Revista Brasileira ABL N 59 2009
Revista Brasileira ABL N 59 2009
Revista Brasileira ABL N 59 2009
o
Fase VII Abril-Maio-Junho 2009 Ano XV N. 59
E s t a a gl ó r i a q u e f i c a , e l e v a , h o n r a e c o n s o l a .
Machado de Assis
ACADEMIA BRASILEIRA REVISTA BRASILEIRA
DE LETRAS 2009
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Sábato Magaldi, Sergio Paulo Rouanet, site: http://www.academia.org.br
Tarcísio Padilha. As colaborações são solicitadas.
Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis pelas
exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Sumário
EDITORIAL
João de Scantimburgo Permanência de Euclides da Cunha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
CULTO DA IMORTALIDADE
Arnaldo Niskier A história de Euclides da Cunha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Murilo Melo Filho Euclides: 100 anos depois . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
PROSA
Alberto Venancio Filho Uma amizade póstuma – Euclides da Cunha e
Francisco Venancio Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Walnice Nogueira Galvão Euclidianos e conselheiristas: um quarteto
de notáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Arthur Virgílio Euclides da Cunha e a Amazônia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
Edson Nery da Fonseca A areia seca de Euclides da Cunha e o massapé
de Gilberto Freire. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Francisco Venancio Filho Euclides da Cunha e o pensamento americano . . . . 105
Luiz Costa Lima A estabilidade interpretativa de Os Sertões . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
João Cezar de Castro Rocha Histórias ou Vidas? Notas sobre algumas
biografias de Euclides da Cunha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
José Carlos Barreto de Santana Naturalistas e cientistas: algumas fontes
de Os Sertões. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Leopoldo M. Bernucci Euclides e sua Ars Poetica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
Ivan Junqueira Aspectos da poesia de Alphonsus de Guimaraens Filho . . . . . . . . 201
Eduardo Portella O universo poético de Alphonsus de Guimaraens . . . . . . . . . 213
Leodegário A. de Azevedo Filho Edla van Steen e a arte do conto realista . . . 229
Izacyl Guimarães Ferreira A universalidade poética de Carlos Nejar . . . . . . . . 235
Francisco Foot Hardman Uma prosa perdida: Euclides e a literatura
da selva infinita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
POESIA
Ronaldo Costa Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
Anibal Beça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
POESIA ESTRANGEIRA
Jeannette Lozano Clariond Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez . . . . . . 283
GUARDADOS DA MEMÓRIA
Euclides da Cunha Carta de Euclides da Cunha a Assis Brasil . . . . . . . . . . . . . . . 305
Editorial
Permanência de
Euclides da Cunha
João de Scantimburgo
5
João de Scantimburgo
Rosa. Após a visão dos acadêmicos Arnaldo Niskier e Murilo Melo Filho so-
bre o autor de Contrastes e Confrontos, seguir-se-ão valiosos ensaios sobre os mais
diversos aspectos da trajetória euclidiana, reunindo nomes sabidamente liga-
dos a seu vulto, como o quase patriarca do culto à sua memória que foi Fran-
cisco Venancio Filho, como a já citada Walnice Nogueira Galvão, Alberto
Venancio Filho, Leopoldo M. Bernucci, João Cezar de Castro Rocha, Fran-
cisco Foot Hardman ou Luiz Costa Lima, assim como os do grande gilbertia-
no Edson Nery da Fonseca, os de Arthur Virgílio e José Carlos Barreto de
Santana.
Na ensaística dedicada à poesia, destacamos o estudo de Ivan Junqueira so-
bre o grande poeta Alphonsus de Guimaraens Filho, recentemente falecido, o
de Eduardo Portella sobre o pai do mesmo, o sublime solitário de Mariana, as-
sim como o estudo de Izacyl Guimarães Ferreira a respeito da poética de Car-
los Nejar. Como a ensaística sobre a prosa de ficção não poderia estar ausente,
temos a análise do filólogo Leodegário de Azevedo Filho sobre a arte do conto
em Edla van Steen.
Na seção de poesia, traz a Revista Brasileira dois grandes nomes da lírica se-
tentrional do Brasil, os do maranhense Ronaldo Costa Fernandes e do amazo-
nense Anibal Beça, tal como, no que diz respeito à poesia estrangeira, o nome
de Jeannette Lozano Clariond, traduzida pelo grande poeta carioca, de sempre
lembradas origens galegas, Reynaldo Valinho Alvarez.
Finalmente, retornando ao nosso homenageado, a seção “Guardados da Me-
mória” encerra este importante número da Revista com a reprodução de uma car-
ta de Euclides da Cunha para Assis Brasil. Esta polianteia é mais uma contribui-
ção ao vasto e comovido movimento de comemorações pelo centenário do desa-
parecimento do genial prosador. Morto precocemente, aos 43 anos, em meio de
uma lamentável tragédia, sua presença no país que tanto amou aumenta dia a dia,
como todo o presente ano nos dará o ensejo de observar.
6
C u l t o da Im o r t a l i d a d e
A história de
Euclides da Cunha
Ar n al d o N is k ie r Ocupante da
Cadeira 18
na Academia
Brasileira de
Letras.
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Arnald o N iskier
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A his t ó ria d e Eu cl id es d a Cu nha
Depois de ter ficado fora da Escola Militar por um ano, após ser desligado
em função de um protesto contra a visita de um ministro da Monarquia, ele
foi reintegrado, em 1899, graças a pedidos dos amigos, já com o país vivendo
no regime republicano.
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Arnald o N iskier
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A his t ó ria d e Eu cl id es d a Cu nha
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A his t ó ria d e Eu cl id es d a Cu nha
no (Castro Alves e seu tempo) colocou seu nome “entre os bons analistas de
poesia do Brasil”.
Foi recebido por Sílvio Romero, que assim se expressou, em certa altura de
sua fala:
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Arnald o N iskier
dinho, tentou vingar a morte do pai e também foi morto por Dilermando, que
havia passado a segundo-tenente. O resultado foi mais uma alegação de legíti-
ma defesa e mais uma absolvição do militar.
As obras do autor
Além de Os Sertões, lançado em 1902, com diversas reedições no decorrer
dos anos, Euclides da Cunha lançou, em vida, apenas duas obras: Contrastes e
Confrontos e Peru versus Bolívia, ambos em 1907.
As obras póstumas do autor foram as seguintes: À Margem da História
(1909), Canudos - Diário de uma Expedição (1939, depois reeditado, com o título
Canudos e Inéditos, em 1967), O rio Purus (1960), Obra Completa (1966), Caderneta
de Campo (1975), Um Paraíso Perdido (1976), Canudos e Outros Temas (1992),
Correspondência de Euclides da Cunha (1997), Diário de uma Expedição (2000).
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C u l t o da Im o r t a l i d a d e
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M u r i l o M e l o Fi l h o
O nascimento em Cantagalo
Nascido em 1866, numa fazenda com o nome de Saudade, na cidade flumi-
nense de Cantagalo, então chamada de Santa Rita do Rio Negro, Euclides da
Cunha ficou órfão de mãe aos três anos de idade.
Esse traumatismo vai persegui-lo para sempre, numa infância de nômade,
na casa de tios e tias e nas fazendas povoadas de escravos, que um dia vão em
comissão pedir-lhe para comprá-los, a fim de evitar que sejam comprados por
um fazendeiro vizinho, a quem recusa apertar a mão em protesto contra o seu
escravagismo.
Torna-se um esquivo e um esquisito, inseguro e desamparado, numa atitu-
de de permanente rebeldia contra os usos e costumes da sua época e da sua
região.
Refugia-se na poesia francesa de Verlaine, de Musset e de Vigny, frequen-
tando por um ano apenas a Escola Politécnica, suficiente para fixar-lhe na vida
a profissão de engenheiro.
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Euclides: 100 anos depois
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M u r i l o M e l o Fi l h o
O Estado de S. Paulo, com textos que já fazem prever, construído nos intervalos
de sua cansativa engenharia, o grande escritor que viria a ser em seguida.
(Os termos dessa comunicação jornalística eram transmitidos precariamen-
te de Salvador para São Paulo pelo Sistema Morse, do Telégrafo nacional re-
centemente inaugurado).
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Euclides: 100 anos depois
dos quais restaram apenas um ancião esquelético, dois homens de meia idade e
uma criança chorosa, como saldo sobrevivente e numa inspiração renaniana
dos seus fanáticos.
Verificam-se aí cenas dantescas de prisioneiros torturados, de cabeças dece-
padas, de cadáveres amontoados e insepultos, de vivos famintos e sedentos e
de mulheres estupradas.
Essa Expedição fracassou completamente na missão específica que tinha de
destroçar e dizimar aquela comunidade messiânica.
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Recomendado por Oliveira Lima, o único que realmente lhe deu a mão foi
o Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores, ao nomeá-lo para
chefiar a Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, no problema de
fronteira com o Peru.
Euclides deixa a família morando no Rio e parte para Manaus, onde, du-
rante dois anos se vê inteiramente esquecido pelo governo brasileiro: seus
companheiros na expedição chegam a passar fome e são tão abandonados
quanto os nordestinos que já habitavam aquelas longínquas paragens, na
famosa “Batalha da Borracha”.
Escreve mais dois livros.
Reúne informações para usar nesse novo livro que começa a escrever e que
seria editado postumamente. Já tem até um nome para ele: O Paraíso Perdido,
que ao ser lançado, após a sua morte, está com o título de À Margem da História,
além de dois outros livros: Peru versus Bolívia e Contrastes e Confrontos, em tons
mais ou menos semelhantes aos de Os Sertões.
Assim como denunciara o desamparo dos sertanejos na odisseia da Bahia,
assim também Euclides denunciaria o abandono dos seringueiros na desgraça
da Amazônia.
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Prosa
“Ninguém soube ser mais amigo do que Venancio: estava com os seus
companheiros em todos os momentos, numa troca contínua de assistência e
de afeto. Esse amigo bom era o dedicado entusiasta das comemorações eu-
clidianas de São José do Rio Pardo. Se Euclides era o centro das atividades,
Venancio era o enamorado desse culto, a criatura feliz de ver que os ho-
mens ainda se preocupavam tanto e tão sinceramente com o autor de Os Ser-
tões. Euclides e São José do Rio Pardo formavam um binômio. Agora, pas-
samos a ver, na simpática cidade paulista, um tríptico. Euclides – São José
do Rio Pardo – Venancio. Venancio era a alma pura e encantada das come-
morações euclidianas, o deslumbrado de São José.”
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Uma amizade póstuma
Euclides da Cunha, cuja família materna era de São Fidélis, para ali fora le-
vado por seu pai, logo após o falecimento da mãe, D. Eudóxia Moreira. Ali
frequentara o colégio do Professor Caldeira, um dos melhores do norte flumi-
nense àquela época. Ali viveu alguns anos da sua infância débil e triste.
Outra hipótese é a frequência de ambos ao Colégio Aquino, dirigido pelo
Professor João Pedro Aquino, ilustre educador, denominado por Escragnolle
Doria o “santo da pedagogia brasileira”, colégio pioneiro no tempo, com ênfa-
se nos estudos científicos.
Dois anos após a morte de Euclides, alunos do Internato Nacional, hoje Co-
légio Pedro II, fundam o Grêmio Euclides da Cunha, alguns dos quais assistiram
às poucas aulas dadas pelo professor de lógica. Entre eles os Sussekind de Men-
donça, Edgar e Carlos, filhos de Lúcio de Mendonça, grande escritor e o funda-
dor da Academia Brasileira de Letras. Ambos iniciaram sua vida com atos de re-
beldia; Edgar como aluno da Escola de Belas Artes, discordando dos métodos
arcaicos ali adotados, mais tarde professor do Instituto de Educação do Rio de
Janeiro e colaborador, com Francisco Venancio Filho nos livros didáticos Ciên-
cias Físicas e Naturais (1932) e Física (1935). O outro, Carlos, bacharel em Direito
pela Faculdade Livre de Direito, faria jus ao prêmio Machado Portela como o
melhor aluno e dele excluído por ter, como orador de turma, proferido libelo
contra os métodos de ensino do direito, “O que se ensina e se aprende nas facul-
dades de direito do Brasil”. Foi autor de duas biografias, uma sobre Sílvio Ro-
mero, e outra sobre o tio Salvador de Mendonça.
Foi eleito, inicialmente, presidente da agremiação Murilo Araújo, que de-
pois se destacaria como poeta. O Grêmio deliberou editar uma revista, Ciência e
Musa, da qual só saiu um número.
Em 1913, o grupo deixa o Internato Nacional e, resolve dar um cunho na-
cional ao movimento e convida para Presidente Honorário Alberto Rangel, o
grande amigo de Euclides da Cunha, companheiro de Escola Militar e cujo li-
vro Inferno Verde foi por ele prefaciado.
Quando cursava a Escola Politécnica em 22 de janeiro de 1914, contando
apenas vinte anos, Venancio Filho publicou no Jornal do Commercio um artigo
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Uma amizade póstuma
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Al bert o Venancio Fil ho
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Uma amizade póstuma
“E agora, meu caro Edgar, que já sabes também da minha ida à Meca dos
Euclidianos, falemos destas impressões sonoras que me enchem a alma.
Saltando fui imediatamente à ponte, antes de mais nada, e qual a mi-
nha surpresa quando deparo junto à barraca os preparativos de um jar-
dim e de um pedestal que se prepara para a herma que se funde em São
Paulo. Nunca pensei que houvesse recanto algum da terra brasileira em
que se cultuasse um brasileiro como em São José do Rio Pardo se adora
Euclides!
Voltei à linda cidade a procurar as pessoas a quem me recomendou o
Escobar e, na Prefeitura, tudo respirava a ponte: a secretária onde ela se
grava majestosa, um quadro com a barraquinha e as reminiscências de
todos os que trabalharam com Euclides e que lhe guardam saudosos a
lembrança. Atendeu-me o Sr. Silos, que é o fantasiado matuto do artigo
do Viriato, e que não é mais do que um modesto e erudito, dos íntimos
do nosso grande Homem; mostrou-me tudo o que havia dele, dando-me
uma grande fotografia da ponte. Para se ir à ponte, percorre-se um exce-
lente aterro, obra de Euclides, onde se vê o homem que tinha sobretudo
a intuição das coisas; a barraquinha construída por ele sob uma curiosa e
linda paineira está como ele a deixou em 1902; à margem do aterro, um
bambual plantado pelas suas mãos, assim como, à entrada da ponte,
duas paineiras também de suas mãos, de uma das quais levo uma flor.
Pretendem ajardinar e gradear todo o espaço em torno da paineira, fazer
um cais e, no centro, sobre uma pedra rósea linda, gravar-lhe um meda-
lhão e inscrições; do pedestal levo para ti um pedacinho.
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Al bert o Venancio Fil ho
Na ponte, há uma grande placa no alto com o nome dele e, ao lado, uma
outra. Do outro lado, fica a Vila Euclides da Cunha. Vede aqui o poeta da
obra técnica: construiu, à frente dos pilares, umas ilhas artificiais que plantou
depois ele mesmo, para não as ver crescidas... A ponte que ruíra ele arrancou
do rio e a trouxe para a terra, conseguindo aproveitar todas as peças, à exceção
de 6. E todos dizem: que Engenheiro! Vi as duas casas onde ele morou estes
anos mais preciosos de sua vida; mas, sobre tudo isto, o que toca é a recorda-
ção com que todos lá se lembram dele e lhe bendizem a memória; é o Dr. Eu-
clides da Cunha que construiu a ponte e escreveu lá Os Sertões.
Pense que, para a sua conservação perpétua, conviria que cogitássemos
de protegê-la com edifício maior, fazendo talvez um Museu Euclidiano,
como os há na Europa; poderás fazer o projeto e vamos executá-lo. Quanto
não lamentei a tua falta ali!
Na minha fé euclidiana, agora aumentada, se é possível, eu junto a tua
amizade de irmão, neste abraço longo e agradecido. O teu Venancio.”
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Uma amizade póstuma
“A guerra de Canudos não poderá ser estudada na sua fase senão neste li-
vro, que é a fonte mais segura e mais importante desses memoráveis suces-
sos e o único que merece a atenção dos estudiosos. O livro de Euclides da
Cunha que é apontado sempre que se fala do assunto é admiravelmente bem
escrito, não há como negar, mas sob a pompa da linguagem. Não passa de
um romance que, emendado em sucessivas edições, ficou infiel à verdade”.
O comentário veicula pela primeira vez o que seria tantas vezes repetido da
obra de ficção, sem ganhar foros de verdade. Para desmentir esta ideia, Venan-
cio Filho julgou necessário rebater de início com a afirmação de Roquette-
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Uma amizade póstuma
ou que Euclides empregou sem sentido diverso “publicarei algumas aparas que
serão aproveitadas ou não pelo benemérito grêmio que cultua a memória do
pranteado escritor”.
Em 1931, Francisco Venancio Filho, convidado pela Comissão de Publi-
cações da Academia, publicava o livro Euclides da Cunha – Ensaio Biobibliográfico.
Na sessão de 13 de agosto de 1931 da instituição, declarava Afrânio Peixoto:
“O Sr. Afrânio Peixoto diz que dois dias mais ocorrerá o aniversário do
passamento de Euclides da Cunha, que os seus amigos e admiradores por
protesto e admiração vem celebrando há vinte e dois anos. A Comissão de
Publicações da Academia quis associar-se a esta celebração e, por isso, ha-
vendo inserido no programa da nova coleção de biobibliografia um estudo
sobre o grande escritor, confiou-o a um euclidiano a que nenhum outro ex-
cede em amor à causa e cultura minudente e entusiasta da vida e da obra de
Euclides. Tem, pois, a satisfação de trazer à Academia a sua última publica-
ção, na qual o Sr. Venancio Filho esgotou, com devoção e capacidade, o seu
assunto. Para uma integral noção literária do escritor, bastarão apenas de
ora em diante a sua obra e este livro, que honra as publicações da Academia,
glorificando a Euclides da Cunha.”
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Uma amizade póstuma
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Al bert o Venancio Fil ho
Na dedicatória
“... sempre algumas flores, a dia certo, nesta sepultura, por protesto e adora-
ção.” Alberto Rangel
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Uma amizade póstuma
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Uma amizade póstuma
E acrescenta:
“Ao lado da ponte junto ao aterro, debaixo de linda paineira, há uma tos-
ca barraquinha de tábuas, coberta de zinco, de cerca de quatro metros qua-
drados; servia de escritório ao engenheiro e nos raros intervalos de faina fa-
tigante. Ali escreveu e anotou um pouco de Os Sertões.
São José do Rio Pardo tornou-se a Meca do Euclidianismo e ano por
ano, a dia certo, a cidade vive o seu grande Nume. No acervo do patrimônio
artístico do Brasil, não haverá monumento, que, na humildade de sua estru-
tura, represente tanta opulência de beleza espiritual como a barraquinha
tosca de São José do Rio Pardo.”
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Al bert o Venancio Fil ho
“Bate-se à porta alguém, que acaba de vir de bastante longe, e não é preci-
so saber-se quem seja, senão chegado, com a vieira e a esclavina de romeiro,
à extraordinária cidade do Brasil, votada ao culto de um grande escritor na-
cional. Esse peregrino traz o coração dolorido e os olhos atulhados de tris-
tes e inenarráveis coisas do mundo.”
