Paracelso e o Paragranum: Ensaio de Uma Nova Medicina?: Paracelsus and The Paragranum: Essay of A New Medicine?
Paracelso e o Paragranum: Ensaio de Uma Nova Medicina?: Paracelsus and The Paragranum: Essay of A New Medicine?
Paracelso e o Paragranum: Ensaio de Uma Nova Medicina?: Paracelsus and The Paragranum: Essay of A New Medicine?
História da Medicina
Eder Schmidt1
1
1Universidade Federal de
Juiz de Fora, Psiquiatria,
RESUMO Departamento de Clínica
O artigo avalia o lugar do médico e alquimista suíço Theophrastus Médica, Faculdade de Medicina.
Juiz de Fora, MG - Brasil.
Bombastus von Hohenheim (1493-1541), o Paracelso, na história das
ciências médicas, e o status de revolucionário que lhe é habitualmente
concedido. Seu livro Paragranum, publicado em 1530, traz a mais Instituição:
bem organizada apresentação de suas propostas para a formação e Nome, Sigla estado - País.
prática médicas, bem como de sua oposição ao estilo de pensamento
médico então predominante. O essencial da contribuição de Paracelso * Autor Correspondente:
ao desenvolvimento das ciências médicas reside na ênfase que colocou Eder Schmidt
sobre a abordagem experimental da clínica, em detrimento dos aspectos E-mail: schmidteder.ufjf@gmail.
especulativos e dogmáticos que predominavam na medicina fundada nas com
fontes clássicas. Dados de sua biografia e traços de seu caráter excêntrico
e beligerante são apresentados com o propósito de melhor contextualizar Recebido em: 23/12/2017.
a obra em questão. Aprovado em: 04/04/2019.
Palavras-chave: História da Medicina; Alquimia; Instituições
Acadêmicas; Livros.
DOI: http://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20190016
Rev Med Minas Gerais 2019; 29: e-2022
2 Paracelso e o Paragranum: ensaio de uma nova medicina?
ABSTRACT
The article assesses the place of Theophrastus von Hohenheim Bombastus,
Paracelsus, in the history of medical science as well as the revolutionary
status that is usually awarded to him. His book Paragranum, published
in 1530, brings the most well-organized presentation of his proposals for
medical training and practice, as well as his opposition to the prevailing
medical style of thought. The essential part of Paracelsus contribution
to the development of the medical sciences lies in his emphasis on the
experimental approach of the clinic, rather than the speculative and
dogmatic aspects that prevailed in medicine based on classical sources.
Data of his biography and traces of his eccentric and belligerent character
are presented in order to better contextualize the book in question.
Keywords: History of Medicine; Alchemy; Schools; Books.
e levou a municipalidade de Nuremberg a proibir a publica- Nesse cenário, Paracelso, partindo do hermetismo, bus-
ção dos demais volumes da obra de Paracelso.18 cava fugir do estilo de pensamento então hegemônico, en-
A redação do Paragranum se iniciaria pouco depois de tendendo o homem como um microcosmo: uma represen-
Paracelso deixar Basileia. A obra, publicada em 1530, apre- tação perfeita do macrocosmo em que habitava, e cujo corpo
senta e desenvolve sua visão sobre os quatro fundamentos da era dotado de órgãos que podiam ser postos em conexão
Medicina: a filosofia, a astronomia, a alquimia e a virtude. com os astros. Essa correspondência se estenderia, igualmen-
Paralelamente, ela condenava a formação médica calcada na te, à terapêutica, sendo necessário que o remédio prescrito
mera transmissão dos dogmas da Antiguidade. Foi por essa estivesse em conjunção com os astros. Caso contrário, ele
medicina que ele tentou mudar o currículo da Faculdade da apenas “permaneceria no estômago, sairia pelo intestino em
Basileia, acabando por ser vencido pelos galenistas. seguida, e ficaria sem efeito”.5
O estereótipo da alquimia como uma ciência cuja meta
era a gananciosa transformação de metais comuns em ouro
As diversas “medicinas” e suas fontes era, segundo Paracelso, equivocado. A transmutação seria
A descoberta de antigos manuscritos sobreviventes nas apenas uma forma de intervenção sobre a matéria a fim de
bibliotecas de mosteiros é uma característica marcante da elevá-la ao valor máximo na natureza – o Ouro, o metal mais
passagem do período medieval para o renascentista. Com perfeito. Também para o homem, o que a alquimia procu-
eles surgia, a partir do século XVI, um crescente interesse rava experimentalmente era algo além da mera cura de suas
pela ciência e pela medicina da Antiguidade.4 Os textos de doenças, pretendendo conduzi-lo à perfeição.
