois pela vida afora, com a vitória no Concurso
Nacional de Monografias e no Concurso Nacional de Oratória, promovidos
pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, mas antecipava igualmente o discí-
pulo de Dante Alighieri, o pai da poesia italiana, o líder de Florença, o filósofo
de O Banquete, o político de A Monarquia e sobretudo o autor da Divina Comédia,
de A Vida Nova e de tantos outros sonetos amorosos, em homenagem à sua pla-
tônica paixão por Beatrice Portinari.

 Aprendendo o italiano
Em 1940, com 19 anos, Oscar teve uma pleurisia, com infecção nos dois
pulmões. Internou-se no Sanatório Belo Horizonte, durante três meses, após
os quais recebeu alta e saiu curado, tendo aproveitado a internação para apren-
der italiano e ler as Obras Completas de Dante Alighieri.
A admiração pelo grande florentino levaria naturalmente o menino itau-
nense a aproximar-se de Giácomo Leopardi e a saber de cor estrofes inteiras do
Inferno, do Purgatório e do Paraíso dantianos, com 35 cantos em cada uma
dessas três partes, onde Alighieri – nesta obra que é talvez a maior expressão
do humanismo cristão medieval – descreve uma visão tida na Semana Santa,
atravessa os nove círculos do Inferno e, no ápice da montanha, encontra
Beatrice, que o conduz ao Paraíso.
Em 1944, depois do “Manifesto dos Mineiros”, um grupo de líderes mi-
neiros resolveu solidarizar-se com José Américo de Almeida pela sua entrevis-
ta ao Correio da Manhã, que derrubou a censura à imprensa no Estado Novo. Pe-
dro Aleixo procurou Oscar para pedir-lhe a assinatura nesse telegrama e ouviu
dele a seguinte resposta:
– Dr. Pedro, vou assiná-lo, porque na prisão o senhor leva jeito de ser pelo
menos um bom companheiro.
Recém-formado em Direito, Oscar abriu um escritório com Carlos Castelo
Branco, em Belo Horizonte, na Av. Amazonas, situado justamente, por mera

38
O sca r Di as C o rrêa, o ac adêmi c o , o m i n i s tr o e o j u r i s ta

coincidência, em cima da Casa do Chope. Certo dia, um possível cliente o con-


sultou sobre qual era a especialidade do escritório, e Oscar respondeu:
– Meu amigo, quando você está começando a advogar, não tem esse luxo de
especialidade. Tudo é clínica geral.

 O combativo deputado
Escreverei em seguida sobre Oscar Dias Corrêa, o jovem e combativo depu-
tado estadual da UDN, numa brava e violenta oposição ao então Governador
Juscelino Kubitschek.
Certa tarde, chegou à Assembléia uma mensagem do Governador solicitan-
do um empréstimo de 2 bilhões de cruzeiros, para construção de estradas.
A UDN resolveu obstruir a mensagem. Nessa obstrução, para ganhar tem-
po, Oscar lia na tribuna a Arte de Furtar, atribuída ao Padre Antônio Vieira,
além de trechos da Eneida, de Virgílio; das Epístolas, de Horácio, e das Catiliná-
rias, de Cícero. Até que, um dia, o orador bateu o seu próprio recorde: falou
seis horas seguidas. E não ficou rouco.

 O competente executivo
Devo escrever a seguir sobre Oscar, secretário do Governador Magalhães
Pinto, que quis inicialmente nomeá-lo para a Segurança Pública:
– Você perdeu o juízo, Magalhães. Não aceito de jeito nenhum. O primeiro
sujeito que aparecer morto na rua, vão dizer que fui eu quem mandou matá-lo.
Convidado para secretário de Educação, Oscar sugeriu ao governador:
– Bota aí, quinhentas escolas, logo no primeiro ano de governo.
– Você está louco, Oscar ?
– Estou louco, não, Magalhães. É que você não vai ganhar mesmo esta elei-
ção. E papel aceita tudo. Então, bota aí: quinhentas escolas logo no primeiro
ano de governo.
Aí começou a batalha dos quinhentos grupos escolares, com pré-molda-
dos de ferro, quatro salas de aula para quarenta alunos em cada sala, num to-

39
M urilo Melo Fi lho

tal de 160 alunos que, em três turmas diárias – manhã, tarde e noite –, se
multiplicavam para 480 alunos em todos os quinhentos municípios minei-
ros. As prefeituras cediam as áreas, empresas e particulares doavam os terre-
nos, e a Secretaria de Educação construía os prédios, fornecia os móveis e
nomeava as professoras. A verdade é que, no fim do primeiro ano, o secretá-
rio pôde procurar o governador e dizer-lhe:
– Eu não lhe disse, Magalhães? Olha aí as quinhentas escolas construídas e
já em pleno funcionamento.

 O parlamentar da “banda de música”


Falarei em seguida sobre Oscar, já deputado federal aqui no Rio, em 1956,
com a sua “Banda de Música”, ao lado de Carlos Lacerda, Adauto Cardoso,
Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, Afonso Arinos, Prado Kelly e Odilon Braga,
mais vigilante ainda no combate ao Presidente Juscelino.
Eles todos participaram talvez da mais brilhante fase da Democracia Brasi-
leira – os dez anos entre 1950 e 1960 –, que eu testemunhei de perto, aqui no
Palácio Tiradentes, com suas galerias repletas de manifestantes extasiados di-
ante daquele exercício diário de grandes talentos oratórios.
Um clima de íntima confiança reinava então entre parlamentares e jornalis-
tas, ali no plenário do Palácio Tiradentes. O Deputado Oscar Corrêa, em suas
Memórias Políticas, relembra o seguinte:
– Carlos Castelo Branco e Murilo Melo Filho queriam apenas informações
e frases. Um dia, eu pedi ao Murilo:
– Quando a frase for boa, você pode botar na minha boca. Quando ela for
ruim, você bota na boca dos meus adversários.

 O professor universitário
Comentarei agora o Oscar, Professor Catedrático de Economia Política e
Emérito da Universidade do Rio de Janeiro, e que tinha com os estudantes um
contato suave, mas rigoroso.

40
O sca r Di as C o rrêa, o ac adêmi c o , o m i n i s tr o e o j u r i s ta

Certa vez, concedeu-lhes uma audiência e viu que, entre eles, havia duas mo-
ças. Estava sentado e se levantou:
– Perfeitamente, às ordens.
Aí um dos alunos se sentou.
Oscar disse:
– Levante-se. Se eu, que sou professor e diretor da Faculdade, me levantei,
em respeito a duas senhoritas presentes, por que o senhor vai ficar sentado? Le-
vante-se.
O estudante reagiu:
– Porque esse troço...
Aí não terminou a frase e foi interrompido por Oscar:
– Ou o senhor fala o nosso vernáculo direito, ou não teremos como nos en-
tender.

 O criterioso magistrado
Apresentarei agora o Oscar, ministro do Tribunal Superior Eleitoral e do
Supremo Tribunal Federal, onde esteve durante sete anos, de 1982 a 1989, na
sucessão de Clovis Ramalhete e na companhia de grandes magistrados, como
Moreira Alves, Djaci Falcão, Rafael Mayer, Décio Miranda, Cordeiro Guerra
e Célio Borja.
Numa mensagem, hoje mais atual do que nunca, dizia Oscar que

“um ministro do Supremo Tribunal Federal não deve depender de nin-


guém, porque tem de ser absolutamente livre e não pode estar sujeito a ne-
nhuma outra peia, a não ser a peia da Constituição”.

E como se falasse agora aos ministros, seus sucessores, advertia Oscar:


– O Supremo não pode se meter em brigas, nem pode tomar partido, por-
que tem de ser sempre insuspeito para dar a decisão final.

41
M urilo Melo Fi lho

 O atuante ministro da Justiça


Sobre Oscar, já ministro da Justiça, em 1989, sabe-se que no seu discurso
de posse fez apenas uma promessa: a de cumprir a lei.
Foi um escândalo danado. No dia seguinte, a manchete dos jornais era so-
mente uma:
“O novo ministro da Justiça promete cumprir a lei.”
Oscar pensou consigo mesmo:
– Ou eu estou doido, ou muito doido deve estar todo mundo. Se eu dissesse
que não ia cumprir a lei, ainda bem. Mas eu prometi justamente o contrário,
isto é, que ia cumpri-la, e provoquei todo esse rebuliço.
Ficou horrorizado com o variegado elenco de problemas a cuidar, desde os
direitos do consumidor, da mulher, da pessoa humana, dos penitenciários, do
CADE, até as terras indígenas, a Polícia Federal, os passaportes, os refugiados
e as fronteiras. Demitiu-se nove meses depois, divergindo da orientação eco-
nômico-financeira do seu colega, o então todo-poderoso Ministro da Fazenda
Maílson da Nóbrega, espécie de clone do Guido Mantega de hoje.

 O corajoso advogado
Poderia escrever ainda sobre Oscar advogado, mantendo a sua banca de ad-
vocacia como uma trincheira indômita e um bunker indormido na preservação
do Direito e da Justiça, que foram sempre as duas grandes bandeiras de toda a
sua vida, um advogado e um jurista na linha dos nossos confrades, os Acadê-
micos Lúcio de Mendonça, Rodrigo Octavio, Rui Barbosa, João Luís Alves,
Lafayette Rodrigues Pereira, Pedro Lessa, Aníbal Freire, Pontes de Miranda,
Cândido Motta, Clóvis Beviláqua, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Rai-
mundo Faoro.
Escreverei finalmente sobre o Oscar, escritor e autor de uma biografia sobre
Manuel, o seu pai português, além de Introdução Crítica à Economia Política, A Consti-
tuição de 1967, O STF, Corte Constitucional do Brasil, Constituição de 1988 e de várias
outras obras jurídicas, de Vultos e Perfis, com estudos sobre a Inconfidência Mi-

42
O sca r Di as C o rrêa, o ac adêmi c o , o m i n i s tr o e o j u r i s ta

neira, Tiradentes e o Visconde de Cairu, do romance Brasílio, de um livro de con-


tos Quase contos, de Vozes de Minas, de poemas, na companhia de Ives Gandra, Mi-
guel Reale, Saulo Ramos e Geraldo Vidigal. Como tradutor, publicou Meus Ver-
sos de Outros, com traduções de Petrarca, Ariosto, da Vinci e Leopardi.
Mais recentemente, este seu último livro, Viagem com Dante, ao qual ele dava
uma especial importância. Com apresentações dos Acadêmicos Antonio Car-
los Secchin e Ivan Junqueira, foi lançado na Sala de Fundadores da Academia,
já sem a sua presença, mas com a presença de sua mulher e sua família admirá-
veis. Tribuna Acadêmica, prefaciado pelo Acadêmico Alberto Venancio Filho, ele
não chegou a ver impresso: foi lançado pela ABL depois de sua morte, com
textos de várias conferências, necrológios e capítulos sobre os inconfidentes,
sobre Menotti del Picchia, Rui, Emílio Moura, Abgar Renault, Prado Kelly,
Inglês de Souza, Celso Cunha, Athayde, Otto Lara, Carlos Drummond, Caio
Mário da Silva Pereira, Orozimbo Nonato, Vivaldi Moreira, Alcântara Ma-
chado, Carlos Chagas Filho, Roberto Marinho, Jorge Amado, Barbosa Lima,
Brito Velho, Celso Furtado, Santa Rita Durão e Basílio da Gama.

 Plural e multifacetado
Este foi o Oscar Dias Corrêa, um ser plural e multifacetado, sobre o
qual traçamos este despretensioso esboço, para descrever aquele menino da
cidade de Itaúna, que seria depois um dos poucos homens públicos deste
País aprovado no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, na cátedra uni-
versitária e na advocacia liberal, deputado estadual em dois mandatos e de-
putado federal em três, secretário da Educação de Minas, ministro do Su-
premo, do T.S.E. e da Justiça, professor, educador e escritor, mas, sobretu-
do, nosso querido companheiro na Academia Brasileira de Letras, eleito no
dia 6 de abril de 1989 para a Cadeira 28, que tem como Patrono Manuel
Antônio de Almeida, como Fundador Inglês de Sousa, como antecessores
Xavier Marques e Menotti del Picchia e na qual lhe sucedeu o atual ocu-
pante, Acadêmico Domício Proença Filho.

43
M urilo Melo Fi lho

Falecido na antevéspera do ano-novo, a 30 de dezembro de 2005, Oscar


Corrêa está fazendo muita falta nesta ABL, porque era o proprietário de uma
cultura suficientemente sólida para resolver os problemas de natureza regi-
mental, estatutária ou jurídica, aos quais propunha sempre uma solução perti-
nente, correta e sensata.
Sua ausência já está sendo muito sentida, porque ele era um colega querido,
que, ao longo dos dezesseis anos entre nós, desde 1989, deu provas cabais de
um excelente companheirismo e de um convívio afável e carinhoso.
Durante todo esse tempo, ele foi também um farol, uma lanterna, uma Bí-
blia, uma bússola, um azimute e um norte a balizar, a vocalizar e a sinalizar os
caminhos de toda esta nossa comum e atual geração de brasileiros, que dele
tem motivos de muita honra e de justo orgulho.

44
C ulto da Im o r t a l ida de

Joaquim Nabuco,
acadêmico e diplomata
Af o n so Ar in o s , f il h o

O fato de integrar a Academia Brasileira de Letras sempre re-


presentou uma distinção para os seus membros. Mas, con-
forme reconheceu Joaquim Nabuco, ao discursar traçando as inten-
Ocupante da
Cadeira 17
na Academia
Brasileira de
ções e os objetivos da entidade na sessão inaugural, a 20 de julho de Letras.
1897, os fundadores foram escolhidos sobretudo pelo privilégio da
amizade, em que pese o valor indiscutível de alguns dentre eles.

“Nós, os primeiros” – afirmava o secretário-geral perpétuo e ora-


dor –, “seremos os únicos acadêmicos que não tiveram mérito em
sê-lo, quase todos entramos por indicação singular, poucos foram
eleitos pela Academia ainda incompleta. E, nessas escolhas, cada um
de nós como que teve em vista corrigir a sua elevação isolada, com-
pletar a distinção que recebera; só d’ora em diante, depois que a Aca-
demia existir, depois de termos uma regra, tradições, emulação, e em
torno de nós o interesse, a fiscalização da opinião, a consagração do

Conferência proferida na ABL, em 23.3.2004.

45
Afon so A ri no s, fi lho

sucesso, é que a escolha poderá parecer um plebiscito literário. Nós, de fato,


constituímos apenas um primeiro eleitorado.”

A referência aos “poucos (...) eleitos pela Academia ainda incompleta” re-
sulta, como é sabido, do fato de que os fundadores originais eram trinta, mas
eles optaram por adotar o modelo da Academia Francesa, com os seus quaren-
ta membros. E Nabuco assinalava:

“O número de quarenta era quase forçado, por que não dizê-lo? Tinha a
medida do prestígio, esse quê simbólico das grandes tradições (...): as pro-
porções justas de qualquer criação humana são sempre as que foram consa-
gradas pelo sucesso. Não tomamos à França todo o sistema decimal? Podía-
mos bem tomar-lhe o metro acadêmico.”

Por esse motivo, o último remanescente dentre os primeiros acadêmicos,


Carlos Magalhães de Azeredo, com quem convivi em Roma nos anos 50,
quando o chamei fundador da Academia, corrigiu-me: “Fundador fundado.”
E explicou por quê.
Assim, tanta honra trouxe a Academia a Joaquim Nabuco quanto este a ela.
Pois o arauto da liberdade, o apóstolo da Abolição, o historiador imperial, o
defensor incansável dos interesses nacionais no exterior, quando o governo re-
publicano exigiu o seu concurso de monarquista convicto, devotou, até o fim
(embora quase sempre afastado do Brasil em missões diplomáticas), interesse
ativo e constante pela Academia Brasileira. Nabuco compôs, com Rio Branco
e Rui Barbosa – ambos também acadêmicos –, a tríade simbólica das virtudes
pátrias na fase de transição entre o Império e a República. Porém, sua glória
imperecível estará sempre na coragem moral com que soube superpor aos inte-
resses de classe e da família a solidariedade concreta, atuante e vigorosa com os
oprimidos, humilhados e ofendidos.
Mas, naqueles tempos inaugurais de incertezas, de dificuldades financeiras
e logísticas, Nabuco estava longe de prever que o destino da Academia Brasi-
leira de Letras fosse um porto seguro. Para ele,

46
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

“a homens de Letras que se prestam a formar uma Academia não se pode


pedir fé; só se deve esperar deles a boa-fé. A questão é se ela bastará para ga-
rantir a estabilidade de uma companhia exposta, como esta, a tantas causas
de desânimo, de dispersão e de indiferentismo. Se a Academia florescer, os
críticos deste fim de século terão razão em ver nisso um milagre”.

Em conseqüência, julgava que o empenho para assegurar a continuidade da


“cultura da língua e da literatura nacional”, obrigação primordial constante do
artigo 1.º dos nossos Estatutos, deveria prevalecer sobre o personalismo dos
acadêmicos. A meta da entidade recém-criada seria, primordialmente, educati-
va. Assim,

“a uma Academia importa mais elevar o culto das letras, o valor do esforço,
do que realçar o talento e a obra do escritor. Decerto, deixamos ao talento a
liberdade de se apagar. Alguém fez uma bela obra? Admiremos a obra e dei-
xemos o autor viver como toda gente; não o forcemos, querendo que se ex-
ceda a si mesmo, a refazer-se uma e mais vezes, a viver da sua reputação, di-
minuindo-a sempre. Não o condenemos à série, deixemo-lo desaparecer na
fileira, depois de ter feito uma brilhante ação como soldado. A altivez do ta-
lento pode consistir nisso mesmo, em não diminuir. É a primeira liberdade
do artista, deixar de produzir; não, porém, renunciar a produzir; repelir a
inspiração, abdicar o talento, deixar a imaginação atrofiar-se. Isso é desinte-
ressar-se das suas próprias criações anteriores, as quais só podem viver por
essa cultura literária, que perdeu para ele toda a primazia. Não há, em nosso
Grêmio, omissão irreparável; a morte encarrega-se de abrir nossa porta com
intervalos mais curtos do que o gênio ou o talento toma para produzir qual-
quer obra de valor”.

Para Joaquim Nabuco, sendo os acadêmicos livres de prosseguir ou suspen-


der sua produção literária, muito mais o seriam, naturalmente, no tocante a
uma pretensa unanimidade de opiniões ou de estilo acadêmico. Eles pode-

47
Afon so A ri no s, fi lho

riam, até, mostrar-se unidos, mas necessariamente diversos. E a força da Aca-


demia se expressaria nesta aglutinação sem unidade, na união com diversidade.

“Já tivemos a Academia dos Felizes; não seremos a dos Incompatíveis,


mas na maior parte das coisas não nos entenderemos. Eu confio em que sen-
tiremos todo o prazer de concordarmos em discordar; essa desinteligência
essencial é a condição da nossa utilidade, o que nos preservará da uniformi-
dade acadêmica.”

Ele se apressa, contudo, em qualificar e circunscrever os limites de tais di-


vergências:

“Para não podermos fazer nenhum mal, basta isso; para fazermos algum
bem, é preciso que tenhamos algum objetivo comum. Não haverá nada co-
mum entre nós? Há uma coisa: é a nossa própria evolução; partimos de pon-
tos opostos para pontos opostos (...). A utilidade desta Companhia será, a
meu ver, tanto maior quanto for um resultado da aproximação, ou melhor,
do encontro, em direção oposta, desses ideais contrários, a trégua de pre-
venções recíprocas em nome de uma admiração comum, e até, é preciso es-
perá-lo, de apreço mútuo. Porque (...) qual é o princípio vital literário que
precisamos criar por meio desta Academia (...)? É a responsabilidade do es-
critor, a consciência dos seus deveres para com a sua inteligência, o dever su-
perior da perfeição, o desprezo da reputação pela obra.”

Condição primordial para a concretização desses ideais seria, segundo Na-


buco, a independência política. Não alheamento da política, entendida como
inserção do acadêmico na vida da polis nacional, mas como meta das atividades
da Academia. Nesta, dizia ele,

“estamos certos de não encontrar a política. Eu sei bem que a política, ou,
tomando-a em sua forma a mais pura, o espírito público, é inseparável de

48
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

todas as grandes obras (...). A política, isto é, o sentimento do perigo e da


glória, da grandeza ou da queda do país, é uma fonte de inspiração de que se
ressente, em cada povo, a literatura toda de uma época, mas, para a política
pertencer à literatura e entrar na Academia, é preciso que ela não seja o seu
próprio objeto; que desapareça na criação que produziu (...). Só assim não
seríamos um parlamento.”
“A formação da Academia de Letras” – concluía o grande brasileiro – “é
a afirmação de que, literária como politicamente, somos uma nação que tem
o seu destino, seu caráter distinto, e só pode ser dirigida por si mesma, de-
senvolvendo sua originalidade com os seus recursos próprios, só querendo,
só aspirando à glória que possa vir de seu gênio.”

A preocupação constante de Joaquim Nabuco pelo presente e o futuro da


Academia evidencia-se, claramente, na correspondência com Machado de
Assis e outros acadêmicos, estivesse ele no Brasil ou no exterior, em missões di-
plomáticas que o levaram à Inglaterra, à Itália e aos Estados Unidos. E, reno-
vando-se as academias tanto em vida como através das mortes, era permanente
o interesse que demonstrava pela sucessão dos companheiros desaparecidos.
Via-se, neste caso, o secretário-geral freqüentemente sugestionado, ou mesmo
orientado, por seu amigo e mestre literário, o presidente da Casa.
Assim, ainda do Rio de Janeiro, Nabuco escreveu a Machado em fevereiro
de 1899. Nesta carta, já se patenteiam a formação de facções e as manobras
eleitorais, inevitáveis em todos os agrupamentos humanos, marcados pelas im-
perfeições do criado.

“Agora queira dizer-me como se vai formando em seu espírito a sucessão


do Taunay na Academia... O Loreto disse-me anteontem que na Revista,
aonde não vou há muito tempo, falava-se em Arinos e Assis Brasil. Eu dis-
se-lhe que minha idéia era o Constâncio Alves. O Taunay era um dos nos-
sos, e, se o substituímos por algum ausente, como qualquer daqueles, tería-
mos dado um golpe no pequeno grupo que se reúne e faz de Academia. De-

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Afon so A ri no s, fi lho

pois, ficaríamos sem recepção. O Arinos talvez viesse fazer o elogio... Eu,
pela minha parte, que entre os dois votaria nele, porque o elogio do Taunay
pelo Assis Brasil (...) podia ser uma peça forçada, confesso-lhe que não o
vejo como o Constâncio; mas se V. não pensa que o Constâncio tem a me-
lodia interior, a nota rara, que eu lhe descubro, submeto-me ao mestre. Com
o voto do Dória, que me prometeu, e o meu, o Constâncio já tem dois. Se
V. viesse, era o triângulo, e poderíamos até falsificar a eleição. Sério!”

No mesmo ano, entretanto, dar-se-ia uma guinada decisiva na vida de Joa-


quim Nabuco. Ele já recusara a Legação em Londres, que o Governo Provisó-
rio lhe havia oferecido tão logo proclamada a República. Sob a presidência de
Prudente de Morais, outra oportunidade não mereceu, de sua parte, melhor
acolhida. Em 1899, contudo, o Brasil se aprestava a colocar sob arbitramento
a pendência de limites com a Guiana Britânica. O Barão do Rio Branco tratava,
então, do litígio com a França sobre a questão do Oiapoque como fronteira
com a Guiana Francesa, cujo arbitramento fora entregue ao Conselho Federal
Suíço. Ele conduziria a incumbência a bom termo em 1.º de dezembro de
1900, como já vencera a disputa do território de Palmas com a Argentina, ar-
bitrada pelo então presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, em 6 de
fevereiro de 1895. O Presidente Campos Sales convidou Nabuco para defen-
der os interesses nacionais, e o monarquista histórico acedeu enfim, a 5 de
março, em carta ao chanceler Olinto de Magalhães, após haver sugerido, entre
outras alternativas, o nome de Rio Branco.

“Mas, dada a grande importância que reconheço ter a nova sentença que
vamos disputar, e sendo legítima a solicitude de V. Ex.ª, de amparar, do mo-
do que lhe pareça mais seguro, a sorte dos territórios amazônicos em litígio,
uma vez que, ouvidas todas as minhas reflexões, V. Ex.ª continua consideran-
do necessária minha colaboração, eu não posso menos que submeter-me. Para
não fazê-lo prima facie, eu só poderia valer-me das minhas conhecidas idéias
monárquicas. Tratando-se, sem embargo, de uma questão de caráter pura-

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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

mente nacional, como é a reivindicação de território brasileiro contra preten-


sões estrangeiras, seria até faltar à tradição do passado que há anos procuro
recolher e cultivar, que eu invocasse uma dissidência política, sobre a qual o
próprio governo republicano teve o nobre desprendimento de elevar-se. Nes-
sas condições, Sr. Ministro, não me resta senão pôr-me inteiramente às or-
dens de V. Ex.ª, agradecendo-lhe, assim como ao presidente da República, a
confiança que demonstra na minha lealdade para com o País.”

Havia, porém, uma condição. Joaquim Nabuco fora nomeado para cuidar
do litígio sobre limites, ficando a Legação em Londres entregue ao ministro
plenipotenciário Artur de Sousa Correia, com quem a Inglaterra ainda tentava
um acordo direto. Assim, o monarquista por tradição defenderia uma causa
nacional, mas sem colocar-se a serviço permanente da República. Mas ele já
constatava, por outro lado, as dificuldades de que duas cabeças cuidassem da
mesma questão, quando Correia, seu amigo íntimo, faleceu em março de
1900. Nabuco tentou, ainda, a solução complicada de ser acreditado como
plenipotenciário em Missão Especial, e a Legação entregue a um encarregado
de Negócios, ficando ambas, virtualmente, sob sua direção. Em dezembro,
contudo, pressionado pelo governo e consciente da situação esdrúxula em que
se encontrava o posto a ele confiado, aceitou a chefia efetiva da Legação. E foi
o último ministro a entregar credenciais à rainha Vitória, idosa e enferma.
Até então, Nabuco viajava pela Europa e trabalhava onde melhor lhe aprou-
vesse. Assim, escreveu a Machado de Paris, em dezembro de 1899, sempre ma-
nifestando interesse por esta Casa, ao perguntar pela “nossa Academia” e a
“nossa Revista”. E repreendeu o amigo. “V. não aparece em nenhuma, mas eu,
se fosse ministro (não há nenhuma irreverência nisto), mandava-o ir a ambas,
na expressão legal, debaixo de vara... do pálio.” Acrescentou ainda haver-lhe
Magalhães de Azeredo escrito

“propondo um modo original de termos casa para a Academia, que era con-
tribuírem os acadêmicos com uma mensalidade para o aluguel. Res-

51
Afon so A ri no s, fi lho

pondi-lhe que V. advogava de preferência o jeton de présence, que seguramen-


te é menos bourgeois que o recibo do tesoureiro, e que nos pressupõe uma
instituição de Estado.”

Seis meses depois, a carta do secretário-geral ao presidente da Academia se-


ria bem mais severa. Ao escrever de Pouges, em junho de 1900, Nabuco exor-
tava Machado:

“Não deixe morrer a Academia. V. hoje tem obrigação de reuni-la e tem


meios para isso, ninguém resiste a um pedido seu. Será preciso que morra
mais algum acadêmico para haver outra sessão? Que papel representamos
nós então? Foi para isso, para morrermos, que o Lúcio e V. nos convida-
ram? Não, meu caro, reunam-nos (não conte por ora comigo, esperemos
pelo telefone sem fios) para conjurar o agoiro, é muito melhor. Trabalhe-
mos todos vivos.”

A 8 de dezembro de 1900, o presidente Campos Sales sancionara a lei n.º


726, de iniciativa do deputado baiano Eduardo Ramos, autorizando o gover-
no a instalar, de forma permanente, a Academia Brasileira de Letras, “para cul-
tura e desenvolvimento da Literatura nacional”. Assim, Nabuco, já residente
em Londres, podia escrever a Machado em 28 de janeiro de 1901:

“Dê-me notícias da nossa Academia. Felicito-o por ter conseguido a casa.


V. lembra-se da minha proposta que as 40 Cadeiras tivessem insculpidos os
nomes dos primeiros acadêmicos, que foram todos póstumos. Os chins
enobrecem os antepassados, nós fizemos mais, porque os criamos...”

A Academia realizou uma sessão solene no dia 2 de junho, quando da inaugu-


ração da herma de Gonçalves Dias no Passeio Público. Naquele ensejo, Medei-
ros e Albuquerque referiu-se à Secretaria Geral, que assumira em lugar de Joa-
quim Nabuco, de cuja permanência em Londres não se podia prever o término.

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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

“A substituição interina do nosso ilustre secretário-geral pôs-me na con-


tingência de ocupar a atenção desta assembléia, lendo o relatório do movi-
mento da Academia. Nunca a substituição me foi mais penosa. Não porque
me doa o amor-próprio ferido, sentindo que todos hão de estar a evocar a
bela figura eloqüente de Joaquim Nabuco e a fazer uma comparação, que só
pode ser esmagadora. O amor-próprio desaparece neste momento. O que
há apenas é, ao contrário, que eu reclamo para mim ser, nesta assembléia,
quem mais sente a desproporção entre o substituído e o substituto, e, por
um desdobramento cerebral, enquanto profiro estas palavras mal alinhadas,
lembro o que seria aqui a voz eloqüente do dominador das multidões, que
tanto soube outrora arrastar um povo inteiro à conquista da redenção para
uma raça oprimida, como saberia, hoje, tornar-se persuasiva para nos falar
da Arte e do Belo.”

Em novembro do mesmo ano, Joaquim Nabuco escreve a Machado de


Assis defendendo o voto dos ausentes, ainda polêmico, e se precata contra
possíveis fraudes:

“Como vai a nossa Academia? Eu realmente penso que aos ausentes devia
ser dado o direito de voto. Era mais honroso para os eleitos reunir o maior
número possível de votos. VV. estatuiriam o modo de enviar a nossa chapa,
ou de poder alguém da Academia votar pelos ausentes. Não haveria perigo
de ata falsa nem de fósforos. O procurador, ao votar, por exemplo, por
mim, declararia que eu lhe escrevera (mostrando o documento) para votar
por mim, nessa eleição, no candidato F. Talvez o voto dos ausentes devesse
ser aberto e declarado. Quem são os candidatos às duas Cadeiras?”

Uma semana depois, ele volta a interpelar Machado:

“O Arinos escreveu-me que é candidato, e que os ausentes votam. Desde


quando? Como? Quem são os seus candidatos? Muitas lembranças a todos

53
Afon so A ri no s, fi lho

que em nossas letras se acolhem do seu lado e professam o lema: ‘Um só re-
banho, um só pastor’.”

No mês seguinte, nova carta ao presidente, conseqüência da anterior:

“Aí vai o meu voto. Dou-o ao Afonso Arinos por diversos motivos, sendo
um deles ser a vaga do Eduardo Prado. (Arinos era casado com Antonieta, sobrinha
de Eduardo Prado, filha do conselheiro Antônio Prado e irmã de Paulo Prado.) Para a Ca-
deira do Francisco de Castro, eu votaria com prazer no Assis Brasil. Por que
não se reuniram as eleições num só dia?”

Na mesma data, Nabuco informaria a Rodrigo Octavio:

“Recebi a circular e respondo mandando ao Machado a minha cédula. Infe-


lizmente não podemos acompanhar o movimento e a cabala literária, que é
a parte mais interessante das eleições acadêmicas. O nosso voto vai como
que petrificado, e não pode acompanhar as flutuações do escrutínio. (...)
Para a vaga de Eduardo Prado, eu não podia votar senão no Arinos, que nos
dará dele um belo retrato, de que precisamos muito.”

Em seguida, expõe opinião, que foi sempre a sua, favorável a que, tal como a
Francesa, a Academia Brasileira não se destinasse apenas a escritores, mas tam-
bém abrigasse expoentes de outros quadrantes da vida nacional:

“V. sabe que eu penso dever a Academia ter uma esfera mais lata do que a lite-
ratura exclusivamente literária, para ter maior influência. Nós precisamos de
um certo número de grands seigneurs de todos os partidos. Não devem ser mui-
tos, mas alguns devemos ter, mesmo porque isso populariza as Letras.”

A carta seguinte, de janeiro de 1902, responde a sugestão feita por Macha-


do de que Nabuco recebesse Afonso Arinos na Academia, missão que caberia,
afinal, a Olavo Bilac, amigo fraterno do escritor mineiro:

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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

“Estou às suas ordens para escrever a resposta ao discurso do Arinos, com al-
gumas condições, porém. A primeira é que V. me dará tempo. A segunda que
o Arinos me mandará o que o Eduardo escreveu; tenho tudo isso nos meus
papéis e caixões, mas fora de mão. (...) A terceira é que o discurso do Arinos
me seja remetido. Isso é óbvio, mas que depois dele corra o meu prazo, pelo
menos de três meses. Aceitando V. e ele tudo isso, está tomado o compromis-
so. Para mim, trabalhos desses são uma distração necessária dos meus estudos
da questão. No caso de ser o Assis Brasil candidato agora na vaga do Francis-
co de Castro, vote por mim nele. Esta é a minha cédula. Se for preciso, corte o
nome acima, que vai por minha mão, e meta o retalho no envelope.”

E não esconde a nostalgia da ausência. “Quanta saudade me faz tudo isso!


Não tenho outro desejo senão acabar o mais cedo possível a minha tarefa e re-
colher-me à Academia.”
Havia quase quatro anos que Nabuco se ocupava e preocupava-se com a de-
licada questão de fronteiras cuja defesa lhe fora confiada. Assim, a carta que
dirigiu a Machado, de Pau, em fevereiro de 1903, cuida, sobretudo, das me-
mórias que ia construindo, monumentos de erudição histórica, geográfica e
cartográfica, de embasamento jurídico, solidez documental e lógica expositiva:

“Proximamente os exemplares da minha primeira Memória serão expedidos


para o Ministério do Exterior. Irão primeiro os exemplares em francês, e
mais tarde os exemplares em português. Desejo que V. tenha um destes; a
coleção dos documentos, cinco volumes, segue com os exemplares da Memó-
ria em francês (...). Além disso, há um atlas. São, ao todo, oito volumes, for-
mando, porém, duplicata, por causa da tradução. Veja se o Rio Branco o
inscreve na lista para a Memória em português, da qual lhe mandarei 200
exemplares. (...) Eu mesmo ainda não escrevi ao Rio Branco sobre essas re-
messas, de maneira que lhe dou a primeira notícia. Sei que V. gosta delas.
Inscreva-se, portanto, para a Memória em português. Deixe a Memória em
francês e os documentos ser distribuídos à vontade da Chancelaria.”

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Afon so A ri no s, fi lho

E, referindo-se ao barão, manifesta apreço pelo grande ministro, ao admi-


rar-lhe a atuação:

“Suponho que V. está em excelentes relações com o nosso homem. As notí-


cias do Acre estão chegando boas, e vejo que ele, além de chanceler, se fez
comandante-em-chefe.”

Em agosto, de Challes, Nabuco voltaria ao assunto, embora

“muito cansado. Desta vez, em 6 meses darei 6 vol. para juntar aos 8 da pri-
meira Memória. Fico, assim, em 14. Em dezembro darei mais 2, 16. É um re-
cord, uma biblioteca de in folio em um ano. A Memória já está aí na Secretaria.
Os meus amigos e os que se interessam pelo assunto devem recorrer ao Rio
Branco.”

Mas não olvidava a Academia, encontrando tempo para evocar as eleições


que nela transcorriam:

“Meu voto é pelo Jaceguai, caso ele se tenha apresentado. Se o Quintino


se apresentar, será do Quintino, pela razão que dou na carta inclusa quan-
to aos da velha geração. Não creio que o Jaceguai se apresente contra o
Quintino. Nesse caso V. explicaria a este o meu compromisso; a minha
idéia sobre a representação da Marinha, que mesmo a ele não deve ceder o
passo; a minha animação ao Mota (Artur Silveira da Mota, Barão de Jaceguai)
dizendo-lhe que, desde a fundação, eu pensei que homens como ele, Lafa-
yette, Ferreira Viana, Ramiz Galvão, Capistrano e os outros que V. sabe
deviam ser dos que têm a honra de ser presididos por Machado de Assis.
(...) No caso de não haver candidatura Quintino nem Jaceguai, o meu
voto será pelo Euclides da Cunha, a quem peço que então V. faça chegar a
carta inclusa. Se o Jaceguai nos freqüenta ainda, mostre-lhe o que digo
dele nessa carta ao Euclides.”

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Enquanto isso, disputava-se a questão do Pirara, para definir os limites en-


tre o Brasil e a então Guiana Britânica. Em sua memória sobre O Direito do Bra-
sil, Joaquim Nabuco demonstrou claramente a posse e o domínio brasileiros
sobre os rios Amazonas, Negro e Branco. A área em litígio era parte da bacia
do Rio Branco. O Tratado de Arbitramento, firmado entre o Brasil e a Ingla-
terra a 6 de novembro de 1901, a delimitara. Nesta zona, o Rupununi, princi-
pal afluente do Essequibo, hoje corre por inteiro em território da Guiana, em-
bora os primeiros exploradores ingleses não o atravessassem sem autorização
portuguesa. O Tacutu define, agora, a fronteira do Brasil com a Guiana. O Rio
Branco nasce da sua confluência com o Uraricoera, e vem a constituir, com o
Negro e o Amazonas, nosso principal sistema fluvial. Um dos seus tributários
traz ao Tacutu as águas do rio Pirara, chave do vale do Amazonas e única via
de comunicação entre as bacias amazônica e do Essequibo.
No Congresso de Utrecht, em 1713/14, o representante britânico, Lord
Bolingbroke, já dizia, a propósito do Amazonas, que “nem os franceses, nem
os ingleses, nem qualquer outra nação (exceto Portugal e Espanha) deve ter
uma entrada aberta para esse país”. A ocupação do grande rio pelos portugue-
ses se estendera, desde o século XVII, para além da confluência do Rio Negro,
de que o Branco é afluente. A posse dos três cursos d’água por parte de Portu-
gal, e, depois, do Brasil, nunca fora disputada até 1838, quando o explorador
Schomburgk, alemão naturalizado inglês, viajou para a região, enviado pela
Royal Geographical Society. Em suas primeiras memórias, ele chegara a reconhecer
os limites reivindicados pelo Brasil, ao referir-se ao Rupununi como “linha de
fronteira da Guiana Britânica”. Assim, Nabuco podia afirmar na memória fi-
nal, entregue em Roma a 25 de fevereiro de 1904: “O Brasil sustenta que a
Inglaterra não tem nenhum direito de atravessar o Rupununi e estabelecer-se
na bacia do Amazonas.”
O fatal equívoco brasileiro foi haver aceitado, como árbitro, o rei da Itália.
Pois, se a argumentação histórica e jurídica de Joaquim Nabuco não podia ser
contestada, outras, bem diversas, eram as motivações do monarca, baseadas em
interesses a barganhar com a Inglaterra na África e no Mediterrâneo. Incorreto

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Afon so A ri no s, fi lho

de caráter, Vítor Manuel III – que se dobraria pusilânime, por duas décadas, a
todas as exigências, vontades e caprichos do ditador Benito Mussolini, para
atraiçoá-lo tão logo o viu decaído do poder de outrora – não hesitou em exor-
bitar das atribuições a ele conferidas pelo Tratado de Arbitramento, que o le-
variam a resolver juridicamente a pendência. Declarando-se impossibilitado
de fazê-lo, dividiu o território entre os estados litigantes, quando a própria
Inglaterra já havia oferecido ao Brasil, que a declinara por injusta, solução mais
favorável para nós: dois terços da zona disputada, e acabou recebendo três
quintos.
De fato, um alto funcionário do Foreign Office apresentara a Nabuco verbal-
mente, em agosto de 1900, uma linha divisória que não atribuía a qualquer dos
contendores supremacia sobre o Rio Pirara, o qual passaria a servir de frontei-
ra. Fronteira esta quase toda fluvial, terminando no Rupununi. Mas Joaquim
Nabuco, cônscio dos nossos direitos sobre toda a extensão do território con-
testado, descartou a proposta, que nos deixava com 22.930 quilômetros qua-
drados, restando à Inglaterra 10.270. Porém, como o Brasil a rejeitara, a Ingla-
terra retirou-a, sem apresentá-la oficialmente. E Nabuco, com escrúpulo tal-
vez excessivo, não a levou ao conhecimento do árbitro. O rei acabou por con-
ferir 13.570 quilômetros quadrados ao Brasil e 19.630 aos britânicos. Em be-
nefício destes últimos sobretudo, conforme palavras do representante brasilei-
ro à esposa, Vítor Manuel abriu “o rombo através do qual a Inglaterra pene-
trou na bacia do Amazonas, depois de ter impedido a França de fazê-lo”.
O diplomata e acadêmico Carlos Magalhães de Azeredo servia, então, em
Roma, na Legação junto ao Vaticano, e seguia os trâmites da questão, embora
sem dela participar. Eis o testemunho que deixou em seu Diário, ainda inédito,
quando se conheceu o laudo arbitral, datado de 6 de junho de 1904:

“Foi dada esta manhã a sentença, e é-nos contrária. Quero dizer, recebemos
do território contestado não só muito menos do que pedimos, mas um pou-
co menos até do que a própria Inglaterra nos oferecia confidencialmente
para truncar a questão; ora, todos sabem que a Inglaterra não costuma ofe-

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recer senão aquilo que sabe muito bem não ser seu... Quanto à sentença em
si própria, dizem os meus amigos da Missão que é um monstro jurídico,
contraditório, e não arbitral mas arbitrária, e que, se o tratado feito com a
Inglaterra não nos obrigasse a aceitá-la incondicionalmente, poderíamos
protestar e impugnar-lhe os fundamentos. Eles conhecem a questão, estu-
daram-na cinco anos, e entre nós, brasileiros, não têm por que dissimular a
verdade; se, de fato, a razão não estivesse da nossa parte, longe de ser uma
agravante isso para a nossa contrariedade, seria um consolo. Eu conheço o
assunto apenas vagamente, mas não é preciso ser forte nele para reconhecer
que o laudo de Vítor Manuel III está longe de ser uma produção brilhante;
em resumo, ele declara que, depois de ler as memórias e os documentos
apresentados por ambas as partes (uns 25 volumes!), continua a ignorar a
quem aquele território pertence; e que, não podendo dividi-lo ao meio (!),
adota uma linha geográfica que lhe parece a mais eqüitativa e natural para
resolver a questão. Verdadeiramente, parece que o jovem monarca, ao me-
nos por vaidade, poderia mostrar um pouco mais de talento. Se ele não sa-
bia a quem pertencia o território, devia, antes de pronunciar o seu extrava-
gante laudo, chamar a Inglaterra e o Brasil para ver se obtinha um acordo.
Pedia-se-lhe uma sentença jurídica, não uma sentença de Salomão; ele exce-
deu as suas atribuições. Além disso, pela primeira vez é invocado, em um lau-
do arbitral, um argumento extremamente perigoso, sobretudo para os paí-
ses fracos; e é que a intenção de exercer a soberania não basta para contar a
mesma soberania como incontestável, mas que é precisa a ocupação efetiva
do território; (...) a verdade é, porém, que as nações fortes não provam essas
cousas por argumentos jurídicos, mas pela autoridade das armas; de modo
que só às débeis a inovação pode fazer mal. Que a sentença do rei seja espe-
cialmente política, isto é, que se tenha inspirado em motivos de interesse in-
teiramente estranhos aos elementos históricos e jurídicos da questão, não
posso pô-lo em dúvida. Vítor Manuel III é árbitro, também, em outra ques-
tão semelhante, entre a Inglaterra e Portugal; dizem que, desejando ele favo-
recer o rei D. Carlos, que é seu primo-irmão, e não podendo declarar-se

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duas vezes contra a Inglaterra, favoreceu-a agora, sacrificando o Brasil. Será


assim? Não sei. Mas, seja como for, o laudo é sinceramente considerado in-
justo por pessoas esclarecidas, que estudaram cabalmente o assunto. (...)
Essa conseqüência de desmoralizar o princípio em si é o que mais me preo-
cupa diante do laudo do rei; a decisão deste tem, no mais, uma importância
secundária. Perder uma questão desta ordem não representa para um gover-
no desastre nenhum, derrota nenhuma; quando se recorre ao arbitramento,
admite-se a dúvida sobre os próprios direitos, e deve-se admitir, portanto, a
possibilidade de os ver anulados; de resto, o Brasil é grande demais para sen-
tir, agora, a perda de uns tantos mil quilômetros quadrados completamente
desertos, e parece que a situação garantida pelo laudo aos ingleses não ofe-
rece estrategicamente perigo algum para nós; não será pelas cascatas do Ta-
cutu que eles penetrarão no Amazonas...”

Azeredo prosseguiu, pouco depois:

“Chegam continuamente telegramas do Brasil para Nabuco; o povo brasi-


leiro tem-se portado admiravelmente nessa ocasião (...). Não só o governo,
mas o Congresso, a imprensa inteira, inúmeras corporações de toda a espé-
cie, enfim, todos os órgãos da opinião pública porfiam em louvar e exaltar o
nosso eminente compatriota. O povo brasileiro foi sempre magnânimo, e,
portanto, era natural que, mais cedo ou mais tarde, reconhecesse os serviços
extraordinários do Nabuco, independentes do seu resultado (...). O Nabu-
co se comove com todas essas manifestações de afeto, mas está sempre tris-
te, e eu entendo isso. Afinal, como quer que seja, não é o triunfo, que ele es-
perava, e a que se sentia com direito. O seu trabalho de cinco anos foi hercú-
leo, e ele não pode reconhecer, sem pesar, que foi inútil, acrescendo a me-
lancolia humana e filosófica de ver que, com ele, a causa da razão foi venci-
da. Na sua idade (Joaquim Nabuco tinha, então, 54 anos), essa Missão Especial é,
talvez (Deus queira que não), o último grande ato da vida pública, que co-
nheceu tantas vitórias, e não representa uma vitória... Eu, de resto, nas mi-

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Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

nhas conversas de todos os dias com ele, tenho combatido energicamente


essa impressão dolorosa, mostrando-lhe que ela é, como de fato eu a consi-
dero, fruto da preponderância exagerada e usurpadora do momento atual,
no seu espírito, sobre o conjunto harmônico da sua vida. Esta questão de li-
mites é transitória e secundária, mesmo na história pessoal do Nabuco; ele é
e será sempre, na alma e na memória da pátria, o apóstolo triunfante do
abolicionismo; essa é a sua grandeza imortal, que ninguém lhe pode tirar,
essa é a soberania moral que faz dele não só um dos mais gloriosos filhos do
Brasil, mas um dos mais belos e puros tipos da humanidade no século
XIX.”

Da Academia, não podia faltar, nem demorou, vinda em junho, a palavra


confortadora de Machado de Assis:

“Aqui esperávamos, desde muito, a solução do árbitro. Conhecíamos a ca-


pacidade e a força do nosso advogado, a sua tenacidade e grande cultura, o
amor certo e provado a este País. Tudo isso foi agora empregado, e o traba-
lho, que vale por si, como a glória de o haver feito e perfeito, não perdeu
nem perde uma linha do que lhe custou e enobrecerá a todos. Esta foi a ma-
nifestação da imprensa e dos homens, políticos e outros.”

Sob pressão das circunstâncias e afazeres, só em outubro Nabuco responde-


ria, sensibilizado com as palavras do amigo, e já, em parte, apaziguado quanto
ao desfecho da pendência:

“Há tempos, recebi a sua boa carta sobre a sentença, carta verdadeiramente
primorosa, e uma das que mais vezes hei de reler, quando tiver tempo para
voltar ao passado e viver a vida das recordações. (...) Não estou certo de que
não teríamos perdido tudo sem o esforço que fiz para coligir e deduzir a
nossa prova, e, por isso, me vou desvanecendo de ter reivindicado a melhor
parte, para nós, da divisão feita pelo árbitro. Não foi uma partida vencida,

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Afon so A ri no s, fi lho

foi uma partida empatada, e isto, quando o outro jogador era a Inglaterra, é,
por certo, meia vitória.”

Anos depois, Rui Barbosa escreveria a Joaquim Nabuco:

“Ultimamente, (...) fui levado a abrir as tuas Memórias sobre a questão da


Guiana, (...) ferrei-me a elas e as li todas. Tal a magia da superioridade com
que as redigiste. Acabei (...) cheio de admiração. As qualidades que ali de-
senvolveste, de crítica, de argumentação, de lógica, de bom senso, de clare-
za, de tino e de amenidade, elegância, brilho, com um fôlego de encher to-
dos aqueles volumes, sem fastio ou vulgaridade, em matéria tão seca, tediosa
e longa, fazem desse trabalho teu porventura a mais notável expressão do
teu talento. (...) Conviria (...) atrair a distraída curiosidade e chamar a aten-
ção dos estudiosos a esse episódio pouco animador nas iniqüidades da justi-
ça internacional.”

Após a morte de Nabuco, a viúva testemunharia que esta carta constituíra a


última grande alegria da sua vida.
Em 1932, Afonso Arinos visitou, na Suíça, Guglielmo Ferrero, por reco-
mendação de Magalhães de Azeredo, velho amigo de ambos. Ferrero, que ali se
refugiava da perseguição política de Mussolini, foi membro correspondente
desta Academia, onde fizera uma série de conferências em 1907. Num ensaio
sobre A Diplomacia Americana e o Brasil nos Últimos 75 Anos, Arinos conta que,

“na minha juventude, (...) em Genebra, tive a honra de freqüentar a casa do


ilustre professor italiano Guglielmo Ferrero, então exilado na Suíça. E de
Ferrero ouvi que os estudos feitos pelos técnicos italianos reconheciam o
direito do Brasil, mas que o rei mandara alterar as conclusões do laudo, para
consentir em assiná-lo”.

Confirmava-se, assim, a colusão de interesses entre as monarquias britânica


e italiana, em detrimento do Brasil.

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A resposta de Nabuco a Machado mostrou, por outro lado, sensível melho-


ra no estado de espírito do nosso ilustre representante injustiçado, que nela já
se entretinha com o próximo pleito na Academia:

“E a nova eleição? Não falo da eleição do futuro presidente (da República),


da qual parece já se estar tratando aí, mas da eleição do novo acadêmico.
O Bandeira escreveu-me, e eu teria prazer em dar-lhe o meu voto, mas o
meu voto é seu, V. aí é quem vota por mim. Eu pensei que o Jaceguai desta
vez se apresentaria. Ele, porém, achou mais fácil passar Humaitá do que as
baterias encobertas do nosso reduto. Quais são essas baterias? A do Gar-
nier lhe daria uma salva de... quantos tiros? Onde estão as outras? Eu nada
sei, mas, se ele for candidato, meu voto é dele, pela razão que fui eu quem
lhe sugeriu o ano passado a idéia. V. terá uma carta minha dizendo que ele
não se apresentaria contra o Quintino. Não sei por que o Quintino não
foi membro fundador. (...) Se entretanto ele se apresentar, julgo melhor
esperar outra vaga para a combinação e eleger dois ao mesmo tempo. Eu
acho bom dilatar sempre o prazo das eleições, porque, no intervalo, ou
morre algum dos candidatos mais difíceis de preterir, ou há outra vaga. A
minha teoria já lhe disse, devemos fazer entrar para a Academia as superio-
ridades do país. A Academia formou-se de homens na maior parte novos;
é preciso, agora, graduar o acesso. Os novos podem esperar, ganham em
esperar, entrarão, depois, por aclamação, em vez de entrarem agora por
simpatias pessoais ou por serem de alguma côterie. A Marinha não está
representada no nosso Grêmio, nem o Exército, nem o Clero, nem as Artes,
é preciso introduzir as notabilidades dessas vocações que também culti-
vem as Letras. E as grandes individualidades também. (...) Com o Jaceguai
entrava a glória para a Academia. É verdade que ele nenhuma afinidade ti-
nha com o Martins Júnior, mas a Cadeira ainda está vaga – é a Cadeira de
Taunay, e patrono Otaviano, e desses dois o Jaceguai seria o substituto in-
dicado por eles mesmos. Nas minhas cartas, V. achará o compromisso
que tomei para a eleição do Assis Brasil. Não sei se este será candidato.

63
Afon so A ri no s, fi lho

Não o será sem o seu concurso, V., então, decida por mim, sem prejuízo
do Jaceguai. Em uma palavra, V. é o guarda da minha consciência literária,
ausente do prélio como me acho.”

Mas, antes de terminar, Nabuco não contém um último suspiro de incon-


formidade contra a baixeza de que ele e o Brasil foram vítimas por parte do rei
da Itália. “V. compreenderá agora por que tardei tanto em responder-lhe,
era-me preciso escrever uma nova Memória, e tenho horror, hoje, às Memórias.”
Em abril de 1905, Nabuco enviou, de Londres, a Graça Aranha, para ser
ofertado a Machado de Assis em sessão acadêmica, um ramo do carvalho sob
cuja fronde se assentava Tasso, por ele colhido em Roma, e hoje preservado
entre as relíquias desta Academia.
A luta que mantivera contra as pretensões descabidas da Inglaterra abalou
bastante, por outro lado, a devoção sempre mostrada por Joaquim Nabuco à
cultura inglesa e às instituições britânicas. É de se notar, ademais, que sua ad-
miração pelos Estados Unidos vinha de longe. Rio Branco, convidado para o
Itamarati por Rodrigues Alves, chegara a sugerir, em seu lugar, a indicação de
Nabuco ao presidente-eleito, mas este insistiu em nomear o barão. Quando o
grande chanceler o informou de que aceitara o cargo, Nabuco respondeu-lhe,
em setembro de 1902:

“Como lhe disse, sou um forte monroísta, e, por isso, grande partidário da
aproximação cada vez maior entre o Brasil e os Estados Unidos. Em vez de
pensar em mim para suceder-lhe daqui a dois anos, V. deveria, talvez, em fa-
zer-me seu colaborador naquela política.”

Foi, assim, com prazer, em janeiro de 1905, nomeado pelo presidente Ro-
drigues Alves para a primeira Embaixada que o Brasil abria no mundo, em
Washington, mantendo-se as demais chefias de missão em nível de legação.
Das Montanhas Brancas, onde Nabuco descansava, veio sua primeira carta
dos Estados Unidos para Machado de Assis, em julho. Sempre atento às elei-

64
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

ções acadêmicas, graceja com as hesitações de Jaceguai e condena a formação


de grupelhos internos na Academia:

“O meu voto para a vaga do Patrocínio é para o Jaceguai. Acho que ele deve
apresentar-se. Não compreendo que ele, que não teve medo de passar Hu-
maitá, o tenha de atravessar a praia da Lapa (rumo ao prédio do Silogeu, onde então
se alojava a Academia, no local em que hoje se encontra o Instituto Histórico). Se ele não
for candidato e o Artur Orlando o for, votarei neste. Seria lastimável se as
candidaturas as mais brilhantes que em nosso país possam surgir, como es-
sas, recuarem diante de qualquer suspeita de haver na Academia grupos for-
mados, e fechados. Devemos torná-la nacional.”

No mês de outubro, o embaixador informaria a Magalhães de Azeredo, em


Roma, que mandara, “pelo telégrafo, o (...) voto em favor do Mário de Alen-
car. Pago assim a minha dívida, ou antes, expio a minha falta para com o pai”,
José de Alencar, cuja obra Nabuco criticara severamente na mocidade.
Em 1906, Joaquim Nabuco presidiria, no Rio de janeiro, a 3ª Conferência
Pan-Americana, à qual conseguiu trazer o secretário de Estado Elihu Root.
Era a primeira vez em que um chefe da diplomacia americana se deslocava dos
Estados Unidos. A pedido de Nabuco, Rio Branco obtivera do presidente Ro-
drigues Alves dar o nome de Palácio Monroe ao pavilhão onde se efetuava a
Conferência. De regresso ao seu posto diplomático, o nosso embaixador em
Washington, sem o saber, despedia-se para sempre do Brasil.
Datada de março de 1907, nova carta de Nabuco a Machado, vinda da ca-
pital americana, mantinha a preferência pelos mesmos candidatos anteriores às
eleições acadêmicas:

“O meu voto é pelo Dr. Artur Orlando, se ele for o único candidato, e, ten-
do competidores, ainda é dele, exceto se os competidores forem o Assis Bra-
sil e o Jaceguai, que têm compromisso meu anterior em cartas escritas a V.
mesmo. Não me deixe o Dr. Orlando naufragar sem uma combinação que

65
Afon so A ri no s, fi lho

lhe garanta a eleição para a futura vaga. Um homem como ele pode ser ven-
cido numa eleição acadêmica, não pode, porém, ser derrotado sem pesar
para os eleitores. A nossa balança é de pesar ouro somente. Ele mesmo, es-
tou certo, não se aborreceria de ser segunda escolha em competição com o
Dr. Assis Brasil, que já teve uma (ou duas?) non réussites. Eu desejava-lhe, en-
tretanto, uma vaga que lhe permitisse falar de Pernambuco largamente, mas
teria que escolher entre mim e o Oliveira Lima, e nenhum dos dois ele podia
preferir ao outro. Em todo caso, alguém mais da filosofia que o Dória. Mas
é odioso esperar vagas determinadas.”

Em 27 de maio, Nabuco reiterava:

“Como, para a vaga do Barão de Loreto, só concorreu o Dr. Artur Orlando,


o meu voto, prometido a ele sob condição de não ser o Jaceguai nem o Assis
Brasil candidato, é dele ipso facto. Sob a mesma condição, dou o meu voto na
eleição para a vaga do Dr. Teixeira de Melo ao Paulo Barreto. Concorrendo
ou o Jaceguai ou o Assis Brasil, o meu voto será do que concorrer. Concor-
rendo os dois, do Jaceguai. Terei sido quem o animou a apresentar-se, e te-
nho sempre sustentado que a Marinha falta na nossa Academia (assim
como o Exército [...]), por isso votarei no Jaceguai, por mais que me custe
não poder dar também o meu voto ao meu colega Assis Brasil. Queira V.
votar por mim de acordo com estas instruções.”

No ano seguinte, em fevereiro, Nabuco explicaria a Machado o alcance dos


sentimentos que o inclinavam a favor dos Estados Unidos na política interna-
cional:

“Muito prazer tive com a simpatia mútua entre o nosso povo e os america-
nos. A Haia ia-nos fazendo perder de vista a nossa única política possível.
Eu, em diplomacia, nunca perdi um só dia o sentido da proporção e o da
realidade. É que um indivíduo pode sempre fugir à desonra e ao cativeiro,

66
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

mas as nações não se podem matar como ele. Alguns milhares morrerão em
combate, mas a totalidade passa sob o jugo. As maiores nações procuram,
hoje, garantir-se por meio de alianças; como podem as nações indefesas
contar somente consigo? E, desde que o nosso único apoio possível é este,
por que não fazermos tudo para que ele não nos venha a faltar? Essa é a mi-
nha intuição, e tive, por isso, o maior prazer com esse renascimento da sim-
patia entre as duas nações por ocasião da visita da esquadra americana.”

Esta não fora sempre, todavia, sua visão dos Estados Unidos. Em fevereiro
de 1899, escrevendo, do Rio, a Carlos Magalhães de Azeredo, Nabuco di-
zia-lhe estar entre os

“convencidos de que a nossa decadência nacional começou; que entramos


na órbita americana, como Cuba ou as Filipinas, o México ou a Nicarágua;
que nossa evolução far-se-á no mesmo sentido que a dos outros satélites de
Washington”.

Numa carta a Machado de Assis, enviada em junho de 1907, Joaquim Na-


buco já reconhecia que a saúde começava a faltar-lhe (ele faleceria cerca de um
ano e meio mais tarde, no princípio de 1910, aos 60 anos; e Machado, em se-
tembro de 1908, aos 69):

“Mando-lhe duas coleções dos discursos que andei ultimamente proferin-


do, uma para a nossa Academia. V. verá, com prazer, que me tornei um pro-
pagandista, aqui, dos Lusíadas. (...) Vou receber, este ano, o grau de doutor
em Letras por Yale, e a Universidade de Chicago convidou-me para pro-
nunciar o discurso oficial no encerramento do ano letivo, ou no dia da cola-
ção dos graus, o que é uma grande honra. V. vê que estou fazendo render,
aqui, as poucas forças que me restam. Também comprometi-me a pronun-
ciar, para o ano, o discurso oficial em um dos grandes dias da Universidade
de Wisconsin, e já me anunciaram o convite de outra universidade. Estou

67
Afon so A ri no s, fi lho

muito contente, pelo Brasil, com todas essas honras, que são principalmente
feitas ao país.”

A derradeira mensagem de Joaquim Nabuco ao presidente da Academia,


enviada de Hamilton, Massachusetts, a 3 de setembro de 1908 (26 dias antes
da morte de Machado), dava conta de sua impressão sobre o Memorial de Aires,
último romance do amigo, que acabara de enviar-lho:

“Quanto ao seu livro, li-o letra por letra, com verdadeira delícia, por ser
mais um retrato de V. mesmo, dos seus gostos, da sua maneira de tomar a
vida e de considerar tudo. É um livro que dá saudade de V., mas também
que a mata. E que frescura de espírito!”

Na véspera da morte de Machado de Assis, Nabuco escrevera, em 28 de se-


tembro de 1908, a Graça Aranha:

“O estado do Machado causa-me verdadeira consternação. Como passare-


mos sem ele? (...) Deus lhe dê um declínio curto e um fim suave, se ele co-
meçou a entrar na decadência. Mas também a quanta ternura, a quanto cari-
nho de nossa parte essa não obriga!”

Três dias depois, em carta ao cunhado, Hilário de Gouveia, ele reconhecia que

“a morte do Machado de Assis empobreceu-nos muito. Não temos outro


espírito como aquele. Perco também um amigo. (...) Mas, no estado de iso-
lamento em que se achava, e com aquela doença, foi uma bondade de Deus
levá-lo, deixá-lo descansar”.

No mês seguinte, Nabuco enviou a Magalhães de Azeredo

“o nosso abraço de pêsames um ao outro pela perda do nosso querido Ma-


chado de Assis. Que afeição paternal ele lhe tinha! Eu sou muito contrário a

68
Jo aqu i m Nabu c o , ac adê m i c o e di p l o m a ta

estátuas. Estão-se tornando de uma banalidade (...) revoltante, como os


nossos antigos títulos. A verdadeira veneração se provaria pela compra da
casa onde ele viveu tantos anos. Mas era preciso que ele fosse outra coisa, e
não um simples poeta, para se poder levantar dinheiro para tanto. Assim é a
vida. A verdadeira glória é pobre.”

Em setembro de 1909, Joaquim Nabuco se queixava da saúde a Azeredo:

“Há meses não estou bem. Cheguei fatigado e exausto ao cimo da vida. Eu
não fui feito para velho, e estou envelhecendo, não por minha conta, mas por
conta dos que me querem o mais tempo possível neste mundo, por mais dife-
rente que eu vá ficando de mim mesmo. É uma combinação de doenças que
me cerca por todos os lados, um verdadeiro círculo vicioso. Ontem o médico
veio despedir-se, e disse-me que eu estava outro, muito melhor do que che-
guei. É preciso acreditá-lo, mas, por mim mesmo, eu não o afirmaria.”

Foi, entretanto, em missiva anterior a Machado, escrita em agosto de 1908,


que Nabuco anteviu o próprio fim:

“Muito lhe agradeço suas boas palavras sobre minhas conferências de Yale.
A 28 de agosto, devo estar em Chicago, já lhe disse. Aqui, levo uma vida de
peregrino, de universidade em universidade. Mas que saudades da nossa
Academia e da Revista, de que ela nasceu! É uma grande privação viver longe
dos amigos, em terra estranha, como estrangeiro. Sobretudo acabar assim.
Mas espero voltar ainda antes da noite.”

Joaquim Nabuco não regressaria ao Brasil antes da noite. A “Indesejada das


gentes” o levou em 17 de janeiro de 1910. Ele pudera, contudo, visualizar à dis-
tância, plenamente realizados, o fulgor da própria mocidade, o brilho da madurez,
o exemplo que sua vida gloriosa daria, sempre, aos jovens brasileiros. Contempla-
va-os desde a velhice, ao mesmo tempo precoce e olímpica. Mas, como lembrou
André Gide, o fato de ser vista do poente não torna a aurora menos bela.

69
C ulto da Im o r t a l ida de

Eduardo Prado:
Duas visões
EDUARDO PRADO E A POLÊMICA
DO IBERISMO E DO AMERICANISMO

J o sé M u r i lo d e C a r va l h o Ocupante da
Cadeira 5
na Academia
“Salvo algumas exceções, pode-se dizer que os formados Brasileira de
Letras.
nos Estados Unidos são, na concorrência brasileira, os que
menos sabem e os que menos preparo têm. [...] se eles pu-
dessem transformariam a sociedade brasileira num ar-
remedo simiesco dos Estados Unidos, que eles julgam o
primeiro país do mundo, porque há por lá muita eletrici-
dade e bons water closets.” Eduardo Prado, A Ilu-
são Americana, p. 104-105.

É extraordinária a história dos Prados. Estabelecidos em São


Paulo desde o século XVIII, expandiram seu poder e in-
fluência no século XIX sob a liderança do terceiro Antônio Prado, o
Barão de Iguape. O filho do barão, Martinho Prado, teve papel deci-
sivo nessa expansão ao orientar os negócios da família para o cultivo
do café. Seu filho, Martinho Junior, continuou a obra do pai, tor-

71
José Mu ri lo de C arvalho

nando-se pioneiro na exploração do novo oeste paulista, onde a família mon-


tou imensas fazendas de 14 mil alqueires e mais de 2 milhões de pés de café. A
riqueza própria e alianças matrimoniais estratégicas com outras famílias im-
portantes de São Paulo e também de fora da província, como os Mellos Fran-
cos, de Minas Gerais, renderam aos Prados posição de grande preeminência
social na província, com transbordamentos para o cenário nacional.
Uma das características marcantes dos Prados foi não terem restringido sua
influência ao campo da economia, da sociedade e da política. Distinguiram-se
também, e muito, no terreno cultural e intelectual. Na cultura, ficou famoso o
salão de Dona Veridiana Prado, e é conhecido o apoio que Paulo Prado deu ao
movimento modernista de São Paulo. No mundo intelectual, três Prados são
com freqüência incluídos em listas de intérpretes do Brasil, número altíssimo
para uma só família. São eles Eduardo Prado, seu sobrinho, Paulo Prado, e o
sobrinho-neto, Caio Prado Jr. Eduardo e Caio Prado Jr. foram incluídos neste
ciclo de palestras sobre intérpretes do Brasil organizado pela Academia Brasi-
leira de Letras. As obras consideradas fundadoras de interpretações do Brasil
são A Ilusão Americana, de Eduardo Prado, publicada em 1893, o Retrato do Brasil,
de Paulo Prado, publicada em 1928, e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio
Prado Jr., de 1942.1
Um traço comum aos Prados, marca de seu comportamento e de sua pro-
dução intelectual, é a grande independência de opinião, a coragem de ir contra
a corrente, a heterodoxia. Na vida social, o melhor exemplo dessa coragem de
enfrentar preconceitos foi dado por Veridiana Prado, mãe de Eduardo. Casa-
da aos 13 anos com o tio, Martinho Prado, ocupando posição de preeminên-
cia na vida social de São Paulo, não hesitou em se separar do marido. Mais que
se separar, assumiu a direção dos negócios da família, tornou-se uma verdadei-
ra matriarca e fez de sua casa um importante salão social e literário. Foi anfitriã
de D. Pedro II em 1887.

1
Na mais recente seleção de intérpretes, organizada por Silviano Santiago, publicada pela Nova
Aguilar, estão presentes Retrato do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo.

72
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

Exemplo ainda mais radical de rebeldia social foi dado por Eleutério Prado,
primo de Eduardo. Aborrecido com o veto da família a um casamento deseja-
do, Eleutério passou a viver abertamente com duas cozinheiras negras. O fato
lhe valeu o apelido preconceituoso de “negreiro”. Tradição oral da família, co-
lhida por Darrel Levi, conta que, quando Antônio Prado levou o primeiro
time brasileiro de futebol para jogar na França, um primo francês que assistia
ao jogo lhe perguntou, apontando um jogador: “Quem é aquele macaco?”.
“Não é macaco, meu caro, é seu primo”, retrucou Antônio Prado. O “meu
caro” entra aí como contribuição minha ao caso.2
No campo político, o melhor exemplo de rebeldia no século XIX foi o de
Martinico Prado, irmão de Eduardo. Os Prados tinham sido estreitamente li-
gados à Monarquia e à Casa Imperial desde o Primeiro Reinado. Uma prova
do apreço em que eram tidos foi a concessão do título de Barão do Iguape feita
por D. Pedro II ao terceiro Antônio Prado em 1848. Embora parte dessa tra-
dição, Martinico não hesitou em aderir à República desde os bancos escolares.
Aderiu também à maçonaria, mas ser maçom na época não era indicador de
rebeldia. Estava tão convencido dos valores republicanos que adotou métodos
muito liberais no governo de sua casa, formada pela mulher e doze filhos. Aca-
bou perdendo o controle de sua pequena república doméstica, desestabilizada
pela rebeldia dos jovens republicanos. Recorreu, então, aos serviços de uma
preceptora alemã que residia no Rio de Janeiro. Ina von Binzer enfrentou com
valentia os endiabrados republicanos a quem o pai, para exibir suas convicções
políticas, dera nomes romanos. A filha mais velha (a única bem comportada)
era Lavínia. Vinham a seguir Caio Graco, Plínio, Cornélia, Corina, Cássio,
Fábio, Cícero, etc. Fraülein von Binzer teve grande dificuldade em controlar
seus romanos, como os chamava, sobretudo Caius Gracchus e Plinius, que se
engalfinhavam com freqüência. Em uma das brigas, Caius jogou Plinius pela
janela. Subvertendo a História antiga, os bárbaros romanos brasileiros derro-

2
Darrel Erville Levi. The Prados of São Paulo: an Elite Brazilian Family in a Changing Society, 1840-1930.
Tese de doutoramento, Universidade de Yale, 1974, p. 131.

