28 - Janeiro-Fevereiro - 1346

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 40

Belo Horizonte, Janeiro/Fevereiro 2013

Edição nº 1.346
Secretaria de Estado de Cultura
D
epois de lembrar, nas edições anteriores, dois importantes personagens
da história do Suplemento Literário de Minas Gerais que já nos deixaram
— Adão Ventura e Roberto Drummond —, abrimos este número homena-
geando o poeta Valdimir Diniz, morto há quase trinta anos num acidente
automobilístico. Figura destacada da geração que se formou na então re-
dação da Avenida Augusto de Lima, no centro de Belo Horizonte, Valdimir
deixou dois livros de poemas publicados e diversos inéditos que apontavam para a continuidade
vitoriosa de sua poesia, como os que mostramos aqui.
Na sequência, novos contos de Ana Cecília Carvalho e a estreia da contista Rosângela Maluf
em publicação impressa, ela que há tempos frequenta com seus textos blogs de literatura, e do
carioca João Paulo Vaz, já com alguns livros publicados.
A poesia está representada pelo paranaense Rodrigo Garcia Lopes e pela contista e romancista
mineira Lucienne Samôr, em uma de suas raras manifestações em versos, além de um ensaio so-
bre o fazer poético na visão de Ricardo Teixeira de Salles. O poeta Affonso Romano de Sant'Anna
nos lembra também da obra da professora Ângela Vaz Leão sobre cantigas medievais.
Apresentamos ainda um discurso de Silviano Santiago sobre Carlos Drummond de Andrade,
um curioso apanhado do paulista radicado na Paraíba W. J. Solha sobre a Justiça através dos tem-
pos, um ensaio do oftalmologista Elisabeto Ribeiro Gonçalves sobre Dom Quixote, uma seleção
de frases da argentina Silvina Ocampo, figura básica na grande literatura das Américas do século
passado, e um trabalho sobre os 70 anos do compositor Caetano Veloso, por Cláudio Portella.
O artista plástico Mário Azevedo é o autor da capa e de duas ilustrações. As demais são de
Getúlio Moreira e Pablo Picasso.

Governador do Estado de Minas Gerais Antonio Augusto Junho Anastasia


Secretário de Estado de Cultura Eliane Parreiras
Diretor-geral da Imprensa Oficial de Minas Gerais Eugênio Ferraz
Superintendente do SLMG Jaime Prado Gouvêa
Diretor de Apoio Técnico Marcelo Miranda
Diretor de Articulação e Promoção Literária João Pombo Barile
Projeto Gráfico e Direção de Arte Plínio Fernandes – Traço Leal
Diagramação Conrado Rezende, Carol Luz
Conselho Editorial Humberto Werneck, Sebastião Nunes, Eneida Maria de Souza, Carlos Wolney
Soares, Fabrício Marques
Equipe de Apoio Elizabeth Neves, Aparecida Barbosa, Ana Maria Leite Pereira, André Luiz
Martins do Santos, Mariane Macedo Nunes (estagiária)
Jornalista Responsável Marcelo Miranda– JP 66716 MG

Textos assinados são de Suplemento Literário de Minas Gerais


responsabilidade dos autores Av. João Pinheiro, 342 – Anexo
30130-180 – Belo Horizonte, MG
Fone/Fax: 31 3269 1143
Capa: Mário Azevedo [email protected]

Acesse o Suplemento online: www.cultura.mg.gov.br

Impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado de Minas


JANEIRO/FEVEREIRO 2013 3

VALDIMIR DINIZ
A POESIA QUE AINDA SANGRA

N
uma noite perdida de 1970, em duas mesas ajuntadas do bar
Bernardinho Bernardão, em Belo Horizonte, quatro ou cinco
jovens escritores, ainda com poucas letras mas com muitos
sonhos, bebiam e discutiam seus poemas, contos e mulheres,
sem deixar de perceber, com um pouco de apreensão, que em
outra mesa, mais ao fundo, um casal conhecido discutia baixi-
nho. De repente, a moça se levantou tentando segurar o choro e saiu do bar. O rapaz,
um cara alto e de óculos de lentes grossas, permaneceu sentado por algum tempo
fitando a cadeira em frente, agora vazia. Então se levantou, ergueu os braços e veio
na direção dos amigos com um sorriso, bradando para todo mundo ouvir: “Vida é
pra poeta!”
A vida do poeta Valdimir Diniz, no entanto, não chegou aos 40 anos, mais ou me-
nos o tempo de vida de seu quase xará Maiakovski, de quem extraiu a epígrafe de seu
poema De três virtudes contemporâneas: “Nas rubras flores de outubro”.
Em 1986, na madrugada do dia 8 de dezembro — data em que também se fo-
ram Mozart, John Lennon e Tom Jobim —, teve seu carro esmagado por ou- Amei uma argentina, Dolores
tro, cheio de jovens, quando passava pela plataforma inferior da Rodoviária amei uma boliviana, Dolores
do Plano Piloto, em Brasília, onde morava desde 1972, ano em que deixou amei uma chilena, Dolores
a capital mineira para espalhar sua poesia em pleno coração do poder que amei uma peruana, Dolores
ele combatia com versos fulminantes. amei uma uruguaia, Dolores
Valdimir Diniz nasceu em Belo Horizonte no dia 5 de maio de 1947. amei uma venezuelana, Dolores
Fez parte do Grupo Beco, que realizava espetáculos de música e poesia. amei uma brasileira, Maria das Dores
Publicou poemas no jornal dobrável Vereda e integrou a turma jovem
do Suplemento Literário do “Minas Gerais”, que ficaria conhecida como todas morreram a caminho de Brasília
“Geração Suplemento”. Depois de uma rápida passagem pelo Jornal da
Tarde, de São Paulo, voltou para Belo Horizonte, onde ficou por mais dois Do livro Poesia aos Sábados
anos e publicou, em 1971, seu primeiro livro, Poesia aos sábados, pelas Edições
Oficina, que era um selo da Imprensa Oficial de Minas Gerais. Seu segundo livro, Até
o 8° round, que foi um dos vencedores do Prêmio Remington de Poesia de l977, saiu
pela Editora Francisco Alves em 1978.
Passados pouco mais de 26 anos daquela madrugada de Brasília relembramos
um pouco da poesia que Valdimir deixou, versos em que mescla com autoridade de
grande artista ternura e deboche, suavidade e força, armas que usava em sua luta
naquela época em que a opressão precisava ser enfrentada com talento e com muita


coragem, e que, certamente, continuaria, como se pode ver nos poemas inéditos aqui
apresentados.
4

QUEM É VOCÊ meu coração


Quem é você, qual o seu nome Meu coração bate sempre disparado
Mal te pressinto e você some Bate por dentro, por fora, por todo lado
Mas te percebo a todo momento De jeito que ninguém ouve, pois o rumor é interno
Na terra, na água, no firmamento Tem um que lá do céu numa festa do inferno
Consumindo meu corpo, meu pensamento
Meu coração tem a voz dos desesperados
Quem é você, qual o seu nome As sístoles e diástoles no ritmo dos fados
Te vejo em todo rosto de fome E se sente solto, mesmo batendo entre paredes
Naqueles que estão no abandono Ele conhece bem a prisão e o conforto das redes
Na boca de que fala, nos que têm sono
Na primavera, no verão e no inverno Meu coração é seu, e é também por usucapião
Na esperança do céu, na certeza do inferno Se eu não o entrego na palma da mão
É só porque devo tê-lo dentro do peito
Por mais longe que seja te sinto por perto Falando baixo ou gritando, chacoalhando de qualquer jeito
Na mata verde, em qualquer deserto
Eu sinto o teu cheiro, o teu chocalho Meu coração é assim, um pouco cachorro
Quem é você, qual o seu nome Mas tente ouvir o seu esporro
Cara de cavalo, boca de cobra, cabeça de lobisomem Tente encará-lo de frente, embuti-lo em seu corpo
Aí ele vai te fazer roncar como um porco

Humberto Werneck

João Paulo Gonçalves, Valdimir Diniz e Carlos Roberto Pelegrino no SLMG, 1968
5

ÀS Vezes
Às vezes acham que estou louco porque ouço todos os ruídos
Do universo
Reverberações, cintilações, ressonâncias, choques térmicos,
explosões solares

Noite e dia
Guerra e paz
Vida e morte
Às vezes acham que estou louco me dá o tom
Às vezes acham que estou louco porque ouço todos os ruídos
Do universo
O tom reinante musical dançante de qualquer coisa
Nhaca, nheque, nhiqui, nhoco, nhucu alucinante se mostrará mais adiante
Às vezes acham que estou louco
Fico rouco de tanto repetir a mesma coisa: O tom eufórico discursivo gongórico de que o pas-
tá tá tá, té té té, ti ti ti, tó tó tó, tu tu tu sivo é retórico é ativo é o militante
o apelo à rima me alucina e eu incito: vão todos tomar no cu
ou não faz sentido? O tom caudaloso prevendo um futuro perigoso faz
do permitido o audacioso e todos vamos em gozo
Às vezes acham que estou louco porque ouço ruídos em meu quarto
Baratas, goteiras, pernilongos, a madeira do chão estalando O tom escaldante de que a praça é excitante com o
O meu coração batendo dentro do quarto toque mais brilhante da guitarra dissonante
Eu me pergunto o que virá em seguida
Nada, ninguém, nenhum sinal dentro do quarto O tom delirante do novo com o governante do lugar
Mas porque este silêncio se ouço todos os ruídos do universo? do povo e o povo sobre as costas do governante

Mísseis, martírios, pobreza, suicídios, fome, sortilégios O tom revolucionário do malandro devolvendo pro
Totalitarismo, couvert, dólar e turismo otário o que lhe roubou do salário
Meu Deus, nem sei mais o que sai de minha boca, do frio que vem,
aonde guardei minha touca? O tom sexual da política com o corpo te põe de
borco na trama de quem é bom de cama
Mamãe, papai, me dêem um bombom e nada mais
Para vocês não se chatearem, agradeço por ter nascido O tom mágico de que clic clac vapt vupt é tudo um
Ainda não é hoje que vou estourar um ouvido truque vai tudo bem pra que usar muque?
Mas, digam-me, por favor, o que esperavam de mim?
Princípio de que, meio de que, aonde chegar, em que fim? O tom caótico gestual exótico de que o país é um
pórtico gótico e que tudo o mais é golpe ótico
Às vezes acham que estou louco porque ouço todos os ruídos
Do universo O tom paternalizante da possibilidade adiante com
a capacidade da formiga e a sutileza do elefante
Às vezes acham que estou louco porque insisto nesse verso
Uso e abuso dele, como se abusasse de mim O tom carismático de que se pode num átimo sobre
Eu o repito e ele se multiplica o povo asmático dos trópicos ao ártico
Explode e repica, explode e repica, explode e repica
Dele mesmo acabo me esquecendo mas um pouco fica O tom sutil que ninguém viu na puta que nos pariu
Nessas horas nem sempre sei aonde estou, quem sou, o que faço nesse país com céu de anil
Mas me deixem assim, eu lhes peço
Que não escutem o meu verso – tudo bem – mas me deixem assim Tudo isso de repente tudo isso simplesmente
– a sós,


apenas eu e o universo
Carlos Namba 6
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 7
8

Drum
Silviano Santiago

O
século 20 é o irmão mais Chaplin promete destruir o mundo capitalista declaram que os velhos − o século 20 e os nas-
velho do poeta Carlos e com o poeta francês Paul Eluard grafita a pa- cidos com ele − estão vendidos ao Sistema. Já
Drummond de Andrade, lavra Liberdade em todos os muros da cidade. não prometem destruir o mundo capitalista,
que nasceu em Itabira do A Segunda Guerra Mundial chega ao fim, cai o começam a apedrejá-lo com os paralelepípedos
Mato Dentro no ano de Estado Novo. Na busca de coerência entre arte das ruas de Paris. Se Século & Sistema aceitam
1902. e política, o poeta se filia ao Partido Comunista de início a luta armada juvenil, amoldando-se
Em companhia do irmão mais velho, o Brasileiro. Abandona as hostes getulistas, vi- aparentemente ao seu gosto anárquico e ter-
menino Carlos vê o sulco de prata do cometa vendo apenas da sua produção escrita. Ainda rorista, é para logo retomarem o controle da
Halley a cortar em 1910 os céus de Itabira. Sabe juntos – irmão mais velho e irmão mais novo − situação. Nas últimas décadas de vida do po-
da Grande Guerra de 1914-1918 pelos jornais chegam à idade madura. O poema “Dentaduras eta, Século & Sistema tornam-se repressivos,
da província e, entre germanófilo e descrente, duplas” constata: “Rugas, dentes, calva...”. tradicionalistas e conservadores. Voltam os
vai trocando as calças curtas pelas compridas. Já cinquentões, Século & Poeta entram pe- olhos para os regimes totalitários que sobre-
Na década de 1920, já em Belo Horizonte, o ra- los anos 1960. Veem crescer os jovens rebeldes viveram à Segunda Guerra Mundial, para as
paz vive a molecagem e a orgia das vanguardas nascidos na metade do século − os filhos de formas autoritárias de controle da população
internacionais. A “pedra no meio do caminho”, Hiroxima, como se disse na Europa, ou a mul- civil e para a despreocupação da belle époque,
que publica, será divisora de águas, como uma tidão de universitários pertencentes ao “war fazendo o elogio da sociedade de consumo. O
tela de Pablo Picasso. Prepara-se para a vida baby boom”, como os americanos denomina- poeta maduro acompanhou o movimento geral
pública. Forma-se em Farmácia, faz jornalismo ram o fenômeno de maneira pragmática. São do irmão mais velho, o Século 20, e passou a se
e flerta com a política estadual. Dá certo o na- filhos de pais traumatizados pela chacina da deleitar com a lembrança da infância feliz em
moro com a política e, funcionário público fe- guerra, do campo de concentração e da bomba Itabira, ao mesmo tempo em que, no fio de alta
deral na capital da República, descobre-se um atômica. Ao mesmo tempo, são jovens com o tensão da poesia, vivia os valores rurais e pa-
poeta preocupado com o Homem, ser rebelde alto nível de escolaridade proporcionado pe- triarcais, inscritos na “tábua da lei mineira de
e precário, e com as grandes causas humanis- las sociedades do Primeiro Mundo. Vivem as família”. Irmão mais velho e irmão mais novo
tas. Politiza-se à esquerda durante a Segunda riquezas ditas inesgotáveis do após-guerra e o sobrevivem no futuro do passado. Como diz
Guerra Mundial. Luta com palavras e com ou- clima da guerra fria. Drummond em Menino antigo: “Não saí para
tras armas contra a ditadura Vargas, o Eixo e Os novos universitários são cabeludos e rever, saí para ver / o tempo futuro”. E na co-
a intolerância nazifascista. Com o russo en- radicais. Embalados pelas drogas e ao som leção de poemas Esquecer para lembrar, con-
tra em Berlim. Com o homem do povo Charlie do rock&roll, abrem as portas da percepção e fessa: “Com volúpia / voltei a ser menino”.
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 9