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Uma amizade póstuma
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Uma amizade póstuma
e o grande chanceler, divulgada pela primeira vez, referente aos trabalhos da Co-
missão de Reconhecimento do Alto Purus, permite a análise dos trabalhos de
Euclides da Cunha na Comissão e termina com as seguintes palavras:
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Uma amizade póstuma
paio, como faziam crer algumas críticas. Há ainda o exame dos fundamentos das
diversas ciências em que se apoiou. Francisco Venancio Filho traz à colação a
opinião de especialistas consultados nos vários ramos científicos, como: Glycon
de Paiva, na geologia; Fernando Rodrigues Silveira, na botânica; Lacerda Feio,
na zoologia; e Leandro Ratisbona, na climatologia. Em muitos casos apontando
críticas e incorreções, estes especialistas concluíam que Euclides se socorrera do
melhor saber científico da época, não podendo lhe ser atribuídos conhecimen-
tos, descobertas ou ideias que só vieram a ser veiculados mais tarde.
Por isso, conclui: “Os Sertões constituem, pois, obra de gênio, de intuição,
mais do que de método ou de escola. É sobretudo livro de arte, informado de
cultura e método científico.”
Francisco Venancio Filho era apaixonado por museus, sobretudo os muse-
us dinâmicos de caráter educativo, sobre os quais escrevera no livro Educar-se
para Educar. Em 1918, cogitara do Museu Euclidiano em carta a Edgar Susse-
kind de Mendonça. Guardou forte impressão do Deutsche Museum de Mu-
nich, de que lhe falaram com entusiasmo Juliano Moreira e Vicente Licínio
Cardoso. Posteriormente, em viagem aos Estados Unidos em 1933, o contato
com o Museu de Tecnologia de Chicago mais o afeiçoou à ideia, da qual não
pôde nunca realizar no Brasil, de um museu de ciências como sonhara.
Da mesma forma imaginou o Museu Euclidiano em São José do Rio Pardo,
contendo o acervo do grande escritor. Este plano não foi avante, mas o acervo
euclidiano está guardado na Casa de Cultura Euclides da Cunha, sua moradia
naquela cidade.
Concebeu o Museu, tendo na entrada o busto de Euclides e uma coleção de
primeiras edições de suas obras, além de três mapas murais do Brasil, com in-
dicações, por pequenas lâmpadas elétricas, dos diversos lugares ligados à vida
ou à obra euclidianas. A primeira, biográfica, teria assinalado os pontos princi-
pais em que viveu. A segunda, o de glorificação, todos os sítios em que houver
qualquer lembrança dele – ruas, praças, escolas, monumentos, com a fotogra-
fia respectiva. A terceira, o de euclidianismo, isto é, a projeção da sua obra so-
bre o Brasil, todos funcionando por computador, manejado pelo público.
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Afrânio Peixoto inicia o prefácio dizendo que Mme Sereth Neu adotou
Euclides como um filho espiritual, o compreendera, o interpretara e o traduzi-
ra em francês esta obra prima Os Sertões. E conclui: “Este livro maravilhoso
existe agora em francês... Alma do mundo o conhecerá. Euclides da Cunha po-
derá ser entendido pelo universo; seu país terminará por entendê-lo.”
O artigo sobre Euclides e o Amazonas na Revista Brasileira foi ampliado em
comunicação ao X Congresso Brasileiro de Geografia.
O Conselho Nacional de Geografia, órgão do Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE), decidiu patrocinar a Semana Euclidiana de 1949
de São José do Rio Pardo. Entre as várias iniciativas, publicou um opúsculo
com estudo de Francisco Venancio Filho sobre Euclides da Cunha, acompa-
nhado da bibliografia por ele organizada e atualizada por Edgar Sussekind
de Mendonça. E divulgou a tese apresentada ao X Congresso Brasileiro de
Geografia de 1944. No prefácio, o Embaixador José Carlos de Macedo Soa-
res, Presidente do Instituto, definiu:
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Uma amizade póstuma
No dia 10 já estava Afonso Pena doente e veio a falecer no dia 14, substituído
pelo vice-presidente Nilo Peçanha. Não há indicações de nova interferência
do Barão no assunto, mas se pode supor que, com seu prestígio e ascendência,
teria condições de falar com o vice-presidente. Há notícias de gestão de Coe-
lho Neto e Euclides é nomeado em 17 de julho de 1909.
O interesse por Euclides da Cunha se extravasava no professor: um ginasia-
no da década de trinta, Fernando Segismundo, depois destacado educador e
jornalista, falou do professor do Colégio Pedro II:
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Al bert o Venancio Fil ho
brasileiro’. E com um sorriso malicioso: ‘É certo que ele muito leu a Camilo
e Herculano; é mais tratável, todavia. Empenhe-se’. Acabamos por ler a
obra. Apreciei muito a última parte: a luta entre o litoral civilizado e o ser-
tão desassistido.”
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Uma amizade póstuma
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Al bert o Venancio Fil ho
zem alguns, que se tornam apenas colecionadores, pelo orgulho, pela va-
idade de reter coisas valiosas. Venancio reunira e conservava tudo aqui-
lo não por si, mas por Euclides. Nunca explorou a glória do criador de
Os Sertões. Nunca fez do assunto Euclides uma escada para figurações.
Quando escrevia ou quando falava de Euclides, pensava era em Euclides
mesmo, jamais em si próprio.”
Assim falou o seu grande amigo e acadêmico Fernando de Azevedo:
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Uma amizade póstuma
Rangel. Fez uma estada na cidade de São Paulo para encontrar seus grandes
amigos, entre outros Fernando de Azevedo, Milton Rodrigues e Almeida Jú-
nior, e realiza, a convite dos amigos Damasco Pena e Moysés Gikovate, uma
conferência no Liceu Rio Branco, com o título “O Significado Moral da Vida
e da Obra de Euclides da Cunha”, no dia 9 de agosto. No dia seguinte, teve
uma trombose e veio a falecer no dia 12 de agosto. O interventor do Estado de
São Paulo, Embaixador Macedo Soares decretou luto oficial, o corpo foi velado
na Escola Caetano de Campos e transportado para o Rio em vagão especial. São
José do Rio Pardo fez-se representar no velório pelo Professor Hersílio Ânge-
lo, que acompanhou a viagem ao Rio.
Um ilustre euclidianista, Umberto Peregrino, retratou esta predisposição:
63
Al bert o Venancio Fil ho
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Uma amizade póstuma
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Al bert o Venancio Fil ho
Peregrino Júnior referiu-se aos serviços prestados à cultura pelo Prof. Fran-
cisco Venancio Filho, um dos fundadores da Associação Brasileira de Educa-
ção, e o culto que devotava à memória de Euclides da Cunha, cuja vida e obras
conhecia profundamente.
Pedro Calmon afirmaria que:
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Uma amizade póstuma
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Al bert o Venancio Fil ho
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Prosa
Euclidianos e
conselheiristas: um
quarteto de notáveis
Walnice N ogueira G alvão Professora
Titular de
Teoria Literária
e Literatura
Comparada da
69
Walnice N ogueira Galvão
deu carta branca, declarando-me livre para convidar quem julgasse mais con-
veniente. Arcaria com as despesas a editora, cujo dono, Anderson Dias, esteve
presente na reunião.
Grata a meus colegas e amigos, não foi difícil selecionar os quatro convidados,
entre o que havia de melhor na área. Sequer cogitei de suplentes, caso algum deles
não pudesse aceitar: os quatro toparam na hora, sem qualquer hesitação. O que
demorou depois foi a logística implicada em conseguir trazê-los todos simultanea-
mente a São Paulo, em função de seus compromissos. E assim tivemos o privilégio
de passar uma tarde discutindo estes assuntos com Antonio Houaiss, Franklin de
Oliveira, José Calasans e Oswaldo Galotti. Os dois primeiros vieram do Rio de Ja-
neiro; o terceiro, de Salvador; e o quarto morava em São Paulo.
Uma palavra sobre os convidados. Todos eles euclidianos eméritos, com
dedicação de vida inteira, no entanto defendiam posições no mínimo desseme-
lhantes, quando não opostas.
Antonio Houaiss (1915 – 1999), nascido no Rio de Janeiro, que de saída
se declarou euclidiano por devoção, era indispensável à mesa-redonda também
por seus trabalhos de filólogo, linguista e editor de enciclopédias. Formara-se
em Letras Clássicas pela Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universi-
dade do Brasil (1942), hoje UFRJ. Nessa linha, além de ser autor de Elementos
de Bibliologia (1967), de que não pode prescindir quem queira preparar uma edi-
ção crítica, estava na época organizando esse monumento que é o Dicionário
Houaiss. Ninguém mais adequado para apreciar as operações de nosso autor
com a linguagem do que um lexicógrafo de tal porte. Ademais, começara a ler
Euclides ainda nos bancos escolares, e não parara mais.
E isso só no que diz respeito aos nexos mais diretos com o tema da mesa-re-
donda. Como omitir que se trata aqui do grande tradutor do Ulisses, de James
Joyce, tarefa que realizou quando, com os direitos políticos cassados pelo gol-
pe militar de 1964 e vendo sua carreira diplomática amputada, se encontrava
desempregado e perseguido?
A trajetória de Antonio Houaiss é múltipla, e merece que se enfatizem al-
guns pormenores. Homem dos sete instrumentos, realizou incursões pela gas-
70
Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
tronomia e escreveu livros nessa área. Praticou o ensaísmo político, tendo por
tema, entre outros, nossa política externa. Ressalte-se seu socialismo sem des-
falecimento, que o levaria a pertencer até a morte ao Partido Socialista e a pu-
blicar livros como Socialismo e Liberdade (1990) e Socialismo: Vida, Morte e Ressurrei-
ção (1993).
Destacou-se por sua atuação à frente da Comissão Machado de Assis, que
definiu normas para o trabalho ecdótico. Em crítica literária e filologia, deixou
trabalhos sobre Lima Barreto, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Augusto
dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade. Recebeu o prêmio Moinho San-
tista, na categoria Língua, em 1990. Neste campo, é autor de A Crise de Nossa
Língua de Cultura (1983), O Português no Brasil (1985), O Que É Língua? (1990), A
Nova Ortografia da Língua Portuguesa (1991), entre outros.
Para falar de José Calasans (1915-2001), o incomparável pesquisador da
Guerra de Canudos, que dedicou sua vida a retirar esse tema da “gaiola de
ouro” de Os Sertões – em suas próprias palavras –, seria preciso traçar uma traje-
tória de meio século. E não esquecer que foi ele quem cunhou a classificação
dos estudiosos em “euclidianos” e “conselheiristas”.
Partindo da poesia popular de Sergipe, seu estado natal, acabaria se extravi-
ando pelos roteiros de Canudos, concluindo sua tese sobre O Ciclo Folclórico do
Bom Jesus Conselheiro (1950) e mergulhando nas entrevistas que realizou com so-
breviventes da guerra. Alertara-o a matéria publicada por Odorico Tavares em
O Cruzeiro em 1947, ilustrada por fotos de um desconhecido jovem francês
que arribara na Bahia, Pierre Verger.
Jamais superaria a experiência. Daí em diante, abandonou o folclore e em-
brenhou-se pelo novo tema, a que acabaria dedicando uma faina de cinco dé-
cadas. A ele se deve uma reviravolta nos estudos, que começariam a passar ao
largo de Euclides da Cunha e da guerra, para se concentrar mais no que fôsse
possível descobrir a respeito do arraial, do Conselheiro e dos canudenses. A
memória oral foi servida pela obstinação do pesquisador, que não julgou de
pouca valia localizar as 25 edificações do Conselheiro. Ou esquadrinhar a cor-
respondência dos vigários sertanejos com a Arquidiocese em Salvador. Ou
71
Walnice N ogueira Galvão
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Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
73
Walnice N ogueira Galvão
longe seu tirocínio de crítico literário, que exerceu em vários órgãos da im-
prensa, pela vida afora. Foi muitas vezes agraciado, inclusive com o prêmio
Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra, em
1982.
74
Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
75
Walnice N ogueira Galvão
Tendo sido professor durante um longo período da vida, nunca deixou de tra-
zer esse autor a debate. No ensino secundário, que exerceu durante muitos
anos, costumava ler longos e largos trechos de Euclides, e renovava sempre a
boa impressão de que os alunos, de um modo sistematicamente geral, o ama-
vam e admiravam. Muito leitor de Euclides deve ter sido feito através dessa
pregação. É verdade que Houaiss usava esse método para com muitos outros
autores. E, incontestavelmente, as reações variavam um pouco entre os poetas
e os ficcionistas, e Euclides fica a meio caminho dos dois. Ele é um ensaísta,
que tem muito de ficção, no bom sentido da construção de hipóteses de traba-
lho, e que tem, de poeta, a apreensão de uma realidade que ultrapassa a sua pa-
lavra, e que é a realidade maior do Brasil.
Por sua vez, o professor José Calasans demonstrou aquilo em que é especia-
lista, ou seja, o cuidado com os pormenores de documentos e de testemunhos
referentes à guerra de Canudos.
Segundo o professor, durante meio século, o episódio de Canudos e a figura
de Antônio Conselheiro foram estudados, exclusivamente, através de Os Ser-
tões. Essa exclusividade transparece num caso que vale a pena anotar desde logo
e que, a seu ver, exemplifica essa afirmação. O general Abílio de Noronha, que
era o comandante da 2.a região militar por ocasião da revolta de 1924, esteve
em Canudos. Foi na sua barraca que se hospedou Euclides, por ocasião da
guerra. Este homem, depois de sua atuação em São Paulo, na revolta de 24, es-
creveu um livro: Narrando a Verdade. E resolveu ir além, publicando outro, inti-
tulado: O Resto da Verdade. Este segundo é um livro de memórias, em que vai
narrando sua vida, por onde andou, as lutas no Sul, e tal, e quando chega a Ca-
nudos afirma: “Não tenho nada a dizer porque Euclides já contou tudo.”
Então a pessoa que está escrevendo as suas memórias – mas afinal ele estava re-
latando o que fez, não é? – quando chega na hora de dar o depoimento sobre
Canudos, diz que Euclides já falou e nada mais tinha a dizer!
76
Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
77
Walnice N ogueira Galvão
perde, nada se cria na natureza, admite que, de um momento para outro, vai
aparecer o exemplar de Siqueira de Menezes. Mais difícil era achar livro de
Antônio Conselheiro, e já foram encontrados dois.
Prosseguindo na tentativa de mostrar que aquela história não é verdadei-
ra: não há razão para acreditar na veracidade da declaração de Siqueira de
Menezes. Leu há tempos um discurso de Gumercindo Bessa, jurista sergipa-
no da escola de Tobias Barreto, quando da inauguração da estátua de Fausto
Cardoso durante o governo de Siqueira de Menezes. Num trecho do discur-
so, Gumercindo diz exatamente isto: que foi, realmente, uma grande oportu-
nidade aquela homenagem a Fausto Cardoso, etc., “... justamente na época
em que está governando o nosso estado o jagunço louro, aquele que Euclides
exaltou tanto...” Ora, se Siqueira ficava tão irritado ao ouvir elogios a Eucli-
des, possivelmente não se teria dito isso tão... vamos dizer, afrontosamente,
se soubessem de sua reação.
Calasans encontrou também um discurso de uma professora primária no
interior do estado, numa das visitas do presidente à cidade de Capela, onde ela,
justamente, diz: “O nosso presidente...” (conforme Calasans, Sergipe tinha
presidente, era como São Paulo na Primeira República, quem tem categoria
tem presidente, não tem governador). Então, a professora dizia exatamente
isto, que Siqueira era o jagunço louro de Os Sertões: quer dizer, insistia-se, em
Sergipe, nesta ligação de Siqueira com Euclides. Encontrou também, no livro
de Walnice, o outro, aquele No Calor da Hora, uma passagem numa reportagem
do jornalista Alfredo Silva, na qual ele fala da presença em Monte Santo de seu
colega Euclides da Cunha, já quase em Canudos, estranhamente vestindo ca-
misa de palha de seda.
Júlio Procópio Favila Nunes, que é uma figura interessantíssima de jorna-
lista, que foi da Gazeta de Notícias, afirma – num fascículo que o professor possui
e que não sabe se é obra que foi continuada ou não – que recebeu da mão de
Euclides, lá em Canudos, aquelas profecias que falam de “quando as nações
brigam com as nações...”, etc. Há uma outra anotação no diário de Euclides di-
zendo: “O jornalista fulano de tal que está aqui em Canudos.” Quer dizer, en-
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Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
tão não era possível que Euclides fosse colocar tudo aquilo num diário para
enganar o povo, depois.
Então, Calasans afirma ter vivido sempre preocupado com estas notícias e, há
pouco tempo, teve que ouvir um jornalista importante lhe dizer: “Aquele menti-
roso, aquele Euclides, hein? Disse que estava em Canudos e nunca apareceu lá!.”
Tudo o que pôde fazer foi oferecer-lhe a publicação em que desmentia essa len-
da, para ele verificar que a argumentação é inteiramente sem validade.
Por isso, para começar, aproveitou a oportunidade desta mesa-redonda
para registrar essas informações que lhe parecem preciosas, sobretudo o teste-
munho do filho de Siqueira, que se mostrou muito chocado com aquela notí-
cia. Disse mais, que não tinha elementos para discutir com Gilberto Amado,
porque Gilberto era inimigo de seu pai, e ele naturalmente não quis avivar a
inimizade. Acrescentou que Gilberto quis fazer um comício, em Sergipe, e o
chefe de policia, Dionísio Menezes, não permitiu, e ele disse: “Mas eu vou fa-
zer porque a Constituição me garante”. E que Dionísio retrucou: “A Consti-
tuição é um livrinho muito do besta! Se fizer o comício, eu mando evacuar!...”.
Donde lhe ter ficado o apelido de Vacuá. Era isso, em suma, que Calasans que-
ria dizer antes de mais nada sobre Euclides.
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Walnice N ogueira Galvão
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Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
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Walnice N ogueira Galvão
se aperfeiçoava com a inteligência tremenda que era a sua. Então, o fato era o
principal para Euclides. As pessoas, às vezes, dizem que Euclides fazia fic-
ção, não é? Que Os Sertões são ficção, etc. Mas ele sempre diz que é o fato que
interessa e, a partir dali, é que ele vai raciocinar. Pode ser que haja alguma
fantasia – como diz Franklin de Oliveira, uma fantasia exata – mas a emoção
de estar em contato com o fato quando o fato nasce, isso aí é puramente in-
tuitivo, isso é dramático. Então, há um certo drama em Euclides, em conse-
quência disso. Na valorização do fato, existe um aspecto de Euclides que o
recomenda ao máximo. É bem característico que ele enfrente os assuntos
dentro de um realismo quase cientifico. Quer dizer, ele era um sujeito antir-
religioso, não se preocupava com questão de religião. Era um realismo críti-
co. Graças a esse realismo crítico de Euclides, é que se pode, então, dizer que
nos deu Os Sertões, e nos deu o ciclo todo da Amazônia, porque queria pene-
trar os fatos. E por causa disso ele é bem atual.
Ligado a esse realismo crítico vem algo que deve ser muito enfatizado – no
sentido da vida para Euclides – e que é propriamente a linguagem. A lingua-
gem, para Euclides, era a conscientização da realidade. Aquilo que ele recebia,
conscientizando, precisava transmitir. Então, ele revelava as suas ideias, por-
que eram coisas que surgiam dele, como criações. Por isso é que Galotti disse,
no início, que Euclides tinha uma determinada genialidade. E Euclides escre-
via como quem surpreende a vida. Tanto que ele foi até lá para poder escrever
Os Sertões. Tudo o que escreveu, foi o que viu no local. Para a gente compreen-
der um pouco o que há de dramático em Euclides: não é um dramático emoci-
onal, é um dramático da ação que se faz na realidade. Esse é um ponto que Ga-
lotti faz questão de sustentar.
E, finalmente, concentrando isso tudo, o que há de maior em Euclides da
Cunha, e que Antonio Houaiss já salientou, é o patriotismo. Aliás, a palavra
exata seria nacionalismo. Para Galotti é o que há de especial, de maior em Eu-
clides, que deve ser cultivado por todos os que o leem: é o respeito às origens
de cada nação, o respeito às suas tradições, o respeito ao caráter nacional. E
que isso seja cultivado sem ufanismo e, aqui é preciso ser bem claro, respeitan-
82
Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
do o nacionalismo das outras nações. Esses são os aspectos que acha impor-
tantes, as dúvidas daqueles que organizam a Semana Euclidiana, quando se de-
dicam a procurar o sentido da vida de Euclides.