73
José Mu ri lo de C arvalho

taram a civilizada germânica, e Ina perdeu o emprego. Para sorte sua, a mágoa
foi compensada pela descoberta de um amor inglês. A Martinico só restou
confinar os filhos em internatos.3 Um de seus netos, Caio Prado Jr., continuou
sua tradição política de rebeldia, aderindo ao Partido Comunista na década
de 1930.
A política introduziu muitas divergências na família, sobretudo após a pro-
clamação da República, quando Eduardo e Martinico deixaram de se falar e
houve desentendimento até mesmo entre Eduardo e Antônio, o irmão mais ve-
lho que também era monarquista. Embora tais conflitos não se transferissem
para o âmbito dos negócios, são testemunho do alto grau de independência
pessoal dos Prados.
Eduardo não foi exceção no capítulo da rebeldia. O fato de ser o irmão mais
novo, nascido vinte anos depois do primogênito, pode ter reforçado, como su-
gere Darrel Levi, sua independência pessoal, espírito crítico, inquietação inte-
lectual. Eça de Queirós, amigo íntimo de longa convivência, apontava a curio-
sidade como sua principal característica. Como caçula, não caía sobre suas cos-
tas a responsabilidade pelo destino da família e pela continuidade da tradição.
As manifestações de sua independência foram constantes em todas as fases de
sua curta vida de 41 anos, iniciada em 1860.
O período de formação de Eduardo Prado, basicamente o que vai do final
da Guerra da Tríplice Aliança até a proclamação da República, foi marcado
por profunda renovação intelectual e política. Na Filosofia, abandou-se o
ecletismo em favor do Positivismo, do Evolucionismo, do Materialismo. Na
Política, o Republicanismo criava forças, embalado pela publicação do ma-
nifesto de 1870. Na religião, a aliança da Igreja e do Estado era abalada pela
prisão dos bispos e pelo crescimento do anticlericalismo. As faculdades de
Direito, Medicina e Engenharia tornaram-se os principais centros de agita-
ção das novas idéias.

3
Ver Ina Von Binzer. Os Meus Romanos:Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Brasil. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2.ª ed. 1980.

74
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

Eduardo Prado ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo em 1875 e


terminou o curso em 1881. Em ambiente dominado pelo Liberalismo e pelo
Republicanismo, decidiu lutar contra a corrente e criar, com o apoio de alguns
colegas, um jornal monarquista conservador, O Constitucional. Ao sair da Facul-
dade, desinteressou-se aparentemente de disputas políticas e ideológicas. Tor-
nou-se um bon vivant, opção muito facilitada pela riqueza da família. Mesmo aí,
no entanto, não faltou pequena rebeldia, agora familiar. Suas andanças serviam
também para adiar o casamento com uma prima, que dona Veridiana insistia
em lhe impor. Fez longas viagens pelo mundo, de que resultaram dois livros de
observações. Não gostou dos Estados Unidos e acabou fixando residência em
Paris, onde teve uma garçonnière na rua Casimir Périer e montou um luxuoso
apartamento na Rue de Rivoli. O apartamento tornou-se ponto de encontro
de brasileiros ilustres de passagem pela cidade. Olavo Bilac, um dos convivas,
na resposta a Afonso Arinos quando da posse deste na ABL, deixou descrição
pitoresca desses encontros marcados por intenso falatório em meio a fumara-
da tão densa que tornava o ar irrespirável.4
A proclamação da República interrompeu inesperadamente os folguedos
parisienses. O jovial, sociável e meio blasé Eduardo Prado foi tomado de indig-
nação cívica. De Portugal, onde se encontrava, escreveu seis cartas contunden-
tes contra o novo governo, sob o pseudônimo de Frederico de S. As cartas fo-
ram inicialmente publicadas na Revista de Portugal e logo depois em volume inti-
tulado Fastos da Ditadura Militar no Brasil. Os Fastos são magnífico exemplo de
panfleto político, escritos com paixão, em estilo irônico, cortante, demolidor.
Demonstram que o Monarquismo de Eduardo Prado dos tempos dos bancos
escolares representava mais do que simples vontade de ser do contra. Havia
nele convicções profundas sobre Política, História e Cultura. Na República,
atacou, sobretudo, sua origem militar, que rebaixava o Brasil ao nível dos pro-
nunciamentos hispano-americanos, e sua natureza ditatorial. Acusou-a de su-
primir uma liberdade que fora garantida no Brasil pela Monarquia durante 67

4
ABL. Discursos Acadêmicos. Rio de Janeiro, 2005, tomo I, p. 166-67.

75
José Mu ri lo de C arvalho

anos, de promover o rompimento brusco de uma longa tradição histórica e


cultural, de adotar a tola crença na fraternidade americana, expressa esta última
no desastrado acordo assinado por Quintino Bocaiúva com o governo argenti-
no. Ao final do texto, Frederico de S. se autodefine apropriadamente como al-
guém que “aborreceu a traição, amou a liberdade e detestou a tirania”.
Nos anos seguintes, Eduardo Prado continuou a batalha contra o novo re-
gime ao lado de outros monarquistas, transformados no que Maria de Lourdes
Janotti chamou de os subversivos da República.5 Em plena revolta da Armada
contra Floriano Peixoto, ao final de 1893, escreveu em sua fazenda do Brejão
o segundo libelo contra a República, A Ilusão Americana. Publicado em São Pau-
lo, todos os exemplares postos a venda foram comprados imediatamente. No
mesmo dia, a polícia proibiu o livro e no dia seguinte recolheu o resto da edi-
ção. Nada melhor do que as palavras do próprio autor para descrever o ato do
confisco. Elas são uma excelente amostra do estilo mordaz de Eduardo Prado:

“[...] compareceram à porta da oficina um delegado de polícia acompanhado


de um burro que puxava uma carroça. O delegado entrou pela oficina e man-
dou ajuntar todos os exemplares do livro, mandando-os amontoar na carroça.
O burro e o delegado levaram os livros para a repartição da polícia”.6

Na seqüência dos acontecimentos, Eduardo Prado teve que fugir do país


para evitar os cárceres do Marechal Floriano Peixoto. A fuga obrigou-o a fazer
longa viagem a cavalo até a Bahia. Uma segunda edição do livro foi publicada
em Paris em 1895, pela Armand Colin.
É, sobretudo, por A Ilusão Americana que Eduardo Prado entra na lista de in-
térpretes do Brasil. Sobre esse livro concentrarei minha análise. Sua recepção
tem sido muito diversificada, como aponta corretamente Sérgio Paulo Roua-
net. A esquerda fez dele um precursor do antiamericanismo e da teoria do im-

5
Maria de Lourdes Mônaco Janotti. Os Subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.
6
A Ilusão Americana. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 109.

76
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

perialismo. A direita viu nele uma antecipação da Action Française de Charles


Maurras. Outras interpretações, como a do próprio Rouanet, vêem Eduardo
Prado como representante de uma modernidade conservadora. Este é o caso,
por exemplo, do mais recente trabalho que conheço, uma tese de doutoramen-
to do padre Mark Hillary Hansen, que define o autor de A Ilusão como um re-
belde Whig, monarquista e progressista, ao estilo dos liberais ingleses.7 Leitu-
ras distintas e recepção diferenciada atestam a natureza polissêmica do texto.
Tal polissemia é exatamente o que lhe confere a qualidade de clássico. É por
isso que A Ilusão Americana, panfleto político escrito no calor da hora, não enve-
lheceu e ainda figura nas listas de textos fundadores.
A Ilusão Americana é uma critica contundente à onda de imitação dos Estados
Unidos que se viu reforçada no Brasil após a proclamação da República. É pre-
ciso distinguir no texto uma dimensão política e outra cultural. Pelo lado polí-
tico, ele contém uma análise fria e realista das relações internacionais. Mostra
que a fraternidade entre as repúblicas americanas é uma mentira. O autor com-
bate, sobretudo, a idéia de uma suposta fraternidade entre Estados Unidos e
Brasil, ou melhor, a idéia de uma postura fraternal dos Estados Unidos em re-
lação ao Brasil. Sua frase inicial não deixa margem a qualquer dúvida:

“Pensamos que é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confrater-


nização que se pretende impor entre o Brasil e a grande república anglo-sa-
xônia.” (p. 11).

Com argumentação devastadora, apoiada em abundante exemplificação,


demonstra a ausência de qualquer generosidade no comportamento dos norte-
americanos em relação ao Brasil e aos outros países do continente. Referin-
do-se especificamente ao período republicano, argumenta que os tratados assi-
nados em Washington pelo ministro brasileiro Salvador de Mendonça em

7
Ver nesta edição, Sérgio Paulo Rouanet. “Eduardo Prado e a Modernidade”, e Mark Hillary
Hansen. “Eduardo Prado, Liberal Monarchist and Catholic Nationalist: a Whig rebel in Brazil´s old
Republic”. Tese de doutoramento, Universidade de Columbia, 2002.

77
José Mu ri lo de C arvalho

nada beneficiavam o Brasil, e cita observação ofensiva ao país, feita pelo Almi-
rante Benham, o mesmo que comandou a intervenção norte-americana duran-
te a revolta da Armada. Benham teria dito em homenagem que lhe prestaram
que a amizade do Brasil se baseava em respeito e “um pequeno toque de algo
mais”. As gargalhadas da platéia revelaram o sentido do “algo mais”: o medo e
a subserviência (p.63).
Essa dimensão política foi a responsável pela apropriação de Eduardo Pra-
do como precursor das idéias e posturas antiamericanas e das críticas ao impe-
rialismo ianque. Ela deve fazer do livro leitura popular hoje no Ministério das
Relações Exteriores. Mas o que gostaria de salientar aqui é a dimensão cultural
da análise de Eduardo Prado. Sua crítica pode ser lida como sendo feita sobre-
tudo ao Brasil pela mania de copiar os norte-americanos. Mas por que não os
copiar se os considera a raça mais enérgica da espécie humana, construtora de
uma nação forte e poderosa? A razão estaria em características culturais da so-
ciedade.

“A civilização norte-americana – diz ele – pode vislumbrar as naturezas in-


feriores que não passam da concepção materialista da vida. A civilização
não se mede pelo aperfeiçoamento material, mas sim pela elevação moral. O
verdadeiro termômetro da civilização de um povo é o respeito que ele tem
pela vida humana e pela liberdade.”

E resume: “O espírito americano é um espírito de violência” (p.101-102).


Os americanos teriam pouco respeito pela vida humana, como o atestam a
pena de morte e os linchamentos. Os imigrantes sulistas que vieram para o
Brasil trouxeram para cá sua ferocidade no trato dos escravos e a prática dos
linchamentos.
Dois outros traços que marcariam a civilização norte-americana seriam a
plutocracia e a corrupção. Uma economia capitalista plutocrática, uma socie-
dade violenta, uma política corrupta, eis a imagem que Eduardo Prado trans-
mite dos Estados Unidos. É isso que não quer ver copiado no Brasil. Boa parte

78
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

de sua crítica à República tem a ver exatamente com os traços norte-america-


nos que ela exibe, sobretudo a violência e o materialismo. Pelo lado cultural, os
Estados Unidos não teriam feito contribuição alguma a nosso país, nem mes-
mo por seus viajantes. Entre esses últimos, as únicas exceções teriam sido os
geólogos Frederick Hart e Orville Derby. Derby era amigo de Eduardo Prado.
Mas em que seria diferente o Brasil, que valores haveria a preservar da con-
taminação ianque? Eduardo Prado não se estende sobre este ponto. Mas afir-
ma que dos Estados Unidos estamos separados “não só pela grande distância,
como pela raça, pela religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tra-
dições do nosso povo” (p. 11).

Mais especificamente, argumenta que, se o espírito americano é de vio-


lência,

“o espírito latino, transmitido aos brasileiros mais ou menos deturpado


através dos séculos e dos amálgamas diversos do iberismo, é um espírito
jurídico que vai, é verdade, à pulhice do bacharelismo, mas conserva
sempre um certo respeito pela vida humana e pela liberdade” (p. 102).

Em outro texto, escrito em 1896, coloca a questão em termos mais am-


plos e dramáticos: o problema da América seria o da convivência dos povos
latinos e anglo-saxônios, correndo os primeiros o risco de perderem suas lín-
guas e suas pátrias para os últimos, que se consideram destinados à domina-
ção universal.8
A dimensão cultural da análise foi a que mais contribuiu para o caráter fun-
dador do livro, pois possibilitou sua leitura dentro do debate sobre a questão
de nossa identidade cultural como nação, um debate que nos persegue desde
sempre. O tema já fora levantado, dez anos antes da publicação de A Ilusão, por
Aníbal Falcão. Eduardo Prado não cita esse autor, talvez por não ter pretendi-

8
Eduardo Prado. Collectâneas, vol. II, p. 162, 173.

79
José Mu ri lo de C arvalho

do escrever texto erudito, talvez por não o conhecer, talvez por detestar os po-
sitivistas. Em Fórmula da Civilização Brasileira, Falcão desenvolve as concepções
comteanas sobre a natureza das civilizações, aplicando-as ao Brasil. Segundo
ele, a fórmula da civilização brasileira seria

“o prolongamento americano da civilização ibérica, a que cada vez mais se


assimilarão, até a reunificação total, os índios e os negros importados, ou os
seus descendentes”. 9

O momento crucial de nossa história teria sido, segundo Falcão, não fosse
ele um pernambucano, a derrota e expulsão dos holandeses. Chocavam-se na
luta contra os flamengos mais que dois países ou dois impérios. Batiam-se
duas civilizações, a ibérica católica e a batava protestante. De um lado, a preo-
cupação com o coletivo, o moral, o poético, a centralização; de outro, o indivi-
dualismo, a razão, a ação, a dispersão democrática. Os Estados Unidos, segun-
do Falcão, eram parte da civilização protestante e herdeiros de seus vícios. O
país, diz ele,

“[...] cada vez mais degenera de pátria americana em uma verdadeira e imen-
sa sociedade de mercadores, sem passado, sem futuro, e com uma religião
característica: o culto do Dólar” (p. 131-32).

Partindo de pontos de vista distintos, Aníbal Falcão e Eduardo Prado apro-


ximam-se na identificação das diferenças entre as duas civilizações. O positi-
vista Falcão valoriza até mesmo a contribuição do Catolicismo e da Monar-
quia para configurar a superioridade da civilização ibérica. Era radical a ponto
de ver como ameaça a nossa civilização a entrada de imigrantes europeus, so-
bretudo os de crença protestante. Miscigenando suas raças, incorporando ín-
dios e negros, o Brasil prefiguraria a reunificação final da espécie humana. Ste-
fan Zweig assinaria embaixo.

9
Anníbal Falcão. Fórmula da Civilização Brasileira, Rio, 1933, p. 89.

80
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

A preocupação com o choque entre as duas civilizações não se limitava ao


Brasil. A expansão norte-americana e as intervenções nos países do continente
começavam a turvar a admiração que os latino-americanos sempre tiveram pela
pujança econômica do vizinho do Norte. A guerra hispano-americana de 1898,
da qual resultara a incorporação de Cuba e Porto Rico ao domínio norte-
americano, e a conquista das Filipinas, no mesmo ano, foram marcos impor-
tantes na reavaliação da imagem dos Estados Unidos. Outros pensadores lati-
no-americanos, na mesma linha de Eduardo Prado, começaram a temer pela
sobrevivência de seus países e culturas. Nesse contexto, as raízes ibéricas, antes
menosprezadas, passaram a ser revistas como fator positivo de identidade.
Em 1900, foi publicado no Uruguai um livro que se tornou a mais conheci-
da exposição das diferenças entre a civilização ibérica e a norte-americana.
Trata-se de Ariel, de autoria de José Henrique Rodó.10 Inspirando-se em per-
sonagens da peça A Tempestade, de Shakespeare, Rodó apresentou o mago Prós-
pero, Duque de Milão, como um sábio professor falando a seus discípulos.
Fez de Ariel, o gênio alado, uma alegoria da nobreza do espírito e um modelo
para os jovens. Usou Calibã, o escravo bárbaro e repugnante, para simbolizar a
preocupação exclusiva com necessidades materiais, o antimodelo.
Rodó, aparentemente, não conhecia a obra de Eduardo Prado. Se a conhecia,
não a citou. Mas, como o brasileiro, atacou o que chamou de “nordomania”, o
entusiasmo acrítico pelos Estados Unidos que estaria varrendo a América Lati-
na. Anteviu o espectro de uma América deslatinizada por vontade própria. Con-
tra essa conquista moral, propôs a defesa dos valores de nossa tradição cultural,
étnica e histórica. A civilização norte-americana baseava-se, segundo ele, no tra-
balho, na liberdade, na iniciativa. Mas sua única finalidade era a busca do bem-
estar material. Nos Estados Unidos, o êxito material era um fim em si mes-
mo, não havia ideal de futuro. O utilitarismo reduzia a força do direito, esvazi-
ava a virtude cívica, desencorajava a alta cultura, a busca do belo e do verdadei-
ro. Na política, gerava a mediocridade, a venalidade, a corrupção. Na sociedade,

10
José Henrique Rodo. Ariel. São Paulo: Editora da Unicamp, 1991.

81
José Mu ri lo de C arvalho

produzia o reino da plutocracia. O americanismo, enfim, definido pelo próprio


Rodó, seria a soma do utilitarismo visto como destino humano e da igualdade
na mediocridade, tomada como norma de medida social (p.69).
Rodó admitia a existência de características admiráveis na civilização norte-
americana e admirava suas conquistas materiais. Mas, ao se resumir à vontade e
à utilidade, essa civilização não podia ser modelo para a América Latina. Não
se devia desnaturalizar o caráter dos povos. A América precisava manter a dua-
lidade original de sua Constituição, dois pólos que se opunham mas não se ex-
cluíam e poderiam eventualmente fundir-se em futuro distante. Ao modelo
utilitário Rodó contrapunha os ideais de Ariel, que se baseariam no império da
razão e do sentimento, na generosidade, no desinteresse, na espiritualidade,
nos valores culturais. Ao predomínio dos interesses materiais sobrepunha a
hegemonia dos interesses da alma, dos direitos do espírito. E sonhava com o
dia em que a realidade permitisse pensar que a Cordilheira dos Andes fora ta-
lhada para ser o pedestal definitivo da estátua de Ariel.
Mas a herança ibérica estava ameaçada na América Latina pela imigração e,
sobretudo, seguindo aqui as pegadas de Renan, pelo avanço da democracia ni-
veladora e destruidora das hierarquias naturais. A vida do espírito seria incom-
patível com um igualitarismo radical. A democracia seria, na expressão de Re-
nan, a entronização de Calibã. Em conferência feita em 1935, Francisco Cam-
pos usaria também a metáfora de Calibã para indicar a tumultuosa entrada das
massas na política, perturbando a tranqüilidade da democracia liberal. Vale a
pena citá-lo pela beleza literária da frase:

“[...] a própria democracia começa a perceber os traços terríveis da Gór-


gona multitudinária e a distinguir, intervindo na ária composta para o de-
licado registo de voz de Ariel, o baixo profundo de Calibã entoando o
canto de sua libertação das geenas históricas do ostracismo político”.11

11
Francisco Campos. A política e as Características Espirituais do Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1939.

82
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

Mas, se para Rodó as massas ameaçavam os valores da elite, para Francisco


Campos elas anunciavam a vinda do César carismático. Eram outros tempos.

A caracterização dos contrastes entre as duas Américas não é muito diferen-


te em Rodó, Eduardo Prado e Aníbal Falcão. Os três opõem os valores morais,
espirituais e estéticos que predominariam na América Latina, graças à tradição
ibérica, ao utilitarismo, materialismo e empirismo norte-americanos, de ori-
gem protestante. Em favor dos três, diga-se que não aderiram às visões racistas
dominantes na época. Esse era, de fato, um traço comum aos pensadores con-
servadores do período. Neles, como fica também claro no conhecido Porque me
Ufano do Meu País, do Conde Afonso Celso, publicado em 1901, a valorização
do passado incluía quase sempre uma visão positiva da herança étnica.
Mas havia diferenças entre Eduardo Prado e Rodó, na forma e no conteú-
do. Quanto à forma, o segundo produziu um ensaio, não um panfleto. Daí o
caráter mais elaborado de seu tratamento do tema. No conteúdo, Eduardo
Prado leva vantagem na medida em que escapou à visão inconfundivelmente
elitista e conservadora de Rodó. O paulista não tinha receio do povo e chegou
a ver no caboclo o símbolo de nossa raça. Mas a diferença mais importante é
que a visão do uruguaio da identidade latino-americana era essencialista e na-
turalizante, enquanto que a de Eduardo Prado era mais histórica, com as van-
tagens que serão apontadas à frente.
O tema da identidade ibérica confrontada com a anglo-saxônica foi reto-
mado com força em nossos dias no debate sobre iberismo e americanismo. É a
melhor prova da atualidade de A Ilusão Americana, que pode ser considerada
uma defesa do iberismo. Para evitar mal-entendidos, anoto que, no discurso
que proferiu ao substituir Eduardo Prado na Academia Brasileira de Letras,
Afonso Arinos atribuiu a seu antecessor uma posição que chamou de america-
nista, e que seria partilhada por Rio Branco e Mauá. Mas uma leitura cuidado-
sa do texto mostra que Eduardo Prado foi americanista “segurando-se ao ro-

12
ABL. Discursos Acadêmicos, p.143-45.

83
José Mu ri lo de C arvalho

chedo da nossa história”, defendendo suas melhores expressões ibéricas, a


Monarquia e a Igreja.12 Isto quer dizer que o que Afonso Arinos chamou de
americanismo de Eduardo Prado está mais próximo do que hoje se chama de
iberismo. Nos termos do debate atual, americanismo refere-se exclusivamente
à civilização norte-americana.
O texto mais influente na discussão recente, na realidade o que reinaugurou
o debate, foi, sem dúvida, o do norte-americano Richard M. Morse. Escrito
em 1981, O Espelho de Próspero retoma o título de outro livro de Rodó, publica-
do em 1909.13 Mas altera o simbolismo dos personagens de Shakespeare.
Próspero não é mais o sábio benevolente, mas os prósperos Estados Unidos.
Seu espelho, isto é, sua imagem invertida, é a América Latina. Outra importan-
te diferença é que, pela primeira vez, a comparação entre as duas tradições cul-
turais é feita por um anglo-saxão que vê a civilização ibérica como superior à
sua própria.
O Espelho de Próspero é um ensaio criativo, erudito e provocador. Demonstrando
grande conhecimento da história intelectual ocidental, Morse busca demons-
trar que a Ibéria não é o atraso do Ocidente, mas, para usar uma expressão per-
feita de José Guilherme Merquior, é o Outro Ocidente, derrotado mas não eli-
minado. Argumenta que teria havido duas opções de modernidade no Ociden-
te, uma elaborada pela Espanha no século XVI, outra pela Inglaterra no século
XVII. A opção espanhola, fruto de um Estado precocemente organizado, às
voltas com a fundação de um novo mundo, foi buscar suas raízes no Tomis-
mo. Daí resultou uma concepção de sociedade baseada numa visão comunitá-
ria e arquitetônica, na defesa de um Estado forte, posto que inclusivo, civiliza-
dor e responsável pela promoção da justiça e do bem comum. Em outros ter-
mos, poderíamos chamar essa opção de moderna, mas não de burguesa.
A Inglaterra, por seu lado, e por extensão todo o mundo anglo-saxão, fez
sua escolha um século mais tarde, sob o impacto das revoluções protestante,
científica, comercial e política. Dessa opção, cujo principal formulador seria
13
Richard M. Morse. O Espelho de Próspero. Cultura e Idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.

84
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

John Locke, resultou uma visão individualista, contratualista e desencantada


da sociedade, com ênfase na liberdade, na defesa dos direitos individuais, na
competição e no utilitarismo. O mundo daí derivado é regido pela concorrên-
cia, pelo conflito, pelo desencantamento, pelo utilitarismo. Seria a modernida-
de tipicamente burguesa. Morse não faz segredo de sua própria opção. Na li-
nha dos filósofos frankfurteanos, detecta uma série de patologias nesse mundo
individualista e utilitário e imagina a possibilidade de que a tradição ibérica
possa oferecer alternativas mais humanas.
O Espelho de Próspero, como era de esperar, provocou grande debate, salientan-
do-se as críticas duras de Simon Schwartzmann e as mais amigáveis de José
Guilherme Merquior.14 Não posso analisar aqui o debate ou produzir minha
própria crítica, o que já foi feito em outro lugar.15 Meu propósito é mostrar a
persistência da problemática enfrentada em A Ilusão Americana. Morse não cita
Eduardo Prado, mas, tivesse conhecimento de sua obra quando escreveu O
Espelho, certamente a convocaria para seu lado do debate. A defesa que Eduardo
Prado faz da civilização luso-brasileira como sendo mais humana, mais cordial,
embasada num catolicismo includente, numa monarquia paternalista, toleran-
te e defensora da liberdade é perfeitamente compatível com o iberismo defen-
dido por Morse.
O debate, que é também um embate entre iberismo e americanismo no
Brasil, tem, aliás, uma história bem mais longa. A admiração pelos Estados
Unidos, com a conseqüente rejeição da herança ibérica, está presente desde a
Inconfidência Mineira. Ela adquiriu características de nordomania durante o
Segundo Reinado, na obra de Tavares Bastos. Os republicanos a utilizaram

14
Ver Simon Schwartzman. “O espelho de Morse”. Novos Estudos Cebrap, n.o 22 (1988) e José
Guilherme Merquior. “O Outro Ocidente”. Presença, n.o 15 (abril, 1990). Ver também a resposta de
Morse a Schwartzman. “A miopia de Schwartzman”, Novos Estudos Cebrap, n.o 24 (julho, 1989) e a
tréplica de Schwartzman. “O gato de Cortázar”. Novos Estudos Cebrap, n.o 25 (1989). Numa
perspectiva mais ampla, ver o estudo de Luiz Werneck Vianna. A Revolução Passiva. Iberismo e
Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/Revan, 1997.
15
Ver José Murilo de Carvalho. “Richard Morse e a América Latina: ser ou não ser”. In Antonio
Candido et alii. Um Americano Intranqüilo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992, p. 47-57.

85
José Mu ri lo de C arvalho

como arma de propaganda desde o manifesto de 1870, em que se afirmava


ser a Monarquia incompatível com os interesses dos estados americanos.
“Somos da América, dizia o manifesto, e queremos ser americanos”. De al-
gum modo, podemos ler muitas discussões políticas havidas entre nós desde
o governo Collor como um confronto entre as duas visões de mundo. É qua-
se ocioso falar na atual nordofobia da política externa. Estão em jogo nesse em-
bate concepções de sociedade, de Estado, de valores sociais e políticos retra-
çáveis às formulações de Morse e, mais remotamente, às Aníbal Falcão e
Eduardo Prado.
Termino fazendo um comentário teórico que me leva de volta a Eduardo
Prado. As discussões sobre identidades nacionais em geral, e sobre a brasileira
em particular, parecem-me pouco produtivas quando adotam posturas natura-
lizantes e essencialistas, quando supõem que tais identidades são atributos fi-
xos e imutáveis de determinadas comunidades. Uma das dificuldades do con-
ceito de iberismo de Morse está na suposição de que uma identidade formada
no século XVI possa persistir, e fora da matriz, até o final do século XX. Segu-
ramente, poderíamos falar da longa duração cultural, mas a própria condição
de subordinação econômica e cultural das ex-colônias, mesmo após a indepen-
dência, nos leva a sermos cautelosos nesse campo e darmos mais atenção ao
peso da História. Identidades, nesse caso, como nação na concepção de Renan,
seriam produtos em constante elaboração, e não algo congelável em determi-
nados momentos, ou mesmo em definições rígidas.
Após duras batalhas contra o novo regime, Eduardo Prado começou a se
voltar mais para o estudo da História, contando para isso com a inestimável
orientação de Capistrano de Abreu e do Barão do Rio Branco. Ao morrer
prematuramente aos 41 anos, vitimado pela mesma febre amarela que levara
seu irmão Caio, já achara tempo para produzir um estudo sobre “O Catoli-
cismo, a Companhia de Jesus e a colonização do Brasil” e outro sobre o pa-
dre Manoel de Morais. O primeiro foi lido na Faculdade de Direito de São
Paulo em 1896, como a segunda conferência preparatória do tricentenário
da morte de Anchieta. Em discurso no Instituto Histórico e Geográfico de

86
Edua rdo Pra do e a Po lêmi c a do Iberi smo e do A m e r i c a n i s m o

São Paulo, pronunciado em 1889, fez o elogio da história e do estudo do


passado, como tarefa patriótica.
Em A Ilusão Americana não se estende na descrição das características da civi-
lização brasileira ao contrastá-la com a norte-americana. Mas nas críticas à Re-
pública feitas nos Fastos fica claro que sua concepção de identidade nacional
está ligada estreitamente à história, a instituições, valores e ações que se foram
desenvolvendo ao longo do tempo e marcaram nosso ser nacional. Ela tem a
ver com a Monarquia, com o Catolicismo, com a conquista e defesa do territó-
rio, com a preservação da liberdade, com a abolição da escravidão feita de ma-
neira incruenta, com a tolerância, com o civilismo, com o progresso na ordem.
É irrelevante, para o ponto que tento demonstrar, discutir se tudo isso corres-
pondia ou não à verdade. O que importa é que Eduardo Prado sugere uma vi-
são não essencialista da identidade brasileira, isto é, uma visão de identidade
em permanente construção. Sua reação à República se devia mais à ruptura
brusca que o novo regime pretendera fazer com um patrimônio que se cons-
truía lentamente do que a uma rejeição da mudança.
Como bom conservador, Eduardo Prado sabia que promessas de mudanças
radicais freqüentemente produzem decepções e frustrações, quando não retro-
cessos. Mais uma indicação de sua atualidade.

87
EDUARDO PRADO E A
MODERNIDADE

Serg io P a u l o R o u a ne t

Ocupante da
Cadeira 13
na Academia
Brasileira de
O s grandes homens são freqüentemente vítimas dos seus ad-
versários e, mais ainda, dos seus admiradores. Foi o triste
destino de um dos maiores amigos de Eduardo Prado, Eça de Quei-
Letras.
rós, e do próprio Eduardo Prado.
Eça de Queirós teve contra si a implacável hostilidade de todos
os conservadores, que não lhe perdoavam nem as Farpas, dirigida
contra a pasmaceira cultural e política de Portugal, nem O Crime do
Padre Amaro, dirigido contra certas frações do clero, nem Os Maias,
em que não poupou sua própria geração, nem os artigos em que se
batia contra a patriotice oficial, representada, entre outros, por Pi-
nheiro Chagas.
Mas ele sempre soube lidar com seus críticos. Foram seus admira-
dores póstumos que quase o derrubaram.
Minha geração ainda lia Eça, mas era difícil manter nosso entu-
siasmo quando nos defrontávamos com os adeptos mais fervorosos
do romancista. Eram senhores pelo menos septuagenários, em geral
desembargadores aposentados, que citavam nas horas menos opor-
tunas trechos inteiros de A Cidade e as Serras. Eram contra o palavrão
no teatro, diziam que a crise do Brasil era de caráter, votavam na
UDN e usavam expressões como data venia e “salvo melhor juízo”.
Quando veio o golpe militar, muitos contribuíram com suas luzes
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

jurídicas para a redação dos atos institucionais. Conheci um deles, um velho


embaixador, que me confessou que, diante da iminência do advento do comu-
nismo no Brasil, no tempo de João Goulart, e do fato para ele inevitável de que
seria internado num campo de concentração, tinha mobilizado suas relações
para que fosse enviado, ao menos, para um campo mais civilizado, onde pu-
desse, junto com outros embaixadores, jogar xadrez e ler Eça de Queirós.
Como é possível que o escritor mais subversivo de sua geração tenha gerado
adeptos tão bem-pensantes?
Como se sabe, não é raro que os grandes criadores produzam tipos que
saem da obra, encarnando-se em figuras de carne e osso. Todo parisiense en-
contra diariamente no metrô ou no restaurante o perfumista César Birotteau, o
médico Bianchon ou o arrivista Rastignac. Em Londres, damos cotoveladas
em Mr. Micawber, em Mr. Pickwick e em outras criações de Dickens. Eu pró-
prio já fiz várias viagens de ponte aérea sentado entre Gabriela e Dona Flor.
Pois bem, algo de semelhante se passou com Eça de Queirós. Alguns dos seus
personagens adquiriram vida e podem ser vistos no Chiado e na Rua do Ouvi-
dor, mas por uma fatalidade não são nunca os personagens modernos, como
Jacinto e João da Ega, e sim os personagens arcaicos, como o Conde de Gouva-
rinho e o Conselheiro Acácio. Isso não seria tão grave, se não fossem justamen-
te esses senhores os que mais admiram Eça de Queirós. São eles que compõem
o campo dos queirosianos de hoje. Podem apostar que numa roda de pessoas
que citam Eça de Queirós haverá pelo menos um velho magistrado com cara
do Conde de Abranhos e um velho diplomata com o pigarro daquele ministro
da Finlândia, que dizia sempre: “É grave, excessivamente grave.” O resultado é
que gostar de Eça, hoje em dia, é quase um acacianismo. Só há uma solução:
um contragolpe que o liberte dos personagens arcaicos que se apoderaram
dele, permitindo que os personagens modernos possam assumir a hegemonia.
Mutatis mutandis, essas reflexões se aplicam ao grande amigo de Eça, Eduar-
do Prado. Também ele despertou iras entre os contemporâneos, que o acusa-
ram de falta de patriotismo por ter falado mal no exterior do regime político
brasileiro, depois da proclamação da República. E também ele teve o privilé-

89
S erg io Pau lo Ro u anet

gio dúbio de ser elogiado pelas pessoas erradas, com base em dois mal-enten-
didos opostos.
Há um mal-entendido de esquerda, que, partindo de sua crítica aos Estados
Unidos em A Ilusão Americana, vê em Eduardo Prado uma espécie de precursor
do antiamericanismo atual. Há traços dessa interpretação no prefácio da edi-
ção de 1958, da Brasiliense. Ainda que sem perceber a significação do imperia-
lismo norte-americano como etapa no desenvolvimento do Capitalismo, Edu-
ardo Prado teria detectado em toda a sua brutalidade a tendência dos Estados
Unidos à dominação mundial. Atribuiu a uma nação o que na verdade faz par-
te da lógica de um sistema social, e nisso consistiu seu erro. Apesar disso, foi
“profeta sem saber.” Seu livro

“vale pela denúncia que faz dos métodos norte-americanos, no fundo ine-
rentes à finalidade de lucro que move a economia capitalista, a qual encon-
trou possivelmente na América do Norte as condições mais favoráveis para
o seu desenvolvimento. Hoje os que se insurgem contra a dominação eco-
nômica dos Estados Unidos encontram em Eduardo Prado um aliado”.1

Mas há também um mal-entendido de direita, que parte do Monarquismo e


do Catolicismo de Eduardo Prado para ver nele um pioneiro dos movimentos
extremistas que se aglutinariam na França em torno de Maurras e da Ação
Francesa. Insuperável, nessa linha, é o Sr. Sebastião Pagano.2 Para Pagano,
Eduardo Prado era um tradicionalista rígido, que, desgostoso com o ceticismo
e a falta de princípios morais e religiosos dos intelectuais europeus, chegara à
conclusão de que somente a aliança do trono e do altar poderia salvar o Brasil.
Sem dúvida, Eduardo Prado fora filho do seu tempo e não pudera vislumbrar
toda a verdade. Em vez de defender a Monarquia autêntica, a Monarquia auto-
ritária, sem qualquer compromisso com o Liberalismo e o Parlamentarismo,

1
Eduardo Prado, A Ilusão Americana (São Paulo: Editora Brasiliense, 1958) p. 3.
2 Sebastião Pagano, Eduardo Prado e sua Época (São Paulo: Editora Cetro, s.d.).

90
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

ele defendera a Monarquia tal como ela existia ultimamente no Brasil, conta-
minada pelas mazelas do século, as mesmas que Pio IX com toda razão havia
condenado no Sylabus. Foi a culpada indulgência com essas forças dissolventes,
combinada com a ação de uma sociedade secreta, a maçonaria, que precipitou
o fim do Império. Mas Eduardo Prado era de tão boa cepa paulista, vinha de
uma família tão limpidamente aristocrática, tivera o privilégio, graças à sua ve-
neranda mãe D. Viridiana, de uma educação católica tão sólida, que conseguiu
superar as limitações do seu tempo, acedendo aos princípios eternos que estão
na base da verdadeira moral e da verdadeira política. Nisso teve um mérito es-
pecial, porque precisou livrar-se da influência dos seus mestres franceses,
como o sutil heresiarca Renan, professor de ceticismo, e dos seus amigos por-
tugueses, entre os quais Eça de Queirós, autor de um romance pornográfico, A
Relíquia, que para cúmulo do desrespeito se passava na terra de Nosso Senhor.
É verdade que no final de sua vida Eça de Queirós se reconciliou com sua pá-
tria e com a religião, resultado que Pagano não hesita em atribuir à ação seráfi-
ca de Eduardo Prado. Sim, apesar de um certo diletantismo no início de sua
vida, Eduardo Prado despertou, com a catástrofe da queda do Império, para a
consciência de suas responsabilidades religiosas e políticas, dedicou o resto de
sua curta vida a uma causa nobilíssima, a restauração da Monarquia, e teve uma
morte santa, aos 41 anos, pronunciando palavras edificantes.
Positivamente, Pagano é um personagem de Eça de Queirós. Que persona-
gem? Se é verdade que Eduardo Prado foi um alter ego de Fradique Mendes, o
civilizadíssimo filho espiritual do romancista português, basta procurar na
Correspondência de Fradique Mendes uma figura que se assemelhe a Pagano. Logo
encontramos essa figura: é Pacheco, homem de imenso talento, sem o qual
Portugal não seria o que é entre as nações. Pacheco falava pouco, mas quando
saía do seu fecundo silêncio era para dizer coisas que aterravam a oposição e
enchiam de veneração as bancadas governistas. Uma vez aparteou um padre
zarolho que discursava sobre a liberdade. De pé, com o dedo espetado, Pache-
co afirmou, num tom que traía a segurança do pensar e o saber íntimo: “Ao
lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Reconhecemos na fra-

91
S erg io Pau lo Ro u anet

se de Pacheco uma idéia cara a Pagano. A semelhança é tão grande que pode-
mos imaginar que um dia seja publicado um livro de Pacheco julgando Fradi-
que Mendes, como Pagano publicou um livro julgando Eduardo Prado. Po-
dem ter certeza de que em seu livro Pacheco provaria que, apesar das aparên-
cias, Fradique era um católico ultramontano e legitimista. O estilo de Pacheco
seria tão decoroso quanto o de Pagano. Como Pagano, Sua Excelência usaria
adjetivos irrepreensíveis: todos os homens seriam ínclitos ou preclaros, todas
as mulheres, sobretudo quando mães, seriam virtuosas ou venerandas, e o pa-
triotismo, sobretudo quando se tratasse de patriotismo paulista, seria sempre
ou acrisolado ou acendrado.
Em suma, para as duas orientações, Eduardo Prado se aproximou da verda-
de, mas não a alcançou plenamente. Para a esquerda, ele bateu às portas do
Marxismo, mas não entrou, por não conhecer a teoria leninista do Imperialis-
mo. Para a direita, ele bateu às portas da TFP, mas não entrou, por não ter ade-
rido aos princípios teocráticos de Joseph de Maistre e Bonald.
Voltamos ao ponto de partida: é preciso salvar os grandes homens dos seus
admiradores. Pior que matar por ódio é matar por excesso de amor. “For all men
kill the thing they love”, escreveu Oscar Wilde. “The brave man does it with a sword; the
coward with a kiss.” É preciso proteger Eça contra a solenidade conselheiral dos
seus adeptos de hoje. E é preciso proteger Eduardo Prado contra os dois fun-
damentalismos rivais: ele não é nem um protoleninista nem um protofascista.
O que era ele, então? A meu ver, Eduardo Prado pode ser descrito como pro-
duto e agente da modernidade, em sua vertente aristocrático-conservadora.
Podemos ver a modernidade como fato e como ideal. Em sua forma factu-
al, não há melhor descrição que a de Max Weber. Para ele, como se sabe, a
modernidade é o produto de processos cumulativos de racionalização que se
deram no Ocidente a partir do século XVII. A modernidade teve uma di-
mensão econômica, política e cultural. A modernidade econômica implica a
livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção
de técnicas racionais de contabilidade e de gestão, o progresso técnico. A
modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada,

92
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

típica do feudalismo, pelo estado central, dotado de um sistema tributário


eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência, de uma ad-
ministração burocrática racional. A modernidade cultural implica a seculari-
zação das visões do mundo tradicionais (Entzauberung) e sua diferenciação em
esferas de valor (Wertsphären), até então embutidas na religião: a ciência, a mo-
ral, o Direito e a Arte. Todos esses processos de modernização desde o início
tiveram uma tendência expansionista, centrífuga. Em sua vocação mais autên-
tica, a modernidade é dinâmica, tende sempre a ultrapassar os espaços mera-
mente locais em direção a territórios cada vez mais amplos, cada vez mais uni-
versais.
Sobre essa modernidade factual, constrói-se uma modernidade ideal. A
maior flexibilidade dos agentes, exigida pelos imperativos da racionalidade
moderna, transforma-se num ideal de autonomia: autonomia econômica, polí-
tica, cultural. O lado expansivo da modernidade, sua tendência a romper todas
as barreiras locais e a ocupar espaços cada vez mais vastos, transforma-se num
ideal de universalidade.
Em grande parte do século XIX, coube à burguesia, principal artífice e be-
neficiária da modernidade factual, realizar o ideal da modernidade, em suas di-
ferentes articulações. Acreditou ter concretizado a autonomia econômica,
emancipando os agentes de produção de todos os entraves corporativos e de
todos os vínculos de subordinação feudal; a autonomia política, implantando
nos principais países do mundo regimes liberais e democráticos; e a autonomia
cultural, autorizando o livre exame, abolindo a censura e fomentando a instru-
ção pública. E pretendia-se universalista em sua ideologia do free trade, que ale-
gadamente levaria a prosperidade ao mundo inteiro, além de todas as frontei-
ras nacionais e culturais.
Esse programa modernizador foi contestado por tendências antimodernas,
que pretendiam refugiar-se numa Arcádia pré-capitalista, baseada em formas
medievais de organização econômica, política e cultural, bem longe do tufão
universalista que vinha da Ilustração e da Revolução Francesa. E foi contesta-
do por duas variedades de tendências pró-modernas, o Socialismo e o que po-

93
S erg io Pau lo Ro u anet

deríamos chamar o Conservadorismo esclarecido. Ambas aceitavam os valores


da modernidade, mas criticavam o modo de sua realização pela burguesia.
Para os socialistas, a autonomia burguesa nada mais era que a autonomia para
a classe burguesa, quando o que se desejava era uma autonomia para todos, subs-
tantiva e não meramente formal; e o universalismo burguês não era um verdadei-
ro internacionalismo, e sim a máscara do cosmopolitismo do capital.
Para os conservadores esclarecidos, não se tratava tampouco de contestar os
valores modernos, mas de dar-lhes novos conteúdos, recorrendo a certos ele-
mentos da ordem estamental-aristocrática. A autonomia econômica foi redefi-
nida de modo a combinar a crença entusiástica no progresso técnico com uma
nova ênfase na responsabilidade social dos proprietários. A autonomia políti-
ca foi redefinida de modo a compatibilizar todas as conquistas liberais de
1789 com as exigências da ordem e da hierarquia social. A autonomia cultural
foi redefinida de modo a harmonizar a liberdade intelectual dos liberais – o sa-
pere aude kantiano – com o respeito à tradição e à religião. Enfim, o universalis-
mo foi redefinido de modo a permitir a coexistência da idéia da humanidade
única com a revalorização das particularidades culturais e nacionais.
É nessa última corrente que devemos situar Eduardo Prado, ao qual se apli-
cam todas as características do modernismo conservador.
Primeiro, ele era inequivocamente favorável à modernidade econômica,
entendida como um sistema voltado para a produção racional de mercadori-
as e para a constante incorporação do progresso técnico ao processo produ-
tivo. Ele próprio pertencente a uma família que enriquecera com a produção
do café e sua comercialização no exterior nunca deixou em suas viagens de
combinar o turismo com os contatos de negócios e de informar-se sobre os
últimos aperfeiçoamentos da ciência da Agronomia. Em sua viagem à Indo-
nésia, esse suposto diletante dedica menos tempo à descrição dos antigos
templos budistas que a relatos minuciosos sobre a cafeicultura em Java. Em
dezenas de páginas implacáveis, somos informados, quer o desejemos ou
não, de que as plantações do distrito de Malang são subdivididas em trechos
com 400.000 pés, que rendem em média 600 quilos cada, de que os planta-

94
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

dores pagam cinco guilders por uma certa quantidade e de que não há impos-
tos de transmissão. Não somos poupados de nenhum detalhe sobre as mo-
léstias que afligem os cafezais. E que volúpia na descrição das máquinas de
secar café! Mas ele nos alerta: o secador Van Mannen é muito simples, mas
necessita de muito cuidado. E não pense o leitor que as máquinas podem fa-
zer tudo. Para que o café adquira uma bela cor, que lhe dê valor no mercado,
é preciso que acabe de secar lentamente ao sol.
Em geral, Prado se interessa mais pelas máquinas que pelos processos tradi-
cionais. Não é por acaso que ele serviu de modelo para outro personagem mo-
derníssimo de Eça de Queirós, Jacinto de Tormes. Em seu palacete da Avenida
dos Campos Elíseos, 202, Jacinto tem ao alcance da mão o saber técnico de
toda a humanidade, em aparelhos complicados que lhe dão acesso instantâneo
a todas as notícias, a todas as áreas da cultura, a toda a gama das atividades hu-
manas. Era um pouco assim no domicílio parisiense de Eduardo Prado, na
Rue de Rivoli. Às vezes essa high tec pregava peças a Eduardo, como pregara a
Jacinto, no famoso episódio do elevador enguiçado. Ao que parece, esse episó-
dio teria sido inspirado numa cena real, ocorrida na Rue de Rivoli. Mas em ge-
ral as forças da natureza submetiam-se com docilidade ao capricho desse
grão-senhor da civilização científico-tecnológica, e isso não somente em Paris,
mas no próprio reduto rural de Eduardo Prado, na fazenda do Brejão. Havia
ali um laboratório, construído especialmente para ele por um sábio russo cha-
mado Coulon, local de alta periculosidade, onde Eduardo realizava experiên-
cias sobre tudo, com sérios riscos de explosão. Sua cozinha e sua copa tinham
duas dúzias de máquinas diversas, e um dos seus divertimentos era mostrá-las
aos caipiras.3
Esse culto da modernidade econômica era acompanhado por uma grande
preocupação com a chamada “questão social”. Daí a importância de minorar a
miséria das massas proletárias. Mas esse sentimento genuíno de responsabili-

3
Afonso Arinos, Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, em “Discursos acadêmicos”, Tomo I,
1897-1919.

95
S erg io Pau lo Ro u anet

dade social é evidentemente inseparável da crença numa solução vinda de cima,


inspirada pelo papa ou pelo imperador da Alemanha. Não era o Capitalismo
em si que devia ser combatido, e sim o Capitalismo egoísta, predatório, tal
como praticado, por exemplo, pelos banqueiros judeus. Nada mais típico da
época que a união do anticapitalismo moralizante com o anti-semitismo.

“Hoje, os opressores são os burgueses que confiscaram em seu proveito to-


das as chamadas conquistas da revolução de 1789. O capitalismo semita ou
não semita goza hoje de privilégios reais e efetivos muito mais vexatórios
que os privilégios antigos da nobreza e do clero... Na vida moderna o capi-
tal cresce por si mesmo, cada vez mais se avoluma, e é fora de dúvida que a
fatalidade faz com que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres cada
vez mais pobres... O Papa e o Imperador, com a compreensão superior que
lhes dá a fé nos seus destinos, estão vendo que novos tempos de renovação
social se aproximam, e que é preciso, na imensa Bastilha em que a burguesia
revolucionária encarcerou o proletariado, rasgar uma janela para o azul.”4

Como empresário, Eduardo Prado punha em prática essa variedade conserva-


dora de modernidade econômica. Era um entusiasta da máquina e um tradicio-
nalista em matéria de relações de trabalho. A escravidão tinha sido um mal, mas
felizmente tinha sido abolida, por mérito da Monarquia, e sem derramamento
de sangue, como nos Estados Unidos. O novo sistema de trabalho assalariado ti-
nha se instalado sem sobressaltos e sem qualquer ruptura com o sistema patriar-
cal que desde sempre existira. Graças a esse sistema, as relações entre patrões e
empregados eram doces, sem autoritarismo por parte do dono, sem subserviên-
cia por parte dos caboclos, com compadrios freqüentes temperando a rigidez
das hierarquias, com um grande sentimento de responsabilidade na cúpula, com
respeito na base, e com muitas rezas e novenas congraçando patrões e criados
numa comum reverência diante daquele Deus perante o qual todos são iguais.

4
Eduardo Prado, A Ilusão Americana, op. cit., p. 133-135.

96
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

Segundo, Eduardo Prado era um apologista incondicional da modernidade


política, entendida como sistema de governo baseado na liberdade e no respei-
to aos direitos constitucionais. Em grande parte é o que está na origem de sua
oposição à República. Os Fastos da Ditadura Militar no Brasil, publicados na Revis-
ta de Portugal sob o pseudônimo de Frederico de S., não deixam dúvida a respei-
to. O novo regime é odioso por ser liberticida. A República aboliu todas as
instituições representativas. Confiscou a liberdade dos cidadãos. O poder civil
curvou-se diante dos quartéis.

“Hoje, no Brasil, não há tribunais, não há leis que protejam o indivíduo


contra a violência quando ela vem do governo. O cidadão é preso, deporta-
do, sujeito a todas as agressões oficiais, sem ter recurso nenhum contra elas.
O poder armado dos soldados e dos marinheiros não tem outro limite além
da sua vontade.”5

A Monarquia, ao contrário, tinha assegurado completa liberdade de ex-


pressão e garantido a hegemonia do poder civil. Se a modernidade política sig-
nifica o respeito aos direitos humanos, não há dúvida de que progressista era
Eduardo Prado, e retrógrados os republicanos. Ao atacar a ditadura de Floria-
no, assim como o Positivismo, que tinha se transformado numa virtual religião
de Estado, Eduardo Prado estava falando em nome da modernidade política,
contra os reacionários fardados que, empunhando o evangelho de um novo
fundamentalismo, estavam dando as costas ao ideal do estado leigo e liberal.
Ao mesmo tempo, é mais que provável que o Monarquismo de Eduardo
Prado tivesse também outras motivações. O Império não era apenas uma insti-
tuição destinada a viabilizar o governo liberal, era também um dique contra
ameaças que vinham de baixo, da grande massa de escravos e ex-escravos e dos
numerosos contingentes de imigrantes que tinham trazido de sua Europa natal
perigosas idéias anarquistas ou socialistas. A República parecia menos apta a

5
Eduardo Prado, Fastos da Ditadura Militar no Brasil, “Revista de Portugal”, 1890, p. 28.

97
S erg io Pau lo Ro u anet

garantir a estabilidade social que a Monarquia, cujo regime parlamentar per-


mitiria canalizar e tornar inofensivos os ressentimentos mais ameaçadores.
Modernismo, sim, com toda uma perspectiva de melhoramentos para a popu-
lação inteira, mas modernismo conservador. Era o Império que melhor permi-
tiria conciliar as exigências gêmeas da ordem e do progresso, que a República
tinha inscrito retoricamente em sua bandeira, mas que não tinha condições de
satisfazer devido às características anárquicas dessa forma de governo.
Terceiro, Eduardo Prado aderia sem reservas à modernidade cultural, en-
tendida como crença no valor da ciência e da instrução, como forma de eman-
cipar-se da tutela de uma religião repressiva. Intelectual supremamente afina-
do com o que havia de mais atual na cultura moderna, nunca renunciou à sua
admiração por filósofos abominados pelos tradicionalistas, como Renan.
Nunca se insurgiu contra a palavra de ordem da Ilustração, o sapere aude kantia-
no. Eduardo Prado acreditava na importância da tradição, mas queria estu-
dá-la como historiador, para testar sua aplicabilidade ao presente, e não rece-
bê-la cegamente como um repertório de valores imutáveis. Era religioso, mas
seu Catolicismo nada tinha de teocrático. Não se opunha ao regime do padro-
ado, em vigor no Brasil mesmo antes da Independência, pelo qual cabia ao
Estado dar a última palavra em matéria de nomeações e benefícios eclesiásti-
cos. Estava plenamente consciente do papel negativo muitas vezes desempe-
nhado pela Igreja na vida nacional.
Foi o que o levou a criticar em termos quase incendiários o clero chileno.
Ele é o “sustentador, o guarda de preconceitos oligárquicos... De fato, o poder
civil do clero é enorme; seus meios de despotismo não são os do clero de ou-
tros países; ele é oligarquia, ele é mesmo o sustentáculo da oligarquia leiga, de
que é o direitor”. Até o trabalho assistencial da Igreja chilena tinha para Prado
um ranço oligárquico. Visitando um colégio religioso, ouviu do diretor que as
crianças pobres eram separadas das outras, e por isso seu padroeiro era um san-
to proletário, São Pedro Damião. Pergunta de Eduardo Prado: “Por que não
escolheram Jesus Cristo, que era filho de carpinteiro?”6
6
Eduardo Prado, Viagens (São Paulo: Escola tipográfica salesiana, 1902) vol.II, p. 152-154.

98
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

Dito isto, não há dúvida de que, qualquer que fosse a sinceridade de suas
convicções católicas, Eduardo Prado via na Igreja em grande parte um baluarte
da tradição, contra as forças que pretendiam renegar séculos de História. É o
que fica muito claro na sua bela conferência a propósito do tricentenário do
Padre Antonio Vieira:

“Na pessoa de Anchieta glorificamos nossa História e os feitos dos nossos


maiores; os irmãos podem dissentir entre si, mas todos têm o sentimento
comum da veneração pelos pais. E este sentimento revela-se entre os povos
pelo amor à língua nacional, aos costumes, às tradições, por toda essa rique-
za que é patrimônio de uma nação... Vive ali simples, rude e enérgico na sua
calma o descendente do mameluco e do índio, que hoje tem teto, tem famí-
lia e tem Deus, porque os jesuítas civilizaram seus avós.”7

Sua concepção de História vai na mesma direção. Em seu discurso de posse


no Instituto Histórico e Geográfico, pronunciado alguns dias antes de sua mor-
te, disse palavras que não seriam renegadas pelos discípulos mais conservadores
da Escola Histórica alemã: “O mal de muitas almas brasileiras é se acharem des-
prendidas do passado e desenraizadas da terra. Somos um povo cada dia mais
desnacionalizado, e esta casa é uma grande escola de Nacionalismo.”8
Quarto, o universalismo de Eduardo Prado é real, vindo da convicção mo-
derna (e cristã, diga-se de passagem) de que a humanidade não pode mais ser
concebida, como no mundo antigo, em termos meramente municipais, nacio-
nais ou imperiais. Eduardo Prado foi um grande viajante, percorrendo a terra
como um citadino percorre o bulevar. Foi um flâneur, no sentido de Walter
Benjamin: essa figura alegórica da modernidade que passeia na cidade através
da multidão, observando os passantes, farejando o passado, antecipando o fu-

7
Eduardo Prado, Catolicismo, a Companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo, em “Coletâneas”(São
Paulo: Escola tipográfica salesiana, 1900) vol. IV, p. 96-97.
8
Eduardo Prado, em “Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico”, tomo LXIV, 1901,
p. 239.

99
S erg io Pau lo Ro u anet

turo e descobrindo rastros no asfalto como um pele-vermelha na savana. Para


Benjamin, sem o flâneur não teria havido a modernidade. Eduardo Prado foi
um flâneur do mundo, a serviço de uma modernidade ampliada, que não se li-
mitava à Rue de Rivoli, seu elegante endereço parisiense. Eça de Queirós com-
preendeu bem a força-motriz desse nomadismo: a curiosidade, atributo típico
do flâneur, ou do globe-trotter, como diz Eça. Para o romancista, Prado

“foi um viajante do tipo pensativo de Anacarsis...Viajou vastamente, viajou


intensamente: não como vagabundo, mas como filósofo, para quem o mun-
do constitui aquele livro que louva Descartes, o mais proveitoso de folhear,
ainda que o mais dificultoso de compreender...Toda a Europa, a Arábia, a
Palestina, o Egito, a Índia, a Austrália, as duas Américas, as Ilhas do Pacífi-
co, terras fortemente estudadas, finamente assimiladas – lhe penetraram no
espírito para sempre”.9

Sua curiosidade não era ociosa, era a curiosidade do sábio, que quer conhecer
imparcialmente todos os povos da terra, e do homem de sentimento, que deseja
compreender todos os homens, para a todos amar. Por isso não há nenhum eu-
rocentrismo nele. Todas as culturas merecem ser conhecidas e amadas.

“De todas as sociedades em que mergulhou recebeu um ensino inestimável,


o mais fecundo e o mais puro, o ensino de que todo este largo mundo é uma
pequena cidade, a verdadeira cidade entrevista por Epitecto, onde a diversi-
dade dos hábitos esconde a identidade das almas.”10

Eça tem razão. Quem percorrer os dois volumes das Viagens, em que Eduar-
do Prado conta suas peregrinações por todos os continentes, não encontrará
traços marcantes de xenofobia ou intolerância étnica. Apesar de sua anglofilia,
9
Eça de Queirós, Eduardo Prado, artigo introdutório a “Coletâneas”, de Eduardo Prado (São Paulo:
Escola tipográfica salesiana, 1904) vol. I, p.x.
10
Eça de Queirós, ibidem, p. xii e xiii.

100
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

são as viajantes inglesas que Prado ridiculariza, não as mulheres nativas. Os in-
gleses é que são insulares, tendendo a desprezar os outros povos, mas “o calor
de Malta desfaz a rigidez orgulhosa dos colarinhos, sob o sol que dissipa os
preconceitos”.11 Entre esses preconceitos está a tão falada indolência meridio-
nal, a inaptidão do homem dos climas quentes para o trabalho. Por que países
como Portugal e Espanha são mais atrasados hoje que as nações do Norte?
Não por uma pretensa inferioridade da raça, mas porque viveram durante sé-
culos à custa de suas colônias, desabituando-se assim do trabalho produtivo, e
porque seu povo foi explorado pelo Absolutismo do rei, que extenuou a pe-
nínsula com suas imposições e proibições, e pela tirania da Inquisição, que a
imobilizou pelo terror.
Mas há também em Eduardo Prado uma nova ênfase nas particularidades
étnicas e nacionais. Do ponto de vista étnico, essa ênfase se aproxima perigosa-
mente do anti-semitismo. Eça diz com todas as letras que Prado era anti-semi-
ta, e isso não para seguir o modismo francês de detestar o judeus simplesmente
porque eles representam o moderno capital financeiro, e sim a partir de raí-
zes peninsulares autênticas, que remontavam à Idade Média, para a qual os
judeus não deveriam nunca ter saído do gueto. Há decerto muito exagero nis-
so. Por uma vez, Pagano merece mais crédito que Eça de Queirós. Para Paga-
no, não era por nenhum ressentimento gótico que Eduardo Prado não gostava
dos judeus, nem por acreditar que eles tivessem qualquer predestinação bioló-
gica para a usura, e sim porque encarnavam em sua forma mais visível a civili-
zação do dinheiro, que aquele milionário abominava. O inimigo era o materia-
lismo, do qual o judeu era um dos acólitos, e não o judeu em si, e a prova é que
Eduardo Prado odiava também os norte-americanos, pela mesma razão. Tal-
vez não houvesse realmente racismo em Eduardo Prado, no sentido técnico.
Não encontrei nele nenhum vestígio das fantasias raciais que estavam em
moda na ciência européia e reapareceriam de modo tão grotesco em alguns dos
principais intérpretes do Brasil. O Judaísmo para ele era mais um conceito

11
Eduardo Prado, Viagens, Vol. I, p. 65.

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S erg io Pau lo Ro u anet

cultural que biológico. Por exemplo, encontrou muitos judeus na Austrália,


mas parece ter ficado mais chocado com o fato de que fossem de língua ale-
mã que com o fato de serem judeus. “É incrível”, concluiu ele, “o incremento
que toma em todo o mundo o alemão. Na Austrália, como em toda a parte,
parece querer dominar. Que será da civilização latina?”12 Eça de Queirós foi
um dreyfusard incondicional, e como familiar da casa do escritor, em Paris, é
bastante improvável que Eduardo Prado tivesse simpatia pelo campo opos-
to. Seja como for, parece certo que ele não escapou ao vírus que contamina-
ria tantos intelectuais europeus do seu tempo, inclusive no próprio movi-
mento socialista, e que não pouparia sequer um escritor da estatura de um
Paul Valéry, que foi contra a revisão do processo de Dreyfus.
Em todo caso, não foi na aversão aos judeus, e sim na exaltação do patriotis-
mo, que o lado particularista de Eduardo Prado se manifestou mais claramen-
te. Em seu artigo sobre Eça de Queirós, lamentou que o escritor e sua geração
de “vencidos da vida” tivessem sucumbido à mania de ver o mundo e a si pró-
prios segundo uma ótica francesa. Era uma geração que se emocionava com a
queda de um ministério na França do segundo Império, e não sabia o nome
dos homens que governavam Portugal. Chorava com a perda de Alsácia e da
Lorena e não se importava com o declínio do seu império colonial, centenas de
vezes maior que as duas províncias anexadas pela Alemanha. Por entorpeci-
mento da fibra patriótica, Portugal dava o exemplo de um fenômeno talvez
único, o de um povo que se desnacionalizava. Felizmente, com a derrota de
1870 a França se desprestigiou e deixou de ser um modelo oferecido à emula-
ção universal. Foi um grande bem para Portugal. Como as afinidades com a
Inglaterra se limitavam às relações comerciais e como o alemão era um idioma
desconhecido, os portugueses ficaram sem ter quem imitar e foram forçados a
voltar-se para si mesmos, para a redescoberta do seu passado, para a constru-
ção de uma cultura própria. Mas também no resto do mundo os tempos ti-
nham mudado.

12
Eduardo Prado, Viagens, Vol. II, p. 260.

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Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

“Em toda a Europa houve uma revivescência intensa do Nacionalismo. O


cosmopolitismo sonhado desfez-se como os sonhos; a voz de Victor Hugo,
já isolada, calou-se na morte, já cansada de pregar uma federação dos povos
que ninguém mais queria e ninguém mais compreendia... A época era da au-
tonomia de cada povo. Grande ou pequena, pobre ou rica, cada nação aspi-
rava a viver por si.”13

Fiel sismógrafo do seu século, Eça de Queirós tinha acompanhado e vivido


toda essa trajetória, do cosmopolismo hugolátrico de antes à redescoberta do
sentimento nacional. Agora se interessava pelas coisas pátrias, pela cozinha
lusa autêntica, por obras bem portuguesas, crônicas, sermões, vidas de santos,
livros de mística. Nisso, como em tantas outras coisas, Eduardo Prado reve-
lou-se um fino observador e até um bom profeta. A “conversão” de Eça ao Pa-
triotismo foi confirmada, como se sabe, com A Cidade e as Serras e A Ilustre Casa
de Ramirez, livros póstumos que só foram publicados anos depois da data em
que Prado escrevia seu artigo (1897).
A dar crédito ao próprio Eça de Queirós, Eduardo Prado nunca tinha co-
nhecido essa ambivalência. Sempre fora patriota. “Nele, esse amor patriótico
nunca sofreu diminuição nem degeneração, bem sólido, bem alto, rijamente
cimentado nas profundidades mesmas do ser... Ele permanece o puro e forte
patriota, que traz sempre da pátria consigo não só o espírito, mas a ima-
gem.”14
Talvez seja por isso que foi a Eduardo Prado que Fradique Mendes confiou
suas idéias sobre a lamentável desnacionalização que se implantara no Brasil
desde a Independência. Como Prado, segundo se diz, era o modelo sobre o
qual Eça construiu a figura de Fradique, esse depoimento tem um valor espe-
cial, porque era um fantasma conversando com seu próprio corpo. Pois bem,
em carta datada de 1888, escreve Fradique:

13
Eduardo Prado, Eça de Queirós, em “Coletâneas”, Vol. I, p. 316-323.
14
Eça de Queirós, Eduardo Prado, op. cit., p. xxii-xxiii.

103
S erg io Pau lo Ro u anet

“Nos começos do século XIX... os brasileiros, livres dos seus dois males de
mocidade, o ouro e o regime colonial, tiveram um momento de única e mara-
vilhosa promessa... Os brasileiros podiam nesse dia radiante fundar a civiliza-
ção especial que lhes apetecesse... O que eu queria é que o Brasil... se instalasse
em seus vastos campos e... que lhe fossem nascendo... com viçosa e pura origi-
nalidade, idéias, sentimentos, costumes, uma literatura, uma arte, uma ética,
uma filosofia, toda uma civilização harmônica e própria, só brasileira, só do
Brasil, sem nada a dever aos livros, às modas, aos hábitos importados da Eu-
ropa. O que eu queria... era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil
nacional, brasileiro, e não esse Brasil que eu vi, feito com velhos pedaços da
Europa, levados pelo paquete e arrumados à pressa... Apenas as naus do se-
nhor D. João VI se tinham sumido nas névoas atlânticas, os brasileiros, se-
nhores do Brasil... romperam a copiar tumultuariamente a nossa civilização
européia, no que ela tinha de mais vistoso e copiável... Bem cedo, do velho e
generoso Brasil, nada restou – nem sequer brasileiros, porque só havia douto-
res... doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma
carteira, fundando bancos; doutores com uma sonda, capitaneando navios;
doutores com um apito, dirigindo a policia... doutores sem coisa nenhuma,
governando o estado... São esses doutores, brasileiros de nacionalidade, mas
não de nacionalismo, que cada dia mais desnacionalizam o Brasil, lhe matam
a originalidade nativa, com a teima doutoral de moralmente e materialmente
o enfardelarem numa fatiota européia feita de francesismo, com remendos de
vago inglesismo e de vago germanismo.”15

Sabe-se que a condenação das idéias importadas é dos temas mais antigos e
mais indestrutíveis da cultura brasileira. Ele começou com os românticos, la-
mentando o vezo brasileiro de ignorar a natureza tropical; continuou com Sil-
vio Romero, que considerou Machado de Assis inautêntico por copiar o hu-
morismo inglês; prosseguiu com Euclides da Cunha, para quem o consumo
15
Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes, Carta XVIII, a Eduardo Prado, em Eça de
Queirós, “Obras”, (Porto: Lello e Irmãos) vol. II.)

104
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

dos modelos europeus só fazia reforçar as características mórbidas dos mesti-


ços neurastênicos do litoral; teve seu apogeu no Modernismo de 1922, para o
qual uma das principais tarefas da inteligência brasileira era reafirmar o ma-
triarcado de Pindorama, contra uma Europa anêmica que sem nós não teria se-
quer sua pobre Declaração dos Direitos do Homem; teve seu prolongamento
no movimento regionalista de Gilberto Freyre, substituindo “as roupas feitas...
para gelos que não existem aqui – por vestido ou simplesmente túnica costura-
da pachorrentamente em casa”; retomou sua carreira no Estado Novo, quando
Azevedo Amaral e Chico Campos quiseram substituir a Democracia e outras
idéias européias por um autoritarismo com raízes fundas na História brasilei-
ra; adquiriu um novo fôlego com o ISEB, que, combinando Sartre e Husserl,
pretendia “reduzir” as idéias estrangeiras, fazendo-as passar pelo crivo da rea-
lidade nacional; ressurgiu em 1964 com uma clarinada patriótica e um unifor-
me verde-oliva novo em folha, quando os militares afirmaram que a doutrina
dos direitos humanos era uma invenção exótica, estranha à vocação cristã e or-
deira do povo brasileiro; trocou a farda por uma roupa caipira depois da rede-
mocratização, quando se transformou na ideologia da broa de milho; e conti-
nua hoje, cada vez mais robusto, severo e tutelar, como o Arcanjo na porta do
Éden, guardando nossa cultura, de espada em riste, contra as agressões desfi-
guradoras que vêm de fora.
Recebendo a carta de Fradique, Eduardo Prado poderia ter estranhado o
paradoxo de uma lição de brasilidade dada pelo personagem português de um
escritor português, o que o obrigaria a ser nacional por sugestão do exterior e a
condenar a importação de idéias européias através de uma idéia européia. Mas
isso não aconteceu. Em sua lusofilia, Prado não considerava os portugueses es-
trangeiros. Além disso, a darmos crédito aos artigos que Eduardo Prado e Eça
de Queirós escreveram um sobre o outro, Prado não precisava receber lições de
ninguém em matéria de autenticidade nacional. Em seu artigo sobre Eça, Pra-
do critica severamente o amigo português por ter sido um copista da França, e,
em seu artigo sobre Prado, Eça atesta urbi et orbi que o amigo brasileiro jamais
havia cometido esse pecado. Assim, a carta de Fradique deve ser lida como a

105
S erg io Pau lo Ro u anet

reafirmação de idéias que os dois escritores partilhavam, no final do século, su-


perada a fase antinacional de Eça.
É esse Nacionalismo cultural que explica o anti-americanismo de Eduardo
Prado. Ele não é anti-americano por reflexos anticapitalistas, como afirmam
seus leitores de esquerda, nem por acreditar que o culto de Mammon estava
superando o culto de Deus, como pensavam seus leitores de direita, e sim em
nome da originalidade nacional, ameaçada pela influência da cultura america-
na. Com isso, Prado se insere na interminável série dos intelectuais brasileiros
que tinham se insurgido contra os modelos importados. Prado o faz em nome
da idéia de Taine de que cada povo é produto de uma conjunção específica e
intransferível de meio, raça e História, e indiretamente a partir do conceito
herderiano de Volksgeist, adotado pela França depois da derrota de 1870, segun-
do o qual cada nação tem um repertório próprio de valores, que não podem ser
transplantados para outras nações. Para Eduardo Prado, “as sociedades devem
ser regidas por leis saídas da sua raça, da sua história, do seu caráter, do seu de-
senvolvimento natural... Os legisladores latino-americanos... gloriam-se de co-
piar as leis de outros países... O Brasil, mais feliz, instintivamente obedeceu à
grande lei de que as nações devem reformar-se dentro de si mesmas, como to-
dos os organismos vivos, com sua própria substância, depois de já estarem len-
tamente assimilados e incorporados à sua vida os elementos exteriores que ela
naturalmente tiver absorvido.” É por isso que a República e o Presidencialis-
mo norte-americano não nos convêm: não fazem parte de nossa “própria subs-
tância.” Mas não seriam a Monarquia e o Liberalismo também plantas exóti-
cas, transplantadas da Inglaterra? Não. A Monarquia nos vinha da história me-
dieval portuguesa, enquanto o constitucionalismo nos vinha da tradição das
Cortes e dos governos municipais durante o período colonial. Por isso, “as
idéias liberais do século, consagradas nas instituições coevas da Independên-
cia, acharam uma base histórica em que se firmaram. E isto deu ao Brasil seten-
ta anos de liberdade”.16

16
Eduardo Prado, A Ilusão Americana, op. cit., p. 45-46.

106
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

Até que ponto o lado universal e o particularista de Eduardo Prado se har-


monizaram? Para a sabedoria convencional, uma coisa não exclui a outra: o
verdadeiro patriotismo não precisa ser chauvinista. Mas nem sempre essa coe-
xistência é tão simples. Em casos extremos, a dualidade pode dar origem ao
que Mário de Andrade, por analogia com a doença de Chagas, chamou sarcas-
ticamente de “doença de Nabuco”. Era uma alusão a um trecho célebre de Mi-
nha Formação.