mond
Até a década de 1950, o século 20 tinha nas- dos anos 1930, gerada pelos regimes revolu- chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres”.
cido para as grandes revoluções sociais prega- cionários tanto da esquerda quanto da direita, E tome discussão sobre o prazer.
das pelo determinismo histórico inventado cuja redenção estaria na sociedade justa do
pelo século 19. A estrutura socioeconômica da futuro, acaba por encontrar a solução prática, •
sociedade nossa contemporânea era idêntica quando o cidadão descobre a sua comunidade
à de um edifício frágil e carcomido, que tinha e abandona as utopias universais, autodefi- O sucesso de público de Drummond, a vali-
de ser demolido. No seu lugar, seria levantado nindo-se neoliberal. Ao final do século 20 e no dade do seu texto em termos estéticos, histó-
o edifício justo e igualitário das utopias socia- início do milênio, a comunidade é o melhor ricos e sociológicos, a unanimidade em torno
listas. Esse sentimento leva o poeta a predi- antídoto contra qualquer pensamento, qual- da escolha da sua obra poética como a mais
zer: “Que século, meu Deus! diziam os ratos / quer ação revolucionária universal. Cultivamos significativa do Modernismo brasileiro, tudo
E começavam a roer o edifício”. De 1970 para o nosso jardim e redescobrimos o bom senso isso advém do fato de que a sua poesia drama-
cá, estamos compreendendo que o século 20 de Voltaire. A crise do liberalismo, enquanto tiza de forma complexa e original a oposição
sobrevive sob o signo de Marcel Proust e de sistema sócio-político universal, não termina e a contradição entre Marx e Proust, entre a
A la recherche du temps perdu. Em busca do pelas utopias de esquerda ou de direita, mas revolução político-social, instauradora de uma
tempo perdido, acabam todos por passar pela pela... redescoberta do liberalismo. Nova Ordem Universal, e o gosto pelos valores
experiência da madeleine e dos avós. Século Enquanto jovens, Século & Poeta gastam tradicionais do clã familiar dos Andrades, seus
das biografias e das autobiografias, século dos energia na rotina das boas ações sociais e do valores socioeconômicos e culturais.
diários íntimos e das correspondências, século inconformismo político. Profissionais, racio- Ao fazer essa constatação, evitamos ver o
dos romances e poemas que são alimentados nalizam a integração ao Sistema como inevitá- conjunto dos poemas e livros de Drummond
pela memória do artista. E tudo porque Freud vel. E maduros, descobrem que eles e todos nós como articulados pela sucessão cronológica
descobriu, no apagar das luzes do século 19, o já estávamos no inconsciente e na família. E das publicações, ou como explicados pelo
inconsciente e a sexualidade infantil. saímos em busca de nós mesmos. Mais sabidos amadurecimento gradual do poeta. Preferimos,
À medida que Carlos Drummond se apro- e mais racionais, empilhamos livros, conheci- portanto, julgar o conjunto da obra como orga-
funda no inconsciente e na infância, restringe- mento, teorias, e deixamos a ação revolucioná- nizado por essas duas linhas de força paralelas
se sua preocupação com a sociedade universal. ria transformadora do planeta para a geração e contraditórias. Ao ler os livros reunidos, te-
Primeiro, restringe-se ao grupo nacional a que seguinte. Ultimamente, com a ajuda do poeta mos, de um lado, textos poéticos que descre-


pertence e, em seguida, à célula familiar que se Mallarmé, andamos redescobrindo que a carne, vem longa e minuciosamente o processo de
responsabiliza por ele. A crise do liberalismo depois de lidos todos os livros, fica triste. “La decadência por que passa a oligarquia rural
10

mineira nos seus constantes embates com a urbanização e a industria- autêntico não é produto da alteridade rebelde e heroica, mas é a repro-
lização do Brasil e, do outro lado, poemas que traduzem a esperança em dução do mesmo, que se perpetua pela cadeia do sangue. Diz o poema
uma frutífera radicalização político-social, oriunda do otimismo gerado “Raiz”:
pelo movimento tenentista de 1930, otimismo este crítico da oligar-
quia rural onde, paradoxalmente, se situa o clã dos Andrades. Essas duas
linhas de força se afirmam ou se negam, combinam-se, enroscam-se, Os pais primos-irmãos
enlaçam-se, caminham lado a lado, ocasionando a principal tensão dra- avós dando-se as mãos
mática da poesia de Drummond. os mesmos bisavós
De maneira nem sempre muito explícita Drummond institui dois os mesmos trisavós
mitos como portadores das duas opções poéticas: o mito de começo e o os mesmos tetravós
mito de origem. a mesma voz
Por mito de começo entende-se o desejo de Drummond em inaugu- o mesmo instinto, o mesmo
rar, por conta própria, uma nova sociedade em que pode negar total- fero exigente amor
mente os valores do passado rural e do clã. Rompe os laços de família, crucificante
para poder afirmar com convicção e radicalismo os valores de indivi- crucificado
dualismo e de rebeldia que julga justos para o estabelecimento de uma
futura sociedade sem classes. Tal mito é representado, desde o século 18
e na primeira poesia de Drummond, pela estória de Robinson Crusoé, Rebeldia, insubordinação e aventura revolucionária, de um lado; ar-
“comprida história que não acaba mais”, como está escrito no poema rependimento, reconhecimento tardio e obediência aos valores familia-
“Infância”, de 1930. Retirado da cultura europeia por causa de desastre res, do outro.
marítimo, Robinson arriba sozinho a uma ilha deserta, onde tem de re-
fazer todos os passos culturais do homem. Da solidão passa a descoberta •
do outro, Sexta-Feira, e se empolga com o retorno à vida social. O mito
de começo é um mito de rebeldia, onde trabalho e heroísmo individual Já em poema que leva o sugestivo título de “Infância”, publicado em
se casam. No caso da poesia de Drummond, é mito de negação do Pai 1930, a não identificação com o Pai (e com a Família) vem associada com
como transmissor da cultura, e da Família como determinante da situa- a leitura da estória de Robinson Crusoé:
ção socioeconômica do indivíduo na sociedade. O passado não conta, só
o presente. O mundo está para ser inventado pelo homem, desde que as
mãos da solidariedade sejam dadas. Nos anos de A rosa do povo, Albert Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Camus torna paradoxal e engajado o cogito cartesiano: “Je me révolte, Minha mãe ficava sentada cosendo.
donc nous sommes”. A conscientização revolucionária da multidão tem Meu irmão pequeno dormia.
a ver com o aprimoramento político do indivíduo enquanto rebelde. Eu sozinho menino entre mangueiras
Por mito de origem entende-se a vontade de o poeta Drummond ins- lia a história de Robinson Crusoé.
crever seu projeto de vida numa ordem sociocultural mineira, em que os Comprida história que não acaba mais.
valores fortes da individualidade e da rebeldia perdem a razão de ser, já
que são meros indícios de insubordinação passageira. Só são válidos e
eternos os valores superiores do passado e da tradição. O poeta tira do Próximo dos seus, mas sozinho, o menino, com o livro nas mãos,
rosto a máscara de Robinson Crusoé e descobre que, em si, nada vale: começa a viver como se estivesse numa ilha banhada de mangueiras
ele só é alguma coisa quando se identifica ao clã dos Andrades e é legi- por todos os lados. Isola-se a criança quando o pai parte para o campo,
timado por ele. A ação do poeta na terra não é uma aventura robinso- a mãe se entrega à costura e o irmão mais novo ao sono. Nessa área
niana. A curta aventura humana no planeta é uma aproximação infinita de auto-exclusão, a criança compensa a falta de companhia familiar,
da sabedoria dos antigos por uma nova geração, sempre menos prepa- vivendo em aberto a aventura do livro. O menino vive como se fosse o
rada. Retorna o Filho à casa do Pai, para que, depois da insubordinação próprio Robinson e, ao identificar-se a ele, admite como regra de vida a
juvenil, possa assumir o seu lugar na família; volta ao lar para que seja moral do tudo é permitido dostoievskiano. Quando a criança joga o livro
o futuro Patriarca. Tal forma de exigência social está autenticada pela fé para o lado, dá-se a “Iniciação amorosa”:
religiosa do grupo social − o catolicismo. A transmissão dos bens cultu-
rais se dá pela herança, assim como a transmissão dos bens econômicos.
Ao se inserir na família mineira cristã e patriarcal, o poeta transcende A rede entre duas mangueiras
sua vida e seu tempo, revelando seu eu autêntico na eternidade. O eu balançava no mundo profundo [...].
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 11

E como eu não tinha nada que fazer vivia Na rua passa um operário. [...] Para onde vai o
namorando operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão.
As pernas morenas da lavadeira. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não
Um dia ela veio para a rede, nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou tal-
se enroscou nos meus braços, vez seja eu que me despreze aos seus olhos. [...]
me deu um abraço Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?
me deu as maminhas
que eram só minhas [...]. Poema das perguntas e da insegurança, do compromisso e da dúvida
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, ideológica, da compreensão da marcha da história e das fraquezas do
girava indivíduo frente a ela, “Operário no mar” é também onde se percebe
no espaço verde. nítida a negação de uma esquerda festiva em Drummond. Se houver
compromisso do poeta com o operário, não haverá paternalismo. Para
o intelectual pequeno-burguês é fácil dar o operário como irmão nas
Longe da vida-em-família, no espaço de mangueiras, “espaço verde” suas investidas literárias, mas não o é no seu dia-a-dia profissional e
(diz o poema), se situa a área do individualismo e da liberação e, tam- político. Entre o Operário e o Poeta, ergue-se a muralha da classe e da
bém, da aventura sexual. Julgando-se um novo Robinson, o menino pra- desconfiança mútua.
tica ações transgressoras sem que sobre ele recaia julgamento moral
ou social. Tudo o que é proibido na área familiar pode ser desejado e •
obtido na área de exclusão: a lavadeira “me deu as maminhas/ que eram
só minhas”. O texto poético que fala de Robinson é também o texto que Não se pense que o mito de origem venha depois, ou antes, do mito
canaliza o discurso sexual transgressor. de começo numa ordem evolutiva ou histórica. No discurso poético de
Se os poemas que seguem a estrutura provinciana que estamos re- Drummond, os dois mitos coexistem e são responsáveis pela alta ten-
velando se orquestram em clave individual, diferentes são os poemas são dramática que salta de seus poemas, de seus livros. Se fosse preciso
onde a rebeldia robinsoniana quer afirmar-se num centro urbano, cos- definir a integração dos dois mitos no todo do discurso poético drum-
mopolita, longe muito longe de Itabira. Ao se alongar para a capital da mondiano, teríamos de falar de recalque. Quando o mito de começo é
República, onde Getúlio Vargas usurpa o poder, e ao se propagar pelo recalcado, é porque brotam na superfície do poema os elementos do
mundo conturbado pela Segunda Guerra Mundial, a revolta que se dava mito de origem − e vice-versa.
contra a família visa a uma práxis política imediata e revolucionária que Assim é que o reconhecimento pelo poeta dos valores do clã dos
questiona não só a oligarquia rural como toda a organização socioeco- Andrades é anunciado como “viagem de regresso”. Viagem de regresso
nômica e política do Ocidente. A rebeldia solitária quer transformar-se ao “país dos Andrades”, com o fim de conhecer as figuras familiares que
em práxis marxista. Diz o poema “Nosso tempo”: abandonam o menino entre mangueiras e são abandonadas por ele a
partir do momento em que passa a viver na revolucionária ilha robin-
soniana. Manifesta-se pleno o desejo de conhecimento do mecanismo
O poeta social, da identidade única que organiza o relacionamento entre todos
declina de toda responsabilidade os membros do clã: “Que há no Andrade/ diferente dos demais?/ Que de
na marcha do mundo capitalista ferro sem ser laje?/ braúna sem ser árvore?”.
e com suas palavras, intuições, símbolos Em viagem de regresso à área familiar, o Poeta reencontra os valores
e outras armas promete ajudar silenciosos do seu clã, da sua família nuclear e, pouco a pouco, compre-
a destruí-lo ende sua discreta e tirânica razão de ser, isto é, seu poder de funciona-
como uma pedreira, uma floresta, mento alheio à vontade e aos anseios mais fortes do menino solitário e
um verme. do homem precário e rebelde que se politizou à esquerda.
Foi preciso que o menino Drummond perdesse primeiro os fami-
liares, foi preciso que o poeta maduro construísse um mundo utópico
Chega o momento em que Drummond quer manter o almejado diálogo alheio a ele, para que depois, ao final da vida, os recuperasse pela pa-
com o operário, atravessando − como prega Marx no Manifesto comu- lavra poética na série de livros intitulada Boitempo. Leiamos o poema
nista − as barreiras de classe: “[...] hoje uma parte da burguesia passa-se “Comunhão”. De início o Filho se situa fora da roda do clã, em atitude
para o lado do proletariado, principalmente o setor dos ideólogos bur- de distanciamento e de contemplação. As figuras da roda − descobre ele