Franklin de Oliveira pede permissão para dizer que não se considera um es-
tudioso de Euclides. Mas um leitor, tanto quanto possível, atento. Num lance
de audácia, diz, foi que publicou um livro sobre Euclides.
Em sua exposição, Antonio Houaiss afirmou que uma das características de
Euclides seria a visão dualista do Brasil. Os dois Brasis: o Brasil da riqueza e o
Brasil da extrema pobreza. O primeiro seria o Brasil do litoral; o segundo, o da
hinterlândia, do sertão. E acabou na Amazônia. Euclides é importante para en-
contrar-se com ele a todas as horas, sobretudo para discordar dele. Então, aqui
já temos um plano de discordância. Mesmo em seu tempo já dava para saber
que a sociedade do litoral podia ser uma sociedade cosmopolita, no Rio, em
São Paulo, etc., mas que o resto da sociedade brasileira do litoral era tão pobre
quanto a do sertão. De maneira que aí era uma justificação um pouco grosseira
demais, para um analista do porte dele. Nesse meu livro, procurei salientar
isso. A miséria das populações rurais em nada difere da miséria, ainda hoje, das
populações do litoral brasileiro, dos pescadores, etc.
Quanto à questão de que Euclides, ao elaborar Os Sertões, já conhecia a lín-
gua portuguesa, dominava a literatura portuguesa, há o depoimento do Valdo-
miro Silveira, que disse justamente o contrário. Ficou espantado com a igno-
rância de Euclides em relação aos grandes autores da língua portuguesa. De
maneira que é realmente na observação de Valdomiro Silveira que esse proble-
ma é fascinante. Como esse homem, que desconhecia os grandes modelos da
língua, escreveu Os Sertões, dando aquele show de conhecimento da língua por-
tuguesa?
Outra coisa que Franklin de Oliveira acha importante salientar é o pro-
blema, que foi colocado por Antonio Houaiss e pelo Dr. Galotti, do cientifi-
83
Walnice N ogueira Galvão
cismo de Euclides. Mas Roquette-Pinto chamou a atenção para isto: que Eu-
clides teria sido o primeiro escritor brasileiro a criar uma obra de arte literá-
ria com bases científicas. Então, aí estaria, segundo Roquette, a grandeza de
Euclides. E isso num país de uma literatura de improvisação, uma literatura
rala, que não é rente ao fato, não é rente à linguagem, não é rente a nada, é um
produto alienado da imaginação dos autores. Portanto, uma literatura ca-
denciada conforme o interesse pelo saber científico era, realmente, uma coisa
louvável. Mas esse mesmo interesse levou Euclides às posições mais desas-
tradas. Levou a seu apego à antropogeografia; levou a seu apego às doutrinas
racistas. Quando ele viu, por exemplo, um negro brasileiro, não viu um es-
cravo, viu um negro como a expressão de uma raça condenada a desaparecer,
cheia de estigmas; e por aí afora. De maneira que o problema do cientificis-
mo, ou seja, das bases científicas da obra de Euclides, particularmente de Os
Sertões, é um problema que merece um exame bastante acurado.
Todos os presentes estariam em condições de fazer isso: e um estudo dessa
ordem apreenderia inclusive o Euclides geógrafo. Porque seria preciso verificar
qual é a ciência que chega ao Brasil na época. Mas a ciência, já do final do século
dezenove, começo do século vinte, não era a ciência reacionária a que ele se agar-
rou, não era exclusivamente essa. De maneira que os autores em que ele se abebe-
rou fartamente sem nenhum critério, sem procurar discernir criticamente o que
estava engolindo, formavam essa ciência reacionária. E isso leva a encarar o pro-
blema de Canudos de uma forma errada.
A seu ver, esse homem, que ficou tão impressionado com Canudos, foi in-
capaz de nos deixar uma reflexão mais bem elaborada sobre a questão da po-
breza brasileira. Isso é uma lacuna terrível. E dizer-se que a época em que ele
escreveu não permitia isso, não parece muito verdadeiro. De maneira, que, de
início, era esse o problema que Franklin de Oliveira queria colocar, não para
dar lições, mas para aprender com os colegas.
Outro aspecto, que foi colocado pelo Dr. Galotti, o problema da ideologia
de Euclides. Qual era o sentido da vida de Euclides, qual era a ideologia de Eu-
clides? Manifestando um certo horror à palavra ideologia, Franklin de Olivei-
84
Euclidianos e conselheiristas: um quarteto de notáveis
ra preferiria indagar qual era a sustentação, qual era o apoio, a base filosófica
de Euclides para fazer aquele monumento que, bem examinado, talvez seja
nosso primeiro grande ensaio. E, para essa grandeza, contribuíram as qualida-
des artísticas de Euclides, suas qualidades de escritor, até de poeta. Então a
pergunta seria: quais os fundamentos filosóficos de Euclides? Em que Euclides
assentou a sua visão do mundo, a sua visão da vida e a sua visão do Brasil? Sa-
bemos que até um certo momento ele esteve agarrado ao positivismo. Que em
matéria de filosofia social era matriz de um mercenarismo terrível. Vendo que
deu no Rio Grande do Sul o castilhismo, verifica-se o que foi o positivismo no
Brasil.
Passa então a admitir que, como muita gente, considerava Euclides socialis-
ta por várias razões, inclusive pelo ensaio “Um Velho Problema”. Mas um
exame atento pode surpreender o leitor. Primeiro, Euclides se propõe, no
ensaio, uma visão marxista, mas sem a armadura filosófica do marxismo. Ele fi-
cou na coisa menor, digamos assim – não, o termo menor não é o correto, mas
fica para facilitar – da visão do pobre, e do rico, enfim das desigualdades sociais
salientadas por Marx. Mas o que importa, o que dá grandeza a Marx, inclusive
para chegar ao Marx de O Capital, é o Marx que está atrás de tudo isso, o Marx
pensador, o Marx que vem desde os Manuscritos de 44. O pensamento filosófico
de Marx, tudo isso Euclides ignora. E cita dois autores para abonar as suas as-
severações, dois italianos, de nenhum significado na história do pensamento
socialista universal. Então, uma fonte muito precária, de segunda mão.
E esse ensaio, “Um Velho Problema”, seria o ponto mais avançado da evo-
lução intelectual aparentemente socialista de Euclides. Ele termina o ensaio,
quando se aguardava uma proposta revolucionária, com uma proposta evolu-
cionista, no final, pacifista, de transição social, de mudança da sociedade na
base da evolução. E o que é ainda mais grave, poucos anos depois, nas teses
para concurso de Lógica do colégio Pedro II, suas posições são francamente rea-
cionárias. Todos vocês sabem disso. Então, as contradições dele são terríveis.
Ele é muito mais útil às gerações futuras que querem pensar o Brasil, justamen-
te por suas contradições. Então, talvez, ele não ficasse zangado com estas opi-
85
Walnice N ogueira Galvão
niões, diz Franklin de Oliveira, porque ele era um homem que amava as con-
tradições, gostava de jogar com o preto e branco.
Há um outro aspecto de Euclides que merece também uma atenção especi-
al, e que lamenta não ter podido examinar em seu livro, que é o Euclides his-
toriador, aquele do ensaio “Da Independência à República”. Nesse ensaio,
Euclides não mostra o menor apreço pelos movimentos populares do país. E
trata na base de quem tem asco. Alguns têm a maior significação, como a Balai-
ada e a Cabanagem. Ele teria lido mal Nabuco e comete erros de quem não
consultou, não foi às fontes. Mas o que mais impressiona nesse ensaio é sua
posição, uma posição altamente elitista. O que vale para ele são os homens im-
portantes. E, em certo momento, ele chega a aplaudir o trucidamento dos par-
ticipantes do que chamou a breve irritação pernambucana, que foi a revolução de
1817.
Então, há coisas altamente desconcertantes em Euclides. Nada disso, e que
fique bem claro, tira a dimensão de grandeza dele. De nenhuma forma. Mas,
enfatiza Franklin de Oliveira, Euclides não pode ser tido por santo, nós não
podemos canonizá-lo. Então, ele precisa ser constantemente relido, mas relido
criticamente.
86
Prosa
Euclides da Cunha
e a Amazônia
Arthur Virgílio Senador pelo
Amazonas e
Líder do PSDB.
87
Arthur Virgílio
me viu nascer e que só não motivou um novo épico euclidiano porque a mor-
te arrebatadora o levou tão prematuramente, pouco tempo após a curta per-
manência na Floresta Amazônica. Fora ele contratado para realizar, como
resultado da Expedição Juruá, o levantamento hidrográfico do Rio Purus,
que haveria de possibilitar ao Brasil a solução de questões de fronteira com o
Peru.
Em Os Sertões, Euclides tem como figurante principal o homem brasileiro.
No livro que não chegou a escrever sobre a Amazônia, o tema seria a Terra.
Em ambos, a face humanista do escritor. No tocante a minha região, era de se
notar a preocupação com o meio ambiente, numa época em que isso não esta-
ria posto à mesa de estadistas ou intelectuais.
É certo que, nos primeiros contatos com a Grande Floresta, sua reação deno-
tava algum desapontamento, sem, no entanto, esconder o encantamento com “a
vegetação labiríntica e o emaranhado dos rios”. Tais contornos serviriam de ro-
teiro e objeto para o sonhado livro, a que daria o título de Um Paraíso Perdido,
inspirado na obra poética de John Milton. O texto, no entanto, jamais saiu da
cabeça para o papel. Euclides, contudo, em involuntária compensação, legou,
como relicário da Literatura Brasileira, alguns pensamentos em À Margem da His-
tória, publicado um mês após sua morte. Essa obra dividia-se em quatro partes:
“Na Amazônia, Terra sem História; Vários Estudos; Da Independência à Re-
pública; e Estrelas Indecifráveis”.
Um Paraíso Perdido, na definição do quase autor, seria um livro vingador.
Nele, pretendia denunciar a escravidão do homem pelos grupos que explora-
vam a borracha na mata. Os sete capítulos que compõem Amazônia, Terra sem
História serviriam de subsídios ou, ao menos, de roteiro para produzir a obra
imaginada que, como chegou a idealizar, poderia alcançar dimensão equiva-
lente à grandiosidade de Os Sertões.
Apesar de qualificar a Amazônia como o maior quadro da Terra, tal como des-
creve em À Margem da História, Euclides não disfarçava fortes reparos: “Toda a
Amazônia não vale o segmento do litoral brasileiro que vai de Cabo Frio à
Ponta do Munduba” – talvez em beleza, como a via o escritor, suponho. O fu-
88
Eu cl id es d a Cu nha e a Amaz ô nia
turo certamente desmentiria o genial pensador que, sem dúvida, por outro
lado, não seria ele próprio se não ousasse pensar audaciosamente.
Após pesquisar o escritor, passo a supor sua preocupação ambiental, em
plena fase áurea da borracha: “A impressão dominante que tive, e talvez cor-
respondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso.”
Seria o homem um intruso, porque, de acordo com outro trecho de Terra
sem História” ali chegara “sem ser esperado nem querido, quando a natureza
ainda estava arrumando o seu mais luxuoso salão. E encontrou uma opulenta
desordem”.
Multifacetado em escritor, sociólogo, engenheiro, repórter e professor, Eu-
clides deixou por escrito o registro técnico acerca do que, na região, mais o im-
pressionava, sobretudo em esplendor e vastidão: “Não se sabe se tudo ali é
uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos.”
Obra nem escrita nem, muito menos, acabada, imagino que Um Paraíso Per-
dido haveria de lhe exigir a permanência por mais tempo na Amazônia. De fato,
deparou-se com dimensões imensuráveis. E, para falar sobre a região, o tempo
limitado claramente conspira contra quaisquer relatos.
Euclides da Cunha tinha a seu favor uma grande vantagem, aquela que, em Ca-
nudos, o transformara em Repórter Especial. Como ele, Gilles Lapouge, outro
grande jornalista que esteve na Amazônia e gestou L’Amazonie, livro-reportagem
com um encadeamento de informação bruta, estatística, análises e depoimentos.
Gilles Lapouge passou quatro semanas na região e considerou tal permanência
“um tanto curta”. Para ele, “teria sido razoável percorrer a Grande Floresta em
quatro séculos, mas, para isso, me desculpem, eu não teria tido tempo”.
Por feliz coincidência, assim como o autor de Os Sertões, o jornalista francês,
que vive em Paris, produz reportagens para o mesmo jornal O Estado de S.Paulo.
Euclides conviveu apenas seis meses com a imensidão amazônica, singrando
seus rios por espaço de tempo infinitamente menor do que os quiméricos quatro
séculos imaginados por Lapouge. O repórter francês criou a figura um pouco
como fruto da imaginação ou do fantástico. Adotou a metáfora para misturar
realidade com fantasia, porém seguramente para também externar sua forte von-
89
Arthur Virgílio
90
Eu cl id es d a Cu nha e a Amaz ô nia
Latim, língua em que redigiu o texto: Casparis Balaei, Rervm per octennivm in Brasi-
lia et alibi nuper geftarum, Sub Praefectura Illftriffimi Comitis I. Mavritii, Nassoviae, &c.
Comitis, Nunc Vefallae Gubernatoris & Equitatus Foederatorum Belfii Ordd. Fub Avriaco
Ductoris, Historia.
Mas Euclides reveste-se de repórter e escritor para deixar registrada aquela
que seria, talvez, a primeira denúncia de desrespeito aos direitos humanos no
País. Antes de apresentar o seringueiro na sua definição do homem sujeito à
escravidão na região, escreve, no mesmo À Margem da História:
91
Arthur Virgílio
92
Eu cl id es d a Cu nha e a Amaz ô nia
“... Disse-lhe que quem resiste a tal clima tem nos músculos a elástica fir-
meza das fibras dos buritis (palmeira muito alta, nativa de Trinidad e Tobago, da Ve-
nezuela e da Região Norte do Brasil) e, nas artérias, o sangue frio das sucurijubas.
(cobra gigante mais conhecida como sucuri ou sucuriju).”
93
Arthur Virgílio
uma impressão empolgante”. Era a fase em que o quadro amazônico se lhe as-
semelhava, do ponto de vista artístico, inferior “a um sem número de outros
lugares do nosso País”.
Sua análise terá sido dura demais, notadamente ao declarar a região, como
já observei, sem os encantos que enxergava na faixa existente no litoral
Rio-São Paulo ou de Cabo Frio à Ponta do Munduba.
Exageros ou cotejos incabíveis à parte, a forte criatividade de Euclides da
Cunha denunciava-o em sua intimidade como alguém sensível a ponto de se
curvar à beleza singular e de incomparável dimensão e diversidade, de impossí-
vel medição comparativa. A Amazônia, reconhecida no mundo, como também
passou a defini-la Euclides, é a paisagem mais exuberante do País. E a mais fas-
cinante, também. Ao tempo dele, como ainda hoje.
Logo após seu desembarque em Manaus, em 30 de dezembro de 1904, Eu-
clides exprimiu, em texto, a primeira manifestação de apreço e aconchego à
Amazônia. E, também, de reconhecimento. Tal como se conclui por trecho de
carta enviada a seu pai: “[...] Em todos os pontos onde saltei fui gentilmente
recebido graças à influência de seu grande neto – Os Sertões.”
O escritor não avaliava o renome conquistado pela notável obra que, muito
justamente, conquistara o Brasil:
“... Realmente nunca imaginei que ele (Os Sertões) fosse tão longe. No
Pará tive uma lancha especial oferecida pelo senador Lemos e alguns rapa-
zes de talento. Passei ali algumas horas inolvidáveis... e jamais esquecerei a
surpresa que me causou aquela cidade. Nunca São Paulo e Rio terão as suas
avenidas monumentais largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas
de árvores enormes.”
94
Eu cl id es d a Cu nha e a Amaz ô nia
95
Arthur Virgílio
E mais:
“[...] Atentei outra vez nos baixios indecisos, nas ilhas ou pré-ilhas meio
diluídas nas marejadas – e vi a gestação de um mundo. O que se me afigu-
rava um bracejo angustioso era um arranco de triunfo. Era a flor salvando
a terra numa luta onde vislumbrava uma inteligência singular: aqui, enfile-
irando as aningas de folhas rijas, rebrilhantes e agudas à feição de lanças,
em estacadas unidas para o combate das águas; além, estendendo diante
das correntezas refertas de sedimentos, os retiários e os filtros das carana-
nas e dos aturizais; por toda a banda, alongando e retorcendo os tentácu-
los flexíveis dos mangues em urdiduras inextricáveis, em cujas malhas in-
finitas o lodo quase diluído vai transmudando-se em solo resistente, in-
ventando depois a anomalia dos arbustos-cipós e ajustando sobre tudo
aquilo os longos traços de união dos galhos estirados das apuiranas e dos
juquiris – até acravar-se no primeiro firme, que se vai construindo um alto
maritizeiro, abrindo no azul os seus enormes leques sussurrantes e pre-
nunciando a floresta ou vem logo após, impressionadora e majestosa, des-
truindo de repente toda a monotonia daquela imensidade nivelada com as
frondes das samaúnas, altas e redondas, a ondearem nos sem-fins das pai-
sagens como se fossem colinas.
Compreendi os mesmos céus resplandecentes e limpos: e que a terra toda
surge à flor das águas e emerge mais e mais, crescendo na ascensão da seiva das
florestas atraídas vigorosamente pelas energias incomensuráveis da luz.”
96
Eu cl id es d a Cu nha e a Amaz ô nia
97
Gilberto Freire
Arquivo da Fundação Gilberto Freyre
Prosa
100
A arei a sec a de E u c l i de s da C u n h a . . .
101
E d s o n N e ry d a Fo n s e c a
E acrescenta:
102
A arei a sec a de E u c l i de s da C u n h a . . .
“Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à
baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vi-
nho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão à paulista ou à mi-
neira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas de iaiás de sobrado.
Nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, açaí, sopa
de tartaruga, nem modinhas de violão, nem pescarias de Semana Santa,
nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem canários do Império,
nem caçadas de onça ou de anta nas matas das fazendas, nem banhos nas
quedas d’água dos rios de engenho – em nenhuma dessas alegrias caracte-
risticamente brasileiras Euclides da Cunha se fixou. Nem mesmo no gos-
to de conversar e de cavaquear às esquinas ou à porta das lojas – tão dos
brasileiros: desde a rua do Ouvidor à menor botica do centro de Goiás.”
103
Prosa
Euclides da Cunha e o
pensamento americano
Francisco V enancio Filho Ensaísta, biógrafo,
engenheiro e
professor. Dentre
suas obras
podemos destacar:
106
Euclides da Cunha e o p ensamento americano
107
Francisco Venancio Filho
108
Euclides da Cunha e o p ensamento americano
109
Francisco Venancio Filho
Paraguai. Afrânio Peixoto insistiu para que aceitasse, menos pelo brilho e altitu-
de que daria a esta representação do que pelas páginas que nos poderia ter dado.
Infelizmente malogrou-se esta possibilidade.
Por tudo isto, quando os povos irmãos do continente conhecerem mais
profundadamente, há de ser uma imposição estimarem o nome de Euclides da
Cunha, um dos símbolos mais expressivos da nacionalidade brasileira, que há
de se figurar também entre os grandes nomes do continente de Colombo.
110
Prosa
A estabilidade
interpretativa de
Os Sertões
L u i z C o s t a Lim a Doutor em Literatura
Comparada e Teoria
Literária pela USP.