Hipócrates e Avicena se tornaram referências para a medi- Um desdobramento dessa teoria era a possibilidade da
cina então vigente, mas o grande fundamento da medicina ressurreição das coisas e dos seres vivos, incluindo os seres
renascentista seria a obra de Claudio Galeno (130-210), de humanos. Na abordagem da ressurreição das coisas naturais,
Pérgamo. livro sexto da obra De Natura Rerum, Paracelso afirmava:
Paralelamente, no entanto, a redescoberta do Corpus “Tudo quanto a Natureza destrói, o homem não pode res-
Hermeticum foi também determinante dos caminhos se- taurar. No entanto, o que o homem destrói, ele pode restau-
guidos pelas ciências médicas na Renascença. O Corpus rar e, uma vez restaurado, destruir novamente”.20
Hermeticum era um conjunto de escritos abrangendo al- A continuidade da vida e a preservação dos corpos se
quimia, filosofia, teologia e astrologia, atribuídos a Hermes devia a uma força vital a que Paracelsus dava o nome de
Trismegistus, personagem das mitologias grega e egípcia.19 “archeus”.18 Localizado no estômago, caberia a esse “alqui-
Tendo sido redigidos nos primeiros séculos da era cristã, eles mista interno” separar, em meio àquilo que ali chegava, os
foram divulgados na cultura moderna a partir das traduções alimentos dos venenos. Para ele, a diferença entre o remédio
de Marcílio Ficino a partir de 1463, despertando o interesse e o veneno estaria na dose: “Todas as coisas são veneno e
pela magia e pela a relação do homem com o macrocosmo. nada é desprovido de veneno. Somente a dose faz com que
A Espagiria, ou “medicina hermética”, era a aplicação das uma coisa não seja veneno!”14
leis da alquimia à clínica, buscando-se, em laboratório, isolar
a matéria essencial da matéria grosseira de um corpo qual-
quer, para transmiti-la com suas virtudes ao indivíduo cuja
O Paragranum
saúde estivesse abalada. Haveria uma relação entre as três Após os episódios vividos na Basileia e em Nuremberg,
dimensões do macrocosmo – o mundo material, o mundo Paracelso seguiu para St. Gall, onde permaneceu durante
astral e Deus - e as três dimensões do homem ou microcos- dois anos, sob a proteção do prefeito Joachim Vadianus,6 re-
mo - o corpo, a alma e o espírito -, cujas forças constitutivas, digindo o Paragranum e o Opus Paramirum, repetindo por
por sua vez, seriam o enxofre, o mercúrio e o sal.20 Todas as mais duas vezes o prefixo “para”: Paragranum, Parágrafo, du-
doenças expressariam um desequilíbrio na ação desses ele- as obras intituladas Paramirum, uma delas com um capítulo
mentos, revertido com a utilização das tinturas, quintessên- Parenthesis, além, é claro, do pseudônimo que ele adotou.