gueses que chegaram a compreender teoricamente o movimento histó- quando vê a cena do centro − não têm faces e só são reconhecíveis pelo
rico em seu conjunto”. Leiamos trechos do poema “Operário no mar”: que dizem em silêncio. Do momento em que o excluído entra na roda
12

da família, abandonando a sua posição de espectador, ilumina-se toda a Contra o paradoxo da rebeldia contra os antigos se insurge, à ma-
cena, todas as faces anônimas se acendem. O Filho assume a família no neira de vacina instilada gota a gota, a ciência do sangue que, como diz
momento em que aceita sentar no lugar vazio que estava à sua espera, o poema, “é soprada por avós tetravós milavós”. E é através do lento
previsto e designado para ele pelos antigos. aprendizado da ciência do sangue que se recebem os bens de família,
bens simbólicos que, em última e derradeira instância, determinam
a posição sócio-política e econômica do Poeta. Seu lugar no clã dos
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo, Andrades, o lugar do clã na comunidade, na Nação. Inexoravelmente,
eu no centro. tradição e conservadorismo invadem as páginas do tardio Proust mi-
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis neiro, confundindo-se nos poemas o patriarcalismo na família e o man-
pela expressão corporal e pelo que diziam donismo na vida política local. Patriarca e coronel ressurgem das cinzas
no silêncio de suas roupas além da moda pela força da palavra poética: o futuro do passado.
e de tecidos [...]
Notei um lugar vazio na roda. •
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados. Como estamos vendo, existem pelo menos dois Drummonds na sua
poesia. O primeiro compreendeu de maneira inigualável “o tempo pre-
sente, os homens presentes”. Teria se assustado com o trabalho san-
Ao se identificar aos familiares mortos, o poeta esboça um primeiro grento que o bisturi poético faz nas chagas sociais do nosso tempo?
passo em busca da origem e de seus valores sociais e econômicos. A Escreve em Claro enigma, livro publicado em 1951: “Escurece, e não me
figura do Pai, de longe e em aparente descaso pelo Filho, arma o palco seduz / tatear sequer uma lâmpada. / Pois que aprouve ao dia findar, /
da origem. Nele, o Poeta, como novo filho pródigo, representa a volta aceito a noite”.
ao lar, desmistificando a artificialidade de sua palavra de começo. Na década de 1950, Drummond passa o bastão de revezamento da
Representativos da dramaticidade do conflito entre indivíduo e família, crítica social para o jovem João Cabral de Melo Neto. Este, ao abando-
entre começo e origem, são alguns versos de “Como um presente”, po- nar a estética mallarmaica então em vigor, busca uma poesia de maior
ema escrito para comemorar o aniversário do pai já morto: eficácia política. Receoso do compromisso ético e ideológico que o su-
jeito do poema pode manter com o assunto tratado, João Cabral resolve
retirar do discurso poético todo resquício de subjetividade, como se dá
A identidade do sangue age como cadeia, no poema dramático Morte e vida Severina. Como bom fenomenólogo
fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na que é, haja vista a discussão sobre teoria poética que está na plaquete
Ásia, Psicologia da composição, Cabral mostra a miséria nordestina tal como
onde o pão seja outro e não haja bens de família ela é, e não tal como o diplomata ou o Poeta a vê.
a preservar. Por outro lado, Cabral evitou o perigo que Drummond, o segundo
Por que ficar neste município, neste sobrenome? Drummond, assumiu autobiograficamente: conhecer em profundidade
Taras, doenças, dívidas, mal se respira no sótão. todos os valores que determinaram o homem-poeta no processo de sua
Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar realização econômica, social e política. E esses valores − espero que te-
minha terra, nha ficado claro − são os valores do velho latifúndio mineiro. Ao assu-
e inaugurar novos antepassados em uma nova mir o discurso do Pai, do Patriarca, Drummond foi-se esquecendo de
cidade. continuar a esquadrinhar com os olhos o caminho de luz que os faróis
do carro poético abriam à sua frente, como o tinha feito em Sentimento
do mundo. Passou a ficar embevecido com a paisagem antiga que lhe
O poeta teria querido apagar da memória todo traço de hereditarie- enviava o espelho retrovisor. Instalado de novo − e poeticamente − no
dade e o peso da responsabilidade para com os antigos; teria querido antigo Sobrado mineiro, descobre-o muito acima dos mortais. Entre o
circunscrever só para ele a existência dentro de uma redoma neutra, Sobrado e a Rua, uma escada reveladora:
pouco exigente e inaugural, semelhante a uma tábula rasa. Restaria,
pois, ao poeta pôr em prática um absurdo paradoxo: “inaugurar novos
antepassados em uma nova cidade”. Mas sob o signo de Proust e do É teatral a escada de dois lances
tempo perdido, são os antepassados que, ao ditar autoritariamente nos- entre a rua e os Andrades.
sos passos e nossas normas de comportamento, nos inauguram, deter- Armada para a ópera? ou ponte
minando-nos social e economicamente. para marcar isolamento?
silviano santiago
é professor de Literatura, ensaísta, poeta, contista e romancista.
O texto aqui reproduzido foi lido pelo autor na conferência de
abertura da 10ª Flip - Festa Literária Internacional de Paraty, no
dia 4 de julho de 2012.
14

Cinco charadas
sobre o tempo
Contos de Ana Cecília Carvalho
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 15

Manual de sobrevivência

1.
Você tem um inimigo oculto. De sua fresta dis-
simulada ele espreita, inquieto, enquanto você
passa tranquilamente na direção do trabalho, do
seu amado, do seu sucesso. Ele gostaria de reter sem tempo

4.
você nas garras agudas de alguma doença incurável, realizar o seu es-
trangulamento industrial. Não deixe que ele o consiga. Deixe-o sim Às vezes, quando me levanto, a manhã parece ter
vivo de ódio e de despeito. Ele pode procurar outra pessoa e, se for retrocedido. São as escuras falhas na paisagem, os
satisfeito, você há de se tornar comum. Uma pessoa cheia de amigos ardis que o tempo preparou. O sol tem rugas e a
é muito monótona. terra sofreu um desvio na sua rotação. O mar va-
Você tem um inimigo oculto. Cultive-o sem cessar. Desde já man- zou e o que restou, cobriu-se de cordas e gelo. Às vezes, quando me
tenha-o dentro da sua rede social. Não deixe que ele esmoreça. Ele levanto, o futuro parece estar mendigando o meu presente à minha
é tão precioso quanto o seu melhor amigo. É uma sorte ter esse ini- porta.
migo, apesar do paradoxo da situação. Ele teme você. Isto é sinal de
respeito.

Pequeno ensaio
o motivo sobre a vingança

2. 5.
“É esse seu modo de não saber as coisas”, ela disse, Sua cabeça deitada, inclinada sobre as folhas,
“essa sua incompreensão. Olho no espelho da sua alheia ao som das formigas. Seu rosto meio co-
casa e me perturbo: o branco está manchado de berto pela página do jornal. Sua mão esquerda
branco. É essa sua partida, essa sua volta, a sua segurando o único botão da camisa (coisas que
inquietação. Olho o dia e a noite, olho o tempo todo e sempre. O re- observei naquela tarde). A morte esfriava o café em cima da mesa.
lógio branco e os ponteiros manchados que marcam uma hora man- Pensei que a mulher na televisão deveria parar de chorar. Examinei o
chada. É esse meu modo de morrer, essa sua eterna anulação.” resto do jornal e a xícara de café. Ninguém voltaria mais tarde para
acender a luz ou chamar você para o jantar. O vento entrou gelado
pela janela entreaberta. Você para sempre alheio ao choro da mulher
na televisão. “Tome notas, meu caro Watson”, ecoou Sylvia Plath no
fundo da minha memória, “Este é um caso sem corpo; o corpo não
o sentido perdido entra nisso de modo algum.”

3.
Ajoelhei-me para ver o estrago mais de perto. Nenhuma letra da-
Percebo você, apesar de escondido entre as som- tilografada sob a unha do dedo anular. Nenhuma dançarina de cabelo
bras. Sinto que está aí. Sinto seu cheiro de pas- alaranjado que voltasse rodopiando nos próximos episódios, como
sado, a sua saudade entre as sombras. Na entrada em Twin Peaks. Apenas o coração exangue, desfeito pelo imenso
da minha casa, adianta-se o seu contorno hesi- golpe proporcional àquilo que, em seu assassino, teria buscado uma
tante. Quase toco em seu cansaço. Você caminhou toda uma vida, reparação.
descendo as serras, na lentidão dos séculos. Conheço suas mãos ma-
goadas, seus lábios secos, seus pés sem esperança, seu desânimo.
Entendo que você queira voltar. Não tenha medo. Minhas noites são
como as suas. Vem juntar-se a mim antes que o futuro ouça a sua
canção póstuma.

Ana Cecília Carvalho


é psicanalista e escritora, autora de Uma
mulher, outra mulher (Ed. Lê, 1993), A poética
do suicídio em Sylvia Plath (Ed. da UFMG,
2003), O livro neurótico de receitas (Editora
Ophicina de Arte&Prosa), entre outros.
16

UMA VOZ
FEMININA EM
BUENOS
SILVINA OCAMPO

Poeta, contista e romancista, a argentina Silvina Ocampo, nascida em


Buenos Aires em 1903, formou com Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy
Casares, seu marido, e mais alguns futuros grandes escritores porte-
nhos, um dos principais grupos literários da América do Sul no século
passado.
Dirigiu, com sua irmã Victoria, a famosa revista Sur, por onde tran-
sitaram algumas das mais importantes figuras do que viria a ser o boom
da literatura latinoamericana que tanto impacto causou na literatura
mundial.
Sua obra abrange diversos gêneros impressos em livros de contos, de
poemas, romances — alguns destes vertidos para o cinema —, tendo cola-
borado com Borges e Bioy Casares na compilação do material que formou
a Antologia de Literatura Fantástica (1940) e a Antologia Poética Argentina
(1941), marcos das letras daquele país.
Morta em 1993, aos 90 anos de idade, ela ainda está sendo “desco-
berta” pelos leitores.
Aqui, numa seleção de suas frases feita por Humberto Werneck, al-
guns momentos do talento de Silvina.
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 17

AIRES
"QUE FELIZES SÃO AS CRIANÇAS! PODEM SER LOUCAS."

"TODA A VIDA É UM PROCESSO DE ASSOMBROS POR COISAS


ESPERADAS OU PERDIDAS."

"DEUS NOS ESCUTAVA QUANDO NÃO SABÍAMOS FALAR."

"A HONESTIDADE É ÀS VEZES MUITO INVEJOSA."

"ACREDITAMOS NAS MENTIRAS E DUVIDAMOS DA VERDADE


PELOS MESMOS MOTIVOS."
"DESPERTA MEUS CIÚMES INJUSTAMENTE E TE AMAREI."

"NÃO TER NADA ENSINA A NÃO NECESSITAR DE NADA."

"A CONTEMPLAÇÃO É A ÚNICA COISA QUE NOS


RESTA DE DEUS E DOS ANIMAIS."

Silvina Ocampo
"AMAR NOS TOMA MAIS TEMPO DO QUE PODEMOS DISPOR." (1903-1993), argentina de Buenos Aires,
fez parte da geração de Jorge Luís Borges
Do livro Ejércitos de la obscuridad (Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2008) e Adolfo Bioy Casares, com quem foi casada.
RODRI
POEMAS
3 de
POEMAS

GO GA
RCIA L
ANATOMI OPES
DA RIMAA
ALBA
Não exis
Todo som
tem rima
, sim, é a
s pobres
. É muito
O LIVRO
que o tem rtifício cedo par
a ser ma DE CABE
CEIR A
po atrita Quieto d nhã.
Vento m e consom emais pa
etafísico e. É uma síl ra ser dia
, isto aba aflita ,
que nos quase dit vo
cobre, pa Invisível a, cê viveu
soprando lavra acorde e tanto
de Prove Presságio m lá, pra nada
ou greta nça de somb daquilo a
na rocha Uns sino ra ali. Há você ape contecer
de avenc , resma s tocand nas espe
a que av Na ment o - se de lev o tempo r o u
repetiçã a nça — e ainda s e da sua d
o na dife Tudo fico e m neve. que era e esgraça
Tudo rim r e nça. u para am ste
a com alg A morte, anhã: rente a s
coisa, co u ma a história eus pés
ntanto n É bom de , a hora h você am
Naja des ão seja r mais par . ou tanto
nuda pen ara E é quas a ser verda mas foi in
Ou pegu umbra e tarde p de. capaz de
e de rasp ara ser a na pele d deixar
ão, toant gora. a sua am
as palavr e, uma linh a da
as que in a sequer
eram cali stantes a
grafia da ntes,
espécie d fala,
e fada, c
abala.