Professor titular de
Teoria da História do
111
Luiz Costa Lima
112
A es t a b i l i d a d e in t e r p r e t a t i v a d e Os Sertõe s
Quem acaso conheça o livro que dediquei à obra maior de Euclides, Terra
Ignota. A Construção de Os Sertões (1993) poderá alegar que, até agora, não fiz
nada do que ali já não estivesse. É verdade. O retrospecto se impôs para que se
acrescentassem dois desenvolvimentos: (a) concerne à manutenção contempo-
rânea do juízo primeiro formulado por Veríssimo; (b) diz respeito às possí-
veis razões por que, a partir de 1952, se tornou possível a tentativa de estabele-
cimento de uma segunda norma interpretativa (advirto que o juízo expresso
por Araripe Jr. – embora seu ensaio tenha sido republicado no mesmo Juízos
Críticos (1904) que o de Veríssimo, não teve a relevância merecida – servirá de
apoio para a hipótese que propus em Terra Ignota, de que aqui não tratarei pro-
priamente). Desenvolvam-se as duas referências aludidas.
No único livro que se propõe analisar a presença das ciências naturais n’Os
Sertões, logo em seu início, o autor não só repete que “Euclides da Cunha cons-
truiu uma interpretação da nação brasileira baseada no consórcio da ciência e
da arte”, como cita passagem do tradutor de Euclides para o alemão, Berthold
Zilly, provavelmente datada de 1993, para quem, no fim do século XIX, era
possível que as culturas literária, sociológica, historiográfica, científica e tec-
nológica mantivessem um estado de proximidade, que permitiria estivessem
reunidas em um mesmo autor (cf. SANTANA, J. C. Barreto de: 2001, 35).
A hipótese de B. Zilly é no mínimo curiosa. No caso europeu, lembre-se a
análise do caso de historiador famoso do século XIX, Fustel de Coulanges
(1830-1889). A respeito de seu horror ao texto que escapasse da condição de
113
Luiz Costa Lima
ser glosado por um historiador, Hartog sintetizava sua firme posição: “Ho-
mem da ciência ou homem do comentário, o historiador como leitor não pode
nem deve ser um autor: a serviço do texto, ele jamais escreve senão os propósi-
tos dos outros” (HARTOG, F.: 2001, 155). O cientificismo exacerbado de
Coulanges não entendia que se concebessem autores senão banhados pelo áci-
do amniótico da retórica. Para o homem de ciência, “o texto serve propria-
mente de pretexto” (idem, 153). Mas, para que recorrer a exemplos europeus ou,
recordando a nacionalidade de Zilly, por que lembrá-lo do explícito absenteís-
mo estético de um historiador da literatura como Gervinus? Não é preciso for-
çar a memória. No próprio plano brasileiro, a suposta reunião das disposições
discursivas era desmentida pela prática do Visconde de Taunay; seu romance
Inocência (1872) tem um andamento romântico-sentimental bem distinto do
tom descritivamente austero de uma peça de cunho histórico-militar, A Retira-
da da Laguna (1871). Mas não só. O exemplo de Taunay ainda mostra que o
exercício de uma função historiográfica não o impedia de escrever bem. Baste
um exemplo. Ele se refere à decisão do comandante das tropas em retirada de
abandonar numa clareira os moribundos de cólera:
114
A es t a b i l i d a d e in t e r p r e t a t i v a d e Os Sertõe s
“Ele vinha mostrar [...] o erro do litoralismo político, que fora na Monar-
quia o Parlamentarismo, importando fórmulas e confundindo ficções com so-
luções, embora tendo conseguido organizar a estrutura social da nacionalidade
e fixar a face mais original de sua literaura, até então, e era agora na República o
115
Luiz Costa Lima
116
A es t a b i l i d a d e in t e r p r e t a t i v a d e Os Sertõe s
bido, escrever o Elogio Acadêmico da Senhora D. Maria Primeira, mostrava como sua
abordagem já não se confundia com a do tradicional panegírico: o informe
histórico, à semelhança do que Bonifácio, por força de seu cargo, estava encar-
regado, possuía uma secura de expressão, em vez das “flores da erudição e da
eloquência” que Rodrigues Lapa bem apontara a propósito dos panegíricos
compostos por João de Barros (cf. LAPA, R.: 1943, XXIV). Assinale-se, ade-
mais, que “o termo literário exerce aqui a importante função de unir as duas fa-
ces da Academia – as Ciências e as Belas-Letras” (ARAUJO, V. de L.: idem,
26). Todas estas informações agora se calam ante a passagem decisiva. Embo-
ra só publicado em 1839, o Elogio foi proferido em 1817:
117
Luiz Costa Lima
tão preciso: porque “a noção científica do caso” [é exigida para que então se efe-
tive] a verdadeira impressão artística”, “estou convencido”, [‘apesar da crítica de
Veríssimo, ser correta a maneira como compus Os Sertões’]. Ora, a que “noção ci-
entífica do caso” corresponde, no texto de Bonifácio, senão a “esplendor das
ciências indispensáveis” e o que causaria a “impressão artística” senão “orna-
to[s] e atavios”? Mais distante da tradição retórica, para a qual era lugar comum
tratar dos ornatos e atavios das belas-letras, e próximo do subjetivismo românti-
co, era natural que Euclides antes falasse em “impressão artística” do que em or-
nato das belas-letras. Em suma, no concernente ao relacionamento entre ciências
e artes, a diferença entre o ambiente letrado português do começo do século
(1817) e o brasileiro, nos anos em que Euclides compunha Os Sertões, era apenas
a de que o primeiro se permitia uma maior precisão – ornatos e atavios, em vez
de “impressão”, “ciências indispensáveis”, em vez de “noção científica do caso”.
O impressionismo euclidiano, contudo, não o levou a aproveitar o fim da chaci-
na para que publicasse a denúncia do que testemunhara. Preferiu reunir suas no-
tas às leituras e à contribuição dos amigos por estar convencido de ser aquela a
oportunidade única para “[...] esboçar, palidamente embora, ante o olhar dos fu-
turos historiadores, os traços atuais mais expressivos das subraças sertanejas do
Brasil” (CUNHA, E. da: 1903, 85).
Acrescentem-se duas observações. A primeira ganharia em relevância se
aqui desenvolvesse o que tenho escrito sobre a identidade discursiva da obra
em exame. Direi apenas que à desmontagem da tese originada em Veríssimo
corresponde à afirmação de que Os Sertões são, de fato, o que o autor quis que
fosse o livro: uma interpretação sobre as possibilidades futuras do país ante
sua formação étnica; já a questão da feição efetivamente literária de certas par-
tes suas não poderá ser aqui considerada (cf. COSTA LIMA, L.: 1997). Por este
motivo, o resgate de Araripe Jr. é apenas insinuado: ele vinha narrando o per-
curso do livro e acabara de notar a entrada em cena de um famoso jagunço,
“negro corpulento e ágil, que surge entre os renques de pedras, no alto da
montanha, como um verdadeiro demônio [...]”. Interrompe momentaneamen-
te a descrição e não percebe a riqueza da intuição que se deposita na pequena
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A frase não precisava ter articulação plena para ser a perfeita formulação do
círculo vicioso: “Não tenho provas do que digo, mas estou absolutamente cer-
to que as terei tão logo esmague os que as guardam.” Afinal, sem o denunciado
complô não se justificava nem a presença das tropas, nem a resistência que en-
contravam. Com a argúcia de que Euclides não era capaz, dirá Araripe Jr. que,
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Sem negar a importância do new criticism, haveremos de concordar que sua aten-
ção concentrada ao texto, seu close reading, era prejudicada por seu mínimo embasa-
mento teórico. Isso, por um lado, facilitava seu intercâmbio com os representantes
da filologia europeia – daí a identificação do alemão Hatzfeld da literatura como
“obra de arte da linguagem” – e, por outro, sua rápida superação. Por isso, a desig-
nação “revolucionária” – Os Sertões como obra de ficção – podia, paradoxalmente,
ser bastante tradicional. Por essa frente, por conseguinte, a lição de Veríssimo es-
tava resguardada. E com mais razão ainda o conceito romântico de nacionalidade,
130
A es t a b i l i d a d e in t e r p r e t a t i v a d e Os Sertõe s
que continuava indiscutível aos críticos de então. Mas, e sua caracterização simul-
tânea como obra de ciência? Não creio que alguém duvide que o propósito de Eu-
clides fosse formular uma interpretação científica do país, afastada da “vibração
rítmica dos versos de Gonçalves Dias” (CUNHA, E. da: 1902, 144), fundada em
“a noção científica do caso”, para a qual tinha como regra capital desviar-se “so-
bremodo, dessa literatura imaginosa, de ficções, onde desde cedo se exercita e se
revigora o nosso subjetivismo” (CUNHA, E. da: 1906, I, 206). Mas a questão se
complicava porque a ciência que Euclides absorvera, a antropologia biológica, im-
plicando a diferença de capacidade das raças, com a superioridade da branca, não
só – o que não era novidade nos meios evolucionistas – reservava um futuro opaco
para o país, como, desde a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, corria o risco
de ser lido como uma defesa antecipada do arianismo. Esse embaraço se tornava
insuportável porque a tese “ficcional” aparece quando o nazismo está derrotado;
não só suas pretensões de superioridade racial tinham sido destruídas como era
política e intelectualmente perigoso insinuá-las. Em troca, louvar Os Sertões como
obra ficcional, se não mesmo um romance, era conservar o reconhecimento de seu
trabalho sobre a linguagem e extirpar o risco da perigosa mancha negra. O cânone
interpretativo de Os Sertões ultrapassara o rápido estremecimento recebido e recu-
perava sua estabilidade: afinal, afirmá-lo obra ficcional não significava negar que
fosse uma obra de literatura pois trabalhava com a linguagem e a imaginação; tam-
pouco prejudicava que fosse a quintessência da nacionalidade porque nenhuma
outra obra fora tão fundo na percepção de nossa “rocha viva” e tão sarcástico com
nossa “civilização de empréstimo”. Mas onde ficava sua simultaneidade de obra
de ciência e arte? Para o intérprete daqueles anos cinquenta e de hoje, há um certo
embaraço. Mas nada de irremediável. Bastará que recordem que Euclides se basea-
va na ciência de seu tempo; datada como toda ciência – pior ainda quando serviu
de respaldo a um regime político que foi derrotado –, ela não precisaria nem deve-
ria ser esmiuçada. É portanto obra de ciência e de literatura, mas, sendo de uma
ciência ultrapassada, é seu caráter literário que importa; dizê-lo, significa ser uma
obra que explora a potencialidade da linguagem, chegando, nos momentos mais
intensos de “A Luta”, às raias do romance. Assim, sem maior esforço, mantém-se
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Luiz Costa Lima
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A es t a b i l i d a d e in t e r p r e t a t i v a d e Os Sertõe s
1
Procurei efetivamente desmanchá-lo em História. Ficção. Literatura, “Seção C: Literatura” (cf. COSTA
LIMA, L.: 2006, 319-372).
133
Luiz Costa Lima
Referências bibliográficas
ANDRADA E SILVA, J. B.: Elogio Acadêmico da Senhora D. Maria Primeira” (1817), confor-
me edição da Tipografia Imparcial de Francisco Paula Brito, Rio de Janeiro, 1839,
in Obras Científicas, Políticas e Sociais, coligidas e reproduzidas por Edgard de Cerqueira
Falcão, vol. II, 1963, sem indicação de cidade, pp. 1-58.
ANDRADE, O. de Souza: História e Interpretação de Os Sertões (1960), cito a 4.a edição
revista e aumentada, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2002.
ARARIPE JR.: “Os Sertões (Campanha de Canudos)”, originalmente em O Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 6 e 18 de março, 1903, republicado em Juízos Críticos
(1904) e em Obra Crítica de Araripe Júnior, Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, cinco
volumes (1958-1970). Cito de acordo com o vol. IV (1901-1910), Rio de Janei-
ro, 1966, pp. 89-124.
ARAUJO, V. Lopes de: A Experiência do Tempo. Conceitos e Narrativas na Formação Nacional
Brasileira (1813-1845), São Paulo, Editora HUCITEC, 2008.
COSTA LIMA, L.: Terra Ignota. A Formação de Os Sertões, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1997.
COSTA LIMA, L.: História. Ficção. Literatura, São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
COUTINHO, A.: “Os Sertões, Obra de Ficção” (1952), republicado in Euclides da Cunha:
Obra Completa, dois volumes, vol. II, Coutinho, A. (organ.), Rio de Janeiro, José
Aguilar Editora, 1966, pp. 57-62.
CUNHA, E. da: “A Nossa Vendéia”, I, 14 de março de 1893, reprod. in Diário de uma
Expedição, Galvão, W. N. (org.), São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
CUNHA, E. da. Os Sertões (1902), edição crítica, Galvão, W. N. (org.), São Paulo, Bra-
siliense, 1985.
CUNHA, E. da: Carta a José Veríssimo de 3 de dezembro, 1903, em GALVÃO, W.
N. e Galotti, O. (org.): Correspondência de Euclides da Cunha, São Paulo, EDUSP,
1997.
134
A es t a b i l i d a d e in t e r p r e t a t i v a d e Os Sertõe s
135
Euclides da Cunha
Arquivo da ABL.
Prosa
2
GALVÃO, Walnice Nogueira e GALOTTI, Oswaldo (orgs.). Correspondência de Euclides da Cunha. São
Paulo; EdUSP, 1997, p. 306. A carta foi enviada em 13 de junho de 1906.
3
PONTES, Elói. A Vida Dramática de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1939.
4
BERNUCCI, Leopoldo (org.). Euclides da Cunha. Os sertões. Campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001, p. 13.
5
Joel Bicalho Tostes em depoimento a Adelino Brandão. In: Águas de Amargura. O Drama de Euclides da
Cunha e Anna. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990, p. 9.
6
Judith Ribeiro de Assis em depoimento a Jeferson de Andrade. Anna de Assis. História de um Trágico
Amor. Rio de Janeiro: Codecri, 1987.
138
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
7
Joel Bicalho Tostes em depoimento a Adelino Brandão. In: Águas de Amargura. O drama de Euclides da
Cunha e Anna. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990, p. 9, meus destaques.
8
Idem. “A respeito deste livro”, p. 184.
9
Um importante biógrafo de Euclides, adotou caminho oposto: “A vida de Euclides foi descrita nas
páginas deste livro sem que precisássemos utilizar os recursos da imaginação. (...) Preferimos, no caso
da biografia do autor de Os Sertões, procurar os dados objetivos nas suas fontes próprias – a
documentação escrita ou o testemunho pessoal – e nunca o arbítrio de uma ficção (...)”. (Sílvio
Rabello. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p 1. Aliás, o seco título da obra
explicita o desejo de objetividade.)
10
Idem, p. 15.
139
João Cezar d e Castro Rocha
nal. Dilermando de Assis já havia empregado o expediente, tendo como alvo so-
bretudo a biografia de Elói Pontes, como esclarece o título de A Tragédia da Pieda-
de. Mentiras e Calúnias de A vida dramática de Euclides da Cunha.11
11
ASSIS, Dilernando de. A tragédia da Piedade. Mentiras e Calúnias de A vida dramática de Euclides da
Cunha. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1952.
12
VENANCIO FILHO, Francisco . A Glória de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1940, p. XI.
13
FREIRE, Gilberto. Atualidade de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1941,
pp. 31-2. Passagem retomada em Gilberto Freire. Perfil de Euclides e Outros Perfis. Rio de Janeiro: Rio de
Janeiro: José Olympio, 1944, meus destaques, p. 50. Noutra passagem, Freire é ainda mais claro na
caracterização da personalidade de Euclides: “O autor d’Os Sertões foi um homem com uma grande
dor, nem sempre disfarçada nas cartas aos amigos nem nos livros que escreveu. Retraído e calado, era
um indivíduo triste para quem a vida tinha poucos encantos; a quem o mundo oferecia raras alegrias.”
(Idem, p. 30. Passagem retomada em Gilberto Freire. Perfil de Euclides e Outros Perfis. Rio de Janeiro: Rio
de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 49.)
140
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
Um livro-conflito
No final de 1902 Euclides da Cunha publicou Os Sertões, seu livro de estreia.
No ano seguinte, o ingresso na Academia Brasileira de Letras fechou o círculo
da consagração imediata e incomum. Na verdade, em alguma medida, a consa-
gração já se anunciava antes mesmo do aparecimento do volume:
14
REALE, Miguel . Face oculta de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p. 20.
15
Idem, p. 21.
141
João Cezar d e Castro Rocha
142
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
21
CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Leopoldo Bernucci (org.). São Paulo:
Ateliê Editorial, Imprensa Oficial, 2001, p. 138.
22
Idem, p. 80.
23
Idem, p. 207.
24
Idem, p. 207.
143
João Cezar d e Castro Rocha
25
Idem, p. 67.
26
CUNHA, Euclides da. “A nossa Vendéia”. Olímpio de Souza Andrade (org.). Canudos e Inéditos. São
Paulo: Edições Melhoramentos, 1967, p. 48. Artigo publicado em O Estado de S. Paulo em 14 de março
de 1897.
27
Idem, p. 49.
28
Idem, p. 54. O segundo artigo foi publicado em O Estado de S. Paulo em 17 de julho de 1897.
29
VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha. Esboço Biográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 2003,
p. 152.
144
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
30
ANDRADE, Olímpio de Souza (org.). Canudos e Inéditos. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1967,
p. 77. A passagem na íntegra é reveladora: “Estas e outras histórias, contam-nas, aqui, os soldados,
colaboradores inconscientes das lendas que envolverão mais tarde esta campanha crudelíssima.”
31
CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Leopoldo Bernucci (org.). São Paulo:
Ateliê Editorial, Imprensa Oficial, 2001, p. 67.
32
CUNHA, Euclides da. Canudos e inéditos. Olímpio de Souza Andrade (org.). São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1967, p. 127.
33
CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Leopoldo Bernucci (org.). São Paulo:
Ateliê Editorial, Imprensa Oficial, 2001, p. 778.
145
João Cezar d e Castro Rocha
34
Idem, p. 780.
35
ANDRADE, Olímpio de Souza. História e Interpretação de Os Sertões. Walnice Nogueira Galvão
(organização e introdução). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002, p. 371.
36
Idem, p. XXVII.
146
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
37
Idem, p. XXVIII.
38
VENANCIO FILHO, Francisco (org.). Euclides da Cunha a Seus Amigos. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1938, p. 11. Opinião semelhante foi defendida por Freire: “É de Euclides esta
caracterização de sua própria vida: ‘romance mal arranjado’. Nesse ‘romance mal arranjado’ um dos
seus maiores consolos foi decerto o da amizade”. Gilberto Freire. Perfil de Euclides e Outros Perfis. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1944, meus destaques, pp. 46-47.
147
João Cezar d e Castro Rocha
39
ANDRADE, Olímpio de Souza. História e Interpretação de Os Sertões. Walnice Nogueira Galvão
(organização e introdução). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002, p. 4.
40
Idem, p. 9.
41
Idem, p. 106.
148
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
intelectual. Ao recordar a gênese de La guerra del fin del mundo, Mario Vargas
Llosa afirmou que se sentira atraído “en la historia de Canudos, [por] la total
incomprensión de las partes que hablaban dos lenguajes incomunicados”.42 O
engenheiro-escritor projetou uma ponte simbólica entre os dois universos – o
sertão e o litoral. E, enquanto redigia seu manuscrito, reparava a ponte do Rio
Pardo que desabara logo após uma malograda inauguração.