“Estamos... condenados à mais terrível das instabilidades, e é isso o que ex-


plica o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são
os prazeres do rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegante dos
milionários da Sul-América; a explicação é mais delicada e mais profunda.
É a atração de afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos
nós, da nossa comum origem européia. A instabilidade a que me refiro pro-
vém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura,
a tudo o que nos cerca o fundo histórico, a perspectiva humana; e que na
Europa nos falta a pátria, isto é, a fôrma em que cada um de nós foi vazado
ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a au-
sência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação, européia.”

O que chama atenção nessa passagem admirável é que nossa mentalidade é


definida por uma dupla negação, pela intersecção de duas ausências: na Euro-
pa, faltam-nos a natureza e a emoção, no Brasil, faltam-nos a História e o pen-
samento. Nabuco descreve a experiência de um desterro permanente. Mas um
século depois, na era da globalização, talvez se possa negar essa negação dupla,
e preencher com uma dupla presença o vazio das duas ausências. Nesse caso,
não teremos mais o expatriado, mas o cidadão de dois mundos, não mais um
déraciné, no sentido de Barrès, mas um homem descentrado, com uma identi-
dade nômade, sempre aberta, sempre se fazendo, sempre se refazendo, sem-
pre disposto a relativizar todas as suas certezas culturais por sua capacidade
de role-taking, de assumir incessantemente o ponto de vista do Outro.

107
S erg io Pau lo Ro u anet

Nesse caso, a “doença de Nabuco” talvez deixasse de ser um mal. No avesso


dessa patologia, estaria o protótipo de um novo padrão de normalidade, de um
novo perfil de saúde psíquica, baseado na divisão, e não na afirmação compul-
siva de uma identidade única.
Essa subjetividade cindida seria o correlato interno de uma nova moderni-
dade, cuja tendência expansiva não mais precisaria ser coibida pela moldura
excessivamente estreita dos estados nacionais. Nesse âmbito planetário, a mo-
dernidade econômica passaria a significar o direito de todos os homens e mu-
lheres de alcançarem patamares adequados de bem-estar material, a moderni-
dade política significaria o direito de autodeterminação de todos os habitantes
da Terra, no âmbito de uma democracia mundial, e a modernidade cultural se
traduziria no direito de todos à produção de cultura e no acesso de todos à cul-
tura de todos os povos.
O exilado dessa nova modernidade não será mais o diletante de classe alta,
mas o trabalhador emigrado, ou o funcionário transnacional, que estão em
casa em todos os países do universo. O viajante dessa modernidade global não
será mais um globe trotter rico, como Fradique Mendes, mas talvez se pareça com
o naturalista europeu do século passado, que vinha estudar as nascentes do Rio
Amazonas ou descobrir no Orenoco novas espécies de pássaros. Somente se-
rão viagens nas duas direções. Teremos Humboldts cearenses que atravessarão
o Atlântico para botanizar em Londres e Lévi-Strausses cariocas que explica-
rão às culturas primitivas que habitam à margem do Sena seus mitos e suas re-
gras de parentesco.
A nova modernidade não será niveladora. Graças às regras de convívio esta-
belecidas pela Democracia mundial, ela permitirá a coexistência não-conflitiva
de todas as particularidades. Nisso, a civitas universal se parecerá um pouco
com o Brasil, país que não é tanto multicultural como transcultural, em que to-
das as raças e etnias se mesclam, em que a Europa se mulatiza, em que uma
Santa da Ásia Menor, Santa Bárbara, se transforma em uma figura de terreiro,
Iansã, e em que Maria Padilha, amante de D. Pedro, o Cruel, de Castilha, ro-
dopia todas as noites na Bahia, sob o nome de Pomba Gira.

108
Edu ardo Prado e a M o de r n i da de

Eduardo Prado foi entre nós a expressão máxima de uma certa modernida-
de, a que se baseia na mistura prudente, num quadro nacional, de elementos
novos e tradicionais. Mas de algum modo tenho a impressão de que estava,
também, nos umbrais de uma nova modernidade, que mantinha viva a tensão
entre o universal e o particular, em vez de procurar sacrificar um pólo ao outro,
seja num sentido cosmopolita, seja num sentido chauvinista. Talvez ele não
visse com maus olhos o conceito de Democracia mundial, que, graças aos me-
canismos que ela oferece para que todos os participantes façam valer suas aspi-
rações, poderia, como sua querida Monarquia, temperar o progresso técnico
com a justiça social, a liberdade política com o sentimento de responsabilidade
e a emancipação cultural com o respeito à tradição.

109
C ulto da Im o r t a l ida de

Presença de José
Lins do Rego
Al e x e i Bu e no

S e o regionalismo nordestino, após o advento do Modernismo,


teve uma de suas vertentes principais na descrição da cultura
do açúcar – a partir de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, em
Alexei Bueno é poeta
e ensaísta. Autor de
As escadas da torre
(1984), Poemas gregos
1928 –, o apogeu da transfiguração estética dessa ambiência foi (1985), Lucernário
(1993), A via estreita
aquele construído por José Lins do Rego em seus primeiros roman-
(1995), Poemas
ces, e depois na sua obra-síntese, Fogo Morto, de 1943. Era como se, reunidos (1998)
no momento final de sua existência de quase quatro séculos, prestes entre outros.
a ser superada por novos meios de produção, a velha civilização dos
engenhos e dos bangüês viesse encarnar-se na alma de um de seus fi-
lhos, que a imortalizaria de maneira definitiva. Podemos dizer, por-
tanto, que numerosas gerações de seus ascendentes adquiriram a sua
última e definitiva palavra, a sua voz e o seu testemunho derradeiro,
através do brilhante espírito fabulador do autor de Menino de Engenho.
E não apenas as gerações dos senhores, oriundas de umas tantas co-
nhecidas famílias pernambucanas e paraibanas inextricavelmente
misturadas através dos séculos, mas também as anônimas multidões

111
Al ex ei Bu eno

dos trabalhadores, servos, empregados ou meeiros desse mesmo complexo


econômico e humano.
Se uma tradição regionalista muito importante antecedera a geração de José
Lins do Rego – e basta lembrar, a seu respeito, os nomes do Visconde de Tau-
nay, Manuel de Oliveira Paiva, Domingos Olímpio, Simões Lopes Neto,
Afonso Arinos, até um Hugo de Carvalho Ramos e um Monteiro Lobato –, se
um outro regionalismo surgiria depois, alcançando o titanismo universalista
de um Guimarães Rosa e se disseminando em nomes como os de José Cândido
de Carvalho, Mário Palmério, Herberto Sales, Ariano Suassuna ou Osman
Lins, o romance nordestino de 1930 mantém a sua firme centralidade na nossa
história literária, com o autor de Moleque Ricardo e seus contemporâneos de flo-
ração, um Graciliano Ramos, uma Rachel de Queiroz, um Jorge Amado, to-
dos plenamente vivos na alma brasileira.
Romancista não só da região do açúcar como também do sertão semi-árido,
não só rural como urbano, além de admirável ensaísta, José Lins do Rego enri-
queceu a prosa de ficção brasileira com um inesquecível tesouro de persona-
gens plenos de vida, entre os quais talvez se destaque o imortal Coronel Vito-
rino Carneiro da Cunha, o quixotesco Vitorino Papa-Rabo de Fogo Morto, sua
incontestável obra-prima. Há quase cinqüenta anos, no dia 12 de dezembro de
1957, o Brasil perdia esse que foi um dos seus maiores romancistas e intérpre-
tes, com apenas 56 anos de idade, o grande Zé Lins, cuja presença evocamos e
homenageamos com esta exposição.

112
P r o sa

Japão/Brasil
M ar c o s Vi n i c io s V il a ç a

E les vinham de longe. Do Oriente distante. Para ajudar um


país jovem a seguir plantando café, sua fonte de riqueza. Ao
fundo, um acordo. Bom para ambos: o Brasil carecia de mão-
Ocupante da
Cadeira 26
na Academia
Brasileira de
de-obra, o Japão vivia grave crise demográfica. No acordo, de um Letras.
lado estava Tibiriçá, presidente da província de São Paulo, do ou-
tro, Mizuno, tido como pai da imigração japonesa.
No mar, o navio carregado dos medos e das expectativas de 165
famílias pioneiras. O destino: o porto de Santos, os cafezais e o futu-
ro. O Kasato Maru, nave da esperança, lança âncora nas águas novas
e tranqüilas. Era junho. O dia 18, o ano 1908. Estamos próximos da
data centenária, que coincide com os tempos comemorativos dos
cem anos da morte de Machado de Assis.
Era o começo de uma presença que se ampliaria ao longo dos
anos e que plantaria no nosso País muito mais que sementes e mudas
de café. Plantaria matizes e matrizes relevantes na terra pródiga da
cultura brasileira em processo.

113
M a rc o s Vi ni c i o s Vi laç a

E vieram outros e outros mais. Alimentadas de sonho, 3.434 famílias,


14.483 pessoas, nos primeiros sete anos que se seguiram. E logo, com a explo-
são da Primeira Guerra Mundial, a grande presença que trará, de 1917 a 1940,
cerca de 164 mil filhos do Sol Nascente às terras brasileiras, em especial sedia-
dos em São Paulo. Na motivação, alentadora, pois que eram pobres, na sua
maioria, o sonho da riqueza e da felicidade. Logo fraturado: árduo se apresen-
tava o percurso, que envolveu ainda sofrências, preconceitos e obstáculos em
meio ao verde cafeeiro, no calor das plantações de borracha da Amazônia, na
ardência da pimenta paraense.
Nuclear, a presença na comunidade bandeirante. Brasil, brasis. E, se recordo
o passado, é para situá-lo como alicerce da construção.
O imigrante japonês, como a gente do meu Nordeste, é antes de tudo forte.
E se, de início, buscou proteger-se no abrigo de um isolamento comunitário,
logo cedeu ao desabusado jeito brasileiro de ser. Abrasileirou-se. Sem perda
das raízes, como atesta, entre outros, o bairro paulista da Liberdade, com essa
designação tão brasileiramente significativa, que deságua em traços culturais
marcadamente miscigenados.
As tentativas iniciais de isolamento, mobilizadas sobretudo pela intenção
de retornar à terra natal, acabaram por não resistir à vocação mestiça do Brasil.
E multiplicaram-se os casamentos interétnicos. E veio o desejo dos descenden-
tes de assumirem a cidadania brasileira. E veio, avassaladora, até por absoluta-
mente necessária, a utilização da língua portuguesa do Brasil. A tal ponto que,
na atualidade, apenas 10% dos integrantes da segunda e da terceira geração de
imigrantes japoneses sabem falar a língua de seus pais. E mais: perto de 30%
nasceram de casamentos de japoneses e não-japoneses, brasileiros, italianos,
portugueses e espanhóis. Não quero desconsiderar o fato de que nas cidades
do norte do Paraná não é incomum os letreiros comerciais bilíngües. E hoje,
integram a comunidade brasileira um milhão e meio de japoneses e descenden-
tes. É obvio que 80% se encontram em terras bandeirantes, a maioria na capital.
Lá está, no senso de 1988. É um dado interessante: noventa por cento da pre-
sença japonesa entre nós vive em áreas urbanas.

114
Ja p ã o / B r a s i l

No processo de presença comunitária, é marcante a presença da cultura ja-


ponesa incorporada.
Eles nos ensinaram a degustar comidinhas de raro prazer e delicadeza, que
se acrescentaram à nossa culinária; a comer peixe cru. E com o uso aprimora-
do do hashi, aqueles dois pauzinhos que manejamos, alguns de nós sabe Deus
como! Além de ampliarem as dimensões de inúmeros produtos agrícolas,
que cresceram em volume e substância por força dos seus saberes. São, afinal,
mais de trinta incursões nesses espaços, que envolvem, além do café, algodão,
arroz, verduras, legumes, aves, frutas e especiarias. Tudo ficou maior com os
japoneses.
Eles nos ensinaram técnicas milenares de aliviar nossos sofrimentos físicos
com massagens especiais, com as agulhas de acupuntura. E mesmo nossas agru-
ras espirituais encontram guarida e suavização em procedimentos religiosos que
atraíram o culto de muitos. Estou pensando na Igreja Messiânica, Seicho-no-ie e
na Perfect Liberty, só para citar três exemplos. Agrada-nos a beleza dos arranjos
florais, é flagrante a influência da pintura nipônica em vários de nossos artistas
plásticos. Não esquecendo o quanto se enlaçou a nipo-brasilidade na arquitetu-
ra. Livros, jornais e revistas nos aproximam de aspectos da cultura do Japão.
Entre os jovens, ao lado da tradicional presença de desenhos animados vem-se
destacando o cultivo acentuado dos quadrinhos japoneses contemporâneos, os
mangás, e há a adesão ao fashion dos penteados com escova japonesa. Acrescen-
te-se o convívio com a gente japonesa, que nos ensina, a cada dia, a cultivar pa-
ciência, tenacidade, quase o estoicismo.
Pelos céus, sem medo e com muita expectativa, os rumos do desenvolvi-
mento e do progresso vêm, há algum tempo, invertendo o fluxo do intercâm-
bio. Os dekasseguis constituem a terceira maior comunidade de imigrantes, no
Japão. Só perde para as de chineses e coreanos. Com eles, o futebol chegou ao
Japão com gosto e se fez gostoso para os nativos. Futebol – atente-se – de gin-
ga brasileira.
E tudo começou com a esperança. Daquelas 165 famílias pioneiras embar-
cadas no Kasato Maru, no porto de Kobe, em 28 de abril de 1908, cujos pés

115
M a rc o s Vi ni c i o s Vi laç a

pisaram as terras brasileiras, a bagagem da alma carregada de cultura antiga e


de experiência. Plantaram, vivenciaram, colheram. Ao longo de 100 anos, ago-
ra se completando. E integraram com os seus descendentes a nossa gente do
Brasil. É nissei no comando das Forças Armadas, é nissei com índice de exce-
lência na Medicina – nomeadamente nos planos da Cardiologia e da Oftalmo-
logia. É nissei no Parlamento. Também relevante é ver crianças dos grotões
agrestinos do Nordeste a tocar violino pelo método Suzuki, em belos momen-
tos de interação do instrumento refinado com a rabeca rural, em arranjos mu-
sicais encantadores, exemplifico, da competência do maestro Cussy de Almei-
da e sua música armorial. E o que dizer do cinema brasileiro com direção de
nisseis à Tisuka?
Temos, inclusive, na Academia Brasileira, um Sócio-Correspondente japo-
nês, o escritor Daisaku Ikeda, ocupante da Cadeira 14. Os Acadêmicos têm
exercitado técnicas da poética japonesa e são muitos os ensaios de nossos con-
frades sobre temas ligados àquele país. Por exemplo: Oliveira Lima, Barbosa
Lima Sobrinho, Marcos Almir Madeira, Helio Jaguaribe, Arnaldo Niskier,
Herberto Sales, Cláudio de Sousa, Celso Furtado, Aluísio Azevedo, Luís Gui-
marães Jr. e Guilherme de Almeida.
Refiro-me ainda ao popular sistema de ensino Kumon, à tecnologia da nos-
sa televisão, como criações do gênio japonês por nós absorvidas.
Congratulando-se com a comunidade japonesa do Brasil, a Academia Brasi-
leira de Letras, em recente sessão especial, associou-se prazerosa às comemo-
rações do centenário da chegada da gente do Japão às nossas terras.

116
P r o sa

Álvares de Azevedo
L yg i a F ag u n d e s T e l l e s

C asa do Estudante, Rio de Janeiro. Naquela tarde azul lá


fui falar sobre os jovens poetas românticos com os nomes
gravados no pórtico da nossa Faculdade de Direito do Largo de
Ocupante da
Cadeira 16
na Academia
Brasileira de
São Francisco: Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Letras.
Alves. Arrebatados pelo famoso Anjo das Asas Escuras, não com-
pletaram o curso porque morreram antes, eles e outros poetas
maiores e menores do Romantismo: Álvares de Azevedo tinha
apenas 21 anos, Fagundes Varela mal chegara aos 33 e Castro
Alves, 24 anos.
O poeta Carlos Drummond de Andrade assistiu à conferência e,
quando foi me cumprimentar, anunciou com um sorriso: batizara a
Escola Romântica, era a Escola de Morrer Cedo.
Na Europa do século XIX o descabelado Romantismo já estava
cansando. Esgotada a taça do intimismo lírico, a tendência era fazer
uma pausa na avaliação dos exageros da intuição e da fantasia. Lord
Byron e Goethe, Leopardi e Shelley, Victor Hugo como tantos ou-
tros já davam sinais de enfaro. Mas nestas lonjuras a revolução estava

117
Lyg ia Fagu ndes Telles

apenas começando, e, com a força das lavas de um vulcão, as correntes estran-


geiras começaram a se infiltrar na nossa raça e no nosso meio.
A garoenta cidade de São Paulo tinha pouco mais de 20 mil habitantes. O
casario com austeras rótulas nas janelas baixas e telhados enegrecidos. O trân-
sito escasso, uma beata de mantilha negra em direção à igreja e um pai de famí-
lia com o relógio preso à corrente no bolso do colete, voltando da farmácia
com as últimas novidades da Corte. Um escravo conduzindo o burrico com
cestos no lombo. Os sapos coaxando no vale do Anhangabaú. Nas noites escu-
ras acendiam-se os lampiões, mas se a noite estava clara a cidade era iluminada
pela luz do luar. Raras as reuniões com as mocinhas tocando piano. Às vezes,
um baile na Sociedade Concórdia, mas animado mesmo era o Largo de São
Francisco no período da manhã, quando os alunos se reuniam nas redondezas
e no pátio da escola, o famoso pátio com as arcadas daquele convento francis-
cano. Saíram os frades com suas sotainas e entraram os acadêmicos com as lon-
gas capas pretas.
Excitadíssimos os nossos poetas com aquela liberdade do Romantismo e,
entre eles, o jovem que mais focalizei naquela tarde, Manoel Antonio Álvares
de Azevedo, o Maneco, como era chamado pela família. Conhecia várias lín-
guas, morou em repúblicas, antros de perdição, assim se referia a elas a socieda-
de local. Mas na opinião de alguns biógrafos o poeta não teria participado des-
sa vida boêmia: era recatado, contemplativo. Estudava e lia com sofreguidão,
mas costumava se recolher cedo para escrever seus poemas à luz das velas. Na
cabeceira, além da Bíblia, livros de Shakespeare e Byron, que escreveu num tran-
se: “Para que um homem se torne poeta, é preciso que esteja apaixonado ou
desgraçado. Eu sou as duas coisas juntas!”. Infeliz o jovem byroniano parecia
ser, mas apaixonado?... Segundo o testemunho dos poucos amigos, não tinha
namorada visível nem invisível, tratava as mocinhas burguesas com aquela bem-
humorada ironia, mas admirava realmente o herói dos charutos e do vinho:

Meu herói é um moço preguiçoso


Que viveu e bebia porventura

118
Ál v a r e s de A ze v e do

Como vós, meu leitor... se era formoso


Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura.
Era pálido sim... mas não d’estudo:
No mais... era um devasso e disse tudo!

A realidade e a fantasia. Na Lira dos Vinte Anos o paulista Álvares de Azevedo


falou muito nesse vinho e no charuto, mas quem realmente se esbaldou no ví-
cio foi o fluminense Fagundes Varela, que teria sofrido a influência do seu sa-
tanismo. Assim se descreve o destemperado Fagundes Varela:

Perdoa o leitor se até agora


Nada lhe tenha dito a meu respeito
Quando se passa esta história eu era moço
E estudava a ciência do Direito.

Pode ser que livros não abrisse


Que não votasse amor à sábia casta
Mas tinha o nome inscrito entre os alunos
Na Escola de São Paulo e é o quanto basta.

O terceiro nome gravado no pórtico da escola, Antonio Frederico de Cas-


tro Alves. O nosso Maneco cantou tanto as musas, mas quem as conheceu de
fato foi o baiano Cecéu, sobre o qual escreveu Antonio Candido: “A grande e
fecundante paixão por Eugênia Câmara (até que enfim uma mulher de carne e
osso, localizada e datada, após as construções da imaginação adolescente) per-
correu-o como corrente elétrica”.
Depois que perdeu a amada vieram outras se revezando em torno do baiano
elegante e aclamado nos teatros e nas praças. Porém, com sinais evidentes da
tuberculose, ele ia mudando o nome das musas, mas pensava ainda na atriz
portuguesa:

119
Lyg ia Fagu ndes Telles

Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.


A lua na janela bate em cheio.
Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.

Voltando ao nosso Maneco, é bom lembrar que ele escreveu sobre mulhe-
res, sim, mas estavam todas dormindo. Ou mortas.

Não acordes tão cedo!


Enquanto dormes
Eu posso dar-te beijos em segredo...
Mas, quando nos teus olhos raia a vida,
Não ouso te fitar...
Eu tenho medo!

Quer dizer então que o poeta cheio de ardências era virgem? “Virgensíssi-
mo!”, escreveu Mário de Andrade. Medo do amor sexual, o mesmo medo de
Casimiro de Abreu, o poeta de Barra de São João (Estado do Rio) que escre-
veu sobre a saudade da “aurora da minha vida”, um amante da Natureza que
faz lembrar a poesia de Gonçalves Dias, “de quem herdou não só a sensibilida-
de, mas também as agruras do exílio”, como escreveu Ronald de Carvalho. O
poeta dos pressentimentos morreu com 23 anos.
Os pressentimentos e a fatalidade. Escrevendo e lendo aquela barbaridade
que Álvares de Azevedo leu (só 20 anos!), como ele teria tempo e forças para
as famosas noitadas? A solução era posar de desregrado, devasso, fazendo uma
poesia fiel ao clima da geração. Nas orgias inglesas, Lord Byron bebia num crâ-
nio transformado em taça com alguns ornamentos de ouro. Pois os seus discí-
pulos paulistanos, segundo a tradição acadêmica, iam beber vinho num crânio
desencavado lá no próprio cemitério iluminado à noite pelas tochas. O nosso
poeta escrevia sobre essas cerimônias satânicas, mas, na realidade, de acordo
com a versão, antes de dormir tomava um copo de leite.

120
Ál v a r e s de A ze v e do

Outra versão que corria: o poeta era um sonso, posava de bem-comportado,


mas quando morava com o avô, o Dr. Silveira da Mota, ao anoitecer pulava a
janela do sobrado e enrolado na capa preta lá ia embuçado para a Taverna do
Corvo. Ou para os prostíbulos da Rua da Palha, hoje Rua 7 de Abril. Quando
voltava para casa, uma mucama-cúmplice abria depressa o portão de ferro para
o pálido moço das olheiras negras.
E agora?!... Na terceira versão o estudante-poeta não era nem casto nem des-
regrado, mas um simples voyeur que sentia prazer apenas em olhar, olhar,
olhar... Prazer tão excitante quanto o de participar realmente da coisa, tudo
leva a crer que só assistir transmite o mesmo gozo com o cansaço no final, ah!
os pálidos jovens do vago n’alma com os devaneios e as vidências.
Quero lembrar agora o diálogo do poeta com o seu fantasma preferido, tan-
ta aflição e tanta dúvida:

Cavaleiro das armas escuras,


Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangrenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Só no final o fantasma responde ao poeta:

Sou o sonho de tua esperança,


Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!

Ano de 1852. Álvares de Azevedo tinha passado para o quinto ano do


curso e estava de férias com a família na Capital Federal, aquele Rio de Ja-
neiro que ele amava tanto; não gostava de São Paulo, “terra de formigas e
de caipiras”, conforme se queixava nas cartas para a mãe. Repentinamente

121
Lyg ia Fagu ndes Telles

sentiu-se mal e atribuiu as dores a uma queda quando cavalgava nos ermos da
paulicéia. Foi operado, tumor na fossa ilíaca. Falou-se em tuberculose, em
pulmões afetados, o Mal do Século, como se dizia na época. Muitos deles ti-
nham aquele palor e aquela dor, mas foi nítido o diagnóstico após a operação
que sofreu sem anestesia e sem gemido. E lembro agora que, após o acidente
com o tiro de espingarda, Castro Alves teve o pé amputado. Operação sem
gemido e sem anestesia: “Corta-o, doutor, assim terei menos matéria que o
resto da humanidade.”
Os moços das capas pretas e a antiga lição greco-romana do estoicismo, ah!
essa Escola de Morrer Cedo. O último poema e os presságios. Álvares de Aze-
vedo pede à mãe que saia do quarto, quer poupá-la. Aperta a mão do pai:

Se eu morresse amanhã, viria ao menos


Fechar meus olhos minha triste irmã
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Ele tinha às vezes acessos de humor, mas um humor irônico. Talvez achasse
graça ao saber que hoje o busto em sua homenagem erguido na Praça da Repú-
blica tem a cabeça de Fagundes Varela. Equívoco de quem encomendou a ho-
menagem e trocou as cabeças? Pois lá está a cabeça de Fagundes Varela com o
famoso verso do Maneco: “Foi poeta, sonhou e amou na vida.”
O leitor é o meu cúmplice, isso já foi dito em outra ocasião. Recorrendo ao
estilo romântico, convido agora esse leitor a descansar na mão direita a fronte
pensativa e refletir sobre essas versões em torno da vida do poeta: vamos, lei-
tor, vosso julgamento será definitivo.

122
P r o sa

A cultura na ABL:
Uma visão parcial
Ar n al d o N is k ie r

R ecebi da diretoria tarefa quase impossível: resumir, numa


palestra, o que tem sido a cultura na Academia Brasileira de
Letras. São 110 anos servindo ao Brasil, editando o Vocabulário
Ocupante da
Cadeira 18
na Academia
Brasileira de
Ortográfico, o Dicionário e tantas outras obras que marcam a pre- Letras.

sença da Casa de Machado de Assis, na sua obrigação maior que é a


defesa da língua portuguesa.
A escolha foi sofrida. Como deixar de fora Olavo Bilac, Coe-
lho Neto, Guimarães Rosa, Adonias Filho, Carlos Chagas Filho e
Laudelino Freire, por exemplo, com suas respectivas contribui-
ções? Faço desde logo a promessa de voltar ao assunto, para que
não me pese na consciência o que não é um esquecimento. Foram
selecionados 16 imortais, aos quais rendo minhas homenagens,
desta vez.


Palestra proferida na ABL, em 24 de julho de 2007.

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Arn a ldo Ni ski er

De pobre menino mestiço do Morro do Livramento, bisneto de escravo


alforriado, à presidência da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis
foi uma criação de si mesmo. E com sua talentosa presença no quadro da cul-
tura brasileira, acabou realizando um modelo de homem de letras. Tudo co-
meçou quando, em 16 de janeiro de 1855, a Marmota Fluminense, jornal literá-
rio daqueles meados do século XIX, acessível a principiantes e desconheci-
dos, sem distinção de méritos ou de classes, publicou seu primeiro poema,
chamado “A Palmeira”. Embora o título sugerisse outra coisa, era a confis-
são de um amor adolescente não correspondido – ele tinha 16 anos – mar-
cando os primeiros passos da sua carreira literária, antes mesmo de firmar-se
no jornalismo por intermédio dos contos e crônicas que precederam seus cé-
lebres nove romances.
Diante dos quais já se disse que, de certa forma, através de alguns de seus
muitos personagens, ele demonstrava profundos conhecimentos da alma hu-
mana. Segundo o Dr. José Leme Lopes, por exemplo, Machado de Assis foi
um verdadeiro psicanalista, que inclusive antecipou alguns estudos médicos
posteriores. Assim, ao tratar do ciúme em Dom Casmurro e do delírio de Brás
Cubas, se lastimando (“Estou sonhando, decerto, ou se é verdade que enlou-
queci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã que a
razão ausente não pode reger nem palpar”) e usando de anomalias como a lou-
cura de Quincas Borba e personalidades como a do Fortunato, de A Causa
Secreta, Machado teria chegado perto de estabelecer, em forma de ficção, uma
teoria ontológica da loucura. Isso sem falar de O Alienista, em que o Dr. Simão
Bacamarte começa a recolher os doentes no hospício da vila de Itaguaí e acaba
concluindo que a loucura, objeto de seus estudos, era uma ilha perdida no
oceano da razão. “Mas começo a suspeitar de que se trata de um continente!”
– diria depois.
Tudo faz crer que a influência da epilepsia numa pessoa de inteligência su-
perior, como Machado, levou-o a meditar sobre a inconstância e a fragilidade
do equilíbrio mental. Assim, muitas das suas grandes criações foram marcadas
pelo adoecer psíquico, as fronteiras entre a razão e a nebulosidade, as zonas de

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incompreensão entre os homens, os estados de equilíbrio dos enfermos e de


insensatez dos saudáveis. A alienação humana está em suas histórias. Ele disse-
cou a alma do brasileiro que viveu no Rio de Janeiro durante o Império. Nada
mais humano, portanto, universal. E é isso que faz com que, um século e meio
depois, os textos daquele que é considerado como um dos maiores ficcionistas
clássicos brasileiros permaneçam atuais.

“Há uma nova leitura de Machado de Assis, iluminada pelas angústias dos
nossos dias – disse Antonio Candido – porque ele fala também para o ho-
mem de hoje, aqui e agora, como Kafka ou Joyce.”

Em 1904, viúvo, depois de 35 anos de matrimônio com Carolina Augusta


Xavier de Novais, presença fundamental, paixão definitiva, que no dizer de Rui
Barbosa “o levara à família, que seu amor converteu em santuário”. E em memó-
ria de quem, dois anos depois, já considerado como um dos pontos mais altos da
Literatura Brasileira, Machado de Assis voltaria à poesia das primeiras letras, de-
dicando a ela seu mais famoso e amoroso soneto, chamado “A Carolina”:

“Querida, ao pé do leito derradeiro/ em que descansas dessa longa vida, /


Aqui venho e virei, pobre querida,/ trazer-te o coração de companheiro./
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro/ que, a despeito de toda a humana lida, /
fez a nossa existência apetecida/ e num recanto pôs o mundo inteiro. /
Trago-te flores, restos arrancados/ da terra que nos viu passar unidos / e
ora mortos nos deixa e separados./ Que eu, se tenho nos olhos malferidos/
pensamentos de vida formulados,/ são pensamentos idos e vividos.”

Com o apoio dela, Joaquim Maria Machado de Assis tinha construído uma
das obras mais universais da nossa Literatura. Autodidata, seu invejável talento
tinha enriquecido a vida daquele menino pobre e escrito sua biografia. Dele foi
a glória que fica, eleva, honra e consola.
Quem quisesse falar de Machado de Assis depois da biografia escrita em
1981 por Raimundo Magalhães Júnior estaria condenado a repetir o que já

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havia no livro. Jornalista, contista, cronista, teatrólogo, tradutor e poeta bis-


sexto (seus primeiros versos levavam o título de Impróprio para Menores), Maga-
lhães Júnior também organizou, fez o prefácio e publicou parte da obra de
Machado: Contos e Crônicas, Contos Esparsos, Contos Esquecidos, Contos Recolhidos,
Contos Avulsos, Contos sem Data e Diálogos e Reflexões de um Relojoeiro, entre outros.
Além disso e da autoria de mais de trinta textos para teatro, ao lado de antolo-
gias e dicionários, ele tinha se incumbido das biografias e ensaios biográficos
de Artur Azevedo, Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Ca-
simiro de Abreu, Rui Barbosa, Raimundo Correia, João do Rio, José do Pa-
trocínio, José de Alencar, Martins Pena e Olavo Bilac. Os caminhos cruzados
entre a Literatura, o Jornalismo e a História constituíram o legado emblemáti-
co de Magalhães Júnior (que neste 2007 estaria fazendo cem anos de idade).

Este 2007 marca também o “Ano Barbosa Lima Sobrinho”, homenagem


que a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
presta a quem foi o precursor do estudo científico da mídia no Brasil. Jornalis-
ta, político, humanista, jurista, mas, acima de tudo, nacionalista, ele escreveu
mais de 120 livros, num dos quais, Presença de Alberto Torres, mostrava as idéias
fundamentais daquele pensador, bem de acordo com as suas.

“Não tenho nada contra capitais que venham para ajudar o nosso desenvol-
vimento e fiquem aqui, criando raízes e produzindo riquezas” – declarava
Barbosa Lima. “Mas o conceito de globalização hoje difundido baseia-se
no nacionalismo das nações hegemônicas, que estão apenas defendendo
seus interesses e os interesses de suas empresas globalizadas, ávidas de lu-
cros além-fronteiras. Ou então dos investidores internacionais do mercado
financeiro, essa nuvem de gafanhotos que vêm buscar dividendos de nossos
juros altos e, quando se sentem inseguros, migram para outras paragens em
busca de lucros maiores e de menores riscos.”

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Ele achava que, como nação independente, deveríamos defender nossa eco-
nomia, nosso mercado, nossa produção, nossos trabalhadores, nosso povo.
“Os que agem dessa forma são nacionalistas, os outros não.”

Quando Alceu Amoroso Lima nasceu, no dia 11 de dezembro de 1893, em


uma casa da Rua Cosme Velho n.o 2, Machado de Assis tinha 54 anos e mora-
va no n.o 18 da mesma rua. Naquele velho Rio de Janeiro em tempo de transi-
ção do Império para a Primeira República, os vizinhos eram poucos, ainda se
olhavam, respeitosamente, e alguns até davam bons-dias. O bom-dia de Ma-
chado para a meninada da vizinhança era dizer uma pequena quadrinha humo-
rística que alguns decoravam e depois repetiam. Criança curiosa, o pequeno
Alceu recitava uma ou outra para retribuir o bom-dia daquele vizinho famoso,
de cuja obra, anos mais tarde, se tornaria um dos mais altos intérpretes.
Ao perceber seu amor pelas Letras (e seu ódio à Matemática), juntou-se ao
poeta Ronald de Carvalho e lançou a revista A Epocha, da Faculdade de Ciências
Jurídicas e Sociais, onde ele se formou em Direito. Como advogado, estagiou
no escritório de um tio de Manuel Bandeira. Logo iniciava sua carreira literária
e, quase paralelamente, protagonizava um rumoroso processo de conversão –
ou reconversão – ao catolicismo, iniciado em 1923 e terminado em 1928.
“Ponto final de uma fase de um jovem cheio de idéias evolucionistas” – admi-
tia ele. Depois de escrever vários livros tratando de problemas sociais, jurídi-
cos, políticos, econômicos, psicológicos e pedagógicos, além de memórias, foi
nomeado adido ao Ministério das Relações Exteriores. Pouco mais de um ano
depois, abandonaria a carreira diplomática para substituir o pai, o comenda-
dor Manuel José Amoroso Lima, na presidência da Companhia de Fiação e
Tecidos Cometa, patrimônio da família, posto que iria ocupar até 1937,
quando passou a dedicar-se exclusivamente ao magistério.
Muito antes, porém, recém-casado com uma irmã do escritor Otávio de Fa-
ria, Alceu tinha sido convidado por um amigo para ser crítico literário de O

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Jornal. Foi assim que o então ex-industrial passou a falar de livros, assinando-se
Tristão de Athayde, seu alter ego literário (pseudônimo que, aliás, ele pensava
ser inédito, até descobrir um conquistador português a caminho de outras
Índias, com o mesmo nome). E assim cumpriu ele essa função, durante 25
anos, ali e em vários outros lugares, inclusive tendo sido um dos defensores das
conseqüências da revolução modernista na Semana de 22. Foi mais ensaísta do
que crítico. Até 1945, depois de exercer o que Otto Maria Carpeaux chamou
de “incomensurável influência nas letras brasileiras”
Sem filiar-se a qualquer partido, exerceu constante atividade política. É dele
a conclusão de que no Brasil grande parte da capacidade criadora e realizadora
do povo é desperdiçada, simplesmente porque o acesso à escola está vedado à
maior parte da população. “Os bancos escolares e a Universidade em particu-
lar – a frase é dele – são privilégio dos economicamente favorecidos, que as-
sim se eternizam no poder.” Para Alceu, o mundo tinha mudado de cara, desde
a morte do Papa João XXIII. “A angústia nuclear sucedeu às luzes da esperan-
ça. Felizmente, consola-nos saber que a Humanidade se agita, mas a Providên-
cia é que a conduz.”
Em ardente sintonia com a arte de viver, desde jovem se destacou na área do
pensamento, da Literatura, da cultura em geral, sem perder o contato com as
transformações da sociedade brasileira e as mudanças do mundo. Em uma de
suas últimas declarações, ele diria em entrevista à revista Manchete:

“Sinto a necessidade de uma reforma moral para que o homem retome o


poder de si mesmo. Resolver os problemas do mundo sem recorrer à sabe-
doria acima da ciência é perda de tempo. O terrorismo no fim do século
XX é o desapontamento com os progressos materiais que minha geração
pensou serem definitivos. Se não entendermos que estes anos nos revela-
ram os males da existência de uma civilização sem Deus, fatalmente não
teremos como fugir de uma terceira guerra mundial, que será o holocausto
coletivo do mundo.”

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Considerado o intelectual mais representativo da América Latina (e catalo-


gado por alguns como “católico de esquerda”), era portador de um imprevisí-
vel, inesperado e peculiar bom humor. Por exemplo, quando traçou, a pedido
de João Condé, um auto-retrato biográfico publicado nos “Arquivos Implacá-
veis” da revista O Cruzeiro:

“Amei – Tive filhos, netos, bisnetos – Rezei – Atravessei a nado da Urca ao


Morro da Viúva – Já tive pior memória e melhor vista que hoje – Estudei e
ensinei na Sorbonne e fui professor nos Estados Unidos, onde aprendi a
ajudar minha mulher nos serviços domésticos – Conversei 10 horas segui-
das com Maritain – Já gostei de andar a pé – Não gosto de ouvir rádio –
Escrevi a lápis – Não fumei – Sempre usei gravata preta – Pequei – Tive re-
morsos – Nunca estive em escola primária, depois fui um aluno medíocre e
detestei meus tempos de ginásio – Atravessei os Andes a cavalo – Dirigi au-
tomóvel de Quebec, no Canadá, até a capital do México, mas hesitei duran-
te dois meses antes de guiar no Rio de Janeiro – Nunca conversei com meu
barbeiro – Desde os três anos, tenho horror a roupa apertada – De tudo
quanto tenho escrito, só reli com prazer a evocação da casa onde nasci – E
só tenho uma certeza na vida: morrerei quando Deus quiser.”

Deus quis no dia 14 de agosto de 1983, aos noventa anos de idade. Alceu
Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, deixou uma consistente obra de mais de
setenta livros, mas resumia-se em uma frase: “Passei a vida desarmado, física e
intelectualmente, odiando apenas o ódio e guerreando apenas a guerra.” Ficava
dele uma impressão permanente de eterna juventude. E de muita coragem,
porque foi uma das raras vozes da grande imprensa a falar de tristezas, mortes
e iniqüidades durante o longo período de exceção política dos anos 60/70.
Porque ele foi um homem que realmente viveu sua época. “Minha geração foi
apolítica, ou melhor, foi antipolítica” – sintetizava. Alceu foi uma referência
cultural e política deste país. “Não tenho uma formação política, tenho uma
formação de princípios” – definia-se. E porque – como chegaram a dizer – a
decência daquele homem era simplesmente avassaladora.

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“Ninguém exerceu em nosso país uma tão ampla militância intelectual


quanto ele” – dizia Josué Montello. “Um espírito exemplarmente combativo,
um dos condutores do Brasil mental, um guia, um chefe, um missionário, mes-
mo quando assumia posições abertamente polêmicas” – concluía Montello,
este professor, romancista, cronista, ensaísta, orador, historiador, teatrólogo e
memorialista, autor de mais de cem títulos, entre os quais o mais importante
foi Os Tambores de São Luís. Partindo da morte de dois homens – um negro com
uma facada nas costas e um branco abatido a pauladas em um bar –, esse ro-
mance histórico escrito em 1975 por Josué Montello cruzava duas linhas nar-
rativas que se fundiam em perfeita harmonia, através de numerosos persona-
gens, políticos, clérigos, aristocratas e tipos populares, que movimentavam o
interesse crescente do enredo que abrangia um largo período da vida brasileira,
entre 1838 e 1915. Ao fundo, o som dos tambores rituais vindos da casa das
negras-minas, cheios de nostalgia, de revolta, mas também de júbilo, dos anti-
gos escravos.

Afonso Arinos de Melo Franco foi o que Alceu Amoroso Lima definiu
como a mais fecunda vocação a unir Política e Letras no Brasil. Autor de mais
de cinqüenta livros, da Política à Economia, da Crítica à Poesia (uma de suas
grandes alegrias era a opinião do crítico literário Antonio Candido, que consi-
derava o seu A Alma do Tempo tão importante quanto Minha Formação, de Joa-
quim Nabuco), historiador (em Um Estadista da República e Rodrigues Alves, Apogeu e
Declínio do Presidencialismo), deputado federal, senador (um exemplo do analista
experiente e isento da vida pública), ministro, embaixador do Brasil na ONU,
orador (os discursos dele ajudaram a derrubar Vargas em 1954), advogado,
professor de Direito, cientista social, erudito.
Amante de tudo que o cercava, curioso, febril de tudo o que via, Arinos,
um aristocrata – no melhor sentido do termo, pela elevação espiritual, e
também no jeito de viver, de ser, de sentir, de morar e de escrever –, confes-

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sadamente nunca viu o Brasil senão através da cultura – no seu sentido so-
ciológico de “herança social” – e jamais usou seus vastos conhecimentos
senão com reservada simplicidade e modéstia. Sobretudo, um aristocrata
despido de preconceitos, autor da lei contra a discriminação racial, de 3 de
julho de 1951, que leva seu nome, a Lei Afonso Arinos. “A inteligência
dele era luminosa” – dizia Rachel de Queiroz. “As discussões terminavam
quando ele falava algumas palavras. Eram como gotas de uma reação quí-
mica. Clareavam tudo.”
De sua longa lista de trabalhos, um deles, Amor a Roma, de 1982, é uma de-
claração de amor àquela que Arinos chamava de “rainha das cidades”, que ele
conheceu e aprendeu a admirar aos dezenove anos. “Uma meditação afetiva
sobre a capital italiana” – como ele mesmo definiu. Uma longa gestação literá-
ria ao longo da produtiva vida desse brilhante intelectual de cultura mais sele-
ta. Um verdadeiro poema em que Arinos soube misturar elementos culturais
universais com uma profunda acuidade perceptiva – como achou a Crítica. Na
contemplação menos das coisas do que do tempo, é um preito à Cidade Eter-
na, dos césares, de Augusto, de Virgílio e de Horácio, de Calígula e de Nero,
dos cardeais e dos papas, tantas vezes ocupada, arrasada, pelos gauleses, pelos
bárbaros, pelos alemães e franceses no Renascimento, pelos nazistas no século
passado, mas que não cede nunca, porque, segundo Afonso Arinos de Melo
Franco, “sua grandeza é inconquistável”.
E que levou Pedro Nava a dedicar-lhe um “Palíndromo do Amigo”, assim:

Amor, Roma/ Amor a Roma/ Amor, aroma/ Amor a Roma.

Foi no colo de um intelectual mestre em descrever brasilidades, chamado


Afonso Arinos (tio de Afonso Arinos de Melo Franco), que Alceu Amoroso
Lima, ainda menino, tinha ouvido fascinantes histórias do sertão. Homem de
horizontes largos, dividido entre Paracatu e Paris, o velho Afonso Arinos ti-

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nha falecido em 1916, em Barcelona. Pois foi por influência dele que Alceu leu
Os Sertões, de Euclides da Cunha, obra maior que deflagraria um processo cul-
tural capaz de nos dar a maioridade literária.
Lançado em 1902 e escrito numa linguagem “agreste como um cipó” –
na expressão de um crítico –, o livro focalizava o sertanejo, um tipo de bra-
sileiro até então ignorado pelos seus irmãos do litoral, em sua maioria so-
fisticados, europeizados. Na tapeçaria lingüística de Os Sertões, um estilo
em permanente estado de ignição, no qual o autor depositava a carga de
tensão da história:

“Não lhes avaliavam o número. Os cerros mais altos, bojando em espo-


rões sobre a várzea, figuravam-se desertos. Batia-os de chapa o sol ofus-
cante e ardente; viam-se-lhes os mínimos acidentes da estrutura; podiam-
se-lhes contar um a um os grandes blocos, que por ali se espalham.”

Paisagem, ação, emoção. Uma epopéia sertaneja em um livro-protesto.

“Os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra: enrijavam-nos os reve-


zes, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota [...] ecoavam largos dias,
monótonos, pelos ermos, por onde passavam as lentas procissões propicia-
tórias, as ladainhas tristes [...] rebrilhavam longas noites nas chapadas, per-
vagantes as velas dos penitentes...”

Naquelas palavras nada comuns, na virilidade de suas frases, Euclides da


Cunha depositava toda sua força expressiva:

“Em breve, céleres, arrebatadas pelo vento, enoveladas em rolos de fumo


cindidos de labaredas, rolando pelas quebradas e transpondo-as, circulando
todas as encostas, avassalando todos os topos dos morros, repentinamente
acesos num relampaguear de crateras súbitas, crepitavam as queimadas,
inextinguíveis, derramando-se por muitas léguas em roda.”

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Um texto de reflexão, de estudo, de revolta.

“Pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as


acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes numa trama vibrátil de centelhas
... e animam-se os ares numa palpitação de asas céleres ruflando ...”

Na verdade, a preferência pela palavra inusitada, de extração rara, em Os Ser-


tões, mostrava alguém de gosto exigente e estilo precioso. Entretanto – segundo
Nereu Corrêa, estudioso da obra de Euclides da Cunha –, não era apenas o vo-
cabulário que nos fornecia o atestado de seus escritos como um clássico da pa-
lavra brasileira. Era a trama do drama relatado. Era o clima de epopéia que o
texto sugeria. Foi o nível cultural que a obra alcançou.

Pois assim como Os Sertões, outro livro lançado exatamente no mesmo ano de
1902 é considerado também emblemático e semiótico: Canaã, a obra mais signifi-
cativa de Graça Aranha. Escrito em estilo simbolista e com tendências de análise
social, contando como era a vida em uma colônia de imigrantes europeus no Espí-
rito Santo, no começo do século passado, a história girava em torno de dois perso-
nagens principais, Milkau e Lentz, que tinham modos opostos de ver o mundo,
um achando que estava na “terra prometida” (Canaã), e o outro, inadaptado à rea-
lidade brasileira, racista e preconceituoso, acreditando na superioridade da raça
ariana sobre os mestiços, considerados por ele como fracos e indolentes.
Homem com espírito de vanguarda, Graça Aranha participou mais tarde da
Semana de 22, proferindo uma conferência no Teatro Municipal de São
Paulo intitulada “A emoção estética na Arte Moderna”, abrindo uma fase agi-
tada nos círculos literários da época. E em sessão memorável desta Casa, dis-
correndo sobre o tema “O espírito moderno”, em 19 de junho de 1924, ele
rompeu com a Academia Brasileira de Letras (segundo suas próprias palavras,
“sem o menor ressentimento pessoal”). Mas merecendo o seguinte comentário

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de Coelho Neto: “O brasileirismo dele é de inspiração européia, copiado da-


quilo que ele viu durante sua carreira diplomática.”
Enquadrando-se no período chamado de “pré-modernismo”, Graça Ara-
nha passou a ser considerado como um dos principais motivadores do movi-
mento renovador da nossa Literatura.

“No sertão não se tem como/ não viver sempre enlutado/ lá o luto não é
de vestir/ é de nascer, com luto nato./Sobe de dentro, tinge a pele/ de um
fosco fulo: é quase raça/ luto levado toda a vida/ e que a vida empoeira e
desgasta.”

Usando uma expressão poética com valor às vezes simbólico, que denuncia-
va a crítica que pretendia fazer, João Cabral de Melo Neto rompia com o liris-
mo, abordando a realidade geográfica, humana e existencial do Nordeste. Um
poeta voltado para a temática social, abordando aquelas vidas severinas.

“E mesmo o urubu que ali exerce/ negro tão puro noutras praças/ quando
no sertão, usa batina/ negra-fouveiro, pardavasca.”

Nada a ver com seu primeiro livro, Pedra do Sono, onde o que ele pretendeu
foi, confessadamente, “compor um buquê de imagens a cada poema”. Logo
João Cabral rejeitaria toda poesia nascida de inspiração, assumindo a objetivi-
dade diante do ato de escrever. “O poema – dizia ele – deve resultar de uma
atitude racionalista, objetiva, diante da realidade concreta, uma atitude de
quem controla as emoções”. Tanto que seus quase quinze livros são marcados
por um extremo cuidado formal (onde se pode perceber, algumas vezes, até
um questionamento quanto à validade do próprio ato de escrever).
Um poema-narrativo subintitulado “Auto de Natal pernambucano”, cha-
mado Morte e Vida Severina, de 1956, é seu trabalho estelar, tendo sido adaptado
para o palco com muito sucesso.

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“O meu nome é Severino,/ não tenho outro de pia./ Como há muitos Se-
verinos,/ que é santo de romaria,/ deram então de me chamar/ Severino de
Maria;/ como há muitos Severinos/ com mães chamadas Maria,/ fiquei
sendo o da Maria/ do finado Zacarias./ [...] Vejamos: é o Severino/ da
Maria do Zacarias,/ lá da serra da Costela,/ limites da Paraíba.”

Expressão poética anti-lírica, síntese talvez do espírito da obra inteira de


João Cabral de Melo Neto.

“[...] Somos muitos Severinos/ iguais em tudo na vida:/ na mesma cabeça


grande/ que a custo é que se equilibra,/ no mesmo ventre crescido/ sobre
as mesmas pernas finas,/ e iguais também no sangue/ que usamos tem pou-
ca tinta./ E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de
morte igual,/ mesma morte severina [...]”

A mesma vida – e morte –, não sertaneja, mas severina, que Marques Rebe-
lo pintou em Marafa, imenso mural da metrópole individual e coletiva, pessoal
e anônima que era o Rio de Janeiro por volta dos anos 30.

“Mendigos estendem as mãos imundas mostrando chagas, andrajos e de-


formidades, mendigas dão maminhas mirradas a esqueletos de crianças.
Inválidos, cegos, aleijados, suspeitas caras de leprosos.”

Uma crônica, só que do tamanho que um livro exige. Uma atitude meio
zombeteira, mas piedosa. Ali, Marques Rebelo dava continuidade à tradição
dos mestres admiráveis da novela urbana, da vida pobre, monótona, sempre di-
fícil de quase toda gente, de muitos de todos nós.

“Há mendigos nas soleiras, no portão dos cemitérios, nos degraus das igre-
jas, à porta dos restaurantes, dormindo no sopé das estátuas e nos bancos

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das praças. Há tantos mendigos e falsos mendigos como há pardais. E há a


Comissão de Turismo convidando o mundo, com maus cartazes, para co-
nhecer as belezas naturais da capital maravilhosa.”

No meio de seus flagrantes, suas histórias irônicas e ao mesmo tempo enter-


necidas, transparecia uma funda simpatia de Marques Rebelo pelos humildes e
desajustados. Era mais um romancista da mesma estirpe de um Machado de
Assis e de um Lima Barreto, falando da vida como ela era.

Embora mais político, orador, jurisconsulto, parecerista, crítico e jornalista


de combate do que literato, Rui Barbosa deixou uma extensa obra escrita que
inclui as Cartas de Inglaterra, o discurso a Anatole France e a despedida a Macha-
do de Assis, além de uma produção jornalística – mesmo a de cunho político –
acentuadamente literária. Afinal, a partir da Independência, o Brasil aceitara
tacitamente o Jornalismo como uma expressiva manifestação da cultura literá-
ria. A imprensa preenchia algumas tendências de então: nacionalista pelo me-
nos nas aparências, às vezes populista e demagógica, quase sempre irreverente
em alegorias e levemente humorística nas charges. De certa forma, a retórica
dissimulando a essência. Daí a glória de Rui na época e o quase desconheci-
mento de Machado, contemporâneos que, aliás, se admiraram mutuamente.
Por intermédio do Jornalismo, Rui ganhara a fama, verdadeira adoração, que
em certos casos chegava ao delírio (síntese exponencial daquilo que o brasilei-
ro gostaria de ser e não era, um dia a “Águia de Haia” teve seu carro desatrela-
do pelos populares e ele carregado em festa pelas ruas).
Não faltaram contradições, tantas vezes assinaladas, em sua movimentada
vida. Anticlerical convicto, contrário à ingerência da Igreja nos assuntos de
Estado, insurgiu-se, baseado em princípios positivistas, contra a vacina obriga-
tória por considerá-la um atentado à inviolabilidade da pessoa humana. Pre-
gou a Abolição da Escravatura e contribuiu para a queda do Império. Foi o

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principal e quase único autor da Constituição de 1891. Deputado em duas le-


gislaturas, três vezes candidato derrotado à Presidência da República. E entre
poesias, discursos e pareceres parlamentares, além de trabalhos diversos, é au-
tor de duas históricas propostas apresentadas ao Parlamento, uma em 1882,
de reforma dos ensinos secundário e superior, outra, em 1883, de reforma do
ensino primário e de várias instituições complementares de instrução pública.
Rejeitadas, ambas.
Se Rui Barbosa não é considerado “literato” por alguns, foi sempre de ine-
gável destaque sua presença no quadro da cultura deste país. E, entre seus tex-
tos mais importantes, destaca-se o que foi intitulado “Oração aos Moços”, seu
discurso como paraninfo dos bacharéis da turma de 1921 da tradicional Fa-
culdade de Direito da Universidade de São Paulo:

“Pesai bem que vos ides consagrar à lei num país onde ela absolutamente
não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligar-
quias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis as que põem e
dispõem, as que mandam e desmandam em tudo, num país onde não há lei,
não há moral, política ou juridicamente falando. E justiça atrasada não é
justiça.”

Era, entre muitas, uma de suas mais belas peças oratórias. Entretanto, foi
lida no dia 29 de março de 1921 por Reinaldo Porchat e não por ele, pois a
doença que levaria Rui à morte, no ano seguinte, já o impedia de fazê-lo:

“Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcan-
ce, a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de atividade incansável
com que desde os bancos acadêmicos o servi e o tenho servido até hoje. Pre-
guei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade constitucional, a ver-
dade republicana. Estudante ainda sou. Nada mais.”

Às vezes pomposo, quase barroco, mas, no fundo, sempre direto, objetivo:

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Arn a ldo Ni ski er

“Se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um,
nos limites de sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas,
pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho. O traba-
lho não é o castigo, é a santificação das criaturas. Tudo o que nasce do tra-
balho é bom, tudo o que se amontoa pelo trabalho é justo, tudo o que se as-
senta no trabalho é útil.”

Um libelo. Um apelo embutido em um texto de valor literário, portan-


to cultural:

“Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se en-


cerra a síntese de todos os mandamentos. Não desertar da Justiça, nem cor-
tejá-la, não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não
transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia.
Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio destes
contra aqueles. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear
pela iniqüidade ou a imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impo-
pulares nem à das perigosas, quando justas.”

Era uma oração não só aos moços e não só aos bacharéis. Era a todos nós, de
sempre, e não só daqueles dias do século passado:

“Guardemo-nos das proteções internacionais. Acautelemo-nos das inva-


sões econômicas. Vigiemo-nos das potências absorventes e das raças expan-
sionistas. Não nos temamos tanto dos impérios já saciados quanto dos an-
siosos por se fazerem tais à custa dos povos indefesos e mal governados. Te-
nhamos sentido nos ventos que sopram de certos quadrantes do céu. O Bra-
sil é a mais cobiçável das presas e, oferecida como está, incauta, ingênua,
inerme a todas as ambições, tem, de sobejo, com que fartar duas ou três das
mais formidáveis.”

138
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l

O Quinze era o nome do romance que Rachel de Queiroz escreveu aos 18


anos, contando a história de Conceição, Vicente, Chico Bento, Cordulina,
Mãe Inácia e outros personagens, deixando sua marca na nossa Literatura e en-
trando com eles, com todo vigor, no grupo daqueles que o espírito endiabrado
e crítico, anarquista e sarcástico de Oswald de Andrade tinha qualificado de
“os búfalos do Nordeste”, que, segundo ele, “invadiram a Semana de Arte
Moderna com a seca como temática”.
Acabou “musa” de Manuel Bandeira, que tinha participado da Semana de
22 indiretamente, com suas rimas toantes de “Os Sapos” lidas por Ronald de
Carvalho e elogiadas por Mário de Andrade, que o chamava de “São João Ba-
tista do Modernismo”. Um Manuel Bandeira já bem longe do parnasiano e
simbolista de A Cinza das Horas, seus primeiros versos. Agora ele era um poeta
do Modernismo brasileiro em louvação:

“Louvo o Padre, louvo o filho/ o Espírito Santo louvo./ Louvo Rachel,


minha amiga/ nata e flor do nosso povo/ .../ ninguém tão Brasil quanto
ela,/ brasílica, brasiliense/ brasiliana, brasileira/ .../ louvo Rachel e, louva-
da uma vez,/ louvo-a de novo/ .../ louvo o seu romance ‘O Quinze’/ e os
outros três/ .../ louvo seu teatro: Lampião/ e a nossa Beata Maria./ Mas
chega de louvação/ porque por mais que louvemos/ nunca a louvaremos
bem./ Em nome do Pai, do filho/ e do Espírito Santo, amém.”

Bandeira jogava livremente com as palavras, a costura vinha depois, com


uma fina linha de ceticismo. “O sol tão claro lá fora/ o sol tão claro, Esmeralda/ e em
minhalma, anoitecendo.” Descartava, para sempre, o lirismo bem-comportado. E
foi-se embora para Pasárgada, que lá era amigo do rei.

Se O Quinze foi importante na vida de Rachel de Queiroz, “os quinze” fo-


ram marcantes na vida de um adolescente chamado Jorge Amado: os quinze

139
Arn a ldo Ni ski er

anos. Foi a idade em que tudo começou para ele, escrevendo uma novela em
parceria com Dias da Costa e Edson Carneiro chamada Lenira, precursora das
suas Gabrielas, Donas Flores, Tietas do Agreste e Terezas Batistas cansadas de
guerra, que um dia se libertaram dos grilhões de papel dos livros e se espalha-
ram em som e imagem por outros meios de comunicação, rádio, teatro, cinema
e televisão. Nessa transposição da palavra lida para a palavra dita, ele se fez
pioneiro e, espiando o mundo pelo buraco da fechadura, abriu alguns cami-
nhos da nossa moderna Literatura, também inovando, desbravando.
De Jorge Amado já disseram que foi o único habitante deste planeta que con-
seguiu acreditar, com a mesma sinceridade, em Marx e em Menininha do Gan-
tois. Uma mistura de pai-de-santo e pajé que contava histórias para a taba glo-
bal, uma obra caudalosa, cheia de cheiros e quente de pecados, com um elenco de
mulatas cadeirudas e cobiçadas, xangôs, iemanjás, saveiros, cabarés e velórios,
turcos fesceninos, duendes e salafrários, povo e polícia, marinheiros mentirosos,
doutores de borla e capelo, capitães de longo curso, quituteiras e babalaôs povo-
ando suas noites enfeitiçadas, seus terreiros de suor e milagres. Um leque aberto
diante dos delitos da carne e da alma, mostrando algumas molecagens da vida.

“Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas”. Esse era Afrânio Coutinho, pro-


fessor, ensaísta, crítico literário. Apesar de inicialmente contestada, uma obra de
mais de 30 livros que representam um marco no pensamento crítico brasileiro
(entre os quais A Tradição Afortunada, Prêmio Nacional do Livro). Abrindo uma
militância pela renovação da crítica entre nós, tornando-a matéria de fundo me-
todológico e afastando a improvisação então reinante na sua época, seus ensaios
provocaram uma reformulação da atividade literária. Afrânio Coutinho tinha in-
troduzido a “crítica formalista” entre nós, proporcionando, em conseqüência,
uma nova compreensão das letras nacionais.

140
A c u ltu ra na A BL : U m a v i s ã o p a r c i a l

Apesar de toda a sua gigantesca dedicação às atividades literárias, Belarmino


Maria Austregésilo Augusto de Athayde foi autor de poucas obras ficcionais.
Além de Histórias Amargas, livro de contos de 1921, cinco livros de ensaios, en-
tre os quais Epístola aos Contemporâneos, de 1967, e três livros de crônicas, entre os
quais Conversas na Barbearia Sol, de 1971. Mas talvez não haja ninguém que te-
nha escrito mais do que ele, no Brasil, inclusive o seu Vana Verba.
“Não me interessa publicar livros” – argumentava. “Como jornalista, fiz li-
teratura”. Um de seus maiores orgulhos era o de ter sido o mais antigo articu-
lista e editorialista deste país, trabalhando no Jornal do Commercio. “Sou jornalis-
ta e quero continuar sendo intérprete do meu tempo e profeta do futuro de
minha terra”. Para Austregésilo de Athayde, o ato mais importante de sua vida
foi ter escrito a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

“Jamais escrevi uma linha que não expressasse as minhas convicções demo-
cráticas. Sou incapaz de ser a favor ou contra esse ou aquele homem, sou a
favor ou contra as idéias, os pontos de vista. Na verdade, o que almejo mes-
mo é a preservação da unidade nacional e o bem-estar do povo brasileiro.”

Esses foram os primeiros homenageados.


Espero ter a chance de elaborar o “Cultura na ABL – II”, para enriquecer a
coleção de grandes nomes da cultura brasileira que passaram pela Casa de Ma-
chado de Assis.

141
P r o sa

Contos
M o a c y r S c l ia r

TREM FANTASMA
Afinal se confirmou: era leucemia mesmo a doença de Matias, e a Ocupante da
Cadeira 31
mãe dele mandou me chamar. Chorando, disse-me que o maior de- na Academia
sejo de Matias sempre fora passear de Trem Fantasma; ela queria sa- Brasileira de
tisfazê-lo agora, e contava comigo. Matias tinha nove anos. Eu, dez. Letras.

Cocei a cabeça.
Não se poderia levá-lo ao parque onde funcionava o Trem Fan-
tasma. Teríamos de fazer uma improvisação na própria casa, um an-
tigo palacete nos Moinhos de Vento, de móveis escuros e cortinas
de veludo cor de vinho. A mãe de Matias deu-me dinheiro; fui ao
parque e andei de Trem Fantasma. Várias vezes. E escrevi tudo num
papel, tal como escrevo agora. Fiz também um esquema. De posse
destes dados, organizamos o Trem Fantasma.
A sessão teve lugar a 3 de julho de 1956, às 21 horas. O minuano
assobiava entre as árvores, mas a casa estava silenciosa. Acordamos o
Matias. Tremia de frio. A mãe o envolveu em cobertores. Com todo
o cuidado colocamo-lo num carrinho de bebê. Cabia bem, tão mir-

Campo de trigo com um ceifeiro, de Van Gogh. 143


M oa cyr Sc li ar

rado estava. Levei-o até o vestíbulo da entrada e ali ficamos, sobre o piso de
mármore, à espera.
As luzes se apagaram. Era o sinal. Empurrando o carrinho, precipitei-me a
toda velocidade pelo longo corredor. A porta do salão se abriu; entrei por ela.
Ali estava a mãe de Matias, disfarçada de bruxa (grossa maquilagem vermelha.
Olhos pintados, arregalados. Vestes negras. Sobre o ombro, uma coruja empa-
lhada. Invocava deuses malignos).
Dei duas voltas pelo salão, perseguido pela mulher. Matias gritava de susto
e de prazer. Voltei ao corredor.
Outra porta se abriu – a do banheiro, um velho banheiro com vasos de sa-
mambaia e torneiras de bronze polido. Suspenso do chuveiro estava o pai de
Matias, enforcado, língua de fora, rosto arroxeado. Saindo dali entrei num
quarto de dormir onde estava o irmão de Matias, como esqueleto (sobre o tó-
rax magro, costelas pintadas com tintas fosforescentes; nas mãos, uma corrente
enferrujada). Já o gabinete nos revelou as duas irmãs de Matias, apunhaladas
(facas enterradas nos peitos; rostos lambuzados de sangue de galinha. Uma es-
tertorava).
Assim era o Trem Fantasma, em 1956.
Matias estava exausto. O irmão tirou-o do carrinho e, com todo o cuidado,
colocou-o na cama.
Os pais choravam baixinho. A mãe quis me dar dinheiro. Não aceitei. Corri
para casa.
Matias morreu algumas semanas depois. Não me lembro de ter andado de
Trem Fantasma desde então.

144
C o n to s

A ORELHA DE VAN GOGH


Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pe-
queno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não
tinha como pagar.
Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem cul-
to, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara
no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e lin-
güiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam
dele, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os
fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores que-
riam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia no momento era conheci-
do como um credor particularmente implacável.
Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não
meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse ho-
mem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e
dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem
rude e insensível, tinha uma paixão secreta por Van Gogh. Sua casa estava
cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos
meia dúzia de vezes ao filme de Kirk Douglas sobre a trágica vida do artista.
Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre Van Gogh e passou o fim de se-
mana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quar-
to se abriu e ele surgiu, triunfante: – Achei!
Levou-me para um canto – eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice –
e sussurrou, os olhos brilhando: – A orelha de Van Gogh. A orelha nos salvará.
O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha
escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada,
nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico. Depois me
explicou. O caso era que o Van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha
e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: pro-
curaria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, amante da

145
M oa cyr Sc li ar

mulher por quem Van Gogh se apaixonara, a orelha mumificada do pintor.


Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.
– Que dizes?
Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilu-
sões. Contudo, o fato de a idéia ser absurda não me parecia o maior problema;
afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A
questão, contudo, era outra: – E a orelha?
– A orelha? – olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido.
Sim, eu disse, a orelha do Van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele
disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O
servente é meu amigo, faz tudo por mim.

No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo


um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol,
contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de Van Gogh,
anunciou, triunfante.
E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro
um rótulo: Van Gogh – orelha.
À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava.
Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não
apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela
janela.
– Falta de respeito!
Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevi-
tável. Fomos caminhando pela rua tranqüila, meu pai resmungando sempre:
falta de respeito, falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:
– Era a direita ou a esquerda?
– O quê? – perguntei, sem entender.
– A orelha que o Van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?
– Não sei – eu disse, já irritado com aquela história. Foi você quem leu o li-
vro. Você é quem deve saber.

146
C o n to s

– Mas não sei – disse ele, desconsolado. Confesso que não sei.
Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momen-
to, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta pode-
ria ser o fim da minha infância. Mas:
– E a do vidro? – perguntei. Era a direita ou a esquerda?
Mirou-me, aparvalhado.
– Sabe que não sei? – murmurou numa voz fraca, rouca. Não sei.
E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha – qual-
quer orelha, seja ela de Van Gogh ou não –, verá que seu desenho se assemelha
ao de um labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.

147
P r o sa

A Língua Portuguesa
na concepção dos
fundadores da ABL
E v an i ldo B e c h a r a

N o ano de seu nascimento – 1897 – faz-se mister uma pes-


quisa que venha trazer à luz do dia que idéia tinham da lín-
gua portuguesa os fundadores da ABL, uma vez que desde o surgi-
Ocupante da
Cadeira 33
na Academia
Brasileira de
mento das modernas academias se estabelecia estreito vínculo entre Letras.
o idioma e os propósitos das instituições do gênero.
No caso da ABL, o primeiro passo da pesquisa põe-nos diante de
uma questão gramatical, de um procedimento de concordância no-
minal, aparentemente trivial e inocente, mas que, com a sua correta
solução, se desdobrará um rosário de intenções comunicativas que
porá a nu toda uma orientação programática dos fundadores da
Casa de Machado de Assis, quando assim redigiram a parte inicial
do art. 1.o dos Estatutos:
“A Academia Brasileira de Letras, com sede no Rio de Janeiro,
tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional (...)”
Se estamos no caminho da boa interpretação desse artigo inicial,
é de toda importância ressaltar a extrema inteligência que norteou
os redatores dos Estatutos na concepção do programa superior da

149
Ev a n i ldo Bec hara

novel instituição ao fixar-lhe a finalidade da “cultura da língua e da literatura


nacional”.
A primeira impressão do analista é que a expressão “língua e literatura naci-
onal” exemplifica a possibilidade da norma gramatical segundo a qual o adjeti-
vo nacional, aparentemente referido aos dois substantivos língua e literatura, está a
concordar por atração com o último elemento da série, isto é, com literatura, em
vez de ficar no plural, para concordar com a totalidade dos termos da série: “a
cultura da língua e da literatura nacionais”.
Se assim supõe o analista, deixou escapar um mundo de intenções que se es-
conde e justifica o emprego consciente e exclusivo do singular, aplicado
tão-somente a literatura, e não a língua: “a cultura da língua e da literatura
NACIONAL”.
Para penetrarmos o segredo dessa admirável opção gramatical, rica de tan-
tos propósitos subjacentes, convidamos os caros ouvintes e leitores a acompa-
nhar as razões que sustentam o emprego do singular no artigo dos Estatutos.
Todos sabemos – e os nossos fundadores não nos subtraíram essa fonte ins-
piradora – que a Academia Francesa lhes ministrou régua e compasso para
seus objetivos e propósitos como instituição acadêmica de Letras no Brasil.
No discurso de inauguração, Machado de Assis assim se pronunciou:

“A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos movi-


mentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa
há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso.”

O modelo acadêmico francês inspirou nos nossos fundadores muito


mais do que aspectos organizacionais; inspirou-lhes também o sadio prin-
cípio de que a instituição há de ter, em matéria de língua, como lembrara
havia muito José Veríssimo, a missão de “acompanhar o uso; o público,
compreendendo os escritores, é que faz as reformas. Ela se limitou sempre
a dar-lhes ou negar-lhes, conforme as julga boas ou más, a consagração da
sua autoridade”.