Rodrigo Garcia Lopes


é paranaense, jornalista, compositor e
editor da revista Coyote. Tem vários livros de
poesia publicados e traduziu o livro Folhas
de relva, de Walt Whitman.
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 19

A ATEMPORALIDADE UNIVERSAL
DE DOM QUIXOTE,
O CAVALEIRO DA TRISTE FIGURA
Elisabeto Ribeiro Gonçalves

P
or que ler o Dom Quixote de Miguel Cervantes Saavedra?
Talvez melhor perguntar antes: por que ler os clássi-
cos? Uma obra literária, como o Dom Quixote, é rotulada
de “clássica” porque é capaz não só de perpetuar-se no
tempo, mas – e isso é o mais importante – pode ser constantemente
reinterpretada por seus leitores. Um clássico deixa de pertencer ao seu
autor, pois cada leitor o lê de maneira desigual e o mesmo leitor o inter-
preta diferentemente a cada vez que o compulsa. Publicado no início do
século XVII, li-o pela primeira vez há uns 40 anos, mas o Dom Quixote
Amo tanto de minha última leitura já não é o mesmo. Cada releitura traz emoções
novas, novas descobertas, lições subitamente desvendadas e, ao final,
nem o livro nem o leitor somos os mesmos da leitura inicial.
e de tanto amar Por isso, é tarefa difícil resumir em pouco espaço o que Dom Quixote
significa. Mas alguns aspectos, entre centenas, me chamam a atenção.
O personagem de Cervantes inaugura a galeria dos heróis cristãos, isto
acho que ela é é, aqueles para quem as vitórias são suas próprias derrotas. Cristo deu
o primeiro exemplo. Não foi seu calvário e morte que possibilitaram
a perenização e vitória de sua pregação e missão terrenas? Os heróis
bonita... clássicos (e há tantos deles) colhiam em vida os louros e as recompensas
de sua força física, do talento, de seus feitos sobrehumanos; cada por-
(Tanto amar, Chico Buarque) fia lhes dava uma vitória e em cada vitória crescia a fama, o prestígio,
quando não seus cabedais terrenos.
Dom Quixote não. Disposto a imitar os feitos da cavalaria andante,
motivo de vasta e apreciada literatura da época, Dom Quixote só ame-
alhou fracassos. Dizendo-se endireitador de tortos e desfazedor de
agravos, defensor das donzelas, amparador das viúvas desconsoladas e
socorredor dos órfãos, oprimidos e necessitados, nunca conseguiu re-
almente traduzir suas nobres intenções em realizações concretas. Dom


Quixote era um personagem humano, até no físico, segundo descrição
de Sancho Pança: rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto,
20

madrugador, e amigo da caça. Também não tinha nenhuma intimidade


com os deuses para lhes pedir ajuda, e seus desejos refletiam bem sua
condição de um mortal qualquer quando, ao aguardar comida na estala-
gem, exigia: seja porém o que for, venha logo, que o trabalho e peso das
armas não se pode levar sem o governo das tripas. O que dava energia a
seu corpo e mente combalidos era o estômago cheio, exatamente como
acontece conosco. Por isso, o Dom Quixote somos nós, mulheres e ho-
mens. Tinha os nossos defeitos, nossas virtudes e até nossa loucura. O
Dom Quixote, por suas extravagâncias, seu destemor irresponsável, suas
alucinações e pela idealização de Dulcineia do Toboso como modelo
de suprema beleza, talvez tenha sido o único herói verdadeiramente
humano da extensa literatura universal. Dulcineia, uma camponesa
sem nenhum encanto particular, rende páginas de comovente delírio.
Respondendo a Vivaldo que lhe pediu para descrever Dulcineia, Dom
Quixote, enamorado e orgulhoso, diz: sua qualidade há de ser, pelo me-
nos princesa, pois é rainha e senhora minha e sobrehumana sua for-
mosura. Sancho Pança, seu fiel escudeiro, rústico, prático e sem papas
na língua, dá a descrição verdadeira de Aldonza Lorenzo, a amada de
Dom Quixote, e rebatizada por ele de Dulcineia: é um raparigão de truz,
direita e desempenada, e de cabelinho na venta. Esse amor de Dom.
Quixote por Dulcinea é um amor essencial e absolutamente libertador.
Dom Quixote pratica a doação de si mesmo a um ente amoroso que ele
mal conhece e, portanto, se não pode esperar dele nenhuma retribuição,
nenhum compromisso, também está livre das exigências, do ciúme e
caprichos da pessoa amada. O amor de Dom Quixote por Dulcineia é,
enfim, um amor sem tragédias, ao contrário, por exemplo, da paixão de
Abelardo por Heloisa e de Fausto por Margarida. Dom Quixote, quixo-
tescamente humano, ama a humanidade em Dulcineia e a ela (à huma-
nidade? à Dulcineia?) faz a doação total de si mesmo.
Outro aspecto extraordinário no Dom Quixote: sua leitura não requer
nenhum escólio, nenhum conhecimento prévio, nenhum pré-requisito
intelectual para entendê-lo e comover-se com ele. San Tiago Dantas em
seu Dom Quixote, um apólogo da alma ocidental (1947), já observara
essa característica quando diz: assim como o sentido profundo de certas
obras é defendido pelas obscuridades indecifráveis que o rodeiam, assim
o enigma do Dom Quixote está preservado pela sua inviolável simpli-
cidade. Cervantes com seu Dom Quixote ridicularizou a erudição per-
nóstica, afetada, de sua época, que tinha em Luis de Góngora y Argote
(contemporâneo de Cervantes) seu expoente máximo. O mesmo que
fizera Erasmo de Rotterdam em seu Elogio da Loucura, de 1509.
Tomemos outros dois clássicos: Milton, de Paraíso Perdido, e Dante
Alighieri, de A Divina Comédia. Não podemos degustar essas duas ma-
gistrais obras sem noções mínimas de filosofia, teologia, história, teo-
gonia, mitologia e religião. Milton coloca Adão e Eva, antes da queda, a
discutir com o próprio Deus, o arcanjo Gabriel e Satã questões comple-
xas sobre o Gêneses e o conhecimento proibido. Dante nos leva a labi-
rintos e patamares complicados para nos dar ciência do julgamento que
faz de personagens históricas, normalmente estranhas ao leitor menos
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 21

atento. Já o interlocutor do Dom Quixote é o modesto aldeão Sancho


Pança, quando não gente do povo, pessoas humildes e ignorantes umas,
arrogantes e salafrárias outras, como a própria humanidade.
Finalmente, a sacada genial, a meu ver, de Cervantes em sua novela
O Cavaleiro da Triste Figura. Dom Quixote é um visionário, um louco, de
miolo mole de tanto ler e se enfronhar nos feitos dos heróis da Cavalaria
Andante que abundavam na época. Suas aventuras estapafúrdias, seu
amor idealizado, seu desejo de reparar injustiças, seu desprezo pela
própria vida, sua renúncia a bens materiais, sua solidariedade radical e
descompromissada, seu envolvimento com o sofrimento alheio, real ou
imaginário, são coisas que só um louco tem, imagina e faz.
Ao final, quando a família consegue localizá-lo, já doente e comba-
lido, e o leva para morrer em casa, ele, no seu leito de morte, desabafa
com sua sobrinha: tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras cali-
ginosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua
leitura dos detestáveis livros das cavalarias. E completa Dom Quixote já
na presença também de seus amigos, Pedro Alonso, o cura, o Bacharel
Sansão Carrasco, e Mestre Nicolau, o barbeiro: daí-me alvíssaras, bons
senhores, que já não sou Dom Quixote da Mancha, mas sim Alonso
Quijano; já não sou inimigo de Amadis de Gaula e da infinita caterva de
sua linhagem; já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria
andante; já conheço minha necedade e o perigo em que me pôs o tê-las
lido; já por misericórdia de Deus, e bem escaldado, as abomino.
Nesse momento, prestes a morrer, ele realmente enlouquece.
Enlouquece porque renega a seu sonho, ao seu espírito aventureiro,
combativo, desafiador. Ele se acomoda a sua antiga apatia para gáu-
dio da família e dos amigos. Nada mais de bater-se contra o gigante
Alifanfarrão, de atirar-se contra moinhos de vento, de lutar contra
exércitos de carneiros, de desafiar leões, de fazer piruetas na Penha de
fraldas de camisa em louvor de sua amada Dulcineia. Dom Quixote, ao
reincorporar o pacato Alonso Quijana enlouquece, perde a saúde men-
tal de que sempre gozou em suas andanças e desafios pelos tortuosos
caminhos da Mancha. Resumindo, em Dom Quixote loucura é sanidade
e sanidade é loucura. O homem não vive sem seu sonho, por mais ex-
travagante e insensato que seja. Fernando Pessoa, outro clássico, capta
essa imperiosa necessidade da humana loucura quando escreve: sem
a loucura que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que
procria? Esses são alguns dos ensinamentos da magistral e inimitável
novela do Cavaleiro da Triste Figura. Vale a pela lê-la? Sim. Uma vez?
Não, centenas..

Elisabeto Ribeiro Gonçalves


é Diretor Clínico do Instituto de Olhos de Belo Horizonte
e membro vitalício do Conselho de Diretrizes e Gestão do
Conselho Brasileiro de Oftalmologia.

Reprodução de desenho de Pablo Picasso (1955)


22

Ricardo Teixeira de Salles

A
o buscar expressar suas verdades e expor seus sentimentos,
o poeta faz das palavras um termo superior à gramática
superficial das expressões. Não é um simples empilhador
de palavras. É um estudioso obcecado pela prática das gra-
máticas sintáticas e lexicais. Porque ele pretende assegurar que a pa-
lavra seja parte constituinte do poema, não como registro de um fato,
mas como expressão de um sensível ver, absorver e criticar. A palavra,
no poema, traduz a emoção de um fato visto, vivenciado ou sonhado. O
verso é a figuração do mundo. O mundo, por sua vez, é uma projeção da
razão de nosso sentimento no contexto do poema. O poeta não empilha
palavras. Nem pode. Porque o poema é uma proposição para estabelecer
um parâmetro original visando expressar o signo que tal palavra pro-
cura representar.
Diz Wittgenstein que “a figuração lógica dos fatos é o pensamento”. A
lógica do poema poderia arriscar a dizer, é a aparência da sensibilidade
tornada pensamento de poesia. A lógica dos fatos são as peculiaridades

O verso é a fi
regionais e nacionais, ou específicas do mundo do poeta, determinantes
na elaboração de sua obra. Isto irá fazer germinar uma ampla diversi-
ficação de vozes, ou do fazer poético, quando este fazer se pauta, ou
nasce motivado exatamente pelas tensões e conflitos que circundam, ou
impulsionam o homem/poeta na vida.
O poeta busca com afinco uma miragem composta de palavras. Ou
cultiva uma floresta feita de palavras: seu idioma natal. Floresta com a
qual ele pretende se impregnar de poesia. Da poesia que ele quer usar
para transcender as fronteiras da criatividade. E, principalmente, trans-
cender as fronteiras de seu próprio eu. O poeta almeja a perfeição da
palavra solar, prenhe de significados tensionados pela emoção. E pela
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 23

PALAVRA SOBRE PALAVRA: POESIA


ilusão e pelo devaneio. E, mais do que tudo, pela independência do sen- dissonâncias e ações pertinentes à matéria e ao espírito que caracteri-
tido contido na palavra que ele usa para explorar e questionar as vicis- zam a essência do homem em seus intentos de vida.
situdes do homem ou revelar seus anseios e vislumbres. Conquistas e Palavras são hábitos, desejos, paixões e experiências. Palavra é o
perdas. Amor e liberdade. Protesto e aclamação. único passaporte para a liberdade do homem, quando ele pretende lu-
As palavras são as peças do jogo da imaginação, jogo que trans- tar, ou trabalhar com intensidade, por sua própria individualidade. A
forma, em sentido de poesia, a predicação do sentimento contido na palavra é o meio que possuímos para sairmos de nós mesmos, para con-
intenção do poeta se expressar. O que estabelece, por sua vez, a natu- quistarmos o tempo e o espaço de participação no mundo que continu-
reza desse discurso poético é a afinação da sensibilidade do perceber, amente construímos, para nele vivermos. Sejam quais forem as palavras
sentir e traduzir a plenitude da identidade daquilo que foi vivenciado e de ordem. Ou desordem.
absorvido. Palavra é a sensibilidade para externarmos aquilo que nos foi possí-
O valor da proposição das palavras reside na função destas palavras. vel experimentar, com todas as nossas forças. E, desse modo, buscar dis-
“O verbo situa-se à beira do discurso, na juntura do que é dito e do que se cernimento e clareza na leitura do livro da vida. Sem a palavra o mundo
diz, exatamente aí onde os signos estão em vias de se tornar linguagem”, se faz como que subserviente a uma ordem estúpida de frustração, de
escreve Foucault, em “As palavras e as Coisas”. Exatamente aí, entra vazio e desrazão. A palavra é a ordenação do estabelecimento e da de-
em cena o poeta. Ou seja, entra no palco da vida para ser, utilizando-se terminação de um ato pela consequência dela própria, palavra. “O que
das palavras, um escultor de sentidos. Sentidos no que dizem respeito a o poeta almeja é uma novidade de combinações que surgirão ao ouvinte ou

figuração do mundo.
emoções e significados. A palavra desdobrando-se em palavras, a emo- ao leitor uma auréola ou uma esfera iluminada de sentidos perceptíveis e
ção sonhada e a emoção vivida com a intensidade daquilo que Otávio de energia radiante ao mesmo tempo capaz de ser compreendida e de enri-
Paz diz: “... o assombro de vivermos.” quecer (transcendendo) o que já existe.” (George Steiner)
Necessário que as palavras se achem no poema como o sol na vida. Se todas as palavras já foram pensadas e usadas, surge o papel do dis-
Ainda que discutíveis, mas autênticas, especialmente quando nascidas cernimento humano que é, principalmente, o reflexo do que as palavras
no devaneio, uma das vias de acesso à poesia, como ensina Bachelard. significam como resultado puro e simples das conquistas que o homem
Afinal, poesia é o exercício da paixão pela vida. Através das proezas do realiza. Apesar de todas as desgraças que comete ou provoca. Pois o
pensar, verbalizar emoções é o que o poeta faz com as palavras. Escrever homem é conquista da leitura, conquista da compreensão. Conquista
poesia é realizar a coesão do perceber para interpretar o acontecido, da escuta (aprendizado), da palavra que constrói e expressa o vernáculo
ou o idealizado, potencializando o pensamento (dramático/lírico) refle- de amor à vida. E conquista, mais do que tudo, do discernimento que
xivo sobre o sentido do ser humano. Sentidos tais como ideais, valores, estabelece a correlação entre consciência e palavra.