E as duas obras foram sendo erguidas ao mesmo tempo. Em páginas reve-
ladoras, Olímpio demonstrou como Euclides chegou à cidade dominado
pelo tema e pela ambição de escrever um livro vingador, denúncia do massa-
cre de Canudos. Contudo, ainda não controlava todos os aspectos do assun-
to e, sobretudo, apresentava uma lacuna surpreendente: desconhecia os prin-
cipais autores das literaturas brasileira e portuguesa, “para os quais, entre-
tanto, se voltava agora depressa, em cima da hora, quase sem tempo para
isso...”.43 Olímpio completou a informação: “Forte em lexicologia, pouco
seguro em matéria de sintaxe, foi que ele chegou a São José do Rio Pardo,
onde encontrou o vagar [...] para retocar por inteiro os trechos que escrevera
e publicara pouco antes.”44
O tempo provavelmente teria sido um obstáculo intransponível não fosse a
presença de fiéis amigos que criaram um círculo de debates em torno dos inte-
resses intelectuais do engenheiro, no qual já vislumbravam o escritor consagra-
do. Destacava-se o prefeito Francisco Escobar, homem de reconhecida cultura
e dono de respeitável biblioteca, franqueada a Euclides. Esse seleto círculo dis-
cutiu o manuscrito de Os Sertões, colaborando para o aprimoramento da forma
e para o enriquecimento da argumentação. Em alguma medida, é como se Os
42
Informação extraída do diário de Ángel Rama, na entrada referente ao dia 23 de fevereiro de 1980.
Eis a citação: “Pero también le atraía, en la historia de Canudos, la total incomprensión de las partes que hablaban dos
lenguajes incomunicados: unos luchando contra una conspiración política anti-republicana y otros buscando el reino de Dios
en la tierra.” Ángel Rama. Diario 1974-1983. Montevidéu: Ediciones Trilce, 2001, p. 125.
43
ANDRADE, Olímpio de Souza. História e Interpretação de Os sertões. Walnice Nogueira Galvão
(organização e introdução). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002, p. 243.
44
Idem, p. 282.
149
João Cezar d e Castro Rocha
Sertões também fosse um livro coletivo, como a saga nele estudada.45 A descri-
ção de Francisco Venancio Filho merece ser transcrita:
45
Na observação precisa de Freire: “Raro o escritor, o artista ou o cientista que tenha tido amigos e
colaboradores tão bons como os que Euclides da Cunha teve na Bahia e no Amazonas, em São Paulo
e no Rio”. (FREIRE, Gilberto. Perfil de Euclides e Outros Perfis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, meus
destaques, p. 47.)
46
VENANCIO FILHO, Francisco. A Glória de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1940, pp. 26-27.
150
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
47
ANDRADE, Olímpio de Souza. História e Interpretação de Os Sertões. Walnice Nogueira Galvão
(organização e introdução). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002, p. 426. Nesse
contexto, é interessante recordar a anotação de Cassiano Ricardo: “Mais interessante, porém, que
Euclides bandeirologista é o Euclides bandeirante. É ele próprio praticando a arte de bandeirar – ou
de ‘sertanejar’, como diria um documento de outra época.” (RICARDO, Cassiano. “O Bandeirante
Euclides”. O Homem Cordial e Outros Pequenos Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro, 1959, p. 339. O texto reproduz conferência realizada na Semana Euclidiana de 1947, realizada
na cidade de São José do Rio Pardo.)
151
João Cezar d e Castro Rocha
48
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Um Clássico dos Estudos Euclidianos”. In: ANDRADE, Olímpio
de Souza. História e Interpretação de Os sertões. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002,
p. XVII. Francisco de Assis Barbosa já havia reconhecido o valor desses originais: “Olímpio de Souza
Andrade, autor do magnífico História e Interpretação de Os Sertões, de leitura indispensável, deixou
inédito (e acredito que incompleto) um livro complementar que teria como título Euclides da Cunha:
depois de Os Sertões, levantamento exaustivo de tudo que conseguiu ler e comentar sobre a saga
euclidiana e sua copiosa bibliografia até 1976 (ano de seu prematuro falecimento), ele que era o mais
atento e devotado cultor da memória do escritor”. (BARBOSA, Francisco de Assis. “Apresentação”.
SAMPAIO NETO, J. A. V.; SERRÃO, M. de B. M.; MELLO, M. L. H. L. de; URURAHY, V. M. B..
Canudos. Subsídios para a sua Reavaliação Histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1986, p. V.)
152
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
das como foram estas notas, prodígio de apreensão rápida e definitiva, dispen-
sando consultas posteriores, pôde o engenheiro de estradas, a testemunha de
combates, o demarcador de fronteiras, satisfazer as suas nobres necessidades
de pensador.”49 Em suma, um levantamento indispensável e que se converteu
em guia para mais de uma geração de euclidianos – e recorde-se que já mencio-
nei sua organização da correspondência ativa de Euclides. No final do livro,
como se fosse apenas um despretensioso apêndice, Venancio Filho cotejou ri-
gorosamente as edições de Os Sertões, anotando com paciência beneditina as
modificações, acréscimos e supressões realizadas pelo perfeccionista Eucli-
des.50 Aliás, devemos a Sílvio Rabello uma página definitiva acerca do zelo do
autor com a apresentação de sua obra.51 Não é, portanto, casual que Venancio
Filho seja dos autores mais citados por Olímpio de Souza Andrade, muito
embora Olímpio tenha-se centrado exclusivamente no longo processo de for-
mulação e maturação de uma única obra: Os Sertões.
Ao mesmo tempo, porém, Venancio Filho não limitou sua perspectiva à
obra-prima de Euclides, mas procurou abarcar a vida toda do autor, incluindo
a repercussão internacional tanto da obra de Euclides, quanto de sua morte. O
desejo de síntese do conjunto da vida e da obra de Euclides é a marca distintiva
49
VENANCIO FILHO, Francisco. A glória de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1940, p. 137.
50
Para uma análise das mudanças efetuadas por Euclides da Cunha, ver Walnice Nogueira Galvão.
“A emendatio euclidiana”. Euclides da Cunha. Os Sertões. Campanha de Canudos. Edição crítica de
Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998, pp. 567-581.
51
“Nervoso, avançou e abriu o primeiro exemplar ao alcance das mãos. Lá estava um a sem o devido
acento; outro a com um acento descabido. Lá estava um que repetido várias vezes no mesmo período,
soando mal aos ouvidos. Lá estavam vírgulas e ponto-e-vírgulas espalhados e que eram nódoas
horríveis. O livro era uma grande nódoa. [...] Depois, dispôs-se a emendar todos os defeitos, todos os
erros, os tipográficos e os próprios. Durante dias e dias, diante dos operários aturdidos, não arredou
pé da tipografia para raspar, a ponta de canivete, os acentos indicativos de crase e as vírgulas mal
postas; para pingar com uma pena, novos acentos e novas vírgulas. Um por um, cerca de mil
exemplares da tiragem passaram pelas mãos do revisor inexorável. Em cada exemplar, emendou
oitenta erros. Oitenta mil emendas ao todo. Euclides estava exausto da canseira. Mas o livro
parecia-lhe mais apresentável”. RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966, pp 164-65.
153
João Cezar d e Castro Rocha
de sua biografia e, por isso, em mais de uma passagem propôs juízos abrangen-
tes da contribuição do homem e do escritor: “A vida de Euclides da Cunha é
assim um exemplo e a sua obra um padrão.”52 Ao mencionar a repercussão in-
ternacional de seu livro mais importante, estabeleceu paralelos sugestivos:
“Será ele, quando de futuro se der o balanço exato dos nossos valores, como
um Ibsen para as terras escandinavas, um Tagore para o misticismo poético da
Índia.”53 Abrangência e síntese que também informam a biografia de Roberto
Ventura, publicada póstumamente, a partir das notas e dos esboços encontra-
dos e organizados por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.
52
VENANCIO FILHO, Francisco. A Glória de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1940, p. 59.
53
Idem, p. 211.
54
O uso do condicional não é fortuito, pois como um dos organizadores do livro reconheceu:
“‘Euclides da Cunha – uma biografia’ não é o livro que Roberto publicaria por razões literárias,
sobretudo, e pela falta de ênfase nas interpretações que ele gostaria de fazer.” (CARVALHO, M. C.
“Diálogo com a Memória de um Computador”. In: VENTURA, R.. Euclides da Cunha. Esboço Biográfico.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 10.)
55
Idem, p. 33.
154
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
155
João Cezar d e Castro Rocha
58
VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha. Esboço Biográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp.
261-62.
59
O método é tão sugestivo, que talvez tenha contagiado um dos principais colaboradores de
Roberto Ventura, dessa vez através do estabelecimento de um possível paralelo entre biografado e
biógrafo: “Autor consagrado, Euclides da Cunha teve um fim trágico e precoce em 15 de agosto de
1909, ao 43 anos [...]. Durante o retorno para São Paulo, uma tragédia [...] trouxe a morte precoce
para Roberto Ventura, aos 45 anos de idade e uma intensa e brilhante vida intelectual.” (SANTANA, J.
C. B. de. “Antes do texto”. Roberto Ventura. Euclides da Cunha. Esboço Biográfico. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003, pp. 17 & 21.)
156
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
Coda
No prólogo às vidas paralelas de Alexandre e César, Plutarco estabeleceu a
célebre distinção entre a escrita de histórias e a narrativa de vidas.62 Enquanto
aquelas supõem a preocupação com o coletivo e o grandioso, estas demandam
60
Idem, p. 258.
61
FREIRE,Gilberto. Perfil de Euclides e Outros Perfis. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: José Olympio,
1944, meus destaques, p. 27. Adiante, Freire é ainda mais taxativo: “Sente-se, na sua correspondência,
que Euclides da Cunha procurou em vão a imagem que prolongasse na sua vida de adulto triste a da
mãe morta quando ele tinha apenas três anos [...]”. (Idem, p. 47.)
62
Para um esclarecedor comentário acerca dessa distinção, ver Aurelio Pérez Jiménez. “Introducción
general: Plutarco de Queronea”. Plutarco. Vidas Paralelas. I. Barcelona: Biblioteca Básica Gredos, 2001,
pp. XXV-XXVIII.
157
João Cezar d e Castro Rocha
158
H i s t ó r i a s o u Vidas ?
159
Prosa
Naturalistas e
cientistas: algumas
fontes de Os Sertões
J os é Car lo s B ar r eto d e S a nt a na Reitor e
Professor Titular
da Universidade
Estadual de Feira
de Santana
161
Jos é Carl os Barreto d e Santana
1
Em 2003, José Leonardo do Nascimento e Valentim Facioli organizaram uma nova edição dos Juízos
Críticos, acrescentando-lhe mais dois textos da época, sendo um deles de autoria de José Campos Novaes
(publicado inicialmente na Revista do Centro de Ciência Letras e Artes de Campinas) e o outro, o discurso feito
por Sílvio Romero durante a recepção de Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras, em 1906.
Não consta nesta edição o parecer do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre a proposta de
sócio de Euclides da Cunha.
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Jos é Carl os Barreto d e Santana
E novos elementos vão surgindo, traços menores são visíveis nesta nova es-
cala: pequenos rios aparecem, a vegetação finalmente pode ser percebida e o
observador afinal avista os habitantes daquelas paragens.
Nesta viagem fantástica, do sul ao norte, de alto a baixo, Euclides da Cunha
realiza algumas das suas generalizações, tentando fundir, em poucas páginas, o
conhecimento que vinha sendo construído num largo tempo pelos viajantes
naturalistas e cientistas. O roteiro percorrido é o mesmo por onde transitaram
alguns, como Spix, Martius e Gardner, onde se fixaram outros, como Eschwe-
ge e Lund, e ainda o espaço onde se verificaram as atividades, por exemplo, da
Comissão Geológica do Império, da Escola de Minas de Ouro Preto, das Comissões de Explo-
ração do Rio São Francisco, da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e da Comissão
de Exploração do Planalto Central.
As generalizações indicam que o diálogo de Euclides da Cunha se faz com
atores e tradições diferentes, o que significa dizer que, neste caso, o autor não
se permitiu uma linha reta, onde o seu texto possa ser imediatamente cotejado
com o de um outro narrador, vale então o alerta de Leopoldo Bernucci para a
166
N a t u r a l i s t a s e ci e n t i s t a s : a l g u m a s fo n t e s d e Os Sertões
167
Jos é Carl os Barreto d e Santana
Faune et Geographie Botanique du Brésil (1872). Liais considerava que, entre as idades
secundária (Era Mesozóica) e terciária (Era Cenozóica), um rebaixamento do
território brasileiro permitiu o depósito de camadas terciárias em regiões que
atualmente constituem o planalto brasileiro. Para reforçar as suas opiniões, Liais
inclui, na descrição de tal evento, evidências levantadas por Hartt, Agassiz,
Gardner, Humboldt e outros investigadores da América do Sul e Central.
Hartt, antes de Liais, admitia que, durante o terciário, o planalto do Brasil
esteve submetido a uma submersão de extensão continental, e suas ideias a res-
peito apareceram no capítulo XIII do A Journey in Brazil (AGASSIZ, 1868), e no
Geology (1870). No trabalho “Recent Explorations in the Valley of the Ama-
zonas”, publicado na revista da American Geographical Society of New York (1872),
Hartt estabeleceu uma hipótese mais geral sobre a gênese do continente ameri-
cano, que teria uma parte transcrita por Derby no seu trabalho “Contribuições
para a Geologia da Região do Baixo Amazonas”, publicado em 1877 no
Arquivos do Museu Nacional.
Hartt descreveu, assim, uma parte dos eventos geológicos no continente su-
lamericano, entre as Eras Mesozóica e Cenozóica:
168
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170
N a t u r a l i s t a s e ci e n t i s t a s : a l g u m a s fo n t e s d e Os Sertões
sil entre os séculos XIX e o início do século XX. A lista dos autores citados
nesses levantamentos bibliográficos vai desde viajantes naturalistas, como
Martius e Gardner, a pesquisadores estrangeiros que aqui se fixaram e fizeram
carreira, a exemplo de Lund e Derby, passando pelos integrantes da comuni-
dade científica local, como Gonzaga de Campos, Francisco de Paula Oliveira e
Teodoro Sampaio. Se uma parcela dos trabalhos encontra-se em livros e pe-
riódicos internacionais, outra se faz presente em livros e periódicos nacionais,
incluindo aí revistas de sociedades científicas e instituições de pesquisa.
A existência de um número considerável de obras relacionadas ao conheci-
mento geológico entre o século XIX e o início do século XX possibilita que se
indague sobre a maneira pela qual esta produção estaria acessível aos que,
como Euclides da Cunha, dela necessitassem ou desejassem conhecer. A difi-
culdade de acesso a uma parte destas obras sobre o Brasil, que contemplavam
autores tão variados, incluindo naturalistas, geólogos e engenheiros, encon-
trando-se espalhadas em publicações realizadas em várias partes do mundo,
muitas delas difíceis de serem encontradas, e contendo, às vezes, notas misce-
lâneas de um viajante numa região pouco conhecida, foi registrada por John
Casper Branner quando da elaboração do seu Resumo da Geologia do Brasil para
Acompanhar o Mapa Geológico do Brasil (1919).
Uma dificuldade adicional poderia ser o idioma da publicação. Neste
caso estariam colocadas as principais obras sobre a geologia brasileira de au-
toria de Wilhelm von Eschwege, publicadas na Alemanha, sendo poucas as
que foram traduzidas para o português ou mesmo para o francês, idioma
bem mais acessível aos que, no Brasil, se dedicassem ao seu estudo. Derby,
considerando a qualidade das pesquisas do Barão de Eschwege e reconhecen-
do que elas não eram tão conhecidas no Brasil como deveriam ser, torna-se
uma espécie de comentador do mesmo, contribuindo para torná-lo acessível
a um público mais amplo. Assim, se o nome de Eschwege aparece citado em
Os Sertões (CUNHA, 1902/1985, p. 94), existe uma forte possibilidade de
que isto aconteça mais pela leitura dos seus comentadores, do que pela con-
sulta direta a este autor.
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175
Jos é Carl os Barreto d e Santana
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Jos é Carl os Barreto d e Santana
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VERÍSSIMO, José. “Uma história dos Sertões e da Campanha de Canudos”. In: Ju-
ízos Críticos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1904. pp. 22-32.
178
Prosa
Euclides e sua
Ars Poetica
Leopoldo M. Bernucci Doutor em Literatura
Hispano-Americana e
Língua Espanhola pela
University of Michigan.
Professor Titular da
cátedra Russell F. and
179
Leop oldo M. Bernu c c i
2
Embora o consórcio entre arte e ciência tivesse sido proclamado por Leconte de Lisle na França,
no Brasil, por volta de 1870, ele se traduziria em alguns casos, não muito significativos, como os de
Sílvio Romero e Martins Jr.
3
“Estrelas Indecifráveis”, À Margem da História. Porto: Livraria Chardron, 1909, pp. 373-390.
180
Euclides e sua Ars Poetica
4
Há ainda uma terceira versão resgatada por Félix Pacheco, que foi publicada sem título.
181
Leop oldo M. Bernu c c i
rativa, nos dá prova inconteste de que era um mestre da lima. Veja-se, neste
exemplo, onde um trecho de “Último Canto” recebe três versões e termina
sendo re-elaborado com grande esmero.
Deste modo, nessa poesia que se quer “imperfeita”, mas cuja imperfeição é
justamente motivo de orgulho do poeta, vamos encontrar as contradições da
escola. Por um lado, Fagundes Varela criticando o uso das sinalefas e das sín-
copes no Romantismo português e brasileiro, e, por outro, Euclides seu fiel
imitador, abusando das elisões, da falta de simetria e da forma do soneto 5.
A efusão e a torrencialidade que marcam tão bem a poesia hugoana, Euclides
as absorveu de maneira excepcional, registrando ele mesmo o método pelo qual
escrevia em notas a alguns poemas que, afora uma, ficaram todas ao final do ca-
derno Ondas. Esta nota, precisamente colocada no rodapé da página dos versos
5
A título de comparação, é bom lembrar que, só em Ondas, há 33 sonetos, e, entre os poemas
dispersos, mais 17, formando um total de 50.
182
Euclides e sua Ars Poetica
6
Para a influência de Byron no Brasil e em Portugal, consultar: Pires de Almeida. A Escola Byroniana no
Brasil: suas Origens, sua Evolução, Decadência e Desaparecimento. Jornal do Commercio. São Paulo: Conselho Estadual
de Cultura, 1962; Onédia Célia de Carvalho Barboza. Byron no Brasil, Traduções. São Paulo: Ática, 1974; e
o estudo de Matthew Lorin Squires, “The Byronic Myth in Brazil: Cultural Perspectives on Lord
Byron’s Image in Brazilian Romanticism”, Tese de Mestrado, Brigham Young University, Department
of English, 2005. Ver ainda os poemas “Igreja abandonada”, “Reminiscência (II)”, “Fenômenos da
lua”, “Ridendo”, “Despedida”, “Meia Hora de Descrença”, “Um soneto”, “Choques”, “O Cólera”, “...
A rir” e “Os Lêmures”.
7
Byron: “Count o’er the joys thine hours have seen, / Count o’er thy days from anguish free, / And know, whatever thou hast
been, / ’Tis something better not to be”; Leopardi: “E il naufragar m’è dolce in questo mare”.
8
Comparar com o poema “A Igreja Abandonada”.
183
Leop oldo M. Bernu c c i
9
HARDMAN, Francisco Foot , “Brutalidade Antiga: sobre História e Ruína em Euclides”. Estudos
Avançados 10, 26 (1996): 293-310.
184
Euclides e sua Ars Poetica
185
Leop oldo M. Bernu c c i
“Eu acho-me no início da vida, nunca me foi necessário [...] apelar para a
rigidez fria da razão, ter necessidade da calma, com o sangue a ebulir nas
veias, o coração a estuar doloridamente e a vida combalida, oscilando, num
desequilíbrio cruel de todo o sistema nervoso.