cias e elixires obtidos no trabalho laboratorial. Ainda que não haja um consenso entre os estudiosos do pen-
A medicina galênica, por outro lado, prescindindo da samento paracelsiano, entende-se que aquele prefixo expres-
experimentação, partia da tradição grega, pressupondo a saria a intenção de Theophrastus de ir além de.22
existência de quatro elementos – o fogo, o ar, a terra e a “Ir além”, nesse momento, significaria sustentar teorica-
água – referidos aos quatro humores – o sangue, a bile ama- mente a posição crítica que adotara em Basileia perante os
rela, a atrabile e a fleuma – sendo necessário que cada um médicos e os acadêmicos representantes da medicina tradi-
desses quatro elementos se associasse a duas entre quatro cional, com a proposta de se impor ao modelo de formação
qualidades opostas – o frio, o quente, o seco e o úmido. e prática médicas que ele considerava falso e corrupto. No
A sanidade, ou eucrasia, corresponderia ao equilíbrio entre prefácio ao Paragranum ele afirmava: “Eles me acusam por
esses diversos fatores, enquanto a doença, ou discrasia, seria eu escrever coisas diferentes das que são encontradas em
um produto do desequilíbrio entre eles, exacerbando alguma seus escritos. Isso não acontece por ignorância minha, mas
dessas qualidades. Nesse sentido, a terapêutica consistiria em pela deles”.5 E, logo adiante, ele declarava explicitamente a
reforçar a qualidade contrária, restabelecendo o equilíbrio.21 proposta da obra: “Estabelecerei, portanto, a base a partir
Desconsiderando a constituição dos elementos curativos, a da qual a minha escrita prossegue, colocando-a em quatro
farmacologia galênica se distinguia radicalmente da terapêu- pilares: a filosofia, a astronomia, a alquimia, e a virtude”.5 E
tica espargírica, laboratorial, elaborada a partir da essência mais uma vez atacava os galenistas: “Eles são os inimigos da
de seus elementos. Na prática, assumindo dogmaticamen- filosofia, da astronomia, da alquimia e das virtudes”.5
te as teorias dos autores clássicos, a medicina do início do No Paragranum, ele transforma esses quatro pilares (que,
século XVI era exercida e ensinada desde uma perspectiva em essência, já circulavam por outros textos), em uma dou-
tradicionalista. trina. Repleto, desde o prefácio, de ressentidas críticas, não
Rev Med Minas Gerais 2019; 29: e-2022
Paracelso e o Paragranum: ensaio de uma nova medicina? 5
só contra seus detratores em Basileia, mas também contra as Segundo Didier Kahn23, entre a metade e o final do sé-
autoridades de Nuremberg e os seguidores de Stroner, a obra culo XVI teria ocorrido uma importante e entusiasmada re-
desfia um rosário de denúncias éticas contra os tradicionalis- leitura dos escritos de Paracelso. O interesse pelo autor, que
tas: “Esse método de aprendizagem é doutoral ou assassino? pouco após sua morte passaria a ser admirado como mestre
(...) Deus fez a medicina para que ela desse, e não tirasse, a da alquimia, desdobrou-se em um interesse pela própria al-
vida”.5 quimia – ainda que vários de seus seguidores, convenien-
Para ele, a filosofia seria a mãe da medicina.5 O médico – temente, desconsiderassem a rejeição do “mestre” à trans-
ou philosophus – deve ser conhecedor dos céus e da terra, ca- mutação de metais em ouro. Além disso, teria havido outro
da uma dessas dimensões dando origem a um aspecto de seu ponto de grande interesse na obra de Paracelso: a palingênese,
trabalho. Ele deve entender que o céu e a terra constroem técnica de ressurreição a partir das próprias cinzas, a restau-
o Microcosmo e saber identificar as condições de ambos a ração de seres vivos e inanimados, resgatada por Joseph du
partir daquele. Sendo assim, o philosophus não percebe nada Chesne (1546-1609) em texto baseado no De natura rerum,
no céu e na terra diferente daquilo que ele percebe no ser de grande influência sobre os cientistas franceses do século
humano, e vice-versa. XVII,24 reabrindo na França a querela Galeno – Paracelso.