Ricardo Teixeira de Salless


mineiro de Belo Horizonte, é poeta e artista plástico.
24

O vizinho do

Conto de Rosângela Maluf

Q
uase todas as manhãs, antes que eu saísse em di- a chave da fechadura do portão? Ninguém respondeu. A modernidade
reção à garagem, a porta do 605 se abria e o novo nos fazendo escravos da tecnologia, nos tornando dependentes de toda
vizinho aparecia quase à minha frente. Há pouco porcaria eletrônica que só serve para nos estressar: num dia é o controle
tempo morando no prédio, estávamos, pois, os remoto que pifa, no outro a pilha do controle está fraca e, como hoje,
dois, no mesmo andar. Distantes apenas alguns pane elétrica - nada do portão se abrir! Aparece o vizinho do 605 com o
metros, a casa dele da minha. Bom dia, ele dizia saco de lixo em uma das mãos e na outra a bendita chave. Fomos salvos,
com voz meio aguda enquanto colocava o lixo do acho. Alívio geral. Rapidamente posicionados em seus volantes e, como
lado de fora. Bom dia, eu respondia. Boa noite, numa largada de Fórmula Um, se foram todos em direção aos seus res-
eu o cumprimentava e boa noite, bom descanso, respondia ele. Assim pectivos fronts de batalha, linhas de frente. Fiquei por último, resistindo
fomos nos falando por certo tempo, frases curtas, sem sentido algum, em meu bunker pessoal. Falei com o meu vizinho como de costume, o
nada mais que sorrisos, bons dias, como vamos, boas noites. mesmo sorriso, o mesmo bom dia, o mesmo como vai, que bom que o
Naquela manhã houve interrupção de luz, justamente em hora de senhor tinha a chave, essas coisas.
maior movimento quando todos saíam para a guerra diária. Atrasados Contou-me por alto que tinha problemas com a mãe, velhinha, 90
para o trabalho, segunda feira, sempre um caos! Irritação, impaciên- anos, internada há uma semana por conta de uma invasão de pneu-
cia... Sem energia elétrica, o portão eletrônico não funciona. Quem tem mococos em seus debilitados pulmões. Lamentei que ele não tivesse
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 25

ninguém a quem recorrer e nem com quem contar. Nenhuma ajuda de Imagino que o Maurinho chegou de leito, vindo de Londrina, Paraná,
nenhum parente. Filho único, mãe viúva, os dois em Belo Horizonte, pois nem sete horas eram quando tocaram a campainha. Meu filho
família toda no Paraná. Ele aposentado, cuida da casa, das compras, das atende e logo me grita dizendo que alguém procurava por uma chave.
contas, das plantas, da mãe velhinha-de-noventa-anos. Pobre homem! Respondo saindo do banheiro ainda de pijama. Encontro o Maurinho na
Então, até mais, eu digo. Bom trabalho, responde o meu vizinho do 605. porta. Um rapaz novo, tão bonito, cabelo de ronivon, com ar de cansaço
Antes de sair o vejo debruçado sobre os dois vasos que ladeiam sua e barba que parecia ter crescido durante a viagem. Quase não nos fala-
porta. Ele molha, sem pressa, imensas árvores da felicidade, daquelas mos, pouquíssima conversa: ele, poucas perguntas, eu, apenas respostas
bem verdinhas, lindas, quase à altura da campainha. Pensei: quanta necessárias. Entrego a chave e ofereço ajuda. Qualquer coisa que ele pre-
paciência em uma só pessoa! Como será para um homem dessa idade cise, pode chamar aqui em casa. Se não estamos nós, estará Francisca.
cuidar da mãe, dar remédio com hora marcada, virá-la na cama, ainda Ele agradece e sai.
que a enfermeira venha para dormir com a velhinha-de-noventa-anos, Em seguida os meninos saem para a faculdade, retomo minha correria
trocar-lhe as fraldas, dar o banho da noite. Difícil para os dois, ainda diária e voo para o computador terminar um trabalho que devo entregar
mais considerando a idade dela e idade dele também! Fui-me embora. ainda hoje na Associação Mineira de Psicanálise. Nunca fui escritora,
No rádio do carro ouvia a CBN e, sem paciência para escutar mais não sou e nunca serei, mas adoro uma pesquisa e estou terminando um
desacertos do presidente da república, mudei de estação e deixei que trabalho longo e cansativo que me deixou morta, literalmente exaurida.
Vivaldi me acalentasse a alma e me tranquilizasse o espírito já tão tu- A psiquiatra que me encomendou a pesquisa é diretora da clínica onde
multuado àquela hora da manhã. Escolhi uma peça para oboé que ado- estou atualmente e como fui indicada por pessoa poderosa, não posso
rava ouvir. Fechei todos os vidros, liguei o ar, e nem percebi o trânsito fazer feio. Queria muito que ela contasse comigo para outros trabalhos
lá fora. Me deixei levar. Respirei fundo e fui a caminho da clínica onde porque, sabe, eu gosto de ficar em casa, pesquisando. Sou muito curiosa,
tinha um compromisso que me ocuparia toda a manhã. bisbilhoteira também. Quanto mais sei, mais quero saber: sobre tudo,
Meu dia passou como passam os nossos dias, todos tão iguais. Somos sobre todos, gosto de aprender de pequeninas a grandes coisas, fatos
sempre tão parecidos, em nossas rotinas, nossos problemas, desassos- curiosos, coisas sérias, coisas fúteis, fofocas... gosto também! Sou per-
segos e inseguranças, nossas dores, doenças, desafetos assim como so- guntadeira por demais. Meus filhos abominam essa minha caracterís-
mos similares em nossas alegrias, esperanças, nossos raros momentos tica. Brinco com eles dizendo que eu daria boa detetive, investigadora,
de felicidade plena, nossos afetos e carinhos, pequenos planos, grandes na pior das hipóteses, diretora de filme policial, dessas tramas delicio-
sonhos. Somos todos tão parecidos! Voltando do trabalho chego em casa sas que me fazem roer as unhas. Penso nos Dez Negrinhos, da Agatha
cheia de pacotes, cumprimento rapidamente o meu vizinho que também Christie. Amei a história e varei a madrugada até saber quem cometera
chegava. Estou faminta. Penso em um banho bem quente, água de co- os assassinatos. Gosto de coisas assim, que tiram o fôlego, adrenalina,
lônia, pijama, chinelo, comida, TV. Ufa! cara, muita adrenalina.
Tocam a campainha. Olho para o relógio. Faltam dez para as dez. Francisca vai até o açougue e me diz que a chave do 605 está no
Abaixo o som da TV. Abro a porta. O vizinho! chaveiro de sininhos que fica na porta da copa. Atrás da porta, por que
— Oi... os meninos acham ridículos esses porta-chaves que a gente dependura.
— Oi... Volto para o computador e o telefone toca.
— É rápido, vim só pedir um favor. Me desculpe incomodar, mas vou — Claro... claro que posso. A chave está aqui, sim, vou lá e verifico. Se
precisar passar a noite no hospital com mamãe. Ela piorou, a febre não estiver aberta, eu fecho e trago para cá. Depois vocês pegam de novo.
cede e o médico preferiu voltar com ela para o CTI. É, é melhor mesmo, Nada a agradecer, incômodo nenhum. E sua mãe? Melhor? Que bom...
ainda mais na idade dela! Mais seguro, não é? Pois é, queria deixar a Fique forte, vai dar tudo certo.
chave de minha casa aqui. Amanhã de manhã chega de Londrina um Me enrosco em um velho peignoir, saio assim mesmo de chinelos.
amigo meu, o nome dele é Mauro, Maurinho. Falei com ele agora por Não resisto à curiosidade de poder penetrar na intimidade daquela casa.
telefone e não terei como buscá-lo, como sei que vocês acordam cedo, Fico contente que Francisca não esteja por perto. O que ela iria pensar
tomei a liberdade de vir falar com você. Olha, muito obrigado, viu, to- de mim? Louca de curiosidade pelo alheio? Logo eu? Abro a porta e en-
mei essa liberdade porque você sabe, existem pessoas em quem a gente tro no apartamento 605, pois, efetivamente, Maurinho se esquecera de
confia, mesmo sem um motivo especial. fechá-la. Por isso o vizinho me ligara do hospital pedindo que eu fosse
— Claro, nos levantamos mesmo muito cedo, os meninos e eu. Pode dei- checar. A persiana ainda fechada permite a entrada de pouca luz. Vou
xar a chave, sem problema algum. Não precisa de mais nada? Nada de olhando e procuro conhecer um pouco mais sobre o meu vizinho. Por
cerimônia, viu? Então está bom, que tudo corra bem. E olha, pode ficar nada eu perderia uma investida, de pura curiosidade, naquele lugar.


tranquilo. Precisando de qualquer coisa, olha aqui... Peguei um bloqui- Que sala estranha! Paredes verdes, tetos branco, com sancas em alto
nho na mesinha do telefone e anotei meu número de casa e do celular. relevo, uns florões enormes, entremeados de laços. Os dois ambientes
em um só, o pequeno hall com espelhos, a sala de visitas com poltronas um Virginia Wolff e outro de capa azul com as letras douradas, já quase
na cor mostarda; arandelas, aparadores, um par de cisnes de porcelana, apagadas. Nada de poesia, pensei. Muito bem.
e alguns livros na parte de baixo. Sabe aquelas fotos antigas, em sé- Chego o pescoço no corredor e não resisto. Do lado esquerdo o ba-
pia e branco, ovais, emolduradas por largas tiras de madeira escura que nheiro cuja luz ficara acesa. Luzes e luzes, pois havia duas lâmpadas
existiam na casa de nossas avós? Duas... duas na parede principal. Pelo de teto além de umas seis ou mais circulando o espelho por cima do
estilo da roupa e dos cabelos imaginei que fossem os avós do meu vizi- aparador. Tudo em bege e rosa-antigo, de bom gosto, discreto, ambiente
nho. Vasos e cachepots de porcelana havia vários. Todos bem coloridos. florido com vasos de bambuzinhos naturais pendendo da janela. Por
Flores, muitas flores espalhadas por todo lado. Sobre a estante, sobre a sobre a bancada de mármore, uma dezena de frascos de perfumes. Nada
mesa, na mesinha de telefone e no parapeito da janela. E tapetes então? tirei do lugar mas li cuidadosamente (apertando os olhos, claro!) cada
Contei rapidinho, seis! Dois deles persas, com certeza, os outros desses um dos rótulos nos vidros impecavelmente limpos. Foi possível ver que
tabacows, de qualidade um pouco melhor, mas sem pedigree. O apar- entre yardleys e armanis alguns calvinkleins também se faziam presen-
tamento nem grande era, mas parecia maior que o meu, talvez pelas tes na bandeja de prata com forrinho branco de crochê. Um luxo! O jogo
reformas ali já feitas ou pela disposição dos cômodos. Prata, peças de de toalhas banho-rosto-bidê tinha cara de coisa feita por mãe-da-gente,
prata, impecavelmente polidas. Um pequeno samovar, dois cinzeiros e com barras largas de crochê e bordados em ponto de cruz. Não pude
uma bandeja com serviço completo de café. Me pareceram portuguesas! deixar de notar o tapete chinês, com flores em alto relevo, todos os tons
Dois lustres em cristal, com lágrimas, pendendo do teto. Um deles sobre de bege e rosa. Bonito!
a mesa de jantar o outro sobre a mesinha de centro. O maior com porta- Eu não tinha muito tempo e além do mais deixara a porta entrea-
lâmpada, de murano, pintados, imagino que à mão e com cara de obra berta, assim me sentiria menos culpada pela invasão.
italiana. Me perguntei se tudo aquilo viria de sua própria família ou se Do corredor avistei os dois quartos. Um deles, imagino, seria o quarto
seria ele um rato de antiquários. da mãe-velhinha-de-noventa-anos. Do lado da cama estilo marquesa,
Eu não tinha muito tempo, afinal só estava ali para confirmar se a uma caminha pobrezinha, provavelmente para a enfermeira da noite.
porta ficara mesmo aberta, conforme ligação do vizinho para minha Lustre, flores na janela, cortinas brancas de cetim do teto até o chão,
casa. Já poderia ter ido embora, mas a curiosidade me deixava acesa e dois tapetes, um ao lado de cada cama, sobre a cômoda, também mar-
continuei olhando os livros na estante, impecavelmente arrumados, dis- quesa, caixinhas de remédios das mais variadas cores e tamanhos. Jarra
tribuídos por ordem de tamanho, coleções de capa dura, com vermelho de cristal, dois copos, com porta copos de metal, uma revista de palavras
e dourado e sobre a mesinha lateral, quatro volumes empilhados. Me cruzadas, uma bic preta e uma caixinha — não quis ver o que havia den-
curvava para um lado e para o outro na tentativa de ler todos os títulos. tro. Do lado direito do corredor um quarto grande, a suíte do casal, pen-
Droga, deixara os óculos em casa e precisava apertar os olhos para ver sei com ar conservador e preconceituoso. Deve ser aqui, falei para mim
alguma coisa de pertinho: “Alice no país das maravilhas”, “Vidas Secas”, mesma. Cama com dossel... Há quanto tempo não via isso a não ser em
filmes de época ! Quarto grande com cortinas grenás, de cetim, desde o que seja assim! Interesso-me pelo conhecer em profundidade a alma
teto caindo sobre um imenso tapete persa, quadrado, ocupando todo o das pessoas, de todas as pessoas. Penso ainda em como eu seria feliz
piso. A cama era de ferro, porém com flores e folhas trabalhadas por so- se pudesse entender o que vai pelos corações e mentes das pessoas a
bre o gradeado. Por detrás saía um tubo que se curvava para a instalação quem amo. Será possível voltar a estudar na minha idade? Levar meu
do dossel que, preso, não me deixou sequer entrever como seria. Uma trabalho até à clínica e pensar em me inscrever para um curso, talvez?
colcha belíssima, também em tons de vinho e rosa, almofadas indianas, Psicologia? Psicanálise?
cheias de brilho, se misturavam aos travesseiros de fronhas lisas. Numa O cenário do 605 me enche de emoção. É como se eu visse em seus
das laterais da cama belíssima peça em petit bronze, uma caçadora tra- quartos, em seus vazios, seus silêncios, todas as experiências humanas
zendo um cervo pela coleira. Um vento imaginário soprava suas roupas reunidas. A solidão, a tristeza, a doença, o abandono, o passado ali tão
esvoaçantes, e um cão deitado aos seus pés compunha o belo abat-jour. presente, mas também indícios de futuro, de recomeços, de pequenas
Do outro lado, em tamanho menor, um pequeno lustre de cristal com alegrias, da vida que pulsa apesar de, e não pára. Sinto-me empurrada
pequeninas contas dependuradas, um livro de capa preta, um porta- dali. Caminho em direção à porta. Olho e não vejo ninguém nos cor-
óculos. Havia ainda uma arca que nada tinha a ver com o mobiliário, redores. Ainda bem. Fecho a porta, passo a chave, tranco no 605, to-
sobre ela uma sacola de viagem, aberta, uma caixa de sapatos, fechada, das as histórias que a minha mente foi capaz de criar. Volto para casa,
dois pacotes de presentes. Ao me virar, me deparei com uma cômoda. Francisca ainda no açougue. Na tela do meu computador o trabalho que
Sobre a cômoda vários porta-retratos. Imagino que seja o meu vizinho preciso entregar ainda hoje. Respiro lenta e profundamente. Sirvo-me
nas fotos: quando bebê, no colo da mãe, o pai bigodudo do lado; de de uma xícara de chá. A manhã está fria, venta muito. Olho para o te-
uniforme no jardim da infância, no time da escola, recebendo diploma, lefone que não toca. Tomo devagar minha xícara de chá. Pensamentos
vestindo casaco em paisagem nevada, uma longa viagem, talvez. Esse é me invadem, seres humanos, sentimentos comuns, pessoas, vida. E uma
o Maurinho... Porto Seguro ao fundo; São Paulo, Viaduto do Chá; Praia compaixão imensa toma conta de mim.
de Ipanema, Rio; Pelourinho em Salvador. Os dois, em pose tradicional,
mãos na cintura, sem olhares de cumplicidade, sem sorrisos compar-
tilhados, sem demonstrações explícitas de afeto, mas sempre juntos.
Sobre as fotos as datas: a mais antiga, de 1998, a mais recente deste ano.
Fico olhando os dois nas fotos. Sinto-me invadida por uma certa
ternura morna vendo-os ali, lado a lado. Imagino cenas de alcova nesse
Rosângela Maluf
quarto onde estou, penso no quanto a vida é estranha e generosa ao
é mineira, pós-graduada em Marketing,
mesmo tempo. Deixo de lado meus pensamentos antigos, cheirando a professora universitária e consultora de
mofo. Me dou conta de que cada um é feliz à sua maneira e que bom empresas.
28