150
A Lín gua Por tu gu esa na c o nc epç ão do s f u n da do r e s da A B L

Lembra ainda o mesmo acadêmico, na 3.a série dos Estudos da Literatura Brasi-
leira, a ação desenvolvida pelo Cenáculo francês no que se refere ao registro da
língua em uso, “não – como diz a Academia – no uso que começa, mas no uso
geralmente aceito”.
É oportuno vermos essa afirmação ratificada ressoar nas palavras de Ma-
chado de Assis, no substancioso artigo publicado em 1873, sobre o instinto de
nacionalidade da Literatura Brasileira e a questão da língua:

“Há, portanto, certos modos de dizer locuções novas, que de força en-
tram no domínio do estilo e ganham direito de cidade. Mas se isto é um fato
incontestável, e se é verdadeiro o princípio que dele se deduz, não me parece
aceitável a opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda aque-
las que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma.”

Desta forma, entenderam os nossos fundadores em 1897 que o papel que


cabe à Academia, pelo modelo que lhe ministra a instituição francesa, é empres-
tar o prestígio de sua autoridade ao que considera bom uso que os escritores bra-
sileiros fizeram e fazem da rica herança lingüística que os portugueses lhes lega-
ram. Aliás, esta é a firme convicção dos escritores mais representativos do perío-
do anterior a 1897. Em carta datada de 1857, longa e programática, a Pedro
Nunes Leal, Gonçalves Dias chega a duas conclusões que agora nos cabe repro-
duzir, dentre outras de que nos valeremos no decorrer desta exposição:

“2.a Que uma só coisa fica e deve ficar eternamente respeitada: a gramáti-
ca e o gênio da língua.
3.a Que se estudem muito e muito os clássicos, porque é miséria grande
não saber usar das riquezas que herdamos.”

Joaquim Nabuco repetiria, na essência, as mesmas idéias exaradas no art. 1.o


dos Estatutos e na carta de Gonçalves Dias, ao proferir o discurso de posse
como Secretário-Geral, na sessão inaugural desta Academia, aos 20 de julho de
1897:

151
Ev a n i ldo Bec hara

“(...) devemos reconhecer que eles [os portugueses] são os donos das
fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las
indo a eles. A língua é o instrumento de idéias que pode e deve ter uma fixi-
dez relativa; nesse ponto tudo precisamos empenhar para secundar o esfor-
ço dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conser-
var as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época...
Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano, Garrett e os seus suces-
sores deixem de ter toda a vassalagem brasileira. A língua há de ficar perpe-
tuamente pro indiviso entre nós; a Literatura, essa, tem que seguir lentamente
a evolução diversa dos dois países, dos dois hemisférios. A formação da
Academia é a afirmação de que literária, como politicamente, somos uma
nação que tem o seu destino, seu caráter distinto e só pode ser dirigida por
si mesma, desenvolvendo sua originalidade com os seus recursos próprios,
só querendo, só aspirando à glória que possa vir de seu gênio.”

Por estas afirmações do Secretário-Geral, que refletem medidos e conta-


dos os propósitos dos fundadores durante as “salutares e íntimas confabu-
lações da sala de redação da Revista Brasileira”, conforme palavras do Rela-
tório de Rodrigo Octavio, temos condições de afirmar que, no art. 1.o do
Estatuto, a palavra língua se refere à língua portuguesa e a palavra literatura se
aplica à literatura brasileira e que, portanto, só a esta pertence o adjetivo nacio-
nal. Não se trata de um caso de concordância atrativa, mas de uma firme
idéia dos fundadores da Casa de Machado de Assis de que a língua dos bra-
sileiros é a língua portuguesa, rica herança com que iriam plasmar o gênio
nacional da Literatura Brasileira.
Firmavam com isto os fundadores que a Academia Brasileira não teria como
propósito, como a italiana, buscar o farelo para separar o joio do trigo, nem
como divisa da agremiação teria uma peneira, segundo idéia da Academia della
Crusca, em Florença, em 1582. Não seria uma academia da língua, tal quais a
francesa, de 1635, a espanhola, de 1713, e a portuguesa, de 1779. Destas dife-
rindo neste particular, não figurou nos Estatutos a elaboração de um Dicioná-

152
A Lín gua Por tu gu esa na c o nc epç ão do s f u n da do r e s da A B L

rio da língua, como aquelas realizaram, e de Gramática, como efetivaram a es-


panhola, em 1771, e a francesa só em 1932.
Não estar estruturada a exercer no Brasil do último quartel do século XIX as
funções de uma academia da língua justifica a aparente incongruência de não in-
corporar ao seu quadro figuras proeminentes dos estudos lingüísticos e filológi-
cos dessa época. O fato é ainda mais para notar, porque 1897 estava muito perto
do movimento renovador do ensino de línguas dos preparatórios, máxime da
vernácula, graças à reforma de Fausto Barreto, em 1887, dez anos antes, para
atender à solicitação do Diretor Geral da Instrução Pública, Emídio Vitório.
Maximino Maciel, ilustre representante do grupo de escol que à época se aplica-
va aos estudos gramaticais, assim nos aponta as excelências dessa reforma:

“O que foi este programa, a influência que exerceu, o efeito que produ-
ziu pela orientação que paleava, desviando o álveo do curso das línguas, agi-
tando questões a que se achavam alheios muitos dos docentes, é mister asse-
gurarmo-lo: assinalou nova época na docência das línguas e, quanto à verná-
cula, a emancipava das retrógradas doutrinas dos autores portugueses que
espousávamos.” [Maciel, 1922]

Por esta característica, não buscou para o seio da instituição nenhum dos
expoentes dessa reforma para cujo programa se escreveram, a partir de 1887,
as melhores gramáticas, que ainda hoje se lêem com proveito. É bem verdade
que à Academia foram chamados grandes sabedores do idioma – como Silva
Ramos, Carlos de Laet, José Veríssimo, Rui Barbosa, Taunay, mas que para lá
foram lembrados como poetas, literatos, jornalistas ou publicistas, jamais
como gramáticos ou filólogos. O mesmo João Ribeiro, gramático e artista,
primeiro acadêmico eleito, foi lembrado por José Veríssimo, que o recebeu em
1898, mais como artista do que como gramático.
Recebendo a língua portuguesa como patrimônio herdado, não supunham
nossos escritores que o idioma aqui se mantivesse inalterado, a repetir os usos
dos quinhentistas e seiscentistas. Todos tinham presente que esse patrimônio

153
Ev a n i ldo Bec hara

haveria de sofrer alterações e se enriqueceria com as novidades de que os brasi-


leiros passariam a necessitar. Na já referida Carta de Gonçalves Dias, quarenta
anos antes de 1897, o mavioso cantor dos nossos índios declararia em primei-
ro lugar:

“1.a A minha opinião é que ainda, sem o querer, havemos de modificar alta-
mente o português.
4.a Mas que, nem só pode haver salvação fora do Evangelho de S. Luís, como
que devemos admitir tudo o de que precisamos para exprimir coisas ou
novas ou exclusivamente nossas. E que enfim o que é brasileiro é brasilei-
ro, e que cuia virá a ser tão clássico como porcelana, ainda que a não achem
tão bonita.”

O Evangelho de S. Luís a que se referia Gonçalves Dias é o conjunto de lições,


quase sempre desprovidas de valor, sobre pureza da língua portuguesa, do Frei
Francisco de S. Luís, o Cardeal Saraiva, membro da Academia das Ciências de
Lisboa, que viveu de 1766 a 1845.
A arraigada concepção que nutriam nossos fundadores sobre a língua portu-
guesa como veículo da Literatura Brasileira impediu a onda nacionalista dos nu-
merosos intelectuais que não só apontavam para as diferenças lingüísticas entre a
língua portuguesa e o falar dos brasileiros, mas defendiam a tese de que a inde-
pendência política de 1822 estava a exigir nossa independência idiomática. O
rastilho dessa proposta aflorada na lista, pequena e imperfeita, de diferenças
apontadas pelo Visconde de Pedra Branca (Domingos Jorge de Barros), entre
1824 e 1825, contaminou intelectuais do porte de Macedo Soares, Salomé
Queiroga e Paranhos da Silva. Macedo Soares chega a proclamar, no seu Dicioná-
rio Brasileiro da Língua Portuguesa (1875-1888): “Já é tempo dos brasileiros escreve-
rem como se fala no Brasil e não como se escreve em Portugal.”
O nosso José de Alencar, que tem sido muitas vezes apontado como defen-
sor de uma língua brasileira, soube pairar no espaço do bom-senso entre o exage-
ro servil ao classicismo lusitano e a consciência de dotar a língua literária do

154
A Lín gua Por tu gu esa na c o nc epç ão do s f u n da do r e s da A B L

Brasil às exigências de um novo estilo. Conhecedor da tradição lusitana e dota-


do de informações hauridas nos bons lingüistas da época (Whitney e Max
Müller, entre outros), sabia fazer distinções entre língua falada e língua escrita,
interpretava corretamente a aceitação de neologismos, galicismos e outros es-
trangeirismos exigidos por uma sociedade nascente.
Leia-se este pequeno trecho doutrinário que poderia ser assinado por qual-
quer bom lingüista de hoje, integrante do Pós-escrito de Diva, em 1865:

“A escola ferrenha, que já vai em debandada, mas há cerca de vinte


anos tão grande cruzada fez em prol do classicismo, que pretende que atu-
almente, meado do século XIX, discorramos naquela mesma frase singe-
la da adolescência da língua, quando a educavam os bons escritores dos
séculos XV e XVI (...).
A língua literária, escolhida, limada e grave, não é por certo a linguagem
cediça e comum que se fala diariamente e basta para a rápida permuta de
idéias: a primeira é uma arte, a segunda é simples mister. Mas essa diferença
se dá unicamente na forma e expressão; na substância a linguagem há de ser
a mesma, para que o escritor possa exprimir as idéias de seu tempo, e o pú-
blico possa compreender o livro que se lhe oferece.”

Dadas as naturais e comprovadas diferenças que se vinham manifestando


entre o português da antiga metrópole e o português do Brasil, entraria nas ta-
refas da novel instituição o levantamento ordenado que viria a constituir o Di-
cionário de Brasileirismos, previsto como ocupação da comissão de Lexicografia,
cedo referida no Regimento. Tais subsídios iriam se juntar aos trabalhos dos
que se consagravam na outra banda do Atlântico ao estudo da língua portu-
guesa, como proclamava Joaquim Nabuco no discurso inaugural. Assim, com
a colaboração dos brasileiros, tais estudos e investigações ajudariam a compor
uma visão mais alargada dos usos idiomáticos e os argumentos que melhor pu-
dessem compreender e analisar a unidade e a diversidade lingüística nos dois
países independentes.

155
Ev a n i ldo Bec hara

O movimento nacionalista em favor da língua dos brasileiros promoveu, no


seio da Academia, em 1907, um sistema de ortografia simplificada que rompia
violentamente com a tradição escrita. O repúdio de acadêmicos, e do público
em geral, somado às críticas dos especialistas, acabou por enterrar a proposta
iconoclasta.
Nos dias de hoje, ampliados os horizontes da língua portuguesa pelas exi-
gências de uma sociedade moderna e atuante, as novas gerações de acadêmicos
continuam fiéis aos princípios gerais emanados dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras, em 1897.

 Bibliografia
ALENCAR, José de. “Pós-escrito de Diva”. In: Obras Completas, vol. I, 399-402. Rio
de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1965.
ASSIS, Machado de. “Literatura Brasileira – Instinto de nacionalidade”. In: Crítica
(Coleção feita por Mario de Alencar), 7-28. Rio de Janeiro, Livraria Garnier,
s/d [1910].
DIAS, Antônio Gonçalves. “Carta ao Dr. Pedro Nunes Leal”. [1857]. In: Pinto
(1978:33-38).
MACIEL, Maximino. Grammatica Descriptiva, 8.a edição. Rio de Janeiro, Livraria
Francisco Alves, 1922.
NABUCO, Joaquim. Discurso pronunciado na sessão inaugural da Academia Bra-
sileira de Letras em 20 de julho de 1897, na qualidade de Secretário-Geral. In:
Discursos Acadêmicos, Tomo I, s-14. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Le-
tras, 2005.
PINTO, Edith Pimentel. O Português do Brasil. Textos Críticos e Teóricos. I – 1820/1920
– Fontes para a teoria e a história. Seleção e apresentação de Edith Pimentel
Pinto. Biblioteca Universitária de Literatura Brasileira. São Paulo, EDUSP,
1978.
VERÍSSIMO, José. “A questão ortográfica”. In: Estudos de Literatura Brasileira. 3,a série
99-112 [1904]. São Paulo, Ed. Itatiaia Limitada – EDUSP, 1977.

156
P r o sa

Da sombra da morte
à luz da poesia:
poeta do pensamento
F r ed eric o G o m e s

T .S. Eliot declarou certa vez, cremos que numa entrevista,


que o poeta perde o potencial criativo decorrida mais da
metade da sua vida, quando lhe restariam apenas três escolhas – re-
Poeta e
jornalista.

baixar-se literariamente, repetir-se ou parar de escrever. Trata-se,


sem dúvida, de uma generalização equivocada, embora rara, do
pensamento eliotiano, pois a leitura de O Outro Lado (Editora Re-
cord, 2007), sétimo volume de poemas de Ivan Junqueira, produ-
zidos entre 1998 e 2006, desmente-o expressamente nesses qua-
renta anos de poesia publicada. Após a consagração crítica do pre-
miado A Sagração dos Ossos (Editora Civilização Brasileira, 1994), o
que percebemos nesse livro mais recente é o modo como o talento
do poeta brasileiro vai, de livro para livro e retomando os mesmos
temas, adquirindo mais forças para atingir cumes mais elevados.
Fato este sintetizado, com argúcia, nas palavras de Antonio Carlos
Secchin na quarta capa: “... este livro confirma, em dimensão su-

157
F rederi c o Go mes

perlativa, o patamar a que se alça a poesia de Ivan Junqueira, tanto no irreto-


cável domínio técnico do verso, exemplificado na soberba utilização da rima
toante, quanto na elaboração de um denso e doído juízo sobre a existência,
núcleo do estro meditativo de sua lírica.”
De fato, deparamo-nos, aqui, com o mais alto índice desse patamar assi-
nalado por Secchin, não só relativo à produção do poeta, mas a tudo o que se
fez e se faz na poesia brasileira. E pensamos, então, em nomes que constitu-
em o cânone dessa atividade entre nós. E mais: em todos que escrevem, falam
e pensam em língua portuguesa. Isso porque nessa admirável reunião de poe-
mas não se percebe a mínima fissura em sua construção formal, um lapso de
pensamento.
Poeta de sólida formação cultural, Ivan Junqueira nos doa, generosamente,
com a sua poesia, todo o conhecimento que o distingue e singulariza, usan-
do-o para a vida e não por mera erudição. A nós, leitores, cabe sorver, linha por
linha de cada poema, as múltiplas fontes que o abastecem. Para ficarmos ape-
nas nas fontes gregas e latinas, citemos alguns fragmentos de verso dos seguin-
tes poemas: em “Prólogo”, “... as pedras/ me ensinaram que o critério/ do que
em tudo permanece / nunca está nelas, inertes,/ mas nas águas que se me-
xem...” e “... onde tudo era água e correnteza...”, de “O testemunho” – após os
primeiros versos de ressonância heraclitiana, o segundo verso nos remete ao
que teria dito Tales de Mileto: “Todas as coisas são feitas de água”; em “O as-
sassino”, estes versos: “... A lição de Plínio/ que se segue às de Horácio e Oví-
dio,/ cujo estro se embebe em Virgílio...”, “...ou, bem antes, nos sofistas,/ em
Parmênides e Crítias,/ em Heráclito e Anaxímenes...” , etc.
Fazendo um paralelo entre a linguagem poética e a linguagem pictórica,
notamos que, se Picasso transitava com facilidade por diversos estilos, indo
de uma linguagem para outra, sem que nunca deixássemos de reconhecê-lo
em sua singularidade de artista, é em Cézanne que detectamos semelhanças
da poesia de Ivan Junqueira com a pintura. A obsessão do pintor francês em
esgotar todas as possibilidades de apreensão plástica de seus temas – simbo-
lizados, sobretudo, pelas telas que retratam La Montagne de Sainte-Victoire

158
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to

(que, diz a anedota, foi a única coisa que ele realmente pintou durante toda a
vida, mesmo quando pintava um rosto ou um corpo feminino) – é a mesma
que move o poeta de O Outro Lado em sua apreensão metafísica da morte. A
morte é a sua Montagne de Sainte-Victoire, a sua obsessão mais notável, seja
afirmando-a ou recusando-a. Porém, ao atingir, na poesia, o momento extre-
mo da oposição vida-morte, o poeta o faz de maneira afirmativa, ora afir-
mando os sentidos da vida no sentido da morte (a infância, o amor, a arte),
ora afirmando o sentido da morte nos sentidos da vida (a vanidade, o absur-
do, o sem-sentido). Dupla afirmação que, em última análise, somente a poe-
sia de alta fatura consegue realizar. Ou, melhor ainda, conforme as exatas pa-
lavras de Eduardo Portella finalizando as orelhas do livro: “O poeta Ivan
Junqueira parece mobilizar, com um sentido e todos os sentidos, a sua elegia
à vida e o seu hino à morte. Superiormente”.
Lembremos, contudo, que Jorge Luis Borges já nos alertou, numa palestra
sobre a poesia, que “se a sentimos imediatamente, por que diluí-la em outras
palavras que, sem dúvida, serão mais fracas que nossos sentimentos?”. Sendo
assim, tudo o que dissemos nos parágrafos anteriores pode ser melhor esclare-
cido com as palavras do próprio poeta. Ouçamo-lo, pois, em “O testemunho”:

Estes poemas dão o testemunho


do sangue que de mim se vai embora.
Não são apenas o banal rascunho

de um texto escrito a esmo ou que se arvora


em ser o que não é, pois o que o anima
se opõe ao que depressa se evapora

com a música inútil de uma rima.


[...]

159
F rederi c o Go mes

Deste último poema do livro retornemos ao primeiro, justamente intitula-


do “Prólogo”, pois, se no primeiro ele nos falava sobre todos os poemas que
enfeixa o volume, agora nos fala dele próprio, do poeta:

Eu sou apenas um poeta


a quem Deus deu voz e verso.
Na infância, quando fui relva,
sentia os pés dos efebos
a calcar-me as frágeis vértebras
e colhia das donzelas
o frêmito que, venéreo,
era um augúrio da queda.

Depois, quando fui cipreste,


vi como o vento, em seus dédalos,
cingia-me a áspera testa
e tangia-me as idéias
que nos ramos, vãs quimeras,
pousavam como uma névoa,
úmidas ainda das trevas
e do abismo de que vieram.

Quando fui córrego, as pedras


me ensinaram que o critério
do que em tudo permanece
nunca está nelas, inertes,
mas nas águas que se mexem
com vário e distinto aspecto,
de modo que não repetem
o que antes foi (e era breve).

[...]

160
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to

E assim fui sendo esse leque


de coisas fluidas e inquietas,
jamais levianas, bem certo,
mas antes, em seu trajeto,
vertentes as mais diversas
de uma só e única célula:
a da matriz que não é
senão seu próprio reverso.

[...]

O poeta, ao mostrar-se, como vimos, consciente de que o é, faz ecoar em


nossa memória as palavras de Hofmannstal, quando este afirmava que o nú-
cleo da essência do poeta é precisamente ele se saber poeta. O que observamos
aqui e que observaremos em todos os poemas do livro é que Ivan Junqueira cir-
cula por um espaço temporal bem mais distendido que o dos modismos literá-
rios, pois também percebemos ecoando, quase em silêncio, nessas transfigura-
ções imagéticas das vidas anteriores do poeta, os versos de Empédocles que di-
zem: “Eu fui donzela, eu fui um ramo, eu fui um cervo e fui um mudo peixe
que surge no mar.”
É sabido o cuidado e o respeito que o autor dedica à tradição da cultura oci-
dental, o que, como não poderia deixar de ocorrer, é bastante visível em sua
obra poética e ensaística. Nesse sentido, mais para o final do livro, no poema
intitulado, não sem certa ironia, “O novo”, ele tece ácidos comentários aos
modismos literários, demonstrando-nos desse modo que o novo é o que sem-
pre fica, aquém e além de quaisquer novidades. Ei-lo:

Eis o novo (e seus livores):


algo efêmero que escoa
e não pede de teu olho
senão que o deguste em folha,

161
F rederi c o Go mes

pois seu tempo dura pouco,


talvez menos que o do vôo
da mariposa no fogo.

[...]

O novo grita na proa,


mas se esquece de que há popa,
astrolábios, velas rotas,
trirremes ébrias ao sopro
dos ventos do mar vinhoso,
onde Ulisses, no retorno,
viu porcos, ciclopes e ogros.

[...]

Mas, enfim, existe o novo.


Só que ninguém o apregoa
nem lhe canta inúteis loas
ou nênias de mau agouro.
É que ele nunca está morto:
esplende no Horto de Giotto
ou nas Fábulas de Esopo.

[...]
não a luz de um sol furioso,
mas a que arde desde a noite
em que alguém disse: “Lenora!”

É importante lembrarmo-nos de que, apesar de sua obstinada referência à


morte, ao nada e ao sem-sentido da vida, surgem na obra do poeta breves mas
refinados interlúdios amorosos que o domínio do ritmo, da melodia e da ima-

162
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to

gem torna dignos de constarem de qualquer seleção que se publique visando


ao tema, em língua portuguesa ou não. Sabemos, entretanto, que o amor, mes-
mo quando o poeta não o refira de modo direto, amiúde e indiretamente serve
de contraponto à recusa da morte em seus poemas. Mas que o leitor mergulhe
de cabeça neste majestoso soneto “São duas ou três coisas” e constate a pleni-
tude amorosa de que vimos falando e que o inunda:

Eu te amo tanto que não pode o peito


conter dentro de si amor tão vasto.
E te amo há tanto que do amor me basto,
sem fêmea alguma que arda no meu leito
ou lembrança que ali sirva de pasto
às larvas de um desejo satisfeito
e que, farto de si, seja perfeito,
como perfeito é o vértice onde o engasto.
Eu te amo desde aquele agudo instante
em que tudo se faz irreal e eterno,
pouco importa se o céu ou o duro inferno,
posto que um nunca do outro está distante.
E assim é porque a mim tocou-me a sina
deste amor que me cega e me ilumina.

A maior parte dos poemas que constituem O Outro Lado pode ser considera-
da, sem hesitação, antológica (e ontológica) por seu altíssimo nível técnico e
existencial, além de ser o que de melhor se tem produzido entre nós – sobretu-
do os longos “O rio”, “A história” e “O testemunho” (Ivan Junqueira nunca
foi adepto dos poemas curtos, geralmente descuidados) –, o que nos obriga,
infelizmente, a transcrevê-los em fragmentos. Dos três citados acima optamos
por essas passagens da esplêndida viagem pelo passado e presente da História
que é “O rio” (pode-se falar de viagem ao futuro, pois o poeta nos fala tam-
bém daquele rio heraclitiano “que está vindo a ser, mas que não é ainda”):

163
F rederi c o Go mes

Ó rios de minha vida:


os que cruzei sem ter visto
e os que fluem, com mais tinta,
no pélago das retinas
de quem agora os recria!

Não vi o Eufrates e o Tigre,


ou o esfíngico Nilo,
esse que corre por Biblos
e se derrama em estrias
às bordas de Alexandria.

E não vi, no Middle East,


o irascível Mississipi,
de que T. S. Eliot disse
ser um deus castanho e altivo,
cuja cadência se ouvia

nos verdes quintais de abril,


no aroma das uvas híbridas,
no berçário dos meninos
e no óleo das lamparinas
que o duro inverno aqueciam.

De mãos dadas a esse ritmo,


vi o Tâmisa poluído
na Londres dos anos vinte;
vi-lhe as garrafas vazias
e as migalhas de comida,

164
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to

um rato a esconder-se, esquivo,


em meio às ervas daninhas.
E ouvi também, mais longínquo,
o riso que, ressequido,
do turvo rio se erguia.

[...]

E o que dizer desse rio


que em dois hemisférios cinde
a rendilhada Paris?
O que dizer desse cisne
que Baudelaire viu um dia,

tão ridículo e sublime,


a sujar as plumas límpidas
nas lajes do Sena esguio,
onde, entre náuseos detritos,
ia, aos tombos, se ferindo?

Sobre o Arno, o grave e humilde


Ponte Vecchio se equilibra.
Ali, Dante viu Beatriz,
mas nele o amor que cintila
é o de Francesca da Rimini.

[...]

Ó Tejo, ó tágides minhas!


Ó Camões sôbolos rios
que por Babilônia singram
e sangram todo o lirismo
de que vive e morre a língua!

165
F rederi c o Go mes

Ó rio que viu Ulisses


fundar a velha Olisipo,
que depois Lisboa vira,
muito embora não o digam
a Odisséia e a llíada!

[...]

Falo, enfim, daquele rio


de cujas águas alígeras
ninguém sai igual a si
ou àquilo que está vindo
a ser, mas não é ainda.

Tudo se move. Esta é a sina


de todos, este o castigo
que nos coube, como a Sísifo:
o de sermos o princípio
e o fim, na mesma medida.

Por isso louvei os rios


que não começam nem findam
e que estão sempre fugindo
dessa fraude que os quer hirtos
como alguém que já não vive.

Há muitos outros poemas no livro que merecem registro: por exemplo, os


metalingüísticos “A mão que escreve” e “Elogio de Plínio”, juntamente com
os belíssimos “A ilha” e “O outro lado”. Encerraremos esse comentário publi-
cando o poema intitulado “O mesmo: o terceiro”, magistral autodefinição
desse poeta do pensamento que é Ivan Junqueira, que nos leva, com seus poe-
mas, da sombra da morte à luz da poesia. E, portanto, da beleza. Ei-lo:

166
Da sombra da mo rte à lu z da po esi a: po e ta do p e n s a m e n to

O que escrevi foi sempre o mesmo


poema, e os mesmos são os dedos
que nele enrolam o novelo
dos muitos eus em destempero
que ali convivem e se odeiam
à sombra de um só parentesco.

E há mais: um duplo que me espreita


do fundo ambíguo de um espelho,
e que a tal ponto me é avesso
que não sei mais se me conheço
nele ou em mim, que sou a perda
dos dois e de ambos o arremedo.

Mas afinal somos um mesmo,


tal como o fogo e a labareda
ou um do outro o igual modelo,
rebentos de uma única cepa,
que dá um vinho quase azedo,
impróprio à goela até dos bêbados.

Só que com ele não me ajeito


nem o convido para a mesa,
onde, alheio a todo esse enredo
e olhando-o apenas de esguelha,
me esqueço dele e de mim mesmo
na sóbria embriaguez de um terceiro.

Resta a nós, leitores, torcer e aguardar o próximo livro desse poeta que, no
auge da sua criatividade, desce aos abismos, a um só tempo assombrosos e be-
los, da existência.

167
P r o sa

Os três sepulcros de
Viriato e a sua ressurreição
J oa qui m d e M o n tezu m a d e C a r v a l h o

N um remoto dia de verão de 1949 fui de passeio com a mi-


nha namorada e sua tia conhecer Avô, vila antiquíssima –
daí o seu nome? – a mergulhar os pés no Rio Alva. Então, aponta-
Escritor, crítico,
ensaísta e colunista
português.

ram-me a casa onde viveu e morreu um aventureiro de seiscentos, o


poeta Brás Garcia de Mascarenhas (Avô, 1596 – id, 1656), o autor
de Viriato Trágico, largo poema épico saturado de ênfase e clamor, só
muito mais tarde publicado após a morte do autor, um beirão vene-
rado (1699).
Eu preparara-me e levava no bolso as oitavas XIII e XIV do Can-
to 1 para as reler à vista de Avô e dar solenidade ao farnel de compa-
nhia. E li as oitavas:

XIII
Dezoito lustros de anos pelejando,
Toda a potência bélica romana
Não pode, já perdendo, já ganhando,
Acabar de render a lusitana,

169
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o

Quando do centro (que ditoso!) quando


Da Beira (ó Beira em tudo soberana!)
Viriato empunhou (ventura estranha!)
O cajado, que foi ceptro d’ Hespanha.

XIV
A fama, que em seu templo o engrandece,
Pai e mãe negam a filho tão altivo,
E com razão porque de ambos carece
Quem de suas obras foi filho adoptivo:
Não lhe nega a nação, porque merece
Ser colocada em seu eterno arquivo:
Todo foi português no esforço e manha,
Sem ter mistura de nação estranha.

Estas duas oitavas, sonoras como tubas, estavam num sepulcro porque con-
tinham dois disparates tão solenes como as tubas da fama. Só mais tarde refle-
ti. Ler e comparar é o remédio. Crescer é emendar.
O primeiro disparate é afirmar que o cajado (o bordão ou arrimo dos pasto-
res) foi ceptro de Espanha. Brás Garcia de Mascarenhas terá escrito scetra e não
sceptro (na forma atual, cetra e ceptro). A cetra (do latim cetra) era o antigo “es-
cudo” coberto de coiro (igualmente usado por Dom Afonso Henriques, pri-
meiro Rei de Portugal, quem não usou escudo metálico). O ceptro (do latim
scpetru) era o bastão de comando.
Ora Viriato, mais do que o estratega de retaguarda a quem lhe bastará o “bas-
tão”, era o soldado principal, era o lutador e para a luta armado ia de um “escu-
do” feito de boa madeira e guarnecido de coiro impenetrável às espadeiradas.
Os generais é que são gente de bastão, mas não lutam. Viriato, felizmente,
não foi o vulgar general dos tempos modernos. O seu escudo (a cetra) é que foi
o bastão de Espanha, a força de resistência contra as legiões imperiais romanas.
Com o cajado pouco ou nada faria. O que Brás Garcia de Mascarenhas quis di-

170
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição

zer é que aquele pastor Viriato, invocando apenas o “cajado”, foi por antono-
másia o “escudo” da Espanha (a antonomásia é aquela figura pela qual se toma
um nome comum por um nome próprio ou vice-versa).
Um bastão em mãos menos fortes não tem tanto poder e coragem. A tipo-
grafia, em 1699, e sem que o autor pudesse abrir a boca, pois falecera em 1656,
é que terá tido o descuido, até porque a palavra cetra pouco significava ou nada
em tempos de “escudos”... metálicos!
Mas o outro disparate é um cravo no madeiro e está tão profundamente pre-
gado na consciência do nosso país monárquico e republicano que não sabemos
como despregá-lo por causa dos milhentos olhos que não querem ver e pensar.
Os historiadores – excepção feita ao magnífico Américo Castro (1885-1972) –
andam pela Ibéria, dum lado e de outro, a cantarolar os mesmos atávicos equívo-
cos e se chamam espanhóis aos resistentes de Covadonga (Pelayo, 718 da era
cristã), por cá continuamos a chamar português a... Viriato!
E Brás Garcia de Mascarenhas foi na onda como tantos e sublinhou o máxi-
mo: “(Viriato) todo foi português no esforço e manha,/sem ter mistura de na-
ção estranha.”
Até se fica com esta impressão inculcada: não fora Viriato tão português na
pureza de seu sangue e o valor não o teria afstado do dócil e bucólico pastoreio
pelos montes Hermínios! Isto é, tinha de ser português para resistir por dezoi-
to anos, de 136 a 154 a.C, às tropas romanas!
O disparate em Espanha, no caso de Covadonga, ainda tem algo a seu favor
porque se dá em anos da era cristã, e a religião não gosta de purificar águas his-
tóricas, mete tudo no mesmo açude concentracionário. Mas o caso Viriato é
sem desculpabilização. O seu caso dá-se na Proto-História e antes da era cristã
(Cristo não nascera sequer!). Não existe sequer tapete mágico...
Pergunte-se: que religião tinha Viriato? Se os próprios romanos desembar-
cados na Ibéria e a palmilhá-la em busca de minérios, vinhos, trigo e sardinha
salgada (o petróleo e o gás de então para o Bush de Roma, em turno) ainda
eram aquelas multidões de tão escasso transcendatalismo (Platão, o grego, já
existia, uma pequeníssima camada romana o conhecia, a soldadesca tinha o

171
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o

panteão superlotado para escolher, como numa confeitaria, o seu ídolo/deus


do melhor agrado)?
Consultando-se o sábio José Leite de Vasconcelos (1858-1941), sobretu-
do a sua obra Religiões de Lusitânia, te perderás como noutro panteão decorativo.
Eu, pelo menos, perdi-me nesse museu (panteão significa museu de deuses) de
figurinhas balbuciantes... Pobre Viriato se houve de escolher, habituado que
estava ao relento do luar e ao estrelato brilhante dos céus, a grande catedral
cósmica! Quero-o sem escolha e diante dos céus! Que as religiões terão come-
çado pelo pastoreio...
Sobretudo pelo disparate de Brás Garcia de Mascarenhas – chamar portu-
guês a Viriato – é que este está no sepulcro irredento das suas oitavas rimas.
Bastava chamá-lo “lusitano” para acertar na essência desta palavra que não tem
a ver com o sentido dado pelos estudos de Mestre André de Resende, da não
menos Mestra Doutora Carolina Michaelis de Vasconcelos e do Mestre, vivo
ainda, o excelente Doutor Américo da Costa Ramalho. Lendo papéis muito,
muito antigos, tive a sorte – um dia o espelharei num texto – de saber o que
significa lusitano, significa apenas (e para o caso Viriato tão bem se lhe ajusta)
esforçado no combate, homem que não dá tréguas na luta, homem de suprema
coragem. Camões andou por lá perto deste enigma, vigente todavia, quando na
“Ode a D. Manuel de Portugal” objetivou:

O rudo canto meu que ressuscita


As horas sepultadas
E as palmas já passadas
Dos belicosos nossos Lusitanos...

mas ignorando ainda que a palavra “lusitano”, numa outra raiz sua, não pers-
crutada por Resende, Carolina e Ramalho, é o próprio “belicoso” (guerreiro,
bravo, inclinado à guerra). Os papéis velhos têm muita virtude...
Para libertar Viriato deste sepulcro, há que forjar um espanto: como é pos-
sível apontá-lo como “português” se Portugal só viria a nascer a 5 de 1143

172
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição

com um D. Afonso Henriques mandatário obediente da Ordem de Cister (é a


Igreja que prepara Afonso Henriques para as tarefas da “Reconquista”)? É a
França, sem o problema das castas religiosas, quem quer limpar a Ibéria de ma-
zelas orientais como o judaísmo e o muçulmanismo por temer que a “praga”
ultrapasse os higiénicos Pirinéus! A Ibéria não era chão de confrontos...
O poeta Femando Pessoa (1888-1935) deve ter sentido este problema ao
meditar e inspirar-se para o seu poema a Viriato, precavido da entrega imedia-
ta e romântica a Brás Garcia de Mascarenhas. Todavia o seu belo poema “Viri-
ato”, que faz parte dos “Castelos”, a segunda parte de “Brasão” do livro Mensa-
gem, de 1934, e que acaba, no derradeiro verso, com “É a hora!” (e a hora não
foi para Pessoa, pela desconsideração “patriota” de um segundo prémio que
nem no Regulamento do Concurso estava à vista... quem leia o regulamento
não pode desculpar Ferros e outras ferrugens do palavreado hipócrita), tal po-
ema se nutre ainda de erro transversal. Pessoa não diz que Viriato é português,
mas é como se o tivesse dito às claras. Pessoa utilizou a palavra “raça” e tal
como Brás Garcia de Mascarenhas identificou Portugal com Viriato e viu em
Viriato o Portugal a amanhecer... Há uma outra claridade que Avô não vis-
lumbrou, mas o resultado é igual. No dia em que Fernando Pessoa escreveu o
poema – a 22 de janeiro de 1934 –, não era Tejo a passar por Lisboa, era o Rio
Alva a navegar pelo estuário numa quase comunhão de sentidos:

VIRIATO
Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.

Nação porque reencarnaste,


Povo porque ressuscitou,
Ou tu, ou o de que eras a haste –
Assim se Portugal formou.

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Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o

Teu ser é como aquela fria


Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

Depois, “raça”, “nação” e “povo”, substantivos que Fernando Pessoa apli-


ca, dão um sentido exclusivamente “nacionalista” (a hora era a do Estado
Novo para um Portugal Novo, e Pessoa sempre desejou altura a Portugal, ape-
sar de Salazar ser para ele a conjugação ridícula de “sal” e de “azar”) ao poema
e não um sentido patriótico.
A pátria é algo superior ao engendro nação (a pátria onde se nasce pode até
então não ser nação), é algo que paira acima do que as nações exigem para o
ser, pois eu posso não pisar o solo da nação, posso viver a mil léguas e não ou-
vir a língua sequer, mas a pátria vence dentro de mim e dá o que a nação não dá,
o vero sentimento de tribo e de origem peculiares. É o triunfo do invisível.
As oitavas de Brás Garcia de Mascarenhas e o poema de Fernando Pessoa não
são poemas patrióticos, mas apenas poemas nacionalistas... em busca de funda-
mento para dar força e restauro à... nação! São polidos poemas... políticos!
Já se pensou o que significa o “judeu errante”, sempre, sempre errante? É
isto mesmo: o judeu sem nação mas com pátria, “dentro de si”! O elo à terra
onde se nasceu, a pátria, o “pater” latino, o pai, é o fundamental.
Vivo a trezentos metros de uma viva lição em pedra e escultura a ensinar às
pessoas distraídas – nem sequer olham e a dez metros é a passagem dos auto-
carros da linha 12! – o que é a pátria... oh não, o que é a “mátria”! São as mo-
numentais esculturas da imensa arte de Teixeira Lopes (Vila Nova de Gaia,
1860-1942) a formar um grupo, uma mãe com a bandeira numa mão e a outra
a segurar um dos filhotes, um dos vários que a rodeiam com ar feliz.
Este acampamento escultório assenta no topo da principal porta de armas
do Estado-Maior do Exército, sendo uma das entradas para o Museu Militar e
o Arquivo Militar. Qual a lição deste altar de pedra silenciosa e expressiva?
Que a pátria, oh não, preferível dizer “mátria”, é o útero onde nós nascemos, é

174
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição

a mãe farta como Artémis, a deusa mãe de Éfeso, na antiga Anatólia, hoje Tur-
quia, e cidade onde terá morrido Maria, mãe de Jesus Cristo, aos cuidados do
Apóstolo João (filho de Éfeso e o único ao lado da cruz onde expirara Jesus...).
Teixeira Lopes ampliou os seios para a filharada. Artémis era corpo de mil
seios. Em Maria, igualmente, o leite da vida em paz e dádivas permanentes. Mãe
em latim diz-se mater, e é desta raiz a iridescente palavra “mátria”. Teixeira Lopes
acertou e explica a todos os militares – os Viriatos de hoje – que Viriato foi
também uma criança a agarrar as pregas das saias de sua mãe e que arribou a
homem por ter mãe e teve coragem e inteligência para contrariar os violadores
da terra de sua mãe, a sua mátria à vista, com ovelhas e oliveiras, aquela soldades-
ca despachada de Roma para quebrar a paz das planícies e das montanhas, com
todo o ar da maldade nas ventas e a arrogância assassina da águia negra nos pen-
dões, como se águias houvera tão-só nos Alpes Apeninos e não também pelos
montes Hermínios (as Gardunhas, etc.) com outros férteis Abruzos...
Viriato apenas significa essa raiz. O resto que se diga pertence à romântica e
histórica conjectura. E ao significar aquela inquebrantável raiz, significa resis-
tência.
E eis que Viriato está hoje rodeado de mil apetências que lhe diminuíram a
resistência ao alienígena. Enfiaram o seu esqueleto na era global das interco-
municações de toda a espécie, quebraram-lhe os ossos com os circulantes mer-
cados comuns, dissolveram as fronteiras e chamam às novas comunidades sem
Viriato de espaço Cheng (nome asiático, coisa cómica).
Outros dirão que Viriato, apesar das globalidades a criar um figurino figu-
rão, significa o escudo de defesa da “identidade” e esta é até necessária à globa-
lidade para a não conversão plural em mera vulgaridade e indiscrição.
Viriato saltou dos sepulcros para ter essa voz; não estará a identidade da
pátria a ser veramente ameaçada e destruída pelas legiões de novos romanos
disfarçados nos políticos mercadores das planificadas uniões, pactos e cons-
tituições?
Ele, Viriato, acordou daqueles dois sepulcros, sacudiu o qualificativo por-
tuguês e nacionalista, ficou com o cajado da mera pátria (o lugar onde nasceu).

175
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o

Ainda não sabe responder se o ruído que aí vem é para mal ou para bem. Os
seus olhos estão esbugalhados e os ouvidos cheios de pó milenário. Ele precisa
de mais algum tempo a decidir-se se volta ou não para o sepulcro.
E onde este sepulcro, o terceiro do título deste meu texto?
Este é o verdadeiro e, infâmia das infâmias, ignorado pelos que estão em
Portugal (o “estar em” sobrepujou o “ser de”). Pode questionar-se muita co-
isa, mas pelo menos é o único com tal atribuição... Pergunto ao leitor pio: sa-
bia da existência deste sepulcro? E o pio leitor, nos noventa e nove por cento
responderá: não, não o sabia! E, por sua vez, o leitor, fortalecido pela arguta
razão, perguntará: como é possível existir o sepulcro de um Viriato, homem
antes da era cristã, sabendo-se tão pouco como os antigos da pátria terra se-
pultavam seus mortos (se postos numa fogueira, se dispostos a ser devorados
pelos animais, etc.) que ainda hoje os galegos do norte igualmente não sabem
responder por que junto aos castros nada relacionado com... funerais e se-
pulcros!
Eu estava há dias na Biblioteca do Exército a consultar o Diário da República e
o livro A General View of the State of Portugal, do britânico James Murphy, na edi-
ção original (London, 1798). A dois metros de mim estava o Luis Miguel de
Almeida, filho de Viseu e amante de sua terra como poucos, e o Carlos de Oli-
veira, que há poucos meses dissertava sobre Viriato. Estes dois militares an-
dam à volta com a continuação dos livros já publicados sobre as vidas dos ge-
nerais portugueses.
Em Viseu há uma estátua de Viriato, o que muito se respeita apesar de pôr
todos a sonhar e fazer perguntas...
Eu lia James Murphy, dei com a folha 131-132, espantei-me com o que
lera, jamais o lera aí, e voltando-me para o Almeida, o filho de Viseu, in-
quiri-o:
– O Almeida sabe onde está o sepulcro de Viriato?
E o Almeida estranhou e retorquiu: “Mas há sepulcro de Viriato?”
Há, adverti-o e mostrei-lhe a passagem do livro de Murphy que aqui repro-
duzo tal e qual:

176
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição

In the territory of Belas, near Lifbon, was found, in the reign of John III a ftone cheft,
containing a fword and the remains of the famous Viriatus, as appeared by the following inf-
cription, which was carved on the lid of it:

HIC JACET VIRIATUS


LUSITANUS DUX.
A perfon of the name of Machado, who discovered this antiquity, offered the fword for fale,
but finding his countrymen placed no value it, he gave it to a friend of his in the ifland of Ma-
deira, where it was loft.
O espanto foi grande! Como era possível estar o sepulcro de Viriato em Be-
las, um arrabalde Sintra e quase apenas só conhecido por aí ter o Palácio dos
Condes de Pombeiro, deixado cair em crescente ruína?
Fui a outros livros e nada de sepulcro de Viriato na vizinha Belas. Mas tive
sorte (quem não cansa sempre alcança, a divisa do ex-libris de Mestre Aquilino
Beirão)! A p. 372 referente a Belas pôde alargar o saber sobre o enunciado por
Murphy ao consultar Portugal Antigo e Moderno, de Pinho Leal (1.ª edição, vol.
2.º, Lisboa, 1873). Afinal, o sepulcro andava relacionado com o espaço da-
quele ido palácio....
Eis o que Pinho Leal, sem mencionar Murphy, nos informa:
“João de Barros, na sua Descrição do Minho, afirma que vira em Belas, na quinta
que fora da Infanta D. Brites, mãe do rei D. Manuel, e de depois de Pedro Ma-
chado (hoje do Sr. Marquez de Bellas) a sepultura do immortal Viriato, com a
seguinte inscrição, que já mal se podia ler: Hic jacet Viriatus Lusitanorum Dux, e que
dentro da sepultura se achara uma espada com letras inintelligíveis.
O sumptuoso palácio e formosíssima quinta do sr. Marquez de Belas e Con-
de de Pombeiro é uma das mais belas e ricas vivendas de Portugal. Está si-
tuado o palácio no vasto recinto da vila.”

Pinho Leal não o diz, mas este João de Barros não é o preclaro cronista das
Décadas da Índia, etc. e que viveu entre 1496-1570, tendo nascido em Viseu e
outra glória da cidade.

177
Joa q u i m de Mo ntezu ma de C arva l h o

É o Doutor João de Barros que se pensa ter nascido em Braga, ignorando-se


o ano, e se julga ter falecido aí por 1553, o que o torna coetâneo do homónimo
das Décadas da Ásia.
Não encontrei na Biblioteca dos Paulistas, de Lisboa, a Descrição do Minho, li-
vro inexistente aí ou noutro qualquer lugar. O que Pinho Leal terá lido foi o
manuscrito do Doutor João de Barros (com a cota A-6-2 dos reservados da Bi-
blioteca Nacional de Lisboa), o Livro das Antiguidades e Cousas Notáveis de antre
Douro e Minho, alforge de trinta e dois abundantes capítulos e que tem a data de
1549. Pinho Leal terá resumido este manuscrito para Descrição do Minho.
Tudo indica que o Doutor João de Barros era um homem sério. Pensou em
seguir a vida religiosa. Se disse e escreveu que vira em Belas a sepultura e a lápi-
de referentes a Viriato (um Viriato aí jazente e que fora o capitão-chefe dos
lusitanos), é mesmo para acreditar.
Acredito mesmo que tenha havido tal pedra com tal inscrição (em João de
Barros na epigrafia de Hic jacet Viriatus Lusitanorum Dux; em Murphy, Hic jacet
Viriatus Lusitanus Dux, no primeiro caso, comandante-chefe dos lusitanos, no
segundo caso, comandante-chefe lusitano).
Nunca fui a Belas e nunca me confrontei com o arruinado Palácio dos Con-
des de Pombeiro. Mas conheci há anos uma funcionária do Estabelecimento
Prisional de Vale de Judeus cuja mãe tinha o costado dos Pombeiros. Fa-
lou-me que o palácio era uma derrocada e lhe dava muita tristeza, até porque
não vivia longe daqueles idos lugares gloriosos. Por isso mesmo não quis ir ao
sítio, porque me angustio com a ruína das próprias coisas, vítimas das injúrias
do tempo...
Mas, agora, depois do encontro com Murphy e de saber o que João de
Barros escreveu e Pinho Leal propalou, sinto algo diferente e lanço a
questão: onde está tal pedra tumular? Estará n’algum museu público ou parti-
cular? Desapareceu de todo? Poderá ser achada no Palácio dos Pombeiros en-
tre o nefasto entulho? Volatilizou-se.
Só sei dizer que depois deste texto publicado enviarei como recado ao cui-
dado do Diretor ou Directora do Instituto Português do Patrimônio... Liber-

178
Os três sepulcros de Viriato e a sua ressurreição

ta-me-ei dos sepulcros. Talvez que a pátria esteja a sofrer o derradeiro abalo e
mutação, e nem sequer interessem letras numa pedra à dimensão de um corpo.
Talvez que o espaço Cheng – oh, que nome tão macaísta! – venha a ser “pá-
tria” para ninguém. Os séculos rolarão. As pedras angulosas tornar-se-ão re-
dondos seixos, uniformes e iguais. Então surgirá um qualquer Viriato da glo-
bal informática a dar ordens universias via fax, via e-mail, um Viriato sem pá-
tria, sem resistência, sem o tal cajado da identidade “inalienável”... Mas nesse,
então, Viriato não será o Viriato, símbolo da própria ipseidade. E as sepultu-
ras serão todas iguais.

179
P r o sa

Do berrante ao apito
 Causo de toda uma noite de prosa...

F r an c i s c o M a r in s

A manhã mal clareara na vila.


– Nhô Lazo Gerardo já chegô do Mato Grosso! – gritou
o moço Caiara, anunciando a boa nova, depois de bater à porta de
Autor de livros
infanto-juvenis.
Ex-Presidente da
Câmara Brasileira
uma casa de tábuas. do Livro e
Nhô Quim, o dono, alto, espadaúdo, veio atender, manqui- membro da
Academia Paulista
tolando. de Letras.
– Não diga que veio, tão cedo? – Com a comitiva? interrogou, sa-
tisfeito.
– A peonada tá mais morta que viva e a tropa estropiada...
– Pudera... com esse estirão de duas mil léguas!
– Pra mais que isso...
– Então vou ligeirinho ver o compadre.
– Trouxe boiada manteúda daqueles confins de mundo!
– E, na certa, já entregou pro dono, nhô Macário, lá no alto da
serra... na fazenda de criame e engorda!
– Mecê conhece bem nhô Lazo, que só bota o pé em casa despois
de cumprido o trato.

Este reconto, de inspiração regional, faz parte do volume O Curandeiro


dos Olhos em Gaze, em sua 4.a edição. Ilustração de Vinício Aloise. 181
F ra n ci sc o Mari ns

– Quase meio ano fora, andando atrás de casco de boi pantaneiro não é
mole, é?
– Pra mais... que isso!
– Escutei que veio tocando mil cabeças!
– Pra mais... ! E eu tenho muita zanga, de nunca terem me levado em pelo
menos uma dessas viagens.
Nhô Quim ajeitou a camisa grossa, mal saída das calças e respondeu ao
peão.
– Diga pro compadre que, de noitinha, chego lá com a patroa, pra gente
prosear sobre a viagem e ouvir os causos. Vá lá também... se puder.
– Não dá certo. A mulher tá “esperando”... perciso campear logo nhá Mi-
nervina pra ajuda – senão o moleque num põe a cara no mundo. Ela tá na
“hora” e “gorda”, demais...
– Dá tudo certo...! Todo dia nasce criança. Vá em paz e que Deus ajude!
– Ontem ela pediu a benção do Paulino.
– É... o “nosso” ceguinho ajuda quem percisa, com oração... e “enxerga”
mais longe e pra dentro do peito, dos que têm “zóio” bom.
– É que ele “adivinha”, com a luz lá de cima. E apontou para o céu.
Caiara saiu a passos largos pra dar o aviso! Nho Quim entrou em casa e dis-
se à mulher:
– A gente vai, na boca da noite, ali na casa do compadre, pra ouvir dos acon-
tecidos da viagem no Mato Grosso.
– É... acompanho, faço gosto, mas mecês dois quando encangam só prose-
iam de boiada, comitiva, guieiro, burrama e não têm mais tropa...
– E sobre o que mais havera de sê... desde piquira tô só na lida do gado. Não
conheço outra coisa e fora do lombo de matungo não sô gente... Desta vez
vancê sabe, não deu pra mim mais o compadre ir na viagem, pra mor da mardi-
ta dor na perna, que responde na cacunda!
– É, marido, os “janeiro” tão passano, e aqui na vila não vejo futuro nem pra
mecê nem pros filhos! Eles já querem bater asas, sair do ninho, espiar o mundo
aí de fora que cresce, como fermento de pão... Aqui ficam na modorra.

182
Do be r r a n te a o a p i to

– Pra quê se queixa assim? Por acaso eu ando na madorna? Falta alguma coi-
sa pras “crianças”? – retrucou irritado.
– Não é isso... Cada vez que toco nesse assunto mecê vira onça acuada. Lá
fora tem muitos caminhos...
– E também encruzilhadas, buraqueiras, bossorocas...
– Ta vendo? Mecê já está na zanga! Só penso no “bem-bom” dos nossos.
– Reconheço... mas eu, moço feito, nunca me apartei dos “velhos”, até que
eles morreram.
– Foram outros tempos, marido.

Na boca da noite, como prometido, o casal foi a bater à porta de nhô Lazo e
de nhá Biela, onde foram recebidos pela cachorrada em guaiú, que só se acal-
mou aos ralhos do dono. Saudados com alegria, os chegantes indagaram da sa-
úde e também nominaram cada um dos filhos, ausentes.
– Mecê tá mais magro e queimado de sol! – comentou nhô Quim, ao abra-
çar o amigo.
– E também meio quebrado, de bunda esfolada por esse tempão no arreio –
“desembestou” o outro. Tinha dia que quase desanimava, com os contratem-
pos. Parecia que não chegava mais nos pousos. Pouco capim pro gado na beira
dos caminhos, reses de pernas quebradas que precisei matar, outras pegando
erva-de-rato nos bocados de catingueiro, logo estufando que nem balão e em-
panzinado, sem poder soltar os ventos da pança e logo caindo morto na primeira
bebida d’água de corgo... Mecê sabe de tudo isso... tão bem quanto eu, pois fez
tantas viagens como essa..
Eles mal chegavam e já enveredavam pelas conversas.
– É, compadre – respondeu nhô Quim –, desta vez não fui mais mecê, ando
meio jururu. Só Deus sabe...
– Pinche pra longe a inhaca ruim, cisque pra-trás que nem galinha e vá em
frente. Mecê ainda vai pro Mato Grosso comigo, pra trazer boiada erada, an-
cuda, boa pra “gancho de açougue”, com pouco tempo de pasto aí na serra.

183
F ra n ci sc o Mari ns

– Quem sabe? Se a dor na perna... e na cacunda...


– Não desanime.
– Da próxima vez a comitiva é de arromba, só tem “cobra criada”. E é este,
“seu” Nhô Lazo que vai de ponteiro.
– Quem mais?
– O Lauro Branco, o Quim Totó, o Zé Rocha, o Moacir Fabiano, o Zico
Alemão, o Lazinho Marins, o Dão. É pra trazer três mil bois!
– Boiada que não acaba mais... Tenho saudade dessa companheirada de tan-
tas viagens!
– Mas a ida, antes animada, começa com um bruto enrosco! Depois eu con-
to, compadre... é assunto sério!
– Vire essa boca pra lá! Pra mor de quê?
– Pra mor do trem de fogo! Conte nos dedos da mão e do pé quantos meses
é a demora da viagem por terra e quanto a máquina engole na distância!
Nhô Quim coçou a cabeça.
– Nesse ponto leva vantagem, mesmo!
Na sala da frente da residência rústica, de tábuas, iluminada por um lam-
pião de querosene, os dois casais se acomodaram. A dona da casa e a visitante,
mais para os fundos, próximo ao fogão de lenha aceso, e os maridos à frente
em cadeiras largas, de apoio de braço, encosto de couro. Onde o único admiti-
do ali, da matilha de seis, era o cão Timbó, já esticado num couro de boi, feito
tapete, gozando de seu privilégio de preferido do patrão, por acompanhá-lo
em todas as viagens, como companheiro inseparável.
Ao centro da sala, peça de ferro com brasas, pois a noite começava a esfriar,
e, em cima, bule de café. Do lado, prato de ágata com torresmos pururucas e
farinha de milho.
A conversa iniciada antes logo se reanimou, pois nhô Lazo mal se continha
pra contar, tim-tim por tim-tim, os acontecidos, e nhô Quim, sequioso de ou-
vir, perguntou:
– E como foi a saída do gado, lá da fazenda do Embiruçu do São Carlos, em
Maracaju?

184
Do be r r a n te a o a p i to

– Daquele jeito que mecê sabe, bagualada que nunca entrou em mangueira e
que o dono nem sabia quanto era, deu muita canseira. Alguns bois o Timbó
teve que agarrar pro focinho ou tarracar nas oreias, até que pegassem rumo.
– É... o seu cachorro pra isso não tem outro.
– Os bois sinuelos também ajudaram na saída e, quando alguma rês refu-
gava, teimando, o meu peão Gibóia peleava ou trazia na cincha. Alguns va-
queanos do vendedor serviram de ponteiros e, depois de uma légua, na ajuda,
voltaram!
– Ouvindo isso parece que vejo tudo de novo. A festa e alegria da peonada
no começo de viagem...
– Aconteceu muito tropeço pra frente. Certo dia caiu tempestade de trovão e
corisco riscando o céu, estralejando de meter medo... e a gente ainda tinha estirão
comprido pela frente, antes de chegar no pouso, depois do Rio das Corujas.
– Conheço o lugar. Não é riozinho de meio dúzia de braças, não. E tem
fundura!
– É mais perigoso que os de corredeiras e espraiados.
– E “bufava” de cheio, devido às chuvas na cabeceira. Quedê a margem? A
água engolira os barrancos. E ali uma desgraça...
– Que foi?
– Mecê nem acredita: numa forquilha de árvore estava um homem pendu-
rado, se agarrando pelos galhos, cai não cai. Pros lados só restos de paus fin-
cados e paredes de casa de barro. O rio engolira sua tapera! O infeliz nem se
animou quando viu os ponteiros da nossa tropa, estava “entregue”, vencido
pela desgraça.
– Na certa vivia escoteiro, sozinho!
– Espere, compadre. Nem tanto. Tinha companhia...
– Como assim?
– Segurava no braço um cachorrinho cotó e ainda tratou de agarrar, de um
galho da árvore, um macaquinho... os dois quase morrendo de fome. Um não
gania mais, outro mal guinchava. O homem, desanimado, já se entregara de
vez. Pra ele tanto fazia receber a nossa ajuda ou ficar lá, até morrer.

185
F ra n ci sc o Mari ns

– O Zeca Pedro jogou o laço pra ele se agarrar... Mas não deu no compri-
mento. Doze braças de couro não deram pra laçada chegar na árvore e nem o
homem parecia com força pra vir no arrasto. Podia cair e se afogar.
– O certo era levar a montaria até ele – disse nhô Quim.
– Foi o jeito. O Alírio montado no burro Pachola e puxando a mula ruana
foi a mal e mal até a árvore. Então o desgraçado empacou. Só ia se também le-
vasse o cachorro e o macaco. Alírio teve que dar um jeito, amarrando a custo os
dois no arreio. Quando chegaram no terreno seco, estavam tão fracos que nem
tiveram coragem de comer a carne de sol e a farinha da nossa matula.
– E o macaco?
– Por sorte, no antigo quintal da casinha, não invadido pelas águas, havia
um pomar, que foi bom pra eles e pra gente também. Tinha lá uns pés de laran-
ja e banana.
– E a passagem do rio?
– Foi ruim... tinha peixe de dente travado, pronto pra lanhar o couro dos
bois...
– É... verdade... e se o sangue escorre da rês e tinge a água, ajuntam as maldi-
tas piranhas em cardume, que mordem a barriga, as pernas, o saco dos bois... –
comentou nhô Quim.
– Uma desgranha mesmo. Me socorri, então, do modo antigo do boiadeiro
na travessia de rios.
– Jogando vervuia na água?
– Não, compadre, a gene não tinha bangada de mutum nem de outra ave,
foi “boi de piranha” mesmo! Não tive outro jeito. Com muito dó, peguei um
magruço, que mal se arrastava e logo ia cair e ficar no caminho pra comida de
corvo, e atirei o coitado na água. Foi desgraça pra ele e festa pra piranhada. E,
enquanto as carniceiras iam rio abaixo, lanhando a carcaça, atropelamos ligeiro
a boiada, pra travessia do rio...
– E demorou muito a passagem?
– Um tempão... tanto boi, magote mais magote, das centenas de cabeças... e
ainda perdi outros, que rodaram com a correnteza, sem força pra chegar do

186
Do be r r a n te a o a p i to

outro lado, onde o barranco era alto... Arrastados, rio abaixo, no redemoinho,
quase uma dúzia...
– Pra mais que isso... ia dizer o Caiara, se estivesse aqui.
Os dois riram, lembrando-se das respostas do peão, que viraram cacoete,
sempre a repetir “pra mais”.
– Na certa algum boi se salvou do afogamento, enroscando-se em algum
tronco de árvore, braças lá pra baixo...
– Sorte deles que alongaram e assim escaparam do açougue...
– Pode ser que viraram comida de onças...
– Do Rio das Corujas pra frente a gente não teve mais tropeço, a não ser
quando, numa grota, de noite, uma “pintada” quebrou o pescoço de um garro-
te e bardeou a presa pra longe.
– Faz parte! O bicho onça também tem de dar comida pros filhotes.
– Mas não às custas das nossas reses.

As duas comadres, desinteressadas das conversas “de homem”, tinham ido


pra cozinha e, no fogo de lenha, estouraram, na panela de ferro, umas pipocas e
coaram mais café para o bule da sala.
– Tá bem gostoso o seu “moka” – comentou o visitante.
– É do nosso cafezinho crioulo, aqui da Prata.
E os dois recomeçaram a falar de bois e da viagem de Mato Grosso até a
Cuesta. Mais tarde Lazinho gritou pra mulher:
– Traga paçoca de pilão pro cumpadre!
– É da boa, aquela com a farinha de milho do Zico Alemão? – perguntou
nhô Quim.
– Da verdadeira... Quem trouxe foi nhô Nica – disse a mulher.
– Antes assim, que não agüento mais o charque curtido no suor de cavalo
com a farinha azeda dos pousos! Mas era o que havia pra comer!
– E a maleita?

187
F ra n ci sc o Mari ns

– Tava brava, dando até nas árvores!


Nha Zabé veio pra sala, abrindo a boca de sono, e reclamou:
– Marido, não aguento mais... mecê ainda fica?...
Quim se ajeitou na cadeira, indeciso.
– Tá cedo, compadre – atalhou nhô Lazo. – A gente tem ainda muita eitada
de prosa.
– Se mecê insiste, por mim...
E virando-se pra mulher:
– Se vancê quer ir pra casa eu ainda fico.
– Então vou, tem lua clareando. Comadre Biela também está com sono...
Nhá Zabé, de saída, comentou com a comadre:
– Eles pensam que ainda são moços! E relembrando até parece que os “janei-
ros” não pesam nos ombros.
– É verdade, comadre. Pra mim, entretanto, alguma coisa me diz que o meu
Lazo nunca mais vai pro Mato Grosso... atrás de boiada.

Nesse momento as duas ouviram, vindo dos longes, som prolongado que
atravessava a noite – era apito de locomotiva a vencer, fogosa, a planura dos
campos e as distâncias...
Os dois maridos emudeceram, respiração suspensa.
– Pra mim, compadre, preferia ouvir o som do berrante, chorado no des-
campado, puxando os bois...
– Muito mais gostoso!
Nhá Zabé saiu pra rua, deserta, que a casa dela era logo na esquina. Seu ca-
chorro, na espera, deitado junto a um tronco velho, abanou o rabo e acompa-
nhou a patroa.
Os dois compadres voltaram a se acomodar nas cadeiras, pernas espichadas,
e a sorver mais canecos de café e a trincar nos dentes torresmos pururucas, com
farinha de milho. Ficaram por minutos calados. Aquele apito vindo da noite
parecia feri-los como uma zagaia atirada em onça no covil.

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Do be r r a n te a o a p i to

– Se fosse do berrante não “machucava” tanto a gente...


– Deixe pra lá...
E voltando às conversas:
– É mesmo boa a boiada que veio? – perguntou nhô Quim.
– Comprida e ancuda. Logo estufa no capim catingueiro, no colonião e até
no favorito, que é mais fraco. Só não engorda na barba-de-bode.
– Igualada na cor e no tamanho? Quanto tempo ainda demora pro “gan-
cho”? – perguntava nhô Quim.
– Nhô Macário, que fez a apartação no rodeio, escolheu, escolheu, boi a
boi, mas nem tudo saiu como ele queria. Pela pelagem escolheu: barroso, araçá,
bocalvo, almarado, brasino, lombardo, nambiju...
– Uma colcha de retalhos?
– Outra parte escolhida foi pelos chifres: cabanos, com pontas voltadas pra
baixo, outros biscos...
– Um chifre pra arriba outro pra baixo?...
– É... outros brocos...
– De aspas pequenas, enrugadas, que nem casco de tartaruga.
– Vejo que vancé bem conhece a boiada pelos cornos... os chamados cube-
tos e os cornalão, estes com meia braça de compridos.
– Desses bois chifrudos eu gosto e metem medo pelo tamanho das guampas.
– Pra tudo tem gosto! Quando a gente já passava por Campos Novos, São
Pedro do Turvo e Figueira Brava, o gado já afinava de bucho. Os pastos eram
só de capim favorito e a gente tava com medo de ervas ruins – mio-mio e erva-
de-rato, no meio das reboleiras de trapoeraba.
– Isso é desgraça. Comer um ramo e beber água – morte na certa!
A conversa mudava de rumo:
– Eu é que tô morrendo de saudade, montar de novo, seguir com a tropa.
Mas esta minha perna não me dá coragem, depois daquele tombo; do burro re-
domão – disse nhô Quim.
– Sorte é que mecê escapou, não quebrou a espinha nem ficou aleijado.
– Meu anjo da guarda pôs a mão em baixo, na hora certa.

189
F ra n ci sc o Mari ns

– Nossa dupla, pra puxar boiada, não tinha parelha.


– Infelizmente, compadre, sinto nhô Macário meio desanimado em trazer
bois tocados.
– É... o apito já chegou também no ouvido dele!
As horas rodavam e eles ouviram os galos amiudarem. A voz de nhô Lazo já
não era tão forte. Pigarreava. Num dado momento nhô Quim cochilou, sol-
tando pequeno ronco. Mas logo despertou, esfregando os olhos. Sentiu um
cheiro ruim.
– Passa fora, Timbó – ralhou nhô Lazo com o cachorro, que “faqueava-
o-bode”, como eles chamavam aos peidos.
Houve um silêncio na sala, e as batidas do relógio de bola da parede já soa-
vam perdidas, pois eles já nem ouviam, menos ainda latidos de cães e o rincho
de um animal.
Nhô Quim logo mais, como se desse conta do adiantado da hora, levan-
tou-se, ajeitou a capa boiadeira nas costas, espreguiçou com ruído, arranhou a
garganta pra chamar a atenção do compadre, que ressonava.
– Bem... acho que vou indo... a gente já proseou um pouco.
– É cedo ainda...
– Cedo mesmo, mas de outro dia. Mecê viu que a madrugada clareia?
Galos continuavam a cantar.
– Nem acredito que amanhece...
Nhô Quim saiu manquitolando, a pigarrear. Cuspiu, sentindo a boca amarga.
Na ruazinha um vulto caminhava em sua direção. Reconheceu o Caiara, que
cumprimentou e disse:
– Tô indo buscar aí no pastinho de nhô Chico Ferrari as vacas de leite e a
tropa de sela.
– Ande logo, quero tomar um canecão de leite com açúcar mascavo e café.
Tô com uma baita fome. Caramba. Já é de dia?...
O outro não respondeu.
– Quem duvida que eu e o compadre anoitecemos e amanhecemos só falan-
do de bois? Quantas horas de prosa fiada! – murmurou, balançando a cabeça.

190
Do be r r a n te a o a p i to

– Pra mais que isso – respondeu Caiara. E ia se afastar quando Nhô Quim
indagou:
– E a mulher que tava “esperando”... já aconteceu? Veio o “bacorinho” ma-
cho, que vance tanto queria?
– Nasceram, patrão! Fui campear Nhá Minervina. Ela apareceu ligeirinho
lá em casa, quase nem precisara de parteira...
Nhô Quim estranhou a resposta e pensou ter ouvido mal.
– Como assim? É menino ou menina?
– Dois machinhos, patrão. Vieram de cambulhada, espertinhos, e mamam
que nem bezerrinho novo...
– Gêmeos, então?
– E já têm nome... se me dá licença, um chama Quinzinho e o outro Lazi-
nho, lembrando mecê e nhô Lazo.
– Tá certo, da minha parte concordo. Que Deus ajude. E agora eu é que
digo – não foi um só!
– Pra mais... – logo atalhou o Caiara, com o seu cacoete.
O peão ia saindo quando lhe perguntou:
– Nhô Macário não veio tratar da nova viagem da nossa gente pro Mato
Grosso, quando vancê vai de “ponteiro”?!
Caiara balançou a cabeça meio desconsolado. Já sabia de tudo, mas não
queria dizer nem pra Nhô Quim nem pra Nhô Lazo que a peonada da serra
não ia mais buscar boiada naqueles mundos tão distantes, por meses e meses de
caminhada. Nhô Macário tinha outro jeito de trazer o gado do Mato Grosso.
Parou, ajeitou o chapéu, e então os dois ouviram à distância um apito pro-
longado, que nem lembrava o som do berrante.
Caiara estava feliz, na manhã de muito sol. Era pai de cria. Dupla.

191
P r o sa

Corporações e confrarias
De Livreiros em Portugal e
Espanha desde os Reis Católicos
a D. José I de Portugal
(Breves apontamentos)

F er n an d o G u e d e s

P ara falar das instituições que, em Portugal e na Espanha,


durante mais de quatro séculos acompanharam o livro no
seu fluir histórico e na sua evolução, devo começar por referir as
Poeta e
historiador
português,
membro da
primeiras medidas oficiais, de que temos conhecimento, que a ele Academia das
Ciências de
se referem.
Lisboa. Suas
O mais remoto documento português é uma carta do Rei D. últimas obras:
Afonso V, datada de janeiro de 1481, passada a favor de três france- O Livro como
Tema (2001),
ses residentes na cidade de Lisboa, e na qual se diz que, consideran-
T. S. Eliot:
do o rei que é vantajoso para os seus reinos haver neles muitos livros, The Waste Land e
ficam aqueles mercadores isentos de quaisquer direitos sobre os que Depois (2003) e
As Quatro Estações
tiverem ou trouxerem de fora e venderem na cidade ou em qualquer (poemas, 2004).
outro local.
Quanto a Espanha, é no arquivo do Ayuntamiento de Múrcia que
se conserva o primeiro documento oficial sobre a actividade de livrei-

193
F ern ando Gu edes

ros, aliás semelhante ao do rei português. Trata-se de uma carta assinada pelos
Reis Católicos em Sevilha, a 25 de dezembro de 1477, a favor de um Teodori-
co Alemão, impressor e livreiro, a quem se isenta do pagamento de uma série
de impostos, porque as suas actividades “redundavam em honra e vitalidade
dos nossos reinos e dos seus naturais”.
Contudo, quer este documento, quer o português, não têm, nenhum deles,
carácter geral de protecção, antes são mercês atribuídas isoladamente a alguns
mercadores. O que tem já carácter geral de protecção real, mediante a isenção
de alguns impostos, é a lei promulgada por Fernando e Isabel nas Cortes de
Toledo de 1480 para todos os livros que fossem importados nos seus reinos,
bem como a carta de D. Manuel I de Portugal, de 10 de janeiro de 1511, exac-
tamente no mesmo sentido. Antes, em 1508, o mesmo rei, a Jacob Cromber-
ger, impressor em Sevilha e em Lisboa, e a todos os outros impressores de li-
vros que em Portugal residissem ou viessem a residir, concedia as mesmas
“graças, privilégios, liberdades e honras” que tivessem os cavaleiros da casa
real, desde que fossem limpos de sangue, sem suspeita de qualquer heresia,
nem tivessem incorrido em crime de lesa-majestade.
A razão destas precauções finais explicava-a o rei que se destinavam a impe-
dir que nos seus reinos se semeassem “algumas heresias por meio de livros”
que neles se imprimissem. Já em 1502, a 8 de julho, os Reis Católicos tinham
assinado uma Pragmática pela qual severamente se ordenava “que nenhum li-
vreiro, nem impressor de moldes, nem mercador” tivesse a ousadia de impri-
mir ou fazer imprimir, a partir daquela data, “nenhum livro de nenhuma Fa-
culdade ou leitura, ou obra que seja pequena ou grande, em latim ou em verná-
culo” sem que primeiramente tenha obtido licença real para o fazer.
Os receios manifestados por estas decisões dos reis de Portugal e de Espa-
nha vinham, afinal, na sequência dos avisos e recomendações que sucessivos
Papas faziam desde 1487, quando Inocêncio VIII publica a carta Contra
Impressores Librorum Reprobatorun e, depois, Alexandre VI a bula Inter Multiples, em
1501, recomendando o estabelecimento da censura aos bispos de Colónia,
Mainz, Trier e Magdburgo.