A existência ainda é para mim uma quimera dourada e fascinante que eu
guardo com um ciúme alucinado de avaro; faço da dor um brinquedo; e
fantasio-me de descrente, por desfrute.”15
12
“Discurso de Recepção”, Academia Brasileira de Letras. Obra Completa, I, Rio de Janeiro: Cia. José
Aguilar Editora, 1966, p. 206.
13
Idem, p. 207.
14
“Críticos”, Obra Completa, I, p. 520.
15
Idem, p. 520.
186
Euclides e sua Ars Poetica
In nuce, está quase todo o prefácio de Cromwell contido nessas poucas frases,
mesmo estando ausente a palavra “grotesco”. Comparemos.
16
Idem, pp. 518-519.
17
Victor Hugo. Do Grotesco e do Sublime – Tradução do “Prefácio de Cromwell”. Trad. e notas de Celia
Barretini. São Paulo: Editora Perspectiva, p. 25.
18
“Castro Alves e seu Tempo”, Obra Completa, I, p. 430. Nesta mesma linha de pensamento, Euclides
diria em outro lugar: “Pensamos demasiado em francês, em alemão, ou mesmo em português. Vivemos em
pleno colonato espiritual, quase um século após a autonomia política”. Ver “Preâmbulo” ao Inferno Verde,
de Alberto Rangel, in Obra completa, I, p. 452.
187
Leop oldo M. Bernu c c i
vra ressoa intensamente para designar também esse “gênio obscuro da nossa
raça”. É evidente que a especificidade nacional atribuída ao poeta de “O Navio
Negreiro” adquire um alcance que transcende a esfera do escritor baiano para
tocar também a sua, onde o conceito de imitação artística é particularmente rele-
vante.19 Basta recordar o emprego que Euclides faz de uma imagem de Pascal
com o intuito de colocar V. Hugo, Castro Alves e a si próprio num mesmo cír-
culo e em relação contígua e des-hierarquizada, demonstrando a contribuição
formidável dos poetas e escritores à humanidade ao longo dos anos:
Será a partir de 1890 que Euclides reconfigurará a poética que vinha ali-
mentando os seus escritos para revesti-los de uma complexidade ainda maior.
Preso ainda aos preceitos da gramática romântica, e com certeza muito mais à
do Romantismo alemão do que qualquer outra, porque aquela tinha a vanta-
gem de ser totalizante e totalizadora21, ele foi buscar suporte teórico em Her-
bert Spencer para estabelecer a conjunção entre a arte e a ciência, no que diz
respeito à noção de troca de saberes e à relação de co-dependência e comple-
mentação entre ambas as partes.
19
Ver meu estudo A Imitação dos Sentidos: Prógonos, Contemporâneos e Epígonos de Euclides da Cunha. São Paulo:
Edusp, 1995.
20
“Questões Sociais”, II, Obra Completa, I, p. 547.
21
Observe-se o que ainda diz o autor: “Somos uma raça romântica. Mas romântica no melhor juízo desta
palavra proteiforme, que é definida de mil modos, e ajusta-se às incontáveis nuanças do sentir humano, de
sorte a passar-se dos lenços encharcados de lágrimas, de não sei quantos delinquescentes prantivos, para a
ironia lampejante das páginas de Henrique Heine”. In Contrastes e Confrontos, Obra Completa, I, p. 435.
188
Euclides e sua Ars Poetica
189
Leop oldo M. Bernu c c i
finição tainiana, posto que ela reflete as muitas outras, idênticas ou semelhan-
tes, dos manuais de composição do século XIX.25 A “arte científica”, tal como
foi plasmada pela mentalidade finissecular é aquela derivada da indagação e da
demonstração da verdade,26 de raiz positivista, porquanto as ciências agora pro-
curavam ordernar e controlar os fulgores do espírito. Todavia, a ideia de que a
verdade estava ligada também ao conhecimento dos fenômenos naturais e das
ciências está de longa data prescrita nas preceptivas do passado.
25
Cf. Salvador Arpa y López, Manual de Estética y Teoría del Arte (Madrid: Librería de Victoriano Suárez,
1895): “El objeto de la Historia es la bella narración y exposición de los hechos más importantes de la humanidad, con el
fin último de ir mostrando su común naturaleza y su destino. De esta definición se deduce que el objeto o asunto de
la Historia ha de ser marcadamente artístico, así como lo es su expresión y forma” (p. 74).
26
Cf. Arpa y López, p. 13.
27
Francisco Joseph Freire, Arte Poetica ou Regras da Verdadeira Poesia em Geral, e de Todas as suas Especies Principaes,
Tratadas com Juizo Critico, tomo I (Lisboa: Offc. Patriarcal de Francisc. Luiz Ameno, 1759, pp. 45-49)
28
Ver os meus estudos: A Imitação dos Sentidos; “Prefácio” à edição de Os Sertões (São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001, pp. 13-49) e “Pressupostos Historiográficos para uma Leitura de Os Sertões”, (Revista da
USP 54, (2002): 6-15).
190
Euclides e sua Ars Poetica
posteriores, tenhamos ainda em conta o seu gosto pelo retrato e a descrição da pai-
sagem, os quais, para a sua plena realização, estariam sendo informados pelas
regras gerais de um manual de composição que fez parte da biblioteca particu-
lar do autor: La Description et le Portrait de Mario Roustan.29 Neste também, o
conceito de narração verdadeira se emparelha com o já visto de Taine, “Il n’y a
qu’une narration acceptable: la narration vraie. Que le fait se soit passé réellement ou qu’il
soit imaginé, le récit doit nous donner avant tout l’impression de la réalité vivante.”30
“A sua fronte pálida, iluminada por um olhar fulgurante assomava sobre a multidão
rugidora, dominado-a.”32
.....................................................................................................................................
“[...] um homem – face pálida, olhar desvairado, gestos incoerentes [...]”33
.....................................................................................................................................
29
Sou grato ao meu saudoso amigo, Dr. Oswaldo Galotti, por ter-me cedido há duas décadas uma cópia
manuscrita do inventário dos livros da biblioteca particular de Euclides da Cunha. O manual de
Roustan, ao que parece popularíssimo na época, apresenta um problema de datação considerável.
Conjecturamos que a primeira edição seja de 1900 (M. Roustan, La Description et le Portrait. Paris: Librairie
Classique Paul Delaplane).
30
Idem, p. 10. Veja-se também esta observação do autor sobre a paisagem: “Tout le monde a lu les poétiques
descriptions des paysages d’Amèrique par Chateaubriand. On soupçonnait l’auteur d’avoir dépeint plus de tableaux qu’il n’en
avait observé; mais on n’osait se hasarder à préciser, ce qui prouve bien que là même où Chateaubriand avait vu les contrées à
travers les livres, son évocation de la nature américaine n’etait ni moins vraie ni moins sincère.” (Ib., p. 25)
31
Idem, p. 64.
32
Cf. MS de Os Sertões. Ver A Imitação dos Sentidos, p. 159. Todos os itálicos desta e das seguintes citações
são meus.
33
Idem.
191
Leop oldo M. Bernu c c i
34
Contrastes e Confrontos, em Obra Completa, I, p. 103.
35
Artigo publicado em O Estado de S. Paulo (23.8.1897). Ver Diário de uma Expedição, org. por Walnice
Nogueira Galvão (São Paulo: Cia. das Letras, 2000).
36
Contrastes e Confrontos, em Obra Completa, I, p. 217.
37
Obra Completa, I, 600.
38
A Imitação dos Sentidos, pp. 204-205.
192
Euclides e sua Ars Poetica
.....................................................................................................................................
“[...] naquele rosto de convalescente sem uma linha original e firme: pálido,
alongado pela calva em que se expandia a fronte bombeada, e mal alumiado pelo olhar morti-
ço, velado de tristeza permanente.”39
39
CUNHA, Euclides da, Os Sertões, ed., prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci,
p. 423.
40
1. “Meu caro Coelho Neto, / felizmente / Esta fisionomia, / De onde ressalta a ríspida expressão /
Da face de um tapuia, espantadíssima, / Hás de achá-la belíssima.... / Porque saberás ver, nitidamente, /
Com os raios X da tua fantasia, / O que os outros não vêem: um coração...” / [S. Paulo 903]; 2. “Em
falta de um post karte, iluminura / Que enquadre do que penso ou sinto a imagem, / Em relevo, na
artística moldura / De um trecho fugitivo de paisagem – / Aí vai, para saudá-lo no remanso / De um
lar, onde terá digno conchego, / Este caboclo, este jagunço manso / – Misto de celta, de tapuia e
grego!...” – // Lorena – 26-12-90
193
Leop oldo M. Bernu c c i
194
Euclides e sua Ars Poetica
“[...] o telégrafo, vibrando eletricamente a comoção geral, transmitira aos mínimos recantos
do mundo o espantoso crime [...].”44
.....................................................................................................................................
“[...] e as linhas telegráficas vibraram logo sob o contágio da mesma nevrose transmitindo ao
governo do estado, ao governo da União, ao país inteiro o recrudecimento brusco da
crise que assaltara os sertões.”45
.....................................................................................................................................
“Vibravam entretanto, continuamente as linhas telegráficas das margens do sertão para a
capital da Bahia e daí para a capital da União e desta última para todos os pontos do país
[...]”46
.....................................................................................................................................
41
“Dia a Dia” (11.5.1892), Obra Completa, I, p. 610.
42
Os Sertões, p. 114.
43
“Estudos sobre Higiene”, I, Obra Completa, I, p. 397.
44
“Dia a Dia” (10.4.1892), Obra Completa, I, p. 597.
45
Cf. MS de Os Sertões. Ver A Imitação dos Sentidos, p. 160.
46
Cf. MS de Os Sertões. Ver A Imitação dos Sentidos, p. 171.
195
Leop oldo M. Bernu c c i
Assim, abraçando uma vez mais o consórcio entre arte e ciência, o artista
deve buscar a “‘verdade extensa’ de Diderot, ou o véu diáfano da fantasia, de
Eça de Queirós, distendido sobre todas as verdades sem as encobrir e sem as
deformar, mas amorfoseando-as e retificando-as [...]”.50 Na prática discursiva,
essa aproximação entre o pictórico e o literário se transmite através de ima-
gens, nas quais o jogo de luz euclidiano se parece às soluções pictóricas encon-
tradas nos quadros barrocos de um Vermeer, um Caravaggio, um Velázquez
ou um Joseph Wright.
47
Os Sertões, p. 352.
48
Os Sertões, p. 354.
49
Obra Completa, I, p. 188.
50
Idem, p. 119.
196
Euclides e sua Ars Poetica
De par com esse tipo de descrição visual, que Gilberto Freire já havia nota-
do quando o chama o “estilista mais dominado pelo sentido escultural da fi-
gura humana e da natureza selvagem que já escreveu no Brasil”53, caminha a
sua linguagem muitas vezes barroca impregnada de antíteses, antinomias, oxí-
moros, períodos ciceronianos, construções hipotáticas, tudo num processo de
intensificação que Alfredo Bosi define da seguinte maneira:
51
Os Sertões, p. 311.
52
“El claro-obscuro se refiere exclusivamente a la luz, y determina el grado de claridad y obscuridad que a cada objeto
iluminado corresponde, ora esté en luz, ora en sombra, ya se halle inmediatamente iluminado, ya mediatamente o por reflejo.
Pertenecen también a este elemento los toques de luz y de sombra, las llamadas sombras arrojadas, las luces y sombras de las
superficies curvas, la luz irradiada y las sombras compuestas.” (Cf. Salvador Arpa y Lopez, pp. 65 e 66).
53
FREYRE, Gilberto, Perfil de Euclydes e Outros Perfis. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1944, p. 29.
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54
BOSI, Alfredo. “Prólogo”, Euclides da Cunha, Os Sertões. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 16.
55
FREYRE, p. 35.
56
Ver o meu “Prefácio” em Euclides da Cunha, Os Sertões, pp. 13-49.
198
Euclides e sua Ars Poetica
critor faz do ornato na sua escritura: “Por isso seu resultado não poderia ser
integrado à borda ornada (à literatura-ornamento), nem tampouco ao texto
central, que, por princípio, se apoia em observações medidas e testadas.” 57
Estas poucas observações que aqui se enfeixam, tem por finalidade, como
dissemos acima, contribuir para uma melhor compreensão do discurso poéti-
co (prosa e poesia) de Euclides da Cunha e produzir no leitor futuras indaga-
ções que possam eventualmente abrir outros caminhos para um entendimento
cabal do modo como o nosso autor, utilizando o português, constrói discur-
sos originalíssimos. Não é gratuito que nós, hoje, continuemos a apreciar o es-
forço e o talento de Euclides, que, inconformado com os ismos de sua época, se-
guiu pela linha reta e desafiadora de seu modo tão particular de pensar.
57
FACIOLI, Valentim A., p. 112. COSTA LIMA, Luiz, p. 171.
199
Igreja de São Pedro dos Clérigos,
Mariana, MG
Prosa
Aspectos da poesia
de Alphonsus de
Guimaraens Filho
Ivan Junqueira Ocupante da
Cadeira 37
na Academia
Brasileira de
Letras.
201
Ivan Junqueira
202
A s p e c t o s d a p o e s i a d e A l p h o n s u s d e Gu i m a rae n s Fi l h o
ses poetas era, assim, muito mais árdua do que aquela que cumpriram seus an-
tecessores. E aqui recordo, guardadas as devidas proporções, da situação em
que se encontrava Baudelaire com relação aos seus antecessores e que assim foi
definida por Valéry em célebre ensaio sobre o autor de Les Fleurs du Mal: “O
problema de Baudelaire podia então – devia então – colocar-se da seguinte
maneira: ser um grande poeta, mas não ser nem Lamartine, nem Hugo, nem
Musset.” Mutatis mutandis: não ser, para esses poetas da década de 1940, nem
Drummond, nem Vinicius, nem Murilo. E talvez seja em razão desse impasse
que se cristaliza a Geração de 45, na qual Alphonsus Filho costuma escolasti-
camente ser incluído. O desafio desses poetas era, portanto, o de buscar uma
identidade pessoal que lhes permitisse afastar-se da área de influência daqueles
grandes autores dos anos 30, os quais, é bom que se lembre, já encontraram o
terreno limpo do hieratismo parnasiano e da evanescente música simbolista,
que nada tinha a ver com aquela “music of poetry” de que nos fala T.S. Eliot.
Claro está que Alphonsus Filho deve algo à Geração de 45, cujos pressu-
postos estéticos nos remetem à necessidade de retorno aos cânones de um cer-
to e mitigado classicismo, de resgate das formas fixas e das medidas métri-
co-rímicas contra as quais se insurgiu o Modernismo, e até mesmo de recupe-
ração de um comportamento psicológico que seria antes apolíneo do que dio-
nisíaco. Deve a ela, também, certas preocupações que se tornaram característi-
cas do ideário estético e doutrinário daquele grupo, como a ostensiva e siste-
mática reação contra o desleixo formal que dominou a primeira fase moder-
nista, a busca do equilíbrio e a reflexão sobre o humano e o universal, em troca
daquela obsessão nacionalista de que se nutriram os poetas da década de 1920.
E restaria ainda ponderar, no que concerne ao emprego de metros tradicionais
de que se valeu Alphonsus Filho, bem como outros autores daquela época, que
há em todos os grandes poetas um elemento vestigial daquilo que se pode defi-
nir como a “ideia parnasiana”, apesar do que supõem os espíritos simplistas de
limitações escolares. E há ainda, no caso de Alphonsus Filho, uma herança
inextinguível da vertente simbolista, essa vertente de que seu pai, do lado de
Cruz e Sousa, foi o maior representante entre nós.
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de sua alma, e é nisso que reside o mistério de sua funda religiosidade. Seu verso
não revela nenhum vestígio de circunstância: é pura e estrita essência. Sob esse as-
pecto, somente Manuel Bandeira, Dante Milano e Odylo Costa, filho se lhe po-
dem comparar. Não há em Alphonsus Filho aquele afã construtivista que observa-
mos em João Cabral de Melo Neto ou Ferreira Gullar, dois altíssimos poetas que
lhe são, aliás, contemporâneos de geração. É claro que nele há sempre busca, há
trabalho, há transpiração, há às vezes até desespero diante da palavra ou da forma
que se procura e não se encontra. E há, acima de tudo, o instinto criador. Por isso,
sua poesia flui com tanta espontaneidade, fiel às exigências de um ritmo sutil e afi-
nado que todo grande poeta traz consigo desde o berço.
Mas vejo agora, ao fim desta conferência, que cometi um imperdoável equí-
voco: falei demais sobre o poeta e quase não deixei que ele próprio falasse. Va-
mos tentar reparar esse erro. Entre as muitas formas poéticas cultivadas por
Alphonsus Filho, avulta, sem dúvida, a do soneto, como aqui, aliás, já comen-
tamos. Mas algo talvez tenha ficado por dizer. Disse-o, exemplarmente, José
Guilherme Merquior quando, no ensaio “Arte Maior do Soneto”, incluído no
livro O elixir do Apocalipse, observa, confirmando um pouco o que eu mesmo su-
blinhei no parágrafo anterior, que Alphonsus Filho “oculta os andaimes da
técnica numa acentuada singeleza de expressão, e numa economia vocabular
que lembra a lição de Bandeira. Aliás, Alphonsus é, como esse outro fino sone-
tista que foi Odylo Costa, filho, um poeta que foge ao enfeitismo pirotécnico
da maioria das vozes de sua geração”, e que, sob a influência do “despojamen-
to bandeiriano, irá também evitar até mesmo alguns traços do lirismo de seu
pai, o grande simbolista de Mariana”. Sábias palavras. Mas que a última pala-
vra fique, não comigo ou Merquior, e sim com o poeta que nos ensina o que
significa essa arte maior do soneto. Ouçamo-lo:
211
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212
Prosa
O universo poético
de Alphonsus de
Guimaraens *
E d u ar do P o r t e l l a Ocupante da
Cadeira 27
na Academia
Brasileira de
Letras.
1
PEREGRINO JÚNIOR. Origem e Evolução do Simbolismo, p. 19, RJ, 1957.
214
O u niverso p oético de Alphonsus d e Guimaraens
2
MURICY, Andrade. Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Vol. 1, p. 34. Rio de Janeiro, Instituto
Nacional do Livro, 1952.
215
Eduardo Portella
216
O u niverso p oético de Alphonsus d e Guimaraens
3
MURICY, Andrade,
Op. cit., p. 8.
4
LIMA,
Alceu Amoroso. Poesia Brasileira Contemporânea, p. 59. Belo Horizonte, Livraria Editora Paulo
Bluhm, 1941.
217
Eduardo Portella
5
LISBOA, Henriqueta. Alphonsus de Guimaraens, p. 33. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1943.
218
O u niverso p oético de Alphonsus d e Guimaraens
sua poesia, e eram antes, intimamente absorvidas, mero alimento das vivên-
cias próprias da sua imaginação e da sua sensibilidade”.6 Mas certa identi-
dade de tonus, e ainda os versos alphonsinos “Mais fizera, Senhora, se pudes-
se / Oficiar no Mosteiro de Verlaine”, fizeram com que alguns incautos
imaginassem um compromisso desabonador entre o poeta de Dona Mística e o
autor de Sagesse. O que na verdade não tem procedência. O próprio exame do
verso alphonsino nos conduzirá a conclusão inteiramente oposta. A influên-
cia verlainiana seria apenas quanto ao tonus, quanto à atmosfera da sua poesia.
Quanto ao verso, não. O verso ímpar de Verlaine era de nove sílabas.