''
EM TODA E QUALQUER
NARRATIVA TIPO AVENTURA,
SEMPRE SE VIU, SE VÊ E
SE VERÁ O BEM COMBATENDO
O MAL. E TODA NARRATIVA
DESPERTA UMA PAIXÃO
GENERALIZADA PORQUE É O
MELHOR ESPELHO DA REALIDADE
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 29

NARRAÇÃO E

JUSTIÇA
O
telo é acusado pelo pai de versão da Bíblia, a do Alcorão, a das mitologias
Desdêmona de ter usado persa, grega, romana, a dos tupis-guaranis,
feitiços pra lhe seduzir incluindo a da ciência, com seu Big-Bang e a
a filha – pois como pode Teoria da Evolução, inclusive a da Consciência,
uma jovem loura e linda segundo o paleontólogo Teilhard de Chardin,
apaixonar-se por um ho- padre que teve um grande problema com
mem bem mais velho e negro? – e o mouro se a Igreja ao publicar seu livro O Fenômeno
defende dizendo que o próprio Brabâncio o Humano, em 1948. Porque, com a Europa re-
convidara à sua casa, a fim de que contasse a cém-saída da segunda grande guerra, ele dizia
ele e à moça suas aventuras e desventuras, in- que o mundo é tão selvagem, que não se pode
cluindo viagens e naufrágios, batalhas campais aceitar que houve uma salvação em Cristo.
e navais, etc., etc., depois do que Desdêmona Fomos salvos de quê? E, baseado no fato de
– que fora obrigada a constantemente se afas- que a humanidade crescia e estava prestes a
tar para os serviços da casa – pediu-lhe que tomar e a dominar toda a Terra, inclusive com
contasse tudo outra vez, exclusivamente para uma evolução assombrosa das comunicações,
ela. Aí... previu que em breve teremos uma hominização
Com isso, Shakespeare demonstra duas do planeta, que se envolverá numa Noosfera,
coisas: o poder de sedução das narrativas... e a processo último que teria começado com a ge-
importância delas nos julgamentos. osfera – a matéria – a biosfera – a vida – e, por
As telenovelas da Globo são líderes de au- último, o domínio absoluto do conhecimento,
diência, com os telejornais – outra forma de quando – aí, sim – o Homem, o verdadeiro
narrativa em capítulos. Têm o mesmo velho Filho de Deus, promoverá a Salvação e todas
fascínio dos contos seriados que valeram a vida as injustiças serão sanadas.
a Sherazade. E os que trabalham com a Justiça Toda narração tem como meta a Justiça. Nos
e pela Justiça também têm de dominar a arte enlatados policiais da televisão, nos grandes
de narrar, pra poderem seduzir, convencer... e autores como Conan Doyle, Agatha Christie
sobreviver. ou Georges Simenon, em toda e qualquer nar-
Por que esse encanto? Porque a própria vida rativa tipo aventura, sempre se viu, se vê e se
na Terra é uma tremenda narrativa com várias verá o Bem combatendo o Mal. E toda narrativa


W. J. Solha versões, que mais têm adeptos quanto mais desperta uma paixão generalizada porque é o
são capazes de seduzir... e convencer. Temos a melhor espelho da realidade.
30

Shamash e Jeová
A narração, ficção incluída, sempre foi usada pela Justiça. Hamurabi, rei dele desceria Pilatos – vestido como oficial dos SS. Fiz isso pra mostrar
da Babilônia, foi o primeiro a fazer um código de leis. E no alto da sua a injustiça que sempre se cometeu contra os judeus nesse ponto. Mas o
estela mandou fazer um baixo-relevo em que ele próprio é retratado mundo é esquizofrênico, pois o que existe naquela praça? Justamente
recebendo o tal código das mãos do deus-sol Shamash. Ou seja: as nor- um monumento a Vidal de Negreiros, o paraibano que participou da luta
mas eram tão perfeitas que só poderiam ter tido inspiração divina! Os pra botar os holandeses fora do Brasil. Visitei, em Assunção, o Panteão
judeus estiveram no cativeiro da Babilônia e certamente foi de lá que ti- de Solano Lopes, o homem que resistiu à invasão da Tríplice Aliança –
raram a ideia do decálogo e da lenda de que Moisés teria recebido os Dez Brasil, Uruguai, Argentina – no Paraguai. O que vi na Praça Trafalgar,
Mandamentos diretamente das mãos de Jeová, no alto do monte Sinai. em Londres? O monumento ao Almirante Nelson, que resistiu ao ataque
Há vários itens semelhantes entre esses códigos, inclusive o básico: olho de Napoleão à Inglaterra. Como se chama a capital dos Estados Unidos?
por olho, dente por dente. Washington, em homenagem ao líder da revolução pela independência
americana frente aos ingleses. Todos países cristãos, esquizofrenica-
mente fazendo na prática uma luta que contradiz sua teoria, dita cristã.
Platão, que é Sócrates
Quando Platão escreveu sua obra filosófica, deu-lhe vida em sua série
Diálogos, em que cada tema – como o da Justiça – tem como título a pes- Platão/Cristo
soa com quem Sócrates discute suas ideias. Aliás, hoje ninguém conse- Foi Sócrates, segundo Platão, quem disse que os antigos ensinavam que
gue separar as ideias dos dois – Sócrates e Platão – uma da outra, e o que se devia pagar o bem com o bem, o mal com o mal, e que isso não era
eu acho é que na verdade Platão tirou o velho sábio do nada, enchendo- sábio, pois não é justo fazer o mal em caso algum, pois o mal – diz ele
o de discípulos, uma esposa mal-humorada, condenação a beber cicuta, – nunca é cometido por alguém em sua condição normal. Quando a cul-
etc., etc., dramatizando, seduzindo discípulos, convencendo-os do que tura helênica entrou com tudo em Jerusalém, a frase se chocou com a lei
ensinava. de Moisés. Daí o Evangelho apresentar Cristo dizendo: “Ouvistes o que
foi dito aos antigos: amai o vosso próximo e odiai o vosso inimigo. Eu,
porém, vos digo: amai os vossos inimigos”
Cristo Essa novidade não foi aceita entre os judeus, e – bem a propósito –
A narração do Evangelho, plagiando Platão em sua doutrina e sem lhe acabou sendo imposta pelo próprio Império, porque nada melhor para
dar o devido crédito, chega dizendo-se portadora de dogmas Revelados. manter a Pax Romana do que divulgar que o próprio filho de Deus teria
E tenta cativar os hebreus de uma forma subliminar extraordinária, dito Amai os vossos inimigos e dai a César o que é de César. E que se
tornando Jesus uma síntese do seu povo. Por isso ele nasce da Virgem, alguém lhe bate na face direita, ofereça-lhe a esquerda. Se lhe roubam a
porque o homem nascera da virgem mãe-Terra. Por isso é batizado no capa, dê-lhe também a roupa. Se o forçam a andar uma légua, ande duas.
Jordão, porque seu povo – em pecado – fora batizado pelo dilúvio. Por Não resista ao mal. Bem-aventurados os mansos. Porque deles será o
isso passa 40 dias no deserto, porque o povo ali passara 40 anos. Por Reino dos Céus. Claro, porque justiça-justiça, na Terra, é impossível.
isso Deus diz que ele é seu primogênito e filho dileto, porque dissera o
mesmo para o seu povo. Por isso Moisés sobe o Sinai, pra de lá trazer a
Lei, e Cristo sobe o Tabor, pra de lá fazer seu sermão da montanha, onde A misericórdia divina
tudo é reformulado. A maioria de nós nasce pobre; a minoria, rica. E uns, belos e sadios,
Mas o Evangelho não emplaca entre os judeus. Porque surge num outros feios, defeituosos, incapazes, retardados, doentios. Uns geneti-
momento em que Israel, sob o jugo do Império Romano – tão esmaga- camente brilhantes; outros, estúpidos. Uns, em terras seguras, fartas;
dor que acabaria por destruir Jerusalém no ano 70 – tenta reagir por sua outros, em áreas de constantes terremotos, enchentes, secas, vulcões,
libertação, pelo que jamais poderia aceitar uma doutrina que pregava tsunamis. Daí que uma de nossas grandes ficções é a da Misericórdia
o amor aos inimigos e que se desse a César o que era de César! E por Divina. Como pode haver isso se o Universo, a Natureza, é regida por
falar em César: há uns três anos, a pedido do cantor e compositor Chico leis inexoráveis? Onde está a misericórdia ante a inescapável
César, então secretário de Cultura de João Pessoa, escrevi um texto para morte, geralmente envolvida em dor?
o espetáculo da Semana Santa, que acabou rejeitado. Por quê? Como
o local da apresentação seria a Praça Vidal de Negreiros, no centro da
cidade, imaginei colocar no Paraíba Palace Hotel, que seria meu Templo O drama do deserto
de Jerusalém, dois enormes banners com suásticas e, lá em cima, o re- Quando era adolescente, assisti a um filme produzido pela Disney, O
trato de Hitler sob a inscrição Tiberius Cæsar. Tudo começaria com as Drama do Deserto, do qual saí arrasado. Porque foi chocante ver, de-
tropas marchando no passo de ganso, quando chegaria um Citroën e talhe por detalhe, o violento “cobra engolindo cobra” que é a vida, sob
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 31