A importância de se entender o homem trazendo em si o Em Paracelsus and his Influence, Jules Andrieu25 aponta-
Universo, e a afirmação desse entendimento como atributo va: “Louco, charlatão, impostor – junto aos historiadores,
essencial para o verdadeiro médico, são centrais no capítulo nenhum adjetivo é ruim o suficiente para ele; e ainda assim
Astronomia. Ela seria a ciência que busca elucidar com a re- eles são forçados a admitir que este aventureiro impuden-
lação entre o micro e o macrocosmo, entre a Esfera Superior, te desencadeou uma revolução necessária”.25 Mas, antes de
ou o “grande mundo”, e a Esfera Inferior, o “pequeno mun- qualificar a revolução instaurada por Paracelso, é necessário
do”. O mal que aflige o homem provém de influências as- indagar se ele, efetivamente, desencadeou alguma revolu-
trais invisíveis atuando sobre o corpo. Para o sucesso de um ção. Uma “revolução científica”, no sentido proposto por
tratamento, seria necessário identificá-las. Kuhn,26 certamente não. Afinal, para Kuhn, a implantação
A alquimia seria a mais elevada e grandiosa arte médica, de um novo paradigma pressupõe a rejeição radical do ante-
e, caso o médico não tivesse grande experiência nesse campo, rior, tornando praticamente impossível a assimilação dos an-
toda a sua prática seria em vão.5 Mais do que a mera elabo- tigos conceitos aos conceitos adquiridos. Esse não foi o caso,
ração de medicamentos, o exercício da medicina englobaria com Paracelso. A aceitação do paracelsianismo não se deu à
todos processos da vida, em uma alquimia aplicada. Só ela custa da rejeição do galenismo. Um exemplo da convivência
possibilitaria a compreensão da química da vida e dos pro- das doutrinas galênica e paracelsiana pode ser encontrada
cessos vitais, permitindo um tratamento. Kahn observa que, na abordagem dos “Princípios reguladores da Medicina”, na
abominando seu uso na proposta de fabricação do ouro, a Encyclopaedia organizada por Johann Alsted, publicada em
alquimia era, segundo Paracelso, uma técnica para a puri- 1630.27 Ali é proposta uma cuidadosa consideração das dife-
ficação das substâncias, especialmente minerais, extraindo renças e convergências entre a medicina galênica e a hermé-
delas sua essência mais sutil e possuidora de uma capacidade tica, para que se pudesse discriminar entre as situações em
curativa, a que ele denominava arcanum.23 Esse princípio que se deveriam utilizar princípios galênicos ou princípios
ativo, o arcanum, traria a propriedade curativa intrínseca herméticos.
existente nos corpos e em cada substância, assim como nas Porém, à parte as teorias de Kuhn, seria válido tomar
pedras e nos metais. Nele repousaria o princípio da cura; como revoluções eventos que determinaram mudanças con-
identificá-lo e isolá-lo representaria a conquista maior para ceituais profundas, com a aceitação de novos postulados e
um médico. Repetindo o que afirmara ao discutir a astrono- novas formas de conhecimento, fazendo surgir teorias que
mia, ele advertia que uma medicação deveria trazer a concor- abarcavam esses e outros elementos. Isso o paracelsianismo
dância entre a virtude nela contida, o arcanum, e os astros. provocou, e o Paragranum é uma marca desse corte. Henry
Caso contrário, ela permaneceria inativa no estômago até ser Patcher11 entende que uma revolução paracelsiana deva ser
expulsa com as fezes. considerada parte do movimento renascentista, comparando
Após descrever os três primeiros pilares da medicina, Paracelso a Copérnico, por ter lançado um novo olhar sobre
Paracelso aponta para aquilo a que está condicionado o de- a relação entre o micro e o macrocosmo.