Alphonsus nunca utilizava esse metro. E mais: no caso específico da redon-
dilha, vamos observar exatamente que a redondilha utilizada por Alphonsus
era ibérica e não francesa. O verso popular ibérico, a redondilha maior, se
compõe de sete sílabas. Enquanto o francês é octossilábico, segundo a nossa
contagem. Com respeito ainda ao verso, não podemos dizer que encontra-
mos em Alphonsus aquela “prodigue variété des rythimes [que] traduit la variété jail-
lissante de la vie”, de que fala Jacques-Henry Bornecque7 a propósito de Verlai-
ne. Alphonsus foi um poeta menos audacioso, inclusive no interior do verso.
Onde Alphonsus se mostra como que ortodoxamente simbolista, e por ve-
zes até verlainiano, é na utilização vocabular, e mais, é no seu modo de consi-
derar como ideal estético “la musique avant toute chose”. Logo do exame do seu vo-
cabulário, vocabulário de cunho evidentemente simbolista, vamos surpreender
em Alphonsus um poeta inteiramente identificado com a língua da sua Escola.
Já observou Gladstone Chaves de Melo que “uma das coisas que mais chamam
a atenção na obra de Alphonsus é seu conhecimento da língua. O idioma em
suas mãos é um instrumento dócil, fino e riquíssimo. Às vezes, por necessida-
de poética, principalmente como recurso de evasão, ele usa formas arcaicas;
outras vezes ele cria, com grande independência e propriedade, palavras ou
6
MURICY, Andrade. In A Literatura no Brasil. Direção de Afrânio Coutinho. Vol. III, t. 1, p. 167, Rio de
Janeiro: Livraria São José, 1959.
7
BORNECQUE, Jacques-Henry. Lumières sur les Fêtes Galantes de Paul Verlaine, p. 93. Paris: Librairie Nizet.
1959.
219
Eduardo Portella
Pela calada
Da noite triste
8
MELO, Gladstone Chaves de. Alphonsus de Guimaraens (Poesia), p. 15. Rio de Janeiro: Livraria Agir
Editora, Nossos Clássicos, 1958.
9
MARTINO, P. Parnasse et Symbolisme, p. 146. Paris: Librairie Armand Colin, 1950.
10
PÁDUA, Antônio de. “Neologismos Poéticos”, In Cultura, p. 145. Rio de Janeiro: abr. 1949.
220
O u niverso p oético de Alphonsus d e Guimaraens
Não era, é certo, um verso livre como aquele que viria a ser entendido depois,
pelos modernistas. Era, isto sim, “o verso livre como o praticaram Rimbaud e
Laforgue, isto é, o verso livre à imitação das canções populares”.11, segundo a
observação exata de Manuel Bandeira. Aquele verso livre cujo primeiro apareci-
mento se verificaria precisamente com o Simbolismo, através de Adalberto
Guerra Duval: Palavras que o Vento Leva (1900). Aliás, mesmo diante do soneto,
Alphonsus não se mostra um conformado. Quase podemos dizer dele que criou
o seu soneto. Pelo ritmo, o encadeamento, a cadência:
11
BANDEIRA, Manuel. “Alphonsus de Guimaraens”, In Revista do Brasil, p. 163. Rio de Janeiro: ago. 1938.
221
Eduardo Portella
222
O u niverso p oético de Alphonsus d e Guimaraens
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
223
Eduardo Portella
cia o verso par. O que certamente se explica por serem os versos pares (decassí-
labo, alexandrino) os mais usuais na língua francesa. O ímpeto renovador ver-
lainiano era como que contido por esse sólido suporte tradicional. Mas
Alphonsus não raro se identifica pela variedade rítmica. Há inclusive aqueles
casos de alternância dentro de uma mesma forma expressiva: redondilhas de
oito e de nove sílabas. Fato que se vai responsabilizar pela ausência de mono-
tonia num poeta de, inegavelmente, pouca variedade temática.
Também os elementos fonéticos sobre os quais se apóia o verso alphon-
sino contribuem extraordinariamente para aumentar a sua musicalidade e,
consequentemente, a sua força expressiva. O binômio poesia-música en-
contra nele um admirável servidor. As rimas (esquemática e interna), as ali-
terações, as assonâncias, os cognatismos, todos eles, se empenham em con-
ferir ao seu verso, uma estranha e pessoal orquestração, como se a poesia
fosse, mais do que tudo, música. No que Alphonsus mais uma vez se iden-
tifica com o autor dos Poèmes Saturniens, uma vez que, para o Verlaine sim-
bolista, o da Ars Poétique, o verso devia ser – quem o traduz é Pierre Martino
– antes de tudo, música; uma harmonia de sons que fazem sonhar. A rima,
música insuficiente e penosa coação, deve atenuar-se; poderá reduzir-se à
assonância das canções populares, que basta para dar ritmo.12 Repudiando
em alguns instantes a função coatora das rimas – mas sem jamais ter conse-
guido delas se libertar – e ao mesmo tempo preocupado com a musicalida-
de, a poesia de Alphonsus tirou particular proveito das assonâncias e das
aliterações. A sua música, advirta-se, não era wagneriana, como a de Cruz e
Sousa, mas possivelmente raveliana.
O campo de operação imagístico sobre o qual atua a poesia de Alphonsus
de Guimaraens é dos mais surpreendentemente ricos, como era, de um modo
geral, o de toda a poesia simbolista. Uma imagística abstrata, sem nenhuma
presença de objetos. E onde “preocupado com a beleza das imagens – conclui
Enrique de Resende –, que lhe saíam por vezes deliciosamente extravagantes,
12
MARTINO, P. op. cit., p. 114.
224
O u niverso p oético de Alphonsus d e Guimaraens
A jurisdição do tema
A temática de Alphonsus de Guimaraens era uma temática circunstancial e
monocórdica. Mas não circunstancial no sentido de que era acidental. Pelo
contrário. Circunstancial no sentido de que lhe era outorgada pela sua circuns-
tância, pelo seu mundo circundante: por Mariana, sua vida e sua paisagem mís-
tica. Alphonsus, à maneira dos místicos espanhóis, é paradoxalmente místico e
realista. Daí o amor objetivo, que o liga às coisas materiais, em contraposição
ao amor pelo sobrenatural, que explica em última análise a sua obsessão pela
morte. O realista está refletido, de modo ainda mais cabal, na sua poesia hu-
morística. Com efeito, os dois temas centrais do universo poético de Alphon-
sus de Guimaraens são o amor e a morte. Como se o poeta nada mais fosse do
13
REZENDE, E. de. Retrato de Alphonsus de Guimaraens. 2.a ed., p. 53. Rio de Janeiro: s. ed., 1953.
14
RICHARDS, I. A. Principles of Literary Criticism, p. 119. Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1955.
225
Eduardo Portella
O processo dialético
Mas não se pode compreender Alphonsus imaginando-o um escravo da sua
geografia. De modo algum. Seu mundo não era apenas o mundo do real, do
concreto, de Mariana, embora, é certo, muitas vezes esse pequeno mundo che-
gasse a condicionar ou determinar o seu comportamento. O mundo de
Alphonsus, isto sim, era aquele imenso universo aonde só têm acesso os “cava-
lheiros andantes”. Era um mundo ideal e não real, onde um permanente empe-
nho de abstração o afasta inteiramente do objeto, para aproximá-lo daquela
que seria a atitude mística.
Mas a poesia de Alphonsus de Guimaraens não é a de um místico. É verda-
de que, como já mostraram Bremond e Maritain, o poeta e o místico estão li-
gados por inúmeros vínculos. E mais: é também certo que o simbolismo
“como fenômeno, é o princípio unificador de todos os escritos místicos”. 15
Porém, é ainda Hatzfeld quem adverte: “A realidade do místico é Deus; a
realidade do poeta é o humano ou o divino no sentido geral.” A realidade de
Alphonsus era, mais do que tudo, a realidade do poeta. Artisticamente ela-
borada.
15
HATZFELD, Helmut. Estudios Literarios sobre Mística Española, p. 15. Madrid: Editorial Gredos, 1955.
226
O u niverso p oético de Alphonsus d e Guimaraens
Permanência de Alphonsus
E é esta elaboração artística altamente qualificada que explicará a perma-
nência de Alphonsus de Guimaraens. E mais do que permanência, este prolon-
gamento de Alphonsus na admiração dos nossos maiores poetas. Seria um ca-
pítulo sedutor e revelador do nosso ensaísmo literário o que se ocupasse da
ressonância da obra de Alphonsus em poetas do porte de um Mário de Andra-
de, que já em 1919 viajaria a Mariana para conhecer o autor de Câmara Ardente,
de um Manuel Bandeira, um Oswald de Andrade, Henriqueta Lisboa, Carlos
Drummond de Andrade, Emílio Moura, Murilo Mendes, Augusto Frederico
Schmidt. É uma estima sobretudo surpreendente nos momentos de rebeldia e
de irreverência modernista. Tem sido ainda uma estima prolongada, crescente;
o que se justifica porque poeta como ele era o irreverente Oswald de Andrade
quem proclamava, ainda em plena fase polêmica do Modernismo, 25 de julho
de 1921, “honram não só uma geração como uma pátria”.
227
Edla van Steen
Prosa
229
Leodegário A. de Azevedo Filho
230
E d l a v a n St e e n e a a r t e d o c o n t o re a l i s t a
E adiante:
231
Leodegário A. de Azevedo Filho
“Por sua vez, ele pensou no quanto a antiga namorada ainda estava boni-
ta e atraente. Onde já se viu acontecer uma coisa daquelas? Calor esquisito.
Não estava passando bem. Era uma besta. Devia ter esperado pelo próximo
encontro. Continuava o canalha de sempre – tirou a camisa. O conquista-
dor que perdia a mais infame das batalhas. Olhou-se no espelho. Um mer-
da. Isso o que ele era. E sentiu vontade de vomitar.” (Final da página 54).
232
E d l a v a n St e e n e a a r t e d o c o n t o re a l i s t a
233
Leodegário A. de Azevedo Filho
234
Prosa
A universalidade poética
de Carlos Nejar
I zac yl Gu i m ar ãe s Fe r r e ir a Escreve, traduz e
comenta poesia.
Prêmio ABL
de poesia em
2008, edita a
235
Izacyl Guimarães Ferreira
De longo curso
Para Elza
236
A u ni versali dade p o éti c a de C a r l o s N e j a r
O vento é outra de suas palavras, desde sempre, e aqui ele sopra em vários
poemas, em especial num dos poucos longos do que ouso chamar de livrinho,
pois Nejar é um autor de livrões... Dos primeiros poetas brasileiros a escrever
não só seriais, mas poemas-livros, de um só poema do primeiro ao último ver-
so. Porque, embora seja capaz de brevidades invejáveis que aparecem nesta an-
tologia, Nejar é um poeta que privilegia os temas de longa extensão. Exemplo
deste procedimento é o poema que começa na página 66 e se titula: “Os ho-
mens eram sombrios”. Várias outras coisas são os homens deste belíssimo e
duro poema, em que ao fim nos tornamos pedra, pedra, pedra. O poeta diz
que cada poeta faz seu dicionário. Está no poema título do livro: “Poetas cri-
am / seu dicionário com o da própria espécie.”
Com elas vivem, com elas morrem. Mas ficam para sempre, se sabem, como
Nejar, tratar seu instrumento e com ele enfrentar a indesejada:
Sem Estrela
A morte ia comigo e eu, com ela.
E vi o seu ridículo vestido,
o andar desajeitado e sem sentido,
o rosto com penteado de donzela,
237
Izacyl Guimarães Ferreira
Noite, alma, vento, morte. E estrela, onda, memória, estrela, onda, memória, pampa, eu,
tempo. Palavras de quase todo poeta, de quase todo homem. O segredo de Ne-
jar, tal como só os grandes poetas são capazes de realizar, está na sabedoria
com que as usa e filtra para uma representação digna de sua Obra, que, sabe-
mos todos, tem vastíssima fortuna crítica, que vem desde seus começos, e tra-
duções para os felizardos de outros idiomas. (Nestes tempos de internet, uma
simples consulta ou busca no google desfilará telas e telas sob o nome Carlos
Nejar).
Mais: nestes tempos em que universidades estudam mais os mortos que os
vivos, Nejar é tema desde há muito. Pois, como bem demonstra esta antologia,
seja qual seja o filtro que Nejar usou, não há um único poema fora de lugar. E
o poeta apresenta sonetos, poemas longos e quase aforismas. Talvez o filtro
dos 50 escolhidos seja duplo.
Em primeiro lugar, a intenção de expor o âmbito do universo que Nejar explo-
ra. O índice indica de que livro vem cada poema escolhido. Se não contei mal, 18
livros estão representados e há 7 que não revelam a origem. Serão inéditos como o
primeiro e já nos previa o prefácio? Ou seja: 8 novos e 42 de 18 livros.
Em segundo lugar, estes 50 poemas seriam uma declaração. Do quê? Diria
eu que são representação não só dos temas e daquelas palavras amadas (há mu-
itas outras além das que enumerei), nem só do domínio de formas. Porque a
universalidade de Nejar não é uma procura nem um exercício. É sua visão de
mundo, enciclopédica, como já se anuncia no título. Se aqui prevalece a visão
“noturna” da condição do homem, não é sem razão que lemos estes versos co-
lhidos ao acaso da mão que folheia o livro numa releitura:
238
A u ni versali dade p o éti c a de C a r l o s N e j a r
239
Izacyl Guimarães Ferreira
Suponho que estes poucos versos colhidos no lento vento das páginas indi-
cam algo dessa universalidade que encontro na poesia de Nejar. Leitores fre-
quentes ou não talvez entendam o claro sentido que há no título Pequena Enci-
clopédia da Noite como o filtro que venho cercando e talvez se resuma na intenci-
onalidade das capas, quer nas palavras, quer na imagem dupla da árvore desfo-
lhada e do astro que aparece ao fundo. Lua? Sol crepusculando? A paixão pela
palavra explica parte da escolha de Nejar. Como diz no verso transcrito acima.
Paixão enciclopédica de um autor que vai além da poesia e faz ficção, ousa uma
“História da Literatura Brasileira” e segue produzindo já agora no Rio de Ja-
neiro, na sua “Casa do Vento” ali na marítima Urca, de onde vê os aviões que
vem e vão.
Nada ao acaso em Nejar, que coloca na última capa, a mostrar que a noite
fecha e abre o dia, este poema bem titulado “Cântico”, versos de um poeta
guerreiro, que já no soneto transcrito, “Sem Estrela” mostra que está armado
diante da vida e da morte:
Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo.
240
A u ni versali dade p o éti c a de C a r l o s N e j a r
241
Euclides da Cunha
Arquivo da ABL.
Prosa
como ele próprio referiu-se ao projeto literário sobre a Amazônia, que nomea-
ra Um Paraíso Perdido, em cartas escritas, desde Manaus, em março de 1905,
para Coelho Neto, José Veríssimo e Artur Lemos. Tema retomado, ainda, en-
tre outras passagens, em carta ao amigo Francisco Escobar, em junho de 1906.
Vale a pena situar, de início, quais os sentidos aparentes dessa vingança que o
escritor-expedicionário planejava.
Na carta endereçada a Coelho Neto, o autor esclarece:
“Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livro: Um Paraíso Per-
dido, onde procurarei vingar a Hyloe maravilhosa de todas as brutalidades das
gentes adoidadas que a maculam desde o século XVII. Que tarefa e que ide-
al! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos. Faltam-me apenas
umas longas barbas brancas, emaranhadas e trágicas.” 2
“Em paz, portanto, esta rude pena de caboclo ladino. Ou melhor, que vá
alinhando as primeiras páginas de Um Paraíso Perdido, o meu segundo livro
vingador. Se o fizer, como o imagino, hei de ser (perdoa-me a incorrigível
vaidade) hei de ser para a posteridade um ser enigmático, verdadeiramente
incompreensível entre estes homens.”3
2
W. N. Galvão & O. Galotti, Correspondência de Euclides da Cunha.
3
Op. cit., p. 306.
244
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
4
Cf. E. da Cunha, Um Paraíso Perdido: Reunião dos Ensaios Amazônicos. Petrópolis: Vozes, 1976 (org.: H.
Rocha); Um Paraíso Perdido: Ensaios, Estudos e Pronunciamentos sobre a Amazônia. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986 (org.: L. Tocantins); L. Tocantins, Euclides da Cunha e o paraíso amazônico
5
E. da Cunha, À Margem da Historia.
245
Francisco Foot Hardman
“Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta esse encadeamento de fenô-
menos desdobrados num ritmo vigoroso, de onde ressaltam, nítidas, as ver-
dades da arte e da ciência – e que é como que a grande lógica inconsciente
das cousas.”8
Esse tema da falta no excesso perpassa boa parte dos escritos amazônicos de
Euclides. Já na imagem humboldtiana da hileia, vislumbra-se a noção de maté-
ria informe, a partir do prefixo hil(e/o), que nos remete ao reino vegetal, a um
estado de natureza ainda indeterminada mas já propícia à transformação. Ve-
jamos como o autor, no famoso prefácio que escreve para Inferno Verde, de
Alberto Rangel, em 1907, retoma essa questão. Debatendo-se ainda com as
6
Op. cit.
7
Idem, ibidem.
8
Idem.
246
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
aporias de sua representação, Euclides mais uma vez enfatiza o caráter frag-
mentário de todo conhecimento produzido sobre a Amazônia. Ao se distin-
guirem melhor detalhes, turva-se a visão de conjunto:
9
E. da Cunha, “Preambulo” in: A. Rangel, Inferno Verde: Scenas e Scenarios do Amazonas.
10
Op. cit.
247
Francisco Foot Hardman
Na sequência dessa carta tão significativa, Euclides parece, talvez pela pri-
meira vez, formular a ideia do título de sua obra, já inextrincavelmente presa à
imagem da “vertigem do vazio”:
“Quem terá envergadura para tanto? Por mim não a terei. A notícia que
aqui chegou num telegrama de um meu novo livro, tem fundamento: escre-
vo, como fumo, por vício. Mas irei dar a impressão de um escritor esmaga-
do pelo assunto. E, se realmente conseguir escrever o livro anunciado, não
lhe darei título que se relacione demais com a paragem onde Humboldt
aventurou as suas profecias e onde Agassiz cometeu os seus maiores erros.
Escreverei Um Paraíso Perdido, por exemplo, ou qualquer outro em cuja am-
plitude eu me forre de uma definição positiva dos aspectos de uma terra que,
para ser bem compreendida, requer o trato permanente de uma vida inteira.”12
11
Galvão & Galotti, op. cit.
12
Idem, ibidem.
13
E. da Cunha, “Preambulo”, op. cit.
248
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
14
Idem, ibidem.
15
Idem, ibidem.
249
Francisco Foot Hardman
16
Cf. “Uma entrevista com o dr. Euclydes da Cunha: os trabalhos da comissão brasileira de
reconhecimento do Alto Purus” in: Jornal do Commercio, Manaus, 29-10-1905, p. 1. Pudemos consultar
os originais desse periódico, hoje raríssimo, graças ao generoso empenho da historiadora Ednéa
Mascarenhas Dias, diretora do IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas). Há pequenas
falhas na transcrição que se encontra em E. da Cunha, Obra Completa, I, Rio de Janeiro, Aguilar, 1966.
Que se transmitiram nas coletâneas de Um Paraíso Perdido.
250
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
“A morte trágica não lhe permitiu rever sua última obra, resultado da ob-
servação profunda e da admiração quase explosiva, tão de seu temperamen-
to, pela Hylaea prodigiosa. Daí, ao certo, a razão de não se encontrar no livro
17
Cf. À Margem da História, 1909, edição original, vide folha de rosto e p. 1. Na nota de
“Esclarecimento” dos editores, no final do volume, lamentando a morte do autor após a revisão
da primeira prova, mas sem tempo para rever a segunda, tampouco se esclarece sobre essa oscilação
quanto ao subtítulo da Parte I (escolhas do Autor? dos editores?). Na ausência de documentos (cartas
ou versões manuscritas, p. ex.) que atestassem a intenção final de Euclides, esse detalhe permanece em
aberto. O único caderno manuscrito de Euclides contendo esboços iniciais e fragmentários de vários
capítulos de À Margem da História.