194
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

Cerca de 50 anos antes, também D. Afonso V de Portugal, a 18 de agos-


to de 1451, expedira um alvará a todos os “corregedores, juízes e justiças
dos nossos reinos”, no qual se declarava ter sido decidido em conselho
mandar queimar, por falsos e heréticos, os livros de John Huss e de Wiclef
que fossem achados no reino, livros manuscritos ainda, pois por essa oca-
sião ensaiava Gutemberg as primeiras espécies da sua descoberta, a qual só
chegaria a Espanha já entrada a década de 70 e a Portugal dez ou quinze
anos mais tarde.
Ainda vinham longe os dias em que, pela imprensa, se iriam divulgar veloz-
mente as Noventa e Cinco Teses de Lutero, levando Roma a implantar a censura
eclesiástica em todas as dioceses que lhe obedeciam.
Desta amostra documental se verifica como nos remotos dias do século XV
a atitude do Poder em relação ao livro oscilava já entre protecção e repressão,
posição que se iria manter pelos séculos fora.
Sabe-se que nos reinos de Espanha se produziu no século XII um extraordi-
nário renascimento da vida económica e industrial, o qual teve como conse-
quência natural o acentuar de um espírito corporativo entre os que exerciam o
mesmo “ofício”. O Foro de Escalona, outorgado por Afonso VII em 1130,
parece indicar que esse espírito já estava a dar alguns frutos no plano da agre
miação, pois proíbe expressamente os mesteirais de se darem a si próprios
quaisquer foros ou leis.
Entremos, porém, no tema que escolhemos.
Pela mesma época vai-se acentuando a divisão dos municípios em collationes
ou paróquias onde se inicia uma acção caritativa que vai conduzir em breve ao
surgimento das confrarias, provavelmente primeiro as meras confrarias de de-
voção, ou pias, e só posteriormente, como veremos, de mesteres. O Prof.
Antonio Rumeu de Armas tratou este tema com grande profundidade e desen-
volvimento numa sua obra de 1944 que indicarei na bibliografia.
Em Portugal as notícias que temos são um pouco mais tardias. O Prof.
Marcello Caetano menciona a existência, em 1297, de uma confraria dos ho-
mens bons de Beja e logo outra, a da Conceição de Sintra, em 1346. “Nenhu-

195
F ern ando Gu edes

ma destas confrarias é de mesteirais. Mas nos documentos mais antigos sobre


mesteres” o Doutor Marcello Caetano supõe encontrar

“indícios da prática de uma confraternidade do género da que vimos aí re-


gulada. Tudo faz crer que cedo as afinidades naturais da profissão levaram
os oficiais a firmar entre si um sólido pacto de assistência mútua e defesa
comum”.

E teria sido desse “pacto tácito” que teriam nascido as primeiras autorida-
des corporativas.
Esta opinião do mestre português, expressa em 1942, é claramente partilha-
da pelo Prof. Rumeu de Armas ao reflectir, quanto a Espanha do século XII e
até anterior, sobre

“a existência de ofícios com vida desenvolvida e próspera; a tendência para


uma união ou agremiação por espírito de corpo e para defesa dos interesses
comuns; os desejos de irmandade e união que se reflectem primeiro na colla-
tio como célula paroquial e mais fortemente na confraria, expressão, a um
tempo, do religioso e do beneficente (...); e por último a tendência a que os
ofícios se agrupem em determinados bairros ou ruas”.

Provavelmente não será muito arrojado pensar que da conjugação de todos


estes factores tenha surgido a confraria gremial, ou de ofício.
A compilação feita, por encargo do Rei de França Luis IX (São Luis) pelo
preboste de Paris Etienne Boileau, no Livre des Métiers, haveria de correr a Euro-
pa inteira a influenciar, pelo menos, as cortes mais aparentadas com a de Fran-
ça, na constituição e organização das corporações de mesteres.
Em Espanha, os vários reinos foram diferentemente influenciados. Se-
gundo o Marquês de Lozoya, o figurino gremial, proposto por Boileau, vai
encontrar-se, logo nos séculos XII e XIII, em Barcelona e em Valência, onde
o trabalho se encontra organizado de maneira exactamente idêntica à da Eu-

196
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

ropa transpirenaica. E não só a organização do trabalho é absolutamente eu-


ropéia como também o é a enorme diversidade de grémios existentes. É certo
que o seu autêntico desenvolvimento só se dará algumas dezenas de anos
mais tarde, verdadeiramente nos séculos XIV e XV. Os ofícios organizados
auxiliavam as autoridades das cidades na inspecção de mercados e oficinas,
em troca do que o governo municipal os reconhecia, lhes atribuía algumas
funções de tipo económico e inclusivamente aceitava os regulamentos e prá-
ticas que por eles iam sendo adoptados. Na verdade, os primeiros regimen-
tos, ou ordenações, não passavam de simples disposições municipais muito
concretas. Haverá que esperar pelo século XVI para que surja a ordenação
gremial clássica, que já era essencialmente um privilégio, uma prerrogativa,
uma concessão que o Estado fazia à corporação no terreno social, económico
e até político.
Da primitiva espontaneidade gremial e da sua proliferação resultou que não
houvesse uma estrutura unitária, nem sequer numa mesma cidade, como se po-
deria verificar no caso de Barcelona. A própria nomenclatura do pessoal diri-
gente, os actos e festividades dos vários grémios variam profundamente, cor-
respondendo, por vezes, a características próprias, institucionais ou sociais.
Mas, enquanto as coisas se passam deste modo na região levantina, em Cas-
tela os grémios ou não existem ainda ou, se existem, são perseguidos pelos reis.
Durante a Idade Média é o próprio povo quem pede aos soberanos que
proíbam as associações de mesteirais. A 2.ª lei do título VII da quinta Partida
de Afonso X é bem clara: o rei proíbe essas formas de agremiação porque os
artesãos unem-se com o fim de impedir que trabalhem os que não pertençam à
sua associação e só ensinam o ofício àqueles que eles querem, o que vai contra a
liberdade de que todos devem desfrutar. Quer isto dizer que a noção medieval
de liberdade em Castela é antagónica do espírito gremial: enquanto este defen-
de a hierarquização dentro do ofício e a sua exclusividade, o povo contesta-as,
e os reis acedem às petições dos populares.
A acrescer esta antipatia popular juntava-se ainda uma outra razão a dificul-
tar a constituição de grémios em Castela: em cada cidade havia, verdadeira-

197
F ern ando Gu edes

mente, três cidades: a cristã, a moura e a judia, e nas três havia trabalhadores
mesteirais, que não podiam conviver na mesma associação. Só quando, no
tempo dos Reis Católicos, se obrigou à conversão ou expulsão de judeus e
mouros, é que a agremiação se tornou possível, e o grémio castelhano nasce
exactamente durante o reinado daqueles soberanos. Ainda segundo o Marquês
de Lozoya, houve uma notável excepção a este quadro acontecido em Segóvia,
na Confraria de Santo Eloi, integrada por mouros e cristãos, mas onde houve a
precaução de dispensar aqueles dos compromissos religiosos.
A crise económica profunda que assolou a Europa nos séculos XIV e XV
provocou naturalmente um movimento de defesa nas incipientes associações de
mesteres e é dessa situação que vai surgir a peça principal da organização, o exame
e a inerente criação da obra de mestria, indispensáveis, desde então, para a qualifica-
ção de mestre mas, simultaneamente, uma forma incontornável de limitar o nú-
mero de artesãos e de assegurar trabalho permanente aos já instalados no grémio.
E resta, para já, chamar a atenção para um facto extremamente importante e
ao qual, de leve, me referi no começo.
De uma maneira geral, a forma mais remota de associação é a Confraria, de
início apenas com intuitos religiosos e beneficentes e cuja existência está com-
provada desde o século XII. É também, como vimos, no século XII que, nos
reinos do Levante, os ofícios começam a surgir com alguma regulamentação, à
sombra dos Foros municipais. Ora, é da conjunção da Confraria e do Ofício
que vai nascer a Confraria-gremial, ou seja, aquela instituição que já não tem
simplesmente um objectivo religioso e beneficente, mas a estes iniciais agrega
agora um intuito económico. De Confraria-gremial a Grémio foi um passo, no
momento em que as próprias autoridades lhe atribuíram jurisdição própria so-
bre os seus agremiados, aos quais permitiram que regulassem e vigiassem o
funcionamento do ofício, realizassem os exames de mestria, etc., sem nunca,
porém, deixarem de estar sujeitos às obrigações religiosas, beneficentes e de
apoio mútuo que a Confraria original lhes impunha. Em terras de Espanha,
parece que a Confraria-Grémio mais antiga terá sido a dos Tendeiros de S.
Miguel de Tróia, anterior a 1151.

198
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

Diferente, menos “européia”, foi a criação das corporações de mesteres em


Portugal.
Marcello Caetano aventa a hipótese de o associativismo mais remoto ter
surgido em torno dos hospitais. Contudo, os documentos escasseiam para sus-
tentar definitivamente esta ou outra qualquer tese.
É, de facto, provável que, antes de se organizarem corporativamente, com
objectivos económicos e de defesa e promoção da profissão, os de um mesmo
ofício (ou conjunto de ofícios) se tenham reunido para constituir uma confra-
ria ou para fundar um hospital.
A confraria1, ligada a um ou a vários ofícios mecânicos, designada por Do-
mingos Maurício confraria corporativa para a distinguir da religiosa ou da
simplesmente leiga, regia-se pelo compromisso, livremente aceito por todos os
confrades, e tinha os seus próprios órgãos administrativos, nalguns casos inde-
pendentes da fiscalização eclesiástica. “Instituíam-se junto de uma capela, sujo
orago era o patrono da agremiação que se erigia no interior de um grande tem-
plo ou em edifício próprio”. A prática da caridade e o auxílio mútuo consti-
tuíam as suas características essenciais, bem como a promoção da paz e da con-
córdia entre os confrades e a defesa da pureza da fé. Num compromisso do sé-
culo XIV de uma confraria de leigos (a da Conceição, de Sintra), estipula-se
que os confrades se reuniriam anualmente para comer um jantar, comprome-
tiam-se a aceitar a mediação da confraria quando entre si disputassem, a assis-
tir com alimentos aos que empobrecessem, a visitar os doentes, a velar o corpo
dos que morressem, a acompanhá-los à sepultura e a sufragar-lhes a alma man-
dando celebrar missas. De uma maneira geral, tais obrigações se mantiveram
com o correr dos anos para todos os géneros de confrarias.
Em 1269 há notícia de uma confraria em Guimarães, de sapateiros e alfaia-
tes; em 1297 D. Afonso III concedeu autorização aos mercadores e a outros
homens bons de Beja para se constituírem em confraria, e Lúcio de Azevedo
refere uma outra, também de mercadores, activa no reinado de D. Dinis; por

1
Conf. Fernando Guedes, Os Livreiros em Portugal, 2.ª edição 2005, Lisboa.

199
F ern ando Gu edes

toda a orla marítima se fundaram confrarias de mareantes, sendo que a do Bom


Jesus, em Viana do Castelo, parece remontar ao século XIV.
O hospital medieval era um misto de hospital, hospício e albergaria, onde
“se acolhiam asilados permanentes, doentes e aleijados, e se albergavam pobres
de pedir, romeiros, viajantes e gentes que vinham da província à capital”.
Em Lisboa, mais de uma dezena de hospitais, administrados por ofícios, fo-
ram incorporados no Hospital Real de Todos-os-Santos, fundado em 1492.
Em Leiria há notícia de um hospital dos tecelões e outro dos ferreiros e caldei-
reiros; os sapateiros mantiveram um em Torres Vedras, e no Porto existiram o
de Santa Catarina, dos anzoleiros; o do Espírito Santo, dos marinheiros e pilo-
tos; o de S. Crispim e S. Crispiano, dos sapateiros, ao qual foi anexado o dos
palmeiros; o de S. João Baptista, da Confraria de Nossa Senhora da Silva, dos
ferreiros “de cima”, e o de S. Tiago, dos ferreiros “de baixo”. Estes dois, junta-
mente com o de Santa Catarina, fundiram-se num só, da invocação de S. Nico-
lau. O de S. Crispim já existia em 1398, e os restantes têm existência provada
no século XV.
Terá sido a confraria a forma primitiva de associação de um mesmo ofício
(ou conjunto de ofícios afins) ou a primeira manifestação do associatismo dos
mesteirais revelou-se na fundação de hospitais, como sustenta Marcello Caeta-
no? É certo que vários dos hospitais administrados por ofícios tinham na sua
designação a invocação de um padroeiro (em Lisboa: Hospital de Santa Maria,
dos alfaiates; de Santa Maria dos Francos, dos hortelões e almuinheiros; de S.
Jorge, dos armeiros, barbeiros e caldeireiros; de S. Vicente do Corvo, dos car-
pinteiros da Ribeira; de Santa Maria dos Mártires, dos peliteiros; do espírito
Santo, dos pescadores de Alfama); o que não sabemos, na grande maioria dos
casos, é se esse padroeiro o era também da confraria criada pelo ofício. No
caso do Hospital de Santa Maria das Mercês, dos carpinteiros, correeiros,
odreiros e pedreiros de Lisboa, sabemos que existia a confraria da mesma invo-
cação e ligada ao mesmo conjunto de ofícios. Todavia, os borzeguieiros, sapa-
teiros, chapineiros, soqueiros, curadores e curtidores, igualmente de Lisboa,
sustentavam o Hospital de S. Vicente, aí reuniam o seu cabido, mas a sua con-

200
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

fraria, que no século XVI se formou, teve S. Crispim por orago. E, numa re-
presentação dos ourives de Lisboa a D. Afonso V, de 25 de julho de 1457, pe-
de-se-lhe que permita a eleição de um dos seus “confrades de hospital” para
exercer determinadas funções relacionadas com a profissão.
Um outro documento, da chancelaria de D. João II, ao ordenar que os mes-
teres elejam os Vinte e Quatro “em seus esprytais”, parece indiciar, primeiro,
que, em geral, os ofícios embandeirados tinham o seu hospital; segundo, que
esses hospitais eram, por via de regra, a “sede” dos ofícios, tradição que se
manterá com o Hospital Real de Todos-os-Santos, que os anexou: aí foram
reservadas salas para as reuniões da Casa dos Vinte e Quatro e aí se guardaram
os seus arquivos, que lamentavelmente de todo desapareceram com o incêndio
que se seguiu ao terramoto de 1755.
Não há, nestes documentos, quer no dos ourives, quer no régio, menção a
confrarias; todavia, é importante agora transcrever um passo do notável “Regi-
mento do Hospital Real de Todos-os-Santos”, do Rei D. Manuel:

“Pelo ajuntamento que por virtude da Bula do santo padre se fez de todos
os hospitais desta Cidade, se hão-de cumprir neste dito nosso Hospital to-
das as obrigações deles, assim de missas como de camas e mercearias, e todas
as ‘outras esmolas’ que neles se faziam e ‘a que são obrigados por virtude
dos compromissos deles’, e assim de ‘algumas Capelas’, que por virtude da
dita Bula aqui se mudaram e anexaram dos quais compromissos. Nós man-
damos fazer um compromisso no qual são escritos e declarados todos os
hospitais que a este nosso hospital se ajuntaram; e assim ‘Capelas e os com-
promissos e obrigações de cada um’ para segundo eles se satisfazer e cum-
prir o que em cada um hospital e capela se fazia e era obrigado a fazer, se-
gundo a possibilidade de suas rendas”.

Perante este texto, não parece imprudência aventar que alguns hospitais,
que no de Todos-os-Santos se juntaram, traziam consigo as confrarias dos ofí-
cios que os sustentavam, confrarias essas ligadas a capelas, como era de uso, e

201
F ern ando Gu edes

que, pelos seus “compromissos”, traziam certas obrigações para o novo hospi-
tal. E não parece que a palavra compromisso tivesse sido empregada por D.
Manuel no sentido comum de obrigação, até porque o rei em certo ponto uti-
liza ambas – compromissos e obrigações – e, mais, ele próprio manda redigir
um “compromisso” onde se declaram os nomes dos hospitais anexados, as ca-
pelas e os compromissos, e as obrigações de cada um.
Também António Cruz entende que certos hospitais medievais do Porto
tinham sido fundados e eram mantidos por confrarias de mesteirais e

“denotam, pela sua antiguidade, que estes (os mesteirais) vieram a consti-
tuir-se em irmandades, para a manutenção do culto do padroeiro respectivo
e a prática da caridade, muito antes de agrupados sob a mesma bandeira
com o propósito de defender interesses de classe”.

E dá como exemplos o hospital sustentado pela Confraria de S. Crispim e S.


Crispiano, de sapateiros, surradores e tamanqueiros, já activo antes de 1398, e
os dois sustentados pelos ferreiros, um mantido pela Confraria de Nossa Se-
nhora da Silva, e o outro pelos “ferreiros de baixo”, os quais se uniram em cer-
ca de 1451. Será assim de admitir que, sendo as confrarias de mesteirais e os
hospitais dos ofícios duas realidades da vida social dos nossos séculos XIV e
XV, ambos terão coexistido, em certo número de casos, na vida de um mesmo
mester ou ofício, nuns casos com a precedência daquelas sobre estes, noutros
casos o contrário.
Quando é que cada profissão passou a formar “uma unidade orgânica, regi-
da por leis próprias aplicadas por autoridades também próprias sob a fiscaliza-
ção e superintendência das autoridades municipais?” Provavelmente em datas
muito distintas de ofício para ofício e, mais, de concelho para concelho. Sabe-
mos que essas “leis próprias” foram muito tardiamente codificadas. O mais
antigo “regimento” lisboeta de que Marcello Caetano dá notícia é de 1489 e
regulamenta o ofício de sapateiro e afins. Reuniram-se os membros desta cor-
poração (borzeguieiros, sapateiros, chapineiros, soqueiros e curtidores) no

202
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

Hospital de S. Vicente, e é aí que decidem “escrever as resoluções até então to-


madas a fim de pedir a confirmação régia e a cominação de uma pena pecuniá-
ria para punir as transgressões”. Não há qualquer referência a regimento anterior,
mas percebe-se que os ofícios tinham as suas normas, o seu direito consuetudi-
nário, que se ia transmitindo de geração em geração. E ante a provável pouca
complexidade da vida urbana no Portugal dos séculos XIV e XV, e o mais que
provável reduzido número de oficiais e mestres de cada ofício, não se faria no-
tar grandemente a ausência de normas escritas que a todos obrigassem. Terão
sido, segundo Marcello Caetano, os Descobrimentos que influenciaram deci-
sivamente este estado de coisas, com o afluxo de provincianos a Lisboa, e leva-
ram a que, a partir de meados do século XVI, vários “regimentos” começas-
sem a ser aprovados pela Câmara de Lisboa, como cumpria (para além de uma
aprovação régia que parece nunca ou raramente ter sido dada), e a que, em cer-
ca de 1570, a mesma Câmara tivesse encarregado Duarte Nunes de Leão de
compilar, redigir ou reformar os regimentos de todos os ofícios mecânicos,
que depois se registaram no Livro dos Regimentos dos Ofícios Mecânicos da Mui Exce-
lente e Sempre Leal Cidade de Lisboa, após aprovação em 24 de janeiro de 1572.
Assim se pretendia obviar aos “muitos inconvenientes que se seguiam de mui-
tos oficiais mecânicos desta Cidade não terem regimentos até agora por que se
governassem”, conforme se diz na acta da reunião da vereação desse dia.
Contudo, se só na segunda metade de Quinhentos se reduziram a escrito, ou
se reformaram, as normas que regiam os ofícios, as corporações, como se disse,
vinham já exercendo de há muito a sua acção. A sua organização em Lisboa data
seguramente do século XIV, pois que D. João I, ainda Mestre de Avis, institui
em 1383 a Casa dos Vinte e Quatro ao determinar, segundo Fernão Lopes, “que
viinte e quatro homees, dous de cada mester, tevessem carrego destar na Camara,
pera toda cousa que sse ouvesse de hordenar por boom rregimento e serviço de
Meestre, fosse com seu acordo delles”. Um outro autor aventa que, “não sendo
crível que a esse tempo houvesse em Lisboa somente doze ofícios ou profissões“,
a expressão mester, usada pelo cronista, se deveria entender aplicável a bandeira ou
ofício embandeirado. Que se deva ou não pressupor tal apuro de organização (para o

203
F ern ando Gu edes

qual só no século XVI temos documentos que o atestem), é indiscutível que os


ofícios tinham então de possuir um grau de organização que lhes permitisse,
pelo menos, eleger os dois que haviam de ir à Câmara.
Entre fins do século XIV e meados do século XVI a organização dos mes-
teres evoluiu grandemente: ofícios foram surgindo de novo e outros foram de-
finhando e desaparecendo, o que tudo deu em resultado uma enorme confusão
na Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa, onde os “homens” já eram vinte e sete
quando D. João III foi solicitado a intervir. O monarca, por carta régia de
1539, meteu de novo ordem na Casa, reorganizou os ofícios embandeirados e de-
terminou quantos representantes cada um deles daria. Tão bem ou tão mal o
Piedoso decidiu que, apesar de, com o decorrer do tempo, as discórdias, os
abusos e o próprio desinteresse dos mesteres terem prejudicado, de quando em
quando, o funcionamento da Casa, em 1771 se tornou necessário proceder a
nova reorganização das bandeiras, determinando-se agora não só quantos repre-
sentantes cada uma daria para a Casa dos Vinte e Quatro, mas também a perio-
dicidade com que cada ofício elegeria o seu delegado.
Mas, se em Lisboa a organização dos mesteres atingiu, como vemos, eleva-
do grau de complexidade, outras terras do País, nomeadamente o Porto e Co-
imbra, organizaram também com algum pormenor os seus oficiais mecânicos.
No Porto, a Casa dos Vinte e Quatro só foi formalmente instituída no dia
o
1. de janeiro de 1518, mas, cento e cinquenta anos antes, a 10 de julho de
1368, fizeram-se representar na sessão da Câmara os curtidores, os ourives, os
seleiros, os armeiros, os alfaiates e os sapateiros, e alguns mesteirais assistem à
reunião camarária de 9 de julho de 1392, entre “grã peça doutros homes
boôs”. Em 1412 foi determinado que, para a aprovação das “taxas” de cada
ofício, fosse chamada “huma pessoa de cada hum mester (...) e com seu acordo
sseiam feitas dando lhes ganhos aguissados”. As referências aos mesteres e à
sua organização vão-se tornando cada vez mais frequentes com o decorrer do
século XV, até que em 1475 a acta da reunião da Câmara de 28 de agosto refe-
re “os dos mesteres que ssõ hordenados para vyrem aa rrolaçõ”, nomeadamen-
te dois representantes de cada um dos ofícios – mercadores, ourives, marinhei-

204
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

ros, cordoeiros, sapateiros, alfaiates, tanoeiros, barbeiros, bainheiros, ferreiros,


picheleiros e albardeiros –, e em 14 de julho de 1479 são mencionados os pro-
curadores dos mesteres entre os magistrados e homens bons do Conselho,
comparecendo às vereações em número de seis. Entretanto, a primeira referên-
cia documental à regulamentação da actividade dos mesteres no Porto é de
1390.
A Casa dos Vinte e Quatro de Coimbra terá nascido de um pedido dos pro-
curadores da cidade nas Cortes de 1459. A presença na Câmara era assegurada
por dois procuradores dos vinte e quatro mas, nos começos do século XVI, já
todos os da Casa pretendiam votar em qualquer decisão camarária, o que levou
o Rei D. Manuel a definir claramente (e a claramente limitar) os poderes dos
mesteres nessa cidade.
Era esse exorbitar de poderes, pelo qual os mesteres iam tentando assenho-
rear-se de uma fatia importante da governação das cidades, que terá já estado
na origem do protesto dos representantes dos Concelhos nas Cortes de Évora
de 1481-1482, que referimos atrás, contra a presença activa dos oficiais mecâ-
nicos nas sessões das vereações. Segundo aqueles, não se devia consentir “que
os que não sabem nem governar a si mesmos sejam postos a reger e governar o
bem comum (...) porque é conhecida cousa que os populares não conhecem
que cousa é politica nem sabem que cousa é honra, nem quando deve a honra
preceder o proveito”.
É conhecida a resposta de D. João II declarando que só em Lisboa eles po-
diam votar (reminiscências da crise de 1383-1385), tolhendo assim as preten-
sões dos mesteres em relação aos governos das cidades. Mas não definitiva-
mente, porque D. Manuel, em resposta a queixas dos vereadores e oficiais de
Coimbra, a propósito da posição, que consideravam abusiva, que os mesteres
aí vinham adoptando, teve de emitir uma provisão, em 1509, para repor as coi-
sas no seu correcto lugar.
Envolvidos em todos estes problemas deverão ter andado os livreiros, em-
bora não se encontrem referências concretas a seu respeito. Contudo, se D.
João III, em 1539, ao reorganizar a Casa dos Vinte e Quatro, menciona este

205
F ern ando Gu edes

ofício como anexo na bandeira de Arcanjo S. Miguel; se as mais antigas instru-


ções, de Lisboa, do Porto, de Coimbra, sobre a organização da procissão do
Corpo de Deus, sempre se lhes referem; se o seu regimento se encontra entre o
número dos que foram compilados, redigidos ou reformados por Duarte Nu-
nes de Leão em 1572; se finalmente administram a sua confraria em pleno sé-
culo XVI, como veremos a seguir, deverá ficar fora de qualquer dúvida a anti-
guidade da profissão como ofício mecânico corporativamente organizado.
Notar-se-ão agora, depois do que fica dito, as diferenças fundamentais, ou
melhor, a diferença fundamental entre a organização dos mesteres em Portugal
e nos reinos de Espanha.
Os grémios, ou corporações, poderão ter, nos dois países, origens mais ou
menos comuns, nas confrarias ou, principalmente em Portugal, nos hospi-
tais medievais. Mas, enquanto em Espanha a associação de interesse econó-
mico – o grémio – permanece ligada à de interesse beneficente e religioso – a
confraria –, em Portugal a separação entre as duas instituições é clara e total,
com a corporação regendo-se pelo seu “regimento” e a confraria pelo seu
“compromisso”, ainda que os membros de uma e de outra fossem, ao menos
parcialmente, as mesmas pessoas. E acontecia ainda que os de um único “ofí-
cio” podiam dividir-se por mais de uma irmandade, dependendo inclusiva-
mente das ruas onde tinham as suas tendas. Os algibebes de Lisboa, por
exemplo, sustentavam nos meados do século XVIII a irmandade de S. Sebas-
tião, na igreja da Madalena, e uma de Santa Catarina, na igreja de s. Julião,
acrescentando-se-lhes, mais tarde, a irmandade de Nossa Senhora das Can-
deias, que era também dos alfaiates.
O que importa reter daqui é que em Portugal, contrariamente ao que se pas-
sava nos reinos de Espanha, o “temporal” e o “espiritual”, se em alguma época
andaram juntos, cedo se separaram, com cada uma das instituições prosseguin-
do os seus próprios objectivos. O caso dos livreiros (que trataremos seguida-
mente) é bem elucidativo de quanto fica dito.
Do ofício de livreiro conhece-se, em Lisboa, o primeiro regimento em
1572, o que não significa que o mester só se tenha organizado nessa data. Pelo

206
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

contrário, a sua organização não só é anterior, em Lisboa, a 1539 (carta de D.


João III, já citada) como é anterior a 1517, data do documento de Coimbra
que primeiro o refere como ofício. Em Lisboa foi sempre um dos anexos da
bandeira do Arcanjo São Miguel, juntamente com, entre outros, sombreireiros
(cabeça), canteiros, sirgueiros de chapéus e agulhas, luveiros e penteeiros.
Convém, neste ponto, explicar o que é a bandeira. Marcello Caetano, com a
sua clareza habitual, escreveu em 1942:

“É geralmente admitido que a designação de bandeira dada a uma corpora-


ção resulta de esta se individualizar nos actos públicos pelo estandarte que
lhe fora permitido usar. (...) A bandeira era o sinal que agrupava os mestei-
rais ao intervirem na vida da Cidade. (...) É ao agregado de profissões (...)
representado por um só estandarte que (...) se chamará bandeira.”

A organização dos mesteres em Lisboa parece ter sido bastante mais com-
plexa do que nas restantes terras do País, nomeadamente no Porto e em Coim-
bra. As bandeiras, como instituições autónomas, com organização e, até, “regi-
mento” próprio, supomos que só tenham existido em Lisboa. É certo que
António Cruz, no seu utilíssimo trabalho Os Mesteres do Porto (já citado), refe-
re-se às bandeiras como se elas tivessem existido no Porto com as mesmas ca-
racterísticas que tiveram em Lisboa, mas da própria leitura da sua obra se con-
clui negativamente. A bandeira, instituição agrupando um conjunto de ofícios,
nem sempre, ou raramente, relacionados entre si, é uma instituição puramente
lisboeta.
A introdução do Regimento (...) da bandeyra do Arcanjo S. Miguel, datado
de 1770, é bastante esclarecedora quanto aos seus fins:

“forão os Senhores Reys, que felizmente tem Reynado neste imperio de


Portugal sempre inclinados a favorecerem esta parte da Republica, consti-
tuindo huma Caza de vinte e quatro, pela qual Se deregissem os Mestres dos
Officios a conseguir os prevelegios, com que forão Servidos Conducuralos.

207
F ern ando Gu edes

Meresendo ao Regio Cuidado do Senhor Rey Dom João 3.º no anno de mil
quinhentos e trinta e nove estabelecer huma Ley pela qual debaixo do titulo
de Bandeiras regular todos os officios para por estes serem chamados a dita
Caza. E para que a mesma regulação não deixe de Sortir aquelle effeito que
a Real Intenção naquelle tempo, e Se tem conservado the ao prezente, se faz
precizo que as mesmas Bandeyras tenhão forma pela qual Se possão deregir
os Mestres que houverem de ocupar os Cargos, que se fazem precizos para a
conservação daquelles, e para o adiantamento destes. E como a Bandeyra do
Arcanjo São Miguel Seja huma das Contempladas na mesma regulação,
Supplicou o Juiz desta ao Supremo Senado da camara lhe desse Regimento,
pela qual pudessem os Officios de que a mesma Bandeyra Se compoem re-
gular-se para evitar dezordens que Sempre Se fizerão odiozas”.

O “regimento” da bandeira do Arcanjo S. Miguel (que a esta introdução se


segue) começa por especificar os membros de que se comporá a Mesa. Dois juí-
zes, um escrivão geral, dois mordomos e doze eleitos, os quais ficam sendo
procuradores dos seus ofícios no ano em que servirem. A seguir, identificam-se
os ofícios que fazem parte da bandeira, as respectivas precedências e a ordem
pela qual um deles fornecerá juiz, escrivão e mordomo à bandeira.
Um longo capítulo é dedicado a regular, pormenorizadamente, as eleições
para cada cargo, e o último artigo desse capítulo determina que os eleitos de-
vem ser “sujeitos muito tementes a Deus, de boa capacidade, costumes e idade
competente: saberão bem ler e escrever e não terão suas mulheres vendendo em
lugares públicos nem ainda em lojas ou tendas, e serão indispensavelmente ir-
mãos da Irmandade do Arcanjo São Miguel, e na mesma terão servido”.
Os capítulos seguintes descrevem com pormenor as obrigações dos juízes
(quando e por que motivos devem convocar reuniões da mesa, quando e o que
devem comunicar aos juízes dos ofícios, a sua sujeição absoluta às determina-
ções do Supremo Senado e às da Casa dos Vinte e Quatro e indica-se como
condição essencial para poder ser eleito ter sido deputado na dita casa), do es-
crivão (o qual deve ter a precisa inteligência e solicitude para executar pronta e

208
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

cabalmente as determinações dos juízes), dos mordomos (aos quais, além de se


exigir solicitude no desempenho dos seus cargos, se entrega “a guarda, o cuida-
do de bom trato da bandeira ou estandarte do Arcanjo São Miguel para servir
funções processionais”) e, finalmente, dos eleitos, escolhidos de entre os mes-
tres de cada ofício, os quais “em todos os negócios que se lhes propuserem,
(...) devem advertir que são meros procuradores dos seus ofícios” e, conse-
quentemente, não devem votar contra os interesses daqueles de onde provêm.
O último artigo do capítulo que se lhes refere determina que

“não poderão ser eleitos da bandeira sem que primeiro tenham servido alguns
dos lugares principais na Mesa do Espiritual, a saber juiz, escrivão, procurador ou
tesoureiro, para o que apresentarão na Mesa da bandeira um atestado da dita
Mesa do Espiritual de como lá serviram.”

Esta Mesa do Espiritual é a irmandade a que todos tinham de pertencer. Seria,


porém, a irmandade da bandeira ou a do ofício? Aqui parece ser a do ofício,
pois um artigo posterior, já no último capítulo, especifica que “para os lugares
de eleitos da Mesa da bandeira só poderão ser propostos e admitidos aqueles que
tiverem servido os lugares de juiz ou escrivão do seu respectivo ofício e servido
algum dos lugares da Mesa da mesma Irmandade”.
A Mesa da bandeira tinha de acompanhar todas as procissões da cidade em
que se incorporasse o Supremo Senado da Câmara, sob pena de multa aos fal-
tosos, e assistir a todas as reuniões, de Mesa, de Junta ou Conferência. Os mor-
domos no ano seguinte ao do seu mandato na bandeira iriam ser deputados à
Casa dos Vinte e Quatro.
Finalmente, quanto a despesas, se e

“quando o Cofre não chegar, se devem fazer rateadamente pelos ofícios, a


saber: o ofício que é Cabeça pagará duas partes de seis em que dividirá a
quantia pedida, e o resto em igual parte pelos mais ofícios – e eles não pode-
rão fazer o mesmo rateio senão pelos Mestres examinados e de nenhuma
sorte pelos oficiais jornaleiros”.

209
F ern ando Gu edes

Porto e Coimbra não tiveram uma organização tão apurada. A este respeito,
as determinações em Lisboa, Porto e Coimbra quanto à participação na pro-
cissão do Corpo de Deus são bem eslarecedoras.
A celebração do Corpus Christi constituiu sempre em Portugal, talvez
desde o reinado de D. Afonso III, um dos momentos mais altos do ano li-
túrgico. Na procissão, que começou a realizar-se no século XV, incorpora-
va-se em Lisboa o próprio monarca e os príncipes, que seguravam as varas
do pálio, e, em todo o país, a nobreza, autoridades municipais, cidadãos e
oficiais mecânicos, sem qualquer excepção. Muitos privilégios, de merca-
dores e mesteirais, especificam que isentavam de todas as obrigações para
com a cidade excepto da participação nas festas solenes, nomeadamente na
procissão do Corpo de Deus.
Para Lisboa, uma disposição do Senado da Câmara de 1771 regulou rigoro-
samente “a ordem com que devem, impreterivelmente, seguir os lugares das ban-
deiras nas procissões públicas da cidade”. A bandeira de S. Miguel era a terceira,
depois das bandeiras de Santo Antão, a segunda, e de S. José, a primeira.
Quanto ao Porto, o melhor documento sobre aquele grande acontecimento
citadino é o Acordo e Regimento que Fizeram os Oficiais da Câmara da Cidade do Porto
para a Procissão de Corpus Christi com Parecer do Doutor António Cabral, Chanceler da Re-
lação, e do Bispo da Dita Cidade Conforme às Provisões de S. Majestade, datado de 16 de
setembro de 1621. Aí se descreve, pormenorizadamente, a participação de to-
dos e cada um na procissão. Citemos o passo que importa para aqui:

“20 – Ittem os pecheleiros, latoeiros, caldeireiros, agulheiros, ataqueiros,


com suas tochas hirão os orifices. E pintores com suas tochas.
21 – Ittem ira a nao de São Pedro com a vandeira da confraria que acompa-
nharão os mestres, pilotos. E mareantes de miragaya com suas tochas: a nao
se pintara e Reformara cada anno”.

E, a 9 de março, um acórdão da Câmara determina que “os barqueiros e os


homens que vendem bacalao (...) dem hua folia, ou dança quoal elles mais qui-

210
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

zerem (…); E assim mais irão os liueiros que tambem ficarão de fora com suas
tochas diante dos orifeses”.
Os livreiros no Porto, portanto, entravam na procissão atrás dos ataqueiros
e antes dos ourives. Em Coimbra, o regimento dos começos do século XVI co-
loca-os à frente dos mesmos ataqueiros, mas atrás dos pintores: “os cerieiros
são obrigados a fazer Santa Maria ‘dasnjnha he jochym’ tudo bem deito e ‘co-
regido’ e sua bandeira rica e hão-de ir após os correeiros e nisto entram os pin-
tores e os livreiros”.
Não há, nem num caso nem no outro, qualquer referência a uma organi-
zação superior à do ofício, embora alguns autores se refiram a ofícios em-
bandeirados e até a bandeiras, mas sem oferecer qualquer prova nem sequer in-
dício de que tivessem, de facto, existido em Coimbra. Aliás, não se conse-
gue descortinar muito bem, nem em Pinto Loureiro nem em António
Cruz, como se efectuavam realmente, em Coimbra e no Porto, as eleições
para a Casa dos Vinte e Quatro.
Tratemos, porém, agora mais especificamente do ofício de livreiro e dos Re-
gimentos que o regeram durante cerca de duzentos e cinquenta anos.
O primeiro é, como já se disse, o que foi redigido ou reformulado por Du-
arte Nunes de Leão em 1572, e governava os livreiros em Lisboa. Do Porto e
de Coimbra não chegaram até nós regimentos escritos deste ofício, mas, base-
ando-nos naquelas profissões para as quais há regimentos no Porto e em Lis-
boa, não será aventuroso admitir que, se existiram textos em Coimbra, no Por-
to e eventualmente noutros lugares, eles não difeririam substancialmente do de
Lisboa, pois isso é o que se comprova pelos existentes nessas outras profissões.
Em 1733 os juízes do ofício propuseram ao Senado um novo regimento,
pois o primitivo, ainda que

“fosse conveniente para tempos tão antigos, já hoje se acha quase de todo
inútil, não só pela antiguidade das palavras, que por desusadas não é fácil a
sua percepção, mas juntamente por serem as suas condenações muito limi-
tadas para estes tempos”.

211
F ern ando Gu edes

Na verdade, o novo regimento pouco ou nada inova, mais se limitando a


mudar algum vocabulário e actualizar as coimas, exactamente como os juízes
diziam na sua petição.
Os pontos relevantes de ambos os textos são os que se referem às eleições
dos juízes, dos examinadores e do escrivão do ofício; os que determinam, com
todo o pormenor, o regime e o conteúdo dos exames e o tempo do estágio que
devia decorrer entre o termo da aprendizagem e a apresentação a exame; os que
regulamentam a “visitação” que os juízes deveriam fazer a todas as tendas ou
lojas, para verificarem se as obras que estavam à venda eram de boa qualidade e
impecáveis; e, finalmente, os que obrigam o livreiro a consertar qualquer livro
que, depois de encadernado, se mostrasse defeituoso.
O regimento de 1733 presta uma atenção especial aos estrangeiros, o que não
acontecia, tão notoriamente, no de 1572. Se já no antigo regimento se dizia que
“nenhuma pessoa assim natural como estrangeira” que quiser pôr loja só o po-
deria fazer depois de examinado, agora, no novo, determina-se “que, se algum
estrangeiro” o quiser fazer “ou usar do dito ofício”, “o não poderá fazer sem pri-
meiro trabalhar ao menos um ano em loja de oficial examinado para ver se pro-
cede bem e faz obra conveniente por que mereça ser admitido a exame”.
O capítulo 22.º do novo regimento é particularmente importante, pois de-
termina que “toda a pessoa assim natural como estrangeira que mandar vir, ou
trouxer de fora, partidas de livros” não os pode vender senão por junto e jamais
‘pelo miudo’”, e “todo o mercador, ou seja natural ou seja estrangeiro, que o
contrário fizer” sofrerá a pena de trinta dias de cadeia e pagará vinte cruzados
de multa, o que vem confirmar determinação idêntica que os livreiros tinham
obtido do Senado em 1671, por acrescentamento ao seu primitivo regimento.
Temos assim que, se os mestres do ofício regulam com severidade o acto de
examinação, de modo a salvaguardar a dignidade do ofício, e, pela visitação ou correi-
ção, criam os mecanismos que asseguram a permanente qualidade das obras saí-
das das lojas dos livreiros, não menos os mesmos mestres se defendem da con-
corrência dos que estão fora do grémio que eles regem e governam; ilegalizam-na
e condenam os que tentem prevaricar a pesadas penas pecuniárias e de cadeia.

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Por poucos anos, porém, o statu quo de séculos se irá manter. A tempestade
pombalina que se avizinha irá derrubar os muros mais sólidos, e a Junta do Co-
mércio, criada pelo marquês, vai desencadear situações novas perante as quais
os velhos ofícios serão impotentes.
Da obrigatoriedade da visitação, imposta geralmente pelo regimento dos ofí-
cios, decorreu, certamente, a necessidade dos arruamentos, quer dizer, a imposi-
ção de as lojas de um dado ofício se situarem todas na mesma rua ou nas suas
imediações, embora, em teoria, o arruamento também se destinasse a facilitar
aos possíveis clientes a procura de um determinado produto.
Em Lisboa foi onde a prática do arruamento mais se enraizou. Coimbra não
conheceu o sistema, e no Porto, e em outras cidades, só levemente ele foi aplicado.
No que se refere aos livreiros, só em Lisboa, de facto, se dá fé da existência,
desde a segunda metade do século XVII, de uma Rua dos Livreiros, situada
junto “dos Apóstolos”, ou seja, nas proximidades do Colégio de Santo Antão,
da Companhia de Jesus, actualmente Hospital de S. José. Luís Pastor de Ma-
cedo diz que o nome oficial dessa serventia era Rua Direita do Colégio, a qual,
passado o terramoto, foi denominada Rua do Arco da Graça, designação que
hoje se mantém. Todavia, em 1801, o Roteiro dos Correios ainda a designava por
Rua dos Livreiros.
A localização desta rua devia ter uma forte relação com a existência próxima
do colégio jesuíta, intenso foco de ensino e cultura, “o mais importante de Lis-
boa durante dois séculos”. Independentemente, porém, da existência da “sua”
rua, os livreiros sempre se dispersaram um pouco por toda a cidade. No século
XVI vemos Cristóvão Rodrigues de Oliveira referir os livreiros da Rua Moca,
e em 1657 um alvará real, referente a aquisições de edições inteiras “sem se dar
parte das compras aos juízes do dito ofício de livreiro”, foi notificado pelo es-
crivão aos mestres “da Rua Direita” junto ao “Colégio dos Apóstolos”, aos da
Rua Moca, “aos da Portagem, Mizericórdia e Arco de ferro”. Após o terramo-
to de 1755, Pombal determinou que a Rua da Rainha se destinasse aos ourives
da prata (daí a sua designação de Rua da Prata) e aos livreiros. Todavia, em
1777 só de dois livreiros temos notícia que aí se tivessem instalado, enquanto

213
F ern ando Gu edes

sabemos da existência de lojas na Carreira dos Cavalos, Poço Novo, Cais de


Santarém, Alfândega do Tabaco, Rua das Gaivotas, Rua Direita da Mouraria,
Calçada de Santo André, Travessa do Secretário, Rua da Betesga, Rua Direita
do Calhariz, Rua Nova d’El-Rei (actualmente Rua da Conceição), Rua dos
Cavaleiros, Rua do Arco da Graça (a antiga dos Livreiros), Necessidades, Rua
Direita de S. José, Praça do Comércio, Travessa da Boa Hora, Rua da Condes-
sa, Rua Larga de S. Roque, Rua Direita do Loreto e Rua das Portas de Santa
Catarina. Claramente um pouco por toda a cidade.
Se no que se refere a arruamentos os livreiros não terão sido muito cumpri-
dores, também no que diz respeito a taxas a prática foi de certo modo especial.
Dir-se-á que um dos mais comuns slogans da União Internacional de Editores –
books are differents – se aplica desde sempre.
A taxação de bens e serviços, ou seja, a fixação de preços e salários vem dos
tempos mais remotos. As mais antigas taxas de que há notícia são de Coimbra,
em 1145. Posteriormente, uma lei de D. Afonso III, de 26 de dezembro de
1253, regula os preços de géneros, artefactos e salários para toda a região de
Entre Minho e Douro. É, porém, nos alvores do século XV, e no Porto, que
nos surgem as primeiras intervenções dos mesteres na elaboração das taxas.
António Cruz refere, com abundância de pormenores, os casos dos sapateiros
(1401) e dos ourives (1402), até surgirem em 1413 as primeiras “hordinha-
ções” referentes a um conjunto de ofícios – sapateiros, alfaiates, ferreiros, car-
pinteiros, tecedeiras e “carafates”, tudo ordenado de modo a que “com sseu
acordo sseiam feitas dando lhes ganho aguissados de guissa que elles ajam ga-
lardom de sseus trabalhos. E os outros ajam essas cousas por jquall estimaço”.
D. João II, nas cortes de Évora de 1481-82, determina também que se dê “aos
ofeciaes gaanho arrezoado nomeadamente por terço ou quarto segundo bem
parecer segundo a vallia das cousas”.
“Com seu acordo” é a expressão fundamental a reter do texto portuense.
Efectivamente, embora as taxas fossem aplicadas pelos Senados das Câma-
ras, eram discutidas e acordadas com os mesteres. Assim se verifica dos
exemplos quatrocentistas adiantados por António Cruz, assim se verifica

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C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

nos vários casos apresentados por F.P. Langhens, dos séculos XVI, XVII e
XVIII.
Pinto Loureiro escreve, abonando-se em Virgílio Correia, que “as taxas fa-
ziam em regra parte do regimento de cada ofício”. A nossa leitura dos regi-
mentos não nos leva à mesma conclusão, pois as mais das vezes a “taxa” que
eles referem é a que se há-de pagar ao juiz, ou seja, os seus honorários pelo
exercício do cargo, e apenas encontramos taxas de bens e serviços em três ou
quatro regimentos (taberneiros, picheleiros, adeleiros...); outros dois mandam
vender pelas “taxas da cidade”, e o próprio “Livro segundo das posturas gerais
para os oficiais mecânicos” que, no dizer de Virgílio Correia, “engloba as dis-
posições administrativas gerais que regiam os ofícios”, não as menciona.
De qualquer modo, o que importa reter é que as taxas eram fixadas pelo Se-
nado ouvidos os mesteres interessados, “com sseu acordo”, e eram de aplica-
ção geral. As de Lisboa de 1611 cobriam uma multiplicidade de bens e ofícios,
mas entre tantos não se incluíam os livreiros, nem temos conhecimento de que
alguma vez se lhes tivesse aplicado uma taxa geral. Na verdade, os livros são di-
ferentes.
A primeira conclusão que se pode tirar do exame dos documentos é que a
taxa era aplicada nos livros caso a caso.
A segunda conclusão é que nem todos os livros eram taxados. Principal-
mente no século XVI, talvez porque o livro impresso fosse um produto co-
mercial recente, os livros taxados são uma minoria o entre os que sobreviveram
até aos nossos dias. Numa escolha aleatória, por nós levada a efeito, de cerca de
cinquenta livros impressos em Portugal nesse século (± 5% da colecção da Bi-
blioteca Nacional) verifica-se que 52,5% foram beneficiados com privilégio,
mas destes apenas 30% estão taxados e mais um contém a indicação “vende-se
por... reaes” sem a menção do valor. Apenas encontramos nessa amostra um
caso de livro não privilegiado no qual a licença para “correr” determina que
“tornará à mesa para se taxar e sem isso não correrá”; mas não tornou.
Parece, pois, que, de início, só, ou quase só, tinham o preço fixado os livros
que beneficiavam de privilégio (e desses, nem todos). Dir-se-ia que, como es-

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F ern ando Gu edes

tes não sofreriam qualquer tipo de concorrência, justificavam maiores cautelas


quanto ao preço; os restantes, como teriam de se aguentar no livre jogo con-
correncial, não exigiam esses cuidados por parte da autoridade. À medida que
os anos e as décadas vão correndo, a situação modifica-se. Se examinarmos li-
vros dos séculos XVII e XVIII, colhemos já uma idéia diferente; aí, os livros
taxados são muito mais numerosos, sejam eles privilegiados ou não.
No caso dos livros privilegiados, a taxa ou era fixada no próprio alvará de
privilégio ou este frequentemente determinava que

“tamto que os ditos livros forem impremidos se trara a hum delles aa mesa do
despacho dos desembargadores do paço para lhe poerem o preço por que
cada hum deve ser vendido, e doutra maneira se não poderão vemder (...) o
qual se imprimeraa no principio ou no fim de cada hum dos ditos livros”.

E é por isso que encontramos hoje livros com a inscrição impressa “taxa-
do... reis em papel”, mencionando-se manuscrita a quantia ou... não se mencio-
nando mesmo. E também acontecem, com alguma frequência, casos em que o
alvará manda indicar na obra o preço de venda e este não vem, afinal, mencio-
nado. Um desses casos é a própria primeira edição de Os Lusíadas.
Por que motivo há alvarás de privilégio que desde logo taxam a obra e ou-
tros remetem para decisão posterior do Desembargo do Paço, quando lhe for
presente o livro impresso, é mais um mistério que não pudemos decifrar. Uma
hipótese seria a de o candidato ao privilégio, na sua petição, fornecer, por ve-
zes, indicações que permitissem desde logo estabelecer a taxa. Se essas petições
se conservassem, fácil seria comprovar, ou não, a veracidade desta hipótese,
mas elas eram feitas em folha solta de papel e o alvará era passado nas costas
dessas folhas, só este se registando depois na chancelaria real.
Num caso, porém, conhecemos a petição:

“o alvará de privilégio passado a favor de Gonçalo Fernandes Trancoso


para a sua Regra Geral pera Aprender a Tirar pola Mão as Festas Mudaveis (etc.) trans-

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C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

creve a petição do autor, o qual justifica o pedido pela ‘necessidade de fazer


alguns debuxos de novo, pelos quais se mostra a sua arte, e para ajuda dos
gastos da impressão’.”

Não dá outras indicações, mas a obra é-lhe taxada, logo no alvará, em 60


réis. Trata-se, todavia, de uma reedição, pelo que não era difícil atribuir-lhe
preço com base na edição anterior.
Uma outra peculiaridade se deve ainda notar. A taxa, quando era fixada,
aplicava-se simplesmente ao livro “em papel”, quer dizer, como saía do im-
pressor, e não depois de encadernado. Claro que a encadernação poderia ser
modesta ou luxuosa, e o seu preço teria de variar consequentemente. O estra-
nho da questão é não se encontrar, nem nos regimentos dos livreiros nem nas
taxas da cidade, qualquer referência a preços de encadernações.
Como “em papel” os livros não podiam ser vendidos “pelo miudo”, mas só
“em partidas” aos mestres livreiros que os haviam de encadernar, o preço indi-
cado deveria ser o líquido que o livreiro pagaria, não se justificando pensar que
este, de regra, beneficiasse de qualquer desconto.
A par com os livreiros examinados, mestres ou oficiais do seu “ofício”, há
que ter em conta a existência de uma classe à parte, desde cedo integrada por
estrangeiros, atraídos a Portugal pelos privilégios que os reis portugueses iam
concedendo aos naturais de várias nações. Refiro-me ao mercador de livros,
que se tem de analisar para distinguir do livreiro.
Logo em 1530 nos surge a edição de um Tractado da Pratica Darismatica (etc.), im-
pressa em Lisboa por Germão Galhardo “a costa de Joã Fernandez mercador de li-
bros”; em 1539, na cidade de Braga, foi impresso por Pedro da Rocha um Sacra-
mental à custa de “Johã Beltã mercador de libros he Pero gõe mercador”; e ao longo
de todo o século XVI nos vão aparecendo edições promovidas por mercadores de
livros, havendo ainda a notar o caso de um Francisco Peres que, em 1598, se diz li-
vreiro e mercador de livros, numa edição, que custeia, do Galateo Español, embora no
mesmo ano, na portada da Primeira Parte del Thesoro de Divina Poesia (etc.), obra igual-
mente publicada à sua custa, se declare simplesmente mercador de livros.

217
F ern ando Gu edes

Ora, a primeira distinção a fazer será a de que, enquanto o livreiro era um


oficial mecânico, o mercador não o era, situando-se, na escala social, acima da-
quele; além disso, teria, em princípio, maior poder económico, não obstante a
opinião de João Brandão, em 1552, de que os livreiros de Lisboa eram todos
ricos. O mercador não estava sujeito às mesmas obrigações que aquele, podia
invocar privilégios que lhe tivessem sido concedidos, individual ou colectiva-
mente, o que o mesteiral não podia fazer, e pagava as suas licenças enquanto o
oficial mecânico estava delas isento para vender os produtos do seu ofício.
A distinção principal, contudo, deveria centrar-se no próprio negócio de
cada um. O livreiro venderia, encadernados por si a retalho (ou “por miudo”
como então se dizia), os livros que adquiria ao impressor (nacional ou es-
trangeiro) ou ao mercador. Este, ou porque encomendara (ou adquiria, total
ou parcialmente) uma edição ao impressor, ou porque importava de países
estrangeiros em larga quantidade, só deveria praticar o chamado comércio
por junto. Se tudo se processasse correctamente, teríamos assim que, inde-
pendentemente da forma como adquiriam os livros, na venda o livreiro pra-
ticava fundamentalmente o comércio de retalho, e o mercador só deveria ne-
gociar por grosso.
Na prática dos séculos, contudo, as coisas não se passavam tão clara e paci-
ficamente, pelo que em 1671 foi necessária uma providência do Senado de
Lisboa determinando “que toda pessoa, assim natural como estrangeira, que
mandar vir ou trouxer de fora partidas de livros de nenhuma maneira os vende-
rá, por si nem por outrem em sua casa, assim encadernados como em papel, e
só os poderá vender por junto ou por partidas, e não pelo miudo”.
Apesar das determinações em contrário, porém, os abusos dos mercadores
continuaram e, em 1722, os juízes e oficiais do ofício de livreiro tiveram de pe-
dir formalmente a D. João V providências no sentido de impedir essa concor-
rência. Acontecera que um certo mercador – João Barbosa Machado – obtive-
ra do Desembargo do Paço provimento de um agravo que para aquele tribunal
fizera de uma decisão do Senado da Câmara: contrariamente ao disposto no
regimento do ofício de livreiro de 1572, com o aditamento de 1671, o De-

218
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

sembargo declarava “ser lícito o negociar e mandar vir livros de fora do reino
para nele os vender (...) não só por partidas mas também pelo miudo”.
Contra esta decisão do Desembargo do Paço os livreiros recorreram para o
rei, que manda ouvir o Senado. Este apoia a posição dos peticionários, “em
atenção à utilidade pública, em razão de que, vendendo-se os livros pelo miu-
do, sem ser por oficiais examinados, se acham ao depois truncados e faltos de
folhas, e por esta razão se achava disposto pelo regimento que se não vendes-
sem com a proibição de que dependia, e nem se proibia o comércio, por ser lí-
cito a todos mandarem vir livros e os venderem por partidas”. E os vereadores
concluíram que fosse Sua Majestade “servido haver por bem confirmar o regi-
mento dos suplicantes para que nenhuma pessoa que não for examinada no
ofício do livreiro não possa vender livros alguns pelo miudo, havendo por de
nenhum efeito a sentença que se proferiu no desembargo do paço”.
Mas não só os mercadores de livros se atravessavam num negócio que os
oficiais livreiros tinham por exclusivamente seu; os próprios cegos, da
Irmandade do Menino Jesus, causavam igualmente preocupações pelas ven-
das que faziam de porta em porta. Finalmente, a criação da Junta do Comér-
cio pelo Marquês de Pombal, no reinado seguinte, veio lançar, em geral, al-
guma nova confusão no exercício das profissões reguladas por regimentos de
ofícios mecânicos, e certamente também entre os livreiros. Bastaria ver como
proliferaram, pelos meados do século XVIII, os mercadores de livros de na-
cionalidade francesa, com as suas lojas bem fornecidas e os seus catálogos
bem recheados.
A extinção das corporações dos ofícios mecânicos, com o advento do libe-
ralismo em 1834, seria a machadada final num sistema que vigorara durante
mais de três séculos.
Voltando a Espanha, é o momento de analisarmos de perto as antigas orde-
nações de uma associação de livreiros do Levante peninsular, a Confraria dos
Livreiros de Saragossa, fundada, como se diz na portada do livro, “na Igreja do
Senhor Santiago da presente cidade de Saragossa, sob invocação e patrocínio
do Bem aventurado e glorioso Doutor da Igreja São Jerónimo”.

219
F ern ando Gu edes

Datam estas ordenações do ano de 1573, mas do texto de abertura, da res-


ponsabilidade dos “jurados da cidade”, se conclui que a organização do ofício
é anterior àquela data, embora só então se codificassem as suas leis internas e
formas regimentais, as quais se iniciam com estas palavras:

“Em Nome de Nosso Senhor Deus todo poderoso e da sempre Virgem San-
ta Maria e São Pedro e São Paulo e San Jerónimo. Seguem-se as ordenações e
Irmandade dos Livreiros da Cidade de Saragossa, as quais queremos e man-
damos sejam inviolavelmente guardadas pela forma e maneira seguinte.”

Os primeiros capítulos destas ordenações quinhentistas tratam exclusiva-


mente dos aspectos religiosos da Confraria: de como se deve festejar São Jeró-
nimo, a missa de vésperas, a solene missa do dia do patrono, a 30 de setembro,
e os restantes festejos desse dia, bem como, a 1 de outubro, a Missa de Requiem,
“pelas almas dos fiéis defuntos confrades da dita confraria” e as outras cerimó-
nias que se hão-de realizar nesse dia, “como se costuma fazer em outras con-
frarias da presente cidade de Saragossa”.
Terminada a missa e as cerimónias prescritas para esse dia, determina-se
que então se juntem todos os confrades “em capítulo geral”, na presença do
notário da confraria, para proceder à eleição anual dos dirigentes – dois mor-
domos (um do cofre e outro de bolsa, sendo que este será o que fora mordomo
de cofre no ano anterior), dois visitadores (que serão também conselheiros dos
mordomos, contadores e examinadores).
Quinze dias passados, o mordomo de bolsa tem a obrigação estrita de apre-
sentar as contas do ano anterior, sob pena de pesada multa. E se das contas se
verificasse que se havia gasto mais do que fora recebido, esse mordomo de bol-
sa, que no ano anterior, como mordomo do cofre, fora responsável pelos gas-
tos, pagaria a diferença do seu próprio bolso, ali mesmo, na presença dos ofi-
ciais e de notário.
É só no capítulo 11.º que se iniciam as ordenações de carácter profissional,
as quais se vão estender por dezessete capítulos.

220
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

Tudo quanto dissesse respeito à profissão naquele longínquo século XVI


ficou aqui rigorosamente regulamentado. Desde logo, a proibição de ter loja
aberta sem ser mestre examinado – e para o ser, para poder submeter-se a exa-
me, tinha de ter obrigatoriamente passado cinco anos como aprendiz, sempre
com o mesmo mestre.
As provas do exame são detalhadamente descritas, inclusivamente a obriga-
ção que impendia sobre o examinando de oferecer uma refeição a todos os que
assistissem ao seu exame, além de ter de pagar 100 soldos como propina de en-
trada na Confraria, importância que, em 1600, subiu para 260 soldos.
E as ordenações espraiam-se ainda em muitas outras determinações, refe-
rentes a livros defeituosos ou roubados, às obrigações dos aprendizes, às penas
a aplicar ao mestre que tirar um oficial de outro mestre, à visitação mensal das
oficinas para verificar e aprovar ou rejeitar a qualidade dos trabalhos que se es-
tejam a realizar, às regalias concedidas aos filhos de mestres defuntos, etc.
Estas ordenações de 1573 foram acrescentadas em 1600 e de novo em
1679, em ambas as ocasiões sempre no sentido de segurar o monopólio que os
confrades detinham da venda dos livros encadernados. Os mercadores estran-
geiros são particularmente visados, pois logo em 1600 são proibidos de ven-
der qualquer livro sem ser na presença de um visitador que verifique a qualida-
de das obras e em 1679 generaliza-se a qualquer um que não seja examinado
(salvo algumas excepções que são detalhadamente descritas), e proíbe-se total-
mente a venda ambulante, seja a nacionais, seja a estrangeiros.
Um outro caso interessante de associação de livreiros é o da Irmandade de
S. Jerónimo de Madrid, dos Mercadores de Livros, cujas primeiras ordenações
datam de 1611. Aqui, porém, teríamos que falar mais de uma confraria de pie-
dade que de uma confraria-gremial, como a de Saragossa ou a de Barcelona, a
mais antiga de todas.
Os dezessete artigos de que consta o documento inicial especificam, de
modo um tanto desordenado, as obrigações económicas e religiosas dos ir-
mãos, o modo de celebrar os enterros destes ou dos seus parentes próximos, as
festividades em honra do patrono, o sistema de eleição para os cargos da direc-

221
F ern ando Gu edes

ção e a competência de cada um. Apenas num capítulo se expressa a proibição


de entrada na irmandade a quem não for livreiro e, embora o tentassem por
mais de uma vez, nunca os irmãos madrilenos de S. Jerónimo conseguiram
controlar o estabelecimento de livreiros na corte de Madrid, nem fixar regras
para o exame de mestria, nem quaisquer outros regulamentos mais ou menos
monopolistas. A vizinhança da Corte nunca lhes facilitou tal tarefa, numa tra-
dição que, como vimos atrás, já vinha de tempos antigos.
O sistema português foi, assim, mais próximo do de Castela do que dos de
Aragão, Navarra e Catalunha.
A par da corporação dos livreiros, a reger-se pelo seu regimento desde
1572, reformado em 1733, registe-se a existência em Lisboa de uma Confraria
fundada em 1460 sob a invocação de Santa Catarina do Monte Sinai e que,
por desejo da Rainha D. Catarina, é entregue aos livreiros em 1567.
O primeiro século de existência desta Confraria anda envolto em denso mis-
tério que aqui se torna ocioso descrever em pormenor. Basta saber-se que terá
sido fundada na segunda metade do século XV por um infante D. Pedro, primo
do Rei D. Afonso V, juntamente com vários fidalgos, bacharéis e seis mercado-
res ingleses residentes em Lisboa. Um século passado, a rainha, a pedido do seu
confessor e livreiro privilegiado, Salvador Martel, manda erigir uma igreja dedi-
cada àquela santa e mártir e entrega-a aos livreiros “como ministros da sabedoria
de que tão dotada foi a bem-aventurada Santa Catarina e por os ditos livreiros
não terem outra confraria do seu ofício em que se ocupar como os mais oficiais
da dita cidade”, como se diz no preâmbulo do compromisso de 1567.
Assim se terá passado de uma confraria leiga a uma de oficiais mecânicos,
embora com algumas particularidades que a individualizam. A mais significa-
tiva é a determinação de que os livreiros elegessem para esta irmandade “ou-
tros tantos nobres e fidalgos quantos eles fossem ou ao menos até número de
vinte e dois”. E mais se determina que, dos vários cargos da administração da
Confraria, o tesoureiro e um dos mordomos teriam de ser obrigatoriamente li-
vreiros, enquanto o juiz, o escrivão e o outro mordomo seriam recrutados en-
tre os fidalgos e nobres.

222
C o rpor a ç õ e s e c o n f r a r i a s

O primeiro juiz fidalgo da reformada irmandade foi Simão Guedes, do


Conselho do Rei, veador e procurador da Rainha D. Catarina. Foi ele quem
mandou celebrar a primeira missa na nova igreja.
A Simão Guedes irão suceder, até ao confrangedor declínio da irmandade
em meados do século XIX, nomes grandes da fidalguia portuguesa – os Cas-
tros, Teles Barreto, Melo, Aguilar, Almada, Mascarenhas ou Lencastre; ou
grandes titulares como os Duques de Cadaval e de Palmela, e os Marqueses de
Fronteira, de Castelo Melhor ou de Sampaio; os altos dignitários como o Pa-
triarca de Lisboa ou o Dom Prior de Avis.
As obrigações dos irmãos eram semelhantes às das outras confrarias: assistên-
cia às solenidades do dia da padroeira, 25 de novembro (um arrátel de cera, de
multa, a quem faltasse), com a obrigação especial de mordomos e oficiais engala-
narem a igreja e o altar (multa de um arrátel de cera para quem fosse negligente);
missa todos os domingos, segundas-feiras e festas do ano, com obrigação de as-
sistirem: a todas – o tesoureiro, o mordomo e o escrivão; uma vez por mês – o
juiz e o procurador (multa de dez réis a quem faltasse); acompanhamento do ir-
mão falecido até à sepultura, com “as tochas e cera da dita confraria” (multa a
quem faltasse: um arrátel de cera), e, se o irmão fosse pobre, o funeral seria à cus-
ta da confraria; esmola dominical ao irmão caído “em pobreza de modo que se
não possa sustentar (...) e se estiver prezo por alguma dívida até dez cruzados e
dahi para baixo se ajuntará entre os irmãos e da arca da confraria para o tirar da
cadea”. E porque a promoção da paz e da concórdia entre os irmãos era também
um dos objectivos das confrarias, quem nesta fizesse algazarra nas reuniões con-
tra outro irmão ou lhe dirigisse palavras desonestas ou injuriosas... “pague hu ar-
rátel de cera, e se o arroydo for grave haverá mais pena segundo a determinação
do juiz da confraria”.
Confrarias-Grémios, Grémios, Irmandades e Confrarias, associações reu-
nindo num só instituto os interesses religiosos, beneficentes e económicos, ou
associações específicas para o religioso e beneficente e para o económico e pro-
fissional, toda esta organização que cobriu a península Ibérica e os seus reinos
desde, pelo menos, o século XVI, bem hierarquizada, com os seus juízes e

223
F ern ando Gu edes

mordomos, seus mestres e examinadores, com as suas visitações, suas missas,


enterros e esmolas, atravessou incólume dois ou três séculos até ter de suportar
os primeiros vendavais, em Portugal nos meados do século XVIII, em Espa-
nha alguns anos mais tarde. Em Portugal, em 1755 é criada a Junta de Comér-
cio do Reino e seus Domínios; em Espanha, Carlos III cobre o país com as Re-
ales Sociedades Economicas de Amigos del País. Uma e outras iam restringin-
do as atribuições das antigas organizações, desregulando o aprendizado, subs-
tituindo o velho edifício por novas instituições, forjadas já a outro lume. As
cortes de Cádiz de 1813 e um decreto de 1834 assinado por D. Pedro IV de
Portugal varreram definitivamente aquelas estruturas centenárias.

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225
P r o sa

O amor nos Sonetos dos


Amores Mortos, de Rita
Moutinho
Ân g e l a M o nt e z

O amor é tema universal, já que profundamente humano.


Obras de diferentes linguagens artísticas tentam represen-
tá-lo, tarefa interessante e árdua, sem dúvida, porque, se de impossí-
Poetisa e mestre
em Ciência da
Literatura
(poética), pela
vel enfoque em sua essência, o amor permite, entretanto, sua revela- UFRJ.
ção em facetas, sob olhares diversos, mostrando sua riqueza e sua
densidade. Essa impossibilidade é marcada, principalmente, pelo
fato de cada ser humano possuir representação psíquica única, sin-
gular, complexa. Enquanto natureza, o ser humano apresenta uma
diversidade psíquica que nenhuma obra alcançaria. Por outro lado,
como tudo o que é humano, o amor é também ideologizado, pois,
fruto de uma cultura, traz em seu bojo marcas sociais profundas.
Assim, o entrelaçamento do natural com o cultural constitui uma
trama inseparável, que compõe e dá corpo ao psiquismo humano.
Como mostra a psicanálise, nós somos nossos próprios corpos,
identidade com personalidade única, mergulhados num corpo maior,
um país. E mesmo a criação de um eu “fingido”, ficcional, não pode-
ria escapar dessa trama.