sempenho desse ofício: a virtude. Sem ela, o médico não di- Mas, e quanto a um verdadeiro “paracelsianismo”? Teria
fere dos lobos que tomam para si as ovelhas, retirando dos havido algo que merecesse tal nome? Segundo Pumfrey,28
pacientes tudo o que eles possuem.5 O médico deve ser puro essa suposta tendência doutrinária teria sido, em grande
e casto; sua bondade deve afastá-lo da concupiscência, do medida, uma construção de historiadores que, destacando
orgulho, da astúcia e de outros sentimentos semelhantes. Ele um emaranhado de conhecimentos remotamente baseados
deve proceder em conformidade com a ordem estabelecida nas inovações de Paracelso, tentavam construir um sistema
pela natureza, e não pelo homem, já que o médico não está inteligível e coerente. Para Kahn,23 por outro lado, o para-
sujeito ao ser humano, mas somente a Deus, pelo caminho celsianismo teria sido, de fato, uma vasta corrente de ideias
da natureza. A lealdade do médico não se resumiria à aten- apoiadas no pensamento de Paracelso, ainda que possa ser
ção que dedica ao paciente: ela teria início no empenho em difícil conceituá-lo com clareza. Ele considera que essa cor-
aprender o que é necessário para sua prática. A virtude, um rente, ao fim da Renascença, repousava sobre suas ideias a
fundamento trazido do berço, estaria distante dos velhos respeito da filosofia da natureza, da medicina, da alquimia,
médicos “cultivados na deformidade, cobertos de musgo e da magia e da astrologia.
enredados na podridão”.5 Hugh Crone18 lista alguns pontos característicos de
um paracelsianismo: a rejeição às autoridades médicas da
Antiguidade, a ênfase na química, a noção da existência de
Os séculos seguintes agentes específicos atuando sobre cada órgão, a capacidade
do corpo para curar a si mesmo e o dever médico de respeitá- da natureza regido por leis, e que retirava o ser humano no
-la, o macrocosmo refletido no microcosmo, entre outros.18 centro do universo. Para além das turbulências de sua vida,
Por outro lado, para Harry Coulter,29 haveria uma di- ele desencadeou um processo de ampliação e reformulação
ficuldade de se encontrar um princípio organizador para a do conhecimento, que levou a mudanças equivalentes a uma
obra paracelsiana pelo fato de ele ter sido, a um só tempo, revolução científica.
filósofo, místico, alquimista, astrólogo, além de um homem De seu estilo agressivo surgiam repetidas desqualificações
profundamente religioso. Coulter entende que a abordagem dos médicos e da medicina clássica, como em seu Volumen
mais correta do pensamento paracelsiano seria a partir da medicinae paramirum: “Não imagine que nós não conheça-
experiência de Paracelso como médico, por entender que to- mos seus livros só porque não os seguimos. Não o fazemos,
das as suas outras faces surgem a partir de uma meta inicial, porque não nos agrada o estilo de sua escrita e suas atitudes,
basicamente, a cura de enfermos. Para Coulter, portanto, sua e porque vocês são equivocados e inexperientes, como de-
clínica seria o denominador comum entre as diversas facetas monstraremos mais detalhadamente”.30 Pode-se dizer que o
do seu pensamento. Quanto às incoerências em seu corpo tempo demonstrou que, nessa querela, todos estavam par-
teórico, elas decorreriam do fato de que suas teorias emer- cialmente equivocados. No entanto, tanto os clássicos quan-
giam diretamente de sua prática, fazendo com que diferentes to Paracelso permanecem vivos, cada um com seu quinhão
experiências conduzissem a diferentes teorias, que nem sem- de acréscimos, de curas e de reconhecimento.