O mal
o domínio de uma única lei: a do mais forte. Ou do mais apto. O pior Além do Drama do Deserto, Disney me pegou pelo pé com outro filme,
momento foi quando um cavalo-do-Cão entra num orifício na terra e aquele em que o Espelho Mágico – da história de Branca de Neve – de-
dele sai de ré, perseguido por uma caranguejeira. O duelo entre os dois é fende a importância dos vilões nas boas narrativas. Que seria da história
terrível. Mas quando a peçonhenta levanta as patas dianteiras e avança da própria Branca de Neve sem a Rainha Má, que é também a Bruxa?
para ferroá-lo, o outro a ataca por baixo e a fere, anestesiando-a ime- Que seria da de Peter Pan sem o Capitão Gancho? Que seria de Os
diatamente. Aí arrasta o monstro pra sua loca e, ali, a aranha é devorada Miseráveis sem o Inspetor Javert? De Os Três Mosqueteiros sem o Cardel
aos poucos pelos filhotes do vencedor, conservada viva mas inerte, de- de Richelieu? De Guerra nas Estrelas sem Darth Vader? De Popeye sem
vido ao veneno do pequenino. Brutus e, igualmente, de Júlio César sem o Brutus dele? Hamlet diz: “A
Justiça, portanto, é também ficção nossa, porque também o Crime Dinamarca é uma prisão”.
é a ficção (pois inexiste na Natureza), e porque o Livre-arbítrio é ainda Rosencrantz, seu colega da universidade de Wittenberg, onde ambos
outra ficção. Uma coisa humana. estudam Direito:
— Então o mundo também é.
— E como. Uma prisão em que há muitas celas, solitárias, calabouços,
O problemão de Paulo apóstolo dos quais a Dinamarca é o pior.
Numa de suas epístolas, Paulo realça o lance do Velho Testamento, em — Eu não acho.
que Moisés recebe de Jeová a ordem de ir dizer ao faraó que dê liber- — Uai (Why!), então pra mim é, pra você , não. Nada é bom nem mau, a
dade a seus escravos hebreus e os deixem voltar à Terra Prometida. Mas mente é que nos faz ver as coisas de um modo ou de outro.
quando o líder vai chegar ao rei do Egito, Deus endurece o coração do Seria impensável o progresso que adquirimos no século XX sem a
faraó. Pra quê? Segundo a Bíblia, pra mostrar todo o Seu poder e glória. ocorrência das duas guerras mundiais. A primeira (que marca o fim da
Como? Deflagrando as dez pragas, cujas nove primeiras não demovem Belle Époque) começou com tradicionais batalhas de cavalaria e infanta-
o soberano, mas cuja última – a morte de todos os primogênitos, inclu- ria, com seus comandantes dando ordens a cavalo, no alto de colinas em
sive o dele –, derruba o homem. Aí Paulo pergunta: Se Deus endurece que avistavam o campo de batalha, etc., mas terminou com novidades
o coração do faraó, de que se queixa, então? Mas bate o pino: O que é o nascidas da necessidade de vencer: a guerra química, os primeiros tan-
vaso pra questionar o oleiro? Resultado: É Deus – diz ele – quem opera ques de guerra, os primeiros aviões de bombardeio. A Segunda Grande
em vós o querer e o fazer segundo a Sua vontade! Não percebe que, com Guerra trouxe as viagens intercontinentais, o início das conquistas es-
isso, a ideia do pecado vai pra cucuia. O próprio Cristo, na cruz, desdiz o paciais com von Brawn, a energia nuclear, evidentemente, com a Bomba
que dissera, ao gritar: Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem! Atômica.
Só o bendito Schopenhauer matou a charada, e tão bem, que Einstein
menciona sua famosa frase em Como vejo o Mundo.
Justiça como tentativa de perfeição
Você pode até fazer o que quer, mas não querer o que quer. Somos imperfeitos. Tanto, que Hamlet diz: “Se se desse a cada um o
Você nada escolheu quando nasceu, que ele merece, quem escaparia da chibata?”. Mas a Justiça é uma de
Não passa de um robô bobo que apareceu. nossas grandes tentativas de perfeição. Caminhamos para a formação
Nem pátria, sexo, cor, da Noosfera. Cabe aos juristas aperfeiçoar as leis e aos juízes aplicá-las,
Nem classe social, levando em conta, sempre, que o crime é uma ficção nossa, como o livre-
Não escolheu sequer o seu milênio, arbítrio... e a própria Justiça.
Mas mata por Alá,
Se nasce em Bagdá,
E mata por Jeová se nasce judeu,
Você nada escolheu quando nasceu.
Não passa de um robô bobo que apareceu.

Resumindo: Todo juiz – como os ficcionistas – tem de trabalhar com W. J. SOLHA


aquilo que Spinosa chamou de visão sub specie aeternitatis, ou seja: paulista de Sorocaba, mas radicado em João
do ponto de vista da eternidade. Tem de procurar interpretar cada ato Pessoa (PB), é autor de História universal da
angústia, coletânea de romances, contos
humano de um ponto de vista parecido com o que se presume seria o
e um roteiro cinematográfico (Bertrand
de Deus. Brasil), O relato de Prócula, romance (Ed. A
Girafa) e Marco do mundo, poema (Ed. Ideia).
32

OS PARQUES
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 33

ABANDONADOS
CONTO DE JOÃO PAULO VAZ

“¡Oh hermano, cuánta vida en esos ojos


que se apagaron de alumbrarnos tanto!”
Julio Herrera y Reissig

C
avalgávamos a leoa de bronze. Sobre “Brucutu babão” – lançou Luiza em pleno parque, para
seu dorso polido pelos nossos fundilhos, nosso espanto maravilhado. O nariz sardento dela, empi-
atravessávamos florestas amazônicas de nado, um palmo abaixo do queixo dele, sem medo algum. E
espadas-de-são-jorge às margem do lago Mauro não fez mais que babar.
dos girinos. Entardecia na Praça General Meninos não brincavam com meninas. Abandonar o fu-
Osório. Tínhamos oito ou nove anos. tebol junto com ela e partir em viagem no dorso da leoa de
Agora cavalgo minha Honda 125, encompridando cami- bronze foi a descoberta de outro parque dentro do parque
nho pelas trilhas da Mantiqueira: Santa Rita de Jacutinga, e, até onde consigo lembrar, meu primeiro gesto de rompi-
Aiuruoca, Itamonte, Santo Antônio. Na contramão das águas mento com o que era esperado de mim.
do Rio Preto, em direção a Mauá. Cada vez mais devagar. Mesmo agora, por que ou por quem, senão Luiza, eu
Na névoa da manhã, um pinheiral azulado desliza entre percorreria outra vez essas estradas desertas, pedregosas e
a estrada e o rio. Quero e não quero chegar, rever Luiza, belas? E a lama das chuvas de março.
dizer adeus. •
Ontem sonhei outra vez com a rajada de metralha- O jardim está descuidado. Duendes de louça espreitam
dora nas costas da mulher que corre e depois a mulher é entre a grama alta do último parque. Espero no portão.
Luiza caída de bruços no asfalto, ensangüentada. Ou: antes Espero na rua, em frente ao banco, metralhadora des-
mesmo de atirar eu já sei que a mulher em fuga é Luiza, ou travada, bloqueando o trânsito. Faz uns cinco minutos que
é e não é mais Luiza, outra Luiza. eles entraram, que Luiza entrou, arma na mão, cabelo cor-
Entre o ronco suave do motor e o do rio, repasso minha tado rente e tingido de preto. O tempo não passa. Os carros
vida sem importância. Só Luiza gravou nela serras e despe- não passam. Já são quatro. Parados, motores desligados.
nhadeiros, o resto é planície. A mulher do aero-willys azul abre a porta, faz menção de
Desde a primeira vez. A menina estranha, cabelo verme- saltar. Eu aponto a metralhadora. “Dentro do carro!”. Ela
lho, metida no futebol dos meninos, e ainda com a insolên- se encolhe de volta no banco. “Fecha a porta”. Ela puxa
cia de se recusar a ficar no gol e o atrevimento de enfrentar depressa a porta, mas não consegue fechar. “Bota a mão
Mauro Foca, temido pelo tamanho e pela raiva fácil que na direção. Todo mundo com a mão na direção!”. Passeio a


transbordava espuma de cuspe nos cantos da boca e porra- mira pelas caras assustadas atrás dos para-brisas. Três tiros
das nos meninos menores – nós todos. soam dentro do banco. Depois silêncio. Se não saírem logo,
34

tenho que entrar. Os carros parados e a porta do banco fechada. A porta E uma senhora na proa”
do aero-willys azul aberta. A burguesinha de merda corre rua abaixo Pitando comigo, no final da tarde, a erva-de-santa-maria que ela
tropeçando nos saltos, vestido preto de alças, costas nuas na mira da mesma plantava, colhia e secava. Luminosa Luiza, cabelos em chamas,
metralhadora. olhos negros brilhantes. “Quando ficar bem velhinha, quero ser uma
O marido atual de Luiza vem abrir o portão. Cansado de noites espécie de bruxa”.
mal-dormidas. •
— Você é o...? Ajudo na cozinha, corto a grama do jardim, revezo a cabeceira de
— Sim. Sou eu – alinho a roda da moto na direção da trilha que Luiza com Alberto. Não falamos sobre isso, mas sei que ele também
atravessa o jardim. sabe o quanto ela está além ou acima de nós dois, e de todos os homens
Luiza está sentada num sofá estampado, azul-escuro – luas e estrelas da sua vida. À noite, depois que ela adormece, fumamos um baseado na
brancas num céu noturno sem nuvens. O cabelo agora é branco. Ela me varanda, sem muita conversa. Ele às vezes me olha como se interrogasse
recebe sem espanto, como se eu viesse aqui todos os dias. o passado.
— Foi doce de você ter vindo. As últimas batalhas estão perdidas. Luiza já não vai mais ao ba-
— Então? nheiro. Revezo com Alberto também a rotina da comadre, o banho na
— Pois é. Quase hora de fazer a passagem. cama. Despir o corpo magro, frágil, passar de leve a esponja de água
Um colar de prismas pendurado na janela espalha luzes coloridas nas morna, acariciando os ossos da primeira mulher a se despir para mim.
paredes. Luiza me mostra uma peça de pedra-sabão polida – uma leoa. Numa barraca de acampamento no Parque de Itatiaia. A maravilha dos
— Lembra da leoa da praça? seios nus sob a luz da lanterna, a dança das sombras no pano da barraca.
• Viagens intermináveis por nossos corpos jovens, recém-descobertos.
Do quarto onde durmo, ouço o barulho do rio. Descobrimos tudo juntos: a Revolução, o amor, o sexo.
O marido atual se chama Alberto. Ex-preso político, renal crônico das Depois, Luiza com outro homem, com outros homens. Luiza de to-
porradas que levou na prisão. Faz diálise em Resende duas vezes por das as revoluções, irritada com meu ciúme. “Você quer o quê? Um casa-
semana, e eu fico cuidando de Luiza. mento pequeno-burguês?”
Ela cai no banheiro, eu a ajudo a se levantar. Da inquietude que ela plantou em mim só ficou esta inadequação
– Pode sair agora – leoa em luta por cada palmo de autonomia que a social crônica e o gosto pelas viagens solitárias. Afora isso, fiz o que de-
doença vai tomando. via fazer. Fui solidário, responsável, honesto, até corajoso uma ou duas
No banco do jardim, entre a grama alta e os duendes, Luiza me fala vezes, quando foi preciso. Trabalhei, casei, construí uma casa. Só não
dos filhos. Dois, de pais diferentes, soltos no mundo. Um engenheiro na tive filhos. Porque não é da natureza perpetuar o vazio.
Alemanha, outro economista em Londres, ou vice-versa. Nas asas da glo- •
balização, acompanhando por e-mail a doença da mãe. Ela prefere assim. Os filhos de Luiza vieram para a semana final. E uma amiga aneste-
“A origem da família, da propriedade privada e do estado”, “Los con- sista que “vai ajudar na passagem”. A casa está cheia demais para mim.
denados de la Tierra”. Luiza e eu na grama do Parque da Cidade, en- No jardim, a impassibilidade dos duendes me irrita.
tre jovens casais e suas máquinas fotográficas, crianças e sanduíches. Me despeço de Luiza de manhã bem cedo.
Engels, Fanon e pão com mortadela. E o guarda do parque: “Que livros No banco, o guarda atirou nela e ela nele. Ele errou o tiro, ela não. Eu
são esses?” – olhos pegajosos nas pernas de Luiza, e ela, olhar desafia- não atirei na mulher que fugia, nem voltei a segurar uma metralhadora
dor nos olhos já desviantes dele, “Nada que seja da sua conta”. “Isso a ou qualquer outra arma. Fugi de Luiza e de tudo o mais. Fui sonhar so-
gente ainda vai ver” – ele se afasta ameaçador. “Vam'bora, Luiza”. “Com zinho meu pesadelo recorrente.
medo de um guardinha borra-botas?”. Eu descobrindo o mundo nos li- Já é inverno. As estradas agora estão secas. Cavalgo outra vez a
vros, ela já cansada deles. “Passou a hora de ler. A hora agora é de agir”. Honda 125, leoa sem dentes e sem brilho, coração de aço.
• De volta à planície, de volta aos parques abandonados.
No final da tarde, Alberto leva Luiza até a varanda para olhar a serra.
Luiza entre as montanhas
Luiza entre outras montanhas, muitos anos depois de os nossos ca-
minhos se apartarem. Lumiar, o bailado do Daime, Luiza passando a João Paulo Vaz
ferro a farda branca de fitas coloridas, cantando hinário. carioca, é engenheiro eletrônico e mestre em Ciência da
Computação. Tem três livros de contos publicados: Sete
“Aí eu botei os olhos
estações (Ed. 7Letras, 2003), A mão do chefe (Ed. Nova
Aí vem uma canoa Porta, 2004) e Sexmaster 5 e outras histórias (Ed. Cais
Feita de ouro e prata Pharoux, 2008).
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 35