227
Ân g ela Mo ntez

O percurso do amor como tema de obra literária no Brasil, principalmente


na poesia, se faz, até o final do século XIX, como parte do percurso da tradi-
ção européia ocidental, em que corpo e alma aparecem como resultado de uma
cisão cristã. Do mesmo modo, a mitologia da Antigüidade e o ideal platônico,
em que se observa a oposição plano humano/plano divino, assimilado pelo
olhar cristão, são constantes nas obras desse percurso.
Impulsionado pelas idéias de Freud, o movimento modernista de 22 faz
consolidar o corpo na condição de lugar singular do ser, e é representado na li-
teratura com sua sexualidade, ganhando uma representação complexa no sécu-
lo XXI.
Costuma-se, equivocadamente, chamar a Literatura Brasileira feminina do
século XIX de confessional, em oposição à literatura masculina do mesmo pe-
ríodo, na qual o enfoque predominante se voltaria para as questões sociais,
além do subjetivo. Na verdade, ambas são partes de um mesmo período cultu-
ral, chumbado na ideologia positivista, e ambas representam a cisão cristã
alma/corpo e sua costura no ideal platônico. Observá-las sob o prisma citado
seria repetir uma postura positivista do próprio século XIX e perder de vista o
afastamento crítico que o nosso século privilegiadamente nos propicia. Cami-
nhando com a psicanálise e com o marxismo, a questão central dessa literatura
nos é revelada através dos lugares e suas representações econômicas e sociais
dados a mulheres e homens daquele período. E esse é ainda o melhor viés, de-
ve-se sublinhar, para observá-la, já que muito dessa impregnação positivista,
que subsiste como resíduo em nossa cultura, não foi totalmente alijada de nos-
sa literatura.
O amor é o ponto de partida do sétimo livro de poemas de Rita Moutinho,
Sonetos dos Amores Mortos. Nele, vê-se uma persona poetica que deixa clara a sua con-
dição de ser feminino, às voltas com a perda do ser amado. Em seus noventa
sonetos, o livro narra uma epopéia íntima que busca o luto como meta final de
um percurso completo – o percurso da aceitação da perda. Nas catorze partes
em que se divide o livro – Da revelação, Da esperança, Da súplica, Da despedi-
da, Do ódio, Das razões, Da memória, Da saudade, Do lamento, Das reapari-

228
O a mor no s Sonetos dos Amores Mortos, de Ri ta M o u ti n h o

ções, Do luto, Dos frutos, Do futuro, incluindo-se aí, também, o “Soneto que
é nota da autora”, que inicia a obra, configurando-se numa espécie de prefácio
explicativo – observa-se o movimento dialético entre amar e perder. O percur-
so poético, assim, se faz no transitar entre a esperança e o conformismo,1 como em
uma das muitas epopéias ingênuas,2 em que uma Penélope meada e louca3 não sabe
como lidar com o platonismo impotente de um casto D. Quixote,4 outrora um
velho Príamo, capaz de dar cinqüenta filhos, duas mil nuvens.5 Nessa viagem outra, in-
terna, em que se louva e chora,6 sob o pêndulo do olhar, se formam as crises de dúplices
punções7 que permearão a obra. Essa é, portanto, uma viagem em crise, que é o ca-
minho-chave para a elaboração da perda que ora se instala como definitiva, ora
é negada pela persona poetica, até que finalmente se conclui. Mas há, também,
uma outra viagem a ela atrelada – a luta da persona poetica na busca de um lugar
feminino diferente, característico da modernidade, configurando o percurso
mais interessante da obra, pois é essa viagem que dá densidade às imagens e vo-
zes poéticas modernas contidas nos poemas.
Ainda no “Soneto que é nota da autora”, observa-se o ideal platônico, em
que o divino, no plano das Idéias, se opõe ao mortal, reles cópia da Perfeição.
Nele, os homens são colocados no plano divino – mitológicos deuses do meu cosmo –8
em oposição à persona poetica, situada no plano do terreno. Seriam os deuses que
decidiriam seu destino – Ai, Zéfiro, meu vento mitológico,/ por que tu conduziste meu
amado/ para confins sem chance de contato? –9 e a obrigariam à impotência. Mas, ao
mesmo tempo em que a persona poetica se vê obrigada por sua condição inferior,
se proclama Deusa do Ocaso – Deusa do Ocaso deu ordem inclemente,/ impingindo ao Desti-

1
p. 30 – “Soneto do grilhão, elo invisível que aprisiona”
2
p. 27 – “Soneto do falo falho ou do quixotesco”
3
p. 26 – “Soneto do ‘intermezzo’ de Penélope”
4
p. 27 – “Soneto do falo falho ou do quixotesco”
5
p. 31 – “Soneto de exaltação para um amor maior”
6
p. 15 – “Soneto que é nota da autora”
7
p. 23 – “Soneto da esperança e da contra-esperança”
8
P. 15 – “Soneto que é nota da autora”
9
p. 38 – “Soneto do fim dos confins”

229
Ân g ela Mo ntez

no a incumbência/de construir muralha permanente/ que destrói dos amantes a aderência –10 e
desfaz essa submissão, aparentemente sem volta, por meio do esquecimento:
Qual era o tom de tua barba rala?/ Que sabor tinham teus lábios de bala?/ Como eram os
olhos tristes quando olhavas?/ Tinhas tu dedos grossos donde escravas/ carícias plenas não se li-
bertaram?/ Retinas, por que, asnas, me falharam?11
Esse movimento de aceitação passiva/negação veemente impede a persona
poetica de se instalar com conforto no papel de vítima, típico da tradição do sé-
culo XIX, tanto na Literatura feminina como na masculina, e a impele à ação.
Fazendo de si mesma uma personagem análoga à personagem-símbolo da pa-
ciência – Penélope – Dias a fio pinto e descasco/ Penélope moderna, ser pasmado –,12
contrapõe-se ainda a uma outra personagem-símbolo, Sherazade, evocada su-
tilmente – Foram mil e uma noites numa apenas –,13 mostrando sua habilidade de
“contar histórias” – Meu querido, passo horas tua e absorta,/ lendo e escrevendo poemas do-
loridos.14 Mas a persona poetica identifica-se apenas provisoriamente com essas
personagens-símbolos, evitando repetir o lugar fixo que a tradição dá ao femi-
nino, ao mesmo tempo em que, ao incorporá-los, transita entre espelhos – Há que
carpir, amor, o céu quebrado/ quando o Universo ainda estava vivo,/ e os espelhos, ainda sem
cansaço,/ podiam refletir o eco afetivo –15 para, a seguir, devolvê-los ao passado e inu-
tilizá-los, construindo com eles as imagens poéticas caleidoscópicas do texto.
Assim, enquanto Penélope desenha para não enlouquecer– mas também, para não
me tornar louca,/ desenho, em cor, metáforas do livro16 –, mostra um comportamento
que vai além da personagem conhecida, pois mata o objeto do amor e qualquer
possibilidade de reconciliação – O fim do amor se deu na noite plena./ Matei-nos no
rubi da contracena.17

10
p. 72 – “Soneto dos lapsos de memória com estrambote”
11
p. 72 – “Soneto dos lapsos de memória com estrambote
12
p. 75 – “Soneto das almas abraçadas e apartadas”
13
p. 83 – “Soneto do duplo morrer na plenitude”
14
p. 85 – “Soneto da carta que o livro envia”
15
p. 97 – “Soneto do caleidoscópio quebrado”
16
p. 85 – “Soneto da carta que o livro envia”
17
p. 83 – “Soneto do duplo morrer na plenitude”

230
O a mor no s Sonetos dos Amores Mortos, de Ri ta M o u ti n h o

O amor com enfoque cristão também não fica de fora da obra, nem como
ideologia, nem como fonte imagética da tessitura textual. Ainda no soneto-
prefácio vê-se a cisão corpo/alma – alíneas de mim são amores mortos/ fímbrias que
ornam ainda corpo e alma.18 Com forte presença na tradição literária do século
XIX, ressaltado, principalmente, pela escola romântica, ele flui no texto, tam-
bém por meio de jogos de espelhos provisórios, refletindo-se em persona-
gens marcantes dessa escola. Deste modo, emerge na pele de uma Eva funda-
dora que sublinha a sua condição de mulher-corpo – Depois de tantos anos florin-
do a teu lado,/ tendo-te beija-flor a me sugar o néctar/ dos lábios, sendo tua alfa no céu es-
trelado,/ comungando prazeres no Éden, única Eva –,19 que escolhe sobreviver à dor
da perda por meio do ódio – Depois de tanto amor, somente ódio odiento/ supre a so-
brevivência do descasamento.20 Note-se que esse soneto é construído quase total-
mente com uma linguagem que lembra a da escola romântica, e apenas seus
dois últimos versos compõem a transgressão da personagem, tanto na sua
configuração, que passa de vítima à mulher que reage, quanto na linguagem
que utiliza, moderna.
Da mesma maneira, a persona poetica cita as mulheres-almas Ofélia e Ismália,
mas escolhe um destino outro para o desfecho de seu sofrimento – alo-me e zar-
po para um final outro/ ao que coube a Ofélias e Ismálias./ Quando o silêncio é adaga-agres-
são,/ pôr-me aço, proteger o coração.21 Enquanto as três personagens da tradição vi-
venciaram alguma forma de transgressão e foram punidas, a persona poetica se
resguarda no afastamento produzido pelo ódio, que endurece sua postura e a
faz deslocar-se, mais uma vez, do lugar de vítima de um poder maior para o lu-
gar de um eu que sabe se proteger.
O ódio funciona como um antídoto do amor passivo e paralisante produzi-
do pela idealização do ser amado e da sua condição de amante ardoroso – Sei
que este ódio viscoso é temporário,/ e a pronúncia do nome teu, rude e acre,/ sai do antes doce e

18
p. 15 – “Soneto que é nota da autora”
19
p. 54 – “Soneto do ódio substituindo o amor na via-crucis”
20
p. 54 – “Soneto do ódio substituindo o amor na via-crúcis”
21
p. 64 – “Soneto do silêncio enlouquecedor e mortal”

231
Ân g ela Mo ntez

agora amargo lábio,/ o porta-voz da avessa adversidade.22 Emerge na obra, também,


como um corte imagético de uma dicção passadista – Não é réquiem o que escrevo.
Vai pro inferno!/ A pena negar-te-á repouso eterno! –23 instalando o texto na moderni-
dade, ao mesmo tempo em que se mostra como um agente que leva à finaliza-
ção do conflito da persona poetica, contribuindo para a conclusão de seu luto –
Passada a crise, outra vez serena,/ diluída a ira, destruída a arena/ onde lutamos pela sobrevi-
da,/ espero que tenhamos comovida/ memória e que o ódio torne-se vapor./ Em mim amor não
rima com rancor.24
O tempo é também elemento fundamental dessa narrativa, pois contribui
para sua densa tessitura imagética. Abordado no texto em redemoinho – Reviver
nosso amor em redemoinho,/ entontecendo as ondas da memória/ já que engolidas turbam-me
qual vinho,/ fez decupar em cenas nossa história –,25 torna-se um ator da memória.
Assim, o olhar da persona poetica pode voltar-se para o passado por meio de flash-
backs – Assisto a um filme que, em desalinho,/ traz no enredo comédias e tragédias./ Revivo só
as cenas de carinho,/ litígios zeram, cega estou às médias –,26 tentando reconstruí-lo.
Traz, do mesmo modo, antigas impressões, reavivadas pelos sentidos – Quando
quero lembrar-te inda vivo,/ não recorro à memória, mas escuto/ as vivazes tocatas em pianís-
simo –27 ou, até mesmo, por e.mails, cartas e outros “documentos” – Releio em
e.mails ditos memoráveis,/ bilhetes que com mimos eram entregues/, dedicatórias de delica-
tessen/, poemas que crepitam sons e imagens./ Releio cartas tristes, seus queixumes,/ tratados
com teorias instigantes –28 testemunhos dessa história de amor. Também o futuro
emerge no texto e constrói o olhar do vir-a-sendo – Uma ânsia borbulha, algo está fer-
vendo/ neste caldeirão sensitivo e sino/ que anuncia o prestes, o vir-a-sendo,/ o breve vergar da
paixão a pino –,29 que estimula o luto e traz em seu bojo a promessa da possibili-

22
p. 56 – “Soneto que sabe o ódio efêmero e necessário”
23
p. 53 – “Soneto da abafada praga”
24
p. 56 – “Soneto que sabe o ódio efêmero e necessário”
25
p. 107 – “Soneto do rever um amor morto”
26
p. 107 – “Soneto do rever um amor morto”
27
p. 73 – “Soneto do amor revivido pela música”
28
p. 74 – “Soneto aleijado para palavras especiais”
29
p. 35 – “Soneto arrítmico do pressentimento da partida”

232
O a mor no s Sonetos dos Amores Mortos, de Ri ta M o u ti n h o

dade do surgimento de um novo amor – Haverá outro, eu sei, no teu lugar/ quando o
coração, com destino vago,/ .../ Ninguém te substitui, só te sucede.30
E entre o passado e o futuro, o corte do presente surge para trazer a perso-
na poetica à consciência da realidade – Não sou asceta, mas contemplo os fatos,/
numa mesa de mármore que há na serra,/ branca como a razão dos insensatos,/ sólida
como o fim que nos encerra –31 produzindo o afastamento necessário para a so-
lução do olhar ficcional. É também no intervalo passado/futuro que são
encontrados sonhos surreais, dando lugar ao “Soneto de um sábado surreal”
(p. 82), em que são geradas cenas “imaginadas”, que nunca teriam sido vi-
venciadas pela persona poetica:

Tu, anjo do “Teorema” e também bruxo,


cevada nas carícias, fel na fala,
pastor de pedras, âncora de surtos,
córrego azul, raposa, avenca, magma.
Eu, certa belle de jour, sal de soluços,
frasco de versos, útero de asas,
peregrina das noites, nau sem prumo,
alma de nácar, água, orquídea, calda.
Nas vísceras do oceano nos amamos,
embarcamos um no outro noite adentro,
espumando os delírios mais insanos.
Depois, viraste tronco, e eu, filodendro.
Amores podem ser longos e poucos,
mas pelo menos um tem que ser louco.

Assim, as cenas da memória, da imaginação, das impressões tecem a trama


textual.

30
p. 128 – “Soneto do amor vivo sucedendo”
31
p. 71 – “Soneto dos fatos em balanço”

233
Ân g ela Mo ntez

Para finalizar esta breve leitura, deve-se apontar para a configuração mais in-
teressante do amor inserido como fio condutor da trama textual, que é o amor
como fruto de nossa modernidade. É o amor que pretende sua realização através
do corpo, já que a existência “real” (ou ficcional) do corpo do Outro é impres-
cindível para sua concretização – Nenhum e.mail te presentifica,/ o celular está em algum
alasca,/ e o ato da corrente interrompida/ transformou nossa ponte em dupla lasca.32 É desse
amor que nasce o jogo memória/ausência física que dá sentido e densidade ao
texto. Se o livro adotasse apenas o olhar passadista, a persona poetica se contentaria
apenas com a rememoração de sua história e se instalaria anatomicamente no
platonismo, na assexualidade e na vitimização. Ao invés disso, busca um olhar
outro, moderno, para tecer seu luto e construir, para si, um corpo que busca um
futuro afetivo e sexuado – Mas há fluidos e seivas, e convivo/ com uma primordial necessi-
dade/ de que veja meus olhos um amor vivo,/ de que não more em mim só a saudade.33 O luto,
necessário para a construção desse futuro, dá lugar à tessitura desse livro catártico –
Este livro catártico, esta cachoeira,/ trampolim natural pras minhas mágoas/ se atirarem, levando
pelas águas,/ o que no inconsciente era poeira –,34 fruto da sublimação dessa perda – Mas
foi em versos livres ou demarcados,/ nas imagens onde o real se fantasiava/ .../ Foi deles que nas-
ceram invulgares filhos,/ nossa imortalidade em corpos de livros.35 Esses invulgares filhos confi-
guram a solução para a simbiose imaginária em que a persona poetica vivia com o ser
amado, consolidando, assim, a sua identidade de poeta.
Retomando a questão levantada no início deste pequeno estudo, subli-
nha-se que seria um equívoco denominar os Sonetos dos Amores Mortos de obra
confessional.
Na verdade, observa-se no texto de Rita Moutinho, assim como nos de ou-
tras mulheres escritoras, a busca de um lugar feminino outro, que procura dis-
cutir e rejeitar o olhar positivista encontrado nas obras do passado, contribu-
indo para a escrita da modernidade.

32
p. 24 – “Soneto da primeira cisão”
33
p. 128 – “Soneto do amor vivo sucedendo”
34
p. 135 – “Soneto da catarse e da sua benignidade”
35
p. 122 – “Soneto dos frutos de poetas amantes”.

234
P r o sa

O sentido da criação
poética nas Odes, de
Miguel Torga

Gi lb er to M en d o n ç a T e l e s

H á pelo menos dois bons motivos, poéticos e pessoais, que


me levaram a escolher o livro das Odes como objeto desta
comunicação. Nascido no interior do Brasil, há mais de mil
Poeta, crítico e
Professor. Toda a
sua poesia está
reunida em Hora
quilômetros do Rio de Janeiro, conheci em 1955 o livro de Miguel Aberta. Entre os seus
Torga, através de sua segunda edição, lançada em 1951 e, por mi- livros de crítica,
estão: Drummond –
nha sorte, à venda na única livraria de Goiânia. Foi nesse ano de A Estilística da
1955 que se publicou o meu primeiro livro de poemas. Eu vivia e Repetição, Vanguarda
Européia e Modernismo
respirava poesia e começava, sem o saber, um projeto literário que
Brasileiro, Camões e a
se vem desdobrando até hoje. O livro de Miguel Torga me descor- Poesia Brasileira e
tinava outras possibilidades de poesia: me mostrava que o tradicio- Contramargem.
nal convivia com o moderno, que os temas clássicos do passado li-
terário se misturavam com o quotidiano do presente e se abriam
para uma realidade poética até então desconhecida para mim. Até
hoje sei de cor a pequena ode “À água”:

235
G il be rto Mendo nç a Teles

Ninguém ouve a canção, mas o ribeiro canta!


Canta porque um alegre deus o acompanha!
Quantos mais tombos, mais a voz levanta!
Canta porque vem limpo da montanha!

Espelho do céu, é quanto mais partido


Que mais imagens tem da grande altura.
E quebra-se a cantar, enternecido
De regar a paisagem de frescura.

Água impoluta da nascente,


És a pura poesia
Que se dá de presente
Às arestas da humana penedia.

Meu pequeno conhecimento literário me ensinava que o poema tinha de ter


unidade de tom e de métrica. E o que logo me chamou a atenção nesta ode de
Miguel Torga era a nova sabedoria retórica que se obtinha com a variedade
métrica e, ao mesmo tempo, a harmonia entre o sentido filosófico e o tom ana-
creôntico na descrição da poesia. Descrição metafórica do olhar sobre a natu-
reza e sobre a poesia do poema. Descobri na sua primeira estrofe que os dois
primeiros versos, alexandrinos, dialogam ritmicamente com os dois últimos,
decassilábicos, e que a mudança de ritmo dava lugar à manifestação de idéias e
imagens não-ditas, mas presentes na sugestão da linguagem. A segunda estrofe
continua o ritmo e a sintaxe dos versos anteriores. Mas a terceira é toda polifô-
nica: começa com um octossílabo, passa a dois hexassílabos e chega ao decassí-
labo que funciona como uma chave de ouro – “Às arestas da humana penedia...”,
verso que me lembrava algo de Camões que, no entanto, nunca usou a palavra
penedia, que só no século XVII começará a circular na língua portuguesa.
O sujeito lírico enuncia no primeiro verso que “ninguém ouve a canção” que ele
está ouvindo, pois a está criando naquele momento, tanto que logo afirma que

236
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a

“o ribeiro canta”, dando-lhe o atributo humano de cantar e reafirmando a seguir


que ele canta porque um “alegre deus” o acompanha. Aqui o divino está paralelo
ao humano, não é maior do que ele, é companheiro dele, pois o acompanha e
fica a escutá-lo. A ambigüidade estabelecida pelo verbo acompanhar dá movi-
mento ao poema; o “alegre deus” segue-lhe o curso pela margem e, também, o
acompanha musicalmente, como se dava, aliás, nas antigas odes de Orfeu, de
Píndaro e de Horácio. Mas que “deus” será esse, com letras minúsculas? Esse
“alegre deus” libera inicialmente a imagem de Baco (ou de Luso ou Lysa, no di-
zer de Camões). Mas pode muito bem ser um deus lusíada, um transmontano,
um homem do norte de Portugal, alguém que se apelidou ironicamente de
“Miguel”, ou seja, aquele que, segundo o profeta Daniel (12, 1), é “como
Deus”.
Não é à-toa que esta ode tem mesmo o sentido anacreôntico de celebração
da natureza que o homem percebe, e humaniza. Essa humanização do ribeiro
ganha ênfase no terceiro verso “Quantos mais tombos, mais a voz levanta!”, isto é, o
ribeiro-homem aprende a cantar mais alto à medida que cai, que leva tombo e
aprende com o “sofrimento” a ter valor na sua vida hidrográfica. No quarto e
último verso da estrofe, o ribeiro volta a ocupar o seu lugar de acidente natural.
(É bom lembrar, agora, que o sentido etimológico de ode, do grego ω′ δ η′ – canto
–, esta presente em todo o livro, e em todos os versos da primeira estrofe). A
segunda é inteiramente descritiva, mas o ribeiro/regato é visto como “enterneci-
do”, humanizado na rega da paisagem. É só na última estrofe que o regato é re-
duzido definitivamente à sua condição de coisa natural, nem humana nem di-
vina, mineral, para, a partir de sua realidade, poder ser visto e recriado pelo po-
eta como a “pura poesia” a se dar de presente “Às arestas da humana penedia”.
O segundo motivo da minha escolha é que, dez anos depois de ter conheci-
do os versos de Miguel Torga, eu vim a conhecer pessoalmente o poeta, em
Coimbra, quando aqui me matriculei num curso de férias. Guilhermino César,
professor de Literatura Brasileira na Universidade de Coimbra, me convidou a
ir com ele ao consultório de Miguel Torga. Fui apresentado como professor
brasileiro. Pedi-lhe o autógrafo em Novos Contos da Montanha e tive oportunida-

237
G il be rto Mendo nç a Teles

de de dizer-lhe que conhecia o livro das Odes, cuja primeira estrofe recitei de
cor. Não me lembro de nenhuma reação dele, nem de agrado nem de desagra-
do. Ficou-me porém a impressão de que no seu rosto havia qualquer coisa de
dureza, de arbusto retorcido, de torga, ou seja, das urzes que davam expressão
ao seu famoso pseudônimo. Lembro, de passagem, que o termo latino torqueo,
-es (torquo, torco nas línguas românicas, de onde vem o vocábulo torga) significava
“torcido”, “retorcido”, “atormentado” (sentido físico e moral), assim como é
retorcido e “atormentado” o ramo de torga no norte de Portugal.
Talvez a minha admiração pela sua obra me levasse a contemplá-lo como a
um deus, cuja face eu podia ver, não um Deus invisível, aquele “príncipe Mi-
guel” de que fala o profeta Daniel. Conhecendo-lhe a fama de homem duro,
talvez eu o tivesse visto como a um lobo, o “nobre lobo” que se esconde na pa-
lavra Adolpho, de origem visigótica. Assim, o ADOLPHO ROCHA e o MIGUEL
TORGA – nome e pseudônimo – se identificavam para mim num paralelismo
semântico: Adolpho Rocha, o nome, apontava para o “nobre lobo das monta-
nhas”; e Miguel Torga, o pseudônimo que o escritor humilde e ironicamente
adotou, indicava na minha imaginação “o grande príncipe das torgas”, “o
príncipe das pequenas coisas, das urzes”, essas pequenas coisas a que ele soube
dar visibilidade na realidade estética de sua obra literária1.
O disfemismo criado pelo pseudônimo constitui a tensão maior que atraves-
sa toda a literatura criada por Miguel Torga e revela-se com mais ênfase nas
Odes, lugar de pequenas tensões culturais que o leitor vai descobrindo à medida
que passa pelos vários níveis do discurso poético. Aliás, o próprio escritor faz
questão de lembrar no seu Diário (III, p. 15) que “Os homens são como as obras de
arte: é preciso que se não entenda tudo delas de uma só vez”.
Poderia citar um terceiro motivo que, se não está diretamente ligado à lei-
tura da obra de Miguel Torga, diz respeito ao convite que a sua mulher, a
Profa. Andrée Crabbé Rocha, me fez para uma conferência na Universidade
de Coimbra, em 23 de maio de 1984, sobre minhas pesquisas sobre o Ca-
1
No prefácio a A terceira voz (1934), o escritor explica a mudança do nome próprio (Adolpho Rocha)
para o pseudônimo (Miguel Torga).

238
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a

mões popular. Na época, eu estava como catedrático visitante na Universida-


de de Lisboa e pude fazer os respeitáveis catedráticos de Coimbra rirem sem
jeito das peripécias dos heróis-cômicos de inspiração camoniana. Guardo
com carinho os cinco volumes do Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende,
com que ela me presenteou.2

A sua produção literária, iniciada em 1928, está dividida em quatro partes


genéricas, como se vê ao lado da página de rosto de cada um de seus livros –
Poesia, Prosa, Teatro e Poesia e Prosa, abrangendo cerca de 59 publicações,
uma vez que só o Diário possui, até agora, 15 volumes. Sob a rubrica de Poesia
estão os quinze livros de poemas; sob a de Prosa estão as narrativas – conto,
romance, viagem e conferência; na de Teatro entra também uma obra intitula-
da Poema Dramático; e a parte de Poesia e Prosa é constituída somente pelos vo-
lumes do Diário.
Ao longo da publicação de sua obra, Miguel Torga atravessou, digamos as-
sim, uma data quente, para usar aqui a expressão de MacLuhan. Em 1941 o es-
critor estava com 34 anos, e a sua força criadora diversificava-se por vários gê-
neros, manifestando-se nas obras de teatro (Terra Firme é de 1941), nas de fic-
2
Haveria um quarto motivo, se eu tivesse tido oportunidade de pesquisar melhor sobre o contato do
adolescente ADOLPHO ROCHA com o Brasil, para onde foi com 13 anos, em 1920, trabalhando
numa fazenda na Zona da Mata, em Minas Gerais. Ali freqüentou o Ginásio Leopoldinense, em
Ribeirão (hoje Leopoldina, MG), leu bastante, escreveu poemas e voltou a Portugal em 1925, pouco
antes da sua estréia literária. Mas o que me intriga é o fato de ele ter vivido no lugar onde morreu em
1914 o poeta AUGUSTO DOS ANJOS, cujo livro, Eu, publicado em 1912, teve uma segunda edição em
1919, com o título de Eu e outras poesias e uma terceira em 1920. Acho impossível o poeta adolescente
não ter ouvido falar ou até mesmo lido algum poema de Augusto dos Anjos. Na Pequena Bibliografia
Crítica da Literatura Brasileira, afirma OTTO MARIA CARPEAUX que “Em 1920, em pleno
neoparnasianismo, a obra alcançou êxito fulminante, logo interrompido pelo Modernismo. Os
modernistas não quiseram ouvir falar do ‘neoparnasiano’ Augusto dos Anjos; os acadêmicos ainda
rejeitaram o ‘simbolista’ Augusto dos Anjos. Entretanto, o público começou a gostar justamente dos
aspectos mais fracos de sua poesia, o que explica o número sempre crescente das edições – e dos
imitadores, sobretudo na província”.

239
G il be rto Mendo nç a Teles

ção (Contos da Montanha é de 1941) e no primeiro volume do seu Diário, iniciado


em 1941. O Diário é um livro de leitura fascinante, um livro realmente de “po-
esia e prosa”, no sentido de prosa como discurso não-poético onde entram a
crítica, a teoria, o memorialismo, as anotações de viagem, enfim, uma completa
antologia de seu pensamento literário e um excelente documentário da sua
vida como homem, como médico, como político e como escritor, como poeta
sobretudo. Não é portanto por acaso que Miguel Torga escreve que “No meu
Diário creio que há muita literatura, também”:

“É certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obcecado, ca-
paz de uma lógica que toca a desumanidade. [...] Preferi às vezes pôr um po-
ema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu
instinto sem provas do que na minha razão com argumentos. [III, p.173.]”

É aí que fala em artista que ignora a “falta de sintonização do estado recep-


tivo com o estado de criação”. E onde define claramente o que entende por
diário:

“De resto, um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser
um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos,
tudo o que se queira.”

Falando especialmente sobre os poemas do Diário, a sua linguagem adquire


conteúdo metafísico e ele anota emocionado que “Os poemas líricos do Diá-
rio foram o primeiro vislumbre de uma beleza objetiva e serena” (III, p. 73).

É nessa década, em 1946, que lança as suas Odes, obra que tomaremos aqui
como o ponto central de toda a sua produção poética. Para ela convergem as
transformações temáticas e retóricas de sua linguagem literária; e dela parte

240
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a

uma nova consciência, um sentido mais puro e cristalino de literatura. Possi-


velmente daquela pureza de que ele fala na p. 70 do III v. do Diário:

“A depuração lírica que tentei não bastou [...]. Os motivos foram-se diluin-
do no regato da emoção, e qualquer dia chego à expressão pura, que será o
êxtase dado numa palavra.”

É bom lembrar que, coincidentemente, esta preocupação com a “poesia


pura” se deu no momento em que Henri Bremond havia publicado, em Paris,
em 1926, um ensaio sobre La poésie pure, assim por ele definida:

“Tout poème doit son caractère proprement à la présence, au rayonnement, à l’action trans-
formante et unifiante d’une réalité mystérieuse que nous appelons poésie pure.”

É curioso que, no conjunto de sua poesia, o livro das Odes venha depois de
sete livros editados, entre eles Libertação, de 1944, onde há poemas intitulados
“Dilema” (“eu ouço a voz que prega no deserto,/ E não paro nem volto”) e “Arte poética”:

Tenha o poeta apenas altos cantos.


Erga a voz singular
E não mostre os seus prantos
Nem o cilício que o faz cantar.

Depois dele vêm mais sete, entre os quais Cântico do Homem, Alguns Poemas Ibé-
ricos, Orfeu Rebelde e Poemas Ibéricos. Deste modo, as Odes situam-se no centro cro-
nológico de sua produção de poesia. Em Orfeu Rebelde, de 1958, estão o poema
que dá título ao livro e um que se chama “Biografia”, no qual a poesia é vista
como uma prisioneira, que foge da prisão, e o poeta atira “Contra a serenidade de
quem passa”.
Deste modo as Odes situam-se no centro cronológico de sua produção de
poesia. É o lugar de reunião de temas, técnicas e formas aprendidas no período

241
G il be rto Mendo nç a Teles

de formação literária, quando o escritor se relacionava com alguns grupos,


como o movimento da Presença, por exemplo. Miguel Torga buscava caminhos
para uma expressão que fosse inteiramente sua. Depois das Odes o poeta pas-
sou a dispor de uma experiência maior do trabalho com a linguagem e pôde
então atingir a sua linguagem pessoal, simples, concisa e por isso mesmo forte-
mente poética.
A leitura atenta das dezoito canções das Odes nos mostra, primeiro, que se
trata de um livro bem estruturado, equilibrado por três conjuntos temáticos,
que se misturam na unidade do livro. Há um poema que abre o livro (a ode “A
Orfeu”) e um que o fecha (a dedicada “A Baco”). Tal fato põe ênfase no lega-
do clássico que se sobrepõe aos outros temas do livro. Esses conjuntos podem
ser assim descritos:

a – Seis poemas de temas mitológicos, manifestados pelos próprios títulos:


“A Orfeu, “A Vênus”, “A Eros”, “A Pan”, “A Diana” e “A Baco”.

b – Seis dedicados aos quatro elementos formadores do universo, como “À


Terra”, “Ao Mar”, “Ao Fogo”, “Ao Vento” (ao Ar), e a outros elementos
da Natureza: “À Lua” e “À Primavera”.

c – Seis de natureza teórica, metalingüística, como as odes “À Poesia”, “Aos


Poetas”, “À Beleza”, “À Música” e, unindo os dois conjuntos anteriores, as
odes “Ao Sol” e “À Água”, já mencionada.

A partir daí o leitor percebe uma série de tensões proveniente tanto dos temas
como da atitude retórica perante a escrita, ou seja, o desejo de produzir e, ao
mesmo tempo, olhar a sua produção. Passa-se da criação poética à relação crí-
tica ou autocrítica, construindo-se ao longo do livro uma terceira dimensão de
poesia (uma terceira margem, diria Guimarães Rosa) – a que se quer Arte e, ao
mesmo tempo, se mostra como discurso teórico, tematizando a linguagem sem
deixar de participar do equilíbrio e da significação maior de todo o livro. Tal
procedimento leva o leitor, por um lado, a fruir a beleza dos poemas e, por ou-

242
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a

tro, a passar de imagem a imagem, de verso a verso, na contemplação e na reu-


nião dos fragmentos teóricos de um Orfeu Rebelde e fragmentado, mas pronto a
se recompor numa nova vida sob o olhar amoroso de quem o souber ver, e
amar. Sobre este sentido de equilíbrio entre o antigo e o moderno, Miguel
Torga escreve modestamente no Diário (III, p.192):

“Nunca consegui encontrar aquele equilíbrio criador onde julgo existir o


pomar das grandes obras. Debato-me entre forças contraditórias e ao cabo de cada
livro sinto-me insatisfeito e culpado” [itálico nosso].

Não se trata de um simples dilema, mas de uma tensão entre o homem só e a


sociedade em que vive, entre o quotidiano e a transcendência que deseja e, no
caso de Miguel Torga, entre o nome e o pseudônimo, vale dizer, entre o ho-
mem comum e o criador, entre o clássico e o moderno, entre as formas antigas
e as que ele estava conhecendo com o Modernismo da Espanha e de Portugal.
Assim como Eduardo Pondal cavava o passado galego em busca dos antepas-
sados célticos e drúidicos, Miguel Torga, seu vizinho, tomava consciência do
homem e da história da Península Ibérica em livros como Alguns Poemas Ibéricos
(1952), Orfeu Rebelde (1958) e Poemas Ibéricos (1965). O fundo mítico e o pagão
chegavam-lhe pela poesia que ele expressava em hinos, em odes, em formas,
cujos nomes apontam para o mais famoso antepassado mítico e literário do
mundo antigo – os hinos atribuídos a Homero, onde o escritor português en-
controu por certo a inspiração para as suas odes a Orfeu, a Dioniso (Baco), a
Afrodite (Vênus), a Pan, ao Sol e à Lua. Esse entrechoque cultural revivido
pelo escritor faz com que a sua poesia assimile e transforme o conteúdo de ou-
tras tensões, como a dos valores cristãos em face da herança greco-latina e a da
fechada cultura portuguesa diante da diversificação cultural da Europa e do
mundo no século XX.
Basta que se tome apenas um exemplo de cada conjunto de poemas que for-
mam o livro das Odes para se ter uma idéia de como o poeta procurou resolver
na poesia essas tensões que, afinal de contas, constituem as linhas de força de seu

243
G il be rto Mendo nç a Teles

trabalho intelectual e dão sentido humano à sua criação literária. Assim, a ode
“A Orfeu” está para a tensão mitologia X cristianismo; a ode “À terra” exemplifica
a tensão natureza X cultura; e a ode “À poesia” confirma o duplo olhar do poeta,
simultaneamente para o mundo e para a linguagem do poema.
Na ode “A Orfeu”, que abre o livro e funciona como uma “declaração de
princípio”, o sujeito lírico se dirige a Orfeu e o trata como “Poeta” (com P
maiúsculo) e o iguala a um “deus” (“tuas mãos divinas”), dizendo-lhe [neste meu
tom de paráfrase] que herdou dele a lira, mas que não sabe tocá-la (“tangê-la”).
Tenta dar para isso a explicação de que os deuses (ou os demônios, diria Paul
Valéry) conspiram contra ele, fazendo-o poeta (“Por eleição ou maldição se-
creta”). Alude-se aqui à tradição clássica, de origem ciceroniana – o célebre Po-
7 Em outro livro dirá que é um “Orfeu rebelde”. Na sua
eta non fit, sed nascitur.
queixa a Orfeu – uma queixa disfêmica e de humildade já se vê – Miguel Torga
acaba passando ao leitor a idéia contrária do que está expresso no poema – o
sujeito lírico diz que não sabe fazer versos (“a lira que não sei tanger”) e se imagina
preso por uma grade (“Tenho uma grade para me prender”). No entanto, essa “gra-
de” se transforma metaforicamente em “cordas” que, humanizadas pela emo-
ção, viram “versos”, embora modestamente ele diga que são “versos de ferro”,
que dilaceram o poeta. Assim, de dentro “da alma e da prisão”, agradece a “Deus”
por ser o poeta que ele sabe ser. Mas que “Deus” é esse? É o Orfeu pagão, o po-
eta mais antigo, o mítico Orfeu que desce ao inferno (como Ulisses, como o
Cristo do Credo), o “deus” apolíneo da Poesia ou o Deus cristão, em que no
Diário III (p.19) Miguel Torga diz não acreditar? A tensão entre o paganismo
poético e o cristianismo religioso cria um dos sentidos especiais da Poesia. Este é
possivelmente um dos 7 types of ambiguity cujos efeitos William Empson estu-
dou no verso inglês. Veja-se, afinal, a pequena ode “A Orfeu”:

Das tuas mãos divinas de Poeta


Herdei a lira que não sei tanger;
Por eleição ou maldição secreta
Tenho uma grade para me prender.

244
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a

Cercam-me as cordas, tensas de emoção,


Versos de ferro onde me rasgo inteiro,
Mas, no fundo da alma e da prisão,
Obrigado, meu Deus e carcereiro!

A ode “À terra” exemplifica a tensão natureza X cultura. Nos Hinos homéricos


(estou citando a edição espanhola da Editorial Gredos, 1978), um dos hinos
mais importantes e mais antigos (do final do século VII a.C.), é o número II,
dedicado “A Deméter”, a deusa pré-helênica, ligada à agricultura, à fertilidade
e aos mistérios de Elêusis. Deusa ctônica, Deméter é identificada com a Mãe
Terra pela sua etimologia (dâ, que no dialeto dórico da época micênica com-
preendiam como “terra” + m h′ thr, mãe). dã estaria em lugar de gã ou de gh′
de onde o nome clássico para “terra”. Esse hino, bastante glosado na antigui-
dade, inicia-se com os versos: “Começo por cantar a Deméter de formosa cabeleira, a au-
gusta deusa; a ela e sua filha de esbeltos tornozelos.” Há também a versão do Hino XIII,
já do V século a.C., com apenas três versos:

Começo por cantar a Deméter, de formosa cabeleira,


augusta deusa. A ela e a sua filha, a belíssima Perséfone.
Salve, deusa. Ampara esta cidade e dá princípio a meu canto.

O poema com que Miguel Torga homenageia a terra é também um dos mais
extensos do seu pequeno volume de dezoito poemas. Vejo nele, entrelaçados,
os três sentidos que percorrem o livro, de maneira que essa ode tem muito de
síntese das Odes torguianas. Filiando-se à áurea tradição dos poetas que fize-
ram a atualização do mito de Deméter, o poeta português começa com um
“Também”:

Também eu quero abrir-te e semear


Um grão de poesia no seu seio!
Anda tudo a lavrar,

245
G il be rto Mendo nç a Teles

A abrir leques de sonho e de centeio,


E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Ao longo da ode o leitor vai encontrando os principais problemas ligados à


terra, à agricultura, à divisão da propriedade (“Sem fronteiras nem dono”), ao plan-
tio, à colheita e, noutro plano, ao sagrado, ao profano e ao que se refere à natu-
reza versus cultura e às tensões provenientes de tudo isso. O poeta conversa
com a Terra, dá-lhe atributos humanos: ele não quer cavá-la, quer “abri-la”,
fala no “seio” da terra, diz que ela vai “parir” os frutos e chega a dizer “Terra,
minha mulher!” para no final transformar a mulher em canção: “Terra, minha can-
ção!”. Tem consciência do sentido mítico que envolve a terra: “Casou-nos Deus, o
mito!”. O interessante, todavia, é que o olhar metalingüístico percorre todas as
estrofes, pois o poeta quer “semear um grão de poesia”, quer pôr “A semente dos versos
que granjeio” para germinar, fala em “poema”, em “imagem”, em “Poesia desfei-
ta” (depois da colheita) e “Na melodia que o poema tem”; vê a terra como aliada
“Na criação” e, falando diretamente com a terra, diz-lhe:

Nada fecundas, nada,


Que eu não fermente também de inspiração.

Torga termina a sua ode “À terra” com um jogo de palavra que esconde e ao
mesmo tempo revela alguns não-ditos, ou seja, está vendo a terra como o lugar
de germinação da Poesia, mas, no subconsciente, está vendo é o Sol, símbolo
de Apolo e, por trás do Sol, a tradição de Apolo como deus da Poesia. Daí na
estrofe que encerra o poema dizer e não dizer o nome de Apolo, a quem o poe-
ta não dedica entretanto nenhuma ode:

Terra, minha canção!


Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

246
O sen tido da c ri aç ão po éti c a nas Odes, de M i g u e l To r g a

As palavras em negrito mostram ao leitor o campo semântico da ode, tradu-


zida em canção, a qual, levada de um a outro pólo pelo Sol, isto é, pelo carro de
Apolo, deus do Sol e da Poesia (“a luz da vida” – ϕο ï βοζ ´απóλλωυ), es-
tende outro sentido de “beleza” – a beleza do espírito, da Poesia, que deve ter
sempre o “gosto da vida”. E Apolo está ali, desmembrado em “a pólo”, como
um outro Orfeu despedaçado pela fúria das bacantes à espera do olhar amoro-
so do leitor.
A última ode escolhida, “À poesia”, é a segunda do livro das Odes. O seu lu-
gar na seqüência da obra já diz da sua importância. Um poeta como Miguel
Torga, com muita experiência na arte de escrever, está sempre a pensar o mun-
do, a vida e a linguagem de que se serve para expressar a sua vivência e a sua
convivência. Em cada conto, no romance, nos volumes do Diário e em cada li-
vro de poemas a linguagem criada leva junto, como uma sombra, o seu perfil
de metalinguagem. O poeta contempla o mundo, mas não deixa de lateralmen-
te contemplar a sua própria expressão. E de tal forma o faz que os dois olhares
se misturam, se confundem para contemplar uma unidade maior e capaz de
deleitar tanto o leitor comum como o mais sofisticado, ávido de teorias e espe-
culadores da Filosofia da Arte e da Literatura, desta em particular.
Esta preocupação é anterior ao livro das Odes, como se vê na “Arte poética”,
que encontramos no livro Libertação, de 1944, dois anos antes das Odes. Assim,
dedicando um poema “À poesia”, Miguel Torga está celebrando toda a Poe-
sia. O seu processo de celebrá-la é o de manter um diálogo aparente com ela,
tratando-a intimamente por “tu”, como se ela fosse uma entidade superior e
sagrada que se apossasse da alma do poeta. Vejam a simplicidade, o quase pro-
saísmo, a variedade rítmica com que inicia a sua ode, fazendo a Poesia chegar a
se identificar com o barulho do comboio:

Vou de comboio...
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;

247
G il be rto Mendo nç a Teles

– E mesmo assim tu vens, tu me visitas!


– Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

A Poesia para ele, nesta ode, tem “formas brancas e aladas”, está relacionada
com as coisas invisíveis, e ele, que se diz escravo dela, fala em ritmos, imagens e
emoções e a vê como “Musa bela, terrível e sagrada,/ Imaculada Deusa do condão”. A
tensão entre Mitologia e Religião se resolve numa fusão mítico-religiosa: as-
sim como qualquer outra tensão que o escritor teve de enfrentar, ele a soube re-
solver no sentido da melhor poesia. Qualquer que seja o sentido que tenha to-
mado o seu trabalho intelectual de artista da palavra, o médico-escritor teve
consciência de que o desgraçado do artista da pena tem de se agarrar em vocá-
bulos exangues, inertes, cadavéricos, e construir com eles uma obra pelo menos
tão estuante de seiva como a própria Criação.
A partir dessa ode, o leitor paciente e disciplinado saberá ir recolhendo os
fragmentos, as imagens, as experimentações rítmicas, a luta para resolver as ten-
sões culturais e ideológicas para, afinal, compor um Sentido maior, reunião de
todos os sentidos possíveis de serem percebidos, de todos os planos de percep-
ção, de todas as direções que o espírito criador de Miguel Torga pôs na prática
de sua obra literária. A palavra “Criação” no trecho acima vem com inicial ma-
iúscula, a simbolizar a Soma (S) de todas as formas estéticas da Beleza. As Odes de
Miguel Torga são uma parte dessa Beleza, pois constituem, no plano poético, o
que Philip Sidney fez, no plano teórico, para a poesia, defendendo-a ou, como
na segunda edição de seu livro do século XVI, fazendo na Inglaterra uma notá-
vel apologia da poesia. Miguel Torga, além de poeta, foi, como defensor da Poe-
sia no seu Diário, um verdadeiro apologista da Poesia no século XX.

248
P r o sa

Doutrinas políticas J. Bernardo Cabral é


Presidente da Ordem
contemporâneas dos Advogados do
Brasil (1981/1983).
Relator-Geral da
Assembléia Nacional
J . B er n ar d o C a b r a l Constituinte
(1987/1988).
Presidente da
Comissão de Relações
1. O Socialismo: vertente totalitária e democrática. 2. O Exteriores da Câmara
dos Deputados
Liberalismo: experiências de resistência aos regimes abso-
(1989). Ministro de
lutistas. 3. A Doutrina Liberal. 4. Conclusão: sinais de Estado da Justiça
convergência. (15.03.90 a
09.10.90). Senador.
Presidente da
Comissão de
 1. O Socialismo Constituição e Justiça
do Senado Federal
Neste momento de crise, quando as perspectivas do País tor- 1997/1998 e
nam-se incertas, é, sem dúvida, fundamental rememorar, ainda 2001/2002).
Consultor da
que de forma condensada, a grande polêmica que atravessou o sé-
Presidência da
culo XX, travada entre as principais doutrinas políticas da mo- Confederação
dernidade: de um lado, o Socialismo, tanto na sua vertente totali- Nacional do
Comércio (desde
tária quanto na democrática, esta última mais conhecida como
fevereiro de 2003).
Social-Democracia; de outro lado, o Liberalismo, surgido a par- Título de Doutor
tir das experiências de resistência aos regimes absolutistas, que Honoris Causa –
Universidade Federal
chega a este novo milênio dotado de renovada legitimidade, con- do Rio de Janeiro
ferida pela eficácia demonstrada no trato das grandes questões –UNIRIO – maio de
sociais e econômicas do nosso tempo. 2005.

249
J. B ernardo C abral

Abordarei em primeiro lugar alguns pontos da história e da doutrina do So-


cialismo, na sua vertente comunista, que, no século XX, chegou a gerir os des-
tinos de uma significativa parcela da população mundial.
Em seguida, examinarei o desempenho daqueles que diligenciaram na reali-
zação das metas socialistas por meios exclusivamente democráticos, ou seja, a
denominada Social-Democracia, corrente que obteve um sucesso significativo
na maior parte dos países da Europa Ocidental, associando à sua gestão o de-
senvolvimento do Estado de Bem-Estar Social.
Finalmente, discutirei a Doutrina Liberal, tentando enfatizar os pontos
que, a meu ver, tornaram-na relativamente imune aos efeitos da crise contem-
porânea, que está eliminando o comunismo e pondo em xeque o Estado de
Bem-Estar Social.
O Socialismo foi definido de diversas maneiras, ao longo de sua história.
Para alguns, seria caracterizado pela preocupação com as classes desprivilegia-
das da sociedade.
Outros vêem como seu traço marcante a oposição à propriedade privada.
Não há dúvida de que essas e outras características são comuns ao pensamento
socialista. Considero, no entanto, mais fecundo definir o Socialismo não por
um traço ou conjunto de traços, e sim, como o fez o grande sociólogo francês
Emile Durkheim, por uma tensão entre dois princípios coexistentes: a deman-
da por racionalidade econômica e a exigência de justiça social.
Demanda por racionalidade, na medida em que o caráter caótico da produ-
ção capitalista manifestou-se desde cedo. Períodos de bonança eram interrom-
pidos por crises recorrentes durante as quais o excesso de bens convivia com a
incapacidade de compra, e, portanto, com a miséria. A superação desse círculo
vicioso consistiria na subordinação da propriedade privada, ou seja, um movi-
mento que iria da autonomia dos capitalistas individuais para um planejamen-
to racional centralizado.
Exigência de justiça social, na medida em que a mesma propriedade pri-
vada impunha uma distribuição desigual de bens, serviços e oportunidades
de vida.

250
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s

No pensamento socialista os dois aspectos são inseparáveis; na verdade, a


justiça seria uma decorrência necessária da introdução da racionalidade na vida
econômica. Foi preciso o transcurso de todo o século XX para demonstrar que
justiça e racionalidade nem sempre são coincidentes, podendo, inclusive, ser
excludentes.
Discorrer aqui, pormenorizadamente, sobre a história do movimento socia-
lista seria desnecessário e extrapolaria os limites desta reflexão. Limitar-me-ei,
portanto, a assinalar alguns pontos de inflexão, aqueles que julgo mais carrega-
dos de conseqüências para a história do século passado.
O Socialismo surge como tentativa de superar as mazelas da Revolução
Industrial. Data, portanto, do último quartel do século XVIII. Excluí de nossa
periodização todas as obras dos pensadores comunistas utópicos, de Platão a
Campanella, pois esses estavam preocupados primordialmente com a questão
da construção de uma sociedade justa, faltando-lhes a dimensão da racionali-
dade na produção de riquezas.
Posto isso , é possível delimitar, na história do Socialismo, um primeiro pe-
ríodo que se estenderia de suas primeiras manifestações até o ano de 1848.
Esse ano é tomado como marco em função da participação dos trabalhadores
nos movimentos revolucionários que eclodiram na Europa e também por nele
ter-se dado a publicação do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que mar-
caria a feição posterior do movimento.
O segundo período apresentaria como limites os anos de 1848 e de 1914.
No seu curso, o Marxismo consolida-se como tendência dominante do Socia-
lismo, por deslocar a vertente anarquista, no âmbito da Primeira Associação
Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1863. A partir daí, o Marxismo
foi-se impondo como a única versão legítima do Socialismo, a única que teria
como fundamento as bases sólidas da ciência. É nesse período, ainda, que os
diferentes partidos socialistas europeus, já denominados, em geral, social-de-
mocratas, convertem-se em partidos eleitoralmente significativos. Houve um
incremento exponencial dos votos socialistas a partir da conquista do sufrágio
universal. Em 1890, a social-democracia alemã chegou à condição de partido

251
J. B ernardo C abral

mais votado, no que foi seguida por seus congêneres da Bélgica, Escandinávia e
Áustria.
A essa altura, o Socialismo constituía-se em um expressivo movimento de
massas animado por uma mesma interpretação da sociedade e da História, de-
senvolvida por Marx.
Suas idéias centrais são:

1 – O Materialismo: postula a primazia do ser sobre a consciência dos ho-


mens, ou seja, a consciência dos homens depende da forma como provêem
suas necessidades materiais;

2 – A Dialética: consiste no reconhecimento do caráter contraditório da re-


alidade social manifesta na centralidade da luta de classes;

3 – A Direção da História: a História da Humanidade é vista como um


processo evolutivo, uma vez que o desenvolvimento tecnológico define, em
última análise, a estrutura de classes de cada sociedade e esse desenvolvi-
mento é cumulativo;

4 – O Fim da História: a própria evolução da sociedade de classes apontaria


para o seu fim. A divisão da sociedade em classes teria fim e uma nova era
teria início. A simplificação dos conflitos de classe levaria à expropriação
do patronato, não em benefício de uma nova classe dominante, mas em be-
nefício de todos;

5 – O Caminho: a consecução dessa meta exigiria, no entanto, um momen-


to de transição durante o qual os trabalhadores utilizariam a coerção contra
os interessados na manutenção ou restauração da antiga ordem. Nesse pe-
ríodo o Estado assumiria o controle do sistema produtivo e injetaria racio-
nalidade na produção mediante o planejamento centralizado.

A primeira oportunidade de testar empiricamente a validade desse corpo


teórico socialista ocorreu nos desdobramentos da Revolução Russa de 1917.

252
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s

Instituiu-se, então, um regime unipartidário comandado por uma fração do


antigo Partido Social Democrata Russo, os Bolcheviques. A propriedade pri-
vada sobre os meios de produção foi abolida com a sua passagem para as mãos
do Estado, processo particularmente violento no caso da coletivização da agri-
cultura efetuada por Stalin, na década de 30. A política passou a ser monopoli-
zada pelo partido no poder, que não se constrangeu em usar a coerção em do-
ses maciças, primeiro contra os partidários do antigo regime, depois contra os
demais partidos oposicionistas e, fmalmente, contra os dissidentes do próprio
Partido Comunista.
A aplicação da receita socialista em toda a sua integridade teve como resul-
tado a instauração de um regime autoritário, quando não francamente totalitá-
rio. Como esse resultado pode ser encarado? Como um desvio em relação ao
projeto original ou fiel ao espírito dos textos de Marx, como uma etapa neces-
sária ao estabelecimento de uma sociedade efetivamente livre?
Parece-me que os acontecimentos da última década não deixam dúvida a
respeito. Enquanto o mundo comunista persistia, era possível pensar que nos
encontrávamos frente a uma etapa necessária da construção de uma sociedade
justa e abundante. A ausência de Democracia ainda podia ser vista como uma
conseqüência da pressão dos países capitalistas sobre o bloco socialista, e bas-
taria um esforço de auto-reforma do sistema para que o rumo correto fosse re-
tomado. Por um momento, essas esperanças pareceram concretizar-se nos
processos que os soviéticos chamaram glasnost e perestroika. No entanto, a refor-
ma controlada do sistema rapidamente cedeu lugar a seu desmantelamento.
Quais as razões profundas desses desfecho? Em linhas gerais, podemos di-
zer que o bloco comunista foi vítima do desenvolvimento tecnológico recente.
Numa confirmação irônica de um dos teoremas marxistas, as relações de pro-
dução construídas a partir da extinção da propriedade privada e da substitui-
ção do mercado pelo planejamento central não resistiram ao avanço das forças
produtivas e foram por ele despedaçadas.
Vale lembrar que nem sempre o sistema econômico soviético foi inoperan-
te. Respondeu por taxas de crescimento industrial das mais elevadas por um

253
J. B ernardo C abral

longo período de tempo. Transformou a antiga Rússia em uma potência in-


dustrial e militar. Conseguiu, além disso, ganhos até então desconhecidos no
rumo da equalização das condições de vida de sua população. Os indicadores
de saúde e educação, em poucos anos, alcançaram e ultrapassaram aqueles vi-
gentes nos países capitalistas ocidentais. Mesmo a ocorrência do processo de
desestalinização aumentou o otimismo daqueles que, dentro e fora da União
Soviética, julgavam o totalitarismo um aspecto descartável do sistema. Emble-
mático desse período de euforia foi o anúncio de Kruschev, na esteira das pri-
meiras vitórias na corrida espacial, da iminente ultrapassagem da economia
americana pela soviética.
O que mudou, desde então? Os avanços científicos e tecnológicos potencia-
lizaram o processo de globalização e geraram um novo modo de produzir bens
e serviços para o qual mercado e democracia, ou seja, iniciativas no âmbito das
unidades de produção e transparência, revelaram-se indispensáveis. Esses eram
justamente os dois fatores de que carecia o bloco soviético.
A partir de então, deixou de ser plausível a possibilidade de regenerar o
Comunismo, de transformá-lo por dentro mediante uma intervenção políti-
ca, e ficou claro o que nós, liberais, sempre soubemos: a liberdade não surge
da sua ausência. Vemos, hoje, o preço que a Rússia paga pela ausência de
uma tradição política democrática e de uma tradição econômica de mercado.
Na Política, as instituições são frágeis, e o risco de retrocesso em direção ao
autoritarismo é presente. Na Economia, a iniciativa privada foi açambarcada
pelo crime organizado, refúgio dos únicos empreendedores remanescentes
do velho regime.
O experimento comunista mostra um resultado claro: os meios preconiza-
dos historicamente pela tradição socialista não alcançaram os fins desejados. A
justiça social foi incrementada ao custo de um grau absurdo de coerção e reve-
lou-se fugaz. Não sobreviveu ao desmantelamento do regime. A racionalidade
da economia revelou-se um mito. O planejamento centralizado mostrou sua
inoperância em face das novas condições de produção originadas da revolução
científico-tecnológica.

254
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s

Resta-nos examinar o desempenho, neste século, do braço democrático do


movimento socialista, a Social-Democracia.
Nas suas origens, o Socialismo manifestava desconfiança profunda quanto
à eficácia e pertinência de sua participação no processo eleitoral. A atitude era
procedente, na medida em que vigorava o voto censitário, ou seja, julgava-se,
então, que o direito de voto deveria estar restrito àqueles que tinham algo a
perder com o desgovemo do país: os proprietários e os detentores de rendas
elevadas. Era recorrente, entre os primeiros pensadores socialistas, a idéia de
que a nova sociedade poderia surgir, fora da esfera política, a partir de comuni-
dades isoladas, funcionando conforme as novas regras. Acreditava-se que,
comprovada assim sua eficácia, o Socialismo alastrar-se-ia por força de um
efeito de demonstração.
O marxismo representou uma ruptura dessa visão. Ao considerar a conquis-
ta do Estado como instrumento indispensável à construção da nova sociedade,
enfatizou a necessidade de participação dos trabalhadores na política insti-
tucional “burguesa”. Eram necessárias, sempre que possível, a organização de
partidos políticos legais e a apresentação de candidatos nas disputas eleitorais.
É certo que essa visão era, no início, inteiramente instrumental. As eleições
eram vistas como um momento privilegiado de agitação e propaganda das
idéias socialistas, mas não se acreditava na eleição de um governo capaz de im-
plementar as mudanças necessárias. Mesmo que eleito, um governo com essas
intenções seria em pouco tempo manietado ou derrubado por uma rebelião
das classes possuidoras contra sua própria ordem legal. A revolução, ponto de
inflexão no rumo da nova sociedade, deveria ocorrer, na opinião majoritária
entre os militantes, no bojo de uma greve geral, seguida do assalto ao poder.
A conquista progressiva do sufrágio universal nos principais países euro-
peus, muitas vezes com a participação decisiva dos trabalhadores, foi aos pou-
cos alterando essa visão. Os socialistas acreditavam, firmemente, na inevitabi-
lidade de a população trabalhadora vir a transformar-se na maioria absoluta
em todas as nações modernas. Conforme Marx, a tendência à concentração de
empresas era inexorável, o número de capitalistas tenderia a diminuir, a peque-

255
J. B ernardo C abral

na-burguesia e o campesinato, classes de transição, desapareceriam e os traba-


lhadores constituiriam a maioria esmagadora da população num futuro próxi-
mo. Nessas circunstâncias, era difícil não considerar a possibilidade de os tra-
balhadores chegarem ao poder pela via do sufrágio universal.
Os resultados das eleições sustentavam essa perspectiva. Conforme men-
cionei anteriormente, na altura da passagem do século passado, os diversos
partidos socialistas foram-se convertendo nos maiores depositários de votos
de seus países. Logo, foram expostos a problemas delicados. Constituindo
os partidos mais votados, sem entretanto dispor da maioria absoluta neces-
sária à implementação dos seus programas, os socialistas foram chamados a
constituir ou a formar governos de coalizão. Tiveram, assim, de optar entre a
manutenção integral de suas propostas, e a conseqüente exclusão do gover-
no, e a prática do compromisso, das concessões mútuas, da obtenção de pe-
quenas conquistas.
A fratura com a vertente comunista, concretizada ao longo da Primeira
Grande Guerra e formalizada em 1921, operou nessa linha de clivagem, sepa-
rando aqueles que viam as eleições como agitação preparatória da insurreição e
aqueles que se comprometeram com a preservação das regras democráticas.
Esses últimos desenvolveram a lógica da acumulação de conquistas, ou seja, de
reforma em reforma chegar-se-ia à transformação completa da sociedade. Nas
palavras de um líder socialista da época, a chegada ao Socialismo poderia ser
tão imperceptível quanto a passagem de um navio pela linha do Equador.
Sabemos, hoje, que essa estratégia não logrou êxito. Era necessária para seu
sucesso a esperada maioria absoluta dos trabalhadores no conjunto da popula-
ção. E tal fato não ocorreu. Por outro lado, as reformas deveriam ser cumulati-
vas e não passíveis de reversão, e a experiência histórica demonstrou que, admi-
nistradas por novas maiorias ou simplesmente deixadas à própria sorte, as re-
formas tendiam a desaparecer.
O fato de os trabalhadores persistirem como maioria relativa e não como
maioria absoluta foi de particular relevância para a estratégia posterior dos so-
cial-democratas. Os partidos europeus viram-se diante da alternativa de con-

256
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s

centrar seus esforços na classe operária e renunciar à possibilidade de serem


majoritários ou de se abrirem à participação de outros grupos sociais.
O problema, no caso, é que verificou-se um trade off entre ambas as possibili-
dades. Ao concentrar suas campanhas nos interesses e na identidade operária,
perdiam eleitores de outros grupos. Ao tentar a ampliação, deixavam de apelar
para a consciência de classe dos operários, liberando-os, em parte, para votos
desvinculados de sua identidade de trabalhador. Nessa alternativa, ganhariam
votos com uma mão e os perderiam com a outra, sem alcançar a desejada e ne-
cessária maioria absoluta.
A hipótese desse trade off, desenvolvida pelo cientista político Adam Prze-
worski, encontra apoio nos dados disponíveis sobre o desempenho eleitoral
dos partidos socialistas. Apenas no começo do século XX os socialistas algu-
mas vezes aproximaram-se dos cinqüenta por cento dos votos. A partir da dé-
cada de 20, entretanto, raramente ultrapassaram os trinta por cento, sendo le-
vados a participar de governos de coalizão, seja na condição de protagonista,
seja na de coadjuvante.
Não é possível, entretanto, deixar de reconhecer algum sucesso ao experi-
mento social-democrata. Principalmente a partir da década de 30, quando as-
sumiram políticas de cunho keynesiano, eles tiveram participação destacada na
construção do chamado Estado de Bem-Estar Social.
Desde então, e principalmente no segundo pós-guerra, os governos socialistas
desenvolveram um grau de intervenção na economia sem precedentes, mediante
a nacionalização de setores inteiros da produção. Paralelamente, ampliaram
substancialmente os chamados direitos sociais. Além dos direitos civis, as cha-
madas liberdades individuais, e do direito de votarem e serem votados, os cida-
dãos desses países passaram a ter como direitos o acesso à saúde, à educação, ao
emprego, à seguridade social, à moradia, entre outros. Cabe assinalar que o con-
teúdo de todos esses direitos sociais era até então simples objeto de transação no
mercado, acessível apenas aos que dispunham de recursos para comprá-lo.
A intervenção do Estado no sentido de regular a economia e garantir esse
conjunto expressivo de direitos a todos os cidadãos foi mais profunda e conti-

257
J. B ernardo C abral

nuada em países como a Suécia e a Inglaterra. Na década de 1950, inclusive,


teóricos do trabalhismo inglês não apenas acreditavam estar no caminho do
socialismo como também afirmavam ser impossível um eventual retomo da-
quele país ao capitalismo.
Essa, no entanto, foi a previsão que teve o desmentido mais rápido. A partir
da segunda metade da década de 1970, toda uma leva de vitórias eleitorais
conservadoras remeteu os partidos socialistas à oposição. As reformas con-
quistadas sofreram rápida reversão. Empresas estatais foram privatizadas, e o
Estado tratou de limitar o alcance dos direitos sociais recentemente estatuídos.
Quais as razões da crise do Estado de Bem-Estar Social? São tantas que
mencionarei apenas os fatores mais relevantes. Em primeiro lugar, a globaliza-
ção produziu um ambiente favorável à rápida mobilidade de capitais. Estes
podem, face a uma política redistributiva considerada excessiva, migrar com
facilidade para outro país, causando desemprego e mais pobreza.
Em segundo lugar, outro resultado da revolução científico-tecnológica foi a
criação do desemprego estrutural. Com ele, diminui o número de contribuin-
tes e aumenta o de beneficiários das políticas sociais. O desequilíbrio assim ge-
rado exige recursos cada vez maiores e alimenta a chamada revolta dos contri-
buintes, que começam a direcionar seus votos aos partidos conservadores.
Em terceiro lugar, parece claro, hoje, que, mesmo nos seus melhores dias, o
Estado de Bem-Estar Social tinha como premissa uma estrutura familiar tradi-
cional. Encontrava-se equipado para atender ao desemprego masculino, pres-
supondo o papel de esposa para a maioria da população feminina. Com a fre-
qüência maior de divórcios e o afluxo das mulheres ao mercado de trabalho, o
Estado revelou-se incapacitado para fazer frente ao aumento dos gastos.
Finalmente, uma linha de crítica, iniciada pelos liberais, mas hoje encampa-
da por correntes socialistas, dirige-se ao complexo paternalismo/passividade
que essas políticas estimulam. As populações atendidas vêem o seu destino nas
mãos de uma burocracia que escapa à sua influência. Cria-se uma cultura da
dependência que, ao invés de integrar os excluídos na ordem social, estimula a
permanência destes nos limites dessa ordem, na condição de incapazes de ga-

258
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s

rantir seu próprio sustento, expondo-os às conhecidas conseqüências em ter-


mos de preconceito.
Pode-se concluir, em suma, que o projeto social-democrata foi vítima dos
mesmos fatores históricos que evidenciaram o fracasso do comunismo: a revo-
lução científico-tecnológica e o processo de globalização dela decorrente.
Aqui cabem duas indagações: antes que o peso desses fatores se fizesse sentir
em meados dos anos de 1970, era possível afirmar, ao longo das três décadas
seguintes ao fim da Segunda Guerra, que a via social-democrata alcançara êxi-
to? E ainda: o caminho das reformas sucessivas levara ao Socialismo?
Depende. Se por Socialismo entendemos uma sociedade próxima do pleno
emprego, com uma elevada renda per capita, na qual os desempregados e os ex-
cluídos do mercado de trabalho por incapacidade também fazem jus a um ren-
dimento digno, garantido pelo Estado, então a Suécia foi, de fato, durante al-
guns anos, uma sociedade socialista.
O Socialismo, no entanto, prometeu mais do que isso. Propôs-se à constru-
ção de uma sociedade de liberdade e abundância, na qual todas as necessidades
individuais encontrariam satisfação. Acenou com a libertação do homem de
todas as amarras e da situação de alienação em que se encontra. Até a formação
da identidade individual ver-se-ia livre de toda distorção. Nesse sentido maxi-
malista, o Socialismo não foi substantivamente implantado nem na Suécia
nem em parte alguma.

 2. O Liberalismo: experiências de resistência


aos regimes absolutistas
Aliás, a trajetória do Liberalismo constitui um interessante contraponto aos
percalços do Socialismo, em todas as suas variantes. Surgido como processo de
limitação dos poderes do Estado, principalmente na Inglaterra, a partir do sé-
culo XIII, ganhou densidade intelectual com as contribuições de inúmeros fi-
lósofos e pensadores da política, de Locke a John Stuart Mill. Cabe assinalar
que sua origem histórica, vinculada às lutas da burguesia ascendente, levou os

259
J. B ernardo C abral

socialistas a identificá-lo, a priori, como a ideologia dessa classe social e a con-


dená-lo à impossibilidade de cumprir as suas promessas.
Numa sociedade dividida em classes, as liberdades fundamentais permane-
ceriam apanágio das classes dominantes: os proprietários. A extensão concreta
dos direitos abstratamente universais colocaria em risco, de imediato, a ordem
social e propiciaria sua subversão pelos excluídos. Podemos avaliar hoje, em
concreto, que as promessas do Liberalismo foram cumpridas numa extensão
muito maior que as do Socialismo.
Mas de que estamos falando quando usamos o termo Liberalismo? A pala-
vra, na verdade, recobre uma gama de significados tão ampla quanto Socialis-
mo. Valho-me da definição proposta pelo pensador italiano contemporâneo
Norberto Bobbio, por sua clareza e operacionalidade. Para ele, Liberalismo é
uma concepção de Estado, aquela que o encerra em limites bem definidos. O
Estado liberal opõe-se, de um lado, ao Estado absoluto, cujo poder é ilimita-
do. Nesse sentido, Estado liberal confunde-se com Estado de Direito. Por ou-
tro lado, o Estado liberal não é limitado apenas em seus poderes, mas também
em suas funções. Nesse sentido, o Estado liberal é um Estado mínimo, oposto,
por exemplo, ao Estado de Bem-Estar Social.
E importante fazer uma distinção entre o Liberalismo assim definido e a
Democracia. Esta é um regime político, no qual o poder encontra-se nas mãos
de todos, a antítese, portanto, da Autocracia. A Democracia responde à exi-
gência de distribuir o poder, não de limitá-lo.
A tensão entre Liberalismo e Democracia perpassa toda a história da dou-
trina. Não são poucos os pensadores liberais que consideraram ambos incon-
ciliáveis. Historicamente, o Liberalismo prosperou inicialmente em regimes
políticos oligárquicos, nos quais os direitos políticos eram inseparáveis da
propriedade. Na melhor tradição liberal, a propriedade era vista como única
garantia de um comportamento político responsável, única salvaguarda contra
o voto disruptor da ordem.
Sabemos, hoje, no entanto, que as relações entre Liberalismo e Democracia
são bastante complexas. Numa primeira dimensão, pode-se afirmar a compati-

260
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s

bilidade entre ambos. É possível existir um Estado simultaneamente liberal e de-


mocrático. Há, porém, outras possibilidades históricas, como um Estado liberal,
mas não democrático, exemplificado pelos regimes oligárquicos, ou um Estado
democrático, mas não liberal, no qual a vontade da maioria seria ilimitada.
Numa segunda dimensão, comprova-se a permanente tensão, até mesmo o
antagonismo, entre Liberalismo e Democracia. Nesse caso, a procura da igual-
dade de condições entre os cidadãos, por meio da ação do Estado, expande
essa ação até esferas que deveriam ser deixadas ao arbítrio individual. Se o
Estado decide tudo por nós e nos provê de todos os bens necessários, acabam a
autonomia e a responsabilidade individuais.
Numa última dimensão, transparece, nas condições políticas modernas, a
união necessária entre Liberalismo e Democracia. A história recente fornece ra-
zões convincentes para se crer que, de um lado, os direitos individuais dependem
da regra do jogo democrático para se manterem; de outro lado, que a proteção
dos direitos individuais é indispensável ao funcionamento da democracia.
Daí resulta que, hoje, os liberais trabalham no espaço da compatibilidade
entre Liberalismo e Democracia; são conscientes da solidariedade existente en-
tre ambos e procuram limitar a busca da igualdade de condições à igualdade de
oportunidades para todos. Os liberais sabem que o máximo que o Estado pode
fazer, sem colocar em risco os direitos individuais e a esfera privada, é assegu-
rar o mesmo ponto de partida a todos os cidadãos. Tentar assegurar o mesmo
ponto de chegada, como almejam os socialistas, é enveredar pelo caminho da
servidão, na expressão feliz de Hayek.

 3. A Doutrina Liberal
Cabe aqui recapitular que as linhas mestras da doutrina liberal, decantadas
após séculos de especulação e debates teóricos, são:

1 – O Individualismo: se os liberais buscam limitar o poder do Estado, fa-


zem-no em nome de uma realidade anterior e moralmente mais elevada – o

261
J. B ernardo C abral

indivíduo. Para eles, os indivíduos precedem o Estado, que só existe para


satisfazer as suas, deles, necessidades.

2 – Os Direitos Naturais: esses indivíduos que preexistem ao coletivo por-


tam direitos invioláveis, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade.
A tradição liberal fundamenta esses direitos na sua suposta naturalidade. A
suposição não é necessária. Basta-nos considerar, em cada sociedade e em
cada período histórico, como direitos fundamentais e, portanto, invioláve-
is, aqueles reconhecidos a todos os seus membros. Os direitos universais são
os fundamentais.