pre remetiam a uma lógica unificada. Deve-se acrescentar Paracelso esteve imerso numa atmosfera revolucionária,
que, em sua maior parte, o texto de Paracelso é de difícil em um período marcado por profundas transformações que,
compreensão, articulando conceitos datados e derivados do de alguma maneira, foram antecipadas e preparadas pelo
hermetismo, de pouca clareza para o leitor contemporâneo, próprio movimento – ou desenvolvimento – da ciência. Em
o que inspira interpretações presentistas. seu tempo, vários nomes se empenharam em levar à frente
Para Jean Baptista van Helmont (1579-1644), que en- as inovações que emergiam nas diversas áreas. Algum ou-
campou muitos de seus conceitos, Paracelso foi um precur- tro poderia ter assumido o difícil encargo de sintetizar in-
sor da verdadeira medicina, enviado por Deus, e quase um tuições dispersas, arcando com o custo de romper com o
século e meio depois de sua morte elementos de sua iatro- modelo vigente. Poderia, sim, algum outro tê-lo feito, mas
química ainda poderiam ser encontrados em Thomas Willis quem assumiu o encargo foi o excêntrico Philippus Aureolus
(1621-1675), professor de Filosofia Natural em Oxford. Theophrastus Bombastus von Hohenheim, o Paracelso, um
Desconsiderando a fisiologia humoral de Galeno, Willis en- suposto detentor do poder de transformar os metais em ou-
tendia que os movimentos do corpo e da alma seriam regi- ro, pretensamente instruído por Deus sobre como prolongar
dos pelas reações químicas entre as partículas constituintes a vida, mas que morreu pobre e difamado com apenas 48
do próprio corpo, Espírito, Enxofre, Sal, Água e Terra. anos.
Paracelso, sua química e sua história foram temas para
personagens de peso no ensino médico dos séculos seguin-
tes. William Cullen (1710-1790), catedrático de Química Referências
em Edimburgo na segunda metade do século XVIII, citava 1. Koyré A. Do mundo fechado ao universo infinito. 4ª ed. Rio de
Paracelso como protagonista de uma considerável revolução Janeiro: Forense Universitária; 2006.
na química e na medicina, atribuindo a ele a descoberta e a
o uso clínico de vários medicamentos.17 Essa importância 2. Fleck L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo
foi ratificada por Louis Bourget,9 catedrático em Terapêutica Horizonte: Fabrefactum; 2010.
na Universidade de Lausanne. Para ele, Paracelso defendia 3. Michaud LG. Biographie Universelle Ancienne et Moderne
o rigor no estudo dos medicamentos, atribuindo a cada um Tome 32ème. Paris: Delagraveet Cie; 1843.
deles virtudes especiais, identificando um grande número de
propriedades ainda não exploradas no uso cotidiano. 4. Debus AG. The French Paracelsians: The Chemical Challenge
to Medical and Scientific Tradition in Early Modern France.
Cambridge: Cambridge University Press; 1991.
Conclusão 5. Paracelsus. Paragranum. In: Paracelsus (Theophrastus Bombas-
De maneira geral, as contribuições de Paracelso que che- tus von Hohenheim, 1493–1541) Essential Theoretical Writ-
garam à medicina atual não são muitas. Koyré8 menciona os ings. Boston: Brill; 2008.
medicamentos metálicos e o ópio. Quanto à descoberta do
éter como anestésico, Pagel12 coloca em dúvida sua autoria, 6. Grell OP. The enigma of Paracelsus. In: Grell OP, ed. Paracel-
enquanto Crone18 questiona se Paracelso o teria empregado sus: the man and his reputation, his ideas and their transforma-
dessa maneira, já que relata com clareza seu uso apenas na tion. Leiden; Boston; Köln: Brill. 1998. p. 1-20.
epilepsia. O que é nele inquestionável é a consolidação de 7. Hartmann F. The life of Philippus Theophrastus Bombastus of
uma medicina laboratorial e de uma clínica baseada na ob- Hohenheim known by the name of Paracelsus. London: Kegan,
servação, constituindo as duas dimensões de seu empirismo. Paul, Trench, Trubner & Co; 1887.
Independentemente de ter havido, ou não, contribui-
ções duradouras à clínica, ou de ter existido, ou não, um 8. Koyré A. Paracelse: (1493-1541). Paris: Éditions Allia; 2004.
movimento bem caracterizado a que se possa chamar para- 9. Bourget ML. Leçon d’ouverture de thérapeutique et matières
celsianismo, as ideias de Paracelso impuseram um ruidoso médicales. In: Discours et leçons prononces a l’ouverture des
questionamento à formação e à prática médicas. Talvez não cours du 1ère semestre de l’Université de Lausanne. Octobre
se possa mesmo reencontrar muito de seus conceitos em 1890. Lausanne: l’Université de Lausanne; 1891.