REDESCOBRINDO
AS CANTIGAS DE
SANTA MARIA
Affonso Romano de Sant’Anna

A
s Cantigas de Santa Maria d) anexou ao livro um CD onde Sérgio Antônio Como Santa Maria fez ficar o monge trezentos
de Alfonso X, o Sábio, che- Canedo e seu grupo “Chorus Rosa Rosaram” anos ouvindo canto de uma avezinha, porque pe-
garam ao Brasil e isto se interpretam seis das cantigas; dia à Virgem que lhe mostrasse qual era o bem de
deve à Ângela Vaz Leão, e) e alguns desses poemas são belamente di- que gozavam os que se achavam no Paraíso.
que por tal façanha me- tos em galego-português e em português
receria algum prêmio, de atual pela própria professora Ângela Leão. Para os interessados no tema informe-se que
Espanha e Portugal. Do alto de seus 90 anos, além desse Cantigas de Afonso X, o Sábio — an-
essa mestra exemplar (de quem fui modesto Tudo isto revela o toque de dedicação e de tologia, tradução, comentários, Ângela Vaz Leão
aluno) edita pela PUC/MG uma série de volu- paixão pelo tema estudado. Modestamente vem de publicar os seguintes títulos: Cantigas
mes sobre a produção do rei-sábio que no sé- Ângela Leão explica que trabalhou estrategi- de Santa Maria de Afonso X, o Sábio — aspec-
culo XIII, desde Castela e Leão, imperou por camente sobre 42 dos 420 poemas. Abrindo tos culturais e literários, Novas leituras, novos
várias décadas. espaço para que outros sigam suas trilhas. É caminhos: Cantigas de Santa Maria de Afonso
Tal proeza filológica e crítica interessam, mesmo um trabalho de leão (ou leoa). X, o Sábio e foi uma das organizadoras do IV
em princípio, à literatura espanhola, galega e Como ela diz “o culto de Maria atinge o Encontro Internacional de Estudos Medievais
portuguesa. Mas extrapola esses limites e tam- seu apogeu na Europa no século XII e conti- realizado em Belo Horizonte em 2003.
bém serve aos estudiosos da cultura da Idade nua incandescente no século XIII. Nesses dois E nesse contexto fez muito bem a univer-
Media. Aproximei-me primeiramente desse séculos, que coincidem com o trovadorismo sidade PUC/Minas em republicar também dois
tesouro quando fui aluno e monitor do mestre enquanto fenômeno pan-românico, Maria é re- de seus livros: primeiro a História das pala-
português- Rodrigues Lapa, que passou uma presentada no cerne do amor cortês:compara- vras onde Angela Vaz Leão reconstrói o sen-
temporada no Brasil lecionando e pesquisando se a imagem do cristão prosternado aos pés da tido e evolução de vários vocábulos de nossa
os poetas árcades mineiros. Mas agora a pro- Virgem com a imagem do trovador suplicando língua, e também o seu clássico estudo sobre
fessora Ângela realizou um trabalho crítico e à dama da corte o seu amor”. Henriqueta Lisboa. Deste modo, trabalhando
de divulgação em vários níveis: Alfonso X, seguindo a admiração por Maria, sobre a tradição mais antiga e a tradição mais
narrou nesses textos alguns dos mais inusitados moderna, a filóloga, medievalista e mestra es-
a) fez um texto explicativo — parafrásico — milagres atribuídos àVirgem.Dou três exemplos: creve delicada e eficientemente sobre o “mis-
dos poemas; tério da criação poética”.
b) publicou as iluminuras que ilustram os Como a Santa Maria tomou do demônio a alma
textos; do monge que se afogara no rio e o fez ressuscitar.
c) escreveu um estudo crítico sobre as canti- Como Santa Maria curou a mulher do fogo de Affonso Romano de Sant’Anna
gas compostas por Alfonso X; São Marçal que lhe havia comido todo o rosto. mineiro de Belo Horizonte, é poeta e ensaísta.
36

0 SE7ENTÃO
O artista re-devora Oswald de Andrade e
Roberto Schwarz passa em revista as memórias
tropicais do compositor

E
m Estudos sobre a literatura clássica americana Em outro lembra a aparente rivalidade, na década de 1960, entre os
(Zahar, 2012), D. H. Lawrence traça crítica informal, tropicalistas (sobretudo com ele) e Chico Buarque que não aderiu ao
com meandros pessoais, a grandes nomes e obras da movimento tropicalista e seguiu fazendo samba de raiz. Chico é tam-
literatura americana. Nesse sentido, digamos assim, bém antropofágico. Se, como diz Caetano, João Gilberto devorou Dorival
da lucubração passional, Antropofagia, de Caetano Caymmi, Chico Buarque devorou Noel Rosa.
Veloso, se assemelha ao livro de Lawrence. Em um terceiro, fala sobre vanguarda sem dizer grande coisa do as-
O livro de Caetano é um recorte de quatro ensaios do seu livro de sunto e chega ao principal texto que dá nome à publicação. Nele lembra
memórias Verdade Tropical. Exatamente os em que o músico exerce sua o primeiro contato com a obra de Oswald de Andrade que se deu ao
maior verve de crítico. Justificando o paralelo com a obra de crítica do assistir a encenação da peça O rei da vela pelo grupo Oficina, discorre
escritor inglês. O compositor baiano é até mais apaixonado em suas sobre a importância do legado antropófago para a cultura nacional e se
críticas do D. H. Lawrence. detém em excesso no combate a um texto de Contardo Calligaris que diz
No exílio em Londres, quando Caetano colaborava no O Pasquim, seu ser a antropofagia do modernismo brasileiro a falta de um significante
texto era cheio de referências e coloquial. Hoje, apesar da sua linguagem nacional, a falta de um nome do Pai.
está enxuta, vemos ecos desse seu antigo tipo de texto em Antropofagia, É o ensaio com maior profundidade da nova publicação, só desanda
o que, quando ocorre, trunca a leitura. quando o assunto passa a ser Clarice Lispector sem uma maior ligação
No primeiro ensaio, “Poesia Concreta”, fala do bom relacionamento com o tema.
crítico dos poetas concretos de São Paulo, em especial Augusto de A mudança repentina do foco do assunto para Clarice Lispector re-
Campos, com os tropicalistas, de como, direto ou indiretamente, os con- vela o quanto a literatura visceral da escritora demarcou sua trajetória.
cretistas o ajudaram a perceber seu papel no movimento em que era um Suas primeiras leituras de Lispector datam de sua juventude em Santo
dos seus principais formuladores. Amaro. Uma leitura sentimental demais em virtude da força emocional
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 37

Caetano veloso
CLÁUDIO PORTELLA

e psicológica que a escritora imprime em seus Martinha versus Lucrécia (2012), de Schwarz, mais realista, mais conhecedor dos pesos con-
textos. “cobra” do autor maior compromisso com a cretos da vida. Foi sob a ditadura, sobretudo na
Nesse sentido Clarice Lispector defendia cultura nacional (dos anos 1960/1970) do que prisão, que aprendi a odiar o odiável em nossa
a antropofagia, tema anos depois tão caro a com a causa tropicalista. O compromisso com sociedade.”.
Caetano; uma antropofagia do Eu, onde a pró- a causa própria é a constante reflexão de auto- Na mesma entrevista, respondendo a “acu-
pria pessoa se devora a si mesma. análise que persegue o músico baiano. sação” de Schwarz de ter se conformado e ade-
Podemos pensar que o texto psicológico da É necessário entender a si mesmo para só en- rido ao capitalismo diz: “O capitalismo não
escritora, já em Santo Amaro, seria um guia tão contribuir com a cultura popular. Talvez é inquestionável: que a gasolina americana
para o interesse em psicanálise que persegue por isso é que ele tenha se espantado com os tivesse sido enriquecida com chumbo porque
o compositor filmes de Glauber Rocha. Filmes que faziam o isso a fazia mais rentável, e que o empresário
caminho inverso. que usou essa vantagem tenha mantido em se-
O crítico destaca a qualidade literária de gredo a descoberta de que o chumbo era preju-
Caetano e o poder de suas críticas, bem como dicial à saúde pública para não ver cair o lucro;
QUINZE ANOS DEPOIS sua capacidade de perfilar os amigos ilustres e e que, depois de essa descoberta ter-se tornado
sua sensibilidade de sentir o mundo. pública, a gasolina americana tenha reduzido
Após quinze anos da publicação do auto- Não concorda com o “perdão” de Caetano gradativamente até zero seu teor de chumbo,
biográfico Verdade Tropical (1997) o crítico li- aos militares torturadores da ditadura militar mas a brasileira não, por razões de lucro (com
terário Roberto Schwarz escreve sobre ele. Em brasileira. O que o cantor responde em en- todas as implicações de acumulação de capital


tese o ensaio, Verdade Tropical: Um Percurso trevista à Folha de S. Paulo: “A lição aplicada e de reafirmação de poderes imperialistas), é
do Nosso Tempo, publicado em seu novo livro pelos militares surtiu efeito em mim: me fez algo que expõe a que graus de irracionalidade
38

e de desumanidade pode chegar uma organização social que se submeta à exclusiva força da grana. Sou contra. Mas
não quero que os que lutam contra isso possam ganhar poderes autocráticos. Uma revolução feita a partir da origi-
nalidade benigna de um Brasil de sonho deveria não precisar ser sangrenta e poderia, de qualquer modo, orientar
os serviços que alguém queira prestar à Justiça de um jeito diferente daquele que tem sido desenvolvido pelos
movimentos revolucionários da esquerda convencional. Estes têm levado à autocracia e a Estados policiais.
Sou contra. Além disso, quando se diz "capitalismo" o que é mesmo que se está querendo dizer? E Lacan disse
uma vez que o inconsciente é capitalista".
Citar Lacan ao falar de capitalismo é mais uma vez denotar a fixação psicanalítica.
Mas o que o crítico ressalta mesmo de melhor, inclusive com muitos elogios, no livro de memórias
(Coloca-o no mesmo nível dos autobiográficos O Observador no Escritório, de Carlos Drummond de
Andrade e Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira) de Caetano, e que até por isso mesmo ele
chama de quase romance, é a qualidade da prosa que pega o leitor pelas idiossincrasias camale-
ônicas características de Caetano Veloso.
O ensaio traz muitos trechos da obra. A intenção é que o leitor tire suas próprias conclu-
sões das sentenças.
Além da crítica literária positiva ao livro, merece destaque a crítica histórica que
Schwarz faz ao volume de que Caetano caracterizava o movimento tropicalista como
uma postura de crítica anárquica ao país, para três décadas depois, na época em que
Verdade Tropical foi publicado, vê-lo como ufanismo edificante. Não seria isso mais
uma posição antagônica que enriquece a narração?
Fato é que quinze anos para maturar a crítica de um livro é muito tempo para
dizer tão pouco.
JANEIRO/FEVEREIRO 2013 39

O SE7ENTÃ0
Em 7 de agosto de 2012 Caetano Veloso completou setenta anos de idade. O que é com-
pletar essa idade numa época onde a estimativa de vida do Homem parece não ter limites?
Ele é de uma família vivedoura, sua mãe, Dona Canô, este ano completou cento e cinco
anos de idade.
O artista parece recarregar suas baterias diárias na análise (É importante trazer a ques-
tão novamente, por mais que possa parecer que eu esteja querendo forçar a mão: A pri-
meira expressão artística de Caetano Veloso foi a pintura. Ele começou a pintar com talento
aos quatro anos, saindo depois, na adolescência, pelas ruas de sua cidade natal munido de
tintas, pinceis e telas, pintando as paisagens da cidade como numa cena de um filme retrô.
A pintura é a arte que está mais ligada a psicanálise, à identificação do “Eu” ou dos “Eus”.
Nise da Silveira introduziu a pintura como tratamento da esquizofrenia. Doença que em
linhas gerais é a busca inalcançável de uma identidade) e seguir fazendo arte.
Sua discografia é seu certificado de garantia. Seu disco Transa é, para a crítica, o ápice
do seu nível de qualidade. O disco este ano está fazendo quarenta anos. O que é apenas só
mais uma efeméride.
Tudo tem que completar uma idade, desfazer-se numa data: Em 2012 fazem quinze anos
das mortes dos poetas beats William S. Burroughs e Allen Ginsberg; faz também quarenta
anos que seu parceiro tropicalista Torquato Neto se suicidou.
Certamente Torquato não queria ouvir Caetano cantar: “Quando eu for velho, quando
eu for velhinho, bem velhinho, como seremos, como serei, como será?”. E constatar que
tudo permanece exatamente como ele deixou.

CLÁUDIO PORTELLA
é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor
dos livros Bingo! (2003), Melhores Poemas Patativa do Assaré
(2006; 1º reimpressão, 2011), Crack (2009), fodaleza.com
(2009), As Vísceras (2010), Cego Aderaldo (2010), o livro dos
epigramas & outros poemas (2011) e Net (2011).
RUGIDO
LUcienne samôr

Distante ouço um rugido


parece um vórtice a moer
não será o mar se torcendo em suas ondas
como répteis?
Não há mar, acode-me a memória
e esse rugido me assusta.
A noite é sempre uma boca aberta
sedenta, exalando ameaças
de quê?
Temo que sua boca negra me devore.
Não há ninguém para me proteger do desvario da noite.
Quem poderia me salvar está distante
erguendo taças de Champagne Montaudon em saudação Lucienne Samôr
à sua vida, sorri feliz, nem pensa em mim é mineira de Conselheiro Lafaiete. Fez parte
não envia uma carta ou um bilhete de duas sentenças do elenco da revista Estória em meados
dos anos 60. Publicou, em 1975, o livro de
ah, uma sentença bastaria
contos O olho insano (Ed. Interlivros) e tem,
afirmando que virá salvar-me da noite ainda inédito, o romance A minha canção
Do medo, do rugido irmão do mar. desesperada.

Você também pode gostar