3 – A Valorização da Diversidade: na tradição liberal, toda uniformidade é


percebida como imposta por um poder exterior ao indivíduo. Os seres hu-
manos são plurais, e um de seus direitos inalienáveis é o da expressão e do
desenvolvimento de sua singularidade. Da mesma forma, os conflitos que
advêm da expressão das diferenças – de valores, idéias e interesses – são sa-
lutares, uma vez que propiciam a emulação, o aperfeiçoamento e a prevalên-
cia das alternativas mais eficazes. Na esfera econômica, essa diretriz mate-
rializa-se na valorização da concorrência. Sociedades que estimulam a di-
versidade são ativas e progressistas.

Parece-me claro que, no ambiente globalizado e sujeito a intensas alterações


tecnológicas já aqui mencionado, um corpo doutrinário com as características
acima descritas encontra-se mais capacitado para conduzir sociedades moder-
nas do que as doutrinas concorrentes originadas do tronco socialista. Os valo-
res articulados pelos liberais aparentam ser hoje os únicos compatíveis com o
modo de produção que atualmente se gesta. Transparência e livre circulação
da informação, plena liberdade à iniciativa individual, tanto no campo do ca-
pital quanto no do trabalho, dotação de responsabilidade aos sujeitos dessa
iniciativa; todas essas são condições para operar a produção de bens e serviços,
na contemporaneidade.

262
Do u tri nas po lí ti c a s c o n te m p o r â n e a s

O resultado mais evidente das mudanças recentes é a crescente complexida-


de da vida e do mundo modernos. Nossos problemas, sejam eles tecnológicos,
econômicos ou meramente cotidianos, não dispõem mais de apenas uma solu-
ção ótima, mas sim de uma multiplicidade de soluções ao alcance dos atores
sociais. Tornou-se plenamente aceitável a crítica dos economistas liberais ao
Socialismo: se num estágio mais simples de sociedade o planejamento central
podia aspirar a uma racionalidade superior à do mercado, hoje o mercado é
mecanismo muito mais eficiente para captar e transmitir os sinais da esfera
produtiva. O planejamento central, na forma como foi postulado pelos socia-
listas, foi relegado ao campo da irracionalidade econômica.
Devo dizer, contudo, que a hegemonia dos mecanismos de mercado e das
instituições democráticas a que assistimos não significa uma vitória absoluta
do Liberalismo, em sua feição originária. Décadas de embate com as corren-
tes socialistas tornaram os liberais sensíveis às condições sociais que possibi-
litam a igualdade de oportunidades. Poucos expoentes do Liberalismo nega-
riam hoje a necessidade de interferência estatal em áreas como saúde e educa-
ção, cruciais para que os indivíduos iniciem o processo de concorrência em
igualdade ou ao menos em semelhança de condições. Alguns preferem dar a
esse movimento o nome de Social-Liberalismo, uma vez que legitima a inter-
venção do Estado em esferas antes deixadas exclusivamente ao livre jogo das
forças de mercado.
Nota-se, por outro lado, movimento semelhante da parte de tendências his-
toricamente situadas no campo do Socialismo. As debilidades do Estado de
Bem-Estar Social, particularmente sua tendência à burocratização, à alienação
da população beneficiada, à perpetuação da exclusão social num gueto de de-
pendentes do Poder Público, originaram críticas entre os próprios socialistas.
Estes passaram a reconhecer, ao menos parcialmente, as limitações do Estado
como instrumento de promoção da igualdade e da justiça e a conseqüente ne-
cessidade de estimular a autonomia individual. Outro não é o significado da
tentativa autodenominada Terceira Via, teorizada por Anthony Giddens, na
Inglaterra, inspiração do atual governo trabalhista daquele país.

263
J. B ernardo C abral

 4. Conclusão: sinais de convergência


Neste começo de século, é difícil prever o resultado desses processos, tanto
no campo do debate intelectual quanto no da prática de governo. O que se
pode é apenas considerar os sinais de convergência entre as distintas doutrinas
aqui sucintamente abordadas como um sintoma auspicioso de que décadas de
debate intenso estão produzindo conclusões, expressas como consensos parci-
ais acerca da gestão da sociedade.
Ainda bem. Já não era sem tempo.

264
P r o sa

Anchieta: criador de
modelos literários
para a evangelização Catedrático da
Universidad de Granada,
Depto. de Filología
N i c o lás E x tr em e r a T a p ia s Românica, desde 1988.
Director do Centro de
Cultura Gallega da
Universidad de Granada
desde 1988. Presidente da

O Padre Anchieta foi conhecido em vida pela Arte de Gramatica,


única obra sua publicada com registro de autoria explícito.
Quando, em Coimbra, por intermédio de António de Mariz, se publi-
Asociación de Lusitanistas
del Estado Español de
2000 a 2003. Membro
Acadêmico do Comitê
cou a Arte de Gramatica da Lingoa mais usada na costa do Brasil Feyta pelo padre Externo de avaliação das
titulações das Filologias
Ioseph de Anchieta da Cõpanhia de IESU (1595), havia mais de trinta anos Alemã, Italiana e
que esse livro circulava manuscrito entre os jesuítas do Brasil. Dele Portuguesa da
ter-se-iam servido os membros da Companhia, que regularmente che- Universidad de Salamanca
desde o ano de 2000.
gavam ao Brasil, em sua aprendizagem do tupi-guarani. Membro Honorário do
Além de gramático, Anchieta foi também conhecido em vida Instituto Brasileiro de
como épico latino por seu De Gestis, livro que se publicou em 1563 Cultura Hispánica desde
2002. Medalha Oscar
como obra anônima. Tal fato tem dado lugar a controvérsias sobre Nobiling ao Mérito
a sua autoria, mas a questão foi definitivamente resolvida pelo pa- Filológico, outorgada
dre Hélio Abranches Viotti e pelos estudos estilísticos de José pela Sociedade Brasileira
de Língua e Literatura
María Fornell. em 1993. Sócio
Postumamente, em 1663, publicou-se De Beata, canto épico-lírico, correspondente da
Academia Brasileira de
sem que sua autoria tenha suscitado controvérsias. Certamente teria
Filologia, cadeira 10
circulado durante a sua vida através de cópias manuscritas. (Mario Barreto).

265
N icolás Extremera Tapi as

Hoje, porém, Anchieta é mais conhecido e divulgado pela sua produção lí-
rica e dramática em línguas vulgares, obra não publicada em sua época e reuni-
da num único manuscrito coetâneo, o ARSI 24, o que, em parte, também, não
deixa de ser uma obra atribuída, por mais que contenha partes autógrafas e sua
atribuição seja antiga e constante.
Embora pareça estranho, a fortuna editorial da obra de Anchieta não
difere do destino comum, no mesmo século, da épica e da lírica penin-
sulares. No que se refere às obras impressas, fazemos nossas as palavras
de Frank Pierce: “la épica literaria y demás variantes de la poesía narrativa ocupan
en el vasto campo de la literatura del Siglo de Oro un lugar cuantitativamente impor-
tante.” 1
Mas, pelo contrário, o mesmo Pierce assinalava, como fato surpreen-
dente, que, durante esse mesmo período, as poesias líricas “apareceram”
em vida de seus autores com pouquíssimas edições impressas, e que, em al-
guns casos, as obras deram-se a conhecer ao público leitor só muito tempo
depois.
Para situar a fortuna editorial da lírica de Anchieta entre seus contemporâ-
neos, o seguinte parágrafo de Rodríguez Moñino nos será de suma utilidade:

Voy a tomar veinte poetas que tienen edades rayanas entre los veintiun años, aproxima-
damente, y los sesenta, todos de una época que se circunscribe entre la Armada Invencible
(1588) Y la muerte de Felipe III. En 1588 tenia 61 años fray Luis de León, 58 Baltasar
del Alcázar, 54 Hernando de Herrera y Francisco de la Torre, 52 [?] Francisco de Figue-
roa, 46 San Juan de la Cruz, 41 Cervantes, 39 Rey de Artieda, 38 Vicente Espinel, 30
Barahona de Soto, 29 Lupercio Leonardo de Argensola, 28 el maestro Valdivielso, 27 don
Luis de Góngora, 26 Bartolomé Leonardo de Argensola, Alonso de Ledesma, Cristóbal de
Mesa y Lope de Vega, 25 el Conde de Salinas, 21 don Juan de Arguijo, madura edad Pedro
de Padilla.2 Já Anchieta tinha 54 años.

1
Vid . Frank Pierce.

266
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

En estos veinte nombres están representadas las más puras cimas de la lírica española a fi-
nes del reinado de Felipe II y durante todo el de Felipe III; Ahí se alían Fray Luis de León,
Hernando de Herrera, San Juan de la Cruz, los Argensola, Góngora, Lope, Cervantes... ¿
Qué podía conocer de la obra impresa de todos ellos un contemporáneo? De Hernando de
Herrera, un cuaderno de versos (1582); de Pedro de Padilla, cinco libros, 5 a partir de
1580; de los demás, nada.3

Quanto a Anchieta, o seu De gesti Mendi de Saa foi publicado, anonimamente,


em Coimbra, em 1563.

 As línguas de Anchieta
Já registrei em outro ensaio haver uma discrepância entre a maneira como
Anchieta foi conhecido em sua época e como o é na atualidade. Pois tal diver-
gência volta a produzir-se, e com outra conseqüência: hoje pouco se fala do
Anchieta novilatino, quando o latim é a língua literária mais usada por ele,
com quase 12.000 versos (54,5%), mais da metade do total de sua produção
literária. Ele é reconhecido, e justificadamente, como fundador da Literatura
Brasileira, como um poeta de língua portuguesa, embora nessa língua não te-
nha escrito nem 10% de seus versos. Dos aproximadamente 22.000 versos
que conformam sua obra literária, pouco mais de 2.000 foram compostos por

2
“He aquí las fechas, si las conocemos, de fallecimento de estos poetas; entre paréntesis figura el año
en que se imprimen sus poesías en conjunto:
Fray Luis de León 1591 (1631), Baltasar del Alcázar 1606 (1856), Hernando de Herrera 1597
(1619), Francisco de la Torre? (1631), Francisco de Figueroa 1617? (1626), San Juan de la Cruz
1591 (1627-1628), Miguel de Cervantes 1616 (1916), Andrés Rey de Artieda 1613 (publicou em
vida), Vicente Espinel 1624 (publica en vida), Luis Barahona de Soto 1595 (1903), Lupercio
Leonardo de Argensola 1613 (1634), José de Valdivielso 1638 (publica en vida), Luis de Góngora
1627 (1627, póstumas), Bartolomé Leonardo de Argensola 1631 (1634), Alonso de Ledesma 1623
(publica en vida), Cristóbal de Mesa 1633 (publica en vida), Lope de Vega Carpio 1635 (publica en
vida), Conde de Salinas 1630 (inédito aún), Juan de Arguijo 1623 (1841), Pedro de Padilla 1595
(publica en vida). Vid. Antonio Rodríguez Moñino. Construcción Crítica y Realidad Histórica en la Poesía
Española de los Siglos XVI y XVII. Valencia, 1968. p. 20.
3
Vid. Antonio Rodríguez Moñino. Op. cit. pp. 19-20.

267
N icolás Extremera Tapi as

ele em língua portuguesa. Enquanto isso, em espanhol escreveu 4.399 versos, o


que equivale a 20% de sua produção, vale dizer, o dobro dos versos em portu-
guês; e, em tupi, somente 15,5% de sua obra.

 O latim
O uso do latim era um exercício imposto aos “eleitos”, no pedagógico sen-
tido jesuítico, para o apostolado. Diz o Padre António Blázquez, em carta da-
tada de 1564 na Bahia:

“O estudo nunca nesta terra andou com tanto fervor (entendendo-se entre
os nossos Padres e Irmãos, que a gente de fóra pouco se dá disso). Tem os
nossos as suas conclusões nos sabbados á tarde e a ellas se acham presentes o
Padre Provincial com outros Padres. No outro sabbado veiu o Bisbo vel-os
e tambem argumentar com elles, e, pela bondade do Senhor, para estudan-
tes Brasis fazem-n’o muito bem. São por todos, entre Padres e Irmãos, onze,
e porque a todos se désse o tempo necessario para os seus estudos, lê o ir-
mão Luis Carvalho pela manhã uma hora de poesia do livro 2.o da Eneida aos
mais adiantados, posto que tenha accidentes costumados; mas a caridade e
necessidade fazem com que tome em seus hombros esta carga ainda que seja
tanto á seu custo e trabalho, esperando que V. Revma., vendo esta falta, se
resolva a mandar-nos dessa província alguns Irmãos latinos que ajudem
aquelles que pouco podem”.4

Anchieta abraçou os dois modelos que o ensino e seu gosto pessoal lhe ofe-
receram – o civil, com Mem de Sá, em De Gesti Mendi de Saa; o sacro, com Nossa

4
Cartas Avulsas. 1550-1568 / Azpilcueta Navarro e outros. Belo Horizonte. Itatiaia. São Paulo. Editora
Universidade de São Paulo, 1988.
Carta do Padre Antonio Blasquez do Collegio da Bahia de Todos os Santos do Brasil Para Portugal e
Escripta a 13 de Setembro de 1564. p. 454. Acrescenta em nota: “Esse irmão Luis Carvalho veiu em 63
com o Pe. Quiricio Caxa e os irmãos Balthazar Alvares e Sebastião de Pina (Carta LI) por doente, e não
logrando saude, tornou a Portugal em 65. Era “latino” como diziam os padres (Carta LV) pois que lia,
ou era lente, dando aula, de poesia, do 2.o livro da “Eneida”, Vergilio, no Brasil, em 1564.” p. 459

268
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

Senhora, em De Beata Virgine dei Matre Maria – ambos vazados na língua mais
universal e aparentemente imperecível, o latim, e no gênero mais excelso, o épi-
co. Em latim, não se encontra na literatura peninsular nenhum texto épico civil
ou religioso que se aproxime, quanto à qualidade literária, destas duas
obras-primas do Século de Ouro.
Essa preferência de Anchieta pelo gênero épico civil e religioso é também
comum ao momento peninsular, como registra Pierce:

La constante veneración de la Eneida como el epos por excelencia confirmó el gusto por
la poesía heroica (a este respecto hay que recordar la importancia de la traducción del po-
ema de Virgilio hecha en octavas por Hernández de Velasco, la cual se editó numerosas
veces entre 1555 y 1614). El ejemplo de Lucano fue más fuerte que el de Virgilio. En
cualquier caso, la preferencia por los acontecimientos históricos recientes y la declarada
intención de respetar la verdad histórica de toda época dan a la épica española un énfasis
personal. Esta preocupación por la historia puede verse como fase del culto poético a la
gloria nacional y a las familias nobles y su heroica estirpe; así, puede alegarse que el epos
tiene algo en común con la historiografía renacentista. La poesía épica española de este
período se caracteriza además por los poemas sobre vidas de santos, que igualmente (y en
estos casos necesariamente) demuestran gran respeto por los hechos históricos; algunas
veces estos poemas fueron escritos para contrarrestar la boga de los otros. La épica reli-
giosa fue extendiéndose cada vez más durante el siglo XVII, y llegó a abarcar temas bí-
blicos. Este tipo de poema empezó con la Christias (1535) de Vida y con la obra de
Sannazaro, De partu Virginis, de 1526 (este último poema fue también traducido
al español por Hernández de Ve1asco en 1554 y tuvo varias reimpresiones). El ejem-
plo de estas dos obras latinas, si no su influencia, puede considerarse como un estímulo
para los poetas españoles que cultivan una forma épica que se presenta como una faceta
de la universal religiosidad de la cultura española de la época.”5

Anchieta não só utiliza um latim mais ou menos estandardizado ao modo


dos humanistas contemporâneos seus mas ainda diversas outras formas de ex-
5
Vid. Frank Pierce op. cit

269
N icolás Extremera Tapi as

pressão literária dessa língua, forjadas na memorização de Cícero, Ovídio,


Virgílio, etc. Deles tomava e adaptava estruturas, fragmentos, imagens, para
incorporá-las com enorme flexibilidade aos seus interesses apostólicos, crian-
do uma obra que se coloca sem dificuldade no cume do humanismo peninsu-
lar. Provoca admiração observar-se o exercício de seus dotes e de sua cultura
em língua latina, o que lhe proporcionava uma capacidade de captação extra-
ordinária da nova e antitética realidade cultural e lingüística.

 O De Gesti e o De Beata Virgine


De Gesti Mendi de Saa foi publicado em Coimbra no ano de 1563. Tem 2.470
versos e é, como dissemos, a única obra literária que publicou, embora anoni-
mamente, em vida. Sua autoria tem sido controvertida. Uns negaram-na (Sera-
fim Leite); outros advertem não se poder demonstrá-la (Azevedo Filho). Nin-
guém, contudo, foi capaz de atribuí-la, com um mínimo de fundamento, a ou-
tro autor. Os estudos de Hélio Abranches Viotti e de José María Fornell até
vieram trazer nova luz sobre a questão da autoria de Anchieta com argumentos
positivos e estilísticos.
Nem o latim nem a bagagem cultural de Anchieta parecem responder satis-
fatoriamente às demandas da nova terra, mas seu objetivo foi o de cantar as
proezas de Mem de Sá, modelo de cavaleiro cristão, em terras brasileiras. Sa-
be-se inclusive que este quis ingressar na Companhia de Jesus. No entanto, De
Gesti antecipa-se em seis anos à Araucana de Alonso de Ercilla, tradicionalmente
considerada, talvez por estar escrita em espanhol, o primeiro poema épico das
Américas.
O De Beata Virgine dei Matre Maria, publicado en 1663, teve, sem dúvida,
como referência De Partu Virginis, do humanista napolitano Iacopo Sannazza-
ro, publicado em 1526 e que teve longa vida na França e sobretudo em Espa-
nha, onde foi traduzido por Gregorio Hernández de Velasco e publicado em
Toledo em 1554, em Salamanca em 1569, em Madrid em 1569, de novo em
Salamanca em 1580, etc.

270
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

De Partu Virginis, de 1526, tinha utilizado o modelo humanista de devoção


mariana, retornando o objeto de culto à ordem espiritual, depois do plágio
provençal e petrarquista que o tinha mundanizado. Se De Gesti fez de Anchieta
o primeiro épico das Américas, De Beata o consagra como o primeiro autor ma-
riano da Ordem dos jesuítas e das Américas e também como o mais memorá-
vel, tanto quanto o granadino Francisco Suárez.
O poema à Virgem, escrito nas areias de Iperoig, é uma das suas obras-pri-
mas, extraordinário esforço de mais de cinco mil versos, sendo o ápice da poe-
sia mariana em latim durante a época em que foi produzido. É um poema tar-
dio, por já haver sido o latim eclesiástico suplantado em definitivo pelas lín-
guas nacionais.
A devoção mariana de Anchieta exprime-se em todas as línguas em que es-
creve. Inscreve-se, mesmo, em sua relação com Santo Inácio, que, depois de sua
confissão no mosteiro de Montserrat, em 1522, durante a noite de 24 a 25 de
março, velou suas armas ante Nossa Senhora.
Enquanto a obra latina de Anchieta foi fruto de sua vocação mariana e de
seu labor político e ocupava, sem dúvida, lugar importante em sua prática do-
cente nos Colégios da Companhia reservada aos seletos, sua obra em língua
vulgar dirigiu-se fundamentalmente ao apostolado do homem comum, ao co-
tidiano da práxis evangelizadora.

 A língua vulgar
Sua obra lírica e dramática em língua vernácula encontra-se num único
manuscrito do século XVI, conhecido por ARSI 24, no qual se encontram
diversas caligrafias, entre elas a de Anchieta. Descuidadamente reunido, pois
ocorrem vários fragmentos repetidos, faltam-lhe a capa e a primeira página.
Sempre foi atribuído a Anchieta de forma incontroversa, inclusive pelo Pa-
dre Serafim Leite.
Também nesse assunto, Anchieta teve melhor sorte que a de seus contem-
porâneos, como bem nota Rodríguez Moñino no artigo antes citado:

271
N icolás Extremera Tapi as

La inmensa mayoría de los volúmenes que recogen obra de un autor con cierta unidad, son tarea
no autógrafa, sino de copistas o amigos que acarrean de acá y de allá lo que pueden, de papeles varios
donde hay atribuciones. Si fray Luis de León hizo, efectivamente, una colección de sus versos, no está
representada en ninguno de los códices que han llegado a nosotros: hasta los que parecen más puros,
con la carta a Portocarrero, están llenos de poesías apócrifas.
Se podrá pensar, y yo lo he hecho más de una vez, que la transmisión manuscrita suplía
esta escasez evidente de textos fácilmente asequibles. ¿Circularon de mano en mano, manus-
critas, las obras de nuestros poetas? Algunas dificultades se oponen a ello. En primer lugar, la
lentitud de las copias; en segundo, la carestía de un volumen, la cantidad de horas de trabajo
necesarias para obtener un mediano resultado. Había que contar, primero, con la existencia
de un original del cual obtener el traslado; apenas algún autor se preocupaba de disponerlo.”6

Já no seu tempo Anchieta foi chamado de Apóstolo do Brasil. A maneira


como realizou sua missão apostólica constitui um modelo sociopedagógico
que vamos aqui destacar, por sua exemplaridade, tanto pela capacidade de
adaptação de modelos cuja universalidade mais intensa se colocava pela primeira
vez à prova quanto por seu pragmatismo e clara convicção.
Dentre o total de 10.447 versos do ARSI 24, são:

4.399 em espanhol (aprox. 42,2%);


3.452 em tupi (aprox. 33%);
2.198 em português (aprox. 20,98%);
398 em latim (aprox. 3,82%).

Dentre 10.019 versos, aproximadamente 4.701 são líricos e em língua vul-


gar, o que representa 45% do manuscrito e perto de 21% da produção literá-
ria total de Anchieta.
Deles, aproximadamente:

6
Vid. Antonio Rodríguez Moñino. Op. cit. pp. 24-25

272
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

45,7%, ou seja, 2.150, são em espanhol;


24,2%, ou seja, 1.139, são em português;
21,5%, ou seja, 1.014, são em tupi;
8,4%, ou seja, 398, são em latim.

Já o gênero dramático, com aproximadamente 5.744 versos, representa


55% do ARSI 24 e perto de 26% de sua produção literária global.

Deles, aproximadamente:
4,5%, ou seja, 2.438, são em tupi;
3,2%, ou seja, 2.249, são em espanhol;
18,4%, ou seja, 1.057, são em português.

A formação de Anchieta pode vincular-se com a primeira onda de italia-


nismo na Península Ibérica, como diria Curtius, e tem – com um preceden-
te em Santillana – Juan de Mena, Nebrija e Encina na condição de princi-
pais representantes. Seu objetivo é enobrecer a língua castelhana tratando
de assegurar, em continuidade com o latim, a translatio studii em relação à
translatio imperii.
É claro que, neste labor titânico, a ação dos seletos, antes referidos, teve im-
portância fundamental. O método pedagógico dos jesuítas transplantado a
terras americanas antecipou-se em séculos ao método pedagógico lancasteria-
no, que tanto sucesso teve no Brasil nos primeiros anos da independência, e
contribuiu definitivamente para pôr fim à suposta “barbárie” americana, assim
como na formação de uma consciência dita “crioula”.

 A lírica de Anchieta
A íntima relação que guardam música e lírica nas composições de
Anchieta foi por mim estabelecida numa série de artigos publicados entre

273
N icolás Extremera Tapi as

os anos 1993 e 2000,7 embora já os seus primeiros biógrafos dessem clara


conta desse fato.
Tem-se querido ver certa hostilidade de Inácio de Loiola para com a mú-
sica desde a Fórmula até o ano de seu falecimento. Sabe-se que morreu contra-
riado com a prática das missas solenes cantadas que vinham celebrando os je-
suítas de Viena em sua igreja local. A música foi mesmo conceituada como
um ”notável impedimento” pelo fundador, num momento em que buscava
orientar a atividade da Ordem para o ministério ativo, “la ayuda de las almas”.
Isto tem fundamento no fato de que a todo momento a Ordem, para cum-
prir sua missão, deveria estar disposta a deslocar-se, a partir, e tal prática mu-
sical justificar-se-ia se não houvesse tal imperativo apostólico. Por isso, o
que molestava Inácio não era tanto a música, como a obrigatoriedade de se
cantar em comunidade as Horas do Ofício. Incomodava-o o emprego da músi-
ca com intenções recreativas. Uma vez posto em processo o seu fascínio, ela
afastava do conteúdo a atenção das almas, distraindo-as da palavra e da ora-
ção. Logo, nas Constituições proibiu o canto de ir além do que fosse consider-
do útil ao Ofício. Todavia, a música, como qualquer outro meio de atrair os
gentios subordinados à persuasão, tem um estatuto similar ao exercício da
retórica, cujo estudo, a partir dos modelos clássicos, Cícero e Quintiliano es-
pecialmente, se impôs ao ensino.
No caso do Brasil, ganhou a música, porém, status privilegiado devido às ca-
racterísticas culturais de seus naturais, e é possível que o primeiro Colégio da

7
Vid. Nicolás Extremera Tapia:
Un contrafactum de José de Anchieta: Mira el Malo con Dureza. In Estudos Universitários de Língua e
Literatura in: Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho. Tempo Brasileiro,Rio de
Janeiro, 1993.
Ecos del Cancionero y Romancero Peninsulares en el Brasil del Siglo XVI. in Medioevo y Literatura. Actas del
V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval. 4 Vols. Granada, Universidad, 1995.
A poesia ao Divino do Padre Anchieta. in Revista Brasileira. Academia Brasileira de Letras, Fase
VII-Julho-Agosto-Setembro de 1995 – Ano I – n.o 4.
A Lírica de Anchieta: Os contrafacta. in Actas do Congresso Internacional Anchieta em Coimbra. Colégio das
Artes da Universidade (1548-1998). 3 vols. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 2000. pp.
1073-1105.

274
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

Europa em que se ensinou música tenha sido o de Coimbra, desde 1548. Na


América, desde 1553 funcionou a missão de São Vicente como a primeira es-
cola de música das Américas. Tudo isso com a absoluta complacência do fun-
dador, que, sem dúvida, “habida cuenta de los lugares, las personas y las circunstancias”,
percebeu o enorme potencial que esta arte prometia para a evangelização.
Além disso, sendo o terceiro Geral um músico, e com o Modo para Enseñar, de
Diego de Ledesma, um autêntico best-seller em seu tempo, a música teve na
Ordem, na Europa, e com a ajuda de Tomás Luís de Victoria e Palestrina, um
sucesso nem sonhado por Santo Inácio.
Quando Anchieta chegou a São Vicente, em dezembro de 1553, não ape-
nas já contavam os jesuítas com alguns anos de experiências e reflexões relati-
vas ao uso da música no trabalho missionário, como se encontravam até mes-
mo envolvidos em grave e ampla discussão polêmica de natureza musical. O
pragmatismo fez Anchieta fomentar a poesia tradicional e popular ligada à
música, e desta utilizou, sobretudo, as expressões tradicionais populares da
cultura cristã européia que conhecia desde sua infância e juventude. As fon-
tes comprovam que muitos de seus textos foram cantados. Ouçamos estas
palavras de Pêro Rodrigues:

“Outras muitas obras compôs em diversos tempos, porque tinha para isso
muita graça e facilidade, em todas as quatro línguas que sabia, latina, portu-
guesa, espanhola e brasílica. Mudava cantigas profanas ao divino, e fazia
outras novas à honra de Deus e dos Santos, que se cantavam nas igrejas e pe-
las ruas e praças, todas mui devotas, com que a gente se edificava e movia a
temor e amor de Deus.”8

Declaração que pouco depois é corroborada pelo Padre Simão de Vas-


concelos, quando diz que ele

8
Vid. Pêro Rodrigues, A Vida do Pe. José de Anchieta, In: Primeiras Biografias de José de Anchieta, São Paulo,
Edições, Loyola, 1988. (L. 1, C. IX, p. 78-79).

275
N icolás Extremera Tapi as

“era destro em quatro línguas, portuguesa, castelhana, latina e brasílica,


em todas elas traduziu em romances pios, com muita graça e delicadeza,
as cantigas profanas, que andavam em uso, com fruto das almas; porque,
deixadas as lascivas, não se ouvia outra coisa senão cantigas ao divino,
convidados os entendimentos a isso, do suave metro de José.”9

Vemos assim que Anchieta foi tanto ou mais conhecido pela sua qualidade
de contrafator para o divino de cantigas profanas que pela sua atividade musi-
cal original, e são essas cantigas profanas, que com tanta “gracia y delicadeza” sa-
cralizava, o germe da poesia brasileira. Portanto, vou limitar-me, dentro da po-
esia lírica, à atividade contrafatora, talvez a mais elucidativa do que pretendo
referir, por permitir-nos observar a intencionalidade do autor. Para Anchieta,
tanto valia a poesia tradicional como a culta, a poesia marginal como as dan-
ças; tudo poderia ser utilizado para a sua missão apostólica. Ele compõe os
seus poemas à margem de qualquer pretensão artística. Tal coisa não significa,
evidentemente, que seus poemas não sejam apreciáveis sob uma perspectiva es-
tética, mas sim que sua beleza não provém de intencionalidade antecedente.
Em castelhano, existia uma maneira de enunciar as divinizações. Antiga-
mente os títulos rezavam “villancico (ou qualquer que fosse o metro do poeta)
vuelto a lo divino o contrahecho a lo divino”.
O termo contrafactum foi adotado por Wardropper, porque, em suas palavras:

en español hace falta un sustantivo sencillo, me ha parecido legítimo servirme en este libro
de un latinismo que constituye a la vez la base de los términos castellano y alemán: contra-
factum. Tiene la ventaja de ser una referencia internacional, fácilmente comprensible a to-
dos los que estudian la cultura europea; y elimina la necesidad de recurrir demasiado a las
voces divinización y espiritualización, que suenan mal, si no tanto en castellano, sí en otros
idiomas.10

9 Vid. Simão de Vasconcelos, Vida do Venerável Padre José de Anchieta (Prefácio de Serafim Leite), Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional, 1943. (L. I, C. V, n. 5, p. 34).
10
Vid. Bruce Wardropper, Historia de la poesía lírica a lo divino en la cristiandad occidental, Revista
de Occidente, (Madrid, 1958) 5-6.

276
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

A seguir, esse autor define o contrafactum como:

una obra literaria (a veces una novela o un drama, pero generalmente un poema lírico de cor-
ta extensión) cuyo sentido profano ha sido sustituido por otro sagrado. Se trata pues de la re-
fundición de un texto. A veces la refundición conserva del original el metro, las rimas, y aun
– siempre que no contradiga el propósito divinizador – el pensamiento.11

Já nas origens do Cristianismo, desde o momento em que o mistério divino


é concebido em termos humanos, foi inevitável que se utilizassem canções de
amor para fins religiosos. A linguagem do amor profano está completamente
confundida com a do amor religioso durante os séculos XV e XVI.
A devotio moderna e os contrafacta vieram preencher o vazio espiritual causado
pelo desmoronamento dos ideais medievais: vivia-se “desde Dios, pero cara al mun-
do” e, nesse clima, era natural que florescessem os contrafacta.
O auge dos contrafacta coincide na Península Ibérica com a Renascença do sé-
culo XVI e estende-se até ao primeiro quartel do século XVII. Todavia, o sécu-
lo XVI espanhol – como muito bem disse Dámaso Alonso – “no se volvió de espal-
das a la Edad Media”, e divinizam-se tanto cantares populares ou vulgares como po-
emas cultos. A poesia religiosa espanhola dos séculos XVI e XVII escrita em
metros tradicionais arrima-se em idéias também tradicionais, e é preciso voltar
à poesia dos séculos XIV e XV, tanto tradicional quanto cortesã, se quisermos
encontrar a origem da maior parte dos contrafacta posteriores.
Logicamente que esses poetas divinizadores, cheios de zelo missionário, se
apropriam das composições mais conhecidas de seu tempo, a fim de que seus
contrafacta resultassem de proveito para um público mais amplo.
Os tempos de Anchieta eram já de clara hegemonia espanhola, ocorrida de-
pois de Lepanto, em 1571. O Provincial do Brasil anterior a Anchieta, o padre
Ignacio de Tolosa, era espanhol. Em 1578, ano em que Anchieta ocupa o car-
go de Provincial do Brasil, sucede um fato relevante: a derrota de Alcácer-Qui-
bir. Em 1580, a batalha de Alcântara entroniza fisicamente Felipe II como rei

11
Vid. Bruce Wardropper, Historia de la poesía lírica a lo divino en la cristiandad occidental, op. cit., p. 6.

277
N icolás Extremera Tapi as

de Portugal. Resulta evidente o rumo que imediatamente tomaram as coisas. A


Companhia de Jesus já se achava no Brasil em processo de consolidação, com
um número considerável de padres e irmãos. Quando assumiu o cargo de Pro-
vincial, em 1577, aqui se encontravam quase 130 religiosos, distribuídos por
Olinda, Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Vitória, Rio de Janeiro e São Vicente,
além de coadjutores, e estavam estabelecidos os alicerces do que seria a estrutu-
ração sociopolítica da sociedade, de modo que ficassem garantidos os direitos
de todos, sobretudo o de ouvir a pregação do Evangelho.
O projeto político peninsular também perfilava-se como uma consolidação
da união que a Espanha vinha perseguindo desde a primeira metade do século
XIV. Um único e universal império com uma língua hegemônica: o espanhol;
uma única Fé com uma língua historicamente associada a ela: o latim. Duas lín-
guas: o latim e o espanhol, que tanto se queriam que até Anchieta compôs um
poema “bilíngüe”, que tanto se podia entender em latim como em espanhol. O
latim, língua universal da Cristandade; o espanhol, herdeiro do latim, língua uni-
versal do império cristão. Em cada lugar, respeitadas e fomentadas, ficavam as lín-
guas particulares de cada região do universo cristão. Desde 1580, com a “anexa-
ção” de Portugal por Felipe II, esse universo possível consolidava-se.
O projeto expansionista da língua espanhola teve sua origem, em 1536,
com o discurso de Carlos V em Roma, em presença do Papa Paulo III, quan-
do, com os protestos do embaixador da França, disse: “Entiéndame si quiere, y no
espere de mí otras palabras que de mi lengua española, la cual es tan noble que merece ser sabida y
entendida de toda la gente cristiana”, e isso na boca de um Imperador poliglota. A lín-
gua espanhola atingiu difusão européia, impondo-se inclusive na própria Itá-
lia, como registrou Juan de Valdés: “assí entre damas como entre caballeros se tiene por
gentileza y galanía saber hablar castellano”. As conquistas e descobertas ultramarinas
implantavam e estendiam a língua até convertê-la, como diz o historiador Luis
Cabrera de Córdoba, “general y conocida en todo lo que alumbra el sol, llevada por las ban-
deras españolas vencedoras con envidia de la griega y la latina, que no se extendieron tanto con
doce partes”.

278
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

O português não era, naquela altura, língua de cultura em parte alguma do


Oriente, porque as relações de Portugal com o Oriente não eram de coloniza-
ção, mas de comércio. O mesmo ocorria na Península, pois na corte portugue-
sa falava-se espanhol, e podem contar-se nos dedos de uma das mãos os poetas
portugueses que nessa época não escreveram parte ou a totalidade de sua obra
em espanhol. Alguns deles, inclusive, tal como Jorge de Montemor, chegaram
a hispanizar publicamente até o próprio nome em suas publicações. Em conse-
qüência disso, é congruente que, nesse momento da história do Brasil, Anchie-
ta tivesse considerado que os seletos deviam seguir a citada seqüência de apren-
dizagem: espanhol-latim, as duas línguas, para ele, de cultura.
Além do mais, a união das duas coroas peninsulares no Império de Felipe II,
desde 1580, induziu Anchieta não só a fomentar o espanhol no Brasil como
língua de comunicação da Cristandade, mas também a ensiná-lo nos seminá-
rios com o propósito de expandir a Ordem para o Sul do país, além do meridi-
ano de Tordesilhas. De fato, Leite afirma que

“sabia-se também que Nóbrega pensava em alargar as missões do Sul até ao


Paraguai. E, embora, ao menos parte, estivesse já senhoreado pelos castelha-
nos, e Castela não permitisse a ida de padres da Companhia para os seus do-
mínios da América, a Patente de nomeação de 9 de julho de 1553 dá a Nó-
brega autoridade não apenas sobre as terras de Portugal, mas também fora
delas – “mais além” –, isto é, constitui-o praticamente no primeiro Provin-
cial da América”.

Foi por certo Anchieta quem enviou, em 1586, os missionários que iriam
estabelecer os alicerces das reduções, e estes só atingiram Assunção em 1588.
Aqui há pouco eu disse que, em geral, os poetas divinizadores apropria-
vam-se das composições mais conhecidas do seu tempo. É, portanto, na lírica,
que a presença da língua espanhola é mais patente. Tal fato ocorrente na Euro-
pa é igualmente válido para o Brasil, em meio a um público de colonos, mas
não entre os índios brasileiros, que, naturalmente, desconheciam qualquer da-

279
N icolás Extremera Tapi as

quelas composições. Na época de Anchieta, os jesuítas contavam com dois pú-


blicos e três classes: a das aldeias da selva, a das vilas, a dos colégios. Para cada
uma delas Anchieta criou modelos em uma ou várias línguas.
A idéia de apostolado, cujo fito era levar a um correto desfecho a sua mis-
são, é predominante em seu processo de criação poética, e a ela Anchieta tudo
subordina. Não demonstra preferências formais ou estéticas. Como já disse,
tudo era aproveitável para a sua missão apostólica.
A idéia de utilidade, de zelo apostólico reveste-se, na poesia de Anchieta, de
características muito particulares, que freqüentemente até contradizem, na
generalidade dos contrafacta, o que vimos aqui descrevendo – e isso pela nature-
za peculiar do público, ou melhor, dos públicos a quem era dirigido o seu
apostolado.

 Os públicos
Os seus poemas podem ser reunidos em três grupos principais, dos quais
vou pinçar aqui alguns exemplos: os dirigidos aos índios e que não guardam
relação com o poema original; os dirigidos a um público de colonos e índios,
e que guardam relação com o poema original; e os dirigidos a um público co-
legial, podendo ser esses dois últimos contrafações completas ou quase com-
pletas.12 Em todos os casos, o elemento comum é a música, enquanto a letra
pode ou não sê-lo.
12
Aguirre descreve cinco modos de apropriação, que vão desde o simples aproveitamento da melodia
do poema profano à transcrição literal do poema profano, que cobra sentido religioso pelo simples
fato de ser citado num contexto piedoso. Entre um e outro extremos estão a utilização só do
estribilho ou de uma copla completa utilizados dentro de um contexto religioso; a utilização de um
verso ou mais, embora sempre muito poucos, de um poema profano como ponto de partida para a
criação de um contrafactum; a utilização de bastantes versos do poema original com algumas, poucas,
modificações que o convertem em religioso.
Estas são, de modo geral, as relações possíveis entre o poema original e a sua versão religiosa, as
quais se polarizam em dois extremos, segundo o poema resultante tenha nenhuma ou muita relação
com o original. Aguirre denomina as formas relacionadas com o primeiro caso Método formal (contrafacta
incompletos) e as relacionadas com o segundo Método conceptual (contrafacta completos). Vid. J. M.a Aguirre,
José de Valdivielso y la Poesía Religiosa Tradicional, Toledo, Diputación Provincial, 1965,p. 49-50.

280
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

Pertencem ao primeiro grupo (aqueles dirigidos aos índios, que não guar-
dam relação com o poema original e que são contrafações incompletas):
Cantiga por o Sen Ventura a Nosso Senhor (Tupã ci porãgete) e Cantiga por el sin Ventura
(yanderubete Iesu).
Ao segundo conjunto (no qual o poema original sofre diferentes tratamen-
tos segundo o público a que se dirigem) pertencem: Já furtarão ao moleiro o pelote
domingueiro e Polo Moleiro (Pitãgi morauçubara), baseados nas glosas ao tema:

Já furtaram ao Moleyro
Seu Pelote domingueiro

Ao terceiro grupamento (os poemas dirigidos a um público de colonos ou


de colegiais) pertencem os poemas Venid a suspirar, Mira Nero e Los que muertos ve-
neramos.

Primeiro grupo. A Cantiga por el sin Ventura yanderubete Iesu figura na página 25
do manuscrito. Compõe-se de quatro estrofes de sete versos de oito sílabas, ex-
ceto os versos 5 e 6, que são de pé-quebrado, com rima ABABcbB. Traz a indi-
cação “Cantiga por O sem ventura”, e é uma oração a Jesus.
Na página seguinte do manuscrito, Tupansy porangeté compõe-se de cinco es-
trofes, tem a mesma indicação Cantiga por El sin ventura, em espanhol, mas é ago-
ra uma oração a Maria.
Assim, é patente que os dois poemas não guardam relação temática entre si.
O mesmo ocorre quanto ao poema de que tomam a melodia, El sin ventura man-
cebo Leandro de amor herido, que não é senão uma versão pouco conhecida, em ro-
mance, do tema de Hero e Leandro que figura na Primera Parte del Jardín de Ama-
dores,13 livro raro de que se conservaram poucos exemplares.
13
Vid. Primera Parte del Jardín de Amadores (Recopilados por Juan de la Puente). Há edições em
Zaragoza e Barcelona (1611), Zaragoza (1637 e 1644) e Valência (1679). O poema, de cuja
existência parece suspeitar Carolina Michaëlis de Vasconcelos (“Estudos sobre o Romanceiro
Peninsular: Romances Velhos em Portugal”, in Cultura Española, Madrid, 1907-1909, (reimp. em
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934, n.o XXIX), não figura nas recopilações que oferecem as
obras monográficas citadas nas duas notas seguintes.

281
N icolás Extremera Tapi as

Esse romance, que recria o argumento de Hero e Leandro, de tão próspera


fortuna na literatura européia14 e inclusive na espanhola,15 não guarda qual-
quer relação com os poemas citados, nem literal, nem rítmica, nem sequer em
sua amplitude semiótica.16 Anchieta desprezou o tema tão conhecido e de fácil
transformação, servindo-se apenas da música desse poema, que talvez tenha
circulado pelos Colégios da Companhia – único elemento utilizável para um
público indígena, sem referências culturais européias.

Segundo grupo. Teófilo Braga, em sua Antologia Portuguesa, no capítulo “Escola


quinhentista – medida velha”, incluiu umas Trovas do moleiro, novamente feitas por
tres autores muito graves, em que se contam as canseiras e trabalhos, que passou com o seu queri-
do pelote. Encontram-se na Biblioteca Pública do Porto, num caderno de sete
páginas que não especifica data nem editor. Contém quatro glosas ao mote há
pouco citado:

Já furtaram ao Moleyro
Seu Pelote domingueiro,

obra de três autores, sendo a primeira glosa de autoria não mencionada e as se-
guintes de António Leitão, Luís Brochado e João de Couto, respectivamente.

Não vamos transcrever aqui esses impressos que narram a história de um


moleiro de quem roubam a sua roupa nova. Plena de recursos humorísticos em
geral ingênuos, deve ter circulado, manuscrita, impressa ou recitada, por Por-
tugal e Brasil, onde alcançou, com toda a certeza, grande popularidade. Não

14
Vid. Bárbara Fernández Taviel de Andrade, El Mito de Hero y Leandro en la Literatura Oral Europea,
Madri, Universidad Complutense, 1990, {Tesis Doctoral).
15
Vid. Francisca Moya del Baño, El Tema de Hero y Leandro en la Literatura Española, Múrcia, Universidad,
1966, {Tese de Licenciatura).
16
“Descubrir los tres motivos constituyentes de Hero y Leandro (Relación amorosa secreta, Paso del
agua, Amor más allá de la muerte) y las figuras que le son anejas (agua, fuego y noche) ha significado
descubrir la piedra angular de la leyenda”. Cfr. Bárbara Fernández Taviel de Andrade, op. cit., (III).

282
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

obstante, nem o assunto nem as suas diversas realizações mereceram jamais o


interesse da crítica, a não ser quando, ao utilizá-las para um contrafactum, An-
chieta as elevou à categoria de obra literária.
As Trovas do Moleiro motivam duas composições: aquela que começa por Pi-
tangi Morausubára em língua tupi, que vem precedida pela indicação “Polo Mo-
leiro”, e a que começa pelo mote:

já furtaram ao moleiro
o pelote domingueiro

em português.
Eis duas maneiras totalmente diversas de aproveitar uma canção. Dirigida a
um público iletrado de índios, a primeira composição aproveita, portanto, só a
melodia dessas trovas, sem dúvida conhecidíssimas, para em dez sétimas, com-
postas de quintilhas e estribilho, contar a história do Menino Jesus, sem que na
dita história se estabeleça nenhuma relação com o tema original.
A segunda composição, em português, dirigida sem dúvida a índios aldea-
dos, é, também, de caráter doutrinário, mas tem um componente simbólico. É
constituída por 45 estrofes sujeitas ao esquema ABBAAcc DEEDDcc, dividi-
da em dois episódios de 24 e 21 estâncias subordinados aos motes:

já furtaram ao moleiro
o pelote domingueiro

respectivamente.
“Apesar da sua simplicidade narrativa – assinala Mello Nóbrega num
interessante estudo17 – O Pelote Domingueiro é composição de grande força

17
Vid. Mello Nóbrega, Um Poema de Anchieta (“O Pelote Domingueiro”), 1977. (Ampliação da conferência
lida em 1975 na Sociedade Brasileira de Romanistas e publicada na revista Romanistas XII y XIII,
órgão desta instituição XII y XIII do mesmo ano. Dispomos de uma cópia datilografada graças à
amabilidade do professor Azevedo Filho). (p. 6).

283
N icolás Extremera Tapi as

simbólica: sob cores de alegoria aí se expõem verdades dogmáticas do cris-


tianismo – o pecado original e sua remissão” [...], e mais adiante:

“Do que há de trivial e faceto, na história do moleiro que perdeu seu mais
vistoso casaco, é, precisamente, que lhes vem a eficácia comunicativa e dou-
trinária: valendo-se de episódio jocoso, muito popularizado na poesia de
gosto picaresco, o Padre Anchieta extraiu-lhe elevados ensinamentos religi-
osos, tornando-os acessíveis à compreensão de indígenas re-
cém-convertidos e de povoadores incultos.”18

“Alegoria”, metáfora continuada, etc. são termos que se podem efetivamen-


te aplicar a esse poema em que Anchieta aproveita um motivo banal para com-
por algo de altíssimo valor simbólico. Sérgio Buarque de Holanda, na sua
Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, muitos anos antes, e sem conhecer a
origem das Trovas do Moleiro, tinha também penetrado e comentado o esquema
simbólico do poema. Veja-se o acerto com que o próprio Mello Nóbrega re-
sume as palavras de Sérgio:

“Tentada pela serpente, Eva é ‘quem derruba o moleiro Adão’ (...),


fazendo que o matreiro Satanás lhe ‘rape’ o domingueiro; passado
muito tempo, entretanto, virá o neto do moleiro a “desempenhar” (...)
o rico pelote, que deve representar o estado de graça em que Deus criou
o primeiro homem; Jesus, o neto de Adão, vem à luz entre as palhas de
um estábulo para remir a humanidade das conseqüências do pecado
original.”19

Terceiro grupo. Os poemas desta série podem ser polarizados em dois nú-
cleos principais: o primeiro dirige-se a um público de colonos e compõe-se de
contrafações completas ou quase completas. Um exemplo seria Venid a suspirar.
18
Vid. Mello Nóbrega, op. cit., p. 6.
19
Cfr: Mello Nóbrega, op. cit., p. 8

284
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

O modelo é um poema em espanhol, composto por três tercetos de rima ABB,


no qual o poeta associa a idéia de ‘pastor’ com o Bom Pastor. O poema origi-
nal20 diz assim:

Venid a suspirar al verde prado


comigo zagaleja y [vos] pastores
Pues muero sin morir de mal damores

Tu eres soled[ad] que esta comigo


saberes que es padescer novos dolores
Pues muero sin morir de mal damores

o contrafactum:

Venid a suspirar con Jesú amado,


los que queréis gozar de sus amores,
pues muere por dar vida a pecadores.

Tendido está en la cruz, corriendo sangre,


sus santas llagas hechas limpios baños,
con que se da remedio a nuestros daños.

Venid, que el buen pastor ya dio su vida,


con que libró de muerte su ganado,
y dale de beber a su costado.

20
O primeiro terceto e a música aparecem no Cancioneiro da Biblioteca Pública Hortensia de Elvas. Ambos os
tercetos e a música, com ligeiras diferenças, figuram no Cancioneiro Musical de Belém. São estas as únicas
fontes para a música e o texto.
Transcrevemos aqui a versão do Cancioneiro Musical de Belém (Estudo introdutório e transcrição de
Manuel Morais), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 65-66. Acompanha esta
edição uma interpretação do Cancioneiro pelo grupo Segréis de Lisboa.

285
N icolás Extremera Tapi as

O segundo núcleo dirige-se ao público colegial. Neste, o método de con-


trafação, talvez o mais comumente utilizado por Anchieta e também o mais
generalizado, consiste em tomar um verso ou o estribilho de um poema profa-
no e repeti-lo no contrafactum. Naturalmente, o verso ou estribilho será porta-
dor do conteúdo principal do poema original. É assim que ele constrói a sua
canção Mira el Malo, destinada a glosar a morte de Jesus, e cujas música e letra,
embora cultas, deviam de ser do conhecimento de todos os estudantes:

MIRA NERO
Mira el malo, con dureza,
a Jesús, cómo moría.
Lloraba la redondeza,
con dolor y gran tristeza...
¡Y él de nada se dolía!

O estribilho “y él de nada se dolía” foi tomado de empréstimo, juntamente com a


música, de uma das canções (romance) mais tristes das letras profanas (“Pero tañe
e canta la más triste canción que sepas”, pede Calisto a Sempronio em La Comedia de Ca-
listo y Melibea, entoando este, então, os quatro primeiros versos do romance):

Mira Nero, de Tarpeya


A Roma cómo se ardía:
Gritos dan niños y viejos,
y él de nada se dolía.

Dele serve-se Anchieta, para transferir à sua canção todo o clima de tristeza
de um dos romances mais populares da literatura peninsular.21

21
Para a fortuna deste poema em Espanha e América, no século XVI, vid: Nicolás Extremera y Luisa
Trias, “Un contrafactum de José de Anchieta: Mira el malo con dureza”, In: Estudos Universitários de Língua e
Literatura. Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1993, p.
611-624.

286
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

 Os modelos dramáticos
O teatro de Anchieta estende-se ao longo de 5.744 versos, quantidade im-
portante por representar 55% do ARSI 24, e em volta de 26% de sua produ-
ção literária.
Nesse gênero, inverte-se a freqüência de uso das línguas, ocupando agora o
primeiro lugar o tupi com 2.438 versos, 42,547%, seguido de perto pelo espa-
nhol com 2.249 versos, 39,249%; o português, com apenas 1.057 versos, fica
com 1,446%, em último lugar. E isso porque o teatro é por excelência o gênero
privilegiado de evangelização e o público é majoritariamente indígena.
O teatro, tanto o popular como o escolar, sempre foi para os jesuítas um
instrumento de educação. Se, no princípio, Anchieta chegou a dizer: “para esta
gente não há melhor pregação que a espada e a vara de ferro”22 – opinião ain-
da mais dura que a conclusão de Nóbrega no seu Diálogo sobre a Conversão do Gen-
tio –, pouco depois ele conseguiu converter o teatro em escola de catequese e
substituir os costumes dos índios pelos cristãos, adaptando-os aos valores da
fé através do diálogo dramático.
O teatro vicentino, as danças populares peninsulares e as cerimônias ances-
trais indígenas foram os seus modelos. Anchieta acrescenta, portanto, à tradi-
ção peninsular ibérica a novidade do cenário e a coreografia nativas. Usa das
trovas peninsulares contrafeitas, do recitativo da catequese, de temas e perso-
nagens da mitologia silvícola mesclados a imperadores romanos, e, mesmo, fi-
guras historicamente reais de chefes indígenas de tribos hostis.
Já assinalamos o caráter pragmático da música; a dança é considerada como
transição para o diálogo; mais ainda os machatins, que têm um substrato guer-
reiro ritual a que os índios estavam acostumados.
Mas tanto as músicas como as letras e os passos das danças de Anchieta
são diferentes; marcam uma diferença audiovisual com as das festas indíge-
nas, então consideradas anacrônicas, impróprias para o novo estado cristia-
nizado dos nativos. As personagens dos autos anchietanos partem da realida-

22
Vid. Anchieta, José de, Cartas. Correspondência Ativa e Passiva, São Paulo, Edições Loyola, 1984, p. 195.

287
N icolás Extremera Tapi as

de e dos costumes indígenas, mas transformam-se, em função da catequese,


em personagens sobrenaturais, anjos ou demônios, virtudes ou vícios, de
cujo poder dependia a felicidade ou intranqüilidade da aldeia, e a salvação ou
desgraça dos índios.

 O tupi
O uso exclusivo do tupi na obra de Anchieta determina o seu conteúdo, o
programa, a forma da instrução. No caso das obras que se podem incluir
no teatro em língua tupi, há três autos de catequese, a saber: Dia da Assunção,
Quando Levaram sua Imagem à Reritiba; Dos Mistérios do Rosário de Nossa Senhora e Na
Aldeia de Guaraparim, condicionados por toda uma inter-relação com novo
código.

Primeiro nível
A Selva
Desses autos, o mais próximo à selva é o Dia da Assunção, quando levaram sua
imagem à Reritiba, que consta de 103 versos. A citada aldeia foi fundada por
Anchieta provavelmente no dia 15 de agosto de 1570, com índios tupini-
quins. O auto deve ter sido representado nela a 15 de agosto de 1590.

Personagens
Coro de meninos que dançam machatins; um anjo; um diabo e seus compa-
nheiros. O auto está exclusivamente dirigido a um público de índios e tem por
finalidade o recebimento de uma imagem de Nossa Senhora no porto, no átrio
e na própria igreja.
O argumento desenvolve-se em três atos. No primeiro, um anjo e um diabo
enfrentam-se ao ser levada à vila uma imagem da Nossa Senhora. No segundo
ato, no átrio da igreja seis índios dançam machatins. O terceiro ato consiste
num discurso final do anjo. Concordamos com Paula Martins, para quem esta
representação provavelmente seria precedida de uma cantiga de 39 versos.

288
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

Tem-se, em primeira instância, dois elementos aliciadores de habitantes da


floresta – música e dança –, os mesmos registrados por Pero Vaz de Caminha
no trecho em que, ao som da gaita, os portugueses conseguem mesclar-se com
os índios numa dança.
Anchieta, além das aptidões e costumes dos índios, conhecia seus medos, e
deles também se utilizou para a catequese. Cardim informa que “este gentio
não tem conhecimento algum do seu Creador (...); tem grande medo do demô-
nio, ao qual chamam ‘Curupira’, ‘Taguaipaba’, ‘Macachera’, ‘Anhangá’, e é tan-
to o medo que lhe tem, que só imaginarem elle morrem, como aconteceu já
muitas vezes”.
Anchieta utilizou-se em seus autos do temor que os indígenas tinham das
pestes e epidemias, cujas causas obviamente desconheciam, julgando-as sobrena-
turais. Nossa Senhora ou o Santo Padroeiro protegiam a aldeia de pavores e des-
graças. Exerciam o papel e ocupavam o lugar dos magos e feiticeiros que conju-
ravam, com as suas cerimônias ou cantos, o demônio desconhecido. Porque,
para compreender o que significava “a devoção”, o índio devia assistir à luta en-
tre o Bem e o Mal, personificados num anjo que protegia e salvava e num demô-
nio que corrompia e matava. Graças ao poder de Nossa Senhora, a aldeia purifi-
cava-se de pecados e ficava protegida contra os temores e aflições. O demônio,
expulso e ridicularizado, era desprezado pelo público, que assim era levado a re-
jeitar as tentações. Essa luta representada contra o Mal, o diabo e os seus vícios
mostrava que só através da virtude e do arrependimento a salvação era possível.

Segundo nível
A Aldeia
A evolução desse gênero de espetáculo para uma forma mais dialogada en-
contra-se no auto representado em Guaraparim, aldeia de índios já mais cristi-
anizados, onde se entroniza o conceito de alma. O auto Na Aldeia de Guaraparim
deve ser situado num nível sensivelmente superior. Trata-se da peça mais lon-
ga, escrita exclusivamente em tupi, do caderno de Anchieta. Tem 806 versos e

289
N icolás Extremera Tapi as

endereçava-se exclusivamente aos índios da aldeia de Guaraparim. Segundo o


padre Armando Cardoso, tal aldeia, formada com índios tememinós, foi fun-
dada oficialmente por Anchieta em 1580. A igreja, dedicada a Santana, teria
sido acabada de construir em 1585, e este auto teria sido composto para sua
inauguração. Por sua parte, Paula Martins data a representação de dezembro
de 1589-94.
No desenvolvimento do argumento, os demônios atacam a alma de um ín-
dio que acaba de morrer. Esta defende-se, alegando o seu nome de batismo e
confirmação; mas, enquanto não se arrepender de seus pecados e não pedir mi-
sericórdia à Nossa Senhora, não aparece o anjo para salvá-la. A sua salvação é o
perdão através do arrependimento e da confissão.

Personagens:
Uma Alma, um Anjo e os Diabos Anhanguçu, Tatapiera/Arongatu, Cau-
guaçu/Caumondá, Moroupiara/Aboiuçu/Anngobi. O auto apresenta uma
personagem alegórica original para o teatro indígena – a Alma – e uma prová-
vel cena celestial – indícios de época avançada na catequese. Há crítica dos
maus costumes: a antropofagia, o beber cauim e seus derivados, além do ata-
que aos vetores dos vícios estabelecidos: as mulheres idosas e os pajés.
Fornece dados etnográficos, como o comportamento dos casais, a adoção
de muitos nomes à moda indígena e indicações geográficas, como a de aldeias
não conhecidas na documentação da época. Lingüisticamente, revela flexibili-
dade na linguagem, rapidez no diálogo e vocabulário relativamente mais rico
que o das peças tupis anteriores.”23

Terceiro nível
Um terceiro nível na evangelização das aldeias indígenas é indicado por pe-
ças bilíngües tupi-línguas peninsulares.

23
Ibidem. p. 603.

290
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

Em tupi-português existe uma única peça: Recebimento que Fizeram os Índios de


Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte. Trata-se de uma peça breve de 289
versos, dos quais 58% em tupi e 42% em português. Não se trata propriamen-
te de obra teatral, mas de uma adaptação das cerimônias indígenas de recepção
de um chefe principal de outra tribo. Não há diálogos e, sobretudo, não há
diálogo português-tupi. Tal coisa não sucede em Na Festa de São Lourenço, segun-
do auto de Anchieta quanto à extensão. Totaliza este 1.493 versos, e com-
põe-se de 873 versos em tupi (58,5%), 580 em espanhol (38,8%) e 40 em
português (2,7%), percentual esse tão escasso que a peça pode ser considerada
bilíngüe, praticamente tupi-espanhol.
É possível que se trate da obra que Nóbrega encomendou a Anchieta, pro-
vavelmente em 1561, quando os habitantes da Vila de Piratininga quiseram
representar um auto na noite de Natal. Anchieta compôs o auto intitulado A
Pregação Universal, em três línguas, das quais o tupi e o espanhol são protagonis-
tas, já que o português, além da parca presença, nem participa dos diálogos. A
obra foi provavelmente encenada no Natal desse mesmo ano. Teve depois
muitas representações posteriores. O segundo ato, com poucas modificações,
foi levado como peça independente com o título Na Festa de Natal. Compõe-se
de 496 versos, dos quais 451 estão escritos em tupi, 35 em português e 10 em
espanhol. Parece também um auto monolíngüe, idêntico, em grande parte, ao
primeiro ato de Na Festa de São Lourenço, ato esse a que se acrescenta uma dança
dialogada em três línguas. Foi muito representado e ficou célebre uma sua en-
cenação em 31 de dezembro de 1576, em São Vicente, pelo prodígio a ele atri-
buído da suspensão de uma tormenta.
Dirigido a um público de índios, constitui um método de exposição que
mostrava todas as fases do apostolado em terras brasílicas. Primeiro, censurava
os costumes mais arraigados e mais contrários ao propósito da evangelização:
beber cauim (v. 42 et seqq.), em primeiro lugar e muitas vezes reiterado (89 et
seqq., 258 et seqq., 320 et seqq., 378 et seqq.), por ser o que causava mais
dano moral; depois, dançar, adornar-se, tintar-se de vermelho, emplumar-se,
pintar as pernas, fumar, fazer de curandeiro (52-62), etc.

291
N icolás Extremera Tapi as

Arremetia a seguir, tão distante de nossas preocupações atuais com o politi-


camente correto, contra os poderes estabelecidos da tribo, aqueles que fomen-
tam e mantêm as tradições indígenas. Curiosamente são as mulheres idosas,
mais que os pajés, o objetivo dos ataques de Anchieta. Nesse ato, chega ele
mesmo a personificar as tradições indígenas consideradas negativas numa ve-
lha ébria, viúva de Piracae, que increpa Aimbirê. Também se refere cruelmente
a elas pela boca de Aimbirê (123-131) e de Guixará (405-415). Os pajés, em
sua qualidade de xamãs, têm igualmente suas tradições indígenas censuradas
(382-395).
Em seguida eram administrados os sacramentos, sob a condição da confis-
são sincera, através da qual se conseguia o perdão de Deus e a comunhão
(425-443).
Como é habitual, os santos derrotavam os demônios, e o anjo dirigia uma
arenga à platéia (571-654). Com uma cantiga de 16 versos, esse auto celebra a
derrota dos demônios.
Interessa-nos particularmente o diálogo espanhol-tupi do 3.o ato, que per-
sonifica a vitória do paganismo brasílico sobre o paganismo clássico (do verso
776 ao verso 1.104) num total de 328 versos, 22% da peça, nos quais o espa-
nhol ocupa 282 versos (86%) e o tupi 46 (14%). Embora a língua majoritária
na totalidade do auto seja o tupi (60%), com o espanhol (40%) como segun-
da língua, tal proporção se inverte nesse diálogo específico, e passa a ser de
86% em espanhol e 14% em tupi. Nele, é significativo o fato de serem todos
os personagens bilíngües, falando espanhol e tupi. Participam da cena Aimbi-
rê, Saravaia, dois demônios indígenas e dois imperadores romanos do século
III: Décio e Valeriano.
A estrutura dramática de luta entre anjos ou santos e demônios pagãos do
teatro indígena de Anchieta estende-se aqui, no tempo, até esses imperadores,
representantes do paganismo clássico. Cria-se um espaço atemporal, plano,
onde o paganismo e o cristianismo se confrontam simultaneamente em todas
as idades. Vemos que, ante um público de índios, a projeção atinge o paganis-
mo greco-romano, levando à cena dois personagens anacrônicos, Décio e Va-

292
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

leriano, que são vencidos pelos demônios indígenas que atuam sob as ordens
de personagens do cristianismo: um anjo e um santo. A confrontação entre
ambos os paganismos realiza-se num espaço não menos anacrônico: o clássico,
culpável por ser posterior ao cristianismo, e o indígena, inocente, que vence o
paganismo clássico por mandato cristão.
Tal projeção cultural ocorre também no plano lingüístico, de modo que os
personagens põem em cena a máxima expressão da formação dos seletos. Seu
bilingüismo demonstra a aprendizagem das línguas a que eram submetidos
não só os índios, capazes de falar uma língua de cultura como a espanhola, mas
também os meninos órfãos levados ao Brasil pela Companhia, aos quais era
ensinado o tupi.
O paganismo clássico está representado pelos imperadores romanos Décio
e Valeriano, que falam castelhano, embora conheçam também as línguas dos
indígenas: o tupi, em que Décio pronuncia suas últimas palavras, cinco versos
(1.076-1.080), e o carijó, que Valeriano utiliza em quatro versos, para con-
fundir Aimbirê.
O paganismo indígena está representado pelos demônios indígenas, que são
os personagens verdadeiramente bilíngües do diálogo, pois ambos falam em
castelhano durante todo o diálogo, salvo Aimbirê com vinte versos e Saravaia
com seis versos. Ambos apresentam-se falando em tupi, embora imediatamen-
te passem para o castelhano. Aimbirê explica-o assim:

Quiero hacerme castellano


Y usar de policía
Con Décio y Valeriano,
Porque el español ufano
Siempre guarda cortesía.
(865-869)

Finalmente, os imperadores são jogados ao fogo pelos demônios, comanda-


dos por Aimbirê, numa vingança na qual o sujeito é duplo: São Lourenço e

293
N icolás Extremera Tapi as

Deus. Os demônios indígenas, por mandato do Anjo e de São Lourenço, en-


viam para o inferno os imperadores. Ali, São Lourenço e Deus ordenam que
sejam queimados. Assim, pois, coincidem, na ação, o século XVI do Brasil
com o século III e ambos convergem ao inferno cristão, onde se pode contem-
plar a vingança de São Lourenço, que se desenrola numa história plana em que
as idades se confundem.
Nesse prolongamento da Antigüidade romano-pagã para a Espanha e para
a língua espanhola, consideradas ambas como expressão modelar da romanitas,
explica-se, em grande medida, o uso do espanhol por Anchieta. O âmbito cris-
tão impõe-se ao pagão, de maneira que os demônios da tradição cristã, com
nome em tupi e comandados pelo anjo, vencem os imperadores romanos, re-
presentantes do paganismo clássico, sendo, um deles, Décio, igualado ao pró-
prio Júpiter. Um demônio do paganismo tupi, já cristianizado “às avessas” por
Anchieta, submetido ao poder de um anjo e de São Lourenço, é suficiente para
vencer todo o passado pagão clássico representado por sua máxima divindade.
Na tríade básica das línguas, o espanhol substitui o latim, assim como o
tupi, o grego. A ausência de diálogos entre o tupi e o português na obra de
Anchieta explicita o interesse dos jesuítas de isolar, dos colonos portugueses,
os índios, quando lhes forneciam uma língua de cultura considerada, então, a
língua do império temporal da cristandade.

 As línguas peninsulares
1. o Nível
Nas Vilas
O uso exclusivo de uma, outra ou de ambas as línguas peninsulares si-
tua-nos já em outro mundo; é o mundo dos colonos. Ali habitam os filhos dos
colonos melhor estabelecidos e os índios seletos transculturados. Trata-se da
universidade dos colégios do Brasil.
O auto de catequese intitulado Auto de Santa Úrsula ou, como consta do Ca-
derno de Anchieta, Quando no Espírito Santo se Recebeu uma Relíquia das Onze Mil Vir-

294
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

gens, é um auto breve, escrito em português e dialogado, de 289 versos, dedica-


do a advocação da Vila de Vitória a São Maurício.

Personagens
Um Diabo, um Anjo, São Maurício, um companheiro de São Maurício,
São Vitor, Santa Úrsula e um personagem alegórico. Tem particular interesse
a Vila, que aqui fala português.
Diz o Padre Hélio A. Viotti que “Seus atores parecem ter sido estudan-
tes da escola dos Jesuítas e membros da Confraria de S. Maurício, sediada
na igreja de Santiago, em cujo adro se representou a parte principal do
auto”.24 (p. 99)
Em correlação com este auto, Anchieta compôs Na Vila de Vitória, seu auto
mais extenso, com um total de 1.674 versos, dos quais 65% estão em espa-
nhol e os 35% restantes em português. É também o de maior elaboração téc-
nica e de melhor concepção dramática. Foi pela primeira vez representado
no pátio da igreja de Santiago, na Vila Velha de Vitória do Espírito Santo,
entre 1584 e 1586.
Estava dirigido a um público de colonos, no meio do qual, porém, poderia
haver índios em fase de evangelização ou já convertidos ao cristianismo. Tanto
sua temática como seus personagens diferem sensivelmente dos que costumam
ser habituais na dramaturgia anchietana.
Junto a personagens comuns a toda sua obra, como são Satanás, Lúcifer,
São Maurício e Vital, companheiro de São Maurício, aparecem outros de na-
tureza alegórica, como a Vila de Vitória, a Ingratidão, o Governo, e, por fim,
seus companheiros – o Temor de Deus, o Amor de Deus e o Embaixador do
Paraguai.
O fito desse auto é restabelecer a relação da aldeia com seu padroeiro São
Maurício, cuja deterioração está a ponto de motivar o traslado de suas relíqui-
as a pedido do embaixador do Paraguai. Muito complexa e suscetível de vários
24
Vid. P. Joseph de Anchieta S.J. Teatro de Anchieta, Obras Completas 3. volume. Originais
acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo P. Armando Cardoso. op. cit. p. 99

295
N icolás Extremera Tapi as

tipos de leituras, sua finalidade última está centrada em estabelecer os princípi-


os e a justificação de uma sociedade teocrática.
Composto de três atos, com sete diálogos, uma oração, dois sermões e uma
procissão. Os diálogos acontecem nos atos 1.o (três diálogos) e 2.o (quatro
diálogos), constituindo o mais longo exemplo de diálogo entre o espanhol e o
português. A parte dialogada dessas duas línguas estende-se ao longo de 1.495
versos, o que representa 89% da peça.
Interessa-nos particularmente o ato 2.o. Nele, que se compõe de 1.256 ver-
sos, vale dizer, 75% de toda a peça, o espanhol é também a língua mais falada,
representando 61% do total. O português abrange uma cota de 39%. Ele
constitui o núcleo da obra, por ser onde se estabelecem as bases da articulação
jurídico-teológica do modelo jesuítico para a organização social no Brasil:
uma sociedade teocrática, capaz de superar as diferenças entre os povos do
Império Católico de Felipe II; uma unidade política fundamentada na unidade
religiosa sob o Papado de Roma e uma unidade lingüística com o espanhol
como língua do Império.
Participam sete personagens. Em espanhol falam: a Vila de Vitória, o Amor
de Deus, o Embaixador do Paraguai e Vital, o companheiro de São Maurício.
Expressam-se em português: o Governo e a Ingratidão. O Temor de Deus é o
único personagem bilíngüe do auto.
O ato divide-se em quatro diálogos em espanhol e português, uma oração
da Vila em espanhol e dois sermões, o primeiro bilíngüe e o segundo todo em
espanhol.
O 1.o Diálogo, entre a Vila de Vitória e o Governo, tem 388 versos
(399-787) e é particularmente significativo. Trata-se de um colóquio em tom
cortesão no qual o bom Governo, em português, acode às queixas da Vila, que
fala espanhol, submetidos ambos à monarquia cristã de Felipe II e à lei de Cris-
to. Dá uma série de conselhos e retira-se ante a chegada da Ingratidão.
Não só a nós, mas também ao Governo resulta chocante que a Vila se ex-
presse em espanhol. Por essa razão, interpela-a:

296
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

Governo-
Mas não me tenhais a mal
preguntar-vos, sem engano
(não vos virá disto dano):
pois que sois de Portugal,
como falais castelhano?
(521-525)

As razões que dá a Vila são a proposição do espanhol como língua de toda a


Cristandade.