251
Francisco Foot Hardman
18
Firmo Dutra, “Euclydes da Cunha: Um Capítulo da Sua Vida” in: Revista da Academia Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro, ano 26, 46 (155), nov. 1934, pp. 331-41. Apud L. Tocantins (org.), E. Cunha,
Um Paraíso Perdido, 1986, op. cit.
19
E. da Cunha, Á Marjem da Historia, 1909, op. cit.
252
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
20
A esse respeito, já anotava o grande historiador amazônida Leandro Tocantins: “Se Judas-Asvero
dilata os horizontes da paisagem e do homem, que dizer de Os Caucheiros, capítulo escrito com o
mesmo sentido de profundidade? Porém, menos expressionista, mais histórico, mais sociológico, e
com boa dose de impressionismo”. Cf. L. Tocantins, Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido.
253
Francisco Foot Hardman
“Esta cousa indefinível que por analogia cruel sugerida pelas circunstân-
cias se nos figurava menos um homem que uma bola de caucho ali jogada a
esmo, esquecida pelos extratores – respondeu-nos às perguntas num regou-
go quase extinto e numa língua de todo incompreensível. Por fim, com
enorme esforço levantou um braço; estirou-o, lento, para a frente, como a
indicar alguma cousa que houvesse seguido para muito longe, para além de
todos aqueles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair pesadamente,
como se tivesse erguido um grande peso: ‘Amigos’.”
21
À Marjem da Historia, op. cit.
22
Idem, ibidem.
254
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
23
Idem, ibidem.
24
O. Galotti, “Nota explicativa” in: E. Cunha, À Margem da História.
255
Francisco Foot Hardman
256
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
28
À Margem da Historia, 1909, op. cit.
257
Francisco Foot Hardman
258
Uma prosa perdida: Euclides e a literatura da selva infinita
29
Idem, ibidem.
259
Francisco Foot Hardman
mesmo? Por que não convocar, aqui, a Sombra sem lugar e sem tempo cuja voz
domina o monólogo inaugural no Eu de Augusto dos Anjos? E o Macunaíma
saído do cerrado amazônico venezuelano, menos trágico e mais melancólico,
por que não convidá-lo também a esse concílio de errantes, antes que se dis-
solva na Ursa Maior? Porque se suas vozes nos falarem de alguma fantasia de
Brasil, será na condição de apátridas. O Pai de “A Terceira Margem” pode-
ria estar e não-estar aqui nesse banquete de fantasmas. Todas essas criaturas
poderiam povoar muitos de nossos sonhos órfãos. Sabe-se, todavia, que sua
força reside mais exatamente na sua fraqueza em nos restituir à primitiva tribo.
Talvez derive daí essa empatia perdurável desses personagens nos desvãos de
nossa modernidade.
Para além das afinidades imaginadas aqui, possíveis, o fato é que Euclides, ao
se afastar deliberadamente da ficção, embora sempre resvalando nas suas mar-
gens, não imaginou nenhum espaço de reconciliação para seus judas-fantasmas,
ou para os seringueiros que neles se espelharam. Essa é a prova trágica de sua es-
critura. Na encruzilhada que surge, Piro, sobrevivente real da história, e Judas-
Ahsverus, criatura ficcional reinventada no Alto Purus, permanecem juntos, em
suas solidões separadas. A eles se reúne, no mesmo destino, mas com prova de
eterna amizade, o inventor de gênio da prosa perdida que os forjou.
Se formos hoje seus bons e tardios leitores, quem sabe possamos ser dignos
desse restrito círculo de amigos.
260
P o esia
Poesia
R o n ald o C o sta Fe r na n d e s Poeta, ficcionista
e ensaísta,
Ronaldo Costa
Fernandes
publicou quatro
Anoitecimento livros de poesias.
O mais recente é
Anoitece no meu coração coberto de ervas e, Eterno Passageiro.
Ganhou vários
na luta desigual, cresço com a miséria.
prêmios, como o
Trens trazem minérios de rumor e tristeza. Guimarães Rosa,
Além da janela, homens caçam a manhã, APCA, Casa de
las Américas e
enterram no lodo o tempo da esperança escreve para o
e cavam fundo até aparecer o osso do mundo. Correio Braziliense.
Nem mesmo as minhas imaginações servem
na tarde ferida e de tijolos exaltados
para inventar suposta vida
que não seja experiência sem retorno.
A vida como carro desgovernado
a mais de duzentos quilômetros por hora,
em noite chuvosa, numa estrada não sinalizada.
Se ao menos soubesse
o ponto de chegada dos lobos,
não me atormentaria com o tempo
que não tem começo nem fim.
261
R o n a l d o Co s t a F e r n a n d e s
Barcelona
Sento-me no café,
a placidez da praça com seus pombos,
a inexatidão do foco das nuvens,
o amargo do adoçante,
e a canção pedinte de um acordeão.
Percebo que não estou no estrangeiro
nem que falam em língua catalã,
aí compreendo que sempre estive sentado num bar
e que a multidão passa, indiferente e pedestre.
262
Poesia
Lições
Existir é a prova dos nove.
Um dia me cansarei de ser
a nota dissonante
e abandonarei a lição de casa,
a lição da rua, a lição da vida,
oh, Deus,
todas as lições que nunca aprendi.
Lição se aprende com o corpo.
O corpo tem sua matéria,
sua disciplina, seu passar de ano.
A natureza ensina com galhos,
cada folha que cai é um ponto.
Por toda parte há as esquinas das vírgulas.
Tenho medo do abc das torrentes,
da aritmética das montanhas,
da História das minhas dores.
Minha dor é um fruto
que, amadurecido, não cai
e vai apodrecendo o galho,
o caule e a raiz tormentosa.
Bandeira
Minha bandeira é não dar bandeira.
Minha bandeira é o toque de silêncio,
a morte do soldado desconhecido
que sou.
Quem depositará flores
neste monumento à minha batalha?
Minha ordem não tem progresso.
263
R o n a l d o Co s t a F e r n a n d e s
Hopper
Em Hopper, não há a solidão que todos dizem.
264
Poesia
Poema barroco
Quem carrega a morte consigo
traz duas formas de vida,
quem leva a vida morrendo
quando chega a verdadeira
por fim encontra unidade na derradeira.
Divide-se o corpo em dois,
uma parte já há muito não servia,
a outra é apenas conteúdo
para o continente ataúde.
Torre
Todas as torres são de Babel.
Na minha cidade todos os edifícios
são torres habitadas.
Os edifícios falam línguas diversas.
As torres quando se exibem
colocam seus vestidos de lâmpadas.
As torres morrem em pé
e, de pé, soberbas, apodrecem.
265
R o n a l d o Co s t a F e r n a n d e s
Rodoviária
Daqui não se parte,
aqui não se chega,
há um tempo imóvel
em toda multidão de pés
de borracha, de pés de ardósia,
de pés mecânicos de escada,
porque aqui o que existe é
redemoinho de gente,
agitação febril que se consome,
o suor diário de cana,
o pastel diuturno da manhã,
a cabeça operária,
o relógio de ponto no pulso.
266
Poesia
267
P o esia
Poesia
Anibal Beça Poeta, escritor
e tradutor.
Em sua obra
destacam-se os
livros: Itinerário da
Noite Desmedida à
Solo Mínima Fratura;
Filhos da Várzea;
Assim como chega Suíte para os
sem convite à vista Habitantes da Noite.
Agora percebo
que sou passageiro
mero cão rafeiro
269
Anibal Beça
Moringa
Rego tua língua fresca
com água de sílabas
enquanto pétala de argila
um alfabeto sua poroso
no barro da palavra.
270
Poesia
O beijo
“Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada”.
Herberto Helder
“Boca ó minha delicia meu néctar eu te amo“
Gillaume Apollinaire
271
Anibal Beça
Os Arautos
“Hay golpes en la vida, tan fuertes … Yo no sé!”
César Vallejo
272
Poesia
Parêmias
Colho do olhar a calma mansidão
presente, sempre armada na visão.
273
Anibal Beça
Profano
Para Marcos Sena
A lamparina refulge
a memória acesa em chama
ardendo acontecimentos.
274
Poesia
Ajoelhado, jamais!
Disse-o ao seu ouvido um dia.
quando senhor me sabia.
275
Anibal Beça
Pulsar
As cortesãs não beijam pagantes
não querem o teste da fraqueza
a pulsão desvelada do desejo
276
Poesia
Último round
O vento que de verde tudo varre
não varre esta floresta onde eu habito.
Espana roxas nódoas de um espárringue
que sou eu mesmo a rir por esses ringues.
Porradas que me dou? Mero detalhe,
de quem passou a vida sem ter sido
sendo, o sabido súdito do anárquico.
Não fui, não sou, não quero ser doído.
O menestrel choroso? Este não vale,
perdeu-se pelos socos de outras divas
em noites desbotadas na paisagem.
Mas então, o que fica dessa trilha?
ora, amigo, nocautes dessa aragem
varrida nos cruzados descaminhos.
Lumine
Como quem rabisca calçadas remotas
escrevo com os cacos da nossa infância.
277
Anibal Beça
Janela
Esta manhã me acorda para a vida
vinda com luz amena no meu rosto.
Pela janela os raios em descida
são aspas de uma lauda sem desgosto.
278
Poesia
279
Anibal Beça
280
Poesia
281
Jeannette Lozano Clariond
Poesia Estrangeira
Poemas de Jeannette
Lozano Clariond
Tradução de Publicou 38 livros
de poesia, ficção,
Reynaldo Valinho Alvarez ensaio e literatura
infanto-juvenil.
Participou de
numerosas antologias.
283
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
284
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
285
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
A casa
A casa, esse lugar incerto. A menina
sem lâmpada, branca
a origem, arde em silêncio
a revelação.
Toda origem é branca,
a composição
da forma, calada
a névoa, a árvore. A menina
calada, o que é alto, o que
é ar. Toda origem
é branca, o acaso. Calada
a névoa, cuja
música é silêncio, sílabas
dispersas.
Mina 1004
Arder, eu vi minha avó arder.
Agosto. Chihuahua, 1963. Ela ardeu
por fora e por dentro, ardeu na rua Mina 1004.
Vi meu pai envolvê-la num lençol, o colchão ardia:
as cortinas, o tapete, seu vestido
enegreceram. Ele tudo guardou.
“Não façam ruído, sua mãe está cansada”.
Vi-o sair de luto nessa tarde de agosto com sua gravata preta.
Guardou-a. Cinza e pranto ele guardou.
286
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
La Casa
La casa, ese sitio incierto. La niña
sin lámpara, blanco
el origen, arde en silencio
la revelación.
Todo origen es blanco,
la composición
de la forma, callada
la niebla, el árbol. La niña
callada, lo alto, lo
aire. Todo origen
es blanco, el azar. Callada
la niebla, cuya
música es silencio, sílabas
dispersas.
Mina 1004
Arder, yo vi a mi abuela arder.
Agosto. Chihuahua, 1963. Ella ardió,
su fuera y su dentro, ardió en la calle Mina 1004.
Vi a mi padre envolverla en una sábana, el colchón ardía;
las cortinas, la alfombra, su vestido
ennegrecieron. Todo lo recogió.
“No hagan ruido, su madre está cansada”.
Lo vi salir de luto esa tarde de agosto con su corbata negra.
La recogió. Ceniza y llanto recogió.
287
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
288
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
289
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
Tempo da água
Submerges teu corpo no brilho
pressagiando o que a areia tem escrito para ti.
Contra o vidro de teu carro a mesma gota procuras desfazer com o parabrisa
enquanto diriges para o lugar indicado.
Porém o cristal guarda uma distância, e não a alcanças.
Aeroporto Romênia
15 de julho de 2006
290
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
Aeropuerto Rumania
Julio 15 / 2006
291
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
Minha irmã
Passava as horas recostada no sofá, ela
era chuva e cascata do beiral.
Aumentava o volume para não ouvir os passos
fatigados no corredor.
Alguma vez pensei quanto é perigoso prender por longos minutos a respiração,
cheguei a crer que ela desapareceria para sempre.
Vivia a ilusão do não regresso: sumir-se por debaixo do nível,
alguns centímetros mais abaixo do nível. Ninguém se sente bem exposto
[sempre à intempérie.
292
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
Mi hermana
Pasaba las horas recostada en el sofá, ella
era lluvia y cascada del alero.
Subía el volumen para no oír los pasos
fatigados en el pasillo.
293
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
Linden 197
O mar está só, como nós os nascidos na água.
Nele se afunda a noite sob a lua crescente
– sua poeira em nossos rostos.
Enredados os cabelos,
maltratados nossos corpos
regressam à voraz melancolia.
294
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
Linden 197
El mar está solo, como nosotros los nacidos en el agua.
En él se hunde la noche bajo la luna creciente
– su polvo en nuestros rostros.
295
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
Derramada luz
Pensa tuas emoções, me dissse, faz um diálogo com os personagens
interiores que criaste ao longo da vida.
Deserto de Chihuahua
1996
296
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
Desparramada luz
Piensa tus emociones, me dijo, haz un diálogo con los personajes
interiores que has creado a lo largo de tu vida.
Desierto de Chihuahua
1996
297
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
A Tia Jeannete
Ela lia a xícara de café
e dava o dinheiro para os cegos.
O resplendor da janela
atravessava sua escassa cabeleira
até alcançar a demi-tasse que sua mão sustinha.
298
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
La tía Jeannette
Ella leía la taza del café
y el dinero lo daba a los ciegos.
El resplandor de la ventana
atravesaba su escasa cabellera
hasta alcanzar la demi-tasse que sostenía su mano.
299
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
Epílogo
I
Água. Água sem luz à sombra da luz. Água crescendo do fundo.
Borbotões manam sob a ponte.
Os pilares suportam a calamidade. Logo do remanso o fluir
dos reflexos no rio.
Falas da primeira voz, e não a escutas.
O rio deixa seu rastro dolente
e avança.
Caminhas pela margem e observas o coro dos pássaros,
o brilho dourado sobre as pedras.
Paras diante do cristal.
Um pequeno inseto de quartzo te recorda que existe um destino.
Perguntas a data, anotas o dia no papel,
sais da tenda e segues o curso do rio.
II
Pensativa, frente a um jarro de cerveja, chegam acordes de Mahler.
Perto é a a música e, no entanto, se desvanece em teus ombros a história.
Não, ele não chorou. A vontade tem seu limite.
O látego, a castração do boi, o barrido do elefante
e sua anca de chumbo.
III
Tomas um gole e a espuma
se desfaz em teus lábios.
Olhar o rio sob a ponte te consola,
o óxido nas efígies dos reis,
a corrente desbotando as pilastras de pedras trabalhadas.
300
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
Epílogo
I
Agua. Agua sin luz a la sombra de la luz. Agua creciendo desde el fondo.
Borbotones manan bajo el puente.
Las pilastras toleran la calamidad. Luego del remanso el fluir
de los reflejos en el río.
Hablas de la primera voz, y no la escuchas.
El río deja su estela doliente
y avanza.
Caminas la orilla y observas el coro de los pájaros,
el brillo dorado sobre las piedras.
Te detienes frente al cristal.
Un pequeño insecto de cuarzo te recuerda que existe un destino.
Preguntas la fecha, anotas el día sobre el papel,
sales de la tienda y sigues el curso del agua.
II
Pensativa, frente a una jarra de cerveza, llegan acordes de Mahler.
Casi es la música, y sin embargo, se desvanece en tus hombros la historia.
No, él no lloró. La voluntad tiene su límite.
El látigo, la castración del buey, el barritar del elefante
y su grupa de plomo.
III
Das un sorbo y la espuma
revienta en tus labios.
Mirar el río bajo el puente te consuela,
el óxido en las efigies de los reyes,
la corriente deslavando las pilastras de sillar.
301
Tradução de Reynaldo Valinho Alvarez
IV
Tu te encaminhas para o hotel e levas ainda o amargo sabor do malte.
Oferecem-te florins por dólares, olhas as vitrinas repletas de antiqualhas,
os ícones contra a parede, os móveis de madeiras de Flandres,
os entalhes inscrustados de pérola.
V
Ah, se apenas pudesses encher tua casa de belas coisas de outras épocas, repetir
as palavras do proprietário:
“Isto pertenceu ao arquiduque e seu neto...”,
simular uma história que armas tal como o poeta o quebra-cabeça,
contar uma e outra vez o desabamento da casa queimada,
o colchão ardendo, a tia cega gritando do saguão... Não, ninguém te acreditaria.
Em poesia a história é calúnia. As coisas da estirpe se calam.
São outros os momentos da água.
302
Po emas de Jeannett e Lo za n o C l a r i o n d
IV
Te encaminas al hotel y llevas aún el amargo sabor de la malta.
Te ofrecen florines por dólares, miras las vitrinas repletas de antiguallas,
los íconos contra la pared, los muebles de maderas de Flandes,
las tallas de perla incrustada.
V
Ah, si sólo pudieras llenar tu casa de bellas cosas de otras épocas, repetir
las palabras del propietario:
“Esto perteneció al archiduque y a su nieto…”,
simular una historia que armas como el poeta el rompecabezas,
contar una y otra vez el derrumbe de la casa quemada,
el colchón ardiendo, la tía ciega gritando desde el zaguán… No, nadie te creería.
En poesía la historia es calumnia. Las cosas de la estirpe se callan.
Son otros los momentos del agua.
303
Guardados da Memória
Carta de Euclides da
Cunha a Assis Brasil
Euclides da Cunha Segundo
ocupante da
Cadeira 7
na Academia
Brasileira de
Letras.
Rio, 23 – 12 – 1906
Meu ilustre companheiro Dr. Assis Brasil
305
Euclides da Cunha
ante das figuras mais hieráticas dos imortais e alto funcionalismo. A linha reta,
que traçara a minha carreira de escritor, parecia-me acabar, repentinamente,
numa curva. O discurso que eu ia ler, tinha-o remendado e dilacerado em to-
das as frases, aveludando-o, e ajeitando-o às sensitivas irritáveis das conveniên-
cias. Devia repudiá-lo. Não era, realmente, meu. Mas foi um esforço heróico, e
li-o, a correr, na ânsia de quem atira fora um fardo insuportável. Discursos de
tal molde, só nos dão um prazer, o de terminá-los.
Foi o meio que tive, embora o diminuíssem um pouco as palmas convencio-
nais do seleto auditório que não me ouvia!
Agora, resta-me a esperança de reatar o traçado retilíneo depois daquela
curva do caminho.
Mostrei ao Domício e ao Graça a sua carta. De acordo com eles, penso que
o Sr. tem razão. Considero demasiada a exigência de um outro pedido formal,
por exemplo, quando este é incompatível com justificáveis exemplos. Mas,
desgraçadamente, não há forças contra o inextensível da rotina. Diante disso,
bem a contragosto vejo que não devo persistir no meu primitivo propósito.
Quem perde, afinal, é a Academia – porque mais tarde não se compreenderá a
exclusão de quem tanto se vinculava a nossa história literária dos melhores
tempos, senão pela forma, pela superioridade do pensar e até pela influência
amigável exercida numa geração inteira.
Seja como for – candidato ou não – o meu voto é seu. E será doravante o
meu protetor permanente.
Aguardo, entretanto, ainda, a sua resposta, que não deve demorar-se, por-
que há um candidato, o Dr. Arthur Orlando, em prol de quem se está traba-
lhando ativamente.
Não recebi ainda o livro de que me falou. Desculpe-me a alongar-me tanto
nesta, e creia sempre na minha estima e consideração do seu
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PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III
(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Ou-
tras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição reali-
zou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.