autores posteriores, mas, como enfatiza Patcher,11 Paracelso
construiu uma teoria que pressupunha um funcionamento
Rev Med Minas Gerais 2019; 29: e-2022
Paracelso e o Paragranum: ensaio de uma nova medicina? 7
10. Garrison FH. An introduction to the history of medicine: with 21. Gonzalès J. Initiation à l’histoire de la médecine et des idées médi-
medical chronology, suggestions for study and bibliographic cales: comprendre pour mieux savoir. Paris: Heures de France; 2005.
data. 3rd ed. Philadelphia: WB Saunders; 1921.
22. Weeks A. Paracelsus: Speculative Theory and the Crisis of the Early
11. Patcher H. Paracelsus: magic into science. New York: Henry Schu- Reformation. Albany: New York University Press; 1979.
man; 1961.
23. Kahn D. Alchimie et Paracelsisme en France à la fin de la
12. Pagel W. Paracelsus: An Introduction to Philosophical Medicine in Renaissance (1567-1625). Genève: Librairie Droz; 2007.
the Era of the Renaissance. 2nd ed. New York: Karger; 1982.
24. Kahn D. La question de la palingénésie, de Paracelse à H. P.
13. Riviere P. La Médecine de Paracelse. Paris: Editions Traditionnel- Lovecraft en passant par Joseph Du Chesne, Agrippa d’Au-
les; 1988. bigné et quelques autres. 2005. [citado 2014 Set 14]. Dispo-
nível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-00759689v1
14. Paracelsus. Die vierte defension wegen meines Landfahren. In:
Paracelsus: Das Buch Paragranun/Septem Defensiones. Berlin: 25. Andrieu J. Paracelsus and his Influence. In: The Encyclo-
Berliner Ausgabe; 2013. paedia Britannica, 9th and 10th eds. [citado 2015 Jan 24].
Disponível em: http://www.1902encyclopedia.com/A/ALC/
15. Universität Basel. Paracelsus in Basel. [citado 2014 Dez 4]. Dis-
alchemy-06.html
ponível em: https://unigeschichte.unibas.ch/fakultaeten-und-
-faecher/phil.nat.-fakultaet/zur-geschichte-der-phil.nat.-fakultaet/ 26. Kuhn T. A estrutura das Revoluções Científicas. 5ª ed. São
pharma-paracelsus.html Paulo: Perspectiva; 1998.
16. Stoddart AM. The life of Paracelsus Theophrastus von Hohen- 27. Alsted JH. Encyclopaedia septem tomis distincta. Herborn
heim (1493-1541). London: John Murray; 1911. Nassoviorum: [editor desconhecido]; 1630.
17. Christie JRR. The Paracelsian Body. In: Grell OP, ed. Paracelsus: 28. Pumfrey S. The spargyric art; or, the impossible work of
the man and his reputation, his ideas and their transformation. separating pure from impure paracelsianism: a historiogra-
Leiden; Boston; Köln: Brill; 1998; p. 269-92. phical analysis. In: Grell OP, ed. Paracelsus: the man and
his reputation, his ideas and their transformation. Leiden;
18. Crone HD. Paracelsus: The Man Who Defied Medicine: His Real
Boston; Köln: Brill; 1998. p. 21-52.
Contribution to Medicine. Melbourne: The Albarello Press; 2004.
29. Coulter H. Divided legacy: a history of the schism in medi-
19. McGraw J. The Life and Legacy of Hermes Trismegistus. Alch J.
cal thought. Band 1 - The patterns emerge: Hippocrates to
2005;3(4):2-14.
Paracelse. Washington: Wehawken Book; 1994.
20. Paracelsus. De Natura rerum. In: Paracelsus: Essential Readings.
30. Paracelsus. Volumen Medicinae Paramirum. Translated by
Berkeley: North Atlantic Books; 1999.
Kurt Leidecker. Baltimore: The Johns Hopkins Press; 1949.