Vitória-
Porque quiero dar su gloria
A Felipe, mi señor,
El cual siempre es vencedor,
Y por él habré victoria
De todo perseguidor

Yo soy suya, sin porfía,


Y él es mi rey de verdad,
A quien la suma bondad
Quiere dar la monarquía
De toda la cristiandad.

É por isso que não se contradizem, com a devida obediência ao Governo


português, o rei da Cristandade delega:

Quien quiere a su rey honrar,


Debe en todo obedecer
Al que rige en su lugar.

297
N icolás Extremera Tapi as

Esto sólo es acertar,


Todo al es ofender.
(526-556)

O desenvolvimento do auto expõe as características e fundamentos do bom


Governo: a lei natural, a lei divina, a lei humana.
O segundo diálogo tem 350 versos. Ocorre entre a Ingratidão, que fala
português, e o Embaixador do Paraguai, que se expressa em espanhol
(787-1137).
A Ingratidão é apresentada como uma velha horrível, mas culta, que expõe
seus receios contra as relíquias, o Governo e os escolares e mostra ao Embaixa-
dor seu ódio contra a Vila.
O Embaixador é “um castelhano do Rio da Prata”, autocomplacente, que
dá vivas a Castela pelo seu saber, cortesia, urbanidade e virtude (857 et seqq.).
O Embaixador louva as relíquias (824-828) e lamenta que estejam
numa aldeia ímpia e ingrata (820-840). A seguir, arremete contra os por-
tugueses, mas, quando reconhece que a Ingratidão é a causa de todo o mal,
põe-se imediatamente ao lado dos portugueses, a quem considera seus ir-
mãos e senhores.

Yo me hallo arrepentido,
Pues, como hombre atrevido,
Hablé mal de Portugal.

Porque, en fin, son mis hermanos


Mis señores portugueses,
Muy católicos cristianos,
A quien yo beso las manos
Y los pies muy muchas veces.
(972-979)

298
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

Ante a ameaça da Ingratidão, porém, anuncia um propósito

Embaixador-
¡Pues juro de trabajar,
de estas reliquias llevar
para el Río de la Plata!
(1.134-1.136)

que vai desencadear a reação de Vital, companheiro de São Maurício, no diá-


logo seguinte.

Vital-
¡Mirad, hermano vuestro celo!
Aunque lo tengo por bueno,
No penséis que es tan ajeno
De justicia el rey del cielo,
que rige el mundo sin freno.

Los hombres de vuestro Río


Merecen, por sus pecados,
Ser de Dios desamparados,
Y que no venga rocío
Del cielo por sus collados,
Porque siempre ensangrentados
Han vivido muchos años,
Haciendo tantos mil daños
A los cariyós cuitados,
Con robos, muertes, engaños.
(1.184-1.199)

Toda uma lição de humildade é dada ao pretensioso Embaixador, que não


se escusa de perguntar:

299
N icolás Extremera Tapi as

Embajador-
Pues, ¿nunca vendrá alguna hora
Para su visitación?

Vital-
Dios, de suma compasión,
En quien toda bondad mora,
Sabe el tiempo del perdón.
(1.204-1.208)

Finalmente, Vital expulsa a Ingratidão e pede ao Embaixador para ficar na


Vila, convite que este aceita (1.245-1.250).
O 4.o diálogo nos dá a chave do movimento dramático da obra, quando a
Vila confessa que sua gente havia desterrado dali o Temor, o Amor e o Governo.

Mi pueblo bien mereció


Ser de la culpa vencido,
Pues de sí os desterró.
(1.332-1.335)

Este é o pedido de auxílio que a Vila faz,

Mas agora os pido yo,


Sea por vos socorrido
(1.335-1.336)

através da intervenção de São Maurício,

pues Mauricio,
por singular beneficio
de nuestro Dios, le fue dado
(1.337-1.339)

300
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

O Temor e o Amor de Deus mostram à Vila a necessidade de contar sem-


pre com a ajuda de São Maurício (1.343 et seqq. 1.353 et seqq.).
O Governo, o Amor e o Temor de Deus repreendem a gente da aldeia,
suas falhas, e a Vila pede ao Temor e ao Amor que preguem para as pessoas
da aldeia (1.427-1.431).
O ato conclui-se com os sermões do Temor e do Amor de Deus.
Este auto se nos apresenta como exemplo do modelo social-teocrático de
Anchieta encenado numa vila governada por portugueses:
1.o propõe a autonomia política da Vila de Vitória sob o Governo por-
tuguês;
2.o propõe a unidade dos cristãos sob o governo justo das leis de Cristo;
3.o propõe a unidade lingüística da América sob o domínio do espanhol,
língua da monarquia e de toda a Cristandade.

Segundo Nível
A cidade-colégio. O auto em espanhol.
O âmbito lingüístico e cultural em que se inscreve o teatro de Anchieta é,
sem dúvida, dos mais amplos da história do gênero. Sem entrar no latim e fa-
lando só das línguas vulgares, Anchieta é capaz de vincular os idiomas indíge-
nas, os mais primitivos, que sequer eram conhecidos, com o espanhol, que para
ele ocupava o lugar de paradigma indisputado.
Tais são os dois extremos da atividade dramática de Anchieta: o mais pri-
mário, o mais elementar de seu apostolado, o do primeiro contato do índio com
o Deus dos jesuítas, está perfeitamente tipificado no Dia da Assunção, Quando
Levaram Sua Imagem a Reritiba, que é também a sua peça em tupi mais breve. No
outro extremo, o mais elaborado, o mais sutil de sua evangelização, o auto inti-
tulado Na Visitação de Santa Isabel. Escrito e representado em espanhol, apresenta
conteúdos elaborados, expressivos, doutrinários e místicos.
É a última peça que Anchieta escreveu, toda em castelhano, cerca de um mês
antes de sua morte.

301
N icolás Extremera Tapi as

É um auto diferente dos outros, mais próximo dos de Gil Vicente: o diálo-
go é mais longo, e a parte do espetáculo, menor. Foi criado para ser representa-
do antes da missa de inauguração da Santa Casa de Misericórdia, no dia 2 de
julho de 1595, em Vila Velha, antiga capital da Capitania do Espírito Santo.
Trata-se de um ato inaugural de uma obra com sufrágio em parte do Capitão
Miguel de Azeredo, que foi assistida por um público eminentemente cortesão.
O espetáculo que oferece é muito semelhante ao de uma peça similar da Penín-
sula Ibérica.
Escrito num único ato de 572 versos, parece ser melhor representado em
dois atos:
1.o O diálogo de Santa Isabel com um romeiro castelhano, até ao verso 416;
2.o Da aparição do Anjo, no verso 416, que marca a presença de Nossa Se-
nhora até o final, no verso 572.
Aqui já não aparece a dança, embora seja o canto o verdadeiro dinamizador
da peça, por meio de duas tonadilhas. O primeiro ato articula-se sobre ¿Quién
te visitó, Isabel, e o segundo sobre ¡Ave, estrella de la mar!

Primeiro Ato
No início, indica-se que ele se construiu “sobre este mote”:

¿Quién te visitó, Isabel,


que Dios en su vientre tiene?
Hazle fiesta muy solene,
Pues que viene Dios en él.

Depois, o ato de apresentação e recebimento dá-se entre o romeiro castelha-


no e Santa Isabel, e no verso 51 começa um elaboradíssimo intercâmbio de
perguntas e respostas-glosas com a finalidade de cantar as excelências de Ma-
ria. Tal exercício de devoção mariana é, com grande possibilidade, o mais lite-
rariamente sublime de toda a produção anchietana, e foi composto para ser

302
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

cantado a duas vozes sobre a melodia de uma das cantigas de germania mais
populares do século XVI peninsular.25 A cantiga vai do verso 51 até ao 110. A
25
Recolhida no Cancionero General de Hernando del Castillo a partir da sua 8.a edição (1557). Diz assim:
Quién te me enojó Ysabel Calareme un molleron luego quinta y enbocada
quién con lágrimas te tiene un luan Machiz corto y ancho s’esta de masse Miguel
que hago voto solene Numbergue al gargamellon que hago voto solene
que pueden doblar por él. las onze mil en el pancho que pueden doblar por el.
y mi famosa Rodancho y si viniere en gauilla
No lloreys colipoterra y mi follosa cruel no le estimo en vn tornes
ni me tengays por gayon que hago voto solene para mi no es marauilla
si no os le pongo so tierra que pueden doblar por el. esperar a dos ni tres
antes que de la oracion yra comigo altopies
vos entrujad el cayron Al Burdion inocente que es vn compañero fiel
no demos en el barzel y’os le dare de antubiada que hago voto solene
que hago voto solene desd’el oyente al soniente que pueden doblar por el.
que pueden doblar por el. una luenga turrionada
Canção esta que talvez seja necessário “traduzir”12
Quem foi que te molestou Levo um capacete que eu faço voto solene
(enfadou) Isabel um cutelo curto e largo que podem dobrar sinos por ele
quem com lágrimas te tem couraça no peito
E se vier em companhia
que eu faço voto solene cota de malha na barriga
não o temo em nada
que podem dobrar sinos por ele. e o meu famoso escudo
para mim não é maravilha
e a minha espada cruel
Não choreis rameira esperar dois ou três
que eu faço voto solene
nem me tenhais por rufião irá comigo Altopés
que podem dobrar sinos por ele.
caso contrário não o enterro é companheiro fiel
antes de dar a oração Ao rufião inocente faço voto solene
vós roubais o dinheiro eu darei a traição podem dobrar sinos por ele
não vamos ir para a cadeia desde a orelha até ao nariz
que eu faço voto solene uma longa facada
que podem dobrar sinos por ele. logo vários golpes de espada
Sobre esta canção de germania Anchieta compôs também o contrafactum: “El que muere en el pecado”
(p. 18 v do manuscrito), no qual narra a estória de Baltasar Fernandes, um adúltero desdenhoso que,
admoestado em reiteradas ocasiões por Anchieta, respondia sempre “Morra gato, morra farto”.
O infeliz acabou morrendo de uma flechada do marido traído. Esta canção, que está relacionada
com outras [números 446, 447, 448 da obra de Margit Frenk, Corpus de la Antigua Lírica Popular
Hispánica (siglos XV a XVII), Madrid, Castalia, 1987], foi estudada na sua relação com o teatro de
Anchieta por Joseph E. Gillet, “José de Anchieta, the first brazilian dramatist”, Hispanic Review XXI,
(1953) 155-160. Há uma versão para o divino, anônima, que começa:
Aquel gran Dios de Ysrael, oy cunple el voto solene
que del padre sale y viene que David hizo por él
Figura no Cancionero Sevillano da Biblioteca da Hispanic Society of America (Nueva York), ms. b
2486, f. 170 v. Cfr. M. Frenk Alatorre, El cancionero sevillano de la Hispanic Society (ca. 1568), NRFH 16,
(1962) 355-394.

303
N icolás Extremera Tapi as

partir daí, o diálogo encaminha-se a narrar, já sem canto, a vida de Nossa Se-
nhora, sua pureza, além dos mistérios da redenção e da encarnação, com refe-
rência a um profeta.
Depois, segue-se um fragmento de litania:

De madre de pecadores,
Abogada de culpados,
Refugio de atribulados,
Medicina de dolores,
Libertad de encarcelados,
(307-311)

Este plano de exaltação mariana conclui-se com Santa Isabel estatuindo ser
a Misericórdia o mais fino elemento dentre as virtudes de Maria (335). Mais
adiante, no verso 381, estabelece-se o vínculo entre esta virtude da Virgem e a
Casa da Misericórdia que estava sendo inaugurada (379-381).
O ato conclui com uma despedida do romeiro e a promessa de Santa Isabel
de “por los ruegos” de Maria conseguir de Jesus que:

Aumente esta Cofradía,


Hinchiendo de amor y fe
Toda la Capitanía.

Este verso, 415, conclui o primeiro ato.

Segundo Ato
Este é introduzido pela chamada de um Anjo (dez versos) ao romeiro caste-
lhano que partia, anunciando a vinda da Mãe de Jesus. Na continuação, o romei-
ro e os quatro companheiros, de joelhos, iniciam o segundo movimento musical
da peça com o “¡Ave, estrella de la mar”. Cada um deles faz uma variação de dez ver-
sos, dando lugar à alocução de Nossa Senhora, que começa no verso 481.

304
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

A Virgem Maria apresenta-se como Mãe de Deus, visitadora, tutora de pe-


cadores, remédio dos males, e oferece-nos o seu Filho para a salvação da huma-
nidade:

Él es la miel sustancial,
Del alma dulce comida.
Él es el dulce panal,
Que en mi vientre virginal
Se crió, por darnos vida.
(521-525)

Abençoa a aldeia e pede para ela a proteção de seu Filho. Os romeiros tam-
bém vão embora, cantando

¿Quién te visitó, Isabel,


que Dios en su vientre tiene?
Hazle fiesta muy solene,
Pues que viene Dios en él.

Seguem-se mais duas estrofes de mesma feição, com o que a obra se conclui.

Personagens
Participam oito, sendo a principal a Virgem Maria, em cujos lábios Anchie-
ta põe setenta versos. É a única vez em que Nossa Senhora participa como per-
sonagem no teatro de Anchieta, razão por que se pode fazer constar que a Vir-
gem de Anchieta fala em espanhol. O seguinte personagem em importância é
Santa Isabel, visitadora da Virgem Maria, que estabelece um diálogo teológi-
co-moral e por vezes político-religioso com o romeiro, assim como um víncu-
lo simbólico entre Nossa Senhora e a Casa da Misericórdia. O romeiro visita
Isabel, que visita a Virgem Maria, que visita a todos. O coro de quatro compa-

305
N icolás Extremera Tapi as

nheiros cantando “¡Ave, estrella de la mar” é um contraponto a “¿Quién te visitó, Isa-


bel” (51-110), pois ambos entoam as excelências de Nossa Senhora. Por fim, o
papel do anjo reduz-se a um mero anunciador da presença de Maria, com uma
breve alocução de dez versos. Isso comunica o elevado teor representativo do
auto.
A tríade do romeiro, Santa Isabel e Nossa Senhora é a mais sublime em to-
dos os autos de Anchieta. O argumento é o mais teologicamente elaborado. A
língua, a mais culta de seu século.
As obras literárias de Anchieta são, em seu conjunto, um exercício progres-
sivo de participação. Essa deriva em forma singular do modelo pedagógico je-
suítico, formando ideologicamente parte do acervo da Companhia desde os
primeiros tempos, quando seus co-fundadores se tinham conhecido na Uni-
versidade de Paris. O método parisiense de graduação em diversos níveis e a
participação ativa do aluno como exercício discente, o chamado modus parisien-
sis, transferiu-se com eles primeiro para Roma e depois para o mundo, especial-
mente desde que Santo Inácio ficara entusiasmado com a atividade docente
após o êxito de Messina, a partir de 1548.
Com freqüência cita-se a experiência de “el Juli” como precursora do
modelo das reduções jesuíticas do Paraguai. O autêntico diálogo com as
línguas indígenas produziu-se nos anos que estão entre a primeira escrita
de A Arte de Gramática de Anchieta, antes de 1556, e sua publicação, em
1595, mas realizou-se de forma completa quando este conseguiu utilizar
cada uma das línguas que conviviam na nova terra para a evangelização dos
seus habitantes.
O âmbito tridentino de persuasão-integração no universo cristão teve na Com-
panhia de Jesus um campo de expansão extraordinário. Um índio cativado pri-
meiro pela música, persuadido logo depois pela “palavra”, realizar-se-ia plena-
mente integrado no universo cristão das línguas da tríade tupi, espanhol e la-
tim – da flauta rude para o tupi, do tupi para o espanhol e, finalmente, para o
universalismo católico latino. Esse seria o curso ideal da conversão do nativo,
ora possível em sua amplitude histórica, sociocultural e lingüística, ora apenas

306
Anchieta: criador de modelos literários para a evangelização

mais individualmente, no tempo limitado de uma vida humana, embora expe-


riência restrita a muito poucos dos seletos.
A obra de Anchieta, em seu conjunto, é uma Summa Artis que estabelece e
compendia os elementos necessários para assegurar a transição da floresta à Je-
rusalém Celestial, da antropofagia (“porque é gente tão indômita e bestial que
toda sua felicidade tem posta em matar e comer carne humana”)26 à Eucaristia
(ingerir, por transfiguração, o Corpo divino).

26
Vid. Carta de Anchieta de finais de agosto de 1554 a Santo Inácio.

307
Gravura em metal (2005).
João Atanásio.
P o esia

Poemas
L ê d o Iv o

Balada do desespero Ocupante da


Cadeira 10
na Academia
Quem quiser ledo viver
Brasileira de
saiba-se desesperar. Letras.
D. João de Menezes

Se eu desespero é que ledo


quero viver na alegria
seja tarde ou seja cedo
seja de noite ou de dia.
Desespero mais houvera
eu não desesperaria.
Desesperar é querer
pois quem desespera espera
antes que se ponha o dia
de duas águas beber.
São águas da mesma fonte
paridas no mesmo monte:
a água clara da alegria

309
Lêdo Ivo

e a água salobra da mágoa


que, de amarga, sabe a lágrima.
Desespero mais houvera
e nele me encontraria
pois somente no exagero
de existir mais desespero
é que está minha alegria
como na fonte dormida
dorme uma água emudecida
à espera de ser bebida.
Desespero mais houvera
minha sede mataria
no poço do desespero
que guarda a minha alegria.
Quem espera desespera.
E mais desespero houvera
mais esperança haveria
de alcançar desesperado
a esperança e a alegria.
Quanto mais noite anoitece
mais claro se torna o dia.
Quanto mais rosa fenece
e mais floresce o jardim.
Que haja desespero em mim
e em todo o meu esperar
para que eu possa ser ledo
e viver sem dor ou medo
de saber desesperar.

310
Poemas

Homenagem a Garcilaso de La Vega


Quando aplico os meus olhos no passado
e conto os passos que me hão trazido
até aqui, me espanta que, perdido,
a maior mal podia ter chegado.

Não sei por que aqui me vi pousado


nem lembro do caminho percorrido.
Findo todo o cuidado antes vivido,
apenas sei de me ter acabado.

A quem saiba perder-me e acabar-me


toda a minha fortuna entregarei,
mudando o meu achar no meu perder.

Minha vontade pode a mim matar-me,


que ao seu remédio me submeterei,
cativo ao meu destino e ao seu querer.

O anjo
No dia suado dos homens
um anjo passou ao meu lado.
Caminhava como um sonâmbulo
e sua asa roçou o meu ombro.

Como todo anjo que se preza


ele passou sem dizer nada,
portador do grande mistério
por nenhum de nós desvendado.

311
Lêdo Ivo

Não pude esconder meu assombro


ante a celestial visão
de um anjo descido do céu
a caminhar na multidão.

Como todo anjo que se preza


ele passou sem dizer nada
perto de nós mas muito longe
de nossa vã iniqüidade.

Era um emissário de Deus?


E por que estava na cidade?
Pensei mesmo em interrogá-lo
a respeito da eternidade.

Como todo anjo que se preza


ele passou sem dizer nada
como um noctâmbulo que vara
a neblina da madrugada.

Ele passou com o seu silêncio,


tornando maior meu assombro.
E sua asa resplandecente
ficou cravada no meu ombro.

O passeio de canoa
Ainda hoje ouço o rumor dos remos na laguna.
Eles cortam as águas como se escavassem a terra
e separassem o amanhecer dos prodígios do dia.
A canoa desliza lentamente entre os mangues verdes e emaranhados
e a promessa do mar que fulge na foz deserta.

312
Poemas

Os remos espalham cicatrizes na água ferida


que se abre e se refaz. A vida não é só o rumor
ou o gotejar dos remos. É também o silêncio
aberto como um pálio sobre os corpos inclinados para a água
e as almas condenadas à incerteza e ao desamparo.

Há um tempo de falar e um tempo de calar; um tempo de dizer e um


[tempo de silenciar
após a aprendizagem do dia e a viagem na canoa
que sulca serenamente as águas da laguna e haverá de voltar
ao atracadouro onde a água e a terra
são verdades inseparáveis como a vida e a morte.

Soneto de Ottawa
E o tempo... o tempo o belo escarnecido,
por mais longo que seja sempre breve,
uma brancura plácida de neve
desgarrada do céu escurecido,

o tempo, que não cumpre o prometido


e jamais paga o soldo que nos deve
e finge estar parado quando a leve
folha estremece no jardim florido,

o tempo que dá voz às águas mudas


e o dia fugitivo torna em pura
noite de um vivo tempo não vivido,

e veste ao sol as árvores desnudas,


crava em nós sua flecha, e uma brancura
de neve cai do céu escurecido.

313
Lêdo Ivo

Uma laranja
Contemplo uma laranja que brilha como um sol na manhã de verão
e descubro que não sabemos contemplar.
A nossa pressa em tocar e possuir nos impede de contemplar o corpo
[bem-amado
especialmente os seios que reclamam o silêncio da adoração
antes de serem emurchecidos pelo deus dos corpos
mais cruel que o deus das almas.

Alegria do mundo: no pomar


uma laranjeira oferece o seu primeiro fruto maduro.
Agora a terra gira em torno de uma laranja que é um sol imóvel.
Fujo da claridade.
E busco a sombra das árvores e a sombra dos sonhos
onde sugarei um seio dourado.

314
P o esia

Sonetos ingleses
para Ruth
I ve s Gan d r a d a Si lva M a r t in s

Jurista brasileiro com


Um soneto de repente reconhecimento
internacional, é
professor emérito das
Teus olhos cor de musgo e de ferrugem,
universidades
Banhados pelos mares siderais, Mackenzie, Paulista e
Desventram brados, gritos, sons que rugem, da ECEME – Escola
de Comando do
Descortinando anseios canibais.
Estado Maior do
Exército.
Dilacerado o peito, que te encerra, Presidente do
Conselho da
Ancestralmente, sinto amor selvagem
Academia
Em outras dimensões, em outra terra, Internacional de
Sem mitos, sem fantasmas, sem forragem. Direito e Economia,
é membro das
Academias de Letras
Teus olhos são espadas toledanas Jurídicas, Brasileira e
Nos rasgos que defloram dor e sangue. Paulista,
Internacional de
Meu canto perde as nuvens soberanas,
Cultura Portuguesa
Afundado no pântano e no mangue. (Lisboa), Brasileira
de Direito
Tributário, Paulista
Amo-te muito, forte e tenazmente,
de Letras, dentre
Agora, para sempre... e de repente. outras.

315
Iv es Gandra da Si lva Marti ns

Eternamente Ruth
Há muito tempo que não resto assim,
Perto de tudo e longe de mim mesmo.
Caminho meu caminho sem ter fim,
E eu ando certo de que eu ando a esmo.

As sombras da paixão são sempre iguais,


O amor que eu te devoto sempre infindo.
Sinto em minha alma ardor de samurais,
Quando contemplo o teu sorriso lindo.

Descubro, no horizonte, meu deserto,


Desvendo, no cenário, teu encanto.
Revelo em minha estrada o tom desperto,
Que cobre meu destino com seu manto.

Há muito tempo que te quero e cismo,


Quando passeio no meu próprio abismo.

Em Natal
A timidez do sol, na tarde escura,
Com prenúncios de chuva mais adiante,
Desvenda pelo mar a compostura
De quem navega sonhos de um infante.

O verde é colorido em forma estranha.


Ora triste, ora alegre, ora sem vida.
Marulha no momento em que a façanha
É recobrir a areia dividida.

316
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th

O canto é aquele som próprio do mar,


Monótono e de pouca encenação,
Como os versos que escrevo a teu olhar,
Nada obstante pleno o coração.

Natal, por onde corre o Potengi,


Como, no peito, corre o amor por ti.

Rei
Nasci rei de um reinado sem rei,
Num castelo sem cor e sem ponte,
Meus comandos nos quadros da lei
Mergulharam na cálida fonte.

Meus soldados de escudo no braço,


Nunca espada tiveram na mão,
Os tambores batidos no espaço
Percutiram lembranças em vão.

A princesa do rei tão silente


No castelo vivia sem dor,
Mas o reino do rei diferente
Tinha a cor do castelo sem cor.

Nasci rei de um reinado sem rei,


Sem comando, sem povo e sem lei.

317
Iv es Gandra da Si lva Marti ns

Nosso amor
O descompasso fere o pastoreio,
O pastoreio pasce o verso inculto,
O verso inculto gera o teu receio
E o teu receio torna-se meu vulto.

E meu amor explode a cada passo,


A cada passo busco-te, desperta,
Desperta em ti a síndrome do espaço,
Do espaço aberto em tua vida certa.

O tempo cria formas ao relento


E ao relento descubro teu encanto,
O teu encanto eu sempre reinvento
E reinvento o timbre de meu canto.

Não há quem, no silêncio, não escute


O nosso amor sem fim, querida Ruth.

À noite
Quando te fito pela noite adentro,
Neste sossego que tua alma exalta,
Vejo um passado que não foi cruento
Vejo um porvir no qual amor não falta.

Resta o presente fruto do noturno,


Que salmodia a noite para ti,
Pescando estrelas por um mar soturno,
Cheio de sons que nunca iguais ouvi.

318
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th

A juventude faz-se mais distante,


Mas tu revelas sempre o mesmo encanto,
Como a balada nobre de um infante,
Descubro-te Senhora de meu canto.

Quando te fito à noite adormecida,


Percebo que tu és a minha vida.

Noite
No silêncio da noite e da distância,
Revejo, lasso, as cenas do passado,
Que recomponho, instância por instância,
Até formar o círculo quadrado.

O contraste que o tempo redescobre


Desfaz o sonho cálido d’antanho,
Redesenhando em seu perfil mais nobre,
Destaque entre as ovelhas do rebanho.

Repensar de que vale? Nada valho,


Nada sou, nada quero, nada posso.
O próprio verso que, no tempo, espalho
Não sei se continua sempre nosso.

O começo do fim que principia,


Na busca de um eterno novo dia.

319
Iv es Gandra da Si lva Marti ns

Olhar de infância
Penetrei pela enorme profundeza
Deste mar colorido de seus olhos.
Triste azul. Melancólica tristeza.
Penedo transformado sem escolhos.

Penetrei. Nadador por ter nadado.


Suicida solitário. O mar azul
Logo cobriu-me num estranho fado
Que, em vez do Norte, descobriu o Sul.

Azul dentro do azul. A maresia


Marítimos escombros desvendava
E os sonhos que eu fazia, desfazia,
Desfazendo um abismo à idéia escrava.

Afoguei-me no fundo da distância


De um olhar, que busquei por minha infância.

Esboço
Feneceram as rosas pelo azul.
O verde naufragou em plena idéia
E perdeu o comando para o Sul.
Soçobraram lembranças de odisséias.

A bordo do naufrágio estava o mar.


Debalde. A sonda cinza não mais era.
Restava o simbolismo cor de âmbar
De um Outono medido em primavera.

320
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th

Mimosas... depois foram sobre o espaço


Colorações de seda em sombra rubra.
Da funda emanação ficava um passo,
Que o negro faz que o branco sempre cubra.

Eis o esboço de um simples quadro estranho,


Onde pascem meus versos sem rebanho.

O cansaço do tempo
O cansaço do tempo já desfeito,
Transparece nas páginas d’antanho,
Um cansaço explosivo no seu leito,
Que do tempo distende seu tamanho.

A pétrea descoberta nada acresce,


Imutável caminho pelo espaço,
Girando sementeiras sem ter messe,
Num cântico atonal, embora escasso.

A estrada sempre morre na estalagem,


Serena, mesmo intensa a tempestade,
Há muito que não sopra mais aragem
Que o verso descobrir não sei quem há de.

O cansaço do tempo faz-se imenso


Que não sei mais pensar no que já penso.

321
Iv es Gandra da Si lva Marti ns

Eu
Eu sou aquele que te quer, na vida,
Com um querer sereno e sem limite,
Que permanece, mesmo se a descida
Os anos mostre para quem os fite.

Eu sou aquele que nasceu p’ra ti,


Sem perquirir a tua concordância,
Correndo o risco que sempre corri,
Nas minhas lutas desde a prisca infância.

Eu sou aquele que descobre estrelas


No teu olhar que o mundo não descora,
Acalentando sonhos, por retê-las,
Passado tempo, que se faz de agora.

Eu sou aquele que, no eterno espaço,


Junto de ti caminha, passo a passo.

Soneto para o meu soneto


O tempo tem me feito prisioneiro,
Da forma tão antiga e tão moderna,
Com que descanto o canto mensageiro,
Que, em poucas águas, tiro da cisterna.

Não sei mais versejar senão assim,


No soneto, vivendo meus limites,
Tão limitado como meu jardim,
Onde o sonho e a verdade restam quites.

322
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th

O tempo de seu fim chega bem perto,


Com erros, mas acertos, nesta vida,
Que não foi nem floresta nem deserto,
E que a morte fará ser esquecida.

O presente se perde, já sem hora,


E o passado e o futuro são agora.

Voando para São Paulo


Pelo céu, novamente cruzo os ares,
Cansado de voar toda a semana,
Mas cumpro o meu dever sem mais pesares,
Neste mundo do qual a vida emana.

Teu perfil me consola pela estrada,


Em que as nuvens variam todo o instante,
Caminho, passo a passo, para o Nada
De tudo o que forjei desde eu infante.

Sucessos e fracassos rememoro,


Na própria placidez de minha idade,
Já não me importa aquilo que hoje exploro,
Nem me causa o passado mais saudade.

O meu Deus, a família e teu amor


É o que ainda à minh’alma dá calor.

Nos céus da Bahia, 19/09/06.

323
Iv es Gandra da Si lva Marti ns

2007
Começo um ano novo. Recomeço.
A mesma luta intensa do passado.
A vida corre célere e não meço
O tempo que se escoa de meu lado.

Das mulheres amei apenas uma.


São da família as outras que eu amei.
Gloríolas nunca foram mais que espuma,
Operário que sou e não um rei.

A imensidão silente do Universo


Desfaz a vida humana, tão pequena,
Recolho-me no abrigo de meu verso
À falta de sentido nesta cena.

Recomeço, porém, junto dos meus


A mesma luta em busca de meu Deus.

324
So neto s i n g l e s e s p a r a Ru th

Fim dos fins


Um dia terá fim a minha vida.
O mundo terá fim também um dia.
Lição do intemporal, tão esquecida
Pelo passar do tempo que desfia.

Qualquer que seja a luta, acabará.


O brilho do Universo é tão finito!
Do sábio Salomão e de Sabá
Da mestra não restou senão o mito.

A eternidade eterna não desfaz


A pobreza do tempo que se escoa,
Em busca do silêncio em plena paz,
Que no negro do etéreo mal ressoa.

No fim dos fins, verei como meu passo


Percorreu, sem sentir, imenso espaço.

325
Microorganismo (2006).
João Atanásio.
P o esia

Poemas
S o nia S a l e s Sonia Sales nasceu no
Rio de Janeiro, mas é
paulistana há 23 anos.
Deus Com formação em
Psicologia e Arte e
Deus cursos de extenção
Leva-me ao cume da montanha em Londres, Munique
e Bruxelas, seus gêneros
Para que eu tenha uma visão mágica da natureza
literários são a poesia,
e volte com as mãos repletas de flores. o ensaio e a literatura
Mostra-me a Tua vontade infanto-juvenil. Tem
artigos publicados em
Onde a felicidade ainda existe.
jornais e revistas do
Brasil e do exterior e
Deus participa de várias
Entende minhas carências e o meu refúgio antologias em
Cruza a tênue linha da vida Portugal, Espanha,
EUA e Brasil. Tem
Em cada momento, a cada sol doze livros publicados,
acende a chama da virtude a maioria com versões
na alma que me deste em inglês e espanhol.
Seu último livro de
poemas, Os Dedos da
Deus Morte, recebeu o prêmio
Quero ouvir o Teu chamado para livros bilíngüe,
Comer a Tua ceia. Menotti del Picchia, da
União Brasileira de
E quando chegar a hora da luz Escritores.
e da verdade, ao som de violinos Pertence à Academia
dormirei a Teus pés. Carioca de Letras e ao
PEN Clube do Brasil.

327
S on ia Sales

Sonhos roubados
Cai a máscara.
Sem horizonte, a solidão
é o oráculo nesta cidade que
não mais conheço.
O sol esboroa-se refletido nas
vidraças empoeiradas.
Tremulam sombras esculpidas
na geometria do concreto.
Homens armados, carros blindados,
guarda-costas atentos.
Cristos em sangue.
O asfalto repleto de tradições
pactuando com a realidade virtual.
As imagens do computador
mostram corações de vidro
e a ferocidade de suas derrotas.
Criaturas sem face clamam por
liberdade.
Crianças reclamam
a devolução dos seus sonhos.

Hora da verdade
As tristezas se acumulam
as dívidas também.
A hora da verdade
Não é a do dia
Enquanto o sol
jorra pela janela.

328
Poemas

É de madrugada
Quando acordada me levanto
e a Besta está solta.
A ela me revelo.
Tanto é o medo do perjúrio
que estremeço enquanto outros
acham graça.
Indiferentes, não se alarmam
com as guerras alheias
com as nossas guerras

com os nossos mortos.


Burguesia apática
Zumbis a contar dólares.
Esquálidas crianças nos
olham através da tela.
Todos os dias, todas as noites
enquanto seus corpos apodrecem
nas estradas
olhos esbugalhados
a camarilha persegue o ouro
aviltando com a cobiça
o funeral da fome.

A lama escorre nas rasas


sepulturas. As carpideiras
não choram mais.
Não há mais sangue para os vampiros.
Mas eles persistem, escondendo
os dólares, enquanto
crianças famintas nos olham

329
S on ia Sales

através da tela
todos os dias, todas as noites.
E nós, poderosas criaturas, nos
refestelamos com iguarias
enquanto elas morrem
de fome.

Meditação
No lodo do rio
talhado com o sangue dos infiéis
naves contraditórias descem na correnteza
procurando certezas
que só Deus nos pode dar.

Como o lótus nascido no silêncio


o monge medita as transições da lua,
a transparência do vidro,
o silêncio,
o nada ser para alcançar o sempre.
Sentindo que sem esperança do eterno
não há o sentido da vida.
Sem o saber do infinito
não há para que uma alma.

330
P o esia

Poemas
I zac yl Gu i m ar ãe s F e r r e ir a

Entre as coisas Escritor, tradutor e


ensaísta. Diretor de
As coisas amanhecem claras. Centros de Estudos
Tão altamente iluminadas, Brasileiros e adido
cultural (84-99) nas
há nelas uma eternidade embaixadas do Brasil
possível e distante, mágica. no Uruguai, na
Costa Rica e na
Colômbia. Dentre
Desconhecem o medo, a fé, suas obras citam-se
um sentimento qualquer, breve Os Endereços, Memória
ou persistente, que as revele da Guerra, Uma
Cidade.
vivas, mortais, talvez rebeldes.

As coisas anoitecem frias.


Somem na pátina sombria
a profundeza e a superficie,
a aparente força infinita.

331
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra

E permanecem sempre sós


em sua natureza imóvel.
Entretanto seguem velozes
pela imensidão, como nós.

Assim desaparecem, mudas,


longínquas e alheias a tudo,
enquanto nossas almas, nuas,
combatem nas águas da dúvida.

Noturno
O instável firmamento
brilhava sobre nós,
perdidos em perguntas.

Tantas estrelas juntas


e nenhuma resposta
ou esclarecimento.

Numa língua estrangeira


talvez nos surpreendesse
a grande explicação.

No entanto aquela esteira


de luz, sem interesse,
corria na amplidão.

Talvez nos caiba a só


beleza do espetáculo,
o cativo fervor.

332
Poemas

E nada saiba ou sobre


à palavra do oráculo,
senão propor o amor.

Talvez. Mas nunca é finda


a busca original
de um claro entendimento.

Pesava, pesa ainda


a falta de um sinal
do instável firmamento.

Senhor
Há muito tempo venho te escrevendo.
De meus primeiros endereços,
desde o começo,
desde sempre eu te escrevi.
Desde os muitos casarios
– nas alturas, frente ao mar,
de minha terra solar
e de lugares sombrios –
de toda parte venho te escrevendo.

Mesmo sem dizer teu nome


ou se obscuro e cifrado
meu bilhete, meu recado,
sei que sabes que te escrevo.

333
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra

Gravei palavras nas pedras,


nas ondas e no papel
te celebrando.
Sabias, desde onde e desde quando,
se é quase um livro de horas
o que eu ando te escrevendo.

Entre os tropeços da crença


levantei meu questionário
e a contrapelo é que escrevo
esse espesso breviário.

Quando sozinho protesto


ou me queixo, se confuso
em teu silêncio te acuso,
te acusava, a quem, senão a ti
eu escrevia?

Tamanhas caligrafias,
tamanhas indagações,
já não sei se me perdi
na própria língua
ou se esqueci tua extensa geografia.

Com tanto infinito assunto,


como posso interromper
essa escritura?

334
Poemas

Sinais vitais
O belo está no belo que já vimos.
Afonso Felix de Sousa

Quando o sonho se esgarça e perde a mágica,


a consciência acorda e assume a máquina.

Se o que se viu não passa de lembrança


do já visto, persiste uma esperança
em recompor o perdido, o esquecido
entre fulgores claros repentinos.

Pois somos isso, nisso confiamos,


no retorno de quanto fomos quando

era o início de tudo em nós, ainda,


uma viagem sem previsto fim.

A beleza dos corpos, a beleza


das coisas, das manhãs todas inteiras,

com suas horas redondas e eternas


dizendo que eram nossas. E eram belas.

A consciência recompõe a mágica


se restam forças a mover a máquina,
para ver outra vez, para outra vez
viver à plena luz do que já fez.

335
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra

Então há um recomeço em outros termos:


tudo o que tínhamos volta ao que temos,
é o vivido refeito entre palavras,
maquinária de imagens, pensamentos,
na mágica de sonhos que é sem travas,
ao resgatar idades e momentos.

Se o tempo fosse só o que nos mede,


não haveria em nós qualquer remédio
contra os medos e o tédio, se a beleza
nublada se perdesse nessa esteira
de minutos, de sombras e de insônias.

Nenhum remédio, nada que reponha


a beleza que fica na memória.

Esse é um sinal vital maior que as horas


e é o que temos, um saber e um sabor
de natureza a nutrir o que somos.

Esse é um sinal vital à revelia


do tempo e que transforma a noite em dia:
recomposta no sonho e na vigília
a esplêndida memória imita a vida.

Belas, magia e máquina se espelham,


e assim, serenamente adormecemos.

336
Poemas

Promenade
1.
Ouço a grande porta de Kiev
e sem que a veja a imagino.
Vejo as naturezas mortas
nas paredes infindáveis
sem perder os seus aromas.
Cheiro as flores dos jardins
impressionistas e as colho
em ramalhetes de sons.
A clorofila infinita
de Cézanne uma vez mais,
essa Vênus, esse Apolo,
os burgueses de Calais
– meu museu imaginário
e o de Malraux me acompanham
quando fecho minhas pálpebras.
Todas as coisas despertas
nos sentidos da memória
são eternas e imutáveis.
Todas as coisas lembradas
eternizam meus minutos.

2.
La guitarra es um pozo
Con aire em vez de água.
Gerardo Diego

A guitarra de Gerardo Diego


não é azul como aquela de Wallace

337
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra

Stevens. Mas as duas soam soltas


nas telas de Picasso, Gris e Braque.
Ou soam afinadas em concertos
sobre as mesas floridas dos pintores.
Sem partitura ou mãos que as toquem, dormem.
Curvilínea madeira, uma guitarra
guarda em segredo poços de água e sons,
azuis ou verdes. Seus corpos de fêmeas
saltam das telas e dançam: gitanas
flamengas, carmens. São mulheres, todas,
mas no repouso dos traços, das cores,
as linhas se transformam em palavras.

3.
Aquém ou além da fotografia,
do filme, da cegueira apenas breve
de meu sono, há imagens que se movem
a despeito de mim ou dos passantes.
Partem barcos velozes nas regatas,
as bandeiras ventando pelos mastros
num cais suspenso sobre um mar intacto.

Um casario sobe pela encosta


e são cubos apenas, sem janelas.
A toalha na grama me convida
e cavalos galopam na batalha
em que os corpos inertes dos soldados
sangram nas baionetas já caladas.
Olhares de senhoras e varões
me pedem companhia entre as molduras

338
Poemas

como grades sem chaves, me despedem.


Na multidão, manchado de pincéis,
recebo a chuva antiga atravessando
uma Paris molhando meus sapatos.
Na solidão desse museu me perco
e me procuro, tendo só o olhar
que sou, que fui, que me prende e confunde,
na ocupação da realidade oculta
nas camadas secretas das idades.

4.
Se meus olhos falassem,
meus ouvidos ouvissem,
muito conversaríamos,
estes auto-retratos
e eu, os olhos nos olhos:
jovens, velhos Rembrandts,
um e outro Van Gogh,
Portinari e seus óculos.
Levanto meus espelhos
para que possam ver
como eram e são,
quando o tempo se encolhe
e podemos falar
sem pressa, sem temor
aos relógios e às noites
que se acumulam densas
sobre os dias distantes
que nos separam. Mas
agora estamos juntos,
eles e os rostos todos

339
Iza cy l Gu i marães Ferrei ra

que me espreitam nas salas,


pois é de auto-retratos
que de um jeito ou de outro
se ocupam nossas tintas,
nossa conversação
em preto e branco, muda.

5.
Entre o que vejo e penso,
entre a pintura feita
e a natureza vista
(ou inventada, outra,
ou nenhuma, mental),
entre olhar e lembrar,
a tela permanece
indiferente e livre.

Assim qualquer poema


disposto numa página,
qualquer mármore ou bronze
numa praça com pombos,
bancos, folhas que caem,
ou esse som no ouvido
sem visível orquestra,
voz humana a meu lado.

Entre uma obra entregue,


o tempo de fazer
e o de receber, há
uma noite, um silêncio.
Há uma espera de troca e entendimento, gozo.

340
Poemas

Espera sem relógios,


duração sem medida.

Nas salas dos museus


sussurros se acumulam,
personagens espiam,
objetos envelhecem.
Todo o mundo renasce
à aberta luz do dia,
no espaço entre o que vejo
e meço, penso e digo.

341
Microorganismo (2006).
João Atanásio.
P o esia

Poemas
Gu i lh er m e d e A l me id a

Líquido cântico Guilherme de


Almeida
Canta, canta para mim, chuva múltipla! Canta (1890-1969).
Foi o terceiro
os silêncios da secura que estorricou ocupante da
os canteiros dos jardins Cadeira 15
as bocas-de-lobo das esquinas da Academia
Brasileira de
o dorso corredio das sarjetas Letras. Um dos
as telhas-de-canal dos beirais grandes poetas
as calhas de zinco, as goteiras, as gárgulas brasileiros.

o fundo gretado das represas


enferrujando o eixo das turbinas.

Chuva benzedeira que a terra chupa com gana


perlenga de lavadeiras que a goela do esgoto engole
franja de todos os toldos
vidrilho para a sede das vidraças
e dos fios

343
G uil herme de A lmei da

olhos de óleo-lama-piche-graxa das poças olhando nuvens:


desce cai escorre entope empanturra empanzina
a caixa-de-água pançuda no roof dos arranha-céus!

Canta, canta por mim, chuva múltipla! Canta a cântaros!

344
Guardados da M em ó r ia

Mário de Alencar
Af r ân io Pe ix o t o

C hamara o Ministro J. J. Seabra para seu secretário a Mário de


Alencar, funcionário graduado do Ministério da Justiça. Foi
o ato mais acertado do seu governo, porque Seabra teve o desastre de
Afrânio Peixoto
(1876-1947).
Terceiro
ocupante da
alienar as glórias que seriam suas, do Oswaldo e do Passos, por ele Cadeira 7 da
nomeados e dependentes do seu ministério. Academia
Brasileira de
Mário tinha tato, escrevia bem e em tudo punha ordem e medida. Letras.
Apresentado a ele, fiquei logo correndo com ele em amizade, in-
formando-o amiúde da categoria das pessoas da Bahia que escreviam
a Seabra e a quem o ministro respondia pelo seu secretário.
As cartas, assim, eram tão adequadas e justas que Seabra pôs-se a
bem apreciar o admirável funcionário que tinha a seu serviço.
A Academia, que acabara por eleger Mário de Alencar, pois Ma-
chado de Assis tinha por ele grande admiração pessoal, deveu a Má-
rio a sua instalação no Silogeu.
Era, então, um prédio começado faustosamente e inacabado,
creio que destinado a uma maternidade. Pôde-se colocar a mater-
nidade em Laranjeiras, num prédio adquirido, e Mário sugeriu a
Seabra terminar parcimoniosamente o prédio começado à Praia

345
Afrâ ni o Pei xo to

da Lapa, destinando-o a várias associações sem pouso. Foram contempla-


dos o Instituto Histórico, o Instituto dos Advogados, a Academia Nacio-
nal de Medicina e a Academia Brasileira; desta, ninguém se lembraria se
Mário, para ela, não tivesse feito a combinação em que entravam as outras.
Por esse grande serviço, Murat propôs a Seabra que se inaugurasse na Aca-
demia o retrato. Naquela efígie eu vejo todas as semanas a de Mário de
Alencar. Sic vos non vobis.
Mário, na Academia, acolitou Machado de Assis, seu mestre e seu amigo, e
dele recebeu o legado de velar pela filha única que tivera e na velhice, quando o
amor fica mais zeloso e veemente.
O de Machado à Academia chegou até ao sacrifício de adotar a horrível or-
tografia fonética que o antilusismo de Medeiros e Albuquerque lhe impusera.
O pobre Machado estava inconsolável: quando da revisão de Esaú e Jacó, verifi-
cou que teria de escrever esse título à moda extravagante: Ezaú e Jacó.
Contava-me Mário, desanimado, por ver ali o maior sacrifício que um velho
homem de letras pode fazer à inconseqüência jovem de um Cenáculo de letra-
dos que sabiam tudo, menos a língua.
Sugeri-lhe, então, que os nomes próprios seriam exceção, e Machado não
trairia a Companhia escrevendo como todo o mundo.
Mário, exultante, partiu com o alvitre e disse-me o que Machado lhe disse-
ra: tinha vontade de dançar tamanha a satisfação. Bastava que no texto de seus
romances se visse forçado à grafia fonética da Academia. Só senti a sua satisfa-
ção quando, anos mais tade, sem poder invocar que era nome próprio, tive de
ecrever Esphinge sem ph e com j.
Já contei como o aplauso de Machado me valera a dedicação de Mário para
a Academia. Por mim fez ele imprimir cartões com o meu (sic) e neles sua letri-
nha fina pedia votos, como mandava o regulamento. A própria carta de candi-
datura ele a escreveu, só mais tarde substituída por outra de meu punho. Sua
cabala foi tão bem feita que os votos que lograram meus contendores foram
distraídos por ele e dispensáveis a meu triunfo.

346
M á r i o de A l e n c a r

Quando cheguei ao Rio, eleito, e pensei em pedir-lhe que me recebesse, já


achei por ele apalavrado Araripe Júnior, porque, dizia ele, tendo benevolamen-
te criticado a Rosa Mística, e sido por mim prefaciado o seu livro Miss Kate, teria a
bondade e o entusiasmo de me receber.
Mário era assim como as lâmpadas votivas que queimam perenemente nos
altares. No seu altar havia a amizade. Havia a amizade aos seus, filho, irmão,
esposo e pai dedicadíssimo, e também exemplar amigo. Desses amigos que vão
à cegueira fazendo ouro tudo o que tocam.
Conheci ainda a mãe dele, D. Georgina de Alencar, a quem visitei na cháca-
ra do Cochrane, na Tijuca, solar que tivera o seu faustuoso parque riscado e
plantado por Thomaz Cochrane, o fundador da homeopatia no Brasil, irmão
do Almirante Lord Cochrane, Marquês do Maranhão e herói da Independên-
cia, avô de Mário de Alencar.
Propriedade e parque haviam caído em decadência. D. Georgina mos-
trou-me o banco em que estivera sentado Castro Alves, que viera à Tijuca tra-
zer a José de Alencar cartas de apresentação de Fernandes da Cunha.
Cícero apresentando Horácio, como dissera ele a seu amigo Machado de
Assis, a quem recambiara o jovem poeta para a glória da publicidade.
– Ele estave sentado aqui – dizia-me a mãe de Mário de Alencar –, e aqui
José, meu marido. Tive a visão concreta de que ali estiveram momento juntos
o maior romancista e o maior poeta brasileiros.
Um velho escravo remanescente da fazenda deu-me a noção da glória de seu
senhor:
– De quem foi você escravo?
– De meu senhor José de Alencar.
– Quem foi este homem?
– Pois não sabe o Sr.? Foi um homem tão grande que o governo mandou fa-
zê-lo de ferro e lá está no Catete.
Era a glória. Ela representa mais do que cem volumes aplaudidos e lidos
pelo Brasil inteiro. Mas um movimento de humanidade com que um dos pri-
meiros atos do Ministro José de Alencar, em 78, mandara abolir o infame mer-

347
Afrâ ni o Pei xo to

cado de carne humana, negros vendidos e escolhidos, ali no Valongo. Concor-


dei com o velho escravo na grandeza de José de Alencar.
A quinta do Cochrane tivera fama até na Inglaterra. Uma parente inglesa,
deles, viera ao Brasil e lá no abandono e na penúria perguntava:
– Where is the park?
Recentemente adquirida pelo milionário E. G. Fontes, a quinta do Cochra-
ne estará em breve restituída a seu esplendor.
Foi aí que situei uma das cenas que mais me agradam de meu livro As Razões
do Coração, onde o tio da heroína esconde na serra a sua felicidade.
Essa Tijuca que Alencar chamou um degrau para o céu continuou a ser o en-
canto do filho, que distribuía entre a Tijuca e Teresópolis as suas férias de verão.
Na serra travei conhecimento com os “Sonhos de Ouro”, a planta silvestre
de florinhas amarelas, cujo nome lhe dera Alencar, pondo como título a um de
seus romances.
Também na Tijuca levo personagem meu a pé, à Cascatinha, ao Hotel Whi-
te, remansos de frescura e vegetação descritos em Uma Mulher Como as Outras.
Tenho hoje a sensação de que o automóvel, correndo vertiginosamente da
Muda à Gávea, do Niemeyer a Conde de Bonfim, permite apenas ao viajante
menos ver a Tijuca do que a Tijuca ver esses monstros de aço que roncam quei-
mando gasolina. É a Tijuca quem os vê. Eles não podem ver a Tijuca.
Com efeito, essa montanha maravilhosa, coberta com um manto verde de
fada, ao som de águas cantantes e de névoas esgarçadas ao sol, revela o cuidado
de uma obra de arte, tanto da natureza quanto do homem.
A mata da Tijuca é uma floresta civilizada; contém espécies raras e foi plan-
tada árvore a árvore pelo Barão d’Escragnolle, parente dos Taunay, a mando de
sua majestade.
Na Cascatinha, em Paulo e Virginia, por toda a parte continuo a ouvir
Alencar e Castro Alves, embora a fantasia destes chegue ao inverossímil:

“E da Tijuca na nitente espuma


Banham-se as filhas do país do sul.”

348
M á r i o de A l e n c a r

Esse país do sul é apenas o Rio para o nortista Castro Alves.


Inverossímil, mas nunca pude ver a Cascatinha sem imaginar encobertas
pelo íris que faz o sol na neblina que se levanta da cachoeira essas filhas do sul
que aí vira Castro Alves. Convém que não seja o mesmo a olhos estranhos; as-
sim é que, na Gruta Paulo e Virginia, próximo, em um bambu, mão peregrina
escrevera: Bella naturaleza e nada más.
Uma vez, na Tijuca, Mário de Alencar levou-me à chácara do Werneck,
onde conheci o famoso Capistrano de Abreu, que nos permitiu a Mário e a
mim visitá-lo no cômodo ou porão da casa onde habitavam, sem licença de aí
penetrar a família do hóspede que o abrigava.
Tive então uma visão selvagem contrastante com a realidade ambiente. Um
homem alto, gordo, moreno, despido, balançando-se numa rede em casa civili-
zada, de família, num subúrbio elegante do Rio de Janeiro. Era o historiador
em natura; não se levantou para nos acolher. Fui apresentado a Capistrano
sem indumentária, e ele sem vexame de sua toilette. Gostava tanto do Mário
que, para vê-lo, vencia a repugnância de se mostrar assim a estranho. E ficou
correndo comigo em amizade, só porque era amigo do seu amigo.
Medeiros e Albuquerque é, nas suas Memórias, injusto com Mário de Alen-
car, que se opunha às vezes vitoriosamente às inconseqüências e leviandades
jornalísticas que numa casa de tradição quisera Medeiros introduzir. Vêm dele
todas as inconseqüências ortográficas em que estamos enleados. Não que estu-
dos filosóficos inspirassem a Medeiros preocupações gráficas; não. Fora edu-
cado na meninice em Portugal e, como é natural, ganhara, pela ojeriza aos mes-
tres, animosidade aos seus compatriotas. Era contra Portugal. Quisera fazer,
portanto, se não a língua brasileira, um cisma dialetal. E começava pela orto-
grafia.
Mário era a tradição. Sabia grego para ler os clássicos, sabia latim para sentir
os poetas, inglês para ler e escrever, francês e italiano e outras humanidades e a
sua língua portuguesa, de Manuel Bernardes a Machado de Assis, admiravel-
mente.

349
Afrâ ni o Pei xo to

Deviam, por conseqüência, os dois representarem tendências opostas e ad-


versárias.
Mário foi meu mestre de estética literária. Ao transbordamento enfático da
mocidade opôs a simplicidade sincera da medida. Quisera ele uma expressão
para tudo e só essa expressão. Seu mestre que me impôs era Flaubert, e o me-
lhor Flaubert era para ele o da correspondência.
Costumava citar frases de Stevenson, o Flaubert inglês, dizia ele, o qual
afirmava:
– Quem tiver a arte de omitir fará do número do Times uma Ilíada.
A estátua está dentro do bloco de mámore. É só tirar as demasias que é a
forma. Cada diamante bruto tem incluído um brilhante lapidado que é uma
jóia. Da ganga do pensamento, com a arte, pode-se tirar uma idéia irredutível,
expressão exata do pensamento ou da emoção.
A sua obra é, por isso, oposta, à exuberância genial paterna.
Mário será um José de Alencar da velhice ou educado no aticismo reticente
de Machado de Assis.
Daí o pouco que escreveu. Mas em que não há uma palavra, uma frase que
se possam suprimir sem mutilar a página ou o livro. Mário é a sinceridade. A
sua sinceridade contida, medida, definitiva. Nenhum excesso nele. Nenhuma
exuberância. Por isso, por vezes, sua arte confina com a dessas flores que se
chamam esterilizadas. Perderam o viço, mas não mudarão. Jean Moreas dissera
de Flaubert:
– A perfeição da água destilada.
Flaubert deixou o modelo dessa arte em Coeur Simple, que era, para Mário, a
sua obra-prima.
Não penso assim. A vida tem também sinceramente entusiasmos e exube-
râncias. Mas eu, que era só entusiasmo e exuberância, aprendi com o meu ami-
go Mário de Alencar a ter medida, evitar ênfase, ser simples e, mesmo exube-
rante e entusiasta, procurar aí, apenas, o reflexo da sinceridade.
Não conheço no Brasil de meu tempo ninguém tão instruído na arte e na es-
tética literária como Mário de Alencar. Ele tinha para isso várias literaturas a

350
M á r i o de A l e n c a r

seu alcance. Tivera o pai, o maior dos nossos escritores, e um mestre, o mais
medido e definitivo homem de letras do Brasil; dele viria, compensados anta-
gonismos, Mário de Alencar, que nem todos poderão admirar, mas que é cer-
tamente mestre de literatura, como não tivemos, como têm os países de grande
cultura nos raros homens de letras que fazem da arte literária um sacerdócio
que deve privar-se de parcerias equívocas.
Horácio dissera para ele: Odi profanum vulgus et arceo.
A Academia deu-lhe grandes desgostos; ninguém teve mais influência do
que ele ao tempo de Machado e ainda depois; a razão é que, antes do prestígio
que lhe deu a fortuna Alves, ela só tinha por si a dedicação de raros acadêmicos
e ele era talvez esse plural.
Só Bilac iniciara para ela, graciosomente, um arquivo. Tudo mais era Mário.
Dera-lhe casa, sendo Ministro Seabra; depois, dera-lhe os acadêmicos que vie-
ram vindo; já contei como eu mesmo fui beneficiado por essa bondade. Mário
levou para lá também seus médicos, Couto e Austregésilo devem-lhe isso.
Aos seus amigos permitia algumas iniciativas, assim é que João Ribeiro nos
doou Alberto Faria, provinciano de Campinas que tantas irritações viria cau-
sar, desunindo a Companhia desde aí.
A eleição de Lauro Müller, à qual não pôde deixar de dar seu consentimen-
to, porque senão Augusto de Alencar, seu irmão e ministro plenipotenciário,
seria vítima, custou-lhe a inimizade de Veríssimo, que, para vingar-se, escreveu
um livro de literatura nacional onde o eixo das letras nacionais deixou de pas-
sar por José de Alencar para passar por Machado de Assis.
Custou-lhe a animosidade, até depois da morte, de Medeiros e Albuquerque,
porque lhe contrariara as fantasias ortográficas, impostas à Academia.
Custou-lhe a ruptura com João Ribeiro, pelo amor que pôs na candidatura
de Jackson de Figueiredo.
Posso, porém, depor que ninguém, antes ou depois de Machado, quis mais
bem à Academia, desinteressadamente. Era como mãe extremosa que rompia
em guerra com quem lhe magoasse a filha. Daí o humor perene de sogra... aca-
dêmica.

351
Afrâ ni o Pei xo to

Fiz timbre enquanto viveu em não ter na Companhia outro voto ou opi-
nião, senão a sua. Também por duas vezes, em assuntos apaixonados, consegui
dele abandonar paixões e convicções, por meu juízo. Uma vez no caso Oliveira
Lima, em que toda a Companhia estava com ele, e que só não foi excluído da
Academia porque consegui fazer adiar essa exclusão para a sessão seguinte,
vindo com o tempo o juízo. A outra foi na venda ou cessão da Livraria Alves
aos devidos sucessores do livreiro, os seus empregados, quando indivíduos es-
tranhos queriam apossar-se desse bem. Fiz valer o ponto de vista confidencial
de Francisco Alves, ratificado pela proposta honesta de Paulo de Azevedo, a
mais vantajosa e idônea que recebeu a Academia.
Devo-lhe, também, o ter sido eleito presidente da Companhia, e à minha
revelia, como, doze anos antes, fora também por ele eleito, à revelia minha,
acadêmico.
Conspirávamos contra as presidências demoradas que tiranizaram a Aca-
demia: Machado, benigno tirano de uma Academia sem interesses. Rui, que
vem depois, e não governa, não aparece nunca e por ele dirigem os Secretários-
Gerais, Veríssimo, Afonso, etc. Chega o testamento Alves, e o presidente con-
tinua distante e nem os papéis mandados a ele são assinados.
Resolvi tentar uma mudnça e, numa eleição em que o mandato do grande
homem era seguidamente confirmado, consegui oito votos para Alberto de
Oliveira. Rui, habituado à unanimidade, mandou a sua renúncia, como eu es-
perava. Elegemos Domício da Gama que, volvendo do estrangeiro e ministro
de Estado, nos procurava assiduamente.
Domício, rapidamente, pôs termo ao inventário Alves. Teve, porém, de
partir, e em seu lugar foi feito presidente Laet, que iniciou uma série de anos
administrativos, com a sua coterie de Ataulfo, Alberto Faria, etc.
Resolvemos conspirar por outro presidente. Lembrei Medeiros, que repug-
nava a Mário, mas que ele aceitou por condescender comigo. Eu seria o Secre-
tário-Geral e assim outros. Fiz a cabala neste sentido, mas à última hora achei
Medeiros empenhado com Ataulfo para mantê-lo na Secretaria-Geral. Adver-
ti-lhe que a conspiração era principalmente contra Ataulfo e que eu era exata-

352
M á r i o de A l e n c a r

mente o apontado para substituí-lo. Medeiros não quis transigir. E eu fui obri-
gado a dizer-lhe que, neste caso, também não podia, diante dos meus amigos,
exigir-lhe a presidência. Respondeu-me risonho que estava eleito. Pude anun-
ciar-lhe que, a não ser que tivesse o próprio voto, teria apenas dois, um meu e o
outro do Ataulfo.
Comuniquei o fato a Mário, desinteressando-me do pleito. Fui para Petró-
polis no começo da sessão e só lá recebi aviso de ter sido eleito presidente da
Academia. Mário e seus parciais proveram de posto a todos os da lista, ex-
cluindo Medeiros pela razão referida. Isto deve ter feito acrimônia das memó-
rias de um sobre o outro.
Presidente da Academia, pudera ter iniciado também o meu período ditato-
rial. No fim do ano, porém, declarei que ônus e honra à presidência da Acade-
mia deviam caber a todos e sucessivamente, para que todos pudessem prestar a
ela serviços devidos.
Consegui eleger meu substituto a Medeiros, com assentimento de Má-
rio, e daí começou a série de presidentes anuais, Afonso Celso, Coelho
Neto, Rodrigo Octavio, fundadores, não o querendo, Silva Ramos, Filin-
to, Alberto de Oliveira, até que iniciamos a série dos que vieram depois,
Augusto de Lima, intervindo a política e as preferências em seguida, para a
desordem atual.
Falta-nos Mário de Alencar para pôr ordem em casa.
Mário, último filho de grande homem, onerado de trabalhos e de paixões, já
adiantado em anos e criado por mimos maternos excessivos, atravessou a vida
sob o peso imenso da glória paterna.
José de Alencar impedia-lhe ser o grande escritor que seria com o seu talen-
to, principalmente sua cultura e seu gosto, maiores do que o pai, se não fôra a
perpétua desconfiança de si mesmo e o medo das comparações inevitáveis.
Produziu pouco, mas esse pouco é como o extrato concentrado de perfu-
mes raros. Versos são sinceros e sem uma expressão demasiada. Prosa é enxuta
e lapidar.

353
Afrâ ni o Pei xo to

Satélite de Machado, a quem tratava carinhosamente, foi depois centro de


atração de numerosos discípulos. Em torno da sua mesa de trabalho, no Mi-
nistério, depois na Biblioteca da Câmara dos Deputados, nos reuníamos, todas
as tardes, os seus fiéis. Eram aí as melhores sessões da Acadamia; aí fazíamos a
Literatura, que nunca conseguimos na outra Sociedade administrativa e pre-
dial, orçamentária e eletiva.
Mário foi o grande espírito tutelar da Academia antes da fortuna. Aqueles
começos difícieis de todas as coisas tiveram nele amparo e apoio. Depois ela
enriqueceu e anda tonta e entontecida com a riqueza. Ainda não assentou nem
a cabeça nem os modos.

 João Ribeiro
Por Mário de Alencar conheci João Ribeiro, que era tido por ele em singu-
lar veneração. A seu ver, era humanista raro e raríssimo escritor. Tolerava-lhe
as rabujices, que já eram muitas neste tempo, chegando àquilo que chamei o
humor de mulher velha, contraditório, a que chegou.

354
Guardados da M em ó r ia

Pressentimentos
Tr i stão d e A t h a íd e

C reio não ser apenas qualquer sutileza literária, e ainda menos


uma sofisticação crítica, fazer uma distinção entre gestação
literária e geração literária. A gestação literária, evidentemente, é o
Pseudônimo
de Alceu
Amoroso Lima
(1893-1983),
período que precede à geração. Em que esta vive ainda, por assim di- um dos maiores
críticos literários
zer, no seio da geração a que vai suceder. Pois cada geração é o meio
do século passado.
subconsciente em que se prepara a geração seguinte. O que marca a Artigo publicado
passagem do período intelectual gestatório ao período geracional é a no Jornal do Brasil
de 11 de abril de
data do aparecimento das suas primeiras obras. Como a fase gesta-
1975. Acadêmico
cional começara com o nascimento físico dos criadores da futura or- ocupante da
dem estética. Cada geração, portanto, nasce nas imediações dos vinte Cadeira 40.

anos de idade dos seus autores. Como começa a morrer com a sua
maturidade, quando aparecem os sinais de uma nova escola, de um
novo estado de espírito ou de uma frustação estética, isto é, de um
período árido de charneca ou de chapadão estéril.
Semanas atrás, publicava Antônio Carlos Villaça um retrospec-
to, o mais lúcido e completo que até agora se escreveu, sobre a de-

355
T ristão de A thaí de

nominada geração de 45, que está completando este ano seu trigésimo ani-
versário. Como estamos comemorando idêntica data da morte de Mário de
Andrade, com a qual se encerrava o período modernista e começava o neo-
modernismo. Daqui por diante começa o quarto final do século XX. Do sé-
culo XX, cujo planalto central estético foi marcado pelo Modernismo.
Como os 25 primeiros anos foram o prolongamento pré-modernista do últi-
mo quartel do século XIX.
Será que os últimos lustros do nosso século vão apenas prosseguir na senda
aberta pela geração de 45? Seria rematada ousadia querer profetizar a respeito.
Se realmente for exato que uma geração nasce com vinte anos e a publicação
das primeiras obras dos seus autores, não podemos senão admitir um outro si-
nal promissor ou despromissor sobre os futuros aspectos de nossas Letras e
Artes, que tão fortemente marcaram e estão marcando o centro do século, a
despeito de tudo o que há de adverso, na falta de liberdade criadora do regime
político em curso. Pois, como se vê no retrospecto citado, a safra da geração de
45, iniciada com Lêdo Ivo, em poesia, e possivelmente encerrada com obras
em prosa do mais alto teor literário, como Sinos da Agonia, de Autran Dourado,
não foi inferior à de 22, em suas linhas gerais. Será que o próximo futuro nos
reserva uma surpresa agradável? Ou uma frustração?
Como o meu pequeno barco de navegador solitário anda longe das praias li-
terárias e agitado pelas ondas tempestuosas do policialismo autoritário, não
ouço nenhuma voz proclamando “que o grande Pan está morto”, como ouvi-
ram os navegantes das praias helênicas e tanto impressionou a Nietzsche. Pos-
so, quando muito, alvitrar que estamos em terreno fronteiriço, como em 1922
ou em 1945. Assim como o gênio é o território medianeiro entre a saúde men-
tal e a loucura, a Poesia (em sentido croceano da expressão, que supera o plano
do verso propriamente dito) é a linha divisória entre o caos e o cosmos em ma-
téria de inteligência criadora. Ora, o vento que sopra em minha vela de al-
to-mar me sussurra aos ouvidos que, assim como o advento da geração de 45
foi a passagem poética do caos ao cosmos, o da geração de 75 vai ser a passa-
gem do cosmos ao caos.

356
P r e s s e n ti m e n to s

Manuel Bandeira, Agripino Grieco e Alceu Amoroso Lima.

A transição, em 45, viera com a poesia de um João Cabral de Melo Neto, de


um Lêdo Ivo, de um José Paulo Moreira da Fonseca, de um Geir Campos, ou
com a prosa de Clarice Lispector, de um Fernando Sabino, de um Otto Lara
Resende, de um Antonio Callado, sem falar do maior de todos eles, João Gui-
marães Rosa. Todos eles representam, de certo modo, uma reação de discipli-
na intelectual contra os exageros do libertarismo estético. Será que, realmente,
estaremos em face de uma reação oposta? Dir-se-á que estou fazendo apenas

357
T ristão de A thaí de

uma extrapolação arbitrária. Não nego. Apenas pressinto, sem prejulgar. Pres-
sinto, antes de tudo, que, ao contrário do que sucedeu em 45, está havendo
uma revolução, como em 1922, e não uma evolução, como em 1945. Em 22,
houve a primeira transição da fase gestacional do Modernismo, isto é, o
pré-modernismo, para a sua fase geracional e central. Esta iria dar as grandes
figuras marcantes do planalto.
Em 45 não houve uma revolução estética como em 22, mas apenas uma
transmutação de processos criadores, representada por uma volta ao clássico.
Pois bem, o que pressinto nesta nova geração de 75, como advento da fase fi-
nal do pós-modernismo, é uma volta ao romantismo, à liberdade, ao instinto
criador. E particularmente ligado à revolução social que se processa, de modo
patente ou latente, em todo o mundo, sem excluir a reação contra o nosso
autoritarismo institucional. Do ponto de vista estético, é uma nova revolução
antiformalista. E, com isso, uma ruptura com a geração de 45. Esta ainda se
prendia à geração de 22, como sendo apenas o seu desdobramento. A geração
de 75 me parece nitidamente hostil àquelas preocupações de ordem, de disci-
plina, de certo neoclassicismo, de cristalinidade de expressão que havia, de cer-
to modo, marcado a originalidade da geração de 45.
O que agora se começa a ler de jovens totalmente desconhecidos, em alguns
novos suplementos literários ou em publicações inéditas, mais ou menos clan-
destinas, são clamores de novas libertações, de novas revoltas, de novas conde-
nações, de novos repúdios aos predecessores, ao contrário do que sucedera
com a mutação pacífica de 45. Os novíssimos estão com os olhos voltados
para frente, já para o século XXI, sem que aliás se possa ainda determinar ou
indicar qualquer revelação. Quando muito, se pode prever em poesia uma es-
pécie de novo Surrealismo. E, em prosa, um realismo violento, com a preocu-
pação das novas transmutações sociais. Por tudo isso é que acredito estarem os
novos de 75 muito mais perto dos de 22 que dos de 45. Basta pensar no prestí-
gio atual de Oswald de Andrade.

358
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III
(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis.
Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição
realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

Cadeira Patronos Fundadores Membros Efetivos


01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Carlos Heitor Cony
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cícero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Nelson Pereira dos Santos
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Antonio Olinto
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Lêdo Ivo
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Helio Jaguaribe
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Pe. Fernando Bastos de Ávila
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque Ivo Pitanguy
23 José de Alencar Machado de Assis Zélia Gattai
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Sábato Magaldi
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Eduardo Portella
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domício Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo José Mindlin
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Moacyr Scliar
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Ariano Suassuna
33 Raul Pompéia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva João Ubaldo Ribeiro
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso João de Scantimburgo
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Ivan Junqueira
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Evaristo de Moraes Filho
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
Composto em Monotype Centaur 12/16 pt; citações, 10.5/16 pt